Religiões Afro-brasileiras, políticas de saúde e a resposta a epidemia de Aids

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Religiões Afro-brasileiras, políticas de saúde e a resposta a epidemia de Aids

Celso Ricardo Monteiro Paula de Oliveira e Sousa Luís Eduardo Batista



Religiões Afro-brasileiras, políticas de saúde e a resposta À epidemia de Aids


GOVERNADOR Geraldo Alckmin SECRETARIA DE ESTADO DA SAÚDE DE SÃO PAULO David Everson Uip COORDENADORIA DE CONTROLE DE DOENÇAS Marcos Boulos CENTRO DE REFERÊNCIA E TREINAMENTO DST/AIDS-SP COORDENAÇÃO ESTADUAL DST/AIDS – SP Maria Clara Gianna – coordenadora Artur Kalichman e Rosa de Alencar Souza – coordenadores adjuntos GERÊNCIA DE PREVENÇÃO Ivone Aparecida de Paula Naila Janilde Seabra Santos ORGANIZADORES Celso Ricardo Monteiro Paula de Oliveira e Sousa Luís Eduardo Batista AUTORES Ana Cristina de Souza Mandarino Babá Diba de Yemonjá Celso Ricardo Monteiro Deivison Mendes Faustino Edson Eduardo Ramos da Silva Estélio Gomberg István van Deursen Varga Jonathan Garcia José Marmo da Silva Kabenguele Munanga Mameto N´Kisse Kaiyandewa Marco Antônio Chagas Guimarães Maria Cristina Silveira Prado Martins Maria do Carmo Sales Monteiro Maria Regina Teixeira Miguel Muños-Laboy Moíses Francisco Baldo Taglietta Paula de Oliveira e Sousa Richard Parker Rodnei Willian Eugênio Rosana Batista Monteiro Esboço inicial do projeto gráfico e colaboradora Fernanda Kalckmann Fotos capa Edson Eduardo Ramos da Silva


Religiões Afro-brasileiras, políticas de saúde e a resposta À epidemia de Aids

Celso Ricardo Monteiro Paula de Oliveira e Sousa Luís Eduardo Batista


Dados Internacionais de Catalogação na Publicação – CIP Elaboração de Carmen Campos Arias Paulenas CRB-8ª/3068 Religiões afro-brasileiras, políticas de saúde e a resposta a epidemia de AIDS/ organizado Celso Ricardo Monteiro, Paula de Oliveira e Sousa, Luís Eduardo Batista. São Paulo: Centro de Referência e Treinamento DST/AIDS-SP, 2014. 284 p. ISBN: 978-85-99792-21-6 1. Religião 2. Síndrome da Imunodeficiência Adquirida/prev 3. Políticas de Saúde 4. Racismo I. Monteiro, Celso Ricardo, org. II. Sousa, Paula de Oliveira e, org. III. Batista, Luís Eduardo, org.


Prefácio

Mameto N’Kisse Kaiyandewa

Na essência das tradições de matri-

Líderes religiosos disponibilizaram

zes africanas está a preservação a partir da

suas casas religiosas e assim iniciaram-

identidade, do pertencimento, da fé e da

-se as estratégias que nos proporcionaram

crença, buscando para a população negra

tratar, de forma aberta, questões ligadas a

e as comunidades tradicionais de Terreiro

vários temas de prevenção e educação nos

as inúmeras possibilidades de conviver em

ambientes de culto, cujo objetivo era man-

harmonia, com saúde, trabalho e educação,

ter diálogo produtivo entre pares, capaz

em família, junto da escola, primando pelo

de acertar positivamente na vida das pes-

desenvolvimento humano, contribuindo

soas onde a saúde sempre foi prioridade.

para discernir o bem do mal, que é a base

Assim, somente depois de exaustiva luta e

da atividade mental, espiritual e física do

dificuldade nos foi aberto espaços impor-

ser humano e que deve atuar sempre de

tantes, como no Conselho de Participação

olho na prevenção.

e Desenvolvimento da Comunidade Ne-

Essa filosofia naturalmente fez sur-

gra do Estado de São Paulo, permitindo-

gir vários grupos de líderes religiosos de

-nos ampliar o contato com vários atores,

matriz africana e simpatizantes com-

sacerdotes ou não, que fossem compro-

prometidos com projetos de apoio para

metidos com o ideal que demarcava a

desenvolver programas e projetos que

nossa luta.

democratizaram informações a cerca das

Um jovem líder negro, filho da divin-

questões gerais ligadas à cultura negra,

dade que se cobre de branco, dono do pilão

sem, contudo, modificar a evolução e o

e da cabaça de atin, foi reconhecido pelas

crescimento espiritual do indivíduo ou

autoridades religiosas antigas e mais no-

do coletivo. Esse processo possibilitou

vas, políticas e também do meio científico

avanços nunca antes vivenciados, o que

e, assim, novas portas abriram-se com cre-

muito nos orgulha.

dibilidade em prol de uma ação para o bem 7


maior da saúde, o que por fim fez surgir

vários sujeitos foram atores de fato e en-

assim o GVTR – Grupo de Valorização do

viaram seus esforços ao trabalho conjunto,

Trabalho em Rede. Na verdade, um grupo

que já naquela altura não limitava-se ao

para a valorização da vida plena e com uma

espaço único e exclusivo da comunidade

única preocupação: prevenção de doenças,

de alguns, mas potencializou a atuação de

como as sexualmente transmissíveis, a

muitos outros. E, assim, contribuímos com

exemplo da aids, conforme as necessidades

a consolidação do Sistema Único de Saúde

e a identidade do povo de santo.

brasileiro e o respeito às diferenças.

Jovem comprometido de maneira po-

Religiões afro-brasileiras, políticas de

sitiva, com posturas favoráveis ao povo de

saúde e a resposta à epidemia de aids não é

santo, promoveu um avanço significativo

apenas o produto central do GVTR, nem

na vida de sua comunidade e hoje, temos a

tão pouco a devolutiva de seus esforços em

alegria de ler, o resultado de suas andanças

nome da saúde pública e do desenvolvi-

em busca do direito a saúde e o respeito à

mento do SUS, é mais do que um livro, é

diversidade afro-religiosa. Nessa trajetória

um prêmio para todos nós.

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Apresentação

A Coordenação Estadual DST/AIDS-

especial os de matriz indígena e africana,

-SP durante os mais de 30 anos de epi-

muitas vezes incompreendidos pelos se-

demia trabalhou de forma conjunta na

guidores de religiões ocidentais. E mostra

construção de políticas públicas, tendo

como é possível integrar os diversos sabe-

nas diferentes parcerias a sustentabili-

res para promover o direito à saúde, atu-

dade necessária à resposta adequada . O

alizar conhecimentos e repensar práticas

diálogo com as tradições religiosas, em

respeitando-se a pluralidade de crenças.

especial com as de matriz africana, per-

Esta publicação conta a história de

mitiu ao longo desses anos construir es-

um grupo pioneiro no País, que luta pelo

tratégias conjuntas de prevenção às DST/

pleno exercício dos direitos humanos e

AIDS, sempre respeitando as especifici-

a promoção da saúde da população em

dades religiosas e culturais da população

geral, dentro dos princípios do Sistema

que frequenta os Terreiros.

Único de Saúde (SUS). Grupo esse que

Muito se investiu na construção de

encontrou um meio de integrar rituais e

redes, lideranças e multiplicadores nesse

crenças da cultura ancestral aos conheci-

campo, entre o governo, a sociedade civil

mentos da modernidade em prol de um

organizada e grupos religiosos. O resul-

bem comum: a saúde.

tado desses anos de trabalho encontra-se sistematizado nesta publicação. Este livro nos traz um panorama da

Dra. Maria Clara Gianna

riqueza cultural do povo brasileiro, do

Coordenação Estadual DST/AIDS-SP

sentido e significado de seus rituais, em

Secretaria de Estado da Saúde

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Apresentação dos autores

Celso Ricardo Monteiro Paula de Oliveira e Sousa Luís Eduardo Batista

Religiões afro-brasileiras, políticas de

de santo no período 2001–2011, os dez

saúde e a resposta à epidemia de aids registra

primeiros anos do GVTR, cuja cooperação

a resposta das comunidades tradicionais

mútua com o Programa Estadual de DST/

de Terreiro à epidemia de aids, que aqui é

AIDS da Secretaria de Estado da Saúde de

descrita como um processo de educação

São Paulo é uma marca traduzida agora

comunitária em saúde, participação popu-

nessa coletânea.

lar e controle social.

Ao mesmo tempo em que este livro

As contribuições dos grupos de reli-

historiciza ele também mostra experiên-

giosos, dentre eles o Grupo de Valorização

cias que podem ser reproduzidas por se-

do Trabalho em Rede, fundado em abril de

cretarias estaduais e municipais, como

2001, foram essenciais para a produção do

todos os outros sujeitos interessados no

conhecimento nos eixos direito à saúde

tema, para que assim possam obter sub-

e saúde da população negra que, por sua

sídios para seguir adiante no cotidiano de

vez, agregaram diferentes sujeitos no uni-

seu trabalho, promovendo ações eficazes e

verso dos movimentos sociais e em par-

eficientes para consolidar o sistema públi-

ticular do movimento negro, mas princi-

co de saúde na relação com a comunidade,

palmente na gestão, provendo atenção ao

promovendo a universalidade, a integrali-

eixo religiões afro-brasileiras e saúde, que

dade e a equidade preconizadas pelo SUS.

se tornou uma densa e conquistada linha

A importância da cultura nos concei-

de articulação política junto ao Sistema

tos de vida, saúde, doença e as singulari-

Único de Saúde.

dades das culturas nos convida a refletir

Religiões afro-brasileiras, políticas de

sobre como a tradição africana interage

saúde e a resposta à epidemia de aids con-

com o conhecimento da saúde pública.

figura-se aqui em uma devolutiva para a

Considerando que parte significativa da

sociedade, das ações realizadas pelo povo

população que pertence ao Terreiro, antes 11


de procurar o médico, vai se orientar com

aids e, dessa forma, ampliou e qualificou

o líder religioso..., o que, por conseguin-

o trabalho desenvolvido pelos Terreiros

te, possibilitou uma densa mobilização

de umbanda e candomblé. Ao discutir os

das religiões afro-brasileiras contra HIV e

rumos da reposta à epidemia de aids no

aids no Brasil, configurando aí uma notória

Brasil, o GVTR ampliou suas ações para a

participação dessas religiões na luta contra

saúde pública de tal maneira que a agenda

a aids.

governamental foi socializada, discutida,

Aprender, ensinar, reproduzir, fazer, trocar, movimentar e avaliar eram palavras

avaliada e monitorada pelo povo de santo de forma inovadora e consistente.

de ordem naquele cenário, o que logo foi

A Educação Permanente em saúde é

traduzido como ponto referencial para o

fator central para a promoção da equida-

desenvolvimento de redes comunitárias.

de na relação entre o Estado e as religiões

Atuar em rede foi a estratégia priorizada

afro-brasileiras e, se considerarmos que

para a construção de um mundo, onde a

educar é transformar as realidades e alte-

intolerância religiosa, a aids, o racismo, a

rar ainda a visão de mundo, acrescentando

homofobia, o machismo e o sexismo têm

elementos centrais à vida do educando,

presença marcante na construção social.

constataremos que a educação é uma fer-

Questões como essas vão sendo traduzi-

ramenta primordial para o combate à in-

das cuidadosamente, a cada artigo, bem

tolerância religiosa e ao racismo. Vale dizer

como a construção conjunta de políticas

ainda que a possibilidade de educar não se

públicas, reunindo os Terreiros e o Esta-

limita à organização de amplos e sofisti-

do. Assim, essas articulações, ganharam a

cados prédios, mas abarca uma variedade

sociedade brasileira, pois os diferentes su-

de tecnologias disponíveis além da sala de

jeitos passaram a investir em formação de

aula, como nos ensina Freire. Nesse caso o

multiplicadores de informação, a enfrentar

Terreiro poderia ser reconhecido como es-

juntos a intolerância religiosa e o racismo

paço de ensino e consequentemente pro-

institucional, juntos provocaram a revisão

motor de saúde, considerando a importân-

de conceitos tidos como definitivos; ini-

cia de uma saúde pública eficaz, com uma

ciaram amplo debate acerca da saúde da

gestão participativa e integralidade.

população negra, a execução das políticas

A saúde, por fim, não resolve o pro-

públicas e os inúmeros campos de atuação

blema da intolerância religiosa sozinha,

na área dos direitos humanos. Nesse ce-

mas pode alterar os processos de formação

nário o Programa Estadual de DST/AIDS

e educação permanente nessa perspectiva,

do Estado de São Paulo constituiu o Gru-

de forma que a Escola pode ser uma boa

po de Trabalho Aids e Religião (GT Religi-

parceira, sobretudo as Escolas Técnicas do

ões), uma resposta singular à epidemia da

SUS, contextualizando questões múltiplas, a

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exemplo da horizontalidade, as cooperações

do Trabalho em Rede durante os dez pri-

possíveis para garantir o direito à saúde.

meiros anos de sua fundação, bem como as

Por fim, Religiões afro-brasileiras, polí-

demais lições aprendidas pelo Brasil, reúne

ticas de saúde e a resposta à epidemia de aids

aspectos que vão do conceito de rede, que

é um passeio sobre o processo histórico

tem novamente o Terreiro como referen-

que trata das pontes entre os Terreiros e a

cial, perpassa pelas articulações políticas

República Federativa do Brasil em resposta

junto de diferentes movimentos sociais e

aos desafios contemporâneos da saúde pú-

departamentos de governo, mas nos indica

blica. É uma publicação cujo seus 20 capí-

os grandes desafios presentes no campo da

tulos buscam evidenciar as possíveis cone-

atenção à saúde, conectados às diferentes

xões entre os Terreiros e o Sistema Único de

nuanças dos direitos humanos no Brasil e

Saúde e explora as experiências de tal forma

suas releituras, provando-nos que os prin-

que é possível constatar a perfeita simbiose

cípios do SUS não podem atuar desarticu-

entre a saúde do corpo e a da alma, consi-

lados um do outro.

derando, as questões políticas e institucio-

Assim, com essas evidências é pos-

nais que permeiam essa discussão. Dessa

sível hoje falar sobre a conexão existente

forma a reflexão sobre as ações registradas

entre esses dois sistemas, razão desta obra,

aqui e as lições aprendidas em meio ao tra-

que é resultante de muito trabalho. Dese-

balho realizado pelo Grupo de Valorização

jamos a todas e a todos uma ótima leitura.

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SUMÁRIO

Prefácio....................................................................................................................................5 Mameto N’Kisse Kaiyandewa Apresentação..........................................................................................................................7 Maria Clara Gianna Apresentação dos autores.....................................................................................................9 Celso Ricardo Monteiro Paula de Oliveira e Sousa Luís Eduardo Batista

Religiões afro-brasileiras, políticas de saúde e a resposta à epidemia de aids .............17 Celso Ricardo Monteiro Deve um sistema de saúde pública levar em conta as diferenças existentes em sua sociedade? ...............................................................................................................27 Kabengele Munanga

Você reza?..............................................................................................................................35 Maria do Carmo Sales Monteiro Capacidade de se identificar e cuidado/acolhimento: princípios facilitadores do amadurecimento e organização subjetivos no Terreiro......................51 Marco Antônio Chagas Guimarães


Religiões afro-brasileiras e suas interfaces com o Sistema Único de Saúde. ..................65 José Marmo da Silva Mobilização de religiões afro-brasileiras contra HIV e aids no Brasil..........................73 Richard Parker Jonathan Garcia Miguel Muñoz-Laboy

A construção conjunta de políticas públicas entre as religiões de matriz africana, Estado e munícipios no Estado laico: aprendizado mútuo no enfrentamento das DST/AIDS...........................................................................................83 Paula de Oliveira e Sousa

Religiões afro-brasileiras e o campo da saúde: reflexões de um militante branco, médico e não iniciado............................................................................................89 István van Deursen Varga

Projeto Xirê – uma análise preliminar sobre prevenção às DST/AIDS nas comunidades tradicionais de Terreiro na cidade de São Paulo.....................................99 Celso Ricardo Monteiro

Piracicaba: diálogo entre o SUS e as comunidades tradicionais de Terreiro.............133 Maria Regina Teixeira Moisés Francisco Baldo Taglietta

O projeto Aprender Saúde – Humanização e Equidade em Saúde e o fortalecimento do controle social das políticas de saúde. ...........................................139 Deivison Mendes Faustino Celso Ricardo Monteiro

O perfil socioeconômico das comunidades tradicionais de Terreiro em São Paulo e Ferraz de Vasconcelos: análises e intervenções acerca do acesso a bens e serviços além da fé.................................................................................................151 Maria Cristina Silveira Prado Martins Celso Ricardo Monteiro


Religiões afro-brasileiras e saúde da população negra: experiências de gestão, movimentos sociais e comunidades tradicionais para a promoção da equidade..............................................................................................................................167 Maria Cristina Silveira Prado Martins

Religião de matriz africana e o SUS: promoção de saúde nos Terreiros do Rio Grande do Sul..............................................................................................................175 Babá Diba de Yemonjá

Educação escolar e a intolerância religiosa: uma reflexão a partir de marcos legais....................................................................................................................................185 Rosana Batista Monteiro

O Estado e as religiões afro-brasileiras: um estudo preliminar do processo histórico para além da saúde............................................................................................195 Celso Ricardo Monteiro Edson Eduardo Ramos da Silva

Horizontalidade e cooperação no trajeto percorrido pelas comunidades tradicionais de Terreiro e sua rede...................................................................................229 Celso Ricardo Monteiro

Candomblé e novos desafios: Terreiros, agências sociais e saúdes.............................239 Estélio Gomberg Ana Cristina de Souza Mandarino

Novos e velhos no candomblé de sempre......................................................................251 Rodnei William Eugênio Saúde no Terreiro dos quintais do Brasil: do acolhimento, humanização, integralidade e as possíveis conexões entre os Terreiros e o Sistema Único de Saúde..............................................................................................................................261 Celso Ricardo Monteiro



Religiões afro-brasileiras, políticas de saúde e a resposta à epidemia de aids

Introdução

Celso Ricardo Monteiro

Religiões afro-brasileiras, políticas de saúde e a resposta à epidemia de aids é uma publicação que surge a partir da ideia de papéis e competências no universo da saúde pública, no que tange às questões de direito à saúde e sua interface com o mundo espiritual-religioso que interfere no cotidiano das pessoas. Sabe-se que a perspectiva de um e de outro é diferente, mas o que se pretende é discursar a partir das necessidades em saúde e da expertise que têm os sacerdotes e sacerdotisas de religiões afro-brasileiras e seus seguidores, de forma que a relação com o sistema público de saúde nos aponte quais são os pontos nevrálgicos deste amplo universo que vem alterando, em alguns casos, a realidade do SUS, tal como as respostas do sistema às demandas apresentadas no Estado de São Paulo ao longo dos dez anos de atuação do Grupo de Valorização do Trabalho em Rede, uma organização não governamental fundada para tratar dessas questões intrinsicamente por quem mais tem interesse no tema. Partiu-se do princípio de que a laicidade e a intolerância religiosa se encontram e convergem nos corredores do serviço público, mas as diretrizes e as práticas em saúde nem sempre se inter-relacionam no processo de atenção, promoção e recuperação da saúde de indivíduos que levam consigo, para o âmbito do SUS, várias questões e aspectos que não são da competência do sistema, mas podem ser conectados. Conexão dos saberes é por vezes apontado nessa produção como uma estratégia central para o avanço da saúde pública, considerando não apenas as dificuldades, mas também as experiências obtidas neste mundo tão amplo. Aqui, teoria e prática se misturam à realidade do SUS, sobretudo porque são várias as dimensões e as práticas que permeiam o processo saúde-doença e cuidado. A presença


Religiões afro-brasileiras, políticas de saúde e a resposta à epidemia de aids

do Programa de DST/AIDS do SES/SP neste processo coletivo deve-se, portanto, à resposta do Estado às demandas apresentadas na linha do tempo em que essas articulações avançaram consideravelmente, à produção do conhecimento em saúde, de forma que os pesquisadores, gestores e profissionais de saúde, tal como todos os outros sujeitos interessados no tema possam agora, obter os subsídios necessários para seguir adiante, no cotidiano de seu trabalho promovendo ações eficazes e eficientes para consolidar o sistema público de saúde na relação com a comunidade, promovendo a universalidade, a integralidade e a equidade preconizadas pela legislação do SUS. O GVTR é uma articulação das comunidades tradicionais de Terreiro, cuja organização se iniciou na cidade de São Paulo em 1999 com a finalidade de responder, a partir desse grupo social, às questões de saúde pública e direitos humanos, trazendo à tona as questões de intolerância religiosa e a necessidade da promoção de uma cultura de paz e não violência, como questões centrais para a garantia dos direitos fundamentais do homem. Entendeu-se naquele momento que a religião não se sobrepõe ao Estado, laico, democrático e de direito, mas dialoga com toda a sociedade, a fim de adicionar valores e saberes para a garantia dos direitos e o desenvolvimento humano. Fundado oficialmente em abril de 2001 como Grupo de Voluntários do Trabalho Religioso, a equipe priorizou a epidemia de aids em sua agenda política por conta das inúmeras experiências vivenciadas no terreno da mortalidade e a presença das lideranças religiosas das tradições de matrizes africanas nesse contexto. Era preciso enfrentar o tema de forma que a cooperação entre a religião e a sociedade ampliada torna-se uma questão cultural e permanente. Aprender, ensinar, reproduzir, fazer, trocar, movimentar e avaliar eram palavras de ordem naquele cenário, o que logo foi traduzido como ponto referencial para o desenvolvimento de redes comunitárias. Estratégia essa que foi priorizada para a construção de um mundo, onde a intolerância religiosa, a aids, o racismo, a homofobia, o machismo e o sexismo já não fossem mais presentes. O grupo tornou-se modelo, uma referência entre as organizações da sociedade civil com expertise na área e, ao insistir no processo que se chamou de “construção de pontes”, ocupou inúmeras posições no cenário político da saúde no território nacional, a partir do investimento em formação de agentes públicos, multiplicadores de informação, negociações entre o Estado e as religiões afro-brasileiras, o enfrentamento a intolerância religiosa e o racismo, a revisão de conceitos tidos como definitivos, que se associavam à necessidade de um amplo debate acerca da saúde da população negra e inúmeros outros campos de atuação. Construiu, assim, uma resposta singular à epidemia de DST/AIDS e, dessa forma, ampliou e qualificou o trabalho desenvolvido pelos Terreiros de umbanda e candomblé. Ao discutir os rumos da reposta à epidemia de aids no Brasil, ampliou suas 20


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ações para a saúde pública de tal maneira que a agenda governamental foi socializada, discutida, avaliada e monitorada pelo povo de santo, de forma inovadora e consistente. Homenageado pelo então Programa Nacional de DST/AIDS, atual Departamento de DST/AIDS e Hepatites Virais do Ministério da Saúde, em dezembro de 2005, na ocasião do “Prêmio População Negra e Aids – O Brasil tem que viver sem preconceito” o denominado “Grupo de Valorização do Trabalho em Rede” investiu massivamente na construção e monitoramento de redes comunitárias destinadas à promoção, humanização e controle social das políticas de saúde a partir da formação de multiplicadores de informação. Nesse universo tornou-se uma das organizações da sociedade civil mais ativa na relação com o poder público em suas três esferas. Assim, as várias diretrizes ministeriais para o SUS chegaram à comunidade, de forma traduzida, o que facilitava o processo de acompanhamento e monitoramento das políticas públicas. Também no universo acadêmico as contribuições do grupo foram centrais para a produção do conhecimento nos eixos direito à saúde e saúde da população negra, que, por sua vez, agregaram diferentes sujeitos no universo dos movimentos sociais e em particular do movimento negro, mas principalmente na gestão, provendo atenção ao eixo religiões afro-brasileiras e saúde, que se tornou uma densa e conquistada linha de articulação política junto ao Sistema Único de Saúde. Religiões afro-brasileiras, políticas de saúde e a resposta à epidemia de aids configura-se aqui em uma devolutiva para a sociedade, das ações realizadas até o presente momento. No conjunto da obra reunimos conteúdos acerca da “construção, histórico, os princípios e as diretrizes do Sistema Único de Saúde”, conectando-os às necessidades em saúde da população do Estado de São Paulo que pertence ao conjunto de, em média, dez diferentes tradições de matrizes africanas aqui definidas inicialmente como tradições étnicas e, mais tarde, como nos conta o processo histórico em religiões universais. Nesse universo estão questões acerca da relação entre o Estado e a religião no contexto dos dez anos de fundação do GVTR, o que implica registrar e analisar a resposta das comunidades tradicionais de Terreiro à epidemia de DST/AIDS, que aqui é descrita como um processo de educação comunitária em saúde, participação popular e controle social. Sobre isso, conta-nos um dos autores que a fundação do GVTR deu-se em um cenário de negativas múltiplas e, assim, educação, saúde e cultura tornaram-se pontos centrais em várias agendas, resultando na criação de espaços de articulação em que mais tarde a relação entre o Estado e as religiões afro-brasileiras tornou-se parte desta nova fase da política que, conforme aprendido em experiências anteriores, como o Projeto Odoiyá na Abia, no final dos anos 1980, seria parte de um processo macropolítico que contribuiria para mudanças no cenário nacional, no que se inclui o diálogo com algumas das agências bilateriais do sistema ONU. 21


Religiões afro-brasileiras, políticas de saúde e a resposta à epidemia de aids

A gestão participativa do SUS foi também objeto de discussão desses diferentes sujeitos proporcionando amplo debate que, na experiência vivenciada em Suzano, mostrou-se como uma possiblidade de mudança a partir das necessidades em saúde que foram registradas pelo diagnóstico construído coletivamente, com religiosos, lideranças comunitárias, gestores, profissionais, pesquisadores e agentes comunitários de saúde. Os avanços, retrocessos, desafios, marcas e as avaliações desses projetos estão aqui capitaneados, a fim de que ao ler todos possam refletir sobre o desenvolvimento humano e individual das pessoas, na diversidade e suas singularidades, uma vez que na ponte Brasil-África foi possível aprender que o conceito, a educação, a promoção e a atenção à saúde variam gradativamente, sobretudo quando pensamos sobre a saúde do corpo e da alma no chamado mercado da fé, literalmente conectado à liberdade de fé e de crença no âmbito do SUS. Esses aspectos do debate estão contemplados nos trabalhos aqui relacionados com o objetivo de discutir a integralidade em saúde, considerando as experiências africanas e a contribuição das religiões afro-brasileiras para o desenvolvimento humano, o conceito e a garantia do direito à saúde. Sabe-se que saúde e doença já foram exploradas demasiadamente pela literatura e, muito recentemente, se considerarmos a história da ciência e sua importância na sociedade, constatou-se que a ausência ou a presença de agravante não era o suficiente para a definição do estado de saúde de um “paciente. A literatura nos informa ainda que as diferentes e inúmeras culturas contidas na diáspora africana lidam também com a presença da doença e que os sujeitos adoentados estão no centro da discussão, concepção essa que tira o sujeito em questão desse lugar de doente, para que ele seja sujeito de fato e de direito. Assim, a doença é tratada, o doente é sujeito e a saúde reestabelece a paz e a ordem e, inclusive, na relação entre esse paciente e seus ancestrais convida-nos a refletir sobre a saúde, a doença e o cuidado enquanto fatores tidos unicamente como científicos, além da presença ou ausência de antepassados nesse universo que, até então, apenas o médico e no máximo a enfermeira eram detentores de saber. Qual o lugar das lideranças religiosas, parteiras e benzedeiras neste universo que envolve a realidade das unidades de saúde, da atenção básica à alta complexidade? Saúde no Terreiro dos Quintais do Brasil: do Acolhimento, Humanização, Integralidade e as Possíveis Conexões entre os Terreiros e o Sistema Único de Saúde pressupõem uma perfeita harmonia entre a saúde do corpo e a da alma, considerando as questões políticas e institucionais que permeiam essa discussão. Dessa forma a reflexão sobre as ações registradas aqui e as lições aprendidas em meio ao trabalho realizado pelo Grupo de Valorização do Trabalho em Rede e a Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde, bem como as lições aprendidas, reúnem aspectos que vão do conceito de rede, que 22


Celso Ricardo Monteiro

tem novamente o Terreiro como referencial, perpassa pelas articulações políticas junto de diferentes movimentos sociais e departamentos de Governo, mas nos indica os grandes desafios presentes no campo da atenção à saúde, conectados às diferentes nuances dos direitos humanos no Brasil e suas releituras. Assim, os Terreiros, enquanto espaços de acolhimento e cuidados com a saúde, falam de acolhimento e aconselhamento, com a necessidade de uma postura de quem o faz, que deve estar associada de fato a certa neutralidade, capaz de contribuir com o avanço do outro e integrá-lo, de forma que ele transforme a sua situação em um estado de saúde, de ser e de estar, que seja suficientemente bom ou “bom o bastante”. Quais os mecanismos disponíveis para esse fim, no SUS e nas religiões afro-brasileiras? É possível conexão entre esses dois sistemas? Com esse princípio é fundamental avaliar esses possíveis modelos de atenção refletindo a partir da visão de mundo das tradições de matrizes africanas a demonização dos Terreiros e suas releituras na relação com a sociedade brasileira, pois o desenvolvimento das comunidades tradicionais de Terreiro ao longo do país associa-se a inúmeros fatores externos e internos a elas. Destaca-se a demonização dada à sua interferência na relação entre o Terreiro e a sociedade, alterando, assim, de forma negativa, a possibilidade de diálogo inter-religioso, na prática, para que assim tais medidas político-educativas alcancem a população de fato. Mas é fundamental a análise de aspectos outros, como é o caso da diversidade contida nessas tradições, seja no universo interno-político e hierárquico, seja nas inúmeras mudanças em curso, a partir, por exemplo, do recorte geracional. A nova e as antigas gerações de sacerdotes e sacerdotisas ocuparam lugares de destaque na relação com a sociedade brasileira, mas questiona-se, portanto, se elas seguiram caminhos diferentes e contraditórios para alimentar a defesa de suas tradições e, assim, contribuir para mudanças outras como o direito à saúde no Brasil. Em discussão está um fenômeno que tem sido chamado de “a reforma do candomblé do Brasil”, mas que começa na presença juvenil em lugares estratégicos como a condução dos sistemas e o grau de participação e controle. Questões como essas vão ainda abarcar eixos como a presença de Iemanjá, considerada a divindade “mãe das cabeças” e da maioria das divindades africanas cultuadas no Brasil, no que tange à saúde mental e à arte de cuidar, a partir de Winicott e, aqui, indica-se como um referencial inigualável para as questões da psicanálise, pois esquecemos que equilíbrio, atenção e promoção da saúde são fatores associados ao desenvolvimento da rede de atenção a que pertencemos e que essa rede deve, por sua vez, se retroalimentar, de forma que a sua arte de cuidar alcance as necessidades de cada sujeito, em sua plenitude, tal como no Terreiro. Ficou também para o segundo momento da história a ideia de que o outro é capaz e que essa capacidade é natural, está contida em sua essência. Em 23


Religiões afro-brasileiras, políticas de saúde e a resposta à epidemia de aids

contrapartida, aprendeu-se com as tradições de matrizes africanas praticadas no Brasil que Iemanjá, por exemplo, nos convida cotidianamente a refletir sobre o como é possível cuidar do outro, relingando a sua força vital a partir dos elementos que se tem disponíveis. A arte de cuidar, portanto, é intransferível, mas para garanti-la e subsidiá-la é preciso que haja ambiência, portanto, um “ambiente bom o bastante” para que as pessoas cheguem aos seus objetivos esperados. A pergunta não é mais o quê, mas sim, o como fazer? O pressuposto que alimenta esse debate, também em sala de aula, nos diz que a Educação pode ser uma ferramenta primordial para o combate à intolerância religiosa, se considerarmos que educar é transformar as realidades e alterar ainda a visão de mundo, acrescentando elementos centrais à vida do educando. Essa possiblidade nos traz percepções outras e alteram o nosso jeito de ser ou de estar. Educar é aqui, talvez, o melhor dos instrumentos de trabalho na busca pelo desenvolvimento de uma sociedade e, se pensarmos no contexto das diferentes cidades, as relações étnico-raciais e a intolerância religiosa, por exemplo, podem ser interessantes objetos de estudo para a educação comunitária e coletiva de professores, pais e alunos. Assim, é possível educar para o enfrentamento, inclusive de doenças variadas, como as que afetam diretamente a população negra brasileira, o que faz de educandos e educadores, sujeitos que se sentem parte desse processo de transformação, em vez apenas de ocupar esses lugares tão estratégicos. Vale dizer ainda que a possiblidade de educar não se limita à organização de amplos e sofisticados prédios, mas abarca uma variedade de tecnologias disponíveis inclusive para além da sala de aula, como nos ensina Freire. Experiências inovadoras no campo da educação em saúde, como é o caso de Piracicaba, que nasce na busca pelo estabelecimento de diálogos entre o SUS, as comunidades tradicionais de Terreiro e religiões outras nos mostram que a ideia de que a saúde é parte de um processo educativo – porém, as pessoas não conhecem o SUS, seu funcionamento e suas dinâmicas múltiplas e é preciso educá-las –, muitas vezes nos obriga conhecer e se adequar a diferentes realidades. Aquilo que então era desconhecido e estranho passa a ser um elemento a mais na busca pelo direito à saúde e na condução da gestão dos problemas que impactam diretamente o sistema de saúde local. Isso por si só amplia o conjunto de demandas contidas na condução do serviço público de saúde, mas a gestão eficaz, uma vez conduzida com a perspectiva da saúde para todos – universalidade na prática –, deve, por sua vez, levar em consideração fatores como a diversidade, as iniquidades contidas na relação entre os sujeitos de diferentes realidades, a importância das diferentes visões de mundo e as relações humanas que fazem parte desse universo. Provou-se que é possível garantir encaminhamentos e resolutividade capazes de corrigirem determinadas situações como a não acessibilidade e a promoção da equidade em saúde. O registro do processo 24


Celso Ricardo Monteiro

histórico, com as análises possíveis, documentando as experiências vivenciadas e a visão do SUS, nos faz pensar sobre quais as observações a serem feitas na gestão do direito à saúde, a partir dessa expertise e das análises apresentadas até aqui, bem como os resultados e percepções que a gestão municipal obteve, uma vez que essa foi uma ação sem diretriz técnica e política do Governo do Estado inicialmente. O convite, portanto, é para que façamos um passeio do técnico ao político, do educativo aos entraves, desde o primeiro momento dessas articulações, que inclusive gerou a institucionalização de um prêmio às experiências bem-sucedidas no terreno do desenvolvimento de ações em saúde, com a participação e o envolvimento contínuo de diferentes sujeitos, ante as suas necessidades e desafios. Tornar público essas experiências também foi uma estratégia para incentivar o desenvolvimento de novas tecnologias e possiblidades de intervenção rumo à garantia do direito à saúde integral de cada sujeito que acessou o Sistema Único de Saúde. Ao avançar nas questões relacionadas à universalidade, promoção e atenção à saúde, esta obra nos traz ainda um denso conjunto de informações teóricas e práticas acerca do matriarcado enquanto característica ímpar no mundo das tradições de matrizes africanas e as necessidades, posturas e avanços que as diferentes mulheres obtiveram na defesa do direito humano à saúde, pois essas comunidades são basicamente lideradas por mulheres, nem sempre de movimento social, mas sim ligadas à realidade de cada um dos seus seguidores. O matriarcado do candomblé, a postura do movimento feminista e o movimento de mulheres negras, enquanto diferentes instâncias da vida ultrapassaram sabidamente a barreira que foi imposta à ideia de lutas e bandeiras chamadas de “coisas de mulher”. Ainda assim o sexismo e o machismo enquanto componentes da intensa discussão sobre gênero chegou também ao conjunto de temas discutidos pelo candomblé e nem sempre, nos diz o processo, o diálogo com o SUS foi possível. Quando em 2005 o GVTR optou por conhecer mais a fundo o perfil socioeconômico das comunidades de Terreiro e suas questões de saúde, avaliou-se os questionamentos norteadores para a promoção do acesso a bens e serviços, a partir das comunidades assistidas e, assim, constatamos que as comunidades tradicionais de Terreiro compõem de fato o universo territorial em que estão inseridas, mas as necessidades básicas, para a atenção e promoção à saúde estão entre as pautas que perpassam a relação do Terreiro com a comunidade e as pessoas, intolerante e preconceituosas. As lideranças aprenderam com esse trabalho que as várias questões associadas ao perfil socioeconômico da população estão fortemente relacionadas, de forma negativa, ao acesso a bens e serviços, além da não resolutividade de seus problemas na busca pela garantia de seu direito à saúde. Tal perfil transformou-se, à época, um parâmetro para a discussão sobre os indicadores que ampliariam o debate na relação com o sagrado, uma vez aqui estão colocadas, entre 25


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outras, questões de âmbito espiritual e do desempenho político das lideranças religiosas na busca pelo bem-estar de seus adeptos. Importante destacar que muito do que se aprendeu aqui tem origem na resposta religiosa à epidemia de aids no Brasil, que mais tarde é ampliada para a avaliação do sistema público de saúde como já vimos aqui. A aids adentrou aos templos religiosos gerando o rompimento de barreiras importantes que, consequentemente, provocou posicionamentos de lideranças religiosas conservadoras no que tange não apenas ao uso de preservativo como forma de sexo seguro, mas também à adesão aos medicamentos antirretrovirais, chamados “coisa de Deus”, para assim eliminar toda e qualquer oferta de “cura divina”. Diferentes comunidades religiosas enviaram contribuições para o enfrentamento da epidemia e, com isso, marcaram a resposta brasileira. Esse histórico, que compõem atualmente, o amplo conjunto de produções científicas, reúne tradições religiosas de diferentes matizes, nos indica na contemporaneidade a necessidade de avanço e a mudança de novos paradigmas, em prevenção também com a participação das diferentes religiões afro-brasileiras, mas em um tom que difere das tradições cristãs em alguma medida. Mais uma vez a tradição, a modernidade, a cidadania e as questões de saúde nos ofertam uma ampla discussão. O recorte geracional é um fator importante na leitura sobre a democracia e a forma como as pessoas interpretam a vida e seu cotidiano. Jovens, adolescentes e seus mais velhos estão inseridos em um universo onde o “pensar” não condiz com a oferta de oportunidades e a busca pela solução de problemas básicos, mas também o direito de ser e de estar aliam-se aos inúmeros problemas correlacionados à cidadania plena e às implicações geradas no universo da saúde integral. Esses temas se inter-relacionam se considerarmos que os jovens estão inseridos em contextos políticos, por exemplo, que não existiam outrora, um deles é o lugar na hierarquia do Terreiro. Resta saber se de fato suas percepções e necessidades dialogam com suas representações e simbologias contemporâneas, pois no Terreiro a juventude é fator determinante exatamente para a continuação e manutenção da tradição, mas é preciso avançar no que diz respeito à juventude atual, sua religiosidade, seus sinais de autonomia, para além do ambiente religioso, tal como o impacto desses possíveis conflitos geracionais no direito à saúde. Como se lida com essas questões? Por fim, a diferença entre o discurso e a prática tornam-se alimento do fio condutor deste trabalho: a equidade e a excelência em gestão da saúde na perspectiva da humanização da saúde, com seus desafios, os avanços das políticas públicas e a educação permanente dos profissionais, pois valores, princípios, responsabilidades, processos de mobilização, recursos, bom uso do dinheiro público e a devolução dessas junções à sociedade compõem esse conjunto de elementos tão complexos que buscaram conectar o saber dos 26


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Terreiros com o saber do SUS. Assim, resta-nos a análise sobre as interfaces, a leitura do poder público, o como as negociações, os entraves e os resultados se deram na perspectiva das políticas públicas de saúde, pois gestão, clínica, política, acesso, acolhimento e inúmeros fatores fazem parte desse diálogo que buscou continuadamente humanizar os humanos. Destaca-se nesse campo a oportunidade ímpar de traduzir a política, refletir sobre as possíveis conexões entre ela e a visão de mundo dos Terreiros e a contribuição a partir de recomendações técnicas acerca do tema. Mais uma vez as ferramentas necessárias para a atenção e a humanização da saúde reuniram-se em torno do diálogo, a parceria e a relação estabelecida entre as comunidades e o sistema público, seja porque o ambiente hospitalar e toda a sua rede de cooperação local são universos considerados mais do que importantes para a atenção e a recuperação da saúde, seja porque é também nesse universo que vida e morte se encontram e dialogam com o mundo extra-SUS. Atenção é fator determinante na saúde das pessoas e, por sua vez, associa-se a experiências múltiplas e de origens diversas que congregam valores, princípios e práticas que, até então, não compõem o currículo dos profissionais da rede pública de saúde. Ainda assim, há relatos de que a intolerância religiosa e o proselitismo são elementos adicionais na gestão da unidade e no atendimento do usuário, acamado ou não. Várias iniciativas ao longo dos anos e em diferentes regiões do Brasil colecionaram resultados significativos na atenção à saúde, juntando esforços entre o SUS, as parteiras, benzedeiras e outros ministros de culto. Sabe-se também que o cenário favorece ou não a busca por essas parcerias e a resolutividade de problemas em torno da morte e do cuidado de um fiel específico. Com essa percepção, racismo, intolerância religiosa e saúde na região metropolitana de São Paulo tornaram-se tema vivenciado por organizações da sociedade civil de Santo André. Saúde da população negra transformou-se em política nacional, aprovada em Assembleia do Conselho Nacional de Saúde, pactuada na Comissão Tripartite e implantada por Estados e municípios. A produção científica também avançou se considerarmos os anos anteriores ao momento de sua implantação. Muitos dos documentos oficiais do Ministério da Saúde; o Saúde Brasil, por exemplo, nos brinda com números alarmantes, que antes eram ausentes por falta de informação. O embate se fez presente nas diferentes instâncias do Governo e nem sempre o poder público esteve apto a enfrentar e responder tais demandas, que vão desde o acesso à mortalidade de negros, vezes mais que a de brancos, além da mortalidade materna. O tema foi pauta de várias iniciativas governamentais e provocadas pela sociedade civil organizada e resultam dessas experiências a maior articulação, a criação de redes políticas importantes e publicações de boletins e informações capazes de levar para “a ponta” questões que não chegavam antes, inclusive na região do ABCD em São Paulo. 27


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O período 2008/2011 está aqui marcado pela implantação do Plano Estadual de Saúde, da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, pois, pela primeira vez, tratou do tema saúde da população negra como eixo para o seu desenvolvimento e, mais uma vez, com a contribuição teórica a partir dos especialistas da área. Essa é uma ferramenta importante de gestão que contou com um plano operativo para 2009. O plano condensava algumas metas e objetivos reais, alcançáveis, que alterariam a qualidade da atenção, o acesso aos serviços e aos insumos, a promoção da saúde com eficiência e gestão de excelência que o secretário da época tanto defendeu ao longo dos anos em que conduziu a pasta. Esses processos, que vão da construção do plano à sua avaliação, reúnem aspectos técnicos e políticos no diálogo com diferentes setores da sociedade. Os resultados esperados eram parte do Plano Operativo Anual (POA), que, por sua vez, era a ferramenta de apoio mais eficaz do plano como um todo. Tudo foi previsto, inclusive metodologicamente, e os diferentes cenários regionais dirigidos pelas Direções Regionais de Saúde deveriam, por fim, levar em consideração todos os aspectos que vão, inclusive, para além da epidemiologia. Assim, é importante revisitar essa experiência para refletir sobre o cenário da época e suas alterações, a condução do processo, as lições aprendidas e as recomendações que faríamos hoje para o avanço da promoção da equidade e a implementação da Política Nacional de Atenção à Saúde Integral da População Negra no Estado de São Paulo.

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Deve um sistema de saúde pública levar em conta as diferenças existentes em sua sociedade?

Kabengele Munanga1 O presente artigo condensa conteúdos de dois textos publicados em 1986 e 2007, respectivamente, na revista Carisma, Formação do Médico, vol. VII – nº 1 e 2, p. 11-16, intitulado “Doença e Cura nas Sociedades Negro-Africanas Tradicionais” e na revista Saúde e Sociedade, nº 16/2, de maio/ago, p. 13-15, intitulado “Saúde e Diversidade”. A questão central é mostrar a importância da cultura nos conceitos de vida, saúde, doença e cura nas sociedades não ocidentais, em particular nas sociedades da África subsaariana. Como caracterizar esses conceitos no contexto de um continente cultural tão diverso sem correr o risco de mutilar a singularidade de suas numerosas culturas e sociedades? Sabemos, portanto, a partir de dados etnográficos comparativos que, dentro dessa diversidade tão patente, há pontos comuns encontrados em todas as culturas negro-africanas, que permitem aos pesquisadores classificá-las como uma só civilização: a africanidade. É na base dessas linhas gerais de semelhanças, ou seja, da africanidade, que pretendemos considerar aqui alguns aspectos comuns da medicina negro-africana, em especial no que diz respeito aos acima aludidos.

Conceito e causas de doença Em culturas antropocêntricas e fortemente socializadas, isto é, onde tudo o que existe: os seres, objetos animados e inanimados, a natureza e suas contradições, o mundo vegetal, animal, mineral, etc., gravita em torno do ser humano e da sociedade, sem os quais

1 Professor titular do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo.


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não teriam sentido, a doença tem certamente sua origem no próprio humano e na sua cultura e sociedade. De outro modo, a doença jamais será considerada como natural, mas sim humana e cultural, tendo no próprio ser humano e sua cultura a explicação primeira e fundamental. Isso remete a uma visão holística da doença, na qual o espírito e o corpo fazem parte do mesmo universo telúrico inseparável. Nessa linha de pensamento, considerando sempre o Ser e sua cultura ou sociedade como referência, podemos reduzir as principais causas de doenças nessas sociedades a apenas três tipos: a) a causa da doença pode ser uma terceira pessoa que, por motivo de inveja ou de vingança, contrata os serviços de um especialista em maldades (um feiticeiro ou um comedor de duplos ou almas dos outros). O feiticeiro ou a feiticeira é uma pessoa iniciada que conhece e domina as forças da natureza que pode captar e canalizar em forma de energia negativa que, dirigida contra alguém, o torne doente ou o mate; b) a causa pode ser a própria vítima, ou seja, o próprio doente que, conscientemente ou não, transgrediu as normas do grupo, violou um tabu, ofendeu os espíritos da família, etc. Nesse sentido, a doença é apenas a consequência de uma falta cometida pela própria vítima e se expressa como aviso prévio e punição; c) os deuses, os espíritos da família, os ancestrais podem, em ausência de cultos que esperam dos vivos, ou, no caso de violação dos interditos por esses últimos (negligência, desrespeito das normas tradicionais), castigar a sociedade mandando uma doença ao responsável pela falta. Entraria, nesse terceiro caso, o Deus único ou Ser supremo, conhecido em todas as culturas negro-africanas. É claro que não se trata aqui do Deus único no sentido cristão ou islâmico, mas sim no sentido negro-africano. Em princípio, esse Deus desempenha um papel centralizador em todas as situações de doença, de vida e de morte. De modo geral, a doença atinge seu alvo só quando aceita por Ele. No caso de doenças e mortes das pessoas idosas, diz-se que esse Deus as chama no momento em que chega ao fim seu contrato de vida. Nos três casos acima descritos, como nas práticas terapêuticas a serem analisadas em seguida, as causas naturais das doenças (por ex.: alimentação insuficiente, excesso de frio, acidente, mordida, agentes patogênicos diversos, etc.) não são totalmente ignoradas ou desconhecidas, mas são reduzidas a causas condicionantes. Exemplo: quando uma pessoa tem um abscesso intramuscular, vê-se no abscesso uma materialização ou manifestação física da doença. Mas não se acredita que o abscesso ter-se-ia formado e atacado esse homem, em particular, sem a intervenção de uma força exterior: um feiticeiro, um ancestral, a própria vítima. Se alguém se queima com água quente, entende-se por aí a causa imediata e sensível da queimadura. 30


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No entanto, o acidente não teria acontecido sem a intervenção de uma terceira força capaz de manipular a energia vital circulante. Suponhamos que o indivíduo “A” fique doente e, após investigação nos laboratórios médico-científicos, descobre-se que se trata de tuberculose, isto é, de micróbios. O indivíduo “A” e sua família podem até admitir que foi o bacilo de Koch que originou a doença, mas farão a seguinte observação: “A” é o único doente na família ou no grupo e isso deve ter uma razão; “A” foi procurado e achado pelo malefício enviado pelo indivíduo “B”. Em outros termos, as sociedades negro-africanas não desconhecem as causas naturais, materiais ou fisiológicas das doenças. Mas suas buscas, suas explicações começam justamente por onde termina a explicação científica, situando as causas reais e verdadeiras de doenças no domínio social e cultural, sendo as causas científicas apenas consideradas como materialização e meios escolhidos para manifestar a doença. Não se coloca a questão “Como aconteceu” que o cientista faria, mas sim a questão “Por que só este indivíduo e não o outro”. Em culturas fortemente socializadas os temas de ordem social são os que aparecem em primeiro plano. Assim, a inveja, o ciúme e a vingança não devem ser entendidos limitativamente no sentido ocidental, pois, nas sociedades não construídas na base de classes sociais, a inveja é um sentimento igualador e democratizante, enquanto a vingança expressa uma frustração justificada ou não perante a sociedade. Apesar de sua origem social, a doença não deixa de ser considerada como desordem por excelência, pois cria um desequilíbrio na estrutura emocional do grupo e de seus membros e nos processos de ajustamentos pessoais e sociais. Ela é vivida antes como desordem e má força, às vezes personificada (o curandeiro se dirige diretamente a ela no momento da cura), às vezes considerada como elemento estranho (pedrinha, objeto qualquer, presença de um espírito que persegue, etc.). A doença é também uma agressão e uma intenção. Enquanto agressão, ela se situa ao lado da violência, causando sofrimentos que podem levar até à morte. A ameaça de morte atinge todos os membros do grupo do doente que de um jeito ou de outro, passivos ou ativos, são envolvidos pela violência. Enquanto intenção, a doença constitui o meio pelo qual os deuses, os ancestrais, os espíritos do grupo se manifestam aos homens que eles querem punir (doença-sanção) ou escolher (doença-eleição). Corpo estranho, má força, desordem intencional, a doença é sempre objeto de manipulação de uma consciência pessoal, de um ser humano, sem dúvida, de um feiticeiro, de um mágico, de uma divindade personificada. Por isso, quando se trata quer do diagnóstico quer da cura, só o desdobramento de uma cadeia de significados, à qual aderem a vítima (o doente) e os membros de seu grupo, pode oferecer soluções eficazes. 31


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Medidas e técnicas preventivas As medidas e técnicas preventivas atuam em dois níveis: no profano e no mágico-religioso.

Em nível profano São considerados como fatores favoráveis ao equilíbrio mental e orgânico, entre outros, uma alimentação sadia, higiene, atividade normal e inserção conveniente do meio.

Em nível mágico-religioso Não desobedecer às tradições ancestrais; respeitar e obedecer aos mais velhos, que são garantia da ordem social; seguir escrupulosamente os interditos, as preces e encantações; submeter-se periodicamente aos ritos sacrificiais; multiplicar os amuletos protetores contra a maldade, o mau olhar, etc. São, entre outras, as preocupações que se deve tomar para não suscitar a vingança dos espíritos e a cólera dos homens. As festas leigas e principalmente religiosas funcionam como válvulas de segurança pacificante e libertadoras das pulsões há muito tempo contidas e, nesse sentido, são também preventivas e curativas. Nessas festas, os indivíduos dançam, cantam, bebem e comem mais do que o normal e, às vezes, durante muitos dias. Todas as questões que tocam à vida coletiva (casamento, circuncisão, funeral, eleição de chefe, etc.) são motivos de longas discussões. O exutório verbal constitui aqui a verdadeira válvula de segurança, além da eficiência do rito e, sobretudo, das condutas simbólicas.

As técnicas de cura e a cura propriamente dita Dependendo do tipo e da gravidade da doença, da exigência do curandeiro, etc., a terapêutica se resume a três dimensões ou níveis de ação: 1º) Uma ação médico-mágica: na qual entram, entre outros, poção, fumigação, fricção, intervenções cirúrgicas, regime alimentar. Em nível puramente farmacológico, essas práticas médicas exigem um notável conhecimento do poder das plantas. Mas elas não funcionam sozinhas, pois misturam-se ações mágicas como imolações, oferendas, palavras secretas, fórmulas abracadabrantes, cenas de extração de doenças sob a forma de objetos (pedrinhas, insetos, espinhas, transferência da doença para uma planta ou animal).

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2º) Uma ação psicomoral: o doente deve confessar pública e integralmente seus erros perante a sociedade para merecer sua integração no grupo e o perdão dos ancestrais, guardiões da ordem social. Depois, dará as oferendas e os sacrifícios antes de receber a purificação. 3º) Uma ação religiosa: prolongando a ação anterior, deve haver um rito sacrificial caracterizado por uma refeição coletiva, símbolo da união reencontrada. O adivinho intervém cada vez que a natureza do distúrbio e sua origem ficam obscuras ou desconhecidas. A sua intervenção é no sentido de provocar a confissão do próprio paciente ou de revelar através do transe o nome do ancestral, do feiticeiro ou do espírito que habita no corpo do paciente. Afinal, trata-se de um jogo complexo de relações constituindo um drama ritual do qual participam os deuses, os ancestrais, o próprio doente e seus parentes (sua família), a linhagem, a aldeia e os mediadores por excelência, que são os terapeutas ou mestres de cerimônia que, pela virtude do verbo, reconciliam o doente com seus ancestrais. Vítima de uma agressão provinda de forças estranhas, o doente encontra-se um pouco à margem da sociedade. O grupo inteiro se sente então responsável e assume a doença que sofre um de seus membros. Tanto para garantir a sua segurança, pois o mal se mostra contagioso, quanto para reintegrar o paciente na comunidade, importa colocar em marcha, atitudes altamente seguradoras. Enfim, é preciso salientar o lugar importante ocupado por duas técnicas-chave: a técnica de corpo (danças psicoterapêuticas, carícias, fricções, relaxações, danças específicas, atitudes escolhidas, etc.) e a simbólica. A cada nível da conduta terapêutica encontra-se uma simbólica ora pensada (papel dos números, das cores, dos animais, das formas dos objetos utilizados, das palavras pronunciadas), ora executada (atitudes no momento da dança, sepultura ritual, extração de objeto-doença sob a forma de pedrinha, raiz, espinha, etc.). Trata-se, sempre, não apenas de manter escondidos alguns segredos por meio do exoterismo, mas também e principalmente de sugerir, pela derivação do imaginário, o jogo das forças invisíveis (agarrar as forças subconscientes e inconscientes e assim ajudá-las a se manifestarem) e de expressar publicamente a derrota das forças do mal (isto é, sublinhar a derrota da doença). Tais são algumas das características principais que apresentam as concepções negro-africanas tradicionais sobre as doenças e suas curas. Sem dúvida, essas práticas pouco têm a ver com as das sociedades modernas. Algumas linhas gerais nos permitem caracterizá-las: 33


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• a concepção dinâmica da doença; • o lugar que ocupam o corpo e os mecanismos inconscientes na terapia; • o aspecto social ou coletivo da cura; • a concepção sintética da pessoa na qual o espírito e o corpo, o indivíduo e a pessoa são inseparáveis do arredor telúrico. Um dos graves erros (no meu ponto de vista) da medicina dita moderna é o de ter considerado como anticientíficas e contra o progresso as outras formas de pensamento médico, em vez de encontrar nelas uma fonte de enriquecimento e de complementaridade. Uma medicina que recusa os fundamentos culturais do povo no qual atua é como uma economia que despreza as riquezas naturais do meio ambiente e privilegia o mercado externo em detrimento do mercado interno. Estamos mal-acostumados com essa abordagem científica ocidental que consiste em considerar o tradicional como sempre oposto ao moderno. Visão dualista e maniqueísta que nem sempre corresponde à realidade. O que há de contra o progresso no caso de uma pessoa que, antes de sofrer uma operação cirúrgica, vai à Igreja para rezar para seu Santo ou seu Deus e, no caso de outra, que volta à sua aldeia para conciliar-se com seus ancestrais? Não é possível pensar a humanidade sem crenças e sem religiões, como é impossível conceber as medicinas humanas de qualquer origem sem um pano de fundo fetichista e mágico-religioso: basta olhar as nossas realidades cotidianas. Em nossas sociedades contemporâneas, os sistemas de saúde não devem se dirigir a um único mundo moderno e universal. As diversidades culturais onde interferem as diferenças religiosas, educativas, étnicas; as diferenças de gênero, de idade, de classes sociais; as diferenças somáticas, regionais e tantas outras colocam novamente os sistemas de saúde e a medicina moderna diante de um universo plural e multifacetado que exige dela atenções e olhares diferenciados. As propostas de intervenção, os projetos e programas de saúde devem ser diversificados e diferenciados. Apesar de a modernidade ser a mesma, ela não pode em prática ignorar as diferenças, as desigualdades e iniquidades existentes nas sociedades contemporâneas. Da mesma maneira que uma campanha preventiva contra aids nas populações africanas não pode ignorar a concepção africana da doença, a mesma campanha na sociedade brasileira não pode ignorar a classe social, a educação das pessoas, a faixa etária e o gênero. Não pode ignorar a religião das pessoas a que é dirigida. Se a mesma campanha for organizada nos países ocidentais mais conscientizados e mais alertados e também culturalmente diferentes dos africanos e dos brasileiros, creio que os elementos do discurso e os conceitos seriam também articulados diferentemente. Em que adiantaria uma campanha de educação alimentar que propõe mudanças com base 34


Kabengele Munanga

nos alimentos que fazem parte dos tabus alimentares de uma sociedade? Como poderíamos falar da saúde da mulher e de seus direitos sociais e reprodutivos simplesmente em termos gerais sem diferenciá-la em termos de classes sociais, do nível de escolaridade, sem esquecer as interferências de sua religião. Numa sociedade como a brasileira, onde o imaginário racista perpassa consciente e inconscientemente por todas as relações, incluídas as relações entre médicos e pacientes, não deveríamos, quando falamos da saúde da mulher e da saúde reprodutiva, nivelar as mulheres da burguesia e da classe média e pobres de todas as cores; não deveríamos deixar de dar uma atenção especial às mulheres indígenas e negras mais fragilizadas e duplamente vítimas de discriminação econômica e racial. Sabemos também que alguns tipos de doenças, por questões sociais e até mesmo genéticas, abatem-se com mais frequência e mais incidência sobre populações negra e, ou, indígena, do que sobre a população branca e vice-versa. É o caso notadamente da anemia falciforme que, embora não sirva mais como marcador genético e não pode mais ser classificada como doença racial, pois pode ser encontrada com menos frequência nas populações não negras, é certamente uma doença genética que incide mais e principalmente sobre as populações da África subsaariana e seus descendentes da diáspora. Deveríamos deixar de dispensar a atenção sobre essa doença com relação à população afro-descendente, vítima potencial mais atingida que a população branca? Ao fazer isso estaríamos racializando o Brasil, como pensam alguns estudiosos? Num universo plural como o brasileiro, certos segmentos da população, como a população negra, indígena e comunidades tradicionais como as quilombolas e outras, as mulheres indígenas e negras, as classes sociais menos abastecidas economicamente e as populações menos escolarizadas, deveriam receber um tratamento diferenciado em termos de políticas de saúde e uma atenção especial da parte dos profissionais envolvidos com a saúde da população. Se perante a lei somos todos iguais, deveríamos substancial e materialmente receber tratamentos diferenciados, de acordo com nossas especificidades e particularidades, de acordo com nossas diferenças de gênero, de “raça”, de classe social, de idade, de cultura e educação. Uma sociedade democrática é aquela onde suas diversidades são equitativamente representadas em todos os setores da vida nacional, inclusive no sistema da saúde pública.

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Você reza?

Maria do Carmo Sales Monteiro1 “O bater dos tambores sobe de tom e é tão forte como um despertar para a guerra. Os deuses africanos são deuses da vibração, do som e do movimento e só se manifestam ao som da música guerreira... Ninguém resiste ao toque mágico do tambor e todos mergulham na dança dos espíritos” (Chiziane, 2006).2

Passei um tempo da minha vida trabalhando em Moçambique, na África, um tempo muito curto, mas que marcou profundamente minha forma de ver o mundo. Confirmou e solidificou minhas ideias sobre o racismo e a forma como ele cruelmente influi em todas as nossas relações na sociedade. Não sou socióloga nem historiadora, portanto, não pretendo explicar os fenômenos com os quais me deparei sobre nenhum ponto de vista acadêmico, mas ousarei discorrer sobre o meu entendimento (à luz de umas poucas leituras) da questão da religião e sua relação com a saúde no contexto de uma sociedade africana a partir de uma vivência que considero muito curta enquanto duração temporal, mas muito profunda enquanto experiência espiritual. Vou partir de uma cena que se repetiu muitas vezes nos primeiros meses em que estive em Moçambique. No início do meu trabalho me propus a estar como mera observadora, aprendendo com aquelas corajosas mulheres, profissionais da enfermagem, como resolviam seus problemas do dia a dia. Sentava-me numa cadeira ao lado da enfermeira e a(o) paciente sentava-se em frente, com uma enorme mesa nos separando. A sala era um típico consultório de ginecologia, cheio de equipamentos, maca, armário, mesas, baldes... Estávamos em algum mês do início de 2006, o local era um serviço de saúde de uma ci-

1 Enfermeira da Divisão de Educação em Saúde da Escola Municipal de Saúde da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo. Contatos: carmoenf@superig.com.br. 2 Paulina Chiziane é uma das maiores romancistas moçambicanas. Seu romance O sétimo juramento conta, de forma visceral, as difíceis relações sociais na pós-independência, fala nas tradições e na convivência entre curandeiros e feiticeiros em meio ao processo de “modernização” do país.


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dade de Moçambique, na África. Estava me familiarizando com as fichas de atendimento e lá encontrei uma informação interessante em uma das fichas de identificação, exceção à praxe: sexo, idade, escolaridade, profissão, endereço de moradia, tinha também religião! Pergunta fechada com opções, das quais não me lembro muito bem, mas creio que eram: cristã, mulçumana, hindu, tradicionais e outras. Não vi em nenhuma das estatísticas da saúde a compilação e análise dessa informação, mas lá estava a pergunta. Para obter a informação a enfermeira não perguntava qual a religião, ela perguntava: você reza? Demorei alguns meses para entender o significado dessa pergunta e levei alguns anos para perceber a profundidade desse simples detalhe. Nesse texto quero compartilhar minhas reflexões sobre essa questão.

Religião e etnocentrismo

“... Ser curandeiro é desprestigiante nas nossas mentes alienadas. É invocar conhecimentos e tradições que se pretendem banidas desde os tempos da inquisição europeia. É resgatar o ser e o saber de um povo desprezado. É dominar o conhecimento sobre a vida e sobre a morte. É ser procurado às escondidas por pessoas que recorrem às raízes do seu ser quando a vida aperta” (Chiziane, 2006).

Os conceitos básicos de religião3 e até mesmo o senso comum remetem à ideia de que religião tem a ver com a cultura e crenças que estabelecem uma forma de as pessoas se relacionarem com o sobrenatural, o mundo espiritual. A religião, de acordo com a cultura em que se desenvolve, cria rituais baseados no seu modo de ver e explicar o mundo, tem caráter normativo (moral e de comportamento) e estabelece as explicações sobre o mundo. No modo de ver ocidental, a religião se constitui como instituição, que ocupa um lugar na ordem social, mas suas regras são apenas para seus adeptos. Na nossa sociedade escolhemos a religião, podemos mudar de religião, podemos até não ter religião nenhuma. Por sermos uma sociedade racista e etnocêntrica, vemos as religiões da mesma forma. O etnocentrismo (CASHMORE, 2000) que estrutura a sociedade faz com que se solidifiquem valores preconceituosos e práticas discriminatórias que privilegiam as religiões ocidentais cristãs propondo-as como modelo e reduzindo as demais à insignificância. Essas práticas etnocêntricas estão ligadas ao poder, faz com que os valores, costumes

3 O que é religião: http://pt.wikipedia.org/wiki/Religi%C3%A3o. Acessado em 3/10/11.

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e interesses sejam hegemônicos em detrimento das demais religiões. Por essa razão as relações da nossa sociedade com as religiões de matriz africana são dúbias e tensas, ao mesmo tempo em que fazem parte intrínseca da cultura nacional, são também rejeitadas e marginalizadas pelo conjunto da sociedade. Para as comunidades africanas crença e organização social estão intimamente ligadas, portanto, a religião define como o mundo é e estabelece a postura que a pessoa deverá ter ao longo da sua vida, estabelece um modo de sentir, viver e agir. Tudo mergulha no sagrado e só tem sentido no âmbito das práticas religiosas, onde se encontra o indivíduo aí está a religião. Toda a cultura africana é perpassada pela religião, não há dualismos, o corpo não é esquecido em favor do espírito (OLIVEIRA, 2002). Poderíamos deduzir então que as relações da sociedade em Moçambique com as religiões seriam diferentes das que encontramos aqui no Brasil, pois lá existem centenas de etnias, que são a maioria do povo. Nesse caso, as religiões de matriz africana devem ter um peso maior, ser mais respeitadas e não deveriam estar de modo algum em posição de marginalização. No entanto, racismo e etnocentrismo estão presentes nas relações religiosas na África de forma igualmente perniciosa e devastadora. A primeira coisa que me chamou a atenção foram as alternativas na ficha em relação ao quesito religião. Onde estavam nomeadas as religiões da África? Estavam no item “tradicionais”. Perguntei para a enfermeira quais eram os nomes das religiões tradicionais, se eram muitas em quantidade e se eram muito diferentes entre si. Ela me olhou de forma surpresa, não entendeu minha pergunta. Em relação à pergunta “você reza?” se respondessem que sim, então a enfermeira perguntava qual igreja, caso a resposta fosse não ela assinalava o item “tradicionais”. Ela também perguntava “você vai ao curandeiro?” ou então “você toma remédios tradicionais?” As respostas eram mais interessantes ainda, em relação a frequentar o curandeiro a maioria dizia que não (geralmente de cabeça baixa, olhando para o chão e balançando a cabeça negativamente), mas vários diziam tomar medicamentos tradicionais, então, levantavam a cabeça e olhavam rapidamente para a enfermeira. Na verdade quem “reza” e quem não “reza” estabelece a primeira distinção no campo religioso. Quem não reza continua no mundo da “tradição” dos “curandeiros” (madzinganga). Entre os que rezam há uma divisão fundamental entre cristãos e mulçumanos, são mundos a parte e mutuamente estranhos (FRY, 2000). Em diversos momentos, não só durante os atendimentos, mas na convivência com os moradores das cidades, eu percebi esse movimento dúbio, muitos falavam com vergonha sobre os curandeiros, a maioria não falava nada sobre religião. Em outros momentos falavam com orgulho da chamada medicina tradicional, onde, de certa forma, se salvaguardou a prática dos curandeiros. Levei algum tempo para perceber que os rituais 39


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religiosos que caracterizam a preservação cultural das diversas etnias estão dispersos nos rituais de cura dos curandeiros. Infelizmente não sou nenhuma especialista para poder falar sobre esse assunto com a propriedade de um antropólogo, mas me foi possível perceber com o coração como essa questão de ser ou não ser, frequentar ou não frequentar curandeiros (as) é uma questão central na vida dos moçambicanos. Até certo ponto ela define seu lugar na sociedade, sua maneira de ver o mundo e seu possível destino. Os (as) curandeiros (as) são escolhidos (as) quando crianças, por apresentarem sensibilidade e percepção para o mundo espiritual e por carregarem o espírito de algum ancestral que lhes guiará os caminhos como curandeiros. Essas pessoas são encaminhadas para escolas especiais, onde desenvolvem suas habilidades. Também é possível “comprar espíritos” de um verdadeiro curandeiro, esse fenômeno tem se observado com maior intensidade nas grandes cidades nas últimas décadas com a profunda desagregação social e familiar que Moçambique sofreu e tem sofrido. Ser um curandeiro é uma posição dúbia, pois também é considerada de prestígio, embora a maioria deles não se revele e quem os procura não faça alarde sobre isso. Assim também é aqui no Brasil em relação às religiões de matriz africana, “as pessoas procuram o pai de santo quando a coisa aperta”, mas não se declaram frequentadoras nem crentes. Também existem os feiticeiros... Desses, pouco se fala com estrangeiros. Algumas coisas me foram reveladas por amizade e confiança e, portanto, não as contarei aqui. Creio que basta dizer que pouca gente gosta de feiticeiros, mas muitos os respeitam e se necessário recorrem a eles. A prática da feitiçaria é proibida pelos anciões na maioria das aldeias. A formação de um feiticeiro é secreta e bem mais complexa, exige muitos sacrifícios. A promessa é que vale a pena enfrentar tais sacrifícios pelo poder que podem desenvolver... “e ninguém duvide do que são capazes, pois já vimos coisas de arrepiar...” (frases corriqueiras que ouvi ao conversar com a população). Feiticeiros e feitiçaria têm sido combatidos há séculos em Moçambique e em outros países da África. Há uma profunda diferença entre ser curandeiro e ser feiticeiro, mas ambos foram perseguidos. Na época colonial os portugueses, particularmente a igreja católica, engendraram forte perseguição aos feiticeiros. Após 1975, com a independência, o projeto socialista procurou solapar as instituições tradicionais (que incluía feiticeiros e curandeiros) no sentido de criar o “homem novo” em uma “sociedade nova”. Igualmente pretendiam converter os africanos a uma cultura europeia sobre a ótica socialista (FRY, 2000). No romance de Paulina Chiziane – O sétimo juramento – o personagem David é um dirigente de uma indústria estatal, ex-combatente e corrupto que num momento de 40


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crise procura um curandeiro. Ao fazer isso recorda que como militante ordenou muitos incêndios de lugares de culto “... queimando ndombas, mutundos, magonas... para libertar a terra dos adoradores das trevas. Mergulha num remorso sem fim. Pensa em si. Que seria de minha vida agora, se os adivinhos e curandeiros tivessem desaparecidos da superfície da terra?...” (CHIZIANE, 2006). Mas David torna-se um feiticeiro, ambiciona mais poder e faz qualquer coisa para alcançar seus desejos, é seu filho Clemente, que é um curandeiro, que o enfrenta e o livra da feitiçaria. De certa forma feitiço parece estar sempre ligado a coisas do mal, e o curandeirismo está ligado ao bem, pois envolve a cura dos males. Acredito que essa cisão entre feiticeiros e curandeiros aconteceu devido à invasão europeia e ao sincretismo religioso, pois não faz muito sentido quando consideramos que as religiões africanas não são dualistas. Pode parecer difícil entender como um socialista militante pode se tornar feiticeiro no período da pós-independência, em plena revolução socialista, em meio à forte campanha contra as tradições africanas, mas, ao que tudo indica esse não é um fato incomum em Moçambique. Aqui no Brasil também podemos nos deparar com situações semelhantes, as pessoas transitam entre o mundo da razão e o misticismo religioso corriqueiramente. Outro exemplo desse mundo complexo, navegando entre o sagrado e a ordem revolucionária aparece na obra de Jorge Dick – As vozes do Kwama. São relatos verídicos de passagens antes e pós-independência de Moçambique. No capítulo 14 – Há feiticeiros no Alto Maé –, conta que um destacado militante, camarada Gabriel, após a independência optou por ser curandeiro, relata os motivos de tal fato e como foi por eles preparado, aceito e desprezado pelo povo. “Gabriel foi uma das vítimas das bruxas da zona. Mas com o tempo se vira também forçado a aprender, embora isso violasse a doutrina revolucionária em vigor, pois o feitiço apenas ajudava o atraso da revolução... já que estava em vigor o Abaixo o feitiço, o obscurantismo, slogans em voga durante os dez anos de guerra.” Gabriel é perseguido, muda de aldeia, é preso e por fim um pastor brasileiro que não “brincou” em serviço “expulsa o espírito” que ele recebia. Por fim, livre dos “maus espíritos”, ele passa a trabalhar num escritório de atendimento a aposentados a serviço do país! (DICK, 2006). Gabriel passou de militante a vítima de feitiço, foi salvo pelos curandeiros, que viram nele um espírito de cura que ele precisava desenvolver. Por certo tempo Gabriel faz sucesso como curandeiro, mas depois é perseguido pela própria população que o havia acolhido, pois atribuem a ele algumas mortes e “coisas malfeitas”. Primeiro o Estado intervém e ele é preso, mas essa solução foi um fracasso, pois Gabriel continua com o “espírito”. Quem deu conta de resolver a questão? O exorcismo cristão praticado por um pastor estrangeiro, um pastor brasileiro! Aliás, uma das coisas que mais me chamou a atenção quando estive em Moçambique foi a força 41


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das igrejas evangélicas brasileiras na região, que crescem a todo o vapor em todas as capitais do país. Atualmente a feitiçaria continua sendo combatida, há sempre quem fale de um lado positivo dos feiticeiros, mas a maioria das pessoas com quem conversei se expressa com termos de censura à feitiçaria. Percebi sentimentos como vergonha, raiva, medo, asco, curiosidade e, apesar de tudo, respeito. Os feiticeiros estão associados a práticas que envolvem uso de órgãos humanos e sacrifícios com animais. Dizem que o feiticeiro faz primeiro para ele mesmo, ou seja, quem se desenvolve para ser feiticeiro o faz para procurar poder, riqueza ou vingança. Ouvi várias histórias semelhantes a essas do Gabriel e do David, histórias de luta contra o feitiço, histórias de pessoas que se encontram no curandeirismo e assumem um papel de destaque como praticantes de medicina tradicional, histórias de pessoas que “são salvas” do feitiço e do curandeirismo pelo exorcismo cristão. Ouvi as histórias da boca dos moçambicanos e percebi em muitos desses relatos o preconceito, o racismo e a intolerância religiosa. Eis uma das consequências mais cruéis da dominação a quem servem o preconceito e o racismo: a autodepreciação. Por mais de 500 anos os povos europeus invadiram e exploraram a África, impondo seu modo de viver e ver o mundo. A visão etnocêntrica do Europeu dificulta e até impossibilita a compreensão das religiões africanas. Elas não são nomeadas por não serem consideradas como religião e sobreviveram sincretizadas em rituais chamados afro-cristãos, adotados por algumas igrejas protestantes. Essa mesma visão passou a ser incorporada pelos africanos, que também não mais “nomeiam” sua religião. O que antes eram povos, nações organizadas, hoje são chamados “grupos linguísticos”, isso porque tudo o que sobrou destas antigas nações foi sua língua. Hoje suas famílias se misturam e se espalham nos territórios e se reconhecem pela língua materna, que, aliás, é incentivada a ser esquecida com a escolarização e o ensino da língua oficial. Assim acontece com as religiões, que em algum momento há centenas de anos atrás era o centro da organização social e deveriam ser relativamente diferentes entre os diversos povos. Hoje restou uma série de rituais que se misturaram e se expressam nas práticas chamadas “tradicionais”, em que se incluem o curandeirismo, a feitiçaria, as regras sociais, os ritos de passagem. Na verdade essa chamada religião tradicional é profundamente complexa para o nosso entendimento ocidental. Existem duas características importantes das “religiões tradicionais”: uma é que não há dualidades, não se separa o bem do mal, nem corpo de espírito, nem indivíduo e coletivo. Outra é que não se propaga a religião de um povo para outro, não se impõe suas crenças e não se converte ninguém à sua religião, ela é limitada à própria família. Só por essas duas características temos uma visão de mundo que passa pela percepção de unidade cósmica, integralidade do ser 42


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humano, liberdade religiosa e não dominação. Segundo Irene Dias Oliveira, no sul de Moçambique as ideias religiosas tem se propagado de maneira mais ou menos espontânea: migração, casamentos, alianças, conquistas, trocas de conhecimentos, mas não há indivíduos que “preguem sua religião”, não há atividades missionárias (OLIVEIRA, 2002). Nesse ponto do meu relato creio ser importante fazer um parêntese para discutir um pouco a relação entre religião e dominação.

Religião e dominação

“... sem liberdade é impossível que desabroche uma verdadeira cultura, pois quando as estruturas sociais são importadas e impostas, qualquer coisa morre na alma do povo” (OLIVEIRA, 2002).

O que é entendido como religião está no centro da história dos invasores europeus no continente africano e refere-se principalmente às de origem judaica cristã. No território africano atualmente o budismo e o hinduísmo têm se destacado e podem ter mais visibilidade, mais valor e mais respeito do que as práticas religiosas tradicionais também chamadas “tribais”. O Estado português reconhece que a igreja foi um dos principais fatores da colonização. Mas na verdade a colonização foi uma invasão, usurpação de território e suas riquezas, então, a igreja foi uma ferramenta para a invasão. Existiu uma interpenetração fecunda entre a igreja e o Estado, Portugal aceitou para si a responsabilidade de expansão da fé e conquista de novas cristandades. Em nenhum momento da história se separou a obra de conquista da de evangelização. Colonização e evangelização se confundiam, pois para divulgar o evangelho era preciso abrir novos territórios... A função da igreja para o governo colonial era “portugalizar” e, para isso, era orientada a ensinar a língua portuguesa em detrimento das línguas maternas... Esse processo para os portugueses teve o nome de “assimilação”. Assimilados eram os negros que frequentavam as escolas coloniais e eram “ensinados a agirem de forma ‘civilizada’ a partir do ponto de vista dos colonizadores” (OLIVEIRA, 2002). A riqueza da Europa e da América do Norte, o poder dos países do primeiro mundo, se fez pela desolação e aniquilamento da África, que até hoje sangra nas entranhas, herança deixada pelos invasores. Os portugueses ficaram em Moçambique até a década 43


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de 70 do século 20, destroçaram a estrutura social e cultural dos povos através de um processo de administração estrangeira que deslocou grupos sociais e abalou a economia local, Irene Dias Oliveira retrata muito bem: “... assistia-se a um enfraquecimento dos laços de solidariedade entre os elementos da sociedade. Para “civilizar” fizeram-se frequentemente guerras de “pacificação” contra as tribos mais resistentes à nova ordem que foram subjugadas, obrigando-as a entrar na civilização do homem branco... a teoria missionária da época seguia a linha de uma transformação radical da vida que implicava mudança substancial nos costumes. Destruiu-se a ordem social existente pela introdução de novos modos de encarar a vida e defesa de novos valores, quer no campo material quer no espiritual... não se teve consciência que a cultura de um povo é o principal elo de solidariedade entre as estruturas sociais... sem liberdade é impossível que desabroche uma verdadeira cultura, pois quando as estruturas sociais são importadas e impostas, qualquer coisa morre na alma do povo”.4 O que aconteceu na África portuguesa aconteceu no Brasil. Aqui igualmente a igreja serviu para “civilizar” indígenas e africanos (que para cá vieram na condição de escravos), passaram pelo processo de assimilação, sendo “catequizados”. Então eu pergunto: Se nossa população no século 18, na sua absoluta maioria, era composta de negros, índios e mestiços, esse processo assimilacionista, que desrespeitou a cultura dos povos não europeus, matou algo na alma do nosso povo? Que algo é esse? Será que o que hoje chamamos de religiões de matriz africana e xamanismo representam para muitos obscurantismo, atraso, religiões do demônio, porque na verdade são a expressão da resistência à “catequização”? Destaco um fato da história de Moçambique como exemplo da importância da religião e da igreja no processo de invasão e dominação do povo africano. O momento representativo que marcou a imposição militar dos portugueses na África Oriental foi em 1607, quando o rei de Monomotapa (considerada pelos historiadores uma das “civilizações mais evoluídas da África”, uma verdadeira sociedade de Estado com “cidadelas amuralhadas”) concedeu minas (de ouro) aos portugueses e, em 1627, foi batizado com o nome de Felipe e declarou vassalagem ao rei de Portugal. O batismo do rei representou o culminar da estratégia portuguesa de jogar habilmente para desmembrar o Estado de Monomotapa. Na verdade, são dois aspectos que parecem ter desencadeado a desintegração social dos reinos africanos somados ao uso da força, primeiro o batismo do rei e segundo o consumo de “bens de prestígio” que os portugueses ofereciam: tecidos e miçangas! Ainda assim, os povos que viviam nessas regiões, suaílis, árabes e indianos, resistiram bravamente à ocupação portuguesa (ROCHA, 2006).

4 Irene Dias de Oliveira, p. 59, 60.

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Outra faceta da dominação é a perda da identidade. As referências feitas ao povo da África são sempre da mesma forma, referem-se aos negros e depois aos outros povos, nomeando suas origens. Ao contar a história de Moçambique, por exemplo, os historiadores dizem que surgiu de uma mescla de várias culturas: negros, árabes, indianos e portugueses. Mas quem são os negros? Esses compreendem uma infinidade de etnias com língua, cultura e organização social próprias. Os negros são majoritários, correspondem a 95% da população. Os 5% restantes são nomeados brancos, mestiços e indianos. Quando se referem à classificação das religiões, são nomeados da seguinte forma: populações que praticam as religiões tradicionais africanas, que correspondem a 45%; as religiões exógenas ao catolicismo (séculos 14 e 15, introduzidas pelos portugueses), que correspondem a cerca de 25% da população; e as islâmicas (anteriores ao século 10, trazidas pelos comerciantes e amplamente difundidas) seguidas por cerca de 20% da população. O protestantismo tem cerca de 10% de praticantes. Assinalam também um pequeno número que professam o budismo e hinduísmo, pessoas de origem chinesa e indiana, mais presentes nos centros urbanos (ROCHA, 2006). O islamismo aumentou sua influência em toda a África oriental. Os historiadores em geral se referem aos povos não islamizados como africanos, e afro-islâmicos aos convertidos. Não existe um nome para as religiões tradicionais, pois o nome seria em parte o nome da etnia. Há poucos estudos e referências às principais práticas, de forma geral fala-se de curandeiros e feiticeiros, referem-se a essas práticas como religiões amorais, satânicas e obscurantistas. A destruição provocada pela invasão da África, os marcos forçados colocados pelo mapa construído pelo Europeu, que dividiu as fronteiras conforme seus interesses na exploração das riquezas, teve inúmeros resultados desastrosos. Mas nunca deixou de existir resistência. A preservação da língua, da cultura e da religião é uma das formas de resistência mais contundente desse povo. O exemplo de Moçambique, onde 95% da população falam pelo menos 60 línguas diferentes, 45% professam que sua religião não tem nome nem precisa de nome, pois para eles a religião não é algo separado da vida, não é uma instituição diferente de outras, a religião é o próprio sentido da existência. Tanto que, mesmo os que deixam o campo e vão para a cidade, não conseguem encontrar nada que preencha, na sua totalidade, esse todo que a religião proporciona. Mesmo se convertendo, nas grandes cidades, a outro tipo de religião importada, eles terminam sempre por adotar uma religião sincretista afro-cristã... buscam expressar sua visão de mundo integrada homem – meio ambiente – organização social (OLIVEIRA, 2002). As religiões tradicionais foram levadas à marginalização e à clandestinidade. Essa é uma das marcas da dominação, os que praticam as religiões tradicionais são marginalizados na sua própria terra!

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A relação institucional entre religião e saúde

“... importa notar que mambos ou midzimu são espíritos de ancestrais Tawaras. Muito honrados por fazerem cair a chuva, preverem a situação das colheitas, ocuparem-se dos doentes, impedirem a ocorrência ou alastramento de epidemias e catástrofes no território sob sua influência... “ 5

Quando me deparei com a surpresa como resposta às minhas perguntas sobre o nome das religiões – Do que você está falando? Que nome? – Passei a entender o que significa uma prática marginalizada. Assim como a pergunta sobre a reza. A reza é um ato de religião com status institucionalizado. Alguns cultos chamados afro-cristãos incluíram rezas nos rituais tradicionais, além das figuras dos santos, e passaram a ter nome por estarem cristianizados. Os demais são chamados de curandeiros. Na verdade, a formação de um curandeiro é extremamente complexa e leva muitos anos para ser completada, mas muitas vezes eles são desprezados por alguns médicos e poucos confessam a um estrangeiro que costumam ir a um curandeiro. Na classe média há uma ideia geral de que encontrar a salvação e ser civilizado é estar finalmente livre dessas crenças primitivas. Alguns demonstram respeito às tradições, mas não acreditam, apenas toleram. Na saúde pergunta-se qual a religião, por conta das práticas, que preocupam os médicos, a circuncisão e os rituais que envolvem corte e escarificação da pele, manipulação com sangue de animais e rituais de purificação como o kutxinga6. Mas creio que talvez a questão principal seja a concorrência com os curandeiros. Observando as entrevistas, às vezes a enfermeira, quando suspeitava que o assistido não estava falando a verdade, dizia : “Sabe como é? Nós somos africanos, então, você vai no curandeiro? Toma remédio tradicional?” Na verdade só a pergunta trás em si uma censura, que leva quase sempre a uma veemente negativa para quem procura ser “aprovado” no “interrogatório da saúde”. Como já disse, não sou especialista no assunto, não sou antropóloga, nem teóloga, mas sempre me perguntei que risco pode haver numa religião que busca o bem-estar do corpo, pois é ele quem carrega a divindade. Ao contrário das religiões judaico-cristãs

5 As vozes do Kwama, de Jorge Dick, é um romance muito interessante, relata momentos da vida rural anteriores e posteriores à independência de Moçambique. Jorge Dick é jornalista e ex-combatente. Na sua apresentação da obra ele escreve: “... estão aqui descritas As vozes do Kwama, uma obra que reclama espaço, sobretudo no mundo do espiritismo...”. 6 Ritual de purificação que envolve relações sexuais (sem preservativo): http://sabereslocais.blogspot.com/2010/11/o-kutxinga-pitha-kufa-levirato.html.

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para as quais o corpo é fonte de pecado. Ao tratar o corpo trata-se da unidade corpo-espírito, indivíduo-coletividade, recolhimento-júbilo, veneração-familiaridade, é o homem total ligado à sociedade que manifesta a divindade ao assumir e sublimar tudo o que o constitui como pessoa (OLIVEIRA, 2002, p. 49). Aqui no Brasil as relações institucionais da religião e da saúde têm sido permeadas pelo racismo e o etnocentrismo. O que de fato nos tem dificultado ver a riqueza da nossa herança enquanto povo vindo da África. Aqui a religião de nossos antepassados tem um nome que as marginaliza igualmente e depois são classificadas como matriz africana, como se quisesse selar seu passado primitivo. No entanto, as religiões de matriz africana no Brasil representam uma bela contribuição, que pode dar outro significado no produzir saúde a partir de uma visão de mundo que celebra a vida em toda a sua exuberância e vem provando sua força e resiliência ao superar diariamente o risco do extermínio. Em Moçambique a medicina sempre tentou trabalhar distante dos curandeiros, mas cerca de 75% da população recorrem a eles em primeiro lugar (antes de procurar um médico) ou, na maioria das vezes, como único recurso. A instituição saúde aproximou os curandeiros ao reconhecê-los como Praticantes de Medicina Tradicional (PMT). O Ministério da Saúde de Moçambique tem programas de formação dos Praticantes de Medicina Tradicional7. Também tem o Instituto de Medicina Tradicional (IMT) de Moçambique, criado em novembro de 2009 pelo Ministério da Saúde (Misau)8, que tem por objetivo coordenar e integrar os serviços nos cuidados de saúde primária do país. O objetivo das capacitações é ensinar coisas básicas da medicina, cuidados de enfermagem, uso de antissépticos e medicamentos, vacinas, curativos, orientações de saúde baseadas no arsenal de boas práticas de prevenção e cuidados de saúde. O que pude observar de modo geral nos moçambicanos é que eles não são avessos a novos ensinamentos de forma nenhuma, muito pelo contrário, quase sempre mostram-se abertos e interessados e facilmente incluem novas práticas no seu dia a dia, quando essas fazem sentido e são coerentes ao seu modo de ver o mundo, a suas expectativas e quando trazem bem-estar. Em 2001 foi criada a Associação dos Médicos Tradicionais de Moçambique (Ametramo), que hoje tem mais de 25 mil associados. A associação nasceu com o intuito de chancelar o trabalho dos curandeiros, além de criar padrões de atendimento e comportamento. Estima-se que haja cerca de 70 mil curandeiros no país, os associados da Ametramo possuem seus escritórios bastante divulgados, mas os demais, os milhares de curandeiros

7 http://www.misau.gov.mz/pt/noticias/misau_forma_praticantes_de_medicina_tradicional. 8 http://www.portaldogoverno.gov.mz/noticias/news_folder_sociedad_cultu/janeiro-2011/hiv-sida-em-preparacao-manual-de-treino-para-curandeiros/.

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e profetas, vivem na invisibilidade e preferem não se exibir publicamente. (Foto: Tipo de cartaz que se veem espalhados pelas grandes cidades 9). No discurso oficial do ministério a intenção do instituto é catalogar os medicamentos tradicionais e estudá-los cientificamente e, além disso, destacar a “importância de ambos tipos de medicina (moderna e tradicional) para a vida das pessoas, desde que haja garantias para um tratamento seguro”, acreditando assim na possibilidade da complementaridade dessas práticas. Outra medida é “instruir os curandeiros” a identificar doenças graves e mandar seus pacientes ao hospital o quanto antes. “Curandeiro não trata de todas as doenças, só as do espírito. Feitiço é feitiço, doença é doença.” Outro desafio enfrentado pela associação é combater o uso de órgãos humanos em cerimônias tradicionais. Maus curandeiros são alvo das próprias associações. “Aproveitadores há em todas as profissões”. Segundo informações das instituições governamentais o trabalho feito na última década ajudou a dar credibilidade aos curandeiros e a ganhar o respeito da sociedade e do governo10. Na minha opinião todas essas supostas “boas intenções” presentes no discurso oficial, podem, na verdade, estar ocultando um formato moderno de dominação que confere novo colorido ao processo assimilacionista do período colonial. Busca-se forçosamente “civilizar” curandeiros e feiticeiros ao incorporar técnicas (importadas) modernas de cursos e capacitações, supostamente participativas e que nem sempre favorecem realmente uma troca de saberes, mas escondem um rito que busca colocar sobre chancela governamental as práticas tradicionais. Os curandeiros foram incorporados e institucionalizados não como religião, mas no Ministério da Saúde, onde o Instituto de Medicina Tradicional de Moçambique procura congregar e oficializar os curandeiros que se espalharam pelas cidades comercializando tratamentos de cura. Ao receberem o status de Praticante de Medicina Tradicional os curandeiros saem do lugar obscuro de uma religião tribal. Nas minhas andanças por Moçambique ouvi por várias vezes críticas a essa forma de nomear os curandeiros. Alguns me diziam: Então, por que não chamar os outros médicos como “praticantes da medicina oficial?” Talvez alguns curandeiros queiram se chamados de médicos. Por outro lado, outros tantos nem querem saber do instituto nem querem ser médicos. De qualquer forma, o que eles fazem está muito além da medicina. Eles transitam entre dois mundos e, como se destituídos da organização social que dá sentido aos princípios e aos ritos de cura, eles hoje se organizam na modernidade de várias formas. Uns

9 http://eduacastro.wordpress.com/2010/07/28/e-o-chefe-dos-curandeiros-morreu/. 10 http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2010-08-31/curandeiros-fazem-passeata-em-mocambique-para-comemorar-dia-da-medicina-tradicional.

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optam por integrar a Medicina Tradicional, outros se integram em religiões chamadas afro-cristãs ou professam em parte seu conteúdo em alguns rituais próprios que não mais ordenam a sociedade, mas ainda podem ordenar a vida em família. Também encontrei práticas de curas que acontecem em rituais religiosos nas congregações conhecidas como Maziones11, que não se encontram em prédios nem igrejas. Eles misturam práticas “tradicionais” oriundas de várias etnias africanas com o cristianismo. Os Maziones enfatizam a renovação espiritual e física através do Espírito Santo, realizando rituais de cura e purificação. Seus ritos são realizados geralmente nas praias, ou nas casas das famílias, a céu aberto. Eles são considerados pelos religiosos como uma igreja do tipo pentecostal, são muito estudados por pesquisadores e recebem missionários estrangeiros. Os Maziones não são considerados curandeiros nem PMT. Os historiadores se referem a eles como seita religiosa, eles não estão incluídos nas ações de saúde que estão planejadas para os PMT. Os maziones me lembram, às vezes, os cultos que vemos aqui no Brasil de algumas religiões evangélicas que fazem exorcismos; e às vezes me lembram, ainda, alguns rituais de umbanda, quando se consultam caboclos e pretos velhos para atender aos problemas de saúde e sofrimentos da vida. Aqui no Brasil, igualmente, nossas religiões de matriz africana, cristianizadas ou não, também encontram dificuldades para se articularem com as políticas de saúde.

Uma conclusão que não sei se conclui alguma coisa! As práticas tradicionais dos africanos são profundamente entranhadas na vida em sua completitude e totalidade, não nomeadas por não serem algo externo, pelo qual se opta, e sim algo em que se evolui, algo que constitui não só cultura, mas todo o modo de ver e viver a vida , a visão de mundo que organiza a sociedade e define o local de cada indivíduo no mundo. Talvez por isso a pergunta qual a sua religião? não faça sentido para essas pessoas. Quando perguntam você reza? estão se referindo às religiões que têm igreja. Se a resposta for não, então essa pessoa é alguém que frequenta os rituais da religião materna. Ao serem destituídas de sua organização social, as nações viraram etnias12, perderam sua construção do ideário religioso que normatiza toda a vida social, o que antes era uma

11 http://oficinadesociologia.blogspot.com/2009/11/tese-sobre-os-mazione-em-mocambique.html. 12 S egundo o historiador Joseph Ki-Zerbo (1982), “o termo etnia, atribuído aos chamados povos sem escrita, foi sempre marcado pelo preconceito racista, sendo o vocábulo étnico utilizado como sinônimo de idólatra. Em sua forma contemporânea, o emprego do termo etnia ainda mantém os significados básicos no sentido em que descreve um grupo possuidor de algum grau de coerência e solidariedade, composto por pessoas conscientes, ao menos em forma latente, em ter origem e interesses comuns”.

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coisa só, ou seja, normas morais de conduta, organização social, religião, sistema de tratamento e cura. A cura nunca foi uma busca apenas física, porque a doença para os africanos não é algo do corpo, a doença é sempre um desequilíbrio da vida, envolve as relações sociais , as relações espirituais , envolve os ancestrais , o passado, o presente e o futuro, as doenças são tratadas como problema comunitário e não apenas como do indivíduo. Os curandeiros foram retirados do seu lugar na organização africana e tiveram que encontrar outro lugar de sobrevivência, então, surge a comercialização da cura. Assim, nas cidades e nos grandes centros vê-se a propaganda dos curandeiros anunciando a cura de todas as doenças, conforme nomeadas pela medicina oficial. A palavra religião não parece fazer sentido para grande parte da população. Quando perguntamos você reza? eles entendem como frequentar igrejas, ou seja, se foram convertidos para alguma das religiões. Se não rezam, então não foram convertidos, não frequentam igreja, portanto devem ir a um curandeiro. Mas nos grandes centros os curandeiros não são também tão bem vistos. Ouvi de várias pessoas e dos grupos organizados e associações palavras duras contra os curandeiros. Alguns criticam o fato de comercializarem seus remédios de forma inescrupulosa, outros criticam práticas consideradas obcenas ou perigosas inerentes ao processo de cura. Minha curta passagem por Moçambique me fez perceber todo o peso da mão de ferro que a invasão sangrenta dos estrangeiros se fez sentir não só sobre o corpo, sobre a mente, sobre a terra, mas também sobre a rica cultura daqueles povos. A força ideológica do racismo está presente nas entranhas da população, alimenta a autodepreciação, reafirma a superioridade da cultura dos brancos e a crença na inferioridade dos negros. Também confirmou de onde vem a fibra tenaz de quem não se deixa abater. Mesmo com 500 anos de opressão nas costas, o povo resiste, às vezes silenciosamente, às vezes em alto e bom som. Não pretendo fazer análises sociais, ou culturais, só posso falar do que senti, e o que me ficou fortemente impregnado no coração foram as pequenas formas de sobrevivência mesmo nas cidades. Esse tema religião e saúde merece sem dúvida muito mais investigação. Com todos os prós e contras os curandeiros estão sentados lado a lado dos profissionais de saúde. Muitas vezes com extrema arrogância esses profissionais se colocam na posição de professores que irão lhes ensinar como cuidar da saúde. O que percebi é que o povo africano não é avesso a aprender novas culturas e novos saberes, mas eles sempre colocam a sua versão, deixam sua marca, renovam todas as coisas. E aí, você reza?

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Referências Bibliográficas CHIZIANE, Paulina. O Sétimo Juramento. Ndjira, 4ª edição, Moçambique, 2006. CASHMORE, Ellis. Dicionário das relações étnicas e raciais. São Paulo: Summus, 2000. OLIVEIRA, Irene Dias. Identidade negada e o rosto desfigurado do povo africano. São Paulo: Annablume: Universidade Católica de Goiás, 2002. FRY, Peter. O espírito santo contra o feitiço e os espíritos revoltados: “civilização” e “tradição” em Moçambique. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/mana/v6n2/3298.pdf. Acessado em 3/10/11. DICK, Jorge. As vozes do Kwama. Ciedima, Moçambique, 2006. ROCHA, Aurélio. Moçambique História e Cultura. Texto Editores Ltda. Moçambique, 2006. KI-ZERBO, Joseph. Introdução Geral. In: KI-ZERBO, Joseph (coord.). História Geral da África, Volume I: Metodologia e pré-história da África. São Paulo: Ática; Paris: Unesco, 1982.

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Capacidade de se identificar e cuidado/acolhimento: princípios facilitadores do amadurecimento e organização subjetivos no Terreiro1

Marco Antônio Chagas Guimarães2 “Arkhé está no passado e no futuro, é tanto origem como destino” (Muniz Sodré, 1983, p. 153).

O saber do Terreiro e seus princípios “Cantiga que menino canta, gente velha já cantou.” Minha contribuição para este livro começa com a fala de Mãe Cantulina de Ayrá3, que egbomi Vanda de Oxum4 trouxe para nós na comunicação por ela apresentada no seminário da Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde (RNRAS) de 20095. Com essas duas vozes procuro evidenciar o olhar que orienta este trabalho: a memória de nossa tradição. Tendo como material de pesquisa a fala e o jeito de ser e viver de nossos mais antigos, pretendo apresentar a ideia de que a visão de mundo que estrutura o saber do Terreiro tem uma proposta de amadurecimento e organização subjetivos que se expressa principalmente por intermédio de dois dos princípios que compõem este saber. Minhas vivências como filho de santo,

1 Este trabalho é dedicado à Mãe Maria do Sete (in memoriam), que fez de seu Terreiro, o Kamafeu de Oxossi, no Araçagy (MA), como fez de seu coração, um campo de aconchego para as pessoas que buscavam formas de harmonia e cuidado. 2 Filho de santo de Zezito de Oxum (RJ) Axé Kalé Bokun (Salvador, BA), psicólogo, doutor em psicologia clínica PUC-Rio, integrante no núcleo RJ da Rede Nacional de Religiões Afro-brasileiras e Saúde, integrante do Grupo Psicossomática Psicanalítica Oriaperê (RJ), e-mail: guimar.m@uol.com.br 3 Mãe Cantu foi Mãe de Santo do Ilê Axé Opô Afonjá do Rio de Janeiro. 4 Vanda Machado (filha de santo da comunidade Afonjá (Salvador), escritora e doutora em educação). 5 Seminário Religiões Afro-Brasileiras e Controle Social de Políticas Públicas de Saúde, 19 a 21 de agosto de 2009, Rio de Janeiro.

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como pesquisador, o conhecimento adquirido com os autores apresentados a seguir, assim como os conhecimentos da Psicologia da Cultura criada por Augras (1985) e a teoria do desenvolvimento psíquico de Donnald Winnicott (1990), me auxiliam neste percurso. Qual é essa visão de mundo e quais são esses princípios? Como já evidenciaram Sodré (1983, 1988), Santos (1984), Augras (1983), Machado (2006), Guimarães (1990), entre outros, o saber do Terreiro está “assentado” em uma forma de ser no mundo, segundo a qual a existência se processa a partir de uma parceria cosmogônica. Dessa “convivência” fazem parte divindades, antepassados, mulheres, homens, elementos do reino animal, vegetal e mineral, onde cada elemento é corresponsável pela dinâmica do existir, sendo necessário e fundamental para a manutenção, o equilíbrio e a continuidade do todo. Muniz Sodré (1983) já mostrou, com muita propriedade, que o saber das religiões de matriz africana se estrutura a partir de princípios que dinamizam o sistema. A troca, a obrigação, o ressarcimento, o jogo, a luta (ijá), a feitura de santo são alguns deles. Em outro momento (GUIMARÃES, 1990), mostrei que os princípios do Terreiro formam, como que uma malha, uma rede de fios entrecruzados, que chamei de “complexo dinâmico espelhar”, onde cada princípio agencia, espelha e dá sustentabilidade ao outro. No trabalho atual quero sugerir que também deveríamos considerar como princípios do saber do Terreiro a capacidade de se identificar e o cuidado/acolhimento. Onde e como eles podem ser percebidos? Em seu território mais natural, as casas de santo. No cotidiano desses espaços e por intermédio destes princípios, na minha compreensão, podemos observar uma proposta de organização e amadurecimento subjetivos assim como uma pedagogia, uma proposta de cuidado com a saúde, de lidar com as relações sociais. Essas propostas tomam vida por intermédio dos ritos, das histórias, dos mitos, do canto, do gestual que, mantidos e transmitidos pela memória, pela fala e comportamento dos mais antigos constituem, como disse Mãe Cantu, “cantigas” que as mais novas – crianças mesmo, ou muzenzas/iaôs6 – falam hoje, mas que, tendo ou não consciência disso, falam porque viram, ouviram, absorveram/introjetaram das mais antigas.

Registros de memória: evidências objetivas Como evidência de nossa memória trago os ensinamentos que estão em falas e na maneira de ser de pessoas de nossa tradição, assim como em mitos, todos os elementos que constituem, como mostrou Sodré (1983), uma arkhé negro-brasileira do Terreiro.

6 Maneira como são identificados os novos iniciados nas nações de origem bantu e iorubá, respectivamente.

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A tradição do Terreiro e sua arte de cuidar O primeiro material foi uma experiência vivida no Ilê Omi Oju Arô em 20027 durante uma das oficinas promovidas pelo Projeto Ató-Irê, do qual esta casa de santo fazia parte. Naquele dia, uma tarde quente e abafada, o grupo que participava da oficina decidiu que nosso encontro se daria sob a sombra do pé de Iroco8. Mãe Beata, iaôs, egbomis, ogãs e equedes da casa, e nós, componentes do projeto, “filhos de Mãe Beata também”, nos acomodamos fazendo um círculo em torno de Iroco. Alguns momentos após começada a oficina, no colo de sua mãe, veio fazer parte do círculo a bisneta de Mãe Beata, bebê de mais ou menos 2 meses, que estava vindo pela primeira vez à casa. Depois de algum tempo da chegada da mãe com a bebê, Mãe Beata se ausenta do grupo por instantes e retorna trazendo em suas mãos um travesseiro grande e um balaio daqueles que costumamos usar para “presentes” a Iemanjá e Oxum. Sem interromper a oficina, ela senta-se em sua cadeira, coloca o balaio ao seu lado no chão e, no interior dele, repousa o travesseiro, ajeitando-o com cuidado para ficar bem nivelado. A seguir pega a bebê, que dormia no colo da mãe, coloca-a com delicadeza sobre o travesseiro e volta a se dedicar ao que continuava sendo apresentado por um dos membros do projeto. Percebi que as filhas da casa acompanharam o comportamento de Mãe Beata com “sutil comoção”, que eu defino aqui como um misto de interesse e satisfação. Porque tomado pelo mesmo sentimento, terminada a oficina, perguntei a alguns(mas) dos(as) filhos(as) de santo da Ialorixá como tinham sentido e compreendido o que acontecera momentos antes. Obtive então, como resposta, que aquela era uma atitude comum dela para com os bebês da comunidade, fossem filhos dos filhos de santo, ou parentes consanguíneos dela. Segundo disseram, ela sempre pegava seu travesseiro e, ou, suas almofadas para aninhar os bebês que chegavam ao Terreiro, que ficavam sob sua guarda e atenção, enquanto as mães se ocupavam com suas tarefas comunitárias. Verbalizaram também a satisfação que aquele comportamento dela lhes trouxera, sentindo-se muito bem com essa forma de cuidado da Ialorixá, reforçando que “era mesmo mãe de cada um de seus filhos”. O segundo material é um relato por mim recolhido de Mãe Beata, em 2007, para uma comunicação no Seminário da Rede (RNRAS) em Belém9. Ela conta da visita que foi

7 Esse material, já publicado (Guimarães, 2007), é recolocado aqui porque considerado importante para a discussão proposta neste trabalho. 8 Divindade do panteão de tradição iorubá. 9 Seminário “As Religiões Afro-Brasileiras e a Epidemia de HIV/AIDS: desafios e perspectivas”, 25 e 26 de setembro de 2007, Belém, PA. Título da Comunicação: “Religiões de Matrizes Africanas e Saúde: o acolhimento e a arte de cuidar”.

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fazer a um rapaz que estava hospitalizado no Hospital Universitário da UFRJ, a pedido de um filho de santo seu que aqui chamamos C, integrante de um programa de atendimento chamado Assistência Religiosa nos Hospitais (ARA). O rapaz, que aqui chamamos R, não era de Terreiro nem ela o conhecia. Ele era de outro Estado, tinha HIV/AIDS, seu estado de saúde era muito grave e só tinha o companheiro aqui no Rio. Quando chegaram ao quarto, um grupo de evangélicos havia acabado de sair. A assistente social comunicou que só havia autorização para evangélicos e católicos visitarem os pacientes. Mãe Beata “argumenta” – com a força de sua palavra – que gostaria também de oferecer ao rapaz o apoio que a tradição religiosa afro-brasileira tinha a dar para ele. A assistente social diz: “A senhora me convenceu.” Mãe Beata diz que ao chegar ao quarto observa que havia um ramalhete de flores vermelhas e dois potinhos de iogurte não tocados. Durante a conversa inicial com R soube que as flores haviam sido levadas pelo companheiro que o assistia muito. Nossa Ialorixá percebe que ele estava muito debilitado, enfraquecido e que por isso falava baixo e com algum esforço. Tinha também muitas aftas, o que dificultava a ingestão de alimentos. Depois de algum tempo de contato R pergunta se Mãe Beata poderia dar-lhe um beijo. Ela diz que sim e se debruça sobre o leito e dá um beijo em R. A seguir, com a força do cuidado e da capacidade de se identificar que sua palavra tem, ela pergunta: “Por que não tomou o iogurte?” Ele comenta da falta de apetite e da dificuldade por causa das aftas. Ela diz que vai dar a ele. R concorda. Ela relata que abre o iogurte, pega a colher e vai dando, aos poucos, o iogurte a ele, que vai aceitando. R toma todo o potinho. Ela abre o outro iogurte e novamente, aos poucos, vai dando a ele, que toma também o segundo potinho. Mãe Beata relata que teve um sentimento forte de acolhimento por R durante esse processo e me diz, com reatualizada emoção: “Se eu pudesse, colocava ele no colo.” Ela relata que, então, como forma substituta de envolvê-lo com seu afeto, se aproxima do leito e o abraça delicadamente – porque ele estava muito frágil – aconchegando-o junto a ela. Diz que conta a ele sobre Iemanjá e os cuidados que teve com Obaluaiê. Durante esse contato percebe que correu uma lágrima dos olhos de R. Ela diz que isso a comoveu muito. Quando já estava para se despedir, R pergunta se ela aceitava que ele lhe desse as flores que tinha ganho do companheiro. Diz ele: “Foi meu amor quem trouxe para mim.” Mãe Beata diz que tira uma das flores e agradece o carinho que ele teve com ela. Durante o processo de saída do quarto até a portaria do hospital, um percurso que demorou possivelmente uns 15, 20 minutos, em virtude do tamanho do hospital e da demora dos elevadores, Mãe Beata comenta com C que ao abraçar R sentiu como se ele estivesse muito fraco, meio como se estivesse perdendo as forças e que ela queria que C telefonasse para o quarto para saber 56


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como R estava. C comenta que não havia necessidade porque tinham acabado de sair, que ligaria depois. Mãe Beata de forma categórica pede que ele telefone. Ele liga e dizem que R tinha acabado de falecer. Mãe Beata pede a C para subir novamente com ela, para ela se despedir de R... O terceiro material, ainda de Mãe Beata, vem de parte de uma entrevista concedida por ela ao jornalista Ednei Silvestre em uma reportagem para o Jornal Hoje, da Rede Globo (RJ), em 10/10/2009. No decorrer da entrevista que versou sobre diferentes tópicos, ao ser perguntada pelo jornalista qual era o significado da vida, ela respondeu: “Meu filho, o mundo só tem sentido para mim se eu lhe ouvir e se você me ouvir. Só tem sentido se, quando eu ver seus olhos cheios de lágrima, os meus olhos ficarem cheios de lágrima também...”

O papel fundamental da “convivência” Conta um mito que as divindades criaram o mundo e tudo o que existe. No processo de criação da terra, dos rios e mares, do fogo, de mulheres e homens, de animais, vegetais e minerais as divindades tiraram partes de si para construir cada um desses seres, elementos da natureza e do mundo. Assim, cada um(a) deles(as) ao ser criado(a) tornou-se representante da divindade criadora. São, portanto, descedentes-filhas de Iansã não só mulheres e homens, como também o acarajé, o vento, o fogo, certas ervas, o cobre e animais de cor avermelhada. São descedentes de Ogum o ferro, o inhame, certos tipos de planta como o dendezeiro e elementos de cor verde ou azul-marinho, por exemplo. Na criação desses descendentes-filhas, ao compartilharem com eles(as) seu próprio si mesmo, as divindades doaram parte de sua força de realização/energia vital (Gunzu/Axé) que, como força, se desgasta. Mostram também os mitos que, para que se mantenha o equilíbrio do sistema e a comunicação harmônica entre Orum (espaço onde habitam as divindades e antepassados) e Ayiê (terra), essa força de realização compartilhada deve ser recomposta. A evidência dessa lei se expressa pelo princípio da troca e por intermédio da obrigação/oferenda. Quando damos (oferecemos) um padê a Exu, um amalá a Xangô, um omolocum a Oxum, um ebô a Oxalá, por intermédio dessa obrigação/oferenda estamos buscando recompor a força de realização dessa matéria-massa-genitora (Santos,1984), reatualizando o vínculo harmônico entre as divindades/energias do Orum e nós do Ayiê. Essa forma de comunicação, que se passa tanto num nível racional, mas sobretudo vivencial, “visceral”, implica que no ato de dar/oferecer a obrigação/oferenda e cuidarmos da recomposição da 57


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força de realização da divindade, automaticamente reatualizamos uma cadeia cosmogônica familial, de parentalidade, recompondo e renovando também nossa própria força de realização (Gunzu/Axé) e nossa harmonia espiritual e integral (biopsicossócio-espiritual). Estamos evidenciando, portando, que a lógica que estabelece a troca, a obrigação/ oferenda e o ressarcimento, como princípios do sistema e que também propõe uma arte do cuidado em saúde e na vida, tem um encanto. Esse encanto diz respeito não a um processo mágico, mas à força que os processos inter-relacionais têm na visão de mundo das religiões de matriz africana. Estamos evidenciando que uma parte dos fios que constrói o tecido dessa dinâmica inter-relacional é da natureza do afeto, elemento que vai interferir de forma significativa na maneira como se encaminha o amadurecer e a organização subjetivos de filhos e filhas de santo. Essa lógica de ser e viver se “assenta” em nós, sobretudo, durante a “feitura do santo”10.

A feitura de santo: a feitura do ser O saber do Terreiro dá ao processo de feitura de santo um lugar de tamanha importância que, além de instituí-lo como regra básica, o coloca no nível de sagrado. Seja um assento11 (igbá), um fio de conta, uma pessoa, para sermos considerados detentores e propulsores de Gunzu/Axé, tudo e cada coisa deve passar por uma feitura. Em sua pedagogia e como uma “cantiga” ancestrálica (MACHADO, 2003) que se transmite dos mais antigos aos mais novos por gerações de feitas, nossa tradição nos ensina, assim como ensina aos programas de promoção da saúde do Estado, a importância e o respeito que devem ser dados ao processo de gestação e nascimento. Nessa forma de ensinar e por intermédio do envoltório que são seus princípios, o conhecimento do Terreiro nos oferece a possibilidade de viver novamente uma gestação, um parto e uma puericultura, por intermédio de um processo de socialização secundária e muitas vezes primária (BERGER e LUCKMAN, 1983). Durante o período de feitura temos a possibilidade de sermos gestados como iaôs-fetos no quarto de Axé12, de sermos amparados como iaôs-bebês no “dia do nome”, cerimônia pública na qual é celebrado o parto dos novos nascidos. Depois de nascidos vivemos a possibilidade de engatinharmos, dar os primeiros passos, ir crescendo e adquirindo os valores dessa cultura ritual. Os sete primeiros anos que se seguem à iniciação,

10 Processo de nascimento ritual. 11 Representação material das divindades do Terreiro. 12 Local de recolhimento ritual dos iniciados no processo de feitura de santo, também chamado sabagi, rondemi, ronkó.

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por intermédio da convivência comunitária e das obrigações de um, 3, 5 anos, vamos amadurecendo ritualisticamente, quando chegamos à obrigação de 7 anos, momento ritual de maior complexidade, quando nos tornamos, então, um(a) egbomi (mais velha). Passamos, a partir daí, a ter mais responsabilidade e a participar de rituais mais complexos. Esse processo de construção e amadurecimento de nossas identidades no Terreiro é feito no interior do continente-suporte que é a tradição que, por intermédio de seus princípios, nos integra, acolhe, sustenta e apresenta limites suportáveis (coerentes) como leis dessa cultura. Durante a iniciação a mãe ou o pai de santo é e representa o corpo comunitário que gesta os iaôs-fetos, enquanto a mãe-criadeira é e representa o útero-continente onde se processa essa gestação. Como corpo que gesta, a mãe ou pai de santo, por intermédio de suas ações e significados rituais, é a representante de uma memória, uma ancestralidade que reatualiza, dá vida e sustenta os códigos da tradição do Terreiro. A mãe-criadeira – função muitas vezes exercida pela mãe-pequena –, como pessoa que cuida mais diretamente do cotidiano dos iaôs-fetos, sendo responsável por sua alimentação, banhos rituais, roupa, ensinamento das rezas, princípios comunitários e, sobretudo, pelo fazer companhia, por um estar-com e poder-contar-com (GUIMARÃES, 1990), é e representa o útero-continente comunitário, onde a feitura do ser do Terreiro vai passo a passo se constituindo. O que torna esse processo de gestação e nascimento mais singular no que diz respeito ao processo de amadurecimento e organização subjetivos é a qualidade dos vínculos afetivos que se estabelecem durante seu percurso. Nele se desenvolve na mãe ou pai de santo e na mãe-criadeira, em relação aos que estão sendo feitos, uma profunda capacidade de identificação e cuidado/acolhimento. Esses sentimentos, que tomam a mãe ou pai de santo e a mãe-criadeira, assim como a própria comunidade que constitui a família de santo, estão presentes desde a chegada dos abiãs13 para a feitura, se mantêm durante o processo de recolhimento, no dia do parto comunitário, e continuam quando os novos iniciados voltam para suas casas de origem, na medida que, como novos bebês, os novos filhos de santo precisam manter com suas comunidades de Terreiro, sobretudo no primeiro ano de feitos, período que nomeio puericultura.14 Entende-se aqui como capacidade de se identificar um sentimento de “ser capaz de se sentir e se colocar” no lugar do outro, “se sentir como se fosse o outro”. O cuidado/ acolhimento é complementar à capacidade de se identificar e muitas vezes é a parte objetiva do sentimento de identificação que se transforma em ações, como a forma de segurar

13 Participantes do Terreiro que ainda não passaram pela feitura de santo. 14 Uma descrição detalhada desse processo pode ser obtida em “É um Umbigo, não É?: a mãe-criadeira, um estudo sobre o processo de construção de identidade em comunidades de Terreiro”, GUIMARÃES, M. A. C., 1990.

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um bebê no colo, de manuseá-lo ou de as mães e pais se preocuparem com seus filhos quando mais velhos, ou de pessoas maduras em relação à sua cultura. A natureza dos fortes vínculos afetivos que se estabelecem no processo de feitura de santo pode ser percebida na quarta e quinta evidências objetivas que vêm de Mãe Jinguê de Kavungo e Mãe Firmina de Iemanjá. Numa pesquisa que buscava compreender o processo de construção de identidades em comunidades de Terreiro, por intermédio de histórias de vida de mães-criadeiras (GUIMARÃES, ibid), ao serem perguntadas sobre quais os sentimentos por elas experimentados em relação às muzenzas/iaôs das quais haviam sido mães-criadeiras durante o processo de feitura de santo, elas dizem: Mãe Jinguê – “você pega muita amizade pela pessoa que está recolhida, você fica considerando como se fosse uma pessoa do seu sangue. Tanto que, quando passa aquela época, que o filho de santo vai embora, eu sinto falta, parece que fica vazio. É o mesmo que ter um filho. (dá um suspiro e complementa) Eu estou com saudade de botar muzenza ...” Mãe Firmina – “Eu acho que é assim. É um umbigo, não é? Meu e dele (o/a iaô). Ele porque recolhe, eu porque crio”. (GUIMARÃES, 1991) O saber do Terreiro que absorvemos durante a iniciação e que faz parte da nutrição que sustenta e encorpa nossas interioridades ao longo de nossa vida de filhos de santo recebe também outros marcadores identitários, como, por exemplo, a absorção da “família de santo”. Se o processo de transmissão de Gunzu/Axé comunitário ocorre sempre por intermédio de relações bipessoais, ele nunca deixa de agenciar o coletivo. Se qualquer processo do Terreiro é necessariamente feito de forma bipessoal, como dizemos, de “boca a orelha”, é também, e sempre, feito com a participação do coletivo. Seja por intermédio do “enredo” de divindades e ancestralidades que compõe nosso ori (cabeça), seja pela presença física da mãe ou do pai de santo e da mãe-criadeira, pelos irmãos, irmãs mais velhas (egbomis), pelos pais (ogãs) e mães (ekedes) que adquirimos com a feitura, a família de santo passa a fazer parte do tecido que vai conviver em nossa subjetividade. Porque durante a iniciação e nos diferentes momentos de nosso amadurecimento vivemos, sentimos e absorvemos/introjetamos a capacidade de identificação e o cuidado/ acolhimento, absorvemos/introjetamos, também, como decorrência desses vividos, a percepção da importância da troca, do ressarcimento natural ou gratidão. Porque absorvemos a consciência do que recebemos, passamos a viver também a compreensão de que cada elemento é necessário e fundamental para o equilíbrio, manutenção e continuidade do todo. A compreensão do ressarcimento/gratidão em relação às divindades, à ancestralidade, assim como aos diferentes elementos do sistema, como a terra, as águas, as 60


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plantas, que dá à tradição do Terreiro um sentido profundamente ecológico de convivência, pode ser observada no nosso sexto material empírico, por uma vivência relatada por Muniz Sodré: “Tempos atrás vivi no Terreiro baiano do Axé Opô Afonjá um instante radicalmente ecológico. Era uma tarde de meio de semana e eu levava a visitar o espaço da comunidade-Terreiro alguns amigos meus. Depois de uma visita às casas [referindo-se aos ilê-Orixá], um ogã (título honorífico de certos membros do culto) conduziu-nos até o mato: queria presentear um dos visitantes com uma muda de planta. Ali, cercados de vegetação, todos viram-no abraçar o tronco o velho Apaoká, murmurar algumas palavras e pedir licença para arrancar-lhe um broto” (1983, p. 151).

Capacidade de se identificar e cuidado/acolhimento: estratégias da arkhé negro-brasileira Para começar a concluir a proposta deste trabalho me auxilio novamente das palavras de Sodré, agora quando diz que o conhecimento negro-brasileiro desenvolveu “formas paralelas” de organização social para lidar com a opressão da escravização. Aponta o autor, como exemplos de ordem econômica dessas formas paralelas, a criação de “caixas de poupança para a compra de alforria de escravizados, exemplos de ordem política, a criação de conselhos deliberativos próprios para dirimir disputas internas de uma nação ou etnia, ou para preparação de ações coletivas (fugas, revoltas), ou, então, confrarias de assistência mútua sob a capa de atividades religiosas (cristãs), de ordem linguística na manutenção de línguas africanas, como linguagem ritual, assim como de ordem mítica a síntese e reorganização do panteão de deusas e deuses em um só território, o Terreiro” (1983, p. 121). Partindo dessa compreensão, entendo que essas formas paralelas podem ser também compreendidas como estratégias inteligentes da arkhé negro-africana e negro-brasileira, sendo o saber do Terreiro um exemplo delas. Ressaltei no trabalho que esse conhecimento tem um encanto que está relacionado à força dos vínculos inter-relacionais existentes nessa cosmovisão. Mostrei que parte do tecido que forma esses vínculos é da natureza do afeto e sugeri que deveríamos incluir a capacidade de se identificar e o cuidado/acolhimento entre seus princípios. Sugeri também que esses princípios são elementos importantes no processo de amadurecimento e organização da subjetividade de filhos de santo. Por intermédio de falas e da maneira de ser de nossos mais antigos, assim como de mitos, como elementos de nossa memória, procurei apresentar dados objetivos que deem sustentação à minha proposição. A fala de Mãe Cantu, a ação de egbomi Vanda de com61


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partilhá-la conosco ao tê-la absorvido, permitindo, assim, que se tornasse nossa memória, são parte deste encanto que justifica minha sugestão. A intensão que gerou o ato de Mãe Beata pegar o balaio e as almofadas – metáforas do seu próprio corpo – arrumando-os com cuidado para construir um continente-suporte para sua bisneta, também, assim como o registro feito pela memória afetiva (dos “eu-bebês” existentes na interioridade) dos filhos de santo dela que viveram sua ação com “sutil comoção”e a descreveram como familiar, porque habitualmente dirigida aos bebês que iam à comunidade-Terreiro, fossem de seu sangue biológico, ou nascidos do sangue de seu Axé. Ela promove o sentimento-ação que a leva a: a) ir visitar no hospital uma pessoa que não conhecia; b) a agir carinhosamente com a força de sua palavra para que R tomasse o iogurte (símbolo do leite materno); c) ser tomada por um sentimento forte de acolhimento por R, revelando que se pudesse, o colocaria no colo...; d) ao saber a notícia de seu passamento para o Orum, voltar para despedir-se.... Ela está no sentimento-ação que a leva a expressar para Edney Silvestre que para ela o sentido da vida era poder estar verdadeiramente com ele – que naquele momento representava o outro da parceria cosmogônica - se colocando como campo de escuta identificada para conter/acolher seus sentimentos... . Acredito que se a intenção que encaminha as atitudes de Mãe Beata, sem dúvida, está relacionada à singularidade e generosidade da pessoa que ela é, também é fruto do encanto que existe a força de realização existente no conhecimento da religião de matriz africana que ela viveu e absorveu em seu percurso de abiã, iaô e mãe de santo. A lógica existente nesse saber promove os sentimentos e ações que fazem Mãe Jingê e Mãe Firmina traduzirem em singulares e afetivas palavras a qualidade do que vivenciaram e transmitiram para seus filhos durante a criação que deram a eles/as na feitura. Em sua sabedoria negro-brasileira, Mãe Jingê e Mãe Firmina nos ensinam que, só é capaz de falar em “ficar vazio”, em ter “saudade de botar muzenza”, em “umbigo”, em “recolher” (sinônimo do “botar” de Mãe Jingê), e em “criar”, quem teve a capacidade de se dispor a ser um útero-continente, uma rede de sustentação, um campo generoso para o desenvolvimento de potencialidades e subjetividades, ou como evidenciamos neste trabalho quem foi capaz de se identificar e cuidar/acolher. Essas “cantigas”, ou jeitos de ser e viver dessas representantes de nossa tradição, que implicam sentimentos-ações dirigidos ao outro-sistêmico, falam do mesmo sentimento-ação evidenciado na atitude do Ogã da comunidade Afonjá. Em sua atitude de pedir licença e abraçar o Apaoká antes de retirar uma muda da árvore, o Ogã expressa a noção intrínseca da identificação, do cuidado/acolhimento, assim como do respeito, da troca, do ressarcimento/gratidão, possibilitando que o broto/semente, como um novo 62


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descendente-porção, vá florescer em outro continente-suporte e ser condutor e propulsor de Gunzu/Axé. Entendo que cada uma dessas falas, mitos ou formas de ser e viver são evidência dos princípios do Terreiro sugeridos neste trabalho e parte integrante da arte de cuidar dessa tradição. Apresento, para terminar, uma “cantiga” que nos foi ensinada por Mãe Maria do Sete, do Terecô, e Mãe Beata15, “cantiga” que vivemos e absorvemos com intensa emoção e que fala por si só desses mesmos princípios: Ao levantarem-se para sair do restaurante onde almoçavam, Mãe Maria do Sete comenta com Mãe Beata que gostaria de dar a ela uma lembrança, algo seu, um ojá16. Mãe Beata agradece e diz que aceita com satisfação. Mãe Maria comenta que subiria e pegaria no apartamento em sua mala, já que o que estava em seu ori (cabeça), embora tendo sido colocado naquela manhã, já estava sendo usado por ela. Evitando o desgaste de Mãe Maria, que ultimamente caminhava com mais lentidão, Mãe Beata diz que ela poderia dar o que estava usando. Mãe Maria leva as mãos ao seu ori, desfaz com calma o ojá e, quando se prepara para entregá-lo nas mãos de Mãe Beata, essa pede que Mãe Maria o coloque, ela mesma, em seu ori. Mãe Maria, com a elegância sempre nela presente, diz que não o faria porque era de uma tradição diferente, o Terecô. Mãe Beata, com a consciência da vida religiosa que tem, de tantos anos, disse a ela que colocasse o ojá, porque ambas eram irmãs e, portanto, filhas de uma mesma ancestralidade. Então, com a naturalidade e força de realização dos mais antigos – ante os olhos e coração emocionados dos que estavam presentes acompanhando aquele momento de encanto – Mãe Maria atende ao pedido de Mãe Beata com o carinho, a delicadeza e a dignidade que lhe eram peculiares... Esse momento que podemos chamar de inteligência ou de força de realização dessas senhoras, mas também do saber do Terreiro, convida a aprender. Ensina a “cantiga” da generosidade, da importância do compartilhar, da humildade sem submissão, da valorização do si mesmo sem prepotência, da dignidade, do reconhecimento, da afetividade, assim como da capacidade de se identificar e do cuidado/acolhimento, sabedorias ancestrálicas existentes na tradição religiosa de matriz africana brasileira.

15 Fato ocorrido durante o Seminário Mulheres de Axé, realizado em 2012, no Rio de Janeiro, pela RNRAFS. 16 Pano ritual que as pessoas do Terreiro usam para envolver a cabeça, protegendo-a.

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Religiões afro-brasileiras e suas interfaces com o Sistema Único de Saúde

José Marmo da Silva1 A abordagem do tema religiões e saúde é muito complexo, uma vez que muitos de nós podemos não ter nenhuma religião, não acreditar em Deus, podemos ter um Deus mas não ter uma religião, podemos não acreditar em nada, ou até mesmo simpatizamos com mais de uma religião e conseguimos conviver harmonicamente com elas. Mas paradoxalmente é no campo da saúde em que vamos encontrar uma série de discussões e artigos sobre as relações religião-saúde-doença, processos de cura e itinerários terapêuticos nos quais as religiões ou o aparato religioso se fazem presentes. O fato é que hoje as religiões estão crescendo, surgem novas religiões e novos espaços religiosos convivem com espaços antigos. Nessa trajetória muitos de nós, ainda que não sejamos ou tenhamos pertencimento a uma tradição religiosa, convivemos com as diversas manifestações religiosas. Por outro lado, muitas vezes, quando estamos doentes ou passamos por momentos conflitantes ou situações de perdas, procuramos os espaços religiosos ou lideranças religiosas com o objetivo de nos fortalecer ou procurar entender o que está acontecendo em nossa vida. Alguns na busca de respostas para a existência do humano e do universo, ou mesmo para explicar a morte, preferem recorrer a um arsenal de cunho religioso do que acreditar na finitude. Acreditar que somos finitos e mortais pode incomodar tanto uma pessoa que, para não ficar paralisada, procura criar um mecanismo de defesa diante dessa realidade que possibilite a negociação com a morte e que seja capaz de dar continuidade e garantir o processo de vida. Alguns acreditam na reencarnação, outros na ancestralidade, e existem aqueles que em nada acreditam, mas certamente cada um de nós já refletimos sobre esses temas e temos nossas opiniões sobre o assunto.

1 Dentista e coordenador da Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde. E-mail: semireligafro2007@Yahoo. com.br.


Religiões afro-brasileiras, políticas de saúde e a resposta à epidemia de aids

Cabe, então, perguntar: “Como as religiões se apresentam em nosso cotidiano e qual o seu alcance social? As religiões podem ter alguma influência na vida das pessoas mesmo que não tenham nenhuma tradição religiosa? As religiões ou grupos religiosos têm algum impacto sobre as políticas públicas?” Muitas dessas perguntas podem não ter respostas, mas o importante aqui é levantar alguns aspectos que considero interessante pautar nessa discussão. Em nosso cotidiano convivemos com datas religiosas importantes e uma delas é o dia 12 de outubro, feriado nacional, dia de Nossa Senhora Aparecida, a padroeira do Brasil. Por ser feriado sabemos que alguns serviços nesse dia diminuem ou não funcionam, modificando o nosso dia a dia. É interessante perceber o crescimento do turismo religioso no Brasil e, segundo dados do Ministério do Turismo, 3,2 % dos viajantes brasileiros escolheram destinos religiosos no ano de 2006. A tendência da procura por destinos religiosos mostra que a fé não move só montanhas, mas turistas também. O turismo religioso fortalece a região onde ele acontece, como verificado em Aparecida do Norte, local onde os fiéis viajam em caravanas para louvar e agradecer a graça obtida a Nossa Senhora Aparecida. Outra festa religiosa que vem crescendo é o Círio de Nazaré, em Belém, causando grande repercussão na economia local e o fortalecimento de um “mercado religioso” que é bastante disputado. Em todo o País temos festas religiosas e podemos destacar a Festa de Santa Bárbara, na Bahia, a de São Sebastião, no Rio de Janeiro, a de São José de Ribamar, no Maranhão, e a Festa de Iemanjá em várias regiões do País, entre outras. Continuando o nosso percurso, as lideranças religiosas podem ser encontradas participando de partidos políticos, ocupando vagas no Senado, no Congresso Nacional, nas Assembleias Legislativas, nas Câmaras de Vereadores, o que demonstra a preocupação das religiões com o acesso ao poder político-partidário e nas decisões que envolvem o País. Além disso, símbolos religiosos estão presentes em vários locais como: crucifixos nos Fóruns, Bíblias e o Novo Testamento nos quartos de hotéis. Hoje existe uma discussão para a retirada desses símbolos de locais públicos. Os grupos religiosos utilizam fortemente a mídia e entram em nossa casa, como podemos verificar em diversos programas de televisão, programas de rádios, nas bancas de jornais e revistas, assim como também fazem “a utilização da mídia para o trabalho de proselitismo em massa e de propaganda religiosa (por isso chamadas de igrejas eletrônicas)” (SILVA, VAGNER GONÇALVES, 2007).

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A presença das religiões no campo da saúde “A religião é o campo de elaboração subjetiva em que a maioria da população latino-americana constrói de forma simbólica o sentido de sua vida e busca motivação para a superação da crise existencial colocada pela doença. Sem entender o olhar e a elaboração religiosa não se pode compreender a perspectiva com que a maioria dos usuários de serviços de saúde e dos seus profissionais se relaciona com a realidade” (VASCONCELOS, EYMARD MOURÃO 2006). As religiões se apresentam na área da saúde de diversas formas e podem ser visualizadas nas capelanias dos hospitais, na Santa Casa da Misericórdia, nos hospitais católicos e evangélicos, nos espaços inter-religiosos instituídos em hospitais e maternidades. Não podemos esquecer que o capítulo I dos Direitos dos Usuários dos Serviços e Ações de Saúde no Brasil, publicação do Ministério da Saúde (Brasília, 2007), aborda a Lei nº 9.982, de 14 de julho de 2000, que dispõe sobre a prestação de assistência religiosa nas entidades hospitalares públicas e privadas, bem como nos estabelecimentos prisionais civis e militares. Ainda é pouco percebido por todos nós que o termo orientação religiosa encontra-se em vários momentos nos relatórios finais das Conferências Nacionais de Saúde, o que demonstra que a saúde também é um campo de disputa e de poder para as tradições religiosas. No Conselho Nacional de Saúde, instância máxima de deliberação do Sistema Único de Saúde (SUS) que tem a finalidade de fiscalizar, deliberar e monitorar as políticas públicas de saúde, as religiões têm uma vaga, cujo representante é a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Isso quer dizer que as tradições religiosas e suas lideranças imprimem uma visão de mundo própria, assim como regulam e fazem intervenções no campo da saúde. Os gestores e profissionais de saúde podem ter ou não uma religião, ou uma postura ante as religiões e, ainda que de maneira inconsciente, imprimir sua escolha religiosa nos processos de saúde. Fora isso, não podemos esquecer que as lideranças religiosas são formadoras de opinião e influenciam o campo da saúde. Algumas práticas de saúde do SUS podem não ser absorvidas por determinados grupos religiosos ou ser uma interdição para os seus praticantes. É possível também observar que existem temas que geram calorosa discussão entre o campo religioso e o campo da saúde e, entre esses, destacamos: a epidemia de HIV-AIDS, o aborto, as pesquisas com células tronco, anencefalia e sexualidades. As lideranças religiosas ou grupos religiosos têm suas interpretações e considerações sobre esses temas de 69


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saúde, alguns são mais conservadores, outros mais afeitos a possibilidades de mudanças, mas todos são formadores de opinião em nossa sociedade e disputam espaços no campo da saúde e com as outras ciências. E não foi à toa que em dezembro de 2007, no Dia Mundial de Luta Contra a Aids, aconteceu um fato inédito no Cristo Redentor, na cidade do Rio de Janeiro, onde governo e líderes religiosos organizaram um ato lembrando a importância da luta contra o HIV e reconhecendo a postura contraditória de algumas tradições religiosas sobre o assunto: “A aids não é um castigo de Deus, como se imaginava no início da epidemia. É uma doença como outra qualquer, que pode atingir qualquer um de nós”, conforme a fala de um pastor integrante da Conic. O ato no Cristo Redentor foi organizado pelos governos federal, estadual e municipal e pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), com apoio da Unicef, da Unaids, da Opas, do Pnud e do Unfpa, dispensando qualquer comentário sobre esse assunto.

O imaginário sobre as religiões afro-brasileiras e suas repercussões no campo da saúde O campo religioso afro-brasileiro apresenta uma pluralidade e riqueza cultural de norte a sul do País. De acordo com a localização geográfica, interação com grupos não negros e origem na África, essa tradição religiosa vai tomando diversas denominações: do batuque do Rio Grande do Sul ao tambor de mina no Maranhão, passando pelo candomblé de diversas nações, pela umbanda, jurema, xambá e encantaria. Atualmente estima-se mais de 130 mil Terreiros espalhados pelo País, formando uma estrutura que marca de forma significativa a cultura brasileira. Ainda que hoje tenhamos um movimento da entrada da classe média branca, de pessoas oriundas das universidades e muitos homens chefiando os Terreiros, nesses espaços há uma predominância de população negra, número expressivo de mulheres como sacerdotisas ou ocupando funções importantes nessa tradição, pessoas de baixa renda e pouca escolaridade, moradores de subúrbios e periferias, mostrando um perfil que pode ser relacionado aos determinantes das condições de saúde e às situações de vulnerabilidades. As religiões afro-brasileiras permanecem no imaginário social brasileiro como locais da religião do mal, da religião do demônio, de feitiçaria, de gente perigosa, de gente bagunceira, malandra, desonesta, charlatã e outras representações negativas, o que coloca essa tradição religiosa ocupando um lugar de menor prestígio do que outras 70


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tradições, ficando em desvantagem na legitimidade social conquistada pelo campo religioso cristão, portanto, constituindo-se como um grupo religioso possível de negação de direitos. A negação de direitos ou o descaso com essa tradição religiosa pode ser observada quando os Programas de Saúde da Família não entram nos Terreiros, deixando muitas pessoas desassistidas, uma vez que nesses locais moram famílias ou grupo de pessoas. Do mesmo modo, podemos observar que muitas campanhas de saúde que utilizam os espaços religiosos para a mobilização da comunidade não vêm utilizando os espaços dos Terreiros, como, por exemplo, as campanhas de vacinação, salvo algumas exceções, como é o caso das prefeituras de Recife e Olinda, que lançaram campanha oficial de vacinação de idosos dentro de um Terreiro e vários Terreiros foram utilizados pelo poder público como espaços de campanhas de vacinação. Cabe aqui perguntar como o imaginário construído historicamente sobre a população negra e a população dos Terreiros interfere nas ações de saúde e no SUS? É garantido aos adeptos das religiões de matriz africana cuidados de saúde que considerem a cultura dos Terreiros? Como os adeptos das religiões de matriz africana estão inseridos no Sistema Único de Saúde? E mais, qual tem sido a contribuição da Política Nacional de Humanização do SUS no combate ao racismo, ao preconceito e à intolerância religiosa, uma vez que essa política tem como base o acolhimento?

Os modelos de atenção e cuidados nos Terreiros Para as religiões afro-brasileiras o corpo é a morada dos deuses e deusas. É pelo corpo que os voduns, inkisses, orixás, caboclos, preto-velhos e encantados retornam a Terra. O corpo possibilita a magia do reencontro dos deuses e deusas com os seres humanos, ultrapassa a sua dimensão do corpo físico, para tomar a dimensão do corpo sagrado. É por esse motivo que o corpo precisa estar bem-cuidado. Nos Terreiros a noção de saúde e doença está associada ao conceito de axé – energia vital, ou de ntu – o princípio da existência de tudo. Como axé é uma energia, pode aumentar ou diminuir, necessitando de cuidados para fortalecimento e manutenção dessa energia. A doença é considerada um desequilíbrio ou uma ruptura entre os mundos dos humanos e o mundo sobrenatural, sendo utilizados procedimentos rituais para estabelecer o reequilíbrio. A tradição religiosa afro-brasileira propõe uma forma de lidar com a saúde, em que aparecem diversos componentes, como: a escuta, o acolhimento, o cuidado, a integrali71


Religiões afro-brasileiras, políticas de saúde e a resposta à epidemia de aids

dade, a perspectiva individual e coletiva e a formação de redes de solidariedade. Nessa tradição a perspectiva de tratamento é substituída pela perspectiva de cuidado e zelo. Podemos destacar entre essas práticas de cuidado dos Terreiros: o jogo de búzios, o bori (dar de comer à cabeça), as iniciações, o uso de folhas e ervas, os banhos, as benzeduras, as beberagens, o aconselhamento e orientação para os serviços de saúde. O modelo de atenção e cuidados nos Terreiros possui relação com o Sistema Único de Saúde, como podemos verificar no quadro a seguir, demonstrando que essa tradição religiosa possui saberes e experiências importantes para influenciar e dar suporte às políticas públicas de saúde. Modelo de atenção e cuidados nos Terreiros

Políticas Públicas

O acolhimento e o toque no corpo.

Política Nacional de Humanização

O respeito aos idosos e ao saber dos mais velhos.

Política Nacional de Saúde do Idoso

A celebração da vida e do nascimento. O respeito às orientações sexuais. O conhecimento e o uso das folhas e ervas.

Política Nacional de Humanização do Parto e do Nascimento Programa Brasil sem Homofobia Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares

O cuidado com a alimentação.

Politica Nacional de Segurança Alimentar

A vivência comunitária, a dança, os cânticos, o lazer.

Política Nacional de Promoção da Saúde

O equilíbrio psicossocial.

Política Nacional de Saúde Mental

A noção de integralidade, de equidade e de inclusão de todas as pessoas.

Sistema Único de Saúde

Considerações finais Para finalizar, é importante ressaltar que uma parcela significativa de pessoas procuram os Terreiros com a finalidade de receber apoio e ajuda para suas aflições ou resolução dos seus problemas de saúde. Os Terreiros constituem-se, há séculos, em espaços de inclusão para os grupos historicamente excluídos, de acolhimento e de aconselhamento. As práticas rituais e as relações interpessoais que são construídas nesses espaços possibilitam as trocas afetivas, produção de conhecimento, acolhimento, promoção à saúde e prevenção de doenças e agravos. 72


José Marmo da Silva

A importância da participação comunitária na tradição religiosa afro-brasileira e os saberes ancestrais podem ser acionados para as diversas áreas do conhecimento, de modo a qualificar e garantir que os princípios do SUS se tornem realidade. Nessa perspectiva, podemos vislumbrar o aumento significativo de lideranças de Terreiros nos espaços formais e informais de controle social de políticas públicas. Os Terreiros, enquanto locais de promoção da saúde, podem ser considerados parceiros do SUS, entendendo que as práticas de saúde dos Terreiros e as práticas de saúde do SUS se complementam e se constituem como práticas legítimas e detentoras de saber. Os templos afro-religiosos e suas lideranças assumem, ainda que informalmente, atribuições na referência e contrarreferência de pessoas para os serviços que compõem a rede SUS, o que reitera seu papel estratégico para a defesa do Sistema Único de Saúde e deve incluir em sua pauta o monitoramento da implementação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, uma vez que uma das estratégias de gestão dessa política é a valorização dos saberes populares em saúde, incluindo os saberes das religiões de matrizes africanas.

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Mobilização de religiões afro-brasileiras contra HIV e aids no Brasil

Richard Parker1 Jonathan Garcia2 Miguel Muñoz-Laboy3

Apresentação Este artigo é baseado em dados coletados a partir do estudo de pesquisa: “Respostas religiosas ao HIV/AIDS no Brasil”, um projeto financiado pelo Eugene Kennedy Shiver National Institute for Child Health and Human Development (R01 HD050118-05; investigador principal, Richard G. Parker). Este estudo nacional foi realizado em quatro locais, nas seguintes instituições e pelos seus respectivos coordenadores: Rio de Janeiro (Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids / Abia - Veriano Terto Jr.); São Paulo (Universidade de São Paulo / USP - Vera Paiva); Porto Alegre (Universidade Federal do Rio Grande do Sul / UFRGS - Fernando Seffner) e Recife (Universidade Federal de Pernambuco / UFPE - Luís Felipe Rios). Este capítulo fornece uma análise do histórico sobre como os grupos afro-brasileiros se mobilizaram para combater vulnerabilidades relacionadas ao HIV nas esferas culturais e políticas. Destacam-se as formas como grupos afro-brasileiros têm contribuído para vários meios de mobilização social, devido à natureza transversal das vulnerabilidades que esses grupos religiosos enfrentam. Contribuímos com a literatura acerca da saúde e das questões relacionadas com os movimentos sociais, mostrando como as identidades coletivas são negociadas na resposta afro-brasileira com várias fontes de estigmas rela-

1 Columbia University, Department of Sociomedical Sciences, New York, New York; Contatos: rgp11@columbia.edu 2 Columbia University, Department of Sociomedical Sciences, New York, New York. 3 Temple University, Department of Social Work.


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cionados à raça, religião, gênero e sexualidade. Discutimos como historicamente a ação coletiva desses grupos religiosos se refletem na transformação teórica de identidades de resistência a identidades de projeto. Os incentivos para o ativismo hoje são afetados, em grande parte, por construções coletivas de identidades e como elas se cruzam com as estratégias políticas para a mobilização. Os objetivos da mobilização podem ser a mudança de política e a contestação cultural do estigma. A construção da cidadania tem sido influenciada por enquadramentos culturais de identidades que facilitam a reivindicação do indivíduo, bem como direitos coletivos. No caso do direito universal à saúde, a consolidação desse mandato constitucional encontrou barreiras devido a disparidades de saúde causadas ​​pela pobreza, bem como pelo estigma e a discriminação relacionada com a etnia, gênero, raça e sexualidade. O sistema público de saúde tem realizado projetos de construção de consciência e cuidado em todo o Brasil, com base em cooperação com as ONGs seculares, bem como em colaboração com os líderes religiosos [3, 4, 5]. As comunidades afro-brasileiras são “arenas dinâmicas de resistência que psiquicamente equilibram sua marginalidade nos círculos luso-brasileiros” [6]. Devido à sua proximidade moral para populações econômica e racialmente marginalizadas as comunidades de religiões afro-brasileiras criam espaços onde os negros, mulheres e pessoas estigmatizadas por causa de sua sexualidade podem-se tornar mais incorporados no tecido social [7, 8, 9, 10]. O sentido de comunidade que esses grupos religiosos possuem neutraliza as estruturas políticas, econômicas e culturais que marginalizam a maioria daqueles considerados de ascendência africana no Brasil de forma ampla. As comunidades afro-brasileiras e seus grupos religiosos são centrais para o movimento social negro [11] porque elas são lugares de “resistência”. Existe uma tensão teórica entre identidade religiosa e ampla solidariedade social. Isso, por sua vez, tornou possível começar a teorizar mudando construções de identidade em relação às experiências de opressão, bem como resistência a elas [12]. Tal visão foi mais claramente articulada por Alain Touraine e Manuel Castells, que têm procurado examinar as mudanças na formação de identidades sociais, culturais e políticas [13]. Castells distingue entre o que ele descreve como as identidades de legitimação, que são estabelecidas pelos setores dominantes da sociedade, para estender e racionalizar sua dominação sobre os outros atores sociais; identidades de resistência, que se refletem no reconhecimento por parte desses atores sociais que estão desvalorizadas e, ou, estigmatizadas pela lógica da dominação; e identidades de projeto, que são formadas quando os atores sociais, com base em recursos e alianças, atuam para redefinir sua identidade, mudando sua posição na sociedade, e transformar as estruturas sociais [12]. 76


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Métodos Nós nos concentramos em um estudo de caso particular na história contemporânea que oferece uma visão de amplos fenômenos teóricos e empíricos. A partir de um objeto central de estudo, o método de estudo de caso permite uma análise baseada na descrição densa recolhida por meio da observação de participante em seminários e eventos religiosos e discursos captados em entrevistas e conversas informais, enquanto desenha conexões empíricas e teóricas com as redes sociais, normas culturais, políticas e estruturas. Os métodos etnográficos incluem pesquisa de arquivos, nesse caso, da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids-Abia). Na Abia, nós consultamos o Cedoc, um arquivo nacional de literatura, incluindo livros, artigos de jornal e outros artefatos coletados de organizações não governamentais, agências governamentais, acadêmicos e editores em todo o Brasil. Realizamos, também, pesquisa de arquivos e entrevistas, em que, às vezes compartilhados, tinham informantes primários e memorandos históricos. Usando amostra de conveniência, foram recrutados 242 informantes para as entrevistas de história oral com líderes religiosos a partir das iniciativas da sociedade civil ligadas ao tema, 18 delas ligadas à Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde. Os líderes religiosos afro-brasileiros têm uma tradição oral de transmissão de conhecimento, portanto, o método da história oral foi a mais adequada. Nós também tivemos acesso a 16 entrevistas de história oral com agentes de saúde pública com atuação nacional. Por meio de pesquisa de arquivos e referências foram identificadas informantes-chave para dar entrevistas de história oral para fornecer uma perspectiva da saúde pública. Esses funcionários foram identificados a partir do então Programa Nacional de Aids, incluindo indivíduos que eram conhecidos por conta de seus envolvimentos com instituições religiosas desde os anos 1980. A análise de discurso pode capturar as complexidades na formação de identidades coletivas e descompactar alguns dos incentivos para a mobilização, com base na preocupação com as pessoas marginalizadas que se deparam com uma sinergia de vulnerabilidades. A análise de conteúdo foi especialmente, para captar a profundidade mais ampla das vulnerabilidades culturais e políticas para HIV e aids, especialmente as associadas com o estigma, discriminação e exclusão socioeconômica, bem como resistência e solidariedade.

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Construção do conhecimento e a negociação de identidades coletivas As intervenções na década de 1990 foram mais focadas na compreensão e interpretação da epidemia, mudando paradigmas de grupos de risco alienados para vulnerabilidades contextualizadas e estabelecendo as respostas nacionais que correspondiam com abordagens ascendentes da sociedade civil. Elas aumentaram a acessibilidade e aceitabilidade em grande parte devido aos discursos de solidariedade e cidadania que lançou as bases para o movimento social de Aids no Brasil em geral. De 1989-1994, no Rio de Janeiro, o Instituto de Estudos da Religião (Iser) realizou intervenções para a construção do conhecimento e da consciência coletiva. As mesmas pessoas envolvidas no Iser continuaram seu trabalho com grupos afro-brasileiros, entre 1996-2001, em colaboração com a Abia. Destacam-se dois projetos políticos no Brasil, Odo-Yá! (Iser, 1989-1994) e Arayê (Abia, 1996-2001), com líderes religiosos engajados principalmente na periferia urbana do Rio de Janeiro. Esses projetos mostram como a tradição africana interage com o conhecimento da saúde pública e alimentam as redes sociais que começaram entre as comunidades religiosas e os outros grupos da sociedade civil. Abia e o Instituto para o Estudo da Religião reuniram lideres afro-brasileiros, cientistas sociais, especialistas em saúde pública, médicos e ativistas da aids para a “construção” de conhecimento sobre aids que era culturalmente ressonante com valores afro-brasileiros e concepções de saúde. Abia tinha laços estreitos com esses ativistas e acadêmicos e desempenhou um papel importante na identificação do fato de que as campanhas nacionais de prevenção não estavam atingindo as populações marginalizadas sociocultural e economicamente. Grupos de discussão e intervenções trouxeram à luz alguns dos comportamentos de risco, como compartilhamento de navalhas em rituais. Iniciativas de pesquisa e intervenção com essas populações foram financiadas por agências internacionais doadoras, incluindo a Organização Mundial de Saúde/Programa Global de Aids, Diaconia (Suécia) e Terre des Hommes (Suíça). Essa ponte intersetorial e interdisciplinar tem sido essencial na resolução de um paradoxo: mudar “tradição africana” para preservar a “tradição africana”, já que o HIV ameaçava a cultura desses grupos religiosos. Intervenções na década de 1990 também começaram a mostrar como as questões relacionadas à raça, etnia, africanidade, sexualidade e gênero foram fundamentais para a mobilização afro-brasileira. Seguidores das religiões afro-brasileiras foram especialmente envolvidos no movimento negro e no movimento das mulheres negras. Linda – médica e membro da comunidade do candomblé (e não uma mãe de santo, mas uma “filha” na hierarquia religiosa), envolvida no ativismo da aids – fundou um grupo para mulheres 78


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HIV positivas para troca de experiências com as pessoas vivendo com HIV e aids. Linda explica que existem vulnerabilidades distintas, razão pela qual merecem a organização de grupos, particularmente para as mulheres HIV positivas: Uma mulher com HIV... não vai encontrar um nicho, seja no movimento das mulheres, seja no movimento sindical, se ela sente que ele pode não ser um bom ambiente para discutir o HIV. Quando reunimos nosso grupo de mulheres soropositivas foi por essas razões, porque elas realmente não se encaixam em qualquer lugar (Linda).

Dentro do movimento de mulheres há uma necessidade especial de criar espaços para as mulheres com HIV e aids, em função de elementos particulares como o estigma e a falta de autoestima que elas encontram-se. Linda percebeu que as mulheres eram “pessoas pobres, pessoas que trabalham ou donas de casa que não se sentiam confortáveis ​​em organizações de aids ou porque essas eram predominantemente masculinas, por causa da própria história da epidemia, ou porque essas instituições eram predominantemente gay.” Vários elementos surgem nesse discurso que são importantes na compreensão dos desafios para forjar uma identidade coletiva: há vários segmentos do movimento religioso afro-brasileiro. Existem questões específicas para as experiências vividas de mulheres negras com HIV e aids que criam limites emocionais e culturais. Isso não significa que as mulheres negras não são simpáticas para os problemas enfrentados por homens gays com HIV, mas que existem vulnerabilidades específicas para as mulheres em áreas pobres. Por exemplo, a violência contra as mulheres ligadas ao tráfico de drogas emerge nas narrativas das mães de santo e nas histórias das mulheres que vivem nesses ambientes violentos. O domínio dos cartéis de drogas em comunidades pobres cria outro nível de Governo sobre as mulheres e seus corpos. Assumir-se como HIV positivo às vezes é impossível para as mulheres dessas comunidades, porque “elas podem ser expulsas de suas casas por comandos de drogas”, segundo Linda. Houve o caso concreto de uma participante do grupo de mulheres HIV positivas. Ela teve que deixar o lugar onde ela morava porque sua cunhada estava bebendo e acabou dizendo que ela era HIV positiva... Houve um caso em que eles [os homens nos cartéis de drogas] mandaram as meninas para fazer o teste com as bagagens, e se elas fossem positivas não podiam voltar para suas casas (Linda).

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Esse comportamento foi confirmado por um ativista e uma mãe de santo que tinha testemunhado experiências semelhantes. Assim, essas narrativas revelam que as mulheres HIV positivas não só são estigmatizadas, mas também estão ativamente expulsas de suas comunidades devido a uma forma de teste de HIV obrigatória, aplicadas nesse caso pelo poder paralelo dos cartéis de drogas ao invés de um aparelho de saúde pública do Estado. Mãe Roberta afirma que a ideia de Acolhimento (inclusão e assistência) está na base das respostas dos grupos religiosos afro-brasileiros, nos níveis locais e nacional. Bem, temos várias formas de ação. Em princípio acolhimento humanizado se aplica para as pessoas que sofrem de algum tipo de doença, incluindo doenças sexualmente transmissíveis. Saudamos, recebemos, damos orientações sobre o Sistema Único de Saúde (SUS), ao qual nós referenciamos as pessoas, e também para a questão da religiosidade, da espiritualidade, pois hoje está cientificamente provado que a fé é o princípio da cura. Quando você visita a casa, a religião, a casa de candomblé, a pessoa deve ser acolhida, ele deve ser respeitada, porque uma casa de candomblé aceita as pessoas como elas são, independente de cor, raça, orientação sexual... (Mãe Roberta, sacerdotisa do candomblé).

Depois de 2001, com a maior descentralização do sistema de saúde, houve um impulso para líderes religiosos de se envolver mais em redes sociais, como associações de moradores onde líderes comunitários tratam questões locais, a Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde e Federações Umbandistas, bem como em ONGs focadas em HIV, raça, sexualidade, saúde da mulher e direitos. Essas conexões são importantes para apontar aqui, porque eles mostram que existe articulação entre esses líderes religiosos, das suas instituições e outras organizações da sociedade civil. Alguns grupos religiosos tinham adquirido financiamento do governo para realizar intervenções sociais relacionadas com o HIV por forjar uma identidade política transversal.

Interpretações de Controle Social Explorando os significados de controle social dentro de um grupo de pessoas, o grupo de afro-brasileiros revelou que o termo poderia ser usado para significar um fim em si, um processo que envolve responsabilidade e interação interpessoal. Em si, o controle social é defendido como um princípio constitucional que surgiu durante o movimento 80


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de democratização no final de 1980 em oposição à ditadura militar. Os participantes da oficina deram várias definições de controle social: • o direito à saúde; • a elaboração de orçamentos; • o processo de elaboração de agendas políticas conjuntas; • a responsabilidade da população para interferir na política; • atenção para populações específicas, tais como quilambolas; • a responsabilidade de educar-se para os seus direitos; • aprender a escrever propostas para bolsas e projetos; • ação coletiva por meio de fomento entre os educadores de pares; • participação em fóruns como o Fórum de ONGs relacionadas à aids; • a participação em conselhos de saúde estaduais e municipais; • garantir maior coerência na descentralização para os municípios; • formar profissionais de saúde, especialmente para reduzir o estigma relacionado à raça e ao HIV. Em certo sentido, os elementos processuais de participação em fóruns, buscando informações e agindo como um educador em suas próprias comunidades, trouxeram elementos que são essenciais para a construção e implementação de um princípio de transparência, exigindo maior qualidade do atendimento em um Sistema Unico de Saúde. Muitas das interpretações de controle social falam do mecanismo constitucional para reivindicar direitos para a responsabilidade cívica. O envolvimento de vários setores da sociedade civil e do Estado também é significativo nas narrativas da oficina, especialmente ressaltando a importância da colaboração entre os movimentos sociais por uma causa comum. Embora controle social seja um direito e uma responsabilidade, todo o grupo concordou que as pessoas mais pobres não tinham tempo nem a autoestima para exercer essas funções. Esses “direitos” incluem meios formais e informais de participação política. As metas para a “intervenção” tinham dimensões que eram estruturais (como a elaboração de orçamentos e de orientação política), cultural (como formar profissionais de saúde para reduzir o estigma) e comportamentais (como a responsabilidade de educar-se). Como sacerdotes e sacerdotisas pretendem fazer mudanças institucionais que beneficiam a saúde da população negra no Brasil, esse sentimento de uma nação africana no Brasil fomenta uma identidade coletiva. Problemas relacionados com a saúde dos negros brasileiros são apresentados a outros setores da sociedade civil e do Estado para criar discussões sobre o como a saúde pode ser vista como problema da sociedade mais am81


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pla. Grupos religiosos afro-brasileiros juntaram movimentos sociais amplos de saúde. Na mobilização religiosa afro-brasileira em torno do HIV e da aids, grupos religiosos e outros líderes utilizaram os princípios legais de participação social e da descentralização para conduzir a ação coletiva e reivindicar direitos à saúde nos níveis locais e nacional. Esse quadro permitiu a exploração dos impactos na etnia e da religião sobre o HIV e o acesso maior a movimentos de saúde mais gerais. Os líderes religiosos têm sido fundamentais para trazer reivindicações a fóruns formais e informais de negociação política e de luta contra várias dimensões de estigma.

Conclusão Parece haver tensões nas ideologias de cidadania e solidariedade, quando consideramos a formação da identidade coletiva. Uma negociação entre a colaboração com o Estado e a contestação de suas políticas guiou estruturas culturais e políticas para o ativismo de aids em comunidades afro-brasileiras religiosas. Provavelmente, no caso do Brasil e na ação coletiva religiosa, definir vulnerabilidade baseada em múltiplas desigualdades tem sido uma estratégia eficaz contra a suposição de democracia racial – uma história de mobilização em torno das questões de saúde coletiva com base em ideologias de valorização da diversidade, bem como da solidariedade. As políticas de identidade e as ideologias de solidariedade foram negociadas nas respostas religiosas afro-brasileiras ao HIV e aids. Paradoxalmente, a linguagem que diferencia esses grupos “marginalizados”/”vulneráveis” de grupos “dominantes” está pre­sente ao lado de narrativas que mostram a importância da solidariedade entre os afro-brasileiros e grupos religiosos do movimento social brasileiro de aids em geral. A mobilização de redes e ONGs seculares foram importantes na mobilização dos líderes afro-brasileiros desde o início da epidemia. As políticas de identidade têm sido criticadas por criar fraturas em movimentos sociais em uma sociedade multicultural, onde os indivíduos são, em certo sentido, feitos para escolher quais identidades defender, às vezes trocando um conjunto de direitos por outro [12]. Dito isso, no movimento social de aids a mobilização religiosa afro-brasileira é uma das mais inclusivas, pois serve-se de argumentos em favor das igualdades de gênero e étnico-racial, contra a discriminação baseada na sexualidade e para a importância da mobilização popular que envolve outras religiões, também. Os grupos religiosos têm sido muito abertos para trabalhar em questões de saúde pública, traduzindo a comunicação de linguagem tecnocrática para as comunidades locais onde 82


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o Estado de outra forma não chega. Em certo sentido, esse movimento social cria uma identidade de grupo transversal que politiza as vulnerabilidades das pessoas socialmente marginalizadas. O conceito de acolhimento transcende a ideia de exclusão social, no sentido de que ela inspira resistência e colaboração. É necessário reconhecer uma fonte dominante de onde o estigma e a desvalorização são derivados, a fim de formar identidades de resistência, de acordo com Castells, e líderes religiosos afro-brasileiros identificaram metas culturais, econômicas e políticas para a intervenção em instituições como o Sistema Único de Saúde. Mas, ao mesmo tempo, o Programa Nacional de Aids tem sido um aliado a esses grupos “marginalizados” em várias instâncias. O fato de o Estado não alcançar comunidades pobres e marginalizadas, onde a maioria dos Terreiros é encontrada, aponta para uma forma potencial em que a mobilização afro-brasileira pode melhorar o acesso à saúde nessas comunidades: por meio da formação de identidades de projeto utilizadas para neutralizar a sua posição e transformar a estrutura social e política. Essa nova forma de identidade é mais visível na formação da Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde. Colaborações com as elites, os doadores internacionais e os burocratas, entre outras alianças, têm sido essenciais na conversão de inclusão por meio de acolhimento em resistência e ativismo. Com o ativismo se traduz o cuidado pelo corpo humano em cuidados para o corpo social.

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A construção conjunta de políticas públicas entre as religiões de matriz africana, Estado e municípios no Estado Laico: aprendizado mútuo no enfrentamento das DST/AIDS

Paula de Oliveira e Sousa Nestes 30 anos de epidemia de aids no Brasil, o perfil das pessoas portadoras do HIV (vírus da imunodeficiência humana) vem mudando e o trabalho desenvolvido pelo Governo em parceria com a sociedade civil também. No início da epidemia religiosos de diversas tradições, entre elas as de matriz africana, procuravam o Programa Estadual de DST/AIDS em busca de informações sobre as formas de transmissão do vírus para que pudessem desenvolver trabalhos de prevenção em suas comunidades. Nessa época o programa fazia oficinas com diversos grupos religiosos sobre formas de transmissão e as religiões afro-brasileiras traziam suas especificidades, como o uso de navalha nos rituais religiosos. Em 1985, em resposta a tal necessidade, a Coordenação do Programa Estadual apoiou religiosos do candomblé de São Paulo a elaborar uma cartilha sobre biossegurança com orientações para realização nos rituais, como o uso de navalha e outros objetos perfurocortantes, de forma segura (SOUSA, P. e COLS., 2010). Em 1991 a Gerência de Prevenção realizou novamente oficina sobre DST/AIDS com diversos participantes de religiões de matriz africana, com o objetivo de formar multiplicadores. Houve a participação tanto de lideranças como dos adeptos com um grande envolvimento nas atividades propostas, entretanto, devido a várias questões, aquele trabalho não teve continuidade. Naquele momento os Terreiros já eram vistos pela Coordenação do Programa Estadual como um espaço importante devido ao seu acolhimento a toda e qualquer população, inclusive as mais excluídas socialmente, como gays e “profissionais do sexo”. Em 2002 a ONG Grupo de Valorização do Trabalho em Rede (GVTR) solicitou apoio técnico à Prevenção da Coordenação do Programa Estadual de DST/AIDS para realiza-


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ção de capacitação para multiplicadores em DST/AIDS nas comunidades religiosas afro-brasileiras do município de São Paulo. A oficina ocorreu em outubro de 2002. Nesse encontro foram levantadas algumas dificuldades que os Terreiros estavam encontrando na execução desse trabalho, assim como outras, junto ao sistema de saúde. A convite do Grupo de Valorização do Trabalho em Rede (GVTR) outras denominações religiosas participaram da oficina. As discussões nessa oficina foram mais amplas, pensando as possíveis ações de prevenção à aids nesse espaço e não apenas discussões sobre as formas de transmissão. Nesse momento houve mudança na metodologia de trabalho com o segmento religioso. A Coordenação do Programa Estadual de DST/AIDS vinha realizando capacitações de caráter informativo e educativo e refletimos, junto à ONG GVTR, que deveríamos desenvolver uma metodologia de trabalho de prevenção com religiosos que fosse mais adequada a esse grupo. Um trabalho onde houvesse respeito ao conjunto de crenças de cada segmento religioso, utilizando uma linguagem apropriada e que houvesse um diálogo entre as sabedorias religiosas e os conhecimentos científicos. Essa metodologia deveria poder ser replicada pelos municípios e religiosos do Estado de São Paulo que tivessem interesse no tema. Sentiu-se necessidade de uma discussão contínua sobre o trabalho desenvolvido pelos Terreiros e pelos municípios onde, por meio da reflexão e sistematização da prática, fosse ampliada e aprimorada sua metodologia. A partir dessas questões foi criado o Grupo de Trabalho Aids e Religião (GT Religiões). No seu início o GT Religiões contava com poucos participantes e o primeiro município com ações efetivas e participação assídua foi Piracicaba. Paulatinamente, o GT Religiões chegou à sua configuração atual, sendo formado por religiosos, representantes dos Programas Estadual e Municipais de DST/AIDS, ONGs que desenvolvem trabalhos com grupos religiosos e membros da sociedade civil com especial interesse no tema. Constituiu-se em um espaço reconhecido de aquisição de conhecimento, troca de saberes e experiências e elaboração de estratégias de prevenção partindo da vivência dos diversos grupos religiosos. Com o passar do tempo esse espaço foi se fortalecendo e ampliando o número de municípios que procuravam o GT Religiões com o objetivo de implantar ou implementar ações de prevenção com grupos específicos frequentadores de espaços religiosos. A realização de seminários foi uma estratégia utilizada para troca de experiências e elaboração de diretrizes para este trabalho. 86


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As capacitações para os profissionais de saúde de vários municípios do Estado para trabalhar com religiosos foram realizadas pela ONG GVTR quando se tratava de religiões afro-brasileiras e pela ONG Koinonia para as igrejas evangélicas. No início haviam poucas referências de trabalhos organizados em saúde com grupos religiosos. José Marmo, coordenador da Rede de Religiões Afro-brasileiras, foi fundamental no início desse processo. Ele se propôs a contribuir, com a sua experiência, nas nossas reflexões. Marmo já havia realizado em 2002 o “1º Seminário Nacional Religiões Afro-brasileiras e Saúde” e estava construindo a “A Rede Nacional de Religiões Afro-brasileiras e Saúde”, que trabalha na perspectiva de construção de políticas públicas para a saúde do povo de Terreiro e tem como missão a luta pelo direito humano à saúde com ênfase nas questões de gênero e raça. No ano de 2003, foi realizado o segundo seminário em São Luís do Maranhão, onde já tivemos a participação de um representante do GT Religiões. No ano seguinte, a ONG GVTR passou a compor essa rede e a construir a Rede Estadual de Religiões Afro-brasileiras e Saúde em São Paulo. Nesse processo de construção de conhecimento e políticas públicas foi fundamental a condução do GVTR envolvendo não só religiosos, mas os profissionais de saúde e coordenadores de Programas de DST/ AIDS nessa rede. Em 2002, o sistema de financiamento do Ministério da Saúde de recursos para o desenvolvimento de ações municipais e estaduais em DST/AIDS passou a ser Fundo a Fundo. Essa política de financiamento contemplava, a partir de 2004, 145 municípios do Estado de São Paulo com o maior número de casos de aids (TAGLIETTA M., 2006). Esses 145 municípios são o grande foco das ações estaduais de DST/AIDS não excluindo o restante dos municípios, mas tendo esses uma prioridade estabelecida pelo critério epidemiológico. Dessa forma, o alvo inicial de divulgação e discussão do trabalho do GT Religiões foram nesses municípios. O planejamento das ações de DST/AIDS para utilização dos recursos advindos desse financiamento chamava-se Plano de Ações e Metas (PAM) e era realizado ano a ano pelos municípios, com auxílio técnico do Estado. Atualmente, esse planejamento tem o nome de Programação Anual de Metas. A PAM é um importante instrumento de planejamento e monitoramento das ações realizadas pelos municípios que recebem esse incentivo financeiro às DST/AIDS, mas as ações de prevenção não se limitam às colocadas nesse instrumento. Os municípios costumam colocar nesse planejamento apenas as ações que necessitam de recurso financeiro para sua realização, não explicitando no documento da PAM as ações que não redundam em gastos ou que envolvem apenas verbas municipais.

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Essa observação é importante porque muitos municípios realizam ações de prevenção com grupos religiosos e não as colocaram na PAM. Infelizmente os municípios não têm um instrumento padrão de planejamento outro que não esse para monitorarmos quantos colocaram em seus planejamentos ações com esses grupos e particularmente com religiosos de matriz africana. Porém, no decorrer do tempo, mesmo essas ações foram sendo colocadas na PAM dos municípios, dando-lhes maior visibilidade, na medida em que esse planejamento é discutido nos conselhos municipais de saúde. No Sistema Único de Saúde a porta de entrada para os serviços é a Rede de Atenção Básica, onde ocorrem a maioria das ações de saúde, tanto de assistência como de prevenção a diversos agravos, antes de serem encaminhadas para a média e alta complexidade. A Coordenação do Programa Estadual tem como estratégia a descentralização das ações de prevenção às DST/AIDS e assistência às DST na Rede de Atenção Básica dos municípios do Estado. Por sua capilaridade nos municípios e pelo fato de ser a porta de entrada do sistema, é um lócus importante de prevenção (Centro de Treinamento e Referência às DST/AIDS: 2007). Esse trabalho, que no ano de 2012 abrangeu 550 dos 645 municípios do Estado, mostra-se oportuno para discussão de ações extramuros, envolvendo possíveis parceiros no entorno das unidades, entre os quais os espaços religiosos. O GT Religiões sempre teve a Rede Básica como importante parceiro para ações preventivas, não só de DST/AIDS, mas de outros agravos à saúde. O movimento feito pelos Programas de Estratégia de Saúde da Família foi muito interessante, trazendo, no primeiro momento, a dificuldade dos agentes comunitários de saúde de adentrar os espaços dos Terreiros quando em sua área de abrangência, por desconhecerem ou até mesmo por questões de preconceito, o que levava ao não cadastramento de várias famílias que moravam no espaço dos Terreiros. Esse cadastramento passou a ser feito após a capacitação dos agentes da Saúde da Família pela ONG GVTR. O Programa Municipal de DST/AIDS de Piracicaba foi pioneiro nesse trabalho, estabelecendo parceria com a rede básica de saúde para realização de ações nos Terreiros. Alguns municípios, em vez da Rede Básica, fizeram parcerias com os Centros de Testagem e Aconselhamento (CTA). Cada município, de acordo com sua realidade, elegeu seus parceiros para esse trabalho. À medida que essas parcerias se consolidavam, formaram-se Grupos de Trabalho municipais e regionais, alguns com desenvolvimento de ações estruturadas e contínuas; outros, apresentaram-se mais frágeis por ficarem focados no profissional que o conduz, perdendo a continuidade quando esses profissionais, afastavam-se. Outro fator que não pode deixar de ser mencionado é a falta de envolvimento do gestor municipal com essa temática, dificultando o desenvolvimento do trabalho. 88


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O GT Estadual, por ser um grupo que se manteve todos esses anos, é a referência para os municípios com suas lideranças de diversas tradições e tem papel fundamental para auxiliar na formação desses GTs locais. Apesar das dificuldades encontradas e de às vezes os GTs locais não se sustentarem, o movimento no sentido de agregar pessoas em torno dessa temática é extremamente importante e incentivado pelo GT Estadual. Os religiosos que compõe o GT Estadual auxiliam na interlocução com as lideranças religiosas das localidades para adesão ao trabalho. Os religiosos afro-brasileiros, particularmente, preferem se aproximar dos programas municipais de aids por indicação de pais e mães de santo que compõem o GT Estadual devido à história de violação de direitos do Estado com essas religiões em nosso País. Desde 2002, quando se iniciou o GT Religiões, as ações de prevenção e assistência discutidas e realizadas pelos diversos segmentos religiosos, com suas especificidades, foram se constituindo em pautas comuns nas discussões, seminários e congressos de DST/AIDS. Hoje, a realidade no campo da aids é muito diversa da encontrada no início da epidemia. Há 30 anos a necessidade eram informações básicas sobre HIV/AIDS. Hoje, as questões vão muito além, temos que incluir a religião como parceiros no enfrentamento às vulnerabilidades, temos que discutir a discriminação e o preconceito religioso e racial dentro dos serviços de saúde, temos que expandir o trabalho de prevenção nos espaços religiosos para mais municípios. Se muito ainda temos por fazer, precisamos valorizar o muito que se fez durante esses anos, agregando pessoas em torno de um tema polêmico, como a questão religiosa de forma respeitosa à cultura de cada tradição. Expandindo as ações de prevenção e assistência às DST/AIDS, fortalecendo parcerias institucionais e não governamentais e dando sustentabilidade para essas ações por meio de incorporação das mesmas nos Planos Municipais e de Saúde e na PAM. Jamais poderíamos imaginar que a reunião agendada na “casinha”, que era como carinhosamente chamávamos o local onde estava situada a Divisão de Prevenção do Centro de Referência e Treinamento de DST/AIDS, sede do Programa Estadual, pudesse ser a semente desse trabalho que hoje frutifica. Lembramos um jovem franzino, difícil de chamar de “Pai”, pois o rosto demasiado juvenil conflitava com a missão pela qual nos procurava: “Gostaríamos de fazer um trabalho de aids nos Terreiros e gostaríamos que vocês estivessem conosco.” Assim começamos a discussão do trabalho. Com essa e outras parcerias que foram-se agregando através do tempo e com uma proposta de trabalho que envolve empenho e dedicação, temos avançado na resposta à epidemia de aids em nosso Estado, usufruindo do espaço de várias comunidades religiosas e do privilégio de sua proximidade com a população.

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Religiões afro-brasileiras e o campo da saúde: reflexões de um militante branco, médico e não iniciado

István van Deursen Varga*

De São Paulo ao Maranhão No que se refere à experiência profissional, meu contato com as religiões afro-brasileiras iniciava-se em 1986, quando, como médico sanitarista e integrante (posteriormente coordenador) do Grupo de Trabalho (GT) em Práticas Alternativas de Saúde da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo (SES-SP), organizamos e coordenamos o seminário “Medicina e Cura”, que tinha por objetivo iniciar um diálogo do sistema de saúde, ainda nos prelúdios do chamado Sistema Único e Descentralizado de Saúde (Suds), precursor do SUS (Sistema Único de Saúde, instituído pela Constituição de 1988) no Estado de São Paulo, com as demais práticas culturais de saúde (então ditas “alternativas”) presentes no cenário social do Estado e com seus atores. À época já nos ficava patente que, à diferença de outras práticas “alternativas” de saúde (entre elas a homeopatia, a acupuntura, a medicina antroposófica, a fitoterapia, p. ex.), a perspectiva de diálogo do sistema com as práticas de cura de matriz africana e com seus atores, sobretudo praticantes de religiões afro-brasileiras (notadamente do candomblé e da umbanda, no cenário de São Paulo), constituía um desafio ainda muito mais radical e de mais difícil superação; nas palavras de uma médica homeopata, à época: “não misturem a homeopatia, que é ciência, com essas superstições”. Essa primeira experiência, por sua vez, provocou e contribuiu significativamente para minha formação pós-graduada, e essa questão torna a transparecer em minha disserta-

* Universidade Federal do Maranhão, Departamento de Sociologia e Antropologia, Programa de Pós-graduação em Saúde e Ambiente, Núcleo de extensão e pesquisa com populações e comunidades Rurais, Negras quilombolas e Indígenas (NuRuNI).


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ção de mestrado em Antropologia Social1, durante cuja pesquisa fui surpreendido, entre outras, pela constatação de que, apesar do intensíssimo antagonismo entre os médicos da então Academia Imperial de Medicina e os primeiros homeopatas no Brasil, durante a segunda metade do século 19, ambos os grupos partilhavam de posições – francamente racistas – muito semelhantes em relação às populações negra e indígena no País e a suas respectivas culturas e práticas. Minha experiência (ainda indireta) com o tema aprofundou-se também com o trabalho e militância no campo da saúde para os povos indígenas, desde 1981, e com o trabalho como docente do Departamento de Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), a partir de 1995, tanto junto a vários de seus cursos de graduação nos campos das Ciências Humanas e da Saúde, quanto junto ao mestrado em Saúde e Ambiente, expressando-se também em minha tese de doutorado em Saúde Pública2. Meu engajamento mais direto e efetivo no campo e nos debates envolvendo a questão racial no Brasil iniciava-se, no entanto, logo após o doutorado, ainda em 2002, quando, iniciando estágio de pós-doutorado junto à mesma FSP/USP, tive a oportunidade de atuar junto à Gerência de Prevenção do CRT DST/AIDS (Centro de Referência e Treinamento em DST/AIDS, da SES-SP), sede também da CE DST/AIDS (Coordenação Estadual de DST/AIDS), então sob efetiva gestão colegiada e direção de Maria do Carmo Sales Monteiro, brilhante enfermeira sanitarista e militante do movimento negro, que foi homenageada pelo Grupo de Valorização do Trabalho em Rede (GVTR), na ocasião do sétimo aniversário de sua fundação, com o Prêmio Afroaids 2008 – “Qualidade de Vida”. Em 17 de setembro de 2002, o doutor Luís Eduardo Batista, pesquisador do Instituto de Saúde da SES-SP, fez uma apresentação pública no CRT DST/AIDS dos resultados de sua pesquisa de doutorado, intitulada “Mulheres e Homens Negros: Saúde, Doença e Morte”, um estudo sobre a mortalidade da população negra em São Paulo. Essa apresentação, planejada pela então Gerência de Prevenção, chamou atenção para a dimensão racial das iniquidades em saúde no estado, e para a urgência de trabalho, nesta perspectiva, junto à clientela do próprio CRT DST/AIDS, assim como de toda rede de serviços da CE DST/AIDS, iniciando por seu recadastramento, no que se referia ao quesito cor, a partir da autoidentificação dos usuários (à diferença do que vinha sendo praticado pelo CRT, como por boa parte dos serviços de saúde, pela heteroclassificação). Tanto a capacitação dos funcionários do CRT para a pesquisa quanto sua própria execução foram coordenados pela doutora Andréa Rafael Alves, da Gerência de Assistência do CRT, com a consultoria da doutora Fernanda Lopes, do Núcleo de Estudos para a Prevenção da AIDS, do Instituto de Psicologia da USP, que naquele momento finalizava 92


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sua tese de doutorado intitulada “Mulheres Negras e não Negras vivendo com HIV/AIDS no Estado de São Paulo”, com informações também coletadas no CRT DST/AIDS. A sensibilização dos gestores do CRT-CE DST/AIDS por esse processo materializou-se na implantação do Grupo de Trabalho (GT) Etnias e Vulnerabilidade, em dezembro de 2002, novamente na Gerência de Prevenção do CRT-CE, com o objetivo de integrar as várias iniciativas junto a comunidades negras e indígenas que vinham sendo desenvolvidas no âmbito da CE DST/AIDS. O Grupo de Valorização do Trabalho em Rede (GVTR), fundado em 2001 – que desde então, por iniciativa própria, estabelecia cooperação com o CRT para enfrentamento dessas questões, por intermédio do articulador daquele coletivo, Pai Celso de Oxaguian, com vistas a um projeto de prevenção às DST a ser desenvolvido junto a comunidades de Terreiro –, a partir de 2002 passa a ter um papel fundamental na continuidade e aprofundamento desse processo na instituição, bem como na constituição do GT Etnias e Vulnerabilidades. O GT Religiões da CE simultaneamente realizou, em 2003, o 1º Seminário Sexualidade e Espiritualidade, de cuja organização participamos, a partir do GT Etnias e Vulnerabilidade em parceria com várias entidades religiosas, objetivando o levantamento de ações de prevenção às DST em andamento, ou já realizadas, nos espaços e no dia a dia das diferentes religiões que aderiram a esse processo, já que convidadas a participar. As propostas resultantes desse evento desencadearam as providências para a ampliação do GT-Religiões junto à Gerência de Prevenção do CRT, composto por representantes de religiões cristãs, de matrizes africanas, espíritas, ciganas, entre outras, interessadas em desenvolver ações de atenção às DST e, ou, aprofundar e participar de um diálogo inter-religioso a respeito – estratégia da maior importância no contexto dos conflitos envolvendo os então posicionamentos, sobretudo da Igreja Católica, com relação ao uso de preservativos, por exemplo. Os processos, portanto, se deram simultaneamente e se complementavam em alguma medida. Os trabalhos desenvolvidos por ambos GTs, além de vários projetos de pesquisa sobre o perfil dos usuários do CRT, trouxeram importantes subsídios, tanto, de imediato, para a melhoria de seu acolhimento por aquele serviço – e da interlocução desse, do Programa Estadual de DST/AIDS de SP, bem como do próprio Programa Nacional de DST/ AIDS, com os movimentos negro e indígena no Estado e mesmo no âmbito nacional –, quanto para o processo de articulação e formulação da política de saúde para a população negra do Estado de São Paulo. Nosso envolvimento com essas articulações e discussões nos renderam, além da excepcional oportunidade e privilégio de participar ativamente desse processo, também os 93


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nossos primeiros contatos com o(s) movimento(s) negro(s), a ponto de ter tido a grande honra de ser indicado, pela própria Gerente de Prevenção do CRT, representante da instituição, para participar do 2º Seminário Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde (em que foi oficialmente criada a própria Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde), e como delegado institucional na 1ª Conferência Municipal de Saúde da População Negra de São Paulo, em 2003. De retorno ao Maranhão, a partir de outubro de 2003 assumimos a coordenação do mestrado em Saúde e Ambiente da UFMA em sucessivas gestões (2003-2009), durante as quais se implantaram, entre outras, as disciplinas Saúde da População Negra, Saúde de Populações e Comunidades Indígenas e a linha de pesquisa Raça, Etnia, Gênero e Saúde (2006-atuais); participamos da criação e coordenamos o Núcleo de extensão e pesquisa com populações e comunidades Rurais, Negras quilombolas e Indígenas (NuRuNI), junto ao mesmo programa de pós-graduação (2006-atual); orientamos e co-orientamos cinco dissertações de mestrado e coordenamos e participamos da execução dos seguintes projetos, todos envolvendo diretamente esta temática racial e a saúde da população negra: • Indicadores de qualidade de vida de comunidades rurais, quilombolas e indígenas, na Pré-Amazônia (2004-2009); • Acolhimento e acesso ao diagnóstico e tratamento do HIV/Aids para a população negra, no Maranhão e em São Paulo (2005-2008); • Acolhimento e acesso ao diagnóstico e tratamento do HIV/Aids para a população negra, em dois SAEs de São Luís/MA (2007); • Curso de Especialização em Saúde da Mulher Negra (2006-2011). Dentre esses temas, o projeto “Acolhimento e acesso ao diagnóstico e tratamento do HIV/AIDS para a população negra, no Maranhão e em São Paulo” (“Acolhimento... MA-SP”), que contou com a participação fundamental de membros e representantes da Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde, foi encaminhado à chamada para a seleção de pesquisas sobre população negra e HIV/AIDS nº 2/2005, do Programa Nacional de DST/AIDS – Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial – Fundo das Nações Unidas para a Educação e Cultura (PN DST/AIDS-SEPPIR-UNESCO), e foi aprovado pela Comissão de Seleção da referida chamada após alguns ajustes em sua formulação original, conforme exigências da própria comissão, gerando, para sua execução, o contrato Unesco/Fundação Souzândrade para o Desenvolvimento da UFMA número SA-4821/2006, de 18/5/2006 (cuja liberação de recursos pela Unesco viria a ocorrer, no entanto, apenas em julho/2006). 94


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A instituição executora do projeto foi o mestrado em Saúde e Ambiente/UFMA (tendo como instituição mantenedora a Fundação Sousândrade de Apoio ao Desenvolvimento da UFMA), com as seguintes instituições e entidades parceiras: • Departamento de Atenção às DST/AIDS da Secretaria de Estado da Saúde do Maranhão (SES-MA); • Centro de Cultura Negra do Maranhão (CCN-MA); • Centro de Referência e Treinamento em DST/AIDS – SES-SP (CRT/SES-SP); • Faculdade de Saúde Pública da USP; • Centro de Formação e Desenvolvimento dos Trabalhadores da Saúde da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo (Cefor/SMS-SP); • Centro de Estudo das Relações de Trabalho e das Desigualdades (Ceert) • Centro de Consciência Negra de Pedreiras (CCNP); • Grupo de Valorização do Trabalho em Rede/SP (GVTR/SP); • Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde. A pesquisa proposta neste projeto caracterizava-se como uma pesquisa em serviço, que pretendia sensibilizar gestores dos Programas Municipais de DST/AIDS e equipes dos Serviços de Atendimento Especializado (SAEs) do Maranhão para a dimensão étnico-racial da epidemia e mobilizá-los e instrumentalizá-los para o enfrentamento dos diversos desafios sociais e culturais que se colocam para a adoção do método da autoidentificação para a definição da cor/raça dos usuários dos SAEs e para a adoção, entre suas equipes, de uma dinâmica de trabalho que propicie a permanente abertura e busca de interação com os movimentos sociais e segmentos vulneráveis, como estratégia para o enraizamento de um processo de avaliação participativa permanente sobre a qualidade do acolhimento e dos serviços prestados. O projeto tinha, como objetivos específicos: • promover a capacitação de profissionais das equipes dos SAEs da Secretaria de Estado da Saúde do Maranhão (SES-MA) para a adoção da autoidentificação como método para o preenchimento do quesito cor/raça no cadastramento (e recadastramento) de suas clientelas; • colaborar na organização e realização do recadastramento e pesquisa das clientelas dos SAEs da SES-MA, com a adoção da autoidentificação como método para o preenchimento do quesito cor/raça de suas clientelas; • Prestar assessoria às instituições e serviços de referência para atenção às pessoas portadoras do HIV ou vivendo com aids, do Maranhão e de São 95


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Paulo, para planejamento de ações socioculturalmente adequadas para seu controle e assistência entre a população negra. No que se refere à metodologia, o projeto previa reuniões preliminares com as equipes dos SAEs e respectivas secretarias municipais de saúde de referência. Durante essas reuniões seriam realizados contatos e articulações para a organização e realização da oficina de capacitação. A oficina constaria de 24 horas-aula, seria desenvolvida segundo metodologia problematizadora e ofereceria os seguintes conteúdos: • aspectos da formação étnico-racial das populações brasileira e maranhense; • aspectos do processo de jugo, exploração, invisibilização e minorização a que foram submetidos os contingentes negros e indígenas da população brasileira e maranhense; • a questão da identidade nas sociedades contemporâneas; • os conceitos de risco e vulnerabilidade às DST e sua trajetória; • política nacional de saúde; • política nacional de atenção às DST; • política nacional de saúde para a população negra; • política nacional de saúde para a população indígena; • a importância do quesito cor/raça nos serviços de saúde; • princípios e técnicas para elaboração de projeto de pesquisa acerca das clientelas dos SAEs. Nessa época, em São Paulo, Pai Celso de Oxaguian passava a compor, como representante do Fórum das Organizações Não Governamentais/AIDS do Estado de São Paulo, o GT Aids e População Negra, do Comitê Técnico de Saúde da População Negra da SES-SP, criado, em 2007, junto ao Grupo Técnico de Ações Estratégicas (GTAE), parte integrante da estrutura daquela secretaria. No Maranhão, quanto ao nosso projeto “Acolhimento... MA-SP”, a Unidade de Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico (UPDT) do PN DST/AIDS, no entanto – por considerar insatisfatórios os resultados alcançados até 11/6/2007 (data de realização do “2° Workshop de Acompanhamento dos Projetos de Pesquisa da Chamada 323/2005”, em Brasília), por considerar que a metodologia adotada não era “científica” (sic) e priorizando a obtenção de dados quantitativos que demonstrassem ou refutassem, com rigor estatístico, a tese da presença de práticas racistas em serviços de saúde 96


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–, impôs uma profunda reformulação do projeto, de modo que, a curtíssimo prazo, tivéssemos os resultados finais da pesquisa com todos os dados coletados processados e analisados. Para tanto, reduziu-se drasticamente o universo da nova pesquisa, que passou a ser denominada “Acolhimento e acesso ao diagnóstico e tratamento do HIV/AIDS para a população negra, em dois SAEs de São Luís/MA” (“Acolhimento... 2 SAEs São Luís/MA”3,4 ), que passou a ser o dos usuários de dois Serviços de Atendimento Especializado em DST/ AIDS (SAEs) em São Luís/MA: o Hospital Presidente Vargas (HPV), gerenciado pelo Governo do Estado, com aproximadamente 1.355 pacientes inscritos, e o Centro de Saúde de Fátima (CSF), com 720 pacientes cadastrados e gerenciado pelo município de São Luís, num total de 2.075 usuários. A análise dos dados colhidos confirmou no geral o que diversos autores e outras pesquisas já vinham demonstrando: também em São Luís, a população negra apresenta piores condições de vida, maiores vulnerabilidades programática, social e individual e está exposta a maiores riscos de contaminação e transmissão do HIV do que a população “não negra” – motivo porque deve ser objeto de maiores e mais específicas atenções e investimentos por parte das políticas e instituições públicas. Com a conclusão satisfatória, dentro do novo prazo estabelecido, do subprojeto “Acolhimento... 2 SAEs São Luís/MA”, que teve seu relatório final aprovado pela UPDT-PN DST/AIDS, a terceira e última parcela de recursos do projeto original “Acolhimento... MA-SP” foi liberada e pudemos retomar a consecução seus objetivos e metas originais. À conclusão da execução do projeto, em agosto de 2008, havíamos chegado aos seguintes resultados:

• realização de duas “Oficinas do quesito cor”, envolvendo funcionários de todos os SAEs e CTAs do Maranhão (meta inicialmente prevista no projeto: realização de apenas uma oficina exclusiva para funcionários dos SAEs), com a participação de vários profissionais de São Paulo com experiência neste campo (novamente, de Pai Celso de Oxaguian e, na segunda oficina, também de Maria do Carmo Sales Monteiro, atualmente no Cefor, que abriu os caminhos para todo esse processo quando fora Gerente de Prevenção do CRT, entre 2002-2003); • efetiva capacitação de funcionários de todos os SAEs e CTAs do Maranhão, para adoção e homogenização do método para coleta, por autoidentificação, das informações sobre o quesito cor/raça de seus usuários; 97


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• deflagração do cadastramento e recadastramento de todas(os) as(os) usuárias(os) dos SAEs e CTAs do Maranhão, utilizando a autoidentificação para o quesito cor/raça; • sensibilização de funcionários de todos os SAEs e CTAs do Maranhão para a importância da questão racial e étnica na melhoria da qualidade do acolhimento em seus serviços; • efetivo envolvimento de funcionários de todos os SAEs e CTAs do Maranhão em espaços e eventos do(s) movimento(s) negro(s) no Estado; • consolidação do NuRuNI junto ao PPGSA da UFMA; • arregimentação de subsídios importantes para a implantação do Curso de Especialização em Saúde da Mulher Negra junto ao PPGSA da UFMA, sob coordenação do NuRuNI e financiamento do MS, em andamento (início das aulas em abril/2009).

Considerações finais As condições, contexto institucional e problemas enfrentados na elaboração, articulação e execução do projeto “Acolhimento... MA-SP” nos parecem impor algumas reflexões: • Entendemos que é preciso mais cuidado na elaboração e repensar os objetivos das chamadas e editais dirigidos à população negra: Ainda é necessário “demonstrar” “cientificamente”o racismo institucional no Brasil, tal como nos exigiu a gestão anterior da UPDT do Programa Nacional? • Entendíamos que não acreditávamos que, no advento da Seppir, no âmbito do aparelho de Estado, das políticas públicas, das instituições e serviços abrangidos pelo SUS – sobretudo, no âmbito do PN DST/AIDS – essa discussão estivesse consolidada, superada e que se tratasse de implementar as “práticas afirmativas” (ou nosso entendimento estava equivocado ou estava o da então gestão da UPDT). • O discurso em uso pela gestão da UPDT, à época, nos parece refletir a ainda evidente hegemonia do paradigma cartesiano, do quantitativismo, da epidemiologia e das metodologias quantitativas de pesquisa: “demonstrar cientificamente” para a então gestão da UPDT significava, obrigatoriamente, produzir dados com tratamento estatístico. 98


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• Ora, essa não é a prática nem no meio acadêmico, em que também se valorizam as metodologias de pesquisa qualitativas – tais como as da “pesquisa-ação”e “avaliação participativa”, propostas para o projeto original (que a então gestão da UPDT considerou que “não eram científicas” (sic), após já ter sido aprovada pela seleção de projetos para este edital). • Justamente, a retomada do projeto original com essas metodologias, após a liberação da terceira parcela de recursos, acabou gerando os resultados mais significativos do projeto, na qualidade mesmo dos serviços prestados à população negra. • Por que essa resistência exatamente nas instituições às quais cabem gerir programas, serviços, planejar e executar ações de atenção à saúde? Deslocada, inconveniente e suspeita, essa “cientificidade”.... • Todo esse processo demonstra a necessidade de maior, mais direto, mais estreito e mais eficaz controle social na política de pesquisa e desenvolvimento tecnológico do PN DST/AIDS dirigida à população negra. • Consideramos espantosamente equivocada a avaliação do impacto dos resultados desses dois editais do PN DST/AIDS, fundamentada exclusivamente no número de artigos publicados em periódicos científicos, tal como na apresentação da então gestora da UPDT durante o 1º Simpósio Nacional de Saúde da População Negra e HIV/AIDS, realizado nos dias 20 e 21 de maio de 2010 na Universidade de Campinas (Unicamp). - Ora, trata-se de avaliar ações no âmbito da gestão do SUS e, não, de avaliar o desempenho acadêmico de algum programa de pós-graduação!... • Ao contrário desses critérios adotados pela então gestão da UPDT, parece-nos que à população negra e aos movimentos negros interessaria avaliar o impacto dessas pesquisas sobre a qualidade dos serviços a ela prestados.

Finalmente, nossa experiência profissional – a trajetória, em contextos tão diferentes entre São Paulo e Maranhão, a interface entre os movimentos negros e indígenas e as instituições, os gestores e as práticas adotadas no SUS – demonstra e reafirma que é apenas com e por meio do efetivo protagonismo e ocupação de espaços no aparelho de Estado pelos movimentos e seus atores sociais que se alcançam transformações consistentes no âmbito das políticas e serviços públicos. Vimos como, embora gestadas no interior do então SUDS-SP, pelo menos desde 1986, iniciativas direcionadas ao diálogo, por exemplo, de gestores e serviços de saúde 99


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com comunidades de Terreiro, aconteceram apenas a partir da iniciativa dessas próprias comunidades (por meio do GVTR e, posteriormente, da Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde) e do protagonismo de militantes dos movimentos negros (destacadamente de Maria do Carmo Sales Monteiro e de Pai Celso de Oxaguian) que desencadearam todas essas ações, as quais abriram tantas portas e oportunidades para políticas e práticas de efetiva promoção da igualdade racial.

Referências Bibliográficas 1 VARGA I. V. D. Certezas médicas, subversões francesas, paixões barrocas, especiarias africanas: Benoit Mure e o higienismo acadêmico no Brasil do século XIX [dissertação]. São Paulo: Universidade de São Paulo/Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas; 1995. 2 VARGA I. V. D. Pelas fronteiras e trincheiras do indigenismo e do sanitarismo: a atenção às DST em comunidades indígenas, no contexto das políticas e práticas indigenistas e de saúde, na Pré-Amazônia [tese]. São Paulo: Universidade de São Paulo/Faculdade de Saúde Pública; 2002. 3 VARGA I. V. D. VARGA D. M. L. M. Roteiro para realização e formatação de relatório técnico de progresso de pesquisa financiada pelo PN DST/AIDS - “Acolhimento e acesso ao diagnóstico e tratamento do HIV/AIDS para a população negra, em dois SAEs de São Luís/MA” [relatório de pesquisa]. São Luís: Universidade Federal do Maranhão/Mestrado em Saúde e Ambiente; 2007. 4 VARGA I. V. D. FERREIRA A. A. A. CRUZ A. P. MAFRA R. L. P. VARGA D. M. L. M. VIANA S. C. Relatório técnico final de pesquisa financiada pelo PN DST/AIDS - N° CSV 208/06: “Acolhimento e acesso ao diagnóstico e tratamento do HIV/AIDS para a população negra, em dois SAEs de São Luís/MA” [relatório de pesquisa]. São Luís: Universidade Federal do Maranhão/ Mestrado em Saúde e Ambiente; 2007.

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Projeto Xirê – uma análise preliminar sobre prevenção às DST/AIDS nas comunidades tradicionais de Terreiro na cidade de São Paulo

Celso Ricardo Monteiro

Apresentação A resposta à epidemia de aids no Brasil dá-se simultaneamente com a criação do SUS e, com isso, ampliou-se o debate sobre o lugar, a voz, a identidade, o comportamento e o posicionamento dos sujeitos ante aquela que mais tarde se tornaria a mais polêmica de todas as doenças. A síndrome da imunodeficiência humana questionou a moral e os costumes, de forma que, sendo diferente de todas as outras, provocou no âmbito da gestão em saúde questões como: quem sou (individualmente), quem somos (coletiva e institucionalmente) e quem seremos (epidemiologicamente). Ao longo de suas três décadas a resposta à epidemia de HIV/AIDS em São Paulo, tal como no Brasil, vem reunindo esforços oriundos de diferentes segmentos e organizações. As instituições religiosas atuaram bravamente também nesse território e por isso mereceram atenção na literatura, no que destacou-se o registro bibliográfico associado à história da epidemia. Entre os vários fatores que compõem essa discussão estão a laicidade, a intolerância religiosa, o direito e o acesso ao SUS, sem a interferência negativa dos sacerdotes, e inúmeros aspectos sociopolíticos que deviam levar em consideração o fato de que as pessoas morriam numericamente ou não tinham acesso a medicamento, independentemente de suas religiões, além de que era preciso atenção às especificidades das pessoas, bem como de toda a sociedade, considerando a necessidade de profundas mudanças comportamentais que ainda hoje pedem investimentos e esforços oriundos de todos os lados.


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As diferentes tradições religiosas de matrizes africanas aglomeram sujeitos de diferentes classes sociais, etnias, orientações sexuais e grau de escolaridade, mas com diferentes histórias e vivências acerca do tema DST/AIDS e do universo da saúde ampliada, que aqui é apresentado como um dos fatores que mais está presente na relação entre o fiel e a divindade. É a relação com o corpo, a sexualidade, o tesão e o imaginário diante do sagrado quem definem o comportamento do fiel, questões essas que estão depositadas na visão de mundo afro-brasileira, marcada pelo sincretismo e a relação com o binômio ethus e práxis que, por vezes, é classificado na sociedade ampliada como uma coisa secundária, mas vai delinear os inúmeros procedimentos pessoais e institucionais, para além da tomada de decisão. Assim, o texto que segue busca refletir sobre a presença da aids nas tradições de matrizes africanas, a resposta do SUS às questões relacionadas aos Terreiros enquanto componente de uma gestão participativa vivenciada a partir da experiência central do Projeto Xirê – Prevenção de DST/AIDS nas comunidades tradicionais de Terreiro, cuja execução deu-se na cooperação entre o Programa de DST/AIDS da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo e as organizações não governamentais Grupo de Valorização do Trabalho em Rede – GVTR e Associação SOS Saúde Mental Ecologia e Cultura. Aqui, teremos a oportunidade de avaliar o processo metodológico ofertado na linha do tempo em que se estruturou o tema aids e religiões afro-brasileiras como recorte estratégico da atenção integral à saúde da população negra.

Visão de mundo das tradições de matrizes africanas diante da aids As questões ora relacionadas ao corpo e seus cuidados envolvem uma presença constante da divindade nesse universo que é associada não ao bem ou ao mal, ao caráter ou coisa do tipo, mas à ideia de que a saúde e a doença são caras da mesma moeda. Para a tradição-mãe os ancestrais são a fonte de toda e qualquer resposta relacionada ao desenvolvimento dos sujeitos, razão pela qual, em tratamento, o paciente deixa esse lugar de doente para ocupar a posição de “partícipe do seu próprio tratamento” de forma que todas as questões são direcionadas à ancestralidade das pessoas e não ao doente e à doença que lhe acomete. Essa é uma regra que está posta para as agravantes em geral, visto que a reação às doenças pode influenciar na qualidade de vida das pessoas. 102


Celso Ricardo Monteiro

Foto: Edson Eduardo

Por fim, a educação permanente em saúde, bem como o modelo de formação acadêmica disponível, indica-nos a ausência constante dessas questões, sobretudo no terreno da medicina e da enfermagem, reafirmando, porém, a existência “milagrosa” do binômio médico-remédio, muito embora a literatura africana, a partir da antropologia e outras ciências, já reconheça, a partir da tradição local, que para além do individual há um corpo que compõe inclusive, a comunidade e, para tal, ele há de estar “bom o bastante” ainda que acometido por um mal sem explicação. Sabe-se de interpretações em que as doenças são geradas a partir do universo espiritual do sujeito: oferendas não realizadas, envio de energia negativa, descuido espiritual, desobediência e indisciplina. Mas ao longo dos tempos, vários aspectos para além do SUS guiaram várias práticas pelos caminhos onde a aids foi transportada erroneamente para o campo da moral, enquanto, para o Terreiro, a sexualidade é uma atuação sagrada e divina. O que o Terreiro ainda não nos disse é se de fato há diferença entre doenças adquiridas em função de questões comportamentais e as outras. Entendemos, porém, que questões como essas são do campo da tradição, da moral, da religião e da religiosidade, diferente da necessidade de resposta imediata por parte da saúde pública, que deve se manter neutra, livre dessas questões mais teológicas, para atender às necessidades do usuário do SUS, independentemente de sua tradição. Assim, promovemos a laicidade, mas para isso ocorrer é fundamental que as autoridades e demais sujeitos reconheçam quais são seus limites e competências, questões essas que abordaremos mais adiante. O que a tradição ainda não disse é como responderemos à ideia de que as doenças são classificadas como moral ou amoral, mas, sabe-se, essa é uma questão acrescida do viés sincrético que demarca também a sobrevivência do candomblé brasileiro, cujos valores e princípios diferenciam-se da tradição-mãe, o que aqui vamos atribuir aos valores regionais embutidos na manutenção das tradições afro-brasileiras. Para avançar nesse trabalho optou-se por dialogar em lócus sobre a presença da aids nessas comunidades, e os fatores a nós revelados vão da falta de cuidado (pessoal) à “in103


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diferença” vivenciada a partir da intolerância no terreno do tratamento. As doenças obtidas, portanto, a partir do terreno espiritual, encontram mecanismos de tratamento pleno relacionados à medicina tradicional e, ao analisar o discurso das lideranças, constatou-se que os cuidados para o paciente de aids devem, de fato, segundo os religiosos, ser ministrados por um profissional de saúde e esse, por sua vez, será conduzido por uma força maior que abençoará o procedimento ao invés de substituí-lo. O reconhecimento, portanto, de que essas tradições poderiam contribuir com o enfrentamento às doenças, vai das questões mais gerais, como já enumeradas aqui, até o descaso, fruto da intolerância que impediu o estabelecimento de parcerias concretas e eficazes para que o cuidado da prevenção à assistência integral das pessoas em geral, em particular dos filhos de santo, com suas especificidades, a religiosidade, por exemplo, fosse ofertado conjuntamente, sem prejuízo, de forma equânime, universal e integral.

Foto: Arquivo GVTR

Considerando que aids ainda é um tabu também nas instituições religiosas em geral, aprendeu-se que a mitologia, a cultura e a visão nagô-africana e afro-brasileira reúnem vários aspectos e informações relacionadas ao cuidado com o corpo, a ausência e a pre104


Celso Ricardo Monteiro

sença de doenças e, nesse caminhar, está a educação ofertada pelos sacerdotes e sacerdotisas para que os males do grupo ou do indivíduo sejam tratados com eficácia no campo do sagrado, quando assim for apontado, conjuntamente com os recursos da saúde, não apenas na relação médico-paciente, mas também nos processos de educação permanente, busca por qualidade de vida, acesso universal a serviço, ao diagnóstico e aos insumos de prevenção. Sabe-se que religião e saúde pública não precisam competir, pois a conexão entre a atenção religiosa-cultural e as práticas do SUS são completamente possíveis segundo os códigos, valores e simbologias de tais tradições. Nas comunidades tradicionais de Terreiro parte-se do princípio de que, “seu corpo é seu templo”, logo, é a “morada dos deuses” e deve estar sempre bem. Acredita-se, portanto, que o saber ancestral e a intervenção dos sacerdotes e sacerdotisas dessas tradições são fundamentais para as questões de cuidado e atenção, dado a relação estabelecida entre sacerdotes e fiéis, cujo vinculo é tido como familiar, no conceito mais ampliado da palavra, pois o laço biológico não é tido como único nesse universo. Assim, a relação estabelecida entre o fiel e seu sacerdote apresenta-se como um elemento determinante na educação preventiva, tal como na promoção da saúde e na busca pela qualidade de vida das pessoas em geral, sobretudo as vivendo com aids.

Foto: Arquivo SMS – SP

A falta de informação sobre as práticas terapêuticas desenvolvidas por essas comunidades, a sua linguagem e a forma como encaram a epidemia reúnem valores negativos 105


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mantidos no imaginário popular que apenas ampliam a intolerância religiosa também na relação com os serviços públicos de saúde, demonizados e com práticas cristalizadas. Essas são algumas das questões que não estão contempladas pelo processo de educação permanente em saúde, mas compõem a relação estabelecida entre os usuários, os profissionais de saúde e as unidades do SUS. Estes, em busca pela atenção necessária, levam consigo as suas múltiplas questões e pertenças, independente de onde ele vai e do mal que lhe acomete e, é com o estabelecimento de vínculos apropriados que muitas destas questões revelam-se como instrumentos de trabalho pró-saúde. Assim, a partir da integralidade do indivíduo, é possível aprofundar o debate sobre o como se darão os procedimentos, passo a passo, para garantir a atenção necessária, considerando que esses recursos que compõem a história e a vida do usuário podem, sim, ser determinantes para o processo de promoção da saúde. Para tanto, os recursos iniciais, já conhecidos de todos, são velhos componentes da atenção religiosa ofertada pelo povo de santo: escuta qualificada, diálogo constante, aconselhamento, partilha, planejamento coletivo e busca contínua do resultado máximo a ser obtido. Há de se levar em consideração, porém, que a linguagem é um aspecto central nesse processo e vai determinar não apenas o acesso, mas também a adesão aos recursos disponibilizados pelo SUS e sua rede, que se organiza territorialmente junto de cada uma dessas comunidades tradicionais sem, contudo, incluí-las no processo de atenção à saúde de seus componentes, o que, por fim, acaba ignorando fatores múltiplos como os indicados aqui.

Prevenção de DST/AIDS na Roda dos Orixás: A implantação do Projeto Xirê. A cidade de São Paulo, dividida em cinco macrorregiões, possui 25 Unidades de Saúde que compõem a Rede Municipal Especializada em DST/AIDS - RME, com 7 Centros de Testagem e Aconselhamento – CTA, 12 Serviços de Atenção Especializada – SAE, 3 Centros de Referência e 2 Ambulatórios de Especialidades, onde se dão a distribuição de preservativos, a realização de testes e exames de sífilis, hepatites e HIV/AIDS, além de consultas e tratamento de doenças sexualmente transmissíveis e HIV/AIDS. Essas unidades também realizam Teste Rápido para Diagnóstico do HIV, da sífilis e das hepatites virais, cujo resultado sai em torno de 45 minutos. Além disso, conduzem diferentes projetos de prevenção com o auxílio de agentes de prevenção, distribuem materiais educativos e promovem inúmeras ações locais. Na RME, são 41.652 os pacientes em acompanhamento 106


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até abril/2012; 16.991 em uso de antirretrovirais. Até março/2012, foram realizados 98.996 testes de HIV (método Elisa) nos laboratórios municipais. Ainda em toda a cidade, os números apontam para uma redução dos novos casos notificados de Aids: de 2.483 (2009) para 2.160 (2010)1.

Foto: Arquivo GVTR; 1º Encontro Municipal de DST/AIDS e Religiões Afro-Brasileiras, Galeria Olido, 2007

Não se sabe, porém, quantos Terreiros compõem o universo da cidade, bem como quantos são os religiosos pertencentes a essas tradições, na cidade de São Paulo, especificamente. As comunidades tradicionais de Terreiro praticadas majoritariamente na periferia são parte de um universo que reúne em média três diferentes tradições étnicas: Ketu, Efón, Tambor de Mina, além da Umbanda e do Omoloco, com fortes laços cristãos. Essas vivenciam experiências impactantes na relação com a sociedade brasileira, a partir do imaginário popular relacionado ao Terreiro, relação essa que se pautou em valores e interesses que diferem dos ofertados a outras tradições. Tais questões alimentaram o debate sobre a relação entre o Estado e a religião, sobretudo no universo da saúde pública, particularmente na resposta brasileira à epidemia de aids, além da necessidade de atuação religiosa eficaz enquanto parte do processo mais amplo, estabelecido de maneira diferenciada com outras instituições.

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Conferir Boletim Epidemiológico de DST/AIDS e Hepatites Virais do Município de são Paulo.

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Foto: Arquivo SMS – SP; PMDST/AIDS - Oficina de Prevenção – Ilê Asé Ilha Amarela – Morro da Brasilândia, 2010

A intolerância e a discriminação ao longo da história da aids tornaram-se componentes negativos da busca por contribuições outras e atrasaram o reconhecimento do Terreiro como partícipe desse processo, já que, segundo as suas lideranças, poderiam contribuir com o avanço da saúde por meio da integralidade dos sujeitos, considerando a importância de fatores como a identidade e o pertencimento, ante a vulnerabilidade, o diagnóstico positivo para o HIV, entre outras. Assim, era preciso o estabelecimento de parceria entre as unidades da RME e as comunidades tradicionais de Terreiros, visando à busca por novos paradigmas de prevenção, organização de um modelo de atenção capaz de reconhecê-las como parceiras e promover outras tecnologias, oriundas inclusive de outros espaços, extra-SUS, para a mudança de contextos em que estão também a tradição e a religiosidade dos usuários do sistema público de saúde. Assim, entendemos que a proposta apresentada pelo Grupo de Valorização do Trabalho em Rede ao Programa Municipal de DST/AIDS de São Paulo é inovadora, já que oferecia, para além da abertura de um novo campo de trabalho, um ensaio metodológico que se amparava na lógica territorial, na conexão de saberes de diferentes sujeitos e na universalidade plena dos recursos de prevenção. O Projeto Xirê - Prevenção de DST/AIDS na Roda dos Orixás ramificou-se, portanto, junto das unidades especializadas, parceiras de primeira ordem desse processo, pois o público misto alcançado pelo projeto (profissionais de saúde e usuários que acessavam e que ainda não tinham acessado ao serviço público específico), tinha como tarefa central o desenvolvimento das ações na comunidade em que estava inserido e nas unidades que atendiam os usuários. 108


Celso Ricardo Monteiro

Tal proposta apoiou-se em um modelo participativo que transformava a sala de aula em roda de conversa, o suposto aluno em parte do processo e os profissionais/gestores em guardiões do direito humano à saúde. A criação das redes locais, tal como o objetivo do projeto, deu-se processualmente, a partir do diálogo sobre as práticas e a teoria, de forma a construir um conceito acolhedor, inclusivo, que trouxesse entre os seus símbolos a identidade, o pertencimento, a linguagem e o território de cada sujeito. Nas quatro macrorregiões da cidade, acessadas até junho/2012, com etapas microrregionais, o trânsito entre teoria e prática incluiu referência bibliográfica, relato de experiências, estudo de casos atendidos no Terreiro e no SUS, além do debate sobre prevenção, marco legal e acessibilidade como parte do conteúdo programático. O planejamento regional, cujo pressuposto era o diagnóstico supracitado, levou em consideração questões múltiplas, inclusive sobre participação popular e controle social, à luz da 8ª Conferência Nacional de Saúde e suas subsequentes, conectadas às diretrizes relacionadas localmente, a partir das três conferências municipais de DST/AIDS realizadas até o momento e da presença do Terreiro nesse espaço.

Metodologia O Xire surgiu a partir da visão de mundo dos Terreiros, cuja vida dá-se coletivamente, em roda, em círculo, porque girar – movimento que marca as cerimônias públicas, com musicalidade e partilhas – traduz-se em mobilizar-se ou mobilizar o outro em busca de algo, a partir da acolhida à demanda e em atenção ao sujeito que em momento de tanta fragilidade necessita de apoio integral por parte de toda uma comunidade. Mais do que isto, o xirê é uma ordem política que traz as diferenças para o centro da roda, de forma a contemplar a beleza e as inúmeras possibilidades de vida plena, colocadas pelos atores envolvidos, um a um, no caso as 16 divindades reverenciadas em território nacional, com suas devidas características.

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Foto: Edson Eduardo Ramos; 3º Encontro Municipal de DST/AIDS e Religiões Afro-Brasileiras, novembro/2012

Para a construção desse processo entendeu-se que, se por um lado a Rede Municipal Especializada deveria reconhecer e respeitar as diferentes visões de mundo, para garantir atenção qualificada aos seus usuários, o que implica conhecer, minimamente, a realidade do outro, os seus referenciais, simbologias, etc., empoderando-o e escutando-o, sem perder de vista o sentido da laicidade enquanto aspecto constitucional; por outro, era preciso que as lideranças religiosas e seus fiéis fossem instrumentalizados para enfrentar as questões relacionadas ao processo saúde-doença-cuidado e, assim, contribuírem com o processo de trabalho nas unidades de saúde. Assim, valeu-se do método aqui denominado de conexão de saberes, enquanto princípio do projeto, o que implicava traduzir as práticas de atenção, a partir do conhecimento de ambos os grupos, aproximando-os das realidades ali presentes para, assim, poderem avançar no que tange aos objetivos da intervenção. Serviu-se de conteúdos técnicos, selecionados a partir do objetivo geral e dos objetivos específicos já relacionados aqui, de forma que as práticas do SUS eram traduzidas tal como as do Terreiro, gerando a conexão necessária. Foi fundamental contextualizar a epidemia no município, no Estado e no País, mas centrou-se esforços no cenário local para, assim, facilitar a compreensão de que no mesmo território em que estão Terreiros e unidades de saúde as pessoas e instituições não se falavam, não se conheciam, mas lidavam cotidianamente com muitos dos sujeitos que estavam vulnerável em alguma medida ao HIV e às DST, ou já conheciam seu estado sorológico e não tinham compartilhado tal informação, em alguns casos, com ninguém mais próximo, o que, por conseguinte, 110


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retardava o processo de adesão ao serviço e ao tratamento. Assim, a visão de mundo dos Terreiros foi amplamente explorada pelos profissionais de saúde, que desconheciam esse universo ou tinham contato mínimo em função de poucos usuários da unidade, que se revelaram de tradição religiosa afro-brasileira. O projeto foi organizado regionalmente para facilitar o debate sobre territorialidade. A mobilização dos diferentes atores levou em consideração fatores inúmeros, tais como a acessibilidade, o endereço e a importância da liderança anfitriã e a situação socioeconômica das comunidades que seriam acessadas ao longo da intervenção. Dada a geografia da cidade, cada região foi novamente dividida em duas partes, denominadas “fases do projeto”.

Foto: Arquivo SMS – SP; GVTR/2008, no Ilê Asé Omodé - Cidade Tiradentes

O projeto piloto, com a participação do CTA São Miguel, do CTA Tiradentes e do CTA São Matheus, foi executado na Cidade Tiradentes, extremo leste da cidade de São Paulo, tendo como sede o Asé Omodé, fundado pelo Babalorixá Jair de Oxóssi. A segunda etapa do projeto, ainda na região leste, realizou-se no Terreiro de Ogum Mege e Maria Francisca, no Jardim Maringá, subdistrito de Vila Matilde. Em função das agendas das Unidades e dos Terreiros, com um denso calendário cerimonial, onde uns visitam os outros em datas emblemáticas, esse processo foi organizado ao longo de um ano aproximadamente. Mais tarde, a região Norte, contando com os técnicos do SAE Santana, CTA Pirituba e CR Nossa Senhora do Ó, também foi dividida em duas partes. A Norte I deu-se no Ilê Obá Ketu Axé Omi Nlá, dirigido pelo Babalorixá Rodney Eugênio, de Oxóssi, na região de Tremembé, e a etapa Norte II deu-se de forma circular para chegar ao Morro Grande, Freguesia do Ó e Brasilândia com excelência. Assim, na perspectiva do acesso ideal, o 111


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projeto foi sediado pela Casa de Laura Braga, uma organização da sociedade civil dirigida pelo Babalorixá Paulo Calabra de Oyá, o Terreiro de Umbanda Pai Xango, dirigido por Mãe Eliane e Mãe Cristina, além do Axé Ilha Amarela, do Babalorixá Alcyr de Oxóssi. A escolha desses Terreiros deu-se a partir das articulações locais e coube ao Grupo de Valorização do Trabalho em Rede coordenar os diálogos em consonância com as proximidades contidas entre a RME e os Terreiros que estavam mais próximos do endereço indicado para sediar as oficinas. Essa ciranda demandou trabalho adicional por conta do processo histórico e das relações estabelecidas em cada um desses territórios. Não foi diferente na região sul, cuja etapa I, com a participação do SAE Dutra, ficou sediada em Jardim Varginha, no Asé Ibualamo do saudoso Babalorixá José Carlos de Ibaulamo, com a presença predominante dos Terreiros descentes-diretos daquela casa; e a etapa Sul-dois, junto com o SAE Dutra e a tímida presença do CTA Santo Amaro no Asé Mirewuá, que tinha na sua composição filhos de santo que são profissionais de saúde.

Foto: Arquivo GVTR

Ao longo desse processo também o Terreiro dirigido por Pai Jil de Osun, no Jardim Novo Horizonte, e o de Pai Edson, em Parelheiros, foram anfitriões e acolhedores da oficina itinerária proposta estrategicamente para aquela região, o que foi um facilitador no fortalecimento das relações já encontradas naquele local, envolvendo, tal como no caso da Freguesia do Ó, em média, ao menos uma agente de prevenção com vínculo já estabelecido com o Terreiro antes da implantação do projeto. O cronograma, portanto, seguiu a lógica testada na região leste, mas o conteúdo e a metodologia sofreram alterações em função do contexto que se encontrou nas diferentes regiões da cidade, que em alguns casos detectou a presença de discursos mais arrojados, ideologias partidárias ou frustrações em função de intervenções anteriores, sem êxito. A etapa um da região sudeste, envolvendo o recém-criado CTA Mooca, o CR Penha, o AE Vila Prudente e o SAE Herbert de Souza, contemplou os frequentadores do TEUCEM – Templo Espírita de Umbanda Caboclo Estrela do Mar, Bairro do Ipiranga e no Asé Igbá Fará Odé – AE Carvalho na etapa dois. 112


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Foto: Arquivo GVTR; GVTR – Oficina de Prevenção no TEUCEM, 2011

Para iniciar o conjunto de atividades relacionadas para o treinamento, totalmente desenvolvidas no Terreiro, o que demandou mobilizar a rede e pactuar agenda-calendário e conteúdo, partiu-se do pressuposto de que era fundamental o estabelecimento de vínculos entre os diferentes atores. Serviu-se de estratégicas básicas como as boas-vindas do anfitrião, a apresentação do projeto, a apresentação dos presentes e a identificação dos bairros em que os Terreiros e as unidades estavam sediados, de forma que um mapa da cidade, com as unidades especializadas previamente identificadas, foi utilizado constantemente, sobretudo para que profissionais e lideranças pudessem visualizar com facilidade a proximidade entre um e outro. Nesse momento, o uso do geoprocessamento como estratégia do trabalho tem possibilitado a análise dos diferentes contextos para que as pessoas possam identificar os fatores que as impedem de chegar ao sistema público de saúde e contribuir, assim, com o enfrentamento das questões que não estão diretamente relacionadas ao desempenho das unidades, mas, sim, ao como elas se comportam diante dessas questões, caso a chegada dos usuários se concretize junto ao serviço público. Observou-se que muitas das questões cogitadas em lócus estavam relacionadas a fatores externos, como a violência e o alto uso de drogas ilícitas, mas, em todos os casos, com forte intervenção da liderança religiosa, seja porque enviavam cotidianamente esforços para “salvar seus filhos” ou porque eram “anjos da guarda” desses sujeitos que facilitavam, entre outras, o conhecimento de seu estado sorológico (avançado) ou a adesão ao uso de antirretrovirais, em muitos casos, pós-revelação diagnóstica do parceiro junto à sua família, parceira e membros da comunidade religiosa, o que era menos comum, em função do medo da discriminação. Esse tema, portanto, foi entendido como central no âmbito do projeto, em função da necessidade 113


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de autocuidado, atenção plena à saúde com vistas à prevenção secundária, mas também do marco legal e dos direitos das pessoas vivendo com aids. Contudo, as lideranças sequer conheciam as diferenças entre o serviço especializado e a unidade básica de saúde, o que se transformou em ponto nevrálgico da intervenção. Articular todas essas questões aliadas ao desconhecimento do serviço público sobre a melhor abordagem a ser oferecida a esses fiéis implicou analisar conjuntamente os diferentes contextos, saindo da geografia e adentrando os terrenos do SUS e da tradição. Usou-se com essa finalidade a exibição dialogada do filme “Cafundó”, produzido por R. A. Genaro2 (Prole de Adão Produções Artísticas e Laz Audiovisual), Virginia W. Moraes e Paulo Betti, com direção de Clóvis Bueno e Paulo Betti. A escolha do filme deu-se em função da trajetória de um negro ramificado em Sorocaba “por força divina” para construir a Igreja da Água Vermelha, em meio à intolerância religiosa, acirrada na época, depois de ter ao longo da vida experimentado de todos os métodos possíveis para se relacionar com as pessoas dignamente e viver em comunidade, em meio ao racismo, à discriminação, ao preconceito e às questões consequentes dessas práticas. Com uma trajetória iniciada na porta da Catedral da Sé, no centro de São Paulo, o preto-velho – oriundo da obra literária “João de Camargo de Sorocaba – o Nascimento de uma Religião” de autoria de José Carlos de Campos Sobrinho e Adolfo Frioli –, interpretado por Lazaro Ramos, segue sua vida valendo-se de questões profanas e é surpreendido, em meio à fome e à miséria, com questões de ordem espiritual que vão da necessidade de servir a Deus até a dedicação aos que mais tarde se tornariam seus seguidores, na igreja considerada o primeiro Terreiro de umbanda que São Paulo tem notícia. Em meio a tantos desafios e dissabores, estão o enfrentamento à extrema pobreza, as intensas tentativas e posteriores desilusões amorosas, além da possibilidade de ressignificar a religação das pessoas a Deus, por meio do processo saúde-doença-cuidado vivenciado pelos fiéis, e a ideia de que era possível fazer barganha com Deus em busca da cura de males como a malária e a sífilis. A exibição do filme, desconhecido da maioria, possibilitou o debate sobre como o Terreiro poderia ser reconhecido um núcleo promotor de saúde, já que não possuía o saber considerado oficial. As práticas desenvolvidas nessas comunidades visando à atenção á saúde, muito próximas do que Cafundó indicava, foram elucidadas pelos sacerdotes presentes na roda, de forma que foi possível visitar a tradição em uma “roda viva” que a metodologia do projeto indicava a partir de Freire e sua concepção sobre educação universal, formal, oficial,

2 Por meio da Lei do Audiovisual, a Lei de Incentivo à Cultura e finalizado com apoio da Ancine – Agência Nacional de Cinema, Eletrobrás, BNDS, Nossa Caixa, Ihara, Santander, Banco Safra, Fundação Cultural Ponta Grossa e Prefeitura Municipal de Sorocaba – Linc 5.736/98, entre outros.

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para além dos espaço institucional. Para os técnicos responsáveis pela condução do projeto havia um desafio concreto na relação entre os Terreiros e as unidades: o reconhecimento de que fora da escola também se ensina e prevenção dá-se a partir do sujeito, ancorado na sua visão de mundo e na percepção sobre o que é prevenção, segundo os seus referenciais. Esses itens, que eram centrais para o avanço do debate, migravam de Cafundó para a atualidade com muita facilidade, sobretudo depois que os presentes tinham sido questionados sobre quais eram as suas expectativas e receios acerca do projeto e quais os símbolos (em geral) que mais ofertavam conforto (na busca pelo serviço público e o exercício da função).

Foto: Arquivo GVTR

O passo seguinte traduziu-se no debate sobre qual o conhecimento que as pessoas detinham sobre prevenção, quais as possiblidades conhecidas por elas, quais as unidades que conheciam, de que serviços ofertados elas já tinham experimentados e qual a avaliação que faziam disso. Surpreendeu-nos questões emblemáticas como o desconhecimento de que o preservativo era distribuído no SUS, mas também a reclamação de que muitos deles não tinham conseguido acessar a unidade em função de agenda. As reclamações foram utilizadas como estudo de casos a serem resolvidos pelo grupo e constatou-se que a informação está minimamente presente no cotidiano das pessoas, mas de forma equivocada. Assim, foi possível apresentar às lideranças os recursos ofertados pelas unidades especializadas e desmistificar a ideia de um serviço público ineficaz. De maneira prática, a metodologia contribuiu com o estabelecimento de referência e contrarreferência, no que foi considerável o avanço da oficina, pois havia um“estranhamento”em torno da presença do SUS no Terreiro. O terceiro momento pautou-se no debate sobre diversidade e desigualdade, considerando questões importantes como a homossexualidade, a identidade étnica, a orientação sexual e a desigualdade de gênero. Considerando que os Terreiros são 115


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majoritariamente frequentados por mulheres e homens gays, o diálogo sobre a vulnerabilidade desses segmentos ao HIV foi determinante para a discussão sobre o acesso e o uso adequado dos insumos de prevenção. Para o Babalorixá Jair de Oxóssi, sacerdote do Ilê Asé Omodé, Terreiro anfitrião do projeto piloto que mais tarde pendurou display nas paredes do Terreiro, fornecido pelo SUS, a distribuição do preservativo no Terreiro era “inadequada”, pois as pessoas compreendiam que essa distribuição voluntária, sem burocracia, era a “autorização” que faltava para elas transarem inclusive naquele espaço sagrado. O próprio grupo entendeu que o uso do preservativo estava associado ao diálogo entre os parceiros e seu uso, deveria se dar de forma adequada, constante, no que o Terreiro poderia ser um facilitador do acesso. Coube ao Programa Municipal de DST/AIDS incluir as comunidades tradicionais de Terreiro na grade de distribuição do dispensador, em vez de promover grades e compras exclusivas, tarefa que foi executada com êxito, visto que cada Terreiro reúne cotidianamente o mínimo de 50 pessoas consideradas sexualmente ativas ou não, além da adjacência, que se serve desse Terreiro indiretamente, e o grande público, com caravanas por vezes enormes em visita ao “santo da casa” em momentos solenes, como as cerimônias públicas dedicadas ao nascimento ritualístico e aniversário iniciático de novatos ou homenagens ao patrono da comunidade. As oficinas eram encerradas com avaliação do dia (Como foi a oficina para você?), avaliação do levantamento de expectativas (Você está satisfeito?) e indicação de expectativas (O que espero para o próximo passo?) acerca da oficina seguinte e lições de casa que proporcionavam o debate na comunidade entre uma atividade e outra.

Foto: Arquivo SMS – SP

A partir daí, a exibição do filme sobre a presença do HIV e a atuação do medicamento no corpo humano, produzido pela Abia, foi um recurso também importante no avanço do diálogo sobre adesão e cuidado eficaz. Entendeu-se que nada substitui o me116


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dicamento e que a fé podia ser um fator determinante na disciplina necessária para o uso contínuo e adequado. Mais uma vez as lideranças religiosas foram convidadas a refletir sobre as promessas em torno do “Deus que cura” e as práticas relacionadas ao abandono do remédio, o que para a tradição, segundo os religiosos, é impensável. O Terreiro entende que o banho de defesa, o aconselhamento durante a consulta às divindades, os momentos individuais e coletivos de oração, além da possibilidade de convivência diária acrescentam valor ao tratamento e, assim, não é raro observar casos em que “o Caboclo mandou” que o paciente buscasse socorro médico, provando que a religião e a medicina não precisam competir e podem estar conectadas, com vistas para o pleno tratamento do sujeito. Construir vínculos entre as comunidades tradicionais de Terreiro e o Sistema Único de Saúde local, indicava-nos a necessidade de um plano de trabalho conjunto, onde Unidades e Terreiros não fossem descaracterizados ou influenciados de forma alguma pelos diferentes papéis e competências. Discutir o lugar de cada sujeito nesse processo foi uma estratégia ímpar que ajudou a diagnosticar porque Dona Maria3, com sífilis e vítima de violência doméstica, não havia obtido êxito na relação com a Unidade. Da mesma forma, vários profissionais tiveram a oportunidade de discutir os entraves que impediam melhor relação com os usuários que indiretamente se revelavam filhos de santo (usando trajes ou guias no pescoço como fator de proteção). Para a budista Ana Martha4, uma das médicas mais respeitadas de sua região, aderir ao convite para participar da oficina no Terreiro foi um desafio marcante que a fez questionar-se sobre o seu papel e, quando questionada, revelou ao grupo que teve que rezar muito antes de ir e “talvez não viesse”, porque, segundo ela “eu não sabia o que iria encontrar aqui.” Expressões como essas deram-se inúmeras vezes ao longo de todo o processo. A católica fervorosa e militante Júlia5, do Movimento Popular de Saúde, com mais de 60 anos de idade, acompanhou todas as etapas regionais do processo de formação, mas no momento em que se iniciou a primeira oficina, ela foi questionada sobre o que estava fazendo ali e qual era a sua expectativa. Respondeu que estava lá pra ajudar, que não tinha nenhuma relação com o Terreiro, embora tivesse a mesma ideia que está contida na sociedade ampliada. Ao discorrer sobre a sua percepção em torno do Terreiro, questionou: “Como é que eu faço para cumprimentar um Pai de Santo.” A resposta ofertada a Júlia foi um

3 Nome fictício. 4

Nome fictício.

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Nome fictício.

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caloroso abraço e, seguindo os valores da bioética, o facilitador conduziu a dinâmica do fósforo6 de forma que ela o abraçasse e perguntasse pra ele como ele estava, se ele estava bem, antes de buscar entender a sua crença.

Foto: Acervo do PMDST/AIDS; Campanha de Prevenção no Desfile do Afoxé Omo Dadá – Abertura do Carnaval de São Paulo no Sambódromo do Anhembi – Fevereiro/2010

Com vistas à transparência e à necessidade de transferência de tecnologia, a última etapa do processo educativo implicou o debate sobre as diretrizes do Programa Municipal de DST/AIDS para a resposta local à epidemia. Essa foi a oportunidade de os presentes conhecerem e avaliarem o serviço ofertado pelas unidades, o que resultou na elaboração de planejamentos locais, envolvendo o total do público-alvo, conforme as suas funções e competências. O plano tinha como ponto de partida o diagnóstico situacional, construído coletivamente ao longo da oficina, contendo a proposição para mudança de contexto, objetivo direto, cronograma e resultado esperado. Cada plano de trabalho ficou enraizado nas respectivas regiões, a cargo das lideranças e dos profissionais de saúde, entretanto, coube ao Programa de DST/AIDS e às organizações parceiras apoiar tecnicamente o desenvolvimento das ações, desde a elaboração de instrumentos capazes de monitorar esse processo, até o momento final de cada atividade, marcando presença em cada passo. As intervenções geradas a partir desse processo evidenciaram que é fundamental proporcionar acolhimento qualificado e isso é uma medida relacionada à “integralidade” do sujeito, mas, sobretudo, à universalidade do serviço. Dessa forma, a atenção qualificada, necessidade de atenção às especificidades (“somos iguais, porém diferentes”), demonstram um fator central da resposta à epidemia.

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s pessoas apresentavam-se e falavam de si durante o tempo em que o palito de fósforo ficasse aceso e, se esse tempo A fosse curto, a apresentação era interrompida e a pessoa ganhava ao término a oportunidade de concluir a sua fala inicial.

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Obaluaiye recomenda: Use sempre camisinha!

A palavra Obaluaiyê, quer dizer “Senhor Rei da Terra”. Obaluaiyê está relacionado segundo o ensinamento das comunidades tradicionais de terreiro, à saúde e à doença da cada indivíduo.

Exu te orienta: use camisinha e proteja-se! Exu Orixá da sexualidade e da comunicação.

Alimente sua vida se prevenindo

Corpo fechado só não pega DST se estiver bem-protegido. Use sempre camisinha!

Use camisinha!

Ossaiyn é Orixá das folhas e da medicina tradicional praticada nas comunidades tradicionais de terreiro. É o mago da comunidade e conhecedor de todos os remédios do mundo.

Estabelecido o diálogo entre as comunidades tradicionais de Terreiro e a RME, é preciso monitorar o processo de trabalho e contribuir com o avanço das articulações. No momento em que esse artigo é escrito, os esforços da gestão municipal estão sendo direcionados à região centro-oeste da cidade. A presença da aids nos rituais fúnebres e iniciáticos do candomblé foi o tema que proporcionou no Brasil afora e nos últimos 15 anos a soma de esforços enviados à relação entre Governo, comunidades de Terreiro, diferentes movimentos sociais e a comunidade científica. Esse é um componente da resposta religiosa à epidemia de aids no Brasil que se destaca no processo histórico e pede atenção por parte de todos nós. No processo desenvolvido até aqui é importante constatar que na cidade de São Paulo o tema DST/AIDS e Religiões Afro-Brasileiras tornou-se assunto de três impor119


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tantes encontros municipais em São Paulo, além de vários seminários e articulações nacionais: o primeiro em 2007, para consulta acerca do tema e lançamento do projeto, na Galeria Olido, Secretaria Municipal de Cultura; o segundo em 2010, para organização da rede; e o terceiro em novembro de 2012, para monitoramento coletivo do projeto. Esses têm sido uma estratégia para avaliação geral do processo, com a participação popular e o controle social a que ele está submetido.

Análise crítica A histórica negação do tema, ainda que com a disponibilidade de recursos múltiplos para a promoção das ações direcionadas, confrontando com os relatos das lideranças e demais usuários acessados, indica-nos que a inovação tecnológica necessária para a condução do sistema deve atuar junto a questões outras, como a ausência desses e o preconceito colocado no âmbito também da educação em saúde. A presença do Estado nesse universo proporciona correções teóricas e práticas no processo de trabalho e dos fluxos relacionados e deve estar associada à mudança de paradigmas para a plena promoção da saúde, com acolhimento, qualidade da atenção, assistência integral e à devida importância às questões individuais dos usuários, da triagem até os demais procedimentos, objetivando a busca por maior qualidade no serviço. Para isso, o profissional de saúde não precisa perder a sua identidade ou aderir a tradição do outro, bastando apenas acolher o sujeito, com as histórias, vivências e simbologias que ele traz consigo para além da doença. Com o uso de geoprocessamento e os resultados obtidos até dado momento, o projeto articulou-se em rede, em torno das demandas, de forma participativa, apontando-nos uma metodologia eficaz, reunindo equipe multiprofissional com vistas para a produção do conhecimento, a reorganização de estratégias utilizadas localmente, a organização de um conjunto de referências bibliográficas e, por fim, o estabelecimento das necessárias parcerias desejadas pelo projeto. Tais estratégias foram essenciais para a organização da malha criada e, mais tarde, o encontro dessas diferentes redes locais, sobretudo porque estabeleceu-se vínculos até então tidos como impossíveis ou dispensáveis. Nesse mesmo contexto estão estabelecidas também a identificação de outras possibilidades e potencialidades, proporcionando a ampliação das ações de forma independente, o que, por conseguinte, contribui com o encaminhamento dos usuários às unidades, a partir de suas lideranças, na perspectiva do acesso aos insumos de preven120


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ção, ao diagnóstico precoce ou à assistência, conectada à atenção espiritual ofertada pelas lideranças de referência de cada usuário, conforme a sua identidade e escolha. Constatou-se que ações como essas avançam na universalidade que pressupõe atenção às questões relacionadas à integralidade e à equidade em saúde, no campo da prevenção e da assistência, considerando que os aspectos sociais e a educação permanente são transversais e eficazes quando são inclusivos e flexíveis, tal como nos indica o quadrilátero da educação permanente. Na etapa Leste (Asé Omodé e Terreiro de Ogún Mege e Maria Francisca) encontrou-se profissionais que nunca haviam adentrado o espaço sagrado dessas tradições, mas os conheciam como “espaço do mal” e, ao término, na roda, revelaram-se como profissionais aptos a atender o usuário, conforme a sua necessidade, o que inclui um aconselhamento neutro e o reconhecimento da importância da cultura do outro para a eficácia do seu tratamento. Em momentos iniciais das oficinas, porém, esses profissionais expressaram a falta de informação sobre o tema e a negação de sua importância.

Região Leste - Mapa II: comunidades participantes do processo de implantação ou acessadas nas regiões Leste, Norte, Sul e Sudeste – Dezembro de 2011.

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Na etapa Norte (Casa de Laura Braga, Asé Ilha Amarela, Terreiro de Umbanda Pai Xangô), notou-se que não basta o mínimo contato com essas lideranças, pois é preciso servir-se em rede, constantemente, de todas as tecnologias disponíveis, na comunidade e na unidade de saúde.

Região Norte - Mapa II: comunidades participantes do processo de implantação ou acessadas nas regiões Leste, Norte, Sul e Sudeste – Dezembro de 2011.

As diferentes artimanhas e manifestações da intolerância, na territorialidade dos diferentes atores e instituições, destacaram-se entre os temas e lições aprendidas na região sul cujas oficinas foram sediadas pelo Asé Iboalamo, Asé Mirewá, Asé Oiyá N’jebe e o Asé Katulemburange, visto que a distância entre as unidades problematiza o debate sobre a necessidade do serviço ofertado, mas possibilita a reorganização da malha com esses conflitos, com ofertas consideráveis no extramuro do SUS, gerando outras leituras acerca do conjunto de parcerias possíveis, para a atenção e o estudo local das possibilidades de adoecimento, tal como aprendemos na etapa Sudeste, realizada no TEUCEM – Templo Espírita de Umbanda Caboclo Estrela do Mar, Bairro do Ipiranga e no Asé Ibá Fara Odé – em Vila Ramos/AE Carvalho.

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Região Sul – Mapa II: comunidades participantes do processo de implantação ou acessadas nas regiões Leste, Norte, Sul e Sudeste – Dezembro de 2011.

Região Sudeste – Mapa II: comunidades participantes do processo de implantação ou acessadas nas regiões Leste, Norte, Sul e Sudeste – Dezembro de 2011.

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Religiões afro-brasileiras, políticas de saúde e a resposta à epidemia de aids

No processo, os diferentes agentes lidaram com o imaginário popular acerca da intolerância religiosa e do racismo, das verdades e mentiras do tema DST/AIDS e da conexão entre o saber do povo de santo e as tecnologias disponíveis no SUS. Não se trata, portanto, de afronta e, sim, de respeito à tradição do outro para que também a sua linguagem seja incluída no universo onde ela é despercebida ou ignorada. Entendemos que é preciso cuidado com a possibilidade do uso da imagem do orixá relacionado à ideia de que “a divindade aprova certas atitudes naturalmente humana desde que guardado o uso do preservativo”. Mas é preciso dizer que, de 1981, quando surgiu a discussão sobre prevenção de DST/AIDS no candomblé, na Ladeira da Glória, na Abia - Associação Brasileira Interdisciplinar de aids, até 2008, quando foi implantado o Projeto Xirê em São Paulo, várias questões foram pautas de debate com atores de diferentes segmentos, inclusive com as Igrejas cristãs (católicas), que, por sua vez, mantêm conosco também parceiras muito eficazes. Evidente que é preciso aumentar essa roda e esse debate. Para tal, nossa estratégia foi a construção de pontes entre os atores e instituições que pensam diferente, mas é óbvio também que estamos à disposição, do contrário não frequentaríamos as rodas. O atual trânsito de religiosos na secretaria, o relato de quem trabalha continuadamente com o tema e os achados do 1º e do 2º Encontro Municipal de DST/AIDS e Religiões Afro-Brasileiras, agora com a apresentação de resultados significativos, são indicativos de que a escuta é de fato central para se fazer gestão. A agenda DST/AIDS e Religiões Afro-Brasileiras, eixo estratégico deste Programa de DST/AIDS, construída por todos nós ao longo dos anos alcançou várias conquistas, contribuiu para que as comunidades tradicionais revisitassem a tradição e, sobretudo, com a oferta de um serviço de melhor qualidade, principalmente porque apostou na junção entre a “Integração, multidisciplinaridade, educação permanente e pró-ação entre o SUS e o povo das comunidades tradicionais de Terreiro para reposta a epidemia” (MONTEIRO, 2010). Aqui se dá também, e por outras vias, a nossa resposta à epidemia, em parceria com as instituições religiosas afro-brasileiras, investindo na mudança de contexto e apoiando a intervenção comunitária. Várias ações foram desenvolvidas desde então e já é possível detectar alguns desdobramentos significativos entre as diferentes unidades da RME que vivenciaram esse processo. Logo, é hora de avaliar o processo de trabalho desenvolvido até aqui e as ferramentas disponíveis para que as ações possam lograr os objetivos relacionados e subsidiar o trabalho na RME. O conjunto de iniciativas reúne, entre outras, o uso de ferramentas para a “Avaliação Técnica em 2011”, a fim de acolher as demandas, as análises e as recomendações técnicas de cada uma das unidades envolvidas nesse processo. De 124


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forma bem simples, o instrumento condensa a ampliação do debate sobre as questões enumeradas e contribui na qualificação do trabalho desenvolvido até aqui. No ano de 2012, o Programa Municipal de DST/AIDS abriu o exercício executivo apresentando o “Panorama Atual do Projeto Xirê” em reunião técnica de supervisão, com profissionais de saúde e lideranças das comunidades acessadas pela iniciativa, indicando um expediente inédito naquela casa. Em se tratando de construção, implantação e implementação de políticas públicas, o saber das comunidades tradicionais de Terreiro apontou a nós que a singularidade é um fator central para a promoção da equidade, assim, as questões de ordem espiritual devem ser tratadas por quem de direito, ao passo que esses sujeitos devem possuir instrumentos capazes de contribuir com o avanço da saúde das pessoas, ao mesmo passo que as questões referentes às questões e competências relacionadas ao SUS devem, de fato, ser devolvidas ao sistema para que ele possa atuar com excelência. As lições aprendidas, portanto, provam que a parceria é viável também na perspectiva do Estado laico, democrático e de direito, onde as competências são diferentes e uma não pode se pôr sobre a outra.

Foto: Edson Eduardo

A conexão dos saberes, indicada aqui como concepção do projeto, deve, portanto, começar na valorização do outro, visando ao resultado esperado: a formação dos sujeitos para obtenção da saúde plena. Essa conexão não depende de um casamento entre o Estado e a religião, mas sim do respeito às diferentes estratégias que potencializam as ações decorrentes do reconhecimento do Terreiro, suas simbologias e valores como elementos 125


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possíveis na construção de uma plena cultura de paz e não violência, o que diminui a vulnerabilidade das pessoas. Assim, é possível romper com esse círculo vicioso que discrimina e interrompe as possibilidades de sucesso, seja na prevenção, seja na assistência. Ao responder a esses desafios enfrentamos esses dilemas, na perspectiva da valorização dos sujeitos, no diálogo acerca da cooperação mútua e na condução de uma saúde que não seja pautada pelo binômio médico e remédio, de forma que as pessoas avançam na diversidade e o SUS também. O projeto construiu uma linha de ação em que foi possível elaborar conjuntamente o material adequado, com a devida linguagem e a simbologia real, para que no Terreiro o trabalho de prevenção fosse materializado e ampliado, conforme a necessidade dos envolvidos. Construiu-se a primeira série de cartões temáticos, associando características relacionadas às divindade, às possiblidades de prevenção, conforme a linguagem, a começar pelo acesso à informação adequada. Essa atividade, realizada em parceria com o Instituto Barong, foi incluída no conjunto de atividades definidas para o processo inicial de ensino-aprendizagem e resultou na elaboração de cinco diferentes e concorridos cartões, a partir de Obaluaiye, orixá da Saúde, responsável por questões, por exemplo, como as doenças de pele; a Exu, orixá da sexualidade e da comunicação, lembrando a todos da importância de atenção às necessidades de prevenção contínua; a Ossaiyn, orixá das folhas, conhecidas como base de todos os remédios, que aqui lembra a necessidade de atenção à saúde.

Foto: Arquivo SMS – SP

O material ganhou fluxo exclusivo: foi enviado inicialmente às Unidades Especializadas para que fossem utilizados no fortalecimento das ações que estavam sendo desenvolvidas nas diferentes comunidades. Por conseguinte, os cartões inicialmente foram retirados nas unidades pelas lideranças religiosas para que fossem utilizados no universo dos Terreiros. No que diz respeito ao uso dos cartões nas dependências das 126


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unidades, o material era parte da abordagem aos usuários que se identificassem ou fossem adeptos das tradições de matrizes africanas, de forma que não era para ser distribuído indiscriminadamente, pois foi produzido para uso direcionado. Essas mesmas peças de comunicação para prevenção às DST/AIDS foram transformadas em estandartes que passaram a compor, com sucesso, o desfile do Bloco da Saúde, criado no seio dos Afoxé Omo, Dadá e Ominibu. Esses blocos desfilaram na abertura do carnaval de São Paulo levando a discussão para a avenida, o que resultou em ampla visibilidade ao tema, o que foi aplaudido continuadamente em todo o trajeto. Essa foi uma estratégia incorporada à Campanha de Prevenção coordenada pelo Programa Municipal de DST/AIDS, de forma que mais uma vez provou-se que a inclusão é possível.

Fotos: Arquivo SMS – SP

No ano de 2012, a segunda série de materiais foi organizada a partir do mestre Zé Pilintra, atentando para as questões relacionadas à masculinidade e à saúde do homem; a Oxum, orixá da barriga, atentando para a necessidade de um enfrentamento constante à sífilis e à sífilis congênita; e a Oxalá, orixá da criação, aqui relacionado à não discriminação de que são vítimas as pessoas vivendo com aids. Sabe-se que o destino do material deve também ser pactuado com as lideranças, para que ele chegue ao seu destino final e contribua com o desenvolvimento do trabalho com êxito, tal como apontava as diretrizes descritas aqui, e essa negociação tem início na definição dos conteúdos com sua análise técnica.

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Religiões afro-brasileiras, políticas de saúde e a resposta à epidemia de aids

A participação da Coordenadoria Regional de Saúde e Supervisão Técnica de Saúde no processo foi de suma importância para o desenvolvimento do trabalho, particularmente nas oficinas. Os profissionais apresentaram informações sobre os serviços locais e, com isso, a comunidade concluiu que a partir do conhecimento desses profissionais conectada à atuação dos religiosos e vice-versa, é possível o início de um diálogo, com vistas para a atuação conjunta, o que não aconteceu antes, por conta, também, da falta de conhecimento sobre o SUS. Agora, como informou um dos participantes, “os religiosos sabem quem procurar quando precisarem de alguma informação ou como encaminhar as pessoas às unidades e, para os profissionais, foi possível conhecer um pouco mais sobre as religiões de matriz africana”. Nessa via de mão dupla está a necessidade de um enfrentamento mais proativo à epidemia e da promoção de um grande debate sobre conceito de saúde, prevenção, qualidade de vida e o sagrado afro-brasileiro, olhando para a contemporaneidade. Para os religiosos, a experiência proporcionou prioritariamente o acesso à informações sobre as DST/AIDS em uma linguagem acessível. Tal experiência gerou pleno envolvimento entre os participantes e a troca de experiência entre os dois grupos, cujas experiências são diferenciadas, mas foram valorizadas no âmbito do projeto, conforme seu objetivo central. A relação entre os religiosos e a Coordenação Regional de Saúde teve incentivo, a partir da postura dos profissionais (receptivos), o que contribui muito para com o processo de articulação entre eles. As explanações sobre as DST/HIV/AIDS deixaram os religiosos à vontade para identificar a necessidade de mais informações sobre as doenças sexualmente transmissíveis; auxiliou muito a discussão sobre a oferta e quais os serviços prestados em suas unidades, a identificação e a possibilidade de trabalho conjunto com as lideranças religiosas, a cla128


Celso Ricardo Monteiro

reza de que de que muito há por se fazer, porém, não havia o principal: estabelecimento de diálogo com os profissionais de saúde, o que dificultou a definição de estratégias para a implantação do projeto e o avanço do trabalho.

Foto: Arquivo SMS – SP

A importância da participação da comunidade na defesa de suas necessidades apontaram diferenças entre o real e o ideal de forma que a comunidade movimentou pessoas de diferentes pontos das regiões em que as oficinas eram organizadas (inclusive recebendo conselheiros de saúde que durante as oficinas mostraram-se descontentes em relação aos dados apresentados) e, dessa forma, concordou-se que em função da dimensão geográfica e dos problemas relacionados ao funcionamento do SUS a região necessitava de mais atenção: equipamentos de saúde para atender a comunidade; organização da fila e da demora das marcações de consultas e exames, e etc. O objetivo de semear responsabilidades em torno da prevenção as DST/HIV/AIDS foi alcançado e percebeu-se amplo interesse na participação dos presentes. A possibilidade de dialogar sobre as DST, tirando dúvidas, reafirmou a responsabilidade do grupo em somar esforços em torno do diálogo coeso e intenso, a fim de que todos estivessem “aptos” para serem multiplicadores de informações sobre a temática. O entrosamento contribuiu para que as lideranças diagnosticassem a necessidade de rever os seus próprios conceitos em torno do sagrado e a qualidade de vida das pessoas em geral. Elas foram orientadas sobre o como abordar essas questões com seus seguidores e avançar na busca por melhor qualidade de vida. As considerações realizadas pelos profissionais abriram dúvidas sobre a reprodução do preconceito, a privatização dos espaços públicos e a negação e desrespeito à diversidade. Para todas essas questões, foram indicados caminhos seguidos pela gestão, conforme as diretrizes da Secretaria Municipal de Saúde e a condução geral do sistema de saúde. 129


Religiões afro-brasileiras, políticas de saúde e a resposta à epidemia de aids

A partir da premissa de que se queria construir uma rede local, os participantes entenderam a necessidade de acionar mais lideranças religiosas para a formação dessa rede e traçar uma agenda comum, potencializando as atividades que já existem, divulgando os trabalhos realizados e mantendo/estabelecendo o contato entre tais parceiros. Entendeu-se que é preciso articular a agenda, visitar as unidades para conhecerem a unidade e os profissionais que lá trabalham, deixando a ressalva de que as agentes que participaram contribuíram em muito para o entendimento de como o serviço funciona. Sabe-se que é preciso enfrentamento a questões específicas. Assim, duas estratégias foram indicadas como prioritárias: formar lideranças jovens para que essas falem com seus pares e ampliar os nossos esforços coletivos e direcionados às mulheres (criar espaço de diálogo, fundamentalmente). O passo seguinte, portanto, foi pactuado em lócus: realização das ações pós-oficinas de implantação do projeto. Entre os resultados iniciais foi possível identificar: • a eleição de lideranças para compor dois conselhos gestores (CTA Cidade Tiradentes e Unidade Básica de Saúde Dr. Rubens do Val); • criação de comunidade virtual por iniciativa do TEUCEM; • mudanças de comportamento na relação entre os Terreiros e as unidades que estavam estabelecidos na mesma comunidade, mas não se conheciam; • disponibilização de 20 displays, associados ao fluxo entre tais atores, no universo de 45 Terreiros pertencentes ao projeto; • criação interna de uma rede multiprofissional, com 15 das unidades; • participação dessas lideranças em outros processos organizados pelos CTA; • estabelecimento de parceria entre o CTA São Matheus e o comércio religioso, local; • ampliação da Campanha de Prevenção no Carnaval – Camisinha na Folia.

Foto: Edson Eduardo

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O debate sobre o preservativo feminino e a falta de conhecimento sobre ele, tensionado entre as mulheres da comunidade, na sua maioria com mais de 40 anos, apontando a falta de visibilidade do insumo entre elas, bem como a forma de utilizá-lo, demonstrou-se como um dos resultados mais emblemáticos, visto que imediatamente se deu junto às unidades de referência, uma procura significativa. Para os profissionais de saúde esse espaço era desconhecido, assim como a presença de religiosos no serviço de saúde, e a forma como esses lidam com o autocuidado e o processo saúde-doença eram ignorados (mas eles não sabiam responder sequer se havia “gente do santo” sobre seus cuidados). Mas, mais importante do que isso, era a forma como as pessoas se relacionavam na chegada do usuário à unidade e na relação estabelecida entre ele essa unidade.

Conclusões O projeto buscou avanços na integração entre o Sistema Único de Saúde e as comunidades tradicionais de Terreiro, de forma que as interfaces sobre aids e religiões afro-brasileiras fossem evidenciadas e pudessem, sem ferir o princípio da laicidade, contribuir ainda mais para com o processo de intervenção e educação comunitária em saúde, por meio da educação entre pares, considerando a importância da prevenção dialogada e a linguagem como tecnologias centrais. Tal iniciativa visava ao reconhecimento das comunidades tradicionais de Terreiro como núcleos de promoção de saúde para o estabelecimento de um trabalho em rede, organizado e participativo, que reunisse as comunidades e as unidades de saúde na busca pela promoção da saúde integral dos sujeitos que compõem os amplos e diversos territórios em que estão. O Xire partiu metodologicamente da análise conjunta das informações presentes no cenário em que seria aplicado, aliada ao imaginário popular e à eventual correção dessas. Serviu-se de levantamento de expectativas e receios das pessoas (gestores, profissionais de saúde e religiosos que não conheciam a RME) relacionadas ao projeto e ao tema. Era preciso, portanto, questioná-las no ciclo de oficinas quanto à possível conexão entre o conhecimento do SUS e o saber ancestral presente na própria comunidade. Essas questões foram avaliadas ao término de cada etapa do processo e mostraram diferenças significativas na concepção dos diferentes sujeitos. A busca por novos paradigmas para prevenção às DST/HIV/AIDS pressupõe a escuta ao outro, de forma que ele seja considerado ator essencial no processo de promoção, 131


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mas também de recuperação de sua saúde, considerando seu território e suas questões mais específicas, que nem sempre são subjetivas como parecem, razão pela qual o diálogo ainda é a melhor das tecnologias disponíveis. Importante lembrar que educação entre pares indica-nos principalmente a atenção a fatores tidos como para além SUS, tais como a identidade e o pertencimento, mas que devem ser observados na relação estabelecida qualitativamente entre o usuário e o profissional de saúde. Esse processo dá-se muitas vezes de forma coletiva, em rede, com o reconhecimento da importância de valores essenciais para o sujeito em questão. Para além do que é prioritário, o PMDST/AIDS-SP tem observado em campo que as práticas em atenção à saúde são de fato questões a serem reavaliadas, em função do quanto a disponibilidade dos sujeitos para a educação permanente é desconexa do proposto pelos planos de trabalho, organizados em sintonia com o conceito de saúde coletiva já disseminado. A conexão do saber do SUS às outras tecnologias e práticas, como as de tradições com matrizes africanas, por vezes, terapêuticas, são não apenas no campo da intervenção comunitária, mas também na oferta de cuidado e atenção, essenciais para o desenvolvimento humano e social, o que altera o estado de saúde mental, físico e espiritual do sujeito, fator esse que acrescenta valor à resposta aos diferentes contextos de vulnerabilidade, contribuindo assim com a promoção de saúde. Dessa forma, o projeto com os resultados ora apresentados indica-nos que o reconhecimento do saber do outro, aliado à necessidade de qualificação técnica, escuta qualificada, revisão das práticas e reorganização de fluxos, para que na prática a condução dos diferentes sistemas de saúde sejam parceiros complementares em vez de substituíveis, o que dispensa toda e qualquer competição. Além disso, dois outros componentes mostraram-se essenciais para as mudanças de contexto tal como o previsto: territorialidade e pertencimento. Esses dois aspectos indicam-nos a organização dos processos de trabalho com mais tranquilidade, segurança e respaldo, visto que diante desse conceito de saúde é fundamental que o usuário seja o centro da atenção, mas, seja reconhecido como sujeito ativo, partícipe e colaborador da mudança de seu próprio estado de saúde. Nesse sentido o modelo de atenção a ser ofertado, observando-se pilares estratégicos, deve compreender o processo saúde-doença considerando a possiblidade de essas pessoas intervirem, saindo do lugar de “doentes, pacientes, coisas ou números” para o lugar de sujeito, como pressupõem a humanização. Não há impeditivos, porém, para que a tradição religiosa contribua com o avanço da saúde desse sujeito, considerando, é óbvio, a importância das diferentes competências e funções. Entende-se que o modelo de atenção mais eficaz é aquele que “articula recursos materiais e imateriais: físicos, tec132


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nológicos e humanos e se reflete nas escolhas éticas e políticas para priorização dos problemas a serem enfrentados”. A intolerância religiosa e o racismo, quando associados à acessibilidade ao serviço público, não é um tema único e exclusivamente do SUS, mas deságua nele, uma vez que considerável parte dos usuários necessita de recursos que são anteriores ao binômio médico-remédio. Não é ainda um tema resolvido única e exclusivamente no campo dos direitos humanos, pois o direito à saúde promove-se na simbiose das relações estabelecidas entre tais porque na prática essa relação nunca se resolveu, apenas se revestiu e, de tão perversa e sublime, tem nos desafiado a desenhar estratégias, de enfretamento prático e constante, com base no marco legal, na laicidade e na transformação dos diferentes contextos de vulnerabilidade. É preciso estabelecer projetos de prevenção e programas de saúde, com planejamento, organização, monitoramento dos resultados, estratégias concretas, que gerem impacto real na oferta de serviços de excelência com recursos múltiplos, considerando as pessoas como elas são, bem como as suas especificidades. Dessa forma, deve-se considerar que tais lideranças estabelecem vínculos e relações a partir da grande influência aliada à capacidade de gerenciar conflitos e dirigir o grupo, com confiabilidade e sustentabilidade, contando também com valores da tradição, da cultura e do pertencimento, o que está mantido e legitimado pelos seus antecessores e é capaz de transformar o sistema local, como um todo, a partir das releituras daqueles que asseguram a sua continuidade: seus descendentes. Isso é claro, no caso dos usuários do SUS, diferente das unidades que devem no campo da atenção se manter distantes da possibilidade de tomada de decisão a partir de valores morais ou religiosos. Essas mudanças incluem não apenas o processo saúde-doença e cuidado, mas também a resposta às diferentes vulnerabilidades dos vários sujeitos, uma vez que o comportamento é determinante para as relações estabelecidas entre ancestrais, descendentes e a sociedade ampliada. Esses são, por fim, fatores que a gestão da saúde não pode ignorar mais, já que precisa proporcionar à sociedade uma gestão de excelência.

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Piracicaba: diálogo entre o SUS e as comunidades tradicionais de Terreiro

Maria Regina Teixeira1 Moisés Francisco Baldo Taglietta2

Piracicaba, município do interior do Estado de São Paulo, com uma população de 364.872 habitantes, área geográfica de 1.369,51 km2, situa-se na média depressão periférica paulista, sedia a microrregião Piracicaba, composta por 11 municípios, e compreende as bacias hidrográficas de dois grandes rios: Tietê e Piracicaba. O município é polo e sede de uma macrorregião do Estado que congrega 26 municípios e aproximadamente 2 milhões de habitantes, abrangida pela DRS - X, GVE - XX e GVS - XX – Piracicaba-SP (regional de Saúde da Secretaria de Estado da Saúde). Assim, Piracicaba apresenta-se como um importante polo de assistência à saúde, ambulatorial e hospitalar, de média e alta complexidade. Piracicaba é um município de porte médio que se compara e compete com outros municípios de mesmo porte no Estado. Apresenta grande crescimento econômico ao longo da década, porém, sem os problemas das megacidades e dos grandes polos econômicos, aponta para a melhoria de qualidade de vida de sua população. É importante observar a força influenciadora da cana-de-açúcar na formação socioeconômica e cultural da região. A história de Piracicaba sempre esteve ligada à cultura da cana-de-açúcar, explorando, nos primórdios, mão de obra escrava. Mesmo com toda essa influência étnico-racial e da cultura negra, Piracicaba, a exemplo dos outros municípios do País, não possui políticas públicas de saúde específicas e definidas para esse segmento da população.

1 Gerente do Cedic – PM-DST/AIDS – SMS – Piracicaba-SP. 2 Coordenador PM-DST/AIDS – SMS – Piracicaba-SP.


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A rede municipal de saúde integra 63 Unidades de Atenção Básica à Saúde, sendo 40 Unidades de Saúde da Família (USF) e 23 Unidades Básicas de Saúde (UBS) que produzem em média 380 mil consultas médicas, 720 mil procedimentos de enfermagem e 270 mil procedimentos odontológicos ao ano. Na Atenção às urgências e emergências são 4 Unidades de Pronto Atendimento (UPA) e uma Central de Ortopedia e Traumatologia com funcionamento ininterrupto (24 horas), responsabilizando-se por cerca de 450 mil consultas médicas por ano. A Atenção Especializada à Saúde integra cinco unidades de atenção à Saúde Mental, uma Clínica de Olhos (serviço especializado em oftalmologia), um Ambulatório de Especialidades Médicas, um Policlínica, dois Centros de Especialidades Odontológicas (CEO), um Centro de Atenção Especializada em Saúde da Mulher (Cesm), um Centro de Atenção às Doenças Metabólicas (Cadme), um Centro de Referência em Saúde do Trabalhador (Cerest) e um Centro de Doenças Infecto Contagiosas (Cedic), onde funcionam, no mesmo complexo, SAE, CTA e HD. No Serviço de Assistência Especializada (SAE), desde meados da década de 1980 ocorreram várias tentativas de trabalhos, de forma pontual, com lideranças religiosas, incluindo as de comunidades tradicionais de Terreiro. Por alguns anos, o que permanecia mais regular era um trabalho de capelania realizado pela Igreja Presbiteriana Independente. A demanda do diálogo do SUS com as comunidades de Terreiros se materializava nas atividades realizadas, especialmente ao incluir o tema religião nas discussões com usuários do SAE e parceiros, donde se podia sentir a necessidade de ampliar o diálogo além muros, não mais voltado apenas ao que se identificava no Serviço de DST/AIDS, mas em um âmbito ampliado, na Atenção à Saúde como um todo, em especial na Atenção Básica, seguindo as orientações e diretrizes do SUS, principalmente no que tange à universalidade e a equidade. As primeiras discussões menos pontuais, buscando uma parceria da Secretaria Municipal de Saúde e do Programa DST/AIDS com as comunidades tradicionais de Terreiro, se deram no sentido de promover a formação de multiplicadores em pares para atuarem dentro dos Terreiros, mesmo sabendo que não era uma tarefa fácil de ambos os lados, pois o desconhecimento não une, muitas vezes afasta, e esse se mostrava o fator mais gritante nesse distanciamento. Podemos dizer que havia certa ignorância, não apenas por parte das pessoas, mas institucional: as comunidades de Terreiro desconheciam o quanto as equipes de saúde poderiam contribuir com o seu trabalho e, da mesma forma, as equipes de saúde, por puro desconhecimento e, ou, até por certo “pré-conceito” a elas incutido, não se relacio136


Maria Regina Teixeira Moisés Francisco Baldo Taglietta

navam com esse segmento da população, sequer para cadastramento pela Estratégia de Saúde da Família. Identificada essa situação, passamos a buscar formas de abordagem que contemplassem essa nova demanda e respondessem às duas visões: das equipes e do povo de Terreiro. Nesse processo de aproximação percebemos que os problemas de comunicação e as dificuldades de agregação não se restringiam aos dois grupos identificados entre si, mas dentro desses também, a ponto de não se saber quantos Terreiros existiam implantados no município. Conhecer esse universo passou a ser a primeira demanda conjunta a ser respondida. No primeiro levantamento foram identificadas 11 casas de culto de matrizes africanas no município. Convidadas para uma reunião, compareceram apenas três, totalizando oito participantes. Houve a apresentação das experiências, expectativas e dificuldades de cada uma dessas casas quanto a essa proposta de trabalho em rede. Como estratégia de sensibilização do povo de santo para aproximação com a proposta de trabalhar a saúde no Terreiro, começamos a realizar “chás da tarde” nos espaços dos Terreiros, que se caracterizaram como um momento de capacitação, principalmente pela troca de experiências e pelo estabelecimento de fluxo de encaminhamentos. Nessas tardes se produziam formação e informação, em via de mão dupla: os profissionais de saúde socializavam seu conhecimento técnico ao mesmo tempo em que absorviam uma visão mais abrangente da cultura, da religiosidade e das práticas populares presentes no Terreiro. Paralelamente, o município desenvolvia estratégias de formação de multiplicadores direcionadas a outros segmentos, envolvendo: população escolar, profissionais de saúde, militantes da sociedade civil organizada, profissionais da área da cultura, dentre outros. No sentido de aproximar esses segmentos com os adeptos das religiões de matrizes africanas, o Grupo de Valorização do Trabalho em Rede (GVTR) foi convidado para um Encontro Anual de Multiplicadores, no qual participou, com o Programa Estadual de DST/AIDS, promovendo a discussão sobre a necessidade de ampliarmos nossas fronteiras, individual e coletivamente, para a construção de um trabalho em rede na busca de melhoria na qualidade de vida. Todo esse movimento contribuiu para motivar a participação de uma técnica do Programa Municipal de DST/AIDS na capacitação oferecida pela Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde aos pais e mães de santo para atuarem nos Terreiros, realizada no Rio de Janeiro no ano de 2004. Foi um momento de integração e construção de nova diretriz para fortalecimento do diálogo entre o SUS e o povo de santo. A partir daí foi implantado o Núcleo Piracicaba da Rede Nacional de Religiões Afro-brasileiras e Saúde, o que possibilitou a presença da Coordenação Geral da Rede Nacio137


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nal em uma capacitação conjunta das duas populações em questão, com duração de dois dias, da qual participaram os profissionais do Programa de Saúde da Família e sacerdotes e sacerdotisas de religiões de matrizes africanas acompanhados de seus filhos de santo. Outras capacitações dirigidas aos multiplicadores de pares foram realizadas em parceria também com o Sindicato dos Empregados em Empresas de Asseio Conservação e Trabalhadores na limpeza urbana e áreas verdes de Piracicaba e região (Siemaco), atingindo, além do povo de santo, integrantes da Casa do Hip Hop, Centro de Apoio e Solidariedade à Vida (Casvi), Grupo de Mulheres Nizinga Mbandi, Universidade Metodista de Piracicaba (Unimep) e membros da Escola da Família, ampliando a rede e proporcionando maior visibilidade à interrelação entre povo de santo, cultura negra e o SUS. No segundo momento a coordenação do Núcleo Piracicaba da Rede Nacional de Religiões Afro-brasileiras e Saúde, buscando ampliar a participação de toda comunidade religiosa e dar visibilidade à mesma, continuava a mapear os Terreiros da cidade, chegando a contabilizar 56 Terreiros, os quais foram convidados a participar dos “chás da tarde” e discussões promovidas pela rede em parceria com o Programa Municipal de DST/AIDS. A construção estava em pauta, de forma lenta, tomando formas e fortalecendo o diálogo entre pares. O que se percebia era que, ao atingir a integração dos profissionais de saúde com o povo de santo, a sensibilização foi crescendo, bem como as ações, não só com os Terreiros, mas com outras instituições, o diálogo vem se estabelecendo ao longo dos anos numa construção feita a várias mãos, tendo, ainda, muito a fazer. O Grupo de Trabalho Estadual (GT Religiões da Coordenação Estadual de DST/ AIDS), do qual Piracicaba participa, no reconhecimento do trabalho que aqui se desenvolvia, elegeu o município para sediar um encontro regional trazendo uma ação capilarizadora. Compareceram 20 cidades do Estado de São Paulo com os seguintes segmentos: Povo de Santo, docentes e discentes da Unimep e das Faculdades Integrada Maria Imaculada, Organizações Não Governamentais, outras representações da sociedade civil organizada e profissionais de saúde. Participaram 120 pessoas com uma diversidade religiosa bastante interessante, principalmente para ampliar as discussões e as possibilidades de agregar novos grupos. A distribuição dos participantes, segundo religiões autorreferidas foi: • não declarado: 16 • agnóstica: 1 • matrizes africanas (candomblé e umbanda): 12 • kardecista /espírita: 8 • católica romana: 61 138


Maria Regina Teixeira Moisés Francisco Baldo Taglietta

• protestante/presbiteriana: 4 • evangélica: 14 • cristã: 2 • espiritualista: 2 Em maio de 2005, na segunda Edição do Prêmio Afroaids, organizado pelo Grupo de Valorização do Trabalho em Rede, que homenageou diferentes atores sociais, cujos trabalhos realizados eram ligados à promoção de saúde e relacionados à defesa dos direitos humanos, Piracicaba foi uma das agraciadas pelo trabalho dirigido à diversidade étnico-racial e religiosidade. Esse prêmio, mais do que uma honra, veio reforçar a ideia de que o caminho estava certo . O Núcleo Piracicaba da Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde, atuando com o Programa Municipal de DST/AIDS, teve a possibilidade de conhecer o funcionamento do SUS localmente, apresentou avanços e formou parceiros, possibilitando evidenciar experiências exitosas em diversos espaços, dentro e fora do município, fortalecendo e promovendo visibilidade e essa “nova” população, até então socialmente invisível. Consideramos que ao longo desse tempo alguns pontos frágeis dificultaram muito esse processo de construção, dentre eles, podemos destacar: a desconfiança na aproximação dos Terreiros com a rede de saúde e vice-versa; a adesão minoritária das casas e a fragilidade inicial da coordenação do Núcleo da Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde implantado em Piracicaba. Hoje podemos afirmar que o fortalecimento de um Núcleo da Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde em Piracicaba foi fator determinante para o êxito obtido no processo de construção da interlocução entre os Terreiros e as Unidades Básicas de Saúde, ampliando o respeito e o acesso bilateral, o que possibilita, pela maior qualificação das discussões, o reconhecimento do valor das práticas populares de saúde e o estabelecimento de um canal competente de comunicação entre SUS e os adeptos da tradição religiosa afro-brasileira. Das lições aprendidas em todo esse processo, podemos destacar como primordial, embora pareça óbvio, o cuidado que se deve tomar para garantir o respeito a todos os saberes envolvidos e jamais se esquecer da fórmula mais simples e segura de se construir políticas públicas, de âmbito coletivo, que é juntar pessoas, qualificá-las e promover a discussão na busca do bem comum, lembrando que quanto maior for a diversidade entre as pessoas que compõem o grupo melhor representará a comunidade na qual está inserido.

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O projeto Aprender Saúde – Humanização e Equidade em Saúde e o fortalecimento do controle social das políticas de saúde

Deivison Mendes Faustino1 Celso Ricardo Monteiro2

Introdução Este artigo relata a experiência de execução do projeto: “Aprender Saúde – Humanização e Equidade em Saúde”, realizado pelo Grupo de Valorização de Trabalho em Rede – GVTR, em parceria com o Grupo Kilombagem, nos marcos da Rede Nacional de Controle Social e Saúde da População Negra e Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde. O projeto foi executado em três municípios do Estado de São Paulo aglutinando diversos atores envolvidos com a produção e promoção de saúde para compartilhar conhecimentos e vivências e, ao mesmo tempo, refletir sobre os caminhos trilhados no “fazer saúde” e suas implicações à saúde da população negra. Dessa forma, o trabalho possibilitou a ampliação de conhecimentos e o fortalecimento de lideranças de movimentos sociais e sacerdotes/sacerdotisas de religiões afro-brasileiras para o controle social, como estratégia de enfrentamento do racismo e da intolerância religiosa no âmbito da saúde pública, cujo produto é objeto do presente artigo. O projeto “Aprender Saúde – Humanização e Equidade em Saúde” foi uma iniciativa do Grupo de Valorização de Trabalho em Rede – GVTR, realizado no ano de 2007, com vistas ao aprimoramento da intervenção comunitária e fortalecimento do controle social das políticas de saúde em diferentes regiões do Estado de São Paulo. A partir da articulação e parceria com diferentes atores institucionais, aos quais se destacam o Grupo

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eivison Nkosi, integrante do Grupo Kilombagem, consultor em saúde da população negra e professor de História da D África. Contatos: http://www.kamugere.wordpress.com/ e sdeivison@kilombagem.org

2 Educador Comunitário. Sacerdote do Asé Igbin de Ouro. Contatos: montcelso@yahoo.com.br


Religiões afro-brasileiras, políticas de saúde e a resposta à epidemia de aids

Kilombagem, a Rede Nacional de Controle Social em Saúde da População Negra e a Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras em Saúde, foi possível desenvolver um ciclo de atividades de mobilização em torno da saúde da população negra. O Grupo de Valorização do Trabalho em Rede – GVTR é uma articulação criada a partir do povo de santo, envolvendo diferentes tradições, religiões e filosofias em torno das questões de liberdade de fé e de crença como componentes de uma discussão maior, para, assim enfrentar o racismo e a intolerância religiosa no universo da saúde pública. Em sua ampla atuação, o grupo dedicou-se à formação de sujeitos para multiplicação de informação acerca do direito à saúde, no que priorizou o combate à epidemia de aids no Brasil. Nesse caminhar com experiências tão diferenciadas foram sendo tecidas importantes redes de articulação e advocacy entre lideranças religiosas de diferentes tradições afro-brasileiras e outras religiões, organizações de movimentos sociais e departamentos de Governo, com vistas ao fomento a políticas e ações eficazes que valorizem as comunidades tradicionais de Terreiro na relação com o Estado e a sociedade como um todo, reconhecimento da contribuição dessas comunidades como núcleos de promoção de saúde e o enfrentamento da intolerância religiosa no âmbito do SUS. Homenageado pelo Ministério da Saúde – Programa Nacional de DST/AIDS (Dia Mundial de Luta contra a Aids/2005 – Prêmio População Negra e Aids: “O Brasil tem que viver sem preconceito”) e com outros títulos e premiações, inclusive na relação com o Legislativo, o grupo colecionou experiências também em torno dos estudos e resolutividade de casos locais; produção de metodologia para a transformação de sujeitos e suas realidades; ampliação do acesso à informação; popularização da visão de mundo dos Terreiros acerca da promoção da saúde; esforços para a criação de pontes centrais para o desenvolvimento coletivo e individual e a ocupação estratégica de diferentes espaços de participação popular e controle social, a exemplo do Comitê de Ética do Instituto de Saúde, na figura de um Babalorixá, o que até então era inédito. O projeto “Aprender Saúde – Humanização e Equidade em Saúde” surge como fruto dessa caminhada coletiva e tornou-se possível a partir do diálogo com outros atores envolvidos em processos diversos de mobilização. A participação ativa de lideranças religiosas ligadas à Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde e outras organizações do movimento negro, ligadas à Rede Nacional de Controle Social e Saúde da População Negra, ao qual se destaca o Grupo Kilombagem, foi imprescindível para viabilizar o processo de mobilização junto às diversas instâncias interessadas. Esse caráter coletivo estabeleceu o fio condutor do projeto e marcou todas as suas fases de execução, ampliando-se com o apoio de alguns gestores, profissionais de saúde e estudiosos da saúde pública. 142


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O controle social das políticas de saúde e a saúde da população negra

“Os nossos passos vêm de longe” (Jurema Werneck).

O movimento social negro constituiu-se, ao longo de sua história, como a força social representativa da trajetória de homens e mulheres negras, tornando-se um elemento fundamental na busca por melhores condições de vida da população negra no Brasil, assumindo a interlocução de variadas demandas humano-societárias desse grupo populacional. Esse aspecto é de grande relevância para compreendermos a dinâmica das relações raciais na sociedade contemporânea e os seus reflexos na saúde da população negra. O longo histórico de lutas sociais empreendidas pelos africanos e seus descendentes no contexto da América Colonial pode ser classificado como ações de promoção à saúde, uma vez que influenciaram diretamente ou indiretamente sobre os determinantes sociais de saúde da população negra. Desde as ações que visavam a diminuir o sofrimento da insalubre travessia transatlântica à preservação e recriação do universo cultural africano no contexto do escravismo brasileiro, conservando e adaptando conhecimentos relacionados à arte da cura, o negro atuou decisivamente sobre as condições de produção da própria saúde. Ao mesmo tempo em que atuavam, a partir da luta coletiva ou individual, sobre esses determinantes (produtores de vulnerabilidade em saúde), utilizavam-se de seu conhecimento milenar sobre o poder medicinal do cuidado, das folhas e do equilíbrio físico, mental e espiritual para aliviar ou mesmo se fortalecer ante as situações impostas. Esteve Biko (1990), um dos principais referenciais políticos e teóricos do movimento negro e formulador do termo “consciência negra”, ao refletir sobre o enfrentamento do racismo propunha uma estratégia de luta que procurava articular dialeticamente cultura, política, autoestima, solidariedade grupal e afirmação da identidade étnica/racial à possibilidade de mobilização coletiva diante do racismo. Pode-se compreender essa dinâmica em três dimensões: • construção de redes de solidariedade; • afirmação da identidade negra ante um ‘universalismo’ eurocêntrico inferiorizador e a preservação de conhecimento cultural ancestral; • luta conjunta pela transformação nas condições estruturais de vida, levado a cabo pelos próprios negros num processo que seria impossível sem os elementos anteriores. 143


Religiões afro-brasileiras, políticas de saúde e a resposta à epidemia de aids

Esses tópicos, embora articulados na prática, evidenciam a importância do movimento negro no processo saúde-doença da população negra, seja pelos processos de transformação social que proporciona no âmbito estrutural das relações de produção, influenciando diretamente nos determinantes sociais da saúde, seja por propiciar espaços de sociabilidade pautados na valorização e manifestação da identidade ancestral comum. Aspectos relevantes na melhoria da qualidade de vida dessa população. A inter-relação com o movimento negro para a ampliação da rede de sujeitos sociais envolvidos nas dimensões de cuidados com a saúde está calcada na condição que esse possui de trazer em si “...os elementos de interação dialógica que complementam, no campo da saúde, o potencial da construção de consensos acerca dos fenômenos saúde/ doença com os legítimos sujeitos dessas vivências” (AIRES, 2005). De maneira genérica, pode-se afirmar que quando o negro se rebela, ameaçando, tencionando e transformando mesmo que simbolicamente a ordem estabelecida, temos a realização de ações de promoção à saúde que influirão diretamente ou indiretamente sobre a qualidade de vida dessa população (SPIASSI e COL., 2009). Interessava no âmbito do projeto “Aprender Saúde–Humanização e Equidade em Saúde” a articulação junto a essas organizações, visando ao fortalecimento de suas ações no que tange à saúde da população negra. Em um artigo intitulado “Se você me nega eu me assumo: o direito à saúde e a busca por equidade social” (LOPES, 2008) esboça-se um histórico do debate e implementação das políticas de saúde da população negra no Brasil evidenciando a importância do movimento negro na pressão e articulação por políticas de saúde. É em resposta à atuação organizada desse movimento social (em especial o movimento de mulheres negras) nas conferências de saúde, participação em conselhos e outros espaços de controle social que o Estado absorve essa demanda social, ainda que timidamente. No mesmo caminho, a coletânea do projeto Ató-Irê: Centro de Cultura Negra do Maranhão (2003) indica, a partir da experiência da Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde, como as comunidades tradicionais de Terreiros podem contribuir para a promoção da saúde da população negra a partir dos conhecimentos e práticas que possuem, podendo, inclusive, servir de modelo de atenção e cuidado nas políticas de saúde. O projeto buscou dialogar com essa diversidade de percepções e trajetórias a partir da criação de momentos conjuntos de reflexão e troca de conhecimentos sobre saúde, intolerância religiosa, racismo, racismo institucional e as políticas de equidade no âmbito da saúde. O contato dessas lideranças com estudiosos da saúde coletiva e gestores públicos e profissionais do Sistema Único de Saúde foi uma estratégia acertada que enriqueceu este trabalho e agregou novos elementos a uma caminhada que se inicia há muitos séculos, afinal... “nossos passos vêm de longe” (VERNECK e MENDONÇA, 2002). 144


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O projeto “Aprender Saúde – Humanização e Equidade em Saúde”

Foto: Kilombagem

O ano de 2007, data de realização desse projeto, se configurou como um grande marco na luta contra as iniquidades raciais em saúde. Após uma intensa pressão e articulação política de lideranças sociais (em especial do movimento negro), pesquisadores e profissionais de saúde, ele foi aprovado no âmbito do Ministério da Saúde. A implantação da Política Nacional de Atenção à Saúde Integral da População Negra, que só veio a ser publicada em portaria no Diário Oficial da União anos depois de sua aprovação no Conselho Nacional de Saúde, trazia uma inovação para o Sistema Único de Saúde, já que reconhecia a existência do racismo na sociedade brasileira e os seus impactos negativos na saúde da população negra. A mesma política reconhece ainda que o Sistema Único de Saúde é um dos elos reprodutores das iniquidades raciais. O GVTR participou ativamente da construção dessa política no âmbito federal e passou a fomentar no Estado de São Paulo, junto a outros parceiros, como o Grupo Kilombagem, Sindicato dos Radialistas, Instituto AMMA Psique e Negritude e importantes lideranças religiosas de matriz africana, para o fortalecimento das ações de saúde existentes no que inclui-se a consolidação da Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras, a Rede Lai Lai Apejo – População Negra e Aids e a Rede Nacional de Controle Social e Saúde da População Negra no Estado. Nesse momento, os proponentes do projeto já podiam se embasar em estudos diversos comprovando as iniquidades raciais em saúde e, principalmente, na experiência acumulada de anos de advocacy relacionada à defesa da saúde integral da população negra e liberdade religiosa. O projeto, portanto, pautou-se pelos seguintes pontos: 145


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I.

A certeza de que o conceito de rede não é uma pauta recorrente nas agendas institucionais, inclusive dos movimentos sociais elitizados e, com isso, a realização de ações em rede, intra/inter-redes não é uma constante.

II.

Que a intolerância religiosa demarca a relação entre o Estado e a religião no Brasil, muito embora a laicidade seja um princípio do Estado brasileiro, comprometendo a posição desse mesmo Estado, ante as questões do direito à saúde, e alteram os procedimentos também da gestão do SUS, seu funcionamento e dinâmica de trabalho.

III. A falta de apoio às lideranças religiosas, para a valorização e realização constante dessas ações, uma vez que são tidas por seus fiéis como pessoas da mais alta confiança, mas não conhecem o Sistema Único de Saúde, saber esse que poderia acrescentar outros elementos na relação e no cuidado da comunidade. IV.

O reconhecimento de que os índices de mortalidade materna e mortalidade materna infantil vão, segundo os bancos de dados oficias (do Governo) e as teses publicadas na área, apontar a mulher negra como a maior das vítimas do racismo institucional e de que as condições de vida dessa população, maioria nas comunidades aqui citadas, vão determinar o processo saúde/doença, atenção/cuidado.

V.

A negação de que com a implementação do quesito raça/cor/etnia é possível ver, hoje, quem são as pessoas que frequentam o SUS, como elas chegam, se chegam, o que implicaria traduzir essas questões para a comunidade de forma que também elas conheçam ainda mais sobre esse cenário e contribuam para a obtenção de respostas políticas intersetoriais e qualitativas.

VI. O reconhecimento das práticas de cuidado e de atenção, presentes nas religiões afro-brasileiras (questões étnicas), enquanto elementos fundamentais para o avanço e a eficácia do sistema, entre outras, diminuindo a fila do SUS. VII. O pouco incentivo à população, aos especialistas e aos profissionais para que os processos de ensino/aprendizagem, historicamente organizados, financiados e coordenados pelas instituições de ensino e pesquisa, considerem o saber presente nessas comunidades e na sociedade civil organizada em geral. Para enfrentar essa realidade o projeto se propunha a qualificar a atuação e fortalecer as lideranças comunitárias e as comunidades tradicionais de matriz africana, no que tange às questões de atenção, promoção e humanização da saúde acerca das diretrizes do Sistema Único de Saúde, considerando questões importantes como a Política Nacional de Humanização, Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da População Negra e os Pactos de Gestão, da Atenção e pela Vida, com seus vários componentes, assim, empoderando os diversos atores sociais para o debate à organização da comunidade ante o atual 146


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conceito, as práticas, a situação, a resolutividade e a humanização da saúde pública no Estado de São Paulo. Para tal, buscou-se focar nas diferentes realidades locais, e o projeto dividiu-se metodologicamente em três etapas: I.

A 2ª Jornada da Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde, realizada em Bertioga, que se pautou na organização coletiva, dessas lideranças, com base em tarefas e lições de casa que incluíam o estabelecimento de diálogo com o sistema de saúde local. Sabe-se que as Direções Regionais de Saúde não foram acessadas à época, sobretudo porque o Estado não estava organizado para tratar desse tema regionalmente, embora essa já fosse uma proposta de trabalho cogitada no âmbito do GTAE – Grupo Técnico de Ações Estratégicas daquela secretaria, que, por conseguinte, não possuía referências para tal até aquele momento.

II. O Ciclo de Oficinas Regionais para Humanização, Promoção e Equidade em Saúde, realizado em Santo André e no município de Piracicaba, tiveram abrangência regional. Na região do ABC paulista as ações foram disparadas a partir da articulação do Grupo Kilombagem, na época vinculado à Rede Nacional de Controle Social e Saúde da População Negra junto a outros grupos que já trabalhavam aspectos ligados à saúde da população negra, tais como o Grupo Negra Sim – Movimento de Mulheres Negras de Santo André, o Instituto Afro-Brasileiro – a única organização do movimento negro da região a ter presença no Conselho Municipal de Saúde –, a equipe de pesquisa do Centro de Estudos em Saúde Coletiva da Faculdade de Medicina do ABC e alguns representantes da Secretaria de Saúde de Santo André. III. O terceiro passo previsto objetivava o encontro dessas lideranças para ampliação do debate e fortalecimento da “rede” ao longo do Seminário Estadual para Humanização e a Promoção da Equidade em Saúde, realizado em Taubaté, também com apoio da gestão local do SUS e a presença massiva do povo de santo. A metodologia utilizada nos encontros buscou dialogar com as vivências, concepções e percepções dos participantes acerca da saúde, iniquidade, intolerância religiosa e racismo. Os encontros foram estruturados a partir do seguinte roteiro: I.

Elaboração coletiva de diagnóstico situacional.

II. Análise posterior do cenário da saúde local. III. Roda de conversa para ampliação do debate sobre conceitos, práticas, legislação e informação em saúde, conforme as diretrizes do Ministério da Saúde, as questões de territorialidade e descentralização do Sistema Único de Saúde. IV. Elaboração coletiva de plano de ação, por parte das lideranças inseridas no processo. 147


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Uma análise acerca do processo de trabalho

Foto: Kilombagem

A primeira fase de execução do projeto procurou fortalecer o processo de articulação da Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileira e Saúde. A 2ª Jornada da Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde se valeu de rodas de conversa sobre conceito de rede e a presença das comunidades tradicionais de Terreiro no SUS. Foram realizadas análises de conjuntura e balanço pós-jornada anterior (dezembro/2007). Nesse encontro, os grupos de trabalho para planejamento da rede organizaram-se com base na Política Nacional de Humanização SAS/MS e a “roda” para avaliação coletiva do trabalho se pautou pela discussão acerca da articulação política das lideranças junto aos Estados, aos municípios e a sua conexão com o cenário nacional. Esse processo fortaleceu a presença do povo de santo no âmbito da saúde do Estado de São Paulo. Um exemplo visível desse fortalecimento é a presença de sacerdotes de religião de matriz africana no GT Aids e Religiões, conduzido pela Coordenação Estadual de DST/ AIDS. Ao mesmo tempo, a rede priorizou a atuação em âmbito local, levando uma importante sacerdotisa umbandista a compor o Conselho Municipal de Saúde de Pirassununga. O Ciclo de Oficinas Regionais para Humanização, Promoção e Equidade em Saúde privilegiou a valorização do diálogo entre o saber ancestral das lideranças de comunidades tradicionais de Terreiros e o movimento negro com o saber dos profissionais e pesquisadores de saúde, com vistas a um alinhamento teórico que compreenda as manifestações do racismo no âmbito da saúde. Nesses encontros foram discutidas as dificuldades e janelas de oportunidades no que tange à ampliação do acesso a informações relevantes, como a legislação do SUS e a eficácia e organização da participação e do controle social em âmbito local. Para tanto, 148


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valeu-se da: análise (em “tempo real”) dos dados em saúde da população negra no Brasil (Ministério da Saúde e Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo), de forma que as lideranças políticas tivessem acesso aos indicadores de saúde e aos mecanismos mais efetivos de controle social das políticas de saúde. Essa etapa foi um passo importante que estimulou a organização da Rede Nacional de Controle Social e Saúde da População Negra nas regiões e potencializou ações que já existiam. No caso do município de Santo André, a presença do Instituto Afro-Brasileiro no Conselho Municipal de Saúde provocou a gestão desse município a dar respostas às especificidades de saúde da população negra. Esse processo ganhou eco com a presença no município de alguns profissionais e gestores de saúde sensíveis à necessidade de respostas às iniquidades raciais em saúde, o que incluia a realização da pesquisa Conhecer para Incluir: Sensibilidades e potencialidades do movimento negro para promoção à saúde e a prevenção às DST/AIDS, protagonizada pelo Centro de Estudos em Saúde da Faculdade de Medicina do ABC. Esse histórico ajuda entender que, no caso de Santo André, o Ciclo de Oficinas Regionais para Humanização, Promoção e Equidade em Saúde foi acolhido pela Faculdade de Medicina do ABC e na ocasião foi lançada a publicação Saúde da População Negra no ABC: diálogos com o movimento social sobre a prevenção das DST/AIDS (SPIASSI e COL). Cesco – Centro de Estudos de Saúde Coletiva do ABC – São Paulo: Mídia Alternativa Comunicação e Editora, 2009 – (Coleção temas interdisciplinares; 8). Esse processo foi fundamental para os passos seguintes, que resultaram na criação do Plano Municipal de Saúde da População Negra, aprovado pelo Conselho Municipal de Saúde de Santo André, em 2008, e a criação, em 2009, do Comitê Municipal de Saúde da População Negra no âmbito da Secretaria Municipal de Saúde. Esses conteúdos foram discutidos ao longo do Seminário Estadual para Humanização e a Promoção da Equidade em Saúde, em Taubaté. Constatou-se que era preciso mais investimento na “unidade”, da sociedade civil, uma vez que a rede em construção ainda não tinha avançado no que diz respeito à apropriação das informações e mecanismos necessários para a transformação dos cenários em discussão. A diversidade regional amplamente explorada ao longo do processo reunia aspectos centrais como a negação da existência do racismo, sobretudo no campo da assistência e recuperação da saúde, onde, por exemplo, se fez notável a ausência dos profissionais médicos ao longo do debate, tanto nas oficinas quanto no seminário. As cidades polo do projeto foram escolhidas em função dos cenários e do grau de necessidade de intervenção, além das parcerias estabelecidas entre as diferentes organizações da sociedade civil e o GVTR, bem como as outras que foram convidadas a compor esse 149


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processo, a fim de que o planejamento fosse representativo de fato, com “a cara da região”. Essas dificuldades foram as mais notáveis em todo o projeto e nas regiões aqui relacionadas, o que alimentou o debate sobre racismo institucional junto às diferentes instâncias de Governo, entre elas o governo federal, que reagiu propondo ampliação do debate sobre vulnerabilidade durante a Mostra Brasil Afro-Atitude no Congresso Brasileiro de Prevenção às DST/AIDS realizado em Florianópolis, sem êxito.

Conclusões O processo de execução do projeto “Aprender Saúde–Humanização e Equidade em Saúde” representou um passo importante no fortalecimento do controle social das políticas de saúde no que tange à equidade racial em saúde. O presente relato evidencia que é possível mobilizar as lideranças de movimentos sociais e sacerdotes/sacerdotisas de religiões afro-brasileiras para a atuação eficaz como estratégia de enfrentamento do racismo e da intolerância religiosa no âmbito da saúde pública. Mais do que isso, aponta para a necessidade de maior atenção dos gestores de saúde para o fortalecimento dessas organizações negras e lideranças das comunidades tradicionais de Terreiro e para o controle social das políticas de saúde com foco no acesso e na qualidade da atenção. O projeto contribuiu para fortalecer a Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde e a Rede Nacional de Controle Social e Saúde da População Negra no Estado de São Paulo; e ampliou o leque de parcerias entre os movimentos sociais e o poder público em âmbito local, como no caso de Piracicaba e Santo André. O diálogo e as parcerias realizadas durante os encontros evidenciam as práticas em andamento na gestão do Sistema Único de Saúde e, também, nos movimentos sociais, não eram dialógicas, o que impactava negativamente na eficácia do serviço público, sobretudo no que tange à relação com a comunidade, embora a criação da Lei nº 8.142, de 1990, objeto de estudo no âmbito das oficinas, onde se preconizou a participação popular e o controle social nas diferentes instâncias da vida institucional. Revisitar essas práticas e adequá-las à realidade que se apresentou a época, continuou sendo, em 2012, um desafio central para a implementação da Política Nacional de Atenção Integral á Saúde da População Negra no Estado de São Paulo e no Brasil, muito embora já tenha o cenário sofrido determinadas mudanças como a produção de informações em saúde mais atuais (ainda sem análise no caso de São Paulo) e reorientado o caminho de diferentes atores dos movimentos sociais aqui citados.

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Deivison Mendes Faustino Celso Ricardo Monteiro

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O perfil socioeconômico das comunidades tradicionais de Terreiro em São Paulo e Ferraz de Vasconcelos: análises e intervenções acerca do acesso a bens e serviços além da fé

Maria Cristina Silveira Prado Martins Celso Ricardo Monteiro

Introdução Sabe-se que tradicionalmente as comunidades tradicionais de Terreiro estão situadas no extremo periférico das cidades. Tais comunidades são conduzidas por sacerdotes e sacerdotisas oriundos de diferentes universos, tal como seus filhos de santo. Ali estão sujeitos de diferentes classes sociais, orientações sexuais, organizações políticas e concepções acerca da vida. É com a iniciação no candomblé e o pertencimento ao grupo que tais questões vão ganhando forma ao longo do tempo, no tempo e no espaço de cada indivíduo. Ainda assim o acesso a bens e serviços, além da possibilidade de obtenção de recursos outros, interfere cotidianamente em questões que dependem diretamente desses ou pode alterar o futuro de cada sujeito. Terreiros mais pobres ou com mais recursos, assim o são por dois básicos motivos: a fonte é o trabalho árduo do sacerdote, enquanto pessoa física, profissional aposentado ou em plena vida ativa, ou contribuições singelas, pagamentos simbólicos por serviços prestados. A participação financeira do coletivo depende diretamente de suas condições individuais, o que faz com que cada filho de santo ponha a mão no bolso conforme as suas posses. No extremo da periferia estão Terreiros onde o perfil se diferencia no mesmo bairro e para analisar tal fenômeno a indicação inicial pode estar na visibilidade daquele


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Terreiro e sua liderança. Aqui não basta ser mais antigo na hierarquia, mas, sim, mais procurado, com uma agenda concorrida que reverta em posses que, mais tarde, serão transformadas em benefícios para o grupo. Os Terreiros da classe média ocupam, por fim, lugar significativo na relação com a sociedade, pois reúnem fatores que vão para além da tradição e nos convida à reflexão sobre as desigualdades sociais que demarcam o terreno da fé e da religiosidade no imaginário popular. A correlação entre essas forças pode ser mais bem analisada com instrumentais, indicadores e metodologias já disponíveis, diferentes do que relatamos a seguir. Porém, o presente artigo discorre sobre as questões socioeconômicas encontradas em um universo de dez diferentes Terreiros parceiros do Grupo de Valorização do Trabalho em Rede ao longo do ano de 2005, nas cidades de São Paulo e Ferraz de Vasconcelos. O estudo, longe de ser uma pesquisa científica, buscava orientações para o planejamento estratégico do grupo na ocasião, considerando que era fundamental um diagnóstico preciso e produzido coletivamente para que essa organização não governamental avançasse ainda mais no campo da real representação e representatividade do povo de santo junto às demais instâncias. Trata-se, portanto, de um levantamento sobre os problemas reais vivenciados por essas comunidades para que, ao organizarmos os passos seguintes, as pessoas se sentissem parte do processo, de fato.

O objeto e o objetivo: caminhos percorridos Considerando a máxima “Unir para Incluir” que foi eleita a marca do GVTR, o grupo vem ao longo dos anos afirmando que cultura promove saúde, portanto, a educação preventiva deve pensar culturalmente como as pessoas se localizam nesse universo. No caso da comunidade de Terreiro, ser “do santo” é um fator que contribui em meio à intolerância e à desigualdade. Seu bem-estar está associado ao que muitos chamam de subjetivo, mas está posto a partir da visão de mundo africana dos Terreiros, ao pertencimento, ao crescimento individual e comunitário, ao respeito e autorrespeito a seu histórico ancestral-mítico, ao comportamento nas suas mais diversas vertentes e, sobretudo, à identidade e à cultura do sujeito. O presente artigo discorre sobre os achados da pesquisa informal sobre o perfil socioeconômico das comunidades tradicionais de Terreiro realizada pelo GVTR. Era objetivo do questionário traçar o perfil desses religiosos e frequentadores de Terreiros situados em São Paulo e Ferraz de Vasconcelos, com quem o GVTR mantinha relações de parcerias, com vista para o debate sobre direito e acesso à saúde. Pretendia-se com essa intervenção 154


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nortear os futuros trabalhos dessa instituição, para assim poder ofertar maior contribuição a comunidade de Terreiro, diante da necessidade de melhor qualidade de vida e auxílio no que diz respeito à saúde e relação com os órgãos públicos de diferentes áreas, entre elas, saúde, educação, cultura e cidadania. Tal intervenção estava associada ao planejamento de trabalho do grupo, já que a ampliação das ações era uma necessidade real. Partiu-se da premissa de que as pessoas não sabiam que no SUS é possível retirar preservativo sem burocracia, ao longo do horário comercial. Para tanto, optou-se por colher dados referentes ao perfil dos seguidores e adeptos dos Terreiros parceiros do GVTR e dos Terreiros com quem pretendíamos atuar, para assim subsidiar os trabalhos da instituição. Não se trata, portanto, de uma pesquisa científica, mas sim da reorganização das ações em lócus. O questionário aplicado possibilitou conhecer melhor quem frequenta esses espaços e quais as suas necessidades em saúde, gerando uma ponte entre o observatório criado com esse projeto e o desenvolvimento das ações organizadas no âmbito do Grupo de Valorização do Trabalho em Rede. Coordenou-se a pesquisa contando com uma equipe que muito auxiliou para o êxito deste trabalho, entre elas, algumas deixaram saudades por onde caminharam: Babalorixá Celso Ricardo de Oxaguián, ekedi Selma Pinheiro dos Santos Moraes de Xangô (in memoriam); ekedi Marieta de Oxum; ogã Valter Gelde Martins de Xangô; ogã Alexandre de Moraes de Ogum; Sérgio de Abreu Santos (in memoriam); Tarcísio Silvério Jagunlabe. Soma-se a esse trabalho a necessidade de ampliar o conhecimento e a atuação das comunidades carentes e o investimento em monitoramento desses processos. Daí as questões sobre “quem, como, quando, com quem e porque atendemos” atreladas à ideia do funcionamento pleno e eficácia dos trabalhos. O GVTR, naquele momento, buscava a participação dos adeptos e simpatizantes das religiões de matrizes africanas nos mais diferentes espaços, viabilizando a inclusão de diferentes pautas no cenário político. No entanto, a mobilização social e as diferentes forças ideológicas ainda apareceram como desafios diante daquilo que se pretendia.

O universo pesquisado: aspectos teóricos e do cotidiano São Paulo é a cidade de referência do Grupo de Valorização do Trabalho em Rede, razão pela qual seus esforços estão concentrados neste território. Esse município, considerado o maior colégio eleitoral do País, possui peso econômico significante, ampliando a sua importância no cenário global. Ferraz de Vasconcelos é uma das 155


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chamadas cidades-dormitório que fazem fronteira com a capital. Na relação entre os Terreiros, a distância é um elemento importante para o estabelecimento de laços e vínculos, mas não é determinante, razão pela qual as duas cidades compõem o universo pesquisado. Também levou-se em consideração a ideia de que o acesso a bens e serviços é desigual na cidade e também entre elas, portanto, diante da diferença contida na dimensão territorial, índice populacional e demais fatores, não poderia haver nenhuma possiblidade de estudo comparativo entre as duas. Entretanto, a quantidade de relatos acerca dos casos de intolerância religiosa vivenciados em Ferraz de Vasconcelos, tida como “menor” em tamanho, mas, mais conservadora e intolerante do que São Paulo, mostrava-nos uma intensidade sem igual. A identidade religiosa, como se sabe, é determinante na obtenção de recursos e oportunidades e em campo. Foi possível constatar que a intolerância se reveste a cada cenário, tornando-se cada dia mais sofisticada e impactante, o que inviabiliza o desenvolvimento e avanço dos seguidores de religiões com matrizes africanas. O Índice Paulista de Responsabilidade Social – IPRS de 2006, tomado como referência nesse trabalho, é uma tipologia constituída de cinco grupos, denominada grupos, sintetiza a situação de cada município no que diz respeito à riqueza, escolaridade e longevidade segundo os eixos renda, escolaridade e longevidade. São Paulo, São Bernardo do Campo, Santo André, São José dos Campos, Sorocaba, Ribeirão Preto e Santos são alguns dos municípios que compõem o Grupo 1 do Índice, indicando-nos que esse grupo é “caracterizado por agrupar municípios com elevado nível de riqueza e bons indicadores sociais” e, assim, “manteve em 2004 a configuração espacial observada nas edições anteriores, ou seja, a maioria de seus municípios está localizada ao longo dos principais eixos rodoviários do Estado (Via Anhanguera e Rodovia Presidente Dutra), que se interceptam no município de São Paulo.” (IPRS, 2006: 15). No Grupo 1, nos informa o IPRS, estão entre os critérios combinações como: “alta riqueza, alta longevidade e média escolaridade; alta riqueza, alta longevidade e alta escolaridade ou; alta riqueza, média longevidade e média escolaridade; ou alta riqueza, média escolaridade e alta escolaridade”. Em 2004 “os 73 municípios que compunham esse grupo abrigavam 20 milhões de pessoas, ou 51% da população estadual, tornando-o o maior dos cinco grupos em população”. Ferraz de Vasconcelos, na Região Metropolitana de São Paulo, compondo o Grupo 5 do índice, está entre “as localidades tradicionalmente pobres, caracterizadas por baixos níveis de riqueza municipal, longevidade e escolaridade. Esse grupo concentra os municípios mais desfavorecidos do Estado, tanto em riqueza como nos indicadores sociais”. (IPRS, 2006: 15). 156


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A região Metropolitana de São Paulo apresenta o segundo melhor indicador de riqueza do IPRS e ocupa a 11ª e a 10ª posições nos indicadores de longevidade e escolaridade respectivamente. Pouco mais da metade dos municípios (59%) integra o Grupo 2, com bons indicadores de riqueza, mas deficiência em pelo menos uma das dimensões sociais. No Grupo 1, que reúne municípios com bons resultados nos três aspectos avaliados, classificaram-se apenas São Paulo, Santo André, São Bernardo do Campo, São Caetano do Sul, Ribeirão Pires e Barueri. No Grupo 3, composto por localidades com baixo nível de riqueza e bons indicadores sociais, somente Salesópolis foi classificado. Dos municípios restantes, quatro pertencem ao Grupo 4, com baixo nível de riqueza e um dos indicadores sociais insatisfatórios, e cinco integram o Grupo 5, com níveis insatisfatórios em todos os quesitos. Essas classificações se refletem na heterogeneidade econômica e social observada nos 39 municípios que formam a região. O indicador agregado de riqueza mostra, como ocorrido no conjunto do Estado, aumento de 4% em seu ritmo de crescimento entre 2002 e 2004. Somente Itaquaquecetuba apresentou ligeiro decréscimo nesse índice, ao passo que Ferraz de Vasconcelos, Mogi das Cruzes e Suzano mantiveram os níveis de 2002. (IPRS, 2006: 231).

Diante disso, é fundamental lembrar que ainda hoje não existe um mapeamento ou pesquisa científica que demonstre quantas comunidades tradicionais de Terreiro existem no Estado de São Paulo, muito embora o contingente de afro-brasileiros segundo o CENSO 2000 representava em 1980 um total de 0,6% da população brasileira residente, 0,4% no ano de 1991 e 0,3% em 2000, o que alguns especialistas avaliaram na época como“declínio das religiões afro-brasileiras”, esquecendo-se, portanto, da múltipla pertença como fator determinante para a garantia de direitos tidos constitucionais.

O processo de trabalho: metodologia O projeto teve início em fevereiro de 2005, junto à Casa de Laura Braga, uma organização não governamental dirigida pelo Babalorixá Paulo Calabra, de Iansã, em Morro Grande, região norte da cidade de São Paulo, alastrando-se pela cidade. Naquela ocasião fomos recebidos durante uma cerimônia religiosa marcada pela entrega de cargo sacerdotal. Todos os passos foram negociados previamente, o que facilitou a relação com os parceiros no momento em que a pesquisa foi aplicada. Entre esses estão momentos de 157


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apresentação da pesquisa, seu objetivo, sua finalidade, roteiro de trabalho e de pactuação de agenda conforme a possiblidade das comunidades. Com a ausência de recurso público destinado à iniciativa, os agentes foram organizando-se coletiva e financeiramente com as possibilidades disponíveis no grupo. Criou-se um roteiro de trabalho, um instrumento para a coleta de dados, sem identificação de nenhum dos “pesquisados” e, mais tarde, a avaliação do processo, bem como dos dados coletados. A devolutiva deu-se também de forma gradual, possibilitando-nos várias discussões sobre os achados no campo, o que contou com diferentes pensamentos, análises e visões de mundo. Durante a pesquisa utilizou-se um questionário escrito, organizado de forma a atender à autoclassificação, considerando-se as especificidades de cada pessoa. Assim, os agentes não opinaram nas respostas individuais e em alguns casos apenas ajudaram no preenchimento. Para melhor articulação com o público, primou-se por uma“agenda possível”e, dessa forma, elegeu-se dois grandes momentos para a eficiência do trabalho: oficina á cerca do tema e intervalo nas atividades religiosas abertas ao público. Em ambas as oportunidades, valorizou-se o espaço e o conhecimento dos diferentes atores, possibilitando-nos densa reflexão sobre a importância de cada cidadão no processo de definição, monitoramento e avaliação das políticas públicas de saúde. A distribuição de preservativo masculino nesses espaços, em parceria com o Programa Estadual de DST/AIDS da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, foi um facilitador do debate. Serviu-se, porém, do instrumento conforme o descrito abaixo:

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Perfil da Comunidade Terreiro Nome do Terreiro: ____________________________________________________________________ Bairro onde mora: _____________________ Cidade: _____________ Estado: ______________________ Bairro onde está situado o Terreiro: _______________________________________________________ O Terreiro que você frequenta é dirigido por: Homem ( ) Mulher ( ) Idade (

)

Sexo: M ( ) F ( ) Qual a sua orientação sexual? Homossexual ( ) Bissexual ( ) Heterossexual ( ) Qual a sua cor: 1 – ( ) Preto(a) 2 – ( ) Branco(a) 3 – ( ) Amarelo(a) 4 – ( ) Pardo(a) 5 – ( ) Indígena 6 – ( ) Não sabe 7 – ( ) Não respondeu

8 – ( ) outra Qual?___________________________________

Qual a sua renda mensal: Até R$ 260,00 ( ) R$ 901,00 a R$ 1.800,00 ( ) Qual o seu estado civil:

R$ 261,00 a R$ 600,00 ( )

acima de R$ 1.801,00 ( ) Casado/a ( )

Solteiro/a ( )

R$ 601,00 a R$ 900,00 ( )

Sem rendimento ( ) Namorando ( )

Ficando ( )

Viúvo/a ( )

Divorciado ( ) Tem filhos? Sim ( )

Não ( )

Quantos ( )

Você está estudando? Sim ( ) Não ( ) Parei ( ) Por que parou?________________________________ Qual série parou? ( )

Nunca estudei ( )

Se você estuda, em que série está (___________) Se for Técnico: Qual? ___________________________ Tem nível superior

Sim ( )

Não ( )

Qual? _____________________________________________

Seus pais são casados? Sim ( ) Não ( ) Você tem irmãos? Sim ( ) Não ( ) Quantos ( ) Quantas pessoas moram com você? ( Sua casa é: Alugada ( )

)

Emprestada ( )

Própria ( ) Outro ( )

Quantos cômodos têm sua casa? ( ) Por que está aqui? Curiosidade ( ) Busca de auxílio ( ) Crença ( ) Saúde ( ) Foi convidado ( ) Outro fator ( ) Qual?___________________________________________________________________ Está com alguma doença no momento? Sim ( ) Não ( ) Qual?___________________________________ Você está tendo acompanhamento médico

Sim ( )

Não ( )

Toma alguma medicação? Sim ( ) Não ( ) Qual?_____________________________________________ Tem algum convênio médico? Sim ( ) Não ( )

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A pesquisa foi recebida como “algo inovador e pago, e as pessoas queriam saber o preço” e esse discurso era originário de diferentes espaços e classes sociais, por diferentes razões associadas à relação com o Estado. Alguns foram super-receptivos no primeiro momento do convite, outros levaram em conta a situação em que moravam e o perfil dos membros de suas comunidades antes de aceitá-lo, o que avaliavam como impróprio e inadequado, para tanto, alegando dificuldades em reunir todas as pessoas ao mesmo momento. Em dois exemplos, as comunidades não foram receptivas por entenderem que seus espaços físicos não se adequavam a ações extrarreligiosas, pois eram residências muito simplórias da periferia. Cinco das comunidades procuradas não responderam ao questionário, limitando-se à primeira abordagem somente. Oito comunidades aderiram ao processo e, entre elas, uma quantidade muito variada de pessoas em cada comunidade; em média 20 pessoas; em alguns casos, famílias inteiras. Entre os participantes o uso do questionário foi bem aceito e, ao responder a pesquisa, não apresentaram problemas para o grupo que estava aplicando-o. Encontrou-se um número razoável de ativistas de diferentes causas: movimento negro, LGBT, de luta contra a aids, o que nos faz entender que parte dos atores que estão no Terreiro, está ocupando importantes espaços políticos da cidade. Porém, percebeu-se que a maior parcela dos atores abordados não tinha acesso a espaços políticos, muito embora se considerassem cidadãos. A visão de cidadania dessas pessoas mostrou-se muito diversificada, porém, no caso das diferentes comunidades de Terreiro, não participar é a continuidade do processo capitalista excludente, que teve como início o preconceito direcionado a esse grupo populacional. Diante disso, entendeu-se que havia a necessidade de ampliação e maior divulgação das ações que são realizadas para o desenvolvimento das comunidades de Terreiro e, por conseguinte, o debate sobre elas. Participaram desse processo: • Ilê Asé Omo Oiyá Sangô; • Tenda de Umbanda Baiano Zé da Mata; • Centro de Estudos Espirituais Luz e Verdade; • Tenda de Umbanda Cacique Ocaenai; • Tenda de Umbanda Marinheiro Capitão Genésio; • Tenda de Umbanda Ogum Megê e Maria Francisca; • Associação Centro de Mamãe Oxum, Pai Guiné e Caboclo da Pedra Branca. Reuniu-se, assim, um total de 190 pessoas-fonte, com o envolvimento de 40 pessoas que não eram membros daqueles espaços (visitantes). Essas comunidades estão 160


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localizadas em diferentes regiões da cidade de São Paulo: Jardim Maringá; Pirituba; Vila Formosa; Tatuapé; Penha; Itaquera; Freguesia do Ó, além do município de Ferraz de Vasconcelos. Entre os dirigentes, das sete comunidades, três eram mulheres à frente desses grupos. Entre as 126 mulheres encontradas no campo, a idade variava entre 9 e 56, diferentes dos 78 homens, que estavam entre 15 e 73 anos de idade. Orientação sexual foi um tema questionado. Eram 56 as mulheres heterossexuais, 1 bissexual, 1 homossexual e 7 não responderam. Entre os homens, 31 eram declarados heterossexuais, 2 bissexuais, 5 homossexuais e 12 optaram por não responder. As mulheres, por fim, acabam por compor os diferentes espaços do Terreiro, ainda que não estejam à frente do mesmo, e isso pode ser visualizado no modelo de organização que esses Terreiros imprimiram na relação com a comunidade. Elas são a maioria presente e conseguem articular-se em torno da liderança, de forma que acabam por administrar o templo, também economicamente. Quando questionadas sobre raça e etnia, 14 das mulheres eram pretas, 76 declararam-se brancas, 2 amarelas, 25 pardas, 1 indígena, 2 morenas e 1 declarou-se “negra não aparente.”Entre os homens, 16 disseram ser pretos, 36 brancos, 21 pardos, 1 indígena, 3 informaram não saber, 1 informou ser negro e 1 declarou-se moreno. A presença negra nas religiões afro-brasileiras também é uma questão discutida no Censo 2000, com a conclusão de que há um trânsito e uma presença acirrada de afrodescendentes de cor preta nas igrejas do Brasil de 2000. Aqui, isso se traduz como um fator pouco observado, em benefício do debate sobre “o importante é a fé” e, dessa forma, as relações étnico-raciais vão ganhando espaço na agenda, mas não podem ser traduzidas como prioritárias. O modelo de candomblé com negros à frente não é, em São Paulo, uma discussão central, mas tem proporcionado discussões outras como a valorização coletiva da comunidade. Da tradição étnica, para a universalidade do Terreiro, tais questões vão aparecer, por fim, na busca por recursos que garantam qualidade de vida e tranquilidade, e essas questões não são consideradas como desigualdade apenas no terreno político, também há esforços espirituais para que as pessoas avencem, razão pela qual as oferendas e orações são também dedicadas ao progresso individual. A contribuição dos irmãos e a divisão da conta para que a oferenda aconteça, quando alguém não tem posses, é uma característica encontrada em cada uma dessas comunidades. No entanto, é visível a presença de um consulente com poder aquisitivo maior, quando comparado aos demais membros da comunidade. Quanto à renda mensal dos questionados, segundo o gênero, 15 homens revelaram na época ter rendimento de até R$ 260 reais; 29 entre R$ 261 e R$ 600; 10 com renda entre R$ 601 e R$ 900; 11 homens informaram ter renda entre R$ 901 e R$ 1.800; 161


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9 com valores acima de R$ 1.801; e 17 declararam não ter renda alguma. Entre as mulheres, 16 tinham renda até R$ 260; 24 entre R$ 261 e R$ 600; 11 tinham renda entre R$ 601 e R$ 900; 15 até R$ 1.800; 14 acima de R$ 1.801; e 29 mulheres informaram não ter renda alguma. Pode-se dizer que a multiplicidade profissional das mulheres é aqui um indicador importante na tradução do fenômeno descrito acima. Dessa forma, lavar, passar, cozinhar, para além da agenda de profissional doméstica, sem carteira assinada tem sido ainda uma constante, mas já é possível visualizar, sobretudo entre as meninas, a construção de outro perfil dessas mulheres, que buscam, entre outras, a ascensão profissional almejada por suas antecessoras. Há esforços significativos para que esse crescimento aconteça, mas as pessoas atuam individualmente, como se essa não fosse uma questão comunitária, tal como o empreendedorismo e o desenvolvimento empresarial. Contudo, são questões que, agregadas ao desenvolvimento da sociedade como um todo, extrapolam o universo sagrado e muitas vezes são consideradas como questões para além do Terreiro, traduzindo em algo ignorado por parte das lideranças. Em contrapartida, os Terreiros cada vez mais se abrem para ações sociais e políticas, que são, no final, destinadas ao desenvolvimento das comunidades que esses compõem, refletindo, assim, em outra relação ou integração com os vizinhos, em alguns casos evangélicos, como na região norte. Entre os religiosos que abandonaram os estudos por razões múltiplas, encontramos: 9 homens pretos e 1 branco. Entre as mulheres, 5 eram negras e 14, brancas. Perguntamos os motivos pelos quais abandonaram a sala de aula e informaram ser: crianças; trabalho; não gosta; dificuldades financeiras; falta de tempo; preguiça; casamento. Entre os que pararam no ensino fundamental: 9 dos homens eram pretos e 2 eram brancos; entre as mulheres, 8 eram negras e 14 eram brancas. Ao questionar as pessoas sobre o acesso ao nível superior, 19 mulheres brancas e 5 pretas, diferente dos homens, 3 negros e 3 brancos, disseram sim, tinham nível superior. A educação, considerada fator principal do desenvolvimento das pessoas, está concentrada no debate sobre o futuro dos filhos, assim, os pais que não estudaram ou abandonaram os estudos o fizeram alegando que precisavam trabalhar e sustentar sua família, por vezes numerosas, fenômeno esse já estudado pela academia. Porém, há a certeza de que inúmeros investimentos são necessários para que as pessoas acessem e se mantenham na sala de aula para além do ensino básico. A baixa qualidade do ensino atual foi um fator marcante no discurso dos mais velhos, que alegavam ver seus filhos na escola, mas, mal-educados. 162


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Sobre as condições de suas residências, segundo raça/cor, 16 negros e 23 brancos revelaram morar em casa de aluguel. Oito negros e 19 brancos residiam em casas emprestadas; 76 negros e 62 brancos tinham casa própria. Aqui, deve-se considerar que em alguns casos tranquilidade se traduz no fato de que as pessoas residem em casas próprias, mas construídas em terreno de terceiros. Assim, residir em casa alugada não significa ter recursos disponíveis para pagá-la, é novamente a onda das questões socioeconômicas vivenciadas em meio à desigualdade que vai definir como as pessoas irão se comportar financeiramente no momento de projetar o seu futuro econômico e social, ainda que haja certa desordem ou desinteresse por parte delas. Perguntamos às pessoas “por que elas estavam ali” e 12 revelaram curiosidade; 48 estavam em busca de auxílio, sendo desse um total de 28 mulheres; 81 dos presentes estavam em razão de crença naqueles espaços, desses havia um total de 44 mulheres; 17 dessas pessoas estavam no Terreiro por motivo de saúde, entre elas, 12 eram mulheres. Encontramos ainda respostas do tipo: “Gosto da umbanda”; Amo a religião; Quero conhecer; Sou membro; Tenho interesse e sou dirigente. É evidente que a presença naquele espaço está associada à crença de que o futuro será diferente. No entanto, as múltiplas razões nos convidam à reflexão e, assim, a busca por saúde, tal como questionado anteriormente, é um tema significativo. Essas questões em torno da busca individual extrapolam, por fim, o relato das pessoas, abrindo assuntos de âmbito individual, não estudados aqui, mas presentes no atendimento proporcionado pelas lideranças religiosas. Entre os religiosos que estavam em acompanhamento médico, segundo gênero, raça/cor-etnia, encontramos: 15 homens negros e 9 brancos; 17 mulheres negras e 30 brancas. Mas quando questionados sobre a presença de alguma doença naquele momento, 11 homens negros e 6 brancos disseram sim, tal como 6 mulheres negras e 23 brancas. Questionados sobre que doenças estavam tratando, alegaram: diabetes – bronquite – sinusite – colite – síndrome de impacto – lúpus – hipertensão – anemia – mioma – tendinite – hepatite – úlcera. Com essa informação passamos a investigar quantos religiosos faziam uso de medicação naquele momento: 6 homens negros e 12 brancos, além das 10 mulheres negras e 17 brancas, informaram sim, fazerem uso de medicamentos diversos. Porém, 54 homens e 44 mulheres informaram ter algum convênio médico, sendo que entre as mulheres 18 eram negras e 26 eram brancas. Mulheres em atendimento médico nesse caso foi um fator considerável para a discussão sobre acesso ao Sistema Único de Saúde. Considerou-se que essas “estavam salvas” porque adentraram o sistema “superlotado, com atendimento precário e baixa resolutividade”, mas, muitas delas haviam buscado por atendimento em outro mo163


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mento e, não obtiveram êxito. Dessa forma, concluímos que as pessoas sabem sim do que estão falando, ainda que minimamente, mas suas experiências e vivências, agora orientadas pelas lideranças religiosas, vão definir inclusive como se dará a busca pela garantia de seu direito à saúde.

Caminhos possíveis e aspectos políticos da sobrevivência: análise inicial Em algumas das comunidades questionadas encontramos o candomblé agregado ao culto umbandista. São duas religiões diferentes cultuadas no mesmo espaço físico. Sabe-se que geralmente, esse processo se dá devido à origem religiosa dos fundadores de tais instituições. Aqui, por meio de outros olhares, a religiosidade e a instituição muitas vezes interagem, dividindo o mesmo espaço, mas são diferentes e se fortalecem ou não de acordo com o individual jeito de ser e de fazer. Por conta da diversidade de culturas presente na regionalização, a pesquisa não questionou as práticas religiosas das comunidades, mas conseguiu capitanear a certeza de que a múltipla pertença é uma característica mais do que presente nessas comunidades. Assim, valores e princípios também estão conectados a mundos que não apenas o da África, alterando, entre outras, a percepção das pessoas no que tange à saúde sexual reprodutiva. Da mesma forma que elas são do Terreiro, seu Terreiro é cristão e cristão são os seus procedimentos diante das questões do corpo e da alma. A concentração de duas ou mais religiões no mesmo espaço sagrado é também parte do que chamamos de sobrevivência (readaptação) do culto afro-brasileiro. A constante necessidade de mudança e reconstrução dos valores e conceitos religiosos deve-se à modernização e às novas gerações, que cada vez mais valorizaram a presença de Exu (entidade, ao invés do orixá da sexualidade e da comunicação entre deuses e homens) e de Caboclo como atendentes primordiais para os Terreiros de São Paulo, diante da carência e da necessidade dos consulentes. Deve-se, portanto, considerar o popular merindilogún (jogo de búzios), como um instrumento da mais alta importância, visto que os sacerdotes e sacerdotisas das religiões de matrizes africanas atuam religiosa e psicologicamente com o apoio desse oráculo sagrado, garantindo nos Terreiros a existência de um espaço (a consulta particular) tido como divã. Nos vários espaços visitados vimos a reafirmação das pessoas com o sagrado em suas diferentes formas, pois a diversidade dos cultos, espaços, adeptos, assistidos por 164


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essas comunidades nos fez perceber o quanto é de fundamental importância o conjunto de sentimentos e emoções em torno do exercício da fé dentro do Terreiro, pois a relação das pessoas com o sagrado reafirma a importância que as pessoas dão para suas questões espirituais, independentemente da situação e das condições de vida, mas também para as relações que estabelecem ali. Vale lembrar que fé e religiosidade são questões individuais. A religião é uma instituição que agrega e conduz, quando a religiosidade e a crença, cada qual vive conforme a sua intensidade. Observamos que em algumas comunidades havia inquietações quanto à orientação sexual, mas elas eram sobre “a minha própria orientação” e nem sempre sobre a presença ou não de um homossexual no grupo. Encontramos problemas no uso terminológico da palavra (heterossexual, homossexual e bissexual) recebido como uma novidade da linguagem que não era da maioria daqueles grupos, assim, a falta de informação abriu um debate novo naquele espaço e sinalizou para os demais a necessidade de intervenção, de trabalho específico, direcionado, pois a presença de pessoas de diferentes faixas etárias e suas interpretações sobre o tema apontaram a necessidade de maior diálogo em torno da diversidade sexual. Em uma das comunidades fomos abordados por um dos adeptos quanto à identidade racial, pois ele queria entender qual a sua raça e a sua cor. Outro adepto questionou “qual seria a raça do brasileiro já que temos uma mistura de países dentro do Brasil”. Questões como essas foram amplamente discutidas nos espaços das oficinas, mas só foram cogitadas porque a pesquisa possibilitou o diálogo sobre esses temas. Do contrário, eles não teriam sido lembrados, pois o cotidiano dessas pessoas obriga cada uma delas seguir automaticamente, enfrentando os desafios com as armas de que dispõem. Por mais que essas questões sejam recorrentes no cotidiano das pessoas, avaliamos que esses conteúdos não estão disponíveis nos diferentes espaços que elas frequentam, não são acessíveis e, consequentemente, as ações desenvolvidas por terceiros, não alcançam ou não geram nenhuma resposta aos problemas que muitas dessas pessoas vivenciavam nos terrenos onde a diversidade é um problema. A afro-brasilidade é considerada magnífica por conta de seu poder de agregação, no entanto, a africanidade (ser de candomblé, uma identidade ancestral-mítica-religiosa) é um conceito que mereceu discussão, pois estamos falando de comunidades que reúnem diferentes gerações, o que nos faz pensar na diversidade de processos educativos que utilizam linguagens e outras tecnologias as quais não necessariamente acompanham o recorte geracional e as releituras do mundo. Durante todo o processo de educação religiosa muitas dessas pautas estão entre os questionamentos presentes, uma vez que as vivências proporcionam o diálogo em torno 165


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da diversidade, mas na religião, tal como no Estado, nem sempre o debate está associado ao resultado de fato. Para os especialistas da área o que se aprende no Terreiro não se aprende na academia, mas a soma de conhecimentos é cotidianamente possível. O espaço do Terreiro é muito mais do que sagrado, é um território que remete as pessoas à África dos orixás, mantendo-as aqui, vivas, atentas, astutas e disponíveis, mesmo que aparentemente dispersas. Ser “negro”no Brasil e apresentar-se assim, é possuir uma identidade e estar ligado à aspectos políticos que, quando o sujeito pertence ao Terreiro, coligam-se também à sua identidade étnica (e espiritual, em vez de antropológica e etnográfica). Assim, encontrou-se uma quantidade massiva de pessoas brancas (declararam-se, sentem-se assim) falando “em nome de”. Esse dado aparece como um fator muito presente na construção e preservação, ou não, da identidade individual e coletiva do sujeito. Assim, a análise mais profunda dessas informações, mais uma vez, fica aos cuidados dos sociólogos com interesse no tema. Mas não nos omitimos diante do fato de que é preciso pensar com mais afinco, sobre essas questões, uma vez que o direito de o sujeito eleger o seu representante, diante de uma função tão importante quanto o cuidar, implica vivenciar o pertencimento e a identidade com êxito e louvor. Se ao pertencer essas dúvidas não estão colocadas à mesa, essa identidade pode sim ser eventual e quem vai dizer se sim ou se não é a própria pessoa. Porém, as relações que se criam nesse universo e as que deixam de ser criadas são indicadores importantes que devem considerar questões que vão para além da cor da pele. Outra questão importante que apareceu em meio ao processo é a transformação do Terreiro e a sua imagem social, conforme a classe social de seus fundadores. Será que essas mutações são providenciais? Sabe-se que elas agregam valores e hábitos outros, deixando de lado, por exemplo, a sua culinária original em alguns momentos públicos para servir a tradicional comida que todo mundo gosta, sob a marca de boas-vindas aos convidados ou agradecimento pela presença dos mesmos. Mas, e no cotidiano? Esse observatório, naquele momento, nos fez críticos de nós mesmos, porque estávamos todos imbuídos de ideais significativos para formação de um mundo melhor e, assim, agimos de forma imparcial, mas viabilizando a inclusão de diferentes pautas no processo de organização do povo de santo.

Conclusão Ao avaliar a pesquisa e as oficinas realizadas neste ínterim, constatou-se que em meio às abordagens tivemos a necessidade de trabalhar essas questões nos outros pro166


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jetos e intervenções do GVTR. Essas comunidades foram imediatamente inseridas nos processos de trabalhos para fazer parte do processo e das ações desenvolvidas pelo grupo, tais como, as capacitações e monitoramentos das políticas relacionadas à raça e etnia. No entanto, obtivemos pouco sucesso, pois entre a militância e a realidade individual há um fosso que pede atenção. Com esse trabalho adquirimos experiências relevantes com as comunidades de Terreiro para ofertarmos direcionamento ao trabalho futuro e, assim, rompemos com as cortinas do descaso, da marginalidade, da exclusão e anulação de confessarem-se adeptos das tradições religiosas de matrizes africanas, pois para muitos essas religiões eram o motivo para ficar sem emprego, moradia, etc. Resta-nos prestar nossas singelas homenagens a essas lideranças religiosas que enfrentavam e ainda hoje enfrentam as mais diversificadas situações para garantir a continuidade do sagrado, diante do descaso, mazelas e infortúnios por dizerem que pertencem a religiões de matrizes africanas, e hoje somos descendentes, e como tais somos privilegiados. Como dizia o finado Babalorixá, Nininho d’Ogum: “vivíamos a fazer orações para que os policiais não nos vissem, e hoje ele passa e, se duvidarmos, vem tomar passe para salvaguardar o seu dia a dia, sabem quem é Exu e principalmente Ogum”. Durante a pesquisa, entendeu-se que “em nome” da ética, seria fundamental a realização de um seminário, com objetivo de ofertar devolutiva aos Terreiros visitados, com vistas para a formulação de estratégias que contribuíssem para o seu crescimento. Essa pesquisa ocorreu durante o primeiro semestre de 2005 e seus dados apresentados no 1º Seminário de Atenção à Saúde da Comunidade Terreiro (agosto-2005) e depois reapresentado no 4º Seminário Paulista da Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde (outubro de 2008 – Unicid/São Paulo), objetivando a organização política, a participação social e a intervenção dessas comunidades no campo político da saúde, por exemplo, diante da gestão participativa, o que melhorou muito a visão do grupo na elaboração de melhor planejamento das ações estratégicas de suas comunidades para os anos que se seguiram. A partir da pesquisa seguimos formando agentes multiplicadores de informação, educadores nas questões de direitos e deveres diante das políticas públicas em saúde, educação e cidadania. Vimos a necessidade de mostrar ao município e ao Estado o que estávamos encontrando em meio às ações e projetos que esses protagonistas realizavam, cotidianamente, sem recurso ou cooperação do poder público, mas assim auxiliavam outros a ter iniciativas e dar continuidade às tradições e às 167


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ações sociais que esses espaços religiosos fazem, o que pode ser visto na elaboração do Prêmio Afroaids e na Mostra de Experiências em Religiões Afro-Brasileiras e Saúde da População Negra organizados pelo Grupo de Valorização do Trabalho em Rede.

Referência Bibliográfica SÃO PAULO. Assembleia Legislativa do Estado. 2006. Índice Paulista de Responsabilidade Social. IBGE, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo 2000.

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Religiões afro-brasileiras e saúde da população negra: experiências de gestão, movimentos sociais e comunidades tradicionais para a promoção da equidade

Maria Cristina Silveira Prado Martins1

Apresentação No ano de 2004, envolvidos em meio aos desafios relacionados às articulações entre o sagrado afro-brasileiro e as políticas públicas de saúde, além da visibilidade à presença das lideranças religiosas nesses espaços, o Grupo de Valorização do Trabalho em Rede, por meio do diálogo inter-religioso, abriu diferentes canais de comunicação entre o Estado, a sociedade civil e as diferentes religiões, tradições e filosofias. Contudo, as questões que diziam respeito aos sacerdotes, sacerdotisas e seus adeptos ou simpatizantes eram específicas, dependiam de uma articulação que deveria envolver os diversos setores e diferentes atores sociais, no que se destacou a feliz parceria com o movimento de luta contra aids, para além da filosofia do GVTR relacionada ao seu nascimento como organização de movimento social, destinado a fazer pontes, tal como era o desejo de seus fundadores. O GVTR ocupou-se em fomentar o trabalho em saúde e em rede, conectando as diferentes redes sociais de que faziam parte os religiosos de diferentes tradições afro-brasileiras. Assim, era preciso avançar no que tange ao reconhecimento desses e suas experiências e expertises. Essa era uma iniciativa que dependia da avaliação de como esse

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eóloga, secretária-geral do GVTR, sacerdotisa do Ilê Asé Iyalode Oyo, coordenadora na Rede Nacional de ReligiT ões Afro-brasileira e Saúde Núcleo São Paulo Capital e coordenadora do Projeto Xirê no município de São Paulo. irosun@terra.com.br


Religiões afro-brasileiras, políticas de saúde e a resposta à epidemia de aids

processo se dava em lócus, para que essas redes pudessem inspirar outras e alimentar as que se criavam a partir desse trabalho comunitário. Nasce assim o Prêmio Afroaids, com a proposta de valorizar e intensificar os trabalhos sociais promovidos pelas comunidades de Terreiros, bem como seus pares e outros atores, diante das ações, que, de algum modo pudessem fazer a diferença e dar visibilidade para as lideranças que realmente faziam do voluntariado e das ações coletivas um diferencial na sociedade como um todo, para assim auxiliar o processo de desenvolvimento do grupo. Foi possível constatar que a qualidade e a quantidade dos trabalhos eram amplas, dada à demanda diante da desigualdade social, da falta da inclusão social, falta de políticas públicas que contemplassem a diversidade religiosa, assim como a falta de escuta diante dos problemas sociais nos quais as nossas comunidades religiosas estão inseridas e que causavam nesse povo um descontentamento e uma baixa contínua em sua qualidade de vida, além da baixa autoestima como cidadãos brasileiros, desafiando assim o trabalho das lideranças religiosas em suas bases. O prêmio é inspirado na cultura do voluntariado, difundida no Brasil pelo Comitê Brasileiro para o Ano Internacional do Voluntariado/Unesco, hoje Instituto Brasil Voluntário, onde o GVTR teve assento no período 2000 – 2003, compondo a marca “Fé no Voluntariado”. Aqui, mais uma vez e sob a coordenação de Milu Villella e do amigo Frei Beto, direcionamos nossos esforços para o trabalho conjunto, entre as diferentes religiões, tradições e filosofias, tendo como missão a promoção e o reconhecimento do voluntariado junto ao segmento religioso.

O processo de trabalho A intenção da láurea foi homenagear os atores sociais responsáveis por trabalhos da mais alta relevância para a população afro-brasileira. Em abril de 2004, durante as comemorações de seus três anos de fundação, na realização do Erab 2004 – 3º Encontro Regional Afro-Brasileiro, o GVTR homenageou diferentes instituições e pessoas, tendo na primeira versão do prêmio o tema “Quem faz a diferença!” Esse evento realizou-se na sede Federação de Umbanda e Candomblé Luz e Verdade do Estado de São Paulo e do Brasil, fundada pelo saudoso Aparecido Garcia, de Oxalufan. Foram laureados: o jornal U&C Ciência, Cultura e Magia – presidido pelo senhor Cosme Aparecido Félix; jornal Aids e Ativismo – Fórum de ONG/AIDS do Estado de São Paulo; Intecab – SP/Instituto Nacional das Tradições e Cultura e Afro-Brasileira – Coordenação Estadual de SP, então co170


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ordenado pelo saudoso Toy Vodunnon Francelino de Shapanan; Centro de Convivência Infantil Filhos de Oxum, uma casa de apoio a crianças vivendo com aids, fundada pelo Babalorixá Laércio de Oxum nos anos 1980; Gecaids – Grupo Especial para Prevenção da Aids (extinto) – fundado, entre outros, pelo Babalorixá Francisco de Oxum; Grupo da Melhor Idade Mariama, ligado ao Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra do Estado de São Paulo; a Federação Luz e Verdade de Umbanda e Candomblé do Estado de São Paulo e do Brasil; Aldeia Indígena Pankararu – Vale do Paraíba/SP, com trabalhos direcionados para a sustentabilidade da população indígena do Vale da Ribeira/SP, sob coordenação de Maria do Rosário; Projeto Ató-Irê: Religiões Afro-Brasileiras e Saúde, coordenado por José Marmo da Silva no CCN – Centro de Cultura Negra do Maranhão. No 2º Prêmio Afroaids foi elaborado um regulamento para que o processo não se apresentasse falho. Serviu-se de publicação de edital, com as regras que apontava como se daria a premiação em sua totalidade e, para melhor imparcialidade, o GVTR abriu mão de sua participação no processo de seleção das indicações. Tais documentos foram socializados por meio de diversos veículos de comunicação da imprensa escrita e virtual. Foram inúmeras as indicações e para selecioná-las foi organizada uma banca externa que, independente da Comissão Organizadora, avaliou os formulários preenchidos de forma a justificar tais indicações. Por meio de cinco categorias, rendeu-se então as homenagens aos laureados com o Prêmio Afroaids 2005, que trouxe a “Qualidade de Vida” como tema central da premiação. Essa edição foi realizada na Fundação Memorial da América Latina como parte da programação do 2º Seminário de Saúde da População Negra do Estado de São Paulo, espaço esse articulado junto ao Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra do Estado de São Paulo, na ocasião presidido pela professora Elisa Lucas Rodrigues e a Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, que contava naquele momento, inclusive, com o professor doutor Luís Eduardo Batista, enquanto coordenador da Área Técnica de Saúde da População Negra na composição do conselho. Com essa premiação, diferentes pessoas físicas e jurídicas foram laureadas por suas contribuições e experiências exitosas, sendo elas parte das comunidades de Terreiros, organizações não governamentais, organizações de Governo e outros parceiros, cujo trabalho visava o desenvolvimento humano da sociedade como um todo. Conforme o previsto em edital, os prêmios, tal como as indicações, se deram com categorias previamente definidas e as experiências foram habilitadas sem qualquer burocracia. Assim, foi possível tornar visíveis mais dez trabalhos importantes: 171


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Direitos Humanos - Pessoa Física: Maria da Penha Ramos Oliveira – Funcionária aposentada da Coordenação Estadual de DST-AIDS. - Pessoa jurídica – Sociedade Civil Organizada: Projeto de Implementação do Quesito Cor nos Programas de DST-AIDS de SP. Sob a coordenação da professora Edna Muniz de Souza, no Ceert/Centro de Estudo das Relações do Trabalho, e de Márcia Giovanetti no Programa Estadual de DST/AIDS. Protagonismo - Pessoa Física: Regina Célia Pedrosa – uma das mais antigas ativistas do Movimento de Luta contra Aids em São Paulo, membro fundadora da Casa de Apoio Alivi. - Pessoa Física: Reginaldo Ortiz Dolci, de Oxalufan – Associado fundador e primeiro vice-presidente do Grupo de Valorização do Trabalho em Rede. Diversidade - Pessoa Física: Profa. Dra. Fernanda Lopes – Coordenadora do PCRI/Programa de Combate ao Racismo Institucional do DFID, que contribuiu com a implementação de ações governamentais para a saúde da população negra e a total eficácia do Sistema Único de Saúde no Brasil. - Pessoa Jurídica – Organização da Sociedade Civil: Casa de Laura Braga, coordenada por Erivaldo Alves de Alexandre, com o objetivo de reduzir o índice de infecção da população afro-descendente, desenvolvia ações de saúde junto aos Terreiros de candomblé, que durante toda a epidemia acolheram entre seus adeptos pessoas infectadas com o vírus HIV. Inovação - Pessoa Jurídica – Federação União Espírita de Cáritas: dirigida por Heli Garcia do Nascimento, cooperou não apenas com a manutenção do GVTR, mas também para a ampliação dos trabalhos na região de Pirituba, região oeste da Cidade de São Paulo. - Pessoa Jurídica – Experiência Exitosa de Organização de Governo: Circuito da Prevenção do Programa Municipal de DST-AIDS/Secretaria Municipal de Saúde de Piracicaba, projeto modelo para a contenção do HIV, o Programa de DST-AIDS da Cidade de Piracicaba vem acolhendo outros paradigmas no exercício de sua função. Informação e Publicações - Pessoa Jurídica – Portal Gapa de Ribeirão Preto: desde junho de 2003 vem contri172


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buindo com o controle das DST/HIV/AIDS e hoje um dos sites mais visitados do segmento, com alto volume de informação. - Pessoa Física – Mãe Sônia Regina de Iemanjá: sacerdotisa da Comunidade de Umbanda e Evangelização Cristã, uma das primeiras comunidades do povo de santo, a ser assistida pelo GVTR. Em 2006, no 2º Seminário Paulista da Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde, com o tema “Religiões Afro-Brasileiras e Humanização da Saúde, cinco anos pós-Durban: Nós podemos!” tivemos a iniciativa de trazer novos atores para esse universo. A partir da ideia de “pessoas que fazem”, enquanto pressuposto do prêmio, foi organizada a primeira Mostra de Experiências em Religiões Afro-Brasileiras e Saúde e Saúde da População Negra, cujo tema foi: “Objetivos do Milênio – Meta 6: Combater a Aids, Malária e outras Doenças”. Esse seminário aconteceu no auditório do Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra do Estado de São Paulo, com o apoio da Casa Civil do Governo do Estado de São Paulo. A entrega do prêmio deu-se por indicações da sociedade civil, cujas lideranças foram parte central da mostra, para assim auxiliar o grupo mais abrangente na manutenção de sua filosofia, diante da necessidade de dar visibilidade a novos atores que fizeram a diferença. São eles: - Berenice Assumpção Kikuchi – Associação de Anemia Falciforme do Estado de São Paulo - Projeto: “A criança com Anemia Falciforme também pode sorrir”. - Centro de Referência e Treinamento em DST/AIDS de SP/SES - Projeto “Implementação da coleta do quesito cor/raça/etnia nos serviços de DST/AIDS do Estado de São Paulo”. - Miryám Hess – Articulação de Lutas Indígenas - Projeto: Etno hortas Medicinais - José Geraldo de Nascimento – Babalorixá Pai Neném de Obatalá - Aldeia Asé Nagô Egbá Orixá Fun Fun Comunidade Religiosa Afro-Descendente - Projeto: Espaço Cultural “Mãe África”. - Silvana Veríssimo – Grupo de Mulheres Negras Nzinga Mbandi – Projeto: DST/ HIV/AIDS e Direitos Reprodutivos – População Negra. - Maria Emília Soares Campi – Covoya (Casa de Culto a Orixá Ventos de Oyá) - Projeto: Ação Social Orixás na Comunidade. - Padre Haroldo Joseph Rahm, SJ – Associação Promocional Oração e Trabalho – Apot/Projeto: Instituição Pe. Haroldo. - Babalorixá Iyámifé – Ilê Asé Dan Ji Ro – Projeto: Ação Social no Terreiro. 173


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A terceira edição do Prêmio Afroaids, por ocasião do sétimo ano de aniversário da fundação do grupo, foi dedicada aos atores que ajudaram a escrever a história do Grupo de Valorização do Trabalho em Rede até aquele momento e, para isso, fomos acolhidos pela Associação Centro de Mamãe Oxum, Pai Guiné e Caboclo da Pedra Branca, que era dirigido por Mãe Liliana, membro fundadora da organização. Esse ano teve um significado importante para as religiões de matriz africana, pois marcou a maioridade do grupo no rito de passagem que simbolicamente transmitiu aprendizado, em meio à responsabilidade na busca por manter o sagrado, a cultura e a religiosidade da comunidade, auxiliando os novatos na sua inserção na comunidade, fazendo assim com que tenham continuidade a tradição e o sagrado, contidos nas religiões afro-brasileiras. “E mais que isto, é uma grande oferenda aos Deuses e Deusas que fazem parte da criação do mundo, porque o GVTR faz parte deste novo mundo!”, definiu Monteiro2 à época. Entre os homenageados com o Prêmio Afroaids III estão: José Luís dos Santos Carvalho Monteiro; professora Lia Diskin; Iyalorixá Ada de Omolu; Maria do Carmo Sales Monteiro; príncipe Adekunle Aderonmu Ogunjimi e Paula de Oliveira e Sousa. Algumas saudosas autoridades foram importantíssimas para a formação e manutenção do grupo até aquele momento. Diante disso, elas foram homenageadas de forma que perpetuassem em nossa história com a sua devida importância. São elas: o Babalorixá Aparecido Garcia de Oxalufan; Conceição Apparecida Leite; e Maurício da Costa Gomes. Também receberam “Menção Honrosa” Jean Carlos Dantas, em função da defesa dos direitos das pessoas vivendo com aids, e Roberto Felício, na ocasião deputado estadual, com agenda dedicada também contra a intolerância religiosa.

Conclusão Entendemos que com a visibilidade a esses trabalhos e personalidades foi possível evidenciar o quanto são necessárias e de fundamental importância cada uma dessas ações, tal como o seu fortalecimento, além do empoderamento das pessoas na sociedade como um todo, diante das mazelas e descasos que ainda vivenciamos ante a falta de políticas públicas, a falta da qualidade de vida e o não saber cultural e socialmente, como responder ao racismo e intolerância religiosa, a partir de suas origens, seja no que tange às religiões de matrizes africanas ou à origem étnica, no caso da população negra que

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elso Ricardo Monteiro d’Osaguian, Babalorixá do Asé Igbin de Ouro – Sociedade Ketu, é fundador do Grupo de C Valorização do Trabalho em Rede e conduziu os primeiros dez anos do grupo, antes de compor a equipe de Governo na Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo.

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povoa esta nação e que, por demérito e racismo, é neutralizada constantemente aos olhos vistos, não se reconhecendo nas vitrines e espelhos sociais de quem faz a diferença e traz à tona a educação social, cultural e política. Espera-se com isso que as tradições de matrizes africanas e a população negra possam de fato ser reconhecidas como detentoras de direito e parte de uma sociedade democrática mais justa e digna, em consonância com a Constituição Brasileira.

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Religião de matriz africana e o SUS: promoção de saúde nos Terreiros do Rio Grande do Sul

Babá Diba de Yemonjá1

Secularmente, as comunidades tradicionais de Terreiro – territórios comunitários de preservação e culto das religiões de matrizes africanas e afro-brasileiras – são espaços de acolhimento e aconselhamento de grupos historicamente excluídos, dentre os quais a população negra (ALVES, 2009). As práticas rituais, o uso terapêutico de plantas constitui-se num espaço de promoção de saúde, sendo referência para seus adeptos que, antes mesmo de consultar um médico, reportam-se aos Terreiros.

Ipade 1º Encontro dos Omorisas da Comunidade Terreira Ilê Asé Iyemonja Omi Olodo, em Porto Alegre-RS

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aba Diba de Iyemonja é o nome religioso de Valmir Ferreira Martins; coordenador da Renafro Saúde-RS; Babalorisa B do Ilê Axé Iyemonja Omi Olodo-RS; vice-presidente da ONG Africanamente – Centro de Pesquisa, Resgate e Preservação de Tradições Afro-descendentes; acadêmico de Ciências Políticas pela Ulbra-RS; membro do GT de Povos de Terreiro do Minc; acadêmico de Análise Política de Sistema de Saúde pela UFRGS.


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O Estado do Rio Grande do Sul, segundo o mapeamento de Terreiros realizado em 2011 pelo MDS – Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome, pela Seppir – Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial e Unesco, é o Estado que acolhe o maior número de Terreiros do Brasil e, segundo Censo 2010, é a cidade onde está o povo que mais se assume adepto da religião de matriz africana e umbanda, dado esse ratificado pela pesquisa Novo Mapa das Religiões, da Fundação Getúlio Vargas (2011). Nesse Estado, não diferentemente dos outros do País relevantemente, os Terreiros são espaços de Valores Civilizatórios, lócus comunitário de toda uma pedagogia que se dinamiza calcada em pressupostos ancestrálicos amalgamados, onde a vida é potencializada.

Lançamento da campanha “Quem é de Axé diz que é”, em Pelotas-RS, 2010

Em documento entregue ao então governador do Estado do Rio Grande do Sul, Tarso Genro, o texto que foi lido em audiência expressava-se mediante teores em que afirmativamente conceitua que como num complexo, nas Comunidades de Terreiro subjazem conteúdos de natureza filosófica e teológica de visão de mundo que permeia toda uma concepção existencial. A humanidade negra africana enxerga homens e mulheres sob outra dimensão que não ocidental. Como bem assevera Luz (1983, p. 29), “a civilização negra se caracteriza por exprimir uma concepção ‘espiritualista’ do mundo, em que a constituição da individualidade, as relações sociais, as relações com a natureza e o universo estão revestidas de uma dimensão sagrada”. Continuando o documento prossegue dizendo que: ao histórico e secular recobrar o papel dos povos de Terreiro na sociedade brasileira, incorrem em graves 178


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equívocos aqueles que visualizaram ou visualizam hodiernamente as comunidades de Terreiro como lugares tão-somente de práticas religiosas ou onde apenas se desenvolvem rituais. Em meio ao processo das tentativas de desumanização mediante as sucessivas etapas de desenraizamento e desterritorialização operado pelo tráfico transatlântico, devido ao rigor teórico da oralidade, os africanos ressignificaram as suas estruturas sociais e metafísicas, adquirindo contornos regionalizados em que, como num verdadeiro paradoxo face à opressão imposta aos escravizados, os ditames da xenofilia como um determinante do quadro axiológico africano sedimentou com povos autóctones efetivos imbricamentos. Assim se deu com outros universos materiais e simbólicos, seja como estratégia de resistência, persistência, demarcação de territorialidade mítica, entre outras intencionalidades, em meio à adversidade. Pontua-se que a umbanda também se edifica sob a lógica da xenofilia mesmo em seu viés evolucionista. Incorrem em gravíssimos equívocos por ignorância, desconhecimento ou má-fé todos os que, em face das discussões correntes acerca da laicidade do Estado, colocam no mesmo bojo do referido debate os povos de Terreiro e suas comunidades, pois não se trata de uma religião nos moldes judaico-cristão. O Estado brasileiro, nos seus âmbitos, seja dos Executivos municipais, estaduais, nacional, bem como nos que competem aos poderes Legislativos e ao Judiciário que não relevarem as particularidades civilizatórias da cosmovisão africana, considerando as adequações na diáspora das Américas, em que se situa o Brasil e o Estado do Rio Grande do Sul, indubitavelmente incorre em preconceito, discriminação e, por conseguinte, racismo. É preciso respeitar por entender que “uma visão de mundo é uma compreensão que diz respeito a tudo. É uma interpretação desse mundo, de sua realidade global, que procura dar respostas às questões [...] do ser humano, no que diz respeito à sua origem [...]” e dinâmica existencial (REHBEIN,1985, p. 21). Reposta nas comunidades de Terreiro na dispersão pelo Brasil, em Porto Alegre e no Rio Grande do Sul como um todo, por vez difusa por outra concentradamente interagente, uma concepção de vida de origem africana operacionaliza-se de forma a denotar que “todas as criaturas existem em profunda interação, como numa corrente de forças. Nada se move neste universo sem influir nas outras forças com o seu movimento. O mundo das forças comporta-se como uma teia de aranha onde não se pode fazer vibrar um só fio sem agitar todas as malhas”. Isso posto, fica compreendido que: 179


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Não apenas há uma interdependência entre realidade e religião, religião e razão e razão e causualidade, senão interdependência ou compatibilidade de todas as disciplinas. Uma teoria médica que se oponha a uma conclusão teológica é rejeitada e vice-versa. A exigência de uma compatibilidade mútua de todas as disciplinas, elevada a sistema, é a arma do pensamento. Filosofia, teologia, política, sociologia, direito agrário, medicina, psicologia, nascimento e morte estão compreendidos num sistema lógico tão compacto, que, ao tirar se uma parte qualquer, desmorona-se a estrutura total (REHBAIN, 1985, p. 22).

De acordo com Morin (2009, p. 47), “existe em toda sociedade, ao mesmo tempo, um pensamento racional, técnico e prático e um pensamento mágico, mítico e simbólico”. O autor citado, ao referir-se a todas as culturas indistintamente, faz questão de afirmar que na sociedade ocidental também é assim. Ao descivilizacionar e conotar caráter estritamente religioso ao continuum civilizatório afrodescendente arrolando à dinâmica social de estrutura fortemente maniqueista e, ou, dicotomizada, a sociedade e o Estado acabam por direta e indiretamente corroborar com o racismo e seu correlato mais perverso, que se traduz pela intolerância religiosa que grassa no País, nos Estados do Sul e, notadamente, no Rio Grande do Sul. Dessa forma, busca-se atentar contra fundamentos dessa maneira humano-sagrada ontológica de ver o mundo e com ele se relacionar. A colonialidade do poder e das relações sociais vigentes, cujas elites dominantes insistem na predominância eurocêntrica em detrimento da matriz civilizatória africana, tem demonstrado forte apego ao ideário colonialista ou neocolonial, em que pese todo discurso político encetado de reconhecimento e valorização da diversidade, em que se destacam as demandas históricas das relações étnico-raciais compreendidas e dimensionadas civilizatoriamente, sobressaindo-se as questões quilombolas e dos povos de Terreiros. Diante dessa análise, reafirma-se que as ações dos povos de Terreiro estão para além da ritualística e da culturalização, pois a atuação dos Terreiros se manifesta como eixo estratégico para qualquer discussão, definição e encaminhamento de políticas para o povo negro.

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Babá Diba de Yemonjá

Audiência de lideranças de Terreiro com o governador do RS, 2011

As ações da Rede Nacional de Religião Afro-Brasileira e Saúde consistem em uma proposta de parceria com o SUS – Sistema Único de Saúde à medida que dialogam com as terapêuticas convencionais propostas por esse sistema (ALVES, 2009), assim como capacitam suas lideranças, pais e mães de Santo, para o exercício do controle social e monitoramento não só do SUS como da Política Nacional de Saúde da População Negra, o que consideramos como avanço. O reconhecimento dessas práticas pela Política Nacional de Saúde Integral da População Negra é outro grande avanço, já que o racismo e a intolerância religiosa institucionais muito contribuem para a exclusão desse segmento da sociedade no acesso à Saúde Pública, fazendo com que seus vivenciadores permanecessem nos seus locais de origem e se reportassem aos Terreiros. Nesse sentido, me reporto à fala do memorável Babalorixá e babalossaim dr. José Flávio Pessoa de Barros, quando se referia oralmente a uma pesquisa realizada no Estado de São Paulo a qual afirmava que 12 milhões de pessoas adeptas à religião de matriz africana deixam de utilizar o SUS por buscarem atendimentos dos Terreiros, asseverando que se esse quadro se revertesse implodiria o Sistema Único de Saúde. Em sua obra “A floresta sagrada de Ossaim: o segredo das folhas (2011, p. 11), Barros afirma que a medicina negra coexistia com a ciência médica dos brancos e, mais, de acordo com Silva, citado por Barros, ’em cada bairro da cidade existe um cirurgião africano, cujo consultório, bem conhecido, é instalado à entrada de uma venda. Generoso consolador da humanidade negra dá suas consultas de graça [...].” 181


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Seminário da Rede Nacional de Religião Afro e Saúde, em Teresina – PI, 2011

Com esse reconhecimento e essa parceria ganham as comunidades tradicionais de Terreiro e também o SUS, já que nessas comunidades subjazem conteúdos de natureza civilizatória, filosófica e teológica de visão de mundo que permeiam toda uma concepção existencial em que se inclui a concepção de saúde. O grande desafio consiste em fazer com que se cumpram o SUS em sua plenitude, já que entendemos ser um sistema de saúde universal e essa universalidade precisa ser cumprida para garantir a equidade e eliminar as diversas políticas que tiveram de ser criadas em atendimento às “diferenças” que os sistemas governamentais insistem em chamar de minorias e as estatísticas apontam como maioria. A implantação do quesito raça-cor é outro desafio e o dado mais importante para que possamos ter um diagnóstico oficial e medir os avanços da política e da implementação do SUS, já que nos apontará aquilo que já sabemos de que as epidemias, a vulnerabilidade e a mortalidade têm cor e onde se devem centralizar as forças e as mobilização em prol das prevenções. É preciso que a gestão invista em formação dos trabalhadores em Saúde no combate ao racismo institucional e à intolerância religiosa, principalmente dos trabalhadores que atuam na ponta, pois o que se constata é que justamente neste ponto, onde deve se ter acolhimento e atenção básica, está a fragilidade, em que o usuário está sendo recepcionado por servidores com jornadas duplas e até triplas provocadas pela desvalorização salarial desse setor. Na concepção de mundo de matriz africana, bom salário, boa educação, cultura são fundamentais para que se tenha saúde plena. A quebra das barreiras existentes entre Estado e povo de Terreiro foi uma grande conquista do Núcleo RS da Renafro Saúde, tornando possível trocas de saberes e 182


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viabilizando seminários de capacitação, como o de Religiões e Aids, o 1º Dida Ara, que reuniu tradições de matriz africana de todo o Brasil, e o 1º Seminário Estadual Terreiros, Aids, Tuberculose e Hepatites Virais. O apoio às campanhas de prevenção produzidas pelos Terreiros, a produção pela Rede Nacional do Vídeo documentários Terreiros e Aids para viabilizar as ações dos Terreiros em todo o Brasil na prevenção de doenças, no acolhimento e no aconselhamento, assim como ações sociais desenvolvidas nesses espaços, são avanços. A Política Nacional de Saúde Integral da População Negra aponta o racismo e a intolerância religiosa como determinante para o adoecimento do povo negro, e esse fato, além do que vivenciamos, nos dá suporte de luta para a implementação dessa política, a fim de chegar à ponta com equidade, igualdade e universalidade.

Cartaz de divulgação do 1º Dida Ara – Porto Alegre-RS, 2010

Divulgação do 1º encontro da Renafro Saúde – Porto Alegre-RS, 2010

Reforçando ainda a importância e universalidade das comunidades de Terreiros no trato com a saúde, recorro a um mito recolhido por Verger na Nigéria e citado por Barros (2011, p. 28) que se expressa como segue: 183


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Ifá foi consultado por sacrifício, filho de Orumilá, e por Remédio, filho de Ossaim. Queriam saber qual de seus pais seriam mais velhos. Ifá decidiu-se por Orumilá. O Rei Ajalaiê, que também fora consultado, resolveu testar o poder dos dois contendores. Mandou que ambos trouxessem seus filhos mais velhos, decidindo que eles seriam enterrados durante sete dias. O que sobrevivesse daria senioridade ao pai e demonstraria ser o mais poderoso. O que falhasse, não mantendo o filho vivo, demonstraria publicamente que o que alardeava não era verdadeiro. Ossaim trouxe Remédio e Orumilá trouxe seu filho mais velho, chamado Oferenda. Um buraco foi cavado e eles foram enterrados. Orumilá consultou Ifá, que lhe prescreveu uma série de rituais, cumpridos com precisão. Ossaim entregou a Remédio muitos feitiços, almejando que ele fosse vitorioso. Um coelho, que havia sido prescrito por Ifá, levava secretamente alimentos para Oferenda, enquanto Remédio cada dia ficava mais fraco. O filho de Ossaim, então, resolveu entrar em contato com o de Orumilá e ambos fizeram um pacto. Oferenda daria a ele, Remédio, os alimentos e, no dia em que ambos fossem chamados, daria primazia a Oferenda na resposta. E assim sucedeu. No dia final, foi constatado que Oferenda tinha mais poder que Remédio, e que um pacto entre os dois os tornaria imbatíveis.

A consulta aos Orixás e o atendimento às suas prescrições é sempre “muito importante para aqueles que pretendem atingir a cura, na perspectiva Nagô”, de acordo com Barros (idem). Os remédios são essenciais, porém o imbricamento cosmológico de matriz africana jamais deverá ser esquecido. Os dois jamais devem ser pensados separadamente, pois, quando conjugados, alcançam o objetivo pretendido, a saúde. De acordo com Jayro Pereira, “saúde na perspectiva da visão de mundo africana, em que os seres humanos funcionam como elos imbricados com a dinâmica cosmológica, significa a integridade de sujeitos (homens e mulheres) detentores ontológicos de uma biomicidade ancestrálica em que o corpo se constitui como uma antropoteoterritorialidade concebida indissociavelmente, devendo o bem-estar constituir-se numa prerrogativa inalienável, pois, dessa harmonização depende o equilíbrio de todo o Cosmo”.2 Eis aqui a percepção da Renafro Saúde-RS.

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Palestra proferida por ocasião das capacitações da Renafro Saúde-RS.

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Referências Bibliográficas ALVES, Miriam Cristiane. Atenção à Saúde em uma Comunidade Tradicional de Terreiro. - Rev. Saúde Pública vol. 43 supl. 1 São Paulo Aug. 2009. BARROS, José Flávio Pessoa de. A floresta sagrada de Ossaim: O segredo das folhas. Rio de Janeiro - 2011 BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Alimento: Direito Sagrado-Pesquisa Socioeconômica e cultural de Povos e Comunidades Tradicionais de Terreiro. Brasília, DF: MDS: Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação, 2011. MARTINS, Valmir Ferreira e outros (et. al.). Carta do Povo de Terreiro ao Governador do RS Tarso Genro, Porto Alegre, Novembro 2012. LUZ, Marco Aurélio. Cultura negra e ideologia de recalque. Rio de Janeiro: Achiamé, 1983. SILVA, Jose Marmo. Saúde soc. vol. 16 nº2, São Paulo May/Aug. 2007.

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Educação escolar e a intolerância religiosa: uma reflexão a partir de marcos legais

Rosana Batista Monteiro1 Apesar da laicidade do Estado brasileiro e de a Constituição Federal de 1988 (CF 88) assegurar a liberdade de consciência e crença religiosa, continuamos a assistir o tra2

tamento desigual em relação às diferentes crenças religiosas no âmbito da sociedade, nas instituições públicas e, em particular, na escola. Embora considere polêmica e questionável a presença do ensino religioso na educação escolar, especialmente na pública e estatal, esse foi regulamentado pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional nº 9.394/96 (LDB). Esse dispositivo manteve o ensino religioso, na forma de disciplina, no currículo escolar do ensino fundamental tal como disposto na Constituição de 1988. A determinação não é uma novidade, posto que a LDB anterior (Lei nº 4.024/61), bem como a reforma por que passou na década de 1970 (Lei nº 5.692/71) e, ainda, muitas das Constituições brasileiras mantiveram a presença, mesmo que de caráter facultativo, do ensino religioso nas escolas brasileiras. Sabemos, no entanto, que esse ensino, na maioria das vezes, em âmbito nacional, objetivamente privilegia determinadas religiões em detrimento de outras. Em especial as caracterizadas como cristãs. Nesse sentido nos perguntamos: Quais as consequências desse privilégio? Que razões determinam as escolhas quanto aos conteúdos a serem ensinados? Há amparo legal para que se ensinem determinados conteúdos relacionados a uma ou outra religião? E, ainda, considerando que a educação escolar tem como finalidade definida por lei, dentre outras, o preparo para a cidadania, pode o ensino religioso

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rofessora adjunta da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro/IM/DES. Doutora em Fundamentos da Educação P e integrante do Leafro/UFRRJ e GEPEFH/UFSCar.

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F 1988 - Art. 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos C estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias; VII - é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva; VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei; (...)


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contribuir para essa formação? Não intencionamos responder a todas essas perguntas neste ensaio, mas apresentar alguns elementos que possam contribuir para uma reflexão sobre a relação entre a educação escolar e a (in)tolerância religiosa e, em particular, apresentar, ainda que brevemente, aspectos que nos possibilitem pensar em que medida a presença do ensino religioso na escola implica combate ou manutenção da discriminação e do racismo particularmente relacionados à população negra.

O debate sobre o ensino religioso na educação brasileira: aspectos legais Ao abordarmos o tema em questão é preciso lembrar que o Brasil foi colonizado pelos portugueses, os quais aportaram aqui trazendo em seus navios religiosos católicos, franciscanos inicialmente e, posteriormente, os jesuítas, com o suposto intuito de evangelizar os povos pagãos que na terra brasilis viviam, além de oferecer formação básica escolar aos filhos dos colonizadores. Desse modo não é nenhuma surpresa que os católicos tivessem grande espaço na tomada de decisões que implicaram sua marcante presença na educação brasileira até os dias atuais. Os jesuítas, como se sabe, permaneceram por cerca de 300 anos à frente da educação no Brasil, financiados – direta ou indiretamente – pela Coroa. Foram expulsos em 1789 (Reforma Pombalina) por não mais interessarem à nova conjuntura política e econômica que exigia, dentre outras coisas, a separação entre o Estado e a igreja. O que não significa que a igreja católica deixasse de manter sua influência sobre as decisões políticas no País. Note-se que as relações estabelecidas entre essas duas instituições se estendem para muito além do conteúdo estritamente religioso e se estabelecem nas relações de poder. Essa é uma questão a ser considerada quando se discute a presença do ensino religioso no currículo escolar, posto que esse não é mera lista de saberes a serem ensinados, determinados de forma neutra ou aleatória. Os estudos sobre currículo têm desvelado sua função normatizadora, hegemônica e reprodutora que tem servido especialmente à manutenção das desigualdades sociais. Os conhecimentos organizados, na maioria das vezes na forma de disciplinas escolares e que constituem o currículo escolar, são, portanto, perpassados pelas relações de poder que estão postas na sociedade. Posto isso, passamos a considerar o debate em torno do ensino religioso na educação escolar tomando por referência sua definição nas Constituições brasileiras e na legislação específica que regula a educação no Brasil. 188


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A Constituição de 1934 é considerada entre os estudiosos (SUANO, 1987; CURY, 2004) como uma das mais democráticas e avançadas para seu tempo, no entanto, não deixa de ser reflexo desse mesmo tempo com relação à presença do ensino religioso nos currículos escolares. A CF de 1934 determinava que o ensino religioso compusesse os currículos escolares, sendo, no entanto, facultativo aos alunos. As demais constituições seguiram, em alguma medida, as mesmas determinações da CF de 1934, com exceção da CF de 1937. Perguntamo-nos, no entanto, se de fato é papel da escola, da educação escolar, especialmente a pública e estatal, incluir o ensino religioso nos currículos escolares. Por outro lado, se temos essa premissa estabelecida por lei, como garantir que esse ensino não resulte em proselitismo, em dogmatização? Como garantir que religiões que historicamente foram identificadas como “perigosas”, que não se caracterizam ou mesmo questionam os dogmas cristãos, não reconhecidas enquanto crença, mas que possuem número significativo de seguidores (ainda que sejam minorias), estejam incluídas no rol dos conteúdos do ensino religioso e que isso se faça de forma respeitosa? A Constituição Federal de 1988 determina que: Art. 210. Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais. § 1º - O ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental. (Grifo nosso.)

Ora, lê-se no texto da Carta Magna que os conteúdos a serem ensinados na segunda etapa da educação básica, ou seja, no ensino fundamental, hoje com duração de 9 anos, e com ingresso da criança a partir dos 6 anos de idade, devem respeitar os valores culturais nacionais e regionais. Se considerarmos a religião enquanto um produto da cultura, produzida e reproduzida pela humanidade ao longo da sua história e que essa possui características regionais que se estabelecem a partir de relações complexas que surgem das práticas religiosas de cada grupo, em determinada localidade e em determinado tempo, o que promove sua distinção e especificidade, o seu estudo pode vir a ser propício no sentido da compreensão do humano enquanto ser social. As crenças religiosas podem tem maior variabilidade ou menor presença de aspectos unificadores, hierarquias ou a sua ausência, enfim, uma infinidade de características que podem apontar para uma intensa inter-relação entre povos e culturas. 189


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Exemplo disto nos traz Capelli ao distinguir as formas de revelação, ou seja, “como se dava a comunicação entre os espíritos ancestrais, as divindades e as pessoas” (2010, p. 332). A revelação pode ser, de acordo com o autor, contínua ou descontínua. A primeira refere-se à ausência de ortodoxia, à pouca ou quase ausência de corpo sacerdotal organizado e com “poder de atuar como mediador das práticas religiosas” (p. 333); as revelações são recebidas continuamente. A segunda, descontínua, ao contrário, possui corpo sacerdotal “forte e coeso o suficiente para manter e organizar uma determinada conduta em relação à determinada religião, como, por exemplo, o clero católico.” O autor destaca ainda a Bíblia como a referência das revelações existentes para essa religião. Não há novas revelações, apenas possibilidades de novas interpretações (CAPELLI, 2010). Desse modo, percebemos as variações que podem existir em termos de religiões existentes e que implicariam o questionamento sobre a viabilidade do oferecimento de aulas de ensino religioso que deem conta de respeitar os valores culturais, nacionais e regionais das diferentes religiões, bem como alcançassem o movimento interno dessas, tendo em vista que nem todas as religiões possuem um conjunto estanque de conteúdos a elas relacionados. Ainda nos respaldando no aporte jurídico, cabe lembrar que, de acordo com Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei nº 8.069/90, documento que de acordo com a LDB nº 9.394/96 passou a compor o currículo do ensino fundamental quanto ao estudo dos conteúdos relativos aos direitos da criança e do adolescente, assegura, por exemplo, que: Art. 16 - O direito à liberdade compreende os seguintes aspectos: I – ir, vir e estar nos logradouros públicos e espaços comunitários, ressalvadas as restrições legais; II – opinião e expressão; III – crença e culto religioso; IV – brincar, praticar esportes e divertir-se; V – participar da vida familiar e comunitária, sem discriminação; (...) Art. 17 - O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, ideias e crenças, dos espaços e objetos pessoais. Art. 18 - É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor. (Grifo nosso.)

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Ora, a articulação entre a CF 88 e o ECA nos permite afirmar que, sem dúvida alguma, enquanto disciplina, o ensino religioso não pode deixar de considerar a diversidade religiosa presente em nossa sociedade. Do contrário, fere os dispositivos legais que asseguram o direito à liberdade de crença e culto religioso, bem como o direito ao respeito a valores, ideias e crenças de crianças e adolescentes. A questão, no entanto, é mais abrangente. Trata-se não apenas de assegurar a diversidade religiosa no ensino da disciplina, que é de frequência facultativa, mas tais direitos à crença religiosa, valores, ideias devem ser assegurados de forma ampla no espaço escolar. Lembremos que o currículo não deve ser compreendido de forma restrita, apenas como conjunto dos saberes a serem ensinados na sala de aula. Ele é mais do que se pode materializar na forma do plano de ensino ou de aula. Assim, as relações sociais que ocorrem cotidianamente na escola, as trocas, diálogos, brincadeiras, bem como os desentendimentos, rusgas, compõe o currículo da escola. Para além dos saberes sobre as religiões ou religiosidade que possam vir a ser listadas como conteúdos das aulas de ensino religioso, também a forma como cada criança, jovem, adulto é recebido na escola, como é tratado por seus professores e colegas, sendo respeitados da maneira como são e vivem, com suas crenças, hábitos, características físicas, indumentária, enfim, são também conteúdos que constituem o currículo.

O ensino religioso na LDB nº 9.394/96 e a educação para as relações étnico-raciais A LDB nº 9.394/96, quando da sua aprovação, em dezembro de 1996, determinava que o ensino religioso fosse componente curricular obrigatório, nos horários das escolas de ensino fundamental, mas que seria, ao mesmo tempo, de matrícula facultativa aos alunos. O poder público não se responsabilizaria pelos custos de oferecimento desse componente curricular, deixando a cargo de cada sistema escolar a definição sobre como fazê-lo. O texto original tinha a seguinte redação: Art. 33. O ensino religioso, de matrícula facultativa, constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, sendo oferecido, sem ônus para os cofres públicos, de acordo com as preferências manifestadas pelos alunos ou por seus responsáveis, em caráter: I - confessional, de acordo com a opção religiosa do aluno ou do seu responsá-

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vel, ministrado por professores ou orientadores religiosos preparados e credenciados pelas respectivas igrejas ou entidades religiosas; ou II - interconfessional, resultante de acordo entre as diversas entidades religiosas, que se responsabilizarão pela elaboração do respectivo programa. (redação original) (Grifo nosso.)

Em 1997, a LDB tem a sua primeira alteração, justamente no artigo 33, que passa a ter a redação que se segue: Art. 33. O ensino religioso, de matrícula facultativa, é parte integrante da formação básica do cidadão e constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, vedadas quaisquer formas de proselitismo. (Redação dada pela Lei nº 9.475, de 22-7-1997.) (Grifo nosso.)

Os parágrafos 1º e 2º mantiveram a redação original: § 1º - Os sistemas de ensino regulamentarão os procedimentos para a definição dos conteúdos do ensino religioso e estabelecerão as normas para a habilitação e admissão dos professores. § 2º - Os sistemas de ensino ouvirão entidade civil, constituída pelas diferentes denominações religiosas, para a definição dos conteúdos do ensino religioso.

Como se pode ler nos excertos da LDB, houve mudança significativa no conteúdo do artigo 33 alçando o ensino religioso ao patamar de conteúdo imprescindível, tendo em vista que “é parte integrante da formação do cidadão”. Ora, porque a formação do cidadão passa pela aprendizagem do conteúdo religião? O que implica o estudo da religião, na disciplina ensino religioso, para a formação do cidadão? Se o artigo refere-se exclusivamente às escolas públicas, o que, por suposto, não exige das escolas privadas que ofereçam essa disciplina, estariam os estudantes dessas escolas sujeitos a uma formação “menos” cidadã? Por outro lado, diferente das opções dadas pela redação original do artigo, em que o ensino religioso poderia ser ou confessional ou interconfessional, com a nova redação passou-se a assegurar o respeito à “diversidade cultural religiosa do Brasil”. É preciso observar ainda que a expressão “sem ônus aos cofres públicos” desaparece da LDB abrindo-se a possibilidade de que o poder público assuma a responsabilidade pela remunera192


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ção daqueles que vierem a ministrar as aulas de ensino religioso. Se há positividade na consideração da diversidade cultural religiosa, posto que essa determinação assegure o direito de todos e todas que professam as diferentes crenças serem considerados quanto à seleção dos conteúdos, por outro lado, a supressão da expressão “sem ônus aos cofres públicos” sugere que os(as) professores(as) de ensino religioso poderão ser remunerados com recursos públicos. Disso supõe-se, então, que poderá haver concurso público para o ensino dessa disciplina. Por outro lado, a diversidade religiosa inserida no texto reformulado da LDB articula-se à alteração da LDB promovida em 2003. Nesse ano, após várias tentativas, o movimento social negro encontra uma conjuntura política favorável à aprovação da inclusão de artigo na LDB que dispõe sobre a obrigatoriedade do ensino da História e Cultura Africana e Afro-brasileira nos currículos escolares. A Lei nº 10.639/03, posteriormente alterada pela Lei nº 11.645/08 (esta inclui ainda o ensino de História e Cultura Indígena) alterou a LDB nº 9.394/96 incluindo os artigos 26-A e 79-B. Art. 26-A - Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena. § 1o - O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil. (Texto com redação dada pela Lei nº 11.645, de 2008).

O artigo 79-B institui o dia 20 de novembro no calendário escolar como dia da Consciência Negra. Ora, não se pode estudar a história da África e dos africanos, a luta dos negros (bem como dos indígenas) no contexto do escravismo e da sua abolição no Brasil, os aspectos culturais desses povos, sem passarmos pelo estudo das religiões. Nas estratégias de sobrevivência, de fuga, de relações sociais de toda ordem, dos negros entre si e entre esses e os brancos estão implicados os diferentes aspectos relacionados à religiosidade. Do sincretismo ao candomblé. Para os negros de diferentes nações africanas, sequestrados e trazidos para o Brasil para serem escravizados, de acordo com Capelli (2010, p. 340), “a religião foi uma das es193


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tratégias utilizadas para recriar referências de solidariedade entre os escravos que perderam seus laços familiares e sociais.” Os Terreiros de candomblé tornaram-se, desse modo, lugar de resistência. O Parecer CNE 03/20043 destaca que: [...] em História da África, tratada na perspectiva positiva, não só de denúncia da miséria e discriminações que atingem o continente, nos tópicos pertinentes se fará articuladamente com a história dos afrodescendentes no Brasil e serão abordados temas relativos: - ao papel dos anciãos e dos griots como guardiões da memória histórica; - à história da ancestralidade e religiosidade africanas; [...] à formação compulsória da diáspora, vida e existência cultural e histórica dos africanos e seus descendentes fora da África ...” (BRASIL, 2004)

Ora, como se pode ler nos excertos destacados, não se pode conhecer a história e cultura dos afrobrasileiros e africanos no Brasil, na África ou na diáspora desconsiderando-se a religião.

O ensino religioso na prática: desrespeito à diversidade. Observamos ao longo deste ensaio que a presença do ensino religioso é uma constante na educação escolar brasileira. No entanto, o conteúdo desse ensino não atende à pluralidade de crenças religiosas existentes no território brasileiro e em especial às de matriz africana. A própria legislação sofre influência de instituições religiosas predominantes no País, com destaque à igreja católica. Nos Estados e municípios não é diferente; a forma como o ensino religioso é definido pelas secretarias de educação também fere, muitas vezes, o princípio do respeito à diversidade à cultura religiosa, como disposto no artigo 33 da LDB nº 9.394/96. Consequentemente, no cotidiano das escolas brasileiras, frequentemente, a legislação é descumprida ou interpretada de forma equivocada. Exemplos não faltam. Recentemente, de acordo com notícia do jornal Folha de S.Paulo, de 19 de março de 2011, entidades entraram com pedido no Supremo Tribunal Federal para proibir as formas como o ensino religioso vem sendo oferecido pelas escolas públicas em São Paulo e no Rio de Ja-

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itado na Resolução CNE/CP 01/2004 como referência para pôr em prática as Diretrizes Curriculares Nacionais para C o Ensino de História e Cultura Afrobrasileira e Africana.

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neiro. No primeiro, oferecida de forma transversal, ignorando que a disciplina, de caráter opcional aos alunos, nessa modalidade torna-se obrigatória. No segundo caso, há contratação de professores de acordo com a representação religiosa no município do Rio de Janeiro, o que privilegia determinadas religiões e abre a possibilidade para o proselitismo. Há que se considerar ainda as interpretações controversas do significado do multiculturalismo no campo da educação e, em particular, do ensino religioso. Para a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), de acordo com a matéria citada anteriormente, o ensino religioso é “um direito não apenas aos católicos, mas para todos. O Estado, no momento que reconhece os vários sujeitos culturais presentes no País, deve garantir a sua livre expressão e o seu desenvolvimento.” A defesa da CNBB refere-se ao decreto presidencial que institui acordo entre o Brasil e a igreja católica, o qual cita que o ensino religioso nas escolas seria “católico e de outras confissões” (Folha de S.Paulo, 19 de março de 2012). Por fim, nossa leitura sobre o ensino religioso é de que esse, ao longo da história da educação brasileira, pouco tem contribuído para efetivamente rompermos com a intolerância instalada em nossa sociedade. Remetendo-nos a Cunha (2004), é possível afirmar que, por outro lado, “A ausência de ensino religioso nas escolas não impede que a cultura religiosa (caridade) seja ministrada nos seus espaços próprios...”.

Referências Bibliográficas MOREIRA, A. F. B. A recente produção científica sobre currículo e multiculturalismo no Brasil (1995-2000): avanços, desafios e tensões. Rev. Bras. Educ., set-dez. 2001, 18: 65-81. SUANO, H. A educação nas constituições brasileiras. In_ Fischmann, R. Escola brasileira: temas e estudos. SP: Atlas, 1987. p. 170-84 BRASIL/CNE/CP. Parecer 3/2004. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais e para o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. BRASIL/CNE/CP. Resolução nº 1, de 17 de junho de 2004. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais e para o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. BRASIL/MEC. Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei nº 9.394/96, que estabelece diretrizes e bases da educação nacional para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro-Brasileira e dá outras providências. BRASIL/MEC. Lei nº 9.394/96, de 20 de dezembro de 1996. Institui a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.

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CUNHA, L. A. Cavaliere, A. M. O ensino religioso nas escolas públicas brasileiras: formação de modelos hegemônicos. In_ Paixão, L. P. Zago, N. Sociologia da educação: pesquisa e realidade brasileira. RJ: Vozes, 2007. 110-127. CURY, C. R. J. Ensino religioso na escola pública: o retorno de uma polêmica recorrente. Rev. Bras. de Est. Ped., número 27, Set /Out /Nov /Dez 2004. P. 184-213. Disponível em: http://www. scielo.br/pdf/rbedu/n27/n27a12.pdf TAKAHASHI, F. MACHADO, R. Movimento tenta limitar ensino religioso. Folha de S.Paulo, 19 de março de 2012. Cotidiano. P. C5.

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O Estado e as religiões afro-brasileiras: um estudo preliminar do processo histórico para além da saúde

Celso Ricardo Monteiro1 Edson Eduardo Ramos da Silva2

Apresentação O processo histórico nos conta que a relação entre o Estado e as religiões afro-brasileiras, tema central desta publicação, apresentado aqui como subsídio para ampliação do debate sobre saúde pública, é um tema controverso, o qual pressupõe um debate necessário e atual que imprimi duas marcas centrais: a laicidade e a intolerância religiosa e as relações étnico-raciais no Brasil como componentes centrais da liberdade, da democracia e do desenvolvimento humano, individual e comunitário. A sinergia dessas questões e vulnerabilidades às vezes programáticas demonstram-se como um importante campo de atuação para o enfrentamento de problemas relacionados aos direitos básicos e universais. No campo da religião e da religiosidade o objeto em questão refere-se a uma relação que busca ampla mudança institucional e individual de paradigmas no campo do pleno exercício da liberdade de fé e de crença. Simultaneamente, essas questões indicam-nos que, nos fatos em que a laicidade e a intolerância religiosa se encontram, revela-se a intensa necessidade de tomada de decisão nas inúmeras encruzilhadas do direito, romano e arcaico. É na Constituição da

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acerdote do Ilê Asé Igbin de Ouro – Sociedade Ketu; Associado fundador do Grupo de Valorização do Trabalho em S Rede.

2 Graduado em Filosofia. Especialista em Ética, Valores e Saúde na escola. Diretor-executivo do Instituto Cultural de São Benedito.


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República Federativa do Brasil, tomada aqui como importante referencial, que vamos encontrar, portanto, as informações e os mecanismos necessários para abrir a roda de conversa em torno dessas questões. Roda essa que deve ainda subsidiar a tomada de decisão em âmbito local, mas também no cenário global, pois, aqui, analisamos, entre outras, o processo de trabalho e o desenvolvimento das ações programáticas, frente às necessidades em saúde da população, olhando, sobretudo para o quadrilátero da saúde na perspectiva da educação permanente. Nossa fonte de estudo é a primeira década correspondente à fundação do Grupo de Valorização do Trabalho em Rede, com seus antecedentes, pois constatamos que, se por um lado esses temas compõem o conjunto de desafios da sociedade contemporânea, de forma geral, por outro, a inter-relação entre os diferentes campos da vida, para além do binômio ciência e religião, são fatores que aqui merecem análise, na perspectiva do direito à saúde, cada vez mais ameaçado, não no ponto de vista do direito enquanto ciência, mas sim, no que tange à acessibilidade, às práticas e aos diferentes modelos de gestão. Parte-se do pressuposto de que a sala de aula e os modelos institucionais, de educação com que convivemos a partir das diferentes visões de mundo das nossas famílias e instituições, são espaços riquíssimos para observar o quanto essas questões permeiam, mas não compõem os processos institucionais e metodologias relacionados ao desenvolvimento humano e social. Essas questões reúnem-se aqui por conta do impacto delas no SUS, pois é a saúde, primeira das causas que mais alteram a realidade das pessoas em geral, quem vai nos ensinar os caminhos a percorrer em torno do direito básico de cada um dos cidadãos brasileiros, na perspectiva da igualdade que pressupõem a Carta Magna da República e o processo de criação do Sistema Único de Saúde no Brasil, que, como sabemos, é único de fato em todas as Américas. Além disso, foi fundamental percorrer os caminhos onde as diferentes partes de uma mesma instituição não dialogam entre si e, por vezes, reagem de forma diferente do que espera a sociedade por ela administrada, gerando frustrações e desgastes que vão do Brasil-Estado novo à sociedade moderna e globalizada, aqui citada como distante de quem mais precisa e menos acessa. Boa parte dessas relações mostrou-se, portanto, temas passíveis de participação popular e controle social e, ainda assim, a ideia de participação e controle também merece análise de nossa parte, pois é preciso falar dos nós, entraves e inquietações que emperram também os processos coordenados por outros sujeitos, de forma que outros atores possam também ocupar espaço nesse universo. Representação, representatividade, inclusão de terceiros e avaliação dos processos são, portanto, temas também em discussão. Boaventura de Sousa Santos nos informa, portanto, que: 198


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...o Estado se torna ele próprio problemático e se transforma em objecto de reforma, o que está verdadeiramente em causa é a crise do reformismo. Ou seja, a reforma do Estado é o outro lado da crise do reformismo. Essa observação conduz a outra, formulável como questão: se, durante a vigência do reformismo, o Estado foi o sujeito da reforma e a sociedade o objecto, hoje, quando o Estado se constitui como objecto de reforma, quem é o sujeito da reforma? Será agora a vez da sociedade? E, nesse caso, quem na sociedade? Ou será o próprio Estado quem se auto reforma? E, nesse caso, quem no Estado é o sujeito da reforma de que o Estado é o objecto? Ou, ainda, será que a reforma do Estado põe em causa a distinção entre Estado e sociedade que até agora tem vigorado? (SANTOS, 2001).

É no conjunto de práticas que encontraremos respostas para tais questões e, não, na legislação por si só, como supõe alguns cientistas políticos, mas tal menção se faz necessária para nos ajudar na reflexão sobre papéis e, sucessivamente, habilidades, para elucidar a cada sujeito no que tange ao seu lugar na sociedade e às possibilidades de cooperação a partir desses lugares tão distintos e necessários.

A laicidade e a intolerância religiosa no Brasil: suas implicações no cumprimento do marco regulatório no contexto da saúde pública Laicidade é um importante objeto de estudo aqui sugerido não como omissão do Estado, mas sim como um paradigma para o estabelecimento de relações interinstitucionais capazes de romper com o ideal de aliança, nesse caso, criada a partir de valores e questões interpessoais. Compreendemos esse fenômeno como o direito do Estado em se ver livre de gerências morais das relações entre pessoas e instituições religiosas ou religiosidades múltiplas, ao mesmo tempo em que esse direito converte-se no dever de advogar e proteger todo e qualquer sujeito que compõe esse mesmo Estado democrático e de direito. Nesse universo encontram-se armadilhas centrais para o desenvolvimento, tais como as contrariedades existentes no binômio pessoa-instituição, restando-nos, portanto, o dever de separar, conforme previsto pelo marco regulatório brasileiro, considerado por nós uma inovação, a pessoa da instituição, além de proteger por força do mesmo instrumento o seu direito ao exercício pleno de sua religiosidade, bem como o direito a liberdade de fé, de crença e de liberdade de expressão. Aqui, não se pode 199


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ignorar o vilipêndio e as inúmeras manifestações criminosas que ameaçam o direito do cidadão, principalmente quando esse não detém ou não acessa a informação necessária para preservá-lo. Quando emprestamos de Santos (2001) a possibilidade de uma reforma do Estado onde as mudanças se deem de forma gradativa, processual, mas profunda, ao ponto de eleger objetos, objetivos e competências, estamos ainda defendendo a ideia de um Estado onde a neutralidade pressupõe coerência e gestão, a partir das devidas correções históricas e necessárias para o desenvolvimento desta malha social em que estão as pessoas, as instituições, os fatos e os conflitos. Ou seja, o direito a saúde na reforma do Estado, tal como a diversidade religiosa e as relações étnico-raciais, bem como o impacto de um desses aspectos sobre o outro, não pode ameaçar-se, nem tampouco competir entre si, visto que assim estariam neutralizando a integralidade dos indivíduos aqui vistos como o centro desses programas e instituições demarcados pela vulnerabilidade do próprio Estado democrático. Assim, não se pode ignorar a importância dos diferentes atores institucionais na promoção do direito de cada sujeito, mas não se deve ignorar a ingerência de um seguimento sobre o outro, alimentando, por fim, a clareza de que os papéis e competências são diferentes, ainda que as ações dos diferentes atores estejam direcionadas aos mesmos sujeitos. Dessa forma, a laicidade de que tratamos aqui atravessa o direito de liberdade de fé, de crença e de expressão, atravessa a diversidade étnica, o que inclui as tradições religiosas que são consideras às vezes étnicas, às vezes universais, como o caso das de matriz africana, além de cooperar com os valores constitucionais e republicanos, cujo universo do Estado não compõe a função, competência ou papel das igrejas e seus ministros de culto. Laicidade é um princípio que imprimi a necessidade de o Estado cuidar “do cidadão” devolvendo “o fiel” para a instituição religiosa de sua livre escolha, além de garantir que sua fé e o direito de manifestá-la não ultrapassem, nem tampouco sejam ameaçados pelos limites da lei e a interferência de terceiros nas instituições públicas ou privadas. Reconhecemos, portanto, o Brasil como um Estado onde a liberdade de fé e de crença é uma marca, mas que sofre ameaças constantes, dado o processo histórico, em que uns adquirem avanços e privilégios em detrimento de outros, seja no reconhecimento de que as organizações religiosas mais específicas são todas parte desse mesmo Estado-maior, seja na garantia de direitos básicos e universais como o acesso a saúde, sua promoção ou recuperação. Reconhecemos ainda que o ecumenismo não responde a tantas das questões que são direcionadas ao cotidiano da população brasileira, mas é uma manifestação de paz, cujo avanço é notório. O que indagamos aqui são os limites do Estado e da religião, justamente por conta da diversidade de papéis e competências e, para tanto, 200


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o diálogo entre eles, tal como o diálogo inter-religioso, sobretudo para a promoção de uma cultura de paz e não violência, ainda é louvável, necessário, eficaz e a melhor das estratégias cívicas, segundo as experiências por nós vivenciadas. Por fim, não há laicidade quando as questões mais pessoais transversalizam-se na condução do sistema, ameaçam a possibilidade de reforma plena e mantêm-se na alma das decisões referentes ao desenvolvimento sociocoletivo e político. Vale lembrar que ethus e práxis estão colocadas no âmbito da moral e dos costumes, mas ao Estado não cabe o papel de gerente dos processos espirituais e as decisões advindas desse universo não podem inviabilizar a competência do Estado e suas funções político-administrativas. O racismo, preconceito racial, a discriminação e a xenofobia são considerados vetores sem iguais no gerenciamento político da sociedade e definem, também quando o assunto é religião, quem será ou não aceito nas diferentes instâncias da vida. Tradições étnicas são, por fim, sempre lembradas no campo da intolerância porque romperam com a submissão que o Estado-maior quer delas e, com isso, abrem uma discussão efetiva sobre o direito e a Constituição, a desigualdade e a igualdade, a pobreza e a riqueza. Acabam ainda por acentuar o valor errôneo dado à ancestralidade na linha do tempo, ignorando a possiblidade de correções históricas para garantia de uma descendência feliz, próspera, pois os erros são relidos na mesma linha do tempo, aperfeiçoam-se e mantem-se na continuidade das ações realizadas em nome da promoção da igualdade, o que confunde e inviabiliza as mudanças de fato, pois o discurso e a prática não dialogam entre si no momento do planejamento. Com o texto que segue, veremos que da influência à interferência há uma linha bem tênue que representa um universo de necessidades básicas, composto pela necessidade de escuta qualificada, avaliação e planejamento construído coletivamente, com vista para a mudança de realidade em âmbito territorial, o que está no discurso institucional apenas. Da aids às demais áreas da saúde pública e os temas que dizem respeito à sociedade, o que nos mostra o processo histórico, é que o envolvimento pode, sim, ser um fator determinante para o avanço coletivo sem ferir o direito à liberdade de fé e de crença e sem perder de vista a laicidade do Estado como um princípio constitucionalista. Contudo, é importante frisar que, se na resposta brasileira à epidemia, onde temos tanto a comemorar, verificamos avanços significativos na relação entre o Estado e sociedade civil, porém, faltaram mecanismos, hoje comprovadamente centrais, para a promoção da igualdade e garantia dos direitos. Um deles configura-se na desigualdade e influência religiosa por sobre o Estado, que deveria, entre outras, retroalimentar-se na resposta aos problemas vivenciados pela sociedade brasileira independentemente do poder das igrejas e seus ensinamentos. Essa e inúmeras outras influências da não operacionalidade do direito, 201


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como estratégia para o enfrentamento das desigualdades contribuiu para as significativas tomadas de decisão, mudanças dos cenários e situações aqui citadas. Avalia-se que não faltou intencionalidade, mas, sim, tomada de decisão na democratização das ações. Com isso, os valores, simbologias e costumes subsidiaram o status quo dos sujeitos institucionais, impedindo o avanço de ações que trouxessem a liberdade de fé e de crença para o mesmo patamar que ocupam no campo jurídico, tantas outras questões que dão ao Brasil o status de República. Seria esse apenas um detalhe se esses mesmos sujeitos não fossem historicamente os representantes do grupo dominante. O direito à saúde, por conseguinte, deve estar associado de fato à ideia de excelência da gestão desses conflitos e deveria remeter-se à sociedade com o sentimento de liberdade, justiça e igualdade, pautado na diversidade enquanto riqueza e patrimônio nacional. O mesmo vale para as relações étnico-raciais, componente importante da igualdade no Estado democrático, o que inclui a relação de respeito e harmonia além da promoção de igualdade entre as diferentes tradições, religiões e filosofias de vida, na relação com o Estado, seja na mesa de negociação onde todos são consultados (sic) com o mesmo grau de importância ou no exercício do direito de cada cidadão brasileiro. Mas, lembra-nos Santos (2001) que “as organizações sociais e políticas progressistas, ainda que desarmadas no que tange à defesa da administração pública do Estado que elas próprias tinham contestado, conseguiram manter na agenda política a tensão entre eficiência e equidade”. Aprendemos nesse caminhar que saúde, laicidade e igualdade precisam ser temas interconectados, multifacetados e presentes em uma metodologia eficaz e com a clareza de que não há igualdade sem correções históricas. A diferença, portanto, vivenciada na relação entre as diferentes tradições, religiões e filosofias, sobretudo na mesa de negociação com o Estado, laico, democrático e de direito, demonstra-se um item de primeira ordem na promoção da igualdade e no enfrentamento das iniquidades geradas pela intolerância e a discriminação religiosa. Juntos esses aspectos e paradigmas cristalizados na sociedade (tal como no serviço público) são como cristais, sofisticados e eficazes, chegando a passar despercebidos, mas impedem, entre outras coisas, que a garantia do direito da mulher sobre seu corpo aconteça na prática. Na saúde, em que esse tema é mais impactante, porém ignorado, sabe-se que sem a educação permanente, baseada em seu quadrilátero, sem a formação de excelência, sem a percepção acerca da mudança de cultura, não é possível seguir e avançar de forma exitosa. Como no Terreiro, é novamente o processo histórico quem pode nos ajudar a corrigir as indiferenças que acentuam as iniquidades em saúde, principalmente quando ofertamos serviços iguais às pessoas diferentes, em nome da universalidade do sistema, o que consideramos um equívoco. 202


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Cooperações eficientes entre o Estado e as Religiões Afro-Brasileiras: resposta à epidemia de DST/AIDS O surgimento do vírus HIV e o avanço da epidemia de aids trouxeram à sociedade brasileira uma série de desafios, seja no âmbito da saúde, seja nas diferentes esferas e instâncias, como os poderes Legislativo, jurídico, governamental ou religioso. Vários setores da sociedade foram convidados ao trabalho árduo que deveria enfrentar a então epidemia desconhecida, que, para muitos, não havia sequer o mínimo de informação a ela relacionada. Surgiram várias questões e aspectos para serem observados e, com eles, a necessidade de avanço clínico, político e coletivo envolvendo as diferentes visões de mundo e os vários interesses. As diversas realidades institucionais deveriam se aliar em esforço conjunto para garantir que o enfretamento à epidemia fosse algo contínuo e exitoso e, “na mesma toada”, os desafios aumentavam. Diante disso é preciso atenção acerca do cenário, da aplicabilidade e da resolubilidade dos problemas apresentados outrora. Nesse processo, do qual o Estado de São Paulo é pioneiro em se tratando de resposta local e disponibilização de tecnologia, destacou-se a contribuição da sociedade civil que, por meio da organização do sempre atento movimento social, conseguiu juntar contribuições clínicas a intervenções comunitárias e resposta governamental. Em um cenário pautado pelo medo, falta de informação e busca por medicamento, privilegiou-se, é óbvio, o combate à discriminação, pois o já espantoso número de pessoas infectadas nos anos 1980 gerava muitas necessidades nos diferentes ambientes. Vieram mortes, inúmeras denúncias, a acentuada necessidade de remédio, a introdução do tema nas agendas diversas, o avanço na condução da gestão governamental em nível nacional, a junção de diferentes visões técnicas, a voz da imprensa, a produção científica, os discursos acerca da infecção e a presença religiosa com posturas e em cenários que acentuavam a necessidade de diálogo sobre a ética e a moral. Temas esses, hiperatuais, que agora se associam à busca por novos paradigmas e tecnologias capazes de qualificar a organização do processo, que ao final dos anos 1990, foi chamada de resposta “modelo” em nível internacional a partir da frase “o melhor programa de aids do mundo”. Nesse contexto estava colocada a presença de homossexuais masculinos associada à transmissibilidade do vírus e, por conseguinte, à discriminação desses, gerando a ideia de “peste-gay”. A homofobia contribuiu, assim, para com a desinformação que logo ganhou destaque. Com isso, a quantidade de esforços destinados à garantia do direito à saúde dessa população aumentou e pautou a sociedade, bem como a comunidade científica, a qual teve que investir na pesquisa acerca das numerosas infecções e da simbiose a que a 203


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doença estava associada, uma vez que aids tornava-se para todos nós coisa “de bicha” ou a “cida” da classe média. O Instituto de Saúde, o Instituto Emílio Ribas, o Adolfo Lutz, a Secretaria de Saúde de Santos e o Centro de Referência e Treinamento em DST/AIDS da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo passaram a ocupar lugar de destaque no que tange à organização da resposta governamental, ao mesmo passo em que as organizações não governamentais, criadas em resposta à epidemia, lideravam a organização das comunidades diversas diante da necessidade de cuidados que deviam ser direcionados às pessoas soropositivas para evitar, também, novas infecções. A doença que surge com a necessidade de franca parceria para o seu enfrentamento e contou com a criação de inúmeras casas de apoio ou de passagem, na sua maioria cristãs, deveria também lidar com as questões acerca da mudança cultural e de comportamento, mas estava focada na tensão gerada pela ideia de grupo de risco, hoje substituída pela concepção de gerenciamento de risco e vulnerabilidade. Esses inúmeros fatores vieram mais tarde fazer com que vários sujeitos viessem a público e passassem a enviar esforços para a resposta à epidemia, seja porque a doença estava ceifando o direito de viver junto aos nossos, seja porque também nas inúmeras e variadas instituições a aids passava a ocupar lugar de destaque e a desafiar as autoridades religiosas, inclusive, quanto aos melhores procedimentos ante a ética, a moral e a diferença entre o discurso oficial e a necessidade de atenção à saúde das pessoas. Assim, a religião e a religiosidade passam a compor essa seara e, ainda assim, “a aids arrombou nossas portas e sentou no banco das igrejas”, como bem define Lisboa3. Para Lindner (2006: 127) “o ecumenismo que tem suas raízes no protestantismo está contribuindo em muito na inclusão do tema sexualidade e aids nas igrejas cristãs através de seminários de formação e publicações sobre o assunto... As igrejas tiveram que optar: fidelidade aos princípios religiosos (tradições, dogmas, tabus) ou verem seus fiéis morrendo, ficando os templos apenas como memorial ao seu Deus de Leis e insensível ao dom da vida”. Faltava-nos, porém, uma postura sacerdotal, aliada à necessidade de uma resposta conjunta e essa, desde o início, deveria ter sido inter-religiosa em vez de ecumênica. Seria, portanto, no campo da inter-religiosidade que inúmeras questões, como a cultura de paz e não violência, seriam articuladas junto aos grandes líderes. Logo, a revisão do conceito e das informações que se tinha em aids, sexualidade, comportamento e visão de mundo no eixo aids e religiões poderia, sim, ter seguido esse caminho e obtido outros resultados já naquele momento.

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Ester Lisboa é dirigente do Escritório de São Paulo da Koinonia – Presença Ecumênica e Serviço.

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Vale dizer que ainda assim o traçado que se desenhou no universo que uniu a aids e as religiões trouxe diversas questões à tona, abriu o debate em várias agendas institucionais, por exemplo entre os Programas de DST/AIDS que possuem Programação Anual de Ações e Metas (isso no anos 2000). Esse traçado foi ainda amplamente explorado em congressos e reuniões científicas, já que se tornou objeto de estudo e produção acadêmica, mas manteve o sistema sem, contudo, apresentar produtos reais e concretos que fossem direcionados às comunidades tradicionais de Terreiro, muito embora na relação com as demais tradições não tenham faltado o impulso e o investimento necessários. Velhas demandas e as respostas de sempre, avaliamos.

Ethus e práxis: religião e religiosidade no campo da saúde pública As religiões de matrizes africanas praticadas no Brasil são por vezes denominadas espaço-inclusivo, dadas as suas características e processo histórico, mas são oriundas de uma logica étnica e tornaram-se, no Brasil, o espaço-mãe da comunidade negra brasileira descendente de africanos escravizados, sequestrados de sua terra de origem. Porém, a relação entre o Brasil e a África é anterior à organização dos Terreiros brasileiros como bem nos mostra a literatura dedicada ao tema, pois o tráfico de escravos, a comercialização de produtos variados e a relação entre Portugal e seus convivas, naquela ocasião ocupando o território brasileiro à beira-mar, eram alguns dos aspectos que se inter-relacionavam na ponte entre os dois países. Mais tarde essa relação foi ressignificada e instaurou-se para o bem de todos, o que aqui vamos chamar de troca, mas que muitos denominaram de intercâmbio entre os Terreiros e a terra-mãe em busca pelo resgate de suas famílias e tradições. De tradição-étnica à religião universal, por conta do número de fiéis negros e brancos que a compõem, como prefere classificar a antropologia atual, o candomblé do Brasil, antes tradição familiar, pautada na oralidade enquanto um de seus valores centrais, passou a vivenciar experiências múltiplas em torno da diversidade de pessoas que se apresentava diante das divindades. Era, portanto, uma nova cultura, de matriz africana e de ordem afro-brasileira, que estava se reorganizando em nome da sobrevivência do culto aos ancestres daquele povo. Essa pode ser, por fim, uma breve definição do candomblé criado no Brasil: uma reinvenção da terra mãe, em círculo, cantando e dançando, com o emprego do sincretismo para garantir a sobrevivência do culto, com a necessidade de adaptar-se continuadamente ao território estranho e acolhedor que tornava-se o Brasil, de moradores outros. 205


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O sincretismo, a relação com o Estado, a intolerância religiosa, a perseguição, a formação de descendentes ou lideranças chaves, a organização do discurso, a conexão com os outros universos e saberes, a relação com a comunidade e a presença qualitativa dos Terreiros em cada microterritório, a herança das casas-tronco e a reorganização da tradição, que surge com a nova geração, notadamente a partir dos anos 1980, são partes centrais de uma grande simbiose que gerou a presença dessas comunidades tradicionais no cenário político em todo o território nacional. Assim, esses aspectos se fizeram todos urgentes, conectados e anteriores à necessidade de acompanhamento das políticas públicas de saúde no Brasil. Porém, a discussão sobre saúde já estava lá, uma vez que aquelas mulheres submetidas aos seus senhores e as longas viagens que fizeram com seus pares apontava, entre inúmeras situações desumanas, a necessidade de cuidado e atenção que fora daquela cultura local era impensável, sobretudo porque no centro das discussões estariam pessoas e não coisas como observa-se na cultura ocidental. O Terreiro ramificou-se nos diferentes lugares, passou a ocupar espaços onde antes não era possível a sua presença e, assim, tornou-se o referencial de muitas pessoas que momento antes foram vítimas da perseguição, do preconceito ou da discriminação. Na literatura direcionada existem relatos relacionados à necessidade de o Terreiro se identificar nos Departamentos de Circo e Lazer, de forma que suas lideranças deveriam se submeter a exames de sanidade mental, notadamente no Recife, para que recebessem autorização de funcionamento. A perseguição era tão intensa que muitos dos altares eram enterrados para assim descaracterizar os espaços sagrados invadidos pela Polícia, que quebrava todo o templo em nome da ordem (de Deus) e do progresso (desigual, mas orientado pelo Estado). O histórico dessas tradições vai falar mais tarde sobre cenários muito próximos a esse, em todo o Brasil, matéria essa que não é objeto de estudo deste artigo, mas demonstra bem como a relação entre o Estado e as religiões afro-brasileiras sempre foi problemática, dada a importância que a demonização ganhou nessa severa linha do tempo. Importância essa que se baseia em uma cosmovisão de mundo simplista e ingênua, visto que o diabo é uma personagem judaico-cristã, inexistente nas demais tradições religiosas, mas imputado à imagem do candomblé em função da imagem africana, preta, nagô, liberta de certos dogmas e valores morais. Aqui, que se diga, estamos falando do cenário de um Brasil que mudou (hoje, a Presidência da República envia cestas básicas para os Terreiros em nome de uma política de segurança alimentar), mas a intolerância religiosa revestiu-se ao longo dos anos, apoiada, portanto, em tecnologias e sofisticações que deveriam estar a favor da sociedade, o que não ocorre, pois, por vezes, esse tema é tratado como de segunda ordem, independente do impacto que ele gera, por exemplo, na saúde de cada pessoa. Essa sofisticação tecno206


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lógica trouxe a intolerância religiosa ao século 21 e essas mesmas tecnologias, utilizadas a época, deveriam fazer com que a máquina funcionasse em prol do desenvolvimento, inclusivo e equânime, mas esse aspecto da universalidade do serviço público infelizmente foi emperrado, em função da ideia de que muitas vezes aquela doença é específica e entendida como castigo divino, ou aquele usuário está com o diabo no corpo, precisando, por fim, aceitar o “Deus verdadeiro, único e salvador”, matéria essa que definitivamente não é de responsabilidade do Estado de direito e impede o avanço no desenvolvimento da saúde do sujeito. Práticas como essas compõem, infelizmente, a relação entre usuários e profissionais de saúde no ambiente da saúde pública, notadamente na rede hospitalar e, o que é claro, foge das orientações e diretrizes oficiais do sistema. Instituições e pessoas por vezes agem de forma equivocada diante desses fatos, mas essas possibilidades devem estar colocadas na organização dos processos de educação permanente e reorganização das práticas orientadas pela gestão do Sistema Único de Saúde. Nesse sentido, é importante pontuar que o foco na educação significa que o Estado brasileiro compreende que a educação é o único instrumento que não visa a somente lutar pela reparação dos direitos, mas visa a prevenir que os direitos não sejam violados. Em outras palavras, as demais áreas do conhecimento se norteiam pela reparação, ao contrário da educação, que se norteia pela prevenção. No começo dos anos 1900 constatava-se, portanto, o debate sobre as questões de saúde e doença e os relatos Brasil afora sobre o estado de saúde e de quase morte de muita gente, que, claro, só aumentou, progressivamente. Vide navio negreiro, tráfico de escravos e política trabalhista já no Brasil República. Esses temas são muito caros para a sociedade brasileira, mas é possível ver a negação e invisibilidade de cada um deles no processo de trabalho, sobretudo quando o debate caminha de forma transversal, juntando liberdade, direitos e deveres a intersecções no campo da sexualidade, das relações étnico-raciais, gênero e homossexualidades. A presença de homens homossexuais nos Terreiros do Brasil, por exemplo, passou a ser um componente determinante na relação entre esses Terreiros e suas comunidades, ao mesmo tempo em que a procura pela possibilidade de religar-se estava posta apenas na identidade desses e na relação entre eles e os candomblés de diferentes tradições. Acentuou-se, portanto, a ideia de tradição universal e para muitos dos críticos estava aí uma ameaça aos valores, à teologia africana e à moral. Constatou-se que a crítica perpassava pela ideia de que quantidade de homens homossexuais pertencentes a esses grupos indicava a manutenção de uma falsa religião, mas, sim, da casa do pecado, ou da doença. Enganaram-se, portanto, os críticos da época, pois a marca do candomblé era e continuou a ser a junção entre as relações humanas e a leitura sobre o sagrado, a partir 207


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de uma visão de mundo que não se podia distanciar miticamente da terra-mãe e seus valores, nem tampouco abrir mão de sua missão: atender as pessoas de forma integral, diante de suas necessidades múltiplas, separando as coisas do corpo das coisas da alma, sem, contudo, desconectá-las. Obviamente, a cristianização da sociedade não era objeto de diálogo ou estudos contemporâneos para além das ciências da religião e, com isso, os valores a serem discutidos eram outros. Não havia o porquê negar o acesso dos gays às divindades, da mesma forma que não se justificava a discriminação vivenciada por esses em outros espaços religiosos. Com o auge da democracia é que foi possível ouvir as pessoas dizerem que escolheram professar aquela fé, porque aquela era a única religião em que elas eram acolhidas e incorporadas em seu bojo. Os homens homossexuais vivenciavam situações de acolhimento e atenção, diferente das que experimentavam na busca por outras tradições religiosas, mesmo quando seu estado sorológico não era revelado a ninguém. Com o surgimento da aids essa discussão acentuou-se e a soma de estigmas se fez cada vez mais feroz, chegando ao ponto de os Terreiros se organizarem rumo à construção de um discurso inovador que desafiava também os ortodoxos do candomblé. Assim, as tradições afro-brasileiras foram acusadas de disseminar a aids em função do uso ritualístico de objetos perfurocortantes e contribuir para o abandono da ética e da moral, já que os “desencaminhados” passaram a notadamente ser parte dessas. Desnecessário dizer que o discurso religioso e a forma como essas questões eram vistas na época foram determinantes nesse processo que, se antes estava associado ao preconceito vivenciado por homossexuais, agora interferia ainda mais na relação entre os Terreiros e a sociedade. A convivência com as demais religiões e seus fiéis tornava-se, mais uma vez, o ponto de longas caminhadas em busca do direito a ser diferente. E, nesse contexto, haviam muitas contradições, mas surgiu por parte do próprio Terreiro a possibilidade de revisão de alguns discursos, além de penalidades a aqueles que não se enquadravam de clã em clã, nesse universo que envolvia e se ampliava na relação com as demais religiões e a sociedade. O discurso da cura imediata por meio divino, portanto, foi derrubado, e muitos dos que o propagaram foram retirados de circulação ou tiveram que assistir à reorganização do candomblé em busca da ainda esperada cura da aids por meio científico, o que certamente aconteceria a partir da concepção de que tudo no mundo é sagrado, inclusive o esforço médico e a produção de medicamento, já que vindo da natureza, a base da tradição. Dois pontos importantes listados aqui passaram a desafiar as comunidades afro-religiosas: (1) a falta de conhecimento das pessoas sobre a tradição, questão ainda presente na contemporaneidade, aliada ao HIV e à aids, com pouca informação acerca da preven208


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ção do vírus e da discriminação aos homossexuais, ao mesmo tempo em que (2) o pertencimento passava a ser cada vez mais um assunto em pauta. Não por acaso, 30 anos depois essas questões compõem a larga agenda política da sociedade brasileira. Esses fatores passaram a alimentar o fenômeno que mais tarde foi denominado militância em nome da fé, ou movimento contra a intolerância religiosa, que só ganhou espaço, protocolos e formalidades nos anos 1990, mas que é tão antigo quanto a possibilidade de enfrentamento. Ninguém imaginava que passariam os anos e as comunidades tradicionais de Terreiro seriam parte de negociações com o Estado brasileiro, nem tampouco que teriam representações em momentos como o intercâmbio que se construiu com países-irmãos, além da volta à África, que em São Paulo, com certa carência, tornou-se o movimento da reafricanização. Na resposta à epidemia vivenciou-se momentos de muitas dúvidas e, assim, perguntas como a importância do pernilongo enquanto sujeito na transmissibilidade do HIV tornaram-se frequentes e passaram a compor a agenda dos treinamentos e ações educativas empreitadas também pelas lideranças dessas comunidades, agora, na parceria com o poder público, o que se pôde ver no Programa Inter-religioso de Combate à Aids, criado pelo GVTR – Grupo de Valorização do Trabalho em Rede em 2001, na cidade de São Paulo. Desde muito cedo, portanto, provou-se que o uso ritualístico das ferramentas de que serviam os sacerdotes e sacerdotisas de candomblé era sim questão a ser discutida, mas que nenhum dos adeptos com vida sexualmente ativa tinham obtido a infecção no momento da escarificação ou da tonsura, mas, sim, noutro momento da vida, por meio de práticas sexuais desprotegidas. Cada vez mais falava-se em instrumentos individuais, caríssimos, inacessíveis ou descartáveis, como no caso das “navalhetes”, que não tinham diferença se comparados com os objetos usados por outros profissionais, como os cabelereiros. A tradição também foi revisitar seus valores e abriu-se para debates outros, como o da sexualidade. E quis a tradição e a modernidade que essa pauta fosse dada por superada.

Promoção da Saúde: um processo construído na relação entre os Terreiros e o SUS A atenção à saúde e a quantidade de pessoas infectadas que estavam internadas nas dependências hospitalares trouxeram aos Terreiros questões muito específicas relacionadas à fé e à crença. Destaca-se aqui as questões em torno da morte e a forma como essas eram tratadas na relação entre os Terreiros e o hospital. O Instituto Emílio Ribas tornou-se um hospital frequentado por inúmeros sacerdotes e sacerdotisas de religiões de ma209


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trizes africanas, à paisana – em função da intolerância religiosa –, pois era preciso cuidar das pessoas soropositivas que, adoentadas, adentravam as dependências do hospital com estado de saúde alarmante. Ganhou enorme evidência o debate sobre como se dariam os rituais, uma vez que ao Padre tudo e ao Pai de Santo, nem pensar, pois as escarificações e tonsuras realizadas em momento pós-morte, tal como nas cerimonias iniciáticas, eram objetos de debate contínuo, quando deveria de fato ser a causa mortis. Para a tradição a pergunta era: Como enterrar sem os rituais? Sabe-se de Iyalorixás que tiveram que pagar muitos “cafés” – leiam-se propinas – para impedir que seus fiéis não fossem sepultados de forma indigna ou destratados no primeiro momento pós-morte, o que é impensável a partir da visão e mundo afro-religiosos. Com esse item, o diálogo entre o povo de santo e as organizações não governamentais, bem como com o então recém-criado Sistema Único de Saúde, foram ajudando na cooperação entre as lideranças religiosas e seus seguidores. Mas nem sempre a relação entre os Terreiros e as organizações não governamentais foi acrescentando valor a essa parceria, em âmbito territorial, fator esse que objetivou e contribuiu muito com o avanço da resposta religiosa à aids, aliada à luta contra a intolerância religiosa vivenciada pelas comunidades tradicionais de Terreiro, sobretudo nos serviços públicos de saúde. Em função disso, criou-se organizações como a Egbé Kosi Arun (Que Não Haja Doença), conhecida como Gecaids/Grupo Especial para o Combate à Aids, o Centro de Convivência Infantil Filhos de Oxum e, na relação com Centro de Referência e Treinamento em DST/AIDS e, estabeleceu-se diálogo contínuo e cooperação mútua com outras religiões. Esse talvez tenha sido o primeiro movimento conjunto das instituições religiosas contra a epidemia no Estado de São Paulo. O encontro entre esses diferentes grupos, levando essas lideranças de diferentes orientações religiosas à praça pública – nos diz uma importante informante –, foi um fato que “contribuiu para o debate sobre prevenção e assistência” ao mesmo tempo em que as tradições afro-brasileiras passavam por um processo de reorganização e, assim, iam reeducando os sujeitos quanto à não demonização. O então discreto debate da época sobre tradição e modernidade, considerado um abuso, estava associado à necessidade que os jovens tinham de avançar no universo chamado conservador em função do modelo tradicional de educação ofertado pelas lideranças mais antigas. Moleque era moleque, logo, suas questões ideológicas, tal como na ditadura, eram questões consideradas de menor importância. Porém, já se iam grandes lideranças religiosas em função também do HIV. Pretendia-se construir relações que aqui vou chamar de mais liberais, uma vez que o conceito de família, a notada presença de homens e mulheres homossexuais na hierarquia dos Terreiros, a relação com as igrejas neopentecostais, a especulação imobiliária, 210


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o combate à pobreza e à miséria, a manutenção da tradição a partir da nova geração, a necessidade de posicionamentos políticos e articulados, colocando o Terreiro em pé de igualdade com as outras religiões, tradições e filosofias (sic), estavam cada vez mais conectadas e acentuadas na relação entre as religiões afro-brasileiras e o Estado laico, democrático e direito. Conectada a essa realidade tão mista estava ainda a necessidade de o Terreiro conhecer outras possibilidades, de forma a enviar ainda mais esforços à prevenção do HIV e à assistência às pessoas vivendo com aids pertencentes a essas comunidades. Apareceram questões como a partilha de roupa de cama, friagem, qualidade da alimentação distribuída nos tenros banquetes comunitários e por aí afora. Não faltou tema para a agenda nem tampouco conhecimento para alterar as práticas. Com esse desafio que marcou os anos 1980 e 1990, a Comissão de Assuntos Religiosos Afro-Descendentes do Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra do Estado de São Paulo, naquela ocasião presidido por Antônio Carlos Arruda da Silva, tornou-se o cenário em que parte significativa desse trabalho ganhou voz. Depois de muito projetar o futuro e contribuir com a construção do discurso religioso, o povo de santo, inspirado no Projeto Odoyá, experiência coordenada por José Marmo da Silva, no Rio de Janeiro, ligado à Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids, fundada pelo saudoso Herbert de Souza, optou por priorizar o combate à epidemia. Tratava-se de uma junção de sacerdotes e sacerdotisas de diferentes tradições de matrizes africanas que atuavam junto ao referido Conselho na perspectiva do combate ao racismo, uma vez que essas tradições implicavam diretamente o enfrentamento à discriminação e ao preconceito racial e suas lideranças eram do movimento negro. O conjunto de estratégias relacionadas na época levou tais lideranças à fundação do GVTR – Grupo de Voluntários do Trabalho Religioso, em abril de 2001, uma articulação coletiva que reunia esforços de lideranças religiosas preocupadas com o tema e mais tarde tornaria-se uma organização de direito privado, sem fins lucrativos, com a finalidade de promover a assistência social, o voluntariado, a cidadania e a defesa dos direitos humanos, dedicando-se enfaticamente, entre outras, à promoção da saúde e, nela, ao combate à epidemia de HIV/AIDS, por meio da educação preventiva. Elegeu-se como prioritário o combate ao racismo e à intolerância religiosa, pois, no âmbito das religiões afro-brasileiras, essas questões eram o cerne do debate sobre igualdade. Na ocasião de sua fundação tais sacerdotes e sacerdotisas estavam integralmente envolvidos com as questões do Manifesto para Promoção de uma Cultura de Paz e Não Violência/Unesco e iniciava-se o período que foi transformado na Década Internacional do Voluntariado, cujas ações foram coordenadas em São Paulo pelo Faça Parte-Instituto Brasil Voluntário, presidido por Milú Villela, o qual contou com a nossa presença na 211


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condução coletiva do projeto “Fé no Voluntariado”, em nome das tradições de matrizes africanas. Esse foi outro esforço conjunto entre diferentes religiões, tradições e filosofias de vida, que mais tarde contou com a condução do amigo Frei Beto em função da implantação do Programa Fome Zero no governo Federal e da inter-relação entre o trabalho desenvolvido pelas comunidades de fé no combate à fome e da necessidade de esforço conjunto para o enfretamento dessas questões. Essas ações, ponto de partida para a organização do grupo, alimentavam os diálogos acerca da missão institucional que se desejava. Sabia-se que era preciso um modelo de organização que fosse para além do cadastro nacional de pessoas jurídicas e da lógica que demarcava a relação com o Estado, o que nos fez discutir a relação entre os usuários, os gestores e os profissionais de saúde em busca do “SUS que Queremos”. Nesse momento já se avistava um horizonte que segui para além da epidemia de Aids e abria um universo de trabalho pró-SUS, enfatizado nas pessoas, na participação e no controle social das políticas públicas de saúde. A fundação do GVTR, associada ainda à Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação, a Xenofobia e as Intolerâncias Correlatas – Conferência de Durban –, que aconteceu em 2001, contribuiu com o debate via Comissão de Assuntos Religiosos Afrodescendentes, privilegiando as desigualdades geradas pela intolerância religiosa. Originalmente, o grupo de associados fundadores do GVTR é formado por religiosos de diferentes tradições e lideranças políticas com experiências em várias áreas de atuação. Tal lista reúne nomes como a sacerdotisa e enfermeira Mameto Nkisse Kayandewa, do Abassá Kaitumba; o sociólogo e Babalorixá José Luís Santos Carvalho Monteiro/PUC-SP; Reginaldo Ortiz Dolci, de Oxalufan; Lurdes Ortiz Navarro, Igreja Legião de Maria; Carlos Eduardo Oliveira de Carvalho – Asé Opará Issá; Mãe Sônia Regina, da Comunidade Umbandista e Evangelização Cristã; Liliana Araújo – Associação Centro de Mamãe Oxum e Caboclo Pedra Branca; Hiroko Watinaga, ainda hoje voluntária no Grupo Pela Vida/São Paulo; Celso Ricardo Monteiro – Sociedade Ketu Ile Asé Igbin de Ouro; a saudosa Mãe Conceição Apparecida Leite, de Oiyá; ekede Geraldina de Oxum; o Babalorixá Walter Alves Odenitá, da FIUTCAB; a saudosa Iyalorixá Sandra Medeiros Epega – Ile Lewiyato/ Guararema; Mãe Rita de Cássia – Tenda de Umbanda Cacique Pena Vermelha. A lista de colaboradores contou ainda com um grupo seleto, como amigos da Igreja Metodista, o saudoso Babalorixá Aparecido Garcia, de Oxalufan, fundador e presidente da Federação de Umbanda e Candomblé Luz e Verdade do Estado de São Paulo e do Brasil, o também saudoso Rogério Osúngbemi, Djalma de Obatalá, e Heli Garcia do Nascimento, sacerdote da Tenda de Umbanda Baiano Zé da Mata; em Pirituba, além de pessoas consideradas fundamentais para a fundação do grupo, como Lia Diskin e Flávio 212


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Rett, ambos da Associação Palas Athena do Brasil, que acolheram a solicitação de apoio imediatamente. A Federação de Umbanda e Candomblé Luz e Verdade do Estado de São Paulo e do Brasil, vale dizer, foi palco das principais reuniões e eventos realizados pelo grupo, e o Terreiro de Umbanda Ogum Megê e Maria Francisca foi o espaço de lágrimas e reclamações consoladas, já que era preciso encontrar um caminho eficaz. Maria do Carmo Sales Monteiro, na época gerente de Prevenção da Coordenação Estadual de DST-AIDS, Ivone de Paula, Paula de Oliveira e Sousa, Cristiane Gonçalves, Maria da Penha Ramos de Oliveira e Julieta Lázaro foram no CRT, à época coordenado por Arthur Kalishman, os primeiros profissionais a acolher as reinvindicações do grupo, em 2002, abrindo uma lista de técnicos e gestores que se ampliou ao longo do tempo com a inclusão do professor dr. István van Deursen Varga, professor dr. Luís Eduardo Batista, professora dra. Fernanda Lopes/USP e dra. Naila Janilde Seabra, entre tantos outros, também em alguns dos 145 municípios com PAM – Programação Anual de Ações e Metas, além do Ministério da Saúde, que passou a dialogar com os Terreiros para além da resposta à epidemia. Esse era um novo caminho a percorrer. Fundado em abril de 2001, o grupo primou pelo espírito de rede que mantém e conduz as comunidades tradicionais de Terreiro. Era sobre modelo de articulação que se estava falando, uma vez que fundar uma organização não governamental naquele momento só teria sentido se as diferentes entidades representantes do povo de santo apresentassem desigualdades concretas entre elas. Naquele cenário competitivo não havia espaço para reflexões sobre o modelo de gestão institucional contra o racismo e a intolerância religiosa, tampouco, contra a aids. A fundação do grupo tornou-se assunto desprivilegiado nas rodas em questão e, por vezes, a necessidade de defesa das pessoas se fez presente em reuniões superimportantes. “A quantidade de negativas”, definiu um dos fundadores na época, só não era maior do que a necessidade de tocar no assunto. Nesse caminho, a presença da aids no âmbito das tradições de matrizes africanas era o diferencial e gerou muitas adversidades, pois com a fundação do GVTR também se estava questionando a tradição e o modelo de atuação das organizações e lideranças diante da avaliação das políticas públicas, além da forma como se dava a defesa dessas tradições por meio de suas representações e discursos. Estava-se emitindo perguntas também entre os pares. Assim, a vivência, a prática e o diálogo inter-religioso foi o que deu a essa articulação, a experiência e legitimidade necessária para hoje. O grupo exerceu sua função com as marcas que ele mesmo imprimiu por meio do trabalho desenvolvido em cada uma de suas comunidades de base. A conexão entre todos esses temas deriva do grande debate sobre acesso a bens e serviços que se queria fazer em 1999 e, em 2011, tornou-se foco de discussão da 14ª Conferência Nacional de Saúde, que foi conduzida no Conselho Nacional 213


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de Saúde por uma representante do movimento negro, configurando outro fato histórico, tal como o reconhecimento dos Terreiros como núcleos de promoção da saúde no texto oficial da Política Nacional de Atenção à Saúde Integral da População Negra, aprovada pelo Conselho Nacional em 2006. “Nossos passos vêm de longe”, diria Werneck. A preservação das tradições afro-brasileiras e a produção de conhecimento sobre o impacto da religiosidade no campo da saúde, da cultura e da educação possibilitaram ao grupo a construção de caminhos com largas contribuições rumo ao desenvolvimento das comunidades tradicionais de Terreiro, sobretudo no universo da saúde coletiva, pois os princípios e valores das religiões de matrizes africanas foram, entre outros, o que motivou a fundação dessa organização. Mas, desde muito cedo, estava fora de cogitação a competição entre o saber ancestral-mítico e a medicina, por entender o povo de santo que as práticas e os diferentes conhecimentos eram complementares. Com isso, avançou-se e muito na história da umbanda e do candomblé de São Paulo e também na relação com o SUS. Essa era ainda a época em que a quantidade de eventos relacionados ao direito de fé e de crença era maciça e os conteúdos geraram parcerias importantes entre os Terreiros e organizações outras, como, por exemplo, a Sutaco – Superintendência do Trabalho Artesanal nas Comunidades/Secretaria do Trabalho e Emprego do Estado de São Paulo, provocadas pela Comissão Afro, ou da série de seminários de tradição e cultura afro-brasileira organizados pelo Intecab, coordenado em São Paulo pelo saudoso Toy Vodunnon Francelino de Shapanan, além dos organizados pela Federação Luz e Verdade já citada aqui. Adiante, veremos uma análise mais profunda sobre a atuação do grupo, por exemplo, em 2005, considerado o melhor de todos os seus dez anos em função dessas articulações. Ao estabelecer pautas tão correlacionadas a questões morais, a organização priorizou o espaço do diálogo inter-religioso nas suas e nas agendas de seus parceiros. Era tarefa central do grupo ocupar os devidos lugares na sociedade, trazendo para junto dos seus, a responsabilidade de todos, vista de forma individual e coletiva, ao mesmo tempo em que os outros sujeitos ganhariam a oportunidade de conhecer as religiões afro-brasileiras e rever os seus conceitos sobre o assunto. Garantir a essas lideranças o mesmo direito que é preservado para as demais é nada mais do que cumprir com a Constituição Federal, o que deve ser um dever do todos, daí por que todo o trabalho buscou responder à intolerância religiosa sem destoar da laicidade e da perspectiva inicial: educar a população para que os direitos de todos sejam exercidos e os deveres sejam cumpridos. Esses temas tão polêmicos fizeram com que as lideranças olhassem para dentro de casa e avaliassem o modelo de educação religiosa que estavam oferecendo a seus iniciados. O Grupo de Voluntários do Trabalho Religioso teve, em 2003, seu nome alterado para Grupo de Valorização do Trabalho em Rede, proposto por Rogério Osúngbemi, 214


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para que, de fato, as diferentes comunidades se sentissem representadas com seus diversificados modelos de atuação e não fossem invadidas pelo grupo, visto que o caráter normativo e persecutório da época não dialogava com o modelo de atuação política que estava sendo construído. Hoje, ao analisar as ações realizadas pelo GVTR, percebemos o quanto foi feliz em seu posicionamento Rogério Osúngbemi no que se refere à escolha do nome da instituição, pois sabemos que os valores e a moralidade estão vinculados com a dimensão afetiva do ser humano, ou seja, não se caracterizam somente como uma questão cognitiva. Do ponto de vista psicológico, o valor é aquilo que o indivíduo gosta, construído por meio da projeção dos sentimentos sobre objetos, ações ou sobre si mesmo. Percebemos, assim, que os valores são relativos, pois, o processo psicológico de cada indivíduo inicia no nascimento e percorre por toda a sua vida. Portanto, esses valores se constituem em sistemas (ou rede) que se cristalizam por meio de nossa identidade. Parafraseando Jean Piaget, os valores referem-se a trocas afetivas que o sujeito realiza com o exterior. Surgem da projeção de sentimentos positivos sobre objetos e/ou pessoas, e/ou, relações, e/ou, sobre si mesmo. No que se refere a esse novo cenário, é possível pontuar que para a efetividade das ações primou-se por estratégias centrais: “sensibilização das autoridades religiosas; oferta de oficinas temáticas a partir da linguagem dos Terreiros; conexão de temas como religião e aids, com foco na multiplicação de informações da prevenção do vírus HIV”. Contudo, o jeito de “fazer o serviço” era muito inicial e foram vários os momentos em que a metodologia de trabalho precisou ser reconstruída coletivamente. Para isso, a ideia de acolher as pessoas perguntando: “O que elas esperam desta oficina? Como gostariam de chegar ao objetivo final deste trabalho?” Ao repensar o seu modelo administrativo, em 2004, o GVTR priorizou no seu planejamento estratégico questões consideradas fundamentais na época: “produção de material educativo específico (vídeo, folder, cartaz, manual para agentes multiplicadores, livro, agendas e camisetas); ampliação dos trabalhos por meio da implementação oficial de ações continuadas em dez diferentes pontos referenciais no Estado de São Paulo; instrumentalização dos diretores, formação de agentes multiplicadores de informação, ampliação de parceiros, associados e demais pessoas físicas, para a realização de trabalhos específicos, a formalização, o fortalecimento e a ampliação de parcerias que garantissem a continuidade das ações locais”. O grupo não sabia, mas estava debatendo sustentabilidade. Para o alcance dessas metas foi apresentada a proposta de realização de um ciclo de 25 oficinas, no qual se incluiu o monitoramento dos trabalhos por meio de encontros da Diretoria Executiva; realização de seminários temáticos; organização do Prêmio Afroaids em 2004 e em 2005; a elaboração de projeto autossustentável, aproximação com a comu215


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nidade científica e a aplicação de questionário aos Terreiros parceiros sobre o perfil socioeconômico do público atendido. Esse já era um sinal de mudança no comportamento do grupo, que ousava diante da falta de recursos, afinal, essa organização, sem dinheiro, sem computador, sem sede própria, gerenciada em lan house e mais tarde nos telecentros da cidade teve seu gerenciamento mantido no modo de ser dos Terreiros. A atuação do grupo ao longo do tempo possibilitou: 1. a realização da 1ª Capacitação de Agentes Multiplicadores de Informação em Prevenção de DST/AIDS, realizada em dezembro/2001, na Federação Luz e Verdade; 2. a organização do Painel GVTR nos 20 anos de DST/AIDS no Brasil, em 2001, ocasião em que recebeu inúmeras autoridades religiosas, comunitárias e de Governo, na Secretaria da Justiça e Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo; 3. a realização do Erab 2002: 2º Encontro Regional Afro-Brasileiro, que ao trabalhar o tema “Religião, Saúde o Corpo e a Mente” recebeu os cristãos da Igreja de Jesus Cristo do Santo dos Últimos Dias; seguidores e lideranças da Santa Igreja, da Igreja Messiânica e da Igreja Metodista, além dos sacerdotes e sacerdotisas de umbanda e de tradições de matrizes africanas, em parceria com o Ilê Asé Olodunmare – Casa das Forças do Criador, presidida pelo sacerdote nigeriano Babalawo Aderotimi; 4. a organização da 2ª Capacitação de Agentes Multiplicadores, já realizada em parceria com o Programa Estadual DST/AIDS/Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, em outubro de 2002, resultando na criação do GT Religiões e na série de seminários de sexualidade e espiritualidade frente à Saúde, enquanto uma resposta do Estado4 às questões de religiosidade relacionadas à epidemia de HIV/ AIDS. O seminário reuniu acadêmicos, religiosos de diferentes segmentos, além de profissionais de saúde, representantes de diferentes Secretarias Municipais de Saúde e ativistas de diferentes organizações não governamentais do movimento de luta contra a Aids, que naquele momento tinha Eduardo Luís Barbosa à frente do Fórum de ONG/AIDS do Estado de São Paulo.

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Coordenação Estadual de DST-AIDS.

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O Programa de Capacitação de Agentes Multiplicadores de Informação em Prevenção de DST-AIDS na Comunidade de Terreiro treinou inúmeros agentes multiplicadores: Clara Cecília Seguro da Silva; Kleber Gonzaga Luiz; Selma Pinheiro dos Santos Moraes; Paulo Luiz Pereira; Valter Gelde Martins; Eliana Souza Coutinho; Maria do Céu Dantas Peres; Sílvia Maria dos Santos; Celso Almeida Santana; Edson de Azevedo; Maria Cristina Silveira Prado Martins; Liliana Araújo de Oxum; Walter de Obaluaiye; Reginalda Dassie; Edson de Souza; Sônia de Souza; Elisângela Gomes Dellicolli; Maria Conceição do Amaral; Conceição Aparecida Leite; Geraldina de Oliveira, etc. Com essa iniciativa juntou-se em rede diferentes comunidades tradicionais e organizações não governamentais: Tenda de Umbanda Baiano Zé da Mata/Pirituba; Centro de Estudos Espirituais Luz e Verdade/Tatuapé; Associação Centro de Mamãe Oxum, Pai Guiné e Caboclo da Pedra Branca/Vila Formosa; Comunidade de Umbanda e Evangelização Cristã/Burgo Paulista; Terreiro de Ogun Megê e Maria Francisca/Jardim Maringá; Ilê Asé Igbin de Ouro/Tatuapé; Sociedade Espírita de Umbanda Pai Benedito e Vovó Catarina; Tenda de Umbanda Iemanjá Ogunté e Caboclo Tupiranti/Suzano; Federação de Umbanda e Candomblé Luz e Verdade do Estado de São Paulo e do Brasil/Tatuapé; Obraf – Organização Brasileira de Apoio Filantrópico/Suzano; Instituto Beneficente Viva a Vida/ São Miguel; Casa Laura Braga – Ilê Oiyá e Xangô/Freguesia do Ó. O lançamento do Boletim Afroaids em 2004, pós-lançamento do prêmio que leva o mesmo nome (onde 20 diferentes experiências foram homenageadas e publicizadas), veio coroar os esforços incessantes de cada um dos participantes e acentuar a necessidade de continuar o trabalho ante a epidemia. O boletim ganhou versão eletrônica publicada on line na página www.gvtr.kit.net apoiada em um informativo eletrônico chamado Informando, que foi impresso ao menos durante três anos com recursos próprios. Já o prêmio, cujo material foi disponibilizado na época por meio do blog www.premioafroaids.kit.net, passou a ser uma realização bianual. Para além das ações intramuros, pode-se conferir abaixo alguns dos resultados alcançados nessa atuação: • estabelecimento de trabalhos específicos em diferentes comunidades; • visibilidade da temática em parceria com o Governo e outros atores; • capacitação de 55 agentes para atuação local (nas quatro edições da capacitação); • criação de Grupo de Trabalho para resposta à epidemia no universo das diferentes religiões: GT Religiões da Coordenação Estadual de DST-AIDS/ SES SP (e a realização de três seminários estaduais); • maior envolvimento das comunidades por conta das articulações realizadas; 217


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• maior interesse/debate sobre promoção à saúde e autocuidado; • identificação de trabalhos e apresentação de relatos de experiência sobre o impacto destas ações na vida das pessoas; • condução do projeto Jovens em Ação e criação do Gaja/Grupo de Atenção aos Jovens e Adolescentes, na Associação Centro de Mamãe Oxum, Pai Guiné e Caboclo da Pedra Branca; • recrutamento de novas lideranças; • receptividade das religiões afro-brasileiras em diferentes espaços, indicando-nos mudança de comportamento institucional. Durante o ano de 2005, o trabalho do GT AIDS – Religiões/Coordenação Estadual de DST/AIDS – Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo se fortaleceu, permitindo desdobramentos significantes: • conjunto de oficinas para troca de experiências e tecnologias entre religiões diferentes, profissionais de saúde e gestores; • participação do grupo na realização do 1º Encontro Regional Aids e Religião/ PM DST/AIDS – Secretaria Municipal de Saúde – Prefeitura do Município de Piracicaba; • inclusão do tema na agenda de outros municípios e posterior inclusão desses municípios no GT; • ampliação do diálogo entre o povo de santo e os representantes de Governo. No que tange ao envolvimento do público-alvo nas questões ora apresentadas, levantar o perfil dessa população possibilitou a alteração das estratégias. Maria Cristina Silveira Prado Martins, teóloga e Iyalorixá, secretária-geral do GVTR – função que exerceu até o ano de 2010 –, foi responsável pela condução da “Pesquisa sobre o Perfil Socioeconômico dos Terreiros”, e, com isso, mudou o rumo dos trabalhos e projetos da instituição. Não se tratava de uma pesquisa científica, mas sim de um questionário direcionado, o qual buscava conhecer de fato o público que estava sendo acessado e, naquela ocasião, indicava algo em torno de 200 pessoas por mês. Os resultados foram apresentados durante o 1º Seminário de Atenção à Saúde no Terreiro – Agosto/2007 e, mais tarde, no 4º Seminário Paulista da Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde, realizado em 2007, na Unicid-Universidade Cidade de São Paulo, em São Paulo, tornando-o público e ampliando o debate. Os dados apontaram um perfil diferenciado de usuários do SUS, se compararmos com as informações forne218


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cidas noutro momento, e a pesquisa foi utilizada como um importante instrumento na organização das metas e objetivos da instituição, além de ter se tornado uma das grandes ferramentas utilizadas na elaboração do Planejamento de 2006. No momento em que se deu sua análise, pôde se perceber que os trabalhos dessa instituição deviam ter um alcance maior e outro olhar. Necessidade igualmente importante foi a ampliação do diálogo em torno da transversalidade da saúde: É fundamental, como nos lembrou Sérgio Arouca na 8ª Conferência Nacional de Saúde, que se entenda saúde com uma perspectiva de emprego, renda, cultura, oportunidades e afins, sem que se desconsiderem as outras pautas que, porventura, surjam em meio ao debate. Daí a parceria com o Sebrae para a implementação de cursos profissionalizantes junto aos Terreiros de São Paulo. Com a pesquisa, as intervenções ganharam outro sentido e com isso surgiu também a proposta de distribuição de preservativos nos Terreiros da cidade, em parceria com a Coordenação Estadual de DST/AIDS, inspirada na experiência que Maria do Carmo Sales Monteiro e Reginaldo Dolci, de Oxalufan, haviam vivenciado em Carapicuíba, pouco antes (projetos “HIV Vida” e “Os Orixás na Luta contra a Aids”). A partir desse processo conseguiu-se avançar no desenho qualificado das ações direcionadas, inclusive trazendo para a frente do processo os atores que antes eram apenas público-alvo dos projetos. A comunidade tornou-se sujeito de fato. Resultado marcante desse processo é o trabalho direcionado à juventude, que em curto espaço de tempo tornou-se uma ponte importante entre esses jovens e a comunidade científica, pois, chegar à USP para muitos deles, ainda que inicialmente como fonte de pesquisa, era algo muito distante que se realizou em função da relação com a comunidade de Terreiro a que pertenciam. Ao longo desse processo algumas participações foram centrais para o desenvolvimento do trabalho: • as oficinas de prevenção nos Encontros de Casais com Cristo, organizados pela Legio Marie, em Carapicuíba; • participação integral na organização da 1ª e da 2ª Conferência Municipal de HIV/DST/AIDS de São Paulo e da 1ª Conferência de Saúde da População Negra do Município de São Paulo (essa em abril/2003); • a participação na organização primeiro da 12ª e, depois, da 13ª Conferência Municipal de Saúde, conduzida pelo Conselho Municipal de Saúde, com a nossa participação enquanto coordenador adjunto5, além da participação nas conferências estaduais subsequentes, e a 12ª Conferência Nacional de Saúde/Brasília, em 2003, e a 2ª Conferência Nacional de Ciência e

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Da 13ª Conferência, conforme o Diário Oficial da cidade, na época.

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Tecnologia/Brasília, em 2004, ambas com etapas municipais e estaduais, rendendo-nos um intenso trabalho de mobilização e articulação entre os Terreiros, também no cenário nacional. Uma vez avaliada sua atuação, o Grupo de Valorização do Trabalho em Rede promoveu positiva alteração em seus paradigmas, levando todos a uma organização política melhor, qualificando, portanto, a sua atuação técnica. Diante disso, sua agenda de prioridades naquele período foi construída de forma a contemplar duas importantes frentes de trabalho: 1. Educação continuada: oficinas de capacitação e apoio a agentes multiplicadores; Encontros comunitários: troca de experiências em diferentes áreas do conhecimento; Visitas periódicas e acompanhamento a diferentes comunidades; Capacitação de educadores e agentes sociais; Seminários anuais - Temáticos; Incentivo à participação em outros espaços, inclusive de cunho político; 2. Articulação política: Mapeamento dos serviços/parceiros locais; Monitoramento do trabalho prestado; Incentivo à participação popular diante da gestão participativa; Estabelecimento e fortalecimento de parcerias intersetoriais; Envolvimento com outros movimentos sociais; apresentação de resultados das ações em congressos; elaboração de artigos sobre o tema.

Dialogando com outros mundos: intersetorialidade em saúde Uma vez detectado que as questões de pobreza estavam também inter-relacionadas com o acesso à saúde, mais do que depressa se buscou avançar no campo da qualificação dos sujeitos para o mercado de trabalho. A ideia inicial era provar para os jovens e os diferentes atores da comunidade que o trabalho desenvolvido por novos empreendedores poderia ajudar no seu desenvolvimento social, além de proporcionar oportunidades múltiplas. Com essa iniciativa foi possível articular desejos e necessidades em torno de projetos individuais já presentes no grupo. Assim, em franca parceria com o Sebrae, surgiu mais uma oportunidade para que o Terreiro, uma vez com espaço ocioso entre uma cerimônia e outra, abrisse suas portas para o trabalho coletivo de forma a contemplar as necessidades básicas de cada sujeito, assim, alterando suas condições de vida e, por 220


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conseguinte, a sua relação também com o Sistema Único de Saúde. A partir do Curso “Aprender a Empreender – Telessala Sebrae/Gestão Empresarial”, nascia então uma das ações mais exitosas daquele coletivo. Inicialmente a parceria envolvia a Federação de Umbanda e Candomblé Luz e Verdade do Estado de São Paulo e do Brasil, mas não foi estabelecida devido à baixa adesão do publico-alvo. Mudou-se de parceiro com a intenção de atingir o número de pessoas pactuado com o Sebrae. Dessa forma, contemplou-se o Terreiro de Umbanda Ogum Megê e Maria Francisca, dirigido por Mãe Dalva de Ogum, na região de Vila Matilde. A capacitação foi organizada pelo Grupo de Valorização do Trabalho em Rede, em consonância com a segunda meta do planejamento estratégico de 2005. Houve aceitação considerada “boa” pelo público-alvo, envolvendo 42 inscrições, sendo que o curso era destinado a 25 pessoas em cada sala de aula. Os excedentes ficaram para a segunda oportunidade. Dessa forma organizou-se um conjunto de oficinas para 22 pessoas, com carga horária total de 24 horas. A relação dos presentes reuniu: Adriana Maria dos Santos Belino; Ane Regina Adarillo Fernandes; Ângela Maria da Silva; Anselmo dos Santos Ferreira; Cícero Pablo dos Santos; Cleber Venâncio dos Santos; Dalva Venâncio dos Santos; Dalvina Rodrigues Bispo; Diego Aluisio da Silva; Eduardo Bernardo Ferreira; Elisângela Regina da Silva; Juliana Venâncio de Souza Paiva; Larissa Ariane dos Santos; Maria Aparecida Adarillo; Maria Cristina Silveira Prado Martins; Maria José Ramos da Silva; Rosemary Silveira Prado Coletti; Sheila Gomes Bemfica; Tiago Alberto Ignês Francisco; Vilma Aparecida da Silva. Essa parceria integrando alta quantidade de pessoas desempregadas possibilitou a cada sujeito membro da comunidade o aprendizado acerca dos aspectos socioeconômicos e, assim, a oportunidade de lidar positivamente com o seu dinheiro, para que se fizesse um bom investimento, contribuindo para que o sujeito não fosse mais um dos que aplica o seu dinheiro de rescisão de contrato trabalhista e fica sem fundo de reserva, ou mesmo sem nenhum capital, bem como os autônomos que não sabem lidar com o seu próprio negócio. Partiu-se da premissa de que o grande índice do desemprego está relacionado ao surgimento de maior quantidade de ambulantes e autônomos na praça do comércio e, ainda, que não ter acesso a dinheiro para viver com dignidade podia alterar as questões relacionadas ao processo saúde-doença e cuidado, tema que foi tratado mais tarde com abordagens geradas a partir do direito à saúde. Áurea Regina Silva e Sá, instrutora designada pelo Sebrae para atender à parceria com as comunidades tradicionais de Terreiro, considerou aquela uma inovação, uma vez que a instituição nunca havia lidado com a comunidade de Terreiro. Com a primeira etapa o pequeno grupo avançou para um novo curso, não previsto na agenda: “Juntos Somos 221


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Fortes”, que tinha como foco o diálogo entre patrões e empregados e a forma de administração desse diálogo. O final da etapa inicial concluiu-se com a entrega dos certificados e um almoço de confraternização, que contou também com uma análise sobre o curso, que resultou num projeto muito proveitoso e criou outras expectativas na comunidade, conforme avaliou o grupo. Com vista para a ampliação de parcerias estratégicas, o grupo seguiu seu caminho, agora em conjunto com outras instituições. A capacitação de multiplicadores do projeto “Mais Saúde na Comunidade” iniciou-se com um seminário que tinha como objetivo a sua apresentação. O intuito em participar do referido treinamento estava associado à necessidade de “qualificação” do conhecimento e de organização de parcerias, para ampliar as ações do GVTR, sobretudo no que tange à atenção à juventude. Realizou-se oito oficinas com o total de uma carga horária de 50 horas e um seminário onde se apresentaram os resultados iniciais. O projeto da Rede Social São Luiz foi desenvolvido e organizado em parceria entre a Associação Acorde – Oficinas para Desenvolvimento Humano; SAE DST/AIDS – Jd. Mitsutani; Senac; e Sociedade Santos Mártires. Essa capacitação ocorreu na AABB – Associação Atlética Banco do Brasil, em Vila Prel, Itapecerica da Serra. O projeto que apresentamos foi resultante da reorganização do projeto Jovens em Ação, desenvolvido pelo GVTR, em parceria com a Associação Centro de Mamãe Oxum, Pai Guiné e Caboclo da Pedra Branca, durante o processo de capacitação, pois, sabia-se da necessidade de qualificar o projeto “Jovens em Ação” e simplificar o diálogo com os jovens e adolescentes, que mais tarde gerou, a partir deles, o projeto “Fala Galera”. Esse projeto visava metodologicamente à realização de rodas de conversas com jovens e adolescentes em busca da oportunidade de expor as suas dúvidas relacionadas a temas diversificados em saúde ou outros por eles mesmos sugeridos. Para isso conectou-se os agentes multiplicadores de informação que compõem o quadro de agentes do GVTR, bem como profissionais da área de saúde e da área social em geral, e realizaram oficinas temáticas, no Terreiro. O projeto apresentado pelo GVTR foi muito bem aceito e possibilitou o debate sobre várias questões como, por exemplo, o caso de um médico, que queria saber como foi organizar um projeto com interfaces entre a saúde e a religião, já que ele entendia ser um diferencial. O Gaja foi, portanto, uma iniciativa que gerou grandes resultados, sobretudo por conta do envolvimento de cada sujeito a partir de seus próprios territórios.

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Atuação coletiva e desafios diante da necessidade de políticas públicas para a promoção da equidade A publicação de textos específicos para instrumentalização do público-alvo visando às alterações dos programas de atenção, educação e promoção da saúde, também demarcou importante espaço naquele cenário, sobretudo na cidade de São Paulo, que aglutinou a maior parte das ações. Aqui destaca-se ainda a falha relação com a imprensa escrita, televisiva e a mídia virtual, que colaboraram muito com a publicação de informações da mais alta importância, mas que não foram priorizadas no processo de estabelecimento de parcerias e relações institucionais. Ainda no que tange ao campo das parcerias, a distribuição do Boletim Fala Egbé, publicado por Koinonia, foi uma ação proposta pelo Grupo de Valorização do Trabalho em Rede que possibilitou maior trânsito de informações de relevância pública. Com isso, cada vez mais a diversidade étnico-racial tornou-se uma pauta articulada pelos atores e discutida nos diferentes espaços, possibilitando intenso debate, que indicava não apenas o tamanho da problemática, mas também os rumos a serem tomados no campo das políticas públicas6. Analisando o conjunto de Atas dos Encontros de Trabalho da Diretoria Executiva e Monitoramento do Planejamento Estratégico, coordenados pela administração do grupo, encontramos alguns recursos importantes que merecem atenção: no ponto de vista da gestão administrativa, os temas de que tratamos a seguir referem-se aos aspectos negativos e positivos do processo, pois eles foram elaborados e tomados como referências para ampliação das ações: • o papel e perfil dos prováveis parceiros não foram previamente discutidos, o que resultou na não realização de algumas das atividades previstas; • no que tange ao processo de capacitação de agentes multiplicadores, vale destacar a necessidade de ações contínuas e que façam link umas com as outras, além do acompanhamento dos parceiros. Ações pontuais nem sempre geram os frutos esperados pelos processos; • a política de comunicação e relacionamento com a imprensa deve ser pactuada interna e externamente, com os atores e com quem de direito, com vista para a melhoria da comunicação e do atendimento às diferentes realidades. Um único método não pode ser utilizado diante de tamanhas diferenças.

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proposição de políticas públicas depende de envolvimento e da articulação. É preciso entendimento e diálogo, pois, A se a comunidade não se encontra politicamente, não há como obter consenso e, consequentemente, esse fator altera a qualidade da política pública.

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• A necessidade de publicações e materiais específicos acabou por se fortalecer devido à ausência de recursos. • As ações estratégicas devem estar conectadas ao calendário temático, político e oficial e, programadas em concordância com as possibilidades existentes. Em não sendo assim, põe-se em cheque a qualidade do trabalho. • Eventos de grande porte devem “ser ou apresentar” resultados do trabalho de base e não ao contrário. Propõe-se que ações anteriores e posteriores estejam conectadas com os seminários planejados e inseridas na agenda. • Definir uma agenda de ações estratégicas divididas em (1) articulação política e (2) educação continuada pode oferecer riscos quando estas são executadas por um único sujeito e, condensadas num único projeto. Divisão e real comprometimento com as tarefas estão associados ao papel do gestor administrativo. • A agenda de ações a serem realizadas, não pode ser menor do que as participações em eventos externos. As atividades externas devem ser subsídios para o trabalho interno e colocado como ação complementar. • O conjunto de ações a serem desenvolvidas não pode perder de vista o seu real público alvo, pois, estas devem estar no topo da agenda; em não sendo assim, perde-se a lógica do planejamento, dada a ausência de pessoal específico. Esses fatores quando levados em consideração na elaboração do plano de trabalho do ano seguinte, fizeram com que o grupo se organizasse melhor, assim, o trabalho ganhou reconhecimento e, durante esse processo, ocorreram algumas conquistas da mais alta importância para o respeito e promoção dos direitos humanos nas mais diferentes instâncias. O GVTR teve seu trabalho reconhecido em âmbito nacional não só pela sociedade civil organizada, mas também pelo governo federal e o poder legislativo. Paralelamente várias autoridades também foram reconhecidas enquanto pessoas físicas, as quais muito contribuíram para o desenvolvimento humano. A lista reúne diversas homenagens: • Prêmio Paulo César Bonfim – 20 anos de luta contra Aids: Gapa – SP, ao Babalorixá Celso Ricardo de Oxaguián, na categoria Personalidade; • Prêmio Zumbi dos Palmares – Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. Novembro/2007; • Prêmio Ossaiyn – Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde; • Prêmio População Negra e Aids – O Brasil tem que viver sem preconceito/ Dezembro, 2005: Programa Nacional de DST-AIDS/Ministério da Saúde e 224


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Secretaria de Políticas para Promoção da Igualdade Racial da Presidência República. Para além do respeito do seu público-alvo e seus parceiros, o GVTR articulou ações inúmeras junto ao Governo do Estado de São Paulo, valendo-se da representatividade política, fator importante para a gestão participativa também no município. São eles: • membro suplente e, depois, titular da Comissão Municipal de DST-AIDS/ Conselho Municipal de Saúde-Secretaria Municipal de Saúde, entre 2003 e 2009, ocupando inclusive a coordenação da comissão entre 2006/2009; • membro titular da Comissão Municipal de Saúde da População Negra – Conselho Municipal de Saúde/Secretaria Municipal de Saúde, por quatro anos consecutivos; • membro do GT Religiões/Coordenação Estadual de DST-AIDS/SES São Paulo; • membro do GT Diversidade e Saúde do Polo de Educação Permanente – SES. Dessa forma, ao planejar o ano de 2006 foi indispensável à apreciação de todos as recomendações das comunidades tradicionais de Terreiro envolvidas nesse contexto e, novos atores foram inseridos e fortalecidos para a execução das ações. A parceria com o Sebrae é uma marca desse momento histórico.

Conclusões O trabalho desenvolvido no universo “religiões afro-brasileiras e saúde” nos dez anos de fundação do Grupo de Valorização do Trabalho em Rede consolidou-se em âmbito estadual e deixou marca sem igual na resposta à intolerância religiosa, ao racismo, ao preconceito e à discriminação. A possibilidade de transitar entre os diferentes espaços, fazendo pontes estratégicas entre sujeitos tão diferentes, qualificou, entre outras, a imagem do povo de santo no universo político, por exemplo. Assim, a marca impressa nesse processo não pode ser catalogada como produção única e exclusiva desse coletivo e, sim, de um considerável grupo de sacerdotes, sacerdotisas e seguidores das tradições de matrizes africanas, em parceria com outras lideranças comunitárias, políticas, ativistas, profissionais de saúde e pesquisadores que acompanharam a evolução do tema. 225


Religiões afro-brasileiras, políticas de saúde e a resposta à epidemia de aids

Assim, percebemos que o Grupo de Valorização do Trabalho em Rede pode ser considerado como tradutor, nas palavras de Hall (2006), pois os sujeitos envolvidos nesse processo possuem “fortes vínculos com seus lugares de origem e suas tradições, mas sem a ilusão de um retorno ao passado.” Tal aspecto explicita-se na introdução desse trabalho, mais especificamente por meio do depoimento acerca do processo histórico, onde se pontua as tensões no âmbito da cultura, bem como a busca ampla de mudança paradigmática. São notáveis os avanços, visto que essas ações vieram tapar uma profunda lacuna na área da saúde de forma a incentivar a cidadania, o desenvolvimento da comunidade de Terreiro, bem como a inclusão social dos sacerdotes e sacerdotisas das religiões afro– brasileiras. Esses passaram a frequentar espaços públicos nunca antes acessados por essa parcela da população que também não contava, até aqui, com o reconhecimento de seu trabalho realizado nas bases. Considerando que dogmas devem ser discutidos “por e com quem” de direito, o trabalho desenvolvido por esses atores ganhou cada vez mais qualidade, levando-os assim, a ampliar os seus horizontes sem perder de vista a necessidade de se fortalecer os sujeitos envolvidos no processo e ampliar o trabalho de forma quanti e qualitativa. Se esses diferentes sujeitos não pudessem contar constantemente com tais recursos, o trabalho ficaria inviável, pois a formação de novas lideranças aqui apresentada como uma necessidade prioritária acontece de forma continuada e deve contar com diferentes olhares, já que se dispõe a dar resposta a várias demandas. O ano de 2005 teve como marco um conjunto de momentos políticos determinantes para a continuação dos trabalhos. A tentativa sem sucesso de inclusão da medicina tradicional das religiões de matrizes africanas na pauta do SUS, em âmbito Municipal/ SP, via Área Temática de Saúde da População Negra da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo, a formação do Fórum Paulista pela Liberdade de Crença junto à Secretaria da Justiça e Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo e a realização da 2ª Edição do Prêmio Afroaids, durante o 2º Seminário de Saúde da População Negra do Estado de SP, estão entre eles. À luz das definições da Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde, por meio do 4º Seminário Nacional realizado em Belém do Pará (abril/2005), do 2º Seminário de Saúde da População Negra do Estado de São Paulo (maio/2005), realizado pelo Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra do Estado de São Paulo em parceria com a Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, a pauta discutida pela comunidade de Terreiro ganhou ampliação e efeito, visto que houve larga inclusão de temas a serem discutidos. O racismo institucional em saúde, por exemplo, configurou como pauta prioritária para além da intolerância religiosa. 226


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A realização de encontros e reuniões de caráter administrativo, durante esse período, aqui são apresentadas como parte importante do automonitoramento. A sociedade civil, sobretudo os beneficiados e parceiros da instituição, foi constantemente chamada a questionar a eficácia das ações para além da gestão. Metodologias, conhecimento técnico, desdobramentos do trabalho, aspectos políticos e administrativos marcaram as reuniões de Diretoria Executiva e Encontros de Trabalho para Monitoramento do Planejamento Estratégico (cf. conjunto de Atas de 2005), que teve os seus convites aceitos de forma proporcional. Tais atividades deixaram de ser reuniões fechadas, exclusivas da diretoria, para se transformarem em diálogo com a sociedade em geral, com vista para a eficácia do trabalho prestado. Isso significou um aumento considerável no trânsito de pessoas nos espaços deliberativos7 e garantiu, assim, a resposta aos problemas que se pretendia enfrentar. No terreno das articulações políticas, merecem destaque a representação do GVTR no Polo de Educação Permanente/Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, via GT Diversidade e Saúde, a participação ativa, no processo de realização da 13ª Conferência Municipal de Saúde via Conselho Municipal de Saúde, em que se pode contar com um religioso enquanto coordenador adjunto da conferência, fato inédito. Esse foi principalmente um momento importante na consolidação do controle social, a partir da participação do povo de santo na mesa de negociação e, sem sombra de dúvida, o instrumento prioritário e mais eficiente utilizado até dado momento. Em meio ao processo político da cidade e do Estado de São Paulo, tal atuação sinalizou mudanças positivas na agenda da saúde, por meio da participação popular. Isso não está necessariamente associado ao compromisso e comprometimento de muitos dos atores, porém, também esses estão com êxito em processo de sensibilização. Vale dizer que São Paulo, ao mesmo tempo em que promove ações de tal qualidade, abriga um constante conflito político que não só divide os mais diversos movimentos sociais como impede a sensibilização dos gestores públicos, inviabilizando as possíveis parcerias necessárias para o combate ao racismo e ao enfrentamento à intolerância religiosa. Por sua vez, Religiões Afro-Brasileiras e Saúde é uma pauta fascinante, promissora, mas que assusta no primeiro momento, pois impossível discutir tal tema sem que “eu me questione o quanto sou intolerante”. Ainda assim a experiência de tais lideranças agregadas ao poder do coletivo possibilitou o diálogo entre os diversos atores. Como pontuamos em nossa introdução, foram vários os aprendizados nesse caminhar acerca da concepção de saúde, laicidade e igualdade enquanto temas transversais.

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urante todo o processo o povo de santo foi questionado por seu Conselheiro Municipal de Saúde, que teve como D tarefa garantir a fala dessa população junto ao governo local. No âmbito da instituição não foi diferente. Assim, a comunidade de Terreiro teve a oportunidade de alterar o processo metodológico coordenado pela diretoria executiva.

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Aprendemos que somos obrigados a negociar sem perder de vista nossa identidade, pois somos obrigados a habitar e falar duas linguagens culturais e traduzir e negociar entre elas. Como exemplo, citamos anteriormente, ao tratar sobre iniquidades em saúde, que são ofertados serviços iguais a pessoas diferentes em nome da universalidade do sistema. Assim, são esses os nossos referenciais para a reorganização do Sistema Único de Saúde, a reforma do Estado e o avanço da democracia, considerando a necessidade de avançar na democratização da informação, na disponibilização de novas tecnologias e na correção das desigualdades históricas, em resposta à intolerância religiosa, ao racismo, ao preconceito racial, à discriminação, à xenofobia, à homofobia, ao sexismo e às intolerâncias correlatas.

Referências Bibliográficas SANTOS, Boaventura de Sousa (2001), “Para uma reinvenção solidária e participativa do Estado”, in Perreira, L. C. Bresser et al (org.), Sociedade e Estado em transformação. São Paulo: Editora Unesp. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006. LINDNER, L. Aids e Igreja: Conquistas e Contradições - a experiência do Brasil. Saúde Coletiva, Vol. 12, Núm. 3, 2006, pp. 124-128. Editorial Bolina. Brasil. SILVA, José M. Religiões Afro-Brasileiras e Saúde/Prêmio Ossain. Consulta ao site da PUC – RJ em Junho/2006. MONTEIRO, Celso R. Saúde Pública no Estado de São Paulo: Diversidade, Equidade e Direitos Humanos – Seminário de Saúde Pública/Direitos e Deveres das Religiões Afro-Brasileiras (Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo – 2004). KALCKMAN, Suzana. Apresentação oral no II Encontro Intermunicipal de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde, Junho de 2006. Auditório da Secretaria Especial de Participação e Parceria da Prefeitura do Município de São Paulo. XAVIER, Juarez de P. O papel decisivo das pesquisas para conhecimento dos valores ancestrais afrodescendentes. In.: Dimensões da inclusão no Ensino Médio: mercado de trabalho, religiosidade e educação quilombola – Ministério da Educação, dezembro de 2006. MONTEIRO, Celso R. A dança da doença com a saúde: contribuições das religiões afro-brasileiras para o processo de humanização da saúde pública, (2008). PIERUCCI, Antonio F. Bye Bye Brasil – O declínio das religiões afro-brasileiras no Censo 2000. In: Estudos Avançados 18 (52), 2004. GUIMARÃES, Marco A. C. e AUGRAS, M. Os Assentos dos Deuses: um aspecto da construção da identidade mítica no candomblé. In: Religião e Sociedade.

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Horizontalidade e cooperação no trajeto percorrido pelas comunidades tradicionais de Terreiro e sua rede

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Apresentação A visão de mundo da tradição afro-brasileira mostra que estar em equilíbrio é estabelecer uma relação de preservação e troca com as divindades, os ancestrais, as pessoas e tudo o que existe no universo. Para que o equilíbrio aconteça é necessário que mulheres, homens, pedras, rios, animais, florestas, mares e terra sejam bem-cuidados. Para os adeptos das religiões afro-brasileiras o corpo é a morada dos Deuses e por isso merece atenção especial no que diz respeito à saúde, possibilitando que voduns, inkices, orixás, caboclos e encantados possam continuar se comunicando conosco. Ter saúde significa, então, manter o equilíbrio do corpo por meio do fortalecimento da energia vital, proporcionando também a integração subjetiva e a inclusão social. Os Terreiros são os espaços de convivência onde essa visão de mundo se concretiza. São eles que constroem redes de sustentação coletiva capazes de produzirem mudanças positivas em relação à qualidade de vida dos seus integrantes. E os pais e mães de santo, líderes dessas comunidades, são as figuras que articulam esse saber e dão sentido aos conhecimentos ancestrais capazes de produzir a cura e a prevenção de males em geral. A demanda apresentada pelas comunidades de Terreiro configura a necessidade da ampliação de um debate público, reunindo os diferentes atores, para juntos darem resposta

1 Sacerdote do Asé Igbin de Ouro – foi coordenador da Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde em São Paulo, entre 2003 e 2008. Contatos: montcelso@yahoo.com.br


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à intolerância religiosa, filha dileta do racismo. Sabe-se que as experiências obtidas com parcerias firmadas entre o Sistema Único de Saúde – SUS e as Religiões Afro-Brasileiras podem gerar possíveis conexões entre a medicina tradicional de matriz africana, intensificada na cultura dos Terreiros e acentuada pela diversidade étnica que vem falar de corporalidade, sexualidade e negritude, por exemplo, a partir de uma visão de mundo diferenciada, com a medicina ocidental, sem que elas sejam substituídas. Não é de fitoterapia que estamos falando e sim de uma cultura étnica, milenar, pautada pela diversidade, pelos valores, respeitos e costumes de um povo. A saúde pública está pautada oficialmente no desenvolvimento biológico e na visão técnico-científica, quando atenção à saúde é uma questão cultural e educativa, em que as relações humanas e sociais são ou não acentuadas pelo racismo e as diversas manifestações de preconceitos e intolerâncias correlatas. A Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde criada em março de 2003, durante o 2º Seminário de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde na cidade de São Luís do Maranhão, tem como objetivo promover a saúde do povo de santo e valorizar o conhecimento das práticas terapêuticas dos Terreiros. A criação da rede é produto da organização coletiva dos Terreiros por meio do projeto Ato – Irê, no CCN/Centro de Cultura Negra do Maranhão. Trata-se de um produto concreto, que consiste em aproximar os Terreiros ao SUS, para realizarem ações conjuntamente. Durante as discussões do 2º Seminário, houve um refinamento dessa proposta, que acabou por se tornar uma exigência das mães e pais de santo e adeptos das religiões afro-brasileiras, profissionais de saúde, pesquisadores e lideranças do movimento negro de vários Estados do Brasil que estavam presentes. Quando a Rede nasceu, a intenção era não só promover a informação sobre a nossa relação com a medicina ocidental, mas principalmente valorizar os pais e mães de santo como as pessoas que são portadoras de informações relacionadas a práticas terapêuticas ancestrais e que dedicam a sua vida a cuidar dos seus filhos em todas as dimensões da saúde, seja ela física ou mental, para que a religação espiritual seja possível. Desde a sua criação, em 2003, a adesão de pais e mães de santo, diversos profissionais do Sistema Único de Saúde, sejam municipais, estaduais ou federal, e integrantes de ONGs ampliou-se consideravelmente no País inteiro. Eram 20 Estados envolvidos nessa empreitada, conta essa alterada com a realização da 8ª edição do Seminário Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde, realizado em Piauí, e no 1º Seminário Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Novas Tecnologias da Saúde, em Rondônia, ambos no primeiro semestre de 2011.

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São Paulo: atuação plena com participação e controle A forma de atuação do Grupo de Valorização do Trabalho em Rede, aliada ao Ato – Ire, que realizava oficinas sobre saúde e cidadania, e a inserção desses temas na tradição afro-brasileira, foram, juntas, transferidas para a Rede com o objetivo de capacitar mais pessoas e obter efeito multiplicador. O acordo coletivo firmado pelos religiosos era que o importante na rede seria multiplicar o número de pessoas comprometidas com a promoção da saúde para uma atuação em que os diversos segmentos das tradições afro-brasileiras pudessem estabelecer elos permanentes e, assim, fazer pressão conjunta para obter resultados concretos e significativos. Essa rede foi organizada para ser um espaço de relações saudáveis, baseadas no respeito, na solidariedade e na união por um bem comum, tendo essas questões como princípio. O modelo de gestão dos Terreiros, por fim, veio à tona em sua ampla diversidade. Em São Paulo, para que a rede funcionasse plenamente era preciso que ela fosse uma organização horizontal, organizada com base nos Terreiros que estavam em cada município. Cada núcleo é coordenado por uma liderança que junto ao coletivo articula as questões variadas olhando para a eficiência do Sistema Único de Saúde local. Os coordenadores de diferentes Estados e municípios encontram-se anualmente no seminário nacional, organizado pela Secretaria Executiva da rede, sediada na cidade do Rio de Janeiro, e, ao longo do ano, contribuem para com o intercâmbio, troca de informações, conhecimento e convites que mantêm a rede viva e atuante, junto deles e dos demais. Cada núcleo organiza-se com a flexibilidade necessária em torno da agenda que eles mesmos constroem, visando às respostas dinâmicas e flexíveis de acordo com as questões de cada região. O espaço de encontro e a realidade em questão é a do Terreiro, que nunca é igual ao do vizinho, ou tem a mesma história para contar meses depois. Assim, provou-se que horizontalidade não pode ser somente uma palavra e sim uma prática constante. O respeito à parceria é o fundamento que garante a continuidade da rede, pois o bem comum, portanto, só é alcançado quando os participantes podem expressar e compartilhar seus valores e crenças sem preconceito, intolerância ou discriminação, seja de raça, sexo ou orientação sexual. Os participantes atuam de forma voluntária, não considerando esse trabalho apenas mais um e, sim, como uma ação que vai facilitar e potencializar o que já se faz. Isso vale, sobretudo, para as organizações que desenvolvem ações comunitárias, muitas vezes sem financiamento. Uma rede só existe enquanto está em movimento e produz resultados a partir de suas iniciativas. Ninguém é obrigado a entrar ou permanecer nela, mas uma vez que venha a aderir, a participação efetiva é o 233


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que garante os benefícios a seus integrantes. A estrutura básica de uma rede deve ser horizontal, isto é, sem hierarquias nem chefe. A liderança na verdade é dada pelo resultado das iniciativas, que por vezes é individual e compartilhado. A informação deve circular livremente, partindo de todas as direções e alcançando todos que dela façam parte. No Estado de São Paulo a rede foi criada envolvendo quatro núcleos no primeiro momento: Cidade de São Paulo, Piracicaba, São Roque e Diadema, a partir da presença de lideranças religiosas e profissionais de saúde na oficina de capacitação realizada no Rio de Janeiro, que gerou o Atagbá – Guia para promoção da saúde. Esse foi um processo que desencadeou o início de um trabalho conjunto e diferenciado no Estado de São Paulo, muito embora os temas e as demandas já fossem parte do cenário. Aqui, foi possível aprender a lidar com as necessidades em saúde do povo de santo, a partir de diagnósticos construídos por esses mesmos sujeitos, que, aliado a isso, construiu o seu próprio plano de ação. O passo seguinte foi buscar pelos outros e assim, o saudoso Toy Vodunnon Francelino de Shapanan, sacerdote da Casa das Minas de Toiyá Jarina abriu espaço na programação do Seminário de Tradições e Culturas Afro-Brasileiras, realizado pelo Intecab São Paulo, em São Bernardo do Campo, no Terreiro do também falecido Tatá Pérsio de Xangô. Aquele não apenas foi um momento importante para dialogar com os demais, como foi também o reencontro desse grupo, o que ajudou muito no fortalecimento do processo. Esse ritmo se manteve e logo se cogitou a conexão constante desse grupo no Estado e sua ampliação. Dessa forma, em 2005, no 1º Seminário Paulista da Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde, realizado a partir da parceria entre o Grupo de Valorização do Trabalho em Rede e o Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra do Estado de São Paulo, oficializou-se a criação do Núcleo Estado de São Paulo. Entre 2004 e 2006, 20 municípios foram inseridos em um processo de sensibilização, a partir de um sistema coordenado pelo Grupo de Valorização do Trabalho em Rede, que contou com tecnologias e esforços também enviados pelo extinto PCRI – Programa de Combate ao Racismo Institucional, conduzido pela professora dra. Fernanda Lopes, no governo britânico, junto às agências bilaterais. Em cada município a relação dos Terreiros com a gestão é colocada de forma muito diversificada, o que gerou a ampliação do debate sobre a possiblidade de atuação conjunta. O núcleo São Paulo – Capital, tinha facilidade no acesso ao Governo do Estado (o que foi levado em consideração no campo das facilidades) e tal possibilidade foi usada no intercâmbio entre os núcleos e a articulação desses Terreiros com o governo local, gerando finalmente um diálogo com a Secretaria Estadual de Saúde, o que mais tarde resultou na composição do Comitê Técnico de Saúde da População Negra. 234


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A Secretaria Executiva da Rede, por sua vez, sobre a responsabilidade de José Marmo da Silva, não estava “amarrada” ao núcleo Rio de Janeiro. Muito embora fosse essa cidade a sede oficial, por vezes provocou a Rede a pensar sobre suas próprias estratégias político-educativas e tirou de casa várias dessas lideranças para que conhecessem outras realidades, prática essa que foi interpretada como investimento no grupo. Esse conjunto de estratégias garantiu a interlocução necessária entre os sujeitos, de forma que ela ocorresse independentemente, atingindo, assim, os objetivos, princípios e critérios estabelecidos no processo que era local e simultaneamente global.

Construção dos laços para atuação em rede: estratégias para o desenvolvimento do trabalho comunitário Ao longo do tempo, a Rede estabeleceu em São Paulo parcerias importantes com: Coordenação Estadual de DST/AIDS de SP; Secretaria Municipal de Saúde – Prefeitura de Piracicaba; Secretaria Municipal de Saúde – Prefeitura de Suzano; Secretaria Municipal de Cultura – Prefeitura de Suzano; Comitê de Humanização da Secretaria de Estado da Saúde de SP; Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra do Estado de São Paulo; Coordenação da Política Nacional de Humanização do Ministério da Saúde e o Programa de Combate ao Racismo Institucional-UK. Para estruturar essa articulação o GVTR conduziu um processo de trabalho que alimentasse a Rede a partir de uma organização comunitária capaz de fazê-la transitar por vários espaços de forma conectada e descentralizada. Conduzir a Rede com eficiência implicava não somente conhecer outros modelos, como a Rede Nacional de Pessoas Vivendo com Aids, a Abong, a Rede Cooperasus, a Rede Humanizasus, a Articulação de Organizações das Mulheres Negras do Brasil, a Rede do Terceiro Setor, a Rede Ghandi, mas, sobretudo, buscar nos valores das tradições de matrizes africanas os elementos necessários para o desenvolvimento de um bom trabalho. Dessa forma, apostou-se em instâncias e conexões, tal como podemos ver abaixo:

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Jornada da Rede: avaliação e planejamento & Encontros de núcleos

Seminários municipais & Reuniões de núcleos

Seminário Paulista da Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde

Para essas instâncias pactuaram-se competências a partir do seminário nacional organizado pela Secretaria Executiva da Rede, ocasião em que se escolhe qual a cidade sede do seminário seguinte. O seminário contribui para que as pessoas pudessem acompanhar o avanço do tema no cenário nacional. São Paulo e Piracicaba apresentaram suas candidaturas ao longo do tempo, mas não ganharam em função das amplas necessidades presentes nos cenários das regiões norte e nordeste. Questões relacionadas ao cenário internacional e aos problemas locais também se tornavam parte da programação desse seminário e, assim, as lideranças voltavam para seus locais de origem munidas de informação para o desenvolvimento das ações em seus territórios. Com esse material, realizavam-se vários eventos: a. Seminário estadual: espaço propositivo, de pactuações, monitoramento e avaliação de programas, políticas e outras ações governamentais, dedicado ao diálogo entre as comunidades de Terreiro, os movimentos sociais, os gestores, pesquisadores, profissionais de saúde e áreas afins, no que se referia à atuação do governo do Estado de São Paulo. b. Seminários municipais: espaço de articulação das comunidades de Terreiro no âmbito municipal. A missão era alimentar, pautar, demandar, responder e reportar-se ao seminário estadual, monitorando as ações locais promovidas pelas prefeituras. Com o objetivo de que os seminários municipais fossem resultados 236


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das reuniões locais de cada uma das cidades componentes da Rede e que se dedicasse em, prioritariamente, às questões relacionadas ao desenvolvimento da cidade, para que essas experiências fossem socializadas e retroalimentadas pela Rede no Estado de São Paulo. c. O Encontro de núcleos era uma instância política da rede para organização interna acerca de seu planejamento, visando à avaliação contínua de seus passos, à articulação e ao fortalecimento dos diferentes atores em cada uma das cidades membro, promovendo e incentivando o diálogo, a devolutiva e o trabalho conjunto no Estado de São Paulo. d. A Jornada da Rede tornou-se um evento específico no Estado de São Paulo, que visava à avaliação e planejamento global dessas articulações. Pautava-se a agenda política e conceitual da Rede em âmbito estadual e para seu pleno desempenho, o método recomendado era o uso de check-list, primando pela avaliação por meio de perguntas como: O que foi pactuado? Para ser executado por quem, quando, como? Quais os resultados esperados e obtidos? Quais os presentes nos referidos atos do grupo público-alvo? Qual o alcance e a amplitude do grupo? Como foi o processo de tomada de decisões (internas e externas à Rede)? No universo mais amplo, participamos efetivamente do quê? Quais as parcerias, apoios, financiamentos e resultados obtidos? Catalogando resultados na linha do tempo que esse processo gerou, é possível contabilizar: 1. 1º Seminário Paulista da Rede/Dezembro de 2005 – São Paulo, Hotel Excelsior: realizado pelo GVTR – Grupo de Valorização do Trabalho em Rede, em parceria com o Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra do Estado de São Paulo. Resultou na criação do Núcleo Estado de São Paulo da Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde e na reflexão sobre o Sistema Único de Saúde comparado a experiências da América Latina, além de abrir diálogo com a Organização Pan-Americana de Saúde – Escritório de Washington; 2. 2º Seminário Paulista da Rede/Novembro de 2006 – Memorial da América Latina – Seminário “Superando o Racismo“, do Governo do Estado de São Paulo, realizado pelo GVTR, em parceria com o Conselho de Participação e Desenvolvimento da 237


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Comunidade Negra do Estado de São Paulo. Proporcionou o diálogo entre a Rede e a Secretaria de Estado da Saúde. O evento recebeu apoio do Ministério da Saúde via Programa Humanizasus e do PNUD/Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, gerando a ampliação da Rede em São Paulo; 3. 3º Seminário Paulista da Rede/Outubro de 2007 – São Paulo/Universidade Cidade de São Paulo, realizado pela Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde com apoio do Ministério da Saúde/Humanizasus, do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, e o Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra do Estado de São Paulo/Secretaria de Relações Institucionais. Resultou na consolidação e descentralização da Rede no Estado de São Paulo; 4. 4º Seminário Paulista/Piracicaba em 2008, em parceria com o Siemaco – Piracicaba e Região, com apoio da Secretaria Municipal de Saúde de Piracicaba e a Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, contribuiu com o monitoramento do Plano Estadual de Saúde 2008/2011, a avaliação do Programa Estratégico População Negra e Aids do Ministério da Saúde e a ampliação do debate sobre o reconhecimento dos Terreiros como núcleos de promoção a saúde na construção da Política Nacional de Atenção à Saúde da Integral da População Negra. O evento contou ainda com uma prévia: o Seminário de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde da Baixada Santista, organizado pela Rede – núcleo Costa da Mata Atlântica (Praia Grande, Bertioga e São Vicente); 5. 5º Seminário Paulista, em 2009, na cidade de Bragança Paulista, para avaliação interna da Rede, além do monitoramento do Plano de Estadual de Saúde/SES e da Política Nacional de Atenção integral à Saúde da População Negra, com apoio da Secretaria Municipal de Saúde de Bragança Paulista/Programa de Aids e Atenção Básica, além de apoio técnico da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo. Aprendeu-se com esse denso processo que, para o planejamento das ações, é fundamental que o grupo considere fatores primordiais para a coletividade. A saber: presença nesse ato, realidade dos municípios de cada um dos membros, dificuldades, desafios e fortalezas de cada cidade – núcleo/pessoa; responsabilidades, parcerias, etc. Os pontos focais das várias cidades passaram a ajudar a construir os seminários estaduais, visando ao empoderamento das lideranças locais, à troca de experiência, à articulação entre os 238


Celso Ricardo Monteiro

diferentes atores e à contínua soma de esforços, além da articulação entre as comunidades de Terreiro e os gestores locais. Desses espaços saíam proposições que alimentavam a Rede em âmbito local, regional e estadual, de forma que se tinha em contínua avaliação o plano de trabalho das cidades casado com o planejamento do todo. A responsabilidade pela condução do Encontro de núcleos cabia ao Colegiado de Pontos Focais, criado em 2007 a partir da necessidade de um espaço deliberativo de tomada de decisão entre os membros da Rede. O colegiado, formado por representante de cada uma das cidades, atuava com duplas para que os atores pudessem trabalhar de forma descentralizada nos espaços predeterminados. Nos Encontros de núcleos davam-se também a revisão dos métodos, agendas e nomes indicados pelo conjunto das comunidades e membros da Rede, com vista para a eficácia do controle social das políticas públicas. O Encontro de núcleos pautava-se em questões globais da política, considerando a importância da territorialidade, dando ênfase às questões diretamente ligadas às políticas municipais, regionais e estaduais e, por vezes, teve que opinar no cenário nacional em função do grau de importância daquele momento político ou assunto em questão. Os encontros versavam sobre temas que estavam na agenda do dia, nos três níveis de governo, para aproximar as pessoas desses cenários. A indicação de pessoas para representar a Rede em outros espaços também era compreendida como algo constante e necessário, atrelado à ideia de que o poder de decisão não era dos indivíduos e sim de todo o coletivo. Essa era uma prática cada vez mais incentivada e estava associada à devolutiva constante das ações por todos os métodos possíveis, mas, principalmente em reuniões presenciais, que se apoiavam também no uso do grupo virtual e do blog organizados pelo Grupo de Valorização do Trabalho em Rede para ajudar nesse processo. Dessa forma, os pontos focais eram as referências da rede para a região, visando, assim, a apoiar outros atores na perspectiva da formação de novos núcleos, como aconteceu na relação entre Bragança Paulista e Atibaia, ou na parceria criada pelo Asé Afojidan em Piracicaba com os Terreiros de Campinas. A Rede, entre 2004 e 2008, organizou-se de tal forma que sua densa lista de referências reunia: 1. São Paulo – capital; 2. São Bernardo do Campo; 3. Peruíbe; 4. São Vicente; 5. Bertioga; 6. Praia Grande; 239


Religiões afro-brasileiras, políticas de saúde e a resposta à epidemia de aids

7. Mongaguá; 8. São Roque; 9. Arujá; 10. Diadema; 11. Suzano; 12. Santa Isabel; 13. Piracicaba; 14. Limeira; 15. Campinas; 16. Hortolândia; 17. Bragança Paulista; 18. Pirassununga; 19. Taubaté. A criação da rede possibilitou a promoção de diálogos e articulações para a garantia do direito à saúde, resultando em várias ações em rede nas regiões de São Paulo, Costa da Mata Atlântica, Vale do Ribeira, Piracicaba e Bragança Paulista, o que outorga a ela o lugar de proponente eficaz, com resultados eficientes a partir de uma articulação exitosa.

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Candomblé e novos desafios: Terreiros, agências sociais e saúdes1

Estélio Gomberg2 Ana Cristina de Souza Mandarino3

Historicamente as religiões de matrizes africanas no Brasil ocuparam/ocupam um espaço de solidariedades que pode ser percebido em diversos níveis, seja em razão de problemas de ordem material ou espiritual, com distintos sujeitos sociais, ampliando dessa forma, suas funções além daquelas meramente religiosas. Os Terreiros de candomblés e demais espaços são historicamente concebidos como espaços de resistência para manutenção das tradições religiosas negro-africanas e se mostram também como espaços propícios para a luta contra diversas formas de discriminação registradas e sofridas pelos negros ao longo dos anos da constituição da sociedade brasileira (CONCONE, 1987; SODRÉ, 1988). Consideramos que a instituição dessa nova modalidade religiosa surgida no Brasil como uma (re)elaboração de rituais africanos, polariza e faz vibrar não apenas a vida religiosa do grupo, mas também a vida social por meio de uma ética peculiar alicerçada em uma tradição oral além de processos de socialização particulares, enfim, tudo que um espaço de defesa – o Terreiro de candomblé, por exemplo – conseguiu manter e preservar da cultura negra (RABELO, 2008). Posteriormente, a partir da luta dos movimentos sociais que tomam impulso após o movimento pela democratização do País, especialmente, a partir da década de 1970, consolidando-se nos anos 1980, os vários movimentos de valorização da cultura e da

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ste artigo é oriundo dos estudos: “Análise de Itinerários Terapêuticos em Candomblé do Estado de Sergipe”, aprovaE da no Edital MCT/CNPq/MS-SCTIE-Decit nº 026/2006” e “Encontros Terapêuticos no Terreiro de Candomblé Ilê Axé Opô Oxogum Ladê, Sergipe/Brasil”, com recurso de Bolsa de Demanda Social da Capes, aprovado no Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Saúde Coletiva, Ufba, em 2006.

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rofessor adjunto I da Universidade Estadual de Santa Cruz (Uesc), Bahia e pós-doutor (bolsista Fapesb pós-doc I) em P Ciências Sociais, Universidade Federal da Bahia (Ufba). E-mail: estelio68@gmail.com

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rofessora visitante da Universidade Estadual de Santa Cruz (Uesc), Bahia, doutora em Comunicação e Cultura, UniP versidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). E-mail: anamandarino@gmail.com


Religiões afro-brasileiras, políticas de saúde e a resposta à epidemia de aids

religião negra ou (afro-brasileira) – os espaços-Terreiros – passam a adquirir outras configurações a serem pensadas pelos estudiosos e adeptos como espaços de militância social e de preservação religiosa em frente a questões socioeconômicas da sociedade nacional. Da mesma forma, vão se reestruturar para atuar como possíveis espaços promotores de assistência social, tanto para adeptos como para as comunidades adjacentes (LOYOLA, 1984; FREITAS, 2002). Obviamente, o que a princípio foi pensado como uma agenda social aos poucos vai se transformando em um espaço de discussões políticas. Contudo, pode-se notar que por trás do interesse de bem-estar da comunidade, encontram-se embutidos vários mecanismos de legitimação social e promoção social, para os líderes religiosos e mesmo para o próprio Terreiro de candomblé. Concomitantemente, as religiões afro-brasileiras, de forma geral, tornaram-se temas de preferência para estudos acadêmicos em diversas áreas de conhecimentos. O volume de material produzido por elas logo ganha as ruas, burlando os espaços acadêmicos e fazendo parte das discussões de vários agentes religiosos, os quais adquirem poder e autoridade e, muitas vezes, fazem um caminho inverso ao dos pesquisadores na compreensão e explicação de fenômenos registrados nos Terreiros. São esses atores sociais que vão buscar explicações mais cabíveis e legitimar essas obras em temas acerca da estrutura dos rituais, da confirmação de mitos e comportamentos compatíveis à tradição às quais esses estariam ligados ou até mesmo no tocante a forjar uma tradição (GOMBERG, 2011; MANDARINO, GOMBERG, 2009). Cabe atentar e apreender sobre as alianças e os interesses, nas possíveis posições, a serem adquiridos pelos diversos sujeitos sociais envolvidos no processo de pesquisa, em que as lideranças religiosas, na maioria, foram encaradas por muito tempo como portadoras de um discurso marginal, de exclusão. Tal discurso então passa a ser ressemantizado em falas de “preservações sociais” e de “descobrimentos religiosos”, culminando assim em novas reconstruções de uma identidade afro-brasileira ou afrodescendente, onde, em alguns contextos, o “acadêmico de dentro” ou indicado para futuramente “ser de dentro” torna-se porta-voz dos egbés, “territórios negros”, espaços sagrados para a sociedade, em uma acepção mais geral do termo. A consolidação do referido processo, no entanto, por vezes se faz por meio de discursos individuais, monológicos, sem consultas ao coletivo acerca das expressões e dos conteúdos de suas falas e escritas, seja em espaços acadêmicos ou não acadêmicos em diversas linguagens. Em situações similares, gestores públicos, em posturas individualizantes, com intuito de aferir processos de sensibilizações e de capacitações com os “de dentro”, propõem, com recursos nacionais e até internacionais, atividades sem significân242


Estélio Gomberg Ana Cristina de Souza Mandarino

cia, como, por exemplo, algumas iniciativas com o intuito de estruturar e institucionalizar programas de saúde da população negra ou de religiosidades e saúde nesses espaços. Outro problema que vem se tornando corriqueiro diz respeito ao fato de alguns atores sociais acabarem buscando para si uma legitimidade que esses possuem apenas parcialmente. Ao serem indagados pelas futuras instituições parceiras como um “de dentro”, alguns desses de fato não o são, pois apenas foram“apontados”por um orixá para virem a ocupar um cargo ou não no futuro. Essa dualidade de papéis, por vezes, é capaz de gerar embaraços para a comunidade, que, acuada pela necessidade do recurso que muitas vezes vem solucionar outros problemas, como pagamento de contas públicas em atraso ou a dissolução das sobras do recurso para alguns membros em situação de risco eminente, acaba por aceitar a interferência desse “outro” de fora/dentro. É necessário, sim, despertar a atenção e a sensibilidade de pesquisadores e de gestores de diversos campos para os espaços religiosos, plurais, como locais que possuem várias oportunidades de realizações coletivas na promoção e na efetivação de práticas e de saberes de saúde e do exercício de cidadania real, como proposto por diversos autores (DA ROSA, 2002; VALLA, 2001; VASCONCELOS, 2006; GOMBERG, 2008). *** Transformados em espaço acadêmico e de militância social, os Terreiros de Candomblé configuram-se em territórios referenciais para se pensar, refletir e preservar as expressões religiosas afrodescendentes. Destinados originalmente à população negra e seus descendentes, como símbolo de preservação de costumes das culturas africanas na diáspora, estes gradativamente se tornam espaço para os mais distintos sujeitos sociais e seus interesses para além de religiosos. As religiosidades de matrizes afro-brasileiras, historicamente, deixaram de ser exclusivas de seu grupo de origem – escravos negros e descendentes – e tornou-se “aberta a todas as raças, classes sociais, gêneros e estilos de vida”(SILVA & AMARAL, 1994). Dessa forma, veio a ultrapassar “as barreiras de cor, de classe e, ultimamente, as barreiras geográficas, na medida em que atraem também não negros e não permanecem restritas ao território nacional, tornando-se hoje, portanto, religiões interétnicas, transclassistas e transnacionais” (ORO, 1993), no que tange ao processo iniciático ou atendimento terapêutico. Além das barreiras geográficas, os Terreiros de candomblé ocupam contemporaneamente um espaço virtual, sem barreiras físicas por diversos meios, fóruns e linguagens configurando uma nova rede de sociabilidades entre adeptos (e não adeptos) e ocasio243


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nando, além de religiões hipertextuais, uma nova configuração onde o Terreiro físico é substituído pelo “Terreiro virtual”, e, preconizando a lógica das informações em textos e imagens, vai repercutindo direta e paulatinamente na interação e no aprendizado vivencial e físico (FREITAS, 2010). Os Terreiros considerados no processo de democratização do País como territórios de resistência à cultura hegemônica vão se transfigurar em espaço de atividades sociais múltiplas – através da parceria com organizações não governamentais (na maioria, ligadas ao “movimento negro”) – com orientações acerca dos direitos e de cidadania, possibilitando os processos de ascensão social e construindo um diálogo com a sociedade. Enquanto agências sociais, os Terreiros de candomblé vão buscar financiamentos nacionais e internacionais para a implantação de ações socioculturais, visando a possibilitar melhorias na qualidade de vida de seus “filhos de santo”, assim como na de moradores não adeptos e das comunidades adjacentes. Tal conduta amplia as noções de solidariedades e de relações interpessoais que cotidianamente são desenvolvidas nesses espaços, elaborando uma nova configuração dos modelos de solidariedade comunitária interna e externa. Freitas (2005), ao discutir o papel das religiões afro-brasileiras no processo de globalização, aponta para uma distinção dessas atividades dos Terreiros em relação às praticadas pelas demais religiões, pois “Os projetos desenvolvidos nos Terreiros diferenciam-se, pois, dos projetos realizados por outras instituições religiosas já no princípio de utilização do espaço físico, que é sempre sagrado. No mais das vezes, esses projetos são desenvolvidos dentro dos salões de danças, os barracões. Nesse sentido, o espaço Terreiro mais uma vez funciona com espaço integrador, tanto lugar para dança sagrada como para aula de prevenção DST/AIDS, por exemplo”(FREITAS, 2005, p. 15).

Essas atividades e os financiamentos que estavam embutidos nas ações sociais acabavam por proporcionar às comunidades religiosas um status de instituições que promovem o voluntariado. Até então as atividades desenvolvidas por vários Terreiros, de forma geral, eram restritas às festas religiosas e centradas na distribuição de “comidas do santo” nessas ocasiões, ou, ainda, na distribuição de cestas básicas. Essas ações foram vistas durante muito tempo por algumas lideranças religiosas “como uma ação eficaz” capaz de estabelecer uma relação de parceria com as comunidades adjacentes ao Terreiro, acreditando que, dessa forma, conseguiriam incrementar um diálogo de proteção, visto que a maioria de seus templos encontra-se em áreas de risco social nas mais diversas cidades do País. 244


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Outra configuração social exposta por essas ações pelos/nos Terreiros foi colocar em xeque um modelo unitário e unificado de pensar e de agir no que tange à criação de uma identidade negra, sustentando a ideia de que a religiosidade funcionaria como uma estratégia de organização e resistência social. Contudo, novas e “velhas” manifestações culturais negras, de várias partes do País e das periferias dos centros urbanos nacionais e internacionais, apontaram modelos possíveis de fazer e ser que não se restringem a uma única identidade, mas de várias identidades negras por meio da produção corporal, de musicalidades, entre outros (SANSONE, 2003). O que se tornou imperativo nos espaços religiosos afro-brasileiros é o estabelecimento de estratégias de organização voluntária, com vista a buscar legitimidade na sociedade mais ampla, mostrando que eles podem ser “instituições sérias”; agências sociais capazes de preencher o tempo ocioso de adolescentes na promoção de uma cidadania, cujos discursos recorrentes, reprodutivos da hegemonia, apontam que esses grupos, excluídos do processo social, se não forem assistidos corretamente se encaminharão para a marginalidade. Contudo, apesar de no interior desses espaços religiosos existirem como prática social legitimada por toda a comunidade a valorização social de pessoas de idades cronologicamente avançadas, algumas consideradas pela comunidade como “egbom”, (pessoas já iniciadas a muito tempo), raramente registramos projetos sociais direcionados a esse grupo etário, reproduzindo em parte a invisibilidade e a estigmatização social – embora o detentor de grande conhecimento seja um velho – desse na sociedade mais ampla. Em dias atuais, esses espaços religiosos defrontam-se com diversos desafios na sua manutenção, entre eles, a busca do equilíbrio entre a tradição e a modernidade. Como manter as tradições, os valores do grupo e uma organização social que se estrutura na hierarquia religiosa, especialmente no awo (segredo) dos saberes e das práticas e, ao mesmo tempo, estar aberto para a sociedade, para as comunidades adjacentes com ações de voluntariado que são realizadas no espaço sagrado e, na sua maioria, também envolvem “pessoas do axé”, organizações de eventos socioculturais e até técnico-científicos e, ainda, atentando sua sustentabilidade socioeconômica na implementação de projetos sociais com cunhos de preservação cultural e geração de renda? Alguns exemplos sobre essas iniciativas podem ser vistos no Estado da Bahia, nos Terreiros Ilê Axé Opó Afonjá, que mantém a Casa do Alaká (confecção de panos da costa africanos) e projetos sociais envolvendo as crianças da comunidade, além da Escola Municipal Eugênia Ana dos Santos – Mãe Aninha; no Terreiro São Jorge Filhos da Gomeia, que mantém um ponto de cultura e atividades lúdicas educacionais, e o Espaço Cultural Vovó Conceição, funcionando no Ilê Axé Iya Nassô Oká (Terreiro da Casa Branca). Nesse último espaço religioso referido foram registradas aprovações de candidaturas de projetos sobre restauros em Editais do 245


Religiões afro-brasileiras, políticas de saúde e a resposta à epidemia de aids

Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (Ipac) nos anos de 2009 e de 20104, apontando uma direção interessante da postura ativa e parceira no processo da política de patrimonização no Brasil, superando a dimensão do senso comum do “engessamento patrimonial” e clientelista nesse campo. São questionamentos que requerem reflexões críticas que ampliem o “calor das discussões” entre a modernidade, as políticas públicas, as novas tecnologias, as estratégias de preservações sociais e religiosas, conjuntamente com as divulgações para as possibilidades de amenizações dos estigmas vigentes e conhecimentos sobre a própria religião, sendo, contemporaneamente, utilizados diversos meios de comunicação e linguagens nas disseminações de práticas e de saberes. *** No que tange ao campo da saúde em particular, a Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde foi organizada durante 2º Seminário Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde, em 2003, que visou, principalmente, à promoção de saúde dos praticantes das religiões afro-brasileiras, articulando adeptos (lideranças religiosas e filhos de santo), lideranças comunitárias, gestores e profissionais de saúde, comunidade acadêmica e movimentos sociais em geral, contando, atualmente, com 136 Terreiros, 49 organizações não governamentais e 18 órgãos públicos (SILVA, 2007). A iniciativa em questão foi planejada para ser um fórum de debates e ações e, especialmente, para estimular e consolidar atividades de promoção de saúde nos espaços das religiões afro-brasileiras, assim como para estabelecer um diálogo mais amplo com a sociedade em geral nas questões referentes a políticas públicas de saúde. Nesse sentido: “A rede tem como objetivos lutar pelo direito humano à saúde; valorizar e potencializar o saber dos Terreiros em relação à saúde; monitorar e intervir nas políticas públicas de saúde exercendo o controle social; combater o racismo, sexismo, homofobia e todas as formas de intolerâncias; legitimar as lideranças dos Terreiros como detentores de saberes e poderes para exigir das autoridades locais um atendimento de qualidade em que a cultura do Terreiro seja reconhecida e respeitada; estabelecer um canal de comunicação entre os adeptos da tradição

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s projetos contemplados são “Restauração da Coroa de Xangô do Terreiro da Casa Branca” e “Casa de Oxóssi do O Ilê Axé Iyá Nassô Oká (Casa Branca do Engenho Velho): restauro e divulgação patrimonial da cultura religiosa afro-brasileira”, respectivamente, no Edital nº 01/2009 – Preservação, Dinamização e Difusão de Acervos Pertencentes a Instituições Museais Privadas e Comunitárias no Estado da Bahia –, e Edital 14/2010 – Apoio à Realização de Projetos de Valorização do Patrimônio no Estado da Bahia.

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religiosa afro-brasileira, os gestores, profissionais de saúde e os conselheiros de saúde”. (SILVA, 2007, p. 173)

Esse desenho tem como compreensão o respeito às tradições das distintas manifestações das religiões afro-brasileiras no território nacional, dialogando com os órgãos públicos no que tange à promoção de saúde de um grupo específico. Esses espaços têm história, visões de mundo próprios no que se refere ao campo da saúde, merecendo compreensão e sensibilidade do poder público para criar condições favoráveis para essas manifestações. Por meio de elementos apontados, dão oportunidade à inclusão da grande parte da população, que encontra nos Terreiros a possibilidade de vivenciar relações humanas e espirituais em um espaço de acolhimento e solidariedade. Na visão da rede, os adeptos das religiões lidam com uma dualidade nas solicitações terapêuticas, ou seja, a priori, têm acesso ao Sistema Único de Saúde (SUS), com uma proposta baseada na universalidade, equidade e integralidade e, por outro lado, podem acessar o Terreiro como espaço de acolhimento e de resolutividade de problemas de saúde e “sentem na pele” os processos de reconhecimento e de consideração dele como um espaço terapêutico por parte do “sistema oficial”. O acolhimento é umas das atenções principais na rede, em razão dos espaços religiosos terem se tornado arenas de referência para promoção da religiosidade e cultura afro-brasileira. Acolher e permitir ao indivíduo sentir-se parte de um grupo por meio de atividades litúrgicas e sociais concebe a ele sentimentos de pertença e autoestima que, na sua maioria, distintos da sociedade mais ampla e integrando subjetividades individuais e coletivas, atualizam e reatualizam a memória e a identidade social por intermédio de suas percepções, do plano simbólico, das afetividades e materialidades e na rede de solidariedade de relações interpessoais estabelecidas. *** Uma das atividades que têm recebido atenção há anos de diversos segmentos sociais são as Feiras de Saúde em Terreiros de candomblé. Esses eventos reúnem integrantes de diversos espaços religiosos junto aos simpatizantes e com moradores adjacentes na intenção de debater e obter orientações sobre diversas racionalidades terapêuticas. A realização das feiras articula diversas práticas e saberes terapêuticos da biomedicina com saberes tradicionais religiosos, em sintonia com o Plano Nacional de Saúde (PNS), aprovado pelo Conselho Nacional de Saúde em 2004, em observância das deliberações da 12ª Conferência Nacional de Saúde. As feiras, priorizadas pelo Comitê Téc247


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nico de Saúde da População Negra, são aproveitadas como espaços de discussões entre diversos atores sociais, instituições públicas e não governamentais, cujos interesses são fomentar propostas de políticas de saúde da população negra nos Terreiros e contra a intolerância religiosa. O Terreiro da Casa Branca, na Cidade de Salvador, foi pioneiro dessa iniciativa no ano 2000. Posteriormente, foi seguido pelos demais no Estado da Bahia e até em outros Estados, com a finalidade principal de promover a integração entre os adeptos das religiões afro-brasileiras com as comunidades adjacentes e o poder público, com a utilização de seu espaço físico como local de promoção de informações e serviços de saúde. “(...) por conta da discriminação racial, porque as pessoas da nossa religião (candomblé) eram maltratadas no serviço de saúde. Quando chegou em 2000, decidimos fazer alguma coisa. Aí, nasceu a Feira de Saúde juntando todo mundo”. (Gersonice Azevedo Brandão, Ekedy Sinhá do Terreiro da Casa Branca, depoimento oral, abril, 2006)

Parece-nos necessário que sejam feitas reflexões mais apuradas sobre a organização de Feiras de Saúde nos Terreiros, no que se refere à utilização de um espaço religioso para fim de promoção de saúde, ao tempo em que se deve indagar qual(is) modelo(s) de saúde que deverá(ão) ser observado(s) nessas iniciativas e suas possíveis efetividades e integrações, assim como se deve refletir sobre a disponibilidade de parcerias com o poder público, que só se tornam possíveis devido à inserção de integrantes e de simpatizantes de Terreiros de candomblé como profissionais e técnicos de secretarias de saúde, situações apresentadas na cidade de Salvador, Bahia. *** Na agenda das práticas integrativas e complementares, uma forte aliada na terapêutica religiosa e no desvendamento dos estados de desequilíbrios e de doenças é a fitoterapia mágico-religiosa praticada pelos Terreiros, pois, para o candomblé, os vegetais são elementos essenciais tanto nas ações litúrgicas como nas terapêuticas, ocupando um papel singular e estruturante em suas atividades e representando um elo entre os seres humanos e as divindades. Os cânticos e os usos de determinadas palavras associadas proporcionam o encantamento dos vegetais, transformando-os em elementos sagrados prontos para agir sobre os indivíduos (MANDARINO, 2007; VERGER, 1995; BARROS; TEIXEIRA, 1989). 248


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Para a cosmovisão do candomblé, a importância do vegetal é ampliada em suas qualidades botânicas e farmacológicas, onde o conhecimento do sagrado e a habilidade do oficiante somam-se para que os três elementos juntos sejam capazes de acionar os mecanismos que venham dar início a transmissão do “axé” (energia vital). Outra consideração é compreender que essas práticas e saberes concebidos e executados pelo candomblé como um sistema terapêutico pode ter uma função colaborativa com os sistemas locais de saúde e suas especificidades, especialmente por meio do uso significativo de vegetais com fins terapêuticos em seu interior. Diante disso, é atentar para essas práticas religiosas terapêuticas como um assunto de políticas públicas coadunadas na agenda de políticas e programas de medicinas naturais e complementares e, ou, plantas medicinais e fitoterápicos, assim como na incrementação de editais de projetos de pesquisa e de intervenções. *** Em momento recente, registra-se a sinergia da aproximação entre a política de pesquisa em saúde e as políticas de saúde, abordando a política da saúde da população negra, quando o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e o Ministério da Saúde (MS) lançaram um edital inédito sobre essa temática, mesmo estando esse tema junto a outros, conforme o Edital MCT/CNPq/MS-SCTIE-DECIT nº 026/2006, que acena para um significativo avanço no sentido de colocar a questão da saúde das populações negras na agenda de preocupações do Governo. São inegáveis as particularidades e a importância atribuídas às questões de saúde da população negra, especialmente, porque essa deve ser tratada de uma forma intersetorial, em diálogo constante com distintas áreas de conhecimento, assim como com vários setores da saúde e da sociedade. Contudo, ainda no Brasil, e de forma esparsa, seja no nível político ou acadêmico, registram-se poucas experiências em que essas diretrizes surgem contempladas. O que, no entanto, se percebe, é que em sua maioria os debates e as ações apresentadas carregam um caráter ideológico, que, centrados no combate à discriminação, acabam por se distanciar do aspecto da saúde propriamente dito (SILVA, 2009). A organização do campo da “saúde da população negra” traz em cena identidades que vão se afirmar na questão racial, apregoando a discriminação existente no País e cobrando do Estado medidas efetivas de políticas de ação afirmativa em frente às desigualdades historicamente colocadas por meio da articulação de diversos atores sociais com distintos interesses. Os estudos que porventura tenham como objetivo a discussão da saúde da população negra até então não foram objetos de discussão por parte dos estudiosos da saúde, tanto 249


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assim que Maio e Monteiro (2005) argumentam que o foco sobre a temática racial não foi objeto de interesse da tradição sanitarista. Segundos esses autores, somente no século 21, com a discussão sobre as relações entre raça e saúde, surge uma política específica à população negra, articulando diversos setores da sociedade e organismos internacionais. É latente a compreensão entre atores do campo social e gestores de que gerar programas e parcerias com projetos de saúde nos Terreiros de candomblé é uma modalidade de reparação e um processo de inversão de uma estigmatização à qual foram e são relegadas as religiões de matrizes africanas e, também, as suas práticas terapêuticas, com objetivos claros de considerar o Terreiro, com suas singularidades, como um espaço de excelência para promoção e difusão de conhecimentos sobre saúde da população negra. Esses Terreiros, por sua vez, ao exercerem a arte de curar, criam estratégias de socialização e de produção de conhecimentos como preconizado pelo Documento Institucional “Política Nacional de Saúde da População Negra: uma questão de equidade.” (Pnud; Opas, 2001).

Considerações finais Nos Terreiros, sua existência é considerada na interação entre espaço/corpo/cultura. Assim, experimentar, incorporar e vivenciar o ambiente concebendo relações reais e simbólicas com uma lógica de racionalidades materiais e sobrenaturais é, antes de tudo, a possibilidade de vivenciar o dinâmico, o dialógico, fonte de sua existência – espaço por excelência da transmissão e sustentação de um ethos – reconhecida como alicerce e sustentação do próprio grupo. (De)limitar esse espaço é de fundamental importância para o grupo na tentativa de afirmação e de reconstrução de sua identidade, seja através da delimitação de fronteiras físicas, seja pela ordenação sagrada em que o indivíduo, ao conceber o sentimento de pertença, passa a manifestar suas particularidades, sua visão de mundo, concebendo contornos como “espaço qualitativo”, forma preconizada por Elhajji (2010, p. 3), contendo uma “grande carga afetiva e emocional e uma força imaginária e simbólica excepcional”. Dessa forma, no período que precedeu, durante e até mesmo após a instalação dos Terreiros de candomblé, como um espaço religioso, o que vimos foi o estabelecimento ao longo dos anos de um canal de comunicação com a cidade, cuja sintonia em vários momentos cruciais vai ser determinante inclusive para a continuidade do próprio. Em tempos atuais, os diversos espaços Terreiros afro-brasileiros se (re)configuram como agências sociais, ampliando sua natureza original religiosa, e buscam formas de como se relacionar com as comunidades adjacentes, com o Estado e di250


Estélio Gomberg Ana Cristina de Souza Mandarino

versos atores sociais, religiosos ou não, como um espaço social, comunitário e de promoção do bem-estar. Assim, as iniciativas de projetos sociais, programas culturais e feiras de saúde, são ações significativas para tecer esses canais de comunicação com a sociedade mais ampla, buscando sua legitimidade social, ora como templo religioso, ora como agência social, assim como para tecer mecanismos de preservação deste complexo sistema de práticas e de saberes singulares do grupo religioso em questão.

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Religiões afro-brasileiras, políticas de saúde e a resposta à epidemia de aids

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Novos e velhos no candomblé de sempre

Rodnei William Eugênio1

Será possível falar do velho sem colocá-lo em contraposição ao novo? Penso que sim. Para tanto, revisitar os conceitos de identidade e subjetividade, analisando o papel de algumas comunidades – nesse caso os Terreiros de candomblé – é tarefa fundamental. A relação de alteridade, indispensável na definição de identidade, desaparece na explicação da subjetividade, que pode ser compreendida como uma nova produção, como uma reinvenção da vida. Ao recorrer à Antropologia contemporânea, especialmente às produções teóricas de Clifford Geertz (2008), vemos que a noção de que o homem vive socialmente em uma “teia de significados” é imprescindível, pois não haveria como entender os comportamentos sem o pano de fundo da cultura. Essa tentativa de compreender a relação entre novos e velhos nos Terreiros de candomblé é uma forma de pôr em prática a tarefa de desvendar as teias de uma cultura específica, recorrendo às representações produzidas pelo próprio grupo, com um esforço extra para não enquadrar as observações num modelo predeterminado. Primeiramente, quando se fala de novos e velhos numa religião iniciática, toma-se como parâmetro o princípio da senioridade. Dessa forma, é bom que se diga que estamos diante de duas categorias específicas de hierarquia e poder, que, além de interdependentes, configuram-se como um processo dialético. Esse processo, embora incessante e progressivo, é movido por oposições, por vezes violentas, e avança por meio de rupturas. Diretamente relacionada à ancestralidade, a categoria dos “mais velhos” é, sem sombra de dúvidas, a de maior prestígio, uma vez que a idade, como fator preponderante na aquisição de conhecimento, torna-se sinônimo de autoridade e força. No entanto, nem sempre a idade se faz acompanhar da senioridade. Em outras palavras, há pessoas jovens com muitos anos de iniciação e pessoas idosas que acabaram de se iniciar. No âmbito das comunidades, ou seja, dos Terreiros, os conflitos, ainda que sutis, podem ser claramente

1 Bacharel em Ciências Sociais e mestre em Gerontologia pela PUC-SP. Babalorixá do Ilê Obá Ketu Axé Omi Nlá.


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observados. Mas há um consenso: o respeito ao idoso (iniciado ou não) é uma recomendação constante nos discursos de todas as lideranças. Assim como a própria sociedade, a comunidade pode ser definida como uma estrutura de socialização, que implica relações de lealdade, reciprocidade e cumplicidade, além, é claro, da noção de pertencimento. Portanto, os Terreiros de candomblé são comunidades de fato e espaços férteis para a construção de identidades e subjetividades. Max Weber discute a comunidade em contraposição à sociedade, uma vez que na relação social de comunidade está envolvido um sentimento subjetivo, que inclui afetividade e aproximação entre as pessoas. Já na sociedade, mais ampla e complexa, os indivíduos estão unidos por interesses, com motivação eminentemente racional. Em síntese, o fundamental da relação de comunidade, a exemplo do que ocorre no candomblé, é se sentir pertencendo e ser reconhecido como pertencente. Voltando às diferenças entre identidade e subjetividade, temos que a identidade é pensada contrastivamente, ou seja, o “eu” se define por oposição ao “outro”. Dessa forma, algumas relações sociais estigmatizadas são inevitáveis, entre elas, a velhice. Na subjetividade, a alteridade não deixa de existir, mas o “outro”, nesse caso, não é contrastivo: é diferente, mas não oposto. Os Terreiros de candomblé são espaços em que os diferentes convivem. A relação entre novos e velhos é, certamente, um bom exemplo de como essas diferenças podem ser complementares, não obstante alguns conflitos, próprios de uma dialética dinâmica, isto é, que se recria e empresta à noção de sujeito um novo significado, qual seja: aquele que “(re)inventa” a vida. Contudo, isso não quer dizer que nos Terreiros a identidade do idoso deixe de ser construída em contraposição à do jovem. Inserido na sociedade, como qualquer religião, o candomblé também acaba por considerar a juventude como um valor em si mesma, refletindo aspectos positivos e vantagens que contrastam com as perdas e riscos de envelhecer. Entretanto, apesar desses aspectos negativos, a velhice também deve ser considerada um valor, mas que se define com base em características subjetivas. A vivência em comunidade mantém a característica dos membros, além de considerar a diversidade. Se a cultura é heterogênea, o jeito de pensar a velhice deve variar conforme as gerações; logo, os conflitos entre novos e velhos na religião dos orixás revestem-se de outras nuanças na atualidade. Assim, de acordo com as premissas de Geertz, uma descrição densa dessas relações permitirá descobrir como as pessoas utilizam os símbolos ou como significam as coisas. É fundamental trabalhar com a noção de cultura para se compreender uma dada realidade, afinal, nem os velhos nem os novos estão fora de um contexto social. 254


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É preciso, portanto, expor os padrões culturais e demonstrar de que forma se alteram em determinadas épocas. Assim, veremos que a velhice (e mesmo a juventude) é, na verdade, definida social e culturalmente. Quando levamos em conta que o corpo tem uma dupla natureza, ou seja, que é ao mesmo tempo biológico e cultural, evitamos o risco do reducionismo, que impossibilitaria um entendimento completo do ser humano. Padrões de beleza registrados na literatura brasileira denotam o quanto a cultura é dinâmica e como influencia os modos de ver e de viver determinadas épocas. Ao olhar, por exemplo, para o corpo do brasileiro, percebem-se algumas solicitações que implicam um pensar novo, talvez mais ousado. O corpo é uma construção cultural que reitera constantemente a importância da diferença. Portanto, há padrões de beleza específicos, mas que também podem variar de acordo com as representações. Mais uma vez aparecem as discussões teóricas de Geertz, afinal, nessa perspectiva, o corpo é suporte de símbolos e significados. De que forma essa lógica deve ser compreendida nos Terreiros de candomblé? Além de ser um conceito fundamental em qualquer Terreiro, o respeito aos mais velhos está na base da hierarquia, sendo o parâmetro que designa qualquer prerrogativa. A menos que os cargos sacerdotais determinem funções específicas, tudo no candomblé começa do mais velho para o mais novo. Vale observar que na roda em que se dança em homenagem aos orixás, apesar de o mais velho entrar na frente, logo se encontra com o mais novo, num símbolo claro de continuidade, interação e diálogo. Esse círculo que se forma gira constantemente em sentido anti-horário, como se todos retornassem no tempo ao encontro de um passado imemorial. Mais do que o encontro entre o velho e o novo, esse círculo reúne passado e presente, ancestralidade e descendência, simbolizando perfeição, homogeneidade e, principalmente, ausência de distinção ou de divisão. Certo que os aspectos da hierarquia estão presentes nesse momento, mas em outros símbolos. Por vezes, uma roda no meio da grande roda abriga os mais velhos, deixando transparecer as categorias hierárquicas. Contudo, quando se canta e se dança para os orixás durante o xirê, aquela roda representa o próprio universo, pois o movimento circular é perfeito e imutável, sem começo nem fim. Aos mais velhos cabe a tarefa de transmitir o conhecimento, afinal, um dia o mais novo ocupará seu lugar, porém, nas teias de uma religião de iniciação, se idade e saber não caminharem juntos não há poder que se estabeleça. Todo aprendizado adquirido ao longo dos anos, bem como a memória, as vivências e todas as experiências transmitidas pelos mais velhos são determinantes na construção da autoridade. Quando Geertz introduz a Antropologia Interpretativa, não propõe a busca de leis, mas de interpretações, ou seja, a cultura é uma teia de significados construída pelo pró255


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prio homem e a tarefa do antropólogo é tentar desvendar essas teias. Dessa forma, um pesquisador que se dedique ao candomblé deve se esforçar para ver o grupo a partir de suas próprias bases, procurando enxergar a realidade com os olhos do outro para entender por que determinadas práticas existem e o que significam. As construções socioculturais que definem a velhice têm a ver com as representações produzidas pelo grupo, uma vez que as culturas tendem a classificar as coisas e a organizá-las a partir de seu próprio universo. Entretanto, numa sociedade de consumo, alguns valores vão se perdendo e outros se inserem na dinâmica dos Terreiros. Sabe-se hoje que velhice não é doença e, sim, um processo que faz parte da vida. Da mesma forma que não se deve ver o velho e a velhice como meros dados da natureza, deve-se ter todo o cuidado para não enquadrá-los em um modelo predeterminado. Importa, principalmente, perceber o valor que esse grupo concreto, ou seja, as comunidades de candomblé, atribui aos mais velhos. Ainda na tradição dos Terreiros, a memória se mantém como um recurso indispensável, haja vista que cultura é essencialmente memória, que, desde as sociedades primitivas, é transmitida oralmente, de geração a geração. Assim, de acordo com as premissas de Halbwachs, a memória deve ser compreendida como um objeto sociológico ou, de acordo com Ecléa Bosi, pode ser utilizada para se compreender a velhice. Para ambos, trata-se de uma construção social, que extrapola, portanto, o âmbito do indivíduo. Em outros termos, ao olhar para a cultura de um grupo pode-se compreender o significado da velhice e o valor do idoso para esse grupo. No entanto, diante das especificidades da vida moderna, como compreender o sentido de determinadas construções sociais e de que forma explicar o papel de seus indivíduos? No candomblé desses tempos, os mais novos se veem diante do desafio de pensar de maneira original e inserir sua religiosidade num mundo que seus antepassados não conheceram e que ainda assusta boa parte dos mais velhos. Só que o desafio maior é inserir este mundo dentro dos Terreiros. Comecemos por um exemplo bem simples: a internet. Atualmente, muitos saberes se difundem por meio da rede mundial de computadores. Evidentemente, os mais novos dominam essa tecnologia e descobrem um universo ilimitado de possibilidades, como vídeos e áudios de rituais; imagens e reportagens; textos, artigos e livros sobre tudo (ou quase tudo). Dessa forma, a oralidade deixou de ser a principal forma de transmissão de conhecimento, comprometendo, decisivamente, o poder e a autoridade dos mais velhos. Além disso, a partir da década de 1980 intensificou-se o intercâmbio entre o Brasil e alguns países africanos e mesmo com países da América Latina, introduzindo novos sacerdotes e seus respectivos saberes. Antigamente, a curiosidade movia os mais novos na busca de conhecimento. Suportavam todos os caprichos dos mais velhos em troca de um aprendizado, de um fun256


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damento, de uma cantiga. Por isso valorizavam a vivência nos Terreiros e o trabalho comunitário. Era preciso conquistar a confiança dos antigos para merecer um ensinamento, ou, considerando que no candomblé nada se ensina e tudo se aprende, passar anos observando o modo de fazer e agir dos mais velhos para colocá-lo em prática mais adiante. Os mais velhos acusam os mais novos de terem profanado os segredos da “seita”, de terem divulgado pela internet os mistérios sagrados dos orixás. Porém, muito antes do advento da internet, os rituais já estavam expostos. Lembremo-nos que os pioneiros dos estudos sobre cultura africana no Brasil, como Manuel Querino, Nina Rodrigues e Artur Ramos, descreveram diversos ritos de Terreiros tradicionais da Bahia. Tendência que prossegue com Edison Carneiro e Roger Bastide e chega ao ápice com os registros fotográficos de Pierre Verger. Um caso muito controvertido foi o do fotógrafo José Medeiros, que nos anos de 1950 fez uma reportagem para a revista O Cruzeiro, gerando críticas entre intelectuais e adeptos. De qualquer forma, seja por meio de palavras, seja por meio de imagens, sempre houve registros dos rituais de candomblé. Ocorre que boa parte dos informantes desses pesquisadores, por uma série de fatores, não tinham acesso ao material produzido. O candomblé do século 19 ou do início do século 20 não é, definitivamente, o mesmo candomblé que se professa atualmente. Inserida no universo da cultura, a religião também se torna dinâmica e, caso não acompanhe a mudança dos tempos, estará fadada a desaparecer. Assim como a religião, o perfil dos fiéis também se modificou. Primeiramente, a predominância negra é observada em poucos Terreiros e o nível de instrução dos adeptos muitas vezes está acima da média da população brasileira, como demonstram alguns dados do IBGE. Entre os negros que se mantêm na religião de seus ancestrais, boa parte tem curso superior e mesmo pós-graduação lato e stricto sensu. Criado no bojo da escravidão, o candomblé acostumou-se a conviver com alguns valores típicos das relações entre senhores e escravos, reproduzindo-os algumas vezes na lógica de suas hierarquias. A inserção de pessoas de outros grupos étnicos e estratos sociais e a própria ascensão social e intelectual do negro coloca em xeque a sujeição dos adeptos e impõe uma nova forma de relação nos Terreiros. Tudo isso, somado à difusão de informações por outros meios que não a transmissão oral, alimenta a “crise” entre novos e velhos. Munidos de tudo que “aprenderam” na internet, filhos e filhas de santo chegam aos Terreiros ávidos por questionar pais e mães de santo acerca de rituais e procedimentos aos quais, muitas vezes, ainda nem foram submetidos. Querem saber o porquê de tudo, num exemplo gritante de ousadia e insolência, que, aliás, os mais velhos abominam. O saber adquirido por essas vias “modernas”, evidentemente, é desqualificado pelos mais velhos, e com certa razão. Livros, CDs, DVDs, sites, blogs, trazem muitas informações preciosas 257


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e outras nem tanto, mas não substituem, de forma alguma, a vivência, que na construção do saber sacerdotal é a grande referência que separa o joio do trigo. Quando o conhecimento não vem revestido por essa vivência, perde-se o parâmetro, ou seja, não se estabelecem os limites entre o verdadeiro e o falso. Por mais que toda tradição seja inventada, é preciso caminhar dentro de uma tradição, seja para não inventar o que já existe, seja para fazer valer todo o conhecimento adquirido ao longo dos anos, legitimar-se e ser reconhecido como sacerdote por toda a comunidade. E, vale dizer, é sempre o mais velho que legitima o mais novo. Nesse confronto entre novos e velhos, quem ganha? Quem perde? Por ora percebe-se claramente que o conflito se reflete, no fundo, numa crise de autoridade. É como se a máxima “manda quem pode, obedece quem tem juízo” fosse desconstruída, revelando a fragilidade em que se encontram as relações de poder nos Terreiros de candomblé. Ao que parece, os velhos já não mandam tanto e os novos perderam o juízo. O que mudou no modo de viver e praticar o candomblé? Novos e velhos teriam deixado de ser opostos complementares para se tornar opostos absolutos? Pierre Verger (2002: 30), observou que “os Terreiros de candomblé são os últimos lugares onde as regras do bom-tom reinam ainda soberanamente”. Contudo, a inserção do candomblé em metrópoles como São Paulo altera a relação dos fiéis com o Terreiro, promovendo uma intensificação do “trânsito” religioso. Hoje, as pessoas trocam de pai ou mãe de santo ao sabor das marés; qualquer coisa é motivo para ir para outro Terreiro. Não há vínculos de afetividade, pertencimento nem aproximação entre as pessoas, comprometendo, assim, o sentido de comunidade. Mais grave ainda é a confusão entre informação e conhecimento. Aprender uma cantiga é muito fácil, pois há décadas registros fonográficos de expoentes do candomblé, como Mãe Menininha do Gantois, Olga do Alaketu, Joãozinho da Gomeia, Hilda França, Luís da Muriçoca e muitos outros estão disponíveis. A internet e a pirataria contribuíram muito para popularizar esses dados. Contudo, mais importante do que aprender uma cantiga é conhecer o seu sentido, o valor que tem para o grupo e o momento correto de entoá-la, e esse saber ainda está nas mãos de poucos, geralmente dos mais velhos. Numa sociedade em que as informações circulam na velocidade de um clique, tudo parece efêmero. Assim, os valores tradicionais perdem-se no emaranhado de novas tecnologias, de imediatismos e degradações impostos pelo consumismo ilimitado e pela falência de algumas instituições. Estruturado nas noções de família e comunidade, o candomblé ainda sofre para se adequar a essa sociedade da informação, sentindo os efeitos especialmente nessa relação entre novos e velhos. As religiões de matrizes africanas acostumaram-se a olhar para seus adeptos enquanto pessoas, ou seja, compreendiam-nos como um complexo de relações sociais. Ao se deparar 258


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com os desafios da vida moderna, em que a noção de indivíduo parece apagar as referências mais elementares de cada um, o candomblé não consegue apreender imediatamente as engrenagens que alteram os discursos, mergulhando numa crise de poder e identidade. Uma das estratégias da escravidão era esfacelar completamente os laços familiares, por isso uma das grandes contribuições do candomblé para a resistência negra foi a reprodução da família em termos simbólicos. Ocorre que esse componente étnico perde força à medida que a religião ganha adeptos em outras camadas sociais e é inserida nos grandes centros urbanos. De acordo com Reginaldo Prandi (1991), o candomblé deixa de ser uma religião étnica, de negros, para tornar-se uma religião universal, aberta a todos, concorrendo com outras modalidades no “mercado religioso”. A introdução desses novos elementos gera algumas crises e acirra outras. No que diz respeito a novos e velhos, é preciso desvendar o que precede a produção do poder e de que forma as recentes rupturas têm dinamizado essa relação. De acordo com as premissas de Michel Foucault, todo saber está relacionado a um mecanismo de poder. Isso significa que existem relações de poder vinculadas a um saber que, em determinadas épocas ou segmentos sociais, acaba se constituindo como verdade. Portanto, é preciso entender o conceito de poder, ressaltando sua importância na construção de saberes, e também de verdade, que dentro de “grupos concretos” (inclusive nos Terreiros de candomblé), baseiam-se em um dado discurso e configuram-se por meio do saber. O poder atravessa, cria coisas, forma saber e produz discurso. Para Foucault, o poder sempre existe em ato, é uma situação estratégica, um exercício. Isso quer dizer que não deve ser compreendido como algo concreto, palpável, como “coisa” e, sim, enquanto relação. Configurando-se como uma rede produtiva que atravessa todo o corpo social, o poder termina por produzir comportamentos. Afinal, sua intenção não é excluir o indivíduo da vida em sociedade, mas controlar, disciplinar suas ações. Via de regra, os jovens de hoje são, em sua maioria, bem-informados. Nem todos, porém, são bem formados. As deficiências nos níveis de educação afetam toda a sociedade e, por conseguinte, os novos adeptos das religiões de matrizes africanas. Há jovens sábios e velhos ignorantes, por isso é bom ressaltar que quando falamos de “mais novos” e “mais velhos” estamos nos reportando a duas categorias de hierarquia e poder nas quais o saber e, não, a idade cronológica, é o critério de inserção. Portanto, há mais novos que se destacam e são tão respeitados quanto os mais velhos. Um bom exemplo é o de Mãe Menininha, que assumiu o Gantois com apenas 28 anos e teve sua autoridade reconhecida desde sempre. Como acontece em qualquer instituição, no candomblé o conhecimento formal é bastante valorizado. Desse modo, um iniciado com diploma universitário, com títulos de 259


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mestre e doutor goza de certas prerrogativas, ainda que sutis. Há Terreiros que se tornam famosos pelo nível de instrução de seus membros, pela quantidade de intelectuais que engrossam suas fileiras. Mas isso não é fenômeno recente. Muitas vezes esses intelectuais possuem habilidade no trato com as pessoas, falam outras línguas, lêem muito, se expressam bem e são dotados de carisma. Não demoram para ascender na organização do templo e, como bem observou Prandi (1991: 184), quando um membro da hierarquia da casa ganha demasiada importância e respeito no Terreiro, ele acaba por ‘ameaçar’ o pai de santo, podendo advir daí momentos de crise, guerra e ruptura.

No candomblé, as pessoas merecem deferências não só por seu saber, mas sobretudo por sua origem. Estar vinculado a uma grande casa ou a um sacerdote conceituado é fundamental para a obtenção de reconhecimento e legitimidade. Essa prática perdura há mais de século, tendo desqualificado diversos sacerdotes e sacerdotisas por sua origem duvidosa e negado legitimidade a Terreiros hoje tradicionais. Sabe-se, por exemplo, do caso de um grande Terreiro de Salvador, inaugurado no início do século 20, que enfrentou grande resistência por ter sido fundado por uma negra crioula e não por africanos. Explicando a formação dos primeiros Terreiros, Verger (2002: 30) nos conta que, nesse pequeno mundo cheio de tradição, as questões de etiqueta, de direitos, fundamentadas sobre o valor dos nascimentos espirituais, de primazias, de gradação nas formas elaboradas de saudações, de prosternações, de ajoelhamentos são observadas, discutidas e criticadas apaixonadamente; nesse mundo onde o beija-mão, as curvaturas, as deferentes inclinações de cabeça, as mãos ligeiramente balançadas em gestos abençoadores representam um papel tão minucioso e docilmente praticado como na corte do Rei Sol.

Boa parte disso que Verger descreve é o que se chama de “educação de axé”, um código de conduta que determina o lugar de cada um na religião e no Terreiro. O conflito entre novos e velhos é, na verdade, o efeito de um discurso, que desde sempre esteve presente no candomblé. Esse discurso foi se alterando ao sabor da cultura, conforme a época e os sujeitos. Todo ser é atravessado pela cultura, que cria representações positivas e negativas. As categorias dos mais novos e dos mais velhos são construções culturais próprias dos Terreiros, mas as relações que suscitam são vivenciadas de maneira singular. 260


Rodnei William Eugênio

Não é possível falar do humano sem considerar sua dimensão simbólica, suas representações, seus valores. De certa forma, a resistência dinamiza o poder, assim como o novo provoca o velho a pensar na sua própria condição e na sua tarefa fundamental de prepará-lo para assumir os postos de comando na hierarquia do Terreiro. Cabe ao velho colocar os mais novos à prova, instigá-los, provocá-los e fazê-los refletir sobre sua vocação, sobre sua escolha. Ao testar a capacidade dos mais novos, os mais velhos promovem uma seleção, verificando os que estão aptos e merecem aprender, os que têm educação de axé e paciência, os que saberão esperar o momento certo, os que nasceram para ser velhos. A relação entre novos e velhos nos Terreiros de candomblé é uma relação entre discípulos e mestres, mas nessa relação os discípulos aprendem tudo sem que os mestres precisem ensinar nada.

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Saúde no Terreiro dos quintais do Brasil: do acolhimento, humanização, integralidade e as possíveis conexões entre os Terreiros e o Sistema Único de Saúde

Celso Ricardo Monteiro1

Introdução

“Ago Esu, Esu Obá, Esu Oju Ile Aiye onan Esu, Baba mi Onan; Enungbarijó egbé, Mo jubá!”

“Dê-me licença Exu; Exu, Rei; O olho sagrado da criação que guarda o mundo dos homens; Senhor dos caminhos; Exu, Pai dos caminhos, boca coletiva de toda sociedade... os nossos respeitos!” Há muito vem se falando sobre as interfaces entre a ciência e a religião, o que, aliás, contradiz a ideia de rompimento entre uma e outra. Todas as duas, nessa distância que buscaram manter ao longo dos anos, receberam a oportunidade de revisitar as suas tradições e o processo histórico de forma mais abrangente, pois os novos desafios em meio à contemporaneidade foram questionando a sociedade moderna e trazendo para esta seara outros sujeitos que engrossaram a fileira contra o monopólio da informação sobre a bandeira da democracia ou da democratização dos processos e o acesso à informação. Destacou-se mais uma vez o conjunto de tradições de matrizes africanas praticadas no

1 Sacerdote da Sociedade Ketu Ilê Asé Igbin de Ouro.


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Brasil, e as religiões afro-brasileiras tornaram-se ao longo do tempo no campo da antropologia, por exemplo, o espaço mais cobiçado para estudos contemporâneos, como os da educação e da saúde, na perspectiva da educação, destacadamente, mas não se pode ignorar que, diferente das ciências da religião, as ciências políticas deram a esse tema um especial destaque, uma vez que aqui estão concentrados atores de diferentes matizes e instituições de várias ordens. Havia aí mais uma vez a ideia de um mercado amplamente disponível que merecia exploração por parte de novos pesquisadores e nem sempre a devolutiva dessas se deu transformada em políticas públicas de fato, ou meramente como resultado de pesquisa. No entanto, as produções acadêmicas trouxeram para todos nós a oportunidade de aprender mais, a partir da prática. Assim, tudo o que se tinha lido até o momento foi acentuado no processo de trabalho, sobretudo dos outros sujeitos, que não os pesquisadores interessados no tema. A ciência, contudo, não valeu-se dessa brilhante oportunidade de diálogo com as denominadas “arcaicas tradições afro-religiosas” na perspectiva da produção do conhecimento, a partir de si e os contratempos foram muitos e as comunidades tradicionais de Terreiro ainda tiveram que sustentar a invisibilidade de seu povo em espaços que lhe são negados historicamente, como a promoção e a atenção à saúde. Esperava-se, portanto, que outros discursos e sujeitos viessem à tona, o que faria com que no âmbito da atenção à saúde não apenas, mas, sobretudo, os sujeitos mais interessados no tema conseguissem avançar, e esse é um dos itens que compõem a cena política da promoção da igualdade no Brasil e na América Latina, mesmo no universo da saúde pública, como se pode observar na literatura disponível. A produção do conhecimento nem sempre contemplou as tradições afro-brasileiras no que diz respeito à mudança de paradigmas, mas avançou significativamente no que tange à presença desses sujeitos no ambiente acadêmico; uma controvérsia, avalio. Em contrapartida, o avançado conjunto de produções científicas existente no campo da saúde pública trata de uma saúde que deveria ser a ideal, mas ao pensar na universalidade abre várias discussões, inclusive no campo legislativo, principalmente quando questiona aspectos como acessibilidade e diversidade em saúde, matéria pela qual nos dedicamos ao longo dos últimos anos, em função da necessidade de um debate amplo e honesto em torno da promoção da equidade em saúde. Ignora-se, por fim, a possibilidade de uma saúde produzida ou recuperada em ambientes que não os da própria saúde e suas instituições. Ignora-se, também, o fato de que a promoção da saúde pressupõe práticas e costumes e, quando se aproxima do tema, traz para a mesma trincheira a ideia de medicina alternativa, o que difere da visão de mundo africana e afro-brasileira. Essa mesma postura 264


Celso Ricardo Monteiro

que se antes era das faculdades de medicina, agora domina o fazer saúde das diferentes instituições de ensino e alimenta o sistema extrapolando, inclusive, papéis e competências que não deveriam competir ou divergir, uma vez que as práticas de atenção e promoção da saúde compõem o amplo conjunto de ações terapêuticas e humanas do universo cultural-mítico afrorreligioso com códigos e simbologias que são estritamente da tradição e não do Sistema Único de Saúde. Com a discussão sobre papéis e competências, entendemos que o lugar do profissional de saúde, médico ou não, se alimentaria com a soma de esforços entre o sistema de saúde pública e a cooperação com os sacerdotes e sacerdotisas, os quais aqui apresento como detentores de um saber milenar, transferido por gerações, por meio oral, com ensinamentos que envolvem a relação com o ambiente, a ancestralidade, o bem-estar e a descendência do sujeito em questão. Da teoria à prática, os conflitos aqui mencionados são eliminados, uma vez que em discussão está a saúde e a doença do sujeito e não os meios por vezes tecnocratas pelos quais ele é tratado. Desse conjunto de conflitos, pautados inclusive na falta de conhecimento (que nos levou à intolerância religiosa e ao medo contido no imaginário popular da sociedade), resultaram vários discursos acerca das muitas interfaces aqui mencionadas. A própria academia abriu-se para outros debates em torno da relação entre a ciência e a religião e agora é possível observar esse tema de forma menos folclórica, com ideais para além do “fantástico”; por exemplo, as experiências em torno do fenômeno que tem sido chamado de quase morte, de forma que cada vez mais tem se tornado favorável a possiblidade de investigar com concretude os fenômenos e as circunstâncias. Aliás, não por acaso as tradições de matrizes africanas ganharam ou produziram tantos cientistas. Afinal, a educação em pares ainda é a melhor estratégia para o reconhecimento da linguagem como fator central também da acessibilidade. Resta-nos saber o quanto a produção acadêmica, as ações governamentais, a mobilização da sociedade, as demandas vindas das comunidades tradicionais de Terreiro e a necessidade de ações equânimes podem juntas nos levar à universalidade do serviço público de saúde, com ações que de fato respeitem a integralidade de cada sujeito. Ainda que pareça fácil para muitos, a ideia de liberdade de crença é muito recente no Brasil República e, em pleno século 21, é parte de discussões sobre práticas e teorias que não dão conta desse amplo conjunto de demandas, que vão desde o direito ao acesso a bens e serviços como os da saúde pública. A liberdade de crença e a laicidade se inter-relacionaram nesse processo, mas não produziram avanços na medida das necessidades e o que se pode chamar de avanços políticos ainda trafega no campo do simbólico. Mesmo a respeitada ideia de saúde coletiva ignora por vezes 265


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a percepção do outro diante da necessidade de um diagnóstico mais preciso e um tratamento universal e equânime, que leve em consideração a integralidade e as reais necessidades de um sujeito, cujo corpo não se limita a um conjunto de células e seu tratamento via sistema de saúde, põe em xeque a crença de que há algo a mais nesse corpo, que não apenas células e troncos, e é ignorado pela ciência. Como não se pode falar em processos proativos, tomamos como referência um caso muito conhecido que se tornou objeto de estudo acadêmico: o caso Sobral. Nele é possível constatar que a transformação de processos político-educativos nem sempre parte das visões institucionais, mas, sim, de demandas chamadas subjetivas, que alteram o cotidiano e, por que não dizer, o status quo de diferentes sujeitos ou grupos. Vejamos o que nos diz o caso Sobral: Há, no Brasil, trabalhos em desenvolvimento demonstrando que é possível articular na prática diferentes saberes e formas de pensamento na construção de um programa de saúde local. Em Sobral, no Ceará, por exemplo, há um programa (COFFITO, 2000) que articula o sistema de saúde local à rede de terapeutas tradicionais (rezadeiras etc.). Para enfrentar o problema da hanseníase, da tuberculose e da desidratação infantil, a Secretaria de Saúde do município de Sobral buscou um diálogo com as rezadeiras da região. Na localidade, as rezadeiras (ligadas à igreja católica e, ou, à umbanda) são pessoas muito conhecidas e respeitadas. Agentes comunitários de saúde reconheceram que elas gozavam de mais prestígio e legitimidade junto à população do que médicos dos postos de Saúde e do PSF. Verificou-se que a concepção geral dos médicos de que seu conhecimento científico deve prevalecer e ser considerado o único legítimo em detrimento do saber tradicional das rezadeiras, considerado ‘crendice’ ou ‘superstição’, apenas contribuía para afastar ainda mais a população da atenção básica oferecida pelo município. O SUS, apesar de ‘tecnicamente’ preparado e equipado para lidar com os problemas da hanseníase e da tuberculose, agravos comuns na localidade, não conseguia fazer diminuir sensivelmente as taxas de incidência e de prevalência das referidas doenças. Ao serem procuradas por profissionais de saúde sensíveis a essa dinâmica para ajudarem na resolução de problemas de saúde da população, sentiram-se valorizadas e não se negaram ao diálogo. Iniciava-se, assim, o envolvimento das rezadeiras com o PSF local. A Secretaria de Saúde do município cadastrou 250 rezadeiras em Sobral e convidou 20 lideranças (as mais antigas e respeitadas) para discutirem formas de atuação e caminhos a serem adotados. Foi

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realizado o 1º Encontro Sobralense de Rezadeiras, patrocinado pela Secretaria de Saúde e organizado em conjunto por profissionais de saúde e rezadeiras. Todo o material do encontro, porém, foi construído pelas próprias rezadeiras. O tema era a prevenção, o controle e o tratamento dos três mais importantes agravos da região (hanseníase, tuberculose e desidratação infantil). Um livro, impresso em tecido para se evitar o desgaste rápido do papel no contato com a água comumente usada no ofício da reza, com linguajar próprio e rico em ilustrações foi distribuído entre elas. Nesse livro de pano, há instruções do tipo: “reze para abaixar a quentura e ardores e mande para o médico ou enfermeiro de família nos postos de saúde. Em seguida, pedir para voltar” (COFFITO, 2000). As rezadeiras dão o primeiro diagnóstico (segundo dados da secretaria, com quase 100% de acerto) e utilizam um cartão colorido (de acordo com o agravo) para fazer o encaminhamento. Depois de atendido no posto de saúde, o portador de tuberculose ou hanseníase volta à rezadeira com o referido cartão e os medicamentos necessários. Recebe a reza e os passes, assim como orientação de como tomar alternadamente os medicamentos (também por meio de cores) e por quanto tempo (“luas”). Durante o tratamento, o portador visita a rezadeira periodicamente. Nesse movimento, recebe conforto afetivo e espiritual e tem o controle do tratamento efetuado pela própria rezadeira, o que diminui a resistência aos tratamentos químicos necessários e até mesmo o desconforto (ou a sensação de) de efeitos colaterais, o que contribui para diminuir o período de prevalência e, consequentemente, o desenvolvimento de resistência microbiana pela diminuição do abandono ao tratamento. As rezadeiras também manipulam um vasilhame, fornecido pela Secretaria de Saúde, para preparar e ensinar a preparar o soro caseiro. Isso, juntamente com as rezas, tem contribuído para diminuir sensivelmente os casos de desidratação infantil na região. Formalizou-se, assim, uma rede oficial de atenção básica em saúde, onde as rezadeiras, antes excluídas, se constituíram em agentes fundamentais (‘nós’ da rede) de uma política de saúde pública inclusiva. Nesse processo, como se pôde notar, houve uma construção compartilhada de conhecimento em que o discurso sobre o método (metodologia), outrora privilégio de ‘doutores’ e epistemólogos, se destaca (CARVALHO, 2004: 32-34.)

Outra importante referência emprestada aqui é a comunicação concernente ao tema “As práticas de Saúde nos Terreiros e as Práticas de Saúde no SUS: acolhimento, humanização e integralidade” apresentada por esse autor em painel de mesmo nome, realizado 267


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durante a 5ª edição do Seminário Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde, na cidade de João Pessoa, em abril de 2006. A elas aliam-se ainda um conjunto de reflexões sobre o tema, que nos roubou os últimos anos. Na ocasião o painel contou com a Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde e a Coordenação da Política Nacional de Humanização – Humanizasus, naquela ocasião representada por Maria Auxiliadora Benevides, uma experiência inovadora e interessante. Essa oportunidade também configurou-se no registro de uma experiência marcante e um momento importante de uma comunidade que se percebe cotidianamente, diante da intolerância religiosa, do preconceito racial e do racismo institucional nos espaços do serviço público, nesse caso, de saúde. O texto gerado por essa vivência tornou-se em um ensaio sobre as possíveis conexões entre o Sistema Único de Saúde e as Religiões Afro-Brasileiras, destinado a diferentes atores políticos que atuam ou atuarão na área da educação, do direito, da atenção e da assistência à saúde, considerando a importância dos espaços étnico-religiosos, comunitários e potenciais, onde tais pautas são articuladas diariamente por uma específica parcela da população, que possui “visão de mundo” diferenciada e sente na pele as consequências da ausência de uma resposta eficaz por parte do Estado, diante da não garantia de também esse direito. Trata-se de um conjunto de possibilidades que traduzem as possíveis conexões e parcerias a serem estabelecidas entre o Sistema Único de Saúde e as comunidades tradicionais de Terreiro da atenção primária à alta complexidade da saúde pública no Brasil. De acordo com a demanda e a oportunidade de escrever tais linhas, entendemos que esses são os questionamentos que devam transitar pelos diferentes aspectos da saúde pública, a partir da visão de mundo dos sacerdotes e sacerdotisas de religiões afro-brasileiras e seus seguidores, mais precisamente das oito diferentes tradições presentes em São Paulo2, para que, assim, possa contribuir com as mudanças necessárias. A parceria com as lideranças de cada uma dessas tradições vivenciadas no campo, agora junto a profissionais de saúde da Rede Municipal Especializada em DST/AIDS na cidade de São Paulo, é quem nos dá a base necessária para esse registro. Uma perfeita harmonia entre a saúde do corpo e a da alma, considerando as questões políticas e institucionais que permeiam esta discussão é o que busca as reflexões registradas aqui e as lições aprendidas em meio ao trabalho realizado pelo Grupo de Valorização do Trabalho em Rede, por meio de seus componentes e parceiros. As lições aprendidas e as articulações promovidas até dado momento, junto de diferentes movimentos sociais e departamentos de Governo, indicam um grande desafio no campo da atenção à saúde,

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Ketu, Angola, Jeje-Mahi, Tambor de Mina, Nagô-Egbá, Efón, Umbanda e Omoloco.

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pois as pautas mais necessárias desse processo estão associadas às questões discriminatórias que tanto conhecemos e combatemos ao longo de tantos anos de trabalho em torno das diferentes nuanças dos direitos humanos no Brasil. É, portanto, uma mudança comportamental do sistema que está em curso. Importante dizer que, diferente das outras, essas tradições religiosas, tidas no Brasil como “religiões de preto” são as maiores vítimas de intolerância religiosa ao longo da história do Brasil Republicano. Nesse sentido, vale dizer que a criação de uma rede nacional, a partir de tais segmentos, destinada às articulações em saúde pública a partir do respeito e eficiência dos direitos humanos no Brasil ou, por que não, dos “...humanos direitos”, como sugere Paiva3, parece-me uma resposta exemplar ao conjunto de ações intolerantes, sabidamente praticadas por inúmeros sujeitos, entre eles o próprio Estado laico, democrático e de direito, que em muitas vezes insiste na negação dessas como parte importante do desenvolvimento coletivo. Vide composição do Senado, das Câmaras, a presença do Santo Cristo Crucificado nos espaços institucionais, o currículo escolar, etc., etc.,etc. Emprestando a partir dos Terreiros de origem nagô-ioruba a sua visão de mundo e o seu conceito de saúde, vamos trabalhar com uma saúde que surge da perspectiva do direito e não do comércio. Afinal, saúde não é um produto a ser vendido e, sim, um direito constitucional. Os ancestrais, segundo o chamado povo de santo, usufruíam de práticas que, como sabemos, permeiam os inúmeros aspectos da qualidade de vida do povo africano, o que inclui a readaptação da tradição por parte de seus descendentes (uma questão de sobrevivência), e é possível constatar nesse processo um perfeito conjunto de ações capazes de alterar a realidade do sujeito, que, uma vez ciente de seu papel enquanto cidadão “agente” encontra com eficiência o caminho do bem-estar social e físico, mesmo com os inúmeros desafios do cotidiano, sempre presentes em suas histórias. Esses pontos tão significantes estão associados também, dizem os estudiosos, às questões do subjetivo, porém, antes disso, existem aspectos que marcam importante presença nessa discussão. Em meio à identidade, esses aspectos tão importantes que envolvem sobretudo as relações humanas são inúmeros, porém, aqui optou-se por trabalhar com as questões que envolvem direta ou indiretamente o lugar – território –, ambiente, as relações sociais e os aspectos humanos e políticos que garantiram a manutenção dos Terreiros no período pós-descobrimento do Brasil, agora com a globalização enquanto

3 V era Paiva, em palestra proferida no Seminário Aids e Religião do Programa Nacional de DST-AIDS/Ministério da Saúde; 2006.

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o seu desafio mais forte, para sim podermos avançar no que tange às interfaces entre as religiões afro-brasileiras e a saúde para além do que diz a teoria. A educação religiosa ofertada pelas sociedades afro-brasileiras é outro importante instrumento dessa discussão que vem do cotidiano dos Terreiros, pois estamos adentrando o universo onde, por meio da oralidade, as pessoas transformam-se a cada dia, a cada momento, a cada oferenda e, assim, vão de encontro a seus ancestres e, de forma geral, muitas vezes sem perceber, promovem o tal “religar” solicitado constantemente a cada credo. Todavia, esse conceito não pode mais configurar como uma ação ou visão institucional (da entidade registrada no cadastro nacional de pessoas jurídicas, como se Deus tivesse CPF e RG), pois a rede de relacionamento criada a partir das comunidades tradicionais de Terreiro, inclusivas, metodológicas e facilitadoras convida-nos constantemente à automudança de posicionamentos, conceitos e outros, sem que a forma ditatorial de governar (europeia ou inglesa) impere no espaço sagrado. De governar o Terreiro entende bem, pois, no translado entre o mundo da ancestralidade e da descendência não faltam exemplos de sistemas monárquicos ou não, que servem de referência para a organização coletiva. Vide mitologia de Xangô e a queda da cidade vassala de Oiyó. Eis aí um modelo de gestão diferenciada, que merece análise, mas infelizmente não é o objeto de estudo desta publicação. Todos esses fatores juntos são elementos centrais na “construção ritual de cada pessoa no candomblé”, o que vai para além da cosmologia e interfere no lugar que esse sujeito ocupa na sociedade. Hierarquia, por exemplo, é um valor africano mantido entre os descendentes de negros nagôs e de outras ramificações étnicas, porém, essa não é um empecilho para a garantia e manutenção das tradições e das relações sociais. Para tanto, basta observar como se dá o processo de acolhimento nos espaços sagrados e os outros mecanismos de atenção aos iniciados, pois a iniciação de um noviço contribui para que o sujeito possa agir, de forma envolvente e participativa, reunindo o total dos atores (com funções específicas) que compõem o corpo hierárquico da comunidade. Assim, receber o novo componente, acompanhar o parto ou nascimento de uma criança, é uma tarefa comum, que compreende sem soberba, sem vaidade, todo o conjunto de atores, portanto, sem a importância do status e perpassa pelo todo das atividades daqueles que compõem esse clã familiar. Os recém-chegados no Egbé4 são tidos como descendentes membros daquela família, não apenas da mãe e do pai e, dessa forma, passa a incorporá-la oficialmente a partir de então. Daí a importância de cada sujeito, de cada atividade, de cada momento em cada situação. Como aqui se está falando a partir de uma concepção ampliada de família, onde os laços vão para além

4 Sociedade dos Orixás.

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dos aspectos biológicos, é fundamental lembrar que a vida em comunidade onde “os filhos delas são nossos sobrinhos” parte desse mesmo pressuposto e não deixa ninguém de fora. Esse status social que o recém-chegado possui a partir de aceito e reconhecido pelo grupo vai alimentar a vida coletiva, as práticas, o respeito ao conjunto de normas e códigos e vai mais além, orientando os processos que deverão ser realizados no momento da morte. Por isso é fundamental questionar como a vida e a morte dialogam a partir dessa concepção e o como esse processo lida com as questões pertencentes ao processo saúde-doença-cuidado. Os valores e simbologias dessas tradições vão ainda definir como se dá não apenas o ethus e a práxis, mas também a relação com a sociedade ampliada, cenário esse em que estão, como vimos no início, a intolerância, o racismo, a discriminação e o preconceito. Se por um lado a tradição tem pessoas específicas para tarefas específicas, por outro há pessoas não aptas para determinadas funções, ou momentos em que determinadas pessoas não podem participar, razão pela qual não somos todos homens, mulheres, Babalorixás, ekedis, mães criadeiras, etc. Somos todos especiais, importantes, referenciais, basta saber em qual roupa se encaixa melhor o nosso corpo e em qual corpo estaríamos mais bem-acomodados enquanto “Ser Escolhido”. Enfim, singularidade é de fato uma marca dessas religiões e vai determinar como se dá atenção a cada sujeito, do acolhimento ao seu tratamento, sem perder de vista as várias possibilidades de reorganização do processo. Mesmo a morte, diz o Terreiro, deve levar em conta a singularidade de cada sujeito. No complexo universo afro-religioso a missão e o papel de cada sujeito cognocente estão claramente delineados por sua história ancestral, seu vínculo com a divindade para o qual foi ou será iniciado, a divindade da mãe e do pai, ou ainda dos avós paternos e maternos. É daqui que sai a base necessária para o alimento do vínculo e a receita para retroalimentá-lo, mesmo quando os desgastes se fizerem presentes. Essas diferenças, tidas como recurso mais do que importante para a construção de redes comunitárias ativas, são o que dão força para o desenvolvimento individual e vida para a manutenção da comunidade. Não se faz um candomblé apenas com a presença da Iyálorixá, muito embora o seu papel, o seu desempenho e o seu Axé sejam, juntos, um conjunto de elementos primordiais para o bom andamento das articulações entre os homens e as divindades. Barganha não é recomendável nem aceita, porém, constatou-se que nos ensinamentos nagô-ioruba que dizem respeito a Exu, orixá dos caminhos, da sexualidade, das encruzilhadas da vida e da comunicação, a palavra, tão viva quanto o próprio corpo biológico, é quem conduz boa parte do processo. O poder da palavra é por fim quem dá sentido à vida, mas não só. Essa é uma das lições aprendidas com o caso Sobral. O modelo de saúde que se discuti aqui, a partir da integralidade de cada sujeito, é independente e conectado à diversidade individual e coletiva. É para a cultura do Terreiro 271


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que se voltam nossos olhares nesse momento, pois aqui aponta-se a espiritualidade e a fé, enquanto fator importante para a obtenção, atenção e promoção de uma saúde plena, no que se inclui, segundo a visão de mundo nagô-ioruba, as relações sociais, a relação com os antepassados, o respeito ao corpo e identidade do sujeito, tal como suas histórias e sentimentos. Tal lógica nos faz olhar e reconhecer o indivíduo como um todo e não só como um corpo biológico, um paciente ou um número atendido, razão pela qual humanização da saúde é uma pauta tão necessária. Acredita-se que a partir dessa concepção poderão os agentes, sejam eles, gestores, profissionais ou usuários, promover estratégias e metodologias capazes de gerar qualidade de vida para a população, sobretudo a mais carente, que uma vez SUS-dependente não pode contar com recursos que alterem positivamente o seu estado saúde-doença, muito menos as questões que ampliam a sua vulnerabilidade social ao adoecimento, o que pode ser acrescido pela falta de atenção e respeito ao uso de linguagens e dinâmicas próprias, na ampla diversidade cultural, que se fazem presentes em meio à pluralidade que tem na clientela do SUS apenas uma síntese do mundo. Em resposta a essas demandas, os espaços sagrados afro-brasileiros vêm por meio de suas práticas funcionando como espaços de articulação política e, simultaneamente, como pronto socorro, tal como orientava a cultura dessas tradições vivenciadas na África, antes mesmo de tais pontos serem cogitados na relação catastrófica entre o Estado e a religião. Em discussão, está o reconhecimento inclusive dessas práticas terapêuticas desenvolvidas por essa parcela da população, que tiram da fila do SUS um enorme número de pessoas, que evitam, por fim, de o médico tratar das doenças da alma quando essas não são de fato do corpo. Não se trata, portanto, de fragmentar o doente, dando pedaços dele para o “curandeiro” e a outra parte para o cientista, mas sim de avaliá-lo a partir do todo. Para Kell5: (...) integralidade como crítica à atitude médica fragmentária, a um sistema que privilegia a especialização e segmentação, à atitude médica reducionista, à formação médica de base flexneriana – recusa em reduzir o paciente ao aparelho ou sistema biológico que supostamente produz o sofrimento e, portanto, a queixa do paciente – integralidade tomada a partir do referencial da medicina integral. Integralidade como crítica a práticas dos profissionais de saúde como uma dimensão das práticas, buscar compreender o conjunto das necessidades de ações e serviços de saúde que um paciente apresenta para além da atenção individual curativa, incorporação de ações de promoção e prevenção na atenção à saúde e articulação com ações curativas e reabilitadoras – integralidade

5

importante enfermeira sanitarista do Ministério da Saúde.

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tomada a partir do referencial da medicina Preventiva. Integralidade como modo de organizar as práticas relaciona-se com a organização dos serviços e das práticas de saúde, crítica a separação entre práticas de saúde pública e práticas assistenciais, entre ações de saúde coletiva e atenção individual, crítica aos programas verticais – integralidade tomada como horizontalização dos programas. Integralidade como modo de organizar o processo de trabalho em saúde, de modo a otimizar o seu impacto epidemiológico – articular atenção a demanda espontânea coma oferta programada de atenção à saúde, busca contínua de ampliar as possibilidade de apreensão e satisfação das necessidades de um grupo populacional, de ampliação da eficiência – integralidade tomada como oferta programa de atenção à saúde. Integralidade como acesso às técnicas de diagnóstico e tratamento necessárias a cada caso quando necessário, articulação a partir da atenção básica aos meios de diagnóstico e atenção especializada quando necessário, de ampliação de acesso ao sistema de saúde e de resolutividade da atenção – Integralidade tomada como acesso a diversos níveis de atenção. Integralidade como construção de políticas especificamente desenhadas para dar respostas a um determinado problema de saúde ou aos problemas de saúde que afligem um determinado grupo populacional, articulação intra e intersetorial, de ampliação dos âmbitos e articulação de diversos espaços para a busca de soluções, busca de qualidade de vida – Integralidade tomada como ampliação do horizonte de intervenção sobre problemas. De acordo com o Texto Constitucional, deveria caber ao Estado a tarefa de garantir a saúde para todos, por meio de políticas sociais e econômicas voltadas tanto para a “redução do risco de doença e de outro agravos”, quanto “ao acesso universal e igualitário a ações de serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. É nessa segunda perspectiva que a constituição reconhece a relevância pública das ações e serviços de saúde e delineia um sistema único (o Sistema Único de Saúde), integrado pelas ações e serviços públicos de saúde, mas do qual também podem participar, em caráter complementar, instituições privadas.

Portanto, só haverá integralidade quando, num espaço determinado, as diferenças forem compreendidas, respeitadas e levadas para a mesa de negociação entre os diferentes atores, pois numa ação a ser desenvolvida em rede, com tamanhas diversidades e adversidades, é preciso que todos tenhamos claro, tal como no Terreiro, qual é o nosso real papel, qual a nossa real missão e a importância que o outro possui, o que só pode 273


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ser respondido a partir da pergunta “quem é você?” Pode até ser que essa missão seja momentânea, mas nunca superficial. Cabe questões a ideia também de eterna duração. O Orunkó6 de cada novato alimenta essa discussão, pois se fazem “master” as informações sobre quem sou e de onde eu venho. Ao aprofundar o debate, Kell et al nos informa ainda que: “...as ações de saúde devem ser combinadas e voltadas ao mesmo tempo para prevenção e a cura. Os serviços de saúde devem funcionar atendendo o indivíduo como um ser humano integral submetido às mais diferentes situações de vida e trabalho, que o leva a adoecer e a morrer. O indivíduo não deve ser visto como um amontoado de partes (coração, fígado, pulmão, etc.) e solto no mundo. O indivíduo é um ser humano, social, cidadão que biológica, psicóloga e socialmente está sujeito a riscos de vida. Dessa forma o atendimento deve ser feito para a sua saúde e não somente para a sua doença. Isso exige que o atendimento seja feito também para erradicar as causas e diminuir os riscos, além de tratar os danos. Isso se faz com ações de promoção (que envolve ações de/em outras áreas, como habitação, meio ambiente, educação, etc.), com ações de prevenção (saneamento básico, imunizações, ações coletivas e preventivas, vigilância à saúde e sanitária, etc.) e de recuperação (atendimento médico, diagnóstico, tratamento e reabilitação para os doentes). Essas ações de promoção, proteção e de recuperação formam um todo indivisível que não pode ser compartimentalizado. As unidades prestadoras de serviço com seus diversos graus de complexidade formam também um todo indivisível, configurado um sistema capaz de prestar assistência integral.

Logo, não se pode esquecer que a saúde possui um leque de regras a serem cumpridas, mas no Terreiro não é diferente. Um exemplo do quanto esse modelo pode ser eficaz consta das inúmeras reflexões do Grupo de Valorização do Trabalho em Rede acerca do tema. A oficina que reunia sacerdotes e sacerdotisas de umbanda e de candomblé em um diálogo sobre o conceito de saúde, o imaginário da população em geral e a visão de mundo dos Terreiros, concluiu que“é preciso que se veja um Terreiro, como um corpo biológico, com braços, mãos, pernas, cabeça, coração e inúmeras veias; do contrário, iremos trabalhar com uma estrutura sagrada, como se ela fosse uma estrutura qualquer, sem axé, sem magia, sem razão, sem o tal algo a mais que contamina todas as pessoas que adentram seus espaços, quer seja no dia das festividades, no momento da consulta ao oráculo sagrado ou na simples visita doméstica que

6

Nome ancestral anunciado durante a cerimônia de nascimento dos noviços.

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tanto nós nos fazemos. Ainda assim, esse corpo precisa de roupa, que deve ser trocada, lavada, passada, perfumada. Afinal estamos falando da saúde de um corpo. E, como todos os corpos, esse também precisa de asseio e não pode ser visto apenas como um imóvel”. O processo de atenção e promoção de saúde no Terreiro é algo que começa no acolhimento e termina com o bem-estar dos que se envolvem, inclusive, nas cerimônias fúnebres. Saúde no Terreiro perpassa pela saúde espiritual, mental e física de cada indivíduo. Saúde é algo que se constrói a partir do desenvolvimento individual e coletivo, com todos os recursos necessários para impedir a chegada ou o avanço de uma doença, antes mesmo do uso de drogas medicamentosas. Em caso de cura, não é diferente, e no Terreiro o uso de medicamento não altera em nada a relação do sujeito com seu ancestral, razão pela qual a medicina tradicional de matriz africana está sempre apoiando o desenvolvimento da medicina oficial. Elas são, portanto, complementares e dispensam a necessidade de competição. Assim é da roda do candomblé, onde todos têm funções específicas, que se complementam, que se reporta à uma possibilidade de rede. Há a total clareza de que a doença que é do corpo o médico resolve, porém, existem males que para você se ver livre deles é preciso percepção e escuta qualificada. Nessa roda, que gira pela força da rede, novamente os papéis são adicionais. Essas questões são todas passíveis de diálogo contínuo, sem prejuízo ao mundo dos homens nem tampouco ao universo mágico-ancestral. No Terreiro, a saúde é como uma joia, capaz de agradar os olhos de todos que a apreciam, mas é também algo a ser conquistado e mantido. Não estou falando apenas de um corpo saudável, mas também da forma como percebo o mundo e me percebo neste mundo, pois não posso ferir meu corpo, já que será ele o instrumento que utilizarei constantemente na relação com as divindades das quais sou sacerdote. Estou falando daquela saúde que eu perco, se for demitido amanhã, ou daquela saúde que perco, caso o gerente de meu banco resolva ligar-me para dar-me uma péssima notícia. Estou falando daquela saúde que muitos dos nossos não possuem porque, morando na beira de um sujo riacho, não há condições mínimas de se adquirir qualidade de vida e sair dali, é um sonho, mas ele não tem para onde ir. Estou falando daquela saúde que eu não vou encontrar no meu local de trabalho porque as condições de trabalho são cada vez piores. Estou falando daquela saúde que não vou conquistar, caso a fila do SUS não cesse o quanto antes, pois, até eu chegar ao médico (para resolver um problema que muitas vezes não é de sua competência), com toda minha ideologia, chegarei a óbito, ou adoecerei ainda mais. Como vimos no caso de Sobral, existem experiências concretas na região nordeste do Brasil que diminuíram o orçamento da cidade e melhoraram o Sistema Único de Saúde local, porque incluíram no quadro da Unidade Básica de Saúde antigos reza275


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dores da comunidade e, com a perspectiva da territorialidade, potencializando assim a Estratégia Saúde da Família: é o rezador e a rezadeira quem recebem a população na triagem e a encaminha para o médico, se necessário for. Segundo o que pude constatar, som ambiente, uso medicinal de ervas e diálogo aberto na chegada à UBS é o que marca a nova cara de uma determinada unidade de saúde. E o médico, em alguns casos, é enviado sem prejuízo para as áreas em que ele não atendia porque não tinha agenda. “Portanto, a formulação de uma política nacional de saúde da população negra buscaria romper um dos elos que garantem a persistência dessa situação, reconhecendo, por um lado, a forma dinâmica da contribuição da sabedoria da medicina popular e das manifestações culturais e artísticas afro-brasileiras para a promoção do bem-estar físico, psíquico e social da população. Por intermédio de categorias culturais que permitem outras formas de perceber, expressar, avaliar e tratar doenças, os terapeutas populares, como mães de santo, rezadeiras, raizeiras e parteiras atendem a uma demanda expressiva de doentes que não tem acesso aos serviços públicos de saúde e, para muitos, oferecem a primeira e talvez a única terapêutica disponível.” (Política Nacional de Saúde da População Negra – Uma Questão de Equidade/ Subsídios para o Debate). A academia nos brinda ainda com modelos em que constatamos que essa possibilidade de atenção à saúde nos Terreiros dos quintais do Brasil é, portanto, uma mola propulsora que nos motiva a prover cuidado e atenção ao outro, conforme sua necessidade, desde o primeiro momento, quando o consulente senta-se à mesa do jogo de búzios em busca de informações centrais para o seu desenvolvimento, para que esse possa seguir em paz na busca de seus objetivos. O aconselhamento ofertado naquele espaço, portanto, está pautado em valores que reúnem diferentes possibilidades, e uma delas é a clareza de que naquele momento, por mais que o sujeito seja dependente, ele não está inválido, nem tampouco é incapaz de pensar, avaliar e tomar decisão sobre e para si. Porém, é preciso reconhecer “que não há integralidade e equidades possíveis sem a universalidade do acesso garantida” (CECÍLIO). É preciso destacar também que os serviços prestados pelo Estado são serviços para quais existe receita, recurso e devemos usufrui-lo de acordo com as reais necessidades da sociedade. Assim, muitas das tecnologias disponíveis neste terreno já são ultrapassadas e não acompanharam a evolução da sociedade e o SUS não pode ser gerenciado como quando nasceu, afinal, lá se vão mais de vinte anos. Nesse sentido, também a cultura do gratuito (remédio de graça) é errônea, dado o valor dos inúmeros impostos que pagamos no dia a dia. Ainda no que tange ao direito à saúde, vale ressaltar a importância que tem para o Brasil a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Carta de Otawa para a pro276


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moção de Saúde, as Leis nºs 8.080/90 e 8.142, também de 1990, documentos esses que contam com o poderio brasileiro, técnico-político, além, é claro da diferenciada e polêmica visão sobre os direitos individuais e humanos, principalmente no ponto de vista da educação e da ética. Ética essa que deve estar pautada nas diferentes áreas do conhecimento, não apenas na medicina, ciência que direta ou indiretamente reúne uma grandiosa quantidade de profissionais que não se atentam para as especificidades presentes no cenário brasileiro. Essa problemática não surge agora com a fala dos mais jovens como querem alguns, mas sim na ausência destas discussões nas escolas de saúde pública e outras salas de aula, onde estão alunos que não possuem nos seus currículos disciplinas que tratem de saúde pública, na prática e, por conseguinte, não aprendem o mínimo sobre as questões relacionadas à saúde da população negra, ou indígena, por exemplo. O Terreiro não oferta modelo de saúde alternativa e sim uma medicina tradicional, pautada na relação com a natureza, mas, sobretudo, do homem com ele mesmo. O conceito de saúde ofertado pelas religiões afro-brasileiras, como vimos aqui, está distante da lógica médico-centrada, calcada nas veias do cotidiano da comunidade científica, nem tampouco dialoga com a visão imposta pelo sistema, que quer, “por meio de lei, humanizar os profissionais de saúde, mal remunerados e sem condições alguma” de promover um trabalho qualitativo, quando esses devem interagir com os usuários. Nesse universo entende-se saúde como o equilíbrio entre todas as coisas e a garantia do bem-estar e o desenvolvimento humano, espiritual e social do indivíduo, o que significa proporcionar-lhe o equilíbrio entre eles e todos os seres, assim, possibilitando uma plena saúde mental, espiritual e física. A sua relação com seus ancestrais irá encabeçar o processo de obtenção ou não dessa saúde de que se fala tanto. A relação com o outro determinará, por exemplo, a saúde do local de trabalho. A prática religiosa irá qualificar a saúde das relações espirituais e ancestrais, antes de tudo, pois nelas estão concentradas as articulações entre a ancestralidade e a descendência. O debate sobre religião e religiosidade nos reporta às questões de humanização das “pessoas humanas” e dos sistemas. Informações referentes à humanização da saúde e ao Programa Humaniza SUS podem ser obtidas no site do Ministério da Saúde. Porém, por acreditar que a Política Nacional de Humanização nos oferta consideráveis mecanismos para o diálogo sobre religiões afro-brasileiras e saúde, empresto de RIOS (2003) um pouquinho de sua expertise acerca do espírito da Política de Nacional de Humanização, compartilhada conosco durante o 2º Seminário de Sexualidade e Espiritualidade frente à Saúde, realizado pelo GT Religiões da Coordenação Estadual de DST-AIDS de São Paulo: 277


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Humanização é o processo de transformação da cultura institucional que reconhece e valoriza os aspectos subjetivos, históricos e socioculturais de usuários e profissionais, assim como os funcionamentos institucionais importantes para a compreensão dos problemas e elaboração de ações que promovam boas condições de trabalho e qualidade no atendimento. O termo humanização é recente, mas ações que têm tais princípios em sua origem são frequentes nos serviços de saúde há bastante tempo. No ano 2000 o Ministério da Saúde lançou o Programa Nacional de Humanização da Assistência Hospitalar (PNHAH). Em 2003, o Ministério passou o PNHAH por uma revisão e lançou a Política Nacional de Humanização (PNH). Segundo documento do Ministério da Saúde (Oficina HumanizaSUS – Novembro de 2003), entende-se o conceito de humanização como aquele que: 1. Valoriza a dimensão subjetiva e social em todas as práticas de atenção e gestão fortalecendo e estimulando processos integradores e promotores de compromissos e responsabilização; 2. Aumenta o grau de corresponsabilidade dos diferentes atores que constituem a rede SUS na produção da saúde, implicando a mudança na cultura da atenção dos usuários e da gestão dos processos de trabalho; 3. Garante condições para que os profissionais efetuem seu trabalho de modo digno e criador de novas ações e que possam participar como cogestores do processo de trabalho; 4. Fortalece o trabalho em equipe multiprofissional, estimulando a transdisciplinaridade e a grupalidade; 5. Utiliza a informação, comunicação, educação permanente e os espaços da gestão na construção de autonomia e protagonismo de sujeitos e coletivos.

O grande dilema já amplamente discutido pelos experts: como lidar com humanização em saúde, desconsiderando a saúde espiritual das pessoas que cuido, como se eu fosse médico, psicólogo, etc., ou sem pensar na minha própria saúde mental enquanto sacerdote, homem de carne e de osso. O mesmo vale para os profissionais de saúde, aqui conhecidos como cuidadores de fato. O desrespeito ao histórico ancestral–mítico, individual e coletivo, bem como a promoção do preconceito religioso (e de seu pai, o racismo), fere os valores resgatados pela Política Nacional de Humanização, razão pela qual são consideradas como ação que contribui para o adoecimento de suas vítimas, dado o impacto causado em cada uma delas, que, muitas vezes, só tem a sua mãe de santo para contar. Direito à saúde é também a garantia do direito do outro ter seu “lugar” de pessoa e de “sujeito senhor de sua história” entre os usuários do Sistema Único de Saúde, tendo 278


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assim garantidas as ações de atenção, prevenção, promoção e educação em saúde, de forma a atentar-se para as diferentes linguagens, visões e conceitos, pois, sacerdotes e sacerdotisas de religiões afro-brasileiras não podem mais continuar a ser barrados nos espaços públicos, por não serem reconhecidos como autoridades de fato, em um Estado que se diz laico, mas que abaixa a cabeça para outras instituições quando a questão é adesão ao preservativo, direito ou não ao aborto, ao uso de pílulas e outros métodos anticoncepcionais. Intrigante constatar que essas mesmas instituições usufruem as estratégias do Brasil imperial, ainda que nos tempos de hoje. Essas tradições por vezes não estão contempladas em projetos de lei que falam de religião, o que desconsidera a pluralidade; as leis existentes que tratam, por exemplo, da assistência religiosa em âmbito hospitalar não dizem de quem é a responsabilidade do credenciamento das autoridades religiosas. Não dizem também quais os critérios para que esse processo ocorra tranquilamente e não define responsabilidade ou questiona as citadas aqui. É possível corrigir os modelos que alimentam a continuidade desse processo que inviabiliza ações de organizações capazes de promover o desenvolvimento humano de determinada parcela da população. É possível derrubar métodos que permitem que em nome do preconceito religioso, os mortos oriundos dos Terreiros sejam enterrados sem o mínimo de dignidade ofertada pela tradição, através dos costumes que tais sujeitos honraram em toda uma vida. Além disso, é preciso responder à cultura da submissão que obriga o grupo a obedecer ao sistema, disfarçando e abaixando a cabeça para os ditames da fé alheia, a fim de que tudo seja resolvido em paz, por exemplo, no momento do sepultamento, as custas de silêncio e omissão sobre sua religiosidade. Esses fatores estão alimentados, ainda, pelos que querem culpabilizar o próprio povo de santo, sob a ótica de que esses religiosos se escondem em meio à identidade e, assim, eles dizem responder a essas questões, dizendo-se a favor da diversidade e contra toda e qualquer discriminação. Para Xavier7, importante docente e pesquisador da área: os objetivos da vida feliz para os complexos africanos podem ser divididos em cinco: viver muitos anos, ter abundância na vida, estabelecer relações familiares, ter filhos e superar as diversidades do mundo. Viver muito é uma condição de felicidade africana. Diferentemente das sociedades que têm a velhice com ‘força inválida’ para a produção, os africanos consideram os velhos e velhas o alicerce das sociedades. Eles são a memória viva ancestral e os pontos de

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Antigo docente da Universidade Cidade de São Paulo.

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ligação entre a palavra dada pelo ser ancestral às novas gerações. Os velhos e velhas são acolhidos no seio da comunidade, pelos valores ancestrais escritos em cada uma de suas rugas e marcas do tempo. A abundância é oposição à escassez, em todos os sentidos. Ela permite existência digna, ante os ancestrais, ante o sagrado, ante a descendência, para estabelecer fortes relações com a família. A família – as grandes famílias africanas – é a base das relações sociais e da formação dos indivíduos. Ter filhos e filhas é perpetuar-se: osso do mesmo osso. É assegurar a linha de continuidade no tempo. É manter acesa a chama da palavra, transmitida de geração a geração. Superar as adversidades é enfrentar de frente os obstáculos verificáveis e os obstáculos intangíveis. Esses são elementos que formam o estatuto da vida feliz para os africanos e africanas. Eles são apoiados numa ampla rede de valores, porém, que não se sustentam no vácuo. A densidade desse estatuto são os valores transmitidos pelas falas, atos, cantos, danças e toques africanos. Tais valores estão no DNA incrustado nos espaços sagrados africanos. Cada canto, cada toque, cada dança, cada conhecimento de uma folha, cada conhecimento de um rito ou mito, cada roda, cada ato tem um pedaço de um valor transcendente que os estudos contemporâneos podem colocar à disposição das comunidades dos Terreiros, das comunidades das demais rodas místicas africanas e das comunidades em luta pela afirmação dos direitos de cidadania dos afrodescendentes. Os iorubas têm quatro grandes valores que podem migrar para o universo afrodescendente atual, contidos em cada uma de suas equivalências universais (sistema oracular divinatório, processo de iniciação religiosa com a inoculação do axé sagrado e estrutura panteônica): iwá, aba, axé e suru. O iwá é o caráter, a integridade. Esse valor é imprescindível para a construção de novos cenários: realidades verdadeiras são construídas com o caráter. Mais do que veículo de informação, a palavra para o africano tem dimensões sagradas (do ser sagrado para a humanidade) e religiosas (da humanidade para o ser sagrado). Ela cria cenários possíveis! A mentira e a falta de honra criam cenários falsos e insustentáveis. Foi esse valor que permitiu aos velhos e velhas africanos que fundassem suas casas de axé e que elas se preservassem até os dias atuais como fontes geradoras e retroalimentadoras de força vital para a realização de projetos. As casas de culto aos ancestrais, veiculadoras da verdade. Para os africanos a mentira é uma ruína permanente. Outro valor importante é o aba, desígnio. Cada afrodescendente tem uma função na construção de sua história. Ele é coautor da sua história, da sua luta, da preservação de sua memória.

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O indivíduo se fortalece na relação com os outros. Axé é a força de realização. É a força que move os que vão em frente e fazem a sua história. E suru é a paciência para saber esperar os resultados do que foi feito. A fonte desses valores é a oralidade.

A umbanda, tradição mista, considerada genuinamente brasileira, está inserida neste contexto e apresenta, por conta de suas características próprias, outras possibilidades de manutenção do grupo, visto que está mais próxima do cristianismo, autodeclaradamente e com valores, princípios e dinâmicas que não vão aparecer no universo das casas de candomblé, mesmo que não se possa provar a pureza das tradições na atualidade do complexo terreno pluriafro-religioso. Para Guimarães e Augras, o candomblé vai além do que se imagina e: ...a vida do adepto é pontuada por transformações sucessivas, que vão levando, no fim de seu percurso existencial, à identificação, cada vez mais rica e mais profunda, com as diversas entidades que têm nele a sua morada. Cada pessoa é vista como receptáculo de uma constelação de deuses, organizada segundo modelo estritamente hierarquizado, dominada pelo orixá principal, ou dono da cabeça, ao qual o iniciado se refere como meu santo. Conforme um mito de origem, cada cabeça humana, antes do nascimento, é construída a partir de algum fragmento de matéria-prima (...)”. E assim, com a essência do orun – mundo das divindades, o conjunto mitológico dessas tradições e a oralidade, um fator central na promoção da cultura, vai explicando, relendo e reorientando o aiye – mundo dos homens.

Em meio às articulações sobre religiões afro-brasileiras e saúde, Monteiro (2006) nos informa que “no Terreiro, onde o maior de todos os valores é a ancestralidade, aprende-se que o bem-estar e a busca pelo lado bom da vida, a possibilidade de ser feliz, ter saúde plena, ter caminhos abertos, são literalmente dependentes da minha relação com o sagrado e, sobretudo, com a minha ancestralidade.” É fundamental nessa seara que “o sujeito que chega no Sistema Único de Saúde seja recebido como pessoa e não como coisa, como paciente, como número.” Esse conceito tão caro, já amplamente discutido no cenário da saúde pública, altera por fim a dinâmica do sistema, traz para a linha de frente aqueles cujo o assunto é de seu interesse prioritário e, assim, vamos dando voz a quem tem porta-voz e, segundo as regras de controle social, nem sempre se sentem representados. Essa visão engole a ideia de que “a religião é um caminho que transcende o campo do auxílio mágico transformador, capaz de ampliar os horizontes dos indivíduos, levando-os 281


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a promover ações sociais em busca de melhoria da qualidade de vida de seus beneficiados, bem como a sua própria, pois sentir – se útil – é muito bom e faz a diferença.” Segundo Steil (32: 2001) “... A experiência religiosa proporcionada pela tradição popular é a de que o sagrado irrompe no mundo de muitas formas e por muitas mediações, assumindo expressões múltiplas e diversificadas para além das fronteiras das religiões institucionalizadas. Cabe ao praticante beber de todas as fontes (...); E, como o pluralismo sociorreligioso é uma constante na história da civilização brasileira e, por que não dizer, humana, não nos faltam referências para a obtenção de bênçãos e conhecimentos.”

Conclusão Ao Estado cabe ouvir “o pensar” de todas as tradições religiosas, sem exceção e sem concessão de privilégios. A informação em saúde deve reconhecer a importância de o usuário do SUS declarar-se religioso, conforme a especificidade de sua crença, mapear as diferentes instituições religiosas presentes no território do serviço público a fim de se tecer uma rede de cooperação para promoção da saúde, como recomenda o Projeto Xirê – Prevenção de DST/AIDS na Roda dos Orixás8, e garantir a atenção, visita e assistência religiosa ao sujeito, nas dependências hospitalares, tal como a cerimônia fúnebre conforme os ritos de sua tradição, ao invés do sujeito omitir-se junto à rede de serviços e, assim, alimentar o proselitismo e a violência presente no SUS, muitas vezes escondida no discurso sobre igualdade, universalidade e a existência de um Deus único. Essas informações, junto ao prontuário do sujeito, poderiam contribuir de forma exitosa com o processo de promoção e humanização da saúde, gerando ainda uma importante reeducação em favor dos direitos do usuário e a legislação correspondente. Uma grande rede com esses princípios poderia ter como eixo central a relação existente entre paciente e serviço público, deixando de demonizar os servidores e as tradições, alterar a educação permanente direcionada a esses profissionais, promover atenção global ao sujeito na sua integralidade, universalizar, de fato, o Sistema Único de Saúde, com a participação da comunidade, e ressignificar as relações humanas no ambiente da saúde pública, uma vez que, ao invés de capelas e capelanias, o usuário e os seus pudessem experimentar realmente as suas práticas religiosas diante da doença, em territórios livres, com assistência religiosa em geral, sem simbologias específicas,

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esenvolvido em franca parceria entre o Programa de DST/AIDS da Secretaria de Saúde do Município de São Paulo e D o Grupo de Valorização do Trabalho em Rede, juntando Terreiros e unidades de saúde da rede especailizada.

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cujo contrário configura uma contradição da laicidade, e seu foco poderia voltar-se para a ideia de atenção integral, na diversidade, conforme prevê a Lei Gouveia e a Constituição Brasileira.

Referências Bibliográficas CARVALHO, Alexandre MT de. “O sujeito nas encruzilhadas da Saúde: um discurso sobre o processo de construção de sentido e de conhecimento sobre sofrimento difuso e realização do ser no âmbito das religiões afro-brasileiras e sua importância para o campo da Saúde Coletiva”. 2004. Ministério da Saúde/Fundação Oswaldo Cruz /Escola Nacional de Saúde Pública; disponível em: http://pt.scribd.com/doc/39730933/relacao-entre-as-religioes-afro-brasileiras-e-saude SILVA, José M. Religiões Afro-Brasileiras e Saúde/Prêmio Ossain. Consulta ao site da PUC – RJ em junho/2006. MONTEIRO, Celso Ricardo. Saúde Pública no Estado de São Paulo: Diversidade, Equidade e Direitos Humanos – Seminário de Saúde Pública/Direitos e Deveres das Religiões Afro-Brasileiras (Assembleia Legislativa do Estado de são Paulo – 2004). KALCKMAN, Suzana. Apresentação oral no II Encontro Intermunicipal de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde, junho de 2006. Auditório da Secretaria Especial de Participação e Parceria da Prefeitura do Município de São Paulo. CECÍLIO. Luís C. de Oliveira. As Necessidades de saúde como conceito estruturante na luta pela integralidade e equidade na atenção. Disponível em: http://www.uff.br/pgs2/textos/Integralidade_e_Equidade_na_Atencao_a_saide_-_Prof_Dr_Luiz_ Cecilio.pdf XAVIER, Juarez de Paula. O papel decisivo das pesquisas para conhecimento dos valores ancestrais afrodescendentes. In: Dimensões da inclusão no Ensino Médio: mercado de trabalho, religiosidade e educação quilombola – Ministério da Educação, dezembro de 2006. MONTEIRO, Celso Ricardo. A dança da doença com a saúde: contribuições das religiões afro-brasileiras para o processo de humanização da saúde pública. Disponível no site do Centro de Referência e Treinamento de DST/AIDS da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo. Site www.crt.saude.sp.gov.br PIERUCCI, Antônio Flávio. Bye Bye Brasil – O declínio das religiões afro-brasileiras no Censo 2000. In: Estudos Avançados 18 (52), 2004. GUIMARÃES, Marco Antônio Chagas e AUGRAS, Monique. Os Assentos dos Deuses: um aspecto da construção da identidade mítica no candomblé. In: Religião e Sociedade.

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