O caminho dos currais do Rio das Velhas - A estrada real do sertão - Eugênio Marcos Andrade Goulart

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Belo Horizonte 2009


O Caminho dos Currais do Rio das Velhas: a Estrada Real do Sertão Projeto Gráfico, Capa e Ilustrações: José Eduardo de Freitas Cezar Revisão de texto: Letícia Fernandes Malloy Diniz Direitos exclusivos Copyright © 2009 by Cooperativa Editora e de Cultura Médica Ltda Av. Alfredo Balena, 190 30130-100 - Belo Horizonte - MG e-mail: coopmed@coopmed.com.br ADC (Atendimento Direto ao Cliente): Telefone: (31) 3273-1955 http:://www.coopmed.com.br

Goulart, Eugênio Marcos Andrade G694 O caminho dos currais do Rio das Velhas: a Estrada Real do Sertão / Eugênio Marcos Andrade Goulart. - - Belo Horizonte: Coopmed, 2009. 213p. il. ISBN: 978-85-7825-026-3 1. Minas Gerais/história. 2. Literatura e História. 3. Velhas, Rio das, Bacia (MG). 4. Cidades e vilas na literatura. 5. Literatura brasileira. I. Título. CDU: 869.08

Todos os direitos autorais reservados e protegidos pela lei federal nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998. É proibida a duplicação ou reprodução desta obra, no todo ou em parte, sob quaisquer formas ou por quaisquer meios (eletrônico, mecânico, gravação, fotocópia ou outros) sem a permissão prévia, por escrito, do Editor.


Para meu leitor mais entusiasmado, meu tio Roberto Santos Andrade, o maior contador de histĂłrias da famĂ­lia.



E como eu palmilhasse vagamente uma estrada de Minas, pedregosa, e no fecho da tarde um sino rouco se misturasse ao som de meus sapatos que era pausado e seco; e aves pairassem no céu de chumbo, e suas formas pretas lentamente se fossem diluindo na escuridão maior, vinda dos montes e de meu próprio ser desenganado, a máquina do mundo se entreabriu para quem de a romper já se esquivava e só de o ter pensado se carpia.

Carlos Drummond de Andrade

Trecho do poema A Máquina do Mundo. In: Reunião (10 livros de poesia). 4. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1973.



Prefácio A passagem do tempo gera a senatoria em um médico pediatra, professor da vetusta Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais. Sei como é: com o tempo, a deusa Medicina torna-se uma amante sem graça, bem conhecida, cujo fascínio e desafio se perdera, em grande parte. Médicos são curiosos contumazes. É quando então eles - nós buscam outros campos, onde vertem seu talento para anamnesticamente - pesquisar. Esta vida está cheia de ocultos caminhos, tais quais o rolar das águas pelos sumidouros, dos quais o nosso carste é exemplar. Minas é montanhas de ferro e grutas calcárias, com o ouro de aluvião já extraído e levado para terras estrangeiras. As Minas são seus rios: o das Velhas - Guaicuy - e o da integração nacional - o Chico. São também o Pardo, o Doce, o Jequitinhonha, o Paranaíba e o Grande. Foi o metal da cobiça que criou as Minas. Para conquistálo, criou-se um país: Minas Gerais, fulcro, centro, pedra de toque, fecho de abóbada das pedras soltas do até então arquipélago litorâneo tropical temperado, no lado oeste da bacia do Atlântico. A partir de 1693, Minas Gerais, ao constituir-se, garimpou o Brasil. O professor Eugênio Marcos Andrade Goulart, membro do Projeto Manuelzão de preservação do rio das Velhas, foi picado pela mosca azul do fascínio pelo rio e, logo, por suas estradas, seus marcos, sua história e seus circuitos geográficos. Assim, encontrou suas gentes.


Minas não nasceu asfaltada. Matas e savanas - o cerrado -, rios e picos, capistranas e monumentos balizaram o árduo, o inóspito território das Minas e dos Gerais. Eugênio Goulart reencontrou-os. Tornou-se um aficionado destes sertões. Diferenciou-se: geógrafo, andarilho, viajor, historiador, coletor de "causos", conhecedor aguerrido e culto dos poucos mais de três séculos de travessia do alteroso povo. Eugênio teve que escrever. O Caminho dos Currais do Rio das Velhas : a Estrada Real do Sertão é leitura agradável, que captura nosso interesse e nos preenche de tantas e tantas lacunas sobre a origem e as vicissitudes deste mundo-montanhoso, que nos acolhe e nos sustenta. Viver é buscar encontros fecundos. Seu livro anterior, De Lucy a Luzia - a longa jornada da África ao Brasil, fez-me conhecêlo. Agora sei que posso tê-lo como sábio instrutor pelos caminhos da serra do Espinhaço. Ele foi saber como aconteceram as coisas e resgatar as marcas e as trilhas percorridas por nossos pioneiros. Minas Gerais, é bom reconhecer, continua produzindo filhos de excelência. Este livro evidencia o quanto a História, a Geografia e a Cultura contribuem fecundamente para a formação do povo e para a civilização mineira. O que não se sabe de todo é o que motiva pessoas a escalar o monte Everest ou a procurar alguma coisa, longínqua e mal definida - que se encontra lá, na segunda margem do rio. A pulsão epistemofílica é a estrela que nos atrai para o azul. Marco Aurélio Baggio Psiquiatra, Presidente Emérito do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais, Presidente da Arcádia de Minas Gerais e Presidente da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores


Sumário

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Um íntimo e revelador começo para esta história

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As primeiras trilhas do interior brasileiro - O caminho Peabiru dos guaranis e a montanha de prata dos incas - A lenda da serra Resplandescente, brilhante de tanta esmeralda - Estradas para as Minas dos Matos Gerais

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Ouro Preto: a glória de ter sido a maior cidade das Américas - Vila Rica: fim e início do Caminho dos Currais - Galgando montanhas: a travessia do vale do rio Doce para o São Francisco - Glaura e Acuruí: breve prosperidade no período colonial - Rio Acima: onde as cachoeiras impediam a navegação pelo rio das Velhas


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Sabará: ilhada por montanhas que foram auríferas - Uma garrafa, uma carta e uma mina de ouro - Sabarabuçu incendiada na guerra dos Emboabas - O apogeu da Comarca de Sabará - As Minas e os Gerais vistos da capela de Soledade

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Santa Luzia: antigo entreposto do sertão mineiro - A vila de Sumidouro, o motim e a tragédia de Fernão Dias - Um monumento apenas a Caxias e os muitos heróis anônimos - Macaúbas das Freiras, a primeira escola feminina das Minas - O refúgio dos estigmatizados morféticos

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Lagoa Santa: testemunha de um passado remoto - Peter Lund, o pai da paleontologia brasileira - Charles Darwin e o berço mineiro da teoria da evolução - Luzia, a mais antiga americana

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Jaguara: retrato da decadência do poder - Trilhas para Pitangui, Goiás e Cuiabá - Ruínas da majestosa Igreja de Nossa Senhora da Conceição - Fortaleza de São José, o primeiro registro cartográfico da Estrada Real - Jequitibá: marcada pelas enchentes do rio das Velhas


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A ramificação para o Mato Dentro: a subida da serra do Espinhaço - Jaboticatubas: de fazendeiros desbravadores a extra-terrestres - O relato de uma tenebrosa travessia do rio Parauninha em 1801 - Santana do Riacho e o maior cemitério paleoíndio das Américas - O provável caminho usado por Fernão Dias para vencer a cordilheira

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Serra do Cipó: guardiã de uma das maiores biodiversidades da Terra - A trilha do contrabando no espigão mestre da serra - A estrada dos escravos para Morro do Pilar - Memórias dos habitantes do pico do Breu - O Parque Nacional da Serra do Cipó: Reserva da Biosfera

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Bacia do rio Paraúna: fonte borbulhante de antigas histórias - As águas bentas que correm da serra - Vilas que ficaram quase perdidas no tempo - Águas indecisas: o encontro dos vales do São Francisco, Doce e Jequitinhonha

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Santo Hipólito: o encontro visionário da hidrovia com a ferrovia - Os melancólicos vestígios da hidrovia - Os despojos da ferrovia * O rio Pardo e suas desconhecidas cachoeiras e grutas


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Diamantina: as alturas do Espinhaço - Curiosas pedras brilhantes, boas para tentos no jogo de gamão - Tijuco: o lugar que já foi o mais rico do mundo - Relatos dos naturalistas europeus dos anos de 1800 sobre o Espinhaço - O descortinado atalho para Morro do Pilar pela crista da serra

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Lassance: no coração do sertão - Rio Curimataí, água limpa a contribuir para a purificação do Velhas - Morro da Garça: o caminho mais curto para a Bahia - Naufrágio, assombração e caipora

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Barra do Guaicuy: a entrega das águas ao São Francisco - Ruínas da igreja mais antiga de Minas Gerais - O Grande Sertão Veredas está em toda parte - Navegação rio abaixo: destino oceano Atlântico

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A luta da antiga estrada para não morrer

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Bibliografia consultada

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Créditos das fotografias e ilustrações


Minas Gerais a serra do Espinhaço os rios das Velhas e São Francisco as principais trilhas do período colonial



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ssim falou Jovelina Miranda, moradora em um alto de montanha na vertente oeste da serra do Espinhaço, bem no centro geográfico de Minas Gerais: “A estrada dos escravos num passava aqui não! Vê se os carros-de-boi iam poder com aquela subida da porteira, um despropósito de rampa? O caminho passava de través no paredão, enviesando, e suvertia prá trás do morro, rumo do espigão da serra. O talho na pedra tá lá, de prova. Foi usada depois pelos ingleses, quando do garimpo na Mina do Gigante. Foi meu pai quem me contou e quem contou prá ele foi o pai dele. Agora ninguém mais passa ali, ficou ao Deus-dará. Quem procurar direitinho acha a trilha, as lajes pisadas, o passadio dos antigos.” E, de fato, a estrada centenária está lá! Escondida pelo cerrado, fica difícil pegar o início da trilha no pé da encosta, já que nos patamares dos campos de altitude não existem mais vestígios. Mas, ao chegar à escarpa de pedra, desde que no ponto exato, a estrada surge nítida. Os dois metros de corte na rocha bruta não deixam dúvidas: é obra de seres humanos, de um tempo passado.


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Um íntimo e revelador começo para esta história

É como desenterrar um baú de antigas riquezas. A subida na diagonal é contínua e suave; em alguns trechos, grandes blocos calçam o chão para uniformizar o aclive. O polimento das arestas testemunha que, realmente, foram pedras pisadas durante muitas e muitas décadas. O caminho é um ramo esquecido da Estrada Real do Sertão, já que fazia parte da malha de tráfego do período colonial na bacia do rio das Velhas. O primeiro roteiro foi estabelecido pelo índios há muitos milênios, como atestam fósseis, ferramentas primitivas e pinturas rupestres ao longo do percurso. Um dos primeiros homens brancos a utilizar parte da trilha foi Fernão Dias, em 1676, quando deixou a vila de Sumidouro em direção à sonhada serra Resplandescente, que se situaria ao norte. Pela mesma rota retornou anos após, para morrer de febre palustre às margens do caminho. Este braço da estrada serpenteava ao longo da serra do Espinhaço, cordilheira que separa o vale do rio São Francisco região do sertão ou do cerrado -, do vale do rio Doce, região conhecida como Mato Dentro, já que era toda coberta pela mata atlântica. A trilha rivalizava em importância com a Estrada Real de Ouro Preto ao Serro e Diamantina, também conhecida como Caminho do Mato Dentro, esta sempre se mantendo no vale do rio Doce e com existência bastante documentada. A Estrada Real do Sertão, inicialmente conhecida como o Caminho dos Currais, foi uma das principais estradas no vale do rio São Francisco no início da colonização de Minas Gerais. Centenas de léguas ligavam as minas de ouro e diamantes ao núcleo do poder, sendo rota de baianos, paulistas e portugueses, soldados e civis, tropeiros e contrabandistas. O caminho testemunhou importantes fatos históricos, como as sangrentas batalhas ocorridas na guerra dos Emboabas, em 1708, e na Revolução Liberal, em 1842.


Um íntimo e revelador começo para esta história

A Estrada Real do Sertão ainda não teve sua história contada em conjunto; há apenas relatos fragmentados. O percurso total perdeu-se da memória do nosso povo. Certamente, dados escondidos ainda existem em documentos empoeirados em prateleiras de alguma biblioteca ou na lembrança ancestral de antigos moradores. Muitas partes do trajeto foram soterradas pelo profano asfalto e outras deram lugar a estradas de rodagem não pavimentadas. Mas, pesquisando-se a fundo o roteiro, podem ser descobertos sulcos deixados pela passagem de incontáveis carros-de-boi, além de caminhos estreitos e sinuosos de gente e de animais, hoje de tráfego ocasional. Absolutamente abandonados estão alguns trechos da trilha, como nos altos desabitados da serra do Espinhaço, já que nem vacas passam mais por lá. Antes isso! Ramo da Estrada Real do Sertão na travessia da serra do Espinhaço

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As primeiras trilhas do interior brasileiro O caminho Peabiru dos guaranis e a montanha de prata dos incas

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que mais intrigava os pioneiros portugueses ao aportar em terras brasileiras era a história, comum a todas as tribos indígenas litorâneas, de uma montanha de prata e ouro nos confins daquelas terras desconhecidas. Estas riquezas eram a grande motivação daquelas perigosas travessias pelo oceano Atlântico, então chamado pelos portugueses de "Mar Tenebroso". A mesma lenda foi recolhida entre os índios da Bahia ao Rio Grande do Sul, história que se repetia mesmo entre tribos distantes, sem contato entre si: um povo serrano riquíssimo, governado por um Rei Branco, habitava cordilheiras situadas no interior do vasto Novo Mundo. Foi imediato o impulso de deixar o litoral e se aventurar pelas florestas, galgando as serras que porventura existissem. Poucos anos após o descobrimento, era fundada no planalto da serra do Mar a vila de São Paulo do Piratininga, primeiro posto avançado da colonização no rumo do interior. Os desbravadores acreditavam que, em dois meses de caminhadas, atingiriam o sonhado reino do Eldorado. Na época, já existia um importante caminho indígena que


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As primeiras trilhas do interior brasileiro

atravessava o Brasil em direção ao Paraguai e que era chamado de Peabiru. A trilha era bem marcada e movimentada, e ia do litoral até Assunção. A estrada bem batida, com mais de um metro de largura e cerca de 1.200 quilômetros de extensão, atravessava a densa floresta paranaense e a planície paraguaia e fora construída por tribos guaranis. Muitas tentativas dos europeus foram empreendidas por esta via, almejando alcançar a montanha de prata. Porém, todas fracassaram.

Potosi

São Paulo

América do Sul com a localização do caminho Peabiru e da montanha de prata em Potosi

Em 1524, uma expedição comandada pelo português Aleixo Garcia saiu de Santa Catarina e, enfrentando todo tipo de obstáculos, chegou às fronteiras do Império Inca, no sopé da cordilheira dos Andes. Mas, a menos de 150 quilômetros do objetivo, tiveram que retroceder, batidos pelos aguerridos soldados fiéis ao Rei Branco. Os poucos homens que retornaram


As primeiras trilhas do interior brasileiro

vivos traziam taças de prata, peitorais de ouro e candelabros de estanho, que aguçaram incontidas ambições. Os que apostaram na rota para o oeste como o caminho mais fácil para atingir o Eldorado estavam equivocados. Foram ultrapassados pelo espanhol Francisco Pizarro, que chegando pelo oceano Pacífico conquistou o Peru em 1532, com apenas 153 homens e 27 cavalos. Potosí, o nome que os incas davam à sua montanha de prata, hoje geograficamente situada em território boliviano, foi descoberta em 1545 pelos mesmos espanhóis. Seis mil toneladas de prata foram retiradas do local: havia mesmo a montanha, com 600 metros de altura, formada quase totalmente pelo precioso metal. A corrida foi ganha por aqueles que se aventuraram pelo outro lado dos Andes. Foi grande a decepção na Coroa Portuguesa, que manifestou desinteresse pelo Brasil nas décadas seguintes.

A lenda da serra Resplandescente, brilhante de tanta esmeralda Mas seria Potosí a única montanha de riquezas? Certamente que não, já que desde a carta de Pero Vaz de Caminha, o primeiro registro sobre a "Terra de Santa Cruz", havia referências a ouro, prata e pedras preciosas em territórios interiores, baseadas nas informações dos nativos. Corria também a história de outra grande serra de prata, que os índios chamavam de Sabarabuçu, ou serra Resplandescente, em algum ponto remoto, no rumo do poente. A partir de 1550, paulistas e baianos, cada um por seu caminho, tomaram a rota do sertão. Durante um século, expedições ocasionais se aventuraram pelas densas matas da região dos rios Doce, São Francisco e Jequitinhonha. Poucas retornaram com as cobiçadas preciosidades: algumas esmeraldas

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foram descobertas no vale do rio Doce e um punhado de ouro nas nascentes do São Francisco. Mas a amostra era promissora e a febre de riqueza, contagiosa. Expedições mais organizadas e com maior investimento foram encomendadas. A mais famosa, a bandeira de Fernão Dias, partiu de São Paulo em 1674. Subiu a serra da Mantiqueira e, após semanas de jornada, ganhou o vale do rio São Francisco. Fernão Dias fixou-se em primeiro lugar próximo a uma grande montanha, à margem de um pequeno rio, a que deu o nome de Sabará, simplificando o nome original indígena. O bandeirante supôs que o pico, que receberia, tempos depois, o nome de Piedade, seria a almejada serra Resplandescente. Com o formato de uma pirâmide, destacava-se das demais da região, atingindo a altitude de 1746 metros. Mas suas buscas na área foram infrutíferas. Após alguns meses, Fernão Dias se estabeleceu em um local mais plano, situado seis léguas ao norte, ao qual deu o nome de Sumidouro. Este local ficava próximo à margem esquerda do rio das Velhas, mostrando-se como área fértil para a agricultura e como bom lugar para um aldeamento. Nesta região, há uma cordilheira de montanhas entre 1200 e 2000 metros, que se estende no sentido sul-norte por várias centenas de quilômetros. Esta serra, que mais tarde ganhou o nome de serra do Espinhaço porque lembra uma grande corcova animal, foi fundamental na orientação dos bandeirantes naqueles ermos. Ela separa duas regiões de clima e vegetação muito diversos. A leste, situava-se a floresta atlântica, com imensas árvores e uma mata fechada por centenas de léguas estendendo-se até o mar, conhecida como a região do Mato Dentro. Chuvas torrenciais durante mais da metade do ano, febres, animais ferozes, índios botocudos com fama de antropófagos e outros perigos aguardavam aqueles que por lá se aventurassem. A oeste, encontrava-se o cerrado, uma região mais plana, com um


As primeiras trilhas do interior brasileiro

clima mais seco e árvores mais espaçadas, menores e de caule retorcido. É o sertão, que também se prolonga por terras semfim. Fernão Dias prosseguiu rumo ao norte durante anos de jornada, caminhando ao longo da serra do Espinhaço. Não encontrou prata, mas descobriu algumas pedras verdes que julgou serem esmeraldas. Na realidade, eram minerais de menor valor, turmalinas, mas este equívoco somente foi desfeito anos após. Até o fim de seus dias, o bandeirante supôs ter descoberto esmeraldas; não uma montanha delas, não a famosa serra Resplandescente, mas uma quantidade que o satisfez. Morreu pouco depois, na volta para casa, às margens do rio das Velhas. Foi acometido por malária, após sete anos de andanças pelo sertão. O grande legado de sua bandeira foi o povoamento de Minas Gerais, que se deu, em primeiro lugar, orientada pela trilha que desbravou, já que as cidades mineiras mais antigas alinham-se ao longo da serra do Espinhaço. De todas, a primeira foi Mariana, cujo nome inicial era Arraial do Ribeirão do Carmo, da qual já se tem notícia desde o ano de 1698. Logo em seguida, surgiu Ouro Preto, inicialmente chamada Arraial do Tripuí e depois Vila Rica, antes de receber seu nome definitivo. Sabará, antes Sabarabuçu, e Serro, inicialmente Vila do Príncipe, surgiram também nessa época. O nome Minas Gerais, empregado oficialmente a partir de 1720 e que até então referia-se apenas a uma parte da Província de São Paulo, surgiu a partir das denominações Minas dos Matos Gerais e Minas Gerais do Cataguás.

Estradas para as Minas dos Matos Gerais A Estrada Real que vinha do sul foi construída aos

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poucos. Saía do porto de Parati, próximo à cidade do Rio de Janeiro, subia a serra do Mar, atravessava a serra da Mantiqueira pela garganta do Embaú, no extremo sul de Minas, vencia o vale do rio Grande e, a partir de Ouro Preto, seguia a serra do Espinhaço por sua vertente leste. Na região entre Ouro Preto e Serro, o percurso era chamado também de Caminho do Mato Dentro porque atravessava a exuberante floresta do vale do rio Doce. Posteriormente, o ponto de partida mudou. Criou-se um atalho que saía direto do Rio de Janeiro, encurtando em muitas léguas o trajeto. Esta estrada foi denominada Caminho Novo, em contraposição ao anterior, que passou a ser Caminhos do período colonial no sudeste brasileiro conhecido como Caminho Velho. Por muitas décadas, o Caminho Novo foi a principal via de tráfego no Brasil Colônia; por isso, era rigorosamente vigiada pelos portugueses na tentativa de evitar o contrabando de ouro e, mais tarde, de diamante. De fato, o desbravamento de novas e ricas regiões causa-


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va grande dor de cabeça ao rei, que não tinha como controlar o assédio ao local. Um religioso, de nome Padre Cocleus, fez ainda o desfavor de elaborar um roteiro que foi descrito por Antonil em livro publicado na Europa em 1711, intitulado Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas. O roteiro era um verdadeiro mapa do ouro, com detalhes sobre as principais trilhas. Precisamente onze dias após seu lançamento, a Coroa Portuguesa mandou recolher e destruir todos os exemplares possíveis da publicação, tentando guardar um segredo que então já tinha sido divulgado. Outra estrada para as minas existente desde os idos de 1600 - portanto bem mais antiga - era o Caminho dos Currais, que ligava todo o sul à Bahia. Tinha início no Porto de Cachoeira no recôncavo baiano e seguia atravessando o sertão árido em direção ao rio São Francisco. Os primeiros colonizadores que navegaram o São Francisco rio acima encontraram águas calmas por centenas de léguas. No entanto, um obstáculo atrapalhava a passagem dos barcos na região que é hoje o centro do Estado de Minas Gerais. A dificuldade era causada pelas corredeiras com afloramentos de pedras, no local que os índios chamavam de Pirapora, que significa "o salto do peixe". Prosseguir de barco era impossível. O maior afluente da margem esquerda do São Francisco é o Paracatu e, por ele, os colonizadores entraram em direção à nascente, onde iniciaram um povoamento em 1722 que daria origem à vila de Paracatu do Príncipe. O grande rio da margem direita do São Francisco é o rio das Velhas, que os desbravadores também singraram até Sabará, próximo à sua nascente. Uma trilha acompanhava a margem dos rios e muitos currais já instalados garantiam uma jornada mais tranquila, apesar de mais longa, para se deslocar do litoral ao interior. Sabará e Santa Luzia, ambas situadas no centro da região

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das minas, às margens do rio das Velhas, passaram a ser o ponto de encontro das tropas que vinham de todas as direções: Do sul, do Rio de Janeiro, tropas chegavam pela movimentada via de Ouro Preto. Do oeste, vinham os caminhantes de Goiás. A picada aberta por Fernão Dias, no rumo do norte, passou a ficar cada vez mais frequentada, pois fazia ligação direta do vale do rio São Francisco com o Distrito Diamantino. Seguia pela vertente oeste da serra do Espinhaço e ganhava seu estreito altiplano na região central da província mineira, onde ultrapassava o divisor para as vertentes do vale do rio Jequitinhonha. O Barão de Eschwege, geólogo alemão que escreveu importantes tratados sobre a mineralogia brasileira, apresenta em seu livro Pluto Brasiliensis, publicado em 1833, um mapa da região com os caminhos mais importantes de Minas Gerais assinalados. Um deles é o caminho em linha reta de Sabará a Diamantina. Cabe a Eschwege a glória de ter dado nome à serra do Espinhaço. O famoso naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire percorreu boa parte do território sul e sudeste do Brasil entre 1816 e 1822, tendo publicado vasta obra. Além de discorrer detalhadamente sobre o Caminho do Mato Dentro, cita também a estrada de Santa Luzia como uma alternativa para chegar ao Serro e a Diamantina. Percorreu parte dessa trilha em suas andanças pela região. Em 1824 passou também por esta mesma estrada a expedição comandada pelo Barão Langsdorff, membro da Academia de Ciências da Rússia Imperial. Após descer o rio das Velhas até Jequitibá, oito léguas rio abaixo após Santa Luzia, o grupo tomou a direção da montanha. Entre seus milhares de documentos, cartas, mapas e desenhos, ainda não estudados em sua maioria e guardados a sete chaves pelo governo russo, há um


As primeiras trilhas do interior brasileiro

relato interessante do território dos diamantes: De Barra do Jequitibá nós nos dirigimos a uma região deserta e pouco habitada, onde examinamos uma parte da Serra da Lapa, desconhecida para o governo brasileiro e pouco estudada cientificamente. Apesar da falta de mantimentos, fomos obrigados a nos deter aí 14 dias, por causa do início das chuvas. A 4 de dezembro, quando o tempo melhorou, nós, com todas as nossas coleções, deixamos esta interessante região montanhosa, a 500 pés sobre o nível do mar, para chegar à principal cidade da região do diamante, Tejuco, no dia 11. A citada "Serra da Lapa" era o antigo nome dado à serra do Espinhaço, na região central de Minas Gerais, e 500 pés corresponde a aproximadamente 1.500 metros. No retorno de Diamantina ao Rio de Janeiro, a expedição fez o percurso por terra por toda a extensão do caminho colonial que passava pela cumeeira da serra. Escreveu Langsdorff a um amigo, em uma carta datada logo após seu retorno ao Rio de Janeiro: Quanto mais eu conheço este país mais aumenta o interesse para com seus lugares desconhecidos. O Brasil é realmente um novo mundo. Outros relatos antigos também fazem referência a esses caminhos. Foi publicado na Alemanha, em 1862, um detalhado mapa de toda a Província de Minas Gerais, elaborado por Henrique Halfeld e Frederico Wagner. No mapa, está pontilhada a Estrada Real que passava pelo sertão com todos os locais de pouso, o formato da serra do Espinhaço e os principais rios. Richard Francis Burton, escritor e aventureiro inglês que empreendeu por esta época a famosa viagem de canoa de Sabará ao oceano Atlântico, tendo também visitado Diamantina, refere-se ao Caminho dos Currais e ao Caminho do Mato Dentro. Escreveu literalmente: (...) ambos são igualmente detestáveis durante as chuvas.

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As primeiras trilhas do interior brasileiro

Mapa de Halfeld e Wagner, publicado na Alemanha em 1862


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Ouro Preto: a glória de ter sido a maior cidade das Américas Vila Rica: fim e início do Caminho dos Currais

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té o final dos anos de 1600, a região de Ouro Preto era apenas um acidentado território de serras cobertas por uma fechada floresta, habitada por esparsas tribos indígenas. Os primeiros bandeirantes a atravessar a região não encontraram ouro simplesmente porque não o estavam procurando. Certamente, pisaram em pepitas de aluvião, mas a "cegueira" pelas esmeraldas os impediu de identificar outras riquezas. O primeiro relato da descoberta de ouro é de 1693, quase vinte anos após a chegada de Fernão Dias. O fato ocorreu em um vale que os indígenas chamavam de Tripuí, onde mais tarde a cidade de Ouro Preto viria a existir. Conta-se que um escravo, que fazia parte de uma expedição para capturar índios, desceu a um riacho em busca de água e encontrou estranhas pedras escuras na areia do fundo. Estas pedras foram levadas para o Rio de Janeiro, onde caíram em mãos experientes: era ouro e de alto quilate! Milhares de candidatos a mineradores, de início paulistas, invadiram a região, que passou a ser conhecida como as Minas do Ouro. O sucesso do garimpo logo se propagou para mais


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Ouro Preto: a glória de ter sido a maior cidade das Américas

longe e atravessou os mares. Em poucos anos, mais da metade da população de Lisboa cruzou o Atlântico em caravelas para tentar a sorte na corrida do ouro. Vasculharam cada grota de mato, reviraram todos os riachos e se aglomeraram em arraiais populosos, insalubres e violentos. Vila Rica começou a se formar nas encostas do vale do Tripuí, que corre para o rio Doce. O vilarejo foi fundado em um divisor de águas, pois na virada da montanha que cerca a cidade, no sentido norte, está a nascente do rio das Velhas. Chegar até a vila era uma grande aventura. Do sul, vinham as tropas que saíam de Parati e do Rio de Janeiro e enfrentavam cerca de 40 dias de jornada. Do norte, o trajeto era mais longo, porém menos acidentado. Neste percurso, acompanhava-se o rio São Francisco e o rio das Velhas, região já parcialmente ocupada por fazendeiros criadores de gado. Era este o Caminho dos Currais. Boa parte deste trajeto podia ser feito em grandes canoas, o que facilitava o transporte de pessoas e cargas. Centro urbano de Ouro Preto, situado no vale do rio Doce


Ouro Preto: a glória de ter sido a maior cidade das Américas

O Arraial de Vila Rica ia crescendo caoticamente pelas ladeiras do lugar. Em poucos anos, cerca de 20 mil habitantes já residiam ali e, algumas décadas após, a cidade chegou a abrigar 80 mil almas. Vila Rica foi por um tempo a maior cidade das Américas, época na qual Nova York possuía menos da metade desse número de habitantes e a Vila de São Paulo não tinha mais que oito mil habitantes. A cada dia chegavam a Vila Rica dezenas, às vezes centenas de aventureiros. Vinham sedentos de ouro e famintos, dispostos a pagar um alto preço por qualquer comida. Mas era exatamente esse o grande problema. Ninguém tinha o cuidado de plantar, de criar bois ou galinhas. Qualquer alimento era disputado ao peso do próprio ouro. E já não havia mais animais para serem caçados, nem urubus para serem abatidos, ou ratos, gatos e cachorros. Todos eles já tinham servido para saciar a interminável fome dos moradores. Outras tragédias estavam por vir. Para piorar a situação, alguém apareceu com o corpo coberto de pústulas e febre alta e não resistiu mais do que uns dias antes de sucumbir. Logo após, eram muitos com os mesmos sintomas. A epidemia da bexiga negra, como era conhecida a varíola, logo se espalhou, dado o contato íntimo e promíscuo entre as pessoas. O vírus tinha vindo da Europa, onde por séculos dizimava periodicamente milhares e milhares de pessoas. Acredita-se que a maioria dos habitantes da vila tenha morrido em poucos meses numa epidemia em 1702, deixando um ar sinistro pelas ruas semidesertas. Os cadáveres eram apenas empilhados em local isolado, pois não havia quem tivesse força para os enterrar. Foram tempos difíceis na região das Minas.

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Galgando montanhas: a travessia do vale do rio Doce para o São Francisco A ligação entre Vila Rica e Sabará, situada a 15 léguas, era difícil, mas imprescindível, tanto por causa do ouro quanto do transporte de víveres provenientes do sertão. Esta via foi a primeira a ser traçada de Vila Rica em direção ao norte da província. Somente décadas após ganhou importância o outro trajeto da Estrada Real, hoje mais famoso, que seguia por Mariana em direção ao Serro e a Diamantina. O primeiro obstáculo do Caminho dos Currais era ultrapassar o espigão mestre que divide os vales dos rios Doce e São Francisco. A trilha saía do centro de Vila Rica e, inicialmente, por uma légua, tomava o rumo do Rio de Janeiro. De repente, em diagonal a este caminho, galgava a serra em uma rampa sem trégua, a não ser ao chegar ao topo, quando a paisagem se abria, expondo todo o vale em que nasce o rio das Velhas. Na parte mais alta da montanha avista-se, na direção norte, a região da serra da Piedade. Um pouco à direita, vêse o impressionante bloco da serra do Caraça e, à esquerda, o pico do Itabirito, com suas duas orelhas de gato. Bem em frente situa-se o paredão da serra da Gandarela. Por todo o vale, que é bastante acidentado, há uma densa floresta, em boa parte preservada até os dias de hoje. Trilha antiga de Ouro Preto a Sabará


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O Caminho dos Currais desce margeando a montanha, em declive suave. Apesar do mato fechado, a estrada é facilmente identificada. Isto porque ela se situa dentro de um sulco que, em alguns locais, chega a cinco metros de profundidade. Séculos de tráfego intenso de cavaleiros e carros-de-boi, associados às enxurradas, foram cavando o solo e deixando para sempre a cicatriz longelínea. Em alguns locais mais escarpados podem ser vistos paredões de pedras empilhadas, uma obra de engenharia que resiste há tempos. A floresta primitiva foi cortada, mas a mata secundária, que já tem muitas décadas, atingiu vários metros de altura, sombreando o percurso. Após uma légua de descida, ainda se encontra em uma pequena clareira um antigo chafariz, a oferecer ao caminhante água fresca de montanha. Uma inscrição na pedra informa que Dom Rodrigo de Menezes ordenou a construção do chafariz em 1782. Chega-se então ao vale, onde corre o ribeirão do Funil. Nas proximidades, situa-se a Vila Doutor Rocha Lagoa, Chafariz na Estrada Real entre Ouro Preto e Sabará com sua meia dúzia de casas e uma pequena e graciosa igreja. Neste ponto da estrada há uma bifurcação para Cachoeira do Campo, importante distrito de Ouro Preto, tanto no passado como no presente. O ribeirão do Funil é a primeira grande agressão que recebe o rio das Velhas devido à ação de mineradoras, que o tor-

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nam barrento e com as margens enlameadas. Em sua nascente, encontra-se a única mina de topázio imperial em todo o mundo que possui extração economicamente viável. Mas isso parece não ser o bastante para que o ribeirão seja tratado condignamente. Mais alguns quilômetros adiante, por um vale com pequenas ondulações, chega-se ao povoado de Glaura (conhecido antes como Casa Branca), situado a 26 quilômetros de Ouro Preto.

Glaura e Acuruí: breve prosperidade no período colonial

O rio das Velhas passa a poucos quilômetros de Glaura, bem encaixado no vale, em meio a matas ainda com grandes árvores e que formam uma galeria cobrindo as águas. Nasce na face norte da montanha que limita o centro urbano de Ouro Preto e despenca da serra formando a cachoeira das Ando-rinhas. A região apresenta relevo acidentado, pouco habitado, e atualmente pertence à Área de Preservação Ambiental da Cachoeira das Andorinhas, que abrange 20 mil hectares. A primeira vila siCachoeira das Andorinhas, nascente do rio das Velhas


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Rio das Velhas, próximo à nascente, com mata ciliar

tuada em suas margens é São Bartolomeu, que preserva ainda uma igreja com o raro estilo nacional-português, com raríssimo sino de madeira e casas dos primeiros tempos. No Arquivo Eclesiástico de Mariana está registrado: Os assentos que se acharam nos livros da freguesia de São Bartolomeu persuadem haver sido erigido em freguesia pelos anos de 1716. O povoado ficava fora da via principal do Caminho dos Currais, duas léguas à direita. Era uma várzea muito fértil, excelente para o cultivo de hortas que pudessem alimentar Vila Rica. A Estrada Real para Sabará deixava Glaura pela Igreja de São Bartolomeu, distrito de Ouro Preto

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extremidade norte da vila e em marcha paralela ao rio das Velhas buscava o "vau", ou seja, o local em que a travessia pudesse ser mais fácil às tropas. Este ponto, distante poucos quilômetros além de Glaura, situava-se próximo à Fazenda Ana de Sá, onde hoje existe, junto a uma capela, uma ponte de concreto que tem o nome da antiga proprietária daquelas terras. O rio das Velhas faz uma pequena bifurcação no local dando origem a uma ilha, o que facilitava a passagem de homens e animais. Rio acima e abaixo são muitas as quedas d'água que, apesar de não serem altas, impossibilitam a navegação. Seguindo adiante, bem junMatriz de Glaura, distrito de Ouro Preto to à margem direita do rio, a estrada atravessa uma área de mata ciliar ainda bastante densa. Após o Velhas receber o rio Maracujá, a trilha abandona o vale para alcançar o alto da colina, onde está situada a vila de Acuruí, (que antes tinha o nome de Rio de Pedras), 15 quilômetros após Glaura. Palavra de origem indígena, Acuruí significa rio de seixos. Acuruí, hoje um distrito de Itabirito, teve sua fundação logo após o ano de 1700. Suas duas igrejas, Nossa Senhora da Conceição, construída em 1756, e Nossa Senhora do Rosário, destinada aos escravos e erguida logo após a primeira, situam-se na mesma rua, uma de frente para a outra. Na atualidade, a vila tem a base de sua economia nos sítios de proprietários das grandes cidades da região e no Balneário Rio de Pedras, às margens do lago formado pela barragem de mesmo nome, e faz parte do Município de Itabirito.


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Vista da igreja matriz de Acurui. Ao fundo, à esquerda vê-se o Pico do Itabirito

Para fornecer energia elétrica para a nova capital mineira, foi construída em Acuruí uma barragem de 40 metros de altura em uma importante cachoeira do rio das Velhas. A obra foi concluída em 1908. Por muitos anos, Belo Horizonte foi iluminada por essa represa.Todavia, a exploração irracional das terras a montante, principalmente a extração de areia, assoreou o leito do lago; por isso, o que chegava a dezenas de metros de profundidade em alguns pontos hoje não passa de um espelho d'água de pouco mais de um metro de fundura. A geração de energia é mínima e a usina hidrelétrica poderá ser desativada no futuro.

Represa Rio de Pedras, em Acuruí

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Cerca de 300 anos após a descoberta do Brasil, nossa história sofreu, em 1808, uma mudança drástica. Até então, nosso território esteve fechado aos estrangeiros e somente portugueses autorizados podiam aqui desembarcar. Entretanto, neste ano, as tropas de Napoleão Bonaparte haviam invadido Lisboa e, pouco antes, toda a corte portuguesa migrou para o Rio de Janeiro. O Rei D. João VI, logo ao chegar, assinou o famoso decreto de abertura dos portos. Foi a oportunidade de viajarem para cá os primeiros naturalistas europeus, curiosos para descobrir um mundo ainda cientificamente inédito. A partir de então, deixamos de receber unicamente aventureiros ávidos por um enriquecimento rápido. Spix e Martius, dois cientistas da Bavária, região que hoje faz parte da Alemanha, percorreram longo trajeto por grande parte do Brasil entre 1817 e 1820. Passaram pela estrada que ligava Ouro Preto a Sabará e descrevem o trajeto, citando os povoados de Santo Antônio de Casa Branca (Glaura) e Rio de Pedras (Acuruí): Deste modo, prosseguiu a viagem por montes e vales, alternadamente, até ao sopé de uma alta montanha, onde corre o pequeno Rio-das-Pedras e está a freguesia do mesmo nome (...). Também o naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire, na mesma época, faz percurso idêntico, anotando em seu diário a geografia, a cultura e as características da flora e da fauna da região. Descreve a primeira visão que o caminhante tem da vila de Acuruí, com a qual, ainda hoje, há que se concordar plenamente: A igreja, que é construída entre duas fileiras de palmeiras, avista-se de longe e empresta um belo efeito à paisagem (...).


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Rio Acima: onde as cachoeiras impediam a navegação pelo rio das Velhas Saíndo de Acuruí, a trilha colonial tinha que buscar os cumes dos montes para fugir dos canyons do rio das Velhas. Nesta região são muitas as cachoeiras, algumas de vários metros de altura, e o rio precisa lutar contra as pedras para encontrar passagem. As margens, com frequência, tornam-se estreitas e escarpadas, impossibilitando qualquer tráfego. A estrada segue vários quilômetros pela margem direita do rio, por altos e baixos, atravessando uma bela região. Nas baixadas, ainda hoje encontram-se matas fechadas e regatos de água limpa. Nas partes elevadas, o visual se espalha por muitas léguas, sempre com o pico do Itabirito visível no rumo do oeste. Há algumas décadas, a imponente montanha escapou por pouco de ser destruída pelas vorazes mineradoras e hoje é protegida pelo Patrimônio Histórico. Um movimento preservacionista, que conseguiu grande repercusão - pois ganhou até o apoio irado de Carlos Drummond de Andrade em crônica divulgada nacionalmente -, evitou que Desenho do pico do Itabirito, de 1817, do as dinamites derrubassem o livro de Spix e Martius marco geográfico que serviu de orientação para os bandeirantes.


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O primeiro vilarejo adiante é Cocho d'Água, onde de fato existia um grande tronco escavado que servia para matar a sede dos animais de carga. Neste trecho, o rio das Velhas está mais encorpado: recebeu o rio Itabirito, que é seu maior afluente da Foto atual do pico do Itabirito e a ação das mineradoras margem esquerda na região. Bastante poluído, o Itabirito é mais um a agredir de forma suja e irresponsável o rio das Velhas. Na cidade de Rio Acima, a praça central foi remodelada, ficando preservados os casarios antigos. Uma aparentemente autêntica cachoeira encontra-se no paço municipal. A partir dessa cidade, a antiga trilha seguia pela margem direita do rio das Velhas por terras mais planas, sendo que, 20 quilômetros adiante, chega-se a Raposos e mais 20 a Sabará, por estradas ainda hoje não tomadas pelo asfalto. Nessa região o rio das Velhas doa água para a cidade de Belo Horizonte, coletada na Estação de Bela Fama. A estação capta cinco mil litros a cada segundo, fazendo o rio baixar visivelmente o volume de suas águas. A vila de Nossa Senhora da Conceição de Raposos foi a primeira freguesia - como eram chamadas as paróquias - da Província de Minas, eregida nos idos de 1690. Raposos conseguiu preservar, dos tempos antigos, um alicerce de um casarão com


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grandes blocos justapostos, quase escondido pelo mato, ao lado de um curral de pedras certamente construído por escravos. Porém, a igreja matriz, ornamentada de prata e com obras de Aleijadinho, sofreu várias descaracterizações durante os três séculos de existência. Um ambicioso projeto de restauração está em curso e promete recuperar uma das mais antigas igrejas de Minas Gerais.

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Uma garrafa, uma carta e uma mina de ouro

ma minuciosa carta encontrada por um tropeiro dentro de uma garrafa lacrada com rolha de pau e embetumada de cera, em uma gruta no pé do pico da Piedade, publicada em 1827 no jornal Diário Fluminense, do Rio de Janeiro, conta uma história ocorrida da região de Sabará entre 1680 e 1700.Todos os historiadores que a analisaram atestaram sua autenticidade em função da forma como foi redigida, com a grafia e o palavreado típico da época, e por ser precisa quanto a dados históricos e geográficos. Ela foi escrita por um tal Martinho Dias, bandeirante paulista do qual não ficaram outros registros, e relata fatos verídicos e alguns cuja comprovação ainda está por ser definida. A primeira parte da narrativa descreve fielmente a história de Fernão Dias retornando adoentado do norte de Minas ao encontro de seu genro Manoel de Borba Gato, que tinha permanecido em Sabará. Fernão morre logo em seguida e Gato assume a bandeira. Um ano após, a Coroa Portuguesa manda à região o nobre Rodrigo Castelo Branco para se assenhorear dos bens e munições legados por Fernão Dias. O envi-


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ado da Coroa encontra a oposição dos bandeirantes e, após vários atritos, Castelo Branco é assassinado por Martinho Dias, que tinha Gato como capitão-mor. O grupo se dispersa, com receio das represálias que certamente viriam. Martinho, junto com um índio, vaga pela região montanhosa circunvizinha, mantendo contatos periódicos com Gato. Descobre, em um recôncavo inóspito, uma rica e bem escondida jazida de ouro numa região conhecida como Caeté, e relata a seu chefe o achado, sem todavia precisar o local exato. A carta prossegue com os fatos que viriam em seguida: após muitos anos de retiro nos matos, Borba Gato inicia entendimentos com o Rei quanto a um perdão que, afinal, acaba conseguindo. Martinho desconfia de que sua cabeça estava a prêmio e seria com ela, e com seu ouro, que Gato negociava a própria anistia. Resolve procurar diretamente o Rei e empreende uma longa e temerária jornada em direção a Porto Seguro, na Bahia, de onde pretendia seguir de caravelas para Lisboa. Dias leva consigo um embornal cheio de pepitas e uma carta com o relato de sua história e da mina de ouro, e deixa uma cópia dentro da garrafa semi-escondida na gruta: (...) & nao querendo no intanto confiar de ninguem este meu segredo, faço delle duas memorias ambas do mesmo theor, & nota, levando uma comigo, e deixando otra neste lugar encerrada, para que se eu nao xegar aoo fim do meu intento por que Deos seja servido matar-me o felis que a axar em melhor tempo do que eu a desfructe. Aos 12 de Janeiro de 1699 ã. - Martinho Dias. O bandeirante desaparece durante a viagem, nos confins da região do Mato Dentro. A publicação da carta, mais de um século após, despertou a cobiça de muitos, que vasculharam a região em torno de Sabará à procura desse veeiro de ouro. Martinho Dias propositalmente não indicava o local, tendo escrito laconicamente que para alcançá-lo era preciso transpor a parte mais alta da cordi-


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lheira. Deu algumas pistas, mas não entregou o ouro de graça, já que relatou, nebulosamente, que ficava em (...) hum lugar d'omde se avistava grãa extensão, & em uma quebrada defronte do lugar que o indio me dice se xamava Caete. Entretanto, ao citar Caeté, não estava se referindo à cidade, já que à sua época ela sequer existia. Como a garrafa foi encontrada no pico da Piedade, hoje município de Caeté, certamente a mina se situa próximo a aquela região acidentada da serra do Espinhaço, com inúmeras escarpas, vales profundos e matas fechadas. Não existe registro da redescoberta dessa mina de ouro.

Pico da Piedade

Sabarabuçu incendiada na guerra dos Emboabas Outras minas foram encontradas e, às margens do rio Sabará, em sua foz com o das Velhas, a 700 metros de altitude, um dos alojamentos periódicos de Borba Gato crescia mais que os outros. De forma rápida e desordenada, as casas se multipli-

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cavam. A vila recebeu inicialmente o nome de Sabarabuçu. Por volta de 1700, este aglomerado humano chegou a ser o arraial mais populoso de Minas Gerais. É polêmica a origem do nome "rio das Velhas". Há a lenda segundo a qual os índios que habitavam a região chamavam o rio de Guaicuy, que significa mulher velha. Existe também a história de que o nome teria sido dado pelos primeiros portugueses que navegaram o rio de sua barra com o rio São Francisco até Sabará. Como era um rio caudaloso, com muitas ondas, que eram chamadas pelos lusitanos de válias, foi batizado de rio das Válias. Posteriormente, como o vocábulo era inusitado para nossotros, o significado do nome não se manteve, e foi "abrasileirado" para rio das Velhas. A colonização da região deu-se de forma caótica, prevalecendo a força das armas. Os paulistas vasculhavam a área e o sucesso das descobertas ultrapassava fronteiras, chegando a Portugal. Bastaram poucos anos para que uma avalanche de aventureiros corresse às minas. Os portugueses chegavam mais bem preparados, com guarnições de alimentos e pólvora. Eram chamados pejorativamente de emboabas pelos paulistas. Emboaba era uma palavra indígena que significava pássaro de pernas emplumadas, numa alusão aos portugueses e suas vestimentas a caráter, em contraste com os paulistas, que andavam descalços e com as pernas nuas. Às rusgas iniciais sucederam-se atritos e não demorou muito a acontecer a primeira morte. Um grupo de paulistas assassinou um forasteiro numa querela sobre um pequeno furto. Outras hostilidades ocorreram e os emboabas se aglutinaram em torno de Manoel Nunes Viana, formando um exército mais provido de armas e melhor organizado que seus adversários. Sabará foi o teatro da primeira batalha da guerra dos


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Emboabas, disputa ocorrida entre 1707 e 1709. Nesta guerra, o vitorioso não foi um dos lados em combate, já que ambos recuaram após o banho de sangue indiscriminado, e sim o sentimento de nacionalidade, primórdio do embrião do país que ameaçava nascer. Os paulistas entrincheiraram-se fortemente armados no arraial à espera dos inimigos, que avançavam vindos de Caeté. No entanto, ardilosamente, Viana não chega pela estrada carroçável a leste. Embrenhando-se pelos matos, alcança os arredores de Sabará pelas montanhas do norte, um inesperado roteiro. Além disso, não enfrenta face a face a força contrária. Posicionase nos altos dos morros e, usando a tecnologia de tribos indígenas aliadas, lança flechas incendiárias, com estopas embebidas em azeite fumegante, sobre o arraial de teto de palha. A cidade foi totalmente destruída e os paulistas retiraram-se derrotados, descendo o rio das Velhas.

O apogeu da Comarca de Sabará Sabará também renasceu das cinzas e, em poucos anos, devido à sua privilegiada situação geográfica, já era um importante centro comercial, que interligava a região das minas com o chapadão goiano e com a Bahia. Num ato de reconhecimento, a Coroa Portuguesa criou, em 1714, a Comarca de Sabará, tão vasta que se limitava com a província baiana. O sentimento religioso predominou nesse período e já em 1716 estava totalmente concluída a Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição, em estilo indo-português, com armadura de braúna e cedro, taipa de pilão e adobe e com o interior folheado a ouro. A Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos,

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iniciada em 1713, estava destinada aos escravos, que não podiam entrar nas igrejas dos brancos. Esta construção está até hoje inacabada.

Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, em Sabará

Já a Capela de Santa Rita, também desse período, foi mais tarde destruída na busca de um tesouro - inexistente - a que estaria enterrado em seu subsolo. Nessa época, as asas negras da Inquisição também rondaram Sabará, por mais empenho que tivessem seus moradores em demonstrar a fé cristã. Em Minas Gerais, muitos foram condenados à morte e queimados vivos na praça central de Lisboa, para onde eram enviados. A execução era uma festa, presenciada até mesmo pelo Rei e sua família. Outros tiveram mais sorte e receberam punições menores. Os Tribunais da Inquisição preocuparam-se principalmente com os crimes de judaísmo, blas-


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fêmia, concubinato, bigamia e feitiçaria. Luiza Pinto, negra forra de Angola, residente na vila de Sabará, foi presa em 1742 pelo Santo Ofício, sob suspeita de pacto com o demônio. Foram ouvidas 19 testemunhas e os repetidos interrogatórios preencheram 127 páginas de depoimentos e pareceres inquisitoriais. Luiza foi acusada de bruxaria, por praticar curas em enfermos e ter aptidão de vidente. Ela negou as práticas de satanismo, dizendo-se cristã convicta, batizada e crismada na Igreja de Nossa Senhora da Conceição. Sua sentença foi a condenação a quatro anos de degredo e ameaça de punições mais severas, se insistisse nas práticas heréticas. As proibições religiosas não tinham fim. Mesmo com a fome generalizada, já que poucos se incumbiam de produzir alimentos, havia regras absurdas quanto ao consumo de peixes, abundantes àquela época no rio das Velhas. Augusto de Lima Júnior repete em seu texto, escrito em 1940, uma série de preconceitos de ordem biológica, social e cultural vigentes no passado: Era colossal o consumo de peixe salgado que, em caixas e barricas, vinha para Minas, em lombo de burro, no período colonial (...) Tratava-se do bacalhau que vinha da cidade do Porto, em Portugal, acondicionado em barricas. Ainda no mesmo relato de Augusto de Lima: É que os peixes mais abundantes em nossos rios são "peixes de Couro", expressamente proibido pelo Levítico [livro da Bíblia], por ser venenoso, o que foi confirmado em nossos dias por sábios alemães, em estudo no interior da África Equatorial. Os judeus mineiros atribuíam à carne do surubi, peixe de couro, doenças da pele, quebra do espinhaço e abertura de feridas no corpo e receptividade para a lepra. É sabido que as populações ribeirinhas que se alimentam desse e semelhantes peixes de couro são indolentes, doentes, e geralmente pouco capazes de progresso moral e material, muito sujeitas a infecções e descalcificações. Sabará sobreviveu a guerras, enchentes, febres e precon-

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ceitos. Por mais de um século, viveu seu período de maior opulência. Em 1770, foi construída uma luxuosa Casa da Ópera em estilo inglês-elizabetano, que virou Teatro Municipal em 1819 e até hoje é muito bem conservado, sendo o segundo teatro mais antigo do Brasil ainda em funcionamento. Em seus dias de glória, recebeu imperadores (dois) e inúmeros artistas de todas as partes do mundo.

Teatro Municipal de Sabará

A Expedição Langsdorff, que percorreu milhares de quilômetros em solo brasileiro entre 1821 e 1829, deixou registrados inúmeros dados sobre a fauna, flora e geografia de nossa terra. Uma pintura preciosa, de autoria de Rugendas, desenhista da expedição durante o ano de 1824, quando visitaram a serra do Espinhaço, retrata a Vila Real de Sabará, com o grande rio das Velhas em destaque. O explorador inglês Sir Richard Francis Burton, que ganhou notoriedade por ter encontrado as nascentes do rio Nilo


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Sabará e o rio das Velhas - desenho de Rugendas, em 1824

e por ter traduzido, do árabe, o livro As mil e uma noites e, do hindi, o Kama Sutra, desceu de canoa de Sabará ao oceano Atlântico, viagem que registrou em extenso livro. Escreveu em seu diário, no dia da partida: 7 de agosto de 1867 - Encaminhamonos ao Porto da Ponte Grande, onde se encontra o ajojo, ou balsa. Jamais vira embarcação tão decrépita, verdadeira Arca de Noé, semelhante a uma carroça de ciganos flutuante, coberta por um toldo, cerca de dois metros e trinta centímetros de altura e um de comprimento, assentando-se sobre dois troncos ocos. O rio devia ser bem seguro, para que uma geringonça daquelas navegasse sem acidente. Burton descreve o rio das Velhas, ainda no Município de Sabará: O rio é profundamente encaixado; são curtos os trechos retos, e tem-se a impressão de navegar-se em direção a alcantis [rocha talhada a pique] cujos penedos alcançam o leito, recortando-


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o em pequenas curvas. Recentemente, com o rio das Velhas mais seco, foi desenterrada uma grande e pesada âncora, com quase um metro de comprimento, ligada a uma grossa corrente, próprias de uma embarcação de porte respeitável. Por séculos, Sabará esteve no centro de um grande tráfego de tropas vindas do sul (Ouro Preto), do oeste (Paracatu), do leste (Caeté) e do Âncora desenterrada no rio das Velhas em Sabará norte (Distrito Diamantino). Este último trajeto era percorrido através de uma trilha em direção a Santa Luzia, estrada que já constava de um mapa datado de 1790, do Arquivo Ultramarinho de Lisboa.

As Minas e os Gerais vistos da capela de Soledade Langsdorff, em 1824, relatou em seu diário o trecho do Caminho dos Currais entre Sabará e Santa Luzia, que se afastava da margem do rio das Velhas para evitar os alagadiços: (...) caminho pedregoso, subia os morros situados ao norte (...) Do alto da serra, passando por um caminho sinuoso que se arrasta por uma légua, tem-se uma vista bastante ampla do horizonte, limitado, por todos os lados mas a uma grande distância, por montanhas elevadas (...) Duas léguas adiante pudemos ver o arraial [Santa Luzia], que, no


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entanto, só alcançamos depois de várias voltas e subindo morro, quatro horas depois da partida de Sabará. Sabará, que foi o maior centro da arte da ourivessaria do Brasil, entrou em decadência com o esgotamento da exploração de ouro. Entretanto, a partir de 1920, teve início a idade do ferro, quando foi inaugurada a Usina de Ferro, posteriormente adquirida pela Companhia Siderúrgica Belgo Mineira. Décadas de atividade geraram muita riqueza, em grande parte enviada para bem longe. Justiça seja feita, a riqueza também gerou também milhares de empregos. Para a região, o alto custo consequente da mineração foi o desmatamento indiscriminado e muita poluição, que certamente poderiam ter sido menores. O Caminho dos Currais foi gradativamente perdendo a utilidade, substituído por estradas de rodagem que não aproveitavam o roteiro original. Isso salvou algumas regiões mais acidentadas da exploração pelo homem. Manchas de florestas ainda podem ser encontradas. Tendo passado, acredita-se, o período mais crítico de exploração irracional, talvez estas matas estejam perpetuadas. A trilha para Santa Luzia tinha início na praça central de Sabará, por detrás da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, e logo galgava ladeira acima, como relatou Langsdorff. Hoje, inicia-se por uma subida calçada com pé-de-moleque que, após deixar a cidade, atravessa uma bucólica mata, a Chácara do Lessa, seguindo então por um descortinado planalto. Alguns trechos do calçamento centenário, com pedras bem encaixadas, conhecidos por poucos aficionados em história, sobreviveram nas rampas mais íngremes, que foram evitadas pela rua criada com a ocupação urbana. A estrada, não pavimentada e quase sempre sem qualquer tráfego, passa escondida pelos altos dos morros, espreitando o mar de casas e prédios de Belo Horizonte no vale à sua esquerda, a apenas trinta quilômetros

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de distância, na outra margem do agora poluidíssimo rio das Velhas. A cidade grande sequer suspeita desses caminhos desertos, tão próximos e tão isolados, porque não pode vê-los. Logo se avista, encimando uma elevação de destaque, a pequena Igreja de Nossa Senhora da Soledade, recentemente restaurada e situada a quatro quilômetros de Sabará. Nesse ponto, é possível viajar com os olhos em um passeio de 360 graus pela belíssima geografia de vales e das montanhas que compõem a cordilheira do Espinhaço. Ao sul de Belo Horizonte, e em fila indiana rumo ao oeste, está a serra do Curral, que se prolonga com a serra da Moeda e, ao longe, com o maciço do Itatiaiuçu. Girando no sentido anti-horário, vê-se o pontiagudo pico do Itabirito, destacando-se no planalto. Mais ao sul, aparecem o bloco da serra da Gandarela e os cumes do Caraça, que passam de dois mil metros de altura. Ao leste, tem-se um bonito ângulo da serra da Piedade e, à sua esquerda, o divisor de águas do rio São Francisco com o rio Doce, que na região é chamado de serra Geral. Fecha-se então a região das Minas.

O Caminho dos Currais entre Sabará e Santa Luzia


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A nordeste, bem mais longe, está a serra do Cipó e, no seu extremo, o pico do Breu. Por todo o norte e todo o oeste, encontra-se a planície são-franciscana, onde a vista se perde em horizontes mais distantes. Esta região, desde o início da colonização portuguesa, ganhou o nome de Geraes. A trilha segue no rumo do norte, agora descendo o morro em direção ao limite entre os Municípios de Sabará e Santa Luzia. Cerca de uma légua adiante, atravessa o asfalto da rodovia que liga Belo Horizonte a Vitória, em um trecho miseravelmente habitado, que destoa de todo o restante do trajeto. Em 1867, Burton já citava que o caminho entre Sabará e Santa Luzia estava em (...) horrível e vergonhoso estado. Pior está, sem dúvida, hoje: se em certos locais pode-se sentir que a História ainda respira, como na capela que tem o poético nome de Soledade, em algumas partes verificam-se invasões por casebres, pela erosão, pelo lixo e pela poluição das águas. Isso graças à insensibilidade dos governantes. Para se usar um termo antigo, um verdadeiro estrupício.

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Santa Luzia: antigo entreposto do sertão mineiro

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A vila do Sumidouro, o motim e a tragédia de Fernão Dias

partir de Sabará, a várzea do rio das Velhas torna-se mais ampla, pois o rio vai, aos poucos, distanciando-se da cordilheira do Espinhaço. Em uma pequena elevação à sua margem direita foi construído um arraial que recebeu o nome de Santa Luzia do Rio das Velhas, do qual existem registros desde 1701. O lugar foi um importante entreposto comercial, interligando o Distrito Diamantino com o oeste mineiro e o sul do Brasil. Próximo ao arraial, mas na margem esquerda do rio, Fernão Dias fundou uma feitoria em 1676, à qual deu o nome de Sumidouro. De fato, neste local, um belo lago que é abastecido por vários córregos não possui vertedouro visível, sendo o escoamento subterrâneo. Como está assentado sobre uma região de rocha calcária, um túnel o liga diretamente ao rio das Velhas, que está situado a três quilômetros de distância. Este pequeno vilareLago do Sumidouro e o paredão de calcário


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Santa Luzia: antigo entreposto do sertão mineiro

jo ficou para a história em razão de um fato do qual Fernão Dias jamais poderia orgulhar-se. Devido à rudeza da vida que enfrentavam os bandeirantes, segundo Taunay, (...) à sua pertinácia em demorar-se naqueles matos de há-lito pestilento (...), um grupo se amotinou contra o chefe, tendo sido liderado por um dos filhos ilegítimos de Fernão, chamado José Dias. Ao descobrir os revoltosos, Fernão puniu-os com mão de ferro, e nem mesmo vacilou em mandar enforcar o próprio filho em uma árvore da vila. Mas as histórias trágicas da região ainda não terminaram. No arraial vizinho, situado na outra ponta da lagoa, foi assassinado poucos anos após, em 1682, Dom Rodrigo Castelo Branco, a mando de Borba Gato, que não queria ceder o comando da bandeira ao enviado do Rei. A partir de então, a vila recebeu o nome de Fidalgo. Gato, mandante do crime, teve que se embrenhar nas matas por 18 anos, até conseguir o perdão e ser reabilitado como governador da região.

O rio das Velhas, em Santa Luzia

Hoje, as vilas do Sumidouro e Fidalgo encontram-se desmembradas de Santa Luzia e pertencem ao Município de


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Pedro Leopoldo. Ainda existem em Sumidouro uma casa do período colonial, bem preservada pela prefeitura, que mantém no local um centro de cultura. De todos os pontos altos das proximidades podem ser avistados a pirâmide da serra Casa de Fernão Dias, em Fidalgo, Pedro Leopoldo da Piedade e, mais ao longe, a muralha da serra do Espinhaço. Eram os principais referenciais dos bandeirantes. O vilarejo de Santa Luzia, que inicialmente foi fundado na várzea do rio das Velhas, foi transferido, após cheias sucessivas que inundavam periodicamente o arraial, para outra pequena colina vizinha, agora a 750 metros de altitude. Por ter se tornado um importante centro de comércio, prosperou e tornou-se influente núcleo econômico, cultural e político. José Vieira Couto, o primeiro cronista da região a registrar para a posteridade suas observações, após uma grande travessia entre Diamantina e Ouro Preto, anota em seu diário, escrito em 1801: A grossura desta serra [Espinhaço] continua até quasi ao arraial de Santa Luzia, tres leguas adiante [de Sabará]; e por todo este espaço corre o rio afunilado; ao depois começa a espraiar-se pelas planices das terras chãas que ficam ao poente da Grande Serra (...) Poderá ter esta villa até quatro mil habitantes; é formoseada de alguns edifícios menos maos, bem assentada em uma baixa, que fica entre as duas serras, e alegre. Outra observação sobre a cidade é encontrada no diário de Langsdorff, com data de 4 de outubro de 1824: Santa Luzia


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surgiu, por assim dizer, por si própria, graças à diligência, dinamismo e espírito empreendedor das pessoas. É um grande centro comercial, para onde convergem todas as estradas: Bahia-Tijuco, Goiás, Rio de Janeiro, Ouro Preto e outras. É um empório e entreposto para muitas mercadorias como sal, ferro e produtos ingleses trazidos do Rio de Janeiro; couro, peles, peles de tigres, salitre, algodão e outros. Também Richard Burton, em 1867, deixou um registro em seu livro que, com certeza, será sempre um orgulho para os santa-luzienses: A primeira vista de Santa Luzia foi agradabilíssima; uma grande elevação, a cerca de um quilômetro do rio, era encimada por duas igrejas de duas torres, separadas por casas grandes e bonitas, caiadas de branco, e por uma rica vegetação, com palmeiras estendendo-se, irregularmente até a água. Bem preservadas estão hoje algumas casas do período colonial, uma delas transformada em museu da cidade. Entre suas atrações estão os restos das janelas perfuradas de balas de fuzis, lembrança de antigas batalhas na rua principal da vila.

Um monumento apenas a Caxias e os muitos heróis anônimos Um fato histórico de relevo faz parte do passado de Santa Luzia: a vila foi o palco do combate final da Revolução Liberal de 1842, quando o exército legalista, chefiado pelo Barão de Caxias, dizimou as forças rebeldes liberais, lideradas por Teófilo Otoni. O movimento contestatório teve início em São Paulo e Minas Gerais. Em Minas foi aclamando Presidente da Província José Feliciano, em detrimento do Presidente oficial Bernardo Veiga. O governo do segundo reinado fez partir do Rio de Janei-


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ro para Minas uma tropa comandada por Caxias que, em batalhas sucessivas, avançou sobre Barbacena, Ouro Preto, Sabará e finalmente Santa Luzia. Três mil rebeldes estavam fortemente entrincheirados em uma pequena elevação da cidade, o Alto do Alcobaça, em posição vantajosa em relação aos legalistas. Utilizando-se de um estratagema, Caxias fingiu recuar. O exército liberal entusiasmou-se e iniciou uma perseguição. Neste momento, uma outra coluna de Caxias atacou pela late-ral, com o inimigo então desguarnecido. A batalha durou apenas um dia e nela morreram, não se sabe ao certo, várias dezenas de insurgentes e soldados, além de ter deixado centenas de feridos. Caxias foi elevado a Duque, e Teófilo Otoni e os demais chefes rebeldes, após dois anos de prisão, foram anistiados. Viraram heróis e morreram todos, muito tempo depois, de forma natural, no conforto de uma cama. No local, no alto da colina, existe um monumento ao chefe vitorioso. Somente se esqueceram de fazer uma homenagem aos combatentes desconhecidos, mortos na batalha.

Monumento a Caxias, em Santa Luzia

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Macaúbas das Freiras, a primeira escola feminina das Minas Da praça principal de Santa Luzia, tomando-se o rumo do norte, pega-se a Rua do Serro, nome mantido até hoje. Esta denominação foi dada porque os tropeiros que vinham de Diamantina, Minas Novas e Serro, ou seja, da Comarca do Serro Frio, chegavam por essa via. Ali eles se encontravam com as tropas vindas do sul, de São Paulo e do Rio de Janeiro, que chegavam pela Rua Direita. O grande ponto de encontro era a Igreja Matriz, exatamente na esquina da Rua do Serro com a Rua Direita. Adiante, o caminho segue paralelo ao rio das Velhas, um pouco distante da margem, fugindo dos inúmeros meandros formados pela água. O Convento de Macaúbas, a cavaleiro sobre uma pequena colina, a salvo das cheias, domina a paisagem. Poucos anos se passaram após a morte de Fernão Dias quando chegaram a esse sítio, a 14 quilômetros de Santa Luzia, os irmãos Félix e Antônio Costa. A região era conhecida como Macaúbas devido aos milhares de coqueiros que ocupavam a várzea. Compraram uma fértil e extensa sesmaria por 620 oitavas de ouro. Eram solteiros e muito piedosos, e se propuseram a construir uma ermida, como eram chamadas as pequenas capelas distantes dos povoados. Em 1714, iniciaram a construção do Convento de Macaúbas, destinado ao recolhimento de mulheres que passariam a viver isoladas, sem nunca mais ter contato com o mundo exterior. As primeiras freiras que "voluntariamente" atravessaram para sempre o sombrio portal foram suas irmãs e suas sobrinhas. O convento foi, posteriormente, a primeira escola feminina de Minas Gerais, onde estudaram as nove filhas da poderosa Chica da Silva, conhecida como a Chica Que Manda, por volta


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de 1770. Como a escola estava edificada à margem de um ramo do Caminho dos Currais, havia uma ligação direta com Diamantina, ao norte. Já para Itabira do Mato Dentro, a leste, existia outra estrada bastante movimentada, trilha na qual também era preciso vencer os altos da serra do Espinhaço. Por esta última estrada passou, em 1877, Julieta Augusta Drummond de Andrade, mãe do poeta Carlos, quando ficou órfã por parte materna. Tinha oito anos e foi retirada repentinamente do convívio de familiares e amigos, vendo-os apenas uma vez ao ano, nas curtas férias escolares da época de Natal. A viagem era em lombo de burro, cerca de 90 quilômetros, e durava três dias. Julieta ia sempre acompanhada pelo pai, tanto na ida, como na volta. Toda a imensa tristeza que sentia era compensada pela ansiada subida das montanhas azuis nos meses de dezembro, a emoção de atingir o ondulado planalto sem porteiras, a visão do vale coberto de florestas no qual ficava Itabira e as promessas de algumas semanas de felicidade. Estas lembranças persistiram por toda sua vida e na velhice era a história predileta que contava aos netos. Julieta Augusta morreu em 1948, em Itabira. Julieta Augusta com os netos Carlos Drummond de An-

Flávia e Heraldo, em 1935


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drade sempre fora muito apegado à mãe apesar da distância, já que morava há décadas no Rio de Janeiro. Ele escreveu em seu diário, no dia que a morte de Julieta completava seis anos: Pouco pensei em ti, hoje, do muito que gostaria. Tua lembrança caminhou algum tempo comigo, nas ruas, mas era antes o desejo dela, de uma convivência mais íntima, repetida e tranqüila, com a tua essência, e que mantenho tão abafada sob interesses imediatos (...) Pensei sobretudo na distância de tempo que nos separa do dia do teu nascimento, há 85 anos. Nesse espaço, uma criança vem ao mundo, torna-se órfã e se faz moça, casa-se, os filhos vêm chegando, a maior parte deles morre cedo, outros crescem para ligar suas vidas com a tua e depois separá-las, cada um no seu rumo. Por fim, és tu mesma que te retiras, enquanto um ramo de tua vida aqui está, nesta cidade que nunca viste, e poucos são os que te conhecem e sabem sequer que exististe. Um ramo a lembrar o curso humilde de tua vida caseira, à sombra do homem forte que também já se foi antes de ti, os dois hoje integrados no mesmo pó que me espera (...) O poeta, que era avesso a viagens, retornou uma última vez a Itabira, para receber a urna com os restos funerários da mãe. Uma prima perguntou-lhe, então, esperançosa: E aí Carlito, quando é que você volta aqui? Respondeu seco, no seu estilo quase áspero, mas involuntário, que era uma característica inerente à sua personalidade: Não volto mais. O que é meu, eu estou levando. Uma explicação para uma resposta tão atravessada poderia ser a novidade do ronco surdo, traiçoeiro, insaciável, que da cidade se ouvia continuamente, das máquinas a iniciar a destruição do cume do pico do Cauê, o símbolo maior da férrea alma itabirana prestes a desaparecer. Ainda resistem aos tempos e aos costumes o Convento de Macaúbas e as suas regras, mesmo tendo-se passado três séculos. A imponente construção foi sendo ampliada e chegou a abrigar várias dezenas de internas.


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Convento de Macaúbas, em Santa Luzia

O colégio foi fechado em 1929, mas o convento por enquanto consegue sobreviver. Ainda hoje, a proposta original de clausura absoluta é mantida. O visitante não passa da ante-sala, sendo proibida a visitação às outras alas. As internas não saem jamais e nem são autorizadas a ver o rosto dos que vivem do outro lado de seu mundo. O contato é apenas verbal e se faz através de uma densa treliça e uma mesa giratória, onde são negociados pequenos artesanatos, geléias, licores e santinhos, que ajudarão na manutenção da instituição. Na penumbra do local, pode-se sentir que de fato o tempo ali parou.

O refúgio dos estigmatizados morféticos Por perto do caminho para Itabira, três léguas para o lado de sua parte mais nordestã, ficava o temido grotão dos leprosos, conhecidos também por morféticos. O estigma aos doentes foi registrado até pela Bíblia, como um castigo de Deus. Portanto, seria sinal inequívoco de punição divina aparecer com

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grandes manchas brancas, nódulos disseminados que quando acometiam a face a deformavam e, com o passar dos anos, com a absorção dos tecidos do corpo, que lentamente transformavam os dedos em curtos apêndices,. Acreditava-se que, se não fosse algum mal-feito que a própria pessoa tivesse cometido, certamente dever-se-ia a culpas passadas, quem sabe de outras encarnações. O fato é que o exílio estava decretado. O indivíduo, junto com a família, tinha que partir e buscar locais isolados para viver. Geralmente, procuravam as desabitadas regiões montanhosas. Uma delas não poderia ser mais isolada: era a vertente oeste da serra do Espinhaço, nascente do rio Mutuca, formador do rio Preto, que cai no Taquaraçu e desemboca no Velhas. O local fica em um fecho de duas serras, paredão em ambos os lados, somente pedras e mais pedras para além das escarpas, com o riacho correndo espremido no fundo da grota. Um bom lugar para não ser visto. Transeuntes ali eram raríssimos e ninguém poderia exigir distanciamento maior. E a terra tinha boa fertilidade. Trabalhando duro, os exilados poderiam até não passar fome e frio. Plantavam banana, feijão e milho, tinham criações de frangos, porcos e um gadinho, e viviam seu ai-jesus longe do convívio da sociedade. Mesmo quando, tempos depois, já nas últimas décadas, descobriram que a doença era relativamente pouco contagiosa e curável com medicamentos ministrados a longo prazo, o preconceito ainda persistiu por várias décadas. Foi preciso eliminar o termo lepra do vocabulário médico, denominando a doença hanseníase, em homenagem a Amauer Hansen, um médico norueguês que descobriu a bactéria que causa a infecção. Todavia, a palavra lepra pertence à história da humanidade, sendo impossível suprimi-la. Muitos dos moradores atuais da região evitam prestar


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depoimentos sobre esse tema. Apenas alguns entre os mais velhos se dispõem a falar, deixando escapar um tom de mágoa. São filhos de hansenianos, que nunca adquiriram a doença. Entretanto, isso não bastou para que não sofressem humilhações, discriminações e proibições. Era-lhes vedada a freqüência a locais públicos; alguns tiveram as casas queimadas assim que o mal fora identificado em um familiar, na tentativa de expurgar "emanações perigosas", e também relembram dos constrangidos apertos de mão com a ponta dos dedos, logo seguidos de mal disfarçada limpeza para eliminar vestígios do contato. O local superou a trágico passado e os moradores, pobres mas proprietários de bem cuidadas glebas, vivem dignamente e recebem, nos feriados, caravanas de turistas em busca das águas abundantes e cristalinas que descem da serra.

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Ouro Preto: a glória de ter sido a maior cidade das Américas Vila Rica: fim e início do Caminho dos Currais

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té o final dos anos de 1600, a região de Ouro Preto era apenas um acidentado território de serras cobertas por uma fechada floresta, habitada por esparsas tribos indígenas. Os primeiros bandeirantes a atravessar a região não encontraram ouro simplesmente porque não o estavam procurando. Certamente, pisaram em pepitas de aluvião, mas a "cegueira" pelas esmeraldas os impediu de identificar outras riquezas. O primeiro relato da descoberta de ouro é de 1693, quase vinte anos após a chegada de Fernão Dias. O fato ocorreu em um vale que os indígenas chamavam de Tripuí, onde mais tarde a cidade de Ouro Preto viria a existir. Conta-se que um escravo, que fazia parte de uma expedição para capturar índios, desceu a um riacho em busca de água e encontrou estranhas pedras escuras na areia do fundo. Estas pedras foram levadas para o Rio de Janeiro, onde caíram em mãos experientes: era ouro e de alto quilate! Milhares de candidatos a mineradores, de início paulistas, invadiram a região, que passou a ser conhecida como as Minas do Ouro. O sucesso do garimpo logo se propagou para mais


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Ouro Preto: a glória de ter sido a maior cidade das Américas

longe e atravessou os mares. Em poucos anos, mais da metade da população de Lisboa cruzou o Atlântico em caravelas para tentar a sorte na corrida do ouro. Vasculharam cada grota de mato, reviraram todos os riachos e se aglomeraram em arraiais populosos, insalubres e violentos. Vila Rica começou a se formar nas encostas do vale do Tripuí, que corre para o rio Doce. O vilarejo foi fundado em um divisor de águas, pois na virada da montanha que cerca a cidade, no sentido norte, está a nascente do rio das Velhas. Chegar até a vila era uma grande aventura. Do sul, vinham as tropas que saíam de Parati e do Rio de Janeiro e enfrentavam cerca de 40 dias de jornada. Do norte, o trajeto era mais longo, porém menos acidentado. Neste percurso, acompanhava-se o rio São Francisco e o rio das Velhas, região já parcialmente ocupada por fazendeiros criadores de gado. Era este o Caminho dos Currais. Boa parte deste trajeto podia ser feito em grandes canoas, o que facilitava o transporte de pessoas e cargas. Centro urbano de Ouro Preto, situado no vale do rio Doce


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O Arraial de Vila Rica ia crescendo caoticamente pelas ladeiras do lugar. Em poucos anos, cerca de 20 mil habitantes já residiam ali e, algumas décadas após, a cidade chegou a abrigar 80 mil almas. Vila Rica foi por um tempo a maior cidade das Américas, época na qual Nova York possuía menos da metade desse número de habitantes e a Vila de São Paulo não tinha mais que oito mil habitantes. A cada dia chegavam a Vila Rica dezenas, às vezes centenas de aventureiros. Vinham sedentos de ouro e famintos, dispostos a pagar um alto preço por qualquer comida. Mas era exatamente esse o grande problema. Ninguém tinha o cuidado de plantar, de criar bois ou galinhas. Qualquer alimento era disputado ao peso do próprio ouro. E já não havia mais animais para serem caçados, nem urubus para serem abatidos, ou ratos, gatos e cachorros. Todos eles já tinham servido para saciar a interminável fome dos moradores. Outras tragédias estavam por vir. Para piorar a situação, alguém apareceu com o corpo coberto de pústulas e febre alta e não resistiu mais do que uns dias antes de sucumbir. Logo após, eram muitos com os mesmos sintomas. A epidemia da bexiga negra, como era conhecida a varíola, logo se espalhou, dado o contato íntimo e promíscuo entre as pessoas. O vírus tinha vindo da Europa, onde por séculos dizimava periodicamente milhares e milhares de pessoas. Acredita-se que a maioria dos habitantes da vila tenha morrido em poucos meses numa epidemia em 1702, deixando um ar sinistro pelas ruas semidesertas. Os cadáveres eram apenas empilhados em local isolado, pois não havia quem tivesse força para os enterrar. Foram tempos difíceis na região das Minas.

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Galgando montanhas: a travessia do vale do rio Doce para o São Francisco A ligação entre Vila Rica e Sabará, situada a 15 léguas, era difícil, mas imprescindível, tanto por causa do ouro quanto do transporte de víveres provenientes do sertão. Esta via foi a primeira a ser traçada de Vila Rica em direção ao norte da província. Somente décadas após ganhou importância o outro trajeto da Estrada Real, hoje mais famoso, que seguia por Mariana em direção ao Serro e a Diamantina. O primeiro obstáculo do Caminho dos Currais era ultrapassar o espigão mestre que divide os vales dos rios Doce e São Francisco. A trilha saía do centro de Vila Rica e, inicialmente, por uma légua, tomava o rumo do Rio de Janeiro. De repente, em diagonal a este caminho, galgava a serra em uma rampa sem trégua, a não ser ao chegar ao topo, quando a paisagem se abria, expondo todo o vale em que nasce o rio das Velhas. Na parte mais alta da montanha avista-se, na direção norte, a região da serra da Piedade. Um pouco à direita, vêse o impressionante bloco da serra do Caraça e, à esquerda, o pico do Itabirito, com suas duas orelhas de gato. Bem em frente situa-se o paredão da serra da Gandarela. Por todo o vale, que é bastante acidentado, há uma densa floresta, em boa parte preservada até os dias de hoje. Trilha antiga de Ouro Preto a Sabará


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O Caminho dos Currais desce margeando a montanha, em declive suave. Apesar do mato fechado, a estrada é facilmente identificada. Isto porque ela se situa dentro de um sulco que, em alguns locais, chega a cinco metros de profundidade. Séculos de tráfego intenso de cavaleiros e carros-de-boi, associados às enxurradas, foram cavando o solo e deixando para sempre a cicatriz longelínea. Em alguns locais mais escarpados podem ser vistos paredões de pedras empilhadas, uma obra de engenharia que resiste há tempos. A floresta primitiva foi cortada, mas a mata secundária, que já tem muitas décadas, atingiu vários metros de altura, sombreando o percurso. Após uma légua de descida, ainda se encontra em uma pequena clareira um antigo chafariz, a oferecer ao caminhante água fresca de montanha. Uma inscrição na pedra informa que Dom Rodrigo de Menezes ordenou a construção do chafariz em 1782. Chega-se então ao vale, onde corre o ribeirão do Funil. Nas proximidades, situa-se a Vila Doutor Rocha Lagoa, Chafariz na Estrada Real entre Ouro Preto e Sabará com sua meia dúzia de casas e uma pequena e graciosa igreja. Neste ponto da estrada há uma bifurcação para Cachoeira do Campo, importante distrito de Ouro Preto, tanto no passado como no presente. O ribeirão do Funil é a primeira grande agressão que recebe o rio das Velhas devido à ação de mineradoras, que o tor-

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nam barrento e com as margens enlameadas. Em sua nascente, encontra-se a única mina de topázio imperial em todo o mundo que possui extração economicamente viável. Mas isso parece não ser o bastante para que o ribeirão seja tratado condignamente. Mais alguns quilômetros adiante, por um vale com pequenas ondulações, chega-se ao povoado de Glaura (conhecido antes como Casa Branca), situado a 26 quilômetros de Ouro Preto.

Glaura e Acuruí: breve prosperidade no período colonial

O rio das Velhas passa a poucos quilômetros de Glaura, bem encaixado no vale, em meio a matas ainda com grandes árvores e que formam uma galeria cobrindo as águas. Nasce na face norte da montanha que limita o centro urbano de Ouro Preto e despenca da serra formando a cachoeira das Ando-rinhas. A região apresenta relevo acidentado, pouco habitado, e atualmente pertence à Área de Preservação Ambiental da Cachoeira das Andorinhas, que abrange 20 mil hectares. A primeira vila siCachoeira das Andorinhas, nascente do rio das Velhas


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Rio das Velhas, próximo à nascente, com mata ciliar

tuada em suas margens é São Bartolomeu, que preserva ainda uma igreja com o raro estilo nacional-português, com raríssimo sino de madeira e casas dos primeiros tempos. No Arquivo Eclesiástico de Mariana está registrado: Os assentos que se acharam nos livros da freguesia de São Bartolomeu persuadem haver sido erigido em freguesia pelos anos de 1716. O povoado ficava fora da via principal do Caminho dos Currais, duas léguas à direita. Era uma várzea muito fértil, excelente para o cultivo de hortas que pudessem alimentar Vila Rica. A Estrada Real para Sabará deixava Glaura pela Igreja de São Bartolomeu, distrito de Ouro Preto

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extremidade norte da vila e em marcha paralela ao rio das Velhas buscava o "vau", ou seja, o local em que a travessia pudesse ser mais fácil às tropas. Este ponto, distante poucos quilômetros além de Glaura, situava-se próximo à Fazenda Ana de Sá, onde hoje existe, junto a uma capela, uma ponte de concreto que tem o nome da antiga proprietária daquelas terras. O rio das Velhas faz uma pequena bifurcação no local dando origem a uma ilha, o que facilitava a passagem de homens e animais. Rio acima e abaixo são muitas as quedas d'água que, apesar de não serem altas, impossibilitam a navegação. Seguindo adiante, bem junMatriz de Glaura, distrito de Ouro Preto to à margem direita do rio, a estrada atravessa uma área de mata ciliar ainda bastante densa. Após o Velhas receber o rio Maracujá, a trilha abandona o vale para alcançar o alto da colina, onde está situada a vila de Acuruí, (que antes tinha o nome de Rio de Pedras), 15 quilômetros após Glaura. Palavra de origem indígena, Acuruí significa rio de seixos. Acuruí, hoje um distrito de Itabirito, teve sua fundação logo após o ano de 1700. Suas duas igrejas, Nossa Senhora da Conceição, construída em 1756, e Nossa Senhora do Rosário, destinada aos escravos e erguida logo após a primeira, situam-se na mesma rua, uma de frente para a outra. Na atualidade, a vila tem a base de sua economia nos sítios de proprietários das grandes cidades da região e no Balneário Rio de Pedras, às margens do lago formado pela barragem de mesmo nome, e faz parte do Município de Itabirito.


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Vista da igreja matriz de Acurui. Ao fundo, à esquerda vê-se o Pico do Itabirito

Para fornecer energia elétrica para a nova capital mineira, foi construída em Acuruí uma barragem de 40 metros de altura em uma importante cachoeira do rio das Velhas. A obra foi concluída em 1908. Por muitos anos, Belo Horizonte foi iluminada por essa represa.Todavia, a exploração irracional das terras a montante, principalmente a extração de areia, assoreou o leito do lago; por isso, o que chegava a dezenas de metros de profundidade em alguns pontos hoje não passa de um espelho d'água de pouco mais de um metro de fundura. A geração de energia é mínima e a usina hidrelétrica poderá ser desativada no futuro.

Represa Rio de Pedras, em Acuruí

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Cerca de 300 anos após a descoberta do Brasil, nossa história sofreu, em 1808, uma mudança drástica. Até então, nosso território esteve fechado aos estrangeiros e somente portugueses autorizados podiam aqui desembarcar. Entretanto, neste ano, as tropas de Napoleão Bonaparte haviam invadido Lisboa e, pouco antes, toda a corte portuguesa migrou para o Rio de Janeiro. O Rei D. João VI, logo ao chegar, assinou o famoso decreto de abertura dos portos. Foi a oportunidade de viajarem para cá os primeiros naturalistas europeus, curiosos para descobrir um mundo ainda cientificamente inédito. A partir de então, deixamos de receber unicamente aventureiros ávidos por um enriquecimento rápido. Spix e Martius, dois cientistas da Bavária, região que hoje faz parte da Alemanha, percorreram longo trajeto por grande parte do Brasil entre 1817 e 1820. Passaram pela estrada que ligava Ouro Preto a Sabará e descrevem o trajeto, citando os povoados de Santo Antônio de Casa Branca (Glaura) e Rio de Pedras (Acuruí): Deste modo, prosseguiu a viagem por montes e vales, alternadamente, até ao sopé de uma alta montanha, onde corre o pequeno Rio-das-Pedras e está a freguesia do mesmo nome (...). Também o naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire, na mesma época, faz percurso idêntico, anotando em seu diário a geografia, a cultura e as características da flora e da fauna da região. Descreve a primeira visão que o caminhante tem da vila de Acuruí, com a qual, ainda hoje, há que se concordar plenamente: A igreja, que é construída entre duas fileiras de palmeiras, avista-se de longe e empresta um belo efeito à paisagem (...).


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Rio Acima: onde as cachoeiras impediam a navegação pelo rio das Velhas Saíndo de Acuruí, a trilha colonial tinha que buscar os cumes dos montes para fugir dos canyons do rio das Velhas. Nesta região são muitas as cachoeiras, algumas de vários metros de altura, e o rio precisa lutar contra as pedras para encontrar passagem. As margens, com frequência, tornam-se estreitas e escarpadas, impossibilitando qualquer tráfego. A estrada segue vários quilômetros pela margem direita do rio, por altos e baixos, atravessando uma bela região. Nas baixadas, ainda hoje encontram-se matas fechadas e regatos de água limpa. Nas partes elevadas, o visual se espalha por muitas léguas, sempre com o pico do Itabirito visível no rumo do oeste. Há algumas décadas, a imponente montanha escapou por pouco de ser destruída pelas vorazes mineradoras e hoje é protegida pelo Patrimônio Histórico. Um movimento preservacionista, que conseguiu grande repercusão - pois ganhou até o apoio irado de Carlos Drummond de Andrade em crônica divulgada nacionalmente -, evitou que Desenho do pico do Itabirito, de 1817, do as dinamites derrubassem o livro de Spix e Martius marco geográfico que serviu de orientação para os bandeirantes.


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Ouro Preto: a glória de ter sido a maior cidade das Américas

O primeiro vilarejo adiante é Cocho d'Água, onde de fato existia um grande tronco escavado que servia para matar a sede dos animais de carga. Neste trecho, o rio das Velhas está mais encorpado: recebeu o rio Itabirito, que é seu maior afluente da Foto atual do pico do Itabirito e a ação das mineradoras margem esquerda na região. Bastante poluído, o Itabirito é mais um a agredir de forma suja e irresponsável o rio das Velhas. Na cidade de Rio Acima, a praça central foi remodelada, ficando preservados os casarios antigos. Uma aparentemente autêntica cachoeira encontra-se no paço municipal. A partir dessa cidade, a antiga trilha seguia pela margem direita do rio das Velhas por terras mais planas, sendo que, 20 quilômetros adiante, chega-se a Raposos e mais 20 a Sabará, por estradas ainda hoje não tomadas pelo asfalto. Nessa região o rio das Velhas doa água para a cidade de Belo Horizonte, coletada na Estação de Bela Fama. A estação capta cinco mil litros a cada segundo, fazendo o rio baixar visivelmente o volume de suas águas. A vila de Nossa Senhora da Conceição de Raposos foi a primeira freguesia - como eram chamadas as paróquias - da Província de Minas, eregida nos idos de 1690. Raposos conseguiu preservar, dos tempos antigos, um alicerce de um casarão com


Ouro Preto: a glória de ter sido a maior cidade das Américas

grandes blocos justapostos, quase escondido pelo mato, ao lado de um curral de pedras certamente construído por escravos. Porém, a igreja matriz, ornamentada de prata e com obras de Aleijadinho, sofreu várias descaracterizações durante os três séculos de existência. Um ambicioso projeto de restauração está em curso e promete recuperar uma das mais antigas igrejas de Minas Gerais.

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Jaguara: retrato da decadência do poder Trilhas para Pitangui, Goiás e Cuiabá

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lém das trilhas existentes, o próprio rio das Velhas era uma importante via de tráfego. Pouco adiante do Convento de Macaúbas, rio abaixo, após passar a barra do rio Taquaraçu, afluente da margem direita, ficava um pequeno porto. Neste local, curiosamente foi construído, em 1942, um teatro rural. Trata-se do Teatro São Francisco, de chão de terra batida, bancos sem encosto, palco e camarim, que a duras penas vem apresentado espetáculos há muitas décadas.

Teatro São Francisco, em Taquaraçu de Baixo


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Jaguara: retrato da decadência do poder

Um antigo proprietário da fazenda, mecenas exemplar, cego e criador de peças teatrais, mandou erguer o cômodo e, com suas parcas economias, promovia apresentações regulares que sempre superlotavam o diminuto auditório. Até hoje, a construção é usada para esse fim e grupos de artistas da vizinhança disputam um lugar no palco. Foi reformado recentemente e encontra-se em plena atividade. Duas léguas descendo o rio, ficava o Porto das Minhocas, ao lado de uma grande casa assobradada, a sede da Fazenda das Minhocas. O casarão foi construído em 1712 e, inacreditavelmente, foi preservado. Hoje é um pequeno e luxuoso hotel, e em seu interior podem ser vistas, além do mobiliário da época, as largas tábuas do piso de peroba clara, levemente inclinadas pelo passar dos séculos e respeitosamente deixadas na mesma posição pelos novos proprietários. Vêem-se também as enormes vigas de jacarandá e as telhas originais, enegrecidas pelo musgo.

Casarão da Fazenda das Minhocas, na margem do rio das Velhas


Jaguara: retrato da decadência do poder

Em documento com data de 1738, publicado posteriormente na Revista do Arquivo Público Mineiro, uma carta de sesmaria é outorgada a Manoel da Fonseca, morador das margens do rio Taquaraçu, e faz referência à antiga estrada colonial. O jargão e as metáforas em uso merecem citação: (...) hu citio de roça em que vivia era hum capão de mato em hum corgo que fazia barra no mesmo Tacoarasu, o qual citio queria o suplicante por cesmaria, media meya legoa de terra em quadra, principiandoce a medição na estrada que hia para o Serro do Frio, pella parte do poente (...). De fato, esse caminho para o Serro corria pelo lado do poente da serra do Espinhaço, ao contrário do Caminho do Mato Dentro, que passava pelo lado do Sol nascente. O texto ainda detalha que seu vizinho morava em uma (...) nêsga de campo com a largura de hum tiro despingarda (...). Nesse ponto, o rio das Velhas atravessa uma região de amplos horizontes, sem montanhas, e as trilhas, fáceis de serem abertas, seguiam em todas as direções. Uma importante estrada era direcionavada para o oeste, onde a principal cidade era Pitangui, distante 20 léguas. Pitangui foi fundada pelos seguidores de Borba Gato, em 1710, quando de sua rota de fuga da mão pesada do Rei, que os procurava para os castigar pela morte de Dom Rodrigo Castelo Branco. A vila, inicialmente chamada de Batatal, pois as pepitas de ouro encontradas no local atingiam tamanhos de batatas, cresceu rapidamente, tornando-se importante núcleo urbano. Nos anos de 1718 a 1720, seus moradores entraram em guerra com o poder central, revoltados com a extorsiva cobrança de impostos. A luta foi renhida e os rebeldes somente foram derrotados após várias batalhas, mas não sem antes enforcar alguns comandantes das forças repressoras. Com muita justiça, o povoado ganhou por muito tempo a alcunha de Vila Turbulenta. Muitos dos derrotados partiram em expedições para as inexploradas terras da margem esquerda do rio São

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Francisco, o Sertão da Farinha Podre (atualmente o Triângulo Mineiro), o Sertão dos Goiases (Goiás) e para a vila de Cuiabá, no centro de Mato Grosso, lonjura maior talvez impossível, sempre e irremediavelmente contaminados pela febre do ouro.

Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Jaguara, em Matozinhos

Ruínas da majestosa Igreja de Nossa Senhora da Conceição Ainda no trecho em que o rio das Velhas atravessa regiões mais planas, e também em sua margem esquerda, fica a Fazenda da Jaguara, com seus casarios e as ruínas da Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Jaguara. O local hoje está si-


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tuado em terras do Distrito de Mocambeiro, Município de Matozinhos. Escondida no meio do mato, e caindo aos pedaços, está a imponente nave, que possuía obras de Aleijadinho (Antônio Francisco Lisboa, 1730-1814) e foi construída à semelhança da Igreja de São Francisco de Assis, em Ouro Preto. Por sua importância, foi tombada pelo Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico. A Fazenda da Jaguara foi construída por volta de 1750, quando seu proprietário, Antônio de Abreu Guimarães, um esperto contrabandista de diamantes, chegou a ser considerado o homem mais rico do mundo. Quando a Coroa Portuguesa descobriu seus furtos, levou-o preso para Lisboa.Todavia, devido a seu poder e à sua riqueza, foi libertado, com a condição de que erguesse uma igreja no valor de seu roubo. Com isso, a fazenda ganhou a grande igreja, com altar-mor folheado a ouro. Há cerca de um século, a construção deixou de ser conservada, as peças foram doadas ou vendidas, o teto ruiu e o interior chegou a ser utilizado como curral. À salvo, ficou apenas o altar principal, que foi doado para a matriz da cidade de Nova Lima, e um altar lateral, que foi doado para a igreja de Jequitibá. O Hotel Jagoara Velha ocupa um dos casarões da antiga fazenda e a proprietária, Leda Torres Andrade, exímia artista, decora toda a pousada com seus maravilhosos quadros. Um deles, que ocupa toda uma parede, é a pintura da fazenda em seus tempos áureos, há cerca de 140 anos. O que mais impressiona é que o quadro foi pintado a partir de uma antiga fotografia aérea, de autoria do famoso fotógrafo alemão Augusto Riedel, e preservada até hoje, em uma época em que não havia aviões! Um enigma que talvez nunca seja desvendado. Provavelmente, foi tirada de um balão, hipótese aventada pelo fato de que o dono da fazenda no período em que foi feito o registro fotográfico era o arrojado e inquieto Henrique

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Dumont, pai do aviador Alberto Santos Dumont. O local chamou também a atenção do historiador Marco Antônio Tavares Coelho, que recentemente contou em livro as memórias do rio das Velhas: Da igreja da Jaguara só restam ruínas, que causam assombro aos que lá aparecem. Um matagal cerrado quase afogou sua torre e as paredes de pedra que vão caindo aos poucos. Mas a luxúria da vegetação trouxe de volta as aves, que se tornaram os novos senhores da igreja. O frontispício, que estava mesmo desabando, está agora escorado por um caridoso e robusto andaime de vigas metálicas de 20 metros de altura.

Fortaleza de São José, o primeiro registro cartográfico da Estrada Real Será que existem mesmo ruínas de uma antiga fortaleza, escondida em algum meandro do rio das Velhas na região da Jaguara, que foi um importante posto de controle do contrabando de ouro e diamante, e que é a primeira referência documental cartográfica à Estrada Real no Brasil Colônia? Certamente existem, porém seus vestígios ainda não foram encontrados. Já foram procurados algumas vezes no denso matagal beira-rio, mas sem sucesso. No entanto, um detalhado croqui do forte, datado de 1730, ficou preservado. Nele vê-se uma estrutura triangular, com reforço nos vértices, e com uma legenda de 13 itens onde pode ser conferido o local em que ficava a esplanada das peças da artilharia, a casa de munições e de apetrechos, a praça central e a casa de mantimentos. Bem identificado está o rio das Velhas e, em paralelo a este, está assinalada a Estrada Real do Sumidouro. Tinha o nome de Fortaleza de São José e foi construído por um engenheiro militar, Tenente-Coronel João Ferreira


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Planta baixa da Fortaleza de São José, com destaque para a Estrada Real do Sumidouro (M) e o rio das Velhas (N)

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Tavares de Gouveia, a mando do Governador da Capitania das Minas "Geraes", D. Lourenço de Almeida (governante de 1721 a 1732). Sua finalidade era controlar o tráfego de gado e escravos e, também, o contrabando de ouro e diamantes para a Bahia. O Governador seguinte, Conde de Galveas, criticou a construção e duvidou da eficiência do empreendimento. Sem dúvida, foi numa região próxima à vila do Sumidouro que ergueram o forte. Entretanto, o local exato não ficou registrado, apesar de muitos autores daquela época fazerem referência ao quartel. Pois eis que, perpetuada pela tradição oral, uma das curvas do rio das Velhas em seu curso médio, próximo à Fazenda da Jaguara, no Município de Matozinhos, é conhecida até hoje pelos barqueiros como a Curva do Canhão. Esta informação pode certamente trazer novas pistas para solucionar o enigma. Seria mera coincidência ou estaria aí a ponta do novelo para se encontrar as almejadas ruínas? Novas expedições de busca devem ser realizadas no futuro, já que, sem dúvida, a Fortaleza de São José está lá, muito bem escondida nalguma barranca do rio das Velhas.

Jequitibá: marcada pelas enchentes do rio das Velhas Após a Jaguara, 50 quilômetros rio abaixo, a primeira cidade beira-rio que se encontra é Jequitibá. No passado, foi um importante porto do rio das Velhas, onde atracavam os vapores. Por estar à margem do rio é muito castigada por suas cheias, que invadem a cidade. Podem ser vistas nas paredes as marcas da altura a que chegou a água. As maiores enchentes do último século foram nos anos de 1947, 1979 e 1997. Nesta última, foram nove dias com água pela cintura, tendo os moradores que


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ficar com foguetes em casa para o caso de necessitarem de socorro. Já é de longa data o registro de cheias em Jequitibá, pois o naturalista Langsdorff, no dia 10 de novembro de 1824, escreveu em seu diário, sentindo-se um prisioneiro no povoado: Já me haviam dito várias vezes que, em épocas de chuvas constantes, as pessoas ficam obrigadas a permanecer no local, mesmo que indesejado, durante várias semanas. Nunca imaginei que iria experimentar essa dificuldade com tanta intensidade como agora. Há quatro dias estamos prontos para viajar, mas é impossível partir. Chove tanto durante a noite que de manhã não há quem queira ir buscar os animais. Riachos e rios se enchem, os caminhos ficam escorregadios, de forma que é muito perigoso seguir viagem e atravessar rios nesta época do ano. Foi em Jequitibá que ocorreu uma desavença histórica, no ano de 1824, e que resultou no desligamento do jovem pintor alemão Johann Moritiz Rugendas da Expedição Langsdorff. A maior expedição científica da época ficou privada do "pintor das Américas", como Rugendas ficou conhecido posteriormente e, com isso, deixou-se de registrar as paisagens de então da Província de Minas Gerais. Langsdorff relatou em seu diário palavra por palavra do que lhe disse o atrevido Rugendas: Para mim não importa se o senhor é cavaleiro da Ordem de um Rei ou de um Imperador da Rússia, pois vou lhe dizer mesmo assim que o senhor é um cachorro. Rugendas foi demitido e retornou para a Europa, levando consigo a maior parte dos quadros que tinha desenhado. Muitas correspondências ríspidas foram trocadas pelos dois personagens tentando resolver a questão da propriedade dos desenhos, sem que tivessem chegado a um acordo. Infelizmente, pelo resto da expedição por Minas Gerais, Langsdorff não contou mais com um pintor em seu grupo. Em Jequitibá, há a Igreja do Santíssimo Sacramento,

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tombada pelo patrimônio histórico, com altar atribuído a Aleijadinho. Como relatado, a peça veio da Fazenda da Jaguara, de barco, quando a igreja local começou a ser desativada, já que os proprietários de então, por não serem católicos, não se interessaram em mantê-la. Jequitibá sofreu dois reveses em sua história. O primeiro foi a morte da hidrovia, que desativou o porto e comprometeu a vida econômica da cidade. Como se isso não bastasse, logo em seguida desviaram para Sete Lagoas o trajeto da ferrovia, que estava previsto inicialmente para seguir sempre pela margem do rio das Velhas. No Museu do Ferroviário, no centro de Sete Lagoas, essa história pode ser recuperada, mas é contada apenas pelo lado positivo que representou para os setelagoanos. A área rural de Jequitibá ainda guarda, escondidos, interessantes registros históricos. Por exemplo, em um platô nas margens do rio das Velhas existiu um antigo aldeamento indígena, que nunca foi estudado cientificamente. Sempre que o terreno é arado para o plantio, surgem da terra cacos de cerâmica e instrumentos de pedra polida, como machados, cuias e bastões. Nessa região do médio rio das Velhas, parte da sua margem esquerda pertence ao Município de Cordisburgo. Quase perdidos no matagal podem ser vistos vários muros de pedras usados no período colonial para confinar animais, provavelmente em local onde Curral de Pedras, em Cordisburgo


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havia alguma estalagem. Por certo que o trânsito era intenso nessa época, demonstram vestígios de calçamentos e sulcos de três metros de profundidade deixados por carros-de-boi. Cordisburgo é a terra natal do escritor João Guimarães Rosa (1908-1967), que, como ninguém, soube contar histórias e estórias do sertão. Na sede da cidade, situada a 40 quilômetros do leito do rio, fica a Casa de Guimarães Rosa. Uma boa reforma, preservando suas características originais, transformou a casa em que nasceu o escritor em um museu, onde estão guardados seus livros, medalhas, retratos, máquina de escrever e, no cômodo ao lado da sala principal, com saída para a rua, o pequeno armazém de secos e molhados de seu pai, Florduardo Pinto Rosa, "Seu Fulô", reconstituído como nos anos de 1920. No local, sempre estão a postos crianças e adolescentes que fazem parte do Grupo de Contadores de Estórias Miguilim, que funciona há vários anos e já fez viagens por todo o Brasil, sempre com apresentações de grande sucesso. Declamam longos trechos rosianos, com entonação profissional e virtuosismo. Falando sobre sua terra, assim Guimarães Rosa descreve no conto O Recado do Morro, do livro Corpo de Baile, o encontro das últimas montanhas das Minas com o início dos Gerais: De feito, diversa é a região, com belezas, maravilhal. Terra longa e jugosa, de montes pós montes: morros e corovocas. Serras e serras, por prolongação. Em 1952, Rosa cavalgou durante onze dias (...) na culatra de uma boiada na região das Gerais entre Cordisburgo e os barrancos do Rio São Francisco. Foi quando conheceu Manoel Nardi, o vaqueiro Manuelzão, grande conhecedor das coisas da natureza e das lides sertanejas. Durante o percurso, o escritor preencheu vários cadernos de notas e, quatro anos após, publicou simultaneamente dois monumentais livros, Corpo de Baile e Grande Sertão: Veredas.

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Guimarães Rosa, "na culatra de uma boiada", em 1952

Eleito membro da Academia Brasileira de Letras em 1963, adiou ansioso por quatro anos a sua posse, devido a problemas de saúde. Visivelmente emocionado, Guimarães Rosa, vestido a caráter em um estrangulador fardão, falou em seu discurso de sua terra natal: Cordisburgo era pequenina terra sertaneja, traz montanhas, no meio de Minas Gerais. Só quase lugar, mas tão de repente bonita (...) Três dias após, viria a morrer precoce e subitamente de ataque cardíaco.


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A ramificação para o Mato Dentro: a subida da serra do Espinhaço

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Jaboticatubas: de fazendeiros desbravadores a extraterrestres

eixando o rio das Velhas, o braço da trilha que cruzava a serra do Espinhaço seguia em uma lenta aproximação com o paredão da montanha. A partir de uma das fazendas que se formaram ao longo do percurso, nasceu a cidade de Jaboticatubas, situada em uma depressão do terreno. Assim escreveu o historiador local, Leônidas Marques Afonso: Desbravada tôda a região das Jaboticatubas, conhecidas que foram a fertilidade de seu sólo, a salubridade de seu clima e as abundâncias das suas aguadas, começaram a afluir para a mesma vários homens abastados, possuidores de cabedais e escravos, os quais para aqui vinham afim de se estabelecer com fazendas agrícolas e pastoris. Êstes estabelecimentos vinham se edificando à margem da Estrada do Sêrro, começando do Sul para o Norte. Logo adiante, seguindo no rumo do norte por dez quilômetros, atravessa-se o rio Jaboticatubas em um local chamado Matias. Este rio nasce na encosta da montanha que tem o nome de serra da Lagoa Dourada. Esta denominação deve-se ao capinzal do planalto, que fica dourado ao entardecer. Em seguida, o rio despenca da serra em um belíssimo canyon.


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Rio Jaboticatubas, no município de mesmo nome

Uma das localidades que se encontra hoje no trajeto, ainda em Jaboticatubas, é o arraial de Joana, um conjunto de poucas casas pobres, aparentemente sem qualquer atrativo, situado 22 quilômetros após a sede do município. Quem diria que este vilarejo já recebeu, em passado recente, caravanas de visitantes de vários países em busca de aparições extraterrenas? E que teve seu nome publicado na grande imprensa, tendo sido inclusive citado em congressos internacionais de ufologia? De fato, em um alto de serra vizinho a Joana existe uma pequena capela construída em 1962 por um romeiro agradecido, chamada de Igreja de Santo Antônio Pequenininho. O local é de difícil acesso, já que é necessário galgar uma penosa rampa para atingi-lo. A igreja foi erguida exatamente no lugar em que, segundo relato de antigos moradores, apareceram por várias vezes seres antropomorfos, de pequena estatura e cabeça desproporcionalmente grande, que desapareciam por uma fenda


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na rocha no alto da montanha. Existe ainda o relato de discos voadores iluminados e velozes, bolas de fogo inexplicáveis a se moverem no horizonte e, até mesmo, rapto de incautos caminhantes noturnos.

Igreja de Santo Antônio Pequenininho, em Joana, Município de Jaboticatubas

Histórias de curas milagrosas para os doentes que se aventuravam a subir a montanha começaram a surgir, e a igreja ganhou o nome que haviam dado ao pequeno ser extraterrestre. Em torno de 1980, a fama do local se propagou e foi intenso o afluxo de ufólogos, turistas, romeiros e curiosos em geral. Uma sociedade esotérica comprou uma área próxima, onde foi edificada uma comunidade com o objetivo de aguardar

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a mensagem do além. Formavam-se filas nas trilhas que subiam a serra, geralmente em noites de sábado, todos à espera de uma nave, que afinal não veio. Com o tempo, os interessados mais afoitos foram se dispersando. A alienígena comunidade de ufólogos desfez-se e tudo voltou novamente à paz costumeira. Apenas alguns moradores mostram-se mais perseverantes e mantêm a crença. Todo ano, exatamente uma semana antes do dia de Santo Antônio, uma procissão sobe a montanha para reverenciar Santo Antônio Pequenininho. Do topo do morro, em frente à igrejinha, avista-se uma vasta região com arborizados vales que correm para o rio das Velhas e as montanhas que os circundam. No rumo do sudoeste está a serra do Curral, que delimita Belo Horizonte. Ao sul, isolado, está o pico da Piedade. A sudeste, vê-se a linha tênue do bloco do Caraça, ao longe, no vale do rio Doce. Por todo o leste, e bem mais próximo, encontra-se a corcova do Espinhaço: primeiro a serra da Lagoa Dourada, seguida da fenda do Travessão, e ainda o maciço da serra do Breu, a nordeste. Para o norte e noroeste, está a vasta planura do sertão. Por se situar em zona limítrofe, o local é também privilegiado para se observar a divisa das minas com os gerais, ou seja, das montanhas com o chapadão. Joana também teve importância em tempos antigos, pois consta de muitos mapas elaborados em torno do ano de 1800 como um pouso na estrada que ligava Santa Luzia ao Distrito Diamantino. José Vieira Couto, em 1801, em seu diário de travessia pelo Espinhaço, descreve a região: D'aqui fui com oito léguas ao sitio chamado da Joanna, tudo por assentadas [altiplanos], ora atravessando capões, ora por espaçosas campinas. Marchando em frente, a região agora é de cerrado, as árvores são tortuosas e mais baixas, o terreno é pedregoso.


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Muitas frutas típicas podem ser encontradas, como o araticum, a cagaita, o pequi, a gabiroba e a mangaba. Hoje veêm-se também muitas mangueiras que não existiam para os primeiros exploradores, já que a manga, originária da Ásia, veio para o Brasil somente após o ano de 1800.

Região de cerrado em Jaboticatubas

Após transpor uma pequena serra, chega-se então ao Rótulo, pequeno distrito pertencente ao Município de Baldim, nove quilômetros após Joana. Situa-se em um vale de terra escura e muita água e ainda hoje é grande produtor de hortaliças. O local pertenceu aos ingleses da Imperial Brazilian Mining Association que, ao adquirirem a famosa mina de Gongo Soco em Cocais, em 1825, necessitavam de terras férteis para produzir alimentos para seus empregados. Compraram a Fazenda do Rótulo, que é citada por Richard Burton em 1867: Foi comprada a um certo Marquês de Sabará pela Companhia inglesa de Cocais, que tencionava dali tirar mantimentos para os mineiros (...) O capataz ingles comprou maquinaria para cardar, fiar e tecer

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algodão. Depois disso morreu afogado no Rio Cipó, que corre em uma depressão da montanha. O mesmo aconteceu com dois ou três outros ingleses - acidentes caridosamente atribuídos à excelente qualidade da cachaça. A Fazenda do Rótulo tem solos vermelho e preto e muito bons, com base em pedras calcáreas e, em dois lugares, foi extraído salitre (...) tem a desvantagem de ser muito longe de transporte fluvial. De fato, algumas aflorações de calcário podem ser vistas na região. O salitre, que é o nitrato de potássio, pode ser extraído das cavernas de calcário, onde é formado por bactérias a partir das fezes de morcegos. Era muito valioso por ser utilizado na fabricação da pólvora, que é uma mistura explosiva de salitre, enxofre e carvão. Destaca-se entre as poucas casas do Rótulo a antiga Capela de Nossa Senhora da Conceição, muito bem conservada, e sede de muitas festas religiosas. Igreja do Distrito do Rótulo, em Baldim Após o Rótulo, entrase na cava por onde corre o rio Cipó, espremido no fundo do vale, oito quilômetros de estrada na direção nordeste. Em sua margem esquerda finda o Município de Baldim e, na margem direita, tem início o Município de Santana do Riacho. A travessia hoje se dá por uma precária


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ponte de madeira, de 40 metros de comprimento, sem proteção lateral. A altitude local é de 770 metros e próximo à ponte, rio abaixo, existe um vau, chamado de Passador, que era usado antes da construção da ponte, ou quando ela cai, o que acontece de década em década, nas grandes cheias.

Ponte sobre o rio Cipó, na divisa de Baldim e Santana do Riacho

O relato de uma tenebrosa travessia do rio Parauninha em 1801 Subindo pela margem direita do rio Cipó, atinge-se um pequeno distrito, situado em um topo de morro: é o Alto da Mangabeira, em Santana do Riacho, que separa os vales dos rios Cipó e Parauninha. Tem-se aí uma bela visão do Espinhaço e de seus cumes de vários picos acima de 1500 metros, como o pico do Breu, o mais alto de toda a região. Nos meses de chuva, desponta numa fenda na serra a grande cachoeira do rio Mata Capim, como um friso branco a atrair o olhar. O rio Parauninha está logo adiante. É necessário descer novamente um estreito vale com cerca de 200 metros de desnível e, logo em seguida, subir o mesmo tanto. O rio passa espremido, mas as águas esverdeadas revelam um rio sem poluição, pois vêm do alto da serra com densas matas ciliares preservadas, onde existem poucos moradores. Próximo, em sua

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margem esquerda, está a Lapa da Sucupira, rica em desenhos rupestres.

Lapa da Sucupira, na margem do rio Parauninha

O grande cronista José Vieira Couto, cuja obra passou quase despercebida, descreveu com maestria sua jornada pela região e a perigosa travessia do rio, no ano de 1801: Toldou-se aqui de repente o céo, com grandes torreões de nuvens, entrava quasi o sol, trovejava, e cahiu sobre nós grande batega [gotas pesadas] d'água. Ficava-nos adiante uma légua o Rio Parauninha, e para o podermos vadear era preciso picar a marcha, e chegar a elle com cedo, antes que as águas, que de todas as partes se despenhavam da serra, o enchessem. Desciamos já para o dito rio, quando de todo nos faltou o dia, e seguiu-se uma noite mais apressada, e muito tenebrosa por causa da trovoada, que continuava ainda a armar-se. Até aqui seguiamos sempre e por descobertos e campinas: mas agora entravamos por espessas matas, que bordejavam o rio, e que ainda augmen-


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tavam mais a escuridão da noite. O caminho desappareceu de todo; os cargueiros se desnortearam; a noite ameaçava um dilúvio d'água, e causava o horror o pensar que alli deveriamos talvez ficar. Então accendemos bugias [velas de cera], e cada um com a sua, tanto os de pé como os de cavallo, todos com luzes, que brilhavam com a escuridão, e formavam um fúnebre espectaculo, marchando em uma longa enfiada vadeámos o rio, que já vinha grosso e espumando; e deste modo, ao clarão das luzes chegámos ao pouso do Riacho Fundo [Santana do Riacho], na fralda da serra, com 4 léguas e meia de trabalhosa viagem. Causou igualmente problemas para Langsdorff, em 1825, quando retornava para o Rio de Janeiro, vindo de Diamantina, a travessia do rio Parauninha, também em plena cheia. Aborrecido, registrou em seu diário: É nessas ocasiões que o viajante descobre e reconhece o valor das pontes. A maior enchente do rio nos últimos tempos foi em 1979, quando 17 dias de chuva forte e contínua romperam a barragem do Vau da Lagoa, situada no rio Parauninha em seu trajeto pelo planalto da serra do Espinhaço. Era uma grande barragem, construída em 1950 para gerar energia para uma fábrica de tecidos em Belo Horizonte. O vigia previu o rompimento e providenciou aviso a todos os moradores rio abaixo, evitando assim que ocorressem vítimas humanas. Uma ponte de ferro situada no vale e 13 metros acima do nível normal da água foi levada pela correnteza. A ponte de ferro atual, assentada no mesmo local e que possui a mesma altura da anterior, veio de Ouro Preto, de uma estrada de ferro desativada. Uma nova barragem foi construída, mas em nível inferior em relação à primeira, e continua gerando energia.

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Santana do Riacho é o maior cemitério paleoíndio das Américas Após a passagem pelo rio Parauninha, hoje através de uma sólida ponte de concreto de uma via construída em 1986 em substituição à antiga de madeira, que foi levada pelas cheias, é necessária a subida de mais um morro antes de chegar à sede do município. Santana do Riacho, de nome anterior Riacho Fundo, pertenceu inicialmente à Comarca do Serro Frio. Foi depois freguesia de Conceição do Mato Dentro, em seguida distrito de Morro do Pilar, mais tarde de Santa Luzia, posteriormente de Jaboticatubas e, em 1962, adquiriu a condição de município. Santana conta hoje com cerca de quatro mil habitantes. A primeira ocupação oficializada do local foi a Fazenda Riacho Fundo, nome também do curso de água que a atravessava. O proprietário da fazenda era o sargento-mor Antônio Ferreira Aguiar de Sá, que recebeu a concessão das terras por meio de uma carta de sesmaria datada de 1744. A região guarda uma preciosa biblioteca natural da história da humanidade. É o Grande Abrigo de Santana do Riacho, situado a quatro quilômetros da sede do município, na base da montanha, margem direita do Riacho Fundo, que é mais conhecido no local pelo nome simplificado de Riachinho. Tratase de grande paredão, com 60 metros de extensão e em posição estratégica de defesa, que serviu como importante aldeamento indígena, talvez por milênios. É extremamente rico em pinturas rupestres e outros vestígios de ocupação humana que, segundo datações, iniciou-se há cerca de 12 mil anos.


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Croqui do Grande Abrigo em Santana do Riacho

Foram encontrados no local, a partir de escavações realizadas por arqueólogos, ferramentas de pedra lascada e pedra polida, artefatos de ossos, chifres e dentes, ossos de animais, vértebras de peixes, restos de tecidos de fibras que provavelmente se destinavam a redes, sementes de milho e cerâmicas. Um cemitério, com mais de 40 corpos enterrados com rituais de sepultamento, foi localizado em apenas uma das áreas pesquisadas. Poucos têm conhecimento, mas é o maior cemitério paleoíndio já estudado cientificamente nas Américas. O Grande Abrigo de Santana do Riacho foi objeto de intensos estudos na década de 1970, levados a cabo por uma equipe da Universidade Federal de Minas Gerais e de outras instituições, quando considerável volume de publicações foi pro-

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duzido. Escolheu-se apenas uma área para que o restante ficasse intocado. Agora está encerrada essa etapa de estudo e outras escavações serão realizadas somente daqui a alguns anos, quando novas tecnologias de pesquisa puderem acrescentar novidades ao conhecimento atual. Dessa forma, o sítio arqueológico fica preservado para que possa ser investigado pelas gerações futuras. Dada sua importância e fragilidade, não está aberto ao turismo. Uma réplica do paredão e informações detalhadas podem ser encontradas no Jardim Botânico e Museu de História Natural da Universidade Federal de Minas Gerais, em Belo Horizonte. Toda a região permaneceu isolada através dos tempos devido a importantes acidentes geográficos. Pelo lado do oeste, vários rios, correndo paralelos, dificultavam o acesso. A leste, há a grande barreira da serra. A travessia da muralha de pedra era realizada somente em poucos locais, situados a léguas de distância um dos outros.

O provável caminho usado por Fernão Dias para vencer a cordilheira O rio São Francisco, do qual o Velhas é o maior afluente, nasce no sul de Minas e encontra, na serra do Espinhaço, seu grande obstáculo na busca de chegar ao mar. Para vencê-la, percorre cerca de 2000 quilômetros para o norte e, somente na divisa do Estado da Bahia com Pernambuco, toma o rumo do leste. O Velho Chico ou "rio da unidade nacional" atinge o oceano depois de banhar vários estados brasileiros. Fernão Dias, em 1678, ao contrário do São Francisco, não evitou a montanha. Era justamente em seus planaltos que


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procurava a grande pirâmide de esmeraldas, a serra Resplandescente. Se a primeira tentativa, na serra da Piedade, tinha sido um fracasso, já que nada encontrara senão dissabores, partiu o velho bandeirante, já com quase 70 anos, em busca do pico do Itambé, que se situaria 40 léguas ao norte, segundo relato de índios aprisionados. Fernão Dias tomou a direção nordeste, aproximando-se do paredão à procura de uma passagem menos árdua pela qual pudesse subir. Os terrenos pelos quais passou pertencem atualmente a Jaboticatubas e Baldim. Em seguida, adentrou por uma região de cerrado, seca e ainda hoje pouco habitada, encrespada nas primeiras léguas por montanhas de baixa altitude. Os índios foram os primeiros a construir caminhos que serpenteavam as encostas da serra do Espinhaço, em busca de passagens pela cordilheira. Um dos mais importantes caminhos saía de Santana do Riacho e, na diagonal norte-nordeste, escalava suavemente o paredão, alcançava o planalto, por A corcova da serra do Espinhaço onde percorria muitas léguas fugindo dos terrenos acidentados, e descia a outra vertente da montanha, fazendo contato com a região do Mato Dentro.

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Seguindo as pegadas indígenas, o colonizador branco desbravou a região. Quem puxou a fila de bandeirantes foi Matias Cardoso de Almeida, em 1673, a mando de Fernão Dias, de quem era lugar-tenente. Este saiu de São Paulo antes de todos, com a incumbência de descobrir caminhos e plantar roças de milho e pastos, ou seja, feitorias, que aguardariam o corpo principal da bandeira. Alguns anos após, Fernão Dias passou pela região. É quase certo que, tanto na ida como na volta, tenha passado por Riacho Fundo e tenha subido a serra no sopé do pico do Breu, para atingir o planalto e, em seguida, o pico do Itambé. Como não existem registros geográficos precisos, há uma polêmica sobre o tema. Uma teoria alternativa, defendida por poucos historiadores, é a de Fernão Dias tenha passado mais ao norte, subindo a montanha pelo vale do rio Paraúna cerca de oito léguas fora do alinhamento dos picos. Por que daria tanta volta? A trilha original virou uma movimentada estrada do Brasil Colônia, e ganhou o nome local de Caminho do Sertão. Este nome ainda é referido por velhos moradores, que distinguem claramente o "sertão", o cerrado sãofranciscano, da "região da mata", vertente leste da serra, ainda que esta já tenha sido quase toda destruída. Saindo de Santana do Riacho, a antiga trilha vai ao encontro do paredão sem receio de enfrentá-lo. A sede do município está a 790 metros de altitude e, para ganhar o alto da serra, é necessário subir até próximo a 1500 metros. O primeiro trecho segue por uma precária estrada cascalhada, construída sobre o caminho primitivo. Três quilômetros adiante, a serra nos reserva outra agradável surpresa. Em um bloco de calcário recoberto por grossas raízes de gameleiras, existe uma lapa cujo salão se estende por muitos metros, e que servia de pouso para


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tropeiros que faziam a travessia da montanha. Recebeu o nome de Morro Velho e é adornada, além de antigos desenhos indígenas, por uma pintura rupestre do período colonial. Trata-se de um painel de quatro metros, com um detalhado desenho de casas e igrejas, tendo ao lado escrito "Sidade de Mariana", com a ortografia e a caligrafia de séculos atrás. A imagem corresponde quase fielmente à igreja de São Francisco da Confraria, em Mariana, pois é a única na cidade com fachada semelhante. Esta igreja foi construída em 1784 pela Arquiconfraria do Cordão de São Francisco, uma sociedade laica, piedosa, rígida e fechada, da qual deveria fazer parte nosso tropeiro artista.

Pintura rupestre do período colonial, na gruta do Morro Velho, em Santana do Riacho

Poucas pessoas sabem da existência dessa gruta, o que permitiu que esse tesouro tenha permanecido intocado. A lapa situa-se a não mais de dois quilômetros do Grande Abrigo de Santana do Riacho. Hoje, a entrada está escondida por um denso

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capinzal e, por garantia extra, a boca da gruta é vigiada por uma inamistosa colméia de abelhas africanas. Seguindo em frente, uma forte rampa permite que se visualize extensa paisagem. À direita, cortando o paredão, é nítido o aqueduto da barragem da Usina Coronel Américo Teixeira, que sai de um túnel na montanha, corre na horizontal e em seguida desce em linha reta. Começa a aparecer à esquerda o vale por onde corre o rio Cipó, entremeado por montanhas mais baixas. A duas léguas da sede está o Distrito de Lapinha da Serra, num patamar intermediário da subida, a 1100 metros de altitude, onde tem fim a estrada de rodagem. Situa-se entre paredões, à margem do lago formado pela barragem. Esta pequena vila mereceu breve menção de José Vieira Couto, em 1801, em seu retorno de Ouro Preto a Diamantina. Está assinalada nos mapas antigos daquela época, como, por exemplo, em mapa publicado por Eschwege, em 1821, e por Halfeld, em 1862. Langsdorff, com seu estilo inconfundível, também cita a vila, por onde passou no dia 7 de janeiro de 1825: Lapinha: uma cabana muito pobre com rancho no meio da densa capoeira. Nem com todo o dinheiro do mundo se acharia aqui alguma coisa para comprar. Mais adiante, de maneira pejorativa, fala dos moradores: As terras de Lapinha pertencem à mesma proprietária de Riacho Fundo: a família Moreira - netos - que conhece bem a preguiça dos moradores da Lapinha. Entretanto, Langsdorff justifica esse comportamento da população local analisando que, por não serem os proprietários da terra, te-miam que as benfeitorias realizadas estimulassem a cobiça dos donos oficiais. A barragem da Usina Coronel Américo Teixeira, que forma um lago com cinco quilômetros de extensão e um quilômetro de largura máxima, foi construída em 1950 no canyon do rio Mata Capim. Como as duas paredes laterais eram


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muito escarpadas e de grande altura, a solução técnica encontrada foi passar o volumoso cano coletor da água por um túnel na rocha, de 400 metros de extensão e dois metros de diâmetro. A usina geradora de energia fica no pé da serra e a rede elétrica vai para uma fábrica de tecidos de Belo Horizonte, a 130 quilômetros de distância. Até poucos anos atrás, os parcos moradores da Lapinha, que eram todos proprietários de terras e todos muito pobres, viviam da pecuária e criavam reses entre pedras para produzir um suado queijo. Melhor dizendo, um minguado e trabalhoso queijo. Corrigido em tempo! Hoje vivem em função dos turistas, que ruidosa e reivindicativamente aparecem nos feriados. No poeirento paço central da vila fica a modesta, mas muito simpática, Capela de São Sebastião, certamente centenária e precisando com urgência de uma reforma. Com o alento econômico que ganhou nos últimos anos o pequeno comércio local, os moradores optaram por construir uma nova igreja. A obra já está quase acabada e, por ser moderna e maior, tornou a antiga capelinha ainda mais acanhada. Ainda não houve tempo para que se decida o que fazer da velha ermida. Se consideramos o que ocorreu com muitas outras construções históricas, tanto de nossa zona urbana como rural, ela corre sério risco de ser demolida. Nada ficou registrado, no vilarejo, do seu passado de glória, onde com certeza muitos oraram buscando proteção divina para a perigosa viagem pela serra. Temendo por seu futuro, um grupo de visitantes costumazes da Lapinha vêm levantando documentação sobre sua história, além de detalhes arquitetônicos da nave, para possibilitar seu tombamento. Como uma grande ave de asas abertas sobre a vila da Lapinha, vê-se uma sequência de morros com uma bela pirâmide rochosa central, que atinge a altura de 1480 metros e que mostra uma imponente escarpa em sua face oeste. Já que faz

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companhia a uma dezena de outros picos de igual porte espalhados pela região, nunca havia sido batizado pelos moradores. Por um equívoco, ou talvez para satisfazer à insistente curiosidade dos visitantes, foi identificado como pico do Breu. Na realidade, o pico do Breu está, em linha reta, três quilômetros a leste, e mesmo sendo 200 metros mais alto, não pode ser visualizado da vila. Instalada a confusão de nomes, passou a ser chamado ironicamente pelos que conhecem a região de pico Turista.

Lago da Lapinha, em Santana do Riacho, visto das montanhas vizinhas

Após a Lapinha, o caminho bifurcava. Um ramo ia na direção do leste, no rumo da vila do Tabuleiro, em Conceição do Mato Dentro. Nas proximidades, está a cachoeira do Tabuleiro, a maior de Minas, com 273 metros. A cachoeira drena para o rio


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Santo Antônio, no vale do rio Doce. O outro ramo seguia pelo espigão da serra, no rumo do pico do Itambé. No planalto da serra do Espinhaço, a visão sempre se abre alcançando longínquos horizontes. O capim baixo deixa ver os ondulados campos de altitude e as matas ciliares, com os picos rochosos impondo-se na paisagem. Em alguns pontos são visíveis os entalhes na rocha, cavados para permitir a passagem de carros-de-boi e, também, restos de calçamentos com grandes blocos de pedras achatadas. Mesmo hoje, alguns trechos são conhecidos apenas por pouquíssimos iniciados. São quase secretos! As brumas estão entre as características mais marcantes do alto da serra. Estão presentes quase todas as manhãs e perduram por várias horas, quando não por vários dias. Uma cerração baixa, com uma garoa fina e vento gelado, é chamada pelos habitantes da montanha de “corrubiana”, e não é infrequente os transeuntes se desorientarem da trilha, já que às vezes a visão não atinge mais que poucos metros.

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A trilha do contrabando no espigão mestre da serra

á muitos milhões de anos, a região central de Minas Gerais era fundo de mar, quando então imensas forças subterrâneas fizeram emergir uma cadeia de montanhas. Este movimento da crosta terrestre persiste até os nossos dias; entretanto, como se dá de forma extremamente lenta, torna-se imperceptível. Há cerca de 200 milhões de anos existia apenas um supercontinente, chamado pelos geólogos de Pangeia, que unia todas as terras. As pressões subterrâneas foram quebrando esse bloco primitivo em grandes pedaços. Gondvana foi um aglomerado intermediário de continentes do hemisfério sul que englobava a América do Sul, África, Índia, Austrália e Antártica. Há 60 milhões de anos, a América do Sul era uma grande ilha, que posteriormente ligou-se à América do Norte. O fenômeno é denominado Deriva Continental. As cordilheiras são formadas quando há um choque frontal entre duas placas da crosta terrestre, que são chamadas de placas tectônicas. No caso da serra do Espinhaço, a placa do leste sobrepujou a do oeste, galgando-a. Dessa maneira, as rochas tendem a ficar expostas na vertente oeste, o lado do


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poente, formando grandes paredões. No lado do Sol nascente, o leste, a inclinação é mais suave e coberta por campos. O homem branco colonizou a região a partir de 1700, usando as férteis várzeas dos rios para formar pastos. Serra da Vacaria era o antigo nome da atual serra do Cipó. A região foi grande produtora de charque, que ficou conhecido também como carne-do-sertão. As mantas de carne de boi eram salgadas e expostas ao sol para desidratar e, com isso, conservadas por meses sem deteriorar. De início, o charque vinha para Minas Gerais do distante Rio Grande do Sul. Depois, tomaram conta do comércio os vaqueiros de Curitiba. Por fim, os mineiros descobriram que aqui mesmo havia mais esta riqueza, a carne. O produto poderia saciar os famintos garimpeiros que, apesar dos bolsos estufados, estavam desfornecidos de mantimentos, como se dizia. Os textos de autores da época indicam que a elite econômica e intelectual preocupava-se mais com a exploração mineral, que geraria benefícios para os ricos da cidade, relegando a segundo plano a produção de alimentos, mantida de forma rústica, mas no mais das vezes de maneira eficiente, pelo povo pobre da zona rural. O historiador José Newton Coelho Meneses, estudando o abastecimento de gêneros alimentícios da região do Serro nesse período, ressalta o descaso dos cronistas da época para com a atividade agropecuária sem que, todavia, abrissem mão de finos guisados e manjares em uma mesa farta. Pinturas rupestres no alto da serra reforçam a tese da existência de um caminho indígena milenar pela região. Boa parte desta trilha foi utilizada também por contrabandistas de diamante e ouro, pois seguia o espigão mestre da serra do Espinhaço por uma região, ainda hoje, totalmente desabitada. Os contrabandistas vinham de Diamantina e do Serro em direção a Ouro Preto e, em seguida, rumavam para o porto do Rio de


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Janeiro. Era empregada na época a palavra descaminho em referência aos caminhos clandestinos. As tropas leais ao Rei somente percorriam esses trechos quando em grupo numeroso de soldados. Na época de maior exploração de diamante, o contrabando era incontrolável. O governador de Minas Gerais chegou a determinar a abertura de um valo, um profundo fosso em torno de todo o Distrito Diamantino, 18 léguas norte-sul e 18 léguas leste-oeste. Foi mais uma obra faraônica que não saiu do papel. As pedras eram escondidas nas cangalhas dos animais de carga, coxins e madeira das selas, saltos de botas, bengalas, cabos de chicotes, imagens ocas de santos e, também, deglutidos, quando passavam pelos postos de revista bem guardados nos intestinos do portador. As artimanhas dos contrabandistas foram se sofisticando e, para não despertar suspeitas, os diamantes brutos eram enviados para a Índia, que tinha suas próprias jazidas. Lá, eles eram lapidados e seguiam então para Lisboa, passando por legítimos diamantes indianos. Não faltaram palavras enfezadas do Rei e de seus ministros, na tentativa de controlar a evasão de riquezas. A Carta Régia de 1772 é textualmente citada por Eschwege: Às pessoas residentes no Serro do Frio, e terras demarcadas que nelles têm casas, roças, lavras, officios ou negocios, ordeno: que no tempo de 15 dias contínuos, e contados da publicação deste Regimento, se apresentem ao Intendente Geral: que este, ouvindo os Administradores e o Fiscal, depois de haver procedido um rigoroso exame, pelo qual conste que são pessoas occupadas com bôa fé nos sobreditos ministérios, lhes conceda licença por bilhetes por elle assignados para se conservarem nos lugares das suas respectivas residencias; registrando-se em um separado livro de matrícula todos os sobredittos com a declaração de seus respectivos empregos e exercícios; para assim

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poder constar a todo o tempo quaes são os que de novo se pretenderem introduzir por modo clandestino; que as outras pessoas que não se puderem legitimar na sobreditta forma, sejam notificadas para sahirem das referidas terras no termo de 15 dias contínuos e contados dos que em notificações lhes forem feitas, debaixo das penas de serem presos, e remettidos a sua custa ao Rio de Janeiro para ficarem reclusos nas cadeias daquella relação por tempo de 6 meses: que voltando sem licença às referidas terras sejam presos e remettidos às mesmas cadeias para dellas serem transportados ao Reino de Angola por tempo de 6 annos. Vestígios da antiga trilha ainda existem. São caminhos que caprichosamente seguem o espigão mestre da serra para fugir aos desníveis e cursos de água, que significavam dificultosas travessias nas estações chuvosas. Um deles ainda pode ser percorrido por dezenas de quilômetros, sempre procurando os ermos e fugindo de baixios e povoados. Um dos trechos mais pitorescos encontra-se hoje no Parque Nacional da Serra do Cipó, num lugar chamado Travessão. Neste ponto da cumeeira, a visão é completa, para onde se aviste. É o divisor de águas dos vales dos rios São Francisco e Doce. Riachos que nascem a poucos metros um do outro vão ter seu destino no oceano Atlântico, a milhares de quilômetros de distância. Canyon do Travessão na serra do Cipó


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A estrada dos escravos para Morro do Pilar Toda a região ganhou grande impulso econômico com a inauguração, em 1809, da primeira fundição de ferro do Brasil, a Real Fábrica de Ferro. Situava-se na cidade de Morro do Pilar,também na serra do Cipó, só que no outro lado da montanha. O idealizador da fundição foi o intendente dos diamantes, Manoel Ferreira da Câmara, grande empreendedor que passou para a história com o nome de Intendente Câmara. As ferramentas dos garimpeiros vinham então da Inglaterra, e o início da produção nacional beneficiaria toda a população. Por uma série de motivos, a fábrica funcionou apenas por um curto período. As forjas quebravam por falta de técnicos especializados e o local foi considerado impróprio devido ao volume de água coletada, que se mostrou insuficiente. Se o minério estava próximo, o calcário, que entra no processo de fusão, estava longe, na outra vertente do Espinhaço, na serra da Vacaria. Os burros, com as bruacas abarrotadas de pedras, tinham que subir um desnível de mais de 500 metros e descer em seguida, chegando a Morro do Pilar com dois ou três dias de viagem. Na época das chuvas a lama tomava conta do caminho, os acidentes eram frequentes e a chegada incerta. Estrada dos escravos, na serra do Cipó, em Santana do Riacho

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José dos Santos Ferreira, um dos grandes proprietários de terras na várzea do rio Cipó, mandou construir um calçamento de pedras em todas as rampas da montanha. Parte desta estrada, que é conhecida como Caminho dos Escravos, está bem preservada no Distrito de Cardeal Mota, em Santana do Riacho, a 26 quilômetros da sede, no sentido sul. Esta estrada continuou sendo útil por muitas décadas, mesmo após o encerramento das atividades de fundição. Era um dos poucos caminhos existentes de ligação entre os dois lados da serra. Amanda Belisário, moradora da antiga Fazenda do Cipó, conta a história de suas tias que, por volta da virada do século de 1800 para 1900, iam estudar no Colégio Interno de Conceição do Mato Dentro e tinham que fazer, a cavalo, 70 quilômetros de percurso. Passavam pela estrada, que fora construída pelo avô, mudando de montaria na Fazenda Palácio, no planalto da serra, que era apenas um casebre. Corre a história de que a Fazenda Palácio teria esse nome devido à estadia que D. Pedro fez no local, durante uma semana, por terem adoecido os escravos que o acompanhavam. Estava a caminho do Serro e Diamantina. Ficou famoso um grande tacho de cobre da fazenda que, segundo dizem, teria sido usado como banheira pelo Imperador. Este tacho teria sido doado a um museu. Mas tudo isso não passa de fantasia, já que nenhum dos Pedros, nem o primeiro, nem o segundo, passou pela região. Em 1831, Dom Pedro I fez uma viagem do Rio de Janeiro a Minas Gerais, chegando até Vila Rica e seus arrabaldes. Dom Pedro II veio em 1881 e o extremo norte do seu roteiro foi Lagoa Santa. Ambos planejaram, mas, pensando melhor, desistiram de seguir até Diamantina. Em 1927, com muita pompa, foi inaugurada a estrada de rodagem que ligaria um lado ao outro da serra do Cipó. Uma grande comitiva, prenhe de políticos e figurões, que incluía até


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mesmo o Presidente da República, Washington Luís, foi recebida com banquete, foguetes e discursos no planalto da serra, na nova e luxuosa sede da Fazenda do Palácio. A família Davis, descendente dos antigos proprietários, preserva fotos, documentos e, até mesmo, o cardápio do memorável evento, como carinhosos guardiões do passado, excêntricos em tempos ahistóricos. A justificativa para uma estrada tão dispendiosa, aberta na rocha a cargas de dinamites, era o incremento do progresso regional. A estrada significava uma nova era para o Mato Dentro, até então isolado pela montanha. Mas havia também outro motivo para a obra que era, na realidade, muito mais forte. Exatamente nessa época eclodia uma revolta contra a política do "café-com-leite", ou seja, contra o rodízio no poder de oligarquias de São Paulo e de Minas Gerais. No Rio Grande do Sul, teve início a rebelião liderada pelo jovem Capitão do Exército Luís Carlos Prestes, que ganhou o nome de Coluna Prestes. Com o intuito de derrubar o governo federal, a Coluna percorreu 33 mil quilômetros por 12 estados brasileiros (do Rio Grande do Sul ao Maranhão) e, em 1926, atravessou a fronteira da Bahia com Minas Gerais. Estava a caminho do Rio de Janeiro, disposta a dar combates. Prestes era chamado de "O Cavaleiro da Esperança" e, por alguns períodos, acreditou-se que poderia alcançar a vitória. Jorge Amado, ao contar a história do personagem, escreveu que (...) no rastro da Coluna ficava a Esperança. Várias estradas foram construídas em tempo recorde, com a precípua finalidade de facilitar o deslocamento de tropas para a defesa do governo central. Exatamente no ano da inauguração da estrada para a região do Mato Dentro, a Coluna Prestes se viu derrotada. Antes mesmo de uma grande batalha, desistiu de sua marcha rumo ao sul e exilou-se na Bolívia. A ponte sobre o rio Cipó, construída em madeira de lei em 1926, recebeu depois o nome de ponte Afonso Arinos.

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Posteriormente, foi reconstruída em concreto e em nível mais alto, para não ser atingida pelas cheias. O primeiro hotel da região, que recebeu posteriormente o nome de Veraneio, situa-se na margem esquerda do rio Cipó, junto à ponte. Teve início como uma precária pensão em 1949, destinada ao repouso dos motoristas de caminhão que faziam a travessia da montanha. O vilarejo que se formou, inicialmente meia dúzia de barracos pobres, ganhou o nome de Vacaria, posteriormente modificado para Cardeal Mota em homenagem ao Arcebispo de São Paulo que, na realidade, nasceu longe dali, do outro lado da serra. Uma das atividades econômicas locais foi a exploração de mármore no morro da Pedreira. Em 1970, a Pedreira de Mármore pertencia à firma R. Moreira Ltda, que tinha 30 empregados e mandava por caminhão para São Paulo blocos de pedras de várias toneladas, vendidas como Mármore Cardeal Mota. Fechou logo em seguida, deixando muitos desempregados diretos e indiretos. Por outro lado, preservou de novas retaliações o morro da Pedreira. Morro da Pedreira na serra do Cipó


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No ano de 2003, o nome do distrito, que acabou por ficar maior que a própria sede do município, foi modificado de Cardeal Mota para Serra do Cipó, que vive única e exclusivamente do turismo. Em tempos antigos, as águas do rios podiam até ter uma função salutar, que era a cura de moléstias, mas não tinham o uso prazeroso que têm hoje. O rio Cipó, que com suas águas límpidas banha atualmente multidões de turistas nos dias de feriado, distribuindo fartamente saúde física e mental, já teve a má fama de provocar bócio. Este medo era decorrente da alta frequência de moradores de suas margens com proeminentes papos. Mas o rio não tinha qualquer culpa. A carência do iodo, comum nas regiões serranas distantes do litoral, é o fator determinante do bócio, que foi facilmente prevenido nas últimas décadas com a adição do iodo ao sal de cozinha.

Memórias dos habitantes do pico do Breu O ponto mais alto da região da serra do Cipó é o pico do Breu, que tem a altitude de 1687 metros. Nos mapas oficiais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, está escrito equivocadamente pico do "Abreu". Segundo os moradores, o local era rico em breu, que é uma cera negra, com consistência de rocha, produzida por abelhas nativas que fazem a colméia no chão. Este material era aquecido e derretido para ser usado como lubrificante de moendas e rodas de carros de boi. A procura pelo breu, que já foi intensa, hoje não existe mais, graças aos derivados de petróleo disponíveis comercialmente. As abelhas, que quase foram extintas, agora têm uma chance a mais de sobreviver.

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Pico do Breu, ponto culminante da serra do Cipó

Dos cumes mais elevados da região do pico do Breu são avistados simultaneamente o pico da Piedade e o do Itambé, as duas pirâmides que seduziram Fernão Dias. Os três picos, que são separados entre si por cerca de 80 quilômetros, estão posicionados quase em linha reta. Há 100 anos, a região pertencia aos ingleses, mais precisamente à Brazilian Diamond Exploration Company Limited, que comprou 30 mil hectares de terra no alto da serra, vendidas por José dos Santos Ferreira. Foram eles os proprietários da regionalmente famosa mina do Gigante. Ruínas de casas, muros, aquedutos e várias escavações podem ser encontradas, escondidas num covão de serra, ao norte do pico do Breu, légua e meia do vilarejo de Lapinha da Serra. Antigos moradores ouviram falar que os ingleses, quando interromperam as atividades do garimpo, tinham a intenção de retornar. Por isso, aterraram a boca principal da mina e disfarçaram bem o local, alterando com escavações indiscriminadas toda a face leste e norte da superfície do morro. Deixaram no interior pás, picaretas, enxadões e muitos outros pertences. Os ingleses jamais voltaram e a entrada do túnel nunca foi encontrada, mesmo após várias buscas. Até hoje, a única herança real


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que os britânicos deixaram na região foram vários descendentes de olhos azuis claríssimos, achado muito freqüente entre os moradores dos arredores do pico do Breu. Laerte Batista Marques é proprietário de terras no planalto, sempre a campear naqueles aéreos pastos suas contadas reses. Espigado e altivo cavaleiro, mais alto ainda pelos seus bem vividos 90 anos, relembra, com toda lucidez, de seu pai como almocreve dos ingleses. Cuida logo de explicar (muladeiro, num sabe?), em consideração ao interlocutor, que é urbano e ignorante nesses assuntos tão importantes. Fazia ele o árduo percurso de Santa Luzia à mina do Gigante, uma semana de viagem, levando uma fornida tropa carregada de mantimentos, ferramentas, querosene e incontáveis barricas de uísque escocês. Com a falência da firma britânica - pois a serra fora avarenta em fornecer diamantes - as terras foram vendidas a Jorge Davis em 1923, em Londres, por Edmund William Janson que, todavia, preservou para si o subsolo, vendendo apenas o uso da superfície. Janson registrou em um cartório londrino que o novo proprietário não tinha (...) any rights to mines minerals or precious stones on or under the property which are to be expressly reserved to me. Jamais recebeu, ele ou seus descendentes, qualquer benefício proveniente das intimidades da montanha, tesouro que certamente existe, mas que, a metros e metros de profundidade, está muito bem guardado, espera-se que perpetuamente, no seguro cofre-forte da natureza, riqueza exclusiva da mãe-terra. Como Jorge Davis, um afável filho de irlandeses, de pele rosada e frágil, interessou-se por montanhas inóspitas, que sequer conhecia, perdidas na vastidão dos insanos trópicos selvagens? A história começa quando estava em um parque de Boston, sua cidade natal, onde fora criado pela mãe após a

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morte do pai, e, por acaso, encontrou o Padre Luiz Donato Riviechi, professor do Colégio Caraça. Tinha oito anos e decididamente resolveu vir para Minas Gerais, para o Caraça, aqui chegando em 1880. Décadas após, em uma viagem ao redor do mundo, passando por Londres, leu por acaso um classificado em um jornal local anunciando a venda de imensas extensões de terras, overseas, Brazilian's highlands. Por um impulso que nunca soube explicar, arrematou-as de imediato, sem saber o que estava adquirindo. Fixou-se definitivamente em Belo Horizonte, virou empresário e fazendeiro e não se cansava de falar, com ufania, que tinha comprado o lugar mais bonito do planeta. A mina do Gigante tem a vizinhança do córrego do Quilombo, nome preservado até hoje. Ainda não foram descobertos vestígios na região que confirmassem a existência de algum quilombo, mesmo após uma dúzia de tentativas. Com certeza, o alto da serra era um refúgio seguro para os negros fugitivos, que aproveitavam-se das muralhas naturais como arma de defesa. O rio das Pedras, que nasce a leste do pico do Breu, corre manso no planalto antes de despencar aflito em um desnível de 400 metros, em quatro quilômetros de cachoeiras sucessivas, algumas com mais de 100 metros de queda livre de água. Possui até hoje águas limpas, já que não existem moradores nas cabeceiras. O homem já tentou domá-lo há mais de um século atrás, em busca de diamantes nos grandes poços formados pela ação da água. Dois sulcos com dois metros de profundidade, e cada um com 800 metros de extensão, um na margem direita do rio e outro na esquerda, foram cavados com árduo trabalho escravo. Eram bicames, ou seja, calhas usadas para desvio da água. Nunca foram concluídos, pois grandes cheias impediram o término da obra.


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No poço do Soberbo, o maior poço de todo o planalto da serra, formado pelo rio das Pedras ao receber o córrego Fundo e o ribeirão Soberbo, um bicame de madeira chegou a ser concluído e funcionou por alguns anos, por volta de 1970. Um grupo norte-americano investiu na exploração local de diamantes e, às custas de grandes bombas, conseguiram, após o desvio do rio, esvaziar o poço, que atingiu 18 metros de profundidade. Porém, a obra durou pouco, apenas até que uma cheia maior levasse rio abaixo toda a parafernália. Corre na região outra versão para a derrocada da mineração no poço. Conta-se que a má sorte do empreendimento deveu-se principalmente ao entusiasmo insano de um garimpeiro que, ao encontrar um grande diamante, gritou poderoso: Agora nem Deus pode comigo! De súbito, a pedra escapuliu-lhe das mãos para dentro d'água e ele, sem vacilo, mergulhou para buscá-la. Jamais retornou à tona e a partir desse dia nenhum outro diamante foi encontrado. Que as forças do bem, para sempre, assim o permitam!

O Parque Nacional da Serra do Cipó: Reserva da Biosfera O Parque Nacional da Serra do Cipó, que tem 34 mil hectares e perímetro de 85 quilômetros, com altitudes variando de 750 a 1600 metros, foi criado em 1984 e engloba terras de Santana do Riacho, Jaboticatubas, Morro do Pilar, Itabira e Itambé do Mato Dentro. Inclui as nascentes do rio Cipó, que despenca da serra enfrentando os grande blocos de pedras do fundo do canyon das Bandeirinhas.

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Canyon das Bandeirinhas, no Parque Nacional da Serra do Cipó

A densa cobertura inicial na larga várzea do rio incluía árvores centenárias, como angico, tamboril, gameleira e muitas paineiras. As árvore foram em sua maioria queimadas para a formação de pastos e, secundariamente, para a produção de carvão. Felizmente, ainda sobraram muitas sucupiras brancas, que atapetam o chão de flores roxas nos meses de outubro. Em algumas manchas de matas que foram preservadas na região do parque sobrevivem animais de grande porte, como capivaras, raposas, macacos, lobos-guará e, em risco de extinção, o tamanduá-bandeira. A parte alta é formada por campos rupestres, com suas plantas típicas, como a sempre-viva, a canela-de-ema, a candeia, a bromélia e o pepalanto. Mas o grande espetáculo do parque talvez sejam as cachoeiras. Entendidos as colocam entre as melhores do mundo! Isso porque deslizam sobre o quartzito, uma rocha que aceita ser corroída pela água ao longo dos milênios, formando panelas, ou que, por ser passível de fraturas, é quebrada pela


Serra do Cipó: guardiã de uma das maiores biodiversidades da terra

força das cheias, originando grandes poços. Além disso, pela situação geográfica, a temperatura da água nos meses de calor é agradabilíssima. A Área de Proteção Ambiental do Morro da Pedreira, criada em 1990, tem a finalidade de proteger o entorno do parque e possui o dobro do seu tamanho. Pela lei, as terras permanecem em mãos de particulares que, todavia, têm limitações a seu uso, especialmente no que diz respeito ao corte de árvores e à mineração. O nome da área foi escolhido para homenagear o movimento ecológico que programou um abraço ao morro da Pedreira, ameaçado pelo reinício da exploração predatória no final da década de 80. Após um fervorosa campanha de muitos anos, a serra do Espinhaço ganhou, em 2005, o valioso título de Reserva da Biosfera, conferido pela Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (Unesco), o que ajudará muito em sua preservação. Por enquanto, a área abrangida vai de Ouro Preto a Diamantina, com cerca de três milhões de hectares. A importância da serra do Espinhaço é maior ainda por ela ser o divisor de dois biomas, a mata atlântica (a leste) e o cerrado (a oeste), que estão entre os 25 biomas mais ameaçados de toda a Terra, segundo uma incontestável avaliação ambientalista internacional. Estas áreas, chamadas de hot spots (melhor traduzido como pontos críticos), foram selecionadas a partir das constatações de que nossa imensa biodiversidade não é homogeneamente distribuída e que 60% de todas as espécies de organismos vivos existem em uma área inferior a 1,5% da superfície do planeta. Todo este bloco de montanhas de Minas Gerais bem merece ser elevado a Reserva da Biosfera, sendo que o Parque Nacional da Serra do Cipó é o melhor cartão de visita para quem quer conhecer o Espinhaço.

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Serra do Espinhaço em Minas Gerais

Área da Reserva da Biosfera

Pico do Itambé Diamantina Serro

Santana do Riacho

Sabará

Serra do Caraça Mariana Ouro Preto


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Bacia do rio Paraúna:

fonte borbulhante de antigas histórias

As águas bentas que correm da serra

U

ma Carta Régia de 1729 criou a Demarcação Diamantina, com 42 léguas de circunferência, onde era proibido qualquer tipo de mineração não oficializada. Todos os diamantes passaram, por decreto, a ser propriedade do Rei. O arraial do Tijuco era o centro dessa região. Mais tarde, a área sob controle foi ampliada e ficou mais conhecida como Distrito Diamantino. Seu extremo sul era o rio Paraúna, que nasce no planalto da serra do Espinhaço e, encachoeirado, ganha a baixada por onde passa o rio das Velhas. A Estrada Real do Mato Dentro, sempre pelo vale do rio Doce, unindo Ouro Preto ao Serro, passava a poucas léguas do ramo da Estrada Real do Sertão, que ligava Santa Luzia a Diamantina. Dessa forma, os dois caminhos, que já figuraram entre os mais importantes do Brasil Colônia, aproximavam-se nessa região, sendo interligados por boas trilhas. Saint-Hilaire perambulou pela área: de Tapera, hoje Santo Antônio do Norte, à margem do Caminho do Mato Dentro, tomou a rota da crista


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da serra para seguir pelo movimentado atalho da montanha. As duas estradas atravessavam nessa região um pedaço da mata atlântica, que era formada por grandes árvores e se estendia das encostas orientais da serra do Espinhaço, nascentes dos rios Doce e Jequitinhonha, até o mar. Era uma região sombria, habitada por onças que atacavam os rebanhos e até mesmo os humanos. Além disso, havia o perigo da malária nos fundos das grotas e, o risco maior, os índios botocudos. Os índios foram assim chamados pelos portugueses por usarem botoques, ou seja, adornos de madeira, que inseriam nos lábios e orelhas. Pertenciam ao tronco Macro-jê e eram denominados Aimorés. Corria a fama de que eram antropófagos, e mesmo que não fizessem o uso constante de carne humana, de fato, ao final das batalhas, existia o ritual de guerra de comer parte do corpo dos vencidos. Por séculos, dominaram soberanos toda a região da mata atlântica, por centenas de quilômetros. O escritor inglês John Mawe, que percorreu a Estrada Real em 1809, descreve o temor generalizado aos botocudos: Estes selvagens, Índio botocudo - desenho de Rugendas, em 1824 habituados a viver nos bosques, e instruídos em todas as astúcias necessárias para se apoderarem dos animais selvagens, que lhes dão subsistência, recorrem a artifícios sem conta para surpreender os colonos. Algumas vezes se tornam invisíveis, ligando em torno do corpo ramos de arbustos, atirando sua flecha sem serem percebidos (...) friccionam-se com cinzas e deitamse no chão ou então cavam buracos, no fundo dos quais fincam estacas agudas e as cobrem de ramos e de folhas (...) São indomáveis,


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nada se consegue deles com os bons ou maus tratamentos, e se não encontram meio de escapar do cativeiro, deixam-se morrer de fome. Napoleão Bonaparte, além de invadir a Rússia, conquistar a África, guerrear com a Inglaterra e outras proezas mais, interferiu também na história da região do Mato Dentro. Os botocudos que o digam! Pois foi em 1807, quando Napoleão apoderou-se de Lisboa e a família real portuguesa fugiu para o Brasil. O Rio de Janeiro tornou-se a capital do Império Português e Dom João VI decretou a abertura dos portos. As terras brasileiras, que sempre estiveram fechadas aos estrangeiros, tornaram-se a meca de comerciantes e aventureiros, mas também de botânicos, zoólogos, geólogos, paleontólogos e outros cientistas. Mas os caminhos eram cada vez mais inseguros. Os índios antropófagos eram a grande ameaça, e a história do bispo Dom Sardinha, que fora anos antes prazerosamente devorado no litoral nordestino, estava presente na mente de todos os europeus. Dom João VI, já em 1808, tomou a providência que dizimaria os botocudos. Assinou uma carta endereçada ao Governador e Capitão General da Capitania de Minas Geraes, que continha os seguintes trechos: (...) ordeno-vos (...) que desde o momento, em que receberdes esta minha Carta Régia, deveis considerar como principiada contra estes índios antropophagos uma guerra offensiva que continuareis sempre em todos os annos nas estações seccas e que não terá fim, senão quando tiverdes a felicidade de vos senhorear de suas habitações e de os capacitar da superioridade de minhas reais armas de maneira tal que movidos do justo temor das mesmas, peçam paz e sujeitando-se ao doce jugo das Leis e prometendo viver em sociedade, possam vir a ser vassallos úteis (...) A partir desta Carta Régia iniciou-se uma guerra sem fronteiras com os botocudos, e não demorou mais que três décadas para que quase toda a nação indígena fosse dizimada na

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região. O genocídio foi executado com a veemência dos arcabuzes e também pela propagação intencional, por meio de brindes infectados, do vírus da varíola entre os índios que, inteiramente susceptíveis, contraíam a infecção em massa, comprometendo a sobrevivência de toda a tribo. Povos inteiros foram exterminados, já que o soldo recebido pelo exército português era proporcional ao número de índios abatidos. Os poucos que restaram tiveram que se submeter à escravidão. Hoje, os remanescentes dos botocudos resistem com grandes dificuldades devido à miséria e à desagregação social a que foram levados. Em esparsas reservas no vale do rio Doce, as três principais tribos, Krenak, Maxacali e Pataxó, lutam por recuperar um pequeno pedaço da terra que por direito histórico lhes pertence. O planalto do rio Paraúna, na bacia hidrográfica Velhas/São Francisco, começa lentamente a despertar para o turismo. A preocupação é Rio Preto, afluente do rio Paraúna salvar o que restou dos séculos de exploração pelo homem. E não é pouco. São raras as regiões mineiras têm tamanha riqueza em fauna, flora, inúmeras cachoeiras de águas limpas, ruínas do ciclo do ouro e do diamante, picos elevados, escarpas e canyons. A maior parte da região é formada por uma porção da serra do Espinhaço que, no local, é conhecida como serra Talhada devido às


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inúmeras fendas que cortam verticalmente a montanha. Está em processo de implantação a Área de Proteção Ambiental da Serra Talhada, que poderá ocupar a maior parte da extensão territorial dos Municípios de Congonhas do Norte e Santana do Pirapama e abarcar importantes áreas cobertas pela floresta atlântica, que nos últimos anos têm sofrido um ataque menos acentuado dos carvoeiro.

Serra Talhada, em Congonhas do Norte

Pinturas rupestres bem conservadas podem ser encontradas nos abrigos de quartzito da serra Talhada. Não é raro o encontro também de potes de cerâmicas, alguns trabalhados com alças e desenhos. São achadas, às vezes, pedras polidas com formato de machados, incrustadas em troncos. Eram fixadas pelos índios em árvores de crescimento rápido, para que o caule envolvesse a pedra e permitisse o uso da madeira, no futuro, como cabo do machado. São conhecidas por machadinhas de corisco, dada a crença de que seriam trazidas pelos raios. Infelizmente, por superstição, o encontro desses objetos é associado pelos moradores a má sorte e tragédias por vir e, no caso das pedras, ao poder de atração de relâmpagos: (...) no prazo de

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sete anos o curisco envém de volta! Por isso, ao serem encontradas, são descartadas imediatamente em um mato fechado ou no leito de rios. Outros achados arqueológicos comuns são cachimbos de barro, delicadamente esculpidos com corpos humanos masculinos e femininos, e frequentemente encontrados perto das moradias. Na parte inferior, os cachimbos têm uma pequena alça por onde passava um cordão, já Pinturas rupestres em Congonhas do Norte que eram usados pendurados ao pescoço. Eram fabricados pelos escravos negros, que tinham a permissão de umas breves baforadas durante a jornada de trabalho. Todavia, acredita-se que os índios possuíam também os mesmos hábitos, que foram assimilados posteriormente pelos africanos. Cachimbo de barro antigo

Vilas que ficaram quase perdidas no tempo Esquecida pelo mundo está a vila de Costa Sena, cujo antigo nome era Paraúna, ou melhor, São Francisco de Assis do Paraúna. Encravada no planalto da serra do Espinhaço, próximo à margem esquerda do rio Paraúna, pertence hoje ao extenso


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Município de Conceição do Mato Dentro, que abarca terras nos vales dos rios São Francisco e Doce. O número de casas do arraial manteve-se quase o mesmo nos últimos séculos. Talvez por isso pôde preservar parte de seu período de glória. A antiga Igreja de São Francisco, com registro desde 1738, teve concessão de pia batismal em 1765 e ainda mostra rico altar-mor, adornado de molduras trabalhadas, com quatro altares laterais e tribuna.

Distrito de Costa Sena, antigamente Paraúna, em Conceição do Mato Dentro

O período de opulência na região não durou para sempre, como se acreditava a princípio. Seu apogeu foi entre os anos de 1750 e 1760. Em poucas décadas o diamante foi desaparecendo e, com ele, a riqueza. José Vieira Couto, em 1801, descreve a situação: O arraial de Paraúna, hoje decadente e miserável, floreceu algum dia quando também as cousas da Demarcação floreceram; agora se despovoa como ella e mostra ao viageiro um aspecto triste com suas casas fechadas, ou cahidas em ruinas. Aqui começa a céle-

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bre Demarcação Diamantina; aqui existe uma guarda para vigiar sobre diamantes, e dar buscas aos que passam, para que os não levem à furtiva. Langsdorff fala, em seu diário, do quartel em Paraúna, onde pernoitou sua expedição em 1824. Hoje, o caminho de entrada na vila pelo lado sul chama-se Rua dos Quartéis. Possui uma pequena praça gramada. Grandes pedras são vistas nos muros em volta e nos alicerces das casas que circundam o local. São os vestígios que restaram. Em Costa Sena viveu uma figura fantástica, que deixou histórias e estórias. Foi o padre Ernesto Augusto Lages, vigário de São Francisco de Assis do Paraúna e da cidade vizinha de Congonhas do Norte, entre 1910 e 1935. De vasta cultura, tinha a mente inquieta, da qual pululavam idéias aos borbotões. Afirmava que tinha descoberto o moto contínuo, a grande obsessão dos cientistas de todos os tempos. Pena que não deixou registros sobre sua máquina do movimento perpétuo,

Fac símile do cabeçalho impresso nas correspondências do Padre Ernesto Lages


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que poderia ter mudado o rumo da humanidade. O padre inventou um piano de cordas soltas, uma pilha seca, e também o "leaspastrogedrene". Ficava impaciente se algum especula quisesse explicações sobre o funcionamento do piano e da pilha, assim como sobre o significado do palavrão por ele criado. Em uma explanação apressada e complexa, dizia que este último era uma língua nova e artificial, com uma gramática inovadora e universal! A proposta foi com ele para o túmulo, sem que tenha tido o cuidado de redigir manuais. Mas muito se orgulhava de seus feitos, tendo mandado imprimir cada um deles em seus envelopes e folhas de cartas. Casos do padre Ernesto ainda correm de boca em boca na região. Era muito rico, proprietário de vastas extensões de terras, mas vivia sempre em demandas com os vizinhos por questões de divisas. Quando via um cidadão sem atividade, pagava-lhe para que cavasse um grande buraco e, em seguida, remunerava-o novamente para que o tapasse. Tinha uma adega subterrânea, escondida perto da igreja, para que pudesse tomar tranquilamente sua cachacinha, sem o patrulhamento das beatas. Era amado e odiado com fervor, tendo sido perseguido a ponto de ter de ficar uma temporada escondido. Em carta datada de 1935, reclama de (...) mentiras e intrigas urdidas contra mim (...) por parte de um outro padre. Dizem, em surdina, que deixou vários descendentes, alguns ainda vivos. Maledicência, com (quase) toda a certeza! No final, o povo preservou carinhosamente sua memória, tendo sido erguida uma estátua em sua homenagem em frente à igreja matriz de Congonhas do Norte, cidade vizinha onde também era vigário. Sob a estátua descansam seus ossos. Outra figura de destaque no local é o próprio Costa Sena. Era engenheiro e chamava-se Joaquim Cândido da Costa Sena. Nasceu em Conceição do Mato Dentro e estudou no

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Caraça. Foi presidente de Minas Gerais em 1902, tendo sido também senador. Para homenageá-lo, em 1938, São Francisco do Paraúna recebeu seu sobrenome. Antes da virada do século, em 1900, a cidade de Ouro Preto não comportava mais a expansão que se fazia necessária. Uma comissão foi formada para a escolha de um local para sediar a nova capital mineira e dela participou Costa Sena. A região do rio Paraúna, por ser o centro geográfico do Estado de Minas Gerais, foi um dos locais estudados. A idéia não vingou, mas Paraúna ganhou nome de importante avenida na planta de Belo Horizonte, ligando a Avenida do Contorno em dois pontos de sua circunferência sul, uma área nobre do traçado urbano. A Avenida Paraúna passou a se chamar Getúlio Vargas em 1938, por força de lei, para homenagear o presidente em plena ditadura do Estado Novo. Outra lei, em 1948, restabeleceu o nome de Paraúna, quando Vargas foi apeado do poder. Uma outra lei, em 1951, batizou novamente a avenida como Getúlio Vargas, quando este retornou como presidente eleito da República. Em que pese todo o respeito que deve ser dado a um cidadão que já faleceu, porque não retornar a denominação da vila ao nome original de Paraúna? É deplorável a mania bajulatória de políticos de alterar nomes históricos para, num ciclo vicioso, prestigiarem uns aos outros. Localidades mineiras que já se chamaram Brejo das Almas, Vila Risonha, Santana dos Alegres, Patafúfio, Buriti da Estrada, Alto Jequitibá, receberam posteriormente nomes de figurões de merecimento duvidoso, de santos ou outras denominações de mal gosto. Na atualidade, com o nome de Paraúna restou apenas o rio, totalmente assoreado por séculos de garimpo predatório. Paraúna, em tupi-guarani, significa rio caudaloso e negro. Em franca decadência estão os vilarejos de suas margens. Os


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moradores insistem em revirar o cascalho do leito do rio à procura de um improvável diamante. Histórias de tempos mais recentes também podem ser garimpadas em Costa Sena. Uma senhora relembra emocionada de um saudoso momento de sua juventude, quando se apaixonou perdidamente pelo galã nacional Leonardo Villar. Foi em 1964, quando o ator filmou no local um clássico do nosso cinema, A hora e vez de Augusto Matraga, dirigido por Roberto Santos e baseado no famoso conto de Guimarães Rosa. Algumas cenas do filme foram tomadas na espaçosa praça do arraial e o que mais impressionou a todos foi a capacidade que Leonardo Villar tinha de chorar cada vez que se repetia uma determinada cena dramática. Era reiniciar as filmagens e as lágrimas brotavam com facilidade, quantas vezes fossem necessárias. Comentando o filme, logo após o lançamento, escreveu o crítico paulista Francisco Salles: A força da ambientação torna este filme um dos mais verdadeiros registros do mundo brasileiro do sertão, com suas vilazinhas tristes, as raras casas agrupadas em torno da igreja, os vastos descampados esmagados sob o céu, tornado mais amplo pelo canto das aves migradoras. O filme representou o Brasil no Festival de Cannes, na França, em 1966. Por perto está o povoado Cemitério do Peixe, um conjunto de casebres pobres, mas bem cuidados, com uma pequena igreja, e que é de fato uma vila-cemitério. Movimentação só se vê em festas e enterros, já que recebe foliões e defuntos de toda a redondeza, prática que persiste até os dias de hoje. Andrequicé, distrito um pouco maior, mostra envergonhado as águas barrentas do ribeirão de mesmo nome, correndo espremidas entre as pedras. O curso d'água, que já foi belo e famoso, não é mais. Langsdorff dá-lhe dois nomes: rio Andrequicé e rio da Serra dos Campos. De fato, nasce no planalto da serra, numa região de campos de altitude.

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Costa Sena dista de Andrequiçé uma légua e, entre esta vila e Datas - o próximo centro urbano - a distância é de 20 quilômetros. Na região, uma trilha do período colonial, que ligava Sabará a Diamantina, atravessa o córrego da Cachoeira, que também mereceu registro de Langsdorff, que fala da cachoeira como a mais bonita que ele já tinha visto. Neste trecho desemboca, à esquerda, a antiga estrada que vinha do vale do rio São Francisco, um caminho que passava por Fechados, no sopé da serra, e galgava o alto acompanhando à distância o rio Paraúna. Foi por esse caminho que passou Langsdorff ao deixar a barra do Jequitibá, em seu encontro com o rio das Velhas. Nas rampas mais fortes, ainda resistem ao tempo as grandes pedras achatadas do calçamento. Uma das partes mais bem preservadas está próxima à rodovia para Diamantina (quilômetro 490), escondida pelo mato, a poucos metros do asfalto. Fica no Município de Presidente Juscelino, que se chamava Ponte do Paraúna.

Antigo calçamento da estrada que seguia o rio Paraúna


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Águas indecisas: o encontro dos vales do São Francisco, Doce e Jequitinhonha No chapadão do planalto encontra-se a cidade de Datas, cujo nome se refere aos lotes de mineração. A vila de Datas delRei teve origem por volta de 1800, quando, por concessão da Coroa Portuguesa, foram distribuídas no local diversas lavras de garimpo. José Vieira Couto, em 1801, anota em seu relatório: Era cedo, e respirando o ar fresco da manhã, atravessava as amenas e dilatadas campinas de Datas, as mais férteis da Demarcação. Em Datas, instalaram-se a companhia inglesa Deos Maierl e, posteriormente, a norte-americana Ross Anderson, que modernizaram o garimpo sem valorizar os cursos d'água. Somente nos últimos anos tem havido alguma preocupação em proteger os mananciais. Destaca-se na cidade a Igreja do Divino Espírito Santo, em estilo neoclássico, muito raro na região, inaugurada em 1870. À esquerda de Datas, a oito quilômetros, está Gouveia, povoado citado nos documentos antigos des-de 1738. Sua igreja matriz foi construída em 1765 Igreja do Divino Espírito Santo, em Datas

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e Richard Burton, quando passou pela vila a caminho de Diamantina, em 1867, fala da (...) notável igreja de Gouveia. A 18 quilômetros, à direita de Datas, está a cidade de Presidente Kubitschek, que se chamou Pouso Alto de Diamantina e, posteriormente, Tijucal. Apenas em 1962 recebeu o nome de Presidente Kubitschek. Na região, a quatro quilôme-tros da sede do município, situa-se em um alto de morro o encontro de três grandes vales do Estado de Minas Gerais: os vales dos rios São Francisco, Doce e Jequitinhonha. De fato, em um brejo altaneiro, entre 1300 e 1400 metros, as águas ficam hesitantes em escolher o rumo a tomar, o que irá divergir seus destinos em centenas de quilôme-tros. A nascente comum a essas três grandes bacias hidrográficas mineiras merecia um destaque apropriado à sua significação como, por exemplo, a criação de um parque para a valorização e preservação do local, que poderia ter o nome de Parque das Águas Indecisas ou algo que o valha. Encontro das bacias dos rios São Francisco, Doce e Jequitinhonha


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A majestosa pirâmide do pico do Itambé, com seus 2044 metros de altitude, passa a se destacar na paisagem. Os bandeirantes orientaram-se pelo pico do Itambé, que era chamado pelos nativos de Ivituruí. Segundo Taunay: O vocábulo Ivituruí, indígena, quer dizer "Serro Frio" e alude ao muito enregelado frio que faz pelo cume daquela serra, com frigidíssimos ventos. Para atingir o topo do pico existem dois caminhos. Uma trilha sobe pela face oeste da montanha, passando pelo vilarejo de Capivari, e exige alguns lances de ascensão por grandes blocos de pedras. A trilha do leste inicia-se na cidade de Santo Antônio do Itambé e atravessa alguns desfiladeiros perigosos. A cerração é o grande inimigo potencial. Um tempo fechado, que pode durar vários dias, impede a visualização a poucos metros de distância. Perder-se da trilha não é uma ocorrência rara. A primeira descrição da árdua subida é de 1817, executada pelos alemães Spix e Martius, e relatada no livro Viagem pelo Brasil: (...) escalamos também o último colosso, e com o magnífico panorama, de cima do platô desenrolou-se a vastidão montanhosa de Serro Frio (...) O píncaro do Itambé forma um plano de uns trezentos passos de comprimento e a metade em largura, interrompido por alguns penhascos (...) . Pico do Itambé - Desenho da Expedição Spix e Martius, A visão que em 1817


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se tem hoje no cume ainda é a mesma, e o esforço da escalada de seis horas de duração é totalmente re-compensado. Bem longe, o pico do Breu, na serra do Cipó, destaca-se no horizonte sul. A tênue linha branca do casario de Diamantina pode ser vista, em dias não enfumaçados, no sentido noroeste. Para o rumo do leste, o olhar se perde num mar sem-fim de montanhas, muitas ainda com cobertura de floresta: é a região do Mato Dentro. A grande montanha e regiões adjacentes formam atualmente o Parque Estadual do Pico do Itambé, criado em 1998 e ainda em implantação. O parque possui cinco mil hectares de extensão, abrangendo os Municípios de Serro, Santo Antônio do Itambé e Serra Azul de Minas.

Visão atual do pico do Itambé


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A cidade do Serro está nos contrafortes sul, em uma depressão do terreno. Por ela passava a Estrada Real do Mato Dentro, mas não o braço da Estrada Real do Sertão, que se dirigia a Diamantina. De 1702, vêm os primeiros registros das Minas do Serro Frio e do Arraial das Lavras Velhas, seu primeiro nome. Em 1714 surge a Vila do Príncipe, que poucos anos após passou a ser a sede da Comarca do Serro Frio. Seus limites iam do rio Cipó à Província da Bahia. Conceição do Mato Dentro chamavase Conceição do Serro e era distrito da Vila do Príncipe. Em 1838, a vila foi elevada à categoria de cidade e recebeu o nome de Serro. Hoje, o município engloba vasta área dos vales do rio Doce, onde fica a sede, e do rio Jequitinhonha. O caminho entre Serro e Diamantina, extremo norte da Estrada Real do Mato Dentro, era uma via bastante frequentada. A trilha principal atravessava por cerca de dez léguas uma região acidentada e repleta de registros históricos. Atualmente, é uma estrada de rodagem sem pavimentação, muito visitada pelos turistas. No primeiro trecho, ultrapassa uma serra não muito alta, mas que é o divisor de águas dos vales dos rios Doce e Jequitinhonha. Logo adiante, cruza este último rio, que é então apenas um riacho, já que está próximo à sua nascente. É o último lugar em que o Jequitinhonha terá águas limpas. Neste local, situa-se o antigo povoado de Três Barras. Adiante, a meio caminho para Diamantina, está a simpática vila de Milho Verde, onde existia um quartel citado por SaintHilaire. A vila está situada em um planalto com vista para o pico do Itambé e tem seu como principal cartão-postal a Capela de Nossa Senhora do Rosário, exemplar perfeito de barroco despojado, tão pequena quanto famosa devido a incontáveis reproduções fotográficas. Encontra-se mais adiante São Gonçalo do Rio das Pedras,

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uma primitiva vila de escravos que soube preservar o estilo colonial rústico de suas casas. Seguindo-se em frente, pega-se uma grande descida para a cava do rio Jequitinhonha, que é transposto pela segunda vez, agora em um desfiladeiro, por antiga ponte de concreto. Neste ponto, suas águas já são barrentas. Termina aí o Município do Serro e tem início Diamantina.


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Santo Hipólito: o encontro visionário da hidrovia com a ferrovia Os melancólicos vestígios da hidrovia

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m 1833, o governo imperial brasileiro concedeu licença para que empresários iniciassem tentativas de navegar o rio das Velhas; no ano seguinte, a mesma autorização foi expandida para o São Francisco. A idéia era facilitar o intercâmbio comercial do interior brasileiro consigo mesmo e com o litoral. Diversas expedições foram enviadas para levantamento das dificuldades, em especial das cachoeiras intransponíveis aos barcos. Nas décadas seguintes, vários relatórios foram produzidos. Em relação ao rio das Velhas, já em 1844, publicou-se um primeiro relatório oficial, de autoria de José Inácio Moreno. Seguiram-se outros, como o de Martinière, em 1856, o de Herculano Pena, em 1857, o de Carlos Campos, em 1859 e o mais detalhado de todos, de Liais, em 1865. Emmanuel Liais era francês. Engenheiro e astrônomo, percorreu boa parte do sudeste brasileiro, tendo publicado o


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livro Hidrographie Du Haut San-Francisco Et Du Rio das Velhas, que contém 20 mapas, 12 deles referentes ao rio das Velhas. Constam de seus desenhos ilhas fluviais, todos os tributários importantes e o relevo das margens do rio. A partir de seus estudos, dos quais constava inclusive a identificação dos obstáculos para os barcos, como corredeiras e bancos de areia, muitos planos de ação foram elaborados, sem que fossem executados. Chegou-se a propor a construção de paredões que provocassem o estreitamento do rio, para aumentar sua profundidade, e também barragens, para a regularização e "domesticação" das águas. Em 1867, Richard Burton, de canoa, dá sua contribuição para os estudos sobre a futura hidrovia, alertando dos perigos no médio rio das Velhas: Surgiu, em seguida, um complicado obstáculo (...) Um par de rochedos em nosso caminho nos fez atravessar para a esquerda, e, fazendo uma curva para o norte, encontramos uma brecha formada por blocos esparsos de pedra calcária. Essa Cachoeira da Barra do Engenho de Manuel Paixão foi um evento de oito minutos; o desvio era arriscado, e, para que o trecho possa ser navegado por um vapor, torna-se indispensável limpá-lo dos rochedos, após o que a própria correnteza se encarregará de limpar a areia e o cascalho. O primeiro barco a vapor a sulcar o rio das Velhas e o São Francisco foi o Saldanha Marinho, em 1871. Foi construído em um estaleiro próximo a Sabará por Henrique Dumont, pai do aviador Santos Dumont. A embarcação media 28 metros, fazia a velocidade média de 23 quilômetros por hora rio abaixo e 14 rio acima. Além de dezenas de passageiros, comportava 50 mil quilos de carga. Por muitas décadas, carregou ribeirinhos, tecidos, madeira, produção agrícola e pedras preciosas. Navegou até 1943, quando naufragou próximo a Juazeiro, na Bahia, cidade que era o destino mais distante de suas viagens regulares no


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sentido rio abaixo. Hoje o barco tem endereço fixo na margem direita do São Francisco, em Juazeiro, e em sua homenagem foi construído um Memorial.

Foto do Saldanha Marinho navegando o rio das Velhas

Foto atual do Saldanha Marinho, em Juazeiro, Bahia

Por quase um século, dezenas de "gaiolas", como eram conhecidas popularmente as embarcações, singraram os dois grandes rios, que se transformaram em movimentada estrada natural. O sonho da hidrovia começou a ruir com o assoreamento causado pela exploração irracional de suas bacias hidrográficas. O desmatamento, a mineração e a ocupação urbana desordenada foram os principais responsáveis. Os barcos progressivamente começaram a encalhar e o Brasil foi abandonan-

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do o plano inicial de transporte e investindo mais em rodovias. São raros os vestígios desse tempo áureo para o rio das Velhas ao longo de suas margens. Nas povoações ribeirinhas, as estruturas do que foram um dia movimentados portos desapareceram por completo, sem deixar marcas. Longe das cidades, alguns paredões ainda podem ser vistos beira-rio. Exemplo disso é um paredão ainda sólido e imponente, construído com macadame, que resistiu a todas as cheias, situado 60 quilômetros rio acima em relação à cidade de Santo Hipólito, no médio rio das Velhas.

Os despojos da ferrovia O primeiro trecho de uma estrada de ferro no Brasil foi inaugurado por D. Pedro II em 1858. Eram 47 quilômetros que saíam do Rio de Janeiro em direção ao interior. Progressivamente, a malha ferroviária foi se expandindo e, em 1922, ano de celebração do centenário da Independência, havia no país cerca de 30 mil quilômetros de ferrovia, duas mil locomotivas e 30 mil vagões de tráfego. Em Minas Gerais, a estrada vinha do sul em direção a Ouro Preto e em seguida acompanhava o rio das Velhas. Na região central mineira, o caminho tomava três rumos, direcionando-se para oeste o ramal de Pirapora, para norte o ramal da Bahia e para leste o ramal de Diamantina. O minucioso levantamento feito por Richard Burton foi utilizado pelos ingleses que construíram a estrada de ferro nas margens do rio das Velhas, poucas décadas após sua passagem pelo rio. O trem-de-ferro chegou a Sabará em 1890, a Sete Lagoas em 1896, a Corinto em 1906 e a Santo Hipólito em 1910, cidade esta fundada pelos operários da ferrovia.


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Maria Fumaça em atividade no início do século XX

Estação ferroviária de Santo Hipólito

O ramal de Diamantina, que passava por Santo Hipólito, fazia parte do grande projeto de ligar o sertão ao mar, pois a estrada deveria ultrapassar a serra do Espinhaço e romper a extensa região do Mato Dentro rumo ao porto de Vitória, no Espírito Santo. De fato, a estrada subiu a montanha, chegando a Diamantina em 1914. Causou grande revolução por certo período, mas parou por aí. Funcionou por apenas 60 anos, o que representou um tempo muito curto para tanto esforço, pois deixou planícies a 500 metros de altitude e chegou a mais de 1100 metros. Interesses nacionais (mesquinhos) e internacionais (pre-

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potentes) abortaram o intento, junto a uma overdose de corrupção estatal. Triste fim o destino reservava à ferrovia. Os trilhos foram arrancados e vendidos como ferro-velho, os dormentes viraram lenha e o leito da estrada foi aproveitado como estreita pista cascalhada. Assim, o Brasil ganhou a inglória fama de não conseguir utilizar-se do transporte ferroviário como uma modalidade importante de veiculação de pessoas e cargas. Como conseqüência, os caminhões entopem as rodovias, em uma insana opção tecnológica. Pouco sobrou hoje das estações ferroviárias do caminho, algumas em péssimo estado de conservação. Mas nem todos tratam com descaso esses vestígios do passado. Em Santo Hipólito, uma professora aposentada contou-nos que certa vez invadiu o gabinete do prefeito, de dedo em riste, reclamando das reformas que ele havia encomendado ao prédio, e que alteraram sua arquitetura. Como argumento principal, acusou-o de estar rasgando a certidão de nascimento de sua cidade.

Ponte ferroviária sobre o rio das Velhas, em Santo Hipólito


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Outro testemunho nos dá a ponte da estrada de ferro que se avista de Santo Hipólito, um quilômetro rio abaixo, local escolhido para a travessia devido à ilha ali existente. São três grandes armações metálicas cheias de estilo, vindas da Bélgica, que formam um conjunto único em todo o rio das Velhas.

O rio Pardo e suas desconhecidas cachoeiras e grutas Na margem direita do rio das Velhas deságua o rio Pardo, que já foi um rio quase pastoso, de tanto barro que suas águas carreavam por causa do garimpo destrutivo e de baixíssima produtividade. Foram vários anos de lutas ecológicas para conseguir que as bombas hidráulicas parassem de destruir seus barrancos, à procura de raros e minúsculos diamantes. Mesmo após a proibição, a prática persistiu ilegalmente por muito tempo. Hoje, as águas correm limpas nos dois braços que formam o rio, o Pardo Grande e o Pardo Pequeno, na realidade mais conhecidos como Pardão e Pardinho. Nas suas margens e afluentes, os povoados de Barão de Guaicuy, Conselheiro Mata, Monjolos e Rodeador, situados nas encostas da serra e que cresceram ao longo da ferrovia, tentam atrair os turistas com suas cachoeiras e grutas. A região é montanhosa e são inúmeras as quedas d'água. Por ser uma área com grande afloramento de rochas calcárias, as grutas são abundantes, sendo que a grande maioria está escondida no cerradão, assim chaCachoeira do rio Pardo

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mado por ser um cerrado de alto porte, que domina as partes acidentadas. Poucas lapas foram exploradas pelo ser humano e muita coisa ainda está por ser descoberta. Por exemplo, são muitas as pinturas rupestres e os salões ricos de espeleotemas, relatados por raros e destemidos moradores que, de maneira improvisada, penetram os labirintos. Um fazendeiro da margem do rio das Velhas faz um relato que bem merece ser pesquisado a fundo. Durante uma grande cheia do rio, a água inundou toda a várzea e começou a brotar repentinamente por uma pequena abertura junto a um paredão de calcário, como se alguma galeria subterrânea tivesse se rompido. Começaram a surgir então dezenas de bagres albinos, de vários tamanhos, e seu pasto ficou coberto por esses estranhos peixes, Gruta inexplorada, em Santo Hipólito nunca vistos até então. É fato cientificamente comprovado que em ambientes cavernícolas extensos vivem esses peixes, que, além de albinos, são cegos, ou melhor, sequer possuem olhos, de tão adaptados que são a um habitat permanentemente desprovido de luz. Foram descritos nas grandes grutas do norte de Minas, algumas com vários quilômetros de comprimento. Não se sabia até então que na região de Santo Hipólito haveria túneis subterrâneos dessas dimensões. O rio Pardo tem suas nascentes na serra do Espinhaço, próximo a Diamantina. As sempre-vivas pontilham o planalto,


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pois resistiram heroicamente a décadas de coleta predatória. A coleta foi uma das principais atividades econômicas dos moradores, que recolhiam grandes fardos das flores e as enviavam em lombo de burro para as cidades próximas. Por algum tempo, chegaram a ser exportadas até para o Japão, onde eram usadas como arranjos para decoração. O comércio decaiu bastante após uma denúncia sobre a forma da coleta, sem preocupações com a não extinção da planta. Atualmente, são realizadas tentativas de cultivo da sempre-viva em canteiros, algumas já bastante promissoras, já que têm mostrado boa produtividade, além de permitir o plantio das diferentes espécies que apresenta o vegetal. Devido ao terreno acidentado e pouco habitado, toda a região sempre foi rica em animais selvagens e, até os dias de hoje, são frequentes as capivaras, as raposas, os Sempre-viva veados, os caititus e, até mesmo, as onças-pardas. Os fazendeiros mais isolados ainda reclamam dos ataques dos felinos aos carneiros e éguas paridas. As caçadas, comuns no passado, quando os matadores retornavam com sacos de aniagem repletos de codornas, hoje são realizadas furtivamente, devido ao medo de punições.

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Curiosas pedras brilhantes, boas para tentos no jogo de gamão

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corrida do ouro vasculhou todos os rincões da serra, mesmo as partes mais improváveis. A mais de mil metros de altitude, em uma região aparentemente estéril, situados ao norte do Serro Frio, habitado apenas por cactos e lagartos, chamaram a atenção dos mineiros que trabalhavam sob um sol abrasador e sem sombras, uns pequenos seixos cristalinos, de extrema resistência ao serem submetidos a impactos. Isso aconteceu a partir do ano de 1714, pois até então o homem branco não tinha se aventurado até essa região quase desértica. Apesar do clima hostil, as águas eram abundantes e corriam para o vale do rio que os índios chamavam de Jequitinhonha. Por alguns anos, os exploradores insistiram na busca do ouro, sem nada encontrar. Algumas pedrinhas brilhantes foram guardadas, talvez por curiosidade, talvez por fastio, e era comum serem usadas para marcar tentos em jogos de carta e gamão, diversão de fins-de-semana e dias santos. Passados alguns anos, as pedras acabaram por cair em


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mãos mais experientes, que suspeitaram tratar-se de mineral de maior valor. Ao serem analisadas por especialistas, descobriu-se que eram diamantes. Ficou registrado na história que a descoberta foi de um esperto padre, que solicitava aos fiéis que lhe presenteassem com aqueles seixos, já que não possuíam qualquer valor. O segredo, inicialmente muito bem guardado, foi se espalhando de boca em boca. Um dos últimos a saber foi o Rei de Portugal, que só tomou conhecimento dessa imensa riqueza 15 anos após a descoberta, em 1729. De imediato, além de um severo puxão de orelhas nos responsáveis por fiscalizar seus interesses, promulgou o primeiro regimento diamantino, apoderando-se de todas as pedras, que, por "determinação divina", lhe pertenciam. Por essa época já tivera início a formação do arraial do Tijuco, ou Tejuco, já que ambas as grafias foram utilizadas. Bandos de aventureiros passaram da lavagem do ouro para o diamante, vasculhando cada palmo da região. A vila também foi sendo construída em local impróprio, em uma rampa bastante inclinada, em meio a pedras e pirambeiras.

Tijuco: o lugar que já foi o mais rico do mundo Por algumas décadas, foram tantos os diamantes que os mercados europeus tiveram que construir novas regras de comércio. A reconstrução de Lisboa após o terremoto de 1755, que a arrasou completamente, foi executada sem sofrimentos adicionais. Napoleão não teria posto em prática sua mania de grandeza se não contasse com as riquezas do reino português. Além do mais, a própria Revolução Industrial empreendida pela Inglaterra, que mudou a face do mundo, deve-se em boa parte à subvenção diamantina.


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O arraial do Tijuco, que foi descrito como o lugar mais rico do globo terrestre, encantava também pela geografia exótica. José Vieira Couto, entusiasmado cronista, escreve em 1801: Aqui é o centro da Demarcação Diamantina; aqui a terra pasmosamente se ouriça em serras de pura penedia, que se dirigem confusamente para todos os lados, e sem ordem; e o céo se mostra retalhado por entre fendas de serranias, umas que vão às nuvens, outras mais baixas; umas vistas de perto e sobre as cabeças, negras e respeitosas; outras ao longe mostrando sua cumiada desigual, esfarrapada e toda azulada: por toda a parte se descobre uma superfície negra e ferrenha, excepto pequenas e estreitas tiras de verdes campos, ou de alva arêa, que se mettem entre uma e outra serra, e que desta maneira admiravelmente servem de variados matizes a este particular terreno. Pasmava com esta vista! Mil reflexões enchiam de tumulto o meu espírito! Dizia comigo: respeitosas e soberbas montanhas, de que modo vos levantastes tanto sobre a superfície da terra? Diamantina, cujo centro urbano está situado a 1113 metros de altitude, com vista para o pico do Itambé, é um extenso município, que abrange terras dos vales dos rios Velhas e Jequitinhonha.

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Um importante prolongamento norte da Estrada Real foi o trecho para Mendanha, vilarejo situado na margem do rio Jequitinhonha, a 23 quilômetros de Diamantina, e rico local de mineração. O padre Antônio Mendanha, proprietário de uma sesmaria na região, fundou o distrito em 1729 e mandou construir uma ponte sobre o rio, no vau por onde passava a trilha no período da seca, para cobrar pedágio. Era uma estrada de quatro metros de largura e, como foi construída no auge do período de riqueza, o calçamento era de alto luxo: grandes pedras foram cuidadosamente niveladas; as bordas da estrada um pouco elevadas formavam canaletas para facilitar o escoamento das águas de chuvas e as rampas tinham inclinação suave, para permitir a passagem de pesados carros de boi. Até mesmo a pólvora foi empregada para quebrar pedras para as obras, uma tremenda novidade para a época. SaintHilarire fez rasgados elogios ao caminho e Langsdorff também

Calçamento centenário na estrada de Diamantina a Mendanha


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não poupa entusiasmo, descrevendo-a como uma (...) estrada no verdadeiro estilo europeu. Seis quilômetros do calçamento ainda estão muito bem conservados e, de toda a Estrada Real, é o trecho melhor preservado. Poucas pessoas sabem localizá-lo, pois situa-se na encosta da margem esquerda do rio Jequitinhonha, uma região até hoje desabitada, sendo o mato tomou conta do planalto e da várzea do rio, encobrindo a estrada. Atualmente, este trecho está situado dentro do Parque Estadual do Biribiri, que possui 17 mil hectares. Em 1999, após vários anos de campanha, Diamantina foi proclamada Patrimônio Cultural da Humanidade pela Unesco. São raros os locais que recebem esse honroso título e, a partir dele, olhares de todo o mundo se voltam em atenção. Mas o garimpo até hoje castiga a região. Uma grande Área de Proteção Ambiental está sendo implantada, com 76 mil hectares, englobando terras dos Municípios de Diamantina, do Serro, de Santo Antônio do Itambé, de Rio Vermelho, de São Gonçalo do Rio Preto, de Felício dos Santos, de Serra Azul de Minas e de Couto Magalhães de Minas. Recebeu o nome de Área de Proteção Ambiental das Águas Vertentes, já que incluem serras onde nascem águas que correm para os rios São Francisco, Doce e Jequitinhonha. Entretanto, a menina dos olhos da natureza na região é o Parque Nacional Sempre-Vivas, com 125 mil hectares, o maior parque nacional da serra do Espinhaço. A antiga vila de São João da Chapada, em Diamantina, é a entrada da reserva. Situados exatamente no divisor de águas dos rios Velhas e Jequitinhonha, os telhados de algumas casas do povoado repartem as chuvas para os vales dos dois grandes rios. Biólogos ligados ao parque instalaram, em trilheiros de bichos, máquinas fotográficas que disparam automaticamente, estimuladas por movimentos.

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Captaram abundantes imagens de antas (o maior mamífero das Américas, que chega a atingir 300 quilos), veados catingueiro (espécie mais comum) e mateiro (raro e pela primeira vez visto na região), onça-pintada e onça-parda, jaguatiricas, tamanduásbandeira e lobos-guará. Até mesmo o tatu-canastra, raríssimo e em risco de extinção (um respeitável indivíduo de um metro de comprimento) e uma simpática onça pintada também posaram para as câmeras.

Tatu canastra e onça pintada no Parque Nacional Sempre-Vivas

Relatos dos naturalistas europeus dos anos de 1800 sobre o Espinhaço Tijuco teve seu nome mudado para Diamantina em 1831, quando o arraial foi elevado à condição de vila. Recebia então gente de todo o mundo, já que os portos brasileiros estavam abertos aos estrangeiros, após 300 anos de isolamento. Vários autores deixaram registros dessa época.


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John Mawe, um ambicioso comerciante inglês, percorreu, já no ano de 1808, extenso roteiro no Brasil. Em seu relato, deteve-se bastante em Minas Gerais. Os diamantes eram o que realmente o atraíram, já que era um mercantilista. No entanto, deixou interessantes textos, como o livro Viagens ao interior do Brasil, publicado quatro anos após, no qual descreve, além das práticas comerciais em voga, a geologia e a cobertura vegetal das regiões visitadas. O barão Wilhelm Ludwig von Eschwege fez estudos, de 1811 a 1817, por toda a região do diamante. Foi este geólogo alemão que deu o nome à serra do Espinhaço, até então chamada de serra da Lapa. Após retornar à Europa, publicou um livro de grande valor histórico, de nome Pluto Brasiliensis, que significa "riqueza brasileira". Johann Baptista von Spix, que era zoólogo, e Karl Friedrich Philipp von Martius, botânico, dois naturalistas bávaros, percorreram longo trajeto pela serra do Espinhaço antes de rumar para o norte do Brasil. Passaram por Diamantina em 1817. Fascinados com tantas vivências, publicaram anos após os três volumes de Viagem pelo Brasil, um verdadeiro tratado que extrapola o foco de inte-resse inicial dos autores e discorre detalhadamente, também, sobre os aspectos antropológicos e culturais da época. Johann Baptiste von Spix

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Os dois mais famosos cientistas que visitaram Diamantina por essa época foram Saint-Hilaire e Langsdorff. O primeiro, naturalista francês, deixou vasta obra sobre o Brasil: ao todo, oito volumes de anotações, com atenção especial à região sudeste. Em seu livro Viagem pelo distrito dos diamantes e litoral do Brasil, descreve a cidade, seus costumes e fala também da astúcia dos escravos no roubo e contrabando de diamantes. Karl Friedrich Philipp von Martius

Langsdorff, alemão de nascimento, era médico e naturalista, e estava a serviço do império russo. Percorreu regiões da serra do Espinhaço ainda hoje desertas e quase desconhecidas. Auguste de Saint-Hilaire


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Saint-Hilaire escreveu sobre Langsdorff, após dias de convívio na região de Ouro Preto, quando percorreram juntos um trecho da cavalgada: Na companhia de Langsdorff, o homem mais ativo e infatigável que encontrei em minha vida, aprendi a viajar sem perder um só momento, a me condenar a todas as privações, e a sofrer com alegria qualquer espécie de aborrecimentos. Erguiamo-nos ao raiar do dia, acabava de escrever o diário ou de fazer a análise das plantas recolhidas na véspera, e meu empregado mudava George Heinrich Langsdorff de papel as que estavam sobre compressão (...) A partida era o momento crítico. Meu companheiro de viagem ia, vinha, agitava-se, chamava este, repreendia aquele, comia, escrevia seu diário, arrumava as borboletas e tratava de tudo ao mesmo tempo. Todo seu corpo estava em movimento; a cabeça e os braços, que arremessava para a frente, pareciam censurar a lentidão do resto dos membros; suas palavras se precipitavam; a respiração era entrecortada; ficava ofegante como depois de uma longa corrida. Após deixar Diamantina em 1825, Langsdorff seguiu para o Rio de Janeiro, onde permaneceu até conseguir mais financiamento por parte do Czar Alexandre I. Assim que recebeu os milhares de rublos solicitados, partiu para São Paulo, Mato Grosso e bacia amazônica, voltando ao Rio de barco. Apenas nesse trajeto sua expedição percorreu mais de 12 mil quilômetros. O recém-contratado desenhista da excursão, um jovem francês chamado Amadei Adrian Taunay, que substituiu Rugendas, mor-

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reu afogado na travessia do Rio Guaporé, na divisa com a Bolívia. Langsdorff enlouqueceu em plena selva e veio a falecer anos após, na Europa, sem jamais ter recobrado o juízo. Foram todos acometidos por malária, passaram fome e, por ficarem meses isolados do mundo devido às chuvas constantes, foram tidos como mortos pela imprensa européia, que acompanhava atentamente os passos e descobertas do grupo. Dos 39 membros, somente 12 retornaram a salvo. Quase todo o acervo da expedição foi enviado à Rússia. Para se ter uma idéia do volume do material, foram necessárias 96 mulas para carregar apenas uma parte do que foi coletado no Mato Grosso. Eram milhares de caixas contendo mapas, desenhos, estatísticas, diários e anotações, que abordavam diversos campos da ciência, como botânica, zoologia, mineralogia, geografia, antropologia além de outros mais. Coletaram mais de 100 mil amostras de plantas. Infelizmente, parte do arquivo perdeu-se, após ter ficado abandonado por um século. O material foi reencontrado em 1930, no porão do Museu do Jardim Botânico de Leningrado, hoje São Petersburgo, e está sendo estudado pelo governo russo - espera-se que agora seja valorizado adequadamente. Existe hoje a Associação Internacional de Estudos Langsdorff, com sede em Campinas, São Paulo, que tem como tarefa o estudo das incontáveis páginas escritas por Langsdorff e pelos vários cientistas componentes da expedição por ele chefiada, sendo que até agora apenas uma mínima fração foi publicada. O astrônomo e cartógrafo da expedição foi o russo Nester Rubtsov, que produziu extenso material. Os mapas do roteiro, incluindo toda a serra do Espinhaço, foram preservados. Todavia, os manuscritos de Rubtsov foram extraviados nos labirintos burocráticos dos órgãos governamentais russos e até hoje não foram encontrados.


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Merece citação, ainda, Richard Burton, que em 1867 chegou a Diamantina subindo a serra do Espinhaço pelo caminho do rio Paraúna. Descia de canoa o rio das Velhas desde Sabará e por uns dias subiu a cavalo a montanha: o ponto onde se situa a cidade é um dos mais altos do Império e, para alcançá-lo, galgamos sete rampas diferentes. Burton, sempre muito curioso, bisbilhotou sobre as diferentes formas de se garimpar o diamante, o seu preço no mercado local e internacional, as características climáticas e geográficas da região e a receptividade aos estrangeiros de origem inglesa, tendo aproveitado, ainda, para dar um longo giro por todo o Distrito Diamantino. Richard Francis Burton

O descortinado atalho para Morro do Pilar pela crista da serra A ligação de Diamantina com Ouro Preto era realizada por mais de um caminho. O mais frequentado passava pelo Serro e por Conceição do Mato Dentro, sempre pelas encostas da serra do Espinhaço voltadas para o nascente. Mas um outro caminho, este pelo espigão mestre da serra, ia de Diamantina a Morro do Pilar por cerca de 25 léguas e tinha sido mandado construir pelo Intendente Câmara. Foi a estrada principal por algumas décadas, recebendo a preferência dos carros-de-boi.

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Isso porque, ao manter-se sempre pelo planalto, não mostrava tantas rampas quanto a estrada que corria pelo vale. Foi utilizada para o transporte das primeiras barras de ferro fundido da Real Fábrica de Ferro de Morro do Pilar para Diamantina. A festa de inauguração dessa estrada, em 1815, recebeu detalhado relato, que foi publicado posteriormente pela Revista do Arquivo Público Mineiro, em 1902: Tres carros carregados de barras de ferro se dirigiram a Tijuco por um caminho também novo, tirado por meio de asperas serranias, commodo todavia: havendo-se com bom tino aproveitado das quebradas e valles da Serra da Lapa [Serra do Espinhaço], sem prejuizo, porém da sua curteza. Saint-Hilaire cita também essa estrada: Quando o intendente dos diamantes [Intendente Câmara] se dirigia de Tijuco às forjas reais de Gaspar Soares [Morro do Pilar], nunca passava por Vila do Príncipe [Serro] ou Conceição. Para chegar mais depressa, e talvez para evitar homenagens fastidiosas, ele seguia pelas montanhas a estrada de Santa Luzia a Congonhas; dormia em casa do Sr. Barreto [próximo a Congonhas], e, a pouca distância deste pouso mandara construir um caminho que, atravessando a Serra da Lapa, ia ter às forjas. Era esse o caminho que eu devia seguir. Esta trilha tinha ainda outra vantagem, que era a de evitar pontes, pois, serpenteando pela crista da serra, evitava transpor rios. Inicialmente, o caminho seguia pelo divisor de águas dos rios Jequitinhonha e São Francisco, na região próxima a Diamantina, em um largo altiplano, com altitudes entre 1300 e 1500 metros. A estrada atual, de asfalto, acompanha por um trecho parte do antigo percurso e atinge nesse ponto sua altitude máxima, que é de 1370 metros. O primeiro pouso era a Fazenda Bandeirinhas, a 14 quilômetros de Diamantina e que foi citada por Langsdorff. Foi o local escolhido há cem anos para passar a estrada de ferro, que subia a serra vinda do oeste, transpondo o vale do São Francisco


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para o lado do Jequitinhonha. Seguindo adiante mais 20 quilômetros, e ainda na parte mais elevada do planalto, surge a cidade de Datas. Sempre na direção sul estão a seguir as vilas de Andrequicé e Costa Sena. Chega-se então, 22 quilômetros após Costa Sena, à também histórica cidade de Congonhas de Norte, que foi citada por Saint-Hilaire pelo nome de Congonhas da Serra, para diferenciála de Congonhas do Campo, perto de Ouro Preto: A aldeia de Congonhas da Serra fica sobre o declive de uma colina, e se compõe de 60 e poucas casas. Não existe ouro em seus arredores, ou, pelo menos ainda não foi encontrado; o que mantém a população desta aldeia é a passagem das caravanas que vão de Sabará, e principalmente de Santa Luzia, ao Tijuco. O município possui terras nos vales dos rios São Francisco e Doce, a uma altitude de 1000 metros, e conta hoje com cerca de cinco mil habitantes. Congonhas do Norte tem origem anterior a 1722, já que existe um registro com essa data sobre obras na Capela de Sant'Ana das Congonhas, hoje Matriz de Sant'Ana. Em seu período de maior riqueza, as paredes da igreja foram adornadas com ouro. Ela continua imponente e muito bem conservada no alto de uma colina na área central da cidade. Mas o ouro foi quase todo embora. Em uma das reformas, um operário mais dedicado se propunha sempre a fazer horasextras gratuitamente no intervalo do almoço. Todos elogiavam a fé daquele moço. Somente ao final de semanas descobriram que ele, sorrateiramente, raspava e guardava para si o ouro das paredes e imagens da igreja. Mas já era tarde; a essa altura o larápio já tinha escafedido. Conta-se na cidade que foram duas filhas bastardas de D. João VI, moradoras em uma fazenda nas proximidades, que construíram a igreja de Congonhas. O edifício possui pinturas de

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famoso Mestre Atayde (que estão sendo restauradas) e um órgão fabricado em Novo Hamburgo, no Rio Grande do Sul, com data de 1933.

Igreja Matriz de Congonhas do Norte

Existe polêmica quanto à possibilidade de o ramo principal da Estrada Real ter passado por Congonhas do Norte, e não por Conceição do Mato Dentro e Serro, teoria defendida ferrenhamente por congonhenses do norte. Baseam-se em fatos históricos, entre os quais a citação de Langsdorff, que textualmente escreve: Decidimos ir a Congonhas, a duas léquas daqui, para tomar lá a Grande Estrada Real. Os adversários alegam terem mais documentos que confirmam que a estrada principal passava pelo vale, e não pelas montanhas. Anotações interessantes são encontradas no Livro do Tombo (palavra usada antigamente como sinônimo de arquivo)


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da Paróquia de Congonhas do Norte, de data desconhecida: Falaram-me de vestígios de uma estrada calçada de pedras (...) que ganhava as cumeadas da cordilheira em demanda de Diamantina. Por esta estrada foi que trouxeram de Congonhas do Norte as enormes pedras para o grande Moinho do Rei, para a fábrica de ferro de Câmara [Intendente Câmara] (...) Alguns moradores da cidade interessados em recuperar o passado do município saíram em busca de achados históricos. Uma dupla se destacou nessa empreitada: o entusiasmado escritor e ambientalista Clóves Isaías Oliveira e o dentista e exprefeito Helvécio Lacerda de Queiróz. Inquirindo aqui e ali, ouviram falar de uma grande pedra de moinho, de tamanho não usual e ainda inacabada, já que sem a perfuração central, que podia ser encontrada em uma pedreira abandonada em uma fazenda a dez quilômetros da cidade. Após perambular pelo pasto, acharam a pedra, afastada de seu leito primitivo, com um metro e meio de diâmetro, certamente pesando mais de uma tonelada. Pelo formato, uma mó de baixo. No moinho, duas pedras são usadas para triturar os grãos. A de cima gira, movida pela roda d'água, e a inferior é fixa. A moagem se dá pelo atrito de uma pedra com a outra, sendo que o milho cai pelo furo central da mó de cima e o fubá é expulso centrifugamente pelas bordas da mó de baixo. Antigamente usava-se falar em "estar na mó de baixo" com o significado de estar em uma fase de privações, enquanto que "estar na mó de cima" era estar numa fase de abundância. Com as águas escassas dos tempos modernos, os moinhos quase desapareceram e mó deixou de ser palavra de uso corrente para sobreviver apenas nos dicionários.

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Grande pedra mó, com 1,5 metro de diâmetro, abandonada em Congonhas do Norte

Próximo à mó existem vários muros de pedras, com mais de 700 metros de extensão, certamente da época dos escravos. Existe a forte suspeita, aventada primeiramente pela competente dupla de historiadores Clóves e Helvécio, de que sejam os restos da casa do Senhor Barreto, citada por SaintHilaire, ao relatar que o Intendente Câmara mandara construir uma casa, que estava situada a uma légua de Congonhas do Norte, e era onde pousava em suas viagens de Morro do Pilar a Diamantina. Seguindo para o sul, a cerca de oito quilômetros da cidade, está a Fazenda dos Carapinas, que foi importante ponto de apoio para os viajantes, pois consta de um dos primeiros mapas precisos da Província de Minas Gerais, datado de 1778, de autoria de José Joaquim da Rocha. Langsdorff registra em seu diário sua passagem pelo local: Depois de uma légua e meia e mais duas horas e meia de caminhada, passamos por várias cabanas e alcançamos, meia légua adiante o estabelecimento (fazenda) de


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Carapinas, cujo nome veio de dois irmãos carpinteiros que se estabeleceram aqui há cerca de 70 ou 80 anos. Um deles ainda vive, com muito mais de 100 anos. A região se distingue pela grande extensão dos bosques. O lugar está surpreendentemente conservado, com exceção da "grande extensão dos bosques". Veêm-se compridos muros com pouco mais de um metro de altura e quase o mesmo tanto de largura, encimados por grandes pedras planas e intencionalmente semelhantes entre si, com aproximadamente 100 quilos, alinhadas com perfeição. Os restos da hospedaria podem ser identificados pelas grossas paredes de quatro metros de altura. São vários os cercados de pedra, que eram usados para confinar animais. Uma vistosa grama nativa circunda hoje todo o conjunto de ruínas.

Ruínas da Fazenda dos Carapinas, em Congonhas do Norte

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Por perto, nos poços dos riachos que correm das montanhas, grandes panelas de dez ou mais metros de diâmetro, de águas cristalinas e tépidas, formadas no quartzito ao longo de milênios, são muito convidativas a um banho restaurador, extremamente eficaz em limpezas exteriores e interiores do ser. Esse hábito somente é permitido agora, nos tempos contemporâneos, já que foi considerado pecaminoso e formalmente vetado na época do colonizador europeu. Em seguida à Fazenda dos Carapinas a estrada procura novamente a crista da serra e, para atingi-la, enfrenta uma longa rampa. Atualmente, o caminho antigo se confunde com trilhas de boi no trecho do capinzal. Porém, em algumas ilhas de florestas que restaram na região, vestígios ainda podem ser encontrados, como restos de calçamento e, por dentro da mata, um sulco de quase um metro de profundidade, que mostra como foi grande o movimento de tropas e carros de boi. O sulco corta também em alguns locais uma área de capoeira e pode ser identificado sem dificuldades, já que as árvores de seu interior são mais velhas e mais altas por terem ficado protegidas do fogo. O que ainda se vê coincide exatamente com o descrito por Langsdorff em seu diário, há mais de 175 anos. No alto, ao final de uma subida prolongada, a visão se descortina em 360 graus. Nesse ponto atinge-se a cumeeira da serra, o divisor de águas do vale dos rios São Francisco e Doce, que está situado a mais de 1400 metros de altitude, divisa dos Municípios de Congonhas do Norte e Conceição do Mato Dentro. A vegetação é rasteira, a não ser por alguns poucos arvoredos tortuosos, judiados pelo vento, e ali não se acha sequer uma gota d'água para aliviar a sede do viajante imprevidente. Na linha do horizonte pode ser visualizado, no rumo do nordeste, o azulado pico do Itambé. José Vieira Couto, que fez o caminho inverso em 1801,


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Montanhas típicas da crista da Serra do Espinhaço

pois vinha de Ouro Preto para Diamantina, registrou encantado a paisagem, pondo poesia na descrição: Varada a serra, principiase a descambar pela sua lomba do Leste; outros vastos horizontes se apresentam aos olhos, e muito differentes daquelles que ficam para o Poente. Alli tudo são planices; aqui tudo crespas serras, que sulcão a superfície da terra, alli tudo fertilíssimas e macias terras; aqui tudo penedias, que negrejam, que horrorizam e que tudo esterilecem. Em baixo sobre uma planice amena alveja o miserável arraial de Congonhas, a primeira povoação do Serro (...) Sobre a região escreveu Langsdorff, sem eufemismos ou meias-palavras: (...) subimos um morro escalvado e pedregoso, atravessamos outro bosque e chegamos a uma montanha bastante

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rochosa, onde começa propriamente o péssimo caminho, ou melhor, a passagem horrorosa - pois isso não pode ser chamado, de forma alguma, de caminho. Mais adiante em seu diário mantém o tom queixoso e confessa o temor pelo que poderá vir: O caminho que devemos tomar é extremamente ruim, o pior que já percorremos até agora no Brasil. Ora ele passa por lugares alagados onde as mulas carregadas empacam; ora ele sobe novamente os morros rochosos da Serra da Lapa. Tenta-se evitar ao máximo essas elevações rochosas; frequentemente, é preciso retornar pelo mesmo caminho ou caminhar mais meia hora para contornar os picos rochosos - não custaria muito abrir uma passagem no meio deles. Para se dar uma idéia da precariedade do caminho, nossos animais levaram seis horas para percorrer duas e meia léguas. O único bem e benefício que os proprietários de terra em Meia Serra fizeram aos viajantes foi uma ponte sobre um grande e impetuoso rio de montanha, o ribeirão da Meia Serra [rio das Pedras], que corre à frente desta. Nesse ponto, normalmente, o viajante fica indeciso quanto a atravessá-lo ou não. Isso porque, uma vez o tendo atravessado, e na eventualidade de cair uma chuva forte, o viajante não pode nem ir adiante nem voltar atrás. Algumas vezes os viajantes passam fome e perigo de vida por vários dias. O local de hospedagem ficava a um quilômetro da margem do rio das Pedras, próximo a um pequeno córrego, protegido por uma montanha de 1350 metros de altitude, que ganhou o nome de serra do Meio da Serra, já que se destaca isolada no meio do planalto. Os pilotis da casa, de pedras perfeitamente empilhadas, com entalhes superiores para o encaixe das vigas de madeira e os sólidos muros em volta ainda podem ser encontrados, parcialmente encobertos pelo mato. Era o "Rancho do Meio da Serra". Saint-Hilaire cita que foi mandado construir pelo Intendente Câmara: Não fiz a descida da Serra da Lapa no


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mesmo dia da subida. Passei a noite em uma casa que o intendente fizera construir para aí dormir, quando se dirige às forjas de Gaspar Soares. Essa casa, chamada "Rancho do Meio da Serra" não oferece, absolutamente, comodidade. Com o planalto descortinando a paisagem, o ângulo que se tem do conjunto de altos montes que rodeiam o pico do Breu, que se destaca na direção do sul, é uma visão daquelas de se parar o olho em admiração. O nome de Meio da Serra, que pode ser visto em mapas antigos desde o ano de 1800, ainda é hoje empregado como referência pelos cavaleiros ocasionais, que, por precisão de sobrevivência e, talvez, movidos também por uma força atávica, ainda persistem em cruzar a montanha em cima de uma montaria. Logo adiante, a estrada se bifurcava. O ramo leste ia para Morro do Pilar, por onde cavalgou Saint-Hilaire, enquanto o ramo oeste seguia para Santa Luzia, por onde cavalgou Langsdorff. Para seguir qualquer um desses roteiros era preciso transpor o rio das Pedras por uma ponte de madeira encravada em um pequeno canyon. Grossas toras de madeira de lei suportavam o peso das tropas e periodicamente eram trocadas para garantir a segurança. No último século deixou-se de investir na ponte e ela foi sendo destruída pelas intempéries. A última viga, que resistiu solitária por muitos anos, foi levada por uma cheia excepcional nos primeiros dias do ano de 2002, quando o rio subiu mais de seis metros. Para Morro do Pilar, o caminho contornava um grande pico, de 1680 metros, que se evidencia à direita e que é chamado de pico da Calçada. Foi assim batizado devido ao calçamento da antiga estrada que contorna sua base. Novamente a estrada ganha o divisor de águas dos vales dos rios São Francisco e Doce e, após quatro léguas, desce a vertente leste da serra, adentrando novamente na região do Mato Dentro.

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Lassance: no coração do sertão Rio Curimataí: água limpa a contribuir para a purificação do Velhas

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região do baixo rio das Velhas atravessa a chamada depressão são-franciscana e, em suas margens, depara-se com a vegetação típica do cerrado. É o sertão! Já em 1816, o naturalista francês Saint-Hilaire tentou definir o significado dessa enigmática palavra: O nome de Sertão, ou Deserto, não designa uma divisão política de território; não indica senão uma espécie de divisão vaga e convencional determinada pela natureza particular do território e, principalmente, pela escassez de população. O Sertão compreende, nas Minas, a bacia do S. Francisco e dos seus afluentes, e se estende desde a cadeia que continua a Serra da Mantiqueira ou, pelo menos, quase a partir desta cadeia até os limites ocidentais da província. Abarca, ao sul, uma pequena parte da comarca do Rio das Mortes, a leste, uma imensa porção das comarcas de Sabará e do Serro Frio, e finalmente, a oeste toda a comarca de Paracatu situada ao ocidente do São Francisco. Árvores de troncos tortuosos, não muito altas e com grande diversidade são as características mais marcantes do cer-


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rado. O pequi pode ser considerado o símbolo da região. Protegido por uma lei recente que proíbe seu corte, é uma árvore frondosa, de casca espessa e fendida. Suas flores, grandes, brancas e cheirosas, são polinizadas por morcegos. O fruto, carnoso, de cor amarelo gema-de-ovo, guarda no seu miolo terríveis espinhos. Produz um óleo rico em nutrientes, que é tradicionalmente empregado no preparo do arroz e de outros alimentos. Outra árvore característica d o s e r t ã o é o Flor de pequi araticum, também conhecido como marolo. Seu fruto é grande, com a parte interna endurecida e a polpa dourada e cheirosa, além de muito saborosa. Acha-se ainda o jatobá, com suas vagens escuras e coriáceas, com conteúdo farinhento e de cheiro forte; o baru, cuja semente, quando torrada ou cozida, fica deliciosa; a cagaiteira, que quando os frutos estão muito maduros fazem jus ao nome da árvore, por serem laxativos; o cajuí, de amêndoa comestível e muito saborosa; o murici, de fruto amarelo e ótimo para aromatizar a cachaça; e muitas outras árvores frutíferas. São vários os tipos de coqueiros, sendo o mais comum a macaúba, com seus espinhos compridos a proteger o caule. O coco fornece uma polpa doce e a castanha uma gordura branca, também comestível. Por todo o lado, há árvores cujos frutos não são aproveitados pelo ser humano, mas que possuem outras importantes funções: o barbatimão, vegetal pioneiro em áreas erodidas; o faveiro, que frutifica na seca e alimenta o gado; a sucupi-


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ra, utilizada para mourões; o pau-santo, do qual se extrai cortiça, e muitos outros. Há ainda a pimenta-de-macaco, cotidianamente exigida em seu cardápio por nossos parentes primatas. Esta árvore tem sido muito visada pelo carvoejamento ilegal, resultando em ruidosas assembléias dos ditos-cujos, todavia sem provocar reconhecimento nos humanos da justa reivindicação. As tortuosidades dos caules são explicadas pela falha dos brotos laterais em sobreviver aos cruéis períodos de seca, da mesma maneira que a casca grossa em forma de cortiça e as folhas carnudas, mas com uma película espessa, são defesas da árvore para reter a pouca água que consegue puxar do solo. Corta a região o rio Curimataí, importante afluente da margem direita do Velhas. O rio nasce no alto da serra do Espinhaço, na região do Parque Nacional SempreVivas e corre cerca de 120 quilômetros pelo vale, antes de despejar um bom volume de água quase limpa no agradecido rio das Velhas. Saint Hilaire escreve "Curmataí", tanto para o rio quanto para a vila de mesmo nome, situada no sopé da serra e que ainda merece os elogios que lhe dedicou o naRio Curimataí com suas matas ciliares

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turalista francês: Compõem a povoação trinta e tantas casas edificadas apenas do rez-do-chão; mas a maior parte delas, muito bonitas, são cobertas de telhas, e cada uma possui seu jardim cercado de muros de barro, acima do qual se vêem bananeiras e laranjeiras. De todas as povoações, por onde passei desde o começo da viagem pelo sertão, Curmataí foi a única em que vi jardins... Algumas das nascentes do rio Curimataí vêm de regiões subterrâneas muito profundas, ascendem rapidamente, e por isto chegam à superfície com temperatura próxima a 30 graus, fazendo assim a alegria de moradores e turistas. Continuando a descida do rio das Velhas, chega-se então a Lassance, situada em sua margem esquerda. A cidade foi fundada em 1908, durante a construção da estrada de ferro de Corinto a Pirapora. Ninguém poderia prever que a ferrovia, da qual se esperava a redenção de toda a região, não completaria um século de existência. Hoje, os trilhos estão sendo roubados, os dormentes esfarelaram e já faz muitos anos que passou o último trem-de-ferro. O capim agora é senhor absoluto. Em Lassance viveu Carlos Chagas, o grande cientista que certamente mereceria o Prêmio Nobel que o Brasil jamais ganhou. Após residir como itinerante em um vagão de uma mariafumaça, que era também seu laboratório, fixou-se no vilarejo que ajudara a fundar. Como médico dos ferroviários entre os anos de 1907 e 1909, descobriu a doença que leva seu nome ao observar muitos pacientes com problemas cardíacos, associados à dificuldade de deglutição e a intestino preguiçoso. Em um fato raro na história da Medicina, na qual geralmente um pesquisador contribui em um aspecto específico do problema investigado, Carlos Chagas ajudou na elucidação de muitas questões obscuras em relação à Doença de Chagas. Identificou o inseto transmissor (o barbeiro); o agente causador da moléstia (um protozoário); o reservatório silvestre (o tatu);


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os hospedeiros (o homem e outros mamíferos); conseguiu visualizar o parasita no sangue de uma criança; reproduziu a doença em macacos e descreveu as alterações observadas em autópsias de pacientes; delineou as principais medidas preventivas, que para seu desgosto demoraram décadas para serem implementadas. Lassance, em um gesto de reconhecimento, inaugurou há alguns anos o Memorial Carlos Chagas, muito bem cuidado e farto de documentação. Memorial Carlos Chagas, em Lassance

Morro da Garça: o caminho mais curto para a Bahia O chapadão se espalha por léguas sem fim. Quase sempre plano, possui alguns montes de altitude modesta e, no meio de tudo, destaca-se uma simétrica e imponente serra, a dominar a paisagem. João Guimarães Rosa, o melhor intérprete que a região já teve, novamente no conto O Recado do Morro, escreveu com respeitosa reverência: Lá - estava o Morro da Garça: solitário, escaleno e escuro, feito uma pirâmide. Não satisfeito, arrematou: Belo como uma palavra. Nessa comparação, para ele que tinha a literatura como uma das razões de viver, elogio maior seria impossível.

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No sopé está a simpática e sertaneja cidade de mesmo nome, chamada abreviadamente pelos habitantes de Morro. De qualquer ponto da cidade é possível ver a pirâmide, sempre a vigiar todos os recantos do lugar. Para os morrenses, a serra mostra 365 faces por ano: às vezes mais verde, ou mais amarela, ou mais sombria, esfumaçada, escondida pelas nuvens mas à espreita, fumando... Enquanto o morro está fumando não pára de chover em Morro da Garça, dizem.

Morro da Garça, isolado no chapadão

A região teve seu primeiro registro histórico no remoto ano de 1711. Um jesuíta, Padre Cocleus, que percorreu o Caminho dos Currais, fez um mapa e informou a rota a um outro jesuíta, Padre Antonil, que a detalhou no livro Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas. Em um subcapítulo de nome Roteiro do caminho da cidade da Bahia para as minas do rio das Velhas, cita textualmente o Campo da Garça e faz o seguinte comentário: Este caminho da Bahia para as minas é muito melhor que o do Rio de Janeiro e o da vila de São Paulo, porque posto que mais comprido, é menos dificultoso, por ser mais aberto para as boiadas, mais abundante para o sustento e mais acomodado para as


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cavalgaduras e para as cargas. O autor, que usava o pseudônimo de André João Antonil, e que para aumentar o mistério sobre sua pessoa em uma parte do livro se identifica como "O Anônimo Toscano", estava receoso dos desdobramentos de suas revelações. Cautelosamente, apresentava de forma antecipada no texto uma autorização da Igreja para publicar a obra, mas isso não foi bastante para que o Rei de Portugal mandasse recolher os livros e queimá-los apenas onze dias após sua publicação. A sorte é que uns poucos exemplares ficaram escondidos e sobreviveram à incineração. As novas que o livro trazia já tinham se espalhado e uma multidão de portugueses se preparava febrilmente para atravessar o Atlântico. O Padre Antonil sumiu de circulação e não se teve mais notícia dele. Passaram-se exatos 175 anos para que, em 1886, o historiador Capistrano de Abreu descobrisse sua verdadeira identidade, ao desvendar a criptografia que Antonil fizera com seu nome de batismo: André João Antonil era na verdade João Antônio Andreoni, jesuita italiano, de fato nascido na Toscana, que veio para o Brasil e chegou a ser reitor de um colégio religioso na Bahia. Faleceu anonimamente, como certamente planejou, em 1716. Relatos posteriores (Daniel de Carvalho, citado pelo historiador local Padre Boaventura Leite) também confirmam a progressiva importância da região no período colonial: Este caminho que se tornou a estrada real da Bahia para Minas, por encurtar a viagem e fugir dos alagadiços e das febres palustres ou "carneiradas", seguia o mesmo roteiro anterior, desde as minas do rio das Velhas até Morro da Garça, último curral do rio das Velhas. Hoje, a subida ao cume do morro da Garça é facilitada por uma trilha que serpenteia pela face oeste da montanha. Com pouco mais de duas horas de caminhada atinge-se o topo,

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situado 1000 metros acima do nível do mar. Ao longo do percurso, a paisagem muda do típico cerrado para a vegetação rasteira de campo de altitude. A visão se espalha então por muitas léguas. Vê-se o vale do rio Bicudo, afluente da margem esquerda do rio das Velhas, mostrando variados tons de verde. Ao longe, para o leste, avista-se a serra Geral, como é regionalmente conhecido o Espinhaço, uma cordilheira azulada no horizonte, a esconder a cidade de Diamantina.

Naufrágio, assombração e caipora Tempos atrás, sempre que o rio das Velhas se encontrava muito baixo, no auge da estiagem, aparecia em uma croa perto de Beltrão, distrito de Corinto, a quilha de um vapor. Dava para ver que o casco era de cobre e que uma grande âncora estava atada a ele por uma corrente. Não se encontram documentos sobre o naufrágio, mas circula ainda a história de que teria ocorrido no início dos anos de 1900, quando muitos passageiros se afogaram e, inclusive, corpos ficaram retidos dentro do barco. Conforme fontes fidedignas atuais, almas aprisionadas costumam atemorizar com gemidos os barqueiros imprevidentes que passam à noite pelo local. Sucessivas cheias, que mudam o curso principal do rio, fizeram com que o casco ficasse permanentemente soterrado. Mas de uma feita, há cerca de 40 anos, Antônio Alvarenga, fazendeiro da margem direita sempre interessado em recuperar histórias antigas, arranjou uma junta de boi e conseguiu, com muita dificuldade, retirar a âncora do vapor. É uma peça de mais de uma tonelada de peso, que impressiona pelo tamanho e solidez.


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A âncora encontra-se hoje repousando despercebidamente no gramado da sede de uma fazenda das redondezas, sem receber a reverência que merece. Certamente teria lugar de destaque em qualquer museu que se preocupasse em recuperar o modo de vida de nossos antepassados e que, também, valorizasse o re-gistro do árduo dia-a-dia que sempre fez parte da história de nosso povo. Na mesma área em que se deu o naufrágio, outros casos do passado merecem ser recontados. O veterinário/historiador Élvio Moreira recuperou detalhes de uma colonização uruguaia frustada na região: As veredas verdejantes do altiplano da Serra do Cabral, ao lado direito do Rio das Velhas, encantaram um rico empresário uruguaio, em 1917. Antonio Maldini, em sociedade com outros Âncora encontrada em Beltrão, Corinto parentes, adquiriu uma área imensa nesse local, com muitos quilômetros de extensão, para produzir bovinos finos. Importou do Uruguai 900 touros Hereford na esperança de conseguir mestiçar o rebanho nativo para produzir animais de carne tenra e saborosa. Com esse objetivo, comprou milhares de vacas em toda a Bacia e dizia: "Con los toros de clase tudo se arreglaria...". Em dois anos não sobrou um reprodutor. Não resistiram ao ataque dos carrapatos, bernes e morcegos. A serra do Cabral, testemunha de tudo, impera soberana

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na margem direita do rio das Velhas. Sua importância foi recentemente reconhecida em nível internacional, pois desde de 2005 faz parte da Reserva da Biosfera da Serra do Espinhaço. Como desdobramento, foi criado então o Parque Estadual da Serra do Cabral, com 22 mil hectares, com terras dos Municípios de Joaquim Felício e Buenópolis. São muitas as cachoeiras escondidas dentro de grandes áreas preservadas de cerrado. As acidentadas encostas da serra, que sempre dificultaram a ocupação humana, são um santuário para muitos animais em risco de extinção, como as harpias, o gavião real com envergadura de até dois metros, e as onças-pintadas, que possuem um território de caça de mais de 200 quilômetros de raio, segundo medições de zoólogos. Também antigas tribos indígenas perambularam por seus recônditos e deixaram pinturas rupestres, que estão ainda intactas e são mais um bom motivo para que se cuide bem daquelas montanhas. Nos abrigos de pedra do alto da serra veêm-se imagens de emas, capivaras, tatus, porcos-espinho, onças-pardas e onças-pintadas e supreendentemente, bem escondida, mas em local de destaque, a silhueta inconfundível do temido caipora. Trata-se uma entidade da mitologia tupi-guarani, conhecida também por caapora ou, em algumas regiões, curupira, palavra que significa habitante do mato. É um ser antropomorfo de pequena estatura, com os pés voltados para trás para despistar, com enganosas pegadas, seus perseguidores. Os índios acreditavam que o adulariam oferecendo fumo, esteiras e enfeites de penas, já que quando enfezado tornava-se agressivo. Uma carta do Padre Anchieta, datada de 1560, relata: Aqui há certos demônios, a que os índios chamam de Curupira, que os atacam muitas vezes no mato, dando-lhes açoites e ferindo-os bastante. Não resta dúvida quanto à intenção do índio artista da serra do Cabral em retratá-lo com reverência: o desenho tem


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cerca de um metro e é semelhante a uma criança; todavia, o rosto é simiesco, mas o corpo não tem rabo. Nitidamente, os pés estão voltados para trás.

Pintura rupestre provavelmente retratando um caipora, na serra do Cabral, em Buenópolis

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a entrega das águas ao São Francisco Ruínas da igreja mais antiga de Minas Gerais

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á no ano de 1698, quando grassava a fome na região das minas de ouro, o Caminho dos Currais estava traçado e em pleno funcionamento. Um dos registros recuperados desse ano foi uma carta enviada ao Rei de Portugal chamando a atenção sobre a evasão de impostos, os famigerados "quintos reais": notícia q. da Bahya mandaõ alguas pessoas gado, e negros p.a se venderem nas Minas. Outra carta da mesma época advertia a Coroa Portuguesa da inutilidade de tentar fechar o referido caminho: E assente por conclusão certa que por este caminho do sertão sempre entraram para as minas e saíram das minas todos os que quiseram e que o mesmo hão de fazer enquanto houver ouro, sem que toda e qualquer proibição sirva de outro algum efeito, mais do que ser total motivo de se não quintar ouro algum do que sair pelo dito caminho enquanto estiver vedado (...)


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Na foz o rio das Velhas, de um local onde já se avista o São Francisco, fica a vila de Barra do Guaicuy, hoje Distrito de Várzea da Palma. A Igreja de Bom Jesus de Matozinhos, por séculos inacabada, destaca-se no barranco beira rio. É uma sólida construção de pedras, as paredes pela metade, sem um teto, que jamais foi construído. Existem documentos que atestam que esta igreja teve sua construção iniciada pelos jesuítas que navegavam da Bahia pelo São Francisco acima e que estes teriam sido os primeiros a tentar a catequização dos índios da região. As primeiras incursões ocorreram no início dos anos de 1600, portanto várias décadas antes da bandeira de Fernão Dias. Existe a lenda de que, de certa feita, os índios Cariris revoltaram-se contra os caras-pálidas, mataram os missionários, provavelmente os devoraram, e destruíram parcialmente a igreja. Uma frondosa

Igreja de Bom Jesus de Matozinhos em Barra do Guaicuy


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gameleira cresceu no alto da parede do fundo e suas raízes recobrem as duas faces do paredão de pedra. É grande o movimento de pequenos barcos de pesca no improvisado cais da vila. A volta do peixe é o indicador maior da recuperação do rio. O que mais se pesca é curimatá, piau, matrinchã, dourado e mandi. Às vezes surubi que, quando pequeno, é chamado de moleque e, quando grande, hoje muito raro, é chamado de luango. São as muitas lagoas marginais da várzea do rio que garantem a procriação das espécies. Estas lagoas são verdadeiros berçários de peixes, que podem crescer em segurança em suas águas mansas e, já grandinhos, são devolvidos ao rio na época das cheias. O rio volta também a ofertar suas águas para as planRaízes da gameleira nas ruínas da tações. No baixo rio das Velhas, igreja de Bom Jesus grandes áreas são irrigadas para o cultivo de cítricos, bananas e uvas. Objetiva-se inclusive a produção de vinhos finos nos pró-ximos anos. O terreno cultivado espalha-se por um vasta planície, por quilômetros de talhões quadriculados e homogêneos, a ponto de se perder a rota caso não se tenha muito cuidado na orientação.

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O Grande Sertão Veredas está em toda parte Guimarães Rosa escreveu sua obra prima Grande Sertão: Veredas no início da década de 1950 e a publicou em 1956. Nas palavras do autor: Passei dois anos num túnel, um subterrâneo, só escrevendo, só escrevendo eternamente. Foi uma experiência transpsíquica, eu me sentia um espírito sem corpo, desencarnado - só lucidez e angústia. O livro foi considerado por críticos abalizados como "o mais importante romance das Américas". O autor destas linhas discorda e sem medo de ufanismo, bairrismo ou opinião baseada em cultura literária limitada, considera-o a maior obra já escrita em toda a história da civilização ocidental. O enredo transcorre na bacia do rio São Francisco. Rosa propositalmente não informa datas, mas o jagunço Riobaldo, seu narrador-protagonista no livro, nasceu próximo ao ano de 1890, em uma fazenda na região central de Minas Gerais. Encontrou Diadorim, que regulava com sua idade, quando tinha "uns treze ou quatorze anos", nas margens do Velho Chico, próximo à barra do "de-Janeiro", pequeno riacho que guarda ainda o mesmo nome. Por essa época, o trem-de-ferro acabava de chegar a Corinto, relatada no livro como Curralinho, onde Riobaldo passa parte da juventude. Pouco depois, entra para a jagunçagem, na qual permanece por dez a doze anos. Roda por todo o norte mineiro, com pequenas excursões à divisa de Goiás e Bahia. Guimarães Rosa detalha todo o percurso de Riobaldo, respeitando rigorosamente a geografia dos rios e montanhas e a localização das principais cidades. Apenas se dá o direito de modificar a seu bel-prazer os nomes de pequenos córregos e vilas. Nunca viajou por toda a região, que parecia conhecer como a palma da mão, pois apenas se baseava em mapas oficiais do Itamaraty, onde trabalhava como embaixador.


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O autor descreveu o sertão de um século atrás, com toda a sua riqueza natural e cultural. Registrou preciosas histórias - ou como preferia, estórias - de uma época que está desaparecendo, de um vasto chapadão então despovoado, fazendas esparsas e isoladas, sem plantações, apenas umas lavourinhas de fundo de quintal, vivendo-se de criar um gado bravo que crescia solto. O cardápio era quase constante: comia-se carne seca, feijão com torresmo, farinha de mandioca, rapadura e frutas do cerrado. Cachaça era o que não faltava, afinal pé-de-cana cresce em qualquer lugar. Nosso incomparável escritor compilou o autêntico linguajar do sertanejo, único no Brasil, que com certeza guarda origens em dialetos galegos, andaluzes, de trásos-montes lusitanos e que também deve ter sangue maometano, resquícios de setecentos anos de ocupação árabe na península ibérica. Nas palavras de Rosa: Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos; onde um pode torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador, e onde criminoso vive seu cristojesus, arredado do arrocho da autoridade. E mais: (...) sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado! E bala é um pedacinhozinho de metal(...) E mais ainda: O sertão é bom.Tudo aqui é perdido, tudo aqui é achado (...) O sertão é confusão em grande demasiado sossego. A fala de Riobaldo, que no livro caminha reflexivamente para a velhice e deve ter então cerca de 60 anos, é um verdadeiro tratado de filosofia, onde se degladiam todas as nobres atitudes e as misérias do ser humano. Fala da permanente luta do bem contra o mal, do amor e do ódio, das certezas e das incertezas, da vida e da morte: Viver é muito perigoso. Um dos eixos do livro é o ambiente natural em que vivem os personagens, e nele se destacam as veredas.Vereda sig-

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nifica caminho, no vocabulário formal da língua portuguesa. Rosa aproveitou entretanto um outro sentido da palavra: (...) entre as chapadas, separando-as (ou, às vezes mesmo no alto, em depressões no meio das chapadas) há as veredas (...) onde aflora a água absorvida. Nas veredas há sempre o buriti. De longe a gente avista os buritis e já sabe: lá se encontra água. A vereda é um oásis. A explicação botânica para essa maior concentração e enfileiramento de buritis ao longo do curso de água é que esta tem a função de propiciar o apodrecimento da resistente casca dos cocos e permitir sua brotação. De novo, citando Rosa: (...) o buriti é das margens, ele cai seus cocos na vereda - as águas levam - em beiras, o coquinho as águas mesmas replantam; daí o buritizal, de um lado e do outro se alinhando, acompanhando, que Buritis em uma vereda da bacia do nem que por um cálculo (...) rio das Velhas Também os naturalistas Spix e Martius, ao cruzar o sertão em 1818, quedaram-se admirados pelo buriti e renderam homenagens a ele: O buriti, um dos mais belos produtos do mundo das plantas, eleva alto nos ares o seu caule, coluna de 100 a 120 pés de altura, enfeitado com grande penacho dos leques de suas folhas. Ele fornece aos habitantes fio e fibras resistentes, tiradas da epiderme das folhas; com estas, dá coberta para palhoças; fazem-se gradeados e ripas com a parte periférica


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de seu caule; remos, com a haste de suas folhas; uma bebida muito agradável, semelhante à água de bétula e suscetível de fermentação alcoólica, com a seiva contida no caule; e um saboroso petisco é preparado com a polpa do fruto, misturado com açúcar, que, com o nome de saieta, é doce apreciado e artigo de comércio no sertão de minas com a costa. Todas estas utilidades tornam quase sagrada para os sertanejos a preciosa árvore (...) Foi criado, recentemente, o Circuito Turístico Guimarães Rosa, que tem sua sede em Morro da Garça. São ao todo mais de uma dúzia de cidades, todas citadas na obra de Rosa. Começando pela localidade mais ao sul, está Araçaí, beira da estrada de ferro, onde ocorreu o final da travessia de onze dias que o escritor fez a cavalo em 1952 e que resultou na criação da saga Frutos do buriti de Riobaldo e Diadorim. A seguir, rumo do noroeste, vem Cordisburgo, pequenina terra sertaneja, traz montanhas, no meio de Minas Gerais. Paraopeba, que se chamava Tabuleiro Grande, e Caetanópolis, antes Cedro, estão por perto. Assim como Felixlândia, originalmente Bagre. Vêm ainda Andrequicé, onde morou por muitos anos Manuel Nardi, o famoso Manuelzão, e Lassance, onde viveu Diadorim parte da sua infância. O roteiro finaliza em Três Marias, município onde teve início a famosa jornada de Rosa, na culatra de uma boiada, quando o escritor preencheu muitos caderninhos de anotações, sempre com um bem à mão, pendurado ao pescoço.

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Navegação rio abaixo: destino oceano Atlântico O encontro do rio das Velhas com o São Francisco é chamado por Guimarães Rosa de Guararavacã do Guaicuy. Mais uma vez, Rosa consegue se expressar em frases de grande poesia: Só na foz dos rios é que se ouvem os murmúrios de todas as fontes. O São Francisco é um marco na história brasileira e já era citado em diários de bordo das caravelas desde o ano de 1501. Alinhavou várias capitanias hereditárias e, posteriormente, várias províncias brasileiras. É reconhecido como o eixo nacionalista que evitou, após a nossa independência, o esfacelamento do Brasil, à exemplo do que ocorreu com as possessões coloniais espanholas da América. Sempre senhor de si e indomável nas cheias, o Velho Chico recebeu a reverência do Monsenhor Pizarro, pesquisador regional: Supera este rio Encontro dos rios Velhas e São Francisco de S. Francisco a todos da capitania na soberba, com que leva as aguas fora do seu leito, quando as innundações o volumão; pois que chega estender se espraiando por mais de seis leguas, e as vezes muito alem dellas, como aconteceo no anno de 1773 em que passou a mais de vinte cobrindo as fazendas das suas margens distantes dez leguas e levando comsigo a maior


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parte do gado que povoava os campos. O inglês Richard Burton deixou também pormenorizados relatos em seu livro Viagem de canoa de Sabará ao Oceano Atlântico. Em 1867, navegou 309 léguas por mais de 90 dias, utilizando-se de precárias embarcações para vencer as corredeiras dos rios das Velhas e São Francisco. Burton comparou o Velhas, para ele a autêntica nascente do rio São Francisco, com o seu estimado Tâmisa, e fez a predição entusiasmada de que uma grande civilização iria um dia ocupar aquelas paragens: Esse rio deserto tornar-se-á, dentro em pouco, uma estrada de nações, uma artéria que fornecerá ao mundo o sangue vital do comércio. A praia de areia em que estávamos talvez venha a ser o cais de alguma rica cidade. A Cachoeira da Onça e a Coroa Braba serão silenciadas para sempre. E o ruído do trabalho dos homens abafará os únicos sons que agora chegam aos nossos ouvidos, o uivar do guará e os gritinhos fracos do pequeno coelho castanho do mato. Ao chegar à barra do Velhas com o São Francisco, após 38 dias de viagem desde Sabará, Burton deixou-se emocionar com o grandioso espetáculo das águas e registrou em seu diário: Era impossível contemplar sem entusiasmo o encontro dos dois poderosos cursos de água. O Rio das Velhas faz uma curva graciosa de nordeste quase que para oeste e, descendo por um trecho reto, com cerca de 183 metros de largura, mistura-se com o São Francisco, que vem de leste para recebê-lo (...) Se algum lugar merece o selo de grandeza conferido pela mão da Natureza é essa confluência. Quatro anos após a passagem de Richard Burton, exatamente no dia 3 de fevereiro de 1871, o barco a vapor Saldanha Marinho saía de Sabará em direção à Bahia. Era a viagem inaugural de um vapor pelo Velhas e o São Francisco. Foram muitas décadas de muito tráfego, em que as "gaiolas" faziam a ligação entre longínquas regiões, algumas situadas a mais de mil

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quilômetros de distância. O assoreamento progressivo do rio, provocado pela mão do homem ao agredir as terras da bacia hidrográfica, fez com que os bancos de areia tomassem conta de seu leito e, progressivamente, impedissem a passagem dos barcos de grande calado. Como uma nostálgica recordação de um tempo glorioso, foi restaurado o vapor Benjamim Guimarães, o único não totalmente vencido pelo tempo e pelo descaso, e que aceitava reparos. Ele carregará turistas de Pirapora a Januária, penetrando parte do estuário do rio das Velhas, para deleite dos passageiros. Na atualidade, discute-se o destino do rio: se voltará a abrigar barcos a vapor, se haverá transposição de parte de suas águas para outras bacias hidrográficas do nordeste brasileiro, se antes de qualquer obra faraônica é preciso revitalizálo, se deve ser considerado sempre como o "rio da Vapor Benjamim Guimarães unidade nacional" ou se deve ganhar o título de "patrimônio da humanidade". Para tudo isso, temos que reestudar sua rica história, saber que foi considerado sagrado pelas tribos indígenas e que mentes mais visionárias o identificaram como um rio citado até mesmo pela Bíblia! Vejamos então. Um dos primeiros mapas que detalham o interior do Brasil, com data de 1586, e que ficou preservado nos museus marítimos de Portugal, mostra o rio São Francisco em localização anômala, vindo do centro do continente americano, em


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posição vertical ao oceano Atlântico. O interessante é que, no meio do seu curso, ele some por um trecho no mapa e reaparece em seguida, e nesse ponto está escrito "Somidouro".

Mapa datado de 1586, com o rio São Francisco atravessando o Brasil no sentido oeste/leste, e no trecho em que é interrompido está a palavra "Somidouro"

Os índios davam importância mística aos sumidouros, um fenômeno geológico que ocorre em regiões de calcário. São frequentes os painéis de pinturas rupestres encontrados nesses locais, sendo que os indígenas os chamavam pelo extenso e anasalado nome de "anhanhecanhuva". Pelo menos em duas áreas da bacia hidrográfica do São Francisco ocorrem esses

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sumidouros, não propriamente no leito principal do rio, mas em seus afluentes. Um deles é no norte de Minas, onde o rio Peruaçu some quase 17 quilômetros debaixo da terra. Outro é em Lagoa Santa, região central de Minas Gerais, onde um córrego que drena vasta área de grutas some por quatro quilômetros e desemboca subterrâneo no rio das Velhas. Certamente, a lenda indígena perpassava os espíritos dos bandeirantes que se aventuravam em busca do Eldorado, a montanha de ouro que todos acreditavam existir no interior da América. Talvez tenha sido este um motivo que levou Fernão Dias a fundar uma feitoria à margem do lago em que desaparece o córrego próximo a Lagoa Santa, à qual chamou de Sumidouro. Como já citado, a vila, fundada em 1676, preserva até hoje o mesmo nome. Pois esse mapa deve ter dado grande força à polêmica sobre a importância do rio São Francisco no Novo Mundo, assim como sobre a possibilidade de que se tratasse de um rio bíblico. Existe na Bíblia, no livro Gênesis, parte do Antigo Testamento, o relato de quatro rios que nascem de uma fonte única, descritos como Gion, Fison, Heidekel e Eufrates. Segundo o consenso dos primeiros teólogos do Cristianismo, não restava dúvida de que o Eufrates sempre tivera este nome; que o Heidekel seria seu vizinho, o Tigre, ambos na antiga Mesopotâmia, e que o Fison seria o Ganges, na Índia. Por séculos especulou-se sobre onde estaria situado geograficamente o rio Gion, que teria como característica mergulhar por um trecho debaixo da terra. Alguns entendidos argumentaram a favor dos africanos Nilo e Senegal, mas outra corrente apostava em nosso querido São Francisco. E tinham um argumento que consideravam imbatível: somente ele tinha uma parte de seu curso subterrânea. Segundo o historiador carioca (mas, de alma mineira)


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Paulo Roberto Azevedo Varejão, que pesquisou o tema, (...) o português e o mameluco brasileiro dos séculos XVI e XVII, contemporâneos assim das primeiras bandeiras que devassaram o interior, eram herdeiros de uma visão de mundo que estava ancorada ainda na Idade Média, e imersa naquela carga de religiosidade que tão bem caracteriza aquela época histórica. As Escrituras Sagradas eram apreendidas na dimensão literal de seu texto (...) o português da época dos descobrimentos acreditava piamente na materialidade do Paraíso Terrestre, aquele mesmo descrito no Livro do Gênesis e a respeito do qual, em algum momento, firmou-se a convicção de que se encontrava oculto no interior do Novo Mundo. Na sequência dessa crença, em 1741, foi preso pela Inquisição o lusitano Pedro Rates Hanequim, que há décadas vivia em Minas Gerais. Foi acusado de tramar uma conspiração contra a Coroa portuguesa, de afirmar que "Adão fora criado no Brasil, e dele se passara a pé enxuto para Jerusalém" e que as tribos brasileiras descendiam das tribos perdidas de Israel. Profetizava que na região das minas de ouro do interior brasileiro se encontrava o Paraíso Terrestre, onde seria erguida a sede do próximo Império Universal (o "Quinto", segundo afirmava). E ainda: estava convicto de que o São Francisco era um dos quatro rios bíblicos! Hanequim foi condenado à morte em 1744, sendo levado à fogueira em Lisboa. Suas cinzas foram cuidadosamente espalhadas aos quatro ventos, para que não ficassem vestígios de sua pessoa, quiçá de suas idéias. Ainda segundo o professor Varejão, a construção de Brasília, no planalto central brasileiro, planejada desde o tempo do Império e que estava inicialmente prevista para situar-se próximo ao encontro dos rios São Francisco e Velhas, poderia ser considerada como uma antevisão de um futuro repleto de glórias para a região, os primórdios de uma nova era para o sertão.

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ma história parecida com a que se segue repetiu-se por muitos ramos da Estrada Real do Sertão: no alto da serra do Espinhaço, em Congonhas do Norte, o antigo caminho do período colonial foi perdendo a importância a partir da chegada do trem-de-ferro a Diamantina, em 1914. Muitos trechos deixaram de ter utilidade, a não ser como simples trilhas entre localidade vizinhas, e o mato passou a tomar conta. Décadas se passaram de abandono e as histórias dos tempos de glória do caminho foram se perdendo pela falta de registro de suas ricas memórias. Por um breve momento, existiu a chance de revitalização dessa estrada. Juscelino Kubitschek, em 1958, então Presidente da República, aproveitando uma boa fase da economia nacional - resultado do crescimento da indústria brasileira no pós-guerra -, resolveu empreender obras monumentais que marcassem para sempre sua administração. Brasília foi seu grande sonho, mas ele acalentava também outros menores. Um era-lhe muito especial: uma estrada asfaltada em linha reta, entre sua cidade natal, Diamantina, até a capital mineira, Belo Horizonte. O caminho existente, para fugir das escarpas da serra do Espinhaço,


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passava por Curvelo, Paraopeba e Sete Lagoas, fazendo uma grande volta poeirenta de 70 quilômetros. JK providenciou o projeto, que coincidiu em grande parte com o caminho histórico. Para a travessia da serra não havia roteiro melhor. Como já existiam estradas, mesmo que precárias, nos extremos sul e norte do trajeto, iniciou as obras pela parte central, exatamente a região montanhosa. Grupos de operários subiram a antiga trilha e, com piquetes, marcaram os lugares por onde passariam os tratores, rasgando a cordilheira. Dias antes das máquinas chegarem a Congonhas do Norte, município que engloba boa parte do território mais acidentado, o projeto foi cancelado. Forças políticas influentes temiam o esvaziamento econômico de suas regiões em benefício de uma área pobre, sem prestígio entre os poderosos, um cerrado pedregoso e quase desabitado, com o qual ninguém se preocupava. Juscelino, que deixou a Presidência em 1961 com grande prestígio popular, queria voltar novamente ao cargo na eleição prevista para 1965, quando já era tido como favorito. Certamente, em seu segundo mandato teria levado avante seu desejo de vencer a montanha, encurtando caminhos. A ditadura militar, que tomou o poder em 1964, abortou todos os seus planos futuros, cassando seus direitos políticos e condenado-o ao ostracismo. A estrada de rodagem já existente foi asfaltada, o desvio de 70 quilômetros foi mantido, não se falou mais no projeto da nova via, os piquetes apodreceram e a reduzida população local continuou esquecida. Se, por um lado, houve prejuízo à região serrana, que viu adiar por décadas seu desenvolvimento econômico, por outro, finalmente, com o turismo, os habitantes daquelas montanhas poderão sair da pobreza, tirando proveito do isolamento a que


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foram involuntariamente submetidos. Se o que mais almejavam era que suas cidades e vilas se incorporassem à malha rodoviária, servindo de acesso para outros lugares, agora têm a chance de atrair pessoas interessadas em natureza e história, e que em alguns recantos ficaram surpreendentemente preservadas do avassalador e muitas vezes insano progresso dos tempos modernos. Quem pode orgulhosamente se proclamar como o fim da linha, rota para lugar algum? Ao invés de passagem, destino! Da mesma forma, estão ainda para ser adequadamente valorizadas muitas ruínas do período colonial, como os calçamentos recobertos de capim nas montanhas que cercam Sabará, os profundos sulcos deixados por décadas de tráfego de carrosde-boi, como em Glaura, e os alicerces das estalagens e muros de pedra em Cordisburgo. De eras mais remotas, há as ainda inexploradas pinturas rupestres das grutas de Santo Hipólito e os vestígios de antigos aldeamentos indígenas de Santana do Pirapama. Reconstruir a história da hidrovia, seus portos e embarcações, e da ferrovia, com suas estaçõezinhas patéticas, é também tarefa para o futuro. O projeto de recuperação das estradas reais já teve início. Serão mais de mil quilômetros de trilhas por sete municípios do Estado do Rio de Janeiro, sete de São Paulo e mais de uma centena de municípios de Minas Gerais. Muitas trilhas serão de uso exclusivo de caminhantes, cavaleiros e ciclistas, não podendo, de forma alguma, ser utilizadas por veículos automotores, para os quais deverão ser reservadas pistas apropriadas. As estradas do passado sobreviveram heroicamente em raros trechos e têm agora a chance de ser reabilitadas. Não são poucos os andarilhos que se propõem a retomar as trilhas dos antigos, numa busca saudável de alguma coisa que não se sabe bem o que é. Pouco importa, caminhar é preciso.

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Créditos das fotografias e ilustrações* -

Carlos Bernardo Mascarenhas Alves (página 194) Celso Travassos (páginas 37-acima, 45) César Xavier (páginas 54, 65, 77, 86, 90, 93, 101, 180) Cristianelli Corombarolli (página 59) Christiano Ottoni (páginas 75, 122, 149, 171) Cuia Guimarães (páginas 36, 78, 80, 147-abaixo, 148, 179, 183, 189, 192) Eugênio Silva (página 88) Fernando Figueiredo Goulart (páginas 95, 96, 106, 113, 128, 130-acima) Fernando Piancastelli (páginas 177, 185) Instituto Biotrópicos (página 158-acima e abaixo) José Eduardo Freitas Cezar (Capa e páginas 13*, 17, 20*, 24*, 71, 91, 99*, 24*, 129, 138*, 166, 168, 169) Lúcia Horta (páginas 61, 94, 112, 118, 136, 140, 151, 205) Maíra Figueiredo Goulart (páginas 30, 32, 33, 35-abaixo, 40, 103, 130-abaixo, 131, 137, 155, 156, 176, 193) Procópio de Castro (páginas 34, 35 acima, 57) Raul Damásio (páginas 37-abaixo) Rogério Sepúlveda (páginas 52, 58, 188) Zarley Starling (páginas 48, 50) Zeca Issa (páginas 116, 150)

Capa: Detalhe da obra “Convoi de diamans passant par Caïte” de J. M. Rugendas, de1835, sobre Mapa da Demarcação Diamantina, de 1776. Este livro foi produzido usando os programas QuarkXPress 5.0, Photoshop 7.0, CorelDraw12. O texto foi composto na fonte da família Gill Sans. Impresso em papel couchet liso 115 gramas.



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