Imagens do Brasil

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O Centro Cultural Câmara dos Deputados apresenta a exposição

A exposição Imagens do Brasil: Paul Garfunkel, realizada pelo Centro Cultural Câmara dos Deputados, é composta por 40 painéis meticulosamente produzidos pelo designer gráfico e fotógrafo Mauricio Vieira a partir das imagens originais de raríssimos exemplares de dois álbuns, um produzido em 1958 e outro em 1962, de propriedade dos herdeiros de Paul Garfunkeli. Compõem os painéis 40 vinhetas, 20 desenhadas por Garfunkel em 1962 e outras 20 acrescentadas às imagens de 1958, peneiradas nos milhares de desenhos dos cadernos de esboços conservados pela família.

Assim, a exposição é composta por duas séries produzidas por Paul Garfunkel. A primeira é constituída por 20 litografias aquareladas à mão, assinadas e acompanhadas de um comentário do autor. Elas integram o álbum Imagens do Brasil, que rememora as primeiras décadas do artista no país. Karlos Rischbieter resumiu da seguinte maneira esta série, que teve uma tiragem artesanal de 250 exemplares:

“Buscando na memória as etapas de sua vida no Brasil, desde o Massilia (navio que os havia trazido da França, em 1927) passando pelo Rio, por São Paulo e Santos e pelo Paraná, ele fez como que um inventário de suas lembranças. Os textos que escreveu para acompanhar as litografias, de beleza poética inesperada, fazem supor que a poesia era a arte gêmea de sua arte primeira.”ii

A segunda série foi apresentada pelo artista em 1962, em um novo álbum intitulado Novas Imagens do Brasil. Com uma tiragem também de apenas 250 exemplares, a publicação traz impressões das suas viagens pelo Norte e Nordeste do país, feitas em navios, barcos, ônibus e carroças. São 20 serigrafias aquareladas à mão, acompanhadas por um comentário ilustrado do autor. Sobre o trabalho com serigrafia, Adalice Araújo destaca que Paul Garfunkel foi “um dos pioneiros no uso dessa modalidade no Paraná”iii.

Além do enorme valor artístico, há uma grande importância documental nas imagens e textos de Garfunkel, por retratarem momentos únicos de nossa geografia humana e cultural. Aliás, foi essa a razão de Garfunkel ter sido chamado de “Debret do século XX” por críticos do porte de Pietro Maria Bardiiv que, pouco tempo após examinar pela primeira vez, em 1983, os dois álbuns apesentados nesta mostra, organizou uma exposição de Paul Garfunkel no MASP. Sobre os álbuns, Bardi ressalta que são

“Um conjunto de trabalhos a ser definido patrimônio sem precedentes de anotações em que se notam, além da bravura excepcional do traço, a com-

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preensão e o amor que conseguiu representar. [...] Quanto amor transparece no vagar pela inquieta imensidão da Terra, colhendo na natureza e entre os muros o pitoresco de um baile popular, de um curral de gado, um carregamento de café, saídas de navios, festas, passeios depois da missa e tantos outros episódios.”v

Ao apresentar estas reproduções cuidadosamente preparadas, acompanhadas dos textos de Paul Garfunkel, divulgamos uma obra que, décadas mais tarde, tornou-se ainda mais importante em termos documentais e artísticos, ao tempo que fazemos um convite à exploração desse incrível “patrimônio sem precedentes”.

Luca Rischbieter

iOs dois álbuns foram publicados em conjunto, em 2014, no livro “Paul Garfunkel – Imagens do Brasil” (Ed. Id Cultural). iiKarlos Rischbieter. Paul Garfunkel: um francês no Brasil. Curitiba: Posigraf, 1992, p.22, 23.

iiiAdalice Araújo, “Dez anos sem Paul Garfunkel”, em: Gazeta do Povo, Curitiba, 17 fev . 1991.

ivBardi (1900-1999), foi o criador do Museu de Arte de São Paulo, MASP, que dirigiu por 45 anos. vBardi, Pietro Maria. “Um paisagista em Curitiba”, em: Revista Senhor no 125, 10 ago 1983, São Paulo, p.71.

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PAUL GARFUNKEL

Paul Garfunkel nasceu em Fontainebleau, perto de Paris, em 9 de maio de 1900, e faleceu em Curitiba, no sul do Brasil, em 11 de maio de 1981. Garfunkel chegou ao Brasil em 1927, casado e formado em engenharia por uma das escolas de elite da França, e aqui foi tornando-se pintor.

Filho de um engenheiro ferroviário, começou a frequentar a escola em Amiens, no norte da França em 1906. Em 1919, ingressou no importante École Polytechnique, onde se formou com especialização em engenharia mecânica. Casou-se, em março de 1926, com Hélène Fanny Ginvert (19001982). O casal teve dois filhos: Pierre (1927-1966), que nasceu em Paris, e Françoise Marie (19291989) que já nasceu no Brasil, em São Paulo.

Paul havia chegado a nosso país em 1927, como alto funcionário de uma companhia francesa, a Fichet, Schwartz et Haumont. Três anos mais tarde, ele se envolveria no primeiro de uma série de empreendimentos de pouco sucesso, em parceria com Monteiro Lobato. Nas palavras do jornalista e pesquisador Aramis Millarch (1943-1992):

“Garfunkel ficou amigo de Monteiro Lobato. Juntos chegaram a criar uma firma - a Pamona Tropical - que iria desenvolver um pioneiro projeto de industrialização da banana na baixada santista. A revolução de 1932, entretanto, fez com que o projeto fosse abandonado, e Paul, ligado por amizade a vários professores da Polìtécnìca de São Paulo, acabou participando ativamente daquele movimento chamado de constitucionalista.”i

Ao tomar o partido dos paulistas, na Revolução de 32, Garfunkel acabou perdendo o emprego e o ótimo nível de vida. Para economizar, a família mudou-se para Santos, onde Paul, desempregado, começou a pintar. Nas suas próprias palavras:

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“Para preencher o tempo, ao lembrar-me das sensações originais que tivera oportunidade de provar aos 13 anos – em algumas poucas experiências de pintura (no tempo do colégio, na França) – comecei a pintar... Sou, assim, um autodidata, na medida em que um europeu possa sê-lo, visto que na Europa a visita a museus, o próprio contato diário com monumentos e obras de arte condicionam o nosso subconsciente para uma compreensão mais rápida da arte”.ii

Sua primeira exposição individual – Visões Santistas – aconteceu em 1934.

A busca de trabalho fez com que, em 1936, Paul aceitasse a oferta de um amigo, e fosse de mudança para Marechal Mallet, no interior do Paraná, para cuidar de uma fábrica de palhões (embalagens para exportação de bananas), que logo fecharia as portas. Na décima sexta imagem do primeiro de seus dois álbuns, Paul fala com carinho e ironia sobre esse período em que mergulhou em um outro Brasil, com belas paisagens e pessoas que lembravam a sua Europa:

“É nesse quadro bucólico que eu tentei montar um beneficiamento de linho, só Deus sabe por que. Passei alguns belos anos nesse verdejante faroeste, povoado quase que unicamente por colonos poloneses e ucranianos.”

Mesmo sem grande sucesso em suas empreitadas industriais, Paul permaneceria no Paraná. Nas palavras de sua grande amiga Violeta Franco (1931-2006):

“Encantado com a terra e com a gente do Paraná, resolveu transferir-se definitivamente para lá, e levou para Cruz Machado e Mallet, e posteriormente Araucária e São Mateus, sementes de linho e orientação para seu plantio, implantando as primeiras beneficiadoras de fibra de linho do Estado. Enquanto tentava sucessos empresariais, continuava pintando, ainda como hobby, mas com uma técnica só sua, aprimorada. Sempre despretensiosa.”iii

O período de Garfunkel pelo interior do Paraná só se encerraria na década de 50, com sua instalação definitiva com o resto da família, que já estava em Curitiba desde 1942.

Em Curitiba, Hélène Garfunkel, engenheira de formação como o esposo, se empenhou em reabrir a Aliança Francesa, à qual dedicou, de 1949 a 1982, um enorme e bem-sucedido empenho. O casal – e personagens como o basset Oscar e o Citröen preto do “Dr. Paulo” – tornar-se-ia parte do folclore da cidade e, ao longo de décadas, Hélène, a “Madame Garfunkel”, seria a grande embaixadora da França na cidade e a referência para todos os franceses, inclusive o antropólogo Claude Lévi-Strauss, que vinham ao Sul do país.iv

A primeira exposição individual de impacto de Paul Garfunkel ocorreria em 1947, na Filadélfia (Estados Unidos). Mas somente alguns anos depois, no começo dos anos 1950, com a família já

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morando em Curitiba, é que ele alugaria um atelier e assumiria definitivamente o status de pintor em tempo integral, depois de encerrar as atividades de uma fábrica de beneficiamento de linho na vizinha cidade de Araucária.

Em Curitiba, Garfunkel fez muitas amizades e tornou-se um membro ativo da comunidade artística da cidade, fazendo de seu fascinante atelier um ambiente sempre movimentado. Segundo

Violeta Franco:

“Seu atelier era frequentado não só por pessoas que iam adquirir seus trabalhos, mas também por aqueles que iam vê-lo. E estava ele naquele espaço todos os dias qual um operário que vai, religiosamente, à fábrica pela manhã e à tarde; um hábito de quase trinta anos. Constituiu ali um mundo, o seu mundo. Um mundo mágico de quadros e desenhos que se amontoaram à medida de seus trabalhos, escritos, recordações, mil cartas, pequenas caixas que tinham historias-registros, que no decorrer da vida ia armazenando e que constituíam seu acervo de vivência.”v

Em 1958 e 1962, publicou os dois álbuns de viagens pelo Brasil apresentados nesta exposição.

Foi apenas em 1959 que Paul voltou pela primeira vez à França, trinta e dois anos após sua chegada ao Brasil. Ao longo das décadas seguintes e até sua morte, quando se preparava para retornar mais uma vez, o seu talento voltou-se também para seu país natal e para a Europa.

De 1953 até 1981, expôs todos os anos, com mostras individuais em Curitiba, Rio de Janeiro, Porto Alegre, São Paulo, Recife, Belém, Salvador, Brasília, Belo Horizonte. Também expôs em Antuérpia e, em 1959 e 1963, em Paris. Entre as inúmeras participações coletivas, incluem-se a 1ª edição da Bienal de São Paulo, em 1951, e no MASP, em 1985, a mostra 100 Obras Itaú

Em 1991, foi homenageado em três coletivas realizadas em Curitiba. Em 1992, Karlos Rischbieter (1927-2013) publicou o livro Paul Garfunkel: um francês no Brasilvi , um apanhado da vida e da vastíssima obra de Paul. Em 2005, com curadoria de Tânia Zaruch, uma amostra individual foi organizada em Curitiba, na sala de exposições do CRM – PR. Em 2008, um grande trabalho de curadoria do pintor Armando Merege revelou, pela primeira vez, desenhos inéditos, selecionados na plêiade de cadernos de esboços em que Garfunkel rabiscava, e apresentados em oito grandes banners expostos no Palacete do Leões, na sede do BRDE, em Curitiba. Em 2009, o MON de Curitiba organizou a exposição Garfunkel, um francês do Paranávii, uma grande mostra individual, organizada a partir da exploração do acervo de óleos, aquarelas e de desenhos da família de Paul.

A exposição de 2009 foi um marco importante no processo de redescoberta da obra deste francês que se tornou um grande cronista do Brasil, e que explicava de forma simples sua paixão por rabiscar e colorir, e sua concepção de arte:

“Ora, vivo de olhos abertos para o mundo exterior, procurando notar

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como que flagrantes de tudo que desperta em mim uma emoção sensorial: formas, movimentos, cores. Para tal fim, não existe coisa melhor que o caderno de croquis e a caixinha de aquarelas.”viii

“Não entendo por que se criam tantos tabus em relação à arte. Ela é em essencial tão simples! Está nas ruas, na gente que passa; é apenas uma questão de sensibilidade, de transmissão de sentimentos, de diálogo de amor.”ix

Em 1958, 31 anos após a chegada do casal Garfunkel ao porto de Santos, Paul descreveria seu fascínio pelo Brasil, no último dos vinte textos de seu primeiro álbum de imagens:

“Mas o Brasil nos agarrou e nos segurou, estranho e belo país, irritante e envolvente como uma insuportável amante demasiadamente amada.”

Vivendo em Curitiba as últimas décadas de sua vida, Paul Garfunkel exerceu seu ofício até o dia de sua morte, em 11 de maio de 1981, desenhando e pintando, principalmente, o país pelo qual sentia um fascínio irresistível.

Millarch, Aramis. Revista Fatos e Fotos. Rio de Janeiro, nov. 1976.

iiRischbieter, Karlos. Paul Garfunkel, um francês no Brasil. Curitiba: Posigraf, 1992, p. 106.

iiiFranco, Violeta. “Paul Garfunkel”. Texto para catálogo da exposição Paul Garfunkel (1900-1981). São Paulo: MASP, 1983.

ivSobre Hélène Garfunkel, pode-se consultar: Memória de vida: Hélène Garfunkel. Boletim Informativo da Casa Romário Martins. Curitiba: Fundação Cultural de Curitiba v.9, no67, ago 1982.

vVioleta Franco – “Meu Amigo Paul Garfunkel”, em: Coviello, João. Uma Cartografia Afetiva: o Desenho de Paul Garfunkel. Curitiba, 1999, Monografia (Pós-graduação em História da Arte), PUC-PR, p 63.

viReferenciado na nota 2, acima.

viiGarfunkel, um francês do Paraná. Catálogo. Curitiba: Museu Oscar Niemeyer, 2009.

viiiPaul Garfunkel. Entrevista à coluna de Quirino da Silva, Diário da Noite, São Paulo, 17 out. 1966. ixPaul Garfunkel. Entrevista ao jornal Diário do Paraná, Curitiba, novembro de 1970.

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SÉRIE IMAGENS DO BRASIL

20 litografias aquareladas à mão 1958

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O Átrio da Glória.

Rio de Janeiro/RJ

Litografia aquarelada à mão

30, 3 x 22,6 cm

1958

Uma bela manhã de domingo. O padre S... acaba de terminar a missa. De batina branca ele conversa com os seus paroquianos na frente da igreja e é como um pedacinho de terra do nosso país, esse átrio da Glória, incrustado em uma sublime paisagem ensolarada do Brasil; de um lado a baía do Rio com o aeroporto Santos Dumont onde os aviões brilham no solo, feito imensos peixes voadores; de outro, a colina de Santa Teresa, com suas casas e seus jardins pendurados ao longo das encostas. Lá de baixo sobe o burburinho da feira do Russel. O dia está lindo. As cigarras cantam nas velhas figueiras.

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A Feira do Russel

Rio de Janeiro/RJ

Litografia aquarelada à mão

30,7 x 23,7 cm

1958

Domingo de manhã, é a Feira do Russel. As barraquinhas de lingerie, de confecções baratas apóiam-se no muro do velho casarão, e roupas de trabalho, camisas, conjuntos rosas e azuis balançam suavemente na brisa ainda fresca nessa hora. Grandes figueiras com folhagens luminosas entapetam o rochedo atrás da casa, elevando seus galhos até a Glória, cujo campanário domina a cena.

Do outro lado da rua, os vendedores de peixe protegem suas bancadas à sombra das grandes árvores da praça, depois vêm as barracas de legumes, de flores, de frutas, de especiarias, de quinquilharias, imensa feira multicolor e barulhenta onde convivem donas de casa de todas as nacionalidades e de todas as cores.

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Os namorados da Praça da República

Rio de Janeiro/RJ

Litografia aquarelada à mão

31,1 x 23,5 cm

1958

São os namorados do jardim da Praça da República. Indiferentes às belas árvores centenárias, às velhas estátuas cobertas pela pátina do tempo, às cutias que atravessam as trilhas, troteando sobre suas patinhas engraçadas em forma de acento circunflexo, eles trocam palavras banais mas eternas que são as mesmas em todas as latitudes.

Passeantes solitários perambulam em busca de uma efêmera companheira.

Logo, soarão as seis horas. A noite tropical cairá repentinamente e se verá, por todo o jardim, a marcha apressada dos trabalhadores em enxames que se desprendem dos degraus dos bondes para irem refazer-se e pendurar-se nos trens elétricos de subúrbio.

Os namorados desaparecem na noite.

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Rio de Janeiro/RJ

Litografia aquarelada à mão

29,0 x 19,5 cm

1958

Ela vem realmente de Salvador, da Bahia de Todos os Santos? Sem dúvida ela simplesmente nasceu em uma favela da Penha. Pouco importa. É a Baiana do Rio.

Apoiada no muro, ela reina, esparramada em suas carnes escuras, atrás de sua bancada envidraçada. Como uma impassível estátua de ébano, ela vê desfilarem os passantes cariocas.

Ao seu lado, um pequeno fogão a carvão vegetal feito de um velho latão de querosene no qual, de vez em quando, renunciando à sua pose sacerdotal, ela aquece misteriosos alimentos.

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Santa Tereza

Rio de Janeiro/RJ

Litografia aquarelada à mão

31,1 x 23,7 cm

1958

Você acaba de atravessar o Largo da Carioca, escapando por pouco dos ônibus rugidores que, como monstros cegos, se precipitavam sobre você. Ainda tremendo e guardando a lembrança de seu hálito pestilento, você se acomoda, com um suspiro de alívio, no vagão de um velho bonde que deve ter certamente mais de meio século.

O condutor dá o sinal de partida, e eis você levado, transportado, sacolejando e balançando. Em um instante você domina o Rio. O bonde cruza o viaduto que passa por cima da rua da Lapa. Os telhados da cidade se oferecem ao seu olhar. A humanidade suando e efervescendo se agita sob seus pés.

Relaxado e refrescado por uma leve brisa que vem da baía onde o mar cintila tendo ao fundo montanhas enevoadas, você se volta para seus companheiros de viagem. Um velho

casal claramente britânico avizinhado de uma majestosa negra. Jovens esportivos lado a lado com damas de cabelos brancos vestidas muito estritamente. Aguce a audição, fala-se alemão, francês, inglês, italiano, e até português...

O bonde sobe pela ladeira. A barulheira do Rio vai diminuindo. O ar é mais leve. Passamos entre velhas casas baixas e soberbos palácios escondidos no meio de um verde exuberante. O bonde acorda com seus rangidos as pequenas ruas provincianas.

Você está em Santa Teresa.

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São Paulo, cidade desumana

São Paulo/SP

Litografia aquarelada à mão

28,1 x 21,7 cm.

1958

São Paulo, cidade desumana, Eterno canteiro de obras, formigueiro, Cidade que desce e sobe

Cidade sem rio onde os viadutos

Passam por cima das casas e das avenidas, Cidade de demolidores, cidade de construtores

Onde os arranha-céus esmagam

Pequenas igrejas comoventes, Cidade onde as casas são velhas com vinte anos, Cidade dos anúncios de néon.

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São Paulo dos bondes estridentes

São Paulo/SP

Litografia aquarelada à mão

29,5 x 21,5 cm

1958

E cidade das filas de ônibus

Cidade dos ônibus malcheirosos, enfumaçados, Cidade dos bondes estridentes

Onde se penduram as pessoas pobres, Cidade que brinca de ser americana

E que brinca também de ser Paris,

E que tem sua bienal como Veneza

E seu festival de cinema como Cannes, Cidade orgulhosa dos paulistas de quatrocentos anos.

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Carregamento de Café

Santos/SP

Litografia aquarelada à mão

19,3 x 22,4 cm

1958

Santos, é o café. Os antigos edifícios da época colonial transbordam de sacas de café, os depósitos estão cheios de café e respiramos em todos os lugares esse cheiro de café verde, cheiro de poeira das terras vermelhas das fazendas, cheiro das sacas, cheiro quente. É o cheiro de Santos, contaminado agora pela fumaça dos caminhões a diesel.

Quando morávamos em Santos, há mais de vinte anos, ainda era em carroças que transportávamos o café, pequenas carroças de duas rodas puxadas por um burro, ou outras de quatro rodas com dupla atrelagem. Assim que um navio chegava ao porto, era uma alegre procissão dessas charretes, pintadas de cores vivas, que, a largos trotes, se dirigiam para os cais, acompanhadas pela fanfarra dos guizos e do estalido dos chicotes que agitavam os condutores, sólidos portugueses bigodudos, cobertos por enormes chapéus de palha e cingidos com aventais de juta. Rédeas na mão, pernas afastadas, eles se mantinham de pé à frente das charretes, eretos e orgulhosos como condutores de bigas romanas.

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Ao longo do cais

Santos/SP

Litografia aquarelada à mão

20,4 x 28,5 cm

1958

Eu gostava de passear ao longo do cais nas horas quentes. Os cargueiros tinham nomes exóticos ou familiares. Eles balançavam na marola do canal enquanto os marujos, inclinados na amurada, me lançavam um olhar indiferente.

Às vezes eu subia a bordo, inspirando deliciosamente o cheiro do navio: óleo quente das máquinas, restos de cozinha, desinfetante, um coquetel mais inebriante que qualquer álcool do mundo. Eu imaginava fugas impossíveis para horizontes longínquos.

Mas logo, o mugido do apito arrancava-me dos meus sonhos. Era preciso descer à terra. Então, acomodando-me em uma caixa coberta de inscrições mágicas, eu ficava olhando a agitação dos homens da tripulação. Os cabrestantes rangiam. Largavam-se as amarras que estalavam ao bater na água. Lentamente o navio se afastava do cais, enquanto as gaivotas e os corvos-marinhos deslizavam entre um emaranhado de cordas.

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Os ipês de Curitiba

Curitiba/PR

Litografia aquarelada à mão

30,3 x 22,8 cm

1958

Diz-se que quando os ipês florescem, é que o inverno acabou. Os ipês sabem bem mais do que os meteorologistas.

Neste país onde nada acontece como no nosso, as flores desabrocham antes que germinem as folhas. O rendilhado dos galhos ressecados acorda em uma bela manhã carregado de cachos de sininhos dourados, alegre encantamento ao sol da primavera.

Que caia um aguaceiro de setembro, ou sopre uma grande rajada, e não são mais apenas as árvores, mas também os gramados e as calçadas que se vestem com um manto de luz.

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O bebedouro

Curitiba/PR Litografia aquarelada à mão

31,1 x 22,2 cm

1958

Quando eu vim morar em Curitiba, ainda havia três ou quatro bebedouros municipais. Um deles desapareceu há poucos anos, vítima do progresso e dos caminhões pesados. Quanto tempo resistirão os outros?

Em torno daquele que anima a Praça da Ordem acontece, o dia todo, um incessante vai e vem. Das ruas que desembocam na pequena praça provinciana surgem as leves carrocinhas dos leiteiros, dos padeiros, dos “caroceiros”, ao trote apressado de seus cavalos.

De manhã, também é o encontro dos fazendeiros das proximidades que vêm vender suas frutas e legumes na cidade. Os animais atrelados avançam sossegadamente como convém aos animais do campo. As camponesas, de descendência polonesa ou italiana, escondem pudicamente suas pernas sob uma coberta ou sob um velho saco.

Por volta das dez horas da manhã, faz-se fila no bebedouro. Os animais lamentam abandonar esse lugar de delícias com o qual sonharão até o dia seguinte.

Na esquina da praça, uma bancada de bananas douradas para nos lembrar que estamos, apesar de tudo, nos trópicos.

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Paranaguá, cidade velha

Paranaguá/PR

Litografia aquarelada à mão

30,4 x 23,2 cm

1958

Velha cidadezinha que cheira um pouco o mofo e a morte. Sobrados arruinados, antigas moradas senhoriais de balcões enferrujados que, agora, abrigam uma barraca de sapateiro, uma oficina de marcenaria, o armazém dos “seccos e molhados” de onde emanam aromas fortíssimos de charque e de bacalhau seco.

Na praça, atrás do mercado de peixes, um velho cavalo pasta calmamente sua ração de capim. Seu dono não tardará em chegar para atrelá-lo à vetusta carrocinha coberta de lona, pois as sombras já descem sobre a cidade e o céu se apaga em uma harmonia de tons violetas e rosas.

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Esperando a maré

Paranaguá/PR

Litografia aquarelada à mão

30,5 x 23,0 cm

1958

Eles chegam ao alvorecer ou pela manhã, segundo a hora da maré, remando com suas canoas ao fio do Nhundiaquara. Ao lado do mercado, eles descarregam alguns cachos de banana prata, de carne branca e acidulada, bananas da terra, que se fritam com açúcar e canela, bananas d’ouro, pequenas e perfumadas, de gosto tão delicado onde encontramos lembranças de maçã, de pêssego e de groselha. Eles descarregam também peixes prateados, às vezes algumas cerâmicas rústicas, feixes de lenha, peles mal curtidas.

As mulheres que, para virem à cidade, colocaram seu vestido mais brilhante, vão às compras: fios, agulhas, rolos de tecido, um saco de sal, uma enxada para o pequeno jardim. Os homens, agachados, conversam na beira do cais, falam sobre sua pesca, evocam as histórias de caça à onça ou à jaguatirica, amplificadas e embelezadas pelo tempo que passou.

A maré baixa deixou os barcos em um leito de lodo escuro e malcheiroso. Na hora em que a subida das águas os acordarem, os caiçaras embarcarão sossegadamente rumo às suas choupanas de barro e de bambu, indiferentes aos mísseis e aos satélites artificiais.

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Noturno

Paranaguá/PR

Litografia aquarelada à mão

28,4 x 20,2 cm

1958

Noite quente de Paranaguá. O bar da esquina ilumina violentamente “a rua” de onde brotam os gritos dos aparelhos de rádio misturados aos risos das mulheres e dos marujos em festa.

De vez em quando, essas damas vêm tomar ar na calçada, brancas, negras e mulatas, pouco vestidas e escandalosamente maquiadas.

Durante o dia elas vivem na rua; inocentes como alunas de internato, elas jogam bola ou peteca com as crianças do bairro.

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Acampamento na beira do Iguaçu

União da Vitória/PR

Litografia aquarelada à mão

29,0 x 20,1 cm

1958

Atravessamos o Iguaçu com a balsa que liga suas margens, quinhentos metros a montante das corredeiras. Os homens desatrelaram seus cavalos, encheram os cochos pendurados nos lados das carroças. Tiramos água do rio.

Agora é a hora de descanso para os cocheiros. Acocorados em torno de um fogo de acampamento, eles passam a garrafa de cachaça de mão em mão enquanto esperam que a água comece a ferver. Começam então os ritos do chimarrão, enquanto desfilam lembranças ainda frescas da estada em União da Vitória. Logo, após um lanche frugal de salsichão e pão preto, os “caroceiros“ dormirão sob a lona resinosa de suas carroças, entre sacos de farinha, de açúcar, de sal, de rolos de algodão, de caixas de quinquilharia, carregamento do retorno que substituiu os grãos, os ovos, as caixas de aves, as peles de animal não completamente secas, os rolos de linho bruto que foram descarregados ontem na cidade.

Frequentemente eu fazia parte da viagem. Eu saboreava um charme rude em compartilhar a vida desses rapazes com nomes eslavos, em rodar pela estrada de Cruz Machado, me agarrando aos assentos desses veículos primitivos que evocavam inevitavelmente em mim o Miguel Strogoff da minha infância.

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Faroeste do Paraná

Cruz Machado/PR

Litografia aquarelada à mão

30,5 x 22,5 cm

1958

Dizemos... o Brasil... e imaginamos impenetráveis florestas tropicais, praias de areia lisa rodeadas de coqueiros, plantações onde as canas de açúcar erguem-se como enormes juncos; e evocamos as planícies pantanosas enfeitadas com o tenro verde das bananeiras, as fazendas com cafezais alinhados a perder de vista, pensamos nas grandes extensões gramadas no sul onde pastam inumeráveis rebanhos.

Mas o Brasil também é essa paisagem que poderia ser européia, uma depressão circulada por velhas montanhas gastas e com formas arredondadas, um pequeno vale arborizado, um riacho de águas claras onde podemos pescar lagostim.

É nesse quadro bucólico que eu tentei montar um beneficiamento de linho, só Deus sabe por que. Passei alguns belos anos nesse verdejante faroeste, povoado quase que unicamente por colonos poloneses e ucranianos. De vez em quando eu voltava para o mundo, mergulhando de novo no barulho e na fumaça das cidades...

Os feixes de palha macerada secam no campo e deve ser onze horas, pois minhas operárias vão indo almoçar. Algumas delas eram bem bonitas.

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O correio de Cruz Machado Cruz Machado/PR Litografia aquarelada à mão

30,0 x 18,5 cm

1958

Essa pesada carroça coberta de lona atrelada a quatro cavalos era o correio de Cruz Machado. Ele fazia uma viagem por semana, partindo na segunda-feira de manhã para voltar somente na sexta-feira de noite.

Como esperávamos sua chegada com impaciência! Já na hora do jantar, começávamos a aguçar os ouvidos, procurando distinguir - entre os ruídos do dia que terminava, latidos de cachorro de uma fazenda distante, conversas de bêbados retidos diante do botequim, cacarejar de galinhas entrando em seu poleiro, agitação na cozinha - o tilintar dos guizos e o estalar de chicote que, assim que o colo era transposto, explodiam na noite que caía como os últimos acordes em fanfarra de uma sinfonia campestre.

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Loucuras de Carnaval

Santos/SP

Litografia aquarelada à mão

20,6 x 21,7 cm

1958

E o carnaval? Doença contagiosa. Apesar disso, eu escapei dela no primeiro ano de nossa vida brasileira. Eu olhava sem compreender, surpreso e com certo ar superior, essas pessoas que se requebravam em cadência, repetindo incansavelmente os mesmos agitados refrãos.

Mas no ano seguinte, um amigo nos levou quase à força em seu carro aberto. Nesses tempos distantes, no Brasil, só havia automóveis sem capota, por causa do Corso de Carnaval. E eis-nos embarcados no Corso.

Não sei se a incubação durou alguns minutos ou algumas horas, mas me lembro que voltamos bem tarde para casa, cantarolando a canção da moda daquele ano, um pouco embriagados por ter respirado o ar carregado de éter dos lança-perfumes e os braços cansados por ter jogado, por horas a fio, serpentina e confete nas beldades morenas e

loiras, mocinhas florescidas sobre as capotas dos carros que nos rodeavam.

E eu me surpreendi a esperar impacientemente pela chegada do dia seguinte para poder entrar novamente na folia. Fui pego pelo micróbio do Carnaval.

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Baile do Clube 13 de Maio

Santos/SP

Litografia aquarelada à mão

28,5 x 21,4 cm

1958

Em Santos, uma noite de carnaval. Das janelas de uma dessas antigas casas coloniais que rodeiam a praça José Bonifácio emanam, como se do coração da África, os ritmos furiosos do tam-tam. Era o baile da Sociedade 13 de Maio.

Seguindo os passos de duas esplêndidas baianas, avanço pela escadaria, mas dou de frente, na entrada, com um janízaro de sentinela. Os brancos não entravam aqui.

Eu insisti, eu implorei tanto, que, graças a muita subserviência, eu consegui dobrar o rigor da regra. Eu não faria escândalo, ficaria bem comportado atrás da balaustrada que separava o salão do baile, desenharia apenas alguns croquis e partiria assim que acabasse. Autorizaram-me então a ficar, não sem antes pagar a entrada, dois mil réis. Acreditem se quiserem, mas naquela noite, essa módica quantia pesava no meu orçamento.

Mas que espetáculo! Para esses negros que, durante o ano todo, penavam em duros trabalhos, carregadores, lavadeiras, estivadores, cozinheiras, essa noite de carnaval era como uma festa religiosa da qual, vestidos por algumas horas com suntuosos farrapos, eles participavam, revivendo inconscientemente em suas danças os ritos ancestrais do continente africano.

30

Adeus ao Massília

Santos/SP

Litografia aquarelada à mão

23,2 x 15,3 cm

1958

O Massília vai partir. As passarelas foram retiradas. O apito mugiu três vezes. O rebocador passou seus cabos. Debruçados sobre a amurada, os passageiros lançam um último olhar sobre os telhados de uma Santos oprimida por uma pesada bruma de noroeste. Lenços se agitam. Os cabos se esticam. A popa afasta-se do cais.

O navio vira sua proa para a saída do canal, logo o rebocador vai abandoná-lo. Santos se apaga na névoa quente que esconde as montanhas escarpadas da Serra do Mar, atrás da qual São Paulo estende seus tentáculos.

Adeus, Massília, que nos trouxe ao Brasil já faz trinta anos... Estávamos cheios de ilusões e tínhamos lindos sonhos para o futuro. O Massília não existe mais, nossas ilusões estão mortas.

Mas o Brasil nos agarrou e nos segurou, estranho e belo país, irritante e envolvente como uma insuportável amante demasiadamente amada.

31
32

SÉRIE NOVAS IMAGENS DO BRASIL

20 serigrafias aquareladas à mão 1962

33

Recife pousada sobre as águas

Recife/PE

Serigrafia aquarelada à mão

27,4 x 19,8 cm

1962

No verde mar de um verde veronese, e no Capibaribe e no Beberibe cor de lodo, mas que ao amanhecer, quando as águas ainda mal despertas correm preguiçosamente, transformam-se em espelho sem falha, no qual se miram o velho teatro cor de rosa, as palmeiras e as pontes, as pontes de cimento e as pontes metálicas, os campanários e os telhados do velho Recife; no Capibaribe e no Beberibe onde também se miram os arranha-céus de cem olhos, aos quais perdoamos a feiura quando, à noite, suas massas confundidas com a escuridão não são mais que invisíveis colunas erguendo para o céu os anúncios luminosos de cores incessantemente cambiantes, cujos reflexos ondeantes à brisa noturna nos dão um espetáculo feérico, do qual a custo nos separamos quando um aguaceiro vem interromper nosso encantamento.

34

Pelas ruas de Recife

Recife/PE

Serigrafia aquarelada à mão

24,0 x 34,0 cm

1962

A vida da cidade se passa nas ruas, como acontece sempre nas terras ensolaradas. Nem um palmo de calçada, e por vezes do leito das ruas da velha cidade que não esteja apinhado de gente simples.

Espalhadas por terra ou sobre frágeis bancas, penduradas nas paredes das igrejas ou oferecidas em tabuleiros suspensos ao pescoço dos camelôs, encontramos ao passear todos os objetos e adornos necessários aos mais diversos fins. Há a rua dos couros, a rua das roupas feitas, a rua das rendas e a das roupas de baixo, o bairro (já ia chamá-lo de souk) do ferro velho, o canto das mercearias, e, por toda a parte, balas, perfumes baratos, bugigangas de matéria plástica. Há até (eu vi apenas um) um vendedor de guarda-chuvas de segunda mão!

Se a fome aperta, o aroma apetitoso das espigas de milho

assadas nos atrai. Sentimos sede? Há laranjas e abacaxis à vontade.

E se procuramos coisas mais típicas, paramos diante de um monte de cocos; com três golpes de peixeira, o coco é decapitado, e podemos saborear o leite adocicado nessa taça natural.

Do alto das pontes, os pescadores de caranguejos lançam suas redes com iscas de sobras de carne podre. Ao longo do cais do Capibaribe, perambula uma legião de pequenos engraxates. Mas há também, infelizmente, muitos pobres sem abrigo. Vemo-los, à noite, dormindo sob o céu estrelado, que nem sempre é tão belo quanto o cantam os poetas!

35

As lavadeiras

Recife/PE

Serigrafia aquarelada à mão

28,5 x 22,0 cm

1962

Um regato, uma poça, um fio d’água escondido sob a relva, e surgem as lavadeiras! Encarapitadas em cima de uma pedra no meio do riacho ou acocoradas à beira d’água na grama úmida, lá estão elas o dia inteiro, ensaboando, esfregando, enxaguando a roupa que logo ficará seca e alva sob o ardente sol pernambucano.

36

Olinda à sombra das palmeiras

Olinda/PE

Serigrafia aquarelada à mão

27,7 x 22,2 cm

1962

Pequenas ruas provincianas e silenciosas sobem ziguezagueando o flanco da colina, onde igrejas e conventos erguem seus campanários de estilo barroco por entre as palmeiras ondulantes; enquanto o mar, um mar incrivelmente verde devora implacável a praia onde dormem as jangadas, zombando da ilusória proteção que são as muretinhas de pedras levantadas às pressas pelo homem.

37

Ao longo das praias

Recife/PE

Serigrafia aquarelada à mão

28,1 x 22,9 cm

1962

A duas léguas de Recife, agitada e barulhenta, passando por Olinda, capital decaída, majestosa e serena relíquia do passado, penetramos numa interminável floresta de coqueiros que margeia a praia de areias brancas. As palmas laceradas fremem e sussurram ao menor sopro de vento. Peneirando a luz brutal do dia, trançam e destrançam suas finas lâminas. Encantados, ficamos imersos numa penumbra verde-dourada, embalados pelo murmúrio da folhagem e do mar que, sem cessar, vem descansar a alguns passos dali.

Morando em palhoças de taipa cujo único luxo são algumas redes, famílias de pescadores vivem ali na simplicidade e na paz edênica da aurora do mundo.

38

Caruaru

Caruaru/PE

Serigrafia aquarelada à mão

28,0 x 22,7 cm

1962

Cercada de montanhas, no centro de uma região de aparência desértica, onde cercas de baraúna, de ramagens semelhantes a longas lagartas verdes, separam campos brenhosos e prados crestados pela seca, Caruaru, cidade do interior de Pernambuco, desperta aos sábados, depois de uma semana de sonolento torpor. Como em todas as cidades e vilas, sábado é dia de feira. Desde a véspera, as ruas centrais e a avenida principal plantada de flamboyants cobriram-se de barracas. Dos campos inabitados, saídos não se sabe de onde, homens, mulheres, crianças acorrem à cidade, precedidos do inevitável e carregado burrico cinzento. Carros de bois, caminhões, cavalos de montaria e de carga se aglomeram nas proximidades do centro.

Como num conto das “Mil e Uma Noites”, dir-se-ia que a varinha mágica de um gênio fez surgir do nada essa multidão e essa abundância de bens; montanhas de frutas, carne verde e charque, utensílios, farinhas e cereais, cestos, arreios, chapéus e sapatos, cordas de sisal e cordas de fumo de perfume violento, móveis, aves e laticínios, e também, o que é muito natural vindo de um gênio, tudo o que é preciso para fazer ou conjurar feitiço ou para conquistar o coração da bem-amada.

39

Burrinhos e carros de Boi

São Bento do Una/PE

Serigrafia aquarelada à mão

28,7 x 21,5 cm

1962

Bravos burrinhos cinzentos! Por que não erigiram ainda um monumento a esses humildes servidores do Brasil? Que seja em Pernambuco ou na Bahia, em Fortaleza ou em João Pessoa, vemo-los andar a passos miúdos e apressados, conformados e incansáveis, ou melhor, adivinhamo-los muitas vezes, sumidos por baixo da carga da cana, de cestos de frutas ou de mandioca, de enormes folhas de palmeira destinadas a cobrir o telhado de alguma choupana... e por vezes, pavoneando-se por cima de tudo aquilo, o dono do burrico...

Vemo-los ao longo das estradas e ouvimos o rugido agudo dos carros de boi, de rodas maciças de madeira, pacíficos veículos pesados de um mundo onde o tempo ainda não assumiu um valor essencial.

40

Xangô

Recife/PE

Serigrafia aquarelada à mão

29,6 x 22,7 cm

1962

Guiadas pelas velhas oficiantes, guardiãs dos ritos e do cerimonial, atentas às ordens do Pai de Santo, as noviças gingam em cadência, cantando suas misteriosas melopeias ritmadas aos toques dos tambores que tangem mãos de alucinante agilidade.

Na qualidade de nobre estrangeiro, fizeram-me sentar no recinto reservado. Senti que alguém me empurrava com uma insistência descabida. Irritado, volto-me... e descubro, amarrado ao pé de uma mesa, um soberbo bode branco. Ignorante ainda da sorte funesta que o espera, cutuca-me em cadência também, com chifradinhas amistosas.

41

Brasil dos Poetas

Fortaleza/CE

Serigrafia aquarelada à mão

29,6 x 22,7 cm

1962

Fortaleza sob os ventos alísios. Areias brancas, coqueiros descabelados, luz indizível cuja presença transfigura tudo, até os tristes mocambos!

Não é de espantar que os cearenses sejam todos poetas, nesta terra de ar límpido, onde as moças são tão belas com seus grandes olhos amendoados. Todas as moças do Norte do Brasil são bonitas! Poucas são vistas, infelizmente, na feira de pássaros das manhãs de domingo no jardim público debruçado sobre o mar, ao lado da velha fortaleza com torres de forte de brinquedo...

Do alto da torre de São Francisco, joia do estilo barroco, a vista se perde no infinito da planície do Paraíba e de seus canaviais.

Um garoto de uns doze anos me havia aberto a porta da igreja e serviu-me de cicerone. Logo me confessou que ele também era poeta; a ele eram encomendados versos para todos os acontecimentos importantes da vida: aniversários, festas de sociedade, casamentos...

Ainda sinto remorsos por não ter-lhe pedido que me mostrasse seu caderninho de poesias, que tanta vontade ele tinha de me exibir. Perdoa-me, pequeno poeta de João Pessoa, minha impensada e involuntária crueldade!

42

Há trezentos anos

São Luiz/MA

Serigrafia aquarelada à mão

29,0 x 22,7 cm

1962

Há trezentos anos, Monsieur de la Revardière desembarcou com seus companheiros em uma ilha do litoral brasileiro, na embocadura do Maranhão. Alguns anos mais tarde para lá voltou e fundou a cidade de São Luiz. Ao cabo de dois anos, foram expulsos os franceses. No entanto, não há habitante de São Luiz do Maranhão que não se orgulhe das origens de sua cidade.

Sob um céu equatorial, o rio Maranhão se estende como um espelho metálico. Veleiros, de velas marrons ou azuis, deslizam silenciosamente em direção ao pequeno porto encaixado entre os armazéns e as velhas mansões revestidas de azulejos cerâmicos; e neste cenário do século XVII, onde trabalham estivadores com o corpo preto luzente de suor, fico a imaginar a súbita invasão dos flibusteiros da Ilha de Tartaruga, armados de mosquetes e de sabres...

43

Uma velha e distinta senhora

Belém/PA

Serigrafia aquarelada à mão

30,1 x 22,5 cm

1962

De seu esplendor passado, Belém do Pará (que lindo nome!) conserva uma graça antiquada que nos encanta. Como uma grande dama que, malgrado os reveses da fortuna, houvesse sabido envelhecer com toda a dignidade. O acolhimento afável de suas amplas avenidas, sob a abóboda majestosa das velhas e gigantescas mangueiras de folhagem lanceolada interceptando os raios de um sol tórrido, o encantamento de seus grandes jardins públicos, um tanto descuidados, é verdade, com seus coretos e colunatas postiças pintadas em tons do mais delicado azul celeste, o velho trem de Bragança, de vagões amarelo e vermelho desbotado, e que se vai aos solavancos ao longo da avenida, puxado por uma locomotiva de silhueta antiquada, fazendo tremer à sua passagem os bangalôs saídos, nos parece, diretamente das ilustrações dos romances de Júlio Verne, o mercado São Braz, misto curioso de mercado persa e de Grand Palais, tudo nos delicia.

44

Torres d’água e velhas marquises

Belém/PA

Serigrafia aquarelada à mão

23,5 x 21,4 cm

1962

E há também as torres d´água e as velhas marquises, no estilo 1900 mais puro. Aquela que avistei, admirado, ao abrir as janelas, no meu primeiro despertar em Belém, parece uma irmã caçula da Torre Eiffel, com seus três reservatórios montados sobre um emaranhado de treliças metálicas, e aquela outra, de dimensões mais modestas, que domina o pátio do mercado, plantada sobre uma coluna de ferro fundido, enchapelada por uma carapuça chinesa e circundada por uma galeria em ferro batido, à qual se chega por uma escada em caracol, pouso ideal para os urubus que espreitam cobiçosos os açougues à volta.

45

Descoberta do Amazonas

Belém/PA

Serigrafia aquarelada à mão

29,4 x 22,0 cm.

1962

Minha primeira impressão ao descobrir o Amazonas, confesso-o, com respeito, foi de assombro: como pode o mar engolir, sem jamais transbordar, essa imensa massa líquida que incessantemente, brutalmente, eternamente, o violenta?

Ao longo do cais de Belém, atapetado de areia clara, as barracas se alinham bem à beira d’água, espaçadas primeiro, depois mais juntas nas proximidades do mercado e da pequena bacia onde abordam os veleiros. Vendedores de frutas e de verduras dormitam sob o céu devorado pela luz... A tacacazeira prepara de manhã até à noite sua estranha iguaria.

Em todos os bairros, em todas as ruas, há uma tacacazeira. Nas praças cercadas de velhas mansões aristocráticas, vemos, à hora do chá, as senhoras da vizinhança fazer fila à espera de sua cuia de tacacá que saboreiam bem quente, sentadas no banco que faz parte integrante do conjunto.

46

Os igarapés do Rio Negro Manaus/AM

Serigrafia aquarelada à mão

29,1 x 24,3 cm

1962

Não contente em acuar Manaus para dentro da floresta amazônica, o Rio Negro introduz seus igarapés no próprio coração da cidade. Suas águas sombrias estendem-se às vezes entre ribanceiras de encostas verdejantes, às vezes se insinuam, quais ruelas aquáticas, por entre velhos muros. O igarapé São José penetra profundamente num anfiteatro de vegetação luxuriante: bananeiras, jaqueiras, mangueiras, cajueiros dominados pela cabeleira ondulante das palmeiras.

Mas, justa retribuição, já que o rio invade a cidade, os homens constroem sobre as águas, e em toda a parte, encarapitados sobre pilotis ou flutuantes sobre troncos de balsa, humildes choupanas de barro cobertas de folhas de palmeiras, pequenas casas de madeira interligadas às vezes por verdadeiras ruas flutuantes, formam uma cidade lacustre do mais extraordinário aspecto. O próprio mercado flutua sobre a margem do rio, e ao largo, postos de gasolina e de óleo diesel, docas e cais do porto flutuam também sobre a água azeitonada do bem denominado Rio Negro.

47

Paisagem da França

Rio Amazonas/AM

Serigrafia aquarelada à mão

29,8 x 22,0 cm

1962

O rio corre tranquilo entre prados férteis. Canaranas aveludadas orlam as margens. Enormes nenúfares flutuam sobre as águas. Vacas de pelo reluzente ruminam à sombra das árvores, e por vezes a brisa nos traz um odor sadio e vigoroso de estábulo e de estrume.

Picardia, Normandia?... Não, nada disso! estamos no Careiro, ou mais exatamente, no Paraná do Careiro, um braço do Amazonas alguns quilômetros à jusante de Manaus. Já viram alguma vez árvores desse porte gigantesco em campos europeus? E não notaram que o gado aqui é mestiço de zebu?

Todos os dias, antes da aurora, uma lancha deixa o cais flutuante de Manaus levando uma carga mista de gente e bagagens.

São os ribeirinhos que voltam para casa depois de ter feito suas compras na cidade: farinha, sal açúcar, algumas peças de chita, remédios... Dentro da noite negra como o rio, a embarcação desfila ao largo das luzes da refinaria de petróleo, tocando ao passar ilhotas à deriva.

Subitamente, além, o oriente se acende num deslumbramento de púrpura e ouro. Praias de nuvens se inflamam às primeiras luzes do dia. O rio negro cintila como imenso tapete de veludo escuro semeado de topázios e rubis. O sol sobe rapidamente no céu. As nuvens de fogo se apagam na glória da manhã. O Solimões, de águas lodacentas, nos alcança. É o surgir do Amazonas que se estende a perder de vista. A lancha se aproxima da margem e penetra em breve num canal onde as águas turbulentas se acalmam. Chegamos ao Careiro.

48

Leite para Manaus

Manaus/AM

Serigrafia aquarelada à mão

27,5 x 21,3 cm

1962

E a apanha do leite se inicia. No porão do barco, cuja escotilha foi retirada, alinham-se enormes recipientes de zinco. Em breve, uma canoa se afasta da margem, o canoeiro remando vigorosamente em direção ao nosso barco que diminui bem pouco sua marcha. A canoa gruda-se a bombordo. Uma lata de leite voa de mão em mão. Sem que se perca uma gota, o jato de leite corre para o botijão. A lata vazia é jogada na canoa e prosseguimos a viagem até o próximo fornecedor. Quando um recipiente está cheio, introduzem-lhe um bloco de gelo contido num forro de zinco.

Passageiros embarcam, outros desembarcam, sem maior cerimônia. As duas ou três horas da tarde, chegamos de volta, a Manaus. Terminou o passeio no Amazonas.

49

Salvador, a feiticeira

Salvador/BA

Serigrafia aquarelada à mão

26,5 x 22,0 cm

1962

Salvador não é daquelas cidades que se revelam ao primeiro contato. Ela se nega, faz-se de coquete, esconde-se no fundo dos barrancos, foge por um labirinto de ruelas e ladeiras que descem e sobem sem o menor respeito pelas curvas de nível que atravessam em ângulo reto.

Um campanário banhado de sol nos acena de longe e nos guia, mas quando, após ter descido a ladeira e subido a encosta oposta, pensamos tê-lo alcançado, ele zomba de nós, piscando do alto da colina de onde partimos.

50

Salvador, Costa Azul

Salvador/BA

Serigrafia aquarelada à mão

22,3 x 28,4 cm

1962

Quem escreverá uma geografia das analogias? Encontrei em Sologne as paisagens da planície do Iguaçu, e o Morvan evoca os montes do Paraná. Desde o primeiro instante Salvador me fez lembrar de Mônaco. A luminosidade, a cidade alta encarapitada em seu rochedo dominando o pequeno porto onde dormem os barcos e veleiros, os belos jardins com a folhagem exuberante das mangueiras, palmeiras ou jaqueiras, através das quais se avistam, lá embaixo, as enseadas com suas águas cor de esmeralda e de safira... Era a Costa Azul.

51

Ladeiras da Bahia

Salvador/BA

Serigrafia aquarelada à mão

23,6 x 32,5 cm

1962

Esta é a ladeira da Água Brusca. Bem lá embaixo, desemboca no conhecido mercado de Água de Meninos. A origem desse nome estranho tem suscitado interpretações curiosas! Mercado de Água de Meninos! Incrível sinfonia (ou cacofonia) de formas, de cores, de ruídos, de movimentos, e também, meu Deus, de cheiros!...

Ladeiras da Bahia que veem passar animais e gente, burros e burriqueiros, negras e mulatas, jovens e velhos, cestas vazias e cestas abarrotadas, cestas na mão, cestos na cabeça. Ah! o Taboleiro da Bahiana! e as negras e as mulatas, as senhoras e as empregadas, os burros e os burriqueiros, os soldados, os vagabundos, os comerciantes, os marinheiros, todos e todas sobem e descem, sobem e descem, sobem e descem as Ladeiras da Bahia!

52

Homenagem a Jorge Amado

Salvador/BA

Serigrafia aquarelada à mão

24,0 x 31,1 cm

1962

Era uma vez um compatriota nosso que havia lido livros de Jorge Amado: Terras do Sem Fim, Jubiabá e outros (na versão francesa, naturalmente). Aquilo lhe deu vontade de conhecer a Bahia de Todos os Santos. Veio como turista faz alguns anos.

Encontrei-o em Salvador, meses atrás. Tornou-se plantador de cacau na Bahia!

À beira da pequena praia dominada pela Igreja da Conceição da Praia, os saveiros adormecem no crepúsculo, docemente embalados pela maré. Fico a imaginar que um deles é o Paquete Voador e que foi ele que levou Antônio Balduíno em sua fuga para outros céus. E nesse devaneio, parece-me ouvir ao longe, bem ao longe, “uma toada triste que vem do mar”!

53

Visitação de 6 a 27 de novembro de 2019, segunda a sexta, das 9h às 17h

Espaço do Servidor | Anexo II | Câmara dos Deputados

Câmara dos Deputados | Mesa Diretora da Câmara dos Deputados PRESIDENTE Rodrigo Maia (DEM/RJ) | 1º VICEPRESIDENTE Marcos Pereira (PRB/SP) | 2º VICE-PRESIDENTE Luciano Bivar (PSL/PE) | 1ª SECRETÁRIA Soraya Santos (PR/RJ) | 2º SECRETÁRIO Mário Heringer (PDT/MG) | 3º SECRETÁRIO Fábio Faria (PSD/RN) | 4º SECRETÁRIO André Fufuca (PP/MA) | SUPLENTES Rafael Motta (PSB/RN), Geovania de Sá (PSDB/SC), Isnaldo Bulhões Jr. (MDB/AL), Assis Carvalho (PT/PI)

COORDENAÇÃO DO PROJETO Secretaria de Comunicação Social, Centro Cultural Câmara dos Deputados | SECRETÁRIO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL Fabio Schiochet (PSL/SC) | DIRETOR EXECUTIVO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL David Miranda | DIRETORA DO CENTRO CULTURAL Isabel Flecha de Lima | NÚCLEO DE HISTÓRIA, ARTE E CULTURA COORDENAÇÃO Clauder Diniz | PRODUÇÃO Clarissa de Castro | PROJETO GRÁFICO Clara Iwanow | MONTAGEM E MANUTENÇÃO DA EXPOSIÇÃO André Ventorim, Edson Caetano, Paulo Titula, Wendel Fontenele | MATERIAL GRÁFICO Coordenação de Serviços Gráficos - CGRAF/DEAPA | CURADORIA Luca Rischbieter | FOTOGRAFIA Mauricio Vieira

Contato do curador

Luca Rischbieter lucarixi@gmail.com (41) 9 9968-3451

Informações: 0800 619 619 – cultural@camara.leg.br

Palácio do Congresso Nacional – Câmara dos Deputados – Anexo 1 – Sala 1601 – CEP 70160-900 – Brasília/DF

http://www.camara.leg.br/centrocultural Brasília, novembro de 2019.

Este catálogo foi impresso em couché fosco 170g/m² (miolo) e couché fosco 250g/m², com laminação BOPP fosco, frente e verso (capa).

Secretaria de Comunicação Social Centro Cultural

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