ARTECOMPOSTAGEM'21

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ARTECOMPOSTAGEM’21 NÚCLEO DE ESTUDOS SOBRE METODOLOGIAS DE PESQUISA EM ARTES AV:A | INSTITUTO DE ARTES DA UNESP | SÃO PAULO - SP


EXPEDIENTE Coordenação geral Wladimir Mattos

Editores Mariana Pougy Rodrigo Reis Wladimir Mattos

Comitê editorial

Capa, projeto gráfico e diagramação Mariana Pougy

Fotografias Mathias Reis

Apoio Programa de Pós-Graduação em Artes da Unesp

Alda Maria Abreu Antonio Salgado Carminda de Andre Flavia Liberman Flora Holderbaum Henrique Rocha de Souza Lima Marília Muylaert Marília Velardi Marta Catunda Mirian Steinberg Sebastian Wiedemann Susana Oliveira Dias

Revisão e normas técnicas Mariana Pougy Gabriel Joppert

Realização N’Me - Núcleo de Estudos Metodologias de Pesquisa em Artes

sobre

Grupo e Pesquisas AV:A - Auralidade e Vocalidade nas Artes Instituto de Artes da Unesp (campus de São Paulo) Universidade Estadual Paulista


SUMÁRIO 5. Notas introdutórias sobre uma ecologia de práticas Isabelle Stengers

25. Azul profundo como escuta radical Sebastian Wiedemann

39. Literatura e cosmopolítica João Pentagna

51. Investigação Baseada nas Artes acadêmica: alguns apontamentos

e

Autoetnografia

na pesquisa

Marília Velardi; Nathália Bonilha Borzilo

63. A arte orientando a pesquisa: a Investigação Baseada nas Artes como possibilidade metodológica

Renata F. Matsuo; Paulo Maron; Marília Velardi

83. O copo é um processo contínuo de produção de si e de seus mundos: cinco diálogos encarnados para se aproximar do presente

Regina Favre

101. Vozes da Sombra - entoar o corpo voz do mito Gabriela Flores

121. A

ecologia sonora como processo cartográfico: uma prática

ecosófica

Felipe Adam Kurschat

147. Intercessões sonoras/musicais: pílulas de (ex)cuta Marta Catunda

161. Jogo de Arte-Ação Cuidado de Si

como

Proposta Pedagógica Ecosófica

e de

Carla Moreira Graça Mello; Adilson Pereira; Denise Celeste Godoy de Andrade Rodrigues

193. Trajetória em vertigem: Metodologias da Não-Arte Matheus Reis

209. A cidade-casa e suas multiplicidades Tatiane Alves Ribeiro

221. Entre a cidade e as montanhas: os mamilos-da-terra Mirian Steinberg


Notas introdutórias sobre uma ecologia de práticas


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Notas introdutórias sobre uma ecologia de práticas Isabelle Stengers; Sebastian Wiedemann (Trad.) Universidade Livre de Bruxelas | Bélgica Resumo: Tradução do já clássico texto da filosofa belga Isabelle Stengers “Introductory Notes on an Ecology of Practices”, que nos últimos anos tem se apresentando de vital importância para repensar as práticas sensíveis que povoam o campo das artes (mas não só) e que, nos tempos das catástrofes em que vivemos, ganha ainda mais relevância para a instauração de uma cosmopolítica; para ainda seguirmos pensando com as palavras da filosofa.

Abstract: Portuguese translation of the already classic text by Belgian philosopher Isabelle Stengers “Introductory Notes on an Ecology of Practices”, which in recent years has been of vital importance to rethink the sensible practices that populate the field of arts (but not only) and that in catastrophic times we live in, gain even more relevance for the institution of a cosmopolitics; to continue thinking with the words of the philosopher.

Palavras-chave: ferramenta para pensar, chave menor, Dic cur hic, pertencer, diplomacia.

Keywords: tool for thinking, minor key, Dic cur hic, belonging, diplomacy.

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reparadas para um Simpósio do Centro de Pesquisa em Humanidades da Universidade Nacional da Austrália, no início de agosto de 2003, estas notas podem ser consideradas como um comentário sobre a proposição de Brian Massumi de que “uma ecologia política seria uma tecnologia social de pertencimento, assumindo a co-existência e o codevir como o habitat de práticas”.1

A FÍSICA E SEU HABITAT Comecemos com um exemplo não tão simples, pois ele segue o caminho pelo qual eu encontrei esta ideia de ecologia - a de práticas científicas e, mais particularmente, a da física. A física como prática está em extrema necessidade de um novo habitat, uma vez que desde o seu nascimento como a primeira chamada “ciência moderna”, suas reivindicações foram emaranhadas com seu “habitat” histórico. Desde então, porém, as reivindicações sobreviveram, mas não o habitat. Como resultado, a forma como a física se apresenta agora, a forma como ela define a “realidade física”, é por meio de reivindicações teológico-políticas persistentes, mas agora flutuantes, referindo-se à oposição entre o mundo entendido daquele ponto de vista inteligível (que pode estar associada à criação divina) e ao mundo conforme o encontramos e interagimos com ele. Como resultado da definição de “realidade física” como o objetivo e além de nossas ficções meramente humanas, a física reivindica para si uma posição exclusiva de julgamento sobre e contra todas as outras “realidades”, incluindo aquelas de todas as outras ciências. É uma posição da qual os praticantes não sabem sair, mesmo quando desejam. De fato, é uma questão de ‘habitat’; eles sentem que, assim que deixam a posição segura de alegar que “descobrem” a realidade física para além da mudança das aparências, eles ficam indefesos, incapazes de resistir à redução do que estão produzindo a simples receitas instrumentais ou a várias ficções humanas. Eles ficam sujeitos ao mesmo tipo de julgamento redutivo que usam contra todas as outras realidades. 1 Como no folheto introdutório, Brian Massumi continua: “Este simpósio considerará algumas das formas de encontro e mutação que povoam nosso mundo contemporâneo, examinando suas implicações acadêmicas, mas também e especialmente seu significado político para uma ecologia de práticas”. 6


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De fato, foi o que aconteceu, por exemplo, com Henri Poincaré, no final do século XIX. No processo de descompactar a ideia de convenção, ouviuse que ele admitia que as leis físicas eram apenas receitas úteis. Aconteceu novamente com as recentes “guerras da ciência”.2 Os físicos temiam que seu ambiente social pudesse ser suscetível à descrição desconstrutivista e, como eles têm o poder social para equiparar ataques contra a física com ataques contra a própria racionalidade, mobilizaram esse poder e retaliaram, produzindo a alternativa aterrorizante - ou você está conosco e aceita a realidade física da maneira como a apresentamos, ou você está contra nós e é um inimigo da razão. Agora, minha própria reação foi - que terrível desperdício! As práticas desses físicos, como aprendi trabalhando com Ilya Prigogine, podem ser tão apaixonadas, exigentes e inventivas! Eles realmente não precisam se apresentar como associados à autoridade da “realidade física”. Mas os físicos precisam do apoio dessa autoridade, desde que tenham medo de seu meio ambiente e tenham o poder social e histórico de afirmar que duvidar da maneira como se apresentam é equivalente a ficar com o Talvez no lugar da Razão. Mas, desde que afirmações como “a física é uma prática social como qualquer outra” possam ser consideradas viáveis e plausíveis, os físicos estariam certos em ter medo. Seu ambiente é realmente perigoso. Foi assim que produzi o que eu chamaria de meu primeiro passo em direção a uma ecologia de práticas, a exigência de que nenhuma prática seja definida tal qual “como qualquer outra”, assim como nenhuma espécie viva é como outra. Aproximar-se de uma prática significa, então, abordála conforme ela diverge, ou seja, sentir suas fronteiras, experimentando as questões que os praticantes podem aceitar como relevantes, mesmo que não sejam as suas próprias questões, ao invés de colocar questões insultuosas que os levariam a mobilizar e transformar a fronteira em uma defesa contra o seu exterior. Agora, há outro processo em andamento, que pode estar associado ao que Marx chamou de “general intellect”, e que significa a destruição da física como prática. É o que alguns cientistas já temiam no final do século XIX. Como é bem-sabido, começando com Ronald Reagan nos EUA, os cientistas locais se colocaram contra a posição de que deveriam trabalhar diretamente

2 O autor está se referindo ao longo escândalo associado à revista Social Text e à fraude perpetrada nele pelo físico da Universidade de Nova York Alan Sokal em 1996 [editor]. 7


para o desenvolvimento das chamadas forças produtivas, tornando-se cada vez menos respeitados pelos próprios estados que deveriam apoiar sua autonomia. Podendo significar que os cientistas se tornassem apenas parte da chamada “intelectualidade de massa” que os teóricos do Império veem como a força potencial antagônica contra o Capital.3 Do ponto de vista desses teóricos, a destruição pode, portanto, ser identificada como um movimento positivo, assim como a destruição das antigas corporações foi para Marx. Práticas como tais seriam estratificações estáticas que devem ser destruídas para que a multidão possa produzir o seu “comum”.

ECOLOGIA DE PRÁTICAS COMO FERRAMENTA PARA PENSAR O que chamo de ecologia de práticas é uma ferramenta para pensar em meio ao que está acontecendo, e uma ferramenta nunca é neutra. Uma ferramenta pode ser passada de mão em mão, mas cada vez que o gesto de a pegar acontecer, ele será particular - a ferramenta não é um meio geral, definido como adequado para um conjunto de propósitos particulares, incluindo potencialmente aquele da pessoa que o está tomando, e não implica um julgamento da situação como justificativa para seu uso. Tomando emprestadas as palavras de Alfred North Whitehead, eu falaria de uma decisão, mais precisamente uma decisão sem um tomador de decisão que por sua vez está fazendo o tomador. Aqui, o gesto de pegar não se justifica, mas ao mesmo tempo produz e é produzido pela relação de relevância entre a situação e a ferramenta. O hábito de quem usa a ferramenta pode tornar plausível falar em reconhecimento, e não em decisão, como se aquelas situações em que essa ou aquela ferramenta deva ser usada tivessem algo em comum, uma mesmice que justifica o uso da mesma ferramenta. Hábitos e decisões não se opõem, pois nenhuma mesmice preexistente explica ou justifica a mesmice em qualquer um deles. Mas quando lidamos com “ferramentas para pensar”, o hábito deve ser combatido. O que está em jogo aqui é “dar à situação o poder de nos fazer pensar”, sabendo que esse poder é sempre virtual, isto é, deve ser atualizado. As ferramentas relevantes, as ferramentas para pensar, são então aquelas que abordam e atualizam essa potência da situação, que a tornam um assunto de particular preocupação, ou seja, nos fazem pensar e não reconhecer. 3 Michael Hardt e Antonio Negri, Império, Rio de Janeiro, Record: 2006. 8


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Quando lidamos com práticas, o reconhecimento levaria à questão por que devemos levar as práticas a sério, já que sabemos muito bem que elas estão em processo de ser destruídas pelo Capitalismo? Essa é a sua “mesmice”, de fato, a única diferença sendo entre a já destruída e as que ainda estão sobrevivendo. A ecologia de práticas é uma ferramenta não neutra, pois envolve a decisão de nunca aceitar a destruição capitalista como libertando o terreno para qualquer coisa que não seja o próprio Capitalismo. O objetivo não é defender a física ou qualquer outra prática sobrevivente. Muitas já foram destruídas e aquelas que agora estão sobrevivendo não são as cruciais, quaisquer que sejam suas alegações de incorporar a racionalidade, de igualar sua perda à perda da própria alma da humanidade. Mas a forma como se defendem, aceitando e até mesmo justificando a destruição de outras, não é motivo para celebrar tão bem merecido o que eventualmente também lhes acontecerá. Essa seria uma atitude moral, a pura expressão do ressentimento. A questão é resistir a qualquer conceito, qualquer perspectiva que tornasse essas destruições a condição para algo mais importante. É claramente difícil pensar sem referência a um tipo de progresso que justificaria seu passado como um caminho que leva ao nosso presente e futuro. A ecologia das práticas tem essa ambição, e essa é uma das razões pelas quais escolhi uma referência aberta à sabedoria dos naturalistas que aprenderam a pensar na presença de fatos contínuos de destruição sem nada além para justificá-la - que são capazes tanto de sentir que o desaparecimento de qualquer espécie é uma perda irreparável, o que torna nosso mundo mais pobre, quanto de aceitar a perda de tantas espécies. Jamais esses naturalistas concordarão em acolher uma dada perda ao status de algo que era necessário - infelizmente - como uma condição para o futuro progresso da Vida nesta terra. No entanto, também divergimos da sabedoria naturalista, pois nosso presente é algo que não podemos tentar entender independentemente de um diagnóstico que tenha relação com sua possibilidade de transformação. Sempre que nosso presente estiver envolvido, qualquer que seja o entendimento que tenhamos, vem a ser incluído neste presente de qualquer maneira, e isto por sua vez não pode ser separado do entendimento que ele gera. Uma ecologia de práticas não tem nenhuma ambição de descrever práticas “como elas são”; ela resiste à palavra do mestre/senhor de um progresso que justificaria sua destruição. Ela visa à construção de novas “identidades práticas” para as práticas, ou seja, novas possibilidades 9


para que elas estejam presentes, ou em outras palavras, para que elas se conectem. Assim sendo, não se abordam as práticas como elas são -físicas como as conhecemos, por exemplo - mas como elas podem devir. Talvez possamos então falar novamente sobre algum tipo de progresso, mas, como diz Brian Massumi, seria um progresso trazido por uma “tecnologia social de pertencimento”, dirigida às muitas práticas divergentes e seus praticantes como tais, não um progresso ligado a qualquer tipo de Verdade, a qualquer contraste entre o velho “homem de pertencimento” e o “novo homem”, ou o homem moderno.

ESCAPANDO DA “CHAVE MAIOR” Levar a sério a ecologia de práticas como uma ferramenta de pensamento significa que agora temos que diferenciar entre o que podemos pedir à ela e o que não podemos, e também tornar explícito como expõe os praticantes que poderiam utilizar tal ferramenta. Eu proporia que a ecologia de práticas funciona em chave menor, e não em chave maior. Como exemplo de “chave maior”, eu poderia oferecer uma citação do Império: “Precisamos identificar um esquema teórico que coloca a subjetividade dos movimentos sociais no centro do processo de globalização e da constituição da ordem global”.4 Identificando um estágio central e o que o ocupa produz uma visão teórica, cujas implicações certamente compreendo, já que evita a armadilha teórica de identificar o desenvolvimento do Capitalismo como um desenvolvimento Hegeliano do Espírito Absoluto, do qual o Império poderia ser o seu destino final. Entretanto, usando as palavras do Bartleby de Herman Meville, que Gilles Deleuze amava tanto, “eu prefiro não”. Eu prefiro apenas evitar esse estágio central, esta aposta conceitualmente “incontornável”, como dizemos em francês, sem possibilidade de fugir dela, uma aposta definida por uma disjunção “ou/ou”. Agora, para propor um pensamento em chave menor, não é suficiente evitar a chave maior. Se a ecologia de práticas deve ser uma ferramenta de pensamento, ela entenderá que evitar não é a renúncia de qualquer chave maior, acompanhada de algum discurso desconstrutivo sem fim que colocaria a própria renúncia no centro da questão. Se essa fuga for deliberada e construtiva, ela pode criar um cenário prático diferente. 4 Hardt e Negri, p.255.

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Uma ecologia de práticas pode ser um exemplo do que Gilles Deleuze chamou de “pensar pelo meio”, usando o duplo significado francês de meio, tanto o meio como o ambiente ou habitat. “Pelo meio” significaria “sem definições de base ou sem horizonte ideal”. “Com o ambiente” significaria que nenhuma teoria lhe dá o poder de desemaranhar algo de seu ambiente particular, ou seja, ir além do particular para algo que seríamos capazes de reconhecer e compreender, apesar das aparências particulares. Aqui fica clara a razão pela qual a ecologia deve ser sempre eto-ecologia, porque não pode haver ecologia relevante sem uma etologia correlata, e porque não existe uma etologia independente de uma ecologia particular. Não existe uma definição biologicamente fundamentada de um babuíno que autorize não levar em conta a presença ou a ausência de predadores do babuíno no ambiente. E, na definição do que pode ser um macaco, temos até que incluir o tipo de performance de fala que alguns deles são capazes de produzir em ambientes humanos muito específicos. Da mesma forma, eu me aventuraria a dizer que não há identidade de uma prática independente de seu ambiente. Isto enfaticamente não significa que a identidade de uma prática possa ser derivada de seu ambiente. Pensar “pelo meio” não dá poder ao meio ambiente. O trabalho obstinado e a pesquisa dos etólogos para descobrir que tipos de relações com seus macacos seriam as certas para esses macacos aprenderem o que quer que eles aprendam é suficiente para emprestar apoio ao ponto de que a questão não é de poder, mas de envolvimento. Spinoza poderia nos dizer que não sabemos o que uma prática é capaz de devir; o que sabemos ao invés disso é que a própria maneira como definimos ou abordamos uma prática faz parte do ambiente que produz seu ethos. Assim, eu afirmaria que uma importante divergência entre pensar em uma chave maior ou menor pode muito bem dizer respeito à relação entre o pensamento e o que podemos chamar, em cada caso, de ética. A necessidade e o poder de definir um estágio central é obviamente determinado por um projeto político, e também ético. Celebrar o poder criativo da multidão como o próprio recurso que o Capitalismo explora em sua autotransformação não é uma caracterização neutra, mas uma que se destina a participar de sua própria posta em ação. Não há nenhum problema com isso. O problema, para mim, é que tal caracterização leva a identificar a tarefa do pensador como uma tarefa de iluminação, uma iluminação crítica e desconstrutiva visando subverter as linguagens hegemônicas e as estruturas sociais, a fim 11


de libertar o poder constituinte que por direito pertence apenas à multidão. Isso é ética em uma chave maior, pois implica e significa promulgar a grande convergência entre Verdade e Liberdade. Somente a Verdade te tornará livre. Para traçar uma rota de escape dessa chave maior, eu poderia contrastar Benedito de Spinoza e Gottfried Leibniz. Tem sido dito que enquanto Spinoza teve uma concepção otimista do poder da verdade, Leibniz era pessimista; e eu acrescentaria que ele tinha muitas razões para ser pessimista, já que seu tempo era o tempo das guerras religiosas, da matança em nome de Deus e da Verdade. É bem possível que o chamado otimismo de Spinoza seja muito complicado de entender como um exemplo de pensamento em “chave maior”, mesmo que ele tenha vindo a ser uma inspiração para alguns deles. Mas o próprio desconforto que envolve Leibniz, o pensador da diplomacia sobre quem foi dito “Herr Leibniz glaubt nichts”, marca-o como um pensador em “chave menor”. Eu acho que Leibniz teria entendido o “eu prefiro não” de Bartleby - eu prefiro não apelar para a forte droga da Verdade, ou ao poder de denunciar e julgar, de desconstruir e criticar. A forte droga do esclarecimento contra a ilusão.

TECNOLOGIA LEIBNIZIANA Tomemos a afirmação de Leibniz - vivemos no “melhor de todos os mundos possíveis”. Já em seu tempo isso é algo que não poderia ser compreendido por nenhum viciado em Verdade. E é como tal que realmente desempenha o papel de um ponto crítico para Leibniz, não como uma questão de crença, mas como uma experiência a ser testada. Uma crítica “pelo meio”, por assim dizer, é uma crítica em nome de nada mais que o testar que tal afirmação é fabricada para produzir. De fato, você não pode afirmar que nosso mundo é o melhor sem ao mesmo tempo devir, sem ser transformado pela obrigação de sentir e pensar tudo o que essa afirmação implica. Eu diria que o melhor de todos os mundos possíveis é parte de uma tecnologia leibniziana, como Brian Massumi usava o termo, para nos fazer pensar pelo e a favor do mundo, e não contra ele. O contraste entre uma tecnologia e o poder da Verdade é um contraste ético. Com uma tecnologia vem um senso de responsabilidade que a Verdade nos permite escapar. Leibniz escreveu que o único conselho moral geral que ele poderia dar era “Dic cur hic” - diga por que você escolheu 12


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dizer isto, ou fazer isso, nesta ocasião precisa. Tal conselho não implica que você tenha o poder de definir ou a situação ou suas razões. Toda a filosofia leibniziana nega que você pode ter esse poder, pois sua escolha não pode ser separada da escolha divina deste mundo. A questão da responsabilidade é, portanto, divorciada da definição da verdade. Responsabilidade não é uma questão de quem está sendo “verdadeiramente” responsável, é uma questão de preocupação, e, como tal, aberta ao aconselhamento técnico. Quando você estiver prestes a agir, não confie em nenhum princípio geral que lhe daria o direito de agir. Mas reserve um tempo para abrir sua imaginação e considere esta ocasião em particular. Você não é responsável pelo que se seguirá, como você não é responsável pelas limitações de sua imaginação. Sua responsabilidade deve agir numa chave menor, como uma questão de ethos pragmático, mas exigente – pelo o que você é responsável é por prestar atenção o melhor que puder, de ser tão discernente/perspicaz, tão discriminador quanto você puder a respeito da situação particular. Ou seja, você precisa decidir neste caso em particular e não obedecer ao poder de alguma razão mais geral. A ecologia de práticas é leibniziana porque, para abordar as práticas, temos que aceitar o teste crítico de abster-se da poderosa droga da Verdade. De fato, no que diz respeito às práticas, o que vem em primeiro lugar é a diferença eto-ecológica entre uma prática e seu exterior. Em nome da Verdade, é muito fácil identificar essa diferença como uma questão de crença. Os físicos “acreditam” que seus conhecimentos são diferentes. O ponto ético não tem nada a ver com uma tolerância pelas crenças de outras pessoas ou com a perspectiva bem comportada de uma conversa civilizada entre praticantes polidos. O teste ético, por outro lado, pode muito bem começar com a tentativa para considerar os outros como tendo que tolerar você. Mas de qualquer maneira a questão não é a tolerância, nem tampouco a auto-acusação reflexiva. O primeiro ponto a ter em conta com uma ecologia de práticas como ferramenta de pensamento é que qualquer ferramenta sempre se relaciona com uma prática, neste caso a ferramenta se relaciona a uma prática que torna o conselho de Leibniz “Dic cur hic” crucialmente relevante. De fato, a prática da “ecologia de práticas” implica em primeiro lugar que, qualquer que seja sua boa vontade, seus praticantes não irão cruzar a fronteira da prática que aborda, sem uma transformação da intenção e objetivo do direcionamento, o que muitas vezes é chamado de malentendido. E a certeza prática de mal-entendidos é algo que uma ecologia 13


de práticas tem que afirmar sem nostalgia do que seria uma comunicação fiel. De fato, ela recusaria a nostalgia de uma situação em que você poderia tomar o lugar do outro, ou seja, onde as fronteiras podem ser explicadas e despejadas, por exemplo, através do apelo a algo em comum, mais forte do que a divergência que essas fronteiras sinalizam. Tal situação não faz parte de uma ecologia de práticas. Portanto, assim como Leibniz alegou que ninguém pode saber a verdadeira razão pela qual eles agem como agem, o ethos dos pensadores que praticam uma ecologia de práticas deve resistir ao teste de que eles não podem justificar o que propõem nos termos das razões que devem ser aceitas, apesar das fronteiras. No entanto, o que eles sabem é que suas proposições farão parte do meio da prática que lhes diz respeito, e assim intervirá no ethos dos praticantes. Esse é o ponto pragmático crucial, aquele que exige que os pensadores neguem ativamente a proteção de qualquer tipo de razão geral que lhes permita, ou os autorize, a assumir o risco que estão tomando de qualquer forma.

TECNOLOGIA DE PERTENCIMENTO Normalmente, a tecnologia está ligada ao poder, e a tecnologia social significaria poder para manipular, para subjugar; isso é tudo contra o que devemos lutar em nome da liberdade humana ou social. O problema é que quando lidamos com a chamada “tecnologia material”, o contraste entre submissão e liberdade não é muito interessante. Para fazer algo fazer o que você quer, você certamente pode usar a força bruta, como usar dinamite para que uma pedra irritante faça o que você quer, para se desintegrar. Mas para que a dinamite fizesse o que você queria, uma longa linha de químicos teve que aprender como lidar com os compostos químicos em termos do que eles poderiam produzir, e esses químicos tiveram que resistir ativamente à tentação de submeter esses compostos a suas próprias ideias. A simbiose entre ciência e tecnologia, que caracteriza as ciências experimentais, não está alicerçada em alguma definição metodológica comum de seu objeto, como Martin Heidegger teria querido. É, como toda simbiose, uma relação entre dois modos heterogêneos de ser, ambos necessitando um do outro, porque sem o outro nenhum deles seria capaz de atingir seus próprios caminhos e objetivos. Como disse Deleuze, apenas o que diverge comunica, e a comunicação aqui se baseia no fato de que, 14


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por razões divergentes, tanto a ciência experimental quanto a tecnologia precisam abordar as coisas não do ponto de vista de sua apresentação, mas em termos do que pode ser genericamente denominado sua força, o que eles são capazes de fazer em circunstâncias particulares bem definidas. Quando uma afirmação científica é estabilizada, ou quando uma tecnologia funciona, pode muito bem parecer que algum tipo de submissão foi alcançado, mas é uma força que foi desdobrada e redobrada. Comparar essa simbiose tanto com as ciências sociais normais quanto com a tecnologia social é muito interessante. Por um lado, você tem as ciências sociais afirmando que não têm nada a ver com a tecnologia, pois ela é identificada como a dominação. Na verdade, eles lutariam contra as ilusões e a dominação. Mas, por outro lado, você tem algo realmente comum entre eles. Enquanto a ciência e a tecnologia experimentais não podem ter sucesso sem aumentar ou intensificar o que tratam, sem produzir situações em que o que tratam torna-se capaz de fazer o que não poderia fazer nas circunstâncias usuais, as ciências sociais e a tecnologia procedem diminuindo ou rebaixando o que tratam, aumentando a fraqueza, a propensão à submissão. A tecnologia social de pertencimento, visto que lida com pessoas que não são apenas seres sociais, mas também pessoas que pertencem, seria então aquela tecnologia que pode e deve se dirigir às pessoas do ponto de vista do que elas podem se tornar capazes de fazer, pensar e sentir porque elas pertencem. É importante afirmar aqui a diferença entre fazer parte e pertencer. Somos todos seres sociais, partes de uma sociedade, e uma maneira fácil de produzir um rebaixamento objetivo do que sentimos e pensamos é enfatizar que o que reivindicamos como nosso não é nosso, mas nos identifica como parte de nossa sociedade (refiro-me a Pierre Bourdieu, por exemplo). Em forte contraste com isso, não se pertence sem saber que se pertence. Eu uso o termo “obrigação” para caracterizar o que é saber que você pertence. Os praticantes têm obrigações. Nem tudo o que eles podem fazer tem o mesmo valor. Esse é o fato primordial para uma ecologia de práticas, e se você a torna relativa a algo que você pode identificar e relacioná-la a categorias mais gerais, você insulta os praticantes. Em efeito, a obrigação também se comunica com o endividamento. Pelo fato de pertencer, sou capaz de fazer o que não seria capaz de fazer de outra forma. Em outras palavras, dirigir-se às pessoas como pertencentes, significa tratá-las nos termos que Bruno Latour chamou de “ligações/vínculos”. 15


Quanto a pertencer, ligações/vínculos aqui não significam “fatos sociais” que podem ser caracterizados como válidos independentemente da maneira como as pessoas estão conscientes ou não do que os determina. As ligações/vínculos são importantes e a maneira como elas importam se torna aparente quando você não as leva em consideração ou age como se as pessoas estivessem livres ou devessem ser libertadas delas. Como Latour muito bem mostrou em “A Esperança de Pandora”, ligação/vínculo e autonomia caminham juntos. As ligações/vínculos são o que faz com que as pessoas, incluindo todos nós, sintam e pensem, sejam capazes ou se tornem capazes. O problema não é com a ligação/vínculo; o problema pode ser que alguns de nós, aqueles que se dizem “modernos”, confundam suas ligações/vínculos com obrigações universais e, assim, se sintam livres para se definirem como “nômades”, livres para ir a qualquer lugar, para entrar em qualquer território prático, para julgar, desconstruir ou desqualificar o que lhes parecem ilusões ou crenças e afirmações folclóricas. Latour escreveu a famosa frase “nunca fomos modernos, somos apenas modernizadores”, quebrando e destruindo ligações/vínculos sem pensar duas vezes. Podemos muito bem nos apresentar como livres, desapegados de crenças supersticiosas, capazes de entrar em longas redes, mas no momento em que você tente dizer aos físicos que seus elétrons são apenas uma construção social, você entrará em guerra. E você terá merecido, porque você insultou não apenas suas crenças, mas o que os liga e vincula, o que os faz pensar e criar de sua própria maneira exigente e inventiva.

CAUSAS Para afirmar o valor positivo da ligação/vínculo, ou a “verdade do relativo” deleuziana, em contraste com a relatividade da verdade, uma tecnologia de pertencimento precisa de uma sintaxe particular. Estamos acostumados com a oposição entre o reino das causas e o reino da razão e da liberdade. A ideia usual, um tanto estranha, de que as verdadeiras razões estariam em harmonia com a liberdade enquanto as causas definiriam aquilo sobre o que agem como passivo. Em vez disso, aprendi a usar o termo causa, como quando os advogados francófonos falam de uma causa, que infelizmente se tornou, em inglês, em “um caso”. É o que os faz pensar e imaginar. Aqui novamente estou com Deleuze, desta vez afirmando que pensar não é uma questão de boa vontade ou bom senso. Você pensa quando é 16


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forçado ou obrigado a pensar. Você não pensa sem uma “causa”. Porém, o mais importante é que uma tecnologia de pertencimento não é uma tecnologia de causas. A questão é enfaticamente que as causas são causas para aqueles que são obrigados a pensar por elas. Aqueles realmente pertencem e a causa não pertence a eles. A manipulação de causas não é impossível - Hitler provavelmente o fez, o marketing o faz todos os dias mas pode ser precisamente a isso que a tecnologia de pertencimento deve resistir. Se a tecnologia de pertencimento pode estar relacionada à ecologia, é porque a questão que ela aborda o faz positivamente, aceitando as causas como os ecologistas aceitam que um lobo é um lobo e um cordeiro é um cordeiro. Não sonham em manipulá-los para que tenham uma coabitação pacífica; ou seja, eles não sonham em submetê-los às suas próprias ideias humanas sobre o que seria um mundo melhor. O ponto crucial, então, aquele que torna possível pensar para o mundo, mas não o aceitar passivamente, é o fato de que não sabemos como lobos e cordeiros podem tornar-se capazes, como lobos e cordeiros, de se comportar em circunstâncias diferentes. Esse é o ponto em que as causas não pertencem às pessoas. Elas obrigam, mas não há possibilidade de produzir uma relação definidora entre a causa e a obrigação tal como é formulada neste ou naquele habitat. Mas isso não significa que alguém seria livre para definir como está/é obrigado. O “como” é uma questão que expõe, que coloca em risco, aqueles que são obrigados. O que também significa que somente essas pessoas podem correr o risco de colocar mudanças experimentais na formulação de suas obrigações, porque somente elas são expostas pela pergunta. Aqui é importante lembrar a diferença entre uma “tecnologia” que implica ferramentas e o tipo de poder cego de definição que implica a noção de instrumento. Os instrumentos são concebidos de forma a cumprir um objetivo geral pré-determinado, ou seja, um objetivo definido tão independentemente quanto possível da situação. Uma tecnologia de pertencimento, em contraste, não nutre nenhuma visão ou teoria geral, tornando cada caso apenas mais um caso. É um caso em todo seu direito, mas um caso é uma causa, e para cada caso, você não tem uma economia de pensamento, apenas a experiência que alimenta sua imaginação. Em outras palavras, nenhum “se ... então ...” deve ser permitido como uma questão de generalidade, nada pode ser tomado como certo ou garantido. É por isso que uma ecologia de práticas, como una ferramenta de pensamento, necessita de termos “genéricos”, como o são causa, obrigação 17


ou risco, que visam conferir a uma situação o poder de importar em seu modo particular, em contraste com termos gerais que procuram ilustrações, para casos que não são causas, mas referem-se, em vez disso, à sua unidade potencial. Unidade sempre significa mobilização, o que se pede aos exércitos tendo que seguir ordens de forma fiel e imediata. Para afirmar esse ponto, uma vez usei o termo “cosmopolítica”.5 Não sei se irei manter essa palavra no futuro porque ela foi usada por Kant e os kantianos contemporâneos passaram a se interessar por ela, dispondo-a em uma chave maior. Alguns mal-entendidos são interessantes, mas não este. De qualquer forma, pretendia afirmar que cada conquista numa ecologia de práticas, ou seja, que cada relação (sempre parcial) entre as práticas enquanto tais, à medida que divergem, deve ser celebrada como um “acontecimento cósmico”, uma mutação que não só depende de humanos, mas de humanos como pertencentes, o que significa que eles são obrigados e expostos por suas obrigações. Tal acontecimento não é algo que pode ser produzido à vontade. É por isso que a tecnologia de pertencimento não é uma técnica de produção, mas, como disse Brian Massumi, funciona tanto como um desafio quanto como um incentivo. Seus dois principais assuntos de preocupação são a questão do empoderamento, uma questão de acolhimento, e a questão da diplomacia, uma questão de desafio. Inversamente, o desafio associado à diplomacia e ao acolhimento associado ao empoderamento devem tornar explícita a postura cosmopolítica de que “não estamos sozinhos no mundo”. O que chamo de “causa”, seja qual for o nome que lhe seja dado, não pode ser reduzido a alguma produção humana, não porque seja “sobrenatural”, mas porque seria um erro sintático.

DIPLOMACIA E DESAFIO Como disse Deleuze, uma ideia sempre existe como envolvida em uma questão, isto é, como “algo que importa” (temos uma ideia em música, ou pintura, ou cinema, ou filosofia, ou ...). Como resultado, um problema é sempre um problema prático, nunca um problema universal que é importante para todos. Os problemas de uma ecologia de práticas também são problemas práticos nesse sentido forte, ou seja, problemas

5 Ver Cosmopolitiques II, La Découverte e Les Empêcheurs de penser em rond, Paris, 1996. 18


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para os praticantes. Ao propor a diplomacia como um nome para o aspecto desafiador da prática, enfatizo a necessidade de levar as fronteiras a sério. Desafiar é algo bastante fácil; você sempre pode desafiar alguém. Mas o desafio relacionado à eventualidade de uma conquista cosmopolítica deve incluir o fato muito especial de que, diante de uma situação desafiadora, ninguém pode falar em nome dessa situação. De fato, as fronteiras estão envolvidas e não existe uma forma neutra e extraterritorial de definir o que é importante na situação. Isso implica, para cada parte envolvida, riscos e desafios diferentes. Essa é a primeira característica que torna relevante a figura do diplomata. Um diplomata nunca dirá a outro diplomata “por que você simplesmente não concorda com esta ou aquela proposta” ou “em seu lugar eu gostaria ...”, porque os diplomatas, se fiéis à arte da diplomacia, sabem que todos estão em risco e que eles não podem compartilhar o risco do outro. O tipo de modificação da qual pode depender a possibilidade de paz que negociamos será aceita por aqueles que cada um representa? Ou serão denunciados como traidores ao chegarem em casa? Com efeito, a diplomacia não se refere a uma boa vontade, à união, a uma linguagem comum ou a um entendimento intersubjetivo. Não é uma questão de negociação entre humanos livres, que devem estar prontos para mudar à medida que a situação muda, mas de construções entre humanos restringidas por ligações/vínculos divergentes, como o pertencimento. O que é genericamente perguntado, quando a guerra é definida como possível, é melhor expresso pelo famoso “dê uma chance à paz”. Na verdade, não pode haver lugar para o trabalho diplomático se os protagonistas não concordarem com uma desaceleração comum de todas as boas razões que todos têm para travar uma guerra justificada. No entanto, dar uma chance é uma condição necessária, mas não suficiente. A paz depende do sucesso da diplomacia, que pode então prosseguir. A diplomacia como prática é uma tecnologia de pertencimento. Pertencer como protagonistas constritivos, expresso por obrigações que esses protagonistas não têm liberdade de esquecer ou reformular à vontade, não se define como uma fraqueza a ser tolerada, mas é o próprio desafio da prática diplomática. A conquista e o sucesso diplomático significam o acontecimento da produção de uma nova proposição, articulando o que era uma contradição conducente à guerra. Tal conquista e sucesso, a ligeira modificação na formulação de algumas obrigações derivadas de 19


uma ligação/vínculo, não resulta em nenhuma convergência final sobre a divergência anterior. A articulação é sempre local. Não há abertura geral da fronteira; em vez disso, uma contradição (ou/ou) foi transformada em um contraste (e, e). Essa conquista é o que descrevo como um acontecimento cosmopolítico, enfatizando que não pode ser produzido pela argumentação discursiva. Na verdade, tal argumentação é regida pela ficção do “todos ou qualquer um” – “todos devem concordar que ...”, “qualquer um deve aceitar esta ou aquela consequência ...” - uma ficção que rebaixa a boa vontade e o esclarecimento à criação da possibilidade de uma conjunção, “isto e aquilo” onde a disjunção “isto ou aquilo”, que conduz à guerra, governava antes. A diplomacia, portanto, afirma uma divergência entre os desafios e o que nossa cultura muitas vezes se refere ao trauma da Verdade - alguém seria desafiado a aceitar a dura Verdade, apesar da ruptura que ela produzirá. Venha e você será livre, diz a figura de Cristo. A diplomacia é muito mais antiga que o cristianismo e celebra outra concepção da verdade, bastante artificial - o verdadeiro é o que consegue produzir uma comunicação entre partes divergentes, sem que nada em comum seja descoberto ou desenvolvido. Cada parte de fato manterá sua própria versão do acordo, assim como no famoso exemplo dado por Deleuze de uma “noce contre nature” (acoplamento não natural) da vespa e da orquídea, onde não temos uma unidade vespa-orquídea. As vespas e as orquídeas atribuem significados bastante distintos à relação que se produziu entre elas. Chego agora a uma consequência da diplomacia. Não há diplomacia possível se os diplomatas não podem voltar para as pessoas que representam e pertencem, se a situação define essas pessoas por sua fraqueza. A diplomacia nada é se o desafio do eventual acordo diplomático trazido pelos diplomatas não for considerado como algo que pode ou não ser aceito. Diplomatas devem ser “empoderados”, mas isso significa que as pessoas que os empoderam têm o poder para fazê-lo, e também o poder necessário para aceitar serem colocados em risco pelas proposições que os diplomatas trazem de volta. É por isso que acolher é uma característica complementar da diplomacia como tecnologia de pertencimento.

EMPODERAMENTO E ACOLHIMENTO Usar a palavra empoderamento é um risco porque a palavra agora está em toda parte, até mesmo nas deliberações do Banco Mundial sobre 20


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a criação de um mundo melhor. Portanto, dobrarei o risco referindo-me explicitamente à fonte com a qual aprendi a pensar com essa palavra. Foi quando fiquei sabendo da história que levou ativistas a se autodenominarem bruxas neopagãs ousando retomar a velha palavra “magia” para nomear a eficácia dos rituais que produzem. Como escreveu a bruxa Starhawk, invocar a eficácia da magia ritual é em si um ato de magia. De fato, vai contra todas as razões plausíveis e confortáveis que propõem a magia como uma simples questão de crença, parte de um passado que deveria permanecer no passado. “Nós não mais ...” - assim que começamos desse jeito, a palavra-mestra do progresso está falando em nosso lugar, justamente aquela que as bruxas contemporâneas contestam porque o nome que deram a si mesmas está lá também para lembrar a caça às bruxas e os “tempos de queima”. A magia como as bruxas ativistas neopagãs a definem é uma técnica, um ofício ou uma arte que muitos se sentiriam tentados a reduzir a uma questão de mera psicologia, relaxamento, psicossociologia e assim por diante. Mas a palavra “magia” torna totalmente explícito algo que tanto feministas quanto ativistas não violentos descobriram - a necessidade de criar técnicas que envolvam o que eu chamaria de “despsicologização”. Os rituais são modos de reunião, cuja conquista é que não sou mais eu, como sujeito, destinado a não pertencer a ninguém além de mim mesmo, que pensa e sente. Mas não é porque fui oprimido por algo que aqueles que se reúnem teriam em comum. E não é por causa da poderosa influência daquilo em nome do qual nos reunimos ou em que acreditamos. O que o ritual alcança talvez pudesse ser comparado ao que os físicos descrevem como desequilibrar, colocar fora da posição que nos permite falar em termos de psicologia, ou hábitos, ou apostas. Não por que se esquecem das apostas pessoais, mas porque o encontro torna presente - e é isso que se chama magia - algo que transforma sua relação com as apostas que colocaram. Há magia no famoso grito de Oliver Cromwell, que Whitehead citou uma vez sem comentários e que desde então me peguei citando repetidas vezes. Ele implorou a seus companheiros cristãos: “Meus irmãos, pelas entranhas de Cristo, eu imploro a vocês, pensem que vocês podem estar enganados”. Aqui o Cristo não confirma nem refuta, Cromwell está apenas tentando torná-lo presente, com uma eficácia que é a eficácia de uma presença sem interação, sem mensagem. Seu tipo de eficácia é ter certezas, posições que achamos que devemos assumir, gaguejar. Um pouco como Deleuze ao 21


escrever que um autor faz a linguagem gaguejar, contra a possibilidade de identificar a linguagem como uma ferramenta de comunicação a ser usada à vontade. É importante contrastar o empoderamento, o poder transformador produzido pelo que as bruxas chamam de rituais, com a unidade em nome de uma causa, ou seja, a mobilização. A Deusa que os rituais das bruxas tornam presente é de fato uma causa, mas uma causa sem um representante, sem um porta-voz autorizado. É uma causa que não está em nenhum outro lugar senão no efeito que Ela produz quando presente, isto é, quando acolhida. E esse efeito não é o de “tomar consciência” de algo que outros já sabiam, de compreender alguma verdade além das ilusões - seu efeito é encenar a relação entre pertencer e devir, produzindo pertencimento como experimentação enquanto está sempre em perigo de ser algum tipo de hábito psicológico. Se deve haver uma ecologia de práticas, as práticas não devem ser defendidas como se fossem fracas. O problema de cada prática é como acolher sua própria força, tornar presente o que faz com que os praticantes pensem, sintam e ajam. Mas é um problema que também pode produzir uma união experimental entre as práticas, uma dinâmica de aprendizagem pragmática do que funciona e como funciona. Esse é o tipo de “meio” ativo e acolhedor de que as práticas precisam para serem capazes de responder a desafios e experimentar mudanças, isto é, para desdobrar sua própria força. Essa é uma tecnologia social que qualquer prática diplomática exige e da qual depende. Comecei com o problema da ecologia de práticas como ferramenta de pensamento, cuja necessidade sentia enquanto trabalhava com físicos. Os físicos se sentem fracos e se protegem com as armas do poder, equiparando sua prática a reivindicações de uma universalidade racional. Mas a ferramenta, por não ser um instrumento a ser usado à vontade, co-produz o pensador, como mostra o próprio fato de me ter conduzido da física à arte das bruxas. Fazendo o que eu fiz, minha prática foi a de uma filósofa, a de uma filha da filosofia, pensando com as ferramentas dessa tradição, que excluía a magia desde o início e que, um tanto involuntariamente, deu suas armas aos físicos e a tantos outros que se apresentam em nome da universalidade. Talvez seja por isso que eu tive que voltar a esse começo, já que como filha, não como filho, eu não poderia pertencer sem pensar na presença de mulheres, não mulheres fracas ou injustamente excluídas, mas mulheres cujo poder os filósofos podem ter temido. 22


NOTA DO TRADUTOR Este texto foi traduzido para ser especialmente publicado no contexto deste livro, e, portanto, de uma discussão entorno à tensão entre pesquisa e arte na cena acadêmica e universitária, visando abrir um campo transversal e indisciplinar de pensamento para as possibilidades do que a filosofa canadense Erin Manning chama de pesquisa-criação. Manning dirá que as ecologias de práticas são aquilo que ativa o campo relacional em seu ponto de inflexão, criando uma nova composição que é capaz de manter viva a diferença. Em consequência e desde a perspectiva de um pensamento mais do humano e, portanto, não antropocêntrico, as ecologias de práticas tornariam possível pensar uma estética, ou nas palavras de Guattari, um “novo paradigma ético-estético” para além de falsos problemas e do que Whitehead chamou bifurcação da natureza. Para aprofundar neste campo problemático ver o artigo de Melanie Sehgal “Aesthetic Concerns, Philosophical Fabulations: The Importance of a ‘New Aesthetic Paradigm” (SubStance, Volume 47, Number 1, 2018 (Issue 145, pp. 112-129).

AGRADECIMENTOS Somos muito gratos a Isabelle Stengers por ter autorizado a publicação da versão portuguesa de seu texto, que foi originalmente publicado na revista Cultural Studies Review, Volume 11, Número 1, Março de 2005. DOI: https://doi.org/10.5130/csr.v11i1.3459

SOBRE OS AUTORES Isabelle Stengers é professora emérita de Filosofia das Ciências na Universidade Libre de Bruxelas (Bélgica). Ela já colaborou com o químico russo-belga Ilya Prigogine e com o filósofo francês Bruno Latour, entre outros, e escreveu amplamente sobre as histórias das ciências, bem como sobre filósofos como Gilles Deleuze, Alfred North Whitehead, William James e Donna Haraway. Em português têm sido editados seus livros “No Tempo das Catástrofes” (Cosac & Naify, 2015) e “A Invenção das Ciências Modernas” (Editora 34, 2002), assim como os artigos “A proposição cosmopolítica” (Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, Brasil, n. 69, p. 442-464, abr. 2018.) e “Reativar o animismo” (Chão da Feira /Cadernos de Leitura, Brasil, n.62, p. 1-15, maio 2017.). ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7723-6140. E-mail: stengers.Isabelle@ulb.be. Sebastian Wiedemann é cineasta-pesquisador e filósofo, doutor em Educação. Professor-pesquisador da Escola de Educação e Pedagogia da UPB – Universidade Pontifícia Bolivariana (Colômbia). Recentemente editou os livros Conexões: Deleuze e Cosmopolíticas e Ecologias Radicais e Nova Terra e... (2019) e Pensamientos Migrantes: Intersecciones cinematográficas (2020). Como autor publicou o livro Deep Blue: Future Memories of A Livings Cinematic In-Between (2019). CV Lattes: http://lattes.cnpq. br/1020819778569159. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4984-7312. E-mail: wiedemann.sebastian@gmail.com.


Azul profundo como escuta radical


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Azul profundo como escuta radical Sebastian Wiedemann UBP - Universidade Pontifícia Bolivariana | Colômbia

Resumo: Procura-se experimentar nesta escrita as potências de uma certa ideia de escuta radical no encontro com cenários de pesquisa-criação, que entendemos como o compromisso com a criação de práticas que ponham em primeiro plano, como a aprendizagem cria seu próprio valor. A escuta radical, como princípio articulador de uma ecologia de práticas, como veremos procurara cuidar dos possíveis através do que temos chamado de atmosfera de trans-auralidades. Esta aposta de uma pedagogia radical, por sua vez, acontece como parte do projeto indisciplinar “Azul profundo” e como gesto menor e de uma ética do cuidado no marco das proposições experienciadas no N’Me Núcleo de Estudos sobre Metodologias de Pesquisa em Artes do Instituto de Artes da Unesp.

Abstract: We aim to experiment in this writing the potential of a certain idea of radical listening in the encounter with research-creation scenarios, which we understand as the commitment to the creation of practices that put in the foreground how learning creates its own value. Radical listening, as the articulating principle of an ecology of practices, as we will see, seeks to care for the possible through what we have called an atmosphere of transauralities. This challenge of a radical pedagogy, in turn, happens as part of the indisciplinary project “Deep Blue” and as a minor gesture and as an ethics of care in the framework of the propositions experienced at N’Me - Center for Art Research Methodologies Studies of the Art Institute of Arts of The State University of São Paulo (Unesp).

Palavras-chave: atmosferas de transauralidades, cosmo-escuta, mais-valia de vida, experiência.

Keywords: atmospheres of transauralities, cosmos-listening, surplus value of life, experience.

25


O

impulso de pensamento que aqui é movimentando de momento passa pela superfície do papel. No entanto já passou por outras arquiteturas do pensamento, já passou por encontros alegres em salas de aula físicas e virtuais, já passou por oficinas em que corpos reinventavam a sala de aula e a atmosfera da aula reinventava os corpos. Agenciamentos instigados pelo par desejo-acontecimento que tem movimentado aquilo que venho ruminando como Azul profundo e que tem intensificado sua dimensão de enzima metamórfica catalisante ou se se quer de plano de cuidado dos possíveis na intersecção com o “N’Me Núcleo de Estudos sobre Novas Metodologias de Pesquisa em Artes” do

Instituto de Artes da Unesp,1 e em especial com as singularidades Wladimir de Mattos e Rodrigo Reis, no que diz respeito do gesto de acolhimento e hospitalidade e Nathalia Leter a partir de sua generosa disposição de junto comigo se abismar em processos de escuta oceânica do ponto de vista da criação. A eles dedico estas linhas como gesto de gratidão. * Vivemos num mundo devastado e em ruínas (TSING et al., 2017), sendo uma delas a Universidade. E foi a pergunta por como viver e habitar essas ruínas, sem a pretensão nem de salvar ou refundar, mas das próprias ruínas extrair condições afirmativas para o pensamento, que meu encontro com o Azul profundo se deu, como esse plano no qual a especulação como cuidado dos possíveis podia ser instaurada. No entanto o cuidado dos possíveis não é uma questão individual ou de propriedade como quem quer salvar a própria pele. Insisto, não se trata de salvar, mas de compor em todo caso comunidades efêmeras nas quais os possíveis possam ser acolhidos, cuidados e abraçados mesmo que isso sempre aconteça sob condições precárias e vulneráveis. Comunidades efêmeras como hospitalidade e habitabilidade de corpos por parte de forças impensadas e indomáveis. Fluxos selvagens de uma aventura do pensamento que pede ser canalizada por corpos-multiplicidades como gesto de possessão. Corpos dispostos ao

1 Entre 2018 e 2020 tive a oportunidade de ministrar no N’Me as palestras “Ondas: Derivas em torno de um processo de pesquisa-criação. De uma escrita da imanência a uma ecologia da imediação.” e “Azul profundo: Uma aventura cosmogenética do pensamento como kino-madologia radical”, assim como as oficinas “Azul profundo: desdobrando tonalidades impensadas do pensamento” e “Escutas Radicais: Ecologia de práticas e práticas em ecologia”. Nesta ocasião me focarei nesta última oficina. 26


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trance. Trances que podem ganhar o nome de Azul profundo; foi assim que aconteceu na perspectiva pela qual sou falado e que fala mim. Mas fazer proliferar o plano (inominável) de cuidado dos possíveis é fazer variar as perspectivas que o modulam e lhe dão consistência. A disposição de uma ética do cuidado que daria lugar a tais modulações é o que chamaremos aqui de escuta radical. Uma prática, na qual ganhamos intimidade com este plano, como essa zona crítica e metamórfica onde processos de criação singulares instauram perspectivas outras como disparadoras da diferença, da abertura e eclosão de mundos, que potencialmente se poderiam ver instigadas e animadas pelo Azul profundo. Em outras palavras, se por um lado o Azul profundo como singularização do plano de cuidado dos possíveis é um atractor cosmogenético de um pluriverso sempre cinematográfico - aquilo que temos chamado de cinematografo cósmico. Por outro lado, ele não pertence a ninguém por mais que possa ter sido intuído por alguém. Ele pede a hospitalidade, atentividade e responsividade dos corpos e se manifesta como força conetiva singular e impessoal em direção a um holobionte especulativo. Em seu dispor-se rizomático, procura apagar os rostos e sujeições, importando-se só por processos de individuação como superfícies mais do que humanas pelas quais o vivente se afirma na passagem por materialidades diversas. Nesse sentido, o ritornelo que a pergunta de Spinoza - O que pode um corpo? (DELEUZE, 2002) – instaura aqui; desde a perspectiva de um pragmatismo experimental, não só a cada vez se diz por outro meios como proliferação de comunidades efêmeras de modos de existência, mas também como cultivo de um fazer escuta radical de uma ética do cuidado onde aprendizagens diagramáticas e gestos embriológicos estão em jogo. O Azul profundo ressoa aqui com aquilo que Deleuze chamou de precursor sombrio, o “em si mesmo” da diferença (DELEUZE, 2018) e que inevitavelmente pede entrar em processos de dramatização. Isto é, uma vez que o plano de cuidado dos possíveis ao qual o Azul profundo dá um contorno metaestável demanda ser modulado; a instauração de uma atmosfera de trans-auralidades, onde atos generativos de curandeiria cuidem do valor (MASSUMI, 2018), se faz iminente. * Poderíamos falar aqui simplesmente em termos de acompanhar processos de criação de outros corpos, onde criar é sempre escutar e onde contingentemente eu entraria em relação com esses outros corpos desde 27


a posição situada e singular do Azul profundo como aquele processo de criação com o qual tenho intimidade. Isso resolveria um problema ético, o de só dizer daquilo que efetivamente temos incorporado e tornado hábito. No entanto, essa disposição ainda diz de uma perspectiva orientada aos indivíduos e não aos processos. A questão nunca para no corpo, num corpo. A questão é a de fazer corpo com, a de ser corpo de corpos em devir, a de se dizer comunidade efêmera de modos de existência. A de, em última instancia, devir um holobionte, que por definição é sempre mais do que humano. Nunca estamos sozinhos e a figura do sujeito criador pouco importa, mas sim interessa a intensificação e variabilidade do ponto de vista da criação que sempre pede para sair da escala meramente humana. Só então poderíamos falar daquilo que Stengers define como ecologia de práticas (STENGERS, 2005) e que cuida dos territórios existências, como esses campos problemáticos que complicam a vida e o vivente ao se perguntarem pelo gesto de instaurar e não pelo instaurador, que sempre é um operador anônimo e impessoal. Então, não se acompanham os corpos, mas sim os processos de criação que avançam e atravessam os corpos. Nesse sentido, o acompanhar e o agir dos corpos seria o gesto de escutar radicalmente, isto é, em intensidade, a propensão das forças germinativas e generativas que fazem variar a vida a partir de uma prática sempre singularizada em suas técnicas. O Azul profundo, um exemplo, um treinamento para este acompanhar como pedagogia radical em processos de pesquisa-criação (MANNING; MASSUMI, 2014) que travam uma relação inexorável com a escrita por ser esse lugar no qual se aprende a fazer circular o vivente entre o concreto de uma prática sensível e a abstração do conceito. Uma aliança, que acreditamos nos cuida e, portanto, cuida à vida da vontade de clausura do sujeito. Isto é, uma aliança com o conceito para intensificar a experiência que faz avançar os processos de criação, dando como retorno o fato de só poder escrever do conceito como incorporação material. Fazer das abstrações corpos e com elas inventar novos corpos. É assim como poderíamos definir uma certa relação entre arte e filosofia, contudo preferimos continuar falando em termos de ecologia de práticas onde conceitualidades e multisensorialidades materiais e consistentes se emaranham, co-existindo, co-evoluindo e co-aprendendo. Em última instância dando lugar a uma textura sensívelconceitual que se diz porosa, pois elementos conceituais não param de perfurar, pular e mergulhar na experiência material e vice-versa como vibração criadora do plano de cuidado dos possíveis. 28


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* Mas não esqueçamos, estamos vivendo num mundo devastado e em ruínas e em particular a ruína que é a Universidade, não para de criar situações nas quais os corpos se sentem impotentes e adoecem e, portanto, os processos de criação se veem truncados. Os corpos já não são capazes de cuidar de um problema e em consequência de pesquisar como processo generativo e potencializador, já não são capazes de escutar o chamado de um plano de cuidado dos possíveis, se chame este Azul profundo, ou como o idioma singular de cada corpo o consiga pronunciar e materializar, enquanto plano de composição (DELEUZE; GUATTARI, 1992). Sendo que aqui entendemos pesquisa como a insistência cuidadosa e rigorosa em dar consistência, a partir de uma escuta radical e vitalista, a um problema. Isto é, a um campo problemático que, por sua vez o co-habitamos e é experimentado, explorado, modulado e posto em variação e proliferação por meio de processos de criação sempre sensíveis, que podem se manifestar por meio de práticas heterogêneas. Gestos de escrever, de traçar, de performar, de compor com as mais diversas materialidades, de fazer corpo e de fazer passar potenciais existenciais pelas mais variadas superfícies. Tela, papel, pele, tecidos orgânicos e inorgânicos… Meios dando lugar a ecologias de práticas sem hierarquias e de escutas que mutuamente se incluem entre modos de fazer e, portanto, de existir. Ecologias de práticas, que assim sendo, não julgam e fazem do valor (MASSUMI, 2018) uma carga energética como potencial dinâmico e transitivo de composição e relação. Pesquisar como pragmatismo experimental e ética do cuidado do que se dá a existir. Re-ativar tal potência de pesquisar nos termos que aqui defendemos, foi o intuito da oficina “Escutas Radicais: Ecologia de práticas e práticas em ecologia” que levei adiante com o “N’Me - Núcleo de Estudos sobre Novas Metodologias de Pesquisa em Artes”, assim como com estudantes de pósgraduação da Faculdade de Educação da Universidade de San Buenaventura (Colômbia).2 Essas oficinas de algum modo partiram da pergunta por como tornar as ruínas uma ocasião afirmativa para o pensamento. Sendo que não se trata aqui de uma questão de otimismo, mas de pragmatismo onde de fato se entende a ruína e a vulnerabilidade e a precariedade que com ela vem,

2 Agradeço especialmente à professora Teresita Ospina por ter feito possível esta ocasião. 29


como a condição de apertura de mundos, como a fratura necessária para que o ideal de um mundo uno não se imponha. A Universidade enquanto ruína é a rachadura necessária para que o valor deixe de estar sequestrado pelo poder e possa devir práxis singular. Isto é, cada corpo a cada vez teria que re-configurar uma teoria singular do valor como vontade de potência fragmentária e local que favoreça qualitativa e intensivamente a consistência do plano de cuidado dos possíveis na sua particularidade ao ser hospedado e cuidado ponto a ponto por um corpo igualmente singular enquanto comunidade efêmera de modos de existência. Tal operação é um ato de escuta radical. Escutar é abrir um espaço-tempo singular para um existir como processo acumulativo e por saltos de memórias de futuro. Escutar é instaurar uma atmosfera de trans-auralidades, que como temos dito se diz ato generativos de curandeiria que cuida do valor ao revalorizálo (MASSUMI, 2018) a partir de aprendizagens mais do que humanas. Trata-se então de não deixar o valor nas mãos do poder para de alguma maneira permanecer numa instância sub-representativa, onde o cuidado dos problemas e, portanto, dos possíveis, se torne rico. Nessa instância sub-representativa dos processos de criação, o valor aparece como a determinação da indeterminabilidade que não fixa a potência numa direção única. Ou seja, o valor se manifesta como carga de virtualidades e a escuta na sua radicalidade como potência conetiva e de relação. Mas o que aqui estamos chamando de escuta radical não é algo dado. O dado, o cliché, em todo caso, é uma mono-escuta, que por sua vez responde a uma cultura de mono-técnicas (HUI, 2020) que priorizam formas específicas de conhecimento vinculadas à vontade de medir, calcular e dominar como colonização quantitativa do valor. Portanto nos cabe instaurar atmosferas de trans-auralidades, enquanto processos de individuação do vivente que se dizem escutas transversais, transdutivas e transformacionais. Em outras palavras, e pensando aqui em Stengers (2018) e Hui (2020), é nas atmosferas de trans-auralidades que uma cosmo-escuta como não subordinação a um universal do valor e, portanto, como potência fragmentária e intervalar que favorece o encontro de heterogêneos, acontece. Neste sentido o Azul profundo poderia ser pensado como uma aura¸ como um caso singular de um conglomerado de atmosferas de transauralidades onde aprendizagens mais do que humanas acontecem. Assim, acompanhar processos de criação é se dispor a continuar na co-aprendizagem de escutas (radicais) como diagramas que fazem variar as ecologias de práticas em jogo. A cada escuta, é movimentada toda uma pedagogia 30


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radical, na qual a arquitetura da aventura do pensamento em obras pode devir outra. Isto é, se tornar especulativa, abrindo modos outros de habitar o pensamento. A cada escuta, um apre(e)nder de intervalos, onde o que obtura a aura e a atmosfera como una, a divida, é diluída como dever estar a altura, como dever dignificar o ponto de vista da criação na variabilidade de seus sussurros e nos modos de cuidá-los desde uma perspectiva singular. Desse modo, como nos lembra Deleuze, aprender, “significa compor os pontos singulares d[o] (...) corpo [em estado de aprendizagem] com os de uma outra figura, de um outro elemento que nos desmembra, que nos leva a penetrar num mundo de problemas até então desconhecidos, inauditos.” (DELEUZE, 2018, p. 317) e inaudíveis. Problemas, campos problemáticos que ao se tornarem escutáveis, que ao se tornarem escutas radicais em ato, exigem a transformação de nós mesmos, de nossos corpos. Transformações estas que não só mantêm os processos de criação em movimento, mas também a consistência das atmosferas de trans-auralidades, como essas zonas dinâmicas de cultivo da diferença. Desta maneira, as oficinas ministradas se propuseram ser ocasiões para uma pedagogia radical onde a fractalidade da escuta na variabilidade de suas declinações (auto-escuta, escuta do outro, escuta do outro do outro) fosse vector de intensificação da nossa intimidade com o mundo e suas materialidades a partir de gestos de deslizamento difrativo e oblíquo dando lugar a nomadismos e heterogêneses, onde a aprendizagem se dissesse apreensão, vazamento e contágio de fluxos a partir de um coabitar atmosférico da experiência. Em outras palavras a partir de um coabitar aural, de um coabitar de atmosferas de trans-auralidades do e no pensamento. Desde uma disposição de fuga e deserção diante das teorias do valor hegemônicas da escrita, se apostou nas oficinas numa contra-efetuação de gestos escriturais menores onde como nos lembra Ursula K. Le Guin (2017) contar é escutar e por sua vez escrever é uma questão de confiança. E ao ganhar de novo intimidade com o mundo não procuramos outra coisa a não ser re-animar a confiança que podemos ter nele ou, como nos diz Deleuze (2004), re-animar a crença que podemos ter nele, nos vínculos que com ele e suas materialidades podemos estabelecer. Vínculos só cultiváveis na posta em ação de práticas, onde serão os afetos os que a cada vez definam o valor e não o julgamento. Escutar é um ato de comunidade (LE GUIN, 2017), é devir comunidade, multiplicidade na escrita. É devir uma tecelã que foi tão longe com suas 31


linhas que já esqueceu que esse impulso de pensamento em algum momento passou pelo Azul profundo. Ou em todo caso fazer do Azul profundo uma condição e propensão de escuta radical é des-fazê-lo, é torná-lo des-obra como apertura de habitabilidades vacantes e compartilháveis para outras modulações do pensamento. Modulações sempre somáticas em meio a comunidades de confiança, pois se compartilham riscos com esses outros humanos e mais do que humanos como matérias ativas que mantêm o mundo em processo, em obras, aberto... Os canais e gestos escriturais, cada um com seu caudal e tono singular, pelos quais emergiram proposições para intensificar a nossa intimidade como o mundo, foram: a) escuta radical como cristal vitalista criadouro mais do que pessoal (a partir do dispositivo da entrevista); b) escuta radical como encontro com materialidades mais do que humanas (a partir do dispositivo da carta); c) escuta radical como encontro entre heterogêneos (a partir do exercício de re-escrita como montagem); d) escuta radical como processo de afetação e aprendizagem mais do que humana (a partir do dispositivo do diálogo); e d) escuta radical como disposição receptiva diante do impensado e do acontecimento (a partir do dispositivo do oráculo). Todos esses canais e canoas que por sua vez colocam à prova a sua eficácia na medida em que afirmam não só uma intimidade com o mundo e o devir comunidades efêmeras de modos de existência dos corpos, mas também ao exacerbar a nossa relação com as práticas e suas respetivas técnicas. Pois entendemos que um corpo que não se faz a práticas e técnicas é um corpo que nega a sua condição relacional com o mundo, que nega a sua possibilidade de vínculo com este. Tratando-se aqui muito menos de uma antropo-tecno-gênese e muito mais de entender as práticas e suas técnicas como condições para fazer do humano humusidades (HARAWAY, 2016) de holobiontes especulativos, que não por serem especulativos são menos reais quando o que há de mais real é o cuidado dos possíveis que acontece na especulação e que mantém a força genética de mundos por vir latente. Isto é, do que se trata é de abrir condições para poder instaurar co-habitabilidades imanentes nos e dos processos de pesquisa-criação. Abrir continuidades nas descontinuidades, conectividades onde o corpo é pesquisa e a pesquisa se faz corpo, pois as atmosferas de trans-auralidades não estão fora de nós, mas nós estamos em meio a elas e elas em meio de nós. Portanto as atmosferas de trans-auralidades desde sua porosidade e penetrabilidade generativa já incorporam a ruína (da Universidade) como mais uma componente ativadora e afirmativa do holobionte em jogo. 32


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* Não caberia aqui abandonar o impulso de pensamento que o Azul profundo tem feito fervilhar até se transmutar em potência proposicional indeterminada, por querer dar conta das oficinas que têm acontecido. Não se trata aqui de postular modelos ou manuais como quem informa e, portanto, faz circular palavras de ordem, dizendo aquilo que se deve acreditar (DELEUZE, 2012), mas de manter viva a vontade de experimentação, a vontade de aprendizagem como experimentação e instância constituinte de uma pedagogia radical dos processos de criação. Trata-se de manter vivo um “lure for feeling” (WHITEHEAD, 1978), um atractor de afetação, que para continuar ativo, longe de pedir que a experiência seja reposta, pede que a experiência seja exposta enquanto acontece. Isto é, abraçando e ao mesmo tempo me desgarrando e desmembrando do Azul profundo, até já quase não conseguir pronunciá-lo, mas ainda suas intensidades falando em mim, instaurar auras, atmosferas de trans-auralidades, vontades de cosmoescutas. Um exemplo fecundo disto foi a cosmo-escuta que das oficinas de desdobrou com a Nathalia Leter. O encontro como compartilhamento de riscos, como constituição de uma comunidade efêmera de modos de existência se fez autônomo na sua vontade de pesquisar e, portanto, de escutar, de experimentar, de criar e escrever dando lugar a um conceito conjugado entre ela e eu: a imanência do braçal. Nessa ocasião improvável a escuta radical se vez comum, se fez trans-aural, se fez e passou por toda uma ecologia de práticas compartilhadas desde singularidades situadas que de modo local sentiram o chamado a cultivar um espaço potencial a ser coabitado como ato de criação que emerge de uma necessidade vital (DELEUZE, 2012). A imanência do braçal, assim como a escuta radical enquanto proposição dizem em última instância da iminência de se reconectar com o vital e o necessário, com as necessidades vitais, desde as quais a própria existência se afirma como processo de pesquisa-criação, sendo a Universidade tão só uma das arquiteturas possíveis para que a aventura do pensamento possa proliferar. E se se faz uma aliada da ruína, e, portanto, da Universidade, é porque em tempos de extinção não podemos nos dar o luxo de negar nada por mais que seja impossível afirmá-lo tudo. Passa-se por superfícies do pensamento, agora o papel, em algum instante a Universidade, em outro o cinema e o Azul profundo, para tornar mais rica a textura do próprio pensamento. E é nas atmosferas de trans-auralidades que a textura do pensamento como costura de cosmo-escutas, na sua 33


disposição reticular, se faz abundante em poli e metamorfismos que fazem florescer o plano de cuidado dos possíveis. * A imanência do braçal diz de uma magnitude intensiva do pensamento, mas, sobretudo, de como os conceitos, ao serem produzidos, carregam forças materiais e telúricas. Esse conceito como derivado de uma escuta radical, e ao mesmo tempo como escuta radical em ato, diz de uma densidade compostagênica do pensamento que não vem das alturas mas sim de pensar ao nível do rés-do-chão, ali onde junto com as minhocas e a serapilheira se engendram as humusidades. A imanência do braçal dá contorno a uma energética e a um apetite do pensamento que inevitavelmente tem que se verter na terra como o lugar no qual as ideias podem germinar e cuja potência conetiva passa pela eficácia da enxada que prepara o terreno. Em última instância, esse conceito diz de como o necessário e o vital modulam e singularizam um pragmatismo experimental e especulativo. O que se passou entre o Azul profundo e a imanência do braçal? A musculatura do pensamento mudou, o necessário e o vital mudaram e com eles o campo problemático e seus apetites. Abriu-se no meio uma zona crítica de atmosferas de trans-auralidades como berço para coletividades emergentes (MANNING, 2020) que tiveram a coragem e confiança de compartilhar o risco de coabitar processos de criação. Isto é, de fazer passar pelo corpo, de dar vida no corpo não só ao conceito, mas também à experiência como práxis especulativa e de pensamento que por sua vez faz dos corpos outros. O Azul profundo como escuta radical do seu “em si” diferencial (auto-escuta ou escuta intrínseca da diferença) se abre, se dispõe a escutar suas vizinhanças em parentescos insólitos (o oceânico e o telúrico se encontrando numa escuta do outro como escuta extrínseca da diferença) para em todo caso ativar por sua vez mais uma camada de escuta radical. Nesse caso, do “em si” diferencial do outro (escuta oblíqua ou do outro do outro). Toda uma diagramática aural e fractal por camadas que multiplica as direções e dimensões por onde o fazer escuta radical pode ser declinado e conjugado, pois o valor tem deixado de estar sequestrado e pode se manifestar de modo não quantificável e na plenitude de sua incomensurabilidade como mais-valia de vida, enquanto um puramente qualitativo que diz da intensidade dos potenciais vividos (MASSUMI, 2018). *

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Não posso deixar de pensar aqui no trabalho de Henrique Rocha de Souza Lima (2018) quando nos apresenta o conceito de desenho de escuta que inexoravelmente diz de uma meso-política (STENGERS; MASSUMI; MANNING, 2009) da auralidade que não estaria muito distante do que aqui temos defendido como atmosferas de trans-auralidades. A meu ver aquilo que Lima contorna como desenho de escuta não só ressoa com o fazer escuta radical, mas também com as intuições que sempre de modo incerto e imprevisto movimentariam uma pedagogia radical dos processos de criação. A escuta radical, assim como o desenho de escuta, é ao mesmo tempo um conceito e uma prática (seus derivados como podem sê-lo o Azul profundo e a imanência do braçal também o são). Ela é antes de tudo um problema de agenciamento de desejo, como proposição e intervenção no plano de cuidado dos possíveis que instaura uma ética da distribuição do audível e do inaudível. Como pragmática, como efeito de uma prática acontece no limite da auralidade, ali onde as atmosferas de transauralidades enquanto espaços nômades e indeterminados propensos aos devires despontam, como um desafio a ser pensado, praticado e vivido para que não se imponha uma imagem dogmática de escuta. Portanto, a escuta radical opera de modo transversal, mas também e, sobretudo, de modo local e situado na passagem entre meios e por outros meios como o farejar desejante do inaudito, do que habita virtualmente o audível e dá lugar a coletividades emergentes de pensamento. Nesse sentido, os processos de criação poderiam ser pensados como inscrições de escuta (OCHOA GAUTIER, 2014) que podem acontecer pelos mais diversos meios e onde o seu acompanhar como gesto de pedagogia radical enquanto mais uma camada de escuta radical; como nos lembra Lima, “é um processo que, em vez de ir de um ponto a outro, se enviesa no meio do caminho. [Pois no] viés está tudo aquilo que faz da escuta ser outra coisa que a simples audição. É no viés que tudo acontece, é no viés que uma escuta se torna “sua”, ou a de outro qualquer.” (LIMA, 2018, p. 382). Portanto é com o viés que temos que ganhar intimidade. * Para terminar e acolhendo o modo espiralado em que o par desejoacontecimento tem movimentado as escutas em jogo nesta escrita como impulso de pensamento que advoga pelo plano de cuidado dos possíveis, pergunto-me e lhes pergunto, querendo deixar o problema e o apetite 35


em aberto e que estes extravasem outras superfícies e arquiteturas do pensamento: Não seria a pergunta pelo modo dos efeitos emergentes dos processos de criação como realidade qualitativa, como magnitude intensiva, como qualidade sensível da afirmação do “mais que o acontecimento” enquanto valor excedente de vida (MASSUMI, 2018) aquilo que se procura cuidar, curar e instaurar com a práxis de escuta radical? O Azul profundo tão só uma isca, uma linha, uma pista...

AGRADECIMENTOS A pesquisa-criação que deu lugar a este texto foi possível graças ao financiamento do CNPq. Versões anteriores dele foram apresentadas a modo de palestra nos eventos “III Colóquio Metodologias de Pesquisa em Artes – Unesp” (2020) e “V Coloquio de la Red de Estudios Latinoamericanos Deleuze y Guattari – UNAM” (México, 2020).

REFERÊNCIAS DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. 1ed. São Paulo: Paz & Terra, 2018. DELEUZE, Gilles. Espinosa: filosofia prática. São Paulo: Escuta, 2002. DELEUZE, Gilles. La imagen-tiempo. Barcelona: Paidos, 2004. DELEUZE, Gilles. ¿Qué es el acto de creación? FERMENTARIO, [s. l.], v. 6, p. 1–16, 2012. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Editora 34, 1992. HARAWAY, Donna. Staying with the Trouble: Making Kin in the Chthulucene. Durham: Duke University Press Books, 2016. HUI, Yuk. Fragmentar el futuro. Buenos Aires: Caja Negra, 2020. LE GUIN, Ursula K. Contar es escuchar: Sobre la escritura,la lectura,la imaginación. Tradução: MARTÍN SCHIFINO. Madrid: Círculo de Tiza, 2017. LIMA, Henrique Rocha de Souza. Desenho de Escuta: políticas da auralidade na era do áudio ubíquo. 396 f. 2018. - USP - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018. MANNING, Erin. For a Pragmatics of the Useless. Durham: Duke University Press Books, 2020. 36


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MANNING, Erin; MASSUMI, Brian. Thought in the Act: Passages in the Ecology of Experience. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2014. MASSUMI, Brian. 99 Theses on the Revaluation of Value: A Postcapitalist Manifesto. Minneapolis: University Of Minnesota Press, 2018. OCHOA GAUTIER, Ana María. Aurality: Listening and Knowledge in Nineteenth-Century Colombia. Durham, NC: Duke University Press Books, 2014. STENGERS, Isabelle. A proposição cosmopolítica. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, [s. l.], n. 69, p. 442–464, 2018. Disponível em: https:// doi.org/10.11606/issn.2316-901X.v0i69p442-464 STENGERS, Isabelle. Introductory Notes on an Ecology of Practices. Cultural Studies Review, [s. l.], v. 11, n. 1, p. 183–196, 2005. Disponível em: https:// doi.org/10.5130/csr.v11i1.3459 STENGERS, Isabelle; MASSUMI, Brian; MANNING, Erin. History through the Middle: Between Macro and Mesopolitics - an Interview with Isabelle Stengers. Inflexions: A Journal for research creation, [s. l.], v. 3, 2009. TSING, Anna Lowenhaupt et al. Arts of Living on a Damaged Planet: Ghosts of the Anthropocene. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2017. WHITEHEAD, Alfred North. Process and Reality. New York: Free Press, 1978.

SOBRE O AUTOR Sebastian Wiedemann é cineasta-pesquisador e filósofo, doutor em Educação. Professor-pesquisador da Escola de Educação e Pedagogia da UPB – Universidade Pontifícia Bolivariana (Colômbia). Recentemente editou os livros Conexões: Deleuze e Cosmopolíticas e Ecologias Radicais e Nova Terra e... (2019) e Pensamientos Migrantes: Intersecciones cinematográficas (2020). Como autor publicou o livro Deep Blue: Future Memories of A Livings Cinematic In-Between (2019). CV Lattes: http:// lattes.cnpq.br/1020819778569159. ORCID: https://orcid.org/00000002-4984-7312. E-mail: wiedemann.sebastian@gmail.com.

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Literatura e cosmopolítica


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Literatura e cosmopolítica João Pentagna

Resumo: O presente ensaio parte da ideia deleuzeana de que aquém do organismo e do sujeito subsiste uma vitalidade inorgânica composta por elementos pré-individuais e individuantes cuja espreita exige uma crescente precisão no ato de escrever. Desde a comédia de Aristófanes e o Eclesiastes com sua crítica das vaidades, os moralistas latinos e, mais tarde, no século XIX, os pensadores da besteira indicam-nos um élan satírico da literatura. A sátira ataca todo tipo de paralisia e hipnose que ameacem se instalar na vida, o riso corrói a imbecilidade. No entanto, escrever implica não só cartografar o padecimento e a derrisão da humanidade; passando no limite por uma escuta ética que nos sensibiliza para os devires. Exercício para além da denúncia, ação cosmopolítica na qual o dizer incessantemente em curso na literatura pode esposar a linha feiticeira que libera e constrói um plano de imanência enquanto novas maneiras de povoar a Terra.

Abstract: The present essay is based on the deleuzean idea that there is an inorganic vitality that exists below the organism and the subject, composed of pre-individual and individuating elements whose lurking demands an increasing precision in the act of writing. Since the comedy of Aristophanes and Ecclesiastes with their criticism of vanities, latin moralists and later in the 19th century thinkers of stupidity, indicate a satirical élan of literature. Satire attacks all types of paralysis and hypnosis that threaten to settle in life, laughter erodes imbecility. However, writing implies not only mapping the suffering and the defeat of humanity; going through the limit by an ethical listening that sensitizes us to becomings. An exercise beyond denunciation, a cosmopolitical action in which the incessantly saying in literature can espouse the sorceress line that liberates and builds a plan of immanence as new ways of populating the Earth. Keywords: Literature, cosmopolitic.

Palavras-chave: Literatura, sátira, ética, cosmopolítica.

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satire,

ethic,


N

os anos setenta e oitenta o escritor satírico Elias Canetti, empreendendo um movimento mais afirmativo e cartográfico — olhar, ouvir, sentir, avaliar segundo critérios vitais, se posicionar no nível de um dizer processual e integrador — do que simplesmente escarnecedor e denunciatório, escreveu sua autobiografia em três volumes com títulos muito belos e precisos: A língua absolvida; Uma luz nos meus ouvidos e O jogo dos olhos; precisos especialmente se desejarmos esclarecer quanto à literatura o que Deleuze chamava de pedagogia da percepção, arte que envolve a espreita, a sensibilidade expandida e um cuidado ecosófico, isto é, rizomático com o planeta. Porque, se vivemos dentro desta atroz cegueira, imersos no delírio paranóico do Homem, projetados sobre o cavalete de tortura e autotortura no qual se estende a humanidade, tal equívoco neurótico dissimula que há por outro lado uma responsabilidade absoluta para com a vida e simultaneamente para com as palavras. A vida ela mesma é um dizer em processo, o simbólico já é latente no mais elementar e há povos que ainda acreditam que as pedras, os rios, as chuvas, os trovões, as montanhas, as plantas e os animais também falam. A palavra pode dilacerar como as correias de um chicote ou perfurar e inocular-se num corpo qual aguilhão de morte; não comunica, mas comanda, incita, influencia, convence, faz adoecer ou curar. Como escutála e utilizá-la fora do sistema de interesse, de usura e do vampirismo que a monopoliza? Essa era uma questão tão determinante para Canetti enquanto escritor quanto foi para Freud como analista que descobriu a micropolítica das forças ativas (Eros) e reativas (Tânatos) sob as formações do inconsciente e fundou a psicanálise como pragmática da linguagem que Lacan reformula nos termos do “bem dizer” (bien dire).

DUAS FUNÇÕES DA LITERATURA: SÁTIRA DO HOMEM E PEDAGOGIA DA PERCEPÇÃO Vanitas, vanitatum et omnia vanitas. Vaidade das vaidades, é tudo vaidade.

Há uma amarração firme ao longo da tradição satírica que perpassa Aristófanes e os comediógrafos gregos, o Eclesiastes, e atravessa, desde 40


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Rabelais, Cervantes e Swift, todos os satíricos modernos, passando pelos pensadores da besteira como Balzac, Zola, o incomparável Flaubert1, e chegando num ponto de agudez perturbadora em Alfred Jarry, Kafka, Canetti2 e Beckett. Os satíricos não poupam ninguém, não resta nada de pé, nem uma “boa alma” depois que passam, uma das suas maiores virtudes é manejar as palavras como se brandissem um chicote, arrastando-nos até os afetos do absurdo, do grotesco e do atroz. No Woyzeck de Büchner, este inesquecível delirante — “Algo anda atrás de mim, debaixo de mim (Bate os pés no chão), oco, está ouvindo? Tudo oco aqui embaixo. Os maçons!” (Guinsburg e Koudela, 2004, p. 240) — há uma historinha endemoniada, expressão psicótica da demolição do sentido e da confiança no mundo, limiar perigoso do riso terrível, onde o riso amarga a boca e sufoca a garganta: Era uma vez uma pobre criança e ela não tinha pai nem mãe, estavam todos mortos e não lhe restava mais ninguém no mundo, todos mortos, e ela chorava dia e noite. E como não lhe restava ninguém na terra, ela quis ir para o céu, e a lua a olhava com muito carinho; e quando finalmente ela chegou na lua, esta não passava de um toco de madeira podre, e então a criança foi para o sol, e quando chegou ao sol, este era apenas um girassol murcho, e quando chegou às estrelas, elas eram pequenos mosquitos dourados, que estavam espetados como o picanço espeta-os na ameixa brava, e quando ela quis voltar para a terra, a terra era uma vasilha entornada, e ela estava inteiramente só, e ela sentou-se e chorou, e continua sentada ali e está muito só. (Guinsburg e Koudela, 2004, p. 259)

Mas o escritor, através das paixões e das doenças que acossam a si mesmo e ao mundo, operando uma cartografia dos signos do padecimento, vai encontrar suas potências e engendrar o pensamento justamente no interior desse desabamento central, ainda para lá da moral humana e do princípio do prazer; ele não é senão o “encarregado da humanidade, dos animais até” (Rimbaud, 1983, p. 82), aquele que morde a vaidade, a besteira,

1 Bouvard e Pécuchet é um vasto e admirável compêndio literário dos delírios, das demências e das imbecilidades do homem. 2 A primeira direção da pesquisa literária de Canetti vai no sentido da sátira. Ver Autode-Fé, o primeiro e único romance de Canetti escrito em 1935 (o livro maior sobre os delírios histórico-mundiais) e suas peças de teatro reunidas no livro O Teatro terrível: O casamento (1932), Comédia da vaidade (1950), Os que têm a hora marcada (1964). 41


a tolice, o otimismo do progresso e do trabalho — a crítica aos homens de lata e aos homens carboníferos em D.H. Lawrence — para escarnecer e esmigalhar os ideais inadequados à vida; sabe o que é ser possuído — “Porque é da lógica anatômica do homem moderno nunca ter podido nem pensado viver senão possesso.” (Artaud, 2007, p. 41) — e decide encarnar os fantasmas, confrontá-los, ainda que, no entanto, caso mantenha sua tarefa irremissível voltada para a Terra e seu elemento telúrico — “Sou ligado à Terra por laços mais que terrestres” (Van Gogh, 2002, p. 343) —, os aprofunda e os impele enquanto caricaturas precisas da demência humana e vai além, ao ar, atravessa como uma flecha de luz para os elementos eólicos, acessando o inumano não mais como o estranho funesto, elemento aquático ou terrestre, mesmo que passando por aí também, mas, de maneira estrangeira, leve, nômade, cede lugar ao que insiste e subsiste na bruma, advoga e dá testemunho das existências animalistas convocando e conflagrando uma voz singular que não cessa de cantar seu canto falado (sprechgesang). É que a comunicação, o conhecimento intelectual, a distração e o entretenimento dissimulam o fato das principais funções da literatura — de um ponto de vista da força e não da forma — serem: a denúncia das próprias formas pelas quais a humanidade é hipnotizada, como também uma espécie de pedagogia da percepção, caso se tome emprestada uma expressão usada por Deleuze para se referir ao estiramento dos nossos sentidos através do cinema. Na denúncia há o rigor e a minúcia implicados no escárnio dos automatismos que se insinuaram na vida humana3. Como a saga do Pai Ubu em Jarry, na qual o personagem reúne em si toda a covardia, a maldade e a imbecilidade do homem. Tendo traído e assassinado o rei, tornase soberano da Polônia e, no entanto, não há nesse feito absolutamente nenhuma coragem. O que o move é seu estômago, ele expressa o pensamento digestivo da besta, manifestação no homem — não do animal diferenciado o qual o instinto dotou de comportamentos reconhecíveis e explicáveis por sua natureza — mas de um fundo indeterminado, massa leguminosa e indiferenciada, o buraco que jaz oculto em cada animal. Pai Ubu é o retrato

3 Tema do livro O Riso, de Henri Bergson, e matéria da literatura dos tipos. Para Bergson o que o riso chicoteia são as paralisias, os automatismos, as hipnoses e as vaidades que se instalam no fluxo da vida. BERGSON, Henri. O riso: ensaio sobre a significação da comicidade. 2ª edição. Martins Fontes, 2007. 42


perfeito da bestialidade que também atinge hoje as manadas bolsonaristas mobilizadas pelos seus interesses individuais e pelas palavras de ordem provenientes do seu mestre. Como Macbeth, Pai Ubu também vai hesitar diante o ato e precisa de uma esposa mais sorrateira, Mãe Ubu, que com palavras insidiosas o incita: No seu lugar, bem que eu gostaria de instalar minha bunda num trono. Você poderia aumentar infinitamente suas riquezas, comer chouriço quase sempre e rodar de carruagem pelas ruas. (Jarry, 2007, p. 48 e 49)

Ao que ele, medroso, no início se defende: Raios me partam, pela luz da minha vela verde, prefiro ser miserável como um rato magro e digno a ser rico como um gato mau e gordo. (Jarry, 2007, p. 49)

Os únicos afetos que fazem Pai Ubu pensar são o medo, a gula e a ganância, sendo esses os verdadeiros motores da sua crueldade, ali onde nosso riso castiga sem dó. Giorgio Agamben, escrevendo a respeito de Jarry nos fornece uma indicação preciosa sobre o abismo a que nos expõe o riso e o modo como nessa “queda” se passa da fusão no indiferenciado para uma individuação que é ateológica e vertiginosa: O homem que ri é o homem que perdeu seu conteúdo, o homem tornado pura pele, e que sofre por carregar essa pele até o limite da dor e do prazer. O espaço de Deus está vazio: mas, no riso, outro espaço se abre, e àquele corresponde metafisicamente. Nesse espaço se move a patafísica, essa “ciência que se sobrepõe à metafísica”, que talvez um dia cesse de se apresentar a nós como uma brincadeira desprezível para revelar-se um sinal terrível. (Jarry, 2016, p.170)

Essa estranha mistura de riso e terrível falta de sentido da realidade ou o esvaziamento do sentido da realidade implicado no delírio de um riso que se arrasta e arrasta consigo Deus e o Mundo, culmina na percepção da ausência de uma identidade e de qualquer verdade sólida, tendendo para o afeto do terror. Mesmo assim, Agamben conclui: “O paradoxo do Terror — Jarry bem o sabia — é que ele se inverte numa alegria irrefreável.” (Jarry, 2016, p. 170) O nonsense, como uma desertificação ou grau zero do sentido, descobre um campo liso para a experimentação dos signos. Acontece que, fabricadas as caricaturas e denunciadas as formas grotescas em que nos conformam o Homem, a pedagogia da percepção enquanto segunda função intensiva da literatura vai no sentido de uma perseguição das linhas de desterritorialização que arrastam os escritores em zonas de vizinhança com alteridades não humanas.


Escrever é um caso de devir, sempre inacabado, sempre em vias de fazer-se, e que extravasa qualquer matéria vivível ou vivida. É um processo, ou seja, uma passagem de vida que atravessa o vivível e o vivido. A escrita é inseparável do devir: ao escrever, estamos num devirmulher, num devir-animal ou vegetal, num devirmolécula, até num devir-imperceptível. (...) O devir não vai no sentido inverso, e não entramos num devirHomem, uma vez que o homem se apresenta como uma forma de expressão dominante que pretende impor-se a toda matéria, ao passo que mulher, animal ou molécula têm sempre um componente de fuga que se furta à sua própria formalização. A vergonha de ser um homem: haverá razão melhor para escrever? (Deleuze, 2011, p. 11)

Mal nos colocamos para escrever e já estamos delirando, ou seja, saindo dos sulcos e solapando a forma dominante Homem. A navegação e a linha baleeira em Moby Dick nos fazem conhecer as regiões mais profundas do oceano onde nenhum olho humano nunca viu. Experimentamos através da literatura os olhos dos peixes abissais, do jaguar ou da águia. Ouvidos de onça ou de tuberculoso. Sensibilidade epidêmica do polvo ou a nobreza do peixe espada. Focinho de cão, metido ingênua e corajosamente em qualquer buraco farejando onde não foi chamado. Escrever, portanto, envolve desrostificar o humano, arrancar a consciência do sujeito, desorganizar os limiares ordinários das faculdades: do olhar, do ouvir, do sentir, do cheirar, do saborear, para apenas então começarmos a perceber o imperceptível. Os lábios e a língua são as pontas de descodificação da boca ali onde a mastigação, índice de uma mistura ainda presente entre Eros e Tânatos, considerando uma avaliação erótica, pode virar bem dizer, fazendo refluir a vida pelo uso pulsional da linguagem. Acontece nesse revirão a criação de uma língua indígena no interior da língua (homenagem a Perci Schiavon) e é praticado um uso menor que trabalha as matérias sonoras não formadas tendendo para o assignificante, ou seja, para as ideias fora da linguagem que, sob a condição de uma maneira, um estilo, um desvio, fazem passar os fluxos afetivos: (...) uma língua estrangeira não é escavada na língua sem que toda a linguagem sofra uma reviravolta, seja levada a um limite, a um fora ou um avesso que constitui as Visões e Audições que já não pertencem a língua alguma Essas visões não são fantasmas, mas verdadeiras Ideias que o escritor vê e ouve nos interstícios da linguagem, nos desvios da linguagem. Não são interrupções do

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processo, mas paragens que fazem parte dele, como uma eternidade que só pode ser revelada no devir, uma paisagem que só aparece em movimento. Elas não estão fora da linguagem, elas são o seu fora. O escritor como vidente e ouvidor, finalidade da literatura: é a passagem da vida na linguagem que constitui as Ideias. (Deleuze, 2011, p. 16 e 17)

Sendo os órgãos humanos então desorganizados e suas funções individuais descodificadas, se dá o processo que vai da autoconservação à justiça do deserto e a construção de um corpo glorioso, exigência constante que a nós nos enlaça em uma responsabilidade absoluta cuja força e luminosidade se refinará no canto animalista que atravessa e impele o humano. A poesia, ponta de lança e linha molecular da literatura, opera sobre o campo transcendental cujos povoamentos testemunham que tudo fala e qualquer encontro de corpos pode nos afetar e produzir acontecimentos; e na ponta desse movimento o símbolo (ou signo) não mais separa, mas religa ao real, às relações de força, à política do comum: Fim último da literatura: pôr em evidência no delírio essa criação de uma saúde, ou essa invenção de um povo, isto é, uma possibilidade de vida. Escrever por esse povo que falta... (“por” significa “em intenção de” e não “em lugar de.” (Deleuze, 2011, p. 16)

Existe uma vibração inaudível e, mesmo nas situações de experiêncialimite, dificilmente sintonizada. Um canto enigmático, impessoal e encantado emitido pelas Sereias e que inaugura a literatura, que vem do mais longínquo e ao mesmo tempo do mais próximo, do mais estranho que é o mais íntimo, chama refervente e sempiterna. Um gemido surdo, um assobio contínuo que não se sabe se é assobio, riso ou canto, um vento incansável que carrega sinais e pressentimentos: “O sopro de Deus sobe do Deserto” (Blanchot, 2016, p 116)4; e tal sopro é o signo da impessoalidade inquietante, perturbadora, mas também fascinante, sedutora, percorrida por um tremor de heterogênese contínuo e uma convulsão interminável onde cada corpo é um terminal de energia dilacerado por erupções de lava. Vrenchen passou a rir ainda mais para ele e de sua garganta melodiosa saíram algumas notas breves e aspiradas de um riso voluntarioso, que ao pobre Sali soava

4 Esta é uma citação do profeta Oséias usada por Maurice Blanchot.

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como o canto do rouxinol. Oh, sua feiticeira! — exclamou. Onde você aprendeu isso? Que artes do diabo são estas que você está praticando? (Keller, 2013, p. 61)

Para além ou simultaneamente aquém do organismo e do sujeito existe uma vitalidade inorgânica constituída por elementos pré-individuais e individuantes. Nesse mais fundo, o Sem-Fundo, funciona especialmente o critério ético das intensidades e quem governa são as forças. Na própria escolha das palavras e na formação da sintaxe, o gozo é imediatamente saber, simultaneamente saber e sabor, já que está ligado ao exercício de uma vis activa, a força seletiva e singular que percebe e age em cada uma vida. A distensão da amplitude da experiência situa o incontornável e ilimitado plano desértico povoado de multiplicidades, vagas de afetosideias, as ondas elétricas que circulam vaporosas e insinuantes, como o riso de Vrenchen, pura matéria sonora não formada, seu devir-rouxinol. O pensamento avaliador e ético ligado ao bem dizer já está na matéria intensa enquanto germe e autopoiesis, aí já é Força e Símbolo. Daí a necessidade inequívoca de se descolonizar e se desumanizar as orelhas — como o Rei Midas que preferindo o canto de Pã foi castigado por Apolo, que então deu a ele orelhas de burro — e apenas assim quando distendermos os limites dos órgãos, desorganizando os limiares de suas funções orgânicas5, se experimentará uma luz fendendo os ouvidos, para podermos então humildemente e sem ruído começar a ouvir os murmúrios anônimos em uma espécie de solidão estranhamente povoada. Longa deserção ou desvio de Outrem-Macho enquanto sistema organizador do campo perceptivo: devir-molecular da percepção. A literatura é uma ciência nômade imediatamente em contato com um campo político tensionado por movimentos minoritários e formações estatais estratificadas onde cada singularidade já é por si mesma uma multiplicidade ou matilha disputando sobre uma arena cosmopolítica: as minorias eslavas oprimidas pelo Império Austro-Húngaro e a nostalgia pela Grande Mãe Rússia em Masoch, os judeus do campo em Kafka e sua desterritorialização pela cultura e a língua alemã em Praga; o grupo de moças em Proust, espécie de vapor ou individuação coletiva; os judeus, os nazistas e o julgamento de Adolf Eichmann em Hannah Arendt; a violência

5 Em Diferença e Repetição Deleuze chamará essas capacidades estiradas de uso transcendental das faculdades. DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Editora Paz e Terra, 2018. 46


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das forças animais e os graus de agressividade com os quais Lautréamont ataca a humanidade; os ancestrais e as moléculas em Lovecraft; a repressão das histéricas e a sexualidade das crianças em Freud, a situação dos negros, dos brancos e o horror colonial tal como denuncia Franz Fanon; os xapiri, os yanomamis, os brancos e a queda do céu em Davi Kopenawa. Ninguém fala sozinho. O que a literatura celebra é a abolição do Eu em vista de agenciamentos de enunciação coletiva. A máquina escritural, caso funcionando a serviço da vida, é como uma linha afiada cujo manejo exige alto grau de desprendimento da forma humana e da linguagem ordinária, confluindo para as relações de força e em última instância para uma política diplomática dos viventes. Do xamã Davi Kopenawa poderíamos dizer o que Nietzsche e depois Deleuze disseram do escritor, algo como: é um médico das culturas, um clínico das civilizações. Mas não é tanto ou somente o xamã que deveio escritor, o pacto com Bruce Albert apenas expandiu o alcance da profecia que já era destinada a toda a humanidade, foram muitos antes os escritores que no interior da cultura ocidental precisaram acessar um devir-xamânico e virarem espíritos — para testemunhar e advogar pelas existências não humanas. Ser retalhado pelos xapiri e devir-outro, passando por uma morte simbólica, é a condição de alguém tornar-se um xamã yanomâmi, (Kopenawa e Albert, 2015) tanto quanto o escritor precisa ser fissurado por acontecimentos, feridas que não fecham, os afetos incorporais ou individuações sem sujeito que o atravessam. É exigida a cada momento uma atenção, uma hospitalidade e uma paciência fundamentais para se realizar a magia antropofágica das metamorfoses criadoras. O espaço literário é povoado pelas transformações (Canetti), devires (Deleuze) ou pelos murmúrios neutros, impessoais e sem repouso do elementar (Blanchot). O diz-se cujo fluxo escoa e segue no seu desafio pelando o Eu. O morre-se cuja torrente de modo encarniçado nos esfola e nos faz a cada vez devir outra coisa manifesta nos delírios do discurso indireto livre. Tais forças desejam e vão fazer-se ouvir, nem que na ânsia de libertação do Homem elas o dilacerem ao meio antes de distender suas fendas ópticas, acústicas e epidérmicas. Os poros da nossa pele se alargam impudicamente como buracos sendo violados pelo fogo. Enfim, se no dizer em curso de uma vida o qual se expressa de maneira refinada na literatura as forças terrestres esposam as forças celestes, tal 47


processo não se orienta no sentido do Juízo Final e da redenção adiada (pós-apocalíptica) por um Deus transcendente, a revolução universal ou dos interesses do capital, mas da composição, da decomposição e da tensão avaliadora com as puras matérias elementares, os agenciamentos de enunciação coletiva e a experimentação dos graus de potência a eles correspondentes.

REFERÊNCIAS / REFERENCES ARTAUD, Antonin. O suicida da sociedade. Rio de Janeiro: Editora José Oympio, 2007. BERGSON, Henri. O riso: ensaio sobre a significação da comicidade. 2ª edição. Martins Fontes, 2007. BLANCHOT, Maurice. A parte do fogo. São Paulo. Rocco, 1998. CANETTI, Elias. A língua absolvida. São Paulo: Companhia das letras, 1996. _______________ O Teatro Terrível. São Paulo: Textos 14, 2000. _______________ A consciência das palavras. São Paulo: Companhia de bolso, 2009. _______________ O jogo dos olhos. São Paulo: Companhia de bolso, 2010. _______________ Uma luz nos meus ouvidos. São Paulo: Companhia de bolso, 2010. _______________ Auto-de-Fé. Cosac e Naify, 2011. DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. 2ª edição. São Paulo: Editora 34, 2011. DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Editora Paz e Terra, 2018. FLAUBERT, Gustav. Bouvard e Pécuchet. 2ª edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981. GUINSBURG, J. & KOUDELA, I. D. (Orgs). Büchner: na pena e na cena. São Paulo: Perspectiva, 2004. JARRY, Alfred. Ubu Rei. São Paulo: Editora Peixoto Neto, 2007. _______________ O Supermacho. São Paulo: Ubu Editora, 2016. KELLER, Gottfried. Romeu e Julieta na aldeia. São Paulo. Editora 34, 2013. KOPENAWA, Davi. e BRUCE, Albert. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. São Paulo. Companhia das letras, 2015. 48


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LAWRENCE, David Herbert. O amante de Lady Chatterley. São Paulo: Martin Claret, 2006. RIMBAUD, Arthur. Uma estadia no inferno. Poemas escolhidos. Carta do vidente. São Paulo: Martin Claret, 1983. SCHIAVON, João Perci. A lógica da vida desejante. Curitiba: Editora criar, 2003. VAN GOGH, Vincent. Cartas a Théo. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2002.

SOBRE O AUTOR João Pentagna é escritor, psicanalista, mestre em Psicologia Clínica pelo Núcleo de Estudos da Subjetividade da PUC-SP. Estrutura sua clínica a partir do crivo teórico-pragmático da esquizoanálise deleuziana e pelos critérios éticos das filosofias da imanência. Idealizador e professor do ciclo de aulas Cartografias do Inconsciente e mediador dos grupos de estudo Psicanálise para Além do Édipo. Pentagna atua hoje como analista, supervisor clínico e professor em São Paulo.

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Investigação Baseada nas Artes e Autoetnografia na pesquisa acadêmica: alguns apontamentos Marília Velardi, Nathália Bonilha Borzilo Universidade de São Paulo | Brasil Resumo: As Investigações Baseadas nas Artes propõem inovações metodológicas de modo transdisciplinar em diferentes áreas do conhecimento, trazendo para o protagonismo pesquisas que se fundamentam, sobretudo, em experiências práticas. Assim, considerase que os processos relacionais e intersubjetivos das ações artísticas e pedagógicas, apresentam terreno fértil para estimular a construção de leituras ou interpretações singulares da realidade social, que possibilitem o desvelamento de pessoas e a inserção de contextos sociais e políticos. em que são inseridos. “Como eu penso?”, “Como narrar as experiências vividas, abrindo canais de comunicação sobre teorias vividas na pele?”. Nesse texto nós apresentamos as possibilidades desse tipo de investigação e ampliamos o horizonte para modos de investigar que compreendem a ideia da Investigação Baseada nas Artes e da Autoetnografia, lançando um olhar para as narrativas construídas a partir de processos investigativos imersivos, interpretativos e assumidamente encarnados pela pessoa-pesquisadora. Nessa perspectiva, o espectro apresentado compreende processos artísticos e autobiografias como estratégias de investigação.

Abstract: The Arts-Based Inquiry proposes methodological innovations in a transdisciplinary way in different areas of knowledge, bringing to light research that is based mainly on practical experiences. Thus, it is considered that the relational and intersubjective processes of artistic and pedagogical actions, can be fertile ground to stimulate the construction of singular readings or interpretations of social reality, which allow the unveiling of people and social and political contexts insert. into which they are inserted. “How do I think?”, “How to narrate lived experiences, opening channels of communication about theories experienced in the flesh?”. In this text, we present the possibilities of this type of investigation and broaden the horizon for ways of investigating that understand the idea of Arts-Based Investigation and Autoethnography, taking a look at the narratives built from investigative processes that are immersive, interpretative and assumedly incarnated by the person-researcher. In this perspective, the spectrum presented comprises artistic processes and autobiographies as research strategies Keywords: Arts-based Investigation, Autoethnography, Writing of the Self.

Palavras-chave: Investigação Baseada nas Artes, Autoetnografia, Escrita de si.

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C

ontextualizando brevemente, o termo Investigação Baseada nas Artes (IBA) tem sido paulatinamente construído e incorporado ao vocabulário das investigações acadêmicas desde os anos 70 e 80, quando investigadores norte-americanos passaram a questionar outras abordagens metodológicas que poderiam ser exploradas nas áreas da psicologia, educação, antropologia e sociologia. Thomas Barone e Elliot Eisner (2006) foram os primeiros autores a sistematizarem este campo metodológico em ascensão, com o intuito de fomentar pesquisas que poderiam ampliar ou transformar a compreensão sobre determinadas ações humanas por meio da realização de processos artísticos (OLIVEIRA e CHARREAU, 2016: 271). Como alternativa para se construir investigações acadêmicas que não pertençam e reproduzam modelos hegemônicos das investigações científicas (HERNÁNDEZ, 2008: 86), a Investigação Baseada nas Artes propõe inovações metodológicas de modo transdisciplinar em diferentes áreas do conhecimento, trazendo para o protagonismo pesquisas práticas artísticas e pedagógicas que priorizem processos relacionais intersubjetivos, com o intuito de construir leituras da realidade social. Amparada nas proposições do paradigma construcionista (campo da psicologia social que elaborou a crítica ao cientificismo), a Investigação Baseada nas Artes reflete sobre o modo como as pessoas percebem a realidade, problematizando o contexto histórico-social e o local que ocupam no mundo, de modo a construir interpretações que partam de suas subjetividades. O construcionismo procura refletir principalmente sobre as construções sociais que permeiam a vida cotidiana a partir das relações entre cultura, ideologia, poder, subjetividade, imaginário e representação social no que concerne ao entendimento que temos da realidade (GERGEN, 1999, apud OLIVEIRA e CHARREAU, 2016, p. 368).

Assim, aproximamos aqui as IBAs da figura do pesquisador qualitativo descrito por DENZIN e LINCOLN que atua como um bricoleur (2006), uma pessoa que costura retalhos, apropriando-se de diversas imagens e dispondo-as em sequências de montagens, ou ainda, reinventado palavras e dando corpo às sensações que lhe atravessam durante o processo, por meio da experimentação de diferentes gêneros literários na construção 52


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de registros e formatos singulares de fazer pesquisa. E, nesse sentido, as Investigações Baseadas nas Artes “são formas de investigação que assumem a indivisibilidade entre pensamento, sentimento e ação e que incluem a imaginação entre seus métodos ou estratégias” (FÉRNANDEZ e DIAS, 2017: 28), possibilitando a articulação entre o que sentimos, pensamos e fazemos, na trajetória criada e vivenciada durante a investigação. Radicalizando essa perspectiva afetiva que não ignora, mas, pelo contrário, traz ao centro dos processos de aprendizagens nossas percepções emocionais diante das experiências vividas, que a pesquisadora Victória Royo propõe a perspectiva de uma relação amorosa entre a pessoa pesquisadora e seu objeto de estudo nas investigações acadêmicas (embora a expressão “campo“1 de estudo nos pareça mais apropriada). A autora coloca o objeto de estudo como um outro que afeta, mobiliza, atravessa amorosamente a própria pesquisadora ao longo deste “relacionamentopesquisa artística”. O que me interessa em relação à analogia com os amantes é que ela possibilita conceber esta ligação como um dar e receber, em que ambos os termos se submetem a uma transformação. A relação não é desapaixonada, mas é influenciada por sentimentos. Essa imagem deixa espaço para pensarmos na subjetividade do artista não como uma agência toda poderosa vis-à-vis com um objeto inerte, mas sim em termos de ficar frente a frente a um outro que já não pode mais ser reduzido para limitá-lo ao que estamos acostumados a chamar de objeto de estudo. (ROYO, 2015, p.536).

Neste cenário, em que simultaneamente vivemos, sentimos, pensamos e agimos em nossas investigações artísticas e acadêmicas, revelar o processo torna-se uma escolha metodológica mais coerente com a própria natureza artística da pesquisa, do que formular amostragens de resultados obtidos. E para revelá-lo, nos propomos a construir narrativas e criar dramaturgias que articulem de modo descritivo, assumidamente interpretativo e analítico as ações da pesquisa.

1 A palavra campo é aqui proposta com o intuito de alargar horizontes quanto às compreensões clássicas de pesquisas acadêmicas que são fundamentadas na relação distanciada e objetificada da pessoa pesquisadora com seu material de estudo. Nesse sentido, o campo se revela enquanto um espaço vivo de investigação, percorrido pelos pés de quem se propõe a pesquisá-lo. De modo que é justamente no relacionamento entre a pesquisadora e o campo de estudos, que emerge as demandas de investigação e análises da pesquisa. 53


A construção de histórias supõe uma maneira de conhecer. Significa dizer que dentro da Investigação Artística o processo de escritura narrativa é parte do caminho que se transita durante o qual o artista/investigador errante segue indagando, interpretando e reinterpretando. Através da criação do manuscrito, dá a conhecer seu processo, mas não somente se limita a fazer um relato descritivo de como os fatos aconteceram, como também diante da construção de uma colagem narrativa em que o tempo não é linear, se pode dar a conhecer as diferentes experiências por diversas vias desde outros pontos de vista.2 (ALVAREZ, 2013, p. 64)

Para a autora, uma das tarefas investigativas de artistas pesquisadores é justamente o ato de tomar consciência do processo, profissionalizando nossas atitudes cotidianas, incorporando-as à pesquisa de modo a estruturar a metodologia de investigação (ALVAREZ, 2013: 63). Aqui no Brasil, a Investigação Baseada nas Artes ainda não foi totalmente incorporada nas pesquisas acadêmicas, embora muitas das principais universidades já estejam vivenciando e produzindo conteúdo a respeito, como é o caso da Universidade Federal de Santa Maria, com o grupo de pesquisa “Grupo de Estudos e Pesquisas em Arte, Educação e Cultura”, com orientação da Profª. Dra. Marilda Oliveira de Oliveira e do Prof. Dr. Leonardo Augusto Charreu; da Universidade de Brasília, com o trabalho do Prof. Dr Belidson Dias e da Profª. Dra. Tatiana Fernández; e da Universidade de São Paulo com o grupo de Pesquisa “ECOAR”, coordenado pela Profª. Dra. Marília Velardi. A despeito do lugar da teoria nas investigações artísticas, urge uma questão: como eu penso? Tal questão nos aponta para um processo investigativo em que interessa muito mais a construção de narrativas próprias que revelam como tentamos reinventar, estudar, nos aproximar, traduzir certas “rodas” (teorias) já previamente inventadas, do que postular verdades que anunciam possíveis “descobertas” de novas teorias (VELARDI, 2015: 100). Vale pontuar que a ação de delimitar um espaço

2 Tradução própria, texto original: “La construcción de historias supone una manera de conocer. Es decir, dentro de la Investigación Artística, el proceso de escritura narrativa es parte del camino que se transita durante el cual el artista/investigador errante sigue indagando, interpretando y reinterpretando. A través de la creación del manuscrito, da a conocer su proceso, pero no solo se limita a hacer un relato descriptivo de cómo han sucedido los hechos, si no que mediante la construcción de un collage narrativo en el que el tiempo no es lineal, se pueden dar a conocer las diferentes experiencias por diversas vías, desde otros puntos de vista. (ALVAREZ, 2013, p. 64)” 54


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supostamente “novo”, próprio e inscrito por fronteiras binárias (ou é ou não é), lembra a lógica que opera em processos colonizadores. E assim, práticas artísticas, quando incorporadas em metodologias que priorizam a concepção teórica a priori da experiência prática, por vezes se lançam à busca por comprovações científicas que apenas endossam a reinvenção de rodas que já foram validadas e amplamente disseminadas pela comunidade acadêmica e reproduzem, ainda que inconscientemente, um modo de pensar clássico da universidade ocidental eurocêntrica. E, assim, talvez o lugar da pesquisa artística seja outro na universidade e não este que se desenha frente a antigos paradigmas investigativos. Ecoar e vibrar junto talvez sejam estas também belíssimas tarefas para a pesquisa. Talvez o lugar da pesquisa em Artes na universidade não seja garantido pela capacidade de encontro de verdades científicas, generalizações ou mudanças de paradigmas. [...] Isso é, será – e tem sido – indubitavelmente a grande contribuição das Artes para a Ciência. Ser autêntico, original, criativo. Corajoso. Ser capaz de contar histórias, instaurar dúvidas, proporcionar e trazer para a academia de muitas formas as experiências auráticas. Presenças, potências. Assuntos vivos nas Artes que hoje, inspirados por essa área, move cientistas e teóricos de outros campos (VELARDI, 2015, p.101).

Nossa teoria nasce de nossas práticas encarnadas, intuídas, experienciadas nas trajetórias investigativas. Nasce da autenticidade e risco de assumirmos o protagonismo nos processos artístico-pedagógicos que formam nosso modo pensar e produzir arte no mundo. Desse modo, o caráter declaradamente imersivo e pessoal que as práticas artísticas nos colocam, convocam as Investigações Acadêmicas Baseadas nas Artes a se revelarem enquanto experiências subjetivas, críticas, capazes de compreender seu próprio rastro de criação e pensamento. Neste sentido, a autoetnografia surge como outro campo metodológico com pressupostos semelhantes e complementares aos princípios das Investigações Baseadas nas Artes (IBAs) e aos desejos movedores de pesquisar.

1. A AUTOETNOGRAFIA COMO UM PROCESSO PEDAGÓGICO DE SI PARA O MUNDO 55


A autoetnografia é um método de investigação que ocorre entre os campos autobiográficos e etnográficos, com a finalidade de descrever e analisar sistematicamente a experiência pessoal para criar compreensões da experiência cultural (ADAMS, BOCHNER e ELLIS, 2015: 250). Ou ainda, segundo o sociólogo brasileiro Silvio Matheus Santos, por mais ampla e controversa que seja a definição de autoetnografia, é possível resumi-la a partir de três características: a) usa a experiência pessoal de um pesquisador para descrever e criticar as crenças culturais, práticas e experiências; b) reconhece e valoriza as relações de um pesquisador com os “outros” (sujeitos da pesquisa) e c) visa a uma profunda e cuidadosa autorreflexão, entendida aqui como reflexividade, para citar e interrogar as interseções entre o pessoal e o político, o sujeito e o social, o micro e o macro. (SANTOS, 2017, p. 221)

Assim, a autoetnografia é marcada pelo uso da experiência pessoal para compreender práticas culturais ou ainda colocar em evidência experiências intersubjetivas e relacionais, amparadas num conjunto de descrições e análises à luz de reflexões transitáveis entre os campos pessoalpolítico, subjetivo-social. Obviamente esse enunciado não é simples para compreender a engrenagem das investigações autoetnográficas, porém já nos auxilia a vislumbrar a complexidade de seu território. Em diálogo com o aspecto reflexivo apresentado por Santos, o estadunidenese Denzin faz questão de articular o campo pessoal, pedagógico e político dessas abordagens, convocando nosso olhar crítico no ato de ver e apresentar a nós mesmas e ao outro. O autor apresenta as investigações qualitativas radicais, das quais a autoetnografia está inclusa: A etnografia não é uma prática inocente. Nossas práticas investigativas são performativas, pedagógicas e políticas. Através da nossa escrita e da nossa fala, promulgamos o mundo que estudamos. Estas atuações são desordenadas e pedagógicas. Elas ensinam aos nossos leitores acerca deste mundo e como nos veem. O pedagógico é sempre moral e político; promulgando uma forma de ver e ser, questiona, concursa, ou fazem suas as formas hegemônicas oficiais de ver e representar o outro3. (DENZIN, 2013, p.212)

3 Tradução própria, texto original: “La etnografía no es una práctica inocente. Nuestras prácticas de investigación son performativas, pedagógicas y políticas. A través de nuestra escritura y nuestra charla, promulgamos el mundo que estudiamos. Estas actuaciones son desordenadas y pedagógicas. Ellas enseñan a nuestros lectores acerca 56


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Diante destas possibilidades de pensar o termo, propomos a abordagem autoetnográfica como um processo pedagógico sobre si mesma. Ansiamos, com a autoetnografia, instaurar uma experiência investigativa que se aporte nos relatos do cotidiano, detalhes de recordações, nas efemeridades dos humores, nas experiências do profundo, das introspecções, e da ação de arriscar-se em ato de lembrança e fala. Arriscar a própria moralidade ou autoimagem. Arriscar-nos a nós mesmas, arriscar-nos para nós, “autocuidarmo-nos”. Cuidar de si, estando em si, cuidarmos de nós estando em nós. Compreendemos a autoetnografia como caminho para a produção de conhecimento a partir de uma proposta de investigação artística que almeja olhar para quem somos nós, artistas e pesquisadoras ao lado de pessoas próximas a nós. Por isso esse tipo de pesquisa se debruça, invariavelmente, sobre os passados e histórias íntimas do processo de formação familiar e cultural das pessoas da investigação, analisando as narrativas que dialogam entre si. Se trata de uma arqueologia do desenterrar, para usar a frase de Madison, que não é nunca nem impecável, nem concluída. Se trata de um processo contínuo de fazer visível, escavando, olhando, sentindo, movendo, inspecionando, seguindo e re-localizando antigas e novas recordações (MADISON, 2005). Como autoetnográfo me embebo de minha própria história, minhas memórias e histórias do meu passado4. (DENZIN, 2016, p. 68)

Portanto, para além de habitar a pesquisa em vida, outro conceito-chave desta investigação é o ato de escavar. É preciso adentrar nas profundezas de nossas genealogias e ver o que dali restou do passado. Encontrar os vestígios, reconstruir o mapa daquilo que nos constitui subjetivamente e culturalmente. Refazer a trilha perdida e registrar aquilo que está submerso e nem sempre é tocado.

de este mundo y cómo nos ven. Lo pedagógico es siempre moral y político; promulgando una forma de ver y de ser, cuestiona, concursa, o hace suyas las formas hegemónicas oficiales de ver y representar el otro. (DENZIN, 2013, p.212)” 4 Tradução própria, texto original: “Se trata de una arqueología del desenterrar, para usar la frase de Madison, que no es nunca ni impecable ni concluido. Se trata de un proceso continuo de hacer visible, excavando, mirando, sintiendo, moviendo, inspeccionando, siguiendo y re-localizando recuerdos antiguos y nuevos (MADISON, 2005). Como autoetnógrafo me embebo en la historia propia, mis memorias e historias de mi pasado. (DENZIN, 2016, p. 68)” 57


Junto da escavação, se encontra a tarefa de construir poéticas próprias por meio do gesto criativo que é entendido aqui como traduzir. Assim, a pulsão de criar as materialidades cênicas reside no desafio de elaborar traduções das experiências em campo. Como fazer teatro partindo da intenção arqueológica de escavar a nós mesmas? Portanto, o exercício intelectual e artístico de formular traduções é proposto como um disparador que nos coloca em movimento criativo. E para formular traduções, mais uma vez é preciso voltar o olhar sobre o modo de pensar: Como penso quando eu me proponho a rememorar um processo ou experiência que vivi? Como EU penso? Como dizem para eu pensar? Rompo ou aceito? E quando penso, observo e descrevo um processo artístico ou pedagógico que estou (vi)vendo, como descrevo e escrevo? Atuo na escrita? Permito erigir uma escrita atuada, performática? (VELARDI, 2018, p. 48)

Por se tratar de temas pessoais, evidentemente que alguns tensionamentos emergem do processo, implicando em escolhas éticas permanentemente: o que revelaremos? Como recortar o vivido? Quais narrativas contribuirão com o pensar coletivo? Como traduzir as significâncias construídas neste percurso? Numa abordagem mais profunda, esse processo envolve uma consciência da influência recíproca entre etnógrafos, suas configurações e informantes. Implica uma introspecção autoconsciente guiada por um desejo de entender melhor tanto o ‘Eu’ e os ‘Outros’ através do exame de suas ações e percepções em referência ao e no diálogo com os outros. (ANDERSON, 2006, apud SANTOS, 2017 p.224).

Construção e reinvenção constante das identidades de nós, investigadoras do processo, e as pessoas com quem trocamos, aprendemos e provocamos diversas situações de ensino-aprendizagem artísticas e pessoais. E deste modo, a autoetnografia é também aqui um modo de pesquisar para se compreender, (re)construir, e permanentemente se formar, de si para o mundo.

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SOBRE AS AUTORAS Marília Velardi é professora na Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH/USP) no Programa de Pós-Graduação em Mudança Social e Participação Política. Como pesquisadora volta as atenções para as investigações qualitativas e radicalmente qualitativas, buscando construir conhecimento sobre possibilidades de investigação acadêmica em Artes. É coordenadora do Grupo de Estudo e Pesquisa ECOAR, que atualmente tem como focos: (a) construir conhecimento com artistas sobre a Arte; (b) buscar epistemologias artísticas como suporte para as investigações qualitativas e (c) criar estruturas de performances dos dados ou dos conhecimentos produzidos nas investigações. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2230-9319. E-mail: marilia.velardi@usp.br Nathália Bonilha Borzilo é atriz, diretora e educadora teatral. Mestranda do Programa de pós-graduação em Mudança Social e Participação Política, da EACH/USP, é bacharela em Artes Cênicas, com habilitação em Direção Teatral, formada pela ECA/USP. Cursou Licenciatura em Arte-Teatro no IA/Unesp, é atriz formada pelo curso Técnico Profissionalizante de Atores do teatro Escola Macunaíma. É fundadora da Cia Ato Reverso, onde trabalha desde 2012 como atriz, diretora, dramaturga e produtora. Atualmente é integrante do grupo de pesquisa ECOAR, coordenado pela Profa. Dra. Marilia Velardi, que também orienta sua pesquisa de mestrado “Por uma autoetnografia artístico-pedagógica: mulheres em criação”. E-mail: nbborzilo@usp.br

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A arte orientando a pesquisa: a Investigação Baseada nas Artes como possibilidade metodológica Renata F. Matsuo; Paulo Maron; Marilia Velardi Escola de Artes Ciências e Humanidades de São Paulo/USP | Brasil Resumo: O objetivo deste trabalho é narrar o processo de criação artística realizado a partir de uma pesquisa orientada pela Investigação Baseada nas Artes. Trata-se de um método de pesquisa que faz uso dos princípios criativos das artes e do modo de pensar artístico. Neste trabalho, as artes mediaram todo o percurso investigativo, que teve como ponto de partida encontros realizados com mulheres, alunas de dança em atividade no período da pandemia. Foram propostas vivências corporais, para mulheres com idades entre 19 e 50 anos. A partir de reflexões inspiradas pela leitura do texto “Se eu fosse eu” (Clarice Lispector), foram produzidas materialidades que motivaram a criação de uma dramaturgia. Os processos da criação artística que delinearam esse trabalho são modos de pensar e agir, o que nos leva a acreditar que o fazer artístico pode inspirar bases epistemológicas na construção de uma investigação, especialmente no campo das pesquisas qualitativas mais radicais.

Abstract: The objective of this work is to narrate the artistic creation process carried out from a research guided by Research Based on the Arts. It is a research method that uses the creative principles of the arts, and the artistic way of thinking. In this work, the arts mediated the entire investigative path, which had as a starting point meetings with women, dance students working during the pandemic period. Bodily experiences have been proposed for women aged between 19 and 50 years. From reflections inspired by reading the text “If I Were Me” (Clarice Lispector), materialities were produced which motivated the creation of a dramaturgy. The artistic creation processes, which outlined this work, are ways of thinking and acting, which leads us to believe that artistic making can inspire epistemological bases in the construction of an investigation, especially in the field of more radical qualitative research. Keywords: research based on the arts, qualitative research, artistic creation, dance.

Palavras-chave: investigação baseada nas artes, pesquisa qualitativa, criação artística, dança.

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tuamos com arte, nas artes e sobre artes. Quando construímos uma cena, uma coreografia, ou compomos uma música, desenvolvemos condutas de pesquisa, que são direcionadas por nossas escolhas estéticas. As tomadas de decisão, a escolha dos processos e técnicas envolvidas, a construção e produção criativa se dão por processos próprios das artes nas quais, como artistas, estamos mergulhadas, e os processos incorporados (FERNANDEZ, MATSUO E VELARDI, 2017). A arte é nosso ofício1. E como artistas, como nós pensamos? E como esses modos de pensar podem alicerçar nossos fazeres investigativos? Renata é artista do corpo. Bailarina, performer, professora de dança e investigadora da/na/sobre as artes na Universidade de São Paulo (USP). Paulo é maestro, compositor, encenador, cenógrafo e figurinista. É fundador e diretor do NUO-Ópera Laboratório, que desde 2004 investiga novas possibilidades para a encenação e adaptação em ópera. Marilia é professora e pesquisadora na Escola de ARTES, Ciências e Humanidades da USP. Coordena o Grupo ECOAR2 e tem proposto intervenções, performances, encenação e projetos de investigação junto a artistas, estimulando e construindo práticas e estudos sobre preparação corporal para a performance, encenação e criação. Como pessoas investigadoras, inseridas no grupo de estudos ECOAR, temos buscado coerência em construir a pesquisa a partir de como pensamos. Acreditamos que na universidade, como pesquisadoras, devemos construir a estruturação do nosso pensamento, o modo como pensamos, relacionando a nossa biografia àquilo que investigamos. Adotar um método deveria significar estudarmos os estudos dos métodos: metodologias (etimologicamente compreendida como os estudos sobre os caminhos para investigar). Ou seja, estudarmos os modos como os métodos foram construídos e identificarmos se como

1 Aqui a ideia de ofício parte de Charles Wright Mills (1972), entendendo que não há separação entre vida e trabalho. O trabalho como ofício significa fazer uso da sua experiência de vida no seu trabalho a todo instante. 2 Grupo de estudos em Corpo e Arte, vinculado ao programa de Mudança Social e Participação Política na Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP. 64


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pensamos e agimos está intrinsecamente relacionado àquele método que optamos por utilizar. Para isso seria fundamental nos indagarmos: como nós pensamos, como o nosso pensamento sobre as coisas foi construído e se construindo ao longo da nossa biografia? Sabemos sobre isso ou somos impelidas a formular problemas, objetivos e delimitarmos objetos antes mesmo de sabermos como pensamos sobre o que vemos, vivemos e lemos? Nós sabemos como pensamos quando pensamos em escolher métodos como forma de proceder e de fazer acontecer a pesquisa que faremos? (VELARDI, 2018, p.48).

O início do processo investigativo precisa ocorrer por meio da reflexão sobre como pensamos, e isso é anterior à escolha da técnica que será operacionalizada. Método é forma de pensamento, pensamos sobre e não somente para (instrumentos e procedimentos). É necessário saber como pensamos para, então, escolhermos como proceder (VELARDI,2018). Nesse sentido, no ECOAR, temos nos mobilizado a encontrar processos investigativos que rompam com as estruturas convencionais das epistemologias criadas nas disciplinas clássicas, naquelas onde a ciência é a forma primeira de construção de conhecimento. Nós tentamos encontrar formas de investigar e de legitimar nossas investigações, que são feitas no campo das artes, buscando modos de pensar que sejam artísticos e artesanais, para que, além de nos inspirar, articulem conhecimentos teóricos e experienciais (sensoriais e subjetivos), acreditando que, assim como a ciência, a arte também é um modo de pensar o mundo. O autor Johnny Saldaña, professor de teatro da Escola de Artes da Universidade do Estado do Arizona, nos instiga a “Pensar como um artista!”. Em seu livro “Thinking Qualitatively: methods of mind”, de 2015, ele nos provoca a construir nossas investigações a partir de diferentes formas de pensar (analítica, simbólica, narrativa, poética, artisticamente...). Pensar artisticamente, para Saldaña (2015), é perceber que os acontecimentos da vida são organizados esteticamente e se relacionam com os sentidos, evocando respostas emocionais. Pensar artisticamente na construção das nossas investigações nos incita a encontrar nossa própria forma de pensar como artistas que somos e, a partir desse lugar, explorar o mundo (o campo, a vida) para compreender, construir e produzir conhecimento. A ideia de fazer uso dos processos artísticos na academia tem sido bastante abordada e discutida por autores e autoras que, ora aproximam 65


e ora distanciam este modo de pensar a construção de conhecimento do modo hegemônico de se fazer pesquisa na universidade. Essas reflexões têm acontecido em lugares e contextos diferentes, em países da Europa, da Oceania e aqui, na América Latina. Esse modo de se fazer pesquisa detém uma grande variedade de possibilidades, e cada grupo de pesquisadores, levando em consideração as características e necessidades (políticas e teóricas), têm nomeado e classificado à sua maneira: Pesquisa Artística, A/r/tografia, Pesquisa baseada nas artes, Pesquisa baseada na prática, Investigação performática. Optamos por usar o termo investigação (Baseada nas Artes), pois buscamos nos distanciar das visões mais tradicionais e padronizadas do “fazer pesquisa” na universidade, retirando o status da pesquisa e implantando a simplicidade do ato investigativo (sem hierarquização de termos, mas diferenciação e distanciamento). Além disso, acreditamos que a IBA seja por excelência uma forma de se fazer pesquisa qualitativa e, mais precisamente, pesquisa “radicalmente” qualitativa, isto pois entendemos que as investigações qualitativas acontecem num espectro (figura 1), cujo vórtex é um continuum que vai daquelas investigações qualitativas realizadas sob uma perspectiva positiva de ciência, até os estudos que têm sido construídos na busca de novas epistemologias, denominadas radicalmente qualitativas ou pós qualitativas. A imagem do espectro se dá também pelo fato de acreditarmos que o eixo representa as pesquisas que ocorrem dentro da universidade, mas nas extremidades verticais, ao longo desse espectro e borrando as nossas pesquisas, há a vida comum, em movimento, com diferentes cosmologias, com conhecimentos comuns e ancestrais, e sem hierarquização, há as teorias cunhadas nas universidades (VELARDI, 2018).

FIGURA 1 – Espectro das investigações qualitativas. Fonte: acervo do grupo ECOAR.

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A IBA estaria na extremidade oposta das pesquisas mais tradicionais, na ponta contrária, onde se localizam as pesquisas denominadas radicalmente qualitativas, influenciando e sendo influenciada pela vida comum assim como pelas teorias. Essa forma de fazer pesquisa envolve uma tarefa artesanal, cuidando e valorizando os percursos e processos, narrando detalhadamente cada acontecimento, algo essencial quando a pesquisa busca investigar experiências vivas, no mundo em movimento. Esta talvez seja a grande contribuição dessa forma de se pensar a pesquisa na universidade, inspirada nas artes, possibilitando trazer à tona o que é sensível e experiencial, dando vida ao processo, seja na escrita ou na materialização da experiência sensível. Isso é, será – e tem sido – indubitavelmente a grande contribuição das Artes para a Ciência. Ser autêntico, original, criativo. Corajoso. Ser capaz de contar histórias, instaurar dúvidas, proporcionar e trazer para a academia de muitas formas as experiências auráticas. Presenças, potências. Assuntos vivos nas Artes que hoje, inspirados por essa área, move cientistas e teóricos de outros campos. O vazio da ciência nas Artes ecoa mais do que a busca de adequação aos ditames científicos. Contar sobre processos e percursos singulares é assumir que esses caminhos podem elucidar sobre como pensamos, formulamos e tomamos consciência das nossas inquietações. (VELARDI, 2015, p. 101 - 102).

Neste trabalho nós procuramos exercitar o conhecimento comum, a vida das mulheres que estão experimentando esses momentos de pandemia, que discutem e pensam sobre suas atribuições, os seus trabalhos e os seus ofícios, e trazer essas percepções e reflexões em diálogo com o modo de pensar arte ciência e conhecimento na academia. Posto isto, o objetivo deste trabalho é narrar o processo de criação artística realizado a partir de uma pesquisa orientada pela Investigação Baseada nas Artes (IBA).

1. NARRATIVAS DOS PROCESSOS A criação artística, assim como a construção do conhecimento acadêmico pautado na experiência vivida, é uma práxis que se apresenta como possibilidade tanto no campo das Artes quanto na Academia. Saberes podem ser construídos de diversas maneiras a partir de vivências pessoais (BORZILLO e MENESES, 2020 p. 83). 67


A partir deste ponto nos propomos a narrar nossas vivências pessoais como artistas/pesquisadoras, mergulhadas na experiência da criação artística. Optamos pela IBA como uma opção metodológica e, portanto, narramos nossos processos de construção de conhecimento, que é artístico, mas ao mesmo tempo acadêmico. Esse processo se deu em diferentes etapas que ocorreram de maneira não linear, mas em espiral.

1.1. Vivência Corporal As narrativas que seguirão foram realizadas por nós, pessoas pesquisadoras, cada qual em seu processo. Para identificar cada pessoa e seu processo, optamos por colocar em itálico nossas falas e expressões, destacando os nomes em negrito. Renata: Sou professora de dança, trabalho dando aula para crianças e mulheres. Durante este período da pandemia optamos por manter nossas aulas de maneira remota, fazendo uso de aplicativos de vídeo. Durante uma das aulas com as mulheres, ao questionar sobre o dia delas, me deparei com muita tristeza, insatisfação e cansaço. Ficamos por quase quarenta minutos “só” conversando (e a aula tinha sessenta minutos). Essas mulheres reclamavam do aumento das tarefas, tanto no trabalho quanto dentro de casa. Abordavam sobre a falta de “ajuda” dos maridos, da bagunça dos filhos e sobre as dificuldades com a escola e as lições das crianças. Vez ou outra, no decorrer das aulas, uma mulher se ausentava: - Desculpe Rê! Tive que apagar um incêndio por aqui! (E eu torcendo para ser só uma metáfora). Optamos por construir essa vivência corporal por meio da educação estética/artística, proporcionando experiências corporais e reflexivas. A fim de fomentar processos de reflexão sobre questões sociais, neste caso ser mulher e vivenciar a pandemia, propusemos como parte desse processo o diálogo, a reflexão e a expressão artística, performando o cotidiano, criando e refletindo com base nas artes aquilo que as toca na vida diária. Elaboramos então nossa vivência corporal, inspiradas em técnicas de educação somática, dança moderna e contemporânea. Fundamentando nossas ações para a construção dessa vivência corporal estão as proposições de Augusto Boal, que inspiram o Teatro do Oprimido (BOAL, 2009), uma ação artística que propõe a instauração da dúvida para que pedagogicamente se possa favorecer a descoberta. Boal propõe com o Teatro do Oprimido o método subjuntivo em dois tempos: • pretérito imperfeito: “... e se eu fizesse?” 68


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• futuro: “... e se eu fizer?” Em seu pensamento, a experimentação da ação futura, antidogmatismo, favorece a conscientização de si no mundo. Colocando as pessoas no centro da ação artística, a estética do oprimido pode auxiliar as pessoas a descobrir a arte, a sua própria arte, descobrindo a si, o mundo e sua relação nele e com ele. Objetivando instaurar o método subjuntivo proposto por Augusto Boal (2009), buscamos trazer uma questão que possibilitasse a experimentação da ação futura. Nos inspiramos no texto “Se eu fosse eu” de Clarice Lispector (1999). O texto da autora foi lido na íntegra para as participantes, que foram instigadas a responder por meio do corpo a questão: “Pense, se você fosse você, como seria e o que faria?”. Vale salientar que o objetivo da vivência não foi produzir ou coletar dados diretos para o estudo, mas aprofundar estudos nas situações que emergiram espontânea e contingencialmente na prática profissional, cuja proposta foi demonstrar as possibilidades de integração entre experiência artística/estética e reflexão.

2. CRIAÇÃO ARTÍSTICA COLETIVA O diálogo que se segue ocorreu após a vivência corporal, delineando as ações do percurso de criação artística: Renata: Após a vivência, elas falaram muito sobre a capacidade de se perceber pelo movimento. De se mover e perceber melhor a si, as relações e o ambiente. Marilia: Isso é a pedagogia da pergunta! Quando você optou por se inspirar na educação somática e nas lições de Feldenkrais e no Teatro do oprimido de Augusto Boal, você trouxe a reflexão e a consciência pelo movimento. Renata: Algumas não quiseram falar após a aula, inclusive disseram que se falassem iriam chorar. Elas me enviaram os materiais que solicitamos, enviaram vídeos, áudios e textos que conferiram o desencadeamento do processo da vivência realizada. Marilia: Ótimo! Agora sua tarefa vai ser ler, assistir e ouvir essas mulheres. Na pesquisa social, quando fazemos entrevista, olhamos e buscamos formas de interpretação na linguística. Você, como artista, irá interpretar transformando os 69


discursos dessas mulheres (disponíveis nos recursos produzidos) em movimento. O que você acha de convidarmos o Paulo para participar dessa criação artística? Renata: Acho ótimo! Já vou fazer o convite.

2.1. O processo Convite aceito. Após algumas reuniões e conversas iniciamos nossa construção artística. A seguir narraremos cada uma das etapas desse processo: Renata assiste, lê e ouve os materiais para impressões iniciais e envia áudio para Paulo sobre a ideia de criar quatro personagens a partir dos discursos: Luana, Marcela, Agatha e Daniela. Paulo começa a criação dos figurinos a partir das ideias preliminares de Renata. Renata: Quando entrei em contato com o material chorei muito... Percebi algumas aproximações entre elas (e entre mim). Apesar de serem mulheres tão diferentes e singulares, a aproximação estava nas sensações e nas dores. Selecionei quatro mulheres e o que mais me chamou atenção foi a questão de elas se sentirem presas... Paulo: Os figurinos vieram a partir de conversas com a Renata. Eu não tinha lido os depoimentos transcritos e, com base no que conversamos, eu pensei nesses quatro figurinos. Em especial, o que me chamou atenção foi das mulheres se sentirem presas... Curiosamente, três deles remetem a um tipo de figurino mais atemporal, que poderia ser do séc. XVII ou XVIII ou XIX, quer dizer, esses três poderiam ser de qualquer período. Na minha cabeça pensei em expor, que alguns problemas que as mulheres enfrentam, atravessam os séculos, então eu optei por isso. Inclusive um dos figurinos que tem cordões e amarras é uma coisa mais medieval, e a escolha pelas saias, ou seja, tudo remete a qualquer período. Com exceção de um deles, que é mais moderno, pois teve uma escolha peculiar para ele.

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FIGURA 2 - Figurino da personagem Luana. Fonte: acervo pessoal.

FIGURA 3 - Figurino da personagem Marcela. Fonte: acervo pessoal.

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FIGURA 4 - Figurino da personagem Agatha. Fonte: acervo pessoal.

FIGURA 5 - Figurino da personagem Daniela. Fonte: acervo pessoal.

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2.2 As personagens Renata: Após transcrever e selecionar palavras que inspirassem a minha movimentação, comecei a criar partituras corporais para cada uma dessas mulheres. Partituras singulares, que traziam minha interpretação do discurso de cada uma. Paulo: Normalmente, depois de uma cenografia feita é que se vê o tipo de figurino, às vezes até as duas coisas ao mesmo tempo. Eu fiz um processo diferente, cada um dos figurinos é que geraram os cenários. A seguir descreveremos cada uma das personagens criadas, e que compuseram a dramaturgia.

FIGURA 6 - Performando Luana. Fonte: acervo pessoal.

Personagem Luana: Quando você leva a gente a refletir o que a gente seria, acho que vem muita coisa na cabeça, são muitas escolhas que me levaram nesse caminho, até esse lugar que eu estou hoje, e que se talvez eu não tivesse feito essas escolhas, eu não estaria passando por esse momento, de tanto medo, de angústias, de afastamento (...) porque eu sou um veículo ambulante de transmissão de COVID, atuando diretamente na saúde. (...) éramos livres até pouco tempo atrás, e agora de alguma maneira somos enclausurados em casa ou no trabalho pelos equipamentos de proteção, que na verdade protege o corpo e enclausura a alma. 73


Renata: A palavra “enclausurado” me inspirou na criação dos movimentos, reverberando na construção de uma partitura corporal repleta de resistências e bloqueios. Para isso, experimentei criar a movimentação no chão, em um espaço restrito, no canto da parede. O uso da corda veio depois, já na gravação da cena, o que me ajudou na construção do corpo “aprisionado”. Paulo: No figurino azul, que usa cordas, eu pensei muito em masmorra, em escuridão, por isso aquele fundo preto. Pensei também naquele canto do palco que a gente gravou... enclausurada.

FIGURA 7 - Performando Marcela. Fonte: acervo pessoal.

Personagem Marcela: Acho que se eu fosse eu, não seria quem eu sou, mas faltaria alguém me falar olha você é assim! (...) Eu sou uma pessoa cheia de sonhos, mas eu tenho passado por um momento muito difícil, mas é um sonho muito grande meu... eu sempre sonhei em ser médica... Onde está a motivação inicial? (...) Se eu pudesse ser eu, agora, eu seria uma pessoa menos insegura de mim, sabendo que eu consigo alcançar os meus objetivos e talvez que não sentisse tanta pressão, que eu mesma coloco em cima de mim. Se eu 74


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pudesse dizer algo para mim mesma, algo que realmente fosse efetivo que eu conseguisse realmente aplicar é: TÁ TUDO BEM! Tá tudo bem não ser a melhor sempre, tá tudo bem não conseguir muitas vezes... Renata: Ao transcrever esse discurso, me emocionei muito. O ritmo da fala dessa mulher era muito acelerado e, quando ela parava de falar, chorava. As palavras pressão e insegurança me tocaram, então busquei uma movimentação que fosse acelerada, mas que intercalasse com momentos de pausa e imobilidade (“TÁ TUDO BEM”). A partitura foi realizada em diferentes dinâmicas e tamanhos, mas sempre seguindo esse ritmo. Apesar de não ter construído a coreografia fazendo uso da mesa, foi interessante e desafiador adaptar a movimentação sobre a mesa. Paulo: Para esta mulher, que justamente era a mais jovem, eu quis fazer uso da mesa (uma vez que ela está estudando para medicina). E apesar da Renata não ter pensado na coreografia em uma mesa, eu achei que deveria ter essa superfície para que ela se deitasse. Minha ideia era também que viesse uma luz natural, por isso o fundo com a luz natural da janela.

FIGURA 8 - Performando Agatha. Fonte: acervo pessoal.

Personagem Agatha: Se eu pudesse mudar alguma coisa do meu passado, o que eu mudaria hoje? Reflexões iniciais: nada. Sou tão grata? Sou. Apenas aceito o meu presente e vivo intenso, mas alguns pensamentos: Será 75


que fui? Podada? Sim eu fui! Se eu fosse eu, eu mesma... deixaria de trabalhar cuidando de números e passaria a cuidar de gente... Se eu fosse eu, eu mesma... ME DESPRENDERIA DE TODAS MINHAS AMARRAS... Renata: Essa foi a interpretação mais difícil para mim. O discurso dessa mulher era muito confuso. Ora ela estava feliz com sua vida, ora ela mudaria tudo. O que me direcionou na criação foi a palavra podada e a frase: “ME DESPRENDERIA DE TODAS AS MINHAS AMARRAS”. Busquei uma movimentação forte contrapondo a suavidade. Essa alternância foi feita também com a mudança de direção do corpo no espaço. Paulo: Esse discurso me chamou muita atenção, então eu pensei nessas amarras de tecido, como se fossem teias. Após ler o depoimento, sinceramente, eu achei que essa mulher era a mais prisioneira de todas.

FIGURA 9 - Performando Daniela. Fonte: acervo pessoal.

Personagem Daniela: Se eu fosse eu, meu quadril seria a inteligência nata, faíscas em brasa criariam melodias de luz e sombra. (...) Se eu fosse eu, viveria nua e puta, jorrando de prazer. Nem passado, nem futuro; presente, eu estaria a gozar a vida. Renata: A minha inspiração para essa coreografia veio tanto da força poética do discurso dessa mulher, quanto da proposta do Paulo, do tecido dourado, unindo o figurino ao cenário. Minha movimentação procurou sair 76


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de um lugar aprisionador (o tecido) e ir aos poucos me libertando, buscando “gozar a vida”, “jorrando de prazer”. Paulo: Quando li esse discurso achei que se encaixaria perfeitamente com a ideia do figurino dourado, com as amarras sem costura, onde o cenário fosse feito com o mesmo tecido que o figurino, como se ela se fundisse nesse mundo dela, uma coisa única. Me inspirei nisso porque essa pessoa, que apesar de seus medos e inseguranças, se ela fosse ela, gostaria de ser livre. Além disso, apareceu no discurso a ideia de ondas, então eu logo pensei, em usar um grande tecido e a fusão dele com o figurino.

2.3 Construção cênica e filmagem Nos reunimos no espaço NUO Ópera Lab3 e demos vida ao processo artístico, criando uma dramaturgia, que foi interpretada nos cenários, figurino e coreografia. A junção desses processos resultou em um vídeo experimento, que foi apresentado no III Colóquio Metodologias de Pesquisa em Artes. Paulo: Desde o momento que eu criei os figurinos eu pensei em como trabalhar essa luz para filmagem. Em geral pouca luz, porque eu pensei em filmar um padrão a meia distância (plano americano). No dourado eu optei por uma filmagem distante, mas nas quatro cenas fiz uso de “closes”, porque isso seria importante para mim, usar o que a gente chama de inserts, pegando close de mão, das cordas quando estava amarrada, do rosto, do tecido, por exemplo. Para edição do vídeo, eu pensei nessa ideia de misturar algumas passagens de cada mulher, pois havia uma temática semelhante entre as quatro... Renata: Lendo os discursos me saltou aos olhos as conexões entre eles... percebi que apesar das singularidades, havia algo comum: a sensação de aprisionamento, mas também uma busca pela liberdade. Apesar de ter construído as coreografias individuais e separadas, na hora da gravação criei uma partitura corporal comum, que se repetia ao final de cada coreografia, com dinâmicas e ritmos diferentes, mas com o objetivo de representar essa ligação entre essas mulheres. Após ouvir, ler e sentir as falas dessas mulheres, nos sentimos provocados a convidar atrizes para transformar a materialidade produzida em texto falado.

3 Espaço físico que abriga o NUO-Ópera Laboratório, uma companhia de ópera estável, criada pelo maestro e compositor Paulo Maron no ano de 2003. 77


Marilia: Em nossas pesquisas buscamos formas de escuta, de ouvir em plenitude. Acho que seria interessante convidarmos as mulheres atrizes do Grupo Ecoar para ouvirem/lerem esses discursos e criarem uma “persona” (não é uma personagem e nem serão elas). Elas, como artistas, podem representar esses discursos com suas vozes, e poderíamos utilizá-los na construção do vídeo. Convidamos então: Anna Longano, Marina Corazza, Diane Boda, Nathalia Bonilha. Elas entraram em contato com as materialidades produzidas pelas mulheres e, representando uma persona, nos emprestaram suas vozes. Um pequeno trecho da filmagem dessa criação artística coletiva pode ser visualizado no link através do QR code abaixo:

2.4 Construção da música O objetivo desse artigo foi narrar os processos da nossa investigação, que ainda está em andamento. As escolhas e tomadas de decisão foram direcionadas por nosso fazer artístico, nosso modo de pensar e de investigar. A próxima etapa, em elaboração, é a construção da música. Paulo: Estou pensando a música como trilha sonora, o que é um processo inverso, pois normalmente se faz primeiro a música, depois a coreografia, e no nosso processo nós invertemos. Então eu acho bem interessante isso porque no fim é o conceito de trilha sonora. Eu verei a imagem e depois escreverei a música. E nesse caso, não é só a imagem, é também a palavra dita por essas mulheres. Uma experiência bem diferente para quem escreve música. Eu penso 78


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que deva ser uma coisa só, única, e não separado, porque elas têm pontos em comum, por isso que eu pensei em usar o mesmo tema com variações. Todas elas têm esses pontos em comum, e isso seria o tema, do ponto de vista musical. Então teríamos quatro variações do mesmo tema. Também quero usar a edição final do vídeo, para levar em conta a rítmica do movimento e de como as atrizes falam os textos.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS A arte compreende modos de pensar o mundo e para investigar fazendo uso desses modos de pensar, se faz necessário narrar, descrever, contar sobre como fizemos nossas pesquisas. Quando pensamos em trazer a experiência como cerne da investigação, a IBA pode ser um percurso investigativo fundamental, uma vez que o processo artístico permite criar uma suspensão do tempo. O tempo para, e o que existe no processo é a duração. Como pessoas artistas/pesquisadoras precisamos estar presentes e atentas para perceber cada acontecimento durante o processo, e narrar essas ocorrências. Nossas pesquisas são artísticas, e não porque falam sobre arte, mas porque se inspiram nas artes e no modo de pensar artístico. Vivemos um momento de muitas incertezas e dúvidas, e não é diferente na universidade. Construir investigações artísticas, comprometidas com o mundo em que vivemos, advogando pela ética e estética é assumir um posicionamento político dentro da universidade.

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REFERÊNCIAS / REFERENCES BOAL, Augusto. A estética do oprimido. Rio de Janeiro: Garamond, 2009. BORZILO, Nathália Bonilha; MENESES, Emerson Silva. Pesquisas e processos artísticos de si e do(s) nós. IN.: BETTINE, MARCO. Mudança social e participação política: os conflitos, as transformações e as utopias. SÃO PAULO: Escola de Artes, Ciências e Humanidades: 2020. P. 83-91. LISPECTOR, C. A descoberta do mundo. (crônicas). Rocco: Rio de Janeiro, 1999. FERNANDEZ, Wesley; MATSUO, Renata Frazão; VELARDI, Marilia. A investigação baseada nas artes ou o arts based research como estratégia de investigação. In.: PEREIRA, Diamantino (org) Mudança Social e Participação Política: estudos e ações transdisciplinares. São Paulo: Annablume, 2017. LEAVY, Patricia (Ed.). Handbook of arts-based research. Guilford Publications, 2018. MILLS, Charles Wright. A imaginação sociológica. 3.ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1972. SALDAÑA Johny. Thinking Qualitatively: methods of mind. Washington DC: SAGE, 2015. VELARDI, Marilia. Questionamentos e propostas sobre corpos de emergência: reflexões sobre investigação artística radicalmente qualitativa. MORINGA-Artes do Espetáculo, v. 9, n. 1, p. 43-54, 2018. _________________. Pensando sobre pesquisa em artes da cena. In: 5o Seminário de Pesquisas em Andamento PPGAC/USP. São Paulo: PPGAC-ECA/USP, p. 97102, 2015.

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SOBRE OS AUTORES Renata Frazão Matsuo: Artista, educadora e pesquisadora. Doutoranda do Programa Mudança Social e Participação Política (PROMMUSP) da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH-USP). Co-coordena o Grupo de Estudo e Pesquisa ECOAR - Estudos em Corpo e Arte na EACH-USP. Como performer atua na Phalibis Cia de Dança, dançando trabalhos de dança contemporânea desde 2000. No NUO-Ópera Laboratório atua desde 2015 como convidada para performar e coreografar. Compõe o quadro docente do Phalibis Studio de Dança, da Universidade Paulista (UNIP) e da Faculdade Flamingo. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7115-6251. E-mail: renata.matsuo@ usp.br. Paulo Maron: Maestro, compositor, encenador, cenógrafo e figurinista natural de São Paulo. Possui mestrado em Musicologia pela UNESP e doutorado em musicologia pela USP. Foi professor universitário, atuante nas áreas de orquestração, composição e regência, harmonia e história da arte. É fundador e diretor do NUO- Ópera Laboratório que desde 2004 investiga novas possibilidades para a encenação e adaptação em ópera. Com esse grupo já realizou mais de 30 montagens em teatro, dança e ópera, atuando como diretor. Como compositor já criou trilhas para teatro assim como diversas peças de concerto para diversos grupos. ORCID: https://orcid.org/0000000171333847. E-mail: maron.nuolab@ gmail.com. Marilia Velardi: Professora na Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH/USP) nos cursos de graduação em Educação Física e Saúde e no Ciclo Básico. Na mesma Escola também atua como docente e orientadora no Programa de Pós-Graduação em Mudança Social e Participação Política. Na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP) atua como docente nos cursos de bacharelado em Música e de Pós-Graduação em Artes Cênicas. Como professora e pesquisadora volta as atenções para as investigações qualitativas e radicalmente qualitativas, buscando conhecer e construir conhecimento sobre possibilidades de investigação acadêmica especialmente em Artes. Na EACH/USP criou e coordena o Grupo de Estudo e Pesquisa ECOAR. ORCID: https://orcid.org/000000022309319. E-mail: marilia.velardi@usp.br.

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O corpo é um processo contínuo de produção de si e de seus mundos


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O corpo é um processo contínuo de produção de si e de seus mundos: cinco diálogos encarnados para se aproximar do presente Regina Favre Laboratório do Processo Formativo | Brasil Resumo: Nos Seminários de Anatomia Emocional e de Biodiversidade Subjetiva que aconteceram ininterruptamente no Laboratório do Processo Formativo entre 2000 e 2017, estudamos e pesquisamos como os corpos se produzem e no mesmo ato produzem continuamente ambiente. Esse conhecimento, simultaneamente conceitual e experiencial, prepara os corpos não só para a clínica do corpo subjetivo, e outras formas de trabalho com a presença, mas para a própria vida de toda e qualquer pessoa, artista ou não, que conceba a vida como obra de arte. A Instalação Didática, que criei ao longo desses processos de ensino e produção de conhecimento sobre o corpo, na própria experiência de convívio e estudo imersos em um ambiente tecnológico de gravação, exibição, contemplação e prática, visa evidenciar que somos corpos que se produzem autopoiéticamente em ecologias. Na repetição através dos anos dessa experiência com esse dispositivo autogravante e generativo de material audiovisual e textual, aprender a não temer a abundância foi o pulo do gato: um modo vincular multimídia de captar e editar as dramaturgias do pensamento encarnado. Palavras-chave: instalação didática, processo formativo, biodiversidade subjetiva, anatomia emocional, esquizoanálise.

Abstract: Along the Emotional Anatomy and Subjective Biodiversity seminars that happened continuously, since to 2000 to 2017 in the Laboratório do Processo Formativo (São Paulo), I developed a particular way of studying in act, the how bodies produce, non-stop, simultaneously, both themselves and their environment. This knowledge, at the same time, conceptual and experiential, is an education of the subjective body designed not only for somatic practicioners coming from the clinical or educational areas but also constitutes itself as a training of the embodied presence for anyone, beeing an artist or not, who would consider living as a work of art. This convivial study, merged in a technological environment, where the overlaping actions of grouping, experiencing, capturing, recording, exhibiting, contemplating, conceptualizing and edditing occur all the time, is part and parcel of this methodology I call Didactic Instalation. This formative strategy aims deeply making evident for participants that we are bodies and that we produce ourselves and our ecologies, be they biological, behavioral, political, emotional, technological, historical, sociological, autopoietically and continuously. This over and over along the years practicing of the attitude of not fearing abundance, material and experiential, inside this device that is both self-recording and generative of audiovisual and textual stuff, teaches people as we present it in this paper the how of a bondingly way of dealing with the embodied thought, this pratice is an epistemological statement. Keywords: didactic instalation, formative process, subjective biodiversity, emotional anatomy, schizoanalysis.

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uitas ações se sucedem compondo as estratégias através das quais mergulhamos nessa experiência direta desse ambiente vincular e tecnológico que denominamos

Instalação Didática1 . Trata-se apenas de uma sala grande de grupo onde acontecem uma infinidade de ações: minhas falas, conversas entre e com o grupo, o desenrolar da teoria e dos exercícios extraídos do próprio acontecimento individual e grupal, a contemplação das vídeo-gravações do acontecimento grupal em um telão e um monitor de tv. O simples dentro de um ambiente tecnológico e gravante é a estratégia essencial para a produção dessa forma de conhecimento do corpo em seu processo formativo. Trata-se de assentar no estranhamento do simples. Complicamos o simples para que ele emerja através da produção simultânea de fotos no e pelo grupo, da produção dos ovos cartográficos, da solicitação de solos de si dos participantes, das intervenções clínicas pontuais facilitadoras da continuidade, da escuta de narrativas da ciência evolutiva como se fossem mitos. Tudo acontece na simultaneidade e na abundância de imagens e rebatimentos, como alças de feedback sobre o acontecimento, resultando nessa produção de conhecimento vivo, de mais imagens, de acontecimentos, de diferentes temporalidades, continuidades dos corpos, de presenças e de narrativas. Nos encontros acontecem mensalmente ao longo de quatro ou cinco semestres, cada grupo estável apreende:

1) O paradigma formativo desenvolvido a partir de Stanley Keleman2 , sua obra, sua prática filosófica corporificante e seu modo clínico de intervenção, em que o modelo do vivo se estende do molecular às formas existenciais dos corpos humanos, sempre dentro das mesmas regras de conectividade e agregação, e onde se aprofunda a visão e a vivência do corpo enquanto um processador ambiental em continua produção de si e de seus ambientes, em conexão com outros corpos.

1 Ver em Na instalação didática https://laboratoriodoprocessoformativo.com/2016/07/ na-instalacao-didatica/. 2 Ver em http://www.centerpress.com/. 84


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2) Uma certa anatomia capaz de prosseguir formando a si e a seus ambientes a partir do vivido. Ou, em outras palavras, como os afetos se materializam continuamente em estruturas somáticas, ao longo de uma vida em particular, segundo a interação das camadas embriogenéticas, numa embriogênese continuada, do princípio ao fim daquele soma em particular (KELEMAN, 1994). 3) A visão do crescimento dos corpos, ao longo de seu destino genético de prosseguir da concepção à velhice, secretando corpo continuamente, modelando a experiência de si e desencadeando as formas da sua continuidade (KELEMAN, 1995). 4) A identificação da necessidade de interações somáticas que possam oferecer ambientes confiáveis e tempos formativos para que os organismos subjetivos possam se constituir e se desenvolver no mundo (KELEMAN, 1995). 5) O reconhecimento das formas do desenvolvimento em nosso corpo do presente, da fusão até a cooperação, em seus modos de se conectar com os ambientes (KELEMAN, 1996). 6) A compreensão vivencial de que os ambientes onde se formam os corpos são ecologias, físicas, afetivas e incorporais (GUATTARI, 1992). 7) Uma evidência de que o processo formativo de corpos e vidas se dá sempre dentro da história social e dos jogos coletivos de poderes, sentidos e de valores (GUATTARI; ROLNIK, 2005). 8) O manejo de uma lógica e uma gramática formativas que permitem reconhecer e estudar como fazemos corpo nos nossos mundos com essas forças e modos, sociais e vinculares, que modelaram e seguem modelando nossa realidade somática ou nossa fisicalidade (GUATTARI; ROLNIK, 2005). Continuamente são desenhados os “ovos”3 no grande quadro branco em forma de ovo na sala, contendo os diagramas do pensamento que vai se produzindo ao longo das ações. Eles organizam a experiência do processo formativo que vai se desdobrando nos encontros. Eles abrangem o como, o quando, o onde, as condições, os ciclos, os ritmos, os princípios dentro dos quais se produzem os corpos, sua relação com as linguagens, com a história social, com as imagens, com a biologia evolutiva, com as neurociências e com o ambiente relacional e tecnológico presente. Os ovos 3 Ver em Laboratório do Processo Formativo www.laboratoriodoprocessoformativo. com. 85


sustentam o descritivo e o cartográfico coerentes com esse modo de estudar o acontecimento corporificado. Os ovos apontam também com sua forma grávida para uma possibilidade de sempre mais, para o que ainda não existe, sinalizando que esse modo de notação do acontecimento articulado à teoria kelemaniana da produção de corpo é uma força geradora de continuidade e pensamento. Os ovos são a mente do grupo, o mapeamento do vivido ali. À medida que as pessoas vão gradativamente assimilando esse saber em seus corpos e seu manejo formativo, em sua linguagem e em seus cadernos, vai se revelando, como uma realidade somática, que esses corpos imersos nesse campo corpante (bodying field) de cada grupo em particular, dentro dos ambientes maiores e menores, são bombas pulsáteis4 que funcionam como processadores ambientais. Através desse dispositivo, os grupos têm a oportunidade de viver em tempo real, o secretar e o modelar corpo, o intervir em suas formas através de práticas específicas, o maturar, no ato de co-corpar com as condições presentes, criando ligações que vão ganhando em eficácia na produção de si e da cognição. Keleman criou a expressão corpar, to body, para designar a produção contínua de corpo que vivemos. Co-corpar ou to co-body diz respeito à evidência de que não se produz corpo sozinho, mas sempre na interação com outros corpos, vivos e não-vivos. No final do programa, o design existencial de cada corpo em suas ações e expressões preservadas muscularmente pela memória do seu uso repetido amplia seus sentidos. Contemplamos, a essa altura do processo grupal, através do acervo de fotos de cada um, os corpos em suas modelagens vinculares e sociais, seus caminhos formativos, sua participação e modos nos diferentes ambientes e a construção de sua trajetória até o presente. Sempre iluminando a questão de como esse corpo e com que forças e combinações musculares sustenta sua forma e seu modo de funcionamento no presente5. E, finalmente, descobrimos, dentro da lógica formativa de cada corpo, como intervir sobre essa configuração, atualizando-a um pouco mais para que dê passagem às forças que alimentam sua continuidade. Trazer um

4 Ver o vídeo https://laboratoriodoprocessoformativo.com/2014/03/embodiment-enbuenos-aires/. 5 Ver em https://laboratoriodoprocessoformativo.com/2013/03/cabendo-em-si/. 86


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corpo para o seu presente funcional é tudo o que importa em uma vida. Não se trata de um luxo pessoal ou narcísico, mas da realização da nossa condição de ser parte de processos maiores que o indivíduo e, portanto, da possibilidade de pensar e agir no presente. No ambiente de imagens, nos seminários do Laboratório, imagens são colhidas todo o tempo em vídeo pelo cameraman presente no grupo, em foto pelo próprio grupo com seus celulares, em registros por um relator também imerso no grupo. As imagens, sejam elas das gravações ou das fotos, atuais ou da trajetória de cada um, entre outras muitas razões, são importantes para que se veja que os corpos são ação lentificada e solidificada em tecido e que estão sempre em ação, modelando ações, alguma ação, sobre si mesmos e sobre o ambiente, que os corpos são uma anatomia de tubos dentro de tubos, camadas, bolsas, diafragmas, tal como descreve Stanley Keleman em Anatomia Emocional, pulsando, trazendo para si, conduzindo, processando através de uma infinidade de ações, em múltiplos níveis interconectados, moldando-se e expressando-se sobre o ambiente, articulando-se ou afastando-se dos outros corpos, de quase infinitas maneiras, sempre produzindo a si mesmo e aos ambientes de algum modo. A prática dessa presença produtiva é o coração do que desenvolvemos ali. Esse modo de funcionamento em múltiplas camadas do acontecimento no ambiente-seminário resulta em um reconhecimento constante dos modos de funcionamento e uma relação cada vez menos narcísica, seja negativa ou positiva, com as próprias imagens, o que resulta numa naturalidade que é captada dentro da artificialidade evidente da presença dos elementos de gravação e exibição de imagem tornando-se o objeto central de estudo e criação. Captar imagens, deixar-se captar, assistirse, reconhecer-se, exercitar gramáticas, praticar o ato de corpar segundo propõe Stanley Keleman em seu Método do Como (KELEMAN, 1995), os diferentes aspectos do design anatômico de comportamentos, ações e expressões, problematizando-o e recolocando-o em trilhas formativas, vai formando e enriquecendo essa língua minoritária (DELEUZE; GUATTARI, 1977) dos grupos sob minha regência. Como regente desse processo grupal em seu fluxo contínuo de presenças somáticas e ações que as sustentam, é, por excelência, o exercício do contato imediato e encarnado com o acontecimento vivo que

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me alimenta na criação da linguagem e do conhecimento formativos6. O acontecimento vivo, em sua metamorfose permanente, requer uma “posturação” dos afetos, uma poética e uma oralidade específicas para que se comunique. Um site e um acervo digital de vídeo-gravações, fotos e transcrições são um tesouro preservado a que podemos recorrer sempre, como vamos fazer na sequência. Acredito que essa forma de trabalho que funde arte, clínica, ética e pesquisa seja um instrumento potente para as pessoas e os grupos que produzem conhecimento a partir da realidade das vidas e dos corpos. Acredito também que a Instalação Didática seja uma maquínica (GUATTARI, 1998) bastante funcional para que se opere na imanência. É essa invenção que batizei com a expressão criada por Joseph Beuys que desejo oferecer aos pesquisadores de métodos em arte, leitores e escritores deste livro: um modo vincular multimídia de captar e editar as dramaturgias do pensamento encarnado. Um pulo do gato. Vamos, a seguir, acompanhar a protagonização de um aluno em certo ponto de sua educação formativa. Pensar é um ato corporal que requer o amadurecimento do sujeito pensante que comporta uma certa lógica anatômica. A Instalação Didática permite que degustemos finamente as dramaturgias de corpos no ato de pensar. Como você faz o que faz? (KELEMAN, 1995)

1. UM CORPO QUE PENSA Aluno – Estou sofrendo para pensar… Regina – Tente ficar um pouco mais permeável… o seu design me comunica, que você tem um evidente medo de perder o pensamento quando experimenta deixar o corpo menos denso…. experimente ficar um pouco menos denso e veja se você pensa melhor… um corpo que se formou denso com sua história de vida compacta-se continuamente como uma maneira de ficar mais protegido. Deixe o olhar um pouco mais molhado e não duramente focado, com esse modo tão atento, procurando, procurando, procurando… isso… agora respire um pouco e você vai ver que você vai

6 Ver em https://laboratoriodoprocessoformativo.com/2013/03/mar-decomportamentos-silenciar/. 88


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perceber melhor como os corpos comunicam sua experiência para os outros corpos… a experiência emana do próprio design de um corpo, tornando o que o nosso corpo vive e faz inteligível para o outro. Olhe para mim… o que eu estou fazendo?… Aluno – Muito difícil… Regina – … Veja… existe uma ação e um modo em curso…eu estou te dando tempo… olhe …eu estou aqui … parada… interessada… em você… sem te pressionar…. é isso o que eu estou fazendo... uma ação e seus modos. Aluno – Mas tem uma intensidade muito grande em mim… é difícil segurar e me conectar ao mesmo tempo… não sei como conter…vaza de mim… vivo excitação demais na presença do outro… Regina – Sim, vaza por um excesso de excitação…concordo… isso te impede de pensar…, mas também você não tem desenvolvida a confiança de que possa formular as intensidades por aqui, pelo peito… isso criaria mais espaços para conter sua excitação e vivê-la… é como se você não quisesse habitar a realidade do peito… quisesse ir direto para a cabeça. Vamos tentar abrir mais espaço no peito, criar um campo próprio atrás do osso externo… criar para você um nível um pouco mais relacional… repito, te falta ter uma vivência mais assumida de peito. A intensidade a que você está acostumado é a de barriga que é mais genérica… a de peito é mais relacional, mais dirigida… tente criar mais espaço no peito para fazer uma captação do ambiente… e deixe a excitação preencher você por trás do osso externo… o pulmão encher, rotar lá dentro, o coração conversar com o pulmão, captar a ação do nervo vago no peito espalhando um clima pelo corpo. Aluno – A sensação é bem melhor, fica tudo mais esfriado. Regina – Sinal de que excitação começa a ser distribuída por mais áreas. Comece a captar atrás do seu osso externo sua sensação de esôfago, de traqueia, do movimento do pulmão que enche, esvazia, rota e veja como você vai ganhando acesso a toda uma paisagem de intensidades dentro do peito. Aluno – Diminuiu a sensação nos olhos… Regina – Agora você está sentindo… antes queria só enxergar através dos olhos… veja como é diferente essa sensação de peito… compare com a da barriga. Isso… você pode se manter em contato com a pulsação no peito mantendo ele um pouquinho armado com a musculatura… note que seu peito se desativa com muita facilidade… Aluno – Aqui fica melhor, mais vivo, meio agressivo… eu tenho um 89


certo medo de entrar em contato com a minha agressividade…, mas acho que precisa de agressividade para pegar o ambiente.

2. SAIR DE SI E PEGAR O AMBIENTE É UM ATO AGRESSIVO Regina- Podemos observar que muitas vezes pessoas grandes temem a própria agressividade. Experimente como você pode encher com mais de si o seu peito e ficar mais poderoso… permitir-se essa sensação de leão, de rei, de homem grande. Aluno faz a ação e ri. Regina – Poder ser um homem grande, bonito, que brilha, que se expressa. E manter esse peito… a partir de dentro… Aluno – É bem difícil… coisas acontecem e a gente começa a criar esse distanciamento… Regina – Você acabou de falar como um corpo se forma… coisas acontecem e os corpos vão se moldando, se adaptando como conseguem… nós temos uma adaptabilidade muscular extraordinária… os corpos vão repetindo uma certa resposta à própria excitação naquelas condições específicas de seus ambientes e, quando vê, o comportamento está organizado muscularmente e você já não se dá mais conta. Só percebe que está com o seu campo de possibilidades reduzido.

3. UM PEITO: MAIS MANSO, MENOS MANSO Uma das características da Instalação Didática, esse modo que organizei para ensinar sobre os corpos e sua potência, é a gravação contínua do acontecimento grupal e didático em curso naquele ambiente específico cuidadosamente montado. Keleman, em seus workshops, tinha sua sala de grupo montada segundo sua concepção de trabalho: ele sentado na frente, mais alto em um estrado, as pessoas em fileiras de cadeiras colocadas em semicírculo, um monitor de TV no alto da parede e um cinegrafista de lado com sua câmera parada sobre um tripé, ora focando Keleman, ora focando o grupo. As pessoas, ao interagirem, seja conversando ou protagonizando algo com ele, podiam se ver no monitor ao mesmo tempo e operar com a ajuda dele o processo de corpar mudança. Gaiarsa, na mesma época, também utilizava a videogravação em uma outra modalidade: sala horizontal, não 90


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sei se com monitor e retrabalho sobre a imagem, e um cameraman na função de co-terapeuta. Certamente na época já existiam outros de que ouvi falar, mas cujo trabalho nunca conheci. Impossível não desejar gravar o que se via do comportamento e dos corpos a partir do surgimento das câmeras de vídeo no mercado dos anos 1980. Nessa mesma época também adquiri uma Panasonic enorme e pesada, como eram as primeiras câmeras amadoras. Mas está colocado aí um problema importantíssimo a ser considerado e configurado no processo de gravação: atitude e vínculo. O fotojornalismo sempre me impressionou. Sempre amei os fotógrafos-heróis da Magnum. Esse tipo de registro feito por um câmera imerso na cena do Laboratório, vivendo comigo e o grupo a situação em curso, tem o desafio e a emoção daqueles fotógrafos imersos e implicados naqueles ambientes captados por suas câmeras. Mas também, como mulher, talvez, a intimidade do snapshot caseiro americano dos anos 40, tempo da disseminação das câmeras Kodak, muito me inspirou a validar a beleza e profundidade das cenas aparentemente insignificantes do cotidiano. O ensino desse modo de ver, captar e posturar-se no Laboratório desde o início foi praticado na liberdade de movimento dos alunos pela sala, da sustentação do ambiente, no estímulo ao manejo dos brinquedos tecnológicos, da participação ativa na captação de imagens. O ambiente convivial que instalo nesse ambiente de ensino cria um sentimento de coletivo, um modo vincular diferente, uma relação com características conectivas diferentes, permitindo identificar nas formas somáticas em suas dramaturgias, aquilo que se vê e aquilo que se faz. Há uma sala estúdio de 30 metros quadrados, onde se armam cadeiras leves desmontáveis em roda, mas que por serem leves podem ser dispostas de outro modo ou desarmadas. Há uma parede onde está o telão ao lado da TV, há uma parede com um quadro branco enorme em forma de ovo onde as cartografias e projeções de imagens também são feitas, redesenhadas, desconstruídas para serem compreendidas, enquanto diagramas do acontecimento ou da conversa são desenhados simultaneamente. Há outra parede que é forrada de cortiça onde anúncios de acontecimentos em andamento no Laboratório ou produções dos alunos são fixadas em papel. Imagens são gravadas todo o tempo e gravações de encontros anteriores daquele grupo são exibidas na TV continuamente como parte da cena, como camadas de memória. Muitas vezes essas aparições mobilizam protagonizacões ou, por uma curiosa sincronicidade, surgem quando alguém está protagonizando a si 91


na conversa formativa que desenvolvemos todo tempo. É nesse ambiente que se desenrola esta dramaturgia conceitual de que apresentamos um fragmento aqui. Nessa estratégia de singularização de si, o fragmento e a fragmentação desempenham um papel fundamental. Aluno – Vejo no vídeo ali na TV uma rigidez na parte anterior, uma dificuldade de me fechar, uma pressão muito grande que vem de dentro. Regina – Faça em você agora o que você está vendo… vamos fazer um recorte… imite como você faz lá, evidentemente de modo não intencional… imitar a si mesmo é o primeiro passo para aprender sobre si… imite como você está se vendo no vídeo agora. Em seguida, você pode se deitar no chão e fazer aquela mesma organização de corpo e atitude que está vendo em pé na tela. Olhar, imitar, fazer a mesma coisa em pé, deitado, de costas, de bruços. Esse é o pulo do gato para o cérebro captar muitos modos da mesma organização corporal-comportamental. Estamos ativando a relação de três camadas: excitação, músculos e sistema nervoso, ativando a continuidade do processo formativo de corpo em você. Aluno – Parece uma procura o que vejo no vídeo… procurando alguma coisa… uma busca de um lugar no espaço… tentando me localizar… vejo uma rigidez grande… tenho bem a ideia do que se passava no momento. Essa dificuldade de se soltar… Regina – Faça um pouco aquele movimento de encurtamento de si… no chão… fazendo e desfazendo essas ações… lentamente. Aluno – Eu estava querendo soltar o corpo… soltar, abaixar, fazer um abdome… para criar sensação de mais flexibilidade. Mas parece que tem alguma coisa que impede aqui (aponta o diafragma torácico) … Regina – Vá captando esse lugar que impede e veja que experiência é essa desse lugar. Aluno faz ajustes na própria estrutura muscular imitando a imagem da Anatomia Emocional que está sendo projetada no telão da sala de grupo nesse momento do Seminário. Ele está desejando experimentar como sua estrutura faz aquela forma. Aluno – Parece que se dou mais espaço na barriga não incomoda tanto. Regina – Como você usa as suas costas? Aluno – Aqui (frente) fica colapsado… se eu me aperto embaixo parece que volta. Regina – Deite-se no chão… como um somagrama (KELEMAN, 1995) 92


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vivo, deitado… dobre os joelhos e coloque os pés no chão… como você compara a barriga com o peito? Aluno – Nessa posição, a bolsa do abdome relaxa, mas na região do diafragma continua com uma pressão grande, o diafragma impede a comunicação da parte de baixo com a do meio. E tem uma pressão muito grande lá atrás… desconforto … aperto … Regina (para o grupo) – Vocês estão enxergando? Cheguem mais perto para ele poder conversar com vocês também. Regina (voltando para o aluno deitado no chão) - Sobre o grande e manso em você… reconheça a diferença, na sua experiência, entre firmar a bacia e largar a barriga. Aluno – Eu não gosto de largar a bacia, parece que fica gostoso demais… daí não chega energia na cabeça… dá vontade de me alienar. Mas quando eu fecho a bacia, muda. Regina – Feche as mãos ao mesmo tempo. Aluno – Aí sobe o peito e a garganta abre. Regina – Veja se você consegue organizar nessa posição de mãos apertadas uma forma mais afirmativa de si… um corpo modela uma forma aplicando micro-movimentos, micro-ações, sobre si mesmo, já sabemos… vá fazendo a forma deslizar pelo tecido conjuntivo, por essa viscosidade dos tecidos… compreende?… entre uma forma afirmativa e uma forma mansa… os pés… o que acontece?… os pés ficam soltos, inúteis, quando você faz a forma mansa… veja como pode começar uma afirmação a partir dos pés… notou como mãos esboçam um fechar?… dê mais um grau de firmeza às mãos, mais um grau de firmeza aos pés. O que acontece com a garganta? Aluno – Abra a garganta... faça crescer a si mesmo por dentro. Regina – Diga essa frase a partir dessa configuração de si que você acaba de fazer: “Aqui eu me afirmo”. Serve para você? Aluno – Aqui eu me afirmo. Regina – É bom? Aluno – Opa. Regina – Repita… pisando nos pés e juntando os tecidos do corpo para produzir a forma dessa ação… dê voz… vamos colar linguagem na ação7 …

7 Ver em https://laboratoriodoprocessoformativo.com/2012/09/mar-de-palavras/. 93


Aluno – Aqui eu me afirmo… aqui eu me afirmo. Regina – Sintonize com esse movimento de bacia… de recolher a barriga. Faça esse movimento de captar o tecido conjuntivo dessa maneira. Esse... essa... veja como é singular... Aluno – Eu tenho feito muito isso, naturalmente. Regina – Aqui eu me afirmo, aqui eu me afirmo. Aqui eu amanso. Duas formatações de comportamento da bacia. Solta a bacia e fica manso. Um homem que não ameaça. Um homem grande que não ameaça. Faz sentido para você se perceber grande e suave? Vá se experimentando sair do excesso de suavidade, fazer firmeza e voltar… Importante você saber que quando solta a barriga, esvazia o peito… a presença8 perde a integridade... a integridade da forma. Presença é forma, e não apenas pensamento. Uma forma pensante. Agora você agora vai buscar a relação bacia e impulso dos pés para se fazer crescer mais no seu tamanho… reconheça (em inglês, eu diria para você be aware) como faz a conexão entre a bacia, peito, cabeça, passando pela garganta, pelo diafragma torácico e períneo. É o conceito visual do homem sanfona de Keleman na Anatomia Emocional (1992). Faça um pouco mais e um pouco menos dessa forma, mais firme, menos firme, que você acaba de organizar agora, para perceber como você regula a sua intensidade… e praticar com o processo formativo como sustentar uma intensidade maior com ações sobre si. Como pode compor um olhar? Você tem um olhar muito expressivo, um olhar bastante integrado na sua forma. Como você sente que fica seu olhar quando você cria mais afirmação, mais assertividade? Pensar é uma forma de afirmar sua singularidade. Aluno – Esse modo do olhar que acompanha essas alterações da forma modifica bastante a visão… a visão periférica expande, dá uma sensação de mais amplidão… estou enxergando mais.

4. APROFUNDANDO A PROBLEMATIZAÇÃO DA FORMA SOMÁTICA Regina - Agora, se você se deitar, talvez perceba os pulsos de musculaturas mais profundas. Deite-se novamente. Aqui podemos ver o 4º passo da Prática de Corpar de Keleman (1995) acontecendo. Viemos até agora problematizando o que é o amansamento: o que é como percepção de

8 Ver em https://laboratoriodoprocessoformativo.com/2012/03/presenca/. 94


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si (passo 1) e como é como anatomia própria (passo 2) … o amansamento em sua anatomia e sentido de si. Depois, repetimos a forma com variações de amplitude (passo 3): mais e menos passivo, mais e menos agressivo, mais e menos manso, mais e menos assertivo. Agora, vamos esperar um pouco e ver se você consegue captar na musculatura mais profunda pequenos impulsos emergentes (passo 4). Descanse e deixe a profundidade operar. A profundidade está contraída? Vejo daqui. Aluno – Bastante. Regina – Então você vai contrair um pouco mais e em seguida gradualmente diminuir a contração da sua profundidade. Diminua outro grau de contração e pare aí (passo 3). Descanse. Estique as pernas. Agora você só vai esperar (passo 4)…. O que vai acontecendo? Você estimulou um certo padrão de funcionamento, intensificando (passo 3). Agora a forma do padrão está respondendo reflexamente, movendo-se o em uma direção tônica oposta, expandindo. Expansão e contração são as ações básicas de um corpo e de todas as formas que ele toma para existir em seu presente. Aluno – É uma briga… a coluna está faiscando por dentro, lá no fundo…. Regina – Exatamente… firme os pés no chão… agora, você vai receber essa excitação subindo pela coluna… perceba como ela sobe pela musculatura profunda…. ela está subindo em direção à cabeça. Aluno – Está confortável assim… Regina – Você pode deixar essa excitação entrar mais dentro do peito… isso … agora sim… use os pés e use a bacia. Isso… Aluno – Parece que tem alguém sentado no meu peito. Regina – Quem você está sentado em cima do seu peito? Aluno – Eu mesmo. Regina – Quem é esse você? Como é esse sentado? Tem algo de acomodado, com medo de mudança, uma acomodação antiga… Imaginei… Imaginamos diante das formas que se apresentam... Aluno – Estou tendo a sensação de separação entre o lado esquerdo e o direito da coluna… uma diferença nítida de tônus entre os dois lados… Regina – Talvez você, agora que você está abordando esse quem sentado no peito esteja experimentando um impulso de se virar… estou vendo o esboço da torsão. O que acontece se você fizer um movimento e desviar do excesso de contato comigo? 95


Regina ajuda a torção. Aluno – É bom… é como fugir. Regina – Você pode talvez virar só o rosto, apenas mudar a direção do olhar. Uma pequena diferenciação…veja se isso cria mais privacidade para você. Aluno – Melhora bastante. Regina – Você pode não se exigir olhar de frente, colocar o rosto tão de frente… você pode fazer apenas um pequeno movimento para o lado… veja se isso te descomprime o peito. Não é necessário estar tão exposto. Aluno – Melhor. Regina – Isso. Veja agora o que aconteceu com os dois lados, com o tônus dos dois lados. Aluno – Equilibrou mais. Estou sentindo apoio na lombar, o quadril está mais firme. Regina – Perceba como esse movimento de firmar quadril te dá um centro que é seu. Você pode experimentar trazer essa sensação de privacidade também para o quadril. Pensar requer a capacidade e manter um espaço interno de privacidade. Aluno – Aqui tenho uma sensação mais de enfrentamento, aqui embaixo. Parece que dá força. Dá força. Regina – Isso é bom para você? Aluno – Ótimo. Regina – Praticar essa forma…repetir… primeiro com você… depois ver os efeitos que isso tem. Mas praticar. Esse é um ponto do método formativo: alimentar as conexões córtex- músculos. Aqui há também um outro ponto que se pode observar: todas as ações dos animais, desde os mais primitivos, são genéricas – virar, contrair, afirmar, levantar, descer, fechar, torcer…, mas nós, humanos, constituímos um quem que é o agente das ações… o sujeito dos verbos… no presente… com uma história… que acontece no mundo… isso muda tudo. Esse aluno acabou de fazer uma performance de si no presente, produzir experiência, no caso, de se organizar de um modo mais funcional, portanto mais apropriado de si, para sustentar o próprio pensar. Ao utilizarmos a linguagem formativa, descobrimos que existe uma continuidade entre o dizer e o agir, entre o corpar e a linguagem, como essas atividades não são separadas e estão completamente ao acesso das pessoas. Essa é uma língua 96


do homem comum. A filosofia americana nasceu para o homem comum e é para ser usada, usada para viver. Viver é estar em conexão pensando, se dizendo e se fazendo ao mesmo tempo. Isso vai ficando muito evidente no praticar-se… é disso que estamos falando.

CONSIDERAÇÕES FINAIS O como fazemos o que fazemos em todas a situações da vida é nossa experiência imediata, apresentando-se para quem se dispõe a viver e ver essa realidade como o modo particular de cada corpo em funcionamento. Em outras palavras, o padrão é a própria estrutura constituída por um certo jogo de pressões profundas preservado na forma particular tomada por bolsas, tubos, diafragmas, envolta por um certo tipo de musculatura, por um certo tônus local e geral, essas formas anatômicas particulares mostram a história da relação dos corpos com os ambientes, grande e pequenos, de que foi parte em seu crescimento. Essas formas, enquanto se mantiverem agregadas desse modo, sustentarão um padrão de bombeamento e de funcionamento emocional e mental de conexão com o mundo e consigo, gerando, configurando um quem que age assim, que fantasia assim, que se narra assim e que produz seja o que for assim. O quem é o agente desse conjunto de ações que mantém um lugar em que a vivência e a produção de vida se dão. Ao agirmos sobre essa configuração, atualizando-a um pouco mais, estamos abrindo passagem para as forças do presente, para que possam a nutrir sua continuidade. Isso é o que podemos chamar aumento de potência. A Instalação Didática com suas práticas se constitui em uma epistemologia viva das nossas ações. O pensamento, a linguagem, os modos de ver, compreender, agir e ensinar na cena dos Seminários de Anatomia Emocional e Biodiversidade Subjetiva9 são uma resultante de uma livre assimilação e uso do pensamento formativo de Stanley Keleman bem como de uma ação viva e crítica sobre este, dentro de um campo em que se compreende a vida das pessoas como parte de um processo histórico-mundial, de poderes e valores, local e geral, abrangente, em continua produção. A produção e a captação do acontecimento-seminário, a experiência de registrar, cartografar e editar o drama que se desenrola, ali, na produção

9 Ver em https://laboratoriodoprocessoformativo.com/2013/10/seminario-debiodiversidade-subjetiva-uma-dramaturgia-dos-conceitos-formativos/.


dos corpos, dos ambientes e do conhecimento é a tarefa que mobiliza a invenção contínua de tecnologias, ações e práticas dentro do dispositivo do Laboratório que acabamos de assistir com a imaginação. Essa é uma estratégia útil para qualquer atividade em que se deseje considerar os corpos existindo em sua realidade de formar a si mesmos continuamente, não importa onde. E exercer o supremo privilégio de interferir no destino, ajudando-se ou ajudando alguém a escapar da sua roda de repetições e produzir diferença.

REFERÊNCIAS DELEUZE, Gilles.; GUATTARI, Felix. Kafka, por uma literatura menor. Imago Editora. São Paulo: 1977. FAVRE, Regina. Do Corpo ao Livro. Summus Editorial, São Paulo: 2021. GUATTARI, Felix. As Três Ecologias. Ed. Papirus, São Paulo: 1992. ______. Insconsciente Maquínico. Ed. Papirus, Campinas: 1998. GUATTARI, Felix.; ROLNIK, Suely. Micropolíticas: Cartografias do Desejo. Ed. Vozes, Rio de Janeiro: 2005. KELEMAN, Stanley. Amor e Vínculos. Ed. Summus, São Paulo: 1996.

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______. Anatomia Emocional. Ed. Summus. São Paulo: 1992. ______. Corporificando a Experiência. Ed. Summus. São Paulo: 1995. ______. Realidade Somática. Ed. Summus. São Paulo: 1994.

SOBRE A AUTORA Regina Favre – Primeira geração no campo das psicoterapias corporais no Brasil, filósofa (PUC-SP), psicoterapeuta, professora e pesquisadora do corpo por meios audiovisuais no Laboratório do Processo Formativo. Cuidou de todas as traduções e apresentações dos livros de Stanley Keleman (Summus Editorial) com quem se relacionou profissionalmente por quinze anos, cujo pensamento introduziu no Brasil tendo criado uma interface do Formativo com a Esquizoanálise desde os anos 1990. Produz continuamente vídeos e textos sobre o corpo como um processo biológico, histórico e social num viés de arte, clínica, filosofia e política. Tem inúmeros artigos e capítulos publicados. Dirigiu e editou o longa-metragem Memória do Ácido. Em 2021, publicou Do Corpo ao Livro pela Summus Editorial. Segue pesquisando com grupos, linguagem, presença e imagem no campo virtual que se abriu com a pandemia. Laboratório do Processo Formativo: espaço independente de estudo, pesquisa, ensino e publicação digital criado e dirigido por Regina Favre desde 2002.

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Vozes da Sombra - entoar o corpo voz do mito


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Vozes da Sombra - entoar o corpo voz do mito Gabriela Flores PPGA – UNESP | Brasil

Resumo: Este relato tece reflexões sobre o processo criativo de dois experimentos cênicos, “Vozes da Sombra – Entoando Cassandra” e “Selva Ecoa Medeia”. Ambos integram a pesquisa de mestrado “Vocalidade em Performance – entre textualidade e musicalidade: traçados de uma possível pedagogia das vozes”. A pesquisa é sobre a performatividade vocal como gesto estimulante na criação da cena, na composição da personagem e na lida com o texto para além das palavras. Partindo da minha jornada como atriz em tragédias gregas encenadas e ensaiadas pelo diretor Antunes Filho, da experimentação sonoro-vocal e do jogo com a sombra do próprio corpo, os experimentos buscaram investigar possibilidades de contato com o texto não somente pelas palavras, a semântica, mas também através de uma experiência sensorial em que a voz/palavra falada intenta alçar vôos para a musicalidade, com enfoque na performatividade vocal.

Abstract: This report reflects on the creative process of two scenic experiments, “Vozes da Sombra Entoando Cassandra” and “Selva Ecoa Medeia”. Both are part of the master’s research “Vocality in Performance between textuality and musicality: outlines of a possible pedagogy of voices”. The research is about vocal performance as a stimulating gesture in the creation of the scene, in the composition of the character and in dealing with the text beyond the words. Starting from my journey as an actress in Greek tragedies staged and rehearsed by the director Antunes Filho, from the sound-vocal experimentation and the play with the shadow of the body itself, the experiments sought to investigate possibilities of contact with the text not only by words, semantics, but also through a sensory experience in which the spoken voice / word tries to take flights for musicality, with a focus on vocal performance.

Palavras-chave: teatro, artes cênicas, vocalidade, performance, pedagogia vocal.

Keywords: theater, performing arts, vocality, performance, vocal pedagogy.

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O

que é voz? “Corpo transbordado”1, músculo da alma, sopro? Uma indagação simples, repleta de complexidade e com uma infinidade de respostas possíveis. O pesquisador medievalista Paul Zumthor, por exemplo, nos presenteia com uma

poética definição:

A voz é uma subversão ou uma ruptura da clausura do corpo. Mas ela atravessa o limite do corpo sem rompêlo; ela significa o lugar de um sujeito que não se reduz à localização pessoal. Nesse sentido a voz desaloja o homem do seu corpo. (ZUMTHOR, 2000, p. 97-98)

Já a filósofa italiana Adriana Cavarero afirma que a voz não esconde nada, não é possível simular ou dissimular, ela revela, nos revela (2011). No capítulo inicial de “Vozes Plurais” (2011), Cavarero apresenta o conceito chave de sua teoria crítica, a unicidade da voz, em contraposição à filosofia metafísica fundada no conceito de universalidade. Para a metafísica importa o que se diz, o ‘Dito’ e não quem diz, o ‘Dizer’. E, para a autora, há nisso um prejuízo profundo para o aspecto acústico da palavra, que dimensiona e corporifica a unicidade. E reitera que A voz, de fato, não camufla; pelo contrário, desmascara a palavra que a quer mascarar. A palavra pode dizer tudo e o contrário de tudo. A voz, qualquer coisa que diga, comunica antes de tudo, e sempre, uma só coisa: a unicidade de quem a emite. (...) Toda voz é única; justamente por isso, uma vez conhecida, pode ser reconhecida (CAVARERO, 2011, p.40)

No contexto das artes cênicas a voz é elemento crucial para potencializar o discurso, a narrativa cênica, a comunicação. Mas não é só isso. A voz é mais do que somente suporte para a linguagem verbal, como manifestou Artaud em “O teatro e seu duplo” (2006), ao evocar o aspecto acústico, sonoro, corpóreo, sensual da voz como sendo uma essência perdida. Mas a voz pode mais? Quanto pode a voz? Pode a voz ser mais do que instrumento ou suporte para o texto dramatúrgico? Para compreendermos os motivos que levaram ao estabelecimento de uma dicotomia entre voz e palavra, de uma dicotomia entre o aspecto acústico e o semântico,

1 STOROLLI, Wânia Mara Agostini. Vozes em ressonância: o espaço sonoro da experimentação. Repertório, Salvador, ano 21, n. 30, p. 50-64, 2018. 102


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precisamos compreender a tradição filosófica ocidental. Nessa relação dicotômica e hierárquica, os aspectos acústicos são desconsiderados e os aspectos semânticos priorizados. É o primado do logos sobre o mythos.

1. TOMANDO O AR – ‘COMO O LOGOS PERDEU A VOZ’2 Segundo Cavarero, a palavra, na tradição ocidental, é manifestação do espírito racional, elemento essencial da humanidade grega clássica. Há na Grécia, a partir do chamado iluminismo grego (Séc. V a.C.), uma revolução radical de valores que antes eram fundados no mundo arcaico do mito, matriarcado, e passam a ser regidos então pelo mundo do logos, do patriarcado. E, portanto, (...) no logos, o elemento fundador não é o aspecto vocal, mas sim o nexo da palavra com o regime dos significados (...) e torna inconcebível um primado da voz sobre a palavra como também não concede ao vocálico nenhum valor que seja independente do semântico. Reduzida a significante acústico, a voz depende do significado. Longe de ser óbvia, essa dependência é fundamental. Ela aprisiona a voz num sistema complexo que subordina a esfera acústica à visual. (...) a visão é o mais nobre entre os cinco sentidos e caracteriza toda a cultura grega [em contrapartida] os sons são eventos dinâmicos, não qualidades estáticas, e por isso são transeuntes por natureza. O que os caracteriza não é o ser, mas sim o devir. (CAVARERO, 2011, p.52-55)

Cavarero ressalta que a filosofia metafísica teve um impacto profundo e determinante em nossa cultura e foi responsável por um fenômeno que denomina de a desvocalização do logos. Há, segundo ela, uma distinção da voz para o mundo mítico dos aedos, os poetas cantadores, e a voz para os filósofos e explica que (...) sintonizar-se com a sonoridade da palavra e enfatizar o gozo corpóreo, o canto da carne, a pulsão rítmica da qual jorra não é, de fato, suficiente para salvar a própria palavra do abraço mortífero do logocentrismo. A máquina metafísica que nega metodologicamente o primado da voz sobre a palavra deve ser desmontada não apenas transformando esse primado em destino essencial, mas tendo sempre em mente que a estratégia voltada a neutralizar a potência da voz é a mesma que

2 CAVARERO, Adriana. Vozes Plurais: filosofia da expressão vocal. Belo Horizonte: UFMG, 2011. 103


fez permanecer inaudito o acontecimento “várias vozes”, diversas umas das outras, do fenômeno da palavra. (CAVARERO, 2011, p.31)

Encontramos essa desvocalização do logos num fenômeno bem característico da história do teatro e da constituição do drama, o chamado teatro textocêntrico, um teatro extremamente vinculado à literatura. No teatro feito sob a égide textocêntrica também as relações entre os elementos constitutivos da cena são hierarquizadas e há primazia do texto dramatúrgico sobre os demais elementos cênicos. É curioso pensar que, embora o teatro textocêntrico tenha sido questionado e desconstruído pelas investigações de vanguarda com o advento da performance/art e os desdobramentos desta na linguagem do teatro, a voz falada no palco ainda hoje sofre dos aprisionamentos do logocentrismo, e, portanto, deste chamado textocentrismo. Ao longo de sua história, o teatro vem se distanciando e se aproximando de outras linguagens artísticas. No século XX, é profundamente influenciado pelas artes visuais, pela arte da performance e também pela música, que rompe com seus próprios paradigmas, passando a explorar a potência do ruído e do improviso, como as desconstruções de John Cage3, as paisagens sonoras de Murray4, entre outros. Todos estes gestos revolucionários contribuíram e fomentaram novas teatralidades. Nesse sentido também a poética de atrizes e atores ganha novas perspectivas, deixa de ser gesto reprodutivo para ser ato criativo. Cavarero (2011) parece dialogar com Artaud quando invoca o elemento acústico da vocalidade - perceptivo, sensorial, intuitivo, sombrio, misterioso, único - e que foi relegado, expulso do mundo grego racional, logocêntrico e patriarcal. Temas como a loucura, a sombra, o inconsciente, as “vozes inauditas”5, a ruidagem, são elementos que habitam um solo fértil de

3 John Cage (1912 - 1992) foi um compositor, teórico musical, escritor e artista estadunidense. Foi pioneiro da música aleatória, da música eletroacústica, sendo considerado uma das figuras chave nas vanguardas artísticas do pós-guerra. 4 Raymond Murray Schafer (1933), é compositor, escritor, educador musical e ambientalista canadense, autor de O ouvido pensante e A afinação do mundo, ambos publicados pela Editora Unesp. 5 Em junho de 2019 aconteceu o 3º Sarau Performático “Vozes Inauditas”. Integraram a esta mostra/amostra artistas-pesquisadores(as) participantes da disciplina “Pesquisa vocal e processos criativos contemporâneos” ministrada pela Profª. Drª. Wânia Storoli, no PPGA UNESP. Neste sarau apresentei a solo-performance “Vozes da Sombra entoando Cassandra”. 104


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investigação, para encontrar/vivenciar novas formas de composição cênica a partir do ser/estar voz. A voz para além da palavra, ou a desintegração da linguagem como propunha Artaud (2006), pois, segundo ele, a linguagem não dá conta de expressar tudo. Porém, estamos de acordo quando Cavarero alerta que A finalidade não é, todavia, a de livrar-se do sistema da significação para cair no insignificante, no irracional, no sem sentido. Mas sim a de recuperar “a significância mesma da significação”. Trata-se de reconduzir a esfera do sentido ao dado da unicidade dos falantes. (CAVARERO, 2011, p.45)

Tomando como material de partida a tragédia grega, especificamente “As Troianas” e “Medeia”, ambas de Eurípedes, essas reflexões teóricofilosóficas buscaram desaguar nos experimentos cênicos: o entoar vozes do mito, das mitologias do feminino, das vozes inauditas de Cassandra e Medeia. Cassandra vê o destino trágico de sua família, mas sua fala soa ininteligível, é tida como louca, delirante. Medeia, em sua estrangeiridade, amedronta o mundo grego clássico, evocando o impensável, e seu ato é incompreensível, brutal. Duas figuras femininas, que estão a subverter as regras, estão a pôr em dúvida, a questionar os alicerces morais, sociais e políticos do patriarcado. Como estratégia de aproximação para um estudo ativo do texto dramatúrgico, tenho me valido do jogo com a sombra. A sombra, esse recurso simples, quase como uma brincadeira de criança, tem me ajudado a potencializar a vocalização de um sem fim de sonoridades não muito usuais, são urros, grunhidos, lamentos, sussurro, sibilos, algaravias e ruídos de toda ordem, acesso aos sons das cavernas da alma, daquilo que para Cavarero (2011) foi emudecido pela racionalização da filosofia ocidental. E o jogo com a sombra tem se revelado um importante aliado na constituição de uma ambiência favorável à evocação dessas sonoridades, dessas vozes inauditas, e que nos remetem às camadas mais profundas de nossa consciência, para nos aproximar, talvez, do que Artaud (2006) almejava, um teatro ritual, uma experiência sensorial e estética que não estivesse aprisionada às correntes da razão, dos limites da lógica do discurso verbal e do pensamento racional.

2. PAUSA RESPIRATÓRIA – SUSPENSÃO: FONEMOL, GLOSSOLALIAS E OUTROS DELÍRIOS VOCAIS 105


Durante os anos que trabalhei no CPT (Centro de Pesquisa Teatral)6 – SESC, coordenado por Antunes Filho (1929 – 2019), tínhamos um profundo trabalho de corpo e voz para o/a ator/atriz. A musicalidade da palavra no teatro, a ressonância e as relações intrínsecas entre voz e corpo, sempre foram elementos de estudo constante. No processo de montagem das tragédias gregas estudamos e pesquisamos a palavra e sua musicalidade, a melopeia7. Para que os atores e atrizes pudessem experienciar a musicalidade antes mesmo do contato com as palavras do texto, Antunes desenvolveu uma prática de elocução chamada fonemol. O fonemol, antes denominado exercício do russo8, ou gromelô9, é uma língua inventada que libera os atores e atrizes das garras do racional, permitindo que o ato da fala possa se aproximar de um entoar musical. O fato de atores e atrizes estarem livres do compromisso com a semântica, ou seja, com o significado das palavras, permite voos e investigações de sonoridades, atmosfera e ambiência sonora, muito potente para a construção da personagem e para a elaboração e vivência da situação cênica. No livro Hierofania (2010), podemos encontrar a trajetória de formulações do mestre Antunes. Sobre o fonemol o autor e pesquisador Sebastião Milaré esclarece que esse exercício “estará assim provocando a imaginação e a intuição para pesquisar mais profundamente as possibilidades fonéticas e,

6 O Centro de Pesquisa Teatral do SESC movimenta a cena do teatro brasileiro desde 1982, tendo sido coordenado pelo diretor teatral Antunes Filho, já formou mais de mil profissionais das artes cênicas entre atores, dramaturgos, cenógrafos e iluminadores. In: https://www.youtube.com/channel/UCXg-XkHvnvYNNOFjf9f_A6Q. 7 A melopeia é, na sua origem grega melopoiía (composição de cantos líricos), a arte de musicar a poesia, e passou a significar qualquer melodia (recitada ou cantada); remete-nos para o mundo criativo dos sons no texto poético. In: http://edtl.fcsh.unl. pt/encyclopedia/melopeia-fanopeia-e-logopeia/. 8 “Para pesquisar novos tons, novos ritmos, além do trabalho de desestruturação da palavra, surgiu um exercício em que combinavam fonemas, sem qualquer sentido semântico. Soava como o idioma russo, por isso era chamado exercício do russo. Livre das armadilhas semânticas, a fala adquire valores de música: ritmo, harmonia, contraponto. O próprio exercício tinha uma potencialidade estética formidável, servindo de material para o espetáculo seguinte Nova Velha História”. (MILARÉ, 2010, p. 156). 9 Antunes aportuguesou o termo, originalmente grammelot. “Grammelot é uma palavra de origem francesa, inventada pelos cômicos dell’arte (...) Apesar de não possuir um significado intrínseco, sua mistura de sons consegue sugerir o sentido do discurso. Trata-se, portanto, de um jogo onomatopaico, articulado com arbitrariedade, mas capaz de transmitir, com o acréscimo de gestos, ritmos e sonoridades particulares, um discurso completo (...)” In: FO, Dario. Manual mínimo do ator. Franca Rame (Org.). São Paulo: Senac, 1997, p.97-98. 106


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ao mesmo tempo, explorar a relação íntima do gesto com a fala” (2010, p. 295). Antunes utilizou o fonemol como estética em dois espetáculos: “Nova Velha História” de 1991 e “Blanche” de 2016. Porém, nas montagens das tragédias gregas, a exploração vocal e a proposta de ruptura da linguagem se limitavam ao espaço tempo dos ensaios, como preparação do elenco. Como atriz e orientadora artístico pedagógica de processos criativos em teatro, abordar o texto inicialmente pelas línguas inventadas é chave para expansão das possibilidades de elocução e de relação com o texto, aqui, no caso, a tragédia grega clássica. Seja fonemol, gromelô, glossolalias, ou ainda a blablação10, a intenção é enfocar a brincadeira com a língua, com a linguagem e, portanto, a investigação lúdica com as sonoridades. O que nos importa é a essência da operação que esse procedimento gera no imaginário sonoro e na elocução dos atores e atrizes, na relação entre o semântico e o vocálico, e para percebermos o quão amarrados podemos ficar aos sentidos das palavras e portanto presos ao semântico. A brincadeira com a sonoridade de uma língua linguagem inventada é a possibilidade de resgatar a materialidade sonora da voz. E, portanto, retomar o vocálico que, segundo Cavarero, foi desvocalizado, silenciado, emudecido pelo logos, pela razão, pelo racionalismo, pelo textocentrismo. As “glossolalias’’11, assim, no plural, como sugere o pesquisador Gil Almeida, compõem um conjunto de práticas de experimentação, de escutação, de delirar e estranhar a linguagem e as potencialidades vocais. No contexto desta pesquisa, entoar e escutar as glossolalias implica uma audição, uma escuta. Compreendemos, portanto, que as glossolalias podem potencializar o entoar vozes antes inauditas, emudecidas. Nesse sentido, interessa-nos procurar responder como a experimentação vocal, o improviso vocal, o fonemol, as glossolalias, podem contribuir para a formação de atores e atrizes? E se realmente a voz pode mais do que simplesmente instrumento para o texto dramatúrgico? A pergunta segue ressoando. A imersão no CPT, no processo de ensaio e montagem das tragédias gregas, foi um divisor de águas no meu processo de formação pois expandiu 10 Exercício de improvisação teatral utilizado por Viola Spolin. A blablação é “a substituição de palavras articuladas por configurações de sons (...) Pelo fato de a blablação usar os sons da linguagem, subtraindo dela os símbolos (palavras), coloca o problema da comunicação no nível da experiência direta”. In: SPOLIN, Viola. Improvisação para o teatro. São Paulo: Perspectiva,1979, p.108. 11 ALMEIDA, 2015. 107


as possibilidades de elocução do texto trágico. Pude experienciar a tensão latente entre o semântico e o vocálico e como a passagem do material sonoro absolutamente experimental oriundo de extensos períodos de ensaio não alcançava as exigências estéticas formais no processo de lapidação e finalização da obra e era por fim descartada. As composições experimentais dos ensaios me entusiasmavam e nem sempre sentia a mesma satisfação com o material final mostrado ao público. E fantasiava comigo mesma a possibilidade de o público ter acesso ao processo também, à toda uma exploração sonora, que a meu ver era muito rica. Dado o próprio modo de produção com enfoque na visão do encenador, neste caso específico, os elementos experimentais ficavam restritos ao ambiente dos laboratórios e dos ensaios, como recursos de preparação do elenco, estudo ativo do texto e abertura do imaginário. Ao iniciar o processo de lapidação do espetáculo, depois de longos meses de ensaio só falando em fonemol, todos os ruídos, algaravias, interjeições e estranhezas ou “sujeiras” vocais passaram por um intenso processo de filtragem, de limpeza na busca do acabamento estético da obra, onde as experimentações já não tinham mais espaço, pois o enfoque era uma voz idealizada por Antunes, que buscava a musicalidade sim, mas sempre pautada no rigor da enunciação, da articulação do discurso da palavra falada dando luzes mais ao aspecto verbal da comunicação. Os anos se passaram desde essas experiências em “Fragmentos Troianos”12 e “Medeia”13, e permaneceu vibrante em mim o desejo de voltar a essas vozes, aquelas vocalidades vivenciadas nos ensaios. O público teve acesso à versão do diretor. Faz sentido convidar o público a ter acesso à versão da atriz? Materialidades sonoras, experimentações que foram descartadas pelo diretor, mas que estiveram com a atriz em processo de reciclagem, de compostagem. É nesse campo que brotaram estes dois experimentos: “Vozes da Sombra - entoando Cassandra” e “Selva Ecoa Medeia”. Neles procurei convocar minha memória auditiva de todos aqueles 12 “Fragmentos Troianos”, adaptação e direção de Antunes Filho, a partir de “As Troianas” de Eurípides. O espetáculo, em cartaz de novembro de 1999 a abril de 2000 no Teatro Anchieta - SESC/SP, estreou na Turquia em maio de 1999. Fez, também, apresentações no Japão dentro do “Olympics Theater Festival” que reúne renomados diretores entre eles: Bob Wilson (EUA), Tadashi Suzuki (Japão) e Thadeus Thorzeopolus (Grécia). 13 O espetáculo “Medeia” de Eurípides, com direção de Antunes Filho, estreou em julho de 2001 no SESC Belenzinho. Embora eu tenha ensaiado durante mais de um ano praticamente todos os dias o papel de Medeia e da Ama, a aproximadamente três meses da estreia decidi me afastar por questões de saúde vocal. 108


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sons que foram descartados, as vocalidades que não serviram e que ficaram de fora do espetáculo. Ambos os experimentos fazem parte das ações que envolvem a pesquisa de mestrado (Bolsa CAPES) com título provisório “Vocalidade em Performance – entre textualidade e musicalidade: traçados de uma possível pedagogia das vozes”, no PPGA do Instituto de Artes da UNESP, com orientação da Prof.ª Dr.ª Wânia Storolli.

3. O FIO LONGO DA EXPIRAÇÃO: “VOZES DA SOMBRA” EXPERIMENTO 1 E 2 APONTAMENTOS E REVERBERAÇÕES As ações que serão aqui descritas foram realizadas em dois momentos distintos, mas são complementares. O experimento 1 é “Vozes da Sombra entoando Cassandra”, de 2019. O experimento 2 é “Selva Ecoa Medeia” de 2020. O experimento 1, “Vozes da Sombra - entoando Cassandra”, surge no contexto da disciplina que fiz como aluna especial: “Pesquisa Vocal em Processos Criativos Contemporâneos”, ministrada pela Prof.ª Dr.ª Wânia Storolli no PPGA-IA/UNESP. As leituras, reflexões e ações realizadas no contexto da disciplina foram fundamentais no processo de elaboração do projeto de mestrado. A solo-performance “Vozes da Sombra – entoando Cassandra” foi apresentada no 3° Sarau Performático Vozes Inauditas – IA UNESP, em junho de 2019 e foi reapresentada na Jornada de Pesquisa em Arte do PPG/IA UNESP - 3ª edição, em outubro do mesmo ano. A partir do texto “Fragmentos Troianos” e particularmente da figura da sacerdotisa de Apolo, Cassandra, este experimento buscou, através do improviso vocal e do jogo com a sombra produzida pelo corpo no espaço, uma ação/rito de aproximação do caldo imagético e poético do universo das mitologias do feminino. O experimento 2, “Selva Ecoa Medeia”, surge em contexto pandêmico14 e já com mestrado em andamento, e em total isolamento social. Esse poema cênico e sonoro ensaia possíveis desdobramentos do universo das mitologias do feminino na vocalidade contemporânea. O que a Selva tem

14 Em 2020 uma crise sanitária acometeu o mundo. O Coronavírus nos obrigou ao isolamento social. Isolados, em casa, em quarentena, nós artistas-pesquisadores fomos obrigados a nos adaptar, adaptar nossa ação performativa tão fundamentada nas relações presenciais. 109


a nos dizer — essa que gera e que tira? As vozes que ecoam da Selva Terra Medeia é poema que tateia, vozeia e escuta. “Selva Ecoa Medeia”15 foi apresentado no III Colóquio “Metodologias de Pesquisa em Artes” do N’ME (Núcleo de Estudos sobre Metodologias de Pesquisa em Artes) do PPGA/ UNESP, em outubro de 2020 e no VIII Seminário Vozes Performáticas16, dentro das ações do grupo de pesquisa Vozes Performáticas, coordenado pela Prof.ª Dr.ª Wânia Storolli, PPGA/UNESP. No período de “Fragmentos Troianos” (1999), nutria verdadeira fascinação por Cassandra; cheguei a ensaiar a possibilidade de interpretá-la na versão de Antunes, mas o diretor me incumbiu outro desafio, interpretar a matriarca Hécuba. Cassandra, essa jovem sacerdotisa de Apolo condenada a visões e à incompreensão, nos ajuda a tecer reflexões sobre a condição da mulher em nossa sociedade patriarcal e sobre como lidamos com aquilo que não compreendemos, como os limites entre o que chamamos loucura e o que chamamos de sanidade. Em nossa sociedade a loucura é algo que deve ser contido, silenciado. Porém, como nos lembra o neurocientista Sidarta, (..) é muito recente o conceito de loucura como desconexão patológica do mundo externo (...) em distintas culturas da Antiguidade os delírios e alucinações que hoje associamos à psicose foram interpretados como sinais sagrados de inspiração e possessão espiritual. As visões obtidas nesses transes eram interpretadas como instâncias de contato entre o mundo dos vivos e o dos mortos, conferindo a capacidade de prever o futuro, interpretar outros sonhos, revelar augúrios e ditar profecias. A loucura tinha importância ímpar na ligação dos homens com os deuses (RIBEIRO, 2019, p. 155)

Foi neste contexto também que pude experimentar a sombra como recurso para a vocalização e dispositivo para a experimentação sonorovocal, que potencializa a ação vocal na investigação de sonoridades. Em um espaço vazio, amplo e próximo de uma parede onde foi possível projetar a sombra do meu corpo, criamos um jogo de luz bem simples com dois refletores posicionados no chão na boca de cena, que ao mesmo tempo

15 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ELRs96xYrGM&ab_ channel=VozesPerform%C3%A1ticas. 16 VIII Seminário Vozes Performáticas: https://vozesperformaticas.wixsite.com/ meusite. 110


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mostrava a silhueta (contra luz) como também a imagem projetada como sombra na parede do teatro. O jogo inicial foi o de brincar com a sombra projetada na parede e a partir deste jogo, deste diálogo, deixar surgir ações e destas ações, a partir do universo do texto e da personagem me embrenhei em improvisos vocais que envolveram cantos, gritos, murmúrios, risadas, lamentos, etc. Interessava-me, neste momento, permanecer fiel ao texto, e procurar abrir espaços por entre as palavras, as frases, onde pudesse experimentar sonoridades e musicalidades. A partir das ações fui encontrando sonoridades, gestos vocais que foram constituindo um campo sonoro fértil para o texto brotar. Em cada uma das ações experimentei um aspecto da voz. Por exemplo, na primeira ação quis presentificar em mim o que significa a voz desalojada de seu corpo, a voz que rompe a clausura do corpo (ZUMTHOR, 2000, p. 9798). Optei por um canto lamentoso e melodioso e iniciei parada, estática. O espaço ainda no breu ecoava minha voz que chegava por trás do público, uma voz sem corpo, pois nesse momento ninguém podia me ver. Num segundo momento fui me aproximando da boca de cena, mas o luscofusco mostrava mais a sombra do meu corpo projetada na parede de fundo do teatro. E iniciei uma sequência de improvisos de rezas, murmúrios e sussurros. A parede do teatro me serviu como um excelente suporte para improvisar Cassandra a se debater compulsivamente para depois ouvirmos uma respiração resfolegante. Somando à composição, ações de girar – com gritos, uivos e risadas; contorção do corpo com lamentação, choro; louvação aos deuses, com risos, gargalhadas, gritos lancinantes, agudíssimos; voltando à brincadeira com as sombras em graves gordos e bem articulados. Na caminhada de saída voltei às rezas, murmúrios e sussurros, finalizando com um canto que embalou as núpcias fúnebres de Cassandra17.

17 Trecho de “Fragmentos Troianos”, adaptação de Antunes Filho de “As Troianas” de Eurípedes, escolhido para o experimento, cena 4, Cassandra: “Hímen, Himeneu! Bendito seja o esposo. E a mim, virgem do sol, futura esposa do grande rei, ó deuses, abençoai-me! Hímen, Himeneu! O grego vai desposar-me! Rainha da noite acende as tuas estrelas. Tantas tochas: tudo arde! Sinto-me fascinada. Serão precisos mil sóis para me iluminar quando eu entrar, virgem sagrada, no leito do inimigo. Esse dia será mais belo que o mais belo dia do tempo de meu pai. Foibos meu deus conduz o coro. E tu mãe, dança comigo, a compasso. Dança para me agradares. Troianas, onde estão os vossos trajes de festa? É preciso gritar de alegria! Iú! Iú! Cantai comigo! Iú! Iú!! E se eu vacilar, mãe, empurra-me para os braços de Agamémnon. Se por Helena morreram milhares de gregos eu farei bem pior. Cassandra será o flagelo deles. Morrerá Agamémnon, o grande rei, por minha causa! Destruirei a sua casa assim como ele destruiu a nossa! Destruirei a sua raça! Portanto não chores, meu pai e meu irmão serão vingados. Levantai a cabeça e orgulhai-vos troianas, deixai comigo o cuidado de vingar 111


A possibilidade de convidar a musicalidade para participar da ação verbal indicou uma via de acesso ao vocálico, ao elemento acústico da voz. A sombra, por sua vez, foi elemento fundamental para criar as condições propícias para a experimentação vocal. É um recurso muito simples, mas de grande impacto cênico, contribuindo para expressar múltiplos aspectos da personagem, são muitas Cassandras, dado que com dois refletores também tínhamos várias sombras projetadas que se sobrepunham. Na tensão mobilizadora entre texto (linguagem verbal) e voz (linguagem não verbal), a exploração vocal realizada em “Vozes da sombra - entoando Cassandra” potencializou as ações cênicas e criou uma espécie de recheio acústico para que as palavras do texto ganhassem sentido e carne ao serem entoadas. Porém a exploração vocal ainda estava a serviço da comunicação das palavras do texto. As sonoridades eram disparadoras para o sentido, para a semântica dada pela dramaturgia. Foi espantoso, por exemplo, perceber no corpo como a dramaturgia pode se revelar um dispositivo de poder18, e como o respeito exacerbado ao texto dificulta as possibilidades de subvertê-lo. É interesse desta pesquisa de mestrado justamente ir além. Se fez então necessário e urgente o abandono total da dramaturgia de Eurípides para um acesso ao mito por outras vias. Dois materiais passaram a conversar com a pesquisa. O primeiro foi o artigo “Programa Performativo: O Corpo - em - experiência”19 de Eleonora Fabião, em que a autora tece reflexões sobre a criação e composição de performance e suas relações com a criação teatral contemporânea, e nos apresenta o programa performativo como “motor para a experimentação”. O segundo material foi o vídeo “Vocal Pandemia”20 da artista vocal Sara Belo, em que ela convida experimentalistas vocais a entoarem suas vozes pandêmicas. Já no início do vídeo escutamos sua voz a indicar que: (...) não controlamos o mundo e a natureza como por vezes julgamos. Há forças ocultas, poderosas e

os homens de Tróia. As minhas núpcias serão núpcias de sangue. Onde devo embarcar? Eu sou a morte, ponham a bandeira negra no mastro do navio que me levar. Hímen, Himeneu! Iú! Iú! Hímen, Himeneu!”. 18 No racionalismo grego o mundo das ideias é superior ao mundo dos sentidos. E essa hierarquização é percebida na estrutura do texto dramatúrgico. Será que as dramaturgias contemporâneas, mais livres e lacunares, que irão justamente romper as amarras da linguagem verbal, dão mais margens para a experimentação vocal? Mais a frente irei tratar dessa relação entre voz e texto. 19 Disponível em: n. 4 (2013) (unicamp.br) 20 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=9uhhQ3n_wzM


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incontroláveis que emergem no mundo e nos instigam talvez à algum respeito e humildade (...) soltar e captar algumas dessas forças ocultas (...) onde vocalidades pandêmicas emergissem. (Informação verbal)

A partir dessa performance consegui sair de certa letargia e certa confusão natural de como iria adaptar minhas ações de pesquisa ao formato “em casa”, em total isolamento social. O vídeo foi o dispositivo que possibilitou um mergulho nas minhas vozes pandêmicas e a percepção de Medeia como uma dessas vozes. Esse mito me circunda, me acomete, é coisa antiga em mim. Me lancei, então, numa escuta radical do ambiente da minha casa e numa escuta dos fenômenos internos, sensações, pensamentos, imagens, memórias, movimentos, etc. Nesse percurso empreendi uma viagem sensorial em minha própria memória auditiva. O que ecoa de Medeia em mim? Empreendi um retorno aos sons e à exploração vocal que fiz durante os ensaios intensivos e extensivos para o espetáculo “Medeia”. Comecei a explorar as sonoridades a partir da memória. O primeiro som entoado foi de uma respiração profunda e sonora. Essa respiração sonoriza como Ujjayi, a chamada respiração vitoriosa ou respiração oceânica do Yoga, que intensifica a sonorização do ar com uma leve interrupção da glote na região da garganta. Comecei, então, a incluir essa, dentre outras sonoridades que me acometiam em programas performativos, em composições performativas. O primeiro programa performativo teve o seguinte enunciado: “respirar em ujjayi, boca fechada, depois respirar de boca aberta para liberar o som sem controlá-lo e seguir a voz que brota até um sussurrar de palavras”. Esse experimento, “Selva Ecoa Medeia”, procurou escutar o inaudível, estabelecer uma relação de reciprocidade com o ambiente interno e externo, uma escuta ecológica. Escutar a natureza, a de fora e a de dentro. Escutar silêncios, respirações. É um experimento que brota de uma humanidade pandêmica, num planeta doente, em ruínas. Desse programa surgiu também um poema, que é utilizado no início do experimento. Pretendia, ao abandonar a dramaturgia de Eurípides, encontrar uma outra escritura, fruto da experimentação, a escrita mesma como experimentação de si e da exploração vocal. Inicio então, a partir deste experimento, um processo de autoria, de auto-escritura a partir da experimentação vocal. A brincadeira com a sombra se manteve pois tem sido uma aliada, uma companheira e um recurso potente para a exploração vocal. A sombra surge como dispositivo que garante liberdade sonoro-vocal, sem as censuras 113


e juízos de valores do pensamento racional. A sombra funciona como uma máscara para mim. A máscara é um objeto utilizado em diferentes contextos, seja ritual ou artístico, e protege a identidade da pessoa que a veste ao mesmo tempo que libera e dá condições seguras para que novas identidades apareçam. E no caso desse experimento, a máscara/sombra criou condições e ambiências propícias ao surgimento das vocalidades inauditas, pandêmicas. A seguir o poema criado a partir da escuta e da experimentação vocal. E depois duas imagens, uma de cada um dos experimentos. Chamar a voz Voz chama Chama voz Xama clama Xamã voz Preciso dizer Preciso dizer Preciso Preciso te dizer Isso é uma confissão Uma confissão Uma canção Uma oração Eu sempre volto à esse episódio Sempre volto No oráculo da noite a memória Topografia são Vales vales são Montanhas Sulcos Buracos Rios de correntes elétricas Eu sempre volto à esse episódio sempre volto Sempre volto à esse episódio Sempre viva A vida vai indo a vida vai indo vai indo a vida vai indo Preciso dizer. Você me escuta? Escuta? Está me ouvindo? Você me escuta? Eu perdi a voz. Preciso dizer. Você me escuta? Escuta? Está me ouvindo? Você me escuta? Eu perdi a voz. O glissando é cura? Em boca chiusa a ossatura da face vibra.

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FIGURA 1 – Foto do experimento 1: “Vozes da Sombra – entoando Cassandra” (experimento 1). Junho de 2019. Imagem de Antônio Gama.

FIGURA 2 – Foto do experimento 2: “Vozes da Sombra -Selva Ecoa Medeia”. Novembro de 2020. Imagem de Marina Flores.

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4. TOMANDO AR NOVAMENTE – ESCUTAR VOLTAR AO SILÊNCIO – CONSIDERAÇÕES FINAIS Encontro no poema a forma mais propícia aos voos livres da imaginação e da emoção pela voz. Há possibilidade de transpor todo um sem fim de sonoridades que surgem da exploração vocal para a experiência posterior com a palavra? Há textualidade mais favorável aos voos da vocalidade do que o poema? Pode a dramaturgia contemporânea absorver essa potência da exploração vocal? Nessa busca por uma vocalidade em performance acreditamos haver importantes contribuições aos artistas da cena e à pedagogia vocal, entendendo pedagogia como campo expandido e transdisciplinar. Durante minha passagem pelo CPT, ao mesmo tempo em que participava dos ensaios com Antunes, também dava aulas. Os registros constantes que fazia durante os ensaios foi um ato importante tanto para o exercício de dar aulas, como para o exercício da atuação. Matteo Bonfitto (2013) menciona a “teoria da prática”, uma abordagem que se aplica a esta experiência e o que se pretende na presente pesquisa em andamento. E esse é um dos aspectos relevantes nas práticas artísticas contemporâneas, seu caráter teórico/prático. Estamos, pois, num campo trans de investigação, um “espaço entre”. Para a performer Eleonora Fabião “o entre não é lá, nem cá; não é antes, nem depois; não é isto ou aquilo; não é eu, você, nem outro (...) acontece como espaço-tempo de indeterminação, como campo de relação, como corpo em transição”. Ao artista-pesquisador coube a tarefa de flexibilizar os ‘gêneros’ pesquisa e criação, de transformar energia teórica em energia artística e vice-versa fundando novas metodologias, sensibilidades, corpos e campos de atuação. (FABIÃO, 2013, p. XVII)

Percebendo “o movimento de ampliação das relações entre cena artística e cena acadêmica” (FABIÃO, 2013, p. XVII), cresceu em mim o desejo de sistematizar parte da minha experiência profissional como atriz e arte educadora e as questões que envolvem, principalmente, as relações e tensões entre técnica e estética, entre teoria e prática e entre tradição e a contemporaneidade, entre processo e produto, entre vida e arte. Segue vibrante o manifesto de Artaud que continua a fomentar práticas cênicas que “invoquem renovar o potencial da linguagem a romper com as 116


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formas de expressão literária tornada convencionais [e] ampliar o potencial da linguagem. Há uma multidão de sons que nos cercam” (ESSLIN, 1978, p. 64-65). Artaud na busca pela libertação da voz invoca um fluxo vocal liberto dos sistemas apriorísticos que nos moem. Evoé à libertação dos sistemas apriorísticos.

AGRADECIMENTOS / ACKNOWLEDGMENT Um evoé, um salve às mestras e aos mestres que nos inspiram, nos provocam e incitam nossa caminhada: Myriam Muniz, Madalena Bernardes, Wânia Storolli, Paula Molinari, Lucila Tragtenberg, Antunes Filho, Alexandre Mate e Kazuo Ohno. À minha filha Marina que foi essencial na produção e edição de “Selva Ecoa Medeia”. À minha mãe Nélia pela revisão do texto. Aos colegas, amigas e amigos do Grupo de Pesquisa Vozes Performáticas (coordenado pela Prof.ª Dr.ª Wânia Storolli) pelas trocas altamente nutritivas: Érico Cruz, Frederico Santiago, Gisele Lavalle, Luciana Marcon e Paola Ribeiro. E à Wladimir Mattos e Rodrigo Reis pela iniciativa do III Colóquio “Metodologias de Pesquisa em Artes” que impulsionou a escrita deste texto. Evoé.

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REFERÊNCIAS / REFERENCES ALMEIDA, Gil de. diferença voz glossolalia artaud performance. Dissertação (Mestrado) – Universidade de Brasília, Instituto de Artes. Brasília, 2015. ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. São Paulo: Martins Fontes, 3ª edição, 2006. CAVARERO, Adriana. Vozes Plurais: filosofia da expressão vocal. Belo Horizonte: UFMG, 2011. ESSLIN, Martin. Os limites da linguagem. In: Artaud. São Paulo: Cultrix, p. 62-71, 1978. FABIÃO, Eleonora. Programa Performativo: O Corpo - em - experiência. In ILINX - Revista do LUME – Núcleo Interdisciplinar de estudos teatrais da UNICAMP, Nº4/2013. Campinas, 2013. MILARÉ, Sebastião. Hierofania: O Teatro segundo Antunes Filho. São Paulo: Edições SESC SP, 2010. RIBEIRO, Sidarta. O oráculo da noite: a história e a ciência do sonho. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. STOROLLI, Wânia Mara Agostini. Vozes em ressonância: o espaço sonoro da experimentação. Repertório, Salvador, ano 21, n. 30, p. 50-64, 2018. Disponível em: <https://portalseer.ufba.br/index.php/revteatro/issue/ view/1684>. Acesso em 08 janeiro 2019. ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção e leitura. São Paulo: Educ., 2000.

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SOBRE A AUTORA Gabriela Flores é atriz, pesquisadora e arte educadora há mais de vinte anos. Mestranda em Artes (Bolsa CAPES/ PPGA UNESP). Formada em Licenciatura em Arte-Teatro no Instituto de Artes da UNESP. Trabalhou durante seis anos com o diretor teatral Antunes Filho, em diversos espetáculos. Integrante da Companhia da Mentira, dirigiu e atuou em diversos espetáculos. Integrou também a Cia Arnesto nos Convidou ao lado de Samir Yazbek e Hélio Cícero. Atua como arte educadora em programas de iniciação artística. Integrante do Grupo de Pesquisa Vozes Performáticas desde 2020, com coordenação da Prof.ª Dª. Wânia Storolli, vem estudando o tema da vocalidade nos processos criativos contemporâneos. Como parte da pesquisa de mestrado vem ministrando, desde 2018, o curso “Vocalidade em Performance”. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3516-2064. E-mail: gabriela.flores@unesp.br

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A ecologia sonora como processo cartográfico: uma prática ecosófica


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A ecologia sonora como processo cartográfico: uma prática ecosófica Felipe Adam Kurschat

Resumo: O artigo descreve um processo denominado laboratório de Ecologias Sonoras, criado para se experimentar a Ecosofia, proposta de Félix Guattari em seu ensaio As Três Ecologias (2008). Em torno da construção de instrumentos musicais o processo se divide em três etapas: a primeira, de escuta; a segunda, da própria construção do instrumento e a terceira de improvisação livre em grupo. O método de pesquisa empregado é o da Cartografia, perspectiva de investigação que, neste processo, se tornou uma ferramenta para entender as expressividades artísticas como produção de subjetividade, diferença e ressingularização.

Abstract: The article describes a process called Sound Ecologies laboratory, created to experience Ecosophy, proposed by Félix Guattari in his essay The Three Ecologies (2008). Around the construction of musical instruments, the process is divided into three stages: the first, of listening; the second, the construction of the instrument itself and the third, of free improvisation in groups. The research method employed is that of Cartography, a research perspective that, in this process, has become a tool to understand artistic expressiveness as the production of subjectivity, difference and resingularization. Keywords: sound ecology, listening, instrument building, cartographic process, ecosophy.

Palavras-chaves: ecologia sonora, escuta, construção de instrumentos, processo cartográfico, ecosofia.

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criação do processo a ser descrito no presente trabalho se dá a partir dos desdobramentos da leitura do ensaio As Três Ecologias de Félix Guattari (2008), o que me levou a outras reflexões e estudos, como o da esquizoanálise e, ao mesmo tempo, se deu em parceria com Rodrigo Reis, com quem pude compor ações a partir das perspectivas estudadas. A primeira ação se tratou do laboratório Ecologia Sonora, parte integrante do projeto Viagens Ecosóficas, iniciado em 2003. As Viagens Ecosóficas se tratavam de uma residência com grupos heterogêneos em reservas ecológicas, tendo a própria viagem agido como um dispositivo de desterritorialização dos comportamentos e ambientes cotidianos, pois como problematiza Guattari, “as viagens são em resumo quase sempre uma viagem sem sair do lugar, no seio das mesmas redundâncias de imagens e de comportamentos” (GUATTARI, 2008, p. 8). Os primeiros laboratórios aconteceram, portanto, dentro das Viagens Ecosóficas que, por sua vez, ocorriam em APAs (Área de Preservação Ambiental) com um roteiro ecoterapêutico que dispunha do meio ambiente para experienciar os conceitos da Ecosofia. Uma equipe de profissionais, em sua maioria da área da saúde e em conexão com as artes, facilitava processos de maneira transdisciplinar, atuando sempre em conjunto para além das suas especialidades e abordagens. Deslocados de seus espaços habituais de trabalho, experimentaram e criaram novos modos de atuação. Atravessados por múltiplas práticas psicoterapêuticas, educacionais, ambientais e artísticas, iam propondo processos que subvertiam a tradição e o foco no terapêutico, ampliando-os para a dimensão ético-estética. Processos coerentes com a Ecosofia que, de acordo com Guattari (2008), em relação ao conjunto dos campos ‘psi’ se instauram no prolongamento e em interface aos campos estéticos se diferenciam das tradições clínicas ao apontar para uma tensão existencial que operar-se-á por intermédio de temporalidades humanas e não-humanas, estas últimas entendidas como o delineamento e o desdobramento de devires animais, vegetais e cósmicos. Com o passar dos anos, as Viagens Ecosóficas com a tônica artísticoterapêutica deram lugar para encontros híbridos entre cursos-laboratórios e grupos de estudo em contextos urbanos, nos quais, além da Ecosofia, nos aprofundamos em conceitos da filosofia da diferença articulados a conceitos de outros pensadores, especialmente Nietzsche e Foucault. 122


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Foram quatro grupos em São Paulo, dois deles realizados no espaço cultural Mundo Pensante1 e dois outros em sede própria. Ao final de cada curso, a proposta era uma ação micropolítica na cidade articulada ao fazer artístico e aos conceitos estudados. Em algumas dessas ocasiões as ações se deram em forma de intervenção urbana, como foi o plantio de orquídeas em uma praça da Vila Madalena e a feitura de um canteiro em uma praça no bairro de Santa Cecília. Ambas as intervenções em conexão com o projeto Orquídeas na Vila2, coordenado pelo educador Diego Ramos Lahóz. Outros processos importantes aconteceram no Jardim Botânico de Brasília, com apoio do Governo do Distrito Federal e Livraria Cultura; durante uma residência artística no sítio sede da Taanteatro Cia3 em São Lourenço da Serra-SP e no Viveiro de Projetos4 em Araçoiabinha-SP, junto à musicista e educadora ambiental Marta Catunda. O laboratório de Ecologias Sonoras se dá em três etapas: escuta, construção de instrumentos e expressão sonora musical em grupo. Etapas que, em cada ocasião, são dispostas de modos diversos, dependendo do encadeamento do processo que varia de acordo com tempo e os recursos disponíveis, os espaços onde são realizadas e a configuração dos grupos, bem como dos conjuntos de afectos5 e conceitos que se pretenda mobilizar. Etapas que são blocos de espaço-tempo móveis, a permitirem o acréscimo de novos elementos, que podem ser extraídos e/ou modificados. Escolhas que se imbricam às composições entre parcerias, fazendo do processo um território que acolhe e estimula as práticas e pesquisas uns dos outros, tanto quanto acrescentam e diversificam as formas de pensar o dispor do próprio processo. Desta maneira, articula-se a proposta de Guattari (2008), que ao referir-se à ecologia social, coloca:

1 Espaço cultural em São Paulo. Ver em: http://mundopensante.com.br/. 2 Projeto de Diego Lahóz que organiza grupos para fazer plantios na cidade de São Paulo. Ver em https://www.facebook.com/orquideasnavila. 3 Sítio-artístico de teatro coreográfico. Ver em http://www.taanteatro.com/. 4 Espaço onde se organizam pessoas para se pensar em práticas sustentáveis inspiradas na Permacultura, Empreendedorismo e Educação. Ver em https://www.facebook.com/ viveirodeprojetos/. 5 Afecto ou afecção, grafado deste modo, está em consonância com o termo do filósofo Barush Spinoza. O termo se difere do termo afeto. Afecto ou afecção refere-se ao registro mental dos efeitos das intensidades sobre o corpo. “Afecção é a modificação de um corpo causada pelo encontro com outro corpo” (SPINOZA, 2008, p. 111).

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A questão será literalmente reconstruir o conjunto das modalidades do ser-em-grupo. E não somente pelas intervenções “comunicacionais”, mas também, por mutações existenciais que dizem respeito à essência da subjetividade. Neste domínio faríamos funcionar práticas efetivas de experimentação tanto no nível microssocial quanto em escalas institucionais maiores (GUATTARI, 2008, p.16).

Nas Viagens Ecosóficas, as três etapas – escuta, construção e expressão –seguiram desse modo. Nos processos em contextos urbanos, ocorreram variações. Por exemplo: a construção de instrumentos se deu com a utilização dos recicláveis trazidos da casa de cada participante. No Viveiro de Projetos, a etapa da escuta foi preservada, mas sucedida por outras atividades. Já no sítio da Taanteatro Cia., as etapas foram mantidas, mas imbricadas com outras práticas, como a da Glossolalia Intensiva, proposta por Rodrigo Reis, e a pintura corporal como meio de cartografar os processos da escuta, proposta por Marta Catunda. Os processos nos grupos acontecem de modo rizomático: uma rede movediça cria possibilidades que multiplicam nossa capacidade de agir nos encontros e nossa capacidade de disponibilizar formas de afetar uns aos outros, nos estimulando a agir sobre a própria vida. São práticas que se acoplam e multiplicam maneiras de promover agenciamentos. Sobre isso, Deleuze e Guattari apontam: Agenciamento é precisamente este crescimento das dimensões numa multiplicidade que muda necessariamente de natureza à medida que ela aumenta suas conexões. Não existem pontos ou posições num rizoma como se encontra numa estrutura, numa árvore, numa raiz. Existem somente linhas (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p.16).

Desde 2003, grupos de estudantes e profissionais de diversas áreas colaboram na criação coletiva desta rede autônoma que se potencializa e aumenta ainda mais as conexões e a própria rede, permeando outros espaços, criando interlocução entre a vida social e a pesquisa acadêmica, ampliando possibilidades criativas em “n” áreas de atividades. As dinâmicas propostas nesses encontros são abertas a composições que se dão nas conexões entre pessoas que partilham do mesmo ethos. Processo aberto, mas rigoroso, sobretudo no que diz respeito a não administração e ao não gerenciamento de ações e das formas de ser afetado. Assim,

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Ao invés de dar poder a alguém, se dá o poder à situação, acolhendo intensidades e o acaso [...] a fazer corpo com a imanência e a depreciar qualquer abstração que a arranque de seu meio. Enquanto ecologia, ele é sempre uma ethoecologia, um complexo emaranhado de processos de mútua afetação intensiva. Ou para parafrasear a Spinoza, não sabemos o que pode uma prática, não sabemos no que ela é capaz de devir. [...] Não podemos prever que ethos as práticas irão secretar, pois ao pensarmos em chave menor o que está em disputa é uma ética dos encontros que a cada vez se afirma de modo singular (WIEDEMANN, 2019 apud RODRIGUES, 2020, p.79-80).

Tanto os grupos em torno dos Encontros Ecosóficos quanto nos laboratórios de Ecologias Sonoras se constituem por territórios onde práticas se acoplam umas às outras, por um nomadismo de pensamentos e formas de contágio indissociáveis do conceito de Ecosofia de Guattari. As pessoas com as quais articulamos esse processo são pessoas que têm encarnado os conceitos e práticas da filosofia da diferença, corporificados das constantes vivências nas práticas do cuidado de si, das relações e do meio. “Uma maturidade que teve tempo para se consistir e se forjar numa ética-estética do cuidado” (RODRIGUES, 2020, p.81). A relação entre os propositores se dá em alternância, ora um, ora outro sendo proponente, num jogo de figura e fundo, servindo de apoio uns aos outros como no jogo musical onde um músico faz a base e o outro improvisa. Como cada um de nós era vários, já era muita gente. Utilizamos tudo o que nos aproximava, o mais próximo e o mais distante. Distribuímos hábeis pseudônimos para dissimular. Por que preservamos nossos nomes? Por hábito, exclusivamente multiplicados por hábito. Para passarmos despercebidos. Para tornar imperceptível, não a nós mesmos, mas o que nos faz agir, experimentar ou pensar. E, finalmente, porque é agradável falar como todo mundo e dizer que o sol nasce, quando todo mundo sabe que essa é apenas uma maneira de falar. Não chegar ao ponto em que não se diz mais EU, mas ao ponto em que já não tem qualquer importância dizer ou não dizer EU. Não somos mais nós mesmos. Cada um reconhecerá os seus. Fomos ajudados, aspirados (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p.11).

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1. A CARTOGRAFIA COMO MÉTODO O método utilizado nesta pesquisa é o cartográfico, método de caráter qualitativo, alinhado ao pensamento pós-estruturalista e intimamente ligado ao conceito de Ecosofia de Guattari. Para melhor entender como o laboratório de Ecologia Sonoras funciona como um processo cartográfico torna-se necessário explicitar sua trajetória conceitual, que se constitui através da noção de plano e na qual está implicada uma perspectiva sobre o corpo, sobre grupo e por um modo de entender poiésis6. O plano e os seus elementos estão contidos um no outro e mantêm-se em constante composição. O pesquisador deve se debruçar nas relações entre os objetos que compõem esse plano e apreender o que dinamizam, ou seja, deve apreender as relações de forças que se dão entre os objetos e mais ainda: esses objetos não devem ser observados como pré-existentes às relações, mas como efeitos dos encontros de forças. A noção de campo refere-se a conhecimentos fechados em especificidades, com fronteiras que separam os saberes entre si, determinando identidades e saberes especializados. O conceito de campo possui lógica binária que afirma algo a partir da negação de outros elementos de uma relação. Em tal perspectiva, o conceito de plano revelase como potência de se atualizar ações produzindo uma ruptura na tradição do pensamento filosófico e científico ocidental que separa mente e corpo, sujeito e objeto, conceito e prática. Nesse sentido, A cartografia não visa isolar nem o objeto de suas articulações históricas e nem de suas conexões com o mundo. Ao contrário, o objetivo da cartografia é justamente desenhar a rede de forças à qual o objeto ou fenômeno em questão se encontra conectado dando conta de suas modulações e de seus movimentos permanentes (BARROS; KASTRUP, 2009, p.57).

Cartografar é uma ação, uma ação expressiva dada a partir dos afectos que se apresentam em um processo e que se autorrealiza como um dispositivo a efetuar formas de fazer pensar e agir, portanto, não é mera representação. O posicionamento do pesquisador deve ser o de estar presente na composição que se dá nas relações de forças, intervindo à

6 Poiésis é um termo de origem grega que significa criação, confecção, fabricação. 126


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maneira de um etnógrafo buscando experimentar um estranhamento ao mesmo tempo em que é um agente modificador da realidade pesquisada. “Do cartógrafo se espera que ele mergulhe nas intensidades do presente para dar língua para afetos que pedem passagem” (ROLNIK, 2007 apud BARROS; KASTRUP, 2009, p.58). O corpo é um dos componentes fundamentais no agenciamento desse processo investigativo e, ao mesmo tempo, demarca um ponto zero. A noção de corpo que compõe o processo em tela se articula às teorias corporalistas neo-reichianas, dentre elas a Anatomia Emocional, concebida por Stanley Keleman7 e assimilada nas práticas com a esquizoanalista Maria Zeneide Monteiro e com a filósofa e terapeuta corporal Regina Favre8. Favre cria o conceito de Biodiversidade Subjetiva, a partir da sua imbricação com o pensamento da diferença, a ecosofia. Nessa perspectiva, as ideias de corpo e de grupo caminham juntas, portanto, os grupos são mais um dos elementos a comporem o plano do processo cartográfico desse laboratório. Faz-se necessário sublinhar a diferenciação que se dá em relação a outras formas de entender as práticas clínicas individuais e em grupo. Estamos diante do que foi proposto por Gregório Baremblitt9 (2002) articulando-se a Guattari ao se pensar em outras formas de fazer clínica, defendendo o termo klínica ao invés de clínica, tomando como referência a palavra grega klinâmen, que significa desvio. Os grupos, então, passam a ser entendidos não mais como grupos-objetos ou apenas como grupos sujeitados, mas como grupos-sujeitos. Gregório Baremblitt (2002) nos oferece dois termos em seu trabalho Teoria e Técnica para pensar trabalho klínico com grupos: o instituído e instituinte. “O instituído remete ao que está consolidado, estratificado, delimitado, enquanto o instituinte à emergência de um acontecimento, dos movimentos, da novidade e da diferença, sendo o instituído o efeito da atividade instituinte” (BAREMBLITT, 2002, p.32).

7 Stanley Keleman foi um terapeuta americano que criou a abordagem da psicoterapia corporal conhecida como psicologia formativa. 8 Regina Favre é filósofa (PUC-SP), terapeuta corporal e tradutora da obra de Stanley Keleman. Na articulação com a proposta de Stanley Keleman e a filosofia da diferença criou um percurso próprio reunindo pessoas para vivenciar sua proposta através do Laboratório do Processo Formativo. Ver em: https://laboratoriodoprocessoformativo. com/. 9 Gregório Baremblitt é um reconhecido esquizoanalista na América Latina, inventor do esquizodrama. 127


Os grupos são, dessa maneira, entendidos como territórios onde se propõem dispositivos que efetuam desvios dos agenciamentos de subjetividade, levando os sujeitos a se engajarem em processos de singularização. Portanto, a atividade klínica consiste em detectar as resistências e bloqueios que os sujeitos no coletivo podem apresentar para fomentar processos de intensificação dos fluxos desejantes com o intuito de levar à afirmação do desejo e à autopoiésis10. Vai-se ao encontro do conceito de corpo sem órgãos, desenvolvido por Deleuze e Guattari (1996), que nos fazem entender o corpo como devir, um corpo plástico ausente de fundamentos universais e que é vivido através da perda da sensação da organização corporal. Os autores nos ajudam a entender que corpo é moldado pela cultura e em seu tempo histórico, ou seja, através do qual se institui socialmente, tanto quanto uma ferramenta política com o poder de ser usada contra processos sociais que padronizam, estacam e acabam por despotencializar a vida. A partir do corpo sem órgãos, os autores desestabilizam a noção de organismo, a organização dos órgãos. “O organismo humano é de uma ineficácia gritante” (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p.10). “O corpo sem órgãos é a luta pela perda da identidade do eu, é o lugar onde descolamos a sensação de natural e buscamos puras intensidades criadoras” (ALMEIDA, 2006, p.35). Portanto, entendemos o corpo como um composto biopsicossocial de qualidades e intensidades que o constituem e o atravessam no coletivo. A grupalidade e sujeitos produzem um ao outro por meio dos processos de subjetivação que consequentemente produzem os sujeitos e os grupossujeito. Para entender melhor como se dá a produção de corpos em coletivo, podemos emprestar o termo corpar de Stanley Keleman pela maneira que Regina Favre o articula: Cartografar essas paisagens sociais mutantes, das quais nós somos parte, tanto global quanto localmente, de acordo com os ensinamentos de Guattari, significa descrevê-las em detalhe, acompanhar suas mutações e velocidade de fluxos que as cortam e reconhecer as genealogias do corpar, em cada ecologia (FAVRE, 2010, p.122).

10 Autopoiésis é uma palavra de origem grega que significa autoprodução. Aqui se refere ao termo aplicado pelos biólogos e filósofos chilenos Francisco Varela e Humberto Maturana para designar a capacidade dos seres vivos de produzirem a si próprios.

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Regina Favre (2010) coloca que se faz necessário reconhecer as maneiras que enfraquecem nossa potência de corporificação e então, a partir dessa problemática, podem-se descobrir possibilidades e estratégias para se trabalhar sobre tais maneiras em si mesmo, ou seja, um poder agir sobre si. Com a prática de corpar entende-se como o processo da vida se manifesta nos corpos e então, é possível encontrar estratégias de resistir aos roubos de potência daquilo que permite continuar produzindo a diversidade inerente à própria vida. Assim, para a produção de uma ética engajada às práticas corporais e a fim de atingir tal propósito estético-político, deve-se estar debruçado na potência de criação, da reinvenção de si, nas qualidades das relações sociais, considerando outras formas de vida. Portanto, o propósito ético-estético e político se realiza na ecologia dos fazeres dos corpos, que se produzem uns aos outros. É no fazer-se um ao outro que se continua o processo de vir a ser, processo dado através de uma poiésis que é simultaneamente criação de si. As ideias de fazer e de criar se entrelaçam e aqui, necessariamente, vemos as funções desempenhadas pelas terapias expressivas (musicoterapia/ arteterapia) no processo, pois nessas práticas se considera que em todo fazer artístico há possibilidade de se fazer a si mesmo. A partir de tal entendimento, podemos afirmar que por meio dos fazeres no laboratório de Ecologias Sonoras se vivencia a potência criativa dos modos de fazer o corpo.

2. ESTRUTURA DO LABORATÓRIO O laboratório se dá em três etapas, nos três verbos: escutar, artesanar e expressar. Escutar é a etapa de apreensão do meio, o artesanar de se agir sobre si, fase na qual se estabelece uma relação com a incorporação análoga ao metabolismo fisiológico, e a terceira etapa é expressar, em que há afecção dos corpos no ambiente, alterando-os, produzindo a diferenciação e, assim, recomeçando constantemente essa processualidade fisiológica e subjetiva de absorção, metabolização e expressão. Na primeira etapa, a de caminhada e de escuta ativa somática, se experimenta o espaço e se coletam materiais quando o grupo interage com o ecossistema em suas diversas formas, texturas e sons. A segunda etapa é o ateliê-luthieria de instrumentos musicais feitos dos materiais coletados na caminhada, trabalho que se dá em relação com a materialidade dos objetos 129


do meio ambiente explorado por todo corpo em escuta. Os participantes estabelecem relação com as fontes sonoras, ou seja, com os objetos e suas características físicas que produzem as características dos sons vivenciados no meio ambiente. Tanto nessa etapa quanto na próxima, os conceitos de poiésis se aplicam, e no caso da luthieria, se apresentam intimamente ligados à prática do artesanato e na invenção de um instrumento musical que possui uma singularidade. A terceira etapa, de improvisação musical em grupo, se dá com a utilização do instrumento construído. A importância do grupo é ampliada e a improvisação musical torna-se um dispositivo para se fazer em grupo e fazer o próprio grupo. O conceito de Ritornelo de Deleuze e Guattari (1997) é o conceito chave de todo o processo, pois através do pensamento musical e a descrição dos seus movimentos (territorialização, desterritorialização e reterritorialização), torna-se possível pensar a música, o fato de se ser em grupo e a própria existência. Assim se dá a pesquisa cartográfica nesse processo: perpassa a escuta e a relação com as fontes sonoras, desdobrandose na prática de improvisação livre em grupo que abarca a interação humana com o meio ambiente. Dessa maneira, entende-se o laboratório como uma prática transversal às três estâncias ecológicas da ecosofia.

2.1 Caminhada de escuta ativa somática (absorver o mundo) A preparação do corpo é muito importante para começar a caminhada. Conecta-se ao corpo como máquina perceptiva-cognitiva e como uma máquina de contenção de forças, energias e processadora delas. Ativamse articulações; ativa-se a respiração expandindo pulmões e despertando o diafragma e se trabalha a percepção das formas de usar os pés: o pisar, sustentar e distribuir o peso do corpo. Uma atenção especial à escuta é dada, como formulado e proposto por Rodrigo Reis Rodrigues (2020), compreendendo a escuta de modo acústico, psicoacústico e subjetivos simultaneamente. Exercícios que estimulam não só os ouvidos, mas toda a pele, são feitos para se fazer as ondas sonoras serem percebidas pela pele e pelos ossos, a se apropriarem do corpo todo como aparelho auditivo. A caminhada se utiliza do “método receptivo”, modalidade técnica de musicoterapia que consiste na escuta, tanto auditiva quanto somática (BRUSCIA, 2000, p. 129). Trata-se de um processo de exploração da ecologia sonora, como Makis Solomos11 (2012) a

11 Makis Solomos é musicólogo franco-grego. Articula suas ideias aos conceitos de 130


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propôs, ou seja, estendendo a qualidade da escuta em relação aos ambientes sonoros ligados a contextos socialmente configurados e aos conceitos de emergência e autopoiésis. Sobre tal aspecto, “a ecologia sonora não trata simplesmente de uma questão de incômodo ou de poluição, mas do lugar do som em relação a nós mesmos, ao outro e ao contexto global ao qual nós pertencemos. O mundo, precisamente” (COSTA, 2014 apud SOLOMOS, 2012, p.190). A escuta nesse processo não pode ser entendida como dissociada da realidade ouvida com a subjetividade. É no jogo perceptivo entre objeto sonoro, o ouvir, e a subjetividade que a escuta se faz. É no entrar em contato com o sonoro que se cria a escuta. Assim, “o objeto sonoro não poderia ser considerado um produto estético, nem uma estrutura, mas um trabalho em jogo; não é um grupo de signos fechados, mas um volume de linhas em deslocamento; não seria a velha obra musical, mas algo próprio da vida” (SCHAEFFER, 1977, p.95). Inicia-se a caminhada com os sentidos refinados, comprometidos com a imanência do presente para se apreender o meio e criar conexões com a matéria-prima que possibilitará a construção do instrumento. Algumas questões permanecem com o grupo a partir dessa etapa até a última: como recebemos e absorvemos o mundo? Como sou ou me faço no mundo? Cada corpo conduz os modos mais ativos ou reativos de responder as questões para si mesmo. Ao tocar e ser tocado, ao perceber os materiais da natureza e escutar seus fenômenos, “as forças materiais penetram no corpo, permitindo outras organizações, outras percepções, outras possibilidades de ações, ao mesmo tempo que aprendemos a lidar com forças e resistência da materialidade” (ALMEIDA, 2004, p.10). O processo cartográfico vai se dando através do corpo, pois ele é vetor das intensidades e para isso o cartógrafo deve estar sobre um estado de atenção diferente. Não se deve ter uma atenção que focaliza o objeto responsável pelo evento sonoro tentando compreendê-lo à maneira de um cientista, mas sim com uma atenção de poeta, ligado à afecção e percepção, que não busca definir e representar os fenômenos, mas sim abrir-se aos acontecimentos.

ecologia sonora,também chamada de ecoacústica, a partir do conceito de paisagem sonora de Murray Shafer. Tanto o conceito de ecologia sonora como o de paisagem sonora procuram compreender a qualidade da relação da escuta humana nos ambientes sonoros. 131


Intervenção exige ao cartógrafo um mergulho no plano da experiência, onde fazer e conhecer se tornam inseparáveis impedindo qualquer pretensão à neutralidade ou mesmo à suposição de um sujeito e de um objeto cognoscentes prévios à relação que os liga. Conhecer é, portanto, fazer, criar uma realidade de si e do mundo (BARROS; PASSOS, 2009, p.30).

A caminhada é simultaneamente uma prática de escuta ativa e de percepção e experimentação de fontes sonoras, na qual se vai colhendo, esfregando, tocando, percutindo um material no outro. Há produção de subjetividade que se desdobra nas afecções com lugares, objetos, com a procura de materiais na relação com eles e outros acontecimentos. Num movimento de desterritorialização, observamos um enfraquecimento do aceptismo com a natureza, que leva o grupo a lidar com o estranho, com materiais que possivelmente causam aversão. Ao mesmo tempo observamos um devir criança, um “fazer arte”, a perda de controle, uma sensação de liberdade. A natureza torna-se um brinquedo coletivo onde todos podem tocar, deitar, lambuzar, produzir som e escutar. Diferente da “infantilização regressiva” (GUATTARI, 2008), essa retomada da criança é um ritornelo, um devir com sua própria história. Descobertas acontecem e levam a um processo primário de subjetividade, como na proposta de Guattari. Entram num plano de fluxos e intensidades, onde formas e figuras estratificadas se desfazem num “outramento disruptivo” (GUATTARI, 2008), em um movimento possível à criação de um corpo sem órgãos. Ao experimentar a escuta, angústias e ansiedades podem aparecer, possivelmente por causa das novas incorporações, do contato com o estranho, com a criança, com a percepção de uma nova estética. Para territorializar estes afectos e cartografar sua experiência, o grupo cria uma linha de fuga, um fio de Ariadne: a expressão sonora extraída com os corpos e dos corpos da natureza. Essa experimentação sonora se torna uma resposta à angústia; a relação com a natureza e seus acontecimentos criam intenções de expressão. Uma nova ecologia sonora começa a ser produzida gerando redes de afetos, de cognição, de percepção e de criação. Um devir som-natureza-música no qual o que se cria, cria o seu criador. Habitualmente fragmentos de melodias e canções – territórios conhecidos – aparecem como umas entre as formas de cartografar os acontecimentos. Com as melodias e canções surgidas as pessoas se

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reterritorializam, e assim, regulam e se refazem do caos, mas podem também se tornar um trampolim para que se possa novamente confundir-se com o mundo, ou seja, se desterritorializar e se abrir para novas experiências. Na caminhada há muitas manifestações de generosidade e solidariedade entre o grupo. Compartilham-se gestos, olhares e sorrisos que cuidam, dão apoio e oferecem gentileza uns aos outros, convidando à divisão de afecções do meio. O devir do outro, quando se expressa mostrando medos, problemas, tabus, torna-se um dispositivo para a solidariedade. A subjetividade do outro serve para a afirmação da singularidade de cada um. “Encontros com materialidades, com outros parceiros, produzem novas formas, novos sonhos e novos devaneios” (ALMEIDA, 2004, p.11). Ao se experienciar essa primeira etapa, o grupo se reúne no espaço que serve de ateliê para construção dos instrumentos. O segundo momento é o de processar e/ou metabolizar o mundo que foi absorvido na caminhada. Ao produzir o instrumento musical é possível usá-lo como ferramenta de conectividade a outros corpos, estabelecendo um devir-música-natureza numa dança ontológica dos ritornelos existenciais. Nos “princípios de conexão e heterogeneidade: qualquer ponto de um rizoma pode ser conectado a qualquer outro e deve sê-lo” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p.15).

2.2. Ateliê-lutheria de instrumentos musicais (metabolização-ressingularização) isso de ser exatamente o que se é ainda vai nos levar além. (Paulo Leminski)

A segunda etapa implica a construção do instrumento com o material recolhido na caminhada. Inicia-se a concepção do instrumento em um espaço onde ficam disponíveis materiais de apoio (tesoura, estiletes, colas, fios e linhas, pregos, bambus, madeiras previamente cortadas, chave de fenda, martelo, papéis e sementes secas de diferentes tamanhos). As sementes são um ótimo material a se oferecer, pois ao caminharem locais com bastante vegetação facilmente encontram-se sementes, mas não necessariamente secas, inteiras e em uma quantidade adequada para produzir o som que se imagina quando da produção do instrumento. As sementes trazem ao pensamento os processos dos vegetais na natureza, os ciclos, a relação de vida e morte, fontes de energia e alimento para os animais. Vêm às pessoas as imagens de animais que participam desse 133


processo, como por exemplo, os pássaros que as semeiam e se alimentam delas, mas também a relação que os seres humanos têm com sementes, as plantando para se alimentar de seus frutos. Além de usá-las para preencher as estruturas ocas, também é possível amarrá-las na parte de fora do instrumento para que batam umas nas outras ou ainda prendê-las ao próprio corpo. Pedras, terras e areia também são usadas com a função de preenchimento. Essas sementes, linhas e papéis podem revestir os materiais mudando suas acústicas como também compor a estética visual do instrumento. O lixo encontrado na caminhada também pode ser incorporado aos instrumentos e, nesse aspecto, o reciclado torna-se potencial sonoro e de sentido. O lixo é bem vindo ao processo, é admitido pelas pessoas de maneira espontânea e materiais como plástico, acrílico e metais fazem parte da vida cotidiana: por meio deles se estabelece uma relação sensível corporal, trazendo afecções e memórias enriquecendo o entendimento do processo da construção dos instrumentos. Guattari (2008), ao falar de ecologia ambiental, nos ajuda a entender como ela tem uma relação íntima com os modos que temos de nos relacionar uns com os outros e as coisas que estão no espaço, em interação (ecologia social), produzindo processos de subjetivação. O lixo está no centro da discussão sobre nosso jeito de viver, solicitando emergencialmente soluções a fim de ampliar as possibilidades de produção de economia mais éticas, evitando o exagero na utilização de serviços maquínicos e nos obrigando a repensar os excessos culturais alimentares e de consumo. Ao nos relacionarmos com materiais como matéria orgânica e lixo, nos deparamos com o processo macroeconômico e percebemos como a vida cotidiana está inserida em uma dinâmica determinada por um sistema capitalista globalizado. Diante disso, cabe pensar: com qual consciência ou perda dela, com quais sensibilidades ou perda delas, se vive? No processo de construção de instrumentos, valores afetivos e históricos são atribuídos a cada peça que compõe o corpo do instrumento. Em todo o tempo ocorre a participação do grupo na construção do instrumento de cada participante. Escutam-se uns aos outros, suas histórias, sua subjetividade. Acalentam, riem, discutem sobre suas vidas. O grupo opina e sugere formas de resolver problemas da construção dos instrumentos uns dos outros, assim como comentam passagem e situações da vida. As Infâncias, juventudes e relações leves e potentes são lembradas, estimuladas pela relação com a 134


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natureza, os espaços abertos, a experimentação, a relação com o fazer em grupo, o brincar, o ato de criar, o fazer artesanal e o estar no chão em meio a uma série de materiais. O grupo torna-se um testemunho de narrativas, de gestos e modos de fazer potencializando a relação reflexiva consigo mesmo na construção do instrumento e no modo de estar no grupo, assimilando-se os outros por identificação e diferenças nas formas de ser e agir. Ao se escutar, o grupo se acalenta, ri, discute, opina, se afeta pela subjetividade uns dos outros. Nesse “Eros de grupo” (GUATTARI, 2008) há um fortalecimento de vínculos, criando um ambiente que torna possível o acolhimento e a provocação. Os medos, as angústias, os fantasmas vividos na caminhada, em silêncio, no meio da natureza, os processos da vida no processo de construção de instrumento tornam-se um desejo produtivo se processando coletivamente. Nesse encontro de potências, a diferença, a singularidade do processo do outro, mostra que nenhum percurso é maior ou melhor. É um processo ético em que as diferenças podem (co)existir. Entende-se o processo estético de criar seu instrumento e sua própria sonoridade como necessariamente ético. A diferença dos outros é a diversidade como potência em sua maneira salutar de perceber e fazerse na vida. É no outrar-se que sempre há a potência do diferir. Portanto, o que mais importa é o outrar-se do que se percebe e se constitui como outro diferente. A questão é que quanto mais o outro é diferente de nós, mais essa diferença pode ativar o diferir. Refere-se tanto aos outros que integram o processo, quanto aos círculos de relação de cada um que se presentificam nos modos de perceber, discursar e se comportar. Outros outramentos que se dão são aqueles com a natureza na qual se abriram os sentidos na caminhada: animais, vegetais, ventos, terra, água, umidade, céu, nuvens, clima, cores, sons etc. O diferente é um disparador de novas diferenças díspares. Desse modo se estabelece uma política da diversidade oposta à uniformização do socius que, nas novas formas neoliberais do capitalismo, sentimos agir de forma violenta sobre a capacidade de criar outras formas de vida. Portanto, uma das coisas que se faz importante entender é que quando se fala “pessoa” ou da “pessoa”, refere-se sempre a algo na pessoa e não algo individual. Como definiu Maria Zeneide Monteiro: “não é uma questão pessoal ou individual, é uma questão social. Se você conta uma questão da sua vida: esta é a forma com a que você vive um afeto, singularmente. Nosso trabalho é recolocar isso no caldo coletivo. Inseparavelmente o coletivo do singular” (MARTINEZ, 2019, p. 88).

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A construção do instrumento produz uma dupla função: uma maneira de se colocar no mundo e perceber a maneira que faz a si próprio, assim como também é uma forma de abrir novas possibilidades de estar na vida. As pessoas descobrem que têm a possibilidade de produzir a vida como obra de arte (estética) e produzir a existência como criação (ética). Para construir é preciso abandonar coisas, somar, lidar com o erro e o imprevisto; com a possibilidade de não ser exequível o plano inicial; de redirecionar e lidar com o planejado, seja por mudanças acústicas ou limites do material (fragilidade, dureza, durabilidade) ou, ainda, por questões pessoais (dificuldade manual, ansiedade, desistência). Êxito e fracasso têm o mesmo valor, portanto, não devem ser manipulados: “o processo, o aprofundamento e a intensidade são mais importantes que qualquer objetivo ou produto” (CRAVEIRO DE SÁ, 1995, p.46). Devemos entender o processo artesanal como produção de sensibilidade capaz de se transformar, de se caotizar e reestruturar em um outro território. A faceta artesanal e potente da qual a arte pode se utilizar. Neste processo arte e artesanato não sofrem influências hierárquicas entre si e passam a ser entendidas como ético-estético. Como criação de si (ALMEIDA,2004, p.88).

O instrumento ganha forma e expressividade sonora e visual. O instrumento torna-se uma obra, mas não obra pensada em comparação a outra em valor estético e tampouco entendida como algo acabado, como algo em si mesmo, mas sim entendido pelo seu devir. Uma obra é o devir da obra, ou seja, ela é os agenciamentos que pode conter, ela é o processo que só pode ser entendido a partir de suas composições. Portanto, o mais importante não é atribuição de significados revelados na produção dos participantes, mas sim compreender os meios e práticas que propiciam a atualização de subjetividades. O objetivo desse processo não é o resultado final e nem a interpretação do objeto, “mas a compreensão do sujeito no modo como operou – a sua processualidade –que traduz o seu ser em atividade, a sua formatividade, ou seja, o modo próprio de quem a formou e que se fixa na obra” (PAREYSON, 1993, p.15). Está no corpo do instrumento o transcorrer do percurso próprio, a forma de ser de cada um através dos sentidos dados ao seu projeto. O instrumento não corresponde a um propósito artístico, está para uma espécie de ontologia, do entendimento de seu ser em ação — o próprio corpo sem órgãos. O instrumento é obra aberta, extensão do corpo de quem 136


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o criou, mas independente dele. O termo instrumento é entendido em sua radicalidade: é ferramenta e com ferramentas é que se cria um mundo. Os instrumentos musicais sobre essa perspectiva enfatizam a sua força de afecção: força sonora e visual intermediada pela atuação performática. O instrumento acoplado ao corpo de quem o executa constrói uma nova noção do que é instrumento a partir da maneira de tocar e interagir com ele. Os instrumentos transpõem a condição de instrumento musical pura e simples e alcançam a condição de objetos de interação sonora. Entendemos assim que o instrumento é uma máquina, não uma máquina no sentido metafórico, mas sim, de fato uma ferramenta de conectividade e ampliação de afectos. Como afirma Deleuze e Guattari, “o homem compõe máquina desde que esse caráter seja comunicado por recorrência ao conjunto de que ele faz parte em condições bem determinadas” (DELEUZE; GUATTARI, 1972, p.508). O instrumento musical construído no laboratório se torna uma máquina de agenciar novas sonoridades e novas formas de escuta. Tudo compõe máquina. Máquinas celestes, as estrelas ou o arco-íris, máquinas alpinas que se acoplam com as do seu corpo. Ruído ininterrupto de máquinas. Ele achava que deveria ser uma sensação de infinita felicidade ser tocado assim pela vida primitiva de toda espécie, ter sensibilidade para as rochas, os metais, para a água e para as plantas, captar em si mesmo, como num sonho, toda criatura da Natureza, da mesma maneira como as flores absorvem o ar com o crescer e o minguar da lua (DELEUZE; GUATTARI, 1972, p.12).

Ao contrário do que se possa imaginar, esses instrumentos não são objetos passíveis de serem desejáveis por músicos, pois não são resistentes, não propagam sons comparados com instrumentos convencionais, não possuem boas caixas de ressonâncias e nem bons acabamentos. Alguns são muito frágeis e todos são perecíveis: curiosamente apresentam a efemeridade da vida e muitos deles não terminam o processo inteiros.

2.3. Improvisação sonora em grupo (expressão) O terceiro movimento do processo é a produção sonora em grupo feita com o instrumento que cada um produziu. O grupo se reencontra depois de um certo espaço de tempo que, dependendo das situações pode ser depois de algumas horas, no dia seguinte ou no próximo encontro em outro dia. Reinicia-se o processo estabelecendo uma atenção especial às possibilidades sonoras do próprio instrumento, que se dão de muitos 137


modos: percutindo em partes diferentes, com diferentes materiais ou ele próprio como baquetas; usando os dedos com mais delicadeza nas cordas estendidas ou em coisas que estão grudadas nos instrumentos; os chacoalhando para ver como soam os materiais colocados em seu interior ou fazendo se chocar na parte de fora ao movimentá-los etc. Uma consigna é dada: em roda, um de cada vez deve apresentar um solo tocando seu instrumento. Cada integrante do grupo apresenta um motivo musical e, então, o grupo interage com ele criando uma breve composição. O rodízio entre os integrantes cria breves climas sonoros de fragmentos musicais com ritmos e timbres singulares, uma efêmera ecologia sonora de cada interação do grupo. Essa dinâmica, consequentemente, faz com que cada membro do grupo tenha uma música criada coletivamente. Toda a dinâmica sonora se dá através da improvisação. O improviso é uma técnica importante feita de muitas maneiras por artistas e usada por psicoterapias expressivas que usam música (musicoterapia) ou nas artes plásticas (arteterapia), por exemplo. As técnicas de improvisação são importadas às psicoterapias para que as pessoas se deparem com a sua própria subjetividade refletida no suporte expressivo. O musicoterapeuta Beneth Bruscia coloca que a improvisação é “uma etapa de qualquer procedimento que o terapeuta utiliza para dar forma à experiência imediata do cliente” (BRUSCIA, 2000, p.123). O autor em seu trabalho intitulado “Definindo Musicoterapia” reúne os principais conjuntos de técnicas, que podem ser usadas separadamente ou se desencadeiam umas nas outras espontaneamente e/ou como parte de um programa. A improvisação acontece como um jogo e para existir um jogo é preciso ao menos dispor-se de duas forças: uma de apoio e outra de passagem. As forças de apoio sustentam, controlam, seguram e asseguram o território e as outras forças passeiam, flanam e aventuram-se nele, deparando-se com os elementos de sua interioridade, com sua superfície e limite com o fora. A improvisação, na música popular, no jazz, por exemplo, é parte constitutiva de sua estética. Os solos desse gênero musical são em sua grande maioria improvisos. Os temas musicais e a harmonia em que esses temas se desenvolvem são as forças territorializadas e os improvisos são os elementos de passagem. O músico que sola explora simultaneamente sua memória musical e desafia suas habilidades, por vezes levando a música a modular de tal forma que parece outra. Os músicos solistas e os que oferecem a base se provocam simultaneamente para que algo novo possa surgir. 138


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Músicos de música instrumental normalmente organizam jams, que são encontros musicais para se experimentar as sonoridades que possam surgir entre eles. Na etapa de improvisação sonora do laboratório, o mesmo procede: ao improvisar se experimentam as sonoridades do instrumento e o próprio modo de ser através da própria performance no grupo. Improvisar em grupo é agenciar formas de explorar o instrumento e a partir dele experimentar afectos, relações com signos, memórias, modos de ser e, ao mesmo tempo, trazer para si elementos composicionais novos. Na livre improvisação, os músicos interagem em tempo real entre si e com o ambiente da improvisação. Na verdade, a atuação criativa e interativa dos músicos (com suas histórias pessoais e suas vontades de potência), tanto quanto o espaço e o tempo específico de cada performance, constituem o ambiente complexo da improvisação. Pode-se se dizer que cada performance se configura de maneira absolutamente singular ou, em outras palavras, o que cada performance cria é um novo ambiente específico. Neste sentido, é possível dizer que a prática da livre improvisação se localiza no campo intermediário entre a música, em seu sentido tradicional, e a ecologia sonora (COSTA, 2014 apud SILVA, 2017, p.14).

Com a improvisação evoca-se, de imediato, uma composição feita da convergência entre as matérias que constituem o meio ambiente e as maneiras pelas quais esse meio atravessou cada um, reveladas no corpo dos instrumentos e nos modos de ser e de se fazer música em grupo. Os elementos sonoros apresentados por cada um e as expressões corporais tanto quanto os próprios instrumentos em sua visualidade e sonoridade tornam-se dispositivos, se tomados como elementos de relação, de devir. “O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre esses elementos” (BARROS; KASTRUP, 2009, p.77), “alia-se aos processos de criação e o trabalho do pesquisador, do cartógrafo, se dá no desembaraçamento das linhas que os compõem–linhas de visibilidade, de enunciação, de força, de subjetivação” (BARROS; KASTRUP, 2009, p.79). A improvisação musical vem ao encontro do processo cartográfico, pois se dá entre o jogo de forças e nelas se arrisca à deriva. É importante que o cartógrafo, no exercício da cartografia aliado à improvisação livre, não se baseie na ideia de liberdade irrestrita, nem de espontaneidade criativa, tampouco como uma solução daquele que não se prepara para uma ação, mas sim, conectado à imanência do acontecimento, atento às formas sonoras e não sonoras que são expressas no jogo da improvisação. 139


Improvisação neste contexto é entendida como um modo de expor-se a um dispositivo a tomar forma como um empreendimento relacionado a um fazer e, por isso, à prática, à técnica. Nos interessa perspectivá-la — a improvisação enquanto uma prática — nos termos de uma ciência nômade (DELEUZE; GUATTARI, 1997 apud ESTEVES; ADÓ, 2019, p.437).

O instrumento torna-se uma espécie de corpo feito de corpos (materiais) acoplados ao corpo de quem o toca e que, consequentemente, afecta o grupo que, de imediato, aparelhado com seus instrumentos, devolve essas afecções ao próprio grupo. O corpo afetado pela ecologia sonora, com suas materialidades e os sons, se dá em relação, em um corpo a corpo que muda as formas um do outro, processo que fica evidente ao observar o instrumento musical que perde partes e ou quebra-se ao se tocar, obrigando quem o toca a lidar com a constante alteração de sua configuração. É importante ao cartógrafo debruçar-se nas maneiras de relacionar que cada um estabelece com seu instrumento e a maneira de se apresentar com ele no grupo, ou seja, a performance. Ao observar a relação que as pessoas têm com os instrumentos, percebem-se os olhos se aproximando do objeto tentando penetrar nos detalhes; muitas vezes os instrumentos parecem bonecos sendo penteados, ou assemelham-se a espelhos que refletem a face de quem o criou. O grupo apresenta uma multiplicidade de comportamentos com os instrumentos. Muitas vezes os instrumentos tornam-se evidentemente objetos como bandeiras-estandartes, espadas, lanças, cajados, caduceus, recipientes, utensílios etc. Com velocidade o grupo modula a sonoridade não só quando alguém toca, mas quando se gesticula e se posiciona o instrumento de determinado modo, construindo uma breve performance. É possível não só oferecer as intenções musicais com a sonoridade do instrumento, mas também se podem alterar as sonoridades a partir do movimento e expressões corporais. Nessa interação, o grupo apresenta papéis sociais e posturas corporais que mimetizam as relações sociais fora daquele contexto, ao mesmo tempo em que tais expressões e movimentos se desdobram em produção musical. Se faz necessário ao cartógrafo analisar essas representações: não se deve fechar-se na ideia de identidade, mas sim entender que as evocações de personalidades comunicam vínculos, formas de ser que são apreendidas e que as pessoas se relacionam em experiências de vida que, ao serem colocadas ao grupo, nele podem ser experimentadas de outras formas. As pessoas se apropriam do jogo de improvisação sonoro musical experimentando seus mundos próprios. Há uma articulação de distintas temporalidades. Me refiro aos tempos dos pulsos rítmicos musicais e as sobreposições temporais da vida, 140


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das memórias e projeções de futuro de cada um. As memórias (tristes e alegres) se apresentam tecendo e compondo forças com o processo, assim como podem despertar outras que estavam adormecidas tornando-se um ritornelo existencial temporal de música e vida. Devido à fragilidade e efemeridade material de alguns instrumentos, muitas vezes o próprio ato de fazer sons com eles os destroem– isso facilmente acontece quando se usam galhos e folhas secas. Há também instrumentos que são as próprias coisas: os galhos, as reuniões de folhas secas, os paus, pedras e combinações destes. Ao final da dinâmica normalmente vai-se voltando vagarosamente ao mundo da fala: palavras, frases curtas vão brotando, criando imagens e registrando as sensações presentes no corpo. Perguntas como: “o que está acontecendo?” ou “como está se processando o vivido na dinâmica?” ajudam a apreender os ritmos, pulsos, oscilações, energias do corpo e vão se registrando os estados de afecções. Dessa maneira a experiência em grupo vai se desmanchando, tecendo-se comentários sobre as maneiras de tocar um dos outros e das sensações e sentimentos que cada um pode ter mobilizado (os que podem ser ditos, pois muitos não podem) em suas performances musicais. Ao se fazer uso da linguagem falada, o cartógrafo deve preocupar-se em dar passagem ao acontecimento e, para isso ocorrer, é importante não reduzir a fala à sua função explicativa, mas construir conhecimentos, localizar e nomear sensações, estabelecendo outro modo de fazer conexão. Esse é um momento em que se proporciona uma reterritorialização e se prepara o desfecho. Por fim sugere-se ao grupo pensar em um destino para seus instrumentos. Esta é a última ação do processo e as finalidades dadas são tão diversas quanto o próprio processo. Alguns instrumentos são desmontados e sua matéria devolvida ao estado e ao meio que foram retirados, como se tivessem sido emprestados; outros são entregues inteiros à decomposição ou colocados em determinados lugares do caminho para ficarem ao acaso de um encontro como outro passante nas trilhas e percursos do local; alguns são levados para casa, enfeitam espaços e/ou são usados em sessões recreativas musicais em outras ocasiões e também servem, inteiros ou partes deles, como presentes simbólicos de alianças de relação entre membros de grupos e/ou como amuletos. Creio que algumas partes de instrumentos, em algumas ocasiões, também possam ter servido para compor acessórios como brincos, pulseiras e colares. Os materiais seguem a compor o mundo e a ser (de)compostos por ele, assim como nós, os processos e tudo que é vivo: a vida como obra de arte. 141


CONSIDERAÇÕES FINAIS A partir do processo desenvolvido no laboratório acredita-se ter vivenciado uma experiência de ecologia sonora a partir do método cartográfico em transversalidade às três ecologias (ambiental, social e subjetiva). Nele se compreende o processo de autopoiésis implicado à cartografia em suas três etapas: acompanhando a maneira que se escuta, se processa e se cria conexão com a vida; também os comportamentos em relação aos materiais do meio ambiente e a relação consigo próprio na construção do instrumento; no mergulho à reinvenção de si no jogo de improvisação musical, dispositivo que coloca e potencializa os corpos em ação, produzindo seu modo de ser em grupo e se apropriando dele para produzir seus processos de ressingularização. Portanto, com a descrição desse processo cartográfico acredita-se ter compartilhado um modo singular de pesquisar e intervir na realidade pesquisada, intervenção essa construída através de uma rede de potências em composições e que se lança, mais uma vez, a devires, agora de outro modo, o Ritornelo. Se a cartografia é um método de investigação que não pode ser separado das formas de se processar a vida, escrever sobre esse processo é como outra forma de refazê-lo. É também um convite para o outro acompanhar e produzir um mundo compartilhado e transitório – um plano de criação de si e do mundo. Entende-se que a cartografia implica uma atitude em que o mundo e o agente de conhecimento se inventam mutuamente na relação estabelecida entre os corpos, para dar passagem às forças da vida em sua atualização, assim se dá a continuidade aos processos. Isso, a meu ver, não deve ser somente a tarefa do cartógrafo, mas também sua aposta.

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______. Mil Platôs vol. 4. Capitalismo e Esquizofrenia. Tradução de Suely Rolnik. São Paulo: Editora 34, 1997. ESTEVES, W. Diego; ADÓ, L. D. Máximo. Jogo e improvisação na pesquisadocência: sobre estudos em exercícios. In: Nuances: estudos sobre Educação. Presidente Prudente-SP, v. 30, n.1, pp. 428-441, Março-Dez, 2019. Disponível em: <https://revista.fct.unesp.br/index.php/Nuances/article/view/6753>. Acesso em: 10 out 2020. FAVRE. Regina. Trabalhando pela biodiversidade subjetiva. In: Cadernos de Subjetividades. Vol. 1, n. 12, pp. 108-123, 2010. Disponível em: <https://revistas.pucsp.br/index.php/cadernossubjetividade/article/ view/38452/26111> . Acesso em: 10 out 2020. GUATTARI, F. As três ecologias. 11ª ed. Campinas: Papirus, 2008. MARTINEZ, Fernando Pena Miguel. Uma vida Z: construção de um corpo cartógrafo. 2019. 155f. Dissertação de mestrado (pós-graduação interdisciplinar em ciências da saúde) – Universidade Federal de São Paulo, Campus Baixada Santista. PAREYSON, Luigi. Estética - Teoria da Formatividade. Petrópolis: Ed. Vozes, 1993. RODRIGUES, Rodrigo. Glossolalia intensiva: como criar uma voz para o corpo sem órgãos (ou ecologia de práticas para uma esquizovocalidade). 2020. 150 f. Dissertação (Mestrado em Artes). Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Artes - São Paulo. SPINOZA, B. Ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.

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SOBRE O AUTOR Musicoterapeuta formado pela Faculdade Paulista de Artes, pós-graduado em Prática Docente do Professor Universitário pela Faculdade Oswaldo Cruz e mestre em Comunicação Contemporânea pela Universidade Anhembi Morumbi. Atua na perspectiva esquizoanalista na articulação com artes na clínica individual e em grupos. Desde 2003 dedica-se a pesquisar e praticar experiências acerca da Ecosofia. E-mail: felipe.musicoterapia@gmail.com

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Intercessões sonoras/musicais: pílulas de (ex)cuta


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Intercessões sonoras/musicais: pílulas de (ex)cuta Marta Catunda Secretaria Estadual de Educação de SP | Brasil

Resumo: Esse texto foi escrito em um momento/pausa obrigatória. Na pandemia há um estado de permanente tensão presente. Em contraponto, outra atmosfera transformou o trabalho, a produção de pesquisa a criação da arte e seu fazer/pensar. A partir do processo de pesquisa das pílulas de escuta, o tempo de comunicação foi diminuído em ciclos. Uma provocação por uma (ex)cuta. Explico, ex de antes de se tornar escuta, ou escrita e também ex de extrospectiva, tornar evidente a escuta de dentro para fora e vice-versa como faz o próprio fluxo da nossa respiração. Com Davi Kopenawa (2016, p.332) aprendemos a tornar extrospectivo tudo aquilo que escutamos nos sonhos. Assim, uma (ex)cuta tem a intenção de lidar com uma atmosfera criativa e performática, para outras durações como mudança de clima, arejamento e pausa para a observação enfim, como transpiração vital para a arte que desejamos.

Abstract: This text was written in a moment/pause. In the pandemic a state of permanent tension is present. In counterpoint, another atmosphere transformed the work, the research production the creation of art and its doing/thinking. From the research process of the listening pills, the communication time was shortened in cycles. A provocation for an (ex) listening. I explain, ex from before becoming listening, or writing and also ex from extrospective, making listening evident from inside out and vice versa as the very flow of our breathing does. With Davi Kopenawa (2016, p.332) we learn to make extrospective all that we hear in dreams. Thus, listen before (excuta), is intended to deal with a creative and performative atmosphere, for other durations as a change of climate, aeration and pause for observation finally, as vital transpiration for the art we desire.

Palavras-chave: pílulas de escuta, pesquisa em artes, sonho, intercessão, ecoestética da educação.

Keywords: listening pills, arts research, dream, intercession, eco-aesthetics of education.

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á alguns anos o processo de escuta da pesquisa cartográfica com os pássaros desembocou (Cartografia ecologista dos Pássaros: por uma ecoestética da educação, 2019)1 fruto da pesquisa de Pós doutorado em Educação (linha cotidiano escolar) dentro de uma perspectiva ecologista (REIGOTA, 2018). O esforço dessa pesquisa iniciada em 1989, com a escuta dos pássaros na Amazônia e no Pantanal, foi de trançar os fios ou linhas dos estudos culturais, da música2, das audições de campo3 e perceber os emaranhamentos de borda, que acabam por se desdobrar em dispositivos para práticas educativas sensíveis com diversos fins educativos e artísticos. O livro contém o jogo/oráculo dos pássaros. Foram cinco anos (2014/2019) com a bolsa PNPD Capes que possibilitaram andarilhanças, no ambiente escolar e universitário, em Sorocaba, São Paulo e em lugares muito especiais Sítio da Maura Baioki, Pocinhos do Rio Verde (Rosa dos Ventos) e Pantanal de Mato Grosso. Esses movimentos sempre articulados com Coletivos de Arte, Núcleos e Grupos de Estudo da Uniso, Unicamp e Unesp e no Pantanal com um grupo de artistas, parte do movimento de artes plásticas e cinema em Mato Grosso (MT) em especial Maria da Glória Albuez cineasta/videomaker. Ao lado de Rodrigo Reis Rodrigues, nesse período como intercessor, em oficinas e atividades concebidas por uma ecologia da escuta, que hoje é possível tratar aqui como uma proposta em muitos veios da pesquisa, graças à potência dessas oportunidades. Felizmente os encontros anuais do Colóquio de Metodologias da Pesquisa em Artes da UNESP, já em sua terceira edição, nos trazem essa abertura

1 Trata-se de um livro que contém um breve relato do processo da pesquisa em sonoridades ambientais de 1989/2019; acompanhado do oráculo dos pássaros e vinhetas sonoras musicais dos pássaros selecionados para os 8 elementos com dobras dos quatro: AR (atmosfera), VENTO (atmosfera em movimento, ÁGUA EM MOVIMENTO aterrado (oceano, rios, cachoeiras, veredas)ÁGUA CONCENTRADA evaporação (LAGO, poças, pancas, baías florestas), TERRA aterrada (agricultura), MONTANHA (tectonia, relevo, encosta, topografia), FOGO concentrado (fogueira, cozimento), FOGO ativado (TROVÃO, ativação) trabalhados neste oráculo como dispositivo de ativação de escuta sensível. Acompanham este livro 8 vinhetas sonoras/musicais dos elementos. 2 Ouvir Birds. LP de Tetê Espindola e Arnaldo Black, lançado em 1992, nesta pesquisa foi realizada uma experiência de canto de pássaro como instrumento musical. 3 Ver Marta Catunda. A B C encontros sonoros: entre cotidianos da educação ambiental. Trata-se de um exercício de escuta em ambientes diversos incluindo a universidade e a escola. 148


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imprescindível para a consolidação e valorização de outras possíveis articulações da academia, que diminuam o enorme fosso existente entre a produção de pesquisa acadêmica em arte e a realidade da produção artística e cultural de nosso país e de suas reverberações na educação dentro de uma perspectiva ecologista4. Em que pese o fazer/pensar/expressar on-line ou não. No contexto da pandemia, as estâncias de pesquisa, institutos, grupos e coletivos sofreram de cara com um brutal processo de desmobilização exigindo articular rapidamente outras formas de arejar essas atividades de pesquisa e arte.

1. PÍLULAS DE ESCUTA PARA UMA (EX)CUTA 1.1 Posologia das pílulas Transcrever trechos do texto do intercessor convidado (Leandro Belinaso), lendo-o em voz alta antes de dormir e colocar o texto para sonhar debaixo do travesseiro, durante uma ou duas semanas ou mais. Ao acordar ouvir o canto da gaivota (ave escolhida por Leandro). Depois gravar, trilhar sons e plasmá-los em pílulas de escuta. Cada pílula deve ter no máximo de 2 a 5 minutos por dia, formando, no final do ciclo, 35 minutos para escuta. São sete doses de escuta, sete luas, muitos sonhos, sons, músicas em links que podem ser compartilhados diretamente no Soundcloud5. Sem contraindicação. Na pílula apresentada no III Colóquio de Metodologias da Pesquisa em Artes o processo de escuta é apenas a amostragem de um dia e não do ciclo completo de sete dias, duas luas e sete pílulas. Leandro Belinaso foi o convidado deste ciclo de sete dias entre as luas crescente e cheia de setembro, período de postagem das pílulas para cada dia. Professor e pesquisador de Pós Graduação da UFSC, Leandro desenvolve na docência centelha única em agregar potências de todos seus orientandos, 4 Ver Marcos Reigota, Rodrigo Barchi; André Yang. Ecosofia Tropical, Educação Ambiental Canibal e a Aventura de Desnudar-se. Revista Linha Mestra, n.35, pp.265-277, maioagos, 2018, p.268. 5 Importante dizer sobre o uso do Soundcloud como uma plataforma de streaming, que apesar de muitos considerarem superada, foi recentemente ampliada e tem sido utilizada como ferramenta digital preferida por compositores de música eletrônica com experiência dos mais diversos tipos de sonoridade. No caso da pesquisa torna-se interessante poder conhecer e trocar ideias com quem nos ouve e escuta. 149


interlocutores, grupo de estudos, em uma caudalosa e generosa vertente de produções acadêmicas com a literatura e imagens que vem produzindo com versatilidade na educação em Grupos de Estudo por todo o país. O pássaro escolhido por Leandro da Cartografia Ecologista dos Pássaros foi a gaivota. Assim, trechos do verbete da gaivota da cartografia, apresentam o texto de Leandro em cada pílula, com o tema de Manoel de Barros. Setembro foi o auge dos incêndios no Pantanal e a presença do Manoel de Barros no texto do Leandro gerou também este efeito aleatório já que a gaivota talha mar migra da beira mar até o Pantanal, indicando mais uma dobra/ciclo. Em setembro de 2020 as pílulas de escuta foram produzidas como proposta criativa realizada em coletivo Arvorecerdecasaemcasa6 reunindo diversos momentos e experiências de várias e etapas/anos da pesquisa com a cartografia dos pássaros e a pesquisa de sensibilização para as sonoridades ambientais. Neste texto destaco alguns momentos e processos que desembocaram nas pílulas.

1.2.O processo de pesquisa A primeira parte desse processo foi realizada durante 2018 e 2019. Teve como base sonoridades oriundas de 40 horas de registros sonoros, da pesquisa apoiada pela Fundação de Amparo a Pesquisa de Mato Grosso – FAPEMAT ocorridas entre 1999/2000, intitulada Ambiência sonora da Chapada dos Guimarães. Por uma compreensão geofônica da biodiversidade. Esta pesquisa mais antiga constituiu-se de registros (gravações ainda inéditas) em matas de encosta e veredas da APA de Chapada dos Guimarães, Mato Grosso, MT7. Um arquivo rico, mas com alguns entraves técnicos e tecnológicos que venho revisitando e dando um tratamento de áudio mais adequado (fitas cassete e mds). Desde 1999 venho trabalhando com esse arquivo em programas de áudio. Esse tratamento preliminar pretendeu compor espécies de rendas sonoras, recompondo as sonoridades de tal modo, a revelar camadas acústicas sobrepostas, para evidenciá-las. Essas camadas vão desde o colchão acústico (estrato inferior próximo ao chão até dois metros) até os

6 Ver site do Coletivo. Disponível em: arvoreceremcasa>. Acesso em: 23 de mar. 2021.

<https://arvorecercasa.wixsite.com/

7 Os registros foram realizados com gravador cassete TCM 5000, (utilizado no período por ornitólogos) e dois microfones Senheiser um omini direcional e outro direcional mais longo, para sons além do colchão acústico. 150


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demais estratos acima de dois metros. Importante observar que no caso da Chapada dos Guimarães, seus paredões formam uma espécie de ferradura visto do satélite. Essa espécie de estúdio natural faz com que as sonoridades ali produzidas reverberem em constante fluxos ecoantes e/ou borrados. Afinal estas camadas de fato não são uniformes, mas sujeitas a gradientes diversos tais como: umidade, anteparos diversos de troncos, folhas e galhos, relevo do terreno, vento, assim em diante. Assim, cada estrato tendo como referência um observador no chão, pode apresentar diferentes sonoridades mais ou menos densas, borradas ou esgarçadas. Em 2019 foi publicado pela revista Climacom Povos Ouvir – A ressureição alada (CATUNDA, 2019) uma dessas gravações realizadas em um cerradão, onde: à esquerda, acima de uma encosta, se contrapunha um relevo mais alto e um aclive à direita, uma acústica de cova rasa que chamei da Mata do Encovado na Chapada do Guimarães. Essa acústica proporcionou notável potência no soar do canto do Acauã, espécie de falconídeo de grande porte (heperthoteres cachinnans) 45 a 56 cm de altura, postado estrategicamente na borda desta mata, onde perscrutava alimento. A velocidade de seu canto reverberava dentro da cabeça. Nessa gravação, a respiração ofegante faz parte desse momento surpresa, algo muito comum na observação silenciosa. Nem sempre as gravações apresentam o resultado esperado. Algumas mudam a velocidade de rotação, de acordo com o fim da bateria do equipamento, ou o excesso de umidade que faz o equipamento falhar. Isso poderia sugerir defeito para um engenheiro acústico. Mas, na escuta sensível e direta desses áudios revela-se o efeito do defeito tecnológico como um aspecto que pode contribuir na composição sonora ou musical. Por exemplo, a incrível velocidade do martelado de um pica-pau em uma encosta, mesmo sendo um timbre mais grave ou sutil, adquire um poder acústico de ressonância considerável, sendo o fluxo favorecido pelo escarpado da encosta. São muitos outros os exemplos e possibilidades de dar o tratamento adequado a esse material com os recursos de programas de edição de som. Partes desse arquivo, de paisagens sonoras diversas foram aproveitadas nas pílulas de escuta apresentadas no colóquio. A leitura do livro A Queda do Ceú: palavras de um xamã Yanomami (2016), nos marcaram um divisor de águas na pesquisa nestes anos mais recentes. As palavras provocantes do xamã surtiram de tal modo reverberações, que não foi mais possível desvencilhar uma experiência de sonhar textos. Anotar sonhos é algo que já fazia parte de alguns relâmpagos intuitivos, que a leitura de Kopenawa (2016, p. 63) despertava outros movimentos 151


entre pensar/sonhar: “seus professores não o haviam ensinado a sonhar, como nós fazemos” afirmou o xamã. O que transbordou daí não é mais só o que é pensado sobre isso, mas também o que se tem sonhado sobre isso? O sonho em si, para as culturas autóctones daqui, é um vernáculo de possíveis. Habita o âmago de uma vida sem fim, já na dimensão do sonhado há uma espécie de sobre/real (sobrenatureza)8 em fluxo como camadas que não se diferenciam, mas completam-se. As culturas orais do ouvido são também as do tato e do fluxo permanente entre o real, o sonho, o transe. Trata-se do trans/possível que delimita esse fluxo não em estágios ou ordens, mas em um permanente fluir/fruir. Foi então que essas observações induziram uma organização da experiência do sonho com o objetivo de integrá-las na pesquisa para produção das pílulas. Reunir momentos diferentes de observação, atividades criativas da pesquisa adquiridos ao longo de tantos anos, compondo-as como pílulas, teve como motivação principal criar outros processos de escuta para serem vivenciados durante a pandemia.

2.AUDIO(AÇÃO) EM PÍLULAS As primeiras experiências com áudios curtos antes das pílulas foram realizadas em 2015, para o TCC de Laura de Aro, realizado no curso de Psicologia da Uniso, para seu texto literário e foram utilizados para compor esta pesquisa com sons e músicas e um modo de falar quase teatralizado. Com um parecer em áudio em 2019 foi possível participar de uma banca de mestrado de Marina Gomes e Lima, aluna de Leandro Belinaso, professor da Pós Graduação UFSC na formação docente, nesse momento o sonho ainda não tinha sido proposto como possibilidade de composição. Já em 2019 e 2020, nas primeiras pílulas de escuta o foco foram outras experiências com releituras de textos de Rudolf Steiner (suas meditações diárias) e Krishamurti (pensamentos esparsos de várias obras), com fundo musical diverso, para sonhar os textos desses autores (em janeiro/fevereiro e abril/maio/ repetindo antes de dormir seus pensamentos em voz alta). A ideia era criar uma espécie de atrator estranho, a partir da vibração dessas palavras e como elas reverberavam nos sonhos. Primeiro lendo os pensamentos antes de dormir e depois de sonhar com algo significativo (leva uns dias ou semanas) reescrever o texto para gravar. O ritmo do fluxo

8 Ver Marta Catunda. Canto de céu aberto e de mata fechada. Cuiabá: Edufmt, 1994, p.65. 152


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das palavras, a intensidade e a velocidade e o calor da voz deveriam compor com pausas, respirações da música buscando rasurar a noção de “fundo musical”, no durante o registro em áudio. O termo atrator estranho vem da teoria do caos que analisa a turbulência de fluidos e se dá no gráfico como padrão não-linear, fractal, cuja relação de vários vetores aparentemente aleatórios resultam em um padrão não-linear. Na teoria do Caos a ideia do atrator estranho arrasta a compreensão de um desafio científico, porque em termos gerais o que se impõe é o aleatório. Foram produzidos ainda, desenhos e pinturas em um aplicativo de computador do celular comum (Sansungnotes), posteriormente editadas em um programa de edição de imagem para cada um desses áudios. O exercício da leitura em voz alta e a escrita exigem certo treino, embora não exista a ideia de um esquema para ser repetido, é uma comunicação que ocorre ou não, desde que haja uma abertura e até um certo preparo, para anotar prontamente as ideias que vão surgindo da leitura. O lugar e as ocorrência dos sonhos levam a uma inflexão de associações que podem surgir ocasionalmente no meio do dia para serem prontamente registradas em áudios, frases, sons, músicas ou desenhos. Posteriormente aos sonhos para revisitar os textos e leitura dos autores(as) há uma releitura desses mesmos textos, muito de acordo com o que soa melhor, porque há uma diferença fundamental da leitura silenciosa e da leitura dita em voz alta, tendo como entremeio o influxo dos sonhos. Na hora de dizer o texto, a configuração muda a energia ou a força comunicativa do que está sendo pensado. Vai aqui um alerta: não se trata de um método, mas de um metaporo9. É preciso levar em consideração que uma ação experimental encontra aberturas, passagens, para estudo ou expressão do instante vívido do que se experimenta e provoca uma mudança de estado são cintilações fluentes, sensíveis e não apenas cognoscíveis: habitam o limbo do sensível.

9 Em 2007 Danielle Naves publicou sua tese intitulada Poros ou passagens na comunicação. Naves trouxe o conceito de poro segundo Sarah Kofman (1983), que propõe, ao invés de um caminho determinado para chegar num fim, ou seja, de um met(odo), a possibilidade de seguir um movimento que se deixa penetrar pelo que se percebe, enquanto se vivencia; então um meta(poro) deixando-se atravessar e dar espaço para a experiência ocorrer, expandir. Ciro Marcondes Filho, coordenador do Grupo de Estudo NTC e posteriormente Filocom da ECA/USP, estudou, discutiu e ampliou o metaporo, durante mais de uma década de 2006 em diante, até seu falecimento neste fatídico ano de 2020. 153


3. ECOESTÉTICA EM FLUXO No espaçotempo10 cotidiano (em especial o escolar), as práticas educativas ecoestéticas de modo geral ampliam a duração para o livre pensar/ criar em dois tipos diferentes de relação temporal. Kairós anunciando ciclos, temporadas ou momentos críticos que resultam em ações específicas. E ou um tempo Aion, distendido em ritos de passagem, práticas intensivas de acolhimento, envolvimento e mergulho, portanto, menos pontuais. Porque é preciso desdobrar o tempo nessas práticas para desprender de um cronos rígido e veloz, repleto de tarefas imediatas cerradas e minado para o intenso do convivial. Uma tentativa de promover outros modos de convívio e conexão durante a pandemia. O próprio da diferença temporal é fazer do conceito uma coisa concreta, porque as coisas são aí nuanças, ou graus que se apresentam no seio do conceito. É nesse sentido que o bergsonismo pôs no tempo a diferença e, com ela, o conceito. Se o mais humilde papel do espírito é ligar os momentos sucessivos da duração das coisas, se é nessa operação que se toma contato com a matéria, e se é também, graças a essa operação que ele, inicialmente, se distingue da matéria, concebe-se uma infinidade de graus entre a matéria e o espírito plenamente desenvolvido. As distinções do sujeito e do objeto, do corpo e do espírito são temporais e, nesse sentido dizem respeito a graus, mas não são simples diferenças de grau. Vemos, portanto, como o virtual torna-se o conceito puro da diferença, e o que um tal conceito pode ser: um tal conceito é a coexistência possível dos graus ou das nuanças. (DELEUZE, apud Bergson, 2006, p.62)

Da mesma forma, nas pílulas de escuta o que importa é experiência(ar) graus de nuanças em ciclos para respirar: sete dias da semana começando no domingo ao sábado da semana seguinte, em pequenas doses diárias. Um ciclo levando a outro a passagem de uma lua a outra, por exemplo: crescente e cheia, e assim em diante conferindo a passagem pelo cosmo como nos ensina Davi Kopenawa. Cada ouvinte é que vai completar o processo de escuta sensível nestes ciclos, ou não. Ao longo da cartografia ecologista, como uma proposta não alinhada

10 Ver conceito de espaçotempo no cotidiano escolar segundo, Nilda Alves & Inês Barbosa de Oliveira. Imagens de escolas: espaçostempos de diferenças no cotidiano. Educ. Soc., Campinas, v. 25, n. 86, p. 17-36, abr. 2004. 154


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com as perspectivas hegemônicas da educação, atenta à diversidade de contextos e visões de mundo e de vida (FREIRE, 2015, p.293), foi possível delinear, a partir das diversas oportunidades de realização, o que se entende como ecoestética. No prefixo eco temos o sentido daquilo que ressoa, eco de ecoar mas também de ecologia, portanto, “eco” como relação, já que a ecologia é antes de tudo relação. (CATUNDA, 2013, p.101). Ecologia como ciência tem no aspecto relacional o que lhe é mais intrínseco. A forma de relação com o ambiente onde vivemos expressa um sentir/ser ambiente como uma parte integrante da ecologia, seja de um lugar/espaço, um lugar/poder ou território, um ecossistema, seja uma ambiência feita de relações entre a escola/universidade (seus devires moleculares), os entremeios da educação. Entende-se/estende-se aqui dois movimentos de ir mais longe, inflectir/refletir. Como bem observou Guattari (2001, p. 51) no conceito de ecosofia, a eco é o que entrelaça o relacional, indicando uma ecologia mental com ponte subjetiva, outra de caráter comunicativo relacional, os intercâmbios do âmbito social e outra com o ambiente: as três ecologias. Importante destacar aqui que o âmbito social que Guattari nos propõe não é aquele generalista mas, aquele que permite compor o que denominou de territórios de existência. A coerência é fornecida pelo existir/coexistir, viver/conviver em outros modos de existência. Portanto, a “eco” tem embutida sobretudo um aspecto intrinsecamente ético do relacional. O “eco” de ecologia preserva em seu ventre o caráter ético de conhecimento/ consideração/defesa da vida, portanto também de justiciamento11. Então, em atividades de Grupos de estudo diversos, o pensar ser/estar/ existir em grupo invariavelmente apresenta algo assim: como docente penso assim, como mãe/pai penso de tal modo, como amiga de outro. Há uma tendência de representar um papel pré determinado, instituído e não o ser e o “quê” de cada um, este pássaro engaiolado que esqueceu de cantar. Se é professor e/ou professora, tem que ser prolixo e versado neste ou naquele autor, ou conceito mais revisitado. E assim, nas práticas ecoestéticas, leva-se em consideração primeiro o acolhimento, ao invés da controvérsia. Acolher todas as representações para que mais à vontade, com a continuidade do convívio e a interação do grupo possam ser reveladas ou desfeitas certas barreiras. Mostrando um pouco mais da face vívida de

11 Deleuze e Guattari (1997) trabalharam o conceito de ético/estético quase como um sistema binário. A sugestão da ecoestética é incluir eco de ecoar também. 155


cada participante, seus talentos em seus modos expressivos mais alegre ou com reservas, assim em diante. O tempo de cada um, de dar-se a si numa atividade sensível realizada em um coletivo. Atrasos e ausências, caras e bocas, os estranhamentos em reuniões e atividades sensíveis do grupo, podem indicar uma dificuldade neste processo de desnudar-se, aninhar-se, acolher-se, juntar-se. De mergulhar mais fundo em direção a esse ser criativo/inventivo. Habita cada um, mas que permanece tantas vezes clivado. Dar asas a esse ser, a essa existência, exige responsabilidade e é preciso estar à vontade, deixar-se envolver com as propostas e sugestões deixar-se acolher, aninhar-se e em outras tantas vezes espremer os miolos. Bruno Latour (2010), em sua teoria do Ator x Rede (TAR), discute a importância de acompanhar os movimentos de atores humanos e nãohumanos (tecnologias, artefatos, aprendizados culturais, etc.) que vão compondo uma outra visão das relações sociais onde/quando o social deixa de ser um universo generalista interpelado de acordo com interesses igualmente generalísticos das ciências sociais ou humanas, para agregar-se em um coletivo, por exemplo. Pontuando outras formas e modos relacionais que permanecem desconhecidos ou, ainda não vivenciados. A máxima da formiguinha míope, que indica a ação local evidenciando a importância dos coletivos e grupos locais e uma certa química que faz a relação comum acontecer, sem normas funcionais definidas. Daí a preocupação da pesquisa prosseguir com os “n” movimentos de grupos de estudo, suas comunidades de interação e interesse que são formantes/multiplicantes de “n” redes relacionais de alcance da educação escolar ampliando o cotidiano escolar e não escolar, universitário compondo uma mescla, escapando da camisa de força do instituído, aqui e acolá. Laborar é isso: abrir-se para as experiências, encorajando outros poros e fluxos.

AGRADECIMENTOS / ACKNOWLEDGMENT Agradeço a oportunidade de participação no III Colóquio de Metodologias da Pesquisa em Artes da UNESP, a criatividade de seus organizadores e a sintonia de estudos, pesquisas, entre outros dispositivos com Ms. Rodrigo Reis Rodrigues, enfim aos encontros potentes desses três anos. Deixo ainda aqui minha sincera homenagem e agradecimento ao Dr. Ciro Marcondes Filho (FILOCOM/USP), falecido em 2020, sua eterna força instigante, nos modos de produzir pesquisa em comunicação. 156


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REFERÊNCIAS ALVES, Nilda; OLIVEIRA, Inês Barbosa. Imagens de escolas: espaçostempos de diferenças no cotidiano. Educação e sociedade, Campinas, v. 25, n. 86, p. 17-36, abr. 2004. BELINASO, Leandro. Pode a desutilidade ser potente à educação? conversas com Manoel de Barros. Delírio do Verbo a poesia de Manoel de Barros e o consumo. Org. João Anzanello Carrascosa, São Paulo: Pimenta Cultural, 2020. pp.131-44. BELINASO, Leandro. Um livro em cinco minutos: Podcast. Disponível em:< https://anchor.fm/leandro-belinaso> Acesso em: 20 nov. 2020. CATUNDA, Marta. O canto de céu aberto e de mata fechada. Cuiabá: Edufmt, 1994. CATUNDA, Marta. A B C de encontros sonoros: entre cotidianos da educação ambiental. São Paulo: Editora Hipótese. 2016. CATUNDA, Marta; REIS RODRIGUES, Rodrigo. A eco e a cartografia dos pássaros – nas imediações aberrantes. Revista Linha mestra da ALB. n. 35 p. 52-58. 2018. Disponível em: <http:// lm.alb.org.br/index.php/lm/article/view/28/43?fbclid=IwAR3 Aze3d61FwFaUO5TY6ANPjGgdSNiuqmrXrBgIVRn2R_6AKBWIvi1KLC mA> Acesso em: 19 fev., 2021. CATUNDA, Marta. Povos Ouvir. A ressureição alada. Revista Climacom. Disponível em: <http://climacom.mudancasclimaticas.net.br/martacatunda-povos-ouvir-a-ressurreicao-alada/> Acesso 20 de nov. 2020. CATUNDA, Marta. Pílulas de Escuta. Leandro Belinaso/Gaivota. Links completos. Soundcloud. Disponível em: https://soundcloud.com/ paisagensonoras/leandrogaivota-apresentacao-19092020-1901 Acesso 20 de nov. 2020. DELEUZE, Giles. Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Graal, 1998. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 1997. GALERA, De Aro. Laura. Fragmentos narrativos de um percurso formativo em psicologia (2018). Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação), Universidade de Sorocaba, Sorocaba 2018. GLEICK, James. Caos. A criação de uma nova ciência. 3. ed. Rio de Janeiro: Campus, 1990. GOMES, L. Marina. Entre ruídos: encontros sonoros de uma pesquisa em educação. 2019. Dissertação (Mestrado em Educação), Universidade Federal de Santa Catarina, UFSC, Florianópolis, SC, 2019. 157


KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu. Palavras de um xamã Yanomami. São Paulo: Companhia da Letras, 2015. LATOUR, Bruno. Reagregando o social. Uma introdução á Teoria do AtorRede. Salvador: UFBA, 2012; Bauru, São Paulo: Edusc, 2012. MARCONDES FILHO, Ciro. O princípio da razão durante. Tomo V: Nova teoria da comunicação III. São Paulo: Editora Paulus, 2010. NAVES, Danielle. Poros – ou as passagens da comunicação. 2007. Tese (Doutorado em Comunicação) – Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007. REIGOTA, MARCOS; BARCHI, Rodrigo; YANG, André. Ecosofia Tropical, Educação Ambiental Canibal e a Aventura de Desnudar-se. Revista Linha Mestra, n.35, p.p.265-277, maio-agos, 2018.

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SOBRE A AUTORA Marta Catunda; doutora em educação e cotidiano escolar, com o tema das sonoridades ambientais e perspectiva ecologista – Universidade de Sorocaba/UNISO 2013, mestre em Ciências da Comunicação – ECA/ USP,1993. Atuou como pedagoga artista no Museu de Arte e de Cultura Popular, da Universidade Federal de Mato Grosso de 1978/2009 em projetos artísticos e ambientais com ribeirinhos e artistas mato-grossenses. Musicista e compositora, desde 1989 desenvolve pesquisa de audição/ escuta do canto dos pássaros da região Neotropical, experimentações, práticas educativas e artísticas de sensibilização e escuta.

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Jogo de Arte-Ação como Proposta Pedagógica Ecosófica e de Cuidado de Si


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Jogo de Arte-Ação como Proposta Pedagógica Ecosófica e de Cuidado de Si Carla Moreira Graça Mello; Adilson Pereira; Denise Celeste Godoy de Andrade Rodrigues Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (CEFET); Centro Universitário de Volta Redonda (UniFOA); Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) | Brasil Resumo: A Educação Ambiental é um grande desafio para a educação. Guattari relata que é preciso pensar transversalmente integrando as interações entre ecossistemas, universos sociais e individuais. Propõe a ecosofia uma articulação ética, estética e política. Foucault ressalta a importância de ser constituída uma ética de si. Existem poucas propostas lúdicas de educação ambiental baseadas na ecosofia e no cuidado de si. O jogo Zelo é uma proposta pedagógica desenvolvida no mestrado que integra a ecosofia e o cuidado de si. O objetivo deste artigo é o aprimoramento do jogo por intermédio da arte ação de Joseph Beuys. A pesquisa classifica-se como um estudo qualitativo e é composta de revisão bibliográfica e de investigação de campo. Os instrumentos de coleta de dados foram registros de diários de bordo dos discentes e relatos dos docentes. Os resultados revelam que Zelo possui potencial de sensibilização para apreensão da ética ecológica.

Abstract: Environmental education is a major challenge for education. Guattari reports that it is necessary to think across the board integrating the interactions between ecosystems, social and individual universes. He proposes ecosophy as an ethical, aesthetic and political articulation. Foucault stresses the importance of constituting an ethics of the self. There are few playful proposals for environmental education based on eco-philosophy and self-care. The Zelo game is a pedagogical proposal developed in the master’s degree that integrates eco-philosophy and self-care. The purpose of this article is to improve the game through the action art of Joseph Beuys. The research is classified as a qualitative study and is composed of bibliographic review and field research. The data collection instruments were students ‘logbook records and teachers’ reports. The results reveal that Zelo has the potential to raise awareness for the apprehension of ecological ethics.

Palavras-chave: Ecologia, jogos, arte

Keywords: Ecology, game, art.

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pesar da Educação Ambiental constar nas diretrizes educacionais dos documentos normativos de ensino PCN e DCN, bem como na BNCC como tema transversal e interdisciplinar, na prática, ainda encontra dificuldades de ser implementada da forma como foi proposta, representando um desafio para a educação (TALINA, 2015). Segundo Loureiro (2006), um outro aspecto relevante é que as correntes ambientalistas predominantes na BNCC não propiciam a visão crítica e emancipadora acerca das interações do homem com ele mesmo, com outros homens e com a natureza necessárias à articulação da dimensão ética e reflexiva no agir à serviço da transformação do mundo. Indignado com o cenário de crise ambiental que assola o planeta, deteriorando as singularidades, as relações afetivas e o meio ambiente, Guattari (1990) relata que é preciso pensar transversalmente, que não pode existir uma dicotomia entre a natureza e a cultura e que o pensamento deve integrar as interações entre ecossistemas, universos sociais e individuais. Como resposta à crise ecológica, Guattari (1990) defende que é preciso uma concepção de educação ambiental sistêmica que propicie uma nova forma de relacionamento com a psique, com a sociedade e com o meio ambiente. O autor propõe então a ecosofia, uma articulação ética, estética e política, composta de três ecologias: pessoal, social e ambiental. Foucault (1997), em consonância com Guattari, ressalta a importância de ser constituída a ética do si, como uma tarefa urgente e politicamente indispensável. Ele afirma que a maior resistência contra o poder dominante e as camisas de força paralisantes e padronizadoras do sistema é a busca pelo governo de si, numa ética de si mesmo, por intermédio das práticas de si do Cuidado de Si. Segundo Guattari (1990) um antídoto contra a formatização e a padronização da subjetividade seriam pequenas práticas e experiências de vida nas relações que envolvam criatividade e que estas sejam significativas, caminhos de ressingularização, onde as diferenças se tornem cada vez mais evidentes e as relações, cada vez mais humanas e solidárias. Sugere que os professores levem mais sensibilidade e menos cientifismo. De acordo com a pesquisa prévia realizada (MELLO; RODRIGUES, 2018) existem poucas propostas lúdicas de práxis de educação ambiental com base na ecosofia de Felix Guattari e no Cuidado de Si de Foucault. 162


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Diante disso, surgiu o interesse em desenvolver uma ferramenta pedagógica como proposta de educação ambiental. Dessa forma, o jogo Zelo é uma proposta pedagógica desenvolvida como pesquisa de mestrado profissional, sob a forma de jogo cooperativo, que integra a ecosofia de Felix Guattari e o Cuidado de Si de Michel Foucault. Essa proposta é composta do personagem Zelo, da história do Zelo, da música tema e do jogo. O jogo cooperativo suscita a compreensão da ética ecológica através da personificação do cuidado e da proposição da práxis de hábitos ecológicos consigo mesmo, com os outros e com o meio ambiente. “Jogar-e-viver- é uma oportunidade criativa de encontrar com a gente mesmo, com os outros, com o todo” (BROTTO, 1997, p.35). Apesar dos resultados positivos da pesquisa de campo revelarem a tendência de mudança de hábitos dos discentes nas três ecologias, o jogo foi utilizado de forma sucinta e a investigação de seus efeitos foi resumida (MELLO, 2020). Sendo assim, o objetivo deste artigo é apresentar os melhoramentos que foram realizados no jogo, transformando-o em um jogo de arte ação, inspirado na obra de Joseph Beuys, e expor novas relações do jogo com a promoção da práxis da Ecosofia de Felix Guattari e do Cuidado de Si de Michel Foucault. As modalidades de pesquisa foram a revisão bibliográfica e a investigação de campo. Para a segunda foram utilizados os registros dos diários de bordo dos discentes e os relatos dos professores das classes de alunos que participaram do jogo. Adotou-se a abordagem qualitativa, tratando-se de pesquisa de natureza aplicada, tendo como procedimentos o levantamento de dados e o objetivo exploratório.

1. REFERENCIAL TEÓRICO 1.1 Ecosofia Guattari (1990) alerta para as diversas faces da crise ambiental que ocorre no planeta, degradando os três domínios: da psique, do socius e do meio ambiente. O autor ressalta que é preciso sair da cegueira da compartimentação e do olhar fragmentado desses domínios da realidade, e que o mundo precisa ser apreendido por meio de três perspectivas ecológicas complementares: a mental, a social e a ambiental. 163


Guattari propõe a Ecosofia, baseando sua perspectiva em três ecologias (pessoal, social e ambiental) como via de articulação ético-político-estética na busca da recomposição das práticas individuais, sociais e ambientais. No domínio da psique, Guattari (1990) acena para a reinvenção das relações intrapessoais com o inconsciente como antídotos para a manipulação midiática, para a influência dos dispositivos de produção de subjetividade e para o empobrecimento das singularidades, criando novos modos de se relacionar e de viver, como estratégia de ressingularização. Segundo Carvalho, Camargo (2015), a ecologia pessoal está relacionada com a relação do indivíduo com a vida, consigo próprio e com a subjetividade na busca por decifrar-se. Guattari (1990) alerta para a deterioração das subjetividades em função da cultura padronizadora que modela as subjetividades, enfatizando que precisa emergir um novo ser humano mais livre e menos condicionado ao sistema. No domínio do socius, Guattari afirma que será preciso reconstruir, em todos os seus níveis, os relacionamentos humanos, reinventando maneiras de ser em grupo e de conviver em família, no trabalho, no casamento etc. Essas mutações do socius dizem respeito principalmente à subjetividade, além de serem comunicacionais. A subjetividade capitalística se esforça por gerar o mundo da infância, do amor, da arte, bem como tudo o que é da ordem da angústia, da loucura, da dor, da morte, do sentimento de estar perdido no cosmos... E a partir dos dados existenciais mais pessoais – deveríamos dizer mesmo infra pessoais – que o capitalismo constitui seus agregados subjetivos maciços, agarrados à raça, à nação, ao corpo profissional, à competição esportiva, à virilidade dominadora, à estar da mídia... Assegurando-se do poder sobre o máximo de ritornelos existenciais para controlá-los e neutralizá-los, a subjetividade capitalística se inebria, se anestesia, num sentimento coletivo de pseudo-eternidade (GUATTARI, 1990, p. 33-34).

Na Ecologia social é essencial que sejam organizadas novas práticas políticas e sociais nos níveis microssociais e nos níveis macro institucionais (GUATTARI, 1990), uma ecologia que “deverá trabalhar na reconstrução das relações humanas em todos os níveis do socius” (GUATTARI, 2012a, p. 33). No domínio ambiental, entrelaçam-se os três registros ecológicos: o mental, o social e o ambiental. Segundo Maffesoli (2014), a ecologia ambiental envolve uma nova sensibilidade ecológica que reconecta o 164


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ser humano com a natureza (cosmos), com outros seres humanos (tribo humana) e com o macrocosmo (sagrado).

1.2 Cuidado de Si de Michel Foucault Em meados de 2000, Foucault surpreende muitos estudiosos ao emergir com pensamentos sobre ética e subjetivação, realizando entrevistas e cursos sobre o Cuidado de Si. Dedicando os últimos anos de vida a propiciar reflexões sobre a formação humana e empenhando-se na busca da ética da existência, da liberdade, do Cuidado de Si, explorou pensamentos de filósofos da antiguidade clássica como Aristóteles e Platão, entre outros (SILVA; FREITAS, 2015). A relação consigo mesmo, com os outros e com o mundo implica uma estética (as formas de atenção) e uma ética (a condução da própria vida). O estilo da existência supõe o movimento contínuo de transformação da forma de autorreflexão que é o Cuidado de Si. Isto é, o si mesmo realiza um exercício estético que dá forma à própria vida, independentemente de quaisquer determinações metafisicas ou normativas (VILELA, 2010, p.245).

Segundo Foucault (1997), a ética é a arte da vida que possibilita que a vida seja como uma obra de arte. Relata que, desde os gregos da antiguidade clássica, existiam as chamadas Técnicas de Si, que são práticas de análise de si e de domínio de si que possibilitam ações transformadoras em si mesmo, no corpo, no pensamento e na conduta. São práticas para fixar e transformar a identidade e para o conhecimento de si. Os Estoicos praticavam três técnicas das práticas de si: escrita, escuta e memorização. Segundo Foucault (2004), essas técnicas contribuem para a análise de si. As “práticas de si” se constituem a partir de uma ética, de uma política e de uma estética. Trata-se de regras facultativas, ou seja, de uma escolha do sujeito frente à vida. Diferente da moral, a importância das “práticas de si” está nas atitudes e não nas normatizações instituídas. Tais práticas, possibilitam a criação de novos estilos de vida. Desta maneira, as “práticas de si” podem constituir a criação de novos modos de existência; práticas que “produzem a existência como obra de arte” (DELEUZE, 2010, p. 127).

Foucault (1994) afirma que a análise de consciência supracitada não 165


está relacionada com nenhum tipo de julgamento ou sentimento de culpa sobre as ações e atitudes, mas, sim, sobre a afinação entre o que foi feito e o que gostaria de ter feito, reavivando verdadeiras condutas. Entre as Técnicas de Si está a escrita, que consiste em registrar anotações sobre si próprio e em compartilhá-las com os amigos com o intuito de que seja feita uma releitura, revelando para si mesmo verdades imprescindíveis. Foucault batizou essas práticas de técnicas da subjetivação da verdade, pois a escrita, a escuta e a memória propiciam que o logos controle a conduta por meio do autêntico conhecimento de si. Ainda segundo Foucault (2004b, p. 149), existe uma ligação íntima da escrita com a ética. Em A Escrita de Si, texto que também remonta aos clássicos e ao início do período cristão, o autor apresenta duas formas da constituição de si por meio da escrita: os hupomnêmata e a correspondência. O primeiro caracteriza-se por anotações individuais decorrentes da escuta e de leituras nas quais o indivíduo recorria com frequência como modo de subjetivação dos discursos. Segundo Foucault (1997), a escuta do discurso verdadeiro ocorre através do silêncio, onde é absorvido e incorporado, formando a matriz ética. Relacionada com a escuta está a memorização que contribuiu para a análise de consciência, refletindo sobre a conduta, questionando se ela está em consonância com os princípios absorvidos. “Voltar-se para si mesmo e fazer um exame das ‘riquezas’ que aí foram depositadas [...]” (FOUCAULT, 1997, p. 129). Na correspondência eram compartilhadas informações de cunho pessoal como registros para si mesmo ou conselhos que podiam conter conteúdos dos hupomnêmata - diários ou cadernos utilizados pelos gregos na antiguidade, cujo objetivo era estabelecer com o conhecimento uma relação consigo mesmo adequada e perfeita dentro do possível. Nas cartas ocorria o encontro com a reciprocidade e com a alteridade. Esse tema está registrado em A Hermenêutica do Sujeito, curso dado no Collège de France, entre 1981 e 1982, em As Técnicas de Si (1982) e, especificamente, em A Escrita de Si (1983).

2. METODOLOGIA Este estudo foi aprovado durante o mestrado pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos (COEPs) do Centro Universitário de Volta 166


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Redonda (UniFOA), sob parecer nº 3.322.506, atendendo aos aspectos éticos de pesquisa com seres humanos da resolução 196/96, do Conselho Nacional de Saúde. Foram concedidos pelos docentes os direitos de uso de suas imagens e de seus relatos, bem como, pelos responsáveis dos discentes, os direitos de uso de suas imagens e dos registros de seus diário de bordo. A pesquisa classifica-se como um estudo qualitativo, tratando-se de pesquisa de natureza aplicada, tendo como procedimentos o levantamento de dados e o objetivo exploratório. Os instrumentos utilizados nessa pesquisa foram os diários de bordo preenchidos por cada aluno durante a aplicação do jogo e os relatos dos professores das classes participantes. O público-alvo dessa pesquisa foram os alunos do segundo, do terceiro e do quarto anos do Ensino Fundamental Anos Iniciais do Centro Educacional Caminho do Saber, de ensino privado, localizado no município de Valença, no interior do Estado do Rio de Janeiro. O estudo foi realizado no período de agosto a novembro de 2019. As modalidades de pesquisa foram a revisão bibliográfica e a investigação de campo. Para a segunda, foram utilizados os registros de diários de bordo dos discentes e os relatos dos docentes. Adotou-se a abordagem qualitativa, tratando-se de pesquisa de natureza aplicada, tendo como procedimentos o levantamento de dados e o objetivo exploratório.

3. DESCRIÇÃO DO JOGO APLICADO A proposta pedagógica fundamentada sob a forma de Jogo Cooperativo recebeu o nome de “Zelo”. A logomarca (Figura 1) em forma circular representa a integração das três ecologias: pessoal, social e ambiental, com o Zelo no centro. Ou seja, a Ética do Cuidado consigo mesmo, com os outros e com o planeta.

FIGURA 1- Logomarca do Jogo Zelo. Fonte: Costa, Mello e Rodrigues (2019).

167


No quadro 1 são mostrados os componentes do jogo, suas medidas, materiais e funções.

Item

Quant.

Componente

Medidas

1

1

Tabuleiro

2

1

3

Material

Função

Imagem

3,67 x 2,24 Lona m

Tapete

2

Zelo boneco grande

1m

Tecido

Prêmio

3

1

Placar

2,6 x 1,52 m

Brim e feltro

Marcação

4

4

3

Zelo boneco pequeno

30 cm

Tecido

Marcação

5

1

Baú

6 x 10 x 20 cm

MDF

Análise e reflexão

6

1

Dado

18 cm de aresta

Brim e feltro

Avaliação

7

1

Diário

Folha A4

Papel

Práticas de si

8

1

Manual

Folha A4

Papel

Instruções do jogo

9

1

História

Folha A4

Papel

Sensibilização

10

3

Vestimenta

Tamanho 12 anos

Tecidos

Representação

QUADRO 1 - Componentes do jogo, suas medidas, materiais e funções. 168

5


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O jogo Zelo é composto por: um tabuleiro, um placar, um boneco grande do Zelo, três bonecos pequenos do Zelo, um “Baú dos Filósofos” com frases filosóficas, um dado (três faces do arco-íris, uma face do coração, uma face branca e uma face preta), um diário do Zelo, o manual do jogo, a história do personagem e vestimentas compostas por: macacão, peruca, camisa de manga longa com sete tiras de cores distintas, cada uma correspondendo a uma casa da trilha do arco-íris. O Tabuleiro do Jogo é um tapete onde os líderes dos grupos, vestidos como o personagem, se locomovem nas casas do jogo. Ele foi confeccionado em lona e é composto pelas trilhas do arco-íris, pelo planeta Terra com fisionomia triste e por três cavernas denominadas “Cavernas do esquecimento”, onde estão abandonados os três Zelos: Zelo consigo mesmo, Zelo com os outros e Zelo com o planeta, como mostrado na figura 2.

FIGURA 2 - Tabuleiro do Jogo e foto dos jogadores em torno do tabuleiro durante sua aplicação. Fonte: Autores, 2019.

Antes do jogo ser iniciado, é contada a história do Zelo e as crianças são convidadas a resgatarem o personagem (figura 3) das cavernas do esquecimento, devolvendo-lhe suas cores e levando-o de volta para o planeta Terra.

169


FIGURA 3 - Ilustração do Zelo e foto do boneco na aula de campo da escola Caminho do Saber. Fonte: Autores, 2019.

Durante o jogo, cada etapa é registrada no placar (figura 4), onde são utilizados os bonecos pequenos do Zelo para marcar a evolução das equipes.

FIGURA 4 -Placar do jogo Zelo para marcação do progresso de cada equipe. Fonte: Autores, 2019.

Os participantes são divididos em três grupos, cada um representando uma ecologia: pessoal, social ou ambiental. Para vencer o jogo cabe a cada 170


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grupo o desafio de elaborar estratégias para realizarem as sete missões da ecologia que representa, dando apoio aos grupos das demais ecologias. A cada missão alcançada, o líder vestido com a vestimenta de Zelo (figura 5) avança uma casa na trilha do arco-íris, recuperando umas das cores do personagem. As cores recuperadas são representadas pelas tiras coloridas (removíveis) nas mangas das camisas. As missões de cada um dos objetivos estão descritas no quadro 2.

FIGURA 5 - Fotos da vestimenta e de um dos alunos com a vestimenta do personagem Zelo. Fonte: Autores, 2019.

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Objetivo Missão

Zelo consigo mesmo Ecologia pessoal

Vermelha

Redução do tempo de uso de eletrônicos Laranja Praticar a auto apreciação Amarela Criar um plano de higiene pessoal Verde Fazer práticas de relaxamento diariamente Azul Alimentação saudável Azul Praticar ref letir diariamente integrando descobertas filosóficas Vinho Vivenciar as virtudes através do Jogo cooperativo o Bolo do Zelo

Zelo com os outros Ecologia social Gentileza e zelo no lar Apreciação e Reconhecimento Propor jogos cooperativos na escola Aprendizagem cooperativa Alimentação saudável Cultivo de virtudes

Vivenciar as virtudes através do Jogo cooperativo o Bolo do Zelo

Zelo com o planeta Ecologia ambiental Praticar os 5R’

Alimentação saudável Cooperação no Lar Pesquisar sobre a toxidade dos cosméticos Economizar água Realizar boas ações

Vivenciar as virtudes através do Jogo cooperativo o Bolo do Zelo

QUADRO 2 - Missões do jogo para cada trila.

Cada participante registra diariamente suas ações na realização das missões em seu diário do Zelo. A realização de cada missão é avaliada por intermédio de três vias de análise. A primeira é a análise do facilitador do jogo, em parceria com o professor da classe. A segunda é a autoavaliação da classe. A terceira é o resultado do dado. Existem três resultados possíveis nas faces do dado: faces arco-íris (missão cumprida), face preta ou branca (a missão não foi concluída) ou a face do coração (a missão foi parcialmente concluída e deve ser retirada uma frase do baú dos filósofos para a reflexão sobre as ações individuais e coletivas).

4. RESULTADOS E DISCUSSÃO Esta sessão foi estruturada da seguinte forma: inicialmente será apresentada uma síntese do resultado da revisão bibliográfica do tema 172


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Cuidado de Si de Foucault, relacionada com a proposta e com alguns dos resultados do Diário do Zelo, juntamente com o link da revista onde foi publicado um artigo sobre a primeira fase de aplicação do Jogo, onde constam algumas imagens do diário do Zelo. Posteriormente, serão apresentados relatos dos docentes das três classes que participaram do jogo e serão pontuados alguns aspectos dos resultados que motivaram a sua atualização através da arte ação de Joseph Beuys. O diário do Zelo foi criado com base nas Técnicas de Si como prática de subjetivação do Técnicas de Si de Foucault: escuta, escrita e memorização. Os registros demonstram que a escuta de si e o exame consciencial ocorreram durante o jogo, como no exemplo da figura 6, a seguir, além da constante análise das atitudes na realização das missões. Em determinados momentos do jogo, as crianças retiraram uma frase do baú dos filósofos, estabelecendo conexões entre o movimento do jogo e a frase sorteada.

FIGURA 6 - Imagem do Diário do Zelo (escrita, escuta e memorização). Fonte: ARTIGO LUDUS.

Nessa página do diário do Zelo de uma aluna do quarto ano (figura 6), ela representa, através de ilustrações, o exercício da missão de sua classe: o de cultivar a auto apreciação. A pesquisadora tece um breve comentário como forma de incentivo, representando o Zelo. Em seguida, a aluna compartilha que está cooperando com a família, ou seja, está realizando a missão atribuída ao segundo ano. No final da página, dialoga consigo 173


mesma, refletindo sobre a fala consciente como reação adequada na resolução de problemas. Segundo Arent (2004), em diversas línguas, a palavra “consciência” refere-se ao autoconhecimento e que pensar é dialogar consigo mesmo. Esse autor alerta para o fato de que já não se acredita que pensar deveria ser um hábito comum. Neves (2016), em consonância com Foucault, diante dos questionamentos levantados por Arent sobre o conhecimento de si, conclui que o caminho para o desenvolvimento da autonomia é o autoconhecimento e que, por meio dessa via, o homem escapa da automatização humana, se tornando mais livre. Partichelli (2017) enfatiza o potencial do diário de bordo como instrumento de autoconhecimento, através da autoanálise, por contribuir para a síntese de experiências pessoais e para a confissão de ações. EckertHoff (2008) corrobora com Particheli e vai além ao relatar que o diário de bordo é uma via para desvendar rastros do inconsciente, como se estivesse desvendando um jogo escondido do próprio sujeito. Além das anotações sobre si, em várias etapas da pesquisa ocorreu a correspondência por meio da interlocução com a pesquisadora que lia os diários e tecia comentários, dando sugestões, primando por uma relação de reciprocidade e alteridade. Encontra-se publicada a primeira fase de aplicação do Jogo, sua primeira versão e imagens do diário do Zelo na edição de abril 2020 da Revista Eletrônica Ludus Scientiae, disponível no link https://bit.ly/3pUHYk2.

4.1 Ecologia Pessoal – Zelo consigo mesmo – quarto ano A classe criou planos de ação para resolver situações problema que surgiram como desafio na realização das missões no nível individual e coletivo, além de mobilizarem o interesse das outras classes por realizarem as missões da ecologia pessoal. Uma das práticas como proposta de ecologia pessoal que teve grande repercussão durante o jogo foi uma proposta de arte terapia, na qual, por intermédio da expressão artística, as crianças representaram um pouco de suas singularidades, desenhando em uma camisa recortada de papel o seu maior sonho, o local que mais aprecia estar, o que mais gosta de fazer e algo que lhes entristece.

174


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Foi um exercício de olhar pra si através da expressão artística. A arte sutilmente mostrou sua potência através dessa atividade. Esse fato foi uma das fontes de inspiração para aprimorar a proposta pedagógica por meio da releitura da arte ação de Joseph Beuys. Após a aplicação do jogo, segundo a docente do quarto ano, houve uma melhora significativa no gerenciamento do estresse e na autoestima, o que refletiu em relações mais harmônicas e maior foco na aprendizagem, como descrito a seguir no relato da professora da classe. O personagem Zelo potencializou o aprendizado dos valores cultivados pela escola através de outros meios. Percebi drástica mudança no comportamento das crianças durante o recreio. Não existem mais as queixas frequentes dos alunos contra seus colegas por conta de pequenos episódios. Os alunos passaram a adotar práticas de autocontrole em momentos de tensão. Sensível aquisição de autoconfiança e autoestima. Alguns pais relatam que os filhos passaram a admirar as suas próprias qualidades. Aos poucos, foram desenvolvendo melhor controle da tensão que apresentavam anteriormente. Os alunos passaram a demonstrar maior serenidade durante as aulas, refletindo em maior atenção ao conteúdo. (Relato da professora do quarto ano)

As missões do Jogo, supracitadas no quadro 2 deste trabalho, foram aprimoradas com intuito de ir afinando o jogo com as esferas da ecologia pessoal descritas no livro As Três Ecologias, de Felix Guattari, e com base na arte ação de Joseph Beuys.

4.2 Ecologia Social – Zelo com o outro – Terceiro Ano Como Zelo é um jogo cooperativo, os participantes das três classes cooperaram para vencer o jogo. Segundo o relato a seguir, da professora do terceiro ano, apesar da classe ter consciência de que seria preciso cooperar para vencer, inicialmente os alunos tiveram uma postura competitiva. No decurso do jogo, nos encontros das três turmas para apuração de resultados, inicialmente a turma demonstrou preocupação em manter sua pontuação acima da pontuação das demais turmas. Com passar do tempo, os alunos passaram a comemorar também o resultado das outras turmas, demonstrando preocupação com o alcance de suas metas. Para eles, o tom do jogo mudou de competitivo para cooperativo. (Relato da professora do terceiro ano) 175


Segundo Santiago e Fonseca (2016), o que predomina nas brincadeiras infantis é a abordagem competitiva. Bay-Hinitz, Peterson e Quilitch (1994) pesquisaram o impacto dos jogos e das brincadeiras no comportamento infantil. Demonstraram que brincadeiras e jogos competitivos contribuem para o aumento da agressividade e aumentam o comportamento competitivo, ao contrário dos jogos e brincadeiras cooperativos, que reduzem o nível de agressividade, aumentando o comportamento cooperativo. O exercício da convivência na realização das missões do jogo contribuiu para ressignificar o socius e reinventar modos de conviver e de se relacionar, como sugere Guattari na Ecologia Social. Na figura 7, a seguir, as crianças estão exercitando a cooperação.

FIGURA 7 - Jogo Cooperativo do Paraquedas bola dentro de Sensibilização. Fonte: Autores, 2019.

As diferenças passaram a ser mais respeitadas, assim como a integridade física, além de terem se tornado mais empáticos e solidários, como descreve a professora no relato a seguir. Houve drástica redução de conversas permeadas de deboche e soberba, bem como do bullying. As conversas passaram a retratar mais tolerância e parceria. As brincadeiras passaram a ser mais harmônicas e não houve mais episódios de reclamações contra colegas durante o recreio. Também passou a haver mais cuidado ao tocar o colega, com maior respeito e gentileza. (Relato da professora do terceiro ano).

Os resultados indicaram que o jogo cooperativo contribuiu para a melhoria significativa do relacionamento da classe. Na nova versão do jogo, a cooperação será integrada à releitura da arte ação de Joseph Beuys. 176


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4.3 Ecologia Ambiental – Zelo com o planeta – Segundo Ano A integração das três ecologias que compõem a ecologia ambiental, bem como os resultados do segundo ano, estão descritos no depoimento da professora da classe. No trecho: “A presença do zelo despertou neles, ou melhor em nós, um olhar mágico quando um gesto simples se torna grandioso”, a docente nos dá pistas para o potencial de integração da arte ao falar da magia que envolve o jogo e da ação que repercute do nível molecular, da sensibilização através do personagem, da história, da transformação das questões ambientais em ações e do exercício de hábitos ecológicos. O projeto Zelo veio enriquecer e somar conhecimento dos alunos falando dos 5 R’s e da sua importância na preservação do planeta, voltando o olhar das crianças para o meio ambiente, uma vez em que ele mesmo faz parte deste universo. Através do projeto Zelo (jogos e tarefas), os alunos compreenderam melhor a importância de suas atitudes, que elas podem contribuir de forma positiva ou negativa para o meio ambiente e que cada ação promove uma reação e uma consequência. A interação dos alunos foi tamanha que o segundo ano passou a desenvolver as tarefas que foram designadas para as outras turmas - o cuidado consigo mesmo e o cuidado com o outro. O projeto proporciona aos alunos uma ampla visão, trabalhando a autonomia e o desprendimento, no qual eles expandem as suas ideias com coerência, coesão e senso crítico, desempenhando seu papel enquanto ser vivo e atuante em seu ambiente. Pude perceber avanços lindos dos meus alunos. A presença do Zelo despertou neles, ou melhor em nós, um olhar mágico quando um gesto simples se torna grandioso. Por mais projetos que incentivem e estimulem e nos façam acreditar que podemos fazer a diferença acreditando que tudo é possível. A sementinha foi plantada em solo fértil e está regada dentro de cada coração. Tenho a certeza de que iremos colher os melhores frutos de nossas gerações futuras. (Depoimento da professora do segundo ano).

5. MELHORIAS E ATUALIZAÇÃO DO JOGO PARA NOVAS APLICAÇÕES Apesar dos resultados positivos alcançados com a primeira versão do jogo, a proposta pedagógica foi simplificada em virtude do contexto e dos recursos disponíveis. A ilustração inicial do Zelo foi apenas um esboço 177


do personagem idealizado. O boneco foi confeccionado com o material disponível e suas feições não respeitaram as proporções da ilustração. A história do jogo não foi ilustrada. Além dos fatores supracitados, o jogo não tinha música e nem um canal no Youtube. As missões do jogo foram simplificadas e adequadas aos recursos e demandas da agenda da escola e tempo limitado. Mesmo com as limitações mencionadas, os resultados da pesquisa revelaram o grande potencial da proposta pedagógica fundamentada sob a forma de jogo cooperativo. Diante do exposto foram realizadas mudanças significativas na proposta pedagógica que serão mencionados nas próximas páginas.

5.1 Zelo – Jogo de Arte - Ação Quando participamos de um determinado jogo, fazemos parte de uma mini sociedade, que pode nos formar em direções variadas (ORLICK, 1989, p. 107).

Na versão atualizada do jogo, o boneco do Zelo foi todo confeccionado em feltro (figura 8) e preenchido por fibra siliconizada, um dos materiais muito presentes nas obras de Joseph Beuys, artista alemão que considerava sua arte uma política de libertação.

FIGURA 8 - Nova ilustração e boneco do personagem Zelo. Fonte: Mello, Pereira, Rodrigues (2020).

Segundo Tashem (1993), o feltro é um dos materiais que Beuys 178


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considerava como símbolo da energia do contexto social, que acumula energia de forma potencial e que apresenta possibilidades transformadoras. Para o artista, o feltro não é apenas um material primitivo, mas um material que propicia outras formas de interpretação, de interiorização e de estímulo do pensamento. Segundo Rosenthal (2002), existe uma história de que a relação de Joseph Beuys com o feltro ocorreu após o acidente que ele sofreu quando pilotava seu avião JU-87 na Criméia, durante a Segunda Guerra. Um grupo de Tártaros nômades o encontraram, levando-o para sua tenda, onde foi tratado com ervas e envolvido com camadas de feltro e gordura para permanecer aquecido, até ser resgatado pelos alemães e levado para um hospital militar. Tisdall (1998) relata que, embora o feltro seja um material que absorve diversos tipos de materiais com os quais tem contato, nenhum material o invade, pois é saturado na superfície, fazendo com que sua trama se feche ainda mais, que fique mais denso, tornando-se mais eficaz em seu poder de isolamento e proteção. Segundo Gonzáles (1993), Joseph Beuys transubstancia o elemento material, ultrapassando seus significados próprios para estimular o pensamento, tornando-os agentes sociais. Rosental (2002, p. 104): “Beuys colocou toda a sua energia no desenvolvimento de uma visão subjetiva do mundo. Para isso, utilizou todos os meios possíveis que reconheceu como úteis para comunicar seu ponto de vista artístico, social e pedagógico”. As teorias artísticas de Joseph Beuys tiveram forte influência da Ciência Espiritual Antroposófica de Rudolf Steiner. Joseph Beuys e Rudolf Steiner foram fonte de inspiração para a confecção do novo boneco do Zelo e para a integração da arte ação na versão aprimorada do jogo cooperativo. Em 1923, Rudolf Steiner entregou para Helene von Grunelius a meditação do calor, recomendando que fosse compartilhada com todos futuros médicos antroposóficos: Eu sinto minha humanidade em meu calor. Eu sinto luz em meu calor. Eu sinto ressoando a substância do mundo em meu calor. Eu sinto em minha cabeça a vida dos mundos se movendo em meu calor. (Disponível em: https://bit.ly/32Z7pHl).

Zelo foi confeccionado em feltro, no intuito de que o material representasse o calor humanitário, a proteção da natureza humana, que, segundo Heidegger (2012), é cuidado. 179


O calor também está associado ao afeto e a um ambiente psicológico caloroso e afetuoso. Conforme descrito anteriormente, o feltro foi um dos materiais utilizados pelos Tártaros no tratamento natural de Joseph Beuys após seu acidente de avião. A escolha do feltro como o material da estrutura externa do Zelo também representa a cura, cogitatus, que, segundo Silva (2009), é a palavra em latim de origem do cuidado. O significado de cogitatus está ligado à cura. Em relação aos traços do personagem, a nova versão foi remodelada, ganhando orelhas aparentes, queixo, bochechas e traços mais infantis. Nos olhos, um ponto branco, para representar o brilho do olhar. Bochechas rosadas, em consequência da exposição ao sol no cultivo de plantas e flores. As botas, para proteger de picadas de animas nocivos durante a prática de seu ofício, foram mantidas, mas o macacão ficou mais curto, representando o país, que é tropical. Nas mangas foram mantidas as cores do arco-íris, representando cada casa do jogo na trilha do arco-íris e as singularidades, como foi mencionado na descrição do jogo (figura 8). Nessa versão atualizada, o personagem veste uma jardineira com o “Z” no bolso, como na primeira versão. A novidade é o regador, como símbolo da sua profissão de jardineiro, e a capa amarela com o “Z”, representando sua condição de super herói. Embora o Zelo possua neste momento uma imagem, ele é de todo jeito, de toda cor, de todos os traços, pois está presente em cada um com suas peculiaridades, sendo único e fruto do olhar, através da subjetividade individual. Futuramente, será criado um caderno de perguntas, onde as crianças serão convidadas a descrever a personalidade do Zelo com base em suas percepções. Além da ilustração atualizada do Zelo, foram criadas novas ilustrações para a história do Jogo, como a ilustração a seguir, do Zelo na caverna do esquecimento (figura 9). Os tons de cinza representam que as cores foram apagadas pela grande borracha do descuido, ilustrando este trecho da história.

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FIGURA 9 - Nova ilustração, Zelo na Caverna do Esquecimento. Fonte: Mello, Pereira, Rodrigues (2020).

Na expressão facial do personagem, os traços da boca, da sobrancelha e dos olhos expressam medo e tristeza. A mãozinha no coração representa o pesar do abandono e do descuido. A ilustração tem como objetivo sensibilizar e mobilizar ações de resgate do Zelo por intermédio do Jogo de Arte-Ação. Uma outra ilustração impactante é a do planeta gargalhando por estar cheio de Zelos (figura 10). Os Zelos foram representados no som da gargalhada do planeta que é “zzzzzzzzzzz...”. O “Z” tem o som do zumbido da abelha, que segundo Steiner são animais que vivem no amor, além de sua cera também fazer parte de um dos elementos muito presente nas obras de Joseph Beuys. O apiário inteiro está verdadeiramente perpassado de vida amorosa. As abelhas abdicam individudalmente de muitas formas do amor, dando mostras de amor em toda a colméia, de tal maneira que começamos a entender a vida delas quando nos damos conta de que a abelha vive em uma espécie de ar totalmente impregnado de amor (STEINER, 2005, p.30).

O “zzzzzzz...” é o som que representa o amor, a unidade com o todo indivisível. Escutar o Zelo é ouvir as três ecologias em uníssono.

181


FIGURA 10: o planeta Terra gargalhando por estar cheio de Zelos. Fonte: Mello, Pereira, Rodrigues (2020)

A terceira ilustração nova é a do Zelo como um super-herói que pode voar (figura 11). Nesta ilustração, Zelo voa pelo planeta espalhando seu superpoder, que é o de Zelar, representado por corações que lança ao planeta terra.

FIGURA 11 - Zelo como super herói. Fonte: Mello, Pereira, Rodrigues (2020).

A quarta ilustração é a do Zelo indígena, representando a integração do humano com a natureza (figura 12).

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FIGURA 12 - Zelo como indígena. Fonte: Mello, Pereira, Rodrigues (2020).

As ilustrações foram idealizadas pelos autores, mas foram feitas por Lucas Motta. As novas ilustrações foram criadas com o intuito de ilustrar a história do Zelo (disponível em https://bit.ly/35KP7ep). Baseada no Jogo e na história do Zelo, a intérprete e compositora Fernanda Luongo compôs a música “Zelo” (disponível em https://youtu.be/ IddtEZyJ2wU), afinada em 432 Hz. A letra da música possui frases simples e acessíveis ao imaginário infantil, com trechos que entrelaçam as ecologias de Guattari. As missões do Jogo foram transformadas para que se tornasse um jogo de Arte-ação: pedagógica, social e política, bem como um jogo de educação criativa e humanista. A integração da pedagogia da cooperação de Terry Orlick com a pedagogia da autonomia de Paulo Freire comporá a base pedagógica da aplicação do Jogo de Arte-ação. No eixo social, serão realizadas ações sociais como confecção de brinquedos com materiais reutilizados para doações, campanhas de conscientização e de doação, feiras de economia solidária, para a troca de produtos e de serviços em banco de tempo, para que o valor das profissões seja equânime, entre outros eventos. Já na política, este intento ocorrerá por meio da pesquisa sobre os direitos humanos, das crianças e dos adolescentes, de documentos de educação ambiental, de levantamento de problemas do bairro, de entrevistas com políticos, de reinvindicações, de participação e de representação em eventos da câmara municipal, exercitando a cidadania. 183


Algumas das atividades propostas na nova versão do Jogo de Arte Ação estão ocorrendo no projeto de extensão “Highlights- Eventos Sustentáveis”, do CEFET - campus Petrópolis-RJ, e foram criadas por uma das autoras deste projeto. A voz da natureza através da arte é um exemplo e está disponível nos seguintes links: O fogo: https://www.youtube.com/watch?v=8E0oho5zP30, O Ar: https://www.youtube.com/watch?v=bpgCWX6cEkQ&t=42s, O Ar dança watch?v=qBwR6l0cGuM,

espontânea:

https://www.youtube.com/

Mensagem da terra para o ser humano: https://www.youtube.com/ watch?v=4AW3qmRHRhc Um outro exemplo é a fabricação de brinquedos com materiais sustentáveis, que no projeto de extensão recebeu o nome de “brinquedoteca sustentável”. Está disponível no link na página do projeto Highligths (https://www.facebook.com/Eventos-Sustentáveis-108696567473807). O jogo do anjo cada um na sua casa também fará parte das missões do jogo Zelo. Foi publicado no dia 19/11/2020 no canal do youtube do projeto de extensão Highlights (https://www.youtube.com/watch?v=3AJepLSAcU). O último exemplo é do “Dançafluxo” em sua versão para adultos, técnica criada pela autora deste trabalho em parceria com Marcelo Henares Porto. Esse trabalho foi apresentado na edição 2019 da SEPEX (semana de pesquisa e extensão do CEFET campus Petrópolis) e será apresentado novamente na edição 2020 e encontra-se disponível no link https://www. youtube.com/watch?v=-3AJepLSAcU. A arte estará presente em todas as etapas do jogo enriquecendo e potencializando a educação ambiental ecosófica e o Cuidado de si. Segundo Dieleman (2006) a arte é um potente meio de intervenção pra sensibilizar e desenvolver a consciência ambiental. A teoria da aprendizagem que embasou a criação das missões foi a Pedagogia da Autonomia de Paulo Freire. É preciso que a educação esteja – em seu conteúdo, em seus programas e em seus métodos – adaptada ao fim que se persegue: permitir ao homem chegar a ser sujeito, construir-se como pessoa, transformar o mundo, estabelecer com os outros homens relações de reciprocidade, fazer a cultura e a história. Freire (1980, p. 39).

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No quadro 3 estão descritas de forma sucinta as vinte e uma missões da nova versão do jogo, que integra arte e ação. Dentre as novas missões do Jogo está a imaginação ativa, trazendo a arte do inconsciente. Joseph Beyus enveredou-se por pesquisas sobre a arte e o inconsciente. A imaginação ativa teve sua origem na psicologia Junguiana. Segundo Saldanha (2008), a imaginação ativa é uma técnica que contribui para que imagens do inconsciente possam ser criadas por motivações profundas, de vários níveis do próprio indivíduo. Esse exercício pode ampliar a percepção da realidade, estimulando a ordem mental superior. A primeira técnica de imaginação ativa do jogo de Arte Ação está disponível no endereço https://www.youtube.com/watch?v=ygkwfHwCu1U.

Objetivo Missão

Zelo consigo mesmo Ecologia pessoal

Zelo com os outros Ecologia social

Zelo com o planeta Ecologia ambiental

Vermelha

Uso consciente de eletrônicos.

Gentileza e zelo no lar.

Os 5 R’s da sustentabilidade.

Laranja

O mago do sabor; cuidando A árvore da vida; de receitas culiapreciação e nárias; saudável reconhecimento; e sustentável; árvore da ancesexperimentando tralidade; artes sabores e sabeplásticas. res; degustação sensorial.

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Eco-arte; artes e ecologia; a voz da natureza através da arte; escultura criativa; música das esferas; o som na cultura Tupi Guanari; dança circular.


Amarela

Ações eco/sociais; fábrica de brinquedos Cooperação na produzidos com Cuidado pessoal. escola; o jogo do materiais reuanjo. tilizados para doação; feira de economia solidária. Autoconhecimento; biografia; artesanato com argila.

Cooperação no lar.

Alquimistas; fábrica de cosméticos ecológicos.

Azul claro

Planejamento.

Cultivo de virtudes.

Cultivo de plantas medicinais; farmácia viva.

Azul escuro

Cultivo da singularidade; experimentando outros modos de vida; diferentes culturas.

Comunicação pessoal, intrapessoal e transpessoal.

Direitos humanos e exercício de cidadania.

Dançafluxo.

Abrindo janelas interiores por intermédio da imaginação ativa, técnica junguiana.

Verde

Vinho

Criação de livro de reflexões diárias.

QUADRO 3 - Missões da nova versão do Zelo, jogo de Arte Ação.

Joseph Beuys repensou o teatro da performance em relação à ação expandida, indo além da arte em busca da arte-ação pedagógica, social e política. Beuys acreditava na arte como cura do homem que sofre em consequência de um sistema social doentio. O artista mobilizava o pensamento como um escultor social. Como mencionado anteriormente, as teorias artísticas de Beuys sofreram forte influência da antroposofia de Rudolf Steiner. Além de 186


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Steiner, Beuys descobriu informações importantes nas obras de Jung sobre o inconsciente na obra de arte. Na nova versão, a Arte Ação de Joseph Beuys foi ressignificada e adequada ao universo infantil e o Jogo Zelo, passou a ser “Zelo, o jogo de Arte Ação”. Na linguagem teatral, as sete missões de cada ecologia vão ser transformadas em sete cenas de uma peça sobre a ecologia em questão, em cenas que trarão situações problemas interpretadas pelos participantes do jogo. Depois da cena da situação problema ser representada, ela será congelada e a luz do palco apagada. Nesse momento, uma criança vestida de Zelo surgirá no palco com uma lanterna cuja luz refletirá o “Z” do Zelo. Ela apontará a luz para o coração de uma das crianças do público, convidando-a para dirigir a cena, impulsionada pelo Zelo em si que foi iluminado pela lanterna mágica, apresentando um desfecho que solucione a questão apresentada. A peça interativa de arte ação ocorrerá ao final do jogo e cada cena será montada após as crianças alcançarem a realização de suas missões, ou seja, de criarem planos de ação e de praticarem hábitos relacionados à ecologia, no propósito de cumprirem a missão. Um processo criativo de auto-educação onde a práxis estará presente no decorrer de todo jogo. Segundo Mizoguchi (2006), uma das ideias centrais da pedagogia Waldorf de Rudolf Steiner é a condução do aluno para a auto-educação. Segundo esse autor, cabe ao professor gerar o ambiente adequado para que as crianças eduquem a si próprias, por intermédio de seu destino interior.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS Beys acena para a arte ação como potência da mudança de atitude diante do mundo. A trajetória do personagem Zelo, do Jogo, de suas canções e de suas histórias está apenas se iniciando. Na nova versão o jogo foi lapidado e esculpido para tornar-se uma escultura social, pedagógica e política que movimentará o pensamento, a criatividade e a ação. Os resultados revelaram que a proposta pedagógica fundamentada sob a forma de Jogo de Arte Ação intitulada como Zelo é uma terna, sensível e artística fórmula ilimitada de manifestação da Ecosofia de Guattari e do Cuidado de Si de Foucault. Com passos pacientes e amorosos Zelo gerará 187


pegadas cada vez mais conscientes que se aproximarão das pistas deixadas por Guattari e Foucault das travessias necessárias para que a existência se torne uma obra de arte, uma arte de vida.

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SOBRE OS AUTORES Carla Graça Mello é graduada em Educação Física pelo Centro Universitário de Volta Redonda, pós-graduada em Jogos Cooperativos pelo Centro Universitário Monte Serrat de Santos, Pós-graduada em Psicologia Transpessoal pela Alubrat de São Paulo. Mestre em Ensino em Ciências da Saúde e do Meio Ambiente pelo Centro Universitário de Volta Redonda. Atua desde 2014 na Associação AlmaterJundiaí/SP criando e aplicando Jogos cooperativos inspirados na obra de Grandes Pessoas da Humanidade. Tem experiência como capacitadora de educadores do Ensino Fundamental I em Jogos Cooperativos. Publicou um livro infantil e criou jogos relacionados ao livro. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-60559218 E-mail: carlagracamello@yahoo.com.br Adilson Pereira possui Doutorado em filosofia - área de Ética - UGF/RJ, Mestrado em filosofia, área de Ética, Especialista em História da Filosofia UGF/RJ, MBA em RH e Marketing - UGF, Licenciatura em Filosofia - UNIFAI /SP. Docente Ensino Superior da FAETEC/RJ - atuando no Ensino Médio da Escola Técnica Estadual Amaury César Vieira, Docente no Mestrado Profissional em Ensino de Ciências da Saúde e do Meio Ambiente - UniFOA. Membro do Banco de Avaliadores do INEP/MEC. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3581-4683 E-mail: adilsonfaetec@gmail.com Denise Celeste Godoy de Andrade Rodrigues é Graduada em Engenharia Química pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Mestre em Biotecnologia Industrial pela Faculdade de Engenharia Química de Lorena, licenciada em Física e Biologia pelo Centro Universitário Geraldo de Biase (UGB/FERP) e Doutora em Tecnologia Bioquímico Farmacêutico pela Universidade de São Paulo. Atualmente é professor Associado I e bolsista Prociência da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Tem experiência nas áreas de Engenharia Química e Ensino de Ciências, atuando nos seguintes temas: biorremediação, Educação Ambiental, Ensino de Química, Produtos Educacionais. ORCID: https://orcid. org/0000-0002-5110-1405 E-mail: denisegodoy@fat.uerj.br

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Trajetória em vertigem: Metodologias da Não-Arte


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Trajetória em vertigem: Metodologias da Não-Arte Matheus Reis FAAL (Faculdade de Administração e Artes de Limeira) | Brasil

Resumo: Partindo do contexto da pandemia do covid-19, esse ensaio reflete sobre como o conceito de nãoarte concebido pelo artista Allan Kaprow pode criar linhas de fuga na pesquisa artística, potencializando desvios de trajetória e abrindo caminho a processos metodológicos. Dessa perspectiva, este relato testemunha uma metodologia de metamorfoses a compreender a linha de pesquisa ecosófica. Impulsionada por acontecimentos circunstanciais vivenciados na reclusão da quarentena, a investigação se inicia abordando a cartografia ambiental a partir do âmbito das relações ecológicas interespécie e passa a compreendê-la voltandose as forças geofísicas. Esse processo, visto sob a ótica das três ecologias de Felix Guattari, é apresentado desde sua concepção ambiental até seus desdobramentos na produção de subjetividades, contemplando trabalhos que tratam da gravidade enquanto sujeito protagonista de ações artísticas e suas consequentes apresentações em eventos online, bem como a proposição crítica de um acontecimento social a respeito da emergente ocupação humana de marte, envolvendo diversos espaços e artistas no interior de São Paulo.

Abstract: Starting from the context of the covid-19 pandemic, this essay reflects on how the concept of non-art conceived by the artist Allan Kaprow, can create escape lines in artistic research, enhancing deviations in trajectory and opening the way for methodological processes. From this perspective, this report witnesses a metamorphosis methodology to understand the line of eco-research. Driven by circumstantial events experienced in the quarantine confinement, the investigation begins by addressing environmental cartography from the scope of interspecies ecological relations and begins to understand it by turning to geophysical forces. This process, seen from the perspective of Felix Guattari’s three ecologies, is presented from its environmental conception to its unfolding in the production of subjectivities, contemplating works that deal with gravity as the protagonist of artistic actions and their consequent presentations in online events, as well as, the critical proposition of a social event regarding the emerging human occupation of Mars, involving several spaces and artists in the interior of São Paulo.

Palavras-chave: Metodologia, Ecosofia, Arte contemporânea, Não-arte, Física.

Keywords: Methodology, Ecosophy, Contemporary art, Non-art, Physics

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A

pandemia que se instaurou no mundo devido ao covid-19, alterou a dinâmica de vida das pessoas. Tem sido um acontecimento (ZIZEK, 2017), no sentido de romper com o comum e com o sedentarismo, pois todos somos obrigados a inventar novas formas de estar no mundo. Como professor universitário, as aulas a distância propuseram desafios importantes e de grande valor ao tratar da subjetividade utilizando-se de novas tecnologias, bem como retomando alguns autores aqui mencionados na disciplina de metodologia de pesquisa. Já o trabalho artístico, que já era voltado a uma experiência estética dependente da presença corporal, perdeu os seus sentidos com as exposições virtuais. Todas as exposições enquanto artista, curador, crítico e parcerias de trabalho que me mantinham constantemente ocupado, cessaram em questão de um mês. O que a princípio pareceu devastador teve um sentido positivo e criador. Segundo Rubem Alves (2011), para haver conhecimento há que se ter curiosidade, enquanto para haver curiosidade, é necessário prazer. Por sua vez, para que exista prazer envolvido, é necessitário ter tempo. O tempo que antes era dedicado a esses projetos acabou por ser uma linha de fuga a um cuidado de si, no sentido de me ocupar descobrindo coisas novas fora do campo da arte sem que houvesse interesse ou propósito. Nesse sentido, Allan Kaprow (2003), um dos precursores do happening na década de 1960, fez uma distinção relevante entre a arte institucionalizada, a anti-arte como tentativa de romper com o status-quo do mercado e a não-arte, que seria o olhar poético de um artista sobre coisas e acontecimentos de sua vida e do social. É sob essa perspectiva que o autor afirma: A sofisticação da consciência na arte hoje em dia é tão grande, que não é difícil afirmar como fatos: que o módulo LM de pouso na lua é patentemente superior a todos os esforços da escultura contemporânea, que a transmissão do diálogo entre o Centro de Viagens Espaciais Tripuladas de Houston e os astronautas da Apolo 11 foi melhor que a poesia contemporânea; que, com suas distorções de som, bipes, estáticas e quebras de comunicação, tais diálogos também ultrapassam a música eletrônica das salas de concerto (KAPROW, 2003, p.1).

Considerando os contextos envolvidos na proposição do artista, é conveniente deslocar seu pensamento para refletir sobre como acontecimentos da pandemia causaram uma metamorfose em meu processo 194


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de investigação conceitual-poética. Um dos eventos marcantes do período inicial foi o lançamento da CrewDragon da Space X para Estação Espacial Internacional. A partir desse dia, tomei ciência, a partir de uma breve pesquisa, que uma viagem tripulada para marte não estava tão distante de ocorrer. Nesse período, também comecei a me interessar por vídeos de skate observando a relação dos corpos com a gravidade. Devido a ansiedade gerada pela reclusão, acabei por não apenas observar, mas também a praticar o esporte, com uma atenção especial ao que tange a estética. Apesar de serem situações e interesses alheios, estes vieram de encontro com uma investigação poética, qual começava ganhar forma conceitual, ou seja, tornar-se um eixo de agenciamento (DELEUZE e GUATTARI, 1997). Enquanto duas linhas de torção, a reflexão de uma ocupação humana interplanetária e a relação dos corpos/objetos com a gravidade começaram a ganhar um corpo próprio e se atravessar simultaneamente. Tal como descrito nas três ecologias de Felix Guattari (2012), essa investigação passa a encontrar linhas de fuga, produzindo subjetividades. Por um lado, através do trabalho artístico foi se construindo uma investigação poética da gravidade e de forças geofísicas, por outro, as reflexões sobre uma possível ocupação de marte ganharam contornos coletivos, pois, tratando-se de um campo abrangente, encerrá-lo dentro da produção pessoal seria reduzir o seu potencial de investigação enquanto ideia. Antes de tomar como foco a presente etapa de processo da metodologia, é conveniente considerála a partir de um escopo amplo da trajetória e de questionamentos préexistentes, antes de serem impulsionados pela pandemia. Na sequência desse ensaio, serão apresentados seus desdobramentos em processos ainda em desenvolvimento. Sendo assim, essa proposta metodológica não envolve fechamentos, conclusões ou considerações finais. Tais investigações permanecem em aberto até que movimentos similares aos já descritos venham novamente a formular novos agenciamentos a deslocar a pesquisa.

TRAJETÓRIA | FLUXOS & DESDOBRAMENTOS Em minhas pesquisas sobre o campo ambiental nas artes visuais, parti de abordagens cartográficas, contemplando seus aspectos afetivos e fenomenológicos, enfatizando as relações interespécie dos seres vivos, as ecologias biológicas e seus desdobramentos corporais-subjetivos. É o caso de “A natureza como contágio” (2016-2018), da crítica a residência “ArtFarm Project” (2019) e da “Cartografia ambiental: uma perspectiva 195


através das lianas” (2019-2020). Nessas investigações voltadas à relação entre os seres vivos, mencionei ou citei apenas de passagem a influência das forças geofísicas, implicitamente fazendo-se presentes. São reflexões que acompanham trabalhos artísticos em que possíveis sentidos se dão em coautoria com outras pessoas e espécies (Figura 1).

FIGURA 1: Trabalhos artísticos envolvendo diversas espécies, ‘Refloresta’ (2019), ‘Resíduos’ (2018) e ‘Liana #2’ (2019). Fonte: Fotografia do autor.

Em 2019, desenvolvi uma série de esculturas/instalações site-specific intituladas de Lianas (Figura 2). O que me recorreu de singular nesse processo foi que, assim como as trepadeiras, cada uma dessas instalações necessitava de pontos de apoio que dependiam da arquitetura ou de árvores para se sustentar. A fixação desses pontos de apoio, por sua vez, mudava radicalmente a forma e conceito do trabalho conforme o local onde era instalada. Em outras obras também tive a experiência de utilizar apenas uma base fixa de sustentação para esculturas de terra, tal qual uma escultura convencional (Figura 3). De um modo geral, percebi que parte do trabalho com a escultura escapa ao campo técnico, bem como ao conceitual-poético. Há uma força externa em evidência que incide e condiciona inevitavelmente as intenções processuais: a gravidade.

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FIGURA 2: Instalações escultóricas da séria Lianas (2019). Fonte: Fotografia do autor.

FIGURA 3: Esculturas vivas, ‘Inconstantes’ (2019). Fonte: Fotografia do autor.

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GEOFÍSICA | VERTIGEM & CORPOS & COISAS Segundo Claudio Ulpiano (1990), Espinosa faz uma separação entre a natureza e os demais seres vivos. A diferença é que, enquanto a natureza é livre em suas manifestações no mundo, os demais seres são constantemente constrangidos pelas forças desta. Sendo assim, enquanto seres humanos, nossas intenções são suprimidas por forças externas a nós, de modo que, a princípio, somos corpos apaixonados condicionados por essas, como um barco à deriva sendo carregado pelos fluxos das correntes marítimas. Esse seria, então, o primeiro nível de conhecimento possível. O segundo, entendido como a razão, seria uma compreensão maior dessas forças externas que nos constrangem e uma melhor possibilidade de lidar com elas. É nesse momento em que a possibilidade da ciência se faz presente; podemos enfim construir uma vela para nosso barco. O terceiro, entendido enquanto ciência intuitiva, seria um modo de lidar com essas forças externas sem ser constrangido, mas potencializados por elas: a criação. Quando criamos, estamos, tal qual nos provoca Suely Rolnik (2019), produzindo gérmens de novos mundos, semeando possibilidades e nos compreendendo tal qual natureza em fluxo contínuo com o mundo. Levar essa reflexão para explorar a gravidade enquanto elemento de um processo de criação artístico-conceitual, a princípio, parece adequado. As forças geofísicas, nas quais a gravidade está compreendida, se manifestam livremente. Não é possível desafiar a gravidade pois somos constrangidos por ela; através da razão, podemos desenvolver dispositivos para utilizar forças outras que nos permitam lançar foguetes ao espaço. No entanto, isso não significa que ela deixou de existir e de se manifestar. A provocação, enfim, não reside em sua superação, mas numa criação conjunta com a gravidade: compreendê-la como sujeito coautor do processo, tornar nítida sua participação enquanto devir de um trabalho artístico. O desdobramento dessas reflexões, partiram de um âmbito corporal. A percepção sensorial, por si, já se constitui no cotidiano comum, como quando algum evento de contraste se anuncia, tal como um frio repentino notado por nossa pele. As forças geofísicas, como a gravidade, acabam por serem ainda mais habituais, o que faz uma percepção mais nítida sobre elas um esforço de concentração. Sem o desejo de tirá-las do espectro ordinário de nossa vivência cotidiana ou explorá-las de modo transcendente, desenvolvi alguns processos iniciais para que fossem anunciadas enquanto coautoras de ações ou necessárias a constituição de objetos. 198


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Para deixar a gravidade em evidência na produção de objetos, iniciei uma busca por materiais leves que passassem a ilusão de serem pesados. Pensei que, criando tal efeito, pudesse causar um choque perceptivo em relação ao objeto, um modo de chamar atenção para essas forças. Nessa concepção, fiz algumas esferas para serem suspensas por um fio de nylon. Elas foram elaboradas com papel machê sobre bexiga e cobertas com tinta e textura de terra, de modo com que parecessem muito mais pesadas do que o eram. O experimento foi uma conquista ao que se propôs, porém, tais objetos rígidos e estáticos (Figura 4) ainda careciam de um elemento fundamental que até então não havia dado conta de sua real importância: o movimento. A força que a gravidade impulsiona em direção ao solo faz com que os objetos encontrem o repouso após um tempo, mas antes disso, há aceleração e todo um movimento de descontrole que é causado por outras variáveis, como o atrito. Ainda permanece um mistério como fazer com que os objetos artísticos não percam seu movimento. Há bibliografia sobre esculturas cinéticas, mas nenhuma delas pareceu uma solução conveniente para ressaltar a gravidade pois, de um modo geral, elas dependem de uma engenharia ou mecânica que acabam por sobressair, tomando a atenção da obra.

FIGURA 4: Investigação de materiais escultóricos (2020). Fonte: Fotografia do autor.

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Nesse ponto da investigação percebi a importância do corpo, bem como da performance para criar esse movimento. No entanto, apesar de ser possível explorar a gravidade isoladamente, ela é mais evidenciada quando em relação com um segundo objeto. Com essa percepção, voltei-me novamente a relação que desenvolvi com o skate. A princípio, trata-se de não-arte, mas, mesmo que não veja ainda um modo de anunciar essa ação como artística, esta trouxe uma reflexão importante para a investigação. Quando se anda de skate, a gravidade é fundamental. Ela pode ajudá-lo a executar as manobras através da aceleração e impulso em rampas/desníveis, como também pode, na maioria das vezes, inviabilizar qualquer tentativa (Figura 5). É necessária uma percepção muito nítida da relação entre os movimentos do corpo em relação a esta. Por um lado, há uma margem de controle intencional do que se faz, mas por outro, a angulação e o meio são variáveis que causam um descontrole, de modo que é necessário se antecipar a manobra e prever o movimento necessário na circunstância específica para se ter sucesso. Por mais que o skate tenha auxiliado na investigação entre corpogravidade-ambiente, sua colaboração excedeu ao previsto, visto que o skate não é apenas um objeto, mas um sujeito dessa ação. Tim Ingold (2000) faz uma distinção de termos entre objetos e coisas que nos é cara a esse pensamento. Para o autor, nenhum objeto material, assim como o corpo, existe sem estar em relação a outros no ambiente. Os objetos materiais possuem sua própria trajetória no mundo e seus sentidos vão se alterando. A prancha de madeira do skate já foi uma árvore, que por sua vez já esteve em simbiose com inúmeras espécies antes de encontrar um humano que a moldou enquanto um objeto a ele funcional. Por sua vez, esse objeto será funcional ao ser humano apenas por um tempo. Mesmo que seja reutilizado em algum momento, vai se decompor e ser funcional a outras espécies de novas maneiras. Sendo assim, a prancha de skate enquanto coisa possui o sentido que a ela atribuo momentaneamente. Esse movimento de atribuir sentido a uma matéria, ainda que habitual, é um gesto de intimidade que, além de nos aproximar, nos condiciona, pois não possibilita novos sentidos apenas à coisa, mas também a nós. Sendo assim, uma manobra exige uma grande intimidade com o skate para que o movimento através da gravidade seja simultâneo, funcionando como apenas um corpo.

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FIGURA 5: Investigação gravitacional com skate (2020). Fotografia do autor.

O ponto atual da investigação culminou em dois vídeos performáticos que acabaram por unir a concepção das esferas com a relação de simultaneidade do skate. A primeira delas, apresentada no ciclo de ações performáticas do AT AL | 609, intitulada ‘Constante G’ (Figura 6), apresenta duas mãos gesticulando e se relacionando em intimidade com uma esfera sobre uma rede a ressaltar um campo gravitacional. Esse trabalho também acabou por apresentar um sentido erótico nos movimentos com a esfera. Esses movimentos fazem uma analogia a uma relação de prazer que é habitar a terra, esta, por sua vez, proporcionada pela gravidade. Ao mesmo tempo, é uma gaiola da qual dificilmente conseguimos nos desvencilhar. O segundo vídeo, intitulado como ‘Constante G#2’, mantém a mesma esfera, mas se utiliza de uma proposição científica de Isaac Newton, do livro ‘Principia: Princípios matemáticos da filosofia natural’ (2008), para desenvolvê-la como proposição poética, ou seja, uma inversão de propósitos ao se voltar as forças geofísicas. 201


FIGURA 6: Still do vídeo performance ‘Constante G’ (2020). Disponível em: https://youtu.be/k0BSIyB-IGQ

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FIGURA 7: Still do vídeo performance ‘Constante G #2’ (2020). Disponível em: https://youtu.be/VhYw7XRaiqA

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CONTÁGIO EM MARTE | UMA PARTILHA SOCIAL As reflexões sobre Marte desdobraram-se num convite para uma investigação conjunta entre vários espaços artísticos do interior de São Paulo, tratando da emergência de uma possível ocupação humana. Criar juízos de valor a respeito ou construir sentidos únicos ao que nos aguarda seria redutor à possibilidade de sentidos a serem atribuídos à circunstância. Inicialmente propõe-se que seja desenvolvido um processo partilhado ao longo de dois anos, qual pode ser estendido/adiado conforme o distanciamento social na pandemia se faça necessário. Esse convite foi enviado aos participantes das edições anteriores do Atelier Contágio que, desde 2016, manifesta-se em acontecimentos de processo e exposições, reunindo artistas/espaços autônomos para criar, refletir e partilhar ideias sobre o ambiente, tendo já realizado três edições. Desse modo, a investigação foi levada ao âmbito social por meio da troca. Todos os indícios são de que, em poucos anos, a possibilidade de ir a Marte será́ viável. Afinal, o que nos cabe enquanto artistas nesse contexto? Presenciamos uma corrida espacial entre chegarmos como espécie em Marte e as condições planetárias de Marte chegarem à Terra. Nosso primeiro desafio está em ultrapassar o lixo espacial que em grandes quantidades orbita o planeta; os recentes apuros que a estação internacional espacial tem passado são um exemplo disso. De certo modo, o campo magnético da Terra e a gravidade que se impõe a nós, apesar de conservarem este raro e gentil planeta que nos proporciona sensações prazerosas infindáveis, sempre nos condicionou a sermos uma espécie uniplanetária. As condições não são ideais, mas, gostemos ou não, tornar-se uma espécie multiplanetária é o que temos à frente. Tal mudança é tão significativa quanto foi o domínio da navegação oceânica. Por um lado, conhecemos a barbárie que acompanhou esse movimento, por outro, também sabemos como a cultura e a arte foram completamente modificadas e deram vida a mundo moderno que não demorou a se tornar globalizado. Desta vez, além de estarmos prestes a testemunhar uma mudança radical semelhante, também estamos a dispor o corpo humano fora de suas condições biofísicas originais, o que nos impele a uma situação sem precedentes. A ocupação de Marte em algumas gerações pode mudar nossa fisionomia, nossos sentidos e nossa subjetividade. Antes que tal acontecimento quase imediato nos encontre de surpresa, esse questionamento já́ é por si surpreendente, provocador de possíveis as criações estéticas, conceituais e relacionais. Não é apenas a ida para Marte 204


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que é instigadora, mas, principalmente, o que levaremos do ponto em que estamos, bem como, se procuramos em Marte um refúgio de um planeta do qual desistimos ou uma extensão de nossa experiência enquanto espécie. Eticamente, a ciência sempre fora dúbia aos interesses da sociedade. Suas descobertas nunca serão perfeitas, pois sempre haverá́ coisas a se descobrir, além de estarem sempre à prova e sujeitas à dúvida. Justamente por isso, acaba sendo o melhor que temos a contar por hora. Antes de desmerecermos seus esforços num momento em que o delírio e a insensatez a questiona pelos motivos errados, o que temos feito para acompanhá-la? Os percursos da ciência não dependem da arte tanto quanto a arte dela? Após milênios de esforços em se aproximar de marte simbolicamente, arquetipicamente com a justa tarefa de poetizá-lo, o quão poético em sua crueza e nudez não é a orbita dessa esfera avermelhada ao redor do sol nos acompanhando de perto ou as fotografias tiradas por sondas, com o rover Curiosity? Curiosity, Voyager, Pioneer; qual dentre tantos ímpetos nos leva como artistas e pensadores a criar?

FIGURA 8: Cartaz para o evento Contágio em Marte. Disponível em: www.ateliercontagio.com

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REFERÊNCIAS ALVES, Rubem; ABUJAMRA, Antônio. Provocações. São Paulo, TV Cultura, 03mai.2011. Disponível em <http://tvcultura.com.br/videos/54869_ provocacoes-rubem-alves.html> Acesso em: 20 de novembro de 2020. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Devir-Intenso, Devir-Animal, DevirImperceptível” em: Mil platôs, v. 4. São Paulo: Editora 34, 1997. GUATTARI, Félix. As três ecologias. 21ª edição. Papirus, Campinas: 2012. INGOLD, Tim. Trazendo as coisas de volta à vida: emaranhados criativos num mundo de materiais. Horizontes antropológicos, v. 18, n. 37, p. 25-44, 2012. KAPROW, Allan. A Educação do Não-Artista, Parte I (1971). Revista Concinnitas, v. 1, n. 4, p. 214-226, 2003. NEWTON, Isaac. Principia: princípios matemáticos de filosofia natural. Edusp, 2008. REIS, Matheus. Cartografia ambiental: Uma perspectiva através da propagação das Lianas. Revista Alegrar, v.25. Campinas, 2020. ROLNIK, Suely. Esferas da insurreição: notas para uma vida não cafetinada. n-1 edições, 2019. ULPIANO, Claudio. Pensamento e liberdade em Espinoza. Aula disponível em:< http://claudioulpiano. org. br. s87743. gridserver. com, 1988. ŽIŽEK, Slavoj; MEDEIROS, Carlos Alberto. Acontecimento: uma viagem filosófica através de um conceito. Editora Schwarcz-Companhia das Letras, 2017.

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SOBRE O AUTOR Mathias Reis é artista, diretor audiovisual e professor da FAAL nas graduações em Artes/Design e da pós em Marketing Digital. É formado em artes visuais com mestrado em Linguagens, Mídia e Arte pela PUC-Campinas Participou de diversas exposições coletivas, ocupações artísticas e duas individuais: Exsicata na Galeria Sede (2015) e Variações do pé vermelho (2018) no AT AL | 609. Foi crítico da residência artística ArtFarm Project, trabalhou como curador do Museu Universitário, da Galeria de Artes Visuais do espaço Goma, dentre outros. Desde 2016, coordena o Atelier Contágio, projeto itinerante que relaciona ações artísticas a práticas eco-lógicas. Atualmente reside e possui ateliê em frente a Mata Santa Genebra, onde investiga poéticas interespécie, metodologias cartográficas voltadas ao ambiente e desenvolve projetos com a Simbiosis produtora audiovisual.

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A cidade-casa e suas multiplicidades


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A cidade-casa e suas multiplicidades Tatiane Alves Ribeiro Universidade Estadual de Feira de Santana | Brasil

Resumo: Como presentificar o ausente em tempos de confinamento? Aqui neste texto são traçadas algumas possibilidades no campo da experimentação, onde o corpo transpõe fronteiras e faz da casa uma cidade. Corpo sem órgãos que Deleuze e Guattari (1996) descrevem como o próprio desejo, ele é nômade, está aqui e lá e nem precisa sair do lugar. No campo das experiências se constroem as realidades virtuais e elas são múltiplas, multipli-CIDADES. Na ausência, o corpo produz realidades e ensaia em alguns metros quadrados as cenas cotidianas de uma metrópole.

Abstract: How to make the absentee present in times of confinement? Here, some possibilities are outlined in the field of experimentation, where the body crosses boundaries and makes the house a city. Body without organs that Deleuze and Guattari (1996) describe as desire itself, it is nomadic, it is here and there and in the field of experiences they build virtual realities and they are multiple, multi-CITIES. In the absence, the body produces realities and rehearses the everyday scenes of a metropolis in a few square meters. Keywords: Body without organs, Hybrid, Virtual, City.

Palavras-chave: corpo sem órgãos, híbrido, virtual, cidade.

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O

entardecer é sempre um convite, não o tipo escrito em papel branco acetinado onde palavras se encaixam formando ruas retas e paralelas. O entardecer é um convite em papel de noite negra com luzes desorganizadas em movimentos que escapam a linearidade da escrita. Um convite de esquinas vazias e quinas arredondadas onde cada parágrafo se faz verso, onde cada verso se desmancha em cores, onde cada espaçamento se preenche de sentidos, mas não aqueles pintados em placas refletivas e porque não também reflexivas, indicando uma direção a seguir: vire à direita, esquerda, curva sinuosa a 1 km, PARE! Refiro-me aqui a outros sentidos, nada de significações ou interpretações. Sentidos que nos escapam, desorientando-nos em meio a luzes e sons, perdemo-nos em memórias afetivas e então traçamos novas trilhas nesse novo espaço habitado por experiências. Bem-vindo à cidadecasa, uma cidade virtualizada onde a realidade interconectada permite a criação em um plano de experimentação, onde corpos híbridos/sem órgãos/ virtualizados se permitem ir e vir, viajantes imóveis por um espaço onde as fronteiras se transpõem. O lugar, quando dotado de significação, ganha memória, torna-se espaço. O espaço, quando manifestado em codificação informática computacional, é virtual. O corpo, ao utilizar esse espaço para a movimentação e a tradução de linguagens, aflora numa faceta de sua condição híbrida: o corpo virtualizado é feito de quebra de fronteiras rígidas, construção de fronteiras de significados e relações de interface. (ALMEIDA, 2012, p. 33).

O corpo híbrido é nômade, é o próprio desejo, está aqui e também lá. Ele é possível dentro da esfera da experimentação, o plano da imanência, definição de Deleuze e Guattari (1996) ao falar do agenciamento do corpo sem órgãos (CsO), onde o que ocorre na superfície teria maior valorização, ou seja, tudo aquilo que não escapa aos nossos sentidos. O plano de consistência ou de imanência é aquele que diz respeito a realidade material apreendida imediatamente pelos sentidos do corpo. Uma materialidade codificada na chamada de vídeo que faz emergir sentidos e nos atravessa a pele, o corpo.

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Ao conjunto dos estratos, o CsO opõe a desarticulação (ou as não articulações) como propriedade do plano de consistência, a experimentação como operação sobre este plano (nada de significante, não interprete nunca!), o nomadismo como movimento (inclusive no mesmo lugar, ande, não pare de andar, viagem imóvel, dessubjetivação). (DELEUZE e GUATTARI, 1996, p. 20).

Nossas experiências constroem as realidades virtuais e as realidades são multiplicidades, multipli-CIDADES. No campo da experimentação, a casa se torna cidade, uma entre tantas outras, a daqui de dentro e outra lá de fora, lugar-cidade do vizinho do lado, do vizinho da frente, do amigo em outro bairro, e o corpo que não é espaço e nem está no espaço, é matéria não formada, os pixels, a imagem em RGB. O corpo se desfaz na ausência da conexão e se refaz novamente na tela dos celulares e notebooks, corpo híbrido, sem órgãos, corpo virtualizado, que a partir do zero produz realidades e ensaia em alguns metros quadrados as cenas cotidianas de uma metrópole. Ele não é espaço e nem está no espaço, é matéria que ocupará o espaço em tal ou qual grau — grau que corresponde às intensidades produzidas. Ele é a matéria intensa e não formada, não estratificada, a matriz intensiva, a intensidade = O, mas nada há de negativo neste zero, não existem intensidades negativas nem contrárias. Matéria igual a energia. Produção do real como grandeza intensiva a partir do zero. (DELEUZE e GUATTARI, 1996, p. 12).

Foi necessário zerar o corpo e porque não as memórias que muitas vezes nos trazem detalhes visíveis, previsíveis, os clichês. Remontar uma memória nova de uma cidade talvez nunca vista com a multisensorialidade do olhar, que aberto ao plano da experiência, nada deixa escapar, e então os invisíveis assumem um papel significante, os não lugares se edificam na cidade. E na casa-cidade praticamos o “conceito de ausência” enquanto potência criadora, ou seja, na falta é ativada uma espécie de mecanismo que amplia o fazer produtivo. Na falta são ativadas outras possibilidades. “A falta como potência de criação de linguagem e mundos” (OLIVEIRA JR, 2015, p.16). Na ausência, o corpo, morto ou não, renasceu nesse espaço. Corpo zerado, intensidade zerada.

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1. O CONVITE O convite me leva a percorrer os espaços de uma cidade-casa, neste momento começo a perambular tateante pelas imagens-frames armazenadas em minha memória, a aglomeração parece dar lugar a uma cidade que nunca vi, cidade inédita ainda que repleta de lembranças, cidade mutante, multiplicada em sensações e re(a)presentações. Cidade des-enquadrada, des-narrada. Aqui na cidade-casa faltam os tombos dos encontros de corpos na multidão, faltam os panfletos entregues nas sinaleiras, mas sobram gestos, sons, texturas, sobram representações e verdades. A cidade pode ser entendida aqui não mais enquanto objeto, mas um sujeito multiplicado em re(a)presentações e suas verdades aparecem inventadas na tela com seus (des)enquadramentos, suas (des)narrativas, rupturas com qualquer vínculo que impeça o encontro intensivo com as coisas ocultadas na paisagem barulhenta. A verdade intensiva é como a vida, mutável, adaptável ao caminho, aos buracos, a música (RIBEIRO, 2017, p. 93).

Desviar do já visto em busca de outras visualidades, des-organizar o corpo e as máquinas, des-mantelar memórias, des-automatizar os sentidos. O corpo sem órgãos é o próprio desejo e não como este deve ser, ele se desvia do previsível e de qualquer propósito do universo, ele é a liberdade e ao mesmo tempo o limite interno do desejo, ou seja, não há limites para quem é produzido em seu lugar próprio, em seu tempo próprio, sem parentescos, sem a tríade edipiana ou triangulação parental. O corpo pleno sem órgãos é produzido como antiprodução, isto é, ele só intervém como tal para recusar toda tentativa de triangulação que implique uma produção parental. Como pretender que ele seja produzido pelos pais se ele próprio dá testemunho da sua autoprodução, do seu engendramento a partir de si? (DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix, 1972, p.28).

O corpo pleno desmantela as máquinas que fazem de nós um organismo, que aqui traz o sentido de organização e o corpo sofre por estar assim tão bem organizado, já que as máquinas desejantes só funcionariam desarranjadas. O “des” como produção fotográfica desejante e como elemento poético na criação artística, onde o mundo virtual se faz real e o mundo real virtualizado se potencializa criando des-semelhanças nesse mapa onde as 212


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linhas imprecisas se remontam e redesenham novas avenidas, paisagens, viadutos. O viaduto (Figura 1) que cruza a Avenida João Durval com a Avenida Getúlio Vargas parece aproveitar os instantes de calmaria, percebo a ausência do movimento e do cheiro de combustível, mas logo aparecem motocicletas, uma van de cor prata com placa enferrujada e então uma ambulância rompe o silêncio e ainda assim consigo escutar o barulho da buzina de um condutor impaciente que tenta chegar em casa antes das 19 horas, e nessa lembrança nada falta.

FIGURA 1 – Fotografia da Avenida Getúlio Vargas na cidade de Feira de Santana, Bahia. Fonte: Arquivo pessoal (2018).

Abandonamos as ruas? Onde estão as ruas? Percebo que entre a cozinha e o quarto se ergueu um monumento1 de cor amarela e logo vem à lembrança do artista Juracy Dórea, e da igreja Gótica e Prefeitura. Vejo-me entre prédios, pessoas, mas aqui na cidade-casa o ar é respirável. Downloads, tráfego de dados móveis e em poucos instantes um tráfego de luzes invade o cruzamento da avenida quarto com a Avenida Senhor dos Passos. A mobília da casa amontoada cedeu espaço para a avenida que se instalou no meio da sala, nela me exercito, danço, faço compras que chegam

1 O monumento conhecido pelo nome do artista Juracy Dórea está localizado em uma das avenidas de Feira de Santana e apresenta estrutura em metal com cor amarela. 213


por delivery, até o mingau da praça de alimentação ganhou um novo sabor, ele traz consigo aromas de todas as ruas que cruzaram o caminho do entregador. O corpo não engendrado quebrou as fronteiras rígidas e atribuiu outras funções aos seus membros e a mão que girava o volante agora digita apressadamente em conversa na pausa do almoço de uma quarta-feira que mais parece de domingo. Todo o movimento na cidade-casa é experiência do corpo que se confina entre paredes e se expande em viagens reflexivas, uma espécie de tele presença, hologramas de uma cidade qualquer em uma cidade-casa, bairros virtualizados em uma chamada de vídeo e me conecto, reconecto e a conexão instável me permite tantas conexões, corpo que fala, olho que toca, abraços pixelados. Isolamento? De quem? De que? A casa nunca esteve tão cheia, reuniões por videoconferência amontoam o sofá de três lugares, aulas remotas e o som do vizinho invade o áudio transmitido em tempo real, impossível utilizar a tecla CRTL+Z para eliminar o latido do cão ao lado ou o barulho da descarga acionada por outro morador que às vezes se esquece de que o lugar privado se tornou empresa, escritório, estúdio, escola. O corpo híbrido conectado às tantas outras cidades, cidade-casa da mãe que aprendeu a enviar memes em conversas do WhatsApp, cidade-casa do professor que no modo on aprendeu a usar brush no lugar do piloto, cidade-casa do artista que aprendeu a lidar com tantas outras telas, cidadecasa do pequeno empreendedor que aprendeu a utilizar as ferramentas de marketing digital e trocou o grito pela imagem, pelo feed, stories e lives. Apagam-se as lâmpadas incandescentes e logo uma avenida se desenha no espaço reservado ao home office, o post-it amarelo com algum recado importante colado na parede produz com o vermelho do led no mouse uma composição que se projeta na superfície prateada do monitor, ativando uma memória luminosa onde detalhes novos se incorporam a paisagem já vista. Vejo-me em meio a postes, concreto pintado na cor preta e amarela com propósito de mensagem e na ausência de luz ambiente, o viaduto da Maria-Quitéria (Figura 2) ilumina a noite de sexta-feira da cidade-casa.

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FIGURA 2 – Fotografia Viaduto da Avenida Maria Quitéria na cidade de Feira de Santana, Bahia. Fonte: Arquivo pessoal (2018).

2. TANGENCIANDO NOVAS DIREÇÕES Preciso de um pouco de ar puro, uma relação com o fora, com o eu interior e também com o nãov eu. É possível nesse momento saltar para um espaço fora da materialidade visível (a dobra da dobra do fora2 ?) ao mesmo tempo em que fazem saltar para dentro de mim mesma, telas não projetadas, compartilhadas ou não, ruas, outros corpos. E abro a janela para respirar, aqui na cidade-casa as máscaras são dispensáveis e seu uso se tornou comum em fotos postadas nas redes sociais, difícil escolher entre Amaro, Rise ou a orelha de um gatinho em forma de GIF. Máscaras com intenção estética, des-mantelamento do real. Cidade-máscaras e tags e likes e códigos e... Daqui consigo ver os raios da Princesa do Sertão, ainda que mais caracterizada como metrópole, eles iluminam a paisagem aqui tão viva

2 No artigo “Apostar no fora, no intervalo, na experimentação”, o autor Wenceslao M. Oliveira Jr. (2016) define o fora como forças inconscientes que nos tiram para fora, algo que nos leva a pensar, a criar, como um problema, uma falta que assume potências. Tanto o fora quanto a dobra do fora são coisas que ainda não há linguagem para expressar. 215


em minha memória acendendo chamas de esperança de um perambular despreocupado pela Rua Sales Barbosa da cidade lá de fora, onde o apito do guarda de trânsito atravessa a Rua Marechal e ressoa por aqui na cidadecasa. E o corpo se faz desejo e sigo desejosa pelos últimos minutos no cinema aguardando as cenas extras que aparecem ao final dos créditos de um filme da Marvel. Sigo desejosa também pelo terceiro toque antes dos atores pisarem no palco. Desejo da lagoa ao entardecer e do cheiro de grama misturada aos dejetos dos patos impregnados na sola do sapato. No confinamento, as memórias fizeram da casa a nossa cidade, elas ativaram a esperança da Princesa e do plebeu. Aqui da janela traçamos novas metas e projetamos uma cidade que também é nossa casa, uma Feira de Santana tão nossa quanto os nossos sonhos, com esquinas e viadutos, com barulhos e com a calmaria de um entardecer na Lagoa Grande (Figura 3), onde o alaranjado do céu pulsa e nos mantém conectados a um amanhã onde as telas se tornarão abraços com 37 graus de temperatura e os sentimentos mais nobres serão compartilhados tanto no real virtualizado, criado a partir das experiências dos corpos quanto na realidade interconectada.

FIGURA 3 – Fotografia da Lagoa Grande 2016 na cidade de Feira de Santana, Bahia Fonte: Arquivo pessoal (2018).

Uma realidade com camadas de intensidade que atuam na superfície dos corpos e que não dependem tão somente de cabos ou fibra ótica, uma realidade que transpõe barreiras, nos desterritorializam, lá e cá e

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novamente lá e a cada movimento, novos elementos poéticos se inserem e des-mantelam a paisagem, as máquinas. Máquinas desejantes e por que não dizer delirantes? Para Deleuze e Guatarri (1972) a máquina delirante seria uma mutação da máquina desejante, fruto da relação com o corpo sem órgãos que é a superfície para o registro da produção do desejo e as máquinas desejantes emanam dele e para eles há tão somente máquinas em toda parte, e sem qualquer metáfora: máquinas de máquinas, com seus acoplamentos, suas conexões. Uma máquina-órgão é conectada à uma máquina-fonte: esta emite fluxo que a outra corta. A câmera como máquina da minha máquina olho que é extensão do meu pensamento maquínico que se expressa através do corpo em confinamento e também liberto da organicidade que todo organismo supõe. E quantos desejos se produziram nesse espaço-corpo, nessa cidadecasa? O corpo sem órgãos é univocidade onde as multiplicidades se implicam, é o próprio devir devindo e nessa escrita os corpos e os sentidos se conectam nesse plano de imanência onde o sentir se faz verso em poema produzido em meio à pandemia e a ausência se faz criação e o convite se faz noite e a noite se faz desejo e o respirar se faz amanhecer. Na ausência do nada, tudo Na ausência da pele, pixels Na ausência da fala, áudio Na ausência sobram gestos, às vezes paralisados por uma conexão instável Na ausência, os afetos, a videoconferência Distanciamento? De onde vem o gesto que atravessa a tela? O que me toca, senão o corpo presentificado pelo áudio, pelos pixels? Sua respiração nunca esteve tão presente Não me falta o teu ar, com batidas leves Não me falta esperança, do teu pisar suave, do teu sorriso amarelo, do teu amanhecer Não me faltam palavras... não me falta... Que não me falte ar Que não me falte afeto Que em cada gesto Eu floresça Flores de um novo dia Girassóis Ainda que me falte sol Amanhecerei Amanhã serei sol (Que não me falte, 2020. Poema da autora) 217


REFERÊNCIAS / REFERENCES ALMEIDA, Aline Amsberg. O Corpo Virtualizado como Corpo Híbrido em The Accord. In: Interfaces. Guarapuava, Vol. 3 n. 2, 2012. PDF disponível em <https://revistas.unicentro.br/index.php/revista_interfaces/article/ viewFile/2026/2074>. Acesso em Ag. 2020 RIBEIRO, Tatiane Alves. A cidade e suas re(a)presentações: o vídeo enquanto tela de manifestação e criação de (im)possíveis. Bahia: Departamento de Artes e Humanidades – UEFS – Universidade Estadual de Feira de Santana, 2017. 144f. Dissertação (Mestrado em Desenho, Cultura e Interatividade). PDF disponível em Plataforma Sucupira. Disponível em <https://sucupira. capes.gov.br/sucupira/public/consultas/coleta/trabalhoConclusao/ viewTrabalhoConclusao.jsf?popup=true&id_trabalho=5743062>. Acesso em Ag, 2020 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34 . (Trabalho original publicado em 1972). DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Como criar para si um corpo sem órgãos. In: ______. Mil Platôs – Capitalismo e Esquizofrenia, v. 3. Rio de Janeiro: Editora 34, 1996. PDF disponível em: http://escolanomade.org/ wp-content/downloads/deleuze-guattari-mil-platos-vol3.pdf. Acesso em Mai. 2020 OLIVEIRA JÚNIOR, Wenceslao Machado de. As rasuras dos lugares: fragmentos espaciais re-existentes em vídeo. In: GALLO, Silvio; NOVAES, Marcos; GUARIENTI, Laisa B. O. (orgs.). Conexões: Deleuze e política e resistência e... 1.ed. Petrópolis-RJ: De Petrus et Alii; Campinas-SP: ALB; Brasília, DF: CAPES, 2013.

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SOBRE A AUTORA Mestre em Desenho, Cultura e Interatividade - UEFS (2015 / 2017). Especialista em Marketing Estratégico - FTC (2011 / 2012). Bacharel em Desenho Industrial - UNEB (2004 / 2008). Participa do grupo de pesquisa com imagens TRACE: Departamento de Educação-UEFS (2015/2021). Professora de Fotografia, Audiovisual, Comunicação Visual, Imagem Gráfica Digital e Desenho. Fotógrafa integrante do Clube de Fotografia de Feira de Santana. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6821-596X. E-mail: portfolio.tatianealves@gmail.com

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Entre a cidade e as montanhas: os mamilos-da-terra


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Entre a cidade e as montanhas: os mamilosda-terra Mirian Steinberg Instituto de Artes da UNESP | Brasil

Resumo: Neste ensaio apresento uma pesquisa-criação com realização de registros de performance no cotidiano com fotografias, desenhos e peças em cerâmica como um modo de cartografar a experiência do corpo nos deslocamentos entre a cidade e as montanhas. A compreensão do pesquisa-criação será feita a partir de reflexões sobre as existências mínimas de Lapoujade, os conceitos de corporeidade de Guatarri e os modos de acessar a intuição de Bérgson, a fim de trazer mais compreensão e contornos. Essa experiência do corpo envolve a criação dos mamilos-da-terra que evoca uma dimensão do feminino na natureza, cuja origem está na ideia de um corpoútero que gesta e ancora, como um lugar templo de acontecimentos e atravessamentos, nos diferentes espaços em que permaneço, como uma bússola nômade que revela desejos de encontros e pertencimentos, em contágios com a natureza dentro e fora de mim.

Abstract: In this essay I present a creation research with performance in everyday life and records with photographs, drawings, ceramic pieces as a way of mapping the experience of the body in the displacements between the city and the mountains. The understanding of the creation research will be made from reflections on Lapoujade’s minimal existences, Guatarri’s concepts of corporeality and ways of accessing Bergson’s intuition in order to bring outlines and relationships. This experience of the body exposes the creation of the earth’s nipples and evokes a dimension of the feminine in nature, whose origin is in the idea of ​​a body-uterus that gesture and anchors, as a temple place of events and crossings, in the different spaces where I remain, like a nomadic compass that reveals desires for encounters and belongings, in contagions with nature inside and outside me. Keywords: body, nature, earth- nipples, female.

Palavras-chave: corpo, natureza, intuição, mamilos-da-terra, feminino.

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intuition,


E

ntre dois territórios: na cidade, um lugar de origem, na qual foi produzida uma pesquisa acadêmica e artística sobre performance no cotidiano1 com escutas na rua – a experiência corpo-cidade na potência dos modos de viver de um catador de resíduos sólidos com sua carroça multimídia. E, no outro lado, um lugar de destino, as sinuosas montanhas da Serra da Mantiqueira com atravessamentos das múltiplas nuances da natureza, uma superfície de contágios do corpo afetado com a exuberância da natureza. Em ambos os lugares, cidade e montanhas, o que permanece é a corporeidade2 de sentidos e subjetividades, escutas das paisagens sonoras e das narrativas, das diversidades de vozes de tudo aquilo que transborda substâncias vivas, quer seja suas manifestações nas pessoas da cidade ou na natureza das montanhas. A paisagem se faz íntima nas curvas das estradas e peço licença para chacoalhar, deslizar, trepidar nesse deslocamento, imaginar e desenraizar da cidade. Nesse ensaio de escrita a partir da experiência do corpo entre a cidade para as montanhas. Me pego considerando que poderia simplesmente fazer uma viagem turística numa atitude de descanso, mas fiz outra escolha, o propósito de fazer desse período uma residência artística por tempo indeterminado, um mergulho mais profundo na experiência de estar e ficar nas montanhas, considerando o isolamento social durante o início da pandemia do Covid19. Nesse ensaio sigo pelo interior da cidade e do corpo, no útero, órgão feminino gerador de outros corpos e ideias como uma âncora imaginária que experimenta no corpo a fixação de um acontecimento. “Um corpo cuja potência de gerar vida não se efetua nos órgãos, mas nos encontros agenciados com o mundo” (FONSECA et al., 2004: 92). O útero, um órgão do corpo que gesta e que aqui, faz ancorar uma experiência, acolhe os sentidos que se produzem nos encontros e nos afetos. Dentro de corpo poroso que se permite contagiar pela exterioridade e recebe as misturas

1 Performance no cotidiano se insere em um contexto artístico contemporâneo, em uma zona de fronteira entre linguagens artísticas, que permite compreender e considerar a experimentação como um processo que realiza uma aproximação entre arte e a vida cotidiana. O fazer artístico da performance no cotidiano tem, em sua natureza, a investigação e o investimento na presença de uma corporeidade que abre os sentidos para o acaso e a indeterminação. (STEINBERG, M. Dissertação de Mestrado, 2019). 222


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de fora e de dentro, numa espécie de festividade e faz gestar e gerar ideias comprometidas com a ação. Corpo-útero capaz de acolher a semente das forças da natureza, fazer pulsar e fabricar ideias nos deslocamentos entre a cidade e as montanhas. Contágios que se expandem na dimensão do feminino na natureza e faz surgir a partir do gesto da performance no cotidiano de empilhar pedras, os mamilos da terra. Um nome de uma parte do corpo da mulher e um conceito que revela o feminino como uma dimensão, um corpo expandido também entre as paisagens das montanhas. A propósito do que pode o corpo, proposição trabalhada por Deleuze sobre a relação do corpo e a natureza, um corpo coletivo originário que encontra na natureza um modo de pensamento. Mamilos da Terra aqui será apresentado no contexto das artes contemporâneas, como sendo uma performance no cotidiano e que se desdobra em registros com dispositivos móveis, desenhos e peças em cerâmicas. Um corpo atravessado pela natureza como um acontecimento representado numa ideia aberta de corporeidade no espaço. O corpo útero se coloca como uma máquina de produção de sentidos e sensações em composição entre as linhas sinuosas das montanhas, como grandes mamilos-da-terra numa extensão do corpo-natureza. Um corpo que constrói um espaço de criação, como um útero gestando novos modos de produzir sentidos do feminino, como são os ciclos do feminino, um tempoespaço dimensional do feminino. O alcance dos espaços construídos vai então bem além de suas estruturas visíveis e funcionais. São essencialmente máquinas, máquinas de sentido, de sensação, máquinas abstratas funcionando como o “companheiro” anteriormente evocado, máquinas portadoras de universos incorporais que não são, todavia, universais, mas que podem trabalhar tanto no sentido de um esmagamento uniformizador quanto no de uma ressingularização liberadora de subjetividade individual e coletiva. (GUATTARI, 1992: 140).

Talvez o que me interessa aqui é o “nós” e tudo que nele está contido, inclusive a cidade e as montanhas que carrego no entre uma e outra. O “nós” enquanto seres coletivos e parte do todo. Nossa parte humana que se assemelha às águas, pedras, árvores. O “nós” que nos habita e se fabrica como um coletivo de experimentadores, que mergulha em novos hábitos a adotar. Um desejo de habitar e ser habitada pelo nós. Poderia dizer que habito novos hábitos ou me habitam os caminhos entre as montanhas, cidades e estradas! O “nós” na perspectiva dos seres humanos e de todos os 223


seres animados pelo princípio vital, a vida. Nesse coletivo de forças, o que faz pulsar em meu corpo é engendrar outros modos de viver no planeta. Engendrar no sentido de dar uma forma aos acontecimentos, dar existência e gerar pensamentos, não só compreender ou questionar racionalmente o enunciado das montanhas no meu corpo individual e coletivo. O que pode ser capturado na natureza que diz respeito ao corpo coletivo? Engendrar uma gramática da natureza e me deixar capturar pelas experiências dos fenômenos do vento, do cheiro, da folha caindo, das nuvens suspensas, do som dos passos da formiga e traduzir numa linguagem que me permita acessar uma outra gramática. Uma linguagem da substância que vibra, pulsa e não hesita é evidente sua ação em meu corpo, uma identidade advinda da natureza originária de onde tudo nasce e desenvolve. Essa identidade entre mundo e natureza está longe de ser banal. Pois natureza designava não o que precede a atividade do espírito humano, nem o oposto da cultura, mas o que permite a tudo nascer e devir, o princípio e a força responsáveis pela gênese e pela transformação de todo e qualquer objeto, coisa, entidade ou ideia que existe e existirá. (COCCIA, 2018:22).

Aqui, um parêntese para pontuar que o se reconhecer como natureza é um corpo político que ao experimentar uma linguagem silenciosa da natureza como um exercício ético de questionar se haveria um “nós”. Um coletivo de humanos, desejantes de força vital e afirmativa, com novos modos de experimentar e conceder os direitos à natureza. Os aspectos centrais dos Direitos à Natureza é direito à existência” dos próprios seres humanos. (ACOSTA, 2016:124). Temos de entender que tudo o que fazemos pela Natureza, fazemos em prol de nós mesmos. Eis um ponto medular dos Direitos da Natureza, insistamos exaustivamente que o ser humano não pode viver à margem da natureza-e menos ainda se a destrói. Portanto, garantir a sustentabilidade é indispensável para assegurar nossa vida. Esta luta de libertação, como esforço político, começa por reconhecer que o sistema capitalista acaba com as condições biofísicas de sua própria existência. (ACOSTA, 2016:124).

O complexo desafio do campo de luta política em defesa dos direitos

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da natureza, cujo “bem viver” é um horizonte estratégico para combater a crise global de múltiplas proporções. Portanto, um corpo que resiste a permanecer nos modos de vida no campo, como os povos originários já fizeram, é um corpo político de combate à cultura do capital. Não pretendo aqui direcionar essa discussão à macro política, e sim direcionar uma micropolítica do corpo a um contexto poético que, ao perceber nas relações do corpo com a natureza e com as coisas, outros possíveis.

1. EXPERIÊNCIA, CORPOREIDADE E INTUIÇÃO Mamilos-da-terra é uma experiência da corporeidade numa micropolítica de fazer gerar “existências mínimas “3 no corpo e assim entramos no mundo das coisas. Entrar no mundo dos elementos da natureza como potência em cada corpo. Aqui não estamos mais no mundo dos fenômenos, mas sim das coisas enquanto uma presença de um mundo. “O cosmos das coisas”, uma coexistência entre existências psíquicas, racionais, físicas e práticas sendo “coisificadas” (LAPOUJADE, 2017:33). Para ser coisa, uma existência deve estar ligada a outras e formar com elas uma unidade sistemática, compor uma história que as ligue em um cosmos definido. A arquitetura do fenômeno se transforma e se torna “cosmicidade”4. (LAPOUJADE, 2017: 32).

Trata-se de fazer pulsar o desejo de intensificar a realidade das existências, fazer materializar o vivido numa conexão com as coisas, nesse caso as coisas da atmosfera (Figura 1) das montanhas. Conexão de uma coisa que se interliga num cosmos maior, chamado por Lapoujade de “cosmicidade” e instaura-se um campo de conexões do corpo com as forças da natureza. Há algo de pedra em meu corpo, de ossos, de planta, de folha, de ar, nuvem, vento que entra e sai dos pulmões, de montanha que habita em mim e meu corpo deseja ser habitado por essa multiplicidade da natureza, numa coexistência entre corpos vivos, o corpo na presença que se compõe

3 LAPOUJADE, David. As existências mínimas, 2017. 4 Um pequeno pensamento pode manter uma coisa em existência e criar outras ligações chamadas de “coisidades” e quando essa coisidades se liga a uma unidade sistemática, se compõe com uma história ligada em um cosmo definido se torna “cosmicidade” (LAPOUJADE, 2017: 32).

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com um todo maior. A presença que somos parte numa sincronicidade com a terra e cosmos. Poderia dizer uma experiência mágica, transcendental, mas prefiro detalhar essa experiência.

FIGURA 1: Atmosferas – Imagem. Fonte: Mirian Steinberg, 2020.

O sentido de estar na floresta parece acordar uma ancestralidade vegetal, mineral, um sentido em que o ato de escrever e descrever já escapa da presença do ar fresco, da conversa com o vento, do cheiro da terra molhada como se a vida se resumisse no simples gesto e na presença de remover as folhas do jardim. A cosmicidade explica essa experiência mostrando que as coisas estão interconectadas numa pulsação vital. Sendo assim, a esse contexto agrego a intuição, que para Bergson é também um método. A intuição não é um sentimento nem uma inspiração, uma simpatia confusa, mas um método elaborado, e mesmo um dos mais elaborados métodos da filosofia. Ele tem suas regras estritas, que constituem o que Bergson chama de “precisão” em filosofia (DELEUZE, 1999: 7). A intuição pode criar circuitos de acontecimentos e fazer da inteligência uma função da intuição (BERGSON, 2005). Intuitivamente se criou uma faísca de pensamento em contágio com as pedras e as águas da cachoeira. Uma performance no cotidiano com o gesto de empilhar pedras [Figura 2 e 3] entre a atmosfera de gotículas de vapor na pele, numa relação entre o espaço e a corporeidade. Corpo expandido que pede passagem na superfície sonora das águas fortes que choram na Mantiqueira. Uma “dobra do corpo sobre si mesmo acompanhada por um desdobramento de espaços imaginários.” (GUATARRI, 1992:135). 226


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FIGURA 2: Registro de Performance no Cotidiano: Empilhar Pedras. Fonte: Mirian Steinberg, 2020.

Seguindo a inteligência intuitiva em gesto de um grande corpomamilo-terra, habitar as pedras, que se faz performance, com a proposição de empilhar pedras molhadas dos rios e realizar sete oferendas. Estas saem da abundância das montanhas e se deslocam para 7 pessoas da cidade. Uma dobra do corpo que desdobra nos espaços imaginários das montanhas até a cidade. Esses mamilos da Terra escorrem com uma precisão intuitiva de experimentar as montanhas expandidas no corpo. “A intuição nos leva a ultrapassar o estado da experiência em direção às condições da experiência” (DELEUZE, 1999:18), um embaralhamento entre arte e vida.

FIGURA 3: Registro de Performance no Cotidiano: Empilhar Pedras Imagem. Fonte: Mirian Steinberg, 2020.

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2. MAMILOS-DA-TERRA, QUEIJO, MEL E ARTE Mamilos, palavra substantiva e plural refere-se a uma anatomia do corpo, uma saliência arredondada, o bico de um seio, uma corporeidade de uma máquina de produção de prazeres, de líquidos nutritivos, estimulam o desejo de apetite, refere-se às oralidades, aos mamíferos e aos humanos. Realizo ensaios e experimentos de um corpo-barro (figura 4) com referências às esculturas de seios como em Louise Bourgeois.

FIGURA 4: Experimentos Corpo-Barro. Imagem. Fonte: Mirian Steinberg, 2020.

Sigo em processos de realizar desenhos e pinturas com pastel oleoso (figura 5). As imagens aqui produzidas são como se escorresse os múltiplos líquidos reais e imaginários, desde as águas da cachoeira, passando pelo leite das mamíferas e o mel das abelhas, com os possíveis e potentes desdobramentos dessas substâncias alimentares. Um processo artístico em fotografia e vídeos com as narrativas dessas mulheres das montanhas, com desenhos, cerâmica e a performance do cotidiano com empilhar e equilibrar pedras nas cachoeiras.

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FIGURA 5: Pintura em Pastel Oleoso sobre papel. Fonte: Mirian Steinberg, 2020.

Os mamilos-da-terra pedem passagem em meu corpo-útero para dizer que precisam fazer suas derivas, como as águas fazem para abrir os caminhos na terra e se seguem em fluência. Nessa fluência dos encontros em contágios entre os líquidos e os afetos encontro com os três produtos que são os protagonistas da dimensão do feminino na natureza: o mel, o queijo e as artes das mulheres da Mantiqueira. O mel das abelhas polinizadoras das flores, uma sociedade de complexa organização para a manutenção e a produção de alimento nutritivo, denso e doce. O leite das tetas da vaca, soberana mamífera, uma máquina de produção de leite e seus derivados. Animal sagrado para os indianos pela sua bondade e também por ser a produtora primordial, primitiva do líquido branco, o leite dos mamíferos-alimento nutritivo para seus filhotes e para os seres humanos. Contém em si a existência do gesto primordial do mamar, como uma oralidade revisitada, o prazer do mamar e dos mamilos, corpomulher-mamífera. O terceiro “fluído” é de mulheres criadoras, produtoras de modos de fazer e saber artístico, com específicos dispositivos técnicos e poéticos numa linguagem artística. A intuição me leva a seguir no caminho ao encontro com as mulheres. Nos três espaços da Mantiqueira: na casa da produtora de queijo em seus modos de habitar, de fazer, de cuidar das vacas e dos bezerros para a produção do queijo (figura 6). No encontro com a apicultora e suas narrativas sobre a colheita do mel de candeia (figura 7) e no Ateliê de Arte Nakawê Estampas em Tecidos (figura 8) com a artista que produz tecidos estampadas com técnicas de tingimento e criação de carimbos para estampas em diferentes suportes em tecido, no alto das montanhas da Mantiqueira. Uma invenção 229


de linhas que criam novos territórios, de afetos, de sabores e de escutas das narrativas por entre as paisagens sonoras das águas, do vento e dos pios.

FIGURA 6: Casa da Queijeira Kate – Registro em fotografia e Vídeos. Fonte: Mirian Steinberg, 2020.

FIGURA 7: Pote de Mel de Candeia da Apicultora Celia – Registro em fotografia e vídeos. Fonte: Mirian Steinberg, 2020.

FIGURA 8: Ateliê Nakawê Estampas em Tecidos da artista Claudia Mattos- Registro em fotografia e vídeo. Fonte: Mirian Steinberg, 2020. 230


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As linhas de errâncias do pensamento são criadas pela intuição e nessas flutuações do pensamento-intuição, realizam-se cartografias5, “como um caminhar que traça, no percurso, suas metas” (PASSOS; BARROS, 2009: 17).

As poéticas das errâncias que vão sendo desenhadas durante o processo, na vida cotidiana. Dessa forma, compreender, ou melhor, engendrar um pensamento criador que deseja avançar na ideia e se manifesta no corpo e na vida. Na obra a evolução criadora de Bergson, ele atribui à inteligência a capacidade não só de captar fenômenos6 , mas também na descoberta das coisas. Investigar a criação no campo das artes e como ela ativa novas formas de existência, na relação com os fenômenos do mundo. Segundo Bergson a experiência da consciência é ciência da vida e, portanto, a intuição é uma ciência da vida e propõe o embaralhamento entre a arte e a vida, o fazer durante a caminhada. A intuição nos leva a ultrapassar o estado da experiência em direção às condições da experiência. Mas essas condições não são gerais e nem abstratas; não são mais amplas do que o condicionado; são as condições da experiência real. Bergson fala em “buscar a experiência em sua fonte, ou melhor, acima dessa viravolta decisiva, na qual, inflectindo-se no sentido de nossa utilidade, ela se torna propriamente experiência humana. (DELEUZE, 1999: 18).

A intuição desloca o corpo a se afetar e acorda um corpo-montanha, atravessado pela natureza e, nisso, uma outra composição se faz, corpomamilos-terra. O corpo se potencializa a habitar o entre, os deslocamentos entre os lugares ao encontro da potência de afetos e acontecimentos, um espaço de passagem, o não se fixar nem lá nem cá, sem destino e sem origem, o acontecimento está no deslocamento e no encontro de substâncias vivas. Uma composição entre os laços afetivos ligados à cidade e levar os alimentos das montanhas, e assim conjugar novos sentidos. A criação de cartografias de afetos para tecer a experiência da potência dos bons encontros com as linhas errantes, nômade, órfã das filiações convencionais da cidade para ser outra nas montanhas.

5 Cartografias. Pistas do Método Cartográfico (PASSOS; BARROS, 2009). 6 “A conhecer tão-somente um único gênero de fenômeno, que chamaremos ora de lembrança ora de percepção, conforme venha a predominar nele um ou outro desses dois aspectos, e, por conseguinte, a encontrar entre a percepção e a lembrança” (DELEUZE, 1999). 231


3. ESCUTA DAS NARRATIVAS DO FEMININO A escuta das narrativas7 das mulheres, moradoras dessas montanhas é como “uma pele de escuta, fazendo ressoar seu próprio ritmo e timbre.” (STEINBERG, 2019:69 apud NANCY, 2014). Encontro de vozes do feminino numa abertura para compor imagens e sonoridades de um corpo coletivo. Voz que fala dos modos de vida dessas mulheres, no campo do comum, dos gestos cotidianos, mulheres que nos fazeres são as geradoras da renda familiar e mesmo assim considerados menores e desvalorizados na sociedade patriarcal. A voz do coletivo de mulheres na dimensão da micropolítica, o “nós” que foi calada em seus saberes e fazeres, no campo do sensível e do artístico do cotidiano. A escuta dessas mulheres com o propósito de trazer o seu protagonismo e viver a dimensão do feminino no corpo da mulher em conexão com seus ciclos, seu útero, com o tempo e o espaço da natureza dentro e fora de si. Do ponto de vista econômico elas buscam novos modos de economia solidária e de subsistência rural, para a superação da dominação patriarcal na relação entre os gêneros (SILIPRANDI, 2000)8. Na linha de fuga do colonial, na transgressão da ordem, dos poderes castradores, numa ecologia do feminino. Parece possível seguir no desenvolvimento desse ensaiopesquisa, me compondo com movimentos ecofeministas que utilizam outros modelos de economia solidária. Nesse contexto, os movimentos de engajamento social com mulheres, apostam na corporeidade e no espaço, com os agenciamentos coletivos de enunciação. Uma aposta nas vias de singularidade e subjetividade social, “multiplicidade humanas, com devires animais, vegetais, maquínicos, incorporais infra pessoais” (GUATTARI, 1992: 144). Deslocando os antigos territórios de referência da cidade megalópoles para novos espaços na natureza.

7 Escutas das narrativas refere-se a pesquisa de mestrado em camadas de escutas (paisagem sonora, narrativas e a situação criada nessa relação). São as escutas das narrativas de vida, mas são também partículas e granulações dos timbres da voz, formas de articular as palavras e criar terminologias, uma oralidade própria, uma voz que conta com particularidades como as texturas, os volumes, as tessituras, as entonações e variações que compõe uma experiência do cotidiano de escutar a musicalidade no espaço. Entre o entendimento de uma escuta e outra, entre as camadas que se misturam e se ressaltam (...) tudo parece ressoar nas camadas de escutas em performance do cotidiano. (STEINBERG, 2019) 8 Uma escola de pensamento que tem orientado movimentos ambientalistas e feministas, desde a década de 70, em várias partes do mundo, procurando fazer interconexões entre as forças da natureza e das mulheres. (SILIPRANDI, 2000). 232


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A experiência mamilos-da-terra em andamento, aberta, work in progress, é uma pesquisa sendo gestada e criada como uma cartografia sonoros de suas paisagens e das vozes do feminino, movida pelos afetos do feminino, com a precisão intuitiva em conexão com o campo instaurado da performance no cotidiano. Pede passagem em meu corpo num processo de criação no cotidiana, numa composição com as escutas das paisagens que murmuram nos silenciamentos. Esses atravessamentos me fazem questionar, para além da experiência “corporeidade/micro política” e definem contornos de produção de subjetividades que expandem em processos de novos engajamentos com outros corpos-mamilos, num desejo de seguir conhecendo e reconhecendo o feminino na sociedade e na natureza, tendo como suporte as diferentes linguagens artísticas. Os movimentos ecofeministas são caminhos para uma conexão com as forças da natureza e, com isso, os cuidados na valorização de princípios de uma economia baseada nos ciclos da terra e do feminino. Corpo-femininopolítico é resistência a exploração e destruição dos patrimônios naturais, o que vem provocando uma forte crise ambiental. Os mamilos-da-terra constitui uma voz-terra que escorrem em seus líquidos e convida para agenciar novos modos de ver, de sentir e pensar a natureza, longe dos grandes centros urbanos. Sinto como se a terra estivesse fazendo um pedido aos seus filhos, pede para ser escutada com sua voz silenciosa que prazerosamente nos nutre e encanta. Abrindo novos caminhos para uma humanidade em crise e que somos parte desse grande organismo maior, a Terra e o Cosmos.

AGRADECIMENTOS / ACKNOWLEDGMENT Agradeço ao N’ME pelo convite e incentivo na publicação dessa edição e a todas as mulheres da Serra da Mantiqueira que fizeram parte do processo e do projeto Mamilos da Terra.

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REFERÊNCIAS / REFERENCES ACOSTA, Alberto. O bem viver, uma oportunidade para imaginar outros mundos. São Paulo: Autonomia Literária e Editora Elefante, 2016. BERGSON, Henri. A evolução criadora. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2005. COCCIA, Emanuel. A vida das plantas, uma metafisica das misturas. Florianópolis: Editora Cultura e Barbárie, 2018. DELEUZE, Gilles. Bergsonismo. São Paulo: Editora 34, 1999. FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa. São Paulo: Editora Elefante, 2017. GUATTARI, Félix. Caosmose, um novo paradigma estético. São Paulo: Editora 34,1992. GIACOMEL, A.E.; REGIS, V.M; FONSECA, T.M.G. Que tal um banho de mar... para ativar a potência política do corpo. Corpo, arte e clínica. Porto alegre: Editora da UFRGS, 2004. LAPOUJADE, David. As existências mínimas. São Paulo: Editora N-1, 2017. PASSOS, Eduardo; KASTRUP Virgínia; ESCOSSIAL Liliana da. Pistas do método da cartografia. Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2015. STEINBERG, Mirian. O catador e sua carroça sonora, uma performance no cotidiano. Dissertação de Mestrado. São Paulo: IA/UNESP, 2019. Disponível em: [ https://repositorio.unesp.br/bitstream/handle/11449/183232/steinberg_m_ me_ia.pdf?sequence=3&isAllowed=y]. Acesso em: 09 abril 2021. STENGERS, Isabelle. Entre Deleuze e Whitehead. Gilles. In: ALLIEZ, Eric (org.). Gilles Deleuze: Uma vida filosófica. São Paulo: Editora 34, 2000.p. (323-330).

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MIRIAN STEINBERG Mestra em Artes Visuais pelo departamento de Processos e Procedimentos Artísticos do INSTITUTO de ARTES da UNESP. Graduação em Musicoterapia e Pós-Graduação em História das Artes pela Faculdade Paulista de Artes/SP. Licenciatura em Música pela Faculdade São José/ SP. Pesquisadora CAPES 2017 a 2018. Membro do Grupo de Pesquisa CAT/IA/UNESP. Criação e organização do Núcleo de Novas Metodologias em Artes no IA/UNESP. Docente em Artes no Instituto Federal de São Paulo/ Campus Campos do Jordão. Artista-educadora-clínica, musicoterapeuta e terapeuta corporal atua com acompanhamento clínico e artístico com Cartografia do Desejo Criativo. Pesquisa Esquizoanalise e como Artista desenvolve trabalhos em diferentes linguagens artísticas. ORCID: https://miriansteinberg.com.br/ . E-mail: miriansteinberg7@ gmail.com

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ARTECOMPOSTAGEM’21 NÚCLEO DE ESTUDOS SOBRE METODOLOGIAS DE PESQUISA EM ARTES AV:A | INSTITUTO DE ARTES DA UNESP | SÃO PAULO - SP


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