Bahia Análise & Dados - Economia Criativa

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BAHIA ANÁLISE & DADOS SALVADOR • v.22 • n.4 • OUT./DEZ. 2012

ECONOMIA CRIATIVA

ISSN 0103 8117



ISSN 0103 8117

Bahia anรกl. dados

Salvador

v. 22

n. 4

p. 597-718

out./dez. 2012

Foto: Flickr/Gabriela Amorim

BAHIA ANร LISE & DADOS


Governo do Estado da Bahia Jaques Wagner Secretaria do Planejamento (Seplan) José Sergio Gabrielli Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia (SEI) José Geraldo dos Reis Santos Diretoria de Pesquisas (Dipeq) Armando Affonso de Castro Neto Coordenação de Pesquisas Sociais (Copes) Roberto Maximiano Pereira BAHIA ANÁLISE & DADOS é uma publicação trimestral da SEI, autarquia vinculada à Secretaria do Planejamento. Divulga a produção regular dos técnicos da SEI e de colaboradores externos. Disponível para consultas e download no site http://www.sei.ba.gov.br. As opiniões emitidas nos textos assinados são de total responsabilidade dos autores. Esta publicação está indexada no Ulrich’s International Periodicals Directory e na Library of Congress e no sistema Qualis da Capes.

Conselho Editorial Ângela Borges, Ângela Franco, Ardemirio de Barros Silva, Asher Kiperstok, Carlota Gottschall, Carmen Fontes de Souza Teixeira, Cesar Vaz de Carvalho Junior, Edgard Porto, Edmundo Sá Barreto Figueirôa, Eduardo L. G. Rios-Neto, Eduardo Pereira Nunes, Elsa Sousa Kraychete, Guaraci Adeodato Alves de Souza, Inaiá Maria Moreira de Carvalho, José Geraldo dos Reis Santos, José Ribeiro Soares Guimarães, Laumar Neves de Souza, Lino Mosquera Navarro, Luiz Filgueiras, Luiz Mário Ribeiro Vieira, Moema José de Carvalho Augusto, Mônica de Moura Pires, Nádia Hage Fialho, Nadya Araújo Guimarães, Oswaldo Guerra, Renato Leone Miranda Léda, Rita Pimentel, Tereza Lúcia Muricy de Abreu, Vitor de Athayde Couto Conselho Especial Temático Carmen Lucia Castro Lima (Seplan), Luciano Damasceno (Secult), Paulo Henrique de Almeida (Seplan), Paulo Miguez (UFBA) Coordenação Editorial Armando Castro Roberto M. Pereira Stefanie Eskereski Coordenação de Biblioteca e Documentação (Cobi) Normalização Eliana Marta Gomes da Silva Sousa Coordenação de Disseminação de Informações (Codin) Ana Paula Porto Editoria-Geral Elisabete Cristina Teixeira Barretto Editoria Adjunta Patricia Chame Dias Revisão de Linguagem Calixto Sabatini (port.), Rafael Cardoso Cunha (ing.) Editoria de Arte Ludmila Nagamatsu Capa Daniel Soto Editoração Agapê Design Produção Ludmila Nagamatsu Érika Encarnação

Bahia Análise & Dados, v. 1 (1991- ) Salvador: Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia, 2012. v.22 n. 4 Trimestral ISSN 0103 8117 CDU 338 (813.8) Impressão: EGBA Tiragem: 1.000 exemplares Av. Luiz Viana Filho, 4ª Av., nº 435, 2º andar – CAB CEP: 41.745-002 Salvador – Bahia Tel.: (71) 3115-4822 / Fax: (71) 3116-1781 sei@sei.ba.gov.br www.sei.ba.gov.br


Apresentação

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Música e economia criativa na Bahia contemporânea Armando Alexandre Castro

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Cartografias possíveis: quando as sonoridades definem territórios de esperança Maria Teresa Franco Ribeiro Armando Alexandre Castro

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Diálogo entre a economia solidária e a economia criativa no Projeto Fomento à Arte e à Economia Solidária na Região do Cariri Cleonisia Alves Rodrigues do Vale Eduardo Vivian da Cunha Marcus Vinícius de Lima Oliveira

639

O Programa Cultura Viva e a economia criativa: análise do Moinho Cultural Sul-Americano Adriano Pereira de Castro Pacheco

653

Economia criativa – conceitos e classificações Bouzid Izerrougene Lielson A. de Almeida Coelho Henrique Tomé da Costa Mata

665

Um metamodelo da economia criativa e seu uso para prospecção de políticas públicas Mario Cezar Freitas

677

Criativa Birô: políticas públicas para o campo da economia criativa Jorge Claudio Machado da Silva

687

Economia criativa na Bahia: planejamento, perspectivas, formação e qualificação de empreendedores criativos Sirius Bulcão Luciano Damasceno Santos Juan Brizuela

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A nova economia do compartilhamento e o equilíbrio entre direito autoral e coletivo Maíra Vilas Bôas Matos

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Foto: Rafael Martins/Secom

SUMÁRIO



APRESENTAÇÃO

Foto: Secom

A

Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia apresenta ao público mais um exemplar da Bahia Análise & Dados, volume 22, que aborda o tema Economia Criativa. A importância desta discussão foi atestada pelo Ministério da Cultura ao criar, em 2011, a Secretaria da Economia Criativa e definir o seu plano de gestão para o período 2011-2014. Esta iniciativa do governo federal reafirma o potencial protagonista das atividades criativas para o país com base em um desenvolvimento inclusivo e sustentável. E a Bahia, em particular Salvador, deve reforçar a sua participação neste processo de forma imperativa. O Ministério da Cultura define nesse plano os setores criativos como sendo “[...] aqueles cujas atividades produtivas têm como processo principal um ato criativo gerador de um produto, bem ou serviço, cuja dimensão simbólica é determinante do seu valor, resultando em produção de riqueza cultural, econômica e social”. Assim, o plano da Secretaria da Economia Criativa parte do princípio de que “[...] as dinâmicas culturais, sociais e econômicas são construídas a partir do ciclo de criação/produção, distribuição/circulação/difusão e consumo/fruição de bens e serviços oriundos dos setores criativos, caracterizados pela prevalência de sua dimensão simbólica”. Com base nestes pressupostos, a SEI disponibilizou ao público um edital convocatório para captura de textos relativos à economia criativa. O resultado deste processo de consulta foi a recepção de artigos organizados em pelo menos três campos do conhecimento: relatos de experiências, a exemplo da música na Bahia, da economia solidária no Ceará e do Programa Cultura Viva, no Mato Grosso do Sul; debates relativos aos conceitos e classificações de economia criativa, planejamento e ações de políticas públicas para o setor; e a discussão sobre o direito autoral e o direito coletivo sobre os bens criativos. Com isto, a SEI acredita estar cumprindo o importante papel de dar continuidade ao trabalho iniciado pelo mestre Celso Furtado quando esteve à frente do Ministério da Cultura (1986-1988) e da Comissão Mundial de Cultura e Desenvolvimento da UNESCO/ONU (1992-1995). Na época, Furtado, no seu Ensaios Sobre Cultura e o MinC, editado em 2011 pela Contraponto, afirmou que a cultura devia ser vista como “[...] meio maior e fim último do desenvolvimento, tendo um papel-chave no desenvolvimento da vida do espírito; a cultura vista não como simples dimensão da vida humana, mas como um fator essencial do desenvolvimento, da economia e da preservação do meio natural”.



Bahia análise & Dados

Música e economia criativa na Bahia contemporânea Armando Alexandre Castro* *

Doutor em Administração pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), mestre em Cultura & Turis­mo pela Universidade Esta­dual Santa Cruz (UESC). Professor do Departamento de Comunicação So­­cial da Universidade Federal de Sergipe (UFS). aaccastro@gmail.com

Resumo O artigo apresenta uma das mais recentes mudanças na música da Bahia: o surgimento e a estruturação do campo da gestão do trabalho literário-musical que, embora não percebida, é uma das etapas mais relevantes da cadeia produtiva da música. Portanto, a estruturação deste trabalho aborda conceitos estruturantes e questões pertinentes à economia criativa, tais como propriedade intelectual, direitos autorais, criatividade e gestão cultural. Palavras-chave: Economia criativa. Música. Bahia. Direito autoral. Editoras musicais. Abstract The paper presents one of the most recent changes in the music of Bahia: the emergence and structuring of the field of management of literary-musical work, which, though silent, is one of the most important steps in the production chain of music. Therefore, this work addresses the structuring concepts and issues relevant to the creative economy, such as intellectual property, copyright, creativity and cultural management. Keywords: Creative economy. Music. Bahia. Copyright. Music publishers.

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Música e economia criativa na Bahia contemporânea

INTRODUÇÃO Na década de 1970, o economista Celso Furtado propôs uma revolução cognitiva amparada no conhecimento, na liberdade da condição humana, conceituando criatividade como “[...] faculdade humana de interferir no determinismo causal, enriquecendo com novos elementos um qualquer processo social” (FURTADO, 2008, p. 217). Para o autor, a civilização industrial, enquanto resultante de dois sistemas de criatividade – as revoluções burguesa e científica –, encontrava-se marcada por uma acentuada racionalidade instrumental, que se aplicava à produção e compreensão da natureza. Assim, apoiado em economistas como também em filósofos contemporâneos como Nietzsche e Marcuse, Furtado critica a civilização industrial ao priorizar a lógica de acumulação de capital e oportunidades que, não raro, desembocavam em crises e desigualdades socioeconômicas. Em sua proposição cognitiva, ele privilegiou conhecimento e criatividade como recursos necessários para a superação de processos distintos de dependência. Desta forma, especialmente nas últimas três décadas, as discussões acerca da relação entre cultura e desenvolvimento se ampliaram, tanto pelo viés do patrimônio cultural1, do intangível, do simbólico e suas relações identitárias, como por aquele relacionado às possibilidades de exploração econômica dos aspectos culturais, entre eles, os bens artísticos. No Brasil, desde 2003, o Ministério da Cultura (MinC) vem atuando significativamente no sentido de identificar, registrar e fomentar estudos e políticas culturais voltadas para a dimensão socioeconômica da cultura2, visando reduzir distorções e concentrações históricas do campo e inserindo a 1

2

O conceito de cultura aqui empregado é o da Organização das Nações Unidas para a educação, a ciência e a cultura (UNESCO), que a define como “[...] conjunto dos traços distintivos espirituais e materiais, intelectuais e afetivos que caracterizam uma sociedade ou um grupo social e que abrange, além das artes e das letras, os modos de vida, as maneiras de viver juntos, os sistemas de valores, as tradições e as crenças” (UNESCO, 1982, p.39). Em 2011, o MinC criou a Secretaria de Economia Criativa.

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discussão acerca dos gargalos observados no que se refere à produção, distribuição e consumo de bens artísticos e culturais. Em outras palavras, e sob a política de editais, a cultura como condição relevante para o desenvolvimento daqueles que constroem, diariamente, a nação, e não somente para aqueles residentes no sudeste do país. Neste cenário, no campo da música popular brasileira, um considerável fenômeno de criatividade, apropriação de conhecimento e desconcentração de oportunidades ocorre na Bahia, desde o início da década de 1980, sem qualquer intermediação ou estímulo, via leis ou editais. Assim, o objetivo deste artigo é apresentar uma das mais recentes transformações no mercado da música da Bahia: o surgimento e estruturação do campo da gestão da obra lítero-musical, que, embora silenciosa, é uma das etapas mais relevantes da cadeia produtiva da música. Para tanto, este trabalho aborda temas pertinentes à economia criativa, tais como propriedade intelectual, direitos autorais, criatividade e gestão cultural. No campo metodológico, além da revisão bibliográfica, optou-se pela pesquisa de campo com aplicação de entrevistas semiestruturadas junto aos autores e gestores das editoras musicais, além da análise de relatórios de órgãos do mercado musical, tais como Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (ECAD) e União Brasileira de Compositores (UBC).

ECONOMIA CRIATIVA, PROPRIEDADE INTELECTUAL E DIREITOS AUTORAIS A economia criativa pode ser conceituada principalmente a partir do fluxo de criação, produção e distribuição de bens e serviços calcados no talento e na criatividade como ativos intelectuais, associando objetivos econômicos e não econômicos, assim como os novos modelos de negócios a partir de elementos tangíveis e intangíveis (MIGUEZ, 2007). No Brasil, há estimativas de que represente Bahia anál. dados, Salvador, v. 22, n. 4, p.603-622, out./dez. 2012


Armando Alexandre Castro

cerca de 5% do PIB nacional, conforme dados do de suas criações, sejam elas artísticas, literárias relatório elaborado pela Price Waterhouse Coo- ou científicas. pers (2006). Os direitos autorais são divididos, para efeitos A propriedade intelectual constitui-se como legais, em direitos morais e patrimoniais. Os direium mecanismo efetivo de tos morais – personalíssimos, proteção à criatividade, às Os direitos autorais, ou direito inalienáveis e irrenunciáveis obras intelectuais, tanto – são aqueles referenciados do autor – copyright, em inglês –, de natureza técnica como pela disposição de proteção são uma vertente da propriedade científica e/ou artísticoda autoria da obra, sua honra intelectual e da ciência jurídica -cultural. Sherwood (1992) e reputação, ou seja, aqueles compreende que o termo é usado para designar que relacionam continuamente o autor à sua criavários direitos relacionados aos bens imateriais ção intelectual. O direito patrimonial do autor referee considera a propriedade intelectual como um -se basicamente ao direito de utilização econômica conjunto de ideias, inventos e expressões criati- da obra musical e, ao contrário dos direitos morais, vas que se configuram como ativos intangíveis da que não se transferem, a titularidade dos direitos atividade privada. patrimoniais pode ser transferida por licença, cesAtualmente, a propriedade intelectual costuma são, concessão, legado, doação, dação, ou por ouser dividida em dois campos: a propriedade indus- tros meios admitidos em Direito. trial e os direitos autorais (copyright). A propriedade industrial é amparada, principalmente, pelo direito comercial; os direitos autorais, pelas normas jurí- A GESTÃO DA OBRA MUSICAL dicas do Direito Civil, além de acordos, tratados e convenções internacionais. Dentre elas, destaque No Brasil, a relação existente entre produção para a Organização Mundial da Propriedade Inte- musical e direitos autorais é amparada pela Lei lectual (OMPI), agência da ONU que tem como ob- 9.610/98, que reconhece o vínculo entre obra e projetivo o desenvolvimento e acompanhamento de um priedade intelectual, a partir da sua autoria (indivimecanismo de propriedade intelectual a partir de dual, coletiva, inédita, póstuma, outras), publicação, alianças entre os países, além de parcerias com os transmissão, emissão, retransmissão, distribuição, demais organismos internacionais3. comunicação ao público, reprodução, contrafação4, Os direitos autorais, ou direito do autor – copyright, fonograma5, edição, produção, radiodifusão, intérem inglês –, são uma vertente da propriedade in- pretes e executantes. telectual e da ciência jurídica. Esse tema teve sua No âmbito da diversidade relacionada aos direitos complexidade potencializada a partir das novas tec- autorais/copyright, regra geral, observa-se o destaque nologias e sociabilidades contemporâneas. Pode para os direitos de execução pública e os direitos foser compreendido como um conjunto de prerrogati- nomecânicos. O primeiro é aquele percebido pelo Esvas legais conferidas aos criadores – pessoa física critório Central de Arrecadação e Distribuição (ECAD), ou jurídica –, objetivando a garantia de benefícios em shows, televisão, rádios, consultórios, academias, morais e financeiros que resultem da exploração bares, entre outros. O repasse é iniciado pelo ECAD 3

World Intellectual Property Organization (WIPO). Embora se reconheça a extensa agenda atual de eventos internacionais diretamente vinculados à propriedade intelectual – multilaterais ou bilaterais –, neste trabalho, como forma de facilitar a compreensão do assunto, optou-se pela exclusiva utilização das agendas da Organização Mundial do Comércio e da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI).

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Reprodução não autorizada. A Lei 9.610/98 define como “[...] toda fixação de sons de uma execução ou interpretação ou de outros sons, ou de uma representação de sons que não seja uma fixação incluída em uma obra audiovisual”.

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Música e economia criativa na Bahia contemporânea

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374.255.580,00

432.953.853,00

540.526.597,00

7

Órgãos não governamentais sem fins lucrativos que intermedeiam a relação de seus afiliados com o ECAD. Informam ao ECAD os dados cadastrais de cada filiado/sócio e suas obras/repertórios, possibilitando a distribuição dos valores arrecadados. No Brasil, em atividade, são dez associações arrecadadoras: Abramus, Amar, Sbacem, Sicam, Socinpro, UBC, Abrac, Anacim, Assim e Sadembra. Fonte: www.ecad.org.br. No circuito comercial, os exemplos de liberação autoral sem ônus – tanto por parte de editora ou diretamente pelo autor – não são raros. Assunto controverso e amplo que, por si só, será abordado em momento mais adequado, uma vez que não é o objetivo deste breve trabalho. Em se tratando de selos/gravadoras/produtoras fonográficas não associados à Associação Brasileira de Música Independente (ABMI), à Associação Brasileira de Editoras Musicais (ABEM), ou à Associação Brasileira de Produtores de Discos (ABPD), o pagamento é feito antecipadamente. Descarta-se, nesta situação, a possibilidade de pagamento em trimestres civis.

Os índices de arrecadação e distribuição apresentados pelo ECAD registram expressivos crescimentos desde 2005, justificados pelos investimentos contínuos em tecnologia e qualificação das equipes para melhorar os processos de distribuição dos direitos autorais. Isso se traduz no avanço da qualidade da informação, caracterizado pelos procedimentos eletrônicos de captação e identificação das execuções musicais e constante atualização do banco de dados do ECAD. Do total arrecadado, 17% são destinados ao ECAD, e 7,5%, às associações, para administração de suas despesas operacionais. Os 75,5% restantes são repassados aos titulares filiados. Após a arrecadação, a distribuição do montante autoral é efetuada a partir dos percentuais pactuados entre os compositores e suas respectivas editoras, caso sejam firmados contratos de edição ou cessão de direitos9. Os percentuais aplicáveis à parte conexa são fixos e decorrem de decisão da assembleia geral do ECAD. Atualmente estão dispostos 41,7% para os intérpretes, 41,7% para os produtores fonográficos e 16,6% para os músicos acompanhantes.

332.298.825,06

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O ECAD E A DISTRIBUIÇÃO DOS DIREITOS DE EXECUÇÃO PÚBLICA

302.206.444,00

às associações arrecadadoras6, que se encarregam de pagar aos compositores, artistas, músicos, editoras e produtores fonográficos. Direitos fonomecânicos são aqueles gerados a partir da comercialização de CD, DVD, digital, entre outras formas. De forma breve, pode-se afirmar que existem duas possibilidades para a obra que se encontra nos circuitos de produção mu­sical: editada e sem edição. Quando se trata da primeira – obra editada –, a gravadora/selo/produtora fonográfica/distribuidora de ring e real tones deve solicitar à editora musical, responsável pela gestão, a liberação/autorização de utilização comercial da obra. Por outro lado, se a obra não está sob os domínios administrativos de uma editora, a solicitação deve ser feita ao autor, que pode produzir a “liberação direta”. Nos dois casos acima, incidem ônus que se destinam ao pagamento dos direitos autorais.7 É possível constatar que, na lógica comercial, o copyright é um dos itens na planilha de custos a incidir no preço final do produto, como também representa a preservação do direito autoral em trâmites burocráticos. Estabelecem-se aí relações mercadológicas nem sempre simétricas e satisfatórias, que estimulam autores e artistas a apostarem em outras direções e tessituras. Neste sentido, o copyright é mais um elemento compositivo das planilhas de produção musical, não o maior ou necessariamente o mais importante. O pagamento do copyright é feito pela gravadora/selo/ produtor fonográfico ao autor ou editora responsável, considerando um percen­tual incidente no valor da venda ao lojista/atacado.8

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Gráfico 1 Evolução da arrecadação dos direitos de execução pública Fonte: ECAD.

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Não raro, percentuais que variam de 70% a 80% para os compositores/autores e 20% a 30% para as editoras.

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250.490.071,43

271.485.547,49

317.806.081,02

346.465.496,88

411.775.388,13

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Gráfico 2 Evolução da distribuição dos direitos de execução pública Fonte: ECAD.

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Obras internacionais

Obras nacionais

Gráfico 3 Distribuição do ECAD – Obras nacionais e internacionais Fonte: ECAD.

Os dois primeiros quadros apresentam a evolução da arrecadação e distribuição dos direitos de execução pública, num cenário de inadimplência de 52% das rádios nacionais registradas e habilitadas pelo Ministério das Comunicações (ECAD, 2010), obrigando o ECAD a ajuizar milhares de processos no Brasil contra estas e também contra televisões, empresários e promotores de shows e eventos.

MÚSICA BAIANA E MERCADO A inscrição da narrativa Bahia no imaginário nacional e internacional, a partir da relação entre arte, Bahia anál. dados, Salvador, v. 22, n. 4, p.603-622, out./dez. 2012

cultura e sociedade, ganha contornos cada vez mais pulsantes. Numa breve perspectiva historicizada, podem-se destacar fenômenos como a Bossa Nova, Tropicália, Cinema Novo, Carnaval e axé music, entre outros. Ainda assim, a produção musical baiana massiva atual é representada por estéticas diversas e construtos históricos repletos de (re)significações, conjugando registros ora consensuais, ora conflituosos, acerca de sua relevância e legitimação. Nesta direção, a “música baiana” é quase sempre compreendida e registrada a partir de alguns poucos elementos e intérpretes, ocultando diversidades e novas possibilidades de existência. Parte considerável dos registros aponta para o seu caráter homogêneo e massivo, contribuindo, desta forma, para a não revelação de outros atores e fatores instauradores de multiplicidades de sentidos, sons, timbres e formas também existentes no estado. Num primeiro momento, música baiana é aquela produzida por artistas baianos em sua territorialidade original. O equívoco, reiterado por diversos atores e agentes, é ignorar a diversidade existente na atual produção musical baiana. A expressão “música baiana”, ou mesmo “axé” – não raro –, acaba por representar, para boa parte do público nacional, a música popular massiva produzida na Bahia, desconsiderando os ritmos e gêneros que não são resultantes da mescla do som percussivo dos blocos afro com os instrumentos eletrônicos. Nestes exemplos, para efeitos comerciais e de divulgação, “música baiana”, ou “axé”, abrange diversos estilos e variações musicais como o samba-reggae, o pagode, o ijexá, entre outros. Mas o que seria a “música baiana” contemporânea neste contexto da música popular massiva? Somente aquelas musicalidades relacionadas ao Carnaval, vide axé music e pagode? Nestes dois exemplos, é evidente que a relação entre música e Carnaval é mais acentuada, resultando numa considerável execução pública em dezenas de micaretas, shows pelo país afora e num acompanhamento radiofônico mais dinâmico diluído ao longo do ano. O fato é que a expressão “música baiana” remete, 607


Música e economia criativa na Bahia contemporânea

não raro, a estes dois gêneros musicais massivos e populares. Quatro aspectos nesta análise poderiam justificar tal centralidade: a) sua configuração enquanto música pop; b) considerável relação identitária com a musicalidade e territorialidade referida à – e conhecida como – Bahia; c) articulação entre etapas distintas da produção, assegurando sustentabilidade aos artistas e empresários; d) e, por último, o vínculo ao Carnaval soteropolitano e ao circuito das micaretas. Enquanto pop, axé music e pagode obedecem às regras mercadológicas de refrões fáceis, previsíveis e repetitivos; tempos de canção que não exaurem a audição; arregimentação experimentada entre ritmo, harmonia e melodia, em que as sonoridades percussivas se aliam ao instrumental responsável pelo campo harmônico e melódico; e a própria diversidade de conjuntos, estilos e performances (CASTRO, 2010). O segundo aspecto é a relação identitária experimentada por boa parte da população local com os artistas e bandas, potencializando-os no mercado de bens simbólicos local e nacional, no qual a produção musical baiana é referência no amplo calendário e circuito de shows, vaquejadas, fei-

ONGs

ras, micaretas, festivais, formaturas, entre outros. Nova opina: A chamada música baiana, especificamente a denominada Axé music, afirmou-se como representação do carnaval soteropolitano. Festa de rua comandada pelo palco móvel, o Trio Elétrico. A discussão do possível esgotamento modístico, não nega ao estilo ser a referência de um mercado cultural periférico, que se firmou nacionalmente. Junto com a referência da cultura afrodescendente – representada na festa pelos blocos afro e afoxés – consolidam a identidade cultural soteropolitana, representando toda a Bahia (NOVA, 2010, p.01).

O terceiro argumento é o envolvimento de boa parte destes artistas baianos com as etapas e responsabilidades distintas da produção musical, fato que assegura sustentabilidade aos artistas e empresários. Eles logo se configuram como sócios na promoção de eventos e carnavais em inúmeras cidades brasileiras, assim como respondem por um autogerenciamento artístico que confere mais dinamicidade, poder econômico e liberdade à carreira. Ainda neste quesito, outro aspecto é a articulação e habilidade no tratamento com os meios de comunicação.

Carnaval Soteropolitano

Micaretas Promoção de shows/eventos

Associações (APA/ABEART)

Blocos e camarotes

Rádios

Música Baiana

Auto-agenciamento e independência

Imagem e propaganda

Indústria fonográfica

Estúdios Agenciamento artístico

Gestão do direito autoral

Trios elétricos

Figura 1 Atividades e articulação empresarial Fonte: Castro (2011).

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Armando Alexandre Castro

O último item da série de argumentos é a relação das principais estrelas e intérpretes destes dois gêneros musicais com os blocos de trio do Carnaval de Salvador e suas filiais/franquias/ parcerias no circuito nacional das micaretas. Ambos, Carnaval soteropolitano e micaretas, potencializam repertórios em rádio, aparição midiática, estrelato, poder político/econômico e articulação empresarial que, constantemente, se retroalimentam. Nesta direção, é possível afirmar a centralidade da música baiana no mundo do Carnaval, da música e dos negócios, em que parcela considerável da programação de shows e eventos musicais no país registra a contratação de seus artistas e grupos musicais ligados ao mundo carnavalesco soteropolitano. A repercussão e o sucesso massivo conferido à “música baiana” no início da década de 1980, logo convertidos em intensas e disputadas agendas de shows pelo Brasil – principalmente –, também se configurou em notável poderio econômico para um grupo reduzido de artistas e empresários musicais que continuaram residindo e, não raro, (re)investindo parte do capital no mercado da música em Salvador. Neste sentido, investimentos foram realizados na montagem de novos estúdios, na experimentação e desenvolvimento de tecnologia de gravação, na montagem de trios elétricos, no agenciamento e promoção de shows e micaretas, na organização de editoras musicais e gestão do direito autoral, autoagenciamento artístico, além de agenciamento de artistas de outras cidades e capitais, blocos e camarotes no Carnaval de Salvador e demais eventos do gênero. Para muitos autores (MIGUEZ, 2002; ALMEIDA; PESSOTI, 2000), o sucesso da música baiana atraiu etapas secundárias da produção musical, em forma de terceirização, a partir de atividades como a seleção do repertório e arranjos e gravação, restando às maiores corporações da indústria fonográfica a responsabilidade pelas etapas mais lucrativas: prensagem e distribuição. Todas as etapas da produção musical de um disco podem ser feitas na Bahia: criação e es-

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colha do repertório, seleção de músicos e arranjadores profissionais, definição da forma que tomará a música gravada, gravação e mixagem do CD (ALMEIDA; PESSOTI, 2000, p.101).

A ideia central desses autores é a viabilidade econômica do disco e da indústria fonográfica assentada na distribuição do álbum finalizado, apesar dos altos custos das campanhas promocionais dos produtos, especialmente em rádio e televisão. A manutenção de uma banda no eixo Rio-São Paulo para divulgação é dispendiosa economicamente, além de implicar, invariavelmente, a reserva ou “bloqueio” de agenda para esta divulgação. Para Guimarães (1996), o surgimento da axé music e, consequentemente, do campo de estúdios musicais de gravação em Salvador potencializou o mercado musical local, ampliando as oportunidades de registro fonográfico para outros estilos e gêneros musicais presentes no estado. Para Miguez (2002), são diversos os aspectos positivos deste mercado musical massivo baiano contemporâneo, em que a indústria da música engloba inúmeras outras atividades relevantes e indissociáveis da produção, com destaque, no caso da Bahia, para a franquia de blocos carnavalescos e a agenda anual de shows e micaretas, entre outros. Ainda quanto ao surgimento da figura do agente empresarial no mercado musical baiano, o autor destaca que “[...] seja no âmbito do rádio e da televisão, seja no dos estúdios, seja ainda naquele da montagem de bandas, desponta aí nitidamente a figura do empresário musical na cena do Carnaval” (GUIMARÃES, 1996, p, 221). A legitimação e a acentuada empresarização da atual música baiana tornaram artistas em empresários, num contexto em que as novas tecnologias se configuram, até então, como ferramenta de divulgação de seus inúmeros negócios, em especial o segmento de shows. Os quadros 2 e 3, referentes ao ano de 2010, comprovam a legitimação da música baiana, a partir da axé music e do pagode, evidenciando a referencialidade dos autores baianos e suas músicas nos rankings do ECAD. 609


Música e economia criativa na Bahia contemporânea

Mês

Cidade

Micareta

Mês

Cidade

Micareta

Janeiro

Aracajú - SE

Precajú

Junho

Belo Horizonte - MG

Evanave

Janeiro

Vitória - ES

Evanave

Junho

São Gonçalo dos Campos - BA

Forró Maria Bunita

Janeiro

Guarapari - ES

Evanave

Junho

Amargosa - BA

Forró do Piu Piu

Janeiro

São Bernardo do Campo - SP

Evanave

Junho

Cruz das Almas - BA

Forró do Bosque

Janeiro

Bom Jesus da Lapa - BA

Lapa Folia

Julho

Linhares - ES

Carnalinhares

Janeiro

Ilhéus - BA

Verão Vip

Julho

Fortaleza - CE

Fortal

Janeiro

Cabo Frio - RJ

Cabo Folia

Julho

Januária - MG

Axé Januária

Janeiro

João Pessoa - PB

Fest Verão

Agosto

Aracajú - SE

Evanave

Fevereiro

Santos/Rio de Janeiro/Salvador/Búzios

Cruzeiro Elétrico

Agosto

Recife - PE

Chevrolet Hall Indoor

Fevereiro

Praia do Forte - BA

Ensaio Geral

Agosto

Salvador-BA

Circuito Voa Voa

Fevereiro

Olinda - PE

Olinda Beer

Setembro

Costa do Sauípe - BA

Sauípe Folia

Fevereiro

Salvador-BA

Festival de Verão

Setembro

São José do Rio Preto - SP

Carnariopreto

Fevereiro/Março

Salvador-BA

Carnaval

Setembro

Goiânia - GO

Carnagoiânia

Fevereiro/Março

Porto Seguro - BA

Carnaporto

Setembro

Fortaleza - CE

Evanave

Março

Florianópolis - SC

Evanave

Setembro

Rio de Janeiro - RJ

Rock in Rio

Arembepe - BA

Lavagem de Arembepe

Outubro

São Luís - MA

Marafolia

Outubro

Juiz de Fora - MG

JF Folia

Outubro

Uberaba - MG

Axé Uberaba

Outubro

Rio de Janeiro - RJ

Evanave

Outubro

Alfenas - MG

Carnalfenas

Março Abril

Brasília - DF

Micarê

Abril

Aracajú - SE

Com Amor Fest

Abril

São José do Rio Preto - SP

Rio Preto Rodeio Show

Abril

Caldas - GO

Caldas Elétrico

Outubro

Vitória - ES

Espírito Elétrico

Abril

Salvador - BA

Forró do Reino

Outubro

São Bernardo do Campo - SP

Camaleão Fest SP

Abril

Salvador - BA

Forró Evalada

Outubro

Teresina - PI

Piauí Fest Music

Abril

Ribeirão Preto - SP

Carnabeirão

Outubro

Petrolina - PE

Arena Schin

Axé Brasil

Novembro

Costa do Sauípe - BA

Sauípe Fest

Axé Brasil

Novembro

Votuporanga - SP

Carnavotu

Micareta de Feira

Novembro

Florianópolis - SC

Florianópolis

São Jose dos Campos - SP

São José Folia

Abril (Semana 1) Abril (Semana 2) Abril

Belo Horizonte - MG Belo Horizonte - MG Feira-de-Santana - BA

Abril

Feira-de-Santana - BA

Circuito Elétrico

Novembro

Abril

Governador Valadares - MG

Gevê Folia

Novembro

Belém - PA

Parafolia

Maio

Souza - PB

Souza Folia

Novembro

Natal - RN

Evanave

Maio

Recife - PE

Maluco Beleza

Novembro

Brasília - DF

Brasília Elétrica

Maio

Natal - RN

Arraiasa

Novembro

Recife - PE

Voa Voa Recife

Maio

Rio de Janeiro - RJ

Trinave

Novembro

Campina Grande - PB

Balança Campina

Maio

Alagoinhas - BA

Alafolia

Novembro

Florianópolis - SC

Folianópolis

Maio

Montes Claros - MG

Axé Montes

Novembro

Divinópolis - MG

Divina Folia

Maio

São José do Rio Preto - SP

Rio Preto Fest Folia

Novembro

Salinas da Margarida - BA

Festival de Marisco

Maio

Maceió - AL

Forró do Nana

Novembro

Feira-de-Santana - BA

Flexada Indoor

Maio

Nova Iguaçú - RJ

Iguassu Axé

Novembro

Vitória da Conquista - BA

Micareta Massicas

Maio

Vitória - ES

NanaFest ES

Dezembro

Natal - RN

Carnatal

Maio

Aracajú - SE

Luau do Nana

Maio

Belo Horizonte - MG

NanaFest MG

Dezembro

Praia do Forte - Ba

Evanave

Junho

São Luís - MA

Coco Bambu Folia

Dezembro

Vitória - ES

Evanave

Junho

Alagoinhas - BA

Josefina Fest

Dezembro

Recife - PE

Evanave

Junho

Senhor do Bonfim - BA

Forró do Sfrega

Dezembro

Aracajú - SE

Ensaio Geral do Precajú

Junho

Itapetinga - BA

Forró da Vaca Louca

Dezembro

Manaus - AM

Planeta Música

Junho

Iracema - CE

Irafolia

Dezembro

Rio de Janeiro - RJ

Camaleão Fest RJ

Junho

Castelo - ES

Micastelo

Dezembro

Vários locais

Reveillón

Quadro 1 Carnaval, festas e micaretas – Brasil Tabela extraída de: CASTRO, A. C. A música baiana e o mercado: a gestão da obra como elemento estratégico de negócio. 2011. Tese (Doutorado em Administração). Universidade Federal da Bahia.

610

Bahia anál. dados, Salvador, v. 22, n. 4, p.603-622, out./dez. 2012


Armando Alexandre Castro

1

Victor Chaves

2

Paul Mc Cartney

3

3 - Sorocaba

4

Durval Lelys

5

John Lennon

6

Carlinhos Brown

7

Manno Góes

8

Jorge Ben Jor

9

Dorgival Dantas

10

Alexandre Peixe

11

Nando Reis

12

Euler Coelho

13

Herbert Vianna

14

Beto Garrido

15

Lulu Santos

16

Alaim Tavares

17

Rick

18

Bell Marques

19

Pinochio

20

Thiaguinho

Quadro 2 Ranking autores (shows)* Rankings elaborados exclusivamente a partir dos rendimentos oportunizados por 41.573 shows musicais devidamente legalizados em 2010. Fonte: ECAD (2011). *

1

Victor Chaves

2

Sorocaba

3

Nando Reis

4

Roberto Carlos

5

Dorgival Dantas

6

Euler Coelho

7

Paul Mc Cartney

8

Lulu Santos

9

Erasmo Carlos

10

Djavan

11

Jorge Ben Jor

12

Rick

13

Herbert Vianna

14

Caetano Veloso

15

Carlinhos Brown

16

Gilberto Gil

17

Durval Lélys

18

Manno Góes

19

Cesar Augusto

20

John Lennon

Quadro 3 Ranking autores (rendimento) Fonte: ECAD (2011).

Bahia anál. dados, Salvador, v. 22, n. 4, p.603-622, out./dez. 2012

No segmento show, amplia-se consideravelmente a representatividade da música baiana no mercado musical nacional e internacional, destacando o protagonismo de sete compositores baianos – Durval Lélys, Carlinhos Brown, Manno Góes, Alexandre Peixe, Beto Garrido, Alaim Tavares e Bell Marques – na listagem dos 20 maiores arrecadadores de shows. O quadro abaixo complementa as afirmações anteriores. Das 20 peças musicais que integram o quadro acima, 12 são vinculadas diretamente ao repertório da música baiana massiva. Por outro lado, mesmo que peças como País Tropical (Jorge Ben Jor) estejam vinculadas, em sua origem, a outro gênero, também são executadas pelas bandas e intérpretes baianos em suas maratonas de apresentações musicais. Isto corresponde quase sempre a uma reconfiguração do ritmo e da cadência da voz na interpretação, além dos arranjos, levando-se em conta, inclusive, a diferença na formação da banda.

GESTÃO DA OBRA MUSICAL NA BAHIA Compreendendo a obra musical como ponto de partida, o papel do editor, historicamente, sempre se configurou como intermediário. Entretanto, numa análise mais atual, Porter (1989) trata da reconfiguração da cadeia de valores, realçando as “vendas diretas ao invés de vendas indiretas” e “novos canais de distribuição”. Ou seja, tanto o artista quanto o autor se beneficiam com a redução de intermediários. O fator preponderante é que a editora musical, no caso da música baiana massiva, deixa de ser intermediária, posto que, majoritariamente, as audições musicais e decisões acerca do repertório são de responsabilidade do próprio artista, que, por sua vez, não raro, é também o proprietário da editora. Em contrapartida, o autor funciona como fornecedor da obra musical para os grupos, bandas e artistas, como o maior cliente do editor e/ou artista/autor/editor, 611


Música e economia criativa na Bahia contemporânea

Posição

Música

Intérprete

Autor(es)

1

Chora, me liga

Vários

Euler Coelho

2

Praieiro

Jammil e uma Noites

Manno Góes

3

Quebra aê

Asa de Águia

Durval Lelys

4

Beijar na boca

Cláudia Leitte

Blanch Van Gogh e Roger Tom

5

100% você

Chiclete com Banana

Alexandre Peixe e Beto Garrido

6

Pode chorar

Vários

Dorgival Dantas

7

País tropical

Vários

Jorge Ben Jor

8

Rebolation

Parangolé

Nenel e Léo Santana

9

A fila andou

Chiclete com Banana

Alexandre Peixe e Beto Garrido

10

Exttravasa

Cláudia Leitte

Adson Tapajós, Jean Carvalho, Zeca Brasileiro e Sérgio Rocha

11

Cadê Dalila

Ivete Sangalo

Carlinhos Brown e Alaim Tavares

12

Borboletas

Victor e Léo

Victor Chaves

13

Você não vale nada

Calcinha Preta

Dorgival Dantas

14

Na base do beijo

Ivete Sangalo

Alaim Tavares e Rita de Cássia

15

Meteoro

Luan Santana

Sorocaba

16

Não quero dinheiro

Vários

Tim Maia

17

Eva

Vários

Katamar, Ficarelli e UMTO - Umberto Tozzi

18

Coração

Tomate

Dorgival Dantas

19

Beber, cair e levantar

Vários

Bruno Caliman, Marcelo Marrone, Thiago Basso

20

Simbora

Asa de Águia

Daniel Ramon e Rafael Pereira

Quadro 4 Ranking músicas mais executadas em shows – 2010 Fonte: Elaboração do autor, a partir do relatório do Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (2011).

que lhe deve prestar um serviço eficiente. Assim, o fenômeno recente da gestão da obra musical na Bahia, com seus artistas/autores/editores, reverte a histórica compreensão do editor enquanto mero intermediário. A edição musical é atividade que demanda fatores e aspectos inter-relacionais. Da subjetividade do processo composicional à normatização de órgãos como ECAD, por exemplo, inúmeros profissionais integram esta cadeia: advogados, publicitários, músicos, arranjadores, técnicos, jornalistas, radialistas, artistas, empresários, entre outros. Na cadeia produtiva musical, a etapa conhecida como edição musical é o processo pelo qual o compositor cede e transfere os direitos de administração de sua propriedade intelectual – neste caso, a obra musical – para uma organização/empresa legalmente constituída junto ao Ministério da Fazenda. Esta etapa pode ter temporalidade acordada 612

entre as partes. A atividade de edição musical está amparada pela Lei de Direitos Autorais (9.610/98), além de convenções e tratados internacionais. O Brasil é signatário de todos10. Atualmente, as editoras musicais são as responsáveis pela arrecadação e pagamento de direitos autorais obtidos da comercialização de produtos fonográficos e audiovisuais; legalização das obras e autores junto às associações arrecadadoras e, posteriormente, ao ECAD; acompanhamento e controle das liberações e pagamentos relativos aos direitos autorais junto às gravadoras majors e selos musicais independentes11; assim como pela intermediação entre o circuito comercial – produtores musicais – e os autores.

Existe, ainda, a União Brasileira de Editoras Musicais (UBEM), que orienta e informa suas associadas sobre as oportunidades do mercado, legislação e novidades acerca da administração da obra musical. 11 Gravadoras menores, com poucos recursos e estrutura de distribuição própria. 10

Bahia anál. dados, Salvador, v. 22, n. 4, p.603-622, out./dez. 2012


Bahia anál. dados, Salvador, v. 22, n. 4, p.603-622, out./dez. 2012

ECAD

Agenciamento e intermediação artístico-cultural. Interesse maior: evidência do artista de seu cast e sua legitimação junto ao público, de modo a garantir aceitabilidade e sucesso nas bilheterias dos shows e eventos.

Produtoras musicais

Fonte: Castro (2011).

Figura 1 Teia relacional da obra musical

Intérprete da obra. Interesse maior: aceitação do seu registro fonográfico e interpretação junto ao público e cadeia produtiva musical.

Artista/Intérprete

Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (ECAD) – Responsável pela arrecadação dos direitos de execução pública dos autores, músicos e intérpretes. Atua junto a rádios, TVs, cinemas, eventos, academias, consultórios, promotores de eventos, casas de shows, bares, restaurantes etc. Restrito à execução pública.

Produtoras fonográficas

Administração/gestão das obras musicais editadas; agencia obras para artistas a partir de suas necessidades, funcionando, muitas vezes, como elo entre o artista, o autor e a gravadora. É responsável pelo envio de informações das músicas editadas aos órgãos competentes (ECAD, associações arrecadadoras, outros.)

• Independentes • Administradas • Ind./Administradoras

Editoras musicais

Meios de comunicação

Casas de shows

Associações arrecadadoras

Elo entre o ECAD e os autores, artistas/intérpretes, músicos, obras, editoras musicais e produtoras fonográficas. Associações responsáveis por informar e cadastrar profissionais do meio musical e as obras musicais. Na Bahia, em atividade, há quase uma dezena destas instituições. A maior associação, em número de filiados e obras, é a maior participante na gestão do ECAD. Ex.: AMAR, UBC, ABRAMUS.

Espaços de execução pública da obra. De grande ou menor porte, também devem pagar ao ECAD, sempre que houver evento.

Responsáveis por boa parte da execução pública da obra. Deve informar o ECAD acerca de sua programação, assim como efetuar os pagamentos correspondentes. No Brasil, 50% das rádios estão inadimplentes junto ao ECAD, que as aciona judicialmente. Em Salvador, parcela considerável dos meios de comunicação estabelece sociedade nos eventos musicais.

Rádios; televisões; sites...

Promoção de eventos musicais. Para a realização do evento, faz-se necessário quitar guia do ECAD acerca de direitos autorais, para posterior distribuição de percentual aos autores e intérpretes das obras executadas. Com certa frequência, o ECAD não é notificado do evento, lesando o autor e seus conexos. Em Salvador, blocos e artistas também se configuram como promotores de eventos.

Responsáveis por algumas atividadeschave na cadeia produtiva musical, como registro/gravação, prensagem, distribuição e marketing dos CDs/DVDs. Solicitam autorização às editoras musicais e/ou autores, pagan- do os direitos autorais, a partir da quantidade comercializada.

• Majors (EMI, Sony/BMG, Universal Music, Warner Chappell e Som Livre); • selos (gravadoras de menor porte)

Produtoras de shows e eventos

Obra Musical

Autor/Compositor

Criador da obra artística; proprietário intelectual. Interesse maior: gravação de sua obra, execução e sua devida remuneração. É detentor legalmente de direitos patrimoniais e morais (Lei 9.610/98).

Armando Alexandre Castro

613


Música e economia criativa na Bahia contemporânea

O MAPEAMENTO DO CAMPO DA GESTÃO DA OBRA MUSICAL NA BAHIA

tísticos, empreendedores culturais, artistas, autores e editores musicais. Pode-se afirmar que, na Bahia, esta atividade é Com a ascensão da música baiana massiva das mais um dos desdobramentos evidenciados a parúltimas décadas12 e a expantir da profissionalização do são da oferta de atividades A produção musical baiana Carnaval baiano, ressaltanvinculadas à produção mudo a década de 1980 como vem se constituindo como sical no próprio estado, uma marco temporal dos blocos elemento sociocultural relevante das etapas que mais se amde trio elétrico no Carnaval junto ao desenvolvimento pliaram e se profissionalizasoteropolitano. Isso ampliou econômico do estado ram foi a de gestão do direito consideravelmente o alcanautoral, a partir da obra musical, num campo for- ce comercial e mercadológico do evento, fato que mado por quase uma centena de editoras musicais. possibilitou o surgimento de novos grupos, bandas Atualmente, elas cadastram e administram a obra, e artistas musicais (DANTAS, 1994; MOURA, 2001; como também auxiliam e orientam seus autores MIGUEZ, 2002; CASTRO, 2009; 2011). com relação aos seus direitos, proporcionam e poNo mercado musical, editoras musicais são emdem estabelecer contatos e produções fonográficas presas formalmente constituídas junto ao Ministério e potencializam repertórios frente a processos de da Fazenda e têm como objetivo principal a gestão seleção musical, entre outros. das obras musicais de determinados compositoEstes elementos apontam para a constatação de res (pessoa física). Sabe-se que nem todo artista que a produção musical baiana vem se constituindo musical em atividade na Bahia possui relação com como elemento sociocultural relevante junto ao de- produtoras, editores e agenciadores de shows. senvolvimento econômico do estado. Desta produ- Entretanto, parcela considerável deste segmento ção, destaca-se o surgimento, na década de 1980, profissional não somente estabelece esta relação da axé music e, anos mais tarde, do pagode baiano. como empreende suas próprias empresas ligadas No âmbito dos estudos organizacionais, são escassos ao meio artístico, fortalecendo o mercado e a ecoos registros de investigação acerca destes fenômenos nomia local e implementando uma nova categoria e suas diversas teias institucionais e mercadológicas, profissional no estado: o editor musical. tais como o seu impacto na implantação de um cirDas 74 editoras musicais identificadas, pode-se cuito dinâmico de estúdios musicais de gravação, o perceber a preponderância dos artistas relacionados mercado de trios elétricos, entre outros. ao universo massivo da música baiana – destacando A legitimação e a dinamicidade mercadológica a axé music e o pagode. Boa parte de seus artistas e destes episódios musicais massivos no Brasil e sua autores são proprietários de editoras musicais, inscrerápida associação com diversas indústrias (cultural, vendo a Bahia, de forma representativa e relevante, turística, etc.) oportunizaram que muitos setores da no campo da gestão do direito autoral. Atualmente, o cadeia produtiva musical fossem criados e aperfeiço- estado é o terceiro em número de editoras musicais ados mediante a demanda crescente. Em Salvador, no país e quinto em arrecadação pública13. nas últimas décadas, a música baiana possibilitou o Entre as editoras musicais identificadas no quasurgimento de dezenas de produtoras artísticas e de dro acima, 57 apresentam vínculo direto e indireeventos, gestores, agenciadores e empresários ar- to com a música baiana massiva – axé music ou 12

Este processo tem sido discutido por diversos autores, como Castro (2011); Castro; Freitas (2004); Miguez (2002); Moura (2001) e Guerreiro (2000; 2005).

614

13

Informações obtidas através da gerência do ECAD na Bahia, em abril 2011.

Bahia anál. dados, Salvador, v. 22, n. 4, p.603-622, out./dez. 2012


Armando Alexandre Castro (Continua)

Artista/Autor/Empresa

Produtora

Editora

Adelmário Coelho

Daerje Produções

Daerje Editora

Ademar da Furta Cor

Periferia Estúdio e Produções

Furta Cor Edições Musicais

Ano/Criação 2003 ***

Associação

Qtde. Obras

AMAR

N/I

SOCIMPRO

N/I

Adson Santana

A.S. Mídia

A.S. Mídia

2008

UBC

4

Alexandre Peixe

Pequena Notável

Som de Peixe Edições

2005

UBC

92

Alfredo Moura / Outros

Mundus et Fundus

Mundus et Fundus Edições

1999

AMAR

28

André Fanzine

Biandrely

Biandrely

2006

UBC

99

Araketu

Araketu

Disco Music

Asa de Águia

Duma

Duma

N/I 2000

ABRAMUS UBC

N/I 532

Banda Eva

Grupo EVA

Pedra Velha Edições

2006

UBC

46

Carlinhos Brown

Janela do Mundo

Candyall Music

2002

UBC

285

Cheiro de Amor/Outros…

Cheiro de amor

Oxalá Edições

2003

ABRAMUS

N/I

Cheiro de Amor/Outros…

Cheiro de amor

SW3 Edições

2002

ABRAMUS

N/I

Chica Fé

Chica Fé

Chica Fé

N/I

ABRAMUS

N/I

Chiclete com Banana

Mazana

Babel

N/I

N/I

N/I

Chiclete com Banana

Mazana

Granola

N/I

ABRAMUS

N/I

Cláudia Leitte

Pedaço do Céu

Pedaço do Céu

2008

UBC

19

Daniela Mercury

Canto da Cidade

Páginas do Mar

1994

UBC

1451

Durval Lélys

Duma

Lelys

2004

UBC

254

Edson Gomes

Cão de Raça

Cão de Raça

2000

UBC

49

Estação CD

Estação CD

Estação CD

1999

ANACIM

N/I

Estakazero

Leke Produções

Leke Editora

2003

SBACEM

140

Gerônimo

Arco e Flexa Produções

Arco e Flexa

1985

AMAR

Harmonia do Samba

Harmonia Produções

Muralha Edições

2006

UBC

134

Ivete Sangalo / Outros

Caco de Telha

Caco Music

2005

UBC

447

Ivete Sangalo / Outros

Caco de Telha

Caco de Telha

Jammil

Carreira Solo

Tao

2000

N/I 2010

Jauperi

Escola do Infinito

Escola do Infinito

Kuque Malino

Cajueiro

Cajueiro

N/I 2003

Lampirônicos

Caatinga

Caatinga

Levi Lima

Elo

Elo

N/I

3

ABRAMUS

64

UBC

13

UBC N/I AMAR ABRAMUS

0 N/I 7 N/I

Maianga

Maianga

Maianga

2003

UBC

80

Manno Góes

Carreira Solo

Malu Edições

2008

UBC

35

ABRAMUS

N/I

Márcio Melo

Bizarro Produções

Bizarro

Margareth Menezes

Central Produções

Estrela do Mar

2008

N/I

UBC

Motumbá

Motumbá

Motumbá

2007

ABRAMUS

5 16

Motumbá

Semba

Semba

N/I

ABRAMUS

N/I

N/I

DOC Produções

DOC Produções

N/I

ABRAMUS

N/I

N/I

Son Records

Son Records

N/I

Netinho

Bem Bolado

Bem Bolado

2007

Olodum

Assoc. Carn. Bloco Afro Olodum

Bloco Afro Olodum

N/I

ABRAMUS ABRAMUS

N/I 149 N/I

Olodum

Grupo Cultural Olodum

Grupo Cultural Olodum

Oz Bambaz / Outros

Ed Dez

Ed Cem Editora

2001

UBC

407

Parangolé

Salvador Produções

Sofá da Sogra

2005

ABRAMUS

203

Pida!

Pida!

Pontual Editora

2002

UBC

0

Psirico

Penteventos

Xanguá

2007

AMAR

7

Rafael Pondé

GV Atividades Fonográficas

Good Vibration

2009

ABRAMUS

11

Ramon Cruz

Castelos de Som

Castelos de Som

2002

UBC

53

Bahia anál. dados, Salvador, v. 22, n. 4, p.603-622, out./dez. 2012

N/I

ABRAMUS UBC

N/I

615


Música e economia criativa na Bahia contemporânea (Conclusão)

Artista/Autor/Empresa

Produtora

Editora

Ano/Criação

Associação

Qtde. Obras

Rapazolla

Thibiron

Thibiron

2005

ABRAMUS

47

Rede Bahia

Salvador Sat Comunicações

Salvador Sat

N/I

ABRAMUS

94

2004

ABRAMUS

N/I

N/I

ABRAMUS

51 14

Rede Bahia

Rede Bahia

Bahia Discos

Ricardo Chaves

Rafa Produções

Rafa

Selakuatro

Buxixos Produções

Buxixos

2005

ABRAMUS

Tenisson Del Rey

Faro Fino

Faro Fino

2002

UBC

2004

Terra Samba / Outros

Terra Samba

Terra Samba

Terra Samba / Outros

Jerm

Jerm

N/I

504

ABRAMUS

94

N/I

67

Tomate

Penteventos

FK

2007

UBC

40

Tuca Fernandes

2GB

Santo Poderoso

2009

UBC

2

Vânia Abreu

Casa da canção

Casa da canção

Vários

Tag

Tag

2003

N/I

UBC

ABRAMUS

N/I 71

Vários

Bicho da Selva

Bichinho

2003

UBC

1131

Vários

Bicho da Selva

Fábrica da Música

2003

UBC

859

Vários

Wave Music

Wave Music

2005

UBC

191

Vários

Pato Discos

Pato Discos e Edições

2003

UBC

322

Vários

MusiRoots

MusiRoots

2007

UBC

143

Vários

Vevel

Vevel

2005

UBC

15

Vários

Plataforma de Lançamento

Plataforma de Lançamento

2003

UBC

223

Estúdio WR

WR Produtora e Estúdio

WR Edições

2003

SOCIMPRO

N/I

Vários

Stalo Produções

Stalo

1986

ABRAMUS

828

Vários

Perto da Selva Produções

Perto da Selva

N/I

AMAR

Vários

Portela Fernandes

Portela Fernandes

N/I

ABRAMUS

N/I

Vários

Penteventos

Penteventos (LF)

2008

UBC

58

AMAR

N/I

UBC

13

Vários

JB dos Santos Cultura

JB

Vários

Swingueira

Swingueira

Vários

Verticall

Verticall

N/I 2009 N/I

ABRAMUS

8

9

Quadro 5 Editoras musicais na Bahia* * Nesta investigação, foram consideradas apenas as editoras musicais legalmente constituídas na Juceb e devidamente cadastradas em associaçõesarrecadadoras. Fonte: Elaboração própria do autor, a partir da pesquisa de campo realizada até março de 2011 (CASTRO, 2011).

pagode. Vínculo direto ocorre quando os artistas e autores são os empresários e proprietários das administradoras, e vínculo indireto, quando se tratar de editora responsável pela administração de obras destes repertórios, não registrando artistas e autores em seu quadro societário. A partir da investigação que resultou no mapeamento das editoras musicais baianas, é possível afirmar que o campo da gestão musical no estado compreende três categorias: a. autores: buscando autonomia a partir da gestão independente e direta, ou utilizando a cessão da gestão como elemento do negócio. Ou seja, negocia-se a obra e a 616

gestão desta diretamente com o editor ou artista/autor/editor, e/ou seu representante. Por outro lado, o autor pode implementar uma gestão direta, sem contratos de edição, a partir de um contato mais sistematizado com a sua associação, assim como através de autorizações diretas para cada produto fonográfico, intérprete, campanha publicitária etc.; b. editores: interessados na gestão da obra por conta do controle, força política, poder, assim como nos dividendos que esta pode gerar, sobretudo a partir dos direitos de execução pública; Bahia anál. dados, Salvador, v. 22, n. 4, p.603-622, out./dez. 2012


Armando Alexandre Castro

c. artistas/autores/editores: atuam e se articuTudo estava bem, quando um pouco antes do lam nas três funções, interessados na gesCarnaval recebemos os compositores pedintão como proteção, controle de suas obras do quantias absurdas para formalizar a autoe repertórios, manutenção e/ou preservarização da obra. Caso contrário, deveríamos ção de critérios como mudar a música, pois outras bana exclusividade dos Riscos e incertezas, das também tinham interesse em registros, além de gacontrole e competitividade, gravá-la e já haviam feito ofertas finhos financeiros. ganhos financeiros e retorno nanceiras para eles. O problema foi Do quadro de editoras parcial dos investimentos, mas, sério. Tivemos de aceitar porque o musicais apresentado acitambém, à possibilidade de investimento já era alto. Decidimos ma, 45 pertencem a comindependência artística procurar entender mais deste nepositores, o que represengócio para evitar estes problemas, ta 60% do total. O interesse pela gestão, neste aí criamos a nossa própria editora musical. caso, está diretamente relacionado aos fatores Não tivemos mais problemas, pois toda negopresentes no campo da produção musical: riscos ciação, documentação e autorização passam e incertezas, controle e competitividade, ganhos pela editora. Só disparamos nas rádios quanfinanceiros e retorno parcial dos investimentos, do esta parte está resolvida. [...] Já tínhamos mas, também, à possibilidade de independência ouvido falar do assunto, que muitas bandas e artística. produtoras baianas já tinham editoras, então Independência artística no sentido de estratépesquisamos e criamos a nossa. gia de empoderamento quanto às etapas produtiTrês aspectos são perceptíveis no depoimento vas, autoagenciamento artístico, controle de suas acima: o conflito entre empresário e compositor; obras e discografia e maior competitividade a partir a preocupação em diminuir os riscos quanto aos da exclusividade da obra, entre outras ações que investimentos; e, por último, o comportamento isominimizam os riscos, incertezas e conflitos. mórfico ao procurar iniciar suas atividades de gesPor outro lado, para os artistas, editores e em- tão da obra musical a partir do que já se percebia presários, o controle de obras musicais, repertórios no mercado local. e discografia também representa poder e maior parO “isomorfismo mimético” é, segundo DiMaggio ticipação quanto aos destinos destes produtos e e Powell (2005), aquele que, derivando da incersuas diversas formas de rentabilidade, assim como teza, gera a imitação num ambiente marcado por a possibilidade de evitar problemas e conflitos. procedimentos administrativos exitosos que logo se Um exemplo destes conflitos foi vivenciado pelo tornam modelos. Este tipo de isomorfismo também ex-jogador de futebol Edilson, atualmente empre- é percebido no campo da gestão da obra musical sário do ramo musical. Em 1998, após ter tido a baiana, quando novas editoras ou produtoras resolautorização verbal dos compositores de uma de- vem espelhar-se em casos de editoras mais antigas terminada obra, resolveu gravá-la e disponibilizá-la e já legitimadas no campo. Para os autores, parte nas rádios comerciais. Após dois meses, num perí- relevante das organizações só tende a considerar odo próximo ao Carnaval, a obra estava “aprovada” como modelo aquelas outras organizações percepelo público, sendo uma das mais executadas pelas bidas como legítimas – mais antigas, detentoras de rádios e bandas de música baiana, vindo a ser tam- sucesso, com respaldo perante os diversos atores. bém uma das mais tocadas no Carnaval. Quanto a este tipo de isomorfismo, para exemFerreira, em entrevista concedida em 12 de ja- plificar, a pesquisa de campo sobre as editoras neiro de 2010, relata: musicais baianas apontou a Páginas do Mar, de Bahia anál. dados, Salvador, v. 22, n. 4, p.603-622, out./dez. 2012

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propriedade da cantora Daniela Mercury, como re- recadadora. Tal episódio mantém o poder decisório ferência, modelo, para boa parte das demais edito- acerca do destino das obras nas mãos do próprio ras. No início da década de 1990, Daniela fundou compositor. a produtora e editora Dajor, em parceria com o Caldas (2010), em entrevista concedida em 9 empresário musical Jorginho de agostode 2010, evidencia Sampaio. Nesta, começou o Se faz crescente o comportamento a necessidade de que o comprocesso de edição musical, positor se mantenha atento e de compositores criando suas e, tão logo se desligou desinformado quanto aos seus próprias editoras ou abdicando te empresário, em 1994, ela direitos. dos contratos de cessão de criou sua própria estrutura Na época que iniciei, não havia direitos autorais para a gestão empresarial, composta por ninguém para eu perguntar e redireta com sua associação produtora (Canto da Cidade) ceber esclarecimentos sobre esse arrecadadora e editora (Páginas do Mar), assunto. Então, eu editei boa parpara a qual transferiu as obras do catálogo vincute das obras com algumas dessas editoras lado à Dajor. das grandes gravadoras. Pressão nunca houAtualmente, a editora Páginas do Mar possui um ve, mas havia o assédio das editoras com os catálogo composto por 1.451 obras e vem sendo adiantamentos, presentinhos, promessas de administrada pela Universal Music14. Ser adminiscolocar as canções em todo o mundo através trada por uma editora vinculada a uma gravadora de outros cantores. major também é uma estratégia de atuação junto Tenisson Del Rey, compositor baiano renomaao comércio internacional, a partir de alianças de do, também editor e empresário, apresenta opinião distribuição com gravadoras transnacionais que já divergente da de Luiz Caldas. Como autor, mantém a tiveram em seus catálogos. contrato de exclusividade com a Universal Music A produção fonográfica é outro exemplo de in- Publishing, mas é proprietário da Faro Fino Edições dependência artística de Daniela Mercury. Após e administra as obras ou percentuais de seus paro distrato com a Sony Music, em 2005, ela iniciou ceiros. Sua editora é administrada por Lina Costa, as atividades de seu selo fonográfico, produzindo esposa e empresária. Para o músico, “[...] quase toda a documentação necessária – sobretudo os sempre o autor não tem a capacidade de gerir o ISRCs – e adquirindo todo seu catálogo fonome- negócio gerado pelo mercado autoral; então nestes cânico mais antigo junto às gravadoras anteriores, casos é bem melhor que deixe essa competência inclusive a Eldorado, pela qual lançou, em 1991, o com outras pessoas [editoras]”. disco Daniela Mercury. Para Caldas, a administração de suas obras por Se, por um lado, a estruturação do campo da estas editoras é muito deficiente, “[...] pois nada fagestão da obra na Bahia é fato relevante, a partir do zem e só ficam esperando acontecer algo com as conjunto de organizações juridicamente constituí- canções para que elas tirem seus percentuais. Não das administrando as obras de pessoas físicas (au- há um esforço junto a essas obras”. tores), também se faz crescente o comportamento Passando ao isomorfismo normativo, podede compositores criando suas próprias editoras ou -se afirmar que é aquele derivado da profissioabdicando dos contratos de cessão de direitos au- nalização e do surgimento das categorias protorais para a gestão direta com sua associação ar- fissionais e suas fontes de legitimação, como as universidades, centros técnicos, associações 14 A editora Sony administrou a Páginas do Mar até 1997. A BMG admicorporativistas, entre outras. Bittencourt, gerennistrou até 2009, e, atualmente, é administrada pela Universal Music te da UBC na Bahia desde 1996, em entrevista Publishing. 618

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concedida ao autor em 10 de setembro de 2010, confirma a criação de muitas editoras baianas nas duas últimas décadas e acentua o processo de profissionalização por que passaram os atores do mercado.

vidade, acentuada pela atuação de editoras de outros estados, incluindo as majors, que funcionam, concomitantemente, como administradoras e editoras com larga atividade de edição entre os autores baianos. Quando começaParte considerável dos autores Esta competitividade é marcada por inúmeras práti­ mos a trabalhar na baianos figura entre os mais bem Bahia, tínhamos pagos pelos órgãos arrecadadores cas (anti)concorrenciais, com destaque para os contratos de explicar absolude exclusividade, adiantamentos, barganhas e protamente tudo aos produtores, compositores, messas. Contratos de exclusividade são compreeneditores e artistas. Foi um processo lento de didos como documentos jurídicos que garantem à apresentação da UBC, mas, principalmente, editora, não raro mediante adiantamentos financeidos assuntos direito autoral e direitos coneros, a certeza da exclusividade do autor quanto à xos. Muita gente queria e devia ganhar, mas cessão da administração de seus direitos patrimosabia muito pouco. Ainda hoje, orientamos niais15. Ou seja, em outras palavras, uma garantia muita gente, mas já percebo um amadurecida edição do seu repertório na editora. mento das editoras, dos autores, produtores, Outros tipos de exclusividade também se fazem o que facilita enormemente o nosso trabalho, presentes no campo da gestão da obra musical que é altamente burocrático e minucioso. À medida que se profissionalizam as pessoas, na Bahia. Parcela considerável de autores assuevolui o processo de isomorfismo normativo das ins- me fidelidade com as editoras a partir de critérios tituições, uma vez que, segundo DiMaggio e Powell distintos como amizade e legitimidade da empre(2005), estes mecanismos possuem convergên- sa no meio musical a partir da profissionalização, cias nas orientações, homogeneizando ainda mais confiança e respeito. Esse episódio remete à legio mercado e as instituições. Para esta categoria, timidade institucional relacionada ao ambiente, às órgãos como ECAD e associações arrecadadoras, crenças e valores, a partir dos sociólogos instituleis federais e tratados internacionais acerca dos cionalistas. Conforme Machado-da-Silva e Fonsedireitos autorais e da propriedade intelectual são os ca (1996, p. 213): principais organismos normativos do campo. [...] as organizações estão inseridas em um ambiente constituído de regras, crenças e

Competitividade e práticas concorrenciais

valores, criados e consolidados por meio da interação social. Nesse sentido, a sua sobrevi-

A intensa agenda de apresentações e eventos torna a música baiana um dos gêneros contemporâneos mais rentáveis no mercado musical nacional, contando, inclusive, com eventos exclusivos para o segmento, como já foi mencionado. Parte considerável dos autores baianos figura entre os mais bem pagos pelos órgãos arrecadadores, o que estimula comportamentos isomórficos distintos (produção musical, composição, empresarização...). Neste cenário, o campo da gestão da obra musical é dinâmico e marcado por intensa competitiBahia anál. dados, Salvador, v. 22, n. 4, p.603-622, out./dez. 2012

vência depende da capacidade de atendimento a orientações coletivamente compartilhadas, cuja permanente sustentação contribui para o êxito das estratégias implementadas e, por conseguinte, para o pleno funcionamento interno.

Para os institucionalistas, as influências coercitivas são definidas e constantemente (re)elaboradas

15

Como já foi afirmado anteriormente, de acordo com a Lei 9.610/98, os direitos morais são inalienáveis.

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a partir da ação e interação entre os atores do cam- axé music e do pagode, especialmente, representa po, que logo disseminam práticas e comportamen- uma descentralização e tomada de poder, à metos organizacionais. dida que são os artistas, autores e editores locais Com a ampliação da compreensão dos direitos que administram os seus repertórios. Isto é desseautorais, principalmente por melhante ao que ocorreu em parte dos autores, e a partir Com a ampliação da compreensão processos de legitimação de também da competitividade outros gêneros musicais no dos direitos autorais, entre as associações arreBrasil, nas últimas décadas. principalmente por parte dos cadadoras, que passaram As possibilidades de autores, [...] potencializa-se o a disponibilizar e publicizar análise desenvolvidas neste que no campo se conhece como cada vez mais seus serviartigo poderiam ser desdo“cadastro direto” ços, potencializa-se o que bradas numa perspectiva no campo se conhece como “cadastro direto”. Isto comparativa em que fossem contemplados outros significa o cadastro da obra junto ao sistema do processos observados no Brasil no âmbito da emECAD sem intermediários, ou seja, diretamente presarização da música. Como a extensão do texto pela associação arrecadadora do autor, sem a não permitiria tal amplitude, ressaltam-se rapidanecessidade do contrato de edição. mente alguns traços que sinalizam a diversidade Este, contudo, não é o comportamento percebido de problemas e soluções neste campo. em compositores como Barbosa, nas artes Jorginho, O sucesso do rock progressivo brasiliense da déque informa não haver vantagens significativas, pois cada de 1980 oportunizou a migração de seus artiscadastrar direto significa mais trabalho para o autor, tas, intérpretes e autores para o Rio de Janeiro e São “[...] que além de ter que mostrar música de banda em Paulo, não instalando na capital federal uma admibanda, vai ter que ficar mendigando na associação nistração das obras musicais. As obras passaram a que veja suas obras, fiscalizando, recebendo. Edito ser administradas por editoras vinculadas às majors para me ver livre de burocracia”. Para o autor Capi- responsáveis pelos artistas e seus produtos à época, nan, nas artes Nenel, editar é “[...] transferir problema. e, não raro, com contratos que se perpetuam ainda Negocio e edito porque não quero burocracia” (entre- que a indústria fonográfica recente tenha passado vistas concedidas em 12 de janeiro de 2011). por processos de aquisição e fusão. Semelhante processo ocorreu com o Clube da Esquina mineiro, o pop/romântico/sertanejo goiano e do interior pauCONSIDERAÇÕES FINAIS lista, o pop-rock mineiro do Skank e do Jota Quest, o pagode dolente e partido-alto carioca e paulistano Com a reestruturação do mercado fonográfico e o manguebeat pernambucano, entre outros. mundial, a partir da pirataria e dos avanços tecEm se tratando do Clube da Esquina, por exemnológicos, a gestão da obra musical redirecionou plo, na última década é que artistas e compositores suas atividades – antes focadas prioritariamente como Milton Nascimento, Fernando Brant e Ronalna arrecadação e pagamento de direitos autorais, do Bastos decidiram administrar suas obras e revia fonomecânicos, para outros segmentos, como pertórios, criando suas próprias editoras musicais. autorização para os ring tones e real tones, para A partir da análise cuidadosa de casos como o mercado da música digital e, sobretudo, para a estes, pode-se falar na nacionalização do procesarrecadação de direitos de execução pública. so de produção fonográfica, iniciado na década de Neste sentido, pode-se afirmar que a gestão da 1970, por artistas da MPB como Chico Buarque, obra musical na Bahia contemporânea, a partir da Caetano Veloso, Ivan Lins, Gilberto Gil, Djavan e, 620

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mais recentemente, artistas e grupos como Roupa correr em se tratando da disseminação da cultura Nova, os familiares de Tom Jobim, Marisa Monte, de propriedade intelectual, do direito autoral ligado Flávio Venturini, Lenine, Zélia Duncan, Marcelo Ca- à produção e consumo cultural e artístico no Brasil melo, Rodrigo Amarante, Zeca Baleiro, Chico Cé- contemporâneo. Por outro lado, evidencia que a sar, Zeca Pagodinho e Tom criatividade tem impulsionaZé, entre outros. Além de Assim, não seria este fenômeno do consideravelmente a ecoartistas e autores, eles são nomia da música na Bahia, uma nítida e breve visualização editores e administradores gerando e descentralizando da revolução cognitiva apontada de suas obras, repertórios e, oportunidades e desenvolvipor Celso Furtado? não raro, de seus projetos e mento, que, por sua vez, reproduções fonográficas. querem conhecimento e disposição, conjugados A gestão da obra musical na Bahia representa com muita criatividade. Assim, não seria este fenôlucros, como também revela aspectos políticos que meno uma nítida e breve visualização da revolução se justificam como estratégicos no cenário musical cognitiva apontada por Celso Furtado? local e nacional, principalmente a partir da descentralização das atividades do eixo RJ/SP, bem como pelo que representam no sentido de independência REFERÊNCIAS artística. Por outro lado, a ascensão da música baiana potencializou o mercado musical local, e as trans- ALMEIDA, P. H.; PESSOTI, G. A evolução da indústria fonográfica e o caso da Bahia. Revista Bahia Análise e Dados, nacionais da indústria fonográfica em atividade no Salvador, v. 9, n. 4, p. 90 -108, 2000. país, via processos institucionalizados de acumulaBARBOSA, Jorge Cosme. Editora musical. 22 jan. 2011. ção flexível (HARVEY, 1992) e desverticalização da Entrevista concedida a Armando Alexandre Castro. indústria fonográfica (NAKANO, 2010), contribuíram consideravelmente com a profissionalização da ges- BITENCOURT, Márcia. Editora musical. 10 set. 2010. Entrevista concedida a Armando Alexandre Castro. tão da obra musical na Bahia, ainda que se configuBRASIL. Lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998. rem como organizações concorrentes. Pode-se afirmar que é pertinente a compreenCALDAS, Luiz. Editora musical. 09 ago. 2010. Entrevista são dos autores, editores e artistas/autores/editores concedida a Armando Alexandre Castro. baianos como empreendedores criativos, pois vêm CAPINAM Emanoel. Editora musical. 22 jan. 2011. Entrevista protagonizando relevantes mudanças no cenário concedida a Armando Alexandre Castro. musical local e nacional, além de intervenção direta na economia e na cadeia produtiva da música, CASTRO, Armando Alexandre; RIBEIRO, Maria Teresa Franco. A organização da produção musical na Bahia contemporânea. especialmente aquela sediada em Salvador. In.: COLÓQUIO INTERNACIONAL SOBRE PODER LOCAL Em outras palavras, de nada adiantariam os pro- 11., 2009, Salvador. Anais... Salvador: [s.n.], 2009. 288 p. cessos de acumulação flexível e desverticalização CASTRO, Armando Alexandre. A música baiana e o mercado: da indústria fonográfica se os atores locais não ti- a gestão da obra como elemento estratégico de negócio. 2011. 266f. Tese (Doutorado em Administração)-Núcleo de vessem assumido responsabilidades quanto às noPós-Graduação em Administração, Escola de Administração, vas atividades, ainda que, num primeiro momento, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2011. a partir de comportamentos isomórficos. ______. Axé music: mitos, verdades e world music. Per Musi – A assimetria de informações entre os atores Revista Acadêmica de Música/UFMG, Belo Horizonte, n. 22, p. do campo quanto aos benefícios e compromissos 203 - 217, jul./dez. 2010. relacionados à gestão da obra musical reflete, em DANTAS, Marcelo. De bloco afro a holding cultural. Salvador: diversas unidades de análise, que há muito a per- Fundação Casa de Jorge Amado, 1994. Bahia anál. dados, Salvador, v. 22, n. 4, p.603-622, out./dez. 2012

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Música e economia criativa na Bahia contemporânea

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Artigo recebido em 27 de setembro de 2012 e aprovado em 9 de novembro de 2012

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Bahia análise & Dados

Cartografias possíveis: quando as sonoridades definem territórios de esperança Maria Teresa Franco Ribeiro* Armando Alexandre Castro** *

Pós-doutora pelo IHEAL, Paris III, Sorbonne Nouvelle, doutora em Economia da Indústria e da Tecnologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professora da Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia (UFBA). mariatfr@uol.com.br

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Doutor em Administração pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), mestre em Cultura & Turis­ mo pela Universidade Esta­ dual de Santa Cruz (UESC), parceria UESC/UFBA. Professor do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal de Sergipe (UFS). aaccastro@gmail.com

Resumo Este trabalho aborda o crescimento de movimentos culturais, principalmente aqueles que, associados à música, abrem perspectivas de envolvimento e de reconhecimento de populações alijadas do processo de desenvolvimento na Bahia, especialmente em Salvador. A metodologia contempla a coleta e a análise de estatísticas socioeconômicas oficiais sobre a cidade, pesquisa de campo com aplicação de entrevistas semiestruturadas junto a gestores e alunos de música e, ainda, fundamentação teórica alicerçada na geografia crítica e no conceito de ecologia de saberes. Destaca-se o mapeamento de um conjunto de instituições que utilizam a música como elemento estético-pedagógico relevante na transformação social dos cidadãos, numa cidade que, distante dos discursos das maravilhas turísticas, apresenta consideráveis índices de pobreza, concentração de renda e desigualdade socioeconômica. Palavras-chave: Música. Desenvolvimento. Educação musical. Bahia. Abstract The objective of this study is to discuss the increment of cultural movements, especially of those associated with music, as they offer perspective for the involvement and recognition of those people disqualified from the process of developing in Bahia, especially in Salvador. The theoretical framework of the study is grounded in critical geography and the concept of ecology of knowledges. The methodology involves gathering and analyzing official socioeconomic statistics in the capital of the State, field research and application of semi-structured interviews to managers and students of music. One of the main results obtained is the mapping of a considerable number of institutions that use music as a relevant aesthetic and pedagogical factor in social transformation of citizens. This is especially pivotal in a city where is, far from the tourist discourse and there are significant poverty rates, concentration of income and socioeconomic inequality. Keywords: Music. Development. Music education. Bahia.

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Cartografias possíveis: quando as sonoridades definem territórios de esperança

Introdução Os resultados do processo de globalização e os impasses no plano econômico, social, político e ambiental evidenciam, segundo o cientista político Dupas (2009), as limitações das políticas sociais como motor transformador da realidade social e o acirramento das questões ambientais, provocados pelo próprio modelo econômico, sucateador de produtos e esbanjador de energia. Assim, a promessa de universalização dos benefícios do progresso, embutida nos pressupostos da ciência moderna, não só não se realizou como também se mostrou excludente e perversa. A manutenção dessa lógica moderna de acumulação, como afirmam os economistas Chesnais (2011) e Leff (2006), tende a acirrar as contradições entre os interesses do capital e os demais grupos da sociedade civil, com resultados ainda mais perversos para a humanidade. Abre-se, assim, nessa perspectiva, espaço necessário de negociação de impasses estruturais históricos do modelo de acumulação brasileiro. Segundo Paula (2010), o Brasil mostrou que sua economia é capaz de crescer, mas é estruturalmente incapaz de superar o subdesenvolvimento, na medida em que isso demanda transformações que passam por uma radical distribuição da renda e da riqueza, pela prática da sustentabilidade ambiental, pela valorização da diversidade cultural e pela eliminação de todas as formas de opressão, objetivos que necessariamente colidem com o modelo capitalista em marcha. Mas, ainda que a ordem global busque impor a todos os lugares uma única racionalidade, a “racionalidade mercantil ocidental”, como afirma Santos (2005, p. 70), em cada espaço-tempo, as forças sociais e os espaços assumirão configurações específicas. Em defesa da compreensão dessas especificidades como inspiradoras de caminhos alternativos respaldam-se as críticas de vários intelectuais, como as do sociólogo Boaventura de Sousa San624

tos e as do geógrafo Milton Santos, dentre muitos outros. Esses autores desenvolvem uma crítica contra-hegemônica e assumem os desafios da construção dos valores universais em novas bases. Os trabalhos oriundos desse debate sinalizam não apenas a natureza polissêmica e multidimensional do desenvolvimento, mas também a necessidade de se refletir sobre a possibilidade de uma outra globalização (ESCOBAR, 2007; SANTOS, B., 2001; SANTOS, M., 2001). Assim como o sociólogo Santos (2007), acredita-se que, muito mais que uma resistência política, uma resistência epistemológica é necessária; a construção de um pensamento alternativo, a partir das artes e da criatividade, às opções hegemônicas. Para o sociólogo, as análises devem atuar em duas direções: uma, no sentido de combater a noção dominante de desenvolvimento, concebida a partir de perspectivas hegemônicas do centro, e outra que busca compreender, a partir das bases, como os grupos sociais dialogam e enfrentam as imposições dos interesses dominantes. No início dos anos 1930, a filósofa Hanna Arendt já sinalizava a sua inquietação sobre os caminhos impostos pela modernidade e sobre a afirmação da ideia de neutralidade da ciência e da técnica. Preocupada com o homem e sua existência, ao investigar os elementos determinantes da natureza humana, a filósofa constata a imersão das ciências biológicas no campo das ciências humanas e a transformação nas fronteiras do conhecimento, que produz uma nova ideia do homem a partir da marcha das ciências e das técnicas. A categoria central para se pensar a condição humana, para ela, é a de ação, que está, por princípio, ligada à política. Desse modo, o que há de mais intrínseco no homem é a política ou a ação política, cuja finalidade é o próprio homem. Para a filósofa, a modernidade construiu sua identidade e induziu todos a se pensarem a partir do trabalho, impondo, desse modo, a supremacia do econômico sobre o político. Quando o homem perde o elo Bahia anál. dados, Salvador, v. 22, n. 4, p.623-638, out./dez. 2012


Maria Teresa Franco Ribeiro, Armando Alexandre Castro

com o trabalho, resta-lhe, então, o vazio, o sentido de abandono, campo fértil para experiências extremas e destrutivas. Para Matos (2010), a modernidade é a mais profunda imersão na matéria, a atrofia do espírito e a perda coletiva da imaginação. A autora se inspira em Adorno para afirmar que, no capitalismo, desaparece o “esquematismo da imaginação”, capacidade do sujeito de transpor os dados imediatos da sensação para a constituição de um objeto no espaço – substituída pelos objetos já “esquematizados” da indústria cultural, prontos para o consumo. Esse processo tende a desqualificar o “valor espírito” e a experiência do tempo, plasmado na aceleração da temporalidade, na falta de tempo e na superficialidade das relações. Quanto mais as ideias se instrumentalizam, menos são expressões de pensamentos próprios dos sujeitos. Quanto mais o conhecimento se distancia de suas necessidades históricas, de sua linguagem, do pensamento, mais ele se distancia da criatividade. A cultura deixa, assim, de ser uma experiência de autoconhecimento, agregadora e civilizatória, para se reduzir a conteúdos simplificados e massificadores. Longe de desacreditar as ciências ou a importância do conhecimento científico, sugere-se que o seu desenvolvimento leve em consideração as necessidades e os problemas específicos de cada realidade sociocultural. Um país não pode negligenciar as áreas duras da ciência, como a matemática, a física, as engenharias, etc (SALES, 2010). A compreensão das especificidades das culturas e do humano estimula o diálogo entre a ciência, as artes e as humanidades, conferindo maior amplitude e significado à sua aplicação. A busca da “completude” dos saberes e do ser potencializa a harmonia e o respeito entre os seres de toda a diversidade socioespacial. Buscando dar conta da intrínseca interconectividade das relações da sociedade com a natureza e da complexidade dos processos de desenvolvimento, diversos autores (CAMARGO, 2005; NICOLESCU, 2001; MORIN, 1999; MORIN; MOIGNE, Bahia anál. dados, Salvador, v. 22, n. 4, p.623-638, out./dez. 2012

2000; SANTOS, B., 2001; 2003) avançam na construção de novos princípios e conceitos que discutem e desconstroem antigas verdades científicas baseadas no modelo cartesiano-newtoniano. Esses autores realizam um esforço de crítica epistemológica e perseveram na construção de novas bases do conhecimento que valorizam o diálogo entre as diversas áreas do saber, buscando integrar o que foi fragmentado e resgatando, desse modo, a complexidade de tudo que a ciência moderna simplificou, objetivou, reduziu. Para Morin e Moigne (2000), o sujeito do conhecimento deve ser reavaliado em favor de outras concepções mais interativas, menos antropocêntricas e mais dialógicas, valorizando a arte do pensar. Nessa perspectiva, o conhecimento do homem e dos seus problemas não pode ser separado do Universo, mas inserido nele. A compreensão e atuação sobre o local e o território não se limitam ao espaço físico, mas a um espaço dotado de uma história, de uma cultura. A compreensão dessa trajetória é fundamental para a construção de uma consciência humanística e ética de pertencer à espécie humana, à dimensão terrestre e à dimensão local, para um agir responsável sobre essa realidade. A noção de pertencimento implica o autorreconhecimento de sujeitos capazes de interagir com os outros, de ouvir e de ser ouvidos, de respeitar e de ser respeitados. Assim, a ampliação das relações de pertencimento depende da predisposição individual e coletiva para mudar o olhar e as atitudes. Um novo olhar possibilitará a construção de uma nova epistemologia, menos arrogante e mais comprometida com os destinos da Terra. É nessa perspectiva que Santos (1987) afirma que, na medida em que se superam as dicotomias entre mente e matéria, observador e observado, subjetivo e objetivo, coletivo e individual, animal e pessoas, a distinção entre ciência natural e ciência social deixa de ter sentido. Toda ciência é uma ciência social. Neste trabalho, procura-se compreender e discutir, a partir de algumas experiências culturais, 625


Cartografias possíveis: quando as sonoridades definem territórios de esperança

principalmente associadas à música, a sua natureSegundo o geógrafo Soja (1993), a partir das za alternativa, o seu caráter de resistência à margi- últimas décadas do século XX, começa-se a pernalidade imposta pela aceleração do processo de ceber uma convergência de ideias e perspectivas urbanização. Experiências que evidenciam novas sobre a conceitualização e interpretação de alguns atitudes, novas formas de aspectos fundamentais da pensar a vida diante da bruO capitalismo inventa, vida humana. No centro destalidade da modernização. sa convergência está a reareinventa, combina e recombina Trata-se de grupos sociais firmação do espaço no cernovas e velhas formas de que constroem alternativas produção e, assim, redefine limites ne das teorias sociais. Essa de vida, de autorreconhecireafirmação se dá através e fronteiras espaciais mento como sujeitos polítide três processos de reescos através da busca por um elo – desqualificado truturação interdependentes. O primeiro é a reese perdido na contemporaneidade – entre as ge- truturação ontológica, que traz uma releitura entre rações que davam sentido e continuidade à vida três elementos significativos da vida humana: o a partir da valorização da experiência, do contato espaço, o tempo e o ser, ou seja, o espacial, o com suas raízes históricas e culturais. temporal e a ordem social, a história da sociedade. A segunda reconstrução vem da economia política, da reestruturação social, política e econômica Novas configurações socioespaciais e do mundo capitalista, das sociabilidades contemterritórios de utopia porâneas associadas às mudanças nas tecnologias industriais e de comunicação. E o terceiro elo A abordagem da geografia crítica percebe a desse movimento vem da reestruturação cultural e crise contemporânea como resultado do próprio ideológica, responsável por mudanças nas formas modelo de expansão capitalista, estando, por- de viver e compreender a modernidade contemtanto, sua superação associada à reconfiguração porânea e o sentido de viver em um determinado desse modo de produzir, distribuir e se apropriar, tempo e lugar. tanto dos resultados da produção, quanto do próEssas questões levam ao debate da radicalizaprio espaço social. Nos últimos anos, experiên- ção da modernidade no mundo contemporâneo, cias de atuação democrática, como o orçamento que produz imagens para além das existências e participativo e a criação de fóruns de participação que “[...] dissemina uma imagem de mundo abstrapopular, e práticas de economias solidárias têm ta, informacional, digitalizada, que se rivaliza com buscado superar os grandes desequilíbrios so- a própria presença do mundo nos lugares” (HISSA, ciais e ampliar as perspectivas de vida da popula- 2009, p. 29). Nesse processo, o capitalismo inventa, ção excluída da lógica da acumulação mercantil. reinventa, combina e recombina novas e velhas forSão experiências que precisam ser compreendi- mas de produção e, assim, redefine limites e frondas, acompanhadas para se perceber sua força teiras espaciais, em um exercício de fechamento e, transformadora, política e emancipatória. Podem contraditoriamente, de abertura. Esse jogo dialético ser vistas como espaços de resistências a ser vi- e contraditório ilumina possibilidades interpretativas sibilizados nas cartografias do estado. O esforço aparentemente paradoxais: pode-se povoar ou fornesse item consiste em aproximar-se de algumas talecer “fronteiras da barbárie” e, também, “espaços dessas experiências e compreender sua nature- de utopia” (HISSA, 2009, p. 30). za e o seu nível de inserção nos problemas das No âmbito global, o que se percebe é um aucomunidades. mento da parcela direcionada ao capital e uma re626

Bahia anál. dados, Salvador, v. 22, n. 4, p.623-638, out./dez. 2012


Maria Teresa Franco Ribeiro, Armando Alexandre Castro

dução da fração apropriada sobre a forma de salário (HARVEY, 2010). Esses resultados são fruto da própria contradição do modo capitalista de produzir, que gera, inevitavelmente, concentração da renda e crises de realização ou superacumulação. Essas crises podem ser postergadas pelo ajuste espaçotemporal do excedente econômico, seja pelo deslocamento no tempo dos investimentos de capital em projetos de longo prazo, seja através da incorporação de novos espaços geográficos, de novos mercados (HARVEY, 2010). É evidente que, com a expansão capitalista, o processo de globalização, as possibilidades de realização e eficiência desses ajustes vão ficando cada vez mais longínquas, o que significará maior pressão sobre o trabalho para manter o excedente. Dentro dessa perspectiva, David Harvey aponta para a importância de se pensar em novos tipos de desenvolvimento, alicerçados no “florescimento” das capacidades humanas para construir o novo. Nesse sentido, acredita-se que o pensamento de Harvey (2010) se aproxima das utopias sinalizadas por Santos (2000), ao apontar a importância de se pensar o espaço como reprodução da vida e não apenas da mercadoria. Segundo Smith (1996), para o geógrafo brasileiro, o espaço é um projeto político, o projeto humanista final, o veículo de libertação, que precisa ser refeito, não como meio de exploração, mas de reprodução da vida social. A partir desse debate, Milton Santos ressalta que o processo de mundialização do produto, do dinheiro, do crédito, da dívida, do consumo e da informação é, sobretudo, uma tendência, pois “[...] em nenhum país, houve completa internacionalização. O que há em toda parte é uma vocação às mais diversas combinações de vetores e formas de globalização” (SANTOS, B., 2000, p. 30). As contribuições analíticas de Santos (2007) e de Milton Santos dialogam perfeitamente na afirmação da necessidade de compreensão dos motivos pelos quais as promessas emancipatórias da modernidade não se realizaram. O sociBahia anál. dados, Salvador, v. 22, n. 4, p.623-638, out./dez. 2012

ólogo esforça-se na construção de novas bases epistemológicas que combatem o pensamento hegemônico, ou o pensamento ocidental, desde as suas primeiras formulações, centrando-se na sociologia das ausências e na ecologia de saberes. Tanto o geógrafo brasileiro quanto o sociólogo português acreditam que a força dos movimentos subalternos contém uma promessa real de transformação, apesar de as experiências serem, ainda, bastante embrionárias. Essas experiências valorizam as formas solidárias do cotidiano desses espaços e podem ser apreendidas pelo conceito de “sociologia das emergências”, que consiste numa ampliação simbólica de sinais, pistas e tendências latentes que, embora dispersas, embrionárias e fragmentadas, apontam para novas constelações de sentido tanto no que respeita à compreensão, como à transformação do mundo (SANTOS, 2009, p. 92). O sociólogo afirma que “as linhas cartográficas abissais” que demarcaram o Velho e o Novo Mundo na era colonial subsistem estruturalmente no pensamento moderno ocidental e permanecem constitutivas das relações políticas e culturais excludentes no sistema mundial contemporâneo (SANTOS, 2009, p. 78). O pensamento moderno é, portanto, para ele, um pensamento abissal, formado por distinções visíveis e invisíveis, sendo que estas últimas suportam e fundamentam as visíveis. Esse pensamento se funda na tensão entre regulação e emancipação social. O pilar da regulação social é constituído pelo princípio do Estado, princípio da comunidade e do mercado, enquanto o pilar da emancipação consiste nas três lógicas da racionalidade: a racionalidade estético-expressiva das artes e literatura, a racionalidade instrumental cognitiva da ciência e da tecnologia e a racionalidade moral-política da ética e do direito (SANTOS, 2009). Subjacente à distinção visível e invisível, há, ainda, a distinção entre as sociedades metropolitanas e os territórios coloniais. A dicotomia regulação/emancipação só se aplica às sociedades metropolitanas. Nos territórios 627


Cartografias possíveis: quando as sonoridades definem territórios de esperança

coloniais, emprega-se a dicotomia apropriação/ pensamento hegemônico. As ausências são fruto violência. O pensamento ocidental não apenas re- de um pensamento linear que nega a pluralidade do força essa diferença, como também a radicaliza. A tempo e do espaço, sustentando-se na monocultura visibilidade da ciência moderna se assenta na in- do saber. É a partir da compreensão das ausênvisibilidade de outras formas cias, de suas lógicas e tende conhecimentos presentes Essa nova epistemologia evitaria sões que se abrem espaços nos territórios coloniais. A de acolhimento das diversio desperdício das experiências, negação produz a ausência dades e das possibilidades confrontando a monocultura de humanidade, ou a subude transformação da prática da ciência moderna com uma manidade moderna, ou, ainda monocultura do saber ecologia de saberes da, a banalização da condiem prática de uma ecologia ção humana, conforme Hanna Arendt. de saberes, terreno fértil para a construção de um A pressão da lógica apropriação/violência so- projeto emancipatório. bre a lógica regulação/emancipação gera, segundo Boaventura de Sousa Santos, três tipos de fascismo social: o apartheid (segregação dos excluídos), Construindo uma nova cartografia: o contratual (privatização dos serviços públicos, os territórios invisíveis da cidade de saúde, segurança e eletricidade) e o territorial (apro- Salvador priação dos territórios, cooptando e violentando as instituições, ou novos territórios coloniais privados). A partir de um levantamento realizado em Essas três formas de fascismo ficam muito evidentes 2011 sobre as experiências musicais em Salvador, ao analisarmos alguns dados socioeconômicos da constatou-se a existência de 20 organizações que cidade de Salvador, espaço que abriga as experiên- desenvolvem trabalhos de ensino, educação musicias nas quais se busca compreender a emergên- cal, pesquisa e criação artística. O nível de orgacia de possíveis movimentos potencializadores de nização e articulação desses trabalhos estimulou novas sociabilidades. Para captar esses movimen- a aprofundar a investigação e a refletir sobre as tos, o sociólogo propõe uma nova epistemologia, transformações que ocorrem na qualidade de vida não generalista, não ampla, já que a pluralidade e a dos sujeitos, na constituição de um pensamento recomplexidade do mundo, especialmente na contem- flexivo e de uma consciência política. Instigou comporaneidade, não permitem uma teoria geral. É na preender como esses movimentos se constituíram, perspectiva da construção de uma nova epistemo- que tipo de trabalho foi desenvolvido com as cologia que Santos (2009, 2007) sugere os conceitos munidades e como essas se articulam e sustentam de sociologia das ausências e ecologia de saberes. alternativas de vida, de realização individual comEssa nova epistemologia evitaria o desperdício das partilhada e solidária no contexto de uma cidade experiências, confrontando a monocultura da ciência cada vez mais violenta e excludente. moderna com uma ecologia de saberes. Trata-se de A dinâmica de expansão da economia baiana uma ecologia porque se baseia no reconhecimento não se diferencia muito da economia brasileira. Talda pluralidade de conhecimentos heterogêneos e em vez expresse apenas com mais violência o padrão interações sustentáveis e dinâmicas que não com- concentrador e centralizador da renda e dos serviprometem sua autonomia (SANTOS, 2009). ços urbanos no país. Os dados oficiais e as estaA sociologia das ausências é um conhecimento tísticas corroboram essa afirmativa. Em 2009, com insurgente que procura mostrar que o mundo ne- uma população estimada em 2.998.056 (INSTITUgado, invisibilizado, é produto da construção de um TO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 628

Bahia anál. dados, Salvador, v. 22, n. 4, p.623-638, out./dez. 2012


Maria Teresa Franco Ribeiro, Armando Alexandre Castro

2009), Salvador apresentava uma incidência de pobreza de 35,76%, índice de Gini1 0,49 (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2003), um dos piores indicadores entre os estados da Federação. A partir dos dados analisados por Fernandes (2007), fez-se uma leitura comparativa entre alguns bairros de Salvador para se ter uma ideia do nível de distribuição da população e das categorias socioeconômicas. O bairro da Pituba, situado na zona sul da cidade, por exemplo, abrigava aproximadamente 200 mil pessoas, o que correspondia a 7,5% da população da cidade, respondendo por 30% de toda a renda do município. No miolo da cidade, ficam os bairros mais pobres economicamente, como Cajazeiras, onde moravam cerca de 300 mil pessoas (11% da população), que respondiam por apenas 2,8% da renda. Mesmo

considerando que esses dados são de 2003, eles mostram um padrão cuja tendência é se agravar. Uma projeção para 2013, também realizada pela SEI, prevê o agravamento da concentração de renda: enquanto a Pituba deterá 35% da renda, Cajazeiras responderá por apenas 2,1%. No campo da segurança pública, os dados também são preocupantes. Em 2008, a Secretaria de Segurança Pública do Estado da Bahia registrou 1.733 homicídios dolosos, o que corresponde a uma média mensal, para este mesmo ano, de 144 homicídios/ mês, ou 36 homicídios/semana. Como pode ser visto na Tabela 1, a Área Integrada de Segurança Pública (AISP) relacionada ao bairro de Cajazeiras (AISP 19), em 2008, totalizou 106 homicídios dolosos, contra três no bairro da Pituba (AISP 8). O recorde de homicídios dolosos

AISP1

AISP2

AISP3

AISP4

AISP5

AISP6

AISP7

AISP8

AISP10

AISP12

AISP13

AISP16

AISP17

AISP18

AISP19

AISP20

TOTAL

Tabela 1 Registros de ocorrências policiais – Salvador - 2008

Homicídio doloso

9

41

67

94

88

73

133

3

141

65

245

224

127

177

106

140

1.733

Tentativa de homicídio

6

24

43

71

66

55

78

8

69

44

187

127

23

110

62

60

1.033

REGISTROS

Estupro

6

6

5

17

43

6

16

9

22

6

26

35

4

31

19

32

283

Roubo seguido de morte

0

0

0

5

1

0

0

0

1

5

4

3

1

9

3

0

32

Roubo a ônibus urbano

50

162

139

98

224

15

122

59

229

126

136

233

64

212

109

224

2.202

Furto de veículo

89

184

85

258

161

15

139

203

87

156

88

39

20

81

30

137

1.772

Roubo de veículo

91

174

159

207

372

3

246

427

290

578

380

186

156

428

167

697

4.561

Usuário de drogas

81

262

36

158

119

72

40

27

110

122

208

73

2

47

57

94

1.508

Veículos recuperados

33

139

82

126

192

24

208

730

190

186

338

184

204

247

109

332

3.324

Pessoas autuadas em flagrante

67

812

110

675

199

46

146

336

111

143

171

176

31

95

169

30

3.317

Apreensão de arma de fogo

7

112

29

183

142

15

34

49

51

58

93

75

12

37

49

28

974

ATIVIDADE POLICIAL

Fonte: Secretaria de Segurança Pública/BA, 2010. 1

O coeficiente de Gini é uma medida da concentração de renda e oligopolização dos setores industriais. Os valores do coeficiente variam entre 0 e 1 (valor máximo). Quanto mais próximo da unidade (1), pior a distribuição de renda. SANDRONI, Paulo. Dicionário de Economia. São Paulo: Editora Best Seller. 1987. p.68.

Bahia anál. dados, Salvador, v. 22, n. 4, p.623-638, out./dez. 2012

629


Cartografias possíveis: quando as sonoridades definem territórios de esperança

ficou com a AISP 13, que envolve os bairros de NaEssa cartografia desumana da cidade é o pano randiba, Doron, Tancredo Neves e Engomadeira, de fundo de experiências musicais enriquecedocom 245 casos. As estatísticas e dados oficiais, ras, sonoridades emergentes que reverberam nos assim como os estudos de entidades e movimen- bairros mais pobres, com os maiores índices de tos em prol dos direitos huviolência urbana, tais como manos, permitem afirmar que Com a liberalização das fronteiras, Candeal, Pelourinho, Caboa parte dos bairros centrais bula, Alagados, Fazenda surgem jogos suplementares, de Salvador, aqueles marcaCoutos, Vasco da Gama, novos papéis e regras dos por grandes contingenCentro, Queimadinho, Liberdesconhecidas, bem como novas tes populacionais e baixos dade, Tancredo Neves, Rio contradições e conflitos rendimentos, apresenta os Vermelho, Campo Grande e maiores riscos à condição humana. Ainda que a Canela. Incorporou-se também, na análise, uma segurança pública seja um problema em toda a ci- experiência em Camaçari, Região Metropolitana dade de Salvador, os dados disponíveis constatam de Salvador, a Cidade do Saber, que utiliza a músio elevado grau de violência em áreas mais pobres. ca como elemento estético-pedagógico. Os bairros Da perspectiva de SANTOS (2009, 2007), o plane- registrados neste estudo encontram-se dispersos jamento urbano regional, ao estimular e privilegiar pelo município de Salvador, caracterizando uma os “espaços luminosos”, os espaços globais, acirra aparente dicotomia entre apropriação e violência, as contradições e amplia os espaços de exclusão, como pode ser constatado nas tabelas 1 e 2, dados os “espaços opacos”. Esses espaços opacos, como sobre violência e educação. aponta o autor, não teriam a dignidade como alterO agravamento das condições sociais a partir nativa crível a uma realidade global, universal. A dos anos 1970 deve-se, em grande parte, ao enpreponderância da lógica da apropriação/violência fraquecimento do poder dos estados como atores gera o fascismo social, uma espécie de apartheid. mais relevantes da ação coletiva e, simultaneaA cidade vai se desfigurando, fragmentando-se e mente, ao fortalecimento dos interesses privados produzindo novas formas de ameaça e medo. hegemônicos. O poder de intervenção estratégica Analisando as taxas de desemprego na capital baia- e de definição das regras do jogo da ação polítina, a partir das informações da Pesquisa de Emprego ca, responsável pela transformação dos cenários e Desemprego – realizada pela SEI em parceria com das ações coletivas, é frequentemente minado pela o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos força e pelos interesses dos grupos internacionais. Socioeconômicos (Dieese), Fundação Sistema Esta- Com a liberalização das fronteiras, surgem jogos dual de Análise de Dados (Seade) e Secretaria do Tra- suplementares, novos papéis e regras desconhebalho, Emprego, Renda e Esporte (Setre) –, constata- cidas, bem como novas contradições e conflitos. se o aumento do desemprego de 17,7% (janeiro/2010) Cresce também a participação das organizações para 18,8% (fevereiro/2010). Esse comportamento se não governamentais (ONGs), atuando em territórios agrava em Salvador em função do baixo nível de quali- e áreas sociais menos privilegiadas e menos assisficação da população ativa e da centralização da estru- tidas pelo poder público. tura produtiva na área metropolitana. Esse movimento As ONGs iniciam os trabalhos, sobretudo, a partir expressa não apenas a precariedade das oportunida- da década de 1990, quando se radicaliza o processo des nas médias e pequenas cidades, como também de modernização capitalista sob a batuta do FMI e a falta de políticas públicas direcionadas à educação, se acirram as desigualdades sociais e a violência. A saúde e estímulo às atividades que possam incorporar defesa do Estado mínimo e a privatização dos servios saberes e as culturas locais. ços públicos fundamentais são expressões da radi630

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Maria Teresa Franco Ribeiro, Armando Alexandre Castro

calização do fascismo social, presente nos territórios de apropriação e violência. A desigualdade de renda em Salvador também se reflete na educação, destacando positivamente, mais uma vez, via Unidade de Desenvolvimento Humano (UDH), bairros litorâneos. Segundo o relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), esta relação em Salvador pode ser assim compreendida: Enquanto na UDH – ITAIGARA 97,67% das crianças com idade entre 7 e 14 anos estão frequentando o ensino fundamental, essa proporção é de 82,70% na UDH - COUTOS-Fazenda Coutos, Felicidade e chega a 78,68% na UDH vizinha, COUTOS/ PERIPERINova Constituinte, a com o menor índice. Há forte relação entre esses níveis de frequência e os índices de alfabetização. Enquanto a primeira tem o terceiro menor percentual de pessoas maiores de 15 anos analfabetas da região metropolitana (0,93%) — atrás somente da UDH - CAMINHOS DAS ÁRVORESIguatemi (0,47%) e AMARALINA-Ubaranas (0,70%),

ambas em Salvador — a UDH - COUTOS-Fazenda Coutos, Felicidade tem 12,95% (PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO; COMPANHIA DE DESENVOLVIMENTO URBANO DO ESTADO DA BAHIA , 2006, p. 35). É possível perceber que avanços no nível de escolaridade realçam consideravelmente as diferenças entre as UDHs. Se os bairros da Pituba e Itaigara apresentam 82,91% dos adolescentes de 15 a 17 anos frequentando o ensino médio, o bairro de Fazenda Coutos registra 16,03%. No nível superior, a distorção é ainda mais gritante. Nos dois primeiros bairros, o percentual de jovens com idade entre 18 e 24 anos matriculados em universidades/faculdades é de 59,64% (PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO; COMPANHIA DE DESENVOLVIMENTO URBANO DO ESTADO, 2006), enquanto em Fazenda Coutos esse indicador é de apenas 0,37%. Apenas para exemplificar a forte desigualdade no nível educacional, apresenta-se a tabela a seguir com a situação em Cajazeiras:

% 18 a 24 anos analfabetas, 2000

% 18 a 24 anos com menos de quatro anos de estudo, 1991

% 18 a 24 anos com menos de quatro anos de estudo, 2000

% 18 a 24 anos com menos de oito anos de estudo, 1991

% 18 a 24 anos com menos de oito anos de estudo, 2000

% 18 a 24 anos com menos de 11 anos de estudo, 1991

% 18 a 24 anos com menos de 11 anos de estudo, 2000

% 18 a 24 anos com 12 anos ou mais de estudo, 1991

% 18 a 24 anos com 12 anos ou mais de estudo, 2000

% 18 a 24 anos no curso superior, 1991

% 18 a 24 anos no curso superior, 2000

% 18 a 24 anos com acesso ao curso superior, 1991

% 18 a 24 anos com acesso ao curso superior, 2000

Águas Claras/Cajazeiras Cajazeiras V,VI,VII

89

7,65

1,20

16,83

7,32

46,99

35,13

81,34

66,42

2,79

0,23

0,92

0,54

1,26

0,54

Águas Claras Nogueiras

88

5,93

3,12

18,13

11,85

59,98

45,96

88,36

83,40

0,33

2,11

0,33

1,41

0,33

1,41

Cajazeiras/Faz Grande Caj VIII, Faz Gde II e III

82

0,59

2,59

10,75

11,13

54,19

48,62

85,02

80,04

3,21

1,03

0,90

1,50

0,90

1,50

Cajazeiras Cajazeiras X e XI

90

2,92

0,33

14,68

8,19

53,10

35,40

79,29

77,74

2,85

1,73

2,35

1,16

2,35

1,16

Fazenda Grande Fazenda Grande I e II

94

2,81

2,76

14,00

8,49

48,75

27,97

80,58

69,29

0,42

1,43

0,42

2,29

0,42

2,29

Fazenda Grande Fazenda Grande III e IV

93

2,22

1,87

9,34

6,86

41,60

30,50

78,17

71,02

2,05

0,86

2,87

1,34

2,87

1,34

XIV – CAJAZEIRAS

14

4,09

2,03

14,49

9,03

50,82

37,41

81,95

74,67

1,85

1,23

1,31

1,38

1,38

1,38

6,43

3,08

18,56

12,27

53,07

41,31

76,92

70,08

5,30

6,66

5,05

7,82

5,36

8,09

UDH

RMS

Código

% 18 a 24 anos analfabetas, 1991

Tabela 2 Nível educacional – bairro Cajazeiras – 1991-2000

Fonte: Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento; Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado, 2011.

Bahia anál. dados, Salvador, v. 22, n. 4, p.623-638, out./dez. 2012

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Cartografias possíveis: quando as sonoridades definem territórios de esperança

Cajazeiras é um bairro populoso e distante do centro de Salvador, e seus índices educacionais (vide Tabela 2) apontam que 66,42 % da população entre 18 e 24 anos tem menos de 11 anos de estudo, e apenas 0,54% deste contingente tem acesso ao ensino superior. Os parcos dados e indicadores aqui apresentados expressam a violência do processo de expansão econômica e socioespacial da cidade de Salvador nas últimas décadas. A natureza excludente e perversa da modernidade impõe consequências sociais devastadoras à cidade, associadas a uma deriva política sem compromissos sociais e civilizadores. A privatização dos serviços fundamentais é a face perversa do modelo de desenvolvimento que privilegia as classes de alta renda, fomentando as mais diversas formas do fascismo social, presentes nos territórios de apropriação e violência. Diante desse quadro, parte-se em busca de cartografias invisibilizadas, experiências que procuram, a partir da compreensão crítica e da ressignificação da vida, construir novos espaços de solidariedade, dignidade e de visibilidade. A temática de partida dessas experiências, visibilizadas neste pequeno ensaio, é a música, mas o sentido e os objetivos das ações comunitárias abrangem todos os espaços da vida, do cotidiano sofrido e esquecido das comunidades invisibilizadas pela ação e discurso hegemônicos. O espírito de solidariedade e dignidade dá voz às necessidades mais fundamentais, mais simples, esquecidas ou ignoradas pelo poder público. A partir da valorização das experiências comuns, dos diversos saberes culturais, essas comunidades têm construído formas extremamente criativas de existência, capazes de redefinir suas histórias de vida e de vislumbrar espaços de esperança para as próximas gerações.

Cartografias invisíveis, sonoridades emergentes Embora a concentração do acesso à educação, às atividades produtivas e à renda em Salvador, 632

assim como seus próprios registros internos de desigualdade, oportunize externalidades negativas, é possível perceber, também, mudanças de comportamento ou questionamentos sobre a relação homem/capital, tempo/espaço. Abrem-se, assim, espaços de reflexão a partir de outras possibilidades de (con)vivência humana através do contato com as subjetividades, com as diversas formas de conhecimento e, principalmente, com a prática da música como elemento de ressignificação dos sentidos da vida. Assim, ao discutir a importância da experiência, Foucault afirma que “[...] é preciso dar atenção às práticas reflexivas e voluntárias através das quais os homens não apenas fixam, para si, regras de conduta, mas, também, procuram se transformar, modificar-se na sua singularidade e fazer da sua vida uma obra que traga certos valores estéticos que respondam a certos critérios de estilo” (FOUCAULT apud NOVAES, 2010, p. 16). A educação musical estimulada por ONGs, organizações sociais, instituições sem fins lucrativos, escolas públicas, além de programas e projetos relacionados a órgãos governamentais, tem contribuído para a visibilidade de novas cartografias na cidade de Salvador. Enquanto prática presente no cotidiano de milhares de pessoas, pode-se compreender, a partir dos exemplos discriminados abaixo, a dignidade humana como valor ético intercultural que transcende os modelos organizacionais respaldados na lógica mercantil. A diversidade das experiências das organizações inscritas no Quadro 1 confirma as reflexões sobre a necessidade de se repensar novas dimensões para o modelo de desenvolvimento da cidade de Salvador, a partir de valores mais solidários, mais tolerantes e mais criativos. A música pode ser um elemento-chave na integração das demais práticas que permitem a inclusão do indivíduo e promovem a sua transformação enquanto sujeito político. Nessa perspectiva, a educação musical oferecida pelas instituições aqui citadas, a partir do mapeamento apresentado, é acompanhada de orientação profissional e de diversos conteúdos elaborados a partir Bahia anál. dados, Salvador, v. 22, n. 4, p.623-638, out./dez. 2012


Maria Teresa Franco Ribeiro, Armando Alexandre Castro

das necessidades cotidianas das comunidades. Novos desenhos organizacionais criados a partir dessas experiências permitem a compreensão sistêmica da problemática de cada comunidade. Santos (2001) afirma que a globalização neoliberal é apenas uma das formas de globalização, uma forma dominante e hegemônica, mas não a única. A lógica global é confrontada por outras lógi-

cas, formas alternativas, contra-hegemônicas, que podem sinalizar novos caminhos para a realização da experiência humana. Há uma crise do conhecimento, dos instrumentos de política e da forma de se fazer política, fato que abre espaço para a reformulação da própria forma de produzir conhecimento. Seguem algumas experiências musicais alternativas à lógica dominante: (Continua)

Natureza

Fundação oficial

Associação Lactomia Ação Social

ONG

2003

Candeal Pequeno

O objetivo do grupo é provocar a reflexão sobre cidadania e responsabilidade ambiental, através de composições que retratam temas e dificuldades da situação mundial. A partir de materiais reaproveitados do lixo, eles produzem instrumentos de percussão, figurino e cenário.

Centro de Educação Profissional Pracatum/ Escola Pracatum

ONG

1995

Candeal Pequeno

O objetivo é a prática da educação musical e da tecnologia como elementos de inclusão social. O grupo oferece cursos profissionalizantes em diversas áreas da arte musical, como mixagem, gravação digital, percussão, captação de áudio para cinema e TV, entre outras.

Pelourinho

Humanizar o processo de inclusão digital, a partir da transformação do computador em instrumento musical é o objetivo do grupo. Atualmente, ele conta com dois escritórios, um em Salvador, outro em São Paulo. Em Salvador, concentra-se a parte operacional dos cursos, as oficinas e as demais atividades, enquanto a sede de São Paulo fica responsável pela captação de recursos e pelo relacionamento institucional com os parceiros.

Pelourinho

Instituição cultural sem fins lucrativos que tem como objetivo elevar a qualidade de vida das pessoas através da música. Fundada por Neguinho do Samba, a Didá Escola de Música Feminina oferta cursos de instrumentos de cordas, sopro, teclado, percussão, canto, capoeira, dança afro, teatro, artes, inglês e informática. Possui três projetos: Didá Banda Feminina, Sódomo e o bloco de Carnaval. Atende, atualmente, cerca de 200 jovens.

Pelourinho

Criado como bloco carnavalesco em 1979, a partir de 1983, deu início a outras atividades, dentre elas, a Escola Olodum. Destaque para seu projeto pedagógico de conteúdo multiétnico e multicultural, cuja grade curricular contempla diversas linguagens musicais, coral, dança afro, inclusão cultural e digital. Em paralelo, destacam-se, também, questões como cidadania e diversidade étnica, discutidas por meio de workshops de formação de lideranças afrodescendentes e campanhas de mobilização social. Parceiros nacionais e internacionais em sua proposta pedagógica, que alia tecnologia à qualificação profissional, no campo musical.

Instituição

Eletrocooperativa

Didá Escola de Música Feminina

Grupo Cultural Olodum / Escola Olodum

ONG

ONG

ONG

2003

1993

1979

Bairro

Objetivos/Características

Projeto Axé

ONG

1990

Comércio

Através da figura do educador de rua, esse grupo estimula permanentemente os jovens a construírem um projeto de vida renovador em que eles se reconheçam não apenas como sujeitos de direto, mas também como sujeitos de desejo. Em 20 anos de existência, passaram pelo Axé mais de 13.700 crianças e adolescentes.

Escola de Educação Percussiva Integral (EEPI)

ONG

2007

Cabula

O objetivo desta escola é educar, através da música, jovens em risco social e pessoal, para melhor qualificação na sociedade.

Grupo Cultural Bagunçaço

Instituto de Música da UCSal (IMUCSal)

ONG

1991

Alagados

Objetiva atender e promover os direitos da criança, do adolescente e do jovem através de atividades artísticas, educacionais e socioculturais. Desenvolve oficinas de percussão, dança, arte com reciclados, literatura, assim como seminários, palestras e cursos profissionalizantes. Percussão e reciclagem, aulas de música percussiva, filarmônica e, mais recentemente, a TV Lata.

Universidade (Extensão)

1989

Centro

Desde 1989, o instituto oferece, através da Oficina de Criatividade Infanto-Juvenil, diversos cursos gratuitos em musicalização infantil e artes plásticas. O projeto já atendeu mais de 1.500 crianças e adolescentes.

Bahia anál. dados, Salvador, v. 22, n. 4, p.623-638, out./dez. 2012

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Cartografias possíveis: quando as sonoridades definem territórios de esperança (Continuação)

Instituição

Natureza

Escola Técnica Estadual Luiz Navarro de Brito

Rede estadual de ensino

Fundação oficial

2002

Bairro

Objetivos/Características

Queimadinho

Escola da rede estadual de educação em que a música é um elemento de socialização e inclusão sociocultural. Disponibiliza amplo e equipado estúdio de ensaio, instrumentos musicais de corda, sopro e estimula a formação de grupos musicais locais. Procura estabelecer parcerias com as universidades.

Fundação Pierre Verger

ONG

1988

Av. Vasco da Gama

A partir do Espaço Cultural Pierre Verger, a fundação oferece gratuitamente 15 oficinas para crianças e jovens, com temáticas que abordam a cultura afrobrasileira, a música e a cidadania. No campo musical, destaque para a orquestra experimental, experimentação musical, violão, teclado e percussão.

TV Pelourinho

ONG

2008

Pelourinho

O objetivo é a formação de jovens em funções técnicas que facilitem a sua inserção no mercado de trabalho no campo do audiovisual. A música, como conteúdo transversal, integra temáticas das produções audiovisuais dos alunos. Atende 400 jovens/ano.

Liberdade

A Escola de Percussão, Canto e Dança Band’ Erê foi criada no final da década 1980, com o objetivo de renovar os quadros artísticos da Band’Aiyê. A partir de 1995, tornou-se uma escola de formação integral para a cidadania, trabalhando com a identidade racial, o pensamento crítico e a autoestima.

Bloco Afro Ilê Aiyê

ONG

1974

Ceifar

ONG

1994

Tancredo Neves

O grupo surgiu da observação e discussão dos problemas sociais da comunidade do bairro, tendo como ponto de partida o planejamento familiar através de visitas e encontros de formação sobre sexualidade e a promoção de atividades lúdico-educativas, trazendo para a comunidade uma perspectiva de melhoria nas condições de vida. A educação musical é desenvolvida a partir do ensino da teoria musical aliada à formação de coral. Atende cerca de 490 crianças e jovens.

Oficina de Música Instrumental

ONG

2008

Canela

Oferece a crianças e jovens de escolas públicas de Salvador a possibilidade de conhecer a história do trio elétrico e de aprender a tocar guitarra baiana, violão, bateria, percussão ou baixo elétrico, que constituem a base instrumental para a formação de um músico de trio elétrico.

2007

Campo Grande

O Programa de Formação de Núcleos de Orquestras e Corais Infantojuvenis no Estado da Bahia visa a integração social por meio da prática coletiva da música. Sua estratégia está focada na construção ética e pedagógica da infância e da juventude, mediante a instrução e a prática orquestral e coral, capacitação em ensino musical, novas tecnologias e na reparação de instrumentos musicais.

2007

Cidade de Camaçari (BA)

Propõe a prática musical de repertório popular e erudito, a leitura musical e o constante aperfeiçoamento técnico. Busca desenvolver habilidades específicas para a execução, sempre dentro de um contexto de compreensão das estruturas da linguagem e se colocando num permanente relacionamento com as particularidades próprias de cada instrumento. Dentre os cursos, violão, contrabaixo, percussão, teclado, canto coral e bateria.

ONG

1943

Parque Lucaia

Fundada pelo professor, jornalista, advogado e teatrólogo Adroaldo Ribeiro Costa, oferece aulas de música, dança, teatro, artes visuais, iluminação cênica e cenografia. Atualmente atende cerca de 400 alunos por ano, desenvolvendo suas atividades em parceria com as redes estadual e municipal de educação.

Rede estadual

1993

Canela

Curso Técnico Profissionalizante em Execução Instrumental.

Fazenda Coutos

Um dos projetos vinculados à Associação dos Educadores da Escola Comunitária São Miguel. Atualmente encontra-se sob a coordenação do Instituto Otaviano Almeida Oliveira (IOAO). Desenvolve projetos artísticoculturais a partir da música e da recriação dos folguedos populares. Em 2009, com o espetáculo Donos da Terra, recebeu o Prêmio Braskem nas categorias Melhor Espetáculo Infanto-juvenil e Melhor Diretor (João Gonzaga). Em 15 anos, os registros apontam para o atendimento de 5 mil crianças e jovens.

Neojibá

Cidade do Saber

Organização social (Secult/BA)

Organização social

Hora da Criança

Colégio Estadual Deputado Manoel Novaes

Projeto de Iniciação Musical (PIM)

Instituto

1995

Quadro 1 Música e gestão social

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Maria Teresa Franco Ribeiro, Armando Alexandre Castro

Dos 20 projetos pesquisados, conforme o Quadro 1, foram focadas três experiências que exemplificam a natureza criativa e alternativa de iniciativas desse tipo. A experiência Neojibá

A experiência Eletrocooperativa

Fundada em 2003, no Pelourinho, a Eletrocooperativa alia educação, música e tecnologia e já formou mais de 930 jovens A evolução do processo de a partir do hip hop e de uma metodologia original, a Seviformação dos jovens, num rologia, que significa “se virar segundo momento, identificou a necessidade de geração de renda, para vir a ser”. O sítio eletrônico da Eletrocooperativa eso que fez surgir, em 2006, clarece que Sevirologia a Usina de Produção

Criado pelo pianista e maestro baiano Ricardo Castro, o Núcleos Estaduais de Orquestras Juvenis e Infantis da Bahia (Neojibá) é configurado como um amplo programa governamental de formação de núcleos de orquestras e corais infanto-juvenis no estado da Bahia, visando à excelência e à integração social na formação de crianças e jovens, sem distinção de classe social, a partir da prática coletiva da música. O Neojibá sempre priorizou as turnês no interior do estado. O objetivo é divulgar o projeto e despertar possíveis sonhos de músicos adormecidos na brutalidade do cotidiano. Os primeiros se tornavam multiplicadores e disseminadores do conhecimento. O primeiro núcleo do Neojibá fora de Salvador será sediado em Simões Filho, no Centro Educacional Santo Antônio (CESA), ligado às Obras Sociais Irmã Dulce. A implantação do Neojibá se deu a partir do intercâmbio com a Fundación Del Estado para El Sistema Nacional de las Orquestas Juveniles de Venezuela (Fesnojiv) e seu “El Sistema”, implantado há 35 anos e, hoje, mundialmente aclamado como uma das mais bem sucedidas experiências de formação orquestral no mundo. Em dezembro de 2009, a gestão do Neojibá foi transferida para a primeira organização social de cultura no âmbito do estado, a Aojin, que passou a receber os recursos governamentais à medida que executava as metas pactuadas no plano de trabalho do contrato de gestão. A estratégia adotada possibilita o atendimento das necessidades dos projetos sem as amarras burocráticas e políticas. Bahia anál. dados, Salvador, v. 22, n. 4, p.623-638, out./dez. 2012

[...] vem da expressão “se virar”: quando a gente se vira, fortalecemos nosso ser e nos encontramos com a nossa própria sabedoria. Isso traz uma nova forma de olhar para a vida, nos traz uma mudança de perspectiva, fortalece nossa auto-estima porque percebemos que somos capazes de fazer o melhor com aquilo que temos. O sevirólogo aprende sozinho e com os outros para construir seus caminhos sempre por meio da ação em busca da transformação. É um ser integral com quatro dimensões: a política, a ambiental, a cultural e a econômica (ELETROCOOPERATIVA, 2007).

A produção dos jovens da Eletrocooperativa é diretamente acompanhada pelo verbo disponibilizar. Neste caso, na rede mundial de computadores, através de portal próprio e das licenças creative commons. A evolução do processo de formação dos jovens, num segundo momento, identificou a necessidade de geração de renda, o que fez surgir, em 2006, a Usina de Produção. A sede da Eletrocooperativa, localizada no Pelourinho, Centro Histórico de Salvador, agrega estúdio musical, ilhas de edição, salas da administração e computadores com programas de edição de áudio e vídeo. Nas paredes, quadros e pinturas em grafite de artistas locais, com desenhos e palavras que expressam os sentidos de participar da Eletrocooperativa. Quem adentra a sede, deparase com um destes registros, no qual as palavras e expressões escolhidas são “alegria”, “generosidade”, “prazer em servir”, “ser digital”, “desapego”, “transpa635


Cartografias possíveis: quando as sonoridades definem territórios de esperança

rência”, “flexibilidade”, “honestidade”, “coletividade”, estéticas que contemplem, no vídeo, o conceito e “coragem” e “espiritualidade”. os objetivos do Bagunçaço. Eles se apropriam da Uma das primeiras alunas da Eletrocooperativa, essência da técnica e se utilizam de esquemas de hoje monitora e assistente administrativa, Jaqueline imaginação para, a partir do pensamento, do conheReis, acredita que o sucesso cimento, criar suas obras. da ONG, a partir da considePara os jovens integrantes A música é o foco que rável demanda e visibilidade agrega as várias dimensões do Bagunçaço [...] a música de suas ações, é justificado da vida em sociedade, sobrerepresenta a possibilidade de pela oportunidade de apre- participar do cotidiano de Salvador tudo a solidariedade e a ação sentar opções de sobrevipolítica e transformadora, cade forma mais digna, mais vência e novas alternativas paz de promover a formação humana, pelo reconhecimento para jovens de comunidades de sujeitos mais críticos e a trazido pela arte periféricas de Salvador, via sua inserção na sociedade. música e tecnologia. Jaqueline Reis informa ainda São pontos talvez invisíveis em algumas escalas, que “[...] a Eletrocooperativa já formou centenas de mas profundamente transformadores para as cojovens que atuam profissionalmente no mercado e munidades envolvidas e para os indivíduos, a criar trabalham com qualidade e engajamento social em permanentemente alternativas que lhes permitam suas comunidades de origem”. se aproximar da sua essência a partir do resgate das experiências e dos laços culturais e afetivos de A experiência Bagunçaço sua história. O Grupo Cultural Bagunçaço foi fundado em 1992, no bairro de Alagados, subúrbio ferroviário de Salvador, e integra em seu currículo 23 turnês internacionais, nas quais apresentou os resultados dos seus projetos de educação, que envolvem a música com trabalhos de percussão e com pequenos grupos de filarmônicas. Um elemento característico de suas atividades é a criação e a utilização de instrumentos musicais percussivos a partir de elementos recicláveis. O músico soteropolitano Joselito Crispim, um dos fundadores da ONG responsável pelo Bagunçaço, reitera inúmeras vezes que é a música que lhe dá a oportunidade de ser uma pessoa “do bem”, feliz e diferenciada. Para os jovens integrantes do Bagunçaço, segundo Joselito Crispim, a música representa a possibilidade de participar do cotidiano de Salvador de forma mais digna, mais humana, pelo reconhecimento trazido pela arte. A mais recente iniciativa do Grupo Cultural Bagunçaço é a TV Lata, em que os estudantes aprendem a produzir conteúdo audiovisual e a pesquisar 636

Considerações finais: cartografias possíveis Ainda que a modernidade tenha revelado o fracasso das promessas embutidas nos programas de desenvolvimento e o desencanto diante do acirramento das desigualdades sociais, descobrem-se, no universo dessas vivências musicais, experiências novas, portadoras de esperança e de utopia. Desse modo, foram trazidas para o debate algumas dessas experiências que, no campo da música, expressam saídas a partir da reinvenção do cotidiano. Experiências construídas por grupos alijados do processo de “desenvolvimento”, capazes de redefinir suas vidas pelo pensamento crítico, pela valorização dos diversos sujeitos das vivências comunitárias, pelas artes. Como aponta Hanna Arendt, as condições impostas pelo avanço do progresso são desumanas e levam à alienação do homem de sua história. Um progresso que prescinde da liberdade para alcanBahia anál. dados, Salvador, v. 22, n. 4, p.623-638, out./dez. 2012


Maria Teresa Franco Ribeiro, Armando Alexandre Castro

çar seus efeitos pode colocar em risco a própria sobrevivência do homem. As preocupações da filósofa parecem muito presentes quando se analisam as cartografias invisíveis de Salvador. Reconhecese a presença dos vários fascismos apontados por Boaventura de Sousa Santos: social, contratual e territorial. O esgarçamento dos laços sociais e a primazia da tecnociência, aliada à expansão do capitalismo, deterioram de forma assustadora as condições de vida. Percebem-se essas experiências sonoras dos excluídos como uma forma de “[...] encontrar um solo para o homem que não o expulse de sua vida para supostamente encontrar sua essência” (ARENDT apud MATOS, 2010, p. 38). A essência é o pensamento, a base da criatividade e da liberdade. As experiências musicais da periferia de Salvador respaldam as reflexões sobre o potencial transformador de iniciativas dessa natureza. Ainda que pontuais, essas sonoridades emergentes sinalizam o lugar que acolhe o homem e o ajuda a encontrar a sua essência. São situações particulares, densas de qualidades humanas e civilizatórias que valorizam e estimulam o pensamento, a ação política e a criatividade. São vidas em movimento, em mutação, capazes, por isso mesmo, de perceber o novo e, a partir das experiências mais simples, tocar o “espírito”. São espaços de utopias possíveis, caminhos que redesenham perspectivas de vida e de novas sociabilidades a partir das artes e da criatividade. Omitidas de muitos mapas oficiais, essas experiências são sinais, caminhos, pistas de territórios da emergência de outras lógicas, a confrontar a lógica que se impõe como dominante. A visibilidade desses sinais requer a incorporação de experiências dessa natureza no contexto das políticas públicas, de modo a permitir cartografias mais equilibradas, mais justas, capazes de transformar indivíduos em sujeitos políticos2.

2

Agradecemos a leitura e a revisão de Adriana Melo.

Bahia anál. dados, Salvador, v. 22, n. 4, p.623-638, out./dez. 2012

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Artigo recebido em 6 de setembro de 2012 e aprovado em 20 de novembro de 2012

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Bahia anál. dados, Salvador, v. 22, n. 4, p.623-638, out./dez. 2012


Bahia análise & Dados

Diálogo entre a economia solidária e a economia criativa no Projeto Fomento à Arte e à Economia Solidária na Região do Cariri Cleonisia Alves Rodrigues do Vale* Eduardo Vivian da Cunha** Marcus Vinícius de Lima Oliveira*** *

Mestranda em Desenvolvimento e Gestão Social pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professora do Curso de Design de Produto da Universidade Federal do Ceará (UFC), Campus Cariri. cleodovale@gmail.com

**

Doutor em Administração pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professor do Curso de Administração da Universidade Federal do Ceará (UFC), Campus Cariri. eduardo@cariri.ufc.br

Graduando em Administração pela Universidade Federal do Ceará (UFC), Campus Cariri. oliveira-mv@ig.com.br

Resumo O artigo apresenta um projeto de extensão na Universidade Federal do Ceará (UFC) – Campus Cariri – e analisa o processo de incubação realizado com o grupo de artesãos participantes neste projeto. O texto começa com uma sucinta explanação da história do artesanato em Juazeiro do Norte e sua região, e em seguida apresenta as ações e os propósitos do projeto ainda em discussão e uma breve descrição geral dos artesãos identificados. Além disso, são expostas as reflexões sobre o diálogo entre economia criativa e economia solidária, que incluem a percepção de uma convergência de princípios entre ambas. Por fim, são apresentados considerações e aprendizados acerca do processo de incubação adotado. Palavras-chave: Economia solidária. Economia criativa. Artesanato. Cariri cearense.

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Abstract The paper presents a project of the extension at UFC – Campus Cariri and analyzes the process of incubation performed with the group of artisans participating in this project. It starts with a brief explanation of the history of crafts in Juazeiro do Norte and its region and then presents the actions and purposes of the project under discussion and a brief overview of the craftsmen identified. In addition, are exposed reflections on the dialogue between creative economy and solidarity economy, which includes the perception of a convergence of principles between both. Finally, considerations and learnings about the incubation process adopted are presented. Keywords: Solidary economy. Criative economy. Craft. Cariri cearense.

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DIÁLOGO ENTRE A ECONOMIA SOLIDÁRIA E A ECONOMIA CRIATIVA NO PROJETO FOMENTO À ARTE E À ECONOMIA SOLIDÁRIA NA REGIÃO DO CARIRI

INTRODUÇÃO Este texto tem o propósito de apresentar e analisar o Projeto Fomento à Arte e à Economia Solidária na Região do Cariri, iniciado em 2009 na Universidade Federal do Ceará (UFC), tendo sido coordenado pelo Laboratório Interdisciplinar de Estudos em Gestão Social (LIEGS). A análise aqui empreendida será feita sobre o processo de incubação realizado, que aqui se enquadra mais apropriadamente na fase de pré-incubação (principalmente) e incubação propriamente dita. Além disso, pretende-se pontuar o tema sobre um referencial teórico específico. Neste caso, pela natureza da atividade produtiva do grupo incubado, a interação será feita com o tema da economia criativa. Para isso, o texto se organiza em cinco partes, além desta introdução: primeiro, há uma breve apresentação da história do artesanato em Juazeiro do Norte e região; em seguida, na seção mais longa, são apresentadas as ações, os propósitos do projeto em discussão, além de uma breve descrição dos artesãos identificados; na sua quarta parte, são feitas as reflexões sobre o diálogo entre economia criativa e economia solidária; em seguida, vêm as discussões; e, por fim, são apresentados considerações e aprendizados acerca do processo de incubação adotado no projeto.

O ARTESANATO EM JUAZEIRO DO NORTE: DO PASSADO ATÉ O PRESENTE

do padre Cícero na região – líder religioso, político e também fundador da cidade –, que percebeu o potencial econômico do trabalho manual e estimulou a população a adotar a atividade artesanal como fonte de renda. Os artefatos artesanais, que até então se destinavam ao uso pessoal do produtor, passaram, como lembra Facó (1972), a ser o principal setor da economia de Juazeiro do Norte. A produção tornou-se tão intensa que certos tipos de artesanatos estendiam-se por toda uma rua. A acentuada produção artesanal tornou a cidade conhecida como cidade oficina. O cenário atual mudou bastante, o modo de produção artesanal e os artefatos competem com a intensa industrialização da região e com os produtos chineses. Os artesãos que ainda resistem à dura realidade são explorados pela figura do atravessador e sofrem com a ausência de políticas públicas que fomentem efetivamente o desenvolvimento do artesanato. Leitão et al. (2009, p. 131) lembram que a Região Nordeste é reconhecida nacionalmente como celeiro da criatividade brasileira e defendem que a sua vocação para a produção de bens e serviços criativos deveria ser reconhecida pelo Estado, concretizando-se em políticas e programas de fomento a essa nova economia. A região do Cariri é considerada, pela Secretaria de Economia Criativa do Ministério da Cultura, uma “bacia criativa”. Leitão et al. (2009, p. 177) conceituam o termo como [...] a unidade territorial na qual criatividade, éticas e estéticas se entrelaçam para pro-

O artesanato no Ceará tem sua origem no período pré-colombiano, a partir dos indígenas, e, posteriormente, adquiriu características da produção e incorporação de novas matérias-primas dos trabalhos manuais dos negros e dos brancos (SANTOS, 2007). Já a história do artesanato em Juazeiro do Norte, de acordo com Vale, Grangeiro e Silva Jr. (2011), está profundamente ligada ao crescimento econômico vivido pela cidade no fim do século XIX, a partir da consolidação da figura 640

duzir vivências e sobrevivências humanas [...] constituiria um espaço privilegiado, o locus fundamental do encontro entre o saber e o fazer cultural, tecnológico e ambiental para o desenvolvimento local/regional, com características, identificações e sinergias próprias.

O artesanato, além de bastante representativo da cultura do local, é um setor de importância histórica, cultural e econômica em Juazeiro do Norte. Bahia anál. dados, Salvador, v. 22, n. 4, p.639-651, out./dez. 2012


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O PROJETO FOMENTO À ARTE E À ECONOMIA SOLIDÁRIA NA REGIÃO DO CARIRI

dução dos artesãos3. Estas atividades forneceram informações para identificação do perfil do artesão, para pré-seleção dos que formariam adiante a rede de artesãos do Cariri, e para outras ações. O Projeto Fomento à Após o mapeamento, os Arte e à Economia SolidáA ideia era apoiar a articulação recursos foram captados, em ria na Região do Cariri sur2010, com o Banco do Nordos artesãos da região, no giu com o objetivo geral de deste (BNB) e com o Ministéintuito de superar as dificuldades promover o desenvolvimento rio da Educação (MEC), por típicas do setor e garantir a sua socioeconômico dos produmeio do edital de apoio a prosobrevivência tores da região, através da gramas de extensão universiarticulação destes setores em torno dos princípios tária (Proext 2010). Houve a retomada do processo da economia solidária, em especial a autogestão, em meados de dezembro de 2010, com a participaa cooperação e a autossustentabilidade, fomen- ção (como ouvinte) de parte da equipe do projeto tando as trocas justas e solidárias e fortalecendo na I Conferência Internacional sobre a Economia as relações sociais na região. A ideia era apoiar Criativa do Nordeste, e em seguida, com o planejaa articulação dos artesãos da região, no intuito de mento e organização do Seminário de Apoio ao Arsuperar as dificuldades típicas do setor e garantir tesanato, que foi realizado no dia 9 de abril de 2011. a sua sobrevivência. Espera-se, que a partir desta Além dessas, em 2011, foram firmadas parcerias ação, os artesãos constituam um grupo autônomo com o Serviço Social do Comércio do Estado do e autossustentado. Para alcance do objetivo geral, Ceará (Sesc Ceará/Unidade de Juazeiro do Norte) foram elencados os seguintes objetivos específicos: e o PET Cambada do Curso de Design de Produto a) realizar um seminário de apoio ao artesanato; do Campus da UFC – Campus Cariri, apoiando o b) capacitar a rede de artesãos do Cariri; e c) reali- projeto em várias de suas ações estratégicas. zar a feira de artesanato. O Seminário de Apoio ao Artesanato em Juazeiro O projeto tomou corpo a partir da experiência do Norte marcou, então, a retomada do projeto junto das feiras de socioeconomia solidária da Associa- aos artesãos, tendo contado com uma palestra de ção Projeto Paz e União, em Limoeiro do Norte/CE. abertura da professora doutora Cláudia Leitão, da A primeira intervenção, encabeçada pelo Labora- Secretaria Nacional de Economia Criativa do Ministório Interdisciplinar de Estudos em Gestão Social tério da Cultura. O evento contou com a presença (LIEGS), foi elaborada e aprovada em 2008, e suas de 60 artesãos no Sesc – Juazeiro do Norte/CE. O primeiras ações foram iniciadas no primeiro semes- número de participantes foi considerado baixo, visto tre de 2009, com a realização de um mapeamento que o total de artesãos mapeados passava de 200. socioeconômico com 225 artesãos de Juazeiro do Por este motivo, abriu-se para a participação de arteNorte/CE, em parceria com o Centro de Artesanato sãos de municípios limítrofes com Juazeiro do Norte do Ceará (Ceart)1 e a Fundação Mussambê2, entre (Crato, Barbalha e Caririaçu). Assim, obteve-se um abril e outubro. A pesquisa permitiu conhecer as considerável aumento no número de participantes. condições sociais, as características do processo 3 Segundo a pesquisa, 69% dos artesãos são do sexo feminino. As de criação dos produtos e a organização da proprincipais tipologias identificadas são alimentos e bebidas, bordado 1

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Centro de Artesanato do Ceará, um programa do Governo do Estado do Ceará que faz parte da Secretaria de Trabalho e Desenvolvimento Social. Instituição de direito privado, sem fins lucrativos, cuja missão é sedimentar práticas de desenvolvimento ambientalmente sustentáveis.

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a mão, crochê, pintura e palha. A média de idade foi de 40,3 anos, e 7,4% deles têm idade maior ou igual a 60 anos, o que aponta para uma concentração nas maiores faixas etárias. Ainda, 68% têm no artesanato a sua principal fonte de renda, e dentre estes, 45,6% vivem com até R$ 465,00 mensais. A maioria possui o ensino médio completo (26,9%), e 9,3% se declararam analfabetos.

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Com o objetivo de promover uma maior aproximação entre a equipe do projeto e os artesãos, foram realizadas reuniões (mês de julho de 2011) para que se evidenciassem as expectativas e principais carências. Como resultado, viu-se a necessidade de adequação do planejamento dos módulos de capacitação à realidade identificada e que era preciso torná-los parte construtora do projeto. A partir daí, alteraram-se os temas previstos, visando suprir as demandas identificadas no grupo. Em seguida, deu-se início à organização da rede de 50 artesãos a serem apoiados e iniciou-se o processo de sensibilização e capacitação. Entre os meses de julho e outubro de 2011, foram realizados, no Sesc – Juazeiro do Norte/CE, nove módulos de capacitação ministrados por técnicas do próprio projeto, alunos bolsistas e professores do curso de Admi-

nistração da UFC – Campus Cariri. Contou-se ainda com a participação de um professor convidado da Universidade Federal de Tocantins. As temáticas dos módulos foram: Incubação e Moeda Social; Articulação e Autogestão; Formação de Preços; Registro de Marcas e Patentes; O Sentido do Trabalho Artesanal; Design e Artesanato; Cooperativismo; Atendimento ao Cliente; e Clube de Trocas. Em novembro de 2011, foi iniciada a feira de artesanato, em parceria com o Sesc – Juazeiro do Norte/CE, dentro da programação da Mostra Sesc de Arte e Cultura, em um espaço privilegiado próximo à Igreja Matriz de Juazeiro do Norte. A partir daí, as feiras passaram a acontecer semanalmente, nos fins de semana (tarde e noite) e durante o dia em períodos de romaria e de maior movimentação na cidade.

Figura 1 Cadeira confeccionada pela Genipoart Foto: VALE et al (2012).

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Figura 2 Miniatura confeccionada por Carlos Oliveira Foto: VALE et al (2012).

De forma surpreendente, em apenas três meses (novembro de 2011, dezembro de 2011 e janeiro de 2012) e funcionando somente nas tardes e noites de sexta e sábado (o que representou 21 dias úteis de funcionamento), este projeto conseguiu apresentar resultados significativos para os artesãos. Neste curto período, a feira faturou R$ 28.559,65 permitindo uma média de R$ 1.360,00 por dia e R$ 571,20 por barraca. Os dados apontam para um acréscimo importante na renda desses artesãos. Bahia anál. dados, Salvador, v. 22, n. 4, p.639-651, out./dez. 2012

Em fevereiro de 2012, o Projeto Fomento à Arte e à Economia Solidária apoiava cerca de 70 artesãos de Juazeiro do Norte, Barbalha, Crato e Caririaçu, articulando 10 grupos artesanais (Feart, Soafanc, Associação de Artesãos do Padre Cícero, Lira Nordestina, Mulheres da Palha, Bonequeiras no Pé de Manga, Alamorca, Genipoarte, Caririarte, Artçu) e artesãos autônomos, ocupando as 50 barracas da feira. 643


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Figura 3 Escultura confeccionada por Maria de Lourdes Cândido Foto: VALE et al (2012).

Figura 4 Bonecas confeccionadas pelas Bonequeiras no Pé de Manga Foto: VALE et al (2012).

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Em março e abril de 2012, foram realizadas Em 2013, espera-se que o projeto torne-se o Proformações com o intuito de iniciar o processo de grama Fomento à Economia Criativa na Região do incubação do grupo e foi lançada a terceira fase Cariri, visto que foi aprovado pelo edital de apoio a deste projeto, para 2012/2013, que tem como foco programas de extensão universitária (Proext 2012), ações de incubação da rede e que, com novos recursos, de artesãos, em uma soleniNão há consenso acerca de uma se possam empreender novas dade que contou com a preações no sentido de suprir as definição única para economia sença do reitor da UFC, do demandas do grupo. criativa; é um conceito vasto e superintendente do Etene/ Na perspectiva acadêmiem evolução, que está ganhando BNB e de representantes do espaço no pensamento econômico ca já foram elaborados, aproProext/MEC e Fecomercio/ vados e apresentados dois Sesc-CE. No mesmo período, iniciaram-se as feiras pôsteres; três artigos em congressos científicos naitinerantes, ampliando as possibilidades de comer- cionais (DO VALE et al, 2011b) e internacionais (DO cialização dos produtos. VALE et al, 2011a); um artigo em periódico científico Registrava-se a participação de cerca de 25 qualificado pela Capes (DO VALE et al, 2012); e três artesãos no projeto em maio de 2012. Neste mês, resumos ampliados nos encontros universitários da ocorreram dois fatos importantes: a informação de UFC (I EU do Campus Cariri – 2009, II EU do Camque o local da feira não mais poderia ser utilizado pus Cariri – 2010 e III EU do Campus Cariri – 2011). (havia sido solicitado pelo proprietário, já que era Ademais, foi publicado o Catálogo do Artesanato Calocado pelo Sesc) e a queda no faturamento dos ririense v.1 – Juazeiro do Norte/Crato/Barbalha/Caartesãos. O segundo fato pode ser explicado pela ririaçu, e há outro livro ainda em fase de finalização evidência de que, após o mês de fevereiro, há uma para a publicação: O Perfil dos Artesãos de Juazeiro queda em geral nas vendas em Juazeiro do Norte, de Norte/CE. pelo fim do período das romarias. Por fim, a terceira fase do Fomento à Arte e à Economia Solidária na Região do Cariri tem como REFLEXÕES CONCEITUAIS: UM DIÁLOGO norte três pers pectivas: a busca da formalização do ENTRE AS PERSPECTIVAS DA ECONOMIA grupo em um empreendimento cooperativo ou asso- SOLIDÁRIA E DA ECONOMIA CRIATIVA ciativo; uma capacitação concentrada na formação de preço e comercialização, na requalificação dos Não há consenso acerca de uma definição úniprocessos de produção e no design dos produtos ca para economia criativa; é um conceito vasto e artesanais do grupo; e, por fim, a remobilização dos em evolução, que está ganhando espaço no penartesãos em torno dos propósitos do projeto. samento econômico. Reis (2008a, p. 16) explica Registra-se ainda que a equipe técnica do projeto que o conceito de economia criativa vem do termo realiza, quinzenalmente, reuniões com os artesãos indústrias criativas, por sua vez inspirado no projeto para discutir assuntos referentes ao andamento da fei- australiano Nação Criativa, de 1994. A autora esclara e à construção coletiva do grupo. Há também uma rece que a denominação é utilizada para descrever fan page do projeto no facebook, que se encontra em a atividade empresarial na qual o valor econômico processo de construção e abrigará fotos dos produtos está ligado ao conteúdo cultural. E entre outros elede todos os artesãos apoiados pelo projeto e também mentos, destaca a importância do trabalho criativo contatos para possíveis encomendas. Essa página e sua contribuição para a economia do país. também servirá de apoio na criação do site para coJá o termo economia criativa, segundo a Conmercialização virtual dos produtos dos artesãos. ferência das Nações Unidas sobre Comércio e DeBahia anál. dados, Salvador, v. 22, n. 4, p.639-651, out./dez. 2012

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senvolvimento (Unctad) (2010), vem do livro Crea- lhando, por exemplo, com o Ministério do Trabalho e tive Economy (2001), de John Howkins. Nos seus Emprego, em programas de economia solidária nos relatórios de 2008 e de 2010 sobre economia criati- quais há o fomento a organizações associativas e va, o órgão a define a partir de questões como ino- ao microcrédito solidário (BRASIL, 2011). vação tecnológica, negócios Duisenberg (2008, p. 58) e marketing, todos diretamenDuisenberg diz que a economia diz que a economia criativa te ligados à ideia de ganhos se baseia nos ativos criaticriativa se baseia nos ativos de competitividade baseados criativos potencialmente geradores vos potencialmente geradoem uma lógica de mercado. res de crescimento socioede crescimento socioeconômico Em termos mais precisos, diz conômico. Ela apresenta seu que o conceito é “[...] baseado nos ativos criativos conceito como uma abordagem holística e multidisque geram crescimento econômico e desenvolvi- ciplinar, lidando com a interface entre economia, mento” (Idem, p.10). Assim, a economia criativa é cultura e tecnologia, centrada na predominância especificada a partir de cinco pontos principais: de produtos e serviços com conteúdo criativo, valor • It can foster income generation, job creation cultural e objetivos de mercado. and export earnings while promoting soEntre as características da economia criativa cial inclusion, cultural diversity and human destacadas por Reis (2008a) estão a criação de development. novos modelos de consumo e a abrangência de • It embraces economic, cultural and social um amplo espectro – da economia solidária ligada aspects interacting with technology, intellec- ao artesanato às novas mídias e tecnologias – cuja tual property and tourism objectives. seleção segue as especificidades, talentos e vanta• It is a set of knowledge-based economic ac- gens competitivas de cada região. tivities with a development dimension and Na busca de um significado mais estrito para a cross-cutting linkages at macro and micro economia criativa, Deheinzelin (2006a, p. 5 e 6) reslevels to the overall economy. salta que ela propõe formas inovadoras de financia• It is a feasible development option calling for mento e produção, de caráter alternativo e solidário, innovative, multidisciplinary policy responses opondo-se aos modelos de mercado do século XX. and interministerial action. Acrescenta ainda que, para atuar num mundo em • At the heart of the creative economy are the constante transformação e com graus crescentes creative industries (Idem, p. 10). de complexidade, são necessários alguns dos inJá no Brasil, a Secretaria de Economia Criati- gredientes que estão na essência do empreender va do Ministério da Cultura adota uma visão mais cultural, como cooperação, criatividade, adaptabiliabrangente, permitindo incluir no âmbito do concei- dade, ampliação do conceito de recursos para além to outras abordagens econômicas: do financeiro, novas modelos de gestão e organizaA economia criativa compreende as dinâmição de trabalho. Desta forma, Deheinzelin (2006b, p. 3-4) enucas de trocas culturais, sociais e econômicas mera algumas características que fazem com que construídas a partir da realização do ciclo de a economia criativa seja uma potente estratégia de criação, produção, distribuição/circulação/didesenvolvimento sustentável e humano e não apefusão e consumo/fruição de bens e serviços nas um instrumento para o crescimento econômico. caracterizados pela prevalência de sua diAssim, a economia criativa: mensão simbólica (BRASIL, 2011, p. 23). Essa maior amplitude conceitual se reflete na • Promove maiores oportunidades de geração atuação transversal com outros ministérios, trabade trabalho e renda. 646

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Favorece a diversidade cultural ao incluir o uso de conhecimentos e técnicas tradicionais numa perspectiva contemporânea. Esse é um aspecto fundamental para países em desenvolvimento, já que existem geralmente enormes recursos culturais ainda pouco aproveitados. São saberes e fazeres originários das várias etnias, de práticas tradicionais e (algo novo e muito rico) de todas as populações periféricas e marginalizadas que, nas adaptações exigidas por seu cotidiano, desenvolvem práticas criativas e organizacionais inovadoras. Tem uma ampla variedade de formas de organização e conduz a novos modelos organizacionais mais adequados à sociedade e à economia do futuro, tais como economia solidária, cooperativismo e gestão compartilhada.

Economia Solidária

É um fator de integração de setores e dimensões da sociedade, por sua multidimensionalidade. • Não está necessariamente ligada à geração de propriedade intelectual, como no artesanato, que tem duplo papel (econômico e social). Já que a economia criativa comporta um amplo espectro de práticas, a adoção de princípios da economia solidária – que são, conforme França Filho e Laville (2004), democracia interna (ou autogestão), autonomia institucional, pluralidade econômica, multidimensionalidade de fins e ação comunitária – conformaria um subcampo que poderia ser denominado de “economia criativa e solidária”. Algumas destas práticas da “interface” podem ser visualizadas na Figura 5.

Economia Criativa

Cooperativas de produção e consumo Grupos produtivos “tradicionais” Práticas de finanças solidárias

Empresas culturais, de software, Produtores e artistas independentes

Grupos de artesanato, Grupos culturais Artistas associados ... Figura 5 Interface entre as práticas de economia solidária e economia criativa Fonte: Elaboração própria

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Logo, por vários motivos, a economia criativa criativa e solidária, e colocou o programa Pontos pode ser considerada uma estratégia para o desen- de Cultura, do MinC, como um bom exemplo de volvimento sustentável de significativa importância. A economia solidária. Baldi (apud OLIVEIRA,4 2012) convergência entre as economias criativa e solidária é também observa pontos de convergência entre as visível e pode render bons fruduas economias e apresentos. Neste caso, a economia A convergência entre as ta quatro grandes princípios solidária poderia definir o forque norteiam o MinC/SEC: a economias criativa e solidária é mato socioeconômico de dediversidade cultural, a susvisível e pode render bons frutos terminados empreendimentos tentabilidade, a inclusão socriativos, que seriam mais aderentes ao seu modelo cial e a inovação. do que aos dados pela lógica empresarial de mercaDiscorrendo sobre o incremento da economia criado. Neste sentido, Ana Carla Reis e Lala Deheinzelin tiva no Nordeste, particularmente no Ceará, a ecopropõem a sistematização dos processos de atuação nomista sênior da Unctad, Edna dos Santos-Duisenpara a construção de uma cadeia que inclua tanto berg, na I Conferencia Internacional sobre Economia os aspectos tangíveis (relacionados ao econômico), Criativa do Nordeste, em 2010, defendeu a priorizaquanto os intangíveis (relacionados ao social), em ção dos segmentos criativos com melhores vantabusca de um modelo socialmente includente. gens competitivas, visando ao mercado doméstico e No tocante à política pública de fomento ao se- internacional. Ela coloca entre eles o artesanato como tor, em 2011, visando explorar o potencial da cultura forte potencial e aponta as seguintes indicações: mopara o desenvolvimento socioeconômico do país, o dernizar oficinas, capacitar artesãos e criativos; proMinistério da Cultura criou a Secretaria da Econo- mover participação em feiras internacionais e rodadas mia Criativa, que até o momento lançou dois editais de negócios; criar marcas que ressaltem a identidade – de fomento a iniciativas empreendedoras e inova- cultural brasileira; criar mecanismos de financiamento doras e de apoio à pesquisa em economia criativa – para grupos organizados e microempresas e facilitar voltados para o fortalecimento da economia criativa arranjos produtivos e incubadoras. brasileira, que tem como princípios norteadores a Para se alcançar a adequação das políticas púdiversidade cultural, a sustentabilidade, a inclusão blicas ao território, Costa (2006, s.p.) defende que social e a inovação. Segundo Fernandes (apud é necessária a realização de estudos e pesquisas LEITÃO, 2011), essa nova economia denota uma para formar uma base de dados consistente sobre as generosidade, uma volta ao escambo simbólico, especificidades de cada cultura em nível local, com tendo uma ligação com a economia solidária. Os o intento de: a) reunir aspectos do imaginário, traços exemplos bem sucedidos que cabem em ambas as que possam ressaltar a autoidentificação social e economias abundam. A Unctad (2010, p. 219) enfa- cultural do grupo; b) identificar os artesãos existentes tiza os bancos comunitários, um empreendimento no local, suas produções independentes e/ou assotípico da economia solidária, como exemplo de eco- ciadas e ainda os materiais típicos de cada região nomia criativa no Brasil. Outros exemplos seriam os que possam ser utilizados como matéria-prima; c) clubes de troca, associações, cooperativas etc. apropriar-se desses traços culturais como temática, No I Encontro dos Municípios com o Desenvol- considerando a necessidade de exercícios de capavimento Sustentável (EMDS), realizado em Brasília citação pelos quais as lideranças locais – artesãos em março de 2012, Paul Singer – atual secretário nacional de Economia Solidária do Ministério do 4 Diretor de Desenvolvimento e Monitoramento da Secretaria da Economia Criativa do MinC, no I Encontro dos Municípios com o DesenvolviTrabalho e Emprego e teórico da economia solidária mento Sustentável (EMDS), realizado em Brasília em 29 de março de – disse que há uma afinidade entre as economias 2012. 648

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mestres da comunidade –, em parceria com equipes do este problema: a) tempo de formação do grupo; técnicas em design e planejamento, transmitam aos b) ausência de lideranças efetivas e estáveis; c) falta demais membros técnicas e saberes, enfatizando de resultado econômico no curto prazo; e d) expectatio planejamento do produto e o aprimoramento de va dos artesãos versus realidade do projeto. padrões de qualidade, estia. Relações incipientes en­ mulando o convívio social e Observa-se que os que tre os integrantes do emprea troca de experiências entre endimento: como informado permanecem no projeto são os as gerações; e d) incentivar a acima, a maioria dos arteque estão sensibilizados pela produção. sãos não se conhecia antes sua proposta e que acreditam em Nesse aspecto, Canclini do projeto e não tinha, ainda, um resultado de longo prazo que (2003) acredita que devem estabelecido nenhum tipo de supere as questões econômicas ser consideradas políticas de ação econômica cooperada. crédito e investimentos; parcerias público-privadas; Um outro elemento conectado a este e que e qualificação de agentes criativos para solicitar e pode ter sido também uma das origens gerenciar recursos resultantes de tais articulações. desta baixa participação é a falta de identidade do grupo, que apresenta dificuldades em definir e manter propósitos e ações coDISCUSSÕES muns. Por fim, um terceiro ponto a ser destacado aqui é a fragilidade do grupo frente As práticas aqui analisadas podem ser entenaos problemas: cada dificuldade enfrentada didas a partir de certas concepções da economia se torna elemento de maior desmobilização criativa. Pode-se perceber que existe uma converdos seus integrantes. gência de princípios entre esta e as discussões b. Ausência de lideranças efetivas e estáveis: sobre economia solidária. Se for tomado, em eseste ponto está, de certa forma, conectado pecial, o entendimento de Reis (2008a, 2008b) e com o elemento anterior. Alguns sujeitos, de Deheinzelin (2006a, p. 5-6), surgem questões eventualmente, assumiram este papel. Encomo novas formas de consumo e produção, de fitretanto, o sustentaram por pouco tempo nanciamento, além da adoção da cooperação e do durante o processo, abandonando-o esperompimento da lógica estrita de mercado, conceitos cialmente nos momentos de maiores dificulque são caros à economia solidária. dades ou conflitos internos. No que toca ao processo de incubação em esc. Falta de resultado econômico no curto pratudo, podem ser apontados alguns elementos de zo: esta é tida pelos próprios artesãos como aprendizado, pela sua natureza específica. A partiuma das principais causas do abandono por cularidade deste processo surge, em especial, por alguns artesãos do projeto a partir do mês de se tratar de uma incubação que começa com a prómaio de 2012. Tomando-se como ponto de pria formação do grupo: ele passa a existir a partir partida a ideia de que o artesanato é a prindos encontros promovidos pela universidade com cipal fonte de renda dos artesãos, e que sua os artesãos, fato que parece ser causador de uma participação implica custos, muitos não susdificuldade de mobilização e articulação de ações tentam a presença com faturamento muito coletivas, especialmente no enfrentamento dos baixo, especialmente nas feiras. Observa-se problemas. Oscilações na participação ocorreram que os que permanecem no projeto são os desde o início do processo. Serão ressaltadas aqui que estão sensibilizados pela sua proposta quatro limitações específicas que podem ter causae que acreditam em um resultado de longo Bahia anál. dados, Salvador, v. 22, n. 4, p.639-651, out./dez. 2012

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DIÁLOGO ENTRE A ECONOMIA SOLIDÁRIA E A ECONOMIA CRIATIVA NO PROJETO FOMENTO À ARTE E À ECONOMIA SOLIDÁRIA NA REGIÃO DO CARIRI

prazo que supere as questões econômicas. d. Expectativa dos artesãos x realidade do projeto: transparece em diversas falas uma cobrança de ações por parte da equipe técnica, o que, em tese, seria responsabilidade do grupo formado. Isto pode ser reflexo da forma como o projeto se iniciou, já que os artesãos foram chamados a participar de um processo em que os equipamentos e a estrutura já estavam prontos. A posição da equipe técnica de sempre, solicitamente, buscar resolver os problemas pode ter estimulado a posição de expectante do grupo. Os momentos de “endurecimento” da equipe técnica e da divisão de papéis foram sempre mal recebidos, o que demandou um processo de problematização sobre o significado do projeto.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Entende-se, a partir do analisado, que um processo de incubação que pretende se apoiar sobre um grupo em fase inicial apresenta certas dificuldades específicas. Elas se concentram em torno das limitações de mobilização, dadas, em especial, pelo curto tempo de formação do grupo. É como se, pela ainda fragilidade das relações estabelecidas, elas pudessem ser rompidas mesmo por fracas perturbações externas ou internas ao grupo. Somam-se a isto a falta de lideranças ativas, a ausência de resultado econômico imediato e a dificuldade dos artesãos de compreender perfeitamente o processo e da equipe técnica de lidar com o fato. Além disso, os artesãos se filiaram a um propósito dado por um ator externo, embora este tenha sido definido a partir de um diagnóstico que buscou levantar suas necessidades. O projeto, entretanto, apresenta ainda bons prognósticos e perspectivas para o futuro. Identifica-se que os artesãos que ainda permanecem nele compreendem melhor os seus objetivos, apresentando identidade com ele e intenção de desenvolver 650

um empreendimento de economia solidária. Tal situação aponta que este processo de incubação tende a ser um pouco mais longo que os demais, já que parte de um ponto cronologicamente anterior na histórica de um grupo de economia solidária: justamente a sua formação. Entretanto, sabese também que este não é um fator determinante do processo, mas apenas mais uma variável a se somar a outras, como a formação dos integrantes, o nível de adesão à proposta e a coesão social criada entre eles, dentre outras.

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Artigo recebido em 8 de outubro de 2012 e aprovado em 21 de novembro de 2012

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Bahia análise & Dados

O Programa Cultura Viva e a economia criativa: análise do Moinho Cultural Sul-Americano Adriano Pereira de Castro Pacheco* Especialista em Gestão Pública & Sociedade pela Universidade Federal de Tocantins (UFT) e em Gerenciamento de Projetos para Organizações do Terceiro Setor, MBA em Gestão de Projetos graduado em Análise de Sistemas pela ­Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). adrianopcastro@gmail.com *

Resumo O Programa Cultura Viva tornou-se, nos últimos anos, uma importante política cultural de desenvolvimento local. A implementação da ação do Ponto de Cultura no estado de Mato Grosso do Sul representou um avanço significativo no fomento às iniciativas voltadas à economia da cultura e solidariedade. Várias organizações, hoje certificadas pelo Programa Pontos de Cultura, desenvolvem ações para inclusão produtiva e formação profissional, transferindo tecnologia social e de gestão aos participantes dos projetos, garantindo mecanismos que asseguram a autonomia de produção e do desenvolvimento através da participação e autogestão coletiva. Deste modo, este trabalho busca estabelecer uma análise da política pública do Programa Cultura Viva, tendo como objeto o Ponto de Cultura Moinho Cultural Sul-Americano, desenvolvido pela organização não governamental Instituto Homem Pantaneiro no município de Corumbá – Mato Grosso do Sul. Por último, uma breve análise sobre a importância da iniciativa popular e suas tecnologias utilizadas para tornar a autogestão uma alternativa real para superar o sistema capitalista através da adequação sociotécnica dos seus participantes. Palavras-chave: Cultura Viva. Pontos de cultura. Tecnologia social. Abstract The Program Cultura Viva has become in recent years an important cultural politics of local development. The implementation of the action Point of Culture in the state of Mato Grosso do Sul represented a significant advance in the promotion of initiatives aimed at economy of culture and solidarity. Several organizations, today certified by the Program Point of Culture, develop actions to include vocational training and productive social transferring technology and management to project participants and ensuring mechanisms that guarantee the autonomy of production and development through participation and collective self-management. Thus, this study was to establish a public policy analysis of the Program Cultura Viva as an object of Point of Culture Cultural Mill Sul-Americano a non-governmental organization developed by the Instituto Homem Pantaneiro in the municipality of Corumbá – Mato Grosso do Sul. Finally, a brief analysis of the importance of popular initiative and technologies used to make self-management a real alternative to overcome the capitalist system through Sociotechnical Adequacy of its participants. Keywords: Cultura Viva. Point of culture. Social technology.

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INTRODUÇÃO Os pontos de cultura são elos entre a sociedade civil e o poder público criados no ano de 2004 no âmbito do Programa de Arte, Cultura e Cidadania – Cultura Viva. O programa foi implantado envolvendo um conjunto de ações distribuídas em cinco eixos e desenvolvidas com diferentes graus de consolidação como ações públicas: pontos de cultura, cultura digital, agentes cultura viva, griôs (mestres dos saberes) e Escola Viva. O projeto parte de uma metodologia de reconhecimento das iniciativas associativistas e comunitárias já existentes para depois estimulá-las por meio de transferência de recursos definidos em editais e da doação de kits de cultura digital (equipamentos de informática, câmeras, kit multimídia e uma pequena ilha de edição). O Programa Cultura Viva surgiu em contraposição à desvalorização da produção cultural dos grupos e comunidades e sua exclusão dos meios de produção, fruição e difusão cultural. Nesse sentido, buscou estabelecer o protagonismo cultural de uma parcela da sociedade brasileira, valorizando as iniciativas culturais de grupos e comunidades excluídas e ampliando o acesso aos bens culturais das populações com pouco alcance aos meios de produção, fruição e difusão cultural ou com necessidade de reconhecimento da identidade cultural. Os pontos de cultura, eixo central do programa e foco principal deste artigo, são unidades de produção, recepção e disseminação cultural que atuam em comunidades que se encontram à margem dos circuitos culturais e artísticos convencionais, promovendo ações de superação da problemática supracitada. Além dos pontos de cultura, outras referências na organização das ações são os pontões (pontos especiais encarregados de estabelecer articulações entre diversos pontos) e as redes (organismos públicos do estado responsáveis por gerir os convênios com a sociedade civil, articulando os pontos de cultura a eles ligados), que agem sobre os circuitos culturais e ligam os agentes culturais à administração pública. 654

Nesse cenário, será feita a seguir uma explanação do espaço alcançado pelo Programa Cultura Viva em Mato Grosso do Sul, sob a perspectiva dos pontos de cultura implantados pelo estado e pelo município de Campo Grande. Também será estabelecida a inegável relação dos princípios norteadores das ações dos pontos de cultura com os elementos que regem a economia da cultura. Para tal, será apresentada a prática do Instituto Homem Pantaneiro, organização não governamental fundada em 2002 no município de Corumbá/MS, que gere o Projeto Moinho Cultural Sul-Americano e que também integra a rede estadual de pontos de cultura por meio do Projeto Gastronomia e Culinária Experimental da Cooperativa Vila Moinho. Ao final, será possível mensurar a contribuição dos pontos de cultura no processo de enfrentamento do modelo de produção capitalista que está posto.

METODOLOGIA DE PESQUISA

Modalidade de pesquisa Os procedimentos metodológicos utilizados nesse trabalho constituem uma análise descritiva da trajetória do Programa Cultura Viva em Mato Grosso do Sul e suas intervenções regionais a partir dos pontos de cultura, bem como do objeto de pesquisa, por meio de um estudo de caso (Instituto Homem Pantaneiro – Cooperativa Vila Moinho). Campo de observação São objetos de estudo os pontos de cultura do estado e suas ações transversais na perspectiva da economia da cultura, solidária, da tecnologia social e da autogestão. Também compõe o estudo o Instituto Homem Pantaneiro, com foco na experiência da Cooperativa Vila Moinho, que será o estudo de Bahia anál. dados, Salvador, v. 22, n. 4, p.653-664, out./dez. 2012


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caso analisado na perspectiva da atuação do Promodelo único de instalações físicas, de progragrama Cultura Viva no estado. Ponto de cultura de mação ou de atividades. Um aspecto comum a notória experiência solidária, a cooperativa reúne todos é a transversalidade da cultura e a gestão mulheres dos municípios de Corumbá e Ladário compartilhada entre o poder público e a comue da fronteira da Bolívia em nidade. Atualmente existem cadassituação de vulnerabilidade O ponto de cultura, ação prioritária trados pouco mais de 2600 pontos social, desemprego e baixo do Programa Cultura Viva, é um de cultura em todo o país, conveniarendimento econômico. espaço de confluência, produção do diretamente pela Secretaria de Instrumentos de coleta de dados

e fruição da cultura e de seus elementos transversais

Cidadania Cultural do Ministério da Cultura ou pelos estados e municípios. Cada ponto de cultura recebe

uma quantia de R$ 60 mil/ano, divididos em

Os instrumentos de coleta congregam análise sistematizada de documentos, questionários, fichas de observação participante e não participante, além de relatos e depoimentos dos coordenadores dos pontos, sistematizados pelas organizações públicas que os gerem. Também são descritas impressões pessoais do autor como membro da Comissão Estadual de Pontos de Cultura, instância organizada pelos representantes dos pontos de cultura, responsável pela mobilização e articulação das discussões referentes à formulação de políticas públicas para o movimento.

O QUE SÃO PONTOS DE CULTURA? O ponto de cultura, ação prioritária do Programa Cultura Viva, é um espaço de confluência, produção e fruição da cultura e de seus elementos transversais (educação, aspectos sociais, meio ambiente, tecnologia, economia, saúde etc.), protagonizado pelas comunidades efetivamente organizadas, ou seja, que possuem personalidade jurídica. Silva e Araújo (2010) mencionam que: Para se tornar um ponto de cultura é preciso que uma iniciativa da sociedade civil seja selecionada pelo Ministério da Cultura (MinC) por meio de edital público. A partir daí, um convênio é estabelecido para o repasse de recursos e o ponto de cultura se torna responsável por articular e impulsionar ações já existentes em suas comunidades. O ponto de cultura não tem um

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parcelas semestrais e renováveis por três anos, para investir de acordo com o plano de trabalho apresentado (SILVA; ARAÚJO, 2010, p. 40).

Parte do incentivo recebido na primeira parcela, um valor mínimo de R$ 20 mil, é utilizada para aquisição de equipamentos básicos de recursos multimídia em software livre, compostos por microcomputadores, miniestúdio para gravação de CD, câmera digital e outros materiais que sejam importantes para o ponto de cultura. Esta iniciativa está integrada a uma das ações do Programa Cultura Viva, a cultura digital. Intrínsecas aos pontos de cultura são as ações do Programa Cultura Viva mencionadas abaixo, que circundam os pontos de cultura e dialogam com temáticas inerentes ao desenvolvimento local, emancipação social e fortalecimento da cadeia produtiva cultural, sem as quais a dimensão e a profundidade do impacto perdem sua relevância. Ação cultura digital Propõe a utilização de tecnologias sociais e de gestão com a participação e interação dos atores organizados em torno dos pontos de cultura. Pelo fato de cada ponto de cultura receber um kit multimídia para a realização das ações da cultura digital1, os pontos de cultura tornam-se espaços de 1

O conceito de cultura digital emerge da necessidade de enfrentar os alarmantes índices de exclusão digital no Brasil e propõe o uso extensivo de novas plataformas tecnológicas de informação e comunicação associadas aos elementos socioculturais. Ver Seminário Internacional do Programa Cultura Viva (2009).

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produção coletiva, por meio de oficinas de inclusão digital, comunicação, desenvolvimento em web, edição de imagens e vídeos, bem como de interações virtuais entre os pontos de cultura da rede que os agrupa.

abrasileirada da palavra griot, que designa os contadores de história, responsáveis, nas sociedades africanas, por carregarem a tradição oral pela qual é transmitida a história de seu povo e o patrimônio de sua cultura. A ação griô O digital, com os A ação tem por objetivo integrar foi implantada por meio da seleção de mestres griôs – deslizamentos que os pontos de cultura à escola, a promove na lógica fim de colaborar com a construção por edital público de seleção em todo o país –, que receda comunicação de um conhecimento reflexivo e biam uma bolsa de trabalho, unilateral e verticasensível por meio da cultura viabilizando o estudo, a peslizada, permite amquisa e a disseminação do saber tradicional pela pliar e descentralizar os espaços de produção oralidade (BARBOSA; CALABRE, 2011). e torna-se um apoio extremamente interessante nas articulações e na coordenação de ações entre Pontos de Cultura, movimentos culturais

Ação cultura e saúde

e estéticos (SILVA; ARAÚJO, 2010, p. 42).

Ação escola viva A ação tem por objetivo integrar os pontos de cultura à escola, a fim de colaborar com a construção de um conhecimento reflexivo e sensível por meio da cultura. Nesse sentido, as escolas públicas que desenvolvem propostas inovadoras e apresentam projetos pedagógicos com íntima associação cultura-educação são convidadas, via chamada pública, a inscrever seus projetos para realização no contraturno escolar, fortalecendo o contexto da educação integral. A ação permite que, a partir das experiências culturais desenvolvidas em cada ponto, o aluno possa identificar os signos e códigos da cultura local e, na troca de experiências com outros pontos, apropriar-se do conhecimento estético e ético de diversas manifestações culturais (BARBOSA; CALABRE, 2011). Ação griô Se a ação cultura digital propõe um diálogo estreito com as novas tecnologias e com a sociedade global, a ação griô almeja um retorno à tradição e à realidade da cultura local. Griô é uma versão 656

Tem como objetivo ampliar e qualificar os processos de promoção da saúde por meio de atividades culturais, reconhecendo o ser humano como ser integral e a saúde como qualidade de vida. Esta ação envolve pontos de cultura e organizações independentes da sociedade civil que incluam projetos voltados à garantia do acesso aos bens e serviços culturais que trazem impacto sobre a atenção e o cuidado da saúde (BARBOSA; CALABRE, 2011).

PANORAMA DO PROGRAMA CULTURA VIVA EM MATO GROSSO DO SUL: BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO DA MALHA DE PONTOS DE CULTURA NO ESTADO O estado de Mato Grosso do Sul, situado na Região Centro-Oeste do país, implantou, a partir de 2008, 562 pontos de cultura em diferentes regiões. Desse total, 30 pontos integram a rede estadual, gerida pela Fundação Estadual de Cultura; 15, a rede municipal, gerida pela Prefeitura Municipal de 2

Cultura Viva em Números. Secretaria da Cidadania e da Identidade Cultural. Ministério da Cultura. Setembro/2012. Disponível em: <http://www.cultura.gov.br/culturaviva/wp-content/uploads/2012/03/ Relat%C3%B3rio-Cultura-Viva-em-N%C3%BAmeros-v-09-10-12.pdf>.

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Campo Grande; e nove são conveniados direta- suas funções, a sociedade civil é chamada a figurar mente com o Ministério da Cultura. Além disso, dois como sujeito ativo de um processo que tem no Estapontões de cultura articulam ações junto aos pon- do e nas políticas públicas pilares indispensáveis. tos. Os pontos de cultura revelam a multiplicidade De forma geral, os pontos de cultura despertade linguagens, expressões e ram grupos da sociedade já ações de natureza cultural A multiculturalidade e a com histórico de atividades que propõem uma estreita colaborativas e emancipadoespecificidade de cada grupo, aproximação com a temátiras para uma nova forma de coletivo ou movimento, em seus ca transversal da educação, lugares de intervenção, revelam-se organização e de gestão a meio ambiente, tecnologia, partir das ações que constiamplamente potencializáveis patrimônio material e imatetuem o bojo do Programa Culrial, juventude, saúde e outros. tura Viva. A multiculturalidade e a especificidade de A implantação da rede de pontos de cultura em cada grupo, coletivo ou movimento, em seus lugares diferentes municípios do estado representou uma de intervenção, revelam-se amplamente potencialiimportante intervenção dos princípios estratégicos záveis. Essa otimização se concretiza a partir do da economia da cultura, da transferência de tecno- objetivo do Programa Cultura Viva. Na fronteira do logia social e da gestão junto aos espaços ocupa- Brasil com o Paraguai, por exemplo, especificamendos pelos pontos. Isso ocorre na medida em que os te na cidade de Ponta Porã (MS), o Ponto de Cultura pontos estimulam a apropriação coletiva dos meios Camará Capoeira resgata a tradição e o simbolismo de produção local, valorizando sua identidade e tra- da capoeira por meio de oficinas de formação cultudição, dentro de uma organização democratizada e ral para os alunos do projeto, associadas às aulas autogestionária. de inclusão digital, cineclube e oficinas de formaAssim como outros programas e fundos do go- ção profissional. Ao noroeste do estado, também verno federal vêm apoiando significativamente as na divisa, o Ponto de Cultura Expressão Pela Vida ações da economia da cultura de forma transver- apresenta uma plataforma multissegmentada de insal, como o Fundo Nacional de Assistência Social tervenção social no intuito de minimizar os impactos (FNAS), o Programa Nacional de Agricultura Fami- da extrema pobreza, desemprego e marginalidade liar (Pronaf) e o Programa de Aquisição de Alimen- infanto-juvenil, por meio de atividades artísticas, de tos (PAA)3, o Programa Cultura Viva tem se inseri- informática, audiovisual e acompanhamento social do nos grupos sociais autogeridos e solidários por dos alunos. Nesse contexto, cerca de dez4 pontos meio dos pontos de cultura. Esse processo confere de cultura do estado trabalham ações específicas mecanismos de potencialização das atividades de voltadas para a economia da cultura, geração de autogestão já em desenvolvimento ou estimula no- renda e formação profissional. Dentre eles, o Ponto vas, dentro de espaços estratégicos: bairros, comu- de Cultura A Arte Unindo o Campo e a Cidade, do nidades, municípios e estados. município de Itaquiraí, que tem por objetivo diminuir Neste nível propositivo, o programa adota o que a violência no campo por meio de oficinas de geramais recentemente os cientistas políticos têm cha- ção de renda, artesanato, restauração de móveis, mado de construção de uma nova cidadania (DAG- corte e costura e outras. Em Anastácio, cidade siNINO, 1994). Emancipada de um essencialismo tuada a 125 km da capital, a Associação de Mulheliberal que transfere à sociedade civil responsabi- res Independentes na Ativa promove, no Ponto de lidades até então do Estado, agora minimizado em Cultura Amina, oficinas de capacitação profissional 3

Ver Praxedes (2012).

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Pontão de Cultura Guaicuru (2012).

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para mulheres que sofreram violência doméstica e estabelece os seus princípios norteadores visando. que estão em situação de desemprego, possibili- São eles: contribuir para a concretização dos pretando geração ou aumento da renda familiar com ceitos constitucionais que garantem aos cidadãos e a venda dos produtos artesanais desenvolvidos no cidadãs o direito a uma vida digna; reconhecer e foponto de cultura. Já no Ponto mentar as diferentes formas de Cultura Saborearte ReNa teia ocorre o fórum (setorial, organizativas da economia gional do Buriti – implantado da cultura; contribuir para a regional e nacional) dos pontos pela Associação Leste dos geração de riqueza, melhode cultura de todo o país, Pequenos Produtores Rurais contribuindo para o fortalecimento ria da qualidade de vida e no Distrito de Palmeiras, sipromoção da justiça social; do Sistema Nacional de Cultura tuado a 120 km da capital –, contribuir para a redução das as mulheres artesãs produzem artefatos bordados, desigualdades regionais com políticas de desenvoltrançados em fibra, culinária regional e comerciali- vimento territorial sustentável; e promover práticas zam na própria região, por ser roteiro turístico. No produtivas ambientalmente sustentáveis. Há ainda Ponto de Cultura Montana, em Bataguassu, o grupo uma série de outras diretrizes que encontram apoio de assentados rurais organizou cursos de trança- no sentimento de pertencimento popular, autonodos em palha, fibra, tecelagem e promove feiras de mia e protagonismo5, características dos empreencomercialização de sua produção, além de revelar dimentos solidários. talentos por meio da Cia. Montana de Teatro. Os números do Programa Cultura Viva são conOs integrantes dos pontos de cultura do esta- sideráveis, haja vista o estado de Mato Grosso do do também se reúnem com determinada frequ- Sul ter recebido, desde o início do programa, em ência no intuito de deliberar novos caminhos e 2004, cerca de R$ 9 milhões para o desenvolvimendireções para o movimento. Nesse sentido, num to das redes de pontos de cultura. Isso representa espaço público e participativo, são realizadas um investimento de aproximadamente R$ 3,69 por plenárias estaduais e, ainda, as teias estaduais, habitante, colocando o estado em uma posição de regionais e nacional. Na teia ocorre o fórum (seto- superveniência no comparativo nacional6. rial, regional e nacional) dos pontos de cultura de todo o país, contribuindo para o fortalecimento do Sistema Nacional de Cultura. O evento fomenta a INSTITUTO HOMEM PANTANEIRO: construção de marcos legais que reconheçam a DESENVOLVIMENTO SOCIOCULTURAL E autonomia e o protagonismo do povo brasileiro, ECONÔMICO NA FRONTEIRA transformando o debate em ação, graças à gestão compartilhada entre o governo e os represenO Instituto Homem Pantaneiro (IHP)7 é uma tantes das entidades. organização de direito privado sem fins lucrativos Face à exposição dos fundamentos que cons- criada em 2002, no município de Corumbá – Mato troem, norteiam e articulam as ações do Programa Grosso do Sul –, com o objetivo de desenvolver Cultura Viva, implementados nos espaços dos pon- ações de impacto sociocultural e econômico na retos de cultura, pode-se inferir que suas intenções se confundem, se alinham, com os fundamentos e ide- 5 Relato de Ângela Schwengber, secretária executiva da Rede de Gestores de Políticas Públicas em Economia da Cultura. Ver Medeiros, ais da economia da cultura. O próprio projeto de lei Schwengber e Schiochet (2006). que institui a Política Nacional de Economia da Cul- 6 Relatório de execução do Programa Cultura Viva. Secretaria da Cidadania e da Identidade Cultural. Ministério da Cultura. 2012. Disponível tura cria o Sistema Nacional de Economia da Cultuem: www.cultura.com.br/culturaviva. ra, bem como o Fundo da Economia da Cultura, e 7 Instituto Homem Pantaneiro (2012a). 658

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gião. Corumbá, cidade situada a 420 km da capital, consultorias para que a qualidade e a atualização Campo Grande, faz fronteira com a Bolívia e é mar- dos produtos estejam sempre em foco. Além disgeada pelo Rio Paraguai, dentro da maior planície so, há uma constante preocupação com a sustenalagada do mundo, o que confere à cidade o título tabilidade. Assim, grande parte da matéria-prima de capital do Pantanal. utilizada vem da reutilização O Instituto Homem PantaOs novos conhecimentos de materiais, como é o caso neiro utiliza a metodologia de dos malotes doados pelos possibilitam capacitação gerenciamento de projetos, Correios, que são reaproveipara produzir soluções de organizando-se em progratados e transformados em sustentabilidade, no intuito de mas de articulação. São eles: bolsas. Os novos conhecigerar meios alternativos de • Desenvolvimento somentos possibilitam capacitrabalho e renda ciocultural: congrega tação para produzir soluções os programas de cunho artístico-cultural de sustentabilidade, no intuito de gerar meios alutili­zando as diversas lin­gua­gens das ar- ternativos de trabalho e renda. As oficinas de getes, como dança, música, e tecnologias ração de emprego e renda são realizadas na Vila para qualificar cidadãos polivalentes e do Conhecimento8, um espaço que oferece toda colaborativos. a infraestrutura necessária para uma capacitação • Meio ambiente: responsável por promover de qualidade. atividades de reconhecimento, valorização e No bojo de suas atividades está o Projeto Ponto fortalecimento dos aspectos de conservação de Cultura, selecionado no primeiro edital do prodo patrimônio natural do Pantanal. grama, em 2005, pelo Ministério da Cultura, com • Histórico-cultural: responsável por promover o Projeto Moinho Cultural Sul-Americano, que deu atividades de proteção e valorização do pa- fundamento a todo o processo de estruturação ortrimônio arquitetônico e cultural da região e ganizacional das atividades do instituto. A partir de suas comunidades tradicionais. dessa experiência, a organização começou a im• Articulação territorial: é o principal núcleo plementar atividades de estímulo à produção local que será analisado neste trabalho, pois con- e de emancipação social de grupos historicamente juga as iniciativas e programas de interven- discriminados do município de Corumbá e da fronção na qualidade de vida da população, pre- teira boliviana, como as crianças ribeirinhas, pais servando requisitos de ordem natural, social, analfabetos, donas de casa desempregadas e checultural e histórica. fes de família, além de adolescentes em situação O programa estratégico de articulação territo- de marginalidade e vulnerabilidade social. rial foi criado com o objetivo de capacitar pessoas No ponto de cultura do Projeto Moinho Cultural em diversas áreas do conhecimento, articulando realizam-se cursos de aperfeiçoamento, oficinas redes e parcerias para fortalecer iniciativas ino- de bordados, fuxicos, bolsas criativas e outros. vadoras de geração de renda e melhoria da qua- Na ação ecodesenvolvimento promovem-se ofilidade de vida. Também pretende potencializar a cinas para a geração de alternativas econômicas capacidade empreendedora de cada indivíduo e aos pescadores profissionais e aos seus familiaintegrar moradores dos municípios de Corumbá, res que sobrevivem da atividade, por meio de curno Brasil, e de Puerto Suárez e Puerto Quijarro, sos de corte e costura, gastronomia pantaneira, na Bolívia. meliponicultura, serigrafia e informática. Na ação Nesse programa são oferecidos cursos com designers para o aprimoramento das técnicas e 8 Relatório Anual do Instituto Homem Pantaneiro 2010 (2012c). Bahia anál. dados, Salvador, v. 22, n. 4, p.653-664, out./dez. 2012

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econegócio qualificam-se pescadores profissio- Cooperativa Vila Moinho: autogestão nais artesanais com cursos de criação de bolsas, e tecnologia social como alternativa manipulação do pescado, fibras, curtimento e tin- para o desenvolvimento local gimento do couro do peixe, além de oficinas de produção, comercialização, Sabe-se que há uma necooperativismo e associatiA Cooperativa Vila Moinho surgiu cessidade permanente de se vismo. Na ação artesanato como proposta de consolidação do aprofundar o entendimento desenvolvem-se ações para sobre tecnologia social, sogrupo de mulheres participantes a geração de renda utilizanbretudo no debate teórico das oficinas de geração de renda do a fibra do camalote, lona do Ponto de Cultura Moinho Cultural estabelecido. Contudo, será reciclada, couro de peixe e abordada, desse ponto em malotes. Também se presta auxílio em todo o pro- diante, a perspectiva dos grupos populares, nesse cesso de criação de estampas e apoio logístico de caso o Instituto Homem Pantaneiro, como ponto de comercialização. cultura e suas necessidades tecnológicas, no intuito Em 2009, o Projeto Arte e Gastronomia Moinho de demonstrar caminhos que podem superar as deCultural Sul-Americano foi selecionado9 novamente sigualdades tão características da realidade latinocomo ponto de cultura pela Fundação Estadual de americana. Fraga (2011, p. 107) sublinha que “[...] é Cultura. O projeto é uma ação do Núcleo de Gas- preciso um olhar multidisciplinar (da educação, da tronomia da Cooperativa Vila Moinho, que promove economia, da sociologia, da engenharia etc.) que cursos de capacitação em gastronomia pantaneira, seja capaz de perceber o acúmulo prático e teórico possibilitando às mães – brasileiras e bolivianas – sobre o tema”. dos alunos do Moinho Cultural uma oportunidade A Cooperativa Vila Moinho10 surgiu como prode gerir empreendimentos próprios, com vistas à posta de consolidação do grupo de mulheres partigeração e complementação da renda familiar. cipantes das oficinas de geração de renda do Ponto Associadas às iniciativas de articulação terri- de Cultura Moinho Cultural. Elas se organizaram e torial estão outras atividades inerentes à constitui- fundaram uma pessoa jurídica legalmente constição de um ponto de cultura, como a cultura digital tuída sob a forma de cooperativa. O objetivo é alae a formação em audiovisual, através de parceiros vancar o processo organizacional de geração de públicos e privados. Ressalta-se na comunidade renda para os cooperados, visando à superação do a importância vital da utilização das ferramentas desemprego e da estagnação da renda familiar. de tecnologia da informação e da comunicação Na cooperativa são desenvolvidas atividades no processo de desenvolvimento pessoal e local. em núcleos: As ações de patrimônio imaterial e material são in• Núcleo de Fibras – trabalha com trançados tensificadas com a preservação e restauração do da fibra do camalote11, que originam bolsas complexo arquitetônico situado no Porto de Corume outros objetos decorativos. bá, precisamente no Edifício Vasquez & Filhos, que • Núcleo de Corte e Costura – grupo da cooabrigará o Museu do Homem Pantaneiro. Também perativa, oriundo das oficinas realizadas pelo se promove a preservação da tradição oral por meio ponto de cultura, que tem ganhado expresdo reconhecimento de mestres griôs que repassam sivo espaço no mercado local por meio de seus conhecimentos populares e da história local convênios com prefeituras e empresas para para alunos do Projeto Moinho Cultural. 10 9

Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul (2009).

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Instituto Homem Pantaneiro (2012b) Planta aquática nativa do Pantanal.

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a confecção de uniformes, bolsas, sacolas, No fundamento de sua constituição, a coopelixeiras, fantasias e outros artigos. rativa apresenta características essenciais de um • Núcleo de Gastronomia – responsável pela empreendimento de economia da cultura, como elaboração de bufês contratados, com um “[...] produção de iniciativa coletiva, com um certo diferencial pautado na grau de democracia interna culinária pantaneira, Nesse caso, a autogestão que remunera o trabalho de utilizando ingredienforma privilegiada em relação aponta caminhos e métodos tes obtidos na própria ao capital, seja no campo ou para a consolidação de um região. O núcleo já na cidade” (BRASIL, 2003) . engajamento sociotécnico esteve presente em Percebe-se, ao analisar diferentes eventos e festivais. o estudo de caso supracitado, que a economia da • Núcleo de Serigrafia – responsável por for- cultura “[...] evidencia necessidades concretas de mar profissionais para atender o mercado desenvolvimento tecnológico para grupos populocal, garantindo mão de obra especializada lares” (FRAGA, 2011). Nesse caso, a autogestão às empresas por meio de parcerias. aponta caminhos e métodos para a consolidação • Núcleo de Reciclagem de Vidros e de Ladri- de um engajamento sociotécnico. Ou seja, por lhos Hidráulicos – preserva as característi- meio das ações desenvolvidas e acompanhadas cas arquitetônicas por meio da restauração por especialistas dentro da organização, permitede ladrilhos e da transformação de vidros se a preparação e adaptação cognitiva dos seus reciclados em produtos decorativos. participantes, sobretudo oferecendo recursos de Toda a produção da cooperativa é comercializa- gestão ao empreendimento. Fraga (2011) reforça da na Vila dos Saberes e Fazeres, espaço de venda a importância da tecnologia social e de seus funimplantado no prédio do Moinho Cultural Sul-Ame- damentos como elemento propulsor dos emprericano, às margens do Rio Paraguai, o que permite endimentos de economia da cultura. uma logística de escoamento da produção bastante A Adequação Sociotécnica é um processo cofavorável, aquecendo o processo de produção dos letivo (entre técnicos, pesquisadores, engecooperados. Essa experiência destaca-se pela ininheiros e trabalhadores e trabalhadoras) de ciativa coletiva das mulheres oriundas do processo reprojetamento das tecnologias existentes ou de formação e capacitação do ponto de cultura com de desenvolvimento de novas tecnologias seo intuito de empreender uma ação autogestionária e gundo os valores e interesses do coletivo de de cunho solidário. Silva (2010) salienta que, para a trabalhadores. E é desse processo que surge ocorrência efetiva da transformação social local na a possibilidade de construir uma plataforma perspectiva autogestionária, socialista e de supecognitiva coerente com a autogestão (FRAração da alienação do trabalho, é necessário recoGA, 2011, p.114). nhecer o sujeito como centro da proposta. O Instituto Homem Pantaneiro, gestor do ponto A construção de cooperativas verdadeiramende cultura, atuou até o final de 2011 como incubador social da Cooperativa Vila Moinho – uma vez te autogestionárias e socialistas deverá ser que esta surgiu dentro da organização –, provenobra da própria classe trabalhadora consciendo recursos humanos, financeiros, operacionais e te. A possibilidade de construção de uma nova tecnológicos para que os cooperados pudessem forma de sociabilidade humana não mediada emancipar-se e atingir a maturidade de um emprepelo capital está inscrita nas contradições do endimento autogestionário. No final de 2011, a coreal, no processo de luta social historicamente operativa ganhou personalidade jurídica própria e situada (SILVA, 2011. p. 64). Bahia anál. dados, Salvador, v. 22, n. 4, p.653-664, out./dez. 2012

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passou a exercer suas atividades de forma autôno- processo de incubação inicialmente feito pelo Insma. O processo de adequação cognitiva das donas tituto Homem Pantaneiro, nota-se que a tecnologia de casa, desempregados, ribeirinhos, pescadores apropriada12 (TA) – orientada para a maximização e coletores de isca, grupos atendidos pela coope- de lucros, economia de mão de obra, imposição de rativa, contemplava ciclos de controles coercitivos como adaptação e capacitação soA análise aponta para um formas de anulação do pociotécnica. Ou seja, utilizava tencial criativo do trabalho, processo de gestão eficaz elementos que possibilitavam num processo degenerador capaz de promover a superação a ampliação das habilidades de alienação do trabalho – de mazelas sociais muito técnicas de produção, de é totalmente superada pela características do público-alvo gestão e de transferência de demandada tecnologia social tecnologia, por meio de oficinas de formação em (TS). Nesse processo, o marco analítico-conceitual empreendedorismo, gestão de negócios e gestão da TS ganha sua contribuição, concebida, segundo financeira. Dagnino (2010), como Dentre as práticas inovadoras desenvolvidas [...] um conjunto de indicações de caráter sopela Cooperativa Vila Moinho destacam-se a reuciotécnico alternativo ao atualmente hegemôtilização de malotes doados pela Empresa de Cornico capaz de orientar as ações de fomento, reios e Telégrafos no Projeto Ecopostal; núcleo planejamento, capacitação e desenvolvimende gastronomia com ênfase na culinária regional, to de TS dos implicados com esses empreaproveitando a abundância de peixes da localidade; endimentos: gestores das políticas sociais e ladrilhos hidráulicos restaurados e muito procurade C&T, professores e alunos atuantes nas dos por arquitetos para utilização em projetos de incubadoras de cooperativas, técnicos de insrevitalização, ação esta realizada até 2011. Tudo titutos de pesquisa, trabalhadores etc (DAGo que é produzido pelos núcleos da cooperativa é NINO, 2010, p. 11). comercializado, e os recursos são revertidos totalA análise aponta para um processo de gestão mente para ela e para os cooperados. eficaz capaz de promover a superação de mazeAs atividades da cooperativa já foram replicadas las sociais muito características do público-alvo: em outros empreendimentos da região, como o nú- desemprego crônico, violência doméstica, região cleo de fibras no distrito de Albuquerque, situado a de conflito fronteiriço e pobreza. Assim, obser80 km de Corumbá. Outro diferencial do processo va-se um novo processo criativo – ou ainda, de de gestão estabelecido pelos cooperados está na economia criativa –, com princípios solidários, realização das pesquisas de impacto socioeconô- no qual a adequação sociotécnica (AST), marco mico para os membros e familiares cooperados, da tecnologia social, excede uma visão estática ou seja, a representação percentual do incremento e meramente normativa, alcançando uma dimeneconômico que cada participante auferiu na renda são social expressiva no processo de aprendizafamiliar durante o período de participação no pro- do e retenção do conhecimento, de adaptação e jeto. Isso fortalece o processo de conscientização de adequação. Dessa forma, com base empírica do movimento cooperado autogerido para a objeti- nas informações levantadas, torna-se flagrante a va construção social e de conjugação de esforços estreita relação do trabalho realizado no Moinho coletivos para o desenvolvimento local e superação Cultura Sul-Americano, sobretudo na cooperativa da alienação do trabalho. em questão, com a síntese do gerenciamento de Ao se analisar a forma de trabalho associado das mulheres da Cooperativa Vila Moinho, bem como o 12 Ver Dagnino (2010). 662

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projetos e ações acompanhados das característi- a perspectiva de empreendimentos coletivos autocas da adequação sociotécnica (DAGNINO, 2010). geridos, como os pontos de cultura, que associam Como exemplo, o simples uso da tecnologia, apro- diferentes áreas do conhecimento em estratégias priação coletiva dos meios de produção, ajuste/ de intervenção social e econômica para o desenvolreorganização do processo vimento local/regional, pautade trabalho e incorporação A referida pesquisa buscou realizar dos na transferência de tecde novas alternativas tecnonologia social e de gestão. um esforço de síntese ao afirmar lógicas e de conhecimentos A implantação do Prograa estreita relação entre os marcos científico-tecnológicos para ma Cultura Viva no território analíticos do Programa Cultura a otimização da produção. sul-mato-grossense estabeViva e da economia da cultura Outrossim, evidencia-se leceu pontos não apenas de o alinhamento do programa com os princípios da uma área ou trabalho específico, mas sim de artitecnologia social, inerente à economia da cultura, culação em rede e de mobilização social com difenas perspectivas do uso – quando utiliza recursos rentes alternativas e visões que se fundamentam, (máquinas, equipamentos e formas singulares no confluentes na autonomia, protagonismo e empodeprocesso de organização do trabalho) e/ou ainda ramento social. Dessa forma, ao exercerem os obadota tecnologias convencionais, desde que com jetivos de alinhamento descritos no escopo formal o objetivo da divisão dos excedentes gerados a do programa, esses pontos são provocados a gerar, partir delas –; da apropriação – na medida em receber e a transferir conhecimento técnico, cientíque o direito de propriedade torna-se coletivo fico, econômico, social, educacional, de gestão etc. face ao processo de organização, que se esta- Somados, esses conhecimentos podem promover belece também nos empreendimentos de eco- o bem-estar social e a garantia de direitos mínimos nomia da cultura ligados aos pontos de cultura aos seus beneficiários. –; do ajuste do processo de trabalho – quando Nesse sentido, reafirma-se a importância da adapta tal característica à forma de propriedade construção de espaços como os dos pontos de coletiva dos meios de produção (preexistentes ou cultura como incubadores sociais de empreendiconvencionais) associada à autogestão –; e da mentos coletivos (de economia da cultura, de culincorporação de conhecimento científico-tecnoló- tura e de criação), na perspectiva da capacidade gico – uma vez que cada ponto de cultura torna- de prover recursos de adequação sociotécnica aos se um incubador social, encarregado de fornecer seus participantes, com vistas à dinamização e ao recursos técnicos/tecnológicos ou científicos na fortalecimento de iniciativas já existentes ou novas. perspectiva da adaptação cognitiva dos coope- Ao se discorrer sobre a Cooperativa Vila Moinho, rativados ou participantes dos empreendimentos ficou demonstrada a eficiência de uma organização (NOVAES, 2010). que possui processos e projetos bem definidos e com gestão estruturada. Isso torna suas ações referenciais de desenvolvimento local e de fronteira, CONCLUSÕES provendo métodos de construção de recursos (que não apenas o financeiro), emprego e renda. DesA referida pesquisa buscou realizar um esfor- sa forma, entende-se que cada espaço implantado ço de síntese ao afirmar a estreita relação entre no foco dos pontos de cultura também atende aos os marcos analíticos do Programa Cultura Viva – e preceitos mores da economia da cultura e solidária, suas ações, objetivos, fundamentos, relacionamen- tendo como base nessa relação a autogestão – intos e potencial – e da economia da cultura. Isso sob cubação/adequação – e a emancipação. Bahia anál. dados, Salvador, v. 22, n. 4, p.653-664, out./dez. 2012

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Artigo recebido em 4 de outubro de 2012 e aprovado em 9 de novembro de 2012

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Bahia análise & Dados

Economia criativa – conceitos e classificações Bouzid Izerrougene* Lielson A. de Almeida Coelho** Henrique Tomé da Costa Mata*** *

Pós-doutor pela Université Dauphine, doutor em Economia pela Université Paris. Professor de Economia na Universidade Fede­ral da Bahia (UFBA).

**

Professor de Economia na Universidade Federal da Bahia (UFBA).

***

Doutor em Economia Aplicada e mestre em Ciência Florestal pela Universidade Federal de Viçosa (UFV). Professor de Economia na Universidade Federal da Bahia (UFBA).

Resumo Busca-se neste trabalho entender, através da revisão da literatura, a importância da economia criativa na sua complexa multissetorialidade e intensa transversalidade. Palavras-chave: Indústrias criativas. Indústrias culturais. Indicadores estatísticos. Impactos socioeconômicos. Modelos de classificação. Abstract This paper attempts to comprehend, through literature revision, the importance of creative economy, considering her multisetorial complexity and intense transversality. Keywords: Creative industries. Cultural industries. Statistical indices. Socio-economics impacts. Classification models.

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INTRODUÇÃO Apesar de não possuir um conceito acabado, a economia criativa (EC) pode ser considerada como um setor movido essencialmente pela energia intelectual, cuja fonte deriva do patrimônio cultural e natural, e cuja dinâmica se encontra no capital humano, isto é, nas aptidões educacionais e informacionais do fator trabalho. Pesquisar a EC na sua complexa multisetorialidade e sua intensa transversalidade só se torna viável a partir de uma definição mínima de categorias e indicadores que visam mensurar e diagnosticar o setor; qualificar e quantificar os seus atores, as suas atividades; avaliar os seus impactos sociais e econômicos; e, ainda, antecipar os resultados que podem ser gerados a partir da implementação de determinadas políticas públicas. A literatura que se refere à EC desenvolveuse consideravelmente nos últimos anos. Vários modelos foram propostos, e todos se distinguem pela definição que dão à própria EC. O primeiro capítulo busca mostrar como o trabalho criativo se torna força produtiva ascendente no processo de agregação de valor, permeando cada vez mais o conjunto da economia. O segundo capítulo é dedicado à revisão da literatura que trata de entender a complexa ramificação e a intensa transversalidade que caracterizam as atividades criativas, realizadas dentro de redes intrincadas de cooperação e comunicação. No terceiro capítulo, tenta-se explorar a revisão da literatura para discutir os rumos da construção de indicadores para a EC.

A IMPORTÂNCIA DA CRIATIVIDADE NO CONTEXTO DE INOVAÇÃO CONTÍNUA O trabalho criativo se torna força produtiva dominante que se estende pelas profundezas da consciência e dos corpos, rearticulando as relações sociais e permeando toda atividade econômi666

ca. Nas novas formas de criação e de incorporação da cultura e do conhecimento do produto, o maior fator de produção, que é o trabalho intelectual, é assegurado por ações particulares do trabalho, as quais criam continuamente novas construções comuns, ao mesmo tempo em que singularizam o que é comum. A economia criativa (EC) não se limita às chamadas indústrias criativas ou indústrias culturais, mas inclui todos os serviços relacionados ao conhecimento e à capacidade intelectual e artística (música, dança, literatura, software, mídia, teatro, ópera, circo, pintura, fotografia, cinema, design, arquitetura, educação, pesquisa e desenvolvimento, moda, artesanato, serviços de turismo e desportes, arte digital, e outras expressões ou atividades relacionadas). No âmbito da EC, ideias, imaginação, valores simbólicos, linguagem, afeto, criatividade e inovação aplicam-se a quaisquer segmentos da economia e são fontes de agregação de valor. A EC é sinônimo de uma situação de inovação permanente, em que a valorização se sustenta no tempo subjetivo e intersubjetivo da criação, isto é, no trabalho vivo individual e coletivo. A EC age nos nexos intangíveis da produção da linguagem, do simbólico e do afeto, que são inerentes ao domínio social. A interatividade dos significados produz sistemas simbólicos e tecnologias intelectuais que colocam em movimento as formas comunitário-cooperativas como criadoras de valor. Ela se alimenta de aptidões criativas, que se constituem individual ou coletivamente para produzir novas riquezas e ocupar um lugar de destaque na produção de externalidades. A sua combinação com os meios de produção se torna fonte dominante de emprego e renda. Cada vez mais, agregar valor significa incorporar ao produto conteúdos cognitivos e artísticos inovadores (moda, design, entretenimento, informação, educação, pesquisa, linguagem, símbolos etc.), todos intimamente associados à cultura. A transformação do capital cultural e do conhecimento em vantagem econômica e soBahia anál. dados, Salvador, v. 22, n. 4, p.665-675, out./dez. 2012


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cial torna-se um desafio irrefutável, pois a comCada país ou organização designa diferentes petição no mercado ocorre cada vez mais via escopos para a economia criativa. A UNESCO diferenciação-produto. (2009) organiza a EC a partir de duas macrocateA EC é fundamentalmente uma economia do co- gorias: a dos setores criativos nucleares e a dos nhecimento que escapa da lei setores criativos relacionado rendimento decrescente e, A EC é fundamentalmente dos. A primeira categoria a fortiori, da lei da escassez. corresponde aos setores uma economia do conhecimento Suas trocas não comportam cujas atividades produtivas que escapa da lei do rendimento nem perda nem sacrifício, e o têm como processo princidecrescente e, a fortiori, seu consumo não é destruidor pal um ato criativo gerador da lei da escassez e não implica a depreciação de valores simbólicos que ou o esgotamento da sua utilidade. Pelo contrário, o produzem riquezas culturais e econômicas. A seseu uso é uma atividade criativa, pois, enquanto co- gunda refere-se aos setores criativos incremennhecimento em ato, evolui com o seu uso subjetivo. tais decorrentes dos setores criativos nucleares, O seu custo de reprodução é muito baixo, o seu valor visando sua aplicação, desdobramento ou adapagregado é elevado e, em razão da cumulatividade, o tação às especificidades de diferentes segmentos seu custo marginal é decrescente. Como input, a cria- e mercados. tividade não se deprecia ao longo do processo produAinda segundo a UNESCO (2009), a EC comtivo, sua energia não se extingue na transformação e, porta setores transversais aos anteriores: o setor do por não ser um bem esgotável, ela não implica neces- patrimônio imaterial; o da educação e da capacitasariamente intercâmbio desigual, alienação ou espo- ção; o da memória e da preservação; e, por ultimo, liação. A sua valorização deriva da socialização, que, o setor dos equipamentos e insumos. A UNESCO por sua vez, se baseia na emanação, na agregação destaca o setor do patrimônio imaterial, considerarecíproca, isto é, na capacidade de, simultaneamente, do tradicional e vivo. Tradicional por ser transmitido dar e reter. Ela se reproduz concomitantemente ao por gerações, e vivo por ser passível de transforciclo de criação produtiva. mação, recriação e ampliação pelas comunidades Num estudo sobre o papel das indústrias criati- e sociedades em suas interações e práticas sociais, vas numa economia de inovação e conhecimento, culturais, ambientais e históricas. Rammer et al (2009) enumeram três razões que faNo Brasil, o Ministério da Cultura define a EC zem dessas indústrias um forte catalisador da cria- como a soma de todos os setores cujas “[...] atividatividade inovadora: des produtivas têm como processo principal um ato First, Creative Industries are a major source criativo gerador de valor simbólico, elemento central da formação do preço, e que resulta em produção of innovative ideas and thus contribute to de riqueza cultural e econômica” (BRASIL, 2011). an economy's innovative potential and the Com essa definição, o governo brasileiro mostra generation of new products and services. estar ciente da importância da EC e do seu papel Secondly, they offer services which may na criação de vantagens competitivas, de emprego be inputs to innovative activities of other e renda no país. A recente criação da Secretaria da enterprises and organizations within and Economia Criativa (SEC), com seu plano de ações outside the creative industries. Thirdly, para os anos 2011-2014, é uma clara manifestação Creative Industries are intensive users of do desejo das autoridades de dar maior atenção à technology and often demand adaptations and implantação de políticas públicas que possam alanew developments of technology, providing vancar o setor no Brasil. innovation impulses to technology producers. Bahia anál. dados, Salvador, v. 22, n. 4, p.665-675, out./dez. 2012

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Economia criativa – conceitos e classificações

DELIMITAÇÃO DA ECONOMIA CRIATIVA – ALGUNS MODELOS DE CLASSIFICAÇÃO

rária ou artística e não por direitos de propriedade intelectual2. O critério jurídico de proteção é combinado com o critério econômico e técnico de reÉ tarefa difícil delimitar o campo da EC, em razão produtibilidade ou de uso de técnicas de comunicade suas complexas ramificação. Portanto, o campo das ções e da intensa transverEmbora não desconsiderem indústrias culturais constitui salidade e intersetorialidade um subconjunto de indústrias necessariamente o valor social que caracteriza suas atividafundadas na propriedade litee cultural dos bens e serviços, des, as quais são, em geral, rária e artística. as classificações setoriais dão realizadas dentro de redes A análise em termos de prioridade à dimensão econômica intrincadas de cooperação e indústrias criativas considera da criatividade comunicação. Demarcar as um grande número de ativifronteiras da EC depende tanto da definição que se dades e ocupações, todas aquelas que geram redá ao próprio setor, quanto da forma como se per- sultados associados a componentes artísticos ou cebe a sua importância no conjunto da economia criativos significativos (CAVES, 2000). As indústrias (KEA EUROPEAN AFFAIRS, 2009). Nesta pers- criativas contêm as indústrias ditas culturais, assim pectiva, encontram-se na literatura sobre EC dois como o conjunto das atividades de produção que tipos de visões distintas: setoriais e transversais ou possuem dimensões culturais ou artísticas. Elas inintegradas. cluem também as formas industrializadas ou semi-industrializadas da produção cultural, assim como Visões setoriais as atividades criativas não tradicionais, como a moda, o design, o turismo cultural, o esporte. Ainda, Geralmente, os ordenamentos setoriais abran- situadas na interseção das artes, do comércio e da gem, sob a mesma qualificação, as artes não nego- tecnologia, as indústrias criativas dizem respeito à ciáveis ou seminegociáveis e as formas industriali- criação digital: artes digitais do audiovisual, videozadas de criatividade. Embora não desconsiderem games, web, design, cinema e livro digitais etc. necessariamente o valor social e cultural dos bens A abordagem em termos de direitos autorais e serviços, as classificações setoriais dão priorida- enfoca o valor econômico dos direitos de propriede à dimensão econômica da criatividade. Nessa dade intelectual e se fundamenta na metodologia dimensão, a abordagem das indústrias culturais1 da Organização Mundial de Propriedade Intelectual domina, e o seu campo de observação abarca as (OMPI), utilizada para desenhar o perfil das indúsatividades e estruturas culturais que são tradicional- trias que são regidas pelo direito autoral. A OMPI mente definidas por políticas culturais e avaliadas divide essas indústrias em quatro principais níveis por instituições oficiais. concêntricos, em função de sua participação no Segundo a definição da UNESCO, as indústrias valor global das mercadorias geradas pelos direiculturais são aquelas que dizem respeito à criação, tos de propriedade intelectual: (1) core copyright à produção e ao consumo de conteúdos criativos e industries, (2) partial copyright industries, (3) interimateriais de natureza cultural, assimiláveis a um dependent copyright industries, (4) non-dedicated bem ou um serviço (UNESCO, 2006). São geral- support industries. As core copyright industries mente protegidas por direitos de propriedade lite- constituem um subgrupo das indústrias culturais;

1

Trata-se aqui dos setores econômicos da cultura e não do referencial teórico associado às indústrias culturais.

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A maioria dos países europeus, mais o Canadá e a Coreia, adota essa nomenclatura, com certas variações regionais.

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as partial ­copyright industries são aquelas indús- mídia, moda, música, fotografia, imprensa, literatutrias cujos produtos são cobertos pelos direitos au- ra, serviços de publicidade e de marketing, turistorais, como móveis, joalherias, têxteis e calçadas, mo. O quadro de análise acrescenta à perspectiva porcelanas, tapeçarias, brinquedos, arquitetura, centrada na dinâmica produtiva (supply-side) uma design interior, museus etc. perspectiva orientada para o As interdependent copyright Aqui, o impacto econômico consumo (demand-side) 4. industries são divididas em Esses diferentes modelos das indústrias criativas se mede dois grupos: os core interdesetoriais – “indústrias cultuà luz de uma “economia de pendent copyright industries rais”, “indústrias criativas”, experiência” e dos bens e (televisão, rádio, leitores de “indústrias do copyright”, serviços que elas produzem vídeos e discos, computador, “indústrias de conteúdos diinstrumentos musicais etc.) e as partial interdepen- gitais” e “economia de experiência” – são ligados dent copyright industries (instrumentos fotográficos ao conceito-chave da análise das mutações do pae cinematográficos, aparelhos de gravação etc.). O radigma social e produtivo atual, que são: a “ecoquarto nível, o das non-dedicated support indus- nomização da cultura” e a “culturalização da ecotries, fica fora do campo do copyright. As ativida- nomia”, a expansão de um novo tipo de trabalho des consideradas são associadas ao domínio das e de trabalhadores, a “digitalização da economia” obras protegidas, mas dizem respeito ao setor de e a diversificação dos estilos de vida e de consuserviços prestados às empresas (venda de varejo mo. No plano prático, as principais diferenças entre e atacado, transportes, telecomunicações, internet essas abordagens se encontram na definição dos etc.). Todavia, esse domínio é considerado como setores e ocupações que devem ser considerados EC, na medida em que faz parte do impacto geral nos levantamentos estatísticos. O problema dessa das indústrias criativas3. definição é debatido nas esferas políticas e acadêOutras concepções do impacto socioeconômico micas desde a primeira formulação do conceito de do setor criativo priorizam dimensões particulares indústrias criativas pelo DCMS (1998). Nos docuda EC. Dentre elas, uma primeira abordagem co- mentos de orientação e de políticas, observa-se, loca no centro da análise econômica os setores da todavia, de forma geral, uma ampliação crescente criação digital e de conteúdos interativos. Quatro do perímetro setorial tradicionalmente dedicado à segmentos são considerados: 1) os jogos interati- cultura. O procedimento metodológico do Centre vos; 2) a multimídia; 3) a publicidade; e 4) os con- of Excellence for Creative Industry du Queensland teúdos digitais na área da educação (PATTINSON University of Technology (ARC) se inscreve nessa CONSULTING, 2003). tendência. O ARC busca responder as seguintes Uma segunda abordagem enfoca as atividades questões: 1) como oferecer provas sustentáveis da econômicas que derivam da crescente demanda importância da mão de obra criativa e da sua contripor novas experiências de consumo nos campos do buição para a economia?; e 2) como medir de forma lazer, das artes, dos adventos culturais e turísticos plausível o valor dos outputs intermediários das inetc. Aqui, o impacto econômico das indústrias cria- dústrias criativas em relação ao resto da economia? tivas se mede à luz de uma “economia de experiên- (HIGGS; CUNNINGHAM, 2008a). cia” e dos bens e serviços que elas produzem: arquiNota-se, por fim, que a aplicação pragmática dos tetura, artes cênicas, artes visuais e artes gráficas, modelos setoriais é igualmente função da variável design, edição, artes culinárias, jogos interativos, 4 3

A abordagem da OMPI foi aplicada nos EUA, Canadá e Cingapura.

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Os países nórdicos, Dinamarca, Suécia e Noruega, notadamente, recorrem explicitamente a essa abordagem (SANTAGATA, 2009).

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geográfica, com as particularidades locais capazes de determinar novos campos a incluir.

artes stricto sensu e que são definidas e informadas por levantamentos estatísticos institucionais. Na primeira periferia do circulo central estão as indústrias Visões transversais culturais, aquelas que produzem e difundem conteúdos de natureza cultural: o Aos modelos do setor culAs indústrias criativas são, cinema, o rádio, a televisão, tural/criativo que enumeram a edição, a mídia etc. Throsby portanto, apresentadas como uma lista de atividades e ocudefine essas indústrias como um dos componentes da pações, ou que se baseiam espaços produtivos nos quais economia do conhecimento num aspecto particular da as ideias criativas são utilizaEC, apresentam-se abordagens mais transversais, das e reproduzidas enquanto input dominante. Na que vão para além das considerações por setor e segunda faixa periférica, encontra-se um terceiro por ocupação. Trata-se mais de modelos abstratos e último círculo que se refere às indústrias que típicos do que de classificações acabadas. De forma produzem bens e serviços situados fora do campo sumária, pode-se dizer que as abordagens transver- da cultura stricto sensu e que se utilizam de ideias sais partem das abordagens setoriais, reconfiguran- criativas, embora a criação artística não seja o seu do-as em níveis mais integradores de análise. objeto ou lógica dominante. Nesse último círculo do As abordagens transversais se dividem em dois universo da EC estão as indústrias qualificadas por grupos. Um coloca as artes e os artistas no centro Throsby (2001) como “paraculturais”, que são a pude um quantum que liga a cultura ao desenvolvimen- blicidade, o design, o turismo, a moda etc. to econômico e social. Outro grupo prefere investiThe Work Foundation, uma empresa britânica de gar o próprio processo de criatividade, elegendo-o consultoria, propõe um quarto círculo, chamado “o como objeto de política econômica. Estas análises resto da economia”, para incluir as indústrias clássicas buscam prioritariamente desvendar as condições que exploram outputs gerados pelas atividades e inde desenvolvimento, assim como as consequências dústrias criativas (THE WORK FOUNDATION, 2007). sociais, econômicas e espaciais da criatividade e Esse último círculo revela um processo de agregação da inovação. Em todas elas, questiona-se a perti- de valor via afluxo de criatividade no qual as indúsnência dos modelos tradicionais do impacto econô- trias culturais, alimentadas pela criação artística, esmico das atividades culturais. timulam a inovação criativa e a projetam ao “resto da O conceito de indústria criativa implica, segundo economia”. As indústrias criativas são, portanto, apreThrosby (2001), a revisão de uma divisão antagôni- sentadas como um dos componentes da economia ca moderna entre os polos artísticos e comerciais do conhecimento. Aqui, uma modificação relevante da cultura. Essa modelização da indústria criativa foi introduzida no modelo original de Throsby, estentende a ser dominante nas pesquisas acadêmicas dendo o campo do núcleo central para, além da arte e nos documentos oficiais (THE WORK FOUNDA- stricto sensu, todas as formas populares e técnicas de TION, 2007). “pura” expressão cultural (ranging from traditional high Throsby (2008), uma referência importante na conceptualised art to video games and software). literatura sobre EC, propõe um método de análise Independentemente das variantes funcionais, que dá prioridade aos resultados em termos de esse modelo de círculos concêntricos defende, no bens e serviços. Partindo disso, ele descreve as plano econômico, um enunciado genérico que disindústrias criativas por um modelo de “círculos con- tingue claramente as partes a montante e a jusante cêntricos”. No centro do círculo estão as estruturas das cadeias de produção criativa. Numa extremie atividades culturais que se inserem no campo das dade da cadeia está a criatividade artística, aquela 670

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que se volta para a criação “pura”; na outra está a que associa, num quantum aberto, a criatividade arinovação industrial, cuja orientação é definida pelos tística à inovação industrial. Nos trabalhos de Florida, mercados existentes ou potenciais. Portanto, esse as artes e a cultura não são um mero reflexo de um modelo permite conjuntamente: i) reconhecer um crescimento urbano forte, mas constituem uma base valor específico das atividaparticular de produção de exdes artísticas que não seja O modelo de círculos concêntricos ternalidades, a qual auxilia de somente o seu valor econôdiferentes formas o crescimenconvém aos defensores da mico; (ii) considerar a impor- intervenção pública para estimular to econômico e o desenvolvitância econômica do campo mento local. A chave do crescios campos culturais e criativos tradicional das artes stricto mento econômico via inovação sensu; e (iii) valorizar os efeitos econômicos gera- estaria, assim, na presença, num mesmo território, de dos por essas atividades e que beneficiam direta ou uma tripla combinação entre o suporte sociocultural indiretamente as indústrias culturais e outras fora da criação, a criatividade individual (o talento) e a dido campo estritamente cultural. nâmica da inovação industrial e tecnológica. Florida e O modelo de círculos concêntricos convém aos Tinagli (2004) construíram um índice estatístico comdefensores da intervenção pública para estimular posto, chamado Creativity Index, especialmente para os campos culturais e criativos. Ele se vale dos estimar a dimensão dessa articulação. conceitos de “bem público”, “externalidades”, “efeiApesar das reticências acadêmicas enfrentato multiplicador” como grandes argumentos a favor das, a abordagem de Florida inspira a construção da intervenção do governo nas atividades artísticas. de inúmeros indicadores estatísticos, como, por Identifica uma nova função econômica na relação exemplo, aqueles que avaliam as externalidades de dependência que liga o conjunto da economia do setor criativo cultural dentro de economias locriativa às atividades artísticas. cais e nacionais. Outros índices inspirados por Essas relações entre cultura, criatividade e ino- Florida combinam uma série de dados econômivação, de um lado, e o desenvolvimento socioeco- cos, sociais e culturais para avaliar a permeabilidanômico e cultural, de outro lado, estão no centro de da economia em geral por atividades criativas. do modelo elaborado pelo National Endowment for Um conjunto de noções subjetivas, como estilos de Science, Technology and the Arts do Reino Unido vida, avidez ou indiferença à criatividade, tolerân(NATIONAL ENDOWMENT FOR SCIENCE, TECH- cia social, atração pela arte, tende a ser contemNOLOGY AND THE ARTS, 2006). Neste modelo, plado cada vez mais no quadro analítico da EC. contrariamente ao outro dos círculos concêntricos, Alguns autores, ainda, buscam identificar ecosas inter-relações entre os setores ou campos de ati- sistemas criativos nos quais inserem as noções vidade não são analisadas em função dos conteúdos de cultura e desenvolvimento sustentável. Porém, criativos, estéticos ou semióticos dos produtos finais, as pesquisas, tanto setoriais quanto transversais, mas segundo os mercados almejados. Os diferentes ainda carecem de indicadores sobre os impactos círculos se tornam permeáveis e, de forma mais real, sociais e qualitativos. flexíveis em suas atividades (O’ CONNOR, 2007). Florida (2002, 2005a, 2005b) é nome importante da teoria da “expansão da classe criativa”, também MEDINDO A CRIATIVIDADE responsável pela ampliação do campo da análise econômica das artes e da cultura para além do setor Três observações podem derivar da revisão cultural. Em seus estudos, há uma concepção territo- da literatura. Em primeiro lugar, a noção de criatirializada do modelo concêntrico da EC, na medida em vidade inclui um número cada vez maior de setoBahia anál. dados, Salvador, v. 22, n. 4, p.665-675, out./dez. 2012

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res e de ocupações. A tendência está nitidamente De forma geral, é comum em todos os países no rumo de uma ampliação crescente da EC, o admitir os limites inerentes aos sistemas nacionais que traz consigo novas dúvidas e interrogações. de classificação industrial, que impedem avaliar Uma das dúvidas é a importância das artes e das adequadamente a EC (HIGGS; CUNNINGHAM, culturas na EC. Segundo 2008b; MARKUSEN et al., Tremblay, as indústrias não No final, as classificações ainda 2008). O recurso ao sistema tradicionalmente identifica- estão mais a serviço da retórica do estandarte de classificação das como indústrias cultuda EC se mostra insuficiente que da pesquisa científica rais respondem por mais para uma análise econômica de dois terços das rendas totais das indústrias completa do macrossetor das indústrias criativas, culturais nos países desenvolvidos (TREMBLAY, independentemente das definições que lhes são 2008). Como ressalta o referido autor, se a arte e dadas. as culturas estão no coração da construção ideoA EC é multisetorial por essência e suas varilógica do modelo novo da economia criativa, isso áveis (produto, emprego, tecnologia) permeiam o certamente não se deve ao peso econômico das conjunto da economia e se encontram dispersas atividades tradicionalmente associadas ao setor dentro de muitos setores. Em alguns casos, pode-se cultural. Tanto os dados das sucessivas edições notar, na avaliação econômica fundada nas nomendo britânico Mapping Document quanto os levan- claturas oficiais, uma falta de concordância entre os tamentos da CNUCED mostram que as indústrias setores criativos ou que recorrem à criatividade em culturais representam, em valor econômico, uma seus processos de produção e de criação de novos parte relativamente pequena do novo setor de bens e serviços. indústrias criativas. No primeiro caso, o do MaA carência de dados quantitativos sistematizapping Document, são os serviços informáticos e dos sobre a economia do digital e sobre o grau de o software que formam o carro-chefe do setor, digitalização da economia é um outro problema que enquanto que para a CNUCED é o design que dificulta a compreensão e avaliação da economia predomina. criativa (KEA EUROPEAN AFFAIRS, 2009). As Em segundo lugar, a leitura mostra que o as- informações disponibilizadas por instituições privapecto econômico é predominante na construção de das ou públicas são coletadas via procedimentos indicadores na EC. Embora muitos pesquisadores metodológicos variados que não autorizam come organismos estejam interessados nos aspectos parações, nem acompanhamentos contínuos (VAN sociais e qualitativos, os resultados dos estudos DER POL, 2008). São custosas e cobrem somente que tomam essa orientação ainda são escassos um número restrito de indicadores pertinentes à (POIRIER, 2005). mensuração da dimensão econômica do digital, igEm terceiro lugar, a pesquisa inspira certas refle- norando quase a totalidade de seus aspectos quaxões referentes à construção de indicadores, assim litativos. Essa dificuldade é agravada pela natureza como à coleta de informações para a sua constru- dupla do digital, sendo ao mesmo tempo produto ção. Os quadros de referência da EC parecem per- e meio de produção. O grande número de dados tinentes para a definição de indicadores que visam necessários complica a sua aplicação e encarece a aperfeiçoar a avaliação e mensuração do impacto investigação. Indicadores são construídos sem defidas indústrias culturais/criativas sobre as condições nições claras e sem transparência em vários países socioeconômicas gerais. A natureza difusa e inter- do mundo, o que complica também as comparasetorial da EC sinaliza, no entanto, grandes dificul- ções internacionais (EUROPEAN INSTITUTE FOR dades em montar indicadores apropriados. COMPARATIVE URBAN RESEARCH, 2007). No 672

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final, as classificações ainda estão mais a serviço da retórica do que da pesquisa científica, revelando a urgência de definir e elaborar instrumentos metodológicos e estatísticos padronizados em âmbito internacional. De um outro ponto de vista, a dificuldade de determinar algum conjunto específico de indicadores mensuráveis está fundamentalmente na divergência das intenções e objetivos que aparecem em cada elo das longas cadeias da economia criativa. Os estudos e as políticas divergem em seus objetos, sendo que alguns priorizam a descrição e compreensão dos setores criativos, outros se preocupam mais com a definição de objetivos quantificáveis, e ainda outros se restringem à avaliação do impacto macroeconômico. De todo modo, a definição dos indicadores varia em função das intenções a respeito do seu uso, o que explica a multiplicidade de conceitos na literatura sobre a economia criativa, particularmente no que tange aos impactos socioeconômicos gerais. Esses impactos gerais diferem igualmente de uma área geográfica para outra, razão pela qual indicadores pertinentes num território podem ser inoperantes em outro. Por isso, o desenvolvimento de indicadores qualitativos fica restrito ao campo local e ao quadro urbano. As metodologias de natureza qualitativa, basicamente as pesquisas via entrevistas e preenchimento de questionários, podem ser viáveis em territórios delimitados. Em âmbito nacional, implicariam pesquisas de amplitudes sobredimensionadas. É notável que na maioria dos estudos a produção se apresenta como o aspecto mais elaborado. A participação cultural da população em geral e seus efeitos sociais e identitários permanecem relativamente pouco analisados, e os indicadores correspondentes se limitam aos dados quantitativos de consumo e não cobrem a totalidade das cadeias culturais e criativas. Por fim, acima das considerações mais propriamente econômicas, há o risco de que a própria noção de cultura possa ser diluída na noção de criaBahia anál. dados, Salvador, v. 22, n. 4, p.665-675, out./dez. 2012

tividade. Inúmeros autores insistiram recentemente nessa questão, propondo até mesmo o retorno à denominação “indústrias culturais” em vez de “indústrias criativas” (INTERNATIONAL JOURNAL OF CULTURAL POLICY, 2009).

CONSIDERAÇÕES FINAIS Fundamentalmente, o campo da EC trata de transformar a criatividade em inovação e a inovação em riqueza cultural, econômica e social; uma transformação que reforça as tecnologias sociais, as quais consolidam um modelo de negócios que tem crescido no mundo todo e gerado emprego e renda sustentáveis. No entanto, esse modelo de negócios ainda é pouco organizado, e muitos de seus atores nem sequer sabem que a ele pertencem e nele podem ser ativamente inseridos e beneficiados. Há uma grande divergência de categorias e parâmetros nas metodologias utilizadas por diferentes pesquisas. Diversos países utilizam como referência os indicadores reproduzidos nos relatórios de economia criativa (Creative Economy Report), da Conferência das Nações Unidas para Comércio e Desenvolvimento (UNITED NATIONES CONFERENCE ON TRADE AND DEVELOPMENT, 2010). No Brasil, tomou-se como referência para diagnosticar o campo criativo os relatórios das câmaras e colegiados setoriais e os planos setoriais da II Conferência Nacional de Cultura, realizada em 2010. A partir dessas bases e apoiando-se na interlocução com os parceiros institucionais, no dialogo construtivo com as pessoas envolvidas e na coleta de informações complementares por meio de aplicação de questionários, podem-se levantar informações e dados sobre atividades, demandas, gargalos, articulações e alvos de estímulo ao fomento de empreendimentos e de formação para competências criativas locais e nacionais. Vale observar, por fim, que a abordagem metodológica da EC, como adverte a SEC, não deve se 673


Economia criativa – conceitos e classificações

dar a partir do exame “dos insumos e/ou da propriedade intelectual do bem ou do serviço criativo”, mas da análise dos processos de criação e de produção, porque são mais importantes para explicar as implicações das articulações em cadeia.

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Bouzid Izerrougene, Lielson A. de Almeida Coelho, Henrique Tomé da Costa Mata

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Artigo recebido em 8 de outubro de 2012 e aprovado em 5 de novembro de 2012

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Bahia análise & Dados

Um metamodelo da economia criativa e seu uso para prospecção de políticas públicas Mario Cezar Freitas*

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Mestre em Ciência da Informação pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), especialista em Engenharia de Sistemas Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Diretor do Instituto Recôncavo de Tecnologia. mcezar@reconcavo.org.br

Resumo A formulação de políticas públicas para a economia criativa enfrenta vários desafios: a complexidade sistêmica, a falta de dados e informações, a necessidade de envolver os interessados no processo e a multiplicidade de atores. Este trabalho objetiva propor um metamodelo que contribua com o desenvolvimento de um processo estruturado para a prospecção de políticas públicas para a economia criativa, utilizando a dinâmica de sistemas. O metamodelo foi construído com componentes e relações essenciais de um sistema econômico, a partir da observação do autor sobre outros sistemas similares. O artigo apresenta conceitos da dinâmica de sistema e como usar o metamodelo. Conclui exemplificando experiência exitosa na adoção da dinâmica de sistema no processo de formulação de políticas públicas e possível uso do metamodelo como ponto de partida para a construção de modelos detalhados da economia criativa. Palavras-chaves: Dinâmica de sistemas. Metamodelo. Economia criativa. Abstract The formulation of public policies for the Creative Economy faces several challenges: the systemic complexity, lack of data and information, the need to involve stakeholders in the process and the multiplicity of actors. This article proposes a metamodel that can contribute to the development of a structured process for the exploration of public policy for the Creative Economy using dynamic systems. The metamodel was built with components and essential relationships of an economic system, based on the author’s observation on other similar systems. The article presents the concepts of dynamic systems, how to use the metamodel and ends exemplifying successful experience in adopting the dynamic system in the process of public policy formulation and possible use of the metamodel as a starting point building detailed models of the Creative Economy. Keywords: System dynamics. Meta-model. Creative economy.

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UM METAMODELO DA ECONOMIA CRIATIVA E SEU USO PARA PROSPECÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS

INTRODUÇÃO Economia criativa (EC) é o termo usado pelo Plano da Secretaria da Economia Criativa: Políticas, Diretrizes e Ações, do Ministério da Cultura (MinC), que a estabelece como a economia do intangível, do simbólico, definida [...] a partir das dinâmicas culturais, sociais e econômicas construídas a partir do ciclo de criação, produção, distribuição/circulação/difusão e consumo/fruição de bens e serviços oriundos dos setores criativos, caracterizados pela prevalência de sua dimensão simbólica” (BRASIL, 2011, p. 23).

Semelhante a outros sistemas complexos, principalmente devido à presença de grande quantidade de atores, especula-se que a EC possa sofrer as consequências indesejadas ou frustrantes de políticas públicas. As relações complexas e não lineares, entre atores e instituições que compõem sistemas semelhantes à EC, podem causar falhas e produzir efeitos decepcionantes. Como afirma Barbosa (2011), a “EC é múltipla e multidimensional”. A busca pela integração das estratégias de transformações de outras partes da economia e a própria EC, com as necessidades de distribuição justa de recursos, compõem um processo complexo no qual se relacionam elementos multidisciplinares e transversais: circuitos culturais, tecnologias, vocações, modelos de gestão, entre outros. Trata-se de um contexto problemático no qual se constatam ligações fracas, baixa confiança e associações tênues entre os agentes econômicos e as instituições de suporte. Em consequência, as tecnologias sociais “[...] carecem de apoio do Estado brasileiro para vicejarem”, como afirma Cláudia Leitão (BRASIL, 2011, p. 13). Por outro lado, é reconhecida a carência de dados estatísticos acerca da EC brasileira, devido a seu alto grau de informalidade: “[...] boa parte da produção e circulação doméstica de bens e serviços criativos nacionais não é incorporada aos relatórios estatísticos [...]”, conforme explicita o Plano da Secretaria da Econo678

mia Criativa (BRASIL, 2011, p. 30). Dados e informações são elementos cruciais para a formulação de políticas públicas. Com este quadro de referência, o desafio é encontrar uma abordagem que considere dados estatísticos e opiniões de especialistas, usando, para tanto, um aparato teórico que promova a maior participação dos interessados e envolvidos, além de possibilitar o estabelecimento de cenários e de aumentar as contribuições para a formulação de políticas públicas pertinentes. Para atender a esse desafio, a proposta deste trabalho é a formulação de um modelo baseado na dinâmica de sistemas. Geralmente, modelos são construídos a partir de razões e necessidades, como, por exemplo, explicar comportamentos dinâmicos, descobrir novas questões, delimitar resultados em domínios plausíveis, esclarecer incertezas, demonstrar consequências de decisões, disciplinar o diálogo, educar e revelar que o aparente simples pode ser complexo ou vice-versa. Ante o exposto, o presente artigo objetiva propor um metamodelo que contribua para o desenvolvimento de um processo estruturado, que instrumentalize os tomadores de decisão para formular e prospectar políticas públicas para a EC, utilizando a dinâmica de sistemas. Além desta introdução, o trabalho se estrutura da seguinte forma: os procedimentos metodológicos, informações e caracterização da EC, a proposta do metamodelo, conceituações sobre a dinâmica de sistemas e as considerações finais.

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS Este trabalho faz parte de um projeto maior para modelar a EC. A primeira parte do projeto constitui a construção do metamodelo. Na segunda parte, a partir do metamodelo, deverão ser construídos modelos detalhados para áreas específicas da EC, usando-se parâmetros reais, disponibilizados por instituições que levantam e publicam dados e inBahia anál. dados, Salvador, v. 22, n. 4, p.677-686, out./dez. 2012


Mario Cezar Freitas

formações da EC. Após a validação de todos os modelos, poder-se-á simular cenários e prospectar políticas. Já este artigo limita-se à construção do metamodelo. Neste sentido, foi prevista uma pesquisa bibliográfica sistemática que respondesse à questão específica: Quais componentes e relações têm sido definidos como parte de modelos usados para representar, analisar ou estudar a EC? O objetivo da revisão sistemática da literatura é realizar um censo relacionado com a modelagem da EC. Com base nos resultados obtidos e na observação empírica, constrói-se o metamodelo que visa a demonstrar os principais componentes e relações – a estrutura – da EC. A busca sistemática na literatura foi realizada na base de dados bibliográfica da System Dynamics Society e no portal de periódicos da Capes, aplicandose as expressões ou vocábulos: creative ­economy, framework, economic model. O exame dos títulos e dos resumos resultantes das buscas bibliográficas não correspondeu ao critério estabelecido para aproveitamento do material neste estudo. Na sequência, foi construído o metamodelo com base na experiência empírica do autor, com o auxílio do trabalho de Maldonado (2012) sobre a modelagem do Sistema Brasileiro de Software.

despontam como um setor econômico-chave, com mais de meio milhão de londrinos nelas diretamente trabalhando ou em ocupações em indústrias correlatas [...]. Ainda no Reino Unido, vistas em conjunto, as indústrias criativas são responsáveis por £112.5 bilhões das riquezas do país, ou seja, 5% do PIB, e por empregar 1,3 milhões de pessoas. Em exportação, contribuem com £ 10,3 bilhões da balança comercial.

Importa ressaltar que esses dados incluem atores diferentes daqueles adotados pelo Plano da Secretaria da Economia Criativa do MinC, como, por exemplo, a publicidade e o software. Ainda assim, os dados demonstram a importância da EC e o seu grau de complexidade. Dados levantados por Vogel (2007) sobre o mercado norte-americano de entretenimento mostram que são geradas receitas anuais em torno de US$ 300 bilhões, e tem sido significativa a presença na categoria de serviços exportados dos Estados Unidos, em 2006, na balança comercial daquele país. Dados publicados na página da web indicam a estimativa do Ministério da Cultura para as atividades culturais: elas movimentam entre 4% e 5% do PIB brasileiro. A mesma fonte acrescenta: Levantamento do Banco Mundial (BIRD) de 2003 aponta que a cultura, como atividade econômica, gerou 7% do PIB mundial.

CONSIDERAÇÕES SOBRE A ECONOMIA CRIATIVA

Somente na Grã-Bretanha, o setor rende 8,2% do PIB local. Segundo os dados do BIRD, a criação, produção, difusão e con-

Segundo Bendassolli (2007, p. 5),

sumo de bens culturais registraram cresci-

[...] estima-se que, globalmente, as indústrias

mento médio de 6,3% em 2003, acima da

criativas tenham gerado, em 1999, uma recei-

média do conjunto da economia, de 5,7%

ta ao redor de US$ 2,2 trilhões, respondendo

(BRASIL, 2007).

por 7,5% do PIB mundial [...]. Nos Estados Unidos, há uma estimativa de que, em 2001, tais indústrias tenham contribuído com 7,75% do PIB do país, por 5,9% do número nacional de empregos, e por US$ 88,97 bilhões em exportações [...]. Em cidades de vanguarda, como Londres, as indústrias criativas agora

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No nível microeconômico, algumas peculiaridades da EC merecem ser destacadas, como ressalta Vogel (2007): a. Os lucros de um produto de grande popularidade são aplicados para compensar perdas de muitas outras mediocridades produzidas. 679


UM METAMODELO DA ECONOMIA CRIATIVA E SEU USO PARA PROSPECÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS

b. Os gastos com marketing por unidade pro- plexo que requer instrumentos, dados, informações duzida são proporcionalmente grandes, ob- e processos estruturados e, de preferência, com a servando-se que grande parte dos produtos participação de amplo espectro dos interessados tem ciclo de vida curto. em dispor de soluções e em possibilitar a formulac. Os custos de capital ção de políticas. Para atensão altos para alguns Os componentes do der a este requisito é que se setores criativos e propõe, na seção seguinte, a modelo proposto são: observam-se tendênadoção de um metamodelo. capital humano, consumidor, cias de surgirem olifinanciamento, campos gopólios, o que já se criativos e a indústria criativa constata, por exemplo, PROPOSTA DO na distribuição de música e nas indústrias de METAMODELO PARA POLÍTICAS PÚBLICAS jogos, parques temáticos etc. DA ECONOMIA CRIATIVA d. O custo de produção é independente da quantidade de consumidores, isto é, o conSegundo Bunge (2003 apud MALDONADO, sumo por uma pessoa não reduz o total dis- 2012, p. 75), há necessidade de caracterizar componível para o consumo de outra, a exemplo ponentes e relações-chave de um modelo de sistede filmes e programas de televisão. ma complexo. Neste sentido, o referido autor sugee. A tecnologia tem proporcionado mais facili- re que modelos são compostos por componentes, dade e custos reduzidos para fabricar, distri- ambientes, estrutura e mecanismos. Atendida esta buir e entregar produtos e serviços. condição, é possível perceber uma visão mais amf. Algumas mídias tendem a não se extinguir, ape- pla e sintética da EC, possibilitando orientar qualsar de outras mais avançadas e com mais con- quer análise que venha a ser feita sobre a relação teúdo tecnológico, como é o caso da televisão, entre os seus componentes, principalmente quanto que não impediu as pessoas de irem ao teatro. à sua natureza dinâmica e à sua complexidade. A g. Produtos e serviços para entretenimento têm esta visão, denomina-se metamodelo da EC, conapelo universal, o que amplia mercados e forme se vê na Figura 1. viabiliza lucros, a exemplo da música. Este é um modelo preliminar a ser considerado Quanto ao papel dos estados diante deste qua- como ponto de partida para um possível debate. Os dro, Vogel (2007) ressalta algumas questões im- componentes do modelo proposto são: capital huportantes a serem consideradas na formulação de mano, consumidor, financiamento, campos criativos políticas públicas para a EC: e a indústria criativa. a. Como combater os monopólios? O ambiente é endógeno em natureza e compartib. Quais são as necessidades de regulações e lha espaço com os demais componentes. Conforme intervenções nos mercados? Bunge (2003 apud MALDONADO, 2012), a estrutura c. Quais suportes e subsídios são necessários é mostrada no metamodelo com relações e ligações para alguns setores? entre e dentro dos componentes, sendo estes bad. Qual a escolha política entre intervir e deixar sicamente fluxos de conhecimentos, informações, o mercado livre? pessoas e capital. Por último, os mecanismos que e. Devem-se adotar políticas de quotas para estão por trás do metamodelo são os vários tipos de proteger setores do mercado? troca usados pelos agentes econômicos da EC. Essas e tantas outras questões, enfrentadas A Figura 1 mostra os componentes citados anpelo gestor público, caracterizam um ambiente com- teriormente, ilustrando as ligações, fluxos e meca680

Bahia anál. dados, Salvador, v. 22, n. 4, p.677-686, out./dez. 2012


Mario Cezar Freitas

nismos. Os componentes não agrupam atores ou instituições; destinam-se a representar funções específicas ou processos executados pelos atores, mas que podem ser reunidos, adotando-se a sua missão principal como critério de agrupamento. Por exemplo, diferentes atores institucionais (bancos, agências públicas de fomento, empresas, entre outros) são responsáveis por aplicar e investir capitais financeiros, e, por isto, os fluxos relativos a essas movimentações podem ser parte do componente financiamento. O componente da caixa campos criativos sintetiza o escopo dos setores criativos previstos no Plano da Secretaria da Economia Criativa (BRASIL, 2011, p. 29), que possibilitará ao poder público qualificar e quantificar os atores, as atividades, os impactos e o desenvolvimento, com o propósito de alocar recursos e priorizar ações. Esses campos são categorizados em patrimônio, expressões culturais, artes de espetáculo, audiovisual e livro e criações funcionais. A leitura do diagrama pode ser iniciada pela caixa indústria criativa, que fornece produtos e serviços para o consumidor. Este, por sua vez, contribui com fundos para compor financiamentos, a partir dos quais são realizados investimen-

tos no capital humano e nos campos criativos. O capital humano, qualificado nos diversos campos criativos, possibilita estabelecer capacidades produtivas para a indústria criativa e, assim, fecha-se um caminho retroalimentado. Na parte inferior do diagrama, iniciada a leitura pelos investimentos em campos criativos, fica claro que estes podem disponibilizar mais capacidade criativa para a indústria criativa, fechando-se, assim, outro caminho retroalimentado. Os ciclos retroalimentados – ou feedbacks – explicam comportamentos exponenciais de uma variável, como será visto na seção 5 deste artigo. Esta causalidade circular é muitas vezes desprezada pelos tomadores de decisão, conforme estudo citado em Vennix (2001). O metamodelo proposto pode ser a base para a construção de diagramas de causas e efeitos, que representam as interações relevantes entre variáveis pertencentes aos respectivos componentes da Figura 1. A visualização das relações entre estas macrovariáveis ajuda o entendimento da estrutura da EC e comunica melhor do que a linguagem descritiva, reduzindo possíveis ambiguidades que ocorrem muitas vezes em discussões sobre problemas complexos.

Capital humano

Capital humano qualificado

Produtos estrangeiros Campos criativos

Capacidade criativa

Indústria criativa

Produtos serviços

Consumidor Investimento em capital humano

Capital privado e público Investimento em campos criativos

Financiamento

Taxas e contribuições

Figura 1 Metamodelo da EC Fonte: Elaboração do autor.

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UM METAMODELO DA ECONOMIA CRIATIVA E SEU USO PARA PROSPECÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS

Para cada componente é necessário definir os principais fluxos de entrada e de saída, sejam tangíveis ou não, quando for necessário construir um modelo específico como detalhe do metamodelo. Por exemplo, caso se deseje desenvolver um modelo para o setor de audiovisual, buscando atender aos desafios previstos no Plano da Secretaria da Economia Criativa (BRASIL, 2011, p. 142), será necessário identificar para cada componente os respectivos fluxos de entrada e saída. A título de exemplo, será detalhado apenas o componente financiamento. Os seguintes fluxos de entrada, fluxos de saída e mecanismos podem ser previstos: a. Volume de capital para investimentos. b. Taxas e contribuições arrecadadas pelas salas de exibição. c. Investimento para implantação e desenvolvimento de Arranjo Produtivo Local (APL). d. Investimentos para incentivar a formação em audiovisual etc. O metamodelo sintetiza os principais componentes e relações que existem na EC e funciona como ponto de partida para a construção de modelos detalhados.

CONCEITUAÇÕES SOBRE A DINÂMICA DE SISTEMAS A dinâmica de sistema (DS) surgiu como resultado dos trabalhos do professor Jay Forrester, no Massachusetts Institute of Tecnology (MIT), na década de 1950, e se baseia no uso de sistemas de equações diferenciais. Atualmente, existem diversos programas aplicativos que suportam os modelos, como Isee System iThink, Vensim, Consideo. Foi Forrester quem apontou a aplicação da DS em sistemas sociais, argumentando que os métodos usados para controlar e gerenciar sistemas físicos poderiam ser adaptados para problemas gerenciais. A DS pode ser definida como um conjunto de ferramentas e técnicas que permite modelar a es682

trutura e a dinâmica de sistemas complexos, baseando-se no uso de simulações computacionais, com o propósito de formular políticas mais efetivas (STERMAN, 2000). O propósito é obter entendimento das causas estruturais do comportamento de um sistema. Isto implica aumentar o conhecimento do papel de cada elemento do sistema, no sentido de avaliar como diferentes ações sobre diferentes partes do sistema acentuam ou atenuam as tendências comportamentais. Para o interesse deste trabalho, um sistema pode ser representado por um conjunto de elementos incluídos e considerados pelos seus comportamentos e pelos relacionamentos entre eles, sendo que podem ocorrer retroalimentações (ou feedback). O diagrama causal (DC) representa os elementos do sistema e as relações entre eles. Os elementos correspondem a variáveis, e os relacionamentos entre elas são representados por setas marcadas com um sinal (+ ou -), indicando o tipo de influência que uma exerce sobre as outras. Um sinal “+” junto à extremidade da seta significa que uma variável produz mudanças na mesma direção da outra variável. Um sinal “–” significa o efeito oposto. As figuras mostram estas situações com duas variáveis, A e B: +

A

B

A

-

B

Figura 2 Relações entre variáveis Fonte: Elaboração do autor.

Uma cadeia fechada de relacionamentos é chamada um laço (ou feedback). Quando abrimos uma torneira para encher uma vasilha com água, o volume aumenta, e assim que notamos que está perto de encher, vamos fechando, até que complete o nível desejado. Nesta ação houve um feedback e uma meta a ser atingida, que foi o nível de água desejado. Este tipo de laço é denominado negativo porque há a definição da meta e funciona como elemento estabilizador em Bahia anál. dados, Salvador, v. 22, n. 4, p.677-686, out./dez. 2012


Mario Cezar Freitas

sistemas. Os laços positivos tendem a desestabilizar os modelos. Por exemplo, na Figura 3, há três feedbacks formados pelas variáveis ABED, DBED e ABECA. C

B A

E D Figura 3 Exemplos de laços Fonte: Elaboração do autor.

É importante o uso deste conceito para entender que a estrutura do sistema define o seu comportamento. O diagrama causal não explicita os elementos do sistema que representam acumulações de recursos e como ocorrem as respectivas alterações. Por exemplo, a variável A da Figura 3 pode representar a variável “população”, e existem dois laços que podem alterar o seu valor, mas isto não fica explícito. Ou seja, não há informação se a população cresce ou diminuiu. Para resolver este problema, a DS prevê outro tipo de diagrama, denominado modelo estoque-fluxo.

nascimentos

população

taxa de natalidade

Os modelos de estoque-fluxo servem como indicadores do estado do sistema em um determinado tempo e demonstram com que velocidade de mudança eles ocorrem. Por exemplo, na Figura 4 – diagrama estoque-fluxo –, a população de um território é uma variável tipo estoque que representa o estado de um sistema. As variáveis nascimento e morte são do tipo fluxo porque determinam o aumento e a redução da variável população. No mesmo diagrama, taxa de natalidade e expectativa de vida são parâmetros que determinam valores dos fluxos nascimento e morte, respectivamente. Os modelos estoque-fluxo possibilitam quantificar resultados mediante simulações que produzem resultados gráficos, que, por sua vez, mostram o comportamento do sistema. Há uma vasta literatura sobre a modelagem de sistemas e sobre sistemas dinâmicos que detalham os conceitos aqui apresentados.

O POTENCIAL DA DINÂMICA DE SISTEMAS PARA APOIAR A FORMULAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS Meadows e Robinson (apud STAVE, 2002, p. 139) identificaram a principal frustração na formulação de políticas sociais: Mesmo na era moderna da ciência e da industrialização, decisões políticas sociais são baseadas em modelos mentais comunicados de forma incompleta. As premissas e as razões em

mortes

expectativa de vida

Figura 4 Diagrama estoque-fluxo Fonte: Elaboração do autor.

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UM METAMODELO DA ECONOMIA CRIATIVA E SEU USO PARA PROSPECÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS

cia de atribuir efeitos indesejáveis a fontes exógenas. e. Excesso de confiança: gestores públicos sulógica, se há alguma, leva a uma política social bestimam os limites dos seus conhecimenque não está clara para a maioria das pessotos e desprezam a complexias afetadas pela O processo de definição e dade inerente ao problema. política (tradução Essas razões requerem descrição da estrutura por meio nossa)1. A complexidade da EC, ferramentas para apoiar a de diagramas ajuda a organizar conforme explicitado anteparticipação pública na forinformações e a ressaltar riormente, a quantidade e a mulação de políticas para a conexões dentro do sistema 2 diversidade de stackholders , EC. Algumas opções simples com seus conflitos inevitáveis, pressionam para que podem ser consideradas, tais como audiência públipolíticas públicas sejam estabelecidas e avaliadas ca, painel de especialistas para responder questões, com mais participação, o que caracteriza um desa- entre outras. Todas estas opções dependem de um fio para o Estado. “facilitador” e da sua habilidade para estruturar as disEm outras áreas econômicas registram-se al- cussões e definir prioridades. A alternativa proposta guns sucessos por meio de incentivos e regulações, neste trabalho é a dinâmica de sistemas que oferece porém os stackholders acatam mais facilmente as recursos consistentes e rigorosos para solucionar propolíticas públicas se eles entenderem as causas blemas, após definido o escopo e elucidada a visão dos problemas e as consequências das decisões. dos participantes e, por fim, formuladas as conexões Ghaffarzadegan, Lyneisb e Richardsona sistêmicas por meio de diagramas de causas e efeitos. (2011) citam cinco características de problemas Segundo Stave (2002, p. 143), são cinco as cacom políticas públicas que tornam as soluções de racterísticas que a dinâmica de sistemas possibilita difícil formulação: para a formulação de políticas públicas: a. Resistência política: muito comum em sistea. Foco no problema. mas complexos, principalmente na ausência b. Busca das causas do problema na estrutura de feedbacks. do sistema. b. Necessidade de experimentação e o custo c. Foco nos pontos sensíveis e de potenciais da experimentação: sistemas não são reverconflitos. síveis, e uma vez implementada uma decid. Retroalimentação para aprendizagem e desão ineficaz, os resultados são mudanças no senho de políticas. sistema que pioram as condições anteriore. Documentação do processo. mente observadas. O propósito da dinâmica de sistemas é focar na c. A necessidade de persuadir os stackholders: investigação e modelagem de um problema espediscussões que fogem do mérito do proble- cífico ao invés de focar todo o sistema. A questãoma dificultam a tomada de decisão. chave que pode ser resolvida pela dinâmica de sisd. A necessidade de uma perspectiva endóge- temas é do tipo: Qual comportamento problemático na: os tomadores de decisão têm a tendên- estamos tentando mudar? A busca de conexões causais fica mais fácil quan1 Even in the modern age of science and industrialization social policy do se visualiza o contexto no qual as relações existem. decisions are based on incompletely communicated mental models. O processo de definição e descrição da estrutura por The assumptions and reasoning behind a decision are not really ­examinable, even to the decider. The logic, if there is any, leading to a meio de diagramas ajuda a organizar informações e social policy is unclear to most people affected by the policy. 2 a ressaltar conexões dentro do sistema. Partes interessadas. que uma decisão se baseou não são realmente

examináveis, até mesmo para quem decidiu. A

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Mario Cezar Freitas

Os pontos de intervenção no sistema são mais fáceis de ser identificados quando os participantes respondem a questão do tipo: Onde podemos intervir no sistema? Com a modelagem do sistema e as simulações, podem-se obter benefícios significativos para o envolvimento dos stackholder, pois, como observa Sterman (2000), a aprendizagem ocorre quando as pessoas recebem feedback dos efeitos de suas ações. Todas essas características permitem que os modelos obtidos com a aplicação da dinâmica de sistemas forcem a consistência interna que é, às vezes, difícil de alcançar em discussões. Stave (2002) relata uma experiência de sucesso em modelagem, com a aplicação da dinâmica de sistemas no envolvimento público, ao tratar o problema de congestão de tráfico e da qualidade do ar na área metropolitana de Las Vegas, Nevada. Com este fim, foi formado um grupo de 30 stackholders, em dezembro de 2000, voluntários, que se reunia uma vez por mês e, no decorrer de um ano, apresentou recomendações para solucionar o problema. Os participantes escolhidos na comunidade e representando diversos segmentos não tinham nenhum conhecimento em particular sobre o sistema de tráfego que não fossem as próprias observações como usuários do sistema. Um modelo foi construído com ajuda de facilitadores habilitados na aplicação da dinâmica de sistemas e permitiu simular cenários de 1990 até 2025. A disponibilidade do modelo possibilitou aos participantes focar no mérito das alternativas – em vez de dar atenção a quem propôs – e, com isto, chegar ao consenso. A modelagem de sistemas econômicos e sociais é relativamente recente e iniciada no final do século XX, conforme cita Sterman (2000). Vários trabalhos de modelagem já influenciaram políticos e governos, e são notáveis os resultados dos trabalhos do Clube de Roma, que, em conjunto com o MIT, publicou o relatório Os Limites do Crescimento. Esse relatório tratou de problemas cruciais para o futuro desenvolvimento da humanidade, tais como energia, poluição, saneBahia anál. dados, Salvador, v. 22, n. 4, p.677-686, out./dez. 2012

amento, saúde, ambiente, tecnologia e crescimento populacional, tendo servido de referência para as discussões mantidas na Conferência Rio-92.

CONSIDERAÇÕES FINAIS O pensamento sistêmico estabelece que a compreensão do funcionamento de um sistema requer o conhecimento dos eventos que interagem com o meio onde ele atua, os padrões de comportamentos e a estrutura dos seus elementos, bem como suas partes constituintes. Em sistemas complexos, causas e efeitos são distantes no tempo e espaço. Decisões tomadas em um determinado momento podem apresentar resultados em tempos mais distantes. Fatos ou eventos que ocorrem hoje podem produzir efeitos só constatados em tempos posteriores. Estas propriedades dos sistemas são razões suficientes para a busca de técnicas que possibilitem um tratamento especial para enfrentar o desafio do estabelecimento de políticas públicas para a EC. As relações entre as variáveis da EC não são todas lineares, nem diretas entre si, configurando-se um sistema complexo. Este trabalho propõe que seja adotada a modelagem da EC a partir do metamodelo apresentado. O modelo proposto ainda não passou por uma validação e está sendo apresentado como uma provocação àqueles interessados ou envolvidos na formulação de políticas públicas para a economia criativa.

REFERÊNCIAS BARBOSA, F. Economia criativa: políticas públicas em construção. Brasília: Ministério da Cultura, 2011. p. 100-104. BENDASSOLLI, P. F.; WOOD JR., T. Indústrias criativas e a “virada cultural”. [S.l: s.n.], 2007? Disponível em: <http://www. pedrobendassolli.com/pesquisa/artigo2.doc>. Acesso em: 2 set. 2012. BRASIL. Ministério da Cultura. Plano da Secretaria da Economia Criativa: políticas, diretrizes e ações, 2011-2014. Brasília: Ministério da Cultura, 2011. 148 p.

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UM METAMODELO DA ECONOMIA CRIATIVA E SEU USO PARA PROSPECÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS

BRASIL. Ministério da Cultura. Participação da cultura no PIB começa a ser apurada pelo IBGE em 2007. Brasília: Miniatério da Cultura, 10 jan. 2007. Disponível em: < http://www.cultura. gov.br/site/2007/01/10/participacao-da-cultura-no-pib-comecaa-ser-apurada-pelo-ibge-em-2007/ >. Acesso em: 5 set. 2012. GHAFFARZADEGAN, N.; LYNEISB, J.; RICHARDSONA, G. How small system dynamics models can help the public policy process. System Dynamics Review, v. 27, n. 1, Jan.-Mar., p. 22-24, 2011. MALDONADO, M. U. Dinâmica de sistemas setoriais de inovação: um modelo de simulação aplicado ao setor brasileiro de software. 2012. 278 f. Tese (Doutorado em Engenharia e Gestão do Conhecimento) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2012.

STAVE, K. Using system dynamics to improve public participation in environmetal decisions. System Dynamics Review, v. 18, n. 2, Summer, p. 139-167, 2002. STERMAN, J. Business dynamics: system thinking and modelling for a complex world. Boston: McGraw-Hill, 2000. VENNIX, J. Group model building: facilitating team learning using system dynamic. Chichester: Wiley, 2001. VOGEL, Harold. Entertainment industry economics: a guide for financial analysis. 7. ed. Cambridge: Cambridge University Press, 2007.

Artigo recebido em 6 de setembro de 2012 e aprovado em 5 de novembro de 2012

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Bahia análise & Dados

Criativa Birô: políticas públicas para o campo da economia criativa Jorge Claudio Machado da Silva* Pós-graduando do Curso de Formação de Gestores Culturais dos Estados (MinC)/Fundaj/UFRPE), graduado em Educação Artística com habilitação em Música pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Membro do Fórum Nacional de Música e da Cooperativa da Música Potiguar (Compor/RN). claudiomac84@gmail.com *

Resumo Este artigo tem como objeto o Programa Criativa Birô – em fase de implantação pela Secretaria de Economia Criativa do Ministério da Cultura (MinC) – e pretende fazer uma análise sobre sua realização e utilização na construção de políticas públicas nos campos relacionados à economia criativa e suas possibilidades de desenvolvimento. A análise não se detém ao aspecto econômico, mas abrange também outros ­ângulos relacionados às necessidades sociais, além de ponderar sobre a inserção no ­contexto dos novos arranjos econômicos e políticos. Também examina a participação ­contex­tualizada com as novas tecnologias e formas de consumo e fruição cultural. Palavras-chave: Criativa Birô. Cultura. Economia criativa. Políticas públicas.

Abstract This article studies the program Criativa Birô, which is under implementation stage by the Creative Economy Secretary (Secretaria de Economia Criativa) of MINC (Ministry of Culture), and analyses its implantation and use on setting public policies in the area related to the creative economy and its possibilities of development. The analyse not being limited to the economic aspect, but also covering other social needs, pondering its participation in the context of new economical and political arrangements. It also examines the participation contextualized with new technologies and new kinds of cultural consumption and fruition. Keywords: Creative Birô. Culture. Creative economy. Public policies.

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CRIATIVA BIRÔ: POLÍTICAS PÚBLICAS PARA O CAMPO DA ECONOMIA CRIATIVA

INTRODUÇÃO Economia criativa é um assunto que está na moda, e por isso há grande risco de se transformar em modismo, fugindo de seu real escopo. Para evitar tal caminho, é preciso transmitir o que há por trás do jargão da economia criativa, seus conceitos, origens e desdobramentos. É fato que as atividades culturais e artísticas são fatores presentes e atuantes na economia. Contudo, os estudos em tal campo não são de tempos tão remotos quanto os das relações econômicas. Aliás, são bem recentes. Primeiramente, o campo de estudo era a economia das artes.

Definição do Programa Criativa Birô

Até pouco mais da metade do século XX, as

O Criativa Birô é um programa criado pelo Ministério da Cultura – Secretaria de Economia Criativa – e será instalado nos estados por meio de convênios, visando fomentar e promover a economia criativa. O plano da Secretaria de Economia Criativa (BRASIL, 2011, p. 68) define as criativas Birô como

(raras) investidas dos economistas sobre o

[...] escritórios fixos e/ou itinerantes voltados

campo da cultura estiveram circunscritas à

para o atendimento e apoio aos profissionais

dita “alta cultura” [...] fora do âmbito das pre-

e empreendedores criativos com a finalidade

ocupações dos teóricos da economia ficaram

de promover e fortalecer as redes e arran-

não apenas as culturas populares mas, tam-

jos produtivos dos setores criativos brasilei-

bém, as indústrias culturais que, ao longo de

ros, por meio de cursos de capacitação para

toda a primeira metade do século XX, foram

modelos e gestão de negócios, assessoria

estudadas como mais um ramo no âmbito da

técnica e jurídica, entre outros serviços. Em

economia industrial (MIGUEZ, 2009, p. 27).

parceria com os governos estaduais, Sistema

Somente na segunda metade do século XX começou-se a falar em economia da cultura, incluindo as culturas populares e indústrias culturais. A partir dos anos 90, estabeleceu-se um novo recorte: a economia criativa, que, além dos campos da economia da cultura, abrange também os setores das artes funcionais: moda, gastronomia, design, artesanato e artes digitais. Iniciou-se na Austrália, mas teve grande destaque na Inglaterra, onde o governo britânico adotou o tema como prioridade e instituiu políticas públicas voltadas a desenvolver atividades relacionadas. O termo tem sido amplamente utilizado, mas precisa ser bem compreendido e difundido. Não se pode esquecer de todo aparato que o baliza na economia da cultura e sua correlação econômica com outros campos dos quais os novos setores são oriundos. Não se trata de uma nova economia, mas de um novo recorte do tema contextualizado em seus modelos e arranjos econômicos 688

atuais. Por isso, é prudente o exercício de olhar para trás, analisar sua origem e fundamentos, para não se reinventar a roda, mas gerar conhecimento partindo dos pressupostos já estabelecidos e referendados.

S, entre outros parceiros, a SEC propõe a estruturação de pilotos de cinco criativas birôs, uma para cada região brasileira.

Os cinco pilotos já estão em fase de implantação. O MinC tem sinalizado com a possibilidade de instalação das criativas birôs em todas as capitais, priorizando as cidades-sede da Copa de 2014. No Nordeste, o convênio já foi firmado com Pernambuco, sendo uma escolha compreensível, pois o estado tem uma posição de destaque política e econômica na região, sendo um polo industrial e criativo. Recife possui uma cultura pulsante e plural, e na cidade já estão sediadas a regional MinC-Nordeste e a Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), órgãos criados para atender toda a região, atuando prioritariamente no campo da cultura. É certo que tais instituições não alcançam a capilaridade que almejam devido a limitações geográficas e de pessoal. Por isso, acabam por favorecer muito mais Pernambuco que outros estados. Bahia anál. dados, Salvador, v. 22, n. 4, p.687-696, out./dez. 2012


Jorge Claudio Machado da Silva

Não obstante, o Criativa Birô não será instalado É certo que o empreendimento criativo é difecom escopo de atuação regional, mas como pro- rente do tradicional, pois a intangibilidade não se jeto-piloto com o objetivo de fortalecer e fomentar mensura cartesianamente, e o tempo para uma a economia criativa dentro da área de atuação do criação não pode ser controlado tal qual em uma estado. A intenção é disponilinha de produção. O relóbilizar informações relativas A intenção é disponibilizar gio, com seu cruel controle, à economia criativa, qualifié adequado para o modelo informações relativas à economia cando profissionais, princi- criativa, qualificando profissionais, industrial, no qual se explopalmente na área de gestão ra ao extremo o tempo à [...] por meio de capacitações e administrativa e financeira disposição da mão de obra consultorias especializadas de empreendimentos criacontratada. O modelo criatitivos, por meio de capacitações e consultorias vo rege-se pela liberdade em diversos aspectos, especializadas. principalmente em relação ao tempo para a criaHá que se compreender, também, que a econo- ção. Contudo, apesar de suas peculiaridades, nemia criativa não se resume ao campo da arte ou da cessita ser bem gerido, organizado e explorado, a cultura. O plano da Secretaria de Economia Criativa fim de obter sua sustentabilidade, diferentemente (BRASIL, 2011, p. 23) mostra que os setores criativos do modelo industrial de replicação de criações, são mais abrangentes que os culturais. Foram inclu- mas de forma que a singularidade e a criatividade ídos setores oriundos das criações funcionais, como sejam seu ativo principal. moda, design, arquitetura, artesanato e artes digitais. Por se tratar de novo escopo, a forma de abrangência e construção de políticas voltadas a tais áreas CRIATIVA BIRÔ COMO POLÍTICA CULTURAL precisa ser bem estruturada. Esses campos, de certa forma, já possuem históricos de empreendimentos bem gerenciados economicamente. E é provável que A política cultural e o conceito do Criativa Birô o mais adequado para eles fossem capacitações que estimulassem o olhar para a criatividade, evidencianA política cultural é definida como um do seu valor para o contexto econômico atual. [...] conjunto de intervenções realizadas pelo Voltando o foco para o setor da arte e da cultura, Estado, instituições civis e grupos comunitáocorre o inverso: a grande carência deste campo é rios organizados a fim de orientar o desenvolde conhecimento e profissionais capacitados nas vimento simbólico, satisfazer as necessidades áreas de gestão, financeira, marketing, entre outras. culturais da população e obter consenso para O referido plano (BRASIL, 2011, p. 44) define-se um tipo de ordem ou de transformação social com a “[...] finalidade de formular, implementar e (CANCLINI, 2001, p. 65). monitorar políticas públicas para um novo desenTrazendo tal conceito para o campo da econovolvimento, fundamentado no estímulo à criativida- mia criativa, cabe ao poder público promover e estide dos empreendedores brasileiros, assim como na mular a sociedade a desenvolver ações voltadas ao inovação de seus empreendimentos”. Percebe-se tema, convergindo para um desenvolvimento susque há ações voltadas para o setor artístico-cultu- tentável não só economicamente, mas que abranja ral, mas não ficou evidente, com as informações até as diversas áreas sociais. aqui expostas, a forma de atuação junto aos setores A economia criativa tem sido reverenciada munartístico-funcionais para a promoção e valorização dialmente desde sua ascensão na Inglaterra, pelo da criatividade. desenvolvimento que trouxe ao Estado britânico. Bahia anál. dados, Salvador, v. 22, n. 4, p.687-696, out./dez. 2012

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Para chegar a esse ponto, políticas públicas vol- natureza é centrada na espécie, a sociedade foca a tadas ao setor entraram como pauta prioritária no sobrevivência do indivíduo em detrimento da espégoverno. No caso do Brasil, para que se atinjam cie. Esse modelo, que busca produzir ao máximo, as expectativas, o poder público precisa promover gerando um consumo exacerbado disfarçado de ações em que a criatividade desenvolvimento, não foi catenha vez e voz, com a vaO diferencial está no detalhe [...]. paz de trazer um real avanço lorização do que é intangísocial, que vai muito além do Esta singularidade não vem das vel, do conhecimento aliado campo econômico. Tal molinhas de produção chinesas ou à criatividade. Assim, mais delo é insustentável. É viável coreanas, mas de países que pessoas poderão se interesagora, no imediato, mas não passaram a investir no intangível, sar em investir, pesquisar e se sabe se será daqui a alguna chamada economia criativa atuar no campo, e as ações mas décadas. Crises econôcriadas reverterão em benefício da sociedade. micas nos principais centros ocorridas nos últimos Embora toda atividade tenha uma economia, anos evidenciam tal realidade. nem todo o setor cultural pode ser entendido como O modelo de produção industrial desenvolveu-se atividade econômica. Neste campo, há diversas tanto que o mercado contemporâneo é marcado pela ações dependentes economicamente e estrutural- competitividade, com produtos cada vez mais similamente de políticas públicas para sua manutenção res. O diferencial está no detalhe que faz com que o e funcionamento. E é provável que nunca venham consumidor decida entre um ou outro. Esta singulaa ser sustentáveis do ponto de vista financeiro, por ridade não vem das linhas de produção chinesas ou conta de suas características, mas são necessárias coreanas, mas de países que passaram a investir no à construção e manutenção da nação. Logo, o in- intangível, na chamada economia criativa. vestimento neste setor tem seu retorno também em O setor da economia da cultura, até 50 anos intangibilidade, o que não pode ser medido de acor- atrás, pouco era explorado e estudado, tanto que do com o dinheiro empregado, mas pelo impacto nem a “presença das indústrias culturais foi capaz social, pela preservação e construção da identida- de abrir espaço próprio no campo da teoria econôde. Esta ponderação faz-se necessária antes que mica” (MIGUEZ, 2009, p. 27). Este setor protagonise use o termo economia criativa para justificar a zou uma reviravolta após a Inglaterra e a Austrália, omissão do setor público diante de atividades cul- na década 90, passarem a desenvolver políticas turais que precisam ser preservadas e promovidas. públicas voltadas para a economia criativa, indo Cabe à sociedade fiscalizar tais ações e cobrar do além dos setores ligados às artes. Contudo, esta poder público a sua manutenção. “não parte do zero. Muito ao contrário, beneficia-se do importante e indispensável repertório de refleCriativa Birô como possibilidade de xões que, ao longo dos últimos cinquenta anos, deu desenvolvimento corpo ao que chamamos de economia da cultura” (MIGUEZ, 2009, p. 30). O mundo capitalista é centrado no indivíduo. Esta mudança precisa ser entendida sob dois Desta forma, o que conta é o desenvolvimento que aspectos. Se por um lado há uma valorização dos cada um consegue galgar, sem dar importância se o setores ligados à cultura e ao simbólico, com uma que sobra para um fará falta ao outro. Não se ques- possibilidade de abrir perspectivas sustentáveis tiona se eticamente é correto que se gaste o que economicamente para seus agentes, por outro a vai além de suas condições financeiras, mesmo que indústria dominante, assim como fez em toda a isso traga consequências desastrosas. Enquanto a história, tentará utilizá-la para continuar oligárquica 690

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e dominante. Cabe à sociedade e aos governos a no artístico refletindo também sobre a maneira de construção de políticas públicas que alimentem o tornar isso viável economicamente. É esse ponto prisma da sustentabilidade. que dá ao artista autonomia para produzir com liHá uma valorização de empreendimentos fun- berdade. O aspecto econômico influencia a linguadados na criatividade, na gem, a estética, a forma de inovação e no capital social A ideia é tomar a criatividade comunicação com o público. (no sentido literal). Nestes, Isto é um fato, mas não é uma como matéria-prima para há uma característica reagressão à arte. Todos estão torná-la sustentável em corrente: boa parte dos eminseridos neste sistema caseu sentido mais amplo preendedores criativos não pitalista, quer se queira, ou é motivada simplesmente pelo lucro, mas por ne- não. O desafio do Criativa Birô é ajudar essas pescessidade de transmitir algo mais. Neles há uma soas a tornarem seus projetos criativos realidade, utopia, uma ideologia que transpassa a lógica fi- sustentáveis não só economicamente. A ideia é tonanceira e econômica, em que a pessoa faz porque mar a criatividade como matéria-prima para torná-la acredita que pode mudar a vida das pessoas com sustentável em seu sentido mais amplo. O negócio suas criações. São “loucos” o suficiente para não criativo não é o que se faz para ganhar dinheiro. buscarem o dinheiro em primeiro lugar, batendo de Empreendedorismo criativo é a forma de usar os frente com todo modelo imposto pela sociedade ca- negócios em função da criatividade, e não de usar pitalista e consumista. Seus ativos não são simples- a criatividade em função dos negócios, tal qual a mente dinheiro, e é esta força, outrora vista como indústria almeja. Este é o cerne da questão, e a utópica, que é capaz de gerar sistemas nos quais sustentabilidade está aí. compartilhar é melhor que guardar para si. Esta é a era do conhecimento, mas de um co- Economia criativa, as novas tecnologias e as nhecimento que quebra a lógica capitalista. O co- redes de criação nhecimento que dá lucro ao que é o compartilhado, distribuído, colaborativo: alguns lucram muito Atualmente, vive-se um período de transformacom informações que todos postam gratuitamente ções socioeconômicas: globalização, crises finan(google, facebook, twitter etc.). É o tempo da vaqui- ceiras, novas tecnologias em mutação constante nha virtual (cartase, sibt, etc.) para trazer um show e acelerada, regimes autoritários sucumbindo por para sua cidade, no qual músicas são compostas meio de movimentos sociais etc. Em meio a este via twitter (“O que se perde enquanto”, Teatro Má- panorama, há um avanço dos setores ligados à gico), no qual uma mobilização no facebook tem criatividade, mas também um grande perigo de mais eficiência que uma denúncia ao Procon, no transformar-se a cultura em mero negócio, coloqual músicos se organizam em cooperativas ou cando-a a serviço dos aspectos econômicos. É necircuitos alternativos, fortalecendo seus negócios e cessário repensar o modelo, tratando a economia viabilizando o que antes só era possível por meio como fenômeno cultural, e não o inverso. A história das majors. mostra que a indústria costuma se apropriar daquilo Contudo, é necessário encontrar o equilíbrio, que lhe opõe para preservar o status (e a posição) capacitando os agentes e dando o devido valor de dominação. Todas as ameaças à indústria pasao conhecimento e à criatividade, sendo este um saram a ser seus novos campos de atuação. Igual caminho coerente para a utilização deste ativo em ao sistema financeiro, que gera crises para ele próprol da sustentabilidade. Cuidar do empreendimen- prio se alimentar delas. Um exemplo claro é o que to não é desviar do aspecto artístico, mas pensar está ocorrendo com o tecnobrega. Este movimento, Bahia anál. dados, Salvador, v. 22, n. 4, p.687-696, out./dez. 2012

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oriundo de Belém-PA, conseguiu movimentar toda mais telefones que pessoas, e a tendência é que a a cadeia produtiva da música de forma sustentável maioria dos aparelhos seja do tipo smartphone. Os e independente, sem necessitar das grandes gra- tablets e smartphones são produzidos para ficarem vadoras. Em pouco tempo, tanto o estilo quanto o obsoletos rapidamente, e quem herdará esses equiformato passou a ser retrapamentos serão os filhos. tado indireta e parcialmente O mercado brasileiro da indústria Face a esta realidade, tanto na novela global Cheias de as políticas públicas quanto do entretenimento é o que Charme. os empreendedores precimais cresce no mundo, muito As tecnologias da inforsam adequar-se a este ramo impulsionado pela classe C, mas mação e comunicação têm não é só entretenimento que essas criativo tão pouco explorado sido instrumentos indispenno país. pessoas consomem sáveis para o crescimento da Outro mercado que está economia criativa, provendo novas ferramentas de em expansão no Brasil é o da classe C, que, segundifusão, distribuição, diálogo e financiamento. São do o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística um dos principais recursos das produções indepen- corresponde a 54% da população. Ela consome culdentes, uma ponte entre os criadores e o público, tura, compra TV a cabo, internet e tem mais dinheisem intermediários. Com isso, é possível superar ro para lazer, entretenimento e educação. É uma a relação de subserviência, criando mercados, em classe que gasta bastante em conhecimento. Infevez de atender demandas, inovando nos modelos de lizmente, boa parte dos empreendedores criativos, negócios, no lugar de copiar exemplos de sucesso, principalmente os da classe artística, não tem essa e criando novos caminhos. Artistas independentes, visão do mercado e não considera esse segmento como Criolo, Céu e Tulipa Ruiz, vendem mais CDs como público potencial. O mercado brasileiro da inque muitos dos top hits das rádios. A indústria da dústria do entretenimento é o que mais cresce no música teve um revés com as novas tecnologias, e o mundo, muito impulsionado pela classe C, mas não audiovisual só não sofreu tanto porque a banda lar- é só entretenimento que essas pessoas consomem. ga (propositadamente?) está demorando a se espalhar de forma democrática. Apesar de tal realidade, corriqueiramente se esquece que é a singularidade CRIATIVA BIRÔ: POSSIBILIDADES PARA que traz valor intangível, que desperta o interesse e POLÍTICAS CULTURAIS permite a fruição. Os processos de inovação tecnológica revoluO Criativa Birô é um programa que visa auxiliar cionaram a maneira de consumir conteúdo. E de e promover políticas direcionadas aos agentes dos forma cíclica: dos escribas a Gutenberg, da impren- setores ligados à economia criativa, oferecendo, sa gráfica ao iPad, do gramofone ao iPod. Por isso entre outros serviços, consultoria e assessoria nas é preciso atentar para alguns dos novos padrões. áreas econômica, comercial e administrativa. Essas O mercado de games já ultrapassou o mercado de ações justificam-se, pois a dificuldade nessas árecinema e da música no mundo, e no Brasil pouco as é recorrente, principalmente na esfera artística. se investe no segmento: a produção é muito menor Por exemplo: o programa de pontos de cultura, insque a demanda na área. As crianças são grandes tituído na gestão do ministro Gilberto Gil, resultou consumidoras de tecnologia, e apesar de não terem em uma descentralização da cultura, fortalecendo autonomia financeira, o acesso a produtos tecnoló- diversas ações. Contudo, muitos pontos têm sérias gicos é facilitado pela renovação acelerada, estimu- dificuldades na prestação de contas dos recursos lada pela indústria da informação. No Brasil, já há destinados. Na maioria dos casos, não se trata de 692

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desvio de verbas ou corrupção, mas de falta de co- e replica as caricaturas da criatividade. nhecimentos administrativos e contábeis para com O setor do turismo é um dos pilares ecoprovar os gastos. Outro aspecto em que os pontos nômicos dos estados nordestinos. Os campos da agiram sem eficácia, de uma forma geral, foi con- economia criativa relacionados a ele necessitam seguir utilizar o recurso para ser capacitados e estimulase tornarem sustentáveis O turista vem atrás do diferente, dos para que o seu relacionaeconomicamente. O programento com o setor não siga o mas se o que ele encontrar ma não foi feito para susvelho modelo da indústria, de em Natal for o mesmo produto tentar os pontos, mas para produzir – replicar –, vender, exposto em Fortaleza, não fará fortalecê-los, estimulá-los mas que possa desenvolver sentido visitar várias cidades a caminharem com as próações que tragam novidanordestinas; uma bastará prias pernas. Alguns, seja des, singularidades, intangipor acomodação, seja por falta de conhecimentos bilidade. O artista criativo não busca simplesmente gerenciais, podem ter perdido a chance de se es- vender seu produto, mas dialogar com a realidade, truturarem e se tornarem sustentáveis. com sua criação. Além disso, ele quer (e necessita) A economia criativa é mais abrangente que a viver de seu ofício. O turista vem atrás do diferente, economia da cultura. Foi pensada assim, engloban- mas se o que ele encontrar em Natal for o mesmo do uma maior quantidade de áreas, por finalidades produto exposto em Fortaleza, não fará sentido vieconômicas e não de desenvolvimento. sitar várias cidades nordestinas; uma bastará. As Em que a extensão daquilo que até hoje se políticas precisam estar atentas a este fato, pois as cidades que conseguem aflorar a sua singularidade convencionou nomear de indústria cultural traz em seus produtos e serviços tornam-se rota indisde novo afinal? Por que a necessidade de fapensável para o turismo. Isso ocorre não porque zer um novo recorte que inclui até o artesanaelas sejam voltadas para o turista, mas porque a to? Que artesanato é esse: se refere às artes criatividade de seu povo primeiramente estimula populares ou apenas àquilo que é feito de maa população para apreciar o que é feito ali e não neira artesanal? (BOTELHO, 2011, p. 26). Esta maior abrangência precisa ser vista pelo consumir simplesmente. Isto não se resume ao arprisma da coadunação com os novos modelos e ten- tesanato, mas vale também para a gastronomia, a dências de desenvolvimento, o que vai muito além moda, a música etc. da dimensão econômica e é antagônico ao modelo Outro ponto fundamental para políticas públicas industrial atual. As ações não devem estimular o é pensar no desenvolvimento criativo da cidade artesanato feito em escala industrial, pois este mo- como um todo. Há três características que precisam delo, de uma forma geral, não é o melhor caminho estar presentes para que uma cidade seja criativa para a valorização da criatividade. Hoje é possível (REIS, 2012, p. 14): inovações, conexões e cultura. encontrar produtos similares, senão idênticos, nos Inovações para que surjam soluções para problevários centros de artesanato das (diversas?) ca- mas da sociedade contemporânea. Conexões entre pitais nordestinas. O resultado é que se perde a público e privado, entre as diversas áreas da cidasingularidade, que é o fator imaterial que traz valor de, entre a cidade e o mundo e entre seu passado agregado, capaz de tornar tal atividade sustentável. e seu presente. E cultura pelo que ela traz de mais O produto de fato artesanal é preterido e trocado singular, pelos valores, pelo impacto econômico que pelo que é feito em escala industrial. Por isso, as causa e pelo ambiente mais favorável à criatividade políticas públicas precisam estimular o agente cria- que ela propicia. tivo e não o empreendedor que padroniza produtos Destes pontos destaca-se a necessidade de coBahia anál. dados, Salvador, v. 22, n. 4, p.687-696, out./dez. 2012

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nexões entre áreas da cidade. Tomando São Paulo depois dessa faixa etária, é significativo. como exemplo, percebe-se que a cidade possui um A música é um ramo criativo com imenso potendos principais centros culturais do país. Contrapon- cial para ser (bem) fomentado pelo Criativa Birô. Ela do-se a suas potencialidades, há uma carência de é a linguagem artística mais difundida, sendo caconexões, falta transporte paz de agregar multidões em público e segurança. A ciA Criativa Birô, ao pensar na suas manifestações e de gedade é um ponto de converrar um alto consumo de seus fomentação de empreendimentos gência, onde ocorrem ações produtos e serviços. Este criativos, pode também dar econômicas e sociais. “Uma especial atenção às necessidades imenso potencial econômico cidade criativa é múltipla de era liderado pela indústria fode conexões da cidade conexões, o que é significatinográfica, que impunha seus vamente favorecido pela existência de espaços pú- produtos por meio do uso excessivo dos meios de blicos dispersos pelo espaço urbano, de transporte comunicação de massa. público eficaz e de atividades que se desenvolvam Os meios de comunicação não disseminam nas ruas” (REIS, 2012, p. 14). a música popular de forma democrática, com A Criativa Birô, ao pensar na fomentação de emigualdade de oportunidades para os mais diverpreendimentos criativos, pode também dar especial sos gêneros sonoros que povoam nosso territóatenção às necessidades de conexões da cidade. rio [...] é um circuito que se autoalimenta, já que É possível estimular soluções criativas para este ele condiciona o ouvido da maioria da populaponto fundamental, dialogando com o poder públição a um único tipo de música e abordagem co para estabelecimento e promoção destas cone(SOUZA, 2010, p.). xões, seja diretamente ou de forma colaborativa, Contudo, o avanço tecnológico contribuiu sigcaracterística esta que remete à nossa realidade nificativamente para a mudança deste panorama. contemporânea. A popularização da internet, das mídias e das reUm bom exemplo é a cidade de Guaramiranga- des sociais resultou em um enfraquecimento desCE, que tem seu turismo não só voltado para suas sa dominação via broadcasting. Outro ponto que belezas naturais e clima serrano, mas também em contribuiu para esta alteração foi a diminuição torno das artes: o festival de jazz que ocorre no dos custos de produção, gravação e distribuição período do Carnaval é abraçado pela cidade, que de produtos, reduzindo a dependência que os ardesenvolve oficinas para a população, mantém di- tistas tinham das gravadoras para realizar estes versas escolas de música e não somente traz atra- serviços. ções internacionais para o evento, mas estimula a Hoje os públicos da música estão mais segmenformação de músicos e apreciadores do estilo na ci- tados, dispersos em uma maior diversidade de prodade. No segundo semestre também ocorre, anual- dutos. Está mais difícil lotar estádios em torno de mente, um importante festival de teatro. A pesquisa sucessos instantâneos, mas há uma fidelização de sobre práticas culturais em São Paulo (BOTELHO e públicos de menores proporções para uma maior FIORE, 2005, p. 56) mostra a eficácia dessa política quantidade de artistas. Segundo a Associação Braao constatar que a parcela de jovens entre 15 e 25 sileira de Música Independente (ABMI) (MARAGOanos envolvidos com práticas musicais foi relevante NI, 2008, p. 15), “aproximadamente 80% da produ(89,6% ouvem música diariamente ou algumas ve- ção nacional dos fonogramas está nas mãos dos zes por semana), e o impacto sobre a relação atu- independentes, o que representa cerca de 25% do al desses indivíduos com a cultura, principalmente total vendido no país”. A entidade cita ainda: sobre sua frequência a “lugares culturais”, mesmo Hoje, os ouvintes não só pararam de com694

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algumas (ou a maioria) multinacionais. Dentro desta lógica, não se julga a subjetividade das propostas, tampouco a capacidade econômica de seus processos que até então atraíam multidões ponentes, e sim aspectos técnicos e se seu fim é a para as lojas, nos dias de lançamento [...] produção de bens e serviços há uma migraOs artistas precisam entender culturais, feitos por artistas ção cultural dos desconhecidos ou renomaque o mecenato não é um pedido artistas de hits dos. Neste ponto, políticas de ajuda às empresas, mas um para os artistas públicas devem favorecer modelo criado para de nichos. Hoje, mais os artistas com menos que as estimule os fãs de músiprojeção, e as leis carecem ca estão tocando de instrumentos para que isso ocorra. Mas o foco mais de 25 milhões de faixas, quase todas nessa discussão é o conceito que o artista leva em elas bem distantes das paradas de sucesso relação a estes programas. (­ANDERSON, 2006, p. 25). Esta reconfiguração necessita ser compreenEm relação aos patrocinadores, há uma carêndida pelos artistas empreendedores criativos e cia de ações que busquem a sua conscientização também pelos gestores públicos, de forma a de- e de seus contadores, que costumam ser o grande senvolver políticas que favoreçam essa criação entrave na hora da captação de recursos. São reindependente e não alimentem a indústria da mú- correntes as leis que não se aproximam dos valores sica. Conhecer a estrutura, alcance, influência e destinados à renúncia. E não basta criar as leis; é consumo entre as diversas tribos da sociedade é preciso estimular as empresas a participarem de importante instrumento para que o segmento da tais programas, não somente com incentivos fismúsica possa gerar um cenário solidificado, de- cais, mas com ações que promovam uma cultura mocrático e diverso. de participação de incentivos no campo artísticoOutra função que cabe ao Criativa Birô é a ca- cultural. pacitação para atuação em projetos para editais e Por último, os artistas precisam entender que o leis de incentivo. Esta capacitação precisa ir além mecenato não é um pedido de ajuda às empresas, de simplesmente ensinar a preencher um formu- mas um modelo criado para estimulá-las, propondo lário. Sem querer entrar na questão do modelo de em troca a divulgação da imagem delas vinculada mecenato, alguns dos principais problemas são ao produto cultural. A postura diante das empresas conceituais, e estes conceitos, quando distorci- não pode ser a de “pires na mão”. É preciso ter a dos, tiram o foco do objetivo de tais programas de consciência do valor de sua criação, para buscar incentivo fiscal. recursos em entidades que se relacionem com a Por um lado, os gestores, conselheiros e pare- natureza de sua obra. Por exemplo: há maior proceristas das leis precisam entender que estas leis babilidade de escolas se interessarem por patrocínão são um favor para os artistas. Elas são instru- nios e projetos voltados para o público infantil ou mentos para incentivar setores vistos como prioritá- adolescente, ou com cunho de formação artística. rios pelo governo, que necessitam ser estimulados Os ensinamentos nesta área não podem ficar no para produzirem mais. Por isso há incentivo fiscal campo técnico; precisam ir para o conceitual, em para montadoras de automóveis, para fabricantes um trabalho de conscientização do valor dos emde eletrodomésticos que consumam pouca ener- preendimentos criativos, de forma que estes comgia e também para a cultura. E nos dois primeiros preendam o seu posicionamento diante do mercado casos, as beneficiadas diretas são megaempresas, e dos patrocinadores. prar tantos CDs quanto antes, mas também

estão perdendo o gosto pelos grandes su-

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Artigo recebido em 6 de setembro de 2012 e aprovado em 19 de novembro de 2012

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Bahia análise & Dados

Economia criativa na Bahia: planejamento, perspectivas, formação e qualificação de empreendedores criativos1 Sirius Bulcão* Luciano Damasceno Santos** Juan Brizuela*** *

Mestre e bacharel em Economia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Coordenador de Economia Criativa da Secretaria de Cultura do Estado da Bahia (Secult), professor do Centro Universitário Jorge Amado (Unijorge). siriusbulcao@yahoo.com.br

Mestre e bacharel em Economia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Diretor de Economia Criativa da Secretaria de Cultura do Estado da Bahia (Secult). ldsantos.13@gmail.com **

Mestre em Cultura e Sociedade pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), bacharel em Relações Internacionais pela Universidad Católica de Córdoba (UCC). Técnico da Diretoria de Economia Criativa da Secretaria de Cultura do Estado da Bahia (Secult). juan.brizuela@cultura.ba.gov.br ***

1

As ideias e opiniões dos autores não são necessariamente as da Secult.

Resumo A Secretaria de Cultura do Estado da Bahia (Secult) tem promovido, nos últimos anos, um processo de institucionalização da economia criativa no estado. O Plano Bahia Criativa, ora em elaboração, a Lei Orgânica da Cultura na Bahia, o Programa Economia Criativa do PPA do estado e a criação da Rede de Formação e Qualificação em Cultura da Bahia fazem parte desse processo. Esses instrumentos legais estão articulados à Política Nacional de Economia Criativa e ao Plano Brasil Criativo, promovidos pelo governo federal. Um dos pilares do Plano Bahia Criativa é a formação e qualificação de empreendedores criativos, demanda central da Conferência Estadual de Cultura, cujo objetivo é melhorar a formação e qualificação profissional dos agentes culturais, ampliando as oportunidades de trabalho e de geração de renda. O objetivo deste artigo é elaborar um panorama do planejamento público para a economia criativa no estado da Bahia, destacando a política pública estadual de formação e qualificação em cultura destinada aos empreendedores criativos baianos. Palavras-chave: Bahia. Economia criativa. Planejamento público. Formação e qualificação de empreendedores criativos.

Resumen La Secretaría de Cultura del Estado de Bahía - SECULT ha impulsado en los últimos años un proceso de institucionalización de la economía creativa en el Estado. El Plan Bahía Creativa, actualmente en fase de desarrollo, la Ley Orgánica de Cultura de Bahía, el Programa de Economía Creativa del Plano Pluri-Anual (PPA) del Estado y la creación de la Red de Formación y Capacitación en Cultura de Bahía son parte de este proceso. Estos instrumentos jurídicos se articulan con la Política Nacional de Economía Creativa y el Plan Brasil Creativo, promovido por el gobierno federal. Uno de los pilares del Plan Bahía Creativa es la formación y cualificación de emprendedores creativos, demanda central de la Conferencia Estatal de la Cultura cuyo objetivo es mejorar la formación y cualificación de empresarios creativos, la ampliación de las oportunidades de empleo y generación de ingresos. El objetivo de este trabajo es elaborar un panorama de la planificación pública para la economía creativa en el Estado de Bahía, destacando la política pública estatal de formación y cualificación en cultura destinada a los emprendedores creativos bahianos. Palabras Clave: Bahía. Economía Creativa. Planificación Pública. Formación y Cualificación de Emprendedores Creativos.

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INTRODUÇÃO Alguns estudos sobre economia criativa partem do princípio de que bens e serviços oriundos de setores criativos possuem, além da dimensão econômica, a dimensão simbólica, que é determinante para o valor desses bens e serviços. Uma vez que a criatividade – força motriz da economia criativa – e os processos criativos se utilizam do universo simbólico humano, a cultura possibilita e permeia a dinâmica da economia criativa. Por conta dessa característica e do potencial da economia criativa para o desenvolvimento, o tema passou a ser incluído no planejamento público. Nesse sentido, em 2011, a criação da Secretaria de Economia Criativa (SEC) do Ministério da Cultura (MinC) representa um marco importante na economia e na cultura nacional. Diante do potencial inovador e transformador da economia criativa, a SEC surge com uma nova proposta de desenvolvimento para o país, tal como apontado em seu plano de criação, que prevê a economia criativa, principalmente no que diz respeito ao desenvolvimento sustentável, com base na criatividade e na cultura. Desde o início de 2011 está sendo elaborado, no âmbito do governo federal, o Plano Brasil Criativo, sob a coordenação da Casa Civil da Presidência da República. O plano é uma iniciativa do MinC que tem por objetivo estimular e fortalecer a economia criativa brasileira. Uma das propostas é integrar as políticas e programas de diferentes setores do governo federal e dos governos estaduais. Além de seu objetivo principal, o Brasil Criativo pretende inserir os segmentos criativos nas estratégias governamentais para o desenvolvimento do país, integrando e potencializando as políticas públicas. A partir da melhora da qualificação profissional e do aumento das oportunidades de trabalho e geração de renda, o Brasil Criativo procura proporcionar ganhos de competitividade aos produtos e serviços criativos brasileiros que disputam espaço no mercado internacional com aqueles oriundos de outros países. 698

A Bahia também está em processo de elaboração de um plano voltado para a sua economia criativa: o Bahia Criativa. Este instrumento de planejamento público está sendo construído em consonância com a política nacional de economia criativa e com o plano promovido pelo governo federal. O objetivo geral do Bahia Criativa é estimular e fortalecer a economia criativa baiana por meio do estímulo e promoção de empreendedores criativos. O Bahia Criativa visa proporcionar ganhos de competitividade aos produtos e serviços criativos baianos que disputam mercado com outros estados e países. Nesse sentido, propõe a integração de políticas, programas e ações de diferentes secretarias, com outras instituições públicas e iniciativas privadas e do terceiro setor que tenham relação com os segmentos e empreendedores criativos da Bahia. Nesse contexto, uma das demandas surgidas na última Conferência Estadual de Cultura foi a expansão das ações e programas que tivessem como objetivo formar e qualificar empreendedores criativos. E esse é exatamente um dos pilares do Bahia Criativa, que tem como objetivo ampliar as oportunidades de trabalho e de geração de renda, de forma a aumentar a inclusão social. A partir, portanto, da concepção da economia criativa com vistas ao desenvolvimento, tal como apontado no Plano da SEC (BRASIL, 2011), é fundamental ressaltar que a Secretaria de Cultura da Bahia adota um conceito de desenvolvimento no qual a economia criativa tem papel estratégico para a promoção da sustentabilidade, ou seja, do desenvolvimento que gere impactos positivos não apenas na esfera econômica, mas também no âmbito cultural, social e ambiental. O Bahia Criativa está dividido em seis eixos, os quais têm por objetivo estruturar a política pública estadual para o setor. Estes eixos são: i) informação e reflexão; ii) formação e qualificação; iii) fomento especializado; iv) promoção; v) territórios criativos e vi) projetos estruturantes. Foi também em 2011 que teve início o processo de elaboração do Plano Plurianual (PPA 2012Bahia anál. dados, Salvador, v. 22, n. 4, p.697-707, out./dez. 2012


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2015) do estado da Bahia, que engloba o Programa resse do MinC em construir uma política pública, Economia Criativa. O objetivo geral do programa diretrizes e ações para esse setor contribuiu para é “[...] desenvolver ações de fomento e promoção que a Secult definisse uma diretoria específica à economia criativa, contemplando a diversidade para a economia criativa e um programa denomide áreas e manifestações da nado Bahia Criativa. Por sua cultura” (BAHIA, 2012a). Nessa perspectiva, a Secult se vez, o governo estadual esA proposta deste artigo truturou no PPA 2012-2015 o comprometeu, no PPA 2012-2015, é abordar o tema economia Programa Economia Criativa, a desenvolver ações de fomento criativa na Bahia, tratando que é transversal a distintas e promoção à economia criativa, do Plano Bahia Criativa e do secretarias. contemplando a diversidade de Programa Economia CriatiA partir de 2012, o PPA áreas e manifestações da cultura va, que consta no PPA 2012inseriu o Programa Economia 2015 estadual. É também objetivo do texto abordar Criativa na temática Cultura e Desenvolvimento, no a política pública estadual de formação e qualifi- eixo estruturante Desenvolvimento Sustentável e cação para os empreendedores criativos baianos. Infraestrutura para o Desenvolvimento. Com isso, a Para isso, o artigo está subdividido em duas se- cultura deixou de ser entendida apenas como uma ções, além desta introdução e das considerações temática social e passou a ser tratada também finais. A primeira seção trata da economia criativa como vetor de desenvolvimento, com estimativa de na Bahia, abordando a temática no âmbito do PPA investimentos de R$ 198.992.713,00. 2012-2015 do estado e da estrutura do Plano Bahia Nessa perspectiva, a Secult se comprometeu, Criativa. A segunda aborda a formação e qualifi- no PPA 2012-2015, a desenvolver ações de fomento cação na economia criativa baiana, com destaque e promoção à economia criativa, contemplando a para as ações e projetos voltados para os empre- diversidade de áreas e manifestações da cultura. O endedores criativos. órgão assumiu os seguintes compromissos: • Fortalecer os negócios culturais na Bahia e profissionalizar as entidades e agentes que ECONOMIA CRIATIVA NA BAHIA: PPA 2012operam nas cadeias produtivas da cultura, 2015 E PLANO BAHIA CRIATIVA por meio da formação e da qualificação na área cultural. A partir de 2011, mudaram-se as prioridades e • Fomentar os segmentos culturais na Bahia, estratégias do governo federal em relação ao papel por meio de um sistema de financiamento dida economia criativa para o desenvolvimento da versificado, que contemple a pluralidade da cultura no Brasil. Esse foi o ano em que o Ministério cultura e estimule o desenvolvimento sustenda Cultura (MinC) criou a Secretaria da Economia tável das atividades culturais. Criativa (SEC), que tem como missão conduzir a • Ampliar a visibilidade da cultura baiana no formulação, a implementação e o monitoramento de Brasil e no exterior e inserir a Bahia em espolíticas públicas para o desenvolvimento local e paços de intercâmbio e cooperação cultural regional, priorizando o apoio e o fomento aos profisnacional e internacional. sionais e aos micro e pequenos empreendimentos • Fortalecer a cultura digital na Bahia. criativos brasileiros. Nos últimos seis anos, o governo da Bahia tem Desde 2007, ano de criação da Secretaria de promovido a territorialização e democratização das Cultura da Bahia (Secult), a economia criativa figura políticas de cultura, bem como tem buscado fortalecomo linha de ação estratégica no estado. O inte- cer setores da economia criativa. Em se tratando de Bahia anál. dados, Salvador, v. 22, n. 4, p.697-707, out./dez. 2012

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cultura, a formação e a qualificação, além de priori- Lei Orgânica da Cultura na Bahia nº 12.365 (BAHIA, dade do governo do estado, são também um desa- 2011). Em resposta às demandas das conferências fio. Portanto, para obter melhores resultados neste de cultura, tanto no âmbito nacional quanto no escampo existe a necessidade de trabalho colabora- tadual, o objetivo desses instrumentos legais é protivo entre diversas entidades. mover e estimular os procesPara isto foi criada a Rede de O Programa Na Trilha das Artes [...] sos formativos no campo da Formação e Qualificação em cultura, considerado em suas acaba de formar cerca de Cultura da Bahia. diferentes áreas, dimensões, 500 jovens oriundos de famílias Oficializada em dezembro linguagens, manifestações e de baixa renda em diversos de 2011 com a implantação aspectos. setores da cultura do seu conselho, a rede é Atualmente está em elaformada por representantes da Secult, das univer- boração o Plano Bahia Criativa, em harmonia com sidades públicas que atuam no estado, de quatro os princípios e conceitos formulados pela Secreorganizações do Sistema S (Senac, Sebrae, Sesi e taria da Economia Criativa do MinC, no intuito de Sesc), de 13 organizações da sociedade civil, dois ampliar a sinergia das iniciativas voltadas para os representantes do MinC e quatro de outras secre- segmentos criativos baianos. O Bahia Criativa adotarias e órgãos do estado da Bahia (Secretaria da ta o mesmo conceito para a economia criativa que Educação; Secretaria do Trabalho, Emprego, Renda o Plano Brasil Criativo. e Esportes; e Casa Civil), somando ao todo 48 inteNesse sentido, a economia criativa “[...] compregrantes. Assim, a rede tem servido de instância co- ende as dinâmicas dos ciclos de criação, produção, legiada de articulação, diálogo e pactuação para for- distribuição e consumo/fruição de bens e serviços mular e implementar colaborativamente as políticas criativos oriundos dos setores criativos, cujas ativipara formação e qualificação em cultura na Bahia. dades produtivas têm como processo principal um Em parceria com a Rede de Formação e Qua- ato criativo gerador de um produto, bem ou servilificação em Cultura da Bahia, a Secult realizou, ço, cuja dimensão simbólica é determinante do seu em setembro de 2012, na cidade de Salvador, o 1º valor, resultando em produção e riqueza cultural, Encontro Baiano de Formação e Qualificação em econômica e social” (BRASIL, 2011). Cultura. Vale ressaltar que o estado da Bahia foi O objetivo geral do Bahia Criativa é estimular pioneiro na realização de um encontro com essa te- e fortalecer a economia criativa baiana. Uma das mática. Para 2013, em âmbito federal, está prevista primeiras iniciativas a serem realizadas é gerar um a realização do 1º Encontro Brasileiro de Formação diagnóstico dos setores criativos na Bahia e no Braem Cultura. sil, observando a estrutura do mercado no qual os Um destaque do trabalho promovido pela rede segmentos criativos estão inseridos, a evolução do é o Programa Na Trilha das Artes, parceria entre a número de empreendimentos e postos de trabaSecretaria do Trabalho, Emprego, Renda e Espor- lho criativos, a participação da indústria criativa no tes (Setre) e a Secult, que acaba de formar cerca de produto interno bruto baiano e a geração de renda 500 jovens oriundos de famílias de baixa renda em oriunda dos setores criativos, entre outros pontos. diversos setores da cultura. Em novembro de 2012, O Bahia Criativa está estruturado em seis eixos aconteceu a primeira certificação dos jovens. de ação, definidos para desenvolver a política púOutro destaque do ponto de vista institucional blica para o setor. Os eixos são: foi a Portaria da Secult nº 64 (BAHIA, 2012c), que I. Informação e reflexão instituiu o Programa de Formação e Qualificação • Produzir dados, informações e estudos soem Cultura, em cumprimento ao que estabelece a bre a economia criativa, permitindo uma 700

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compreensão ampla das suas características e potenciais. • Desenvolver análises aprofundadas quanto à natureza e ao impacto dos setores criativos na economia baiana. • Construir indicadores que contemplem de modo amplo os diversos setores da economia criativa, permitindo planejamento e monitoramento consistente da política pública. • Promover e apoiar seminários e encontros sobre a economia criativa. II. Formação e qualificação • Capacitar os profissionais de cultura e os empreendimentos dos setores criativos, levando em conta diversas dimensões da cultura, integrando conhecimento técnico com atitudes e posturas empreendedoras. • Ampliar a visão do contexto cultural baiano, brasileiro e internacional. • Estimular habilidades sociais e de comunicação. • Aprofundar a compreensão sobre as dinâmicas socioculturais e de mercado. • Elaborar análises e reforçar a capacidade de articulação entre os agentes criativos. III. Fomento especializado • Ofertar linhas de crédito e diferentes mecanismos de fomento. • Criar incentivos que não só fomentem o desenvolvimento de serviços e produtos culturais de qualidade, mas que também estimulem a sustentabilidade de empresas e profissionais. • Lançar editais específicos voltados à economia criativa. • Desenvolver editais de financiamento específicos em áreas associadas à economia criativa e às culturas digitais pela Secult e de edital sobre economia criativa em conjunto com a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (Fapesb) e a Secretaria da Indústria, Comércio e Mineração do Estado da Bahia (SICM). Bahia anál. dados, Salvador, v. 22, n. 4, p.697-707, out./dez. 2012

Aprimorar toda a política de apoio e financiamento por meio da consolidação de um sistema de financiamento diversificado, que contemple as necessidades e a pluralidade da cultura, priorizando o financiamento direto, através de fundos e editais; da criação e aprimoramento das linhas especiais de créditos e dos mecanismos e leis existentes de incentivo fiscal. O apoio aos segmentos culturais deve priorizar ações integradas, estruturantes, territorializadas, com o objetivo de atingir o desenvolvimento sustentável da cultura nos campos em que isso é possível e desejável. IV. Promoção • Promover em nível regional, nacional e internacional a produção artístico-cultural local, ampliando a visibilidade da cultura baiana no Brasil e no exterior e inserindo a Bahia em espaços de intercâmbio e cooperação cultural nacional e internacional. V. Territórios criativos • Estimular alguns bairros, cidades e regiões que demonstrem potencial de desenvolvimento por meio de projetos da economia criativa. O objetivo é articular as ações voltadas para os territórios identificados como foco da política pública, reforçando-os com ações específicas, levando em consideração o perfil de cada um. VI. Projetos estruturantes O objetivo deste eixo é fortalecer e consolidar projetos estruturantes da Secult, a exemplo do apoio às diversas entidades carnavalescas, às culturas digitais, ao calendário de eventos em cultura, ao Centro de Referência da Capoeira e a outros projetos estruturantes. As iniciativas partem da premissa de que existem equipamentos e projetos que, uma vez implantados, reestruturam a dinâmica cultural de um segmento, território ou região, pela sua dimensão e capacidade de referência. A estratégia de implantar projetos estruturantes tem sido adotada em outros estados brasilei701


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ros, a exemplo dos festivais de cinema do Rio de tuir uma política cultural para a capoeira na Janeiro e de Gramado, de música de São José Bahia, articular os diferentes grupos e estilos dos Campos, da Festa Literária Internacional existentes e desenvolver estudos e pesquide Parati, do Museu da Língua Portuguesa e do sas na área. Instituto de Arte Contem• Centro de Referência da porânea de Inhotim. Essas Essas iniciativas têm servido de Engenharia do Espetáculo iniciativas têm servido de (CREE) do Teatro Castro Alreferência para formação e trocas referência para formação e interculturais, além de promover a ves (TCA). O projeto ambiciotrocas interculturais, além circulação e a distribuição de bens na desenvolver a engenharia de promover a circulação do espetáculo, visando proe serviços criativos e a distribuição de bens e mover a qualificação dos serviços criativos, consideradas gargalos do merprofissionais das áreas técnicas das artes cado cultural. cênicas (cenografia, figurino, maquiagem, Nessa perspectiva, são projetos estruturantes sonorização, iluminação e audiovisual). Isso no âmbito do Bahia Criativa: ocorre por meio da realização de cursos e • Ambiente Criativo de Culturais Digitais. O oficinas técnicas, organização e difusão de objetivo deste projeto é propiciar um amum conjunto de informações de tudo o que biente criativo voltado para a produção de se refere à engenharia do espetáculo, bem conteúdos e produtos digitais, bem como como do assessoramento técnico dos cenpara a formação de pessoal especializado tros de cultura no interior de estado. em culturas digitais. O Ambiente Criativo em Com o intuito de atender a essas demandas, o Culturas Digitais é um projeto colaborativo CREE abrigará em seu espaço físico oficinas de envolvendo a Secult, Prefeitura Municipal carpintaria, serralheria, costura, maquiagem, adede São Francisco do Conde, Secretaria de reçaria, serigrafia, escultura em isopor, além de Economia Criativa do MinC e Universidade biblioteca especializada em publicações acerca da Integração Internacional da Lusofonia das áreas de interesse da produção teatral, café Afro-Brasileira (Unilab), universidade fede- cenográfico, guarda-roupas, armazém cenográfico ral com sede em Redenção, no Ceará. O e laboratório cenográfico. Ambiente Criativo compreende laboratórios, • Centro de Restauro da Bahia. A iniciativa cursos e incubadora de micro e pequenas tem a intenção de instalar um centro de empresas em culturas digitais. referência nacional em restauro, aprovei• Centro de Referência da Capoeira – Forte de tando o rico acervo patrimonial do estado. Santo Antônio Além do Carmo. A proposta é Com isso, busca-se a promoção de ações estimular a capoeira, um dos fenômenos culde salvaguarda de elementos artísticos, turais brasileiros mais reconhecidos no munbens móveis e integrados, por meio de do. A capoeira está em mais de 150 países, pesquisa, qualificação profissional, prograe mais de 100 mestres baianos de capoeira mas de educação patrimonial e projetos de estão atualmente no exterior. Além disso, a preservação e atuação criteriosa em intercapoeira é fator importante da internacionalivenções de conservação e restauro do pazação da língua portuguesa e da cultura bratrimônio cultural. sileira. Esse centro pretende potencializar a • Circuitos Arqueológicos da Chapada DiaBahia como lugar de referência nacional e mantina. O projeto pretende valorizar os internacional da capoeira, além de constisítios de arte rupestre como patrimônio cul702

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tural referente às populações pré-coloniais também a cogestão do Forte do Barbalho entre a e como importante fator de desenvolvimen- Secult e as empresas residentes, e, paralelamente, to econômico sustentável dos municípios capacitação, assistência técnica e aperfeiçoamento onde estão localizados. Nesses circuitos da gestão empresarial. As empresas participantes foram incluídas áredo cluster, em contrapartida à as de paisagens naAs empresas participantes do cessão do espaço e à particiturais e patrimônio cluster, em contrapartida à cessão pação no programa, promoarquitetônico, exemveriam ações de cunho prodo espaço e à participação no plos da cultura local. fissionalizante no forte. programa, promoveriam ações de A primeira etapa do • Incubadora de Empreendicunho profissionalizante no forte programa, concluída mentos Criativos. As incubaem 2011, envolveu seis municípios (Iradoras de negócios culturais têm como objequara, Lençóis, Morro do Chapéu, Wagner, tivo estimular a formação e consolidação de Seabra e Palmeiras) e foi desenvolvida em empreendimentos criativos na Bahia. Os sertrês fases: i) mapeamento dos sítios de pinviços a serem oferecidos às empresas incutura rupestre; ii) atividades de educação badas são: 1) consultorias na elaboração de patrimonial; e iii) elaboração dos roteiros planos de negócios; 2) planejamento estratéde visitação. A segunda etapa tem como gico; e 3) assessoria jurídica e de imprensa. foco as pesquisas arqueológicas em sítios O objetivo é organizar e fomentar o surgimenmapeados nos municípios destacados na to de novos empreendimentos criativos e a primeira etapa, além de ampliar a área de profissionalização dos já existentes, de foratuação do programa no território da Chama que os empreendimentos se integrem ao pada Diamantina, com a inclusão de novos mercado formal e passem a figurar nos dados municípios. e indicadores econômicos. • Forte de Serviços Criativos – Forte do Bar• Instituição público-privada do Carnaval. A balho. O Forte do Barbalho, equipamento instituição visa potencializar a maior festa federal cedido ao estado, abriga ateliês de baiana, ampliando sua visibilidade, preserprofissionais de figurino, cenografia, cenovando sua memória, assegurando seu estecnia, iluminação cênica, entre outros sertudo, desenvolvendo seu presente e projeviços criativos. A Secult pretende instituciotando o seu futuro. A instituição objetiva: a) nalizar a relação entre esses profissionais e preservar a história do Carnaval e de festas; o estado, inclusive complementando a rede b) estimular e realizar estudos e pesquisas produtiva com a agregação de outros ateliês sobre o Carnaval e as festas; c) formar e quanos espaços ociosos. O forte também tem lificar profissionais voltados para o Carnaval servido como base para a produção de proe as festas; d) desenvolver intercâmbio e cojetos de audiovisual que recentemente foram operação com outros carnavais e festas; e) realizados em Salvador. projetar possíveis cenários para o Carnaval O objetivo é criar um cluster de empresas/ e as festas; f) potencializar as oportunidades empreendedores da área cultural, especificamenproduzidas pelo Carnaval e pelas festas; g) te relacionados a aspectos técnicos da produção fortalecer a economia e o turismo relativos artístico-cultural, tais como: empresas de sonoriao Carnaval e às festas; e h) ampliar a visização, iluminação, cenografia, cenotecnia, produbilidade nacional e internacional de Salvador toras, figurino, maquiagem, entre outros. É objetivo e da Bahia. Bahia anál. dados, Salvador, v. 22, n. 4, p.697-707, out./dez. 2012

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Residência Artístico-Cultural do Pelourinho. No contexto do Programa de Apoio à Mobilidade nas Artes e no Setor Cultural (Conectarte Bahia), a Secult fomenta residências artísticas e culturais, disponibilizando recursos financeiros e de infraestrutura para artistas e profissionais da cultura da Bahia. O intuito é que esses profissionais participem de programas de residência no exterior e que artistas e profissionais da cultura exterior venham atuar na Bahia. Para o acolhimento dos profissionais da cultura exterior, considerando que o único centro de residência artística existente na Bahia é o da Fundação Sacatar, entidade privada, sediada em Itaparica, propõe-se a implantação de um centro no Pelourinho, colocando à disposição de artistas, coletivos e profissionais da cultura, nacionais ou estrangeiros, toda a infraestrutura necessária para a estada em Salvador. Além de desempenharem um papel fundamental no desenvolvimento profissional dos artistas e profissionais da cultura, as residências favorecem também o diálogo intercultural, agregando experiências inovadoras no âmbito da produção cultural. Na perspectiva do local onde se situará a residência, a presença constante de artistas e profissionais da cultura possibilitará as inter-relações entre o público e os visitantes, ampliando o repertório e o conhecimento sobre a obra de artistas que atuam em outros centros culturais. O Bahia Criativa, enfim, visa proporcionar ganhos de competitividade aos produtos e serviços criativos baianos que disputam mercado com outros estados da Federação e países. Um dos principais fundamentos para os ganhos de competitividade é o investimento em formação e qualificação dos empreendedores criativos. A seção seguinte traz um panorama das ações, projetos e perspectivas do Plano Bahia Criativa no que diz respeito ao objetivo de formar e qualificar os empreendedores criativos baianos. 704

FORMAÇÃO E QUALIFICAÇÃO NA ECONOMIA CRIATIVA BAIANA: AÇÕES, PROJETOS E PERSPECTIVAS PARA EMPREENDEDORES CRIATIVOS No âmbito do Plano Bahia Criativa, o Programa de Formação e Qualificação em Cultura do Estado da Bahia possui as seguintes áreas de abrangência: i. Organização, legislação, produção, gestão e políticas culturais. ii. Criação, invenção e inovação artísticocultural. iii. Proteção e promoção da memória e do patrimônio cultural. iv. Formação de público, educação e consumo cultural. v. Difusão, divulgação e transmissão da cultura. vi. Reflexão, investigação, análise e crítica da cultura. vii. Produção de informações culturais. viii. Cooperação e intercâmbio cultural. ix. Logística e processos técnico-culturais. Os objetivos do programa são: • Estimular a formação e qualificação de pessoal no campo da cultura, considerando a multiplicidade de áreas, dimensões, manifestações e aspectos deste campo. • Proporcionar a criação e/ou ampliação de oportunidades de desenvolvimento profissional nos diversos segmentos culturais. • Melhorar as condições para a sustentabilidade e o fortalecimento de ações e organizações na área da cultura. • Contribuir para o aprimoramento da organização, gestão, produção e políticas culturais. • Estimular o desenvolvimento de ações e formulações inovadoras na cultura. Esses objetivos serão alcançados a partir das seguintes linhas de atuação: a. Formação em organização da cultura. b. Formação nas linguagens artísticas. Bahia anál. dados, Salvador, v. 22, n. 4, p.697-707, out./dez. 2012


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c. Formação profissionalizante/técnica em cultura. d. Formação na área de patrimônio e memória. e. Formação em culturas digitais. f. Formação em economia criativa e artes aplicadas. g. Formações transversais. h. Pesquisas em cultura. i. Publicações. Os resultados parciais da formação em cultura são auspiciosos. Em 2011, a Escola de Dança da Fundação Cultural do Estado da Bahia (Funceb) foi reformulada e ampliada como Centro de Formação em Artes (CFA), tendo sua nova sede inaugurada no Pelourinho em setembro de 2012. No ano anterior, foi realizado um programa-piloto com 16 cursos, que acolheram 1.507 alunos de dança, música, artes visuais, fotografia, africanidades e cultura popular. Uma vez implantada a nova sede, iniciou-se o Programa de Qualificação em Música, com 240 alunos matriculados no Curso de Formação Musical – com enfoque na música da Bahia – e no Curso Moderno de Música. Além disso, trabalha-se a iniciação artística no curso preparatório para crianças e nos cursos livres para adultos. A Secult tem participado do processo de implantação de novos cursos e campus na área da cultura, a exemplo do: i) Mestrado em Museologia (UFBA e UFRB); ii) Curso de Culturas Digitais da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), em São Francisco do Conde, implementado pela parceria entre Unilab, Secult, MinC, UFBA e Fapesb; iii) Novo campus da UFRB em Santo Amaro; iv) cursos a serem implantados na Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSBA), com campi em Itabuna, Teixeira de Freitas e Porto Seguro. Além disso, está sendo elaborada uma proposta de consórcio de restauro a partir de uma parceria entre Secult, UFBA, UFRB e MinC. A área de formação e qualificação em cultura teve o seu primeiro edital lançado no primeiro semestre de 2012, disponibilizando R$ 1 milhão, com Bahia anál. dados, Salvador, v. 22, n. 4, p.697-707, out./dez. 2012

o objetivo de apoiar ações de formação e qualificação em cultura, com diferentes cargas horárias (cursos de especialização, extensão e cursos livres) e sobre temáticas específicas. Foram contemplados sete projetos em seis territórios de identidade da Bahia. No final de 2012, foi publicado o segundo edital nesta área, que teve um aumento das verbas disponíveis em 80%, razão pela qual dispõe de R$ 1,8 milhão para apoiar ações formativas. Além das atividades programadas já expostas, planejam-se para o biênio 2013-2014: • Mapeamento da formação em cultura na Bahia. • Estímulo à criação de cursos de graduação e de pós-graduação na área da cultura. • Incentivo à formação profissionalizante e fomento à criação de cursos técnicos em cultura. • Promoção e apoio à realização de encontros e seminários. • Promoção da formação transversal em cultura. • Promoção da formação nas diversas linguagens. • Estímulo a estudos, pesquisas e intercâmbio em cultura. • Apoio a publicações em cultura. No âmbito do Plano Bahia Criativa, no eixo Formação e Qualificação, uma das iniciativas mais promissoras é o Projeto Qualicultura, que surgiu através de um convênio entre a Secult e o Sebrae. O Qualicultura visa promover a capacitação e a assistência técnica aos segmentos criativos, com o objetivo de fortalecer os negócios culturais na Bahia. O projeto passa pela profissionalização das entidades e indivíduos que operam nos segmentos da economia criativa, dando assessoria técnica aos empreendedores criativos com o objetivo de profissionalizar os diferentes elos da cadeia produtiva cultural da Bahia. Iniciado em junho de 2012, este projeto vem realizando uma série de cursos de formação para gestores, produtores culturais, agentes culturais, 705


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empreendedores, segmentos da economia criativa baiana, no interior e na capital da Bahia. Entre os cursos ministrados destacam-se: i. Elaboração de Projetos Culturais. ii. Financiamento Cultural. iii. Gestão Cultural. iv. Prestação de Contas. v Legalização e Formalização. vi. Cooperativismo. Além desses cursos, são realizadas oficinas e palestras sobre acesso ao mercado; economia criativa; empreendedorismo cultural; associativismo e cooperativismo; produção cultural e mobilização de recursos. Em Salvador, o projeto tem uma média de três turmas por mês. Desde o seu início até dezembro de 2012, o Qualicultura percorreu 17 territórios de identidade da Bahia, provendo cursos em competências essenciais para a economia criativa. Neste sentido, capacitou mais de 1.000 empreendedores criativos e atingiu direta e indiretamente mais de 220 municípios baianos localizados nos territórios da Chapada Diamantina, Irecê, Velho Chico, Sisal, Litoral Sul, Extremo Sul, Sertão do São Francisco, Sertão Produtivo, Semiárido Nordeste II, Litoral Norte e Agreste Baiano, Portal do Sertão, Vitória da Conquista, Itaparica, Recôncavo, RMS e Costa do Descobrimento.

CONSIDERAÇÕES FINAIS A economia criativa ter se tornado recentemente setor prioritário do governo federal, bem como todas as implicações que este acontecimento vem proporcionando nos últimos meses, tem influenciado a condução da política pública voltada para a economia criativa no estado da Bahia, no sentido de buscar se alinhar e se articular com a política pública federal. Do ponto de vista institucional, a formação e a qualificação dos empreendedores criativos foram reforçadas por meio da promulgação da Lei Orgânica da Cultura na Bahia nº 12.365 (BAHIA, 2011) e da 706

Portaria da Secult nº 64 (BAHIA, 2012), que instituiu o Programa de Formação e Qualificação em Cultura. Outro destaque é o Programa Economia Criativa, no âmbito do PPA 2012-2015, reforçando o compromisso do estado com o investimento nessa área. A formulação do Plano Bahia Criativa também reforça a institucionalização da área e reafirma a intenção do estado de atuar de maneira sistematizada na economia criativa. Vale ressaltar que são objetivos principais desses instrumentos legais promover a formação e qualificação dos empreendedores criativos, bem como estimular os processos formativos no campo da cultura, considerando as suas diferentes áreas, dimensões, linguagens, manifestações e aspectos. O Plano Bahia Criativa baseia-se no reconhecimento da vocação cultural do estado e do impacto positivo dos investimentos nessa área para o desenvolvimento local e regional. A cultura, além da relevância simbólica para formação das identidades e para o convívio das diferenças, também gera postos de trabalho, empregos qualificados, renda e desenvolvimento local, influindo na inclusão social e no fortalecimento da cidadania. A partir do entendimento da importância da dimensão econômica da cultura, o governo da Bahia incluiu o Programa de Economia Criativa no PPA 2012-2015 estadual, no eixo estruturante Desenvolvimento Sustentável e Infraestrutura para o Desenvolvimento, unindo os temas Cultura e Desenvolvimento. Parte-se de uma estratégia que tem como base a transversalidade das ações, projetos e programas de diferentes secretarias de estado. Nesse sentido, o papel desempenhado pela Rede Estadual de Formação e Qualificação em Cultura, com seus 48 integrantes, será fundamental para o sucesso do Plano Bahia Criativa. Esses acontecimentos mostram que a economia criativa está em franco processo de institucionalização, consolidação e amadurecimento como política pública. É bem provável, enfim, que a Bahia seja atualmente um dos estados da Federação mais avançados no sentido da maturação de uma política pública para a economia criativa. Bahia anál. dados, Salvador, v. 22, n. 4, p.697-707, out./dez. 2012


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Artigo recebido em 26 de dezembro de 2012 e aprovado em 26 de dezembro de 2012

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Bahia análise & Dados

A nova economia do compartilhamento e o equilíbrio entre direito autoral e coletivo Maíra Vilas Bôas Matos* Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC); pós-gra­duanda em Direito Constitu­cional. mairavilasboas@hotmail.com *

Resumo O artigo enfatiza a relevância da função social da Lei do Direito Autoral para o equilíbrio eficaz entre este e os direitos públicos fundamentais. Define as principais características da sociedade de informação e da economia criativa. O trabalho também investiga o novo modelo de economia do compartilhamento e suas características e ressalta como esse modelo poderia assegurar e auxiliar a proteção autoral em prol do acesso aos direitos fundamentais à cultura, à informação e à educação. O estudo ainda propõe que as políticas da economia do compartilhamento podem ser utilizadas a fim de alcançar o equilíbrio entre a proteção autoral e os direitos públicos fundamentais. Conclui-se que a efetivação da função social do direito autoral será incentivada não só pelas limitações dos direitos autorais, mas também pelos mecanismos de difusão de conhecimento, advindos do novo modelo de economia. Palavras-chave: Direito autoral. Função social. Direitos públicos fundamentais. ­Economia do compartilhamento. Abstract This paper emphasizes the relevance of Copyright Law’s social function to the effective balance between the copyright rights and the public fundamental rights. Defines the main features of the Information Society and the Creative Economy. Investigates the new model of the Mesh Economy and its characteristics. Highlights how the policies of the new born Mesh Economy could enforce and assist the Copyright Law towards the promotion of the access to the fundamental rights to culture, to information and to education. Proposes that the policies of the Mesh Economy may be used in order to achieve the balance between the authoral protection and the public fundamental rights. Conclude that the effectuation of the Copyright Law’s social function shawl be encouraged through, not only, the limitations of the copyright rights, but also, through the mechanisms of knowledge diffusion, arose from the new model of Economy. Keywords: Copyright law. Social function. Public fundamental rights. Mesh economy.

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A NOVA ECONOMIA DO COMPARTILHAMENTO E O EQUILÍBRIO ENTRE DIREITO AUTORAL E COLETIVO

INTRODUÇÃO Desde os rascunhares do que veio a ser o droit d’auter, sistema no qual o direito autoral brasileiro se fundamenta, o impasse entre os direitos intelectuais de cunho coletivo e os direitos de propriedade conferidos aos titulares de criações intelectuais subsiste. Por conseguinte, desenvolveu-se a premissa de que o direito autoral deve sofrer limitações com o escopo de estabelecer o equilíbrio entre este e os interesses sociais, conduzindo ao surgimento da funcionalização do direito de autor. A função social do direito autoral, portanto, guarda relação direta com as limitações impostas à proteção autoral. Na realidade, essas limitações têm o objetivo crucial de restringir o exercício do direito autoral à sua função social, evitando criar uma vantagem excessiva para seu titular em prejuízo dos anseios sociais. Esta máxima toma proporções ainda mais relevantes, quando analisado o atual contexto em que se insere, no qual a nascente sociedade da informação é delineada através dos preceitos da economia criativa e de suas derivações, como a economia do compartilhamento. Diante do exposto, questiona-se: Quais são os mecanismos existentes para que a função social do direito autoral seja efetivamente cumprida? São estes suficientes para que o direito autoral cumpra o objetivo da sua funcionalização? Se não, quais são os instrumentos que devem ser utilizados a fim de complementá-los? Neste sentido, surge a necessidade da pesquisa com o intuito de solucionar tais questionamentos e se aponta a utilização de mecanismos exteriores ao âmbito legal, a exemplo do modelo de negócios da novel economia do compartilhamento, como complemento às limitações aos direitos autorais inerentes ao ordenamento jurídico, bem como a implementação de políticas que concorram para a efetiva aplicação destas limitações. A metodologia utilizada para a realização da pesquisa consistiu na análise de legislação e de periódicos, na revisão bibliográfica, bem como no 710

exame de anais de conferências e seminários concernentes ao tema. O campo da pesquisa se dá, precipuamente, nos ramos do direito autoral, do direito constitucional e ainda nos âmbitos do direito civil e da economia.

A CULTURA NA SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO E A ECONOMIA CRIATIVA O alcance da função social do direito autoral não é só um fim necessário, mas a justificativa da sua própria existência. É seu fundamento e escopo maior. Deve-se partir do assesto de que a proteção autoral não foi criada para conceder ilimitado direito exclusivo ao seu titular ou fazer as suas prerrogativas absolutas. Cada vez mais absolutas, pode-se dizer, ainda mais se se deixar em vista o poder que hoje possuem os investidores e os grandes conglomerados que representam as indústrias culturais. A relevância da função social do direito autoral transporta-se para a seara das relações existentes entre a criação e os mais diversos indivíduos que compõem a sociedade, seus destinatários, cidadãos que possuem direitos sociais, culturais e econômicos a serem respeitados – e providos. Visto estarem os direitos autorais no mesmo patamar dos direitos coletivos, por serem ambos direitos fundamentais assegurados não só no Texto Magno brasileiro, mas também na Carta Universal dos Direitos Humanos, como se justifica o direito exclusivo de uso irrestrito? A supremacia é sempre do interesse público. Essa é a premissa máxima do estado social de direito, fundamento da função social na qual o direito de autor se pauta e pedra angular da harmonização dos múltiplos interesses dos membros de uma sociedade. Para que se efetive o princípio da função social da propriedade intelectual, o exercício do direito de autor deve ser restringido, e seus abusos devem ser Bahia anál. dados, Salvador, v. 22, n. 4, p.709-719, out./dez. 2012


Maíra Vilas Bôas Matos

coibidos, para que assim, e somente assim, seja Vivencia-se a era da sociedade da informação, alcançado um aceitável equilíbrio entre interesse na qual o bem maior que pode possuir um indivíduo é público e privado. o conhecimento, alcançado, precipuamente, através Aceitável sim, mais dificilmente pleno. Tendo em do acesso à informação, à educação e à cultura. No vista os diversos interesses mundo hodierno, tal asserção conflitantes orbitando em Hoje a cultura é global e é ela que transfigura-se, inclusive, em torno do sistema de proteuma questão econômica. A regula as relações humanas em ção autoral, as alternativas cultura passa a ser vista como todas as suas esferas de balanceamento estão se capital e a gerar riquezas, tornando cada vez mais diversas – e criativas. consolidando-se como o grande bem do século XXI. Os avanços conquistados com a globalização Gentino (2008), professor argentino e pesquisae as mudanças advindas com a popularização da dor de meios de comunicação e cultura, em artigo internet alternaram totalmente o modo de troca de intitulado La Cultura como Capital, cita o pesquiinformações e os espaços utilizados como meio de sador espanhol Lluís Bonet e discorre acerca da fruição e difusão do conhecimento. importância do setor cultural e da cultura para a A rede mundial de computadores aproximou sociedade contemporânea. O pesquisador afirma pessoas e destruiu barreiras não só geográficas, que o setor da cultura e da comunicação começou mas principalmente culturais. As informações, a viver uma transformação quase tão radical quanideias, crenças e valores tornaram-se universais. to a experimentada com a invenção da imprensa. Parte-se para a era digital, que fundamenta e deli- Assevera que o surgimento de equipamentos mulneia os traços de uma cultura que não mais perten- timídia e a digitalização de formatos, bem como os ce a um só povo ou nação. Hoje a cultura é global grandes avanços no ramo das tecnologias de telee é ela que regula as relações humanas em todas comunicações, comportaram uma mudança radical as suas esferas. nas formas de produção e consumo. Certifica que Nessa esteira discorrem Silva e Wachovicz “[...] o setor cultural passa a ser visto como uma (2011) sobre o tema: atividade chave nas estratégias internacionais de A era do conhecimento e da informação domínio de novos mercados de telecomunicações e de lazer [...]”. promoveu uma nova realidade no volume e O complexo universo da produção de bens e acesso das informações, especialmente com serviços culturais se concretiza em atividades nasa consolidação da Internet. O fenômeno de cidas da iniciativa social (festas, jogos, folclore, eninserção da Internet no cotidiano das pessotre outros), serviços dos setores públicos, privados as, iniciado massivamente em nível mundial ou sociais (museus, bibliotecas, shows, artes cênino final do século passado,constituiu a necescas etc.), ou indústrias culturais (editorial, audiovisidade de inserção da sociedade como um sual, meios etc.). todo no viés de novos meios de informação. Assim, cita Gentino (2008) quando discorre soO grande diferencial do período é a expansão bre indústrias criativas em sua obra: do conceito de informação, que abrange a voz, a imagem, os dados em formato digital e

Las industrias culturales tienen una función

as manifestações culturais que passam a ser

fundamental en la creación de imaginarios

disseminadas no ambiente digital. Assim, sur-

individuales y de las identidades colectivas

ge o conceito de sociedade da informação,

y constituyen uno de los vectores principales

denominada por Manuel Castells de socieda-

de expresión y diálogo entre culturas.

de informacional.

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O professor Wachovicz (2012), atual coordena711


A NOVA ECONOMIA DO COMPARTILHAMENTO E O EQUILÍBRIO ENTRE DIREITO AUTORAL E COLETIVO

dor-líder do Grupo de Estudos de Direito Autoral e Informação (GEDAI), informa dados mais precisos sobre os setores criativos no Brasil:

ção, podendo ser definida como processos

A importância econômica dos setores criati-

de recursos produtivos como criatividade, co-

relacionados à criação, produção e distribuição de produtos e serviços que se utilizam

vos a nível mundial foi mensurada pela OMPI

implicando

(direta ou indiretamente relacionadas

nhecimento e capital intelectual.

É neste contexto da era da economia criativa que surge não só uma iniciativa brilhante, mas um novo modelo de economia

ao Direito Autoral) no que equivale atualmente a mais de 7% do PIB dos países desenvolvidos. No Brasil dados de 2006 apontaram o percentual dos setores criativos de 21,8% do total da força de trabalho (equivalente a 7,6 milhões de trabalhadores, contribuindo com 16,4 do PIB, percentual equivalente a R$ 381,3 bilhões de reais).

E em artigo com Silva (2011, p.562), ressalta a importância da criatividade na sociedade da informação e delineia os contornos da chamada economia criativa, que alia a economia, a cultura e a tecnologia em direção a um desenvolvimento sustentável: É por assim dizer que estamos vivendo a construção de um novo paradigma social, o paradigma cultural, em que o volume e o

A Economia Criativa compreende atividades resultantes da imaginação de indivíduos, com valor econômico [...].

É neste contexto da era da economia criativa que surge não só uma iniciativa brilhante, mas um novo modelo de economia que, justamente por possuir também um viés social e visar ao compartilhamento e à distribuição de cultura, harmoniza perfeitamente os interesses coletivos com os dos titulares dos direitos sobre as criações culturais, promovendo, sobremaneira, o alcance da função social do direito autoral. Estão, enfim, delineados os traços primordiais da nascente economia do compartilhamento.

A ECONOMIA DO COMPARTILHAMENTO OU ECONOMIA MESH: INOVADORA ALTERNATIVA EM PROL DA EFETIVAÇÃO DA FUNÇÃO SOCIAL DO DIREITO AUTORAL

fluxo de informações disponíveis alcançaram dimensões jamais vistas. O sujeito desta nova realidade social passa a perceber o mundo em termos culturais, e não pode ficar refém de Estados, de grupos ou de determinadas classes, pois é a sua individualidade, o acesso aos bens culturais, e o seu conhecimento e criatividade que irão ditar o futuro da humanidade na sociedade Informacional. No paradigma da Sociedade Informacional os recursos econômicos básicos são a informação e o conhecimento, e não mais os recursos naturais ou o trabalho físico. É nessa

Fundamentada no novo capitalismo que nasce do século XXI, pautado na redução radical dos custos de coordenação e na ampla variedade de atividades humanas, vem ao mundo a economia do compartilhamento, um novo modelo que visa substituir o consumo e a compra por uma economia baseada na troca de bens e serviços. A economia do compartilhamento ou economia mesh é não só um novo modelo econômico, mas um novo formato de propriedade intelectual1. Visa substituir a propriedade criando um número enorme de bens compartilhados por indivíduos, famílias, empresas e demais componentes da sociedade civil.

relação entre economia e conhecimento que nasce o conceito de Economia Criativa, dentro da concepção da sociedade da informa-

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Afirmação do professor e economista Schwartz, no prefácio do livro que fala sobre a economia mesh, logo abaixo citado.

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Originalmente chamada de mesh economy2, foi atendimento ao consumidor não está condicionada conceituada pela americana Gansky (2012), em- à iniciativa privada, mas também engloba organizapreendedora de tecnologia do Vale do Silício que ções públicas e políticas diversas que conduzam ao recém-publicou importante livro no Brasil sobre o benefício dos cidadãos. tema. A autora defende que O novo modelo de econoa propriedade deve ser cada A economia mesh é, além de mia dá aos governos de todo vez mais compartilhada o mundo uma excelente alterum modelo de negócios, um para a otimização de recurnativa a favor da promoção e compromisso ético-cultural sos. Na verdade, a discusda inovação tecnológica em são do livro direciona os leitores rumo a um novo seus países. É uma tendência de economia inforconceito, sugerindo a mudança da lógica da pro- macional que poderá trazer avanços às comunidapriedade privada para a do acesso compartilhado.3 des situadas nos mais distintos pontos do planeta. Segundo afirma Schwartz, professor de Economia da Universidade de São Paulo, que escreveu o prefácio e promoveu o lançamento do livro no Brasil, PRINCIPAIS TRAÇOS DA ECONOMIA DO a “[...] colaboração no mercado chegará a níveis iné- COMPARTILHAMENTO E SUA RELAÇÃO COM ditos, privilegiando o acesso compartilhado em detri- OS DIREITOS AUTORAIS E OS DIREITOS DE mento da propriedade pura e simples”. Constata-se ACESSO À CULTURA, À INFORMAÇÃO E À a reinvenção do capitalismo e a valorização de uma EDUCAÇÃO nova forma de coletivismo, o que torna possível o surgimento de um modelo de relacionamento interA proteção autoral surgiu a pedido dos titulares pessoal no qual a cooperação livre e a criatividade de direitos autorais, com base no discurso de proteresponsável contribuem para a formação do cerne ção aos direitos dos autores, para que estes pudesde um novo paradigma de criação de riqueza. sem ser recompensados por suas criações e exA economia mesh é, além de um modelo de plorá-las economicamente, por serem fruto da sua negócios, um compromisso ético-cultural, como força de trabalho. Bem verdade que essa proteção assegura Schwartz4. A evolução da sociedade em e os direitos de exclusivo beneficiam bem menos rede promove a colaboração na produção, na dis- criadores do que investidores. São estes os verdatribuição e no financiamento de criações, tornando deiros titulares na maioria arrebatadora dos casos viável e aumentando a potência dos negócios e da de superproteção de direitos de cunho intelectual. cultura digital. Mas há ainda outros fatores desencadeadores Ponto extremamente relevante para o estudo em de impasses no âmbito da proteção autoral. questão repousa no fato de que tal coordenação de As obras e criações intelectuais, bens comerciáveis desde a Renascença, dependem de promoção 2 A palavra inglesa mesh foi utilizada de forma metafórica (signifie difusão para poderem chegar ao maior número de ca malha ou rede que continua operando mesmo quando alguns consumidores possível. A evolução tecnológica e nós ficam fora do ar), mas condiz exatamente com o conceito de compartilhamento. os avanços advindos com a internet permitem que 3 Nessa esteira também foi lançado outro estudo sobre a economia estas obras sejam hoje divulgadas com imensurádo compartilhamento e o consumo colaborativo, dos autores Rachel Bostman e Roo Rogers, traduzido para o título O Que é Meu, é Seu – vel rapidez, alcançando com eficiência mercados e Como o Consumo Colaborativo Vai Mudar o Seu Mundo. Na obra, os autores explanam como a filosofia das trocas e do compartilhamento consumidores dos mais diversos países, nas mais inspira o consumo colaborativo e promove o surgimento de redes de variadas partes do mundo. empréstimos e de compartilhamento. 4 Afirmação feita no prefácio do livro MESH: Por que o Futuro dos NeOcorre que a facilidade e a velocidade com que gócios é Compartilhar, de Liza Ganzky, da editora Alta Books, Rio de são divulgadas estas obras atualmente acarretam aos Janeiro, 2012. Bahia anál. dados, Salvador, v. 22, n. 4, p.709-719, out./dez. 2012

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titulares grande dificuldade em manter o controle so- as oferecidas, os titulares têm alguns de seus dibre o acesso a elas, dando azo à ocorrência dos mais reitos reservados. Entretanto, devem prescindir de diversos tipos de infrações aos direitos de proteção outros que não são garantidos por elas. A licença autoral. de atribuição, por exemplo, é obrigatória e autoriza Paranaguá e Branco a livre cópia, a distribuição e (2009, p.21) melhor aclaram Surge a necessidade da criação a utilização da obra (PARAo supracitado: NAGUÁ; BRANCO, 2009). de novos mecanismos de A complexidade da Ocorre que a economia do gerenciamento de direitos e vida contemporâcontrole do acesso às obras, a fim compartilhamento vai um pouco além no que diz respeito à nea tornou a anáde proteger os direitos dos seus forma de alcance das obras lise e a defesa dos titulares e à opção de comercializádireitos autorais -las abrindo mão dessas licenças. Faz-se mister frisar, muito mais difíceis. Até meados do século XX, contudo, que o modos de compartilhamento propora qualidade da cópia não autorizada de obras cionados pela licença creative commons e através dos de terceiros, por exemplo, era sempre inferior modelos de negócios mesh devem ser utilizados de à do original, sendo feita por mecanismos nem forma conjunta e complementar. Uma obra compartisempre acessíveis a todos. Com o avançar lhada por meio de uma empresa do modelo mesh pode do século, porém, e especialmente com o perfeitamente estar licenciada sob creative commons. surgimento da cultura digital — cujo melhor Atenta-se ao fato, apenas, de que o compartilhamento exemplo é a internet —, tornou-se possível a proporcionado pela rede mesh funciona como enérgico qualquer um que tenha acesso à rede mundial mecanismo a incentivar a compra de obras originais de computadores acessar, copiar e modificar e amplia de forma imensurável a divulgação destas obras de terceiros, sem que nem mesmo seus obras, atingindo públicos cada vez mais distantes. A autores possam exercer qualquer tipo de connova economia também inibe o uso ilegal de obras e trole sobre isso. Neste contexto, surge a necessidade da criação as consequentes violações ao direito autoral, além de de novos mecanismos de gerenciamento de direitos dar aos titulares maior liberdade para prescindirem de e controle do acesso às obras, a fim de proteger os licenças e explorarem suas obras de forma integral, direitos dos seus titulares. dentro dos limites da legislação que os ampara. Uma das mais aclamadas iniciativas rumo a este Este modelo de negócios permite que as obras propósito partiu de Lawrence Lessig, professor da intelectuais cheguem a um alto nível de divulgação Universidade de Harvard e criador das licenças creati- e popularização. Desta forma, seus titulares podem ve commons. O projeto tem o objetivo de “[...] expandir se sentir mais seguros, inclusive para adotar licena quantidade de obras criativas disponíveis ao públi- ças que abrem mão de parte de seus direitos. co, permitindo criar outras obras sobre elas, comparA rede mesh conta hoje com mais de 3.300 emtilhando-as. Isso é feito através do desenvolvimento e presas cadastradas, crescendo em uma base redisponibilização de licenças jurídicas, que permitem gular diária, ao que se soma o fato de quase 100% o acesso às obras pelo público, sob condições mais delas utilizarem a internet para a realização de suas flexíveis” (PARANAGUÁ; BRANCO, 2009). operações. Sob o sistema creative commons, os titulares poA lógica da economia do compartilhamento se dem autorizar a coletividade, por meio de licenças dá através da manutenção da originalidade da obra, públicas, a usar suas obras, dentro de seus limites. o que é óbvio, já que o consumidor não possui a Assim, ao optar por determinadas licenças, dentre propriedade individual sobre esta e não pode alterá714

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-la, visto que será compartilhada com outras pesso- putador, videogames e outros), sendo que a maioria as. Além disso, o controle e o incentivo ao uso não custa cerca de US$ 10. Obras, obviamente, originais irregular da obra se dão de forma muito mais ampla, e provenientes de acordos diretos com as editoras. através da utilização de plataformas formais, nas O modelo da economia do compartilhamento quais os consumidores compromove a integridade das partilham estes bens. No setor de artes e ofícios, os criações intelectuais e o resA relevância e o caráter peito aos direitos autorais nas negócios mesh proporcionam inovador da economia do mais diversas áreas, além aos consumidores alternativas compartilhamento giram em da propagação legal destas vantajosas e ainda mais baratas torno de três pontos que se obras. do que os modelos de posse relacionam aos direitos de No setor de artes e ofítradicionais acesso à cultura, à informacios, os negócios mesh proção e à educação, ao compartilhamento de bens e porcionam aos consumidores alternativas vantajoà proteção autoral: sas e ainda mais baratas do que os modelos de i) O compartilhamento destes bens intelectuais posse tradicionais. As empresas oferecem serviços pode ser oferecido e financiado através da adminis- de aluguel de artes originais, além de expô-las em tração pública, o que trará a gratuidade do acesso portfólios online, o que promove ampla divulgação às obras, promovendo o desenvolvimento cultural, das criações. Outro ponto notável diz respeito às educacional e tecnológico da sociedade. plataformas legais de modificação de obras de arii) Mesmo sob a iniciativa privada, através de em- tes, como, por exemplo, a Comic Dish, que conecta presas que utilizam o modelo de negócios mesh, o cartunistas que querem reinterpretar os desenhos custo do acesso à obra será significativamente me- de outros artistas, e a Sketch Swap, que permuta nor, pois o indivíduo não deterá a sua propriedade, croquis de designs de moda. Tal modelo de negótendo que compartilhá-la após o uso. O preço aces- cios evita a cópia fraudulenta de criações e ainda sível das obras coíbe a pirataria e o uso irregular. dá aos autores amplo controle sobre a reprodução e iii) O compartilhamento sob a iniciativa privada é adaptação de suas obras, pois eles participam ativafeito através de plataformas formais, o que também mente e atuam em conjunto com seus adaptadores. evita que conteúdos sejam alterados ou editados, Quanto aos livros e à escrita, os negócios mesh como músicas, por exemplo, visto haver uma em- objetivam manter as obras em circulação entre os presa que regula o conteúdo compartilhado e preza leitores e habilitar redes sociais de amantes da literapor sua originalidade. tura com o intuito de alugar, permutar e trocar livros O Pandora, serviço de acesso a músicas por e sugestões de leitura. Todos estes livros devem streaming através da internet, regula o conteúdo que ser, obviamente, originais, o que, no caso da permué oferecido, bem como as plataformas de distribui- ta, gera um incentivo à compra de mais e mais livros ção de livros digitalizados, blogs, jornais e revistas, de forma legal, para que assim os usuários posutilizadas através de players de e-books como o IPad sam ter um grande estoque e maior possibilidade e o Kindle, que também devem assegurar a integri- de conseguir, pela permuta, o livro que desejam ler. dade das obras neles compartilhados. O site Ama- De fato, o sistema não extingue a possibilidade da zon, dono do Kindle, oferece mais de 88 mil títulos realização de cópia privada para usos comerciais, de livros5 (além de DVDs, CDs, programas de com- o que é ilegal, mas a inibe de maneira considerável, haja vista os usuários de tais plataformas prezarem pela obra em sua versão original, até para poderem 5 Dado extraído do site: http://leituraprivada.wordpress.com/2009/04/ utilizá-la como instrumento de permuta. 29/kindle-o-que-e/ Bahia anál. dados, Salvador, v. 22, n. 4, p.709-719, out./dez. 2012

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Empresas como a BookCrossing, cujos mem- Paulo, o Projeto Moedas Criativas6. A ideia surgiu bros registram livros, deixam-nos em espaços pú- em 2003 e vem obtendo avanços bem mais signiblicos e rastreiam sua jornada pelo globo, ou como ficativos que os do Vale Cultura, de 2009, que até a Chegg, que aluga livros escolares, ou como a hoje aguarda aprovação. Text4Swap, que possui um O projeto pretende criar sistema de permuta para esNo Brasil, uma brilhante iniciativa um dinheiro exclusivo virtutudantes trocarem livros usa- utilizou-se das linhas traçadas pela al para ser utilizado no sedos, merecem destaque. Estor cultural. A iniciativa visa economia do compartilhamento tudantes carecem de cópias para unir os setores da educação, estimular a cultura de forma de livros de universidades e da cultura e do lazer em prol de um que, por meio dessa moeda, bibliotecas, e a reprodução seria possível pagar a entradesenvolvimento sustentável para fins didáticos é hoje um da dos principais eventos do dos maiores alvos de discussões no que tange à setor no país. Teatros, cinemas e os mais diversos reforma da Lei de Direitos Autorais, pois o texto le- espetáculos poderão disponibilizar ingressos atragal permite a cópia somente de pequenos trechos vés das “moedas criativas”. Elas já circulam em cadas obras. O maior acesso aos livros didáticos que ráter experimental e foram divididas em “alegrias” as plataformas de permuta proporcionam acarreta (voltadas para o entretenimento), “saberes” (utilizaa atenuação deste problema. das para pagar serviços educacionais) e “talentos” Plataformas de compartilhamento de músicas e (que remuneram atividades práticas). filmes também se inserem neste modelo. Além da O projeto utiliza a mesma lógica dos bancos comujá citada Pandora, destacam-se a SellaBand, que nitários, mas a diferença é a proposta de fazer circular capta recursos para financiar bandas musicais, e, moedas que estimulem o desenvolvimento da econoapós a gravação do álbum, o investidor tem direito mia criativa. O objetivo é ser um novo modelo de capa um exemplar gratuito e pode ganhar ainda outras tação e financiamento da produção e do consumo de retribuições por sua contribuição, e o Seventymm, cultura e educação. O projeto conta com o apoio do serviço de aluguel de filmes situado na Índia. No BNDES, que realizou investimento de R$ 100 mil, e já ramo da tecnologia, a plataforma Drupal se destaca ganhou dois prêmios do Ministério da Cultura. no gerenciamento de softwares livres. A iniciativa conta com o Fundo de Moedas ImaNo Brasil, uma brilhante iniciativa utilizou-se das ginárias (FMI), uma analogia ao Fundo Monetário Inlinhas traçadas pela economia do compartilhamen- ternacional, gerido pela Fundação de Apoio à USP to para unir os setores da educação, da cultura e do (FUSP), com patrimônio iniciado em R$ 150 mil. O lazer em prol de um desenvolvimento sustentável. projeto ainda está em fase de implementação, mas já tem o apoio do governo federal, visto que uma das alternativas de uso das “moedas criativas” é a troca O PROJETO MOEDAS CRIATIVAS: A por mercadorias apreendidas pela Receita Federal. UTILIZAÇÃO DAS DIRETRIZES DA ECONOMIA Schwartz esclareceu em entrevista7 que, para DO COMPARTILHAMENTO NAS POLÍTICAS começar a viabilizar os projetos, a meta é captar PÚBLICAS R$ 7 milhões em três anos, através de vários mecanismos distintos, de doações a investimentos. Faz jus a merecido reconhecimento a iniciativa do economista, jornalista e sociólogo Gilson 6 Maiores informações podem ser encontradas no site oficial do projeSchwartz, que desenvolveu, no departamento Ci- 7 to: www.iconomia.org/moedascriativas. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mercado/38699-uspdade do Conhecimento, da Universidade de São cria-projeto-de-moeda-criativa-digital.shtml. Acesso em 4 set. 2012. 716

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Afirmou, ainda, que já há cinco projetos de filmes terando em proporções incomensuráveis o alcance orçados com custo total estimado em R$ 3,5 mi- e a propagação de tais criações. Há de se atentar, lhões, produções que serão rodadas e pagas com contudo, que o direito de autor não é ramo isolado as “moedas criativas”. no ordenamento jurídico e, por si só, já limita outros O professor e sua notáprincípios, como os da libervel empreitada fazem parte Vivencia-se a era da informação, dade de expressão e os direido Projeto +20 Ideias para tos fundamentais de acesso à na qual os maiores bens do Mudar o Mundo, iniciativa cultura e à informação, menindivíduo concretizam-se na da Organização das Nações cionados neste trabalho. cultura e no conhecimento Unidas para a Educação, Resta imprescindível o a Ciência e a Cultura (UNESCO) que selecionou equilíbrio entre os interesses públicos e privados. personalidades de destaque no país, de diferentes Em torno desta máxima gira o grande cerne dos áreas profissionais, com ideias e pensamentos que debates acerca do direito autoral hodierno e da leacrescentassem qualidade às discussões sobre a gislação que o regulamenta. sustentabilidade do planeta. O Moedas Criativas foi As limitações e flexibilizações às quais o direiselecionado pela Conferência das Nações Unidas to autoral deve ser submetido fundamentam-se na sobre Desenvolvimento Sustentável (CNUDS), po- premissa de que os direitos autorais e seus conexos pularmente Rio+20, como uma das melhores inicia- estão subordinados aos princípios gerais do direito tivas sustentáveis do Brasil (MELLO, 2012). e devem ser limitados pela sua função social. O projeto idealizado por Schwartz conta com o Destarte, o direito autoral não pode jamais ser apoio do governo desde o início e é um exemplo exercido em absoluto, ou visto como um fim em si louvável de como o modelo da economia do com- mesmo, pois é instrumento a ser utilizado em razão partilhamento pode ser utilizado para construir par- do interesse público e com o escopo de promover o cerias entre as empresas privadas e a administra- progresso cultural e tecnológico dos mais diversos ção pública, fomentando o desenvolvimento cultural povos que integram a comunidade mundial. do país e beneficiando, sobremaneira, os cidadãos Vivencia-se a era da informação, na qual os brasileiros dos mais diversos âmbitos sociais. maiores bens do indivíduo concretizam-se na cultuOs múltiplos exemplos neste estudo permitem ra e no conhecimento. Tal evolução se deu de forma um entendimento mais concreto e objetivo sobre que a cultura é vista hoje como capital, e aqueles o novo modelo de economia, que não só respeita que a esta têm acesso tornam-se os verdadeiros os direitos dos titulares sobre as produções inte- abastados do século XXI. lectuais, suscitando o equilíbrio e a harmonização A economia criativa e suas indústrias culturais entre os mais diversos interesses da sociedade, maxivalorizam a cultura e, capitalizando-a, transforcomo promove a difusão da cultura, da educação mam a informação e o conhecimento em insumos. e da informação, alinhando-se em prol do cum- Neste trilhar, irrompe a economia do compartilhaprimento efetivo da tão almejada função social do mento, que revoluciona o modo de adquirir cultura, direito autoral. baseando-se no coletivismo, e insere nas relações sociais e econômicas um inédito modelo de propriedade. Deste modo, o consumo é trocado pelo comCONSIDERAÇÕES FINAIS partilhamento, fazendo surgir um novo paradigma de geração de riquezas. A regulamentação do direito autoral modificou Neste diapasão, o direito autoral não pode jasobremodo a relação entre o criador e sua obra, al- mais ser instrumento de obstáculo ao acesso pleno Bahia anál. dados, Salvador, v. 22, n. 4, p.709-719, out./dez. 2012

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A NOVA ECONOMIA DO COMPARTILHAMENTO E O EQUILÍBRIO ENTRE DIREITO AUTORAL E COLETIVO

à cultura e ao conhecimento, devendo ter sua atuação limitada aos contornos da sua função social. Resta claro que a proteção autoral exercida de forma abusiva não só limitará direitos, mas atingirá, além da esfera social, a seara econômica, transformando-se, assim, em um instrumento de repressão de produção e distribuição de riquezas. São estes os contornos almejados para o direito autoral do século XXI? Deixa-se assinalada a questão final, para que se perceba a relevância e o vasto campo de pesquisa que dessa premissa irrompem.

REFERÊNCIAS BRANT, Leonardo. Fronteiras de valor na iconomia. [S.l]: Culturaemercado, 2012. Disponível em: <http://www. culturaemercado.com.br/entrevistas/fronteiras-de-valor-naiconomia/>. Acesso em: 4 jun. 2012. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 1988. Disponível em <http://www.planalto. gov.br/constituicaofederal.htm>. Acesso em: 23 mar. 2012.

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Artigo recebido em 8 de outubro de 2012 e aprovado em 21 de novembro de 2012

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Referências No transcorrer do texto, a fonte da citação direta ou da paráfrase deve ser indicada pelo sobrenome do autor, pela instituição responsável ou, no caso de autoria desconhecida, pela primeira palavra do título da obra seguida de reticências, ano e página. Quando incluída na sentença, deve ser grafada em letras maiúsculas e minúsculas, e quando estiver entre parênteses, deve ter todas as letras maiúsculas. Exemplos: • A estruturação produtiva deveria se voltar para a exploração econômica de suas riquezas naturais, conforme esclarece Castro (1980, p. 152). • “O outro lado da medalha dessa contraposição da Inglaterra civil e adulta às raças selvagens e de menoridade é o processo pelo qual a barreira, que na metrópole divide os servos dos senhores, tende a perder a sua rigidez de casta” (LOSURDO, 2006, p. 240). No nal do artigo, deve aparecer a lista de referências, em ordem alfabética, em conformidade com a norma NBR 6023:2002 da ABNT. Exemplos: Para livros: • BORGES, Jafé; LEMOS, Gláucia. Comércio baiano: depoimentos para sua história. Salvador: Associação Comercial da Bahia, 2002. Para artigos e/ou matéria de revista, boletim etc.: • SOUZA, Laumar Neves de. Essência x aparência: o fenômeno da globalização. Bahia Análise & Dados, Salvador, v. 12, n. 3, p. 51-60, dez. 2002. Para partes de livros: • MATOS, Ralfo. Das grandes divisões do Brasil à idéia do urbano em rede tripartite. In: ______ (Org.). Espacialidades em rede: população, urbanização e migração no Brasil contemporâneo. Belo Horizonte: C/Arte, 2005. p. 17-56. Na lista de referências, os títulos dos livros devem aparecer sempre em itálico. Os subtítulos, apesar de citados, não recebem o mesmo tratamento. No caso de artigo/matéria de revista ou jornal, o itálico deve ser colocado no título da publicação. A lista de referências deve ser alinhada à esquerda e conter apenas os trabalhos efetivamente utilizados na elaboração do artigo. Originais Os originais apresentados serão considerados denitivos. Caso sejam aprovados, as provas só serão submetidas ao autor quando solicitadas previamente, cabendo ao mesmo fornecer informações adicionais, se necessário. Serão também considerados como autorizados para publicação por sua simples remessa à revista, não implicando pagamento de direitos autorais. A editoria-geral da SEI e a coordenação editorial do volume, em caso de aceitação do texto, reservam-se o direito de sugerir ou modicar títulos, formatar tabelas e ilustrações, entre outras intervenções, a m de atender ao padrão editorial e ortográco adotado pela instituição e expresso no Manual de Redação e Estilo da SEI, disponibilizado em www.sei.ba.gov.br, no menu “Publicações”. Comprometem-se ainda a responder por escrito aos autores e, em caso de recusa, a enviar-lhes os resumos dos pareceres.




COLABORARAM NESSE NÚMERO: Adriano Pereira de Castro Pacheco

Lielson A. de Almeida Coelho

Armando Alexandre Castro

Luciano Damasceno Santos

Bouzid Izerrougene

Maíra Vilas Bôas Matos

Cleonisia Alves Rodrigues do Vale

Marcus Vinícius de Lima Oliveira

Eduardo Vivian da Cunha

Maria Teresa Franco Ribeiro

Henrique Tomé da Costa Mata

Mario Cezar Freitas

Jorge Claudio Machado da Silva

Sirius Bulcão

Juan Brizuela

ISSN 0103 8117

977010381100- 1


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