O último dos Undergrounds

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DEZEMBRO 2007 . R$ 11,50 . www.bravonline.com.br

LOS TRES AMIGOS Em breve a série ganhará uma versão animada para a TV

ALTERNATIVO + REVOLUCIONÁRIO = ANGELI Em cartaz neste mês

POLÍTICA As contribuições da ditadura militar para a formação social de Arnaldo Angeli Filho CINEMA “Wood & Stock: Sexo, Orégano e Rock’n Roll” traz adaptação dos quadrinhos para as telonas HUMOR Os 34 anos do Salão de Humor de Piracicaba: os maiores cartunistas passaram por lá HISTÓRIA Por que a revista Chiclete com Banana se tornou um marco editorial brasileiro 12/2007 www.bravonline.com.br

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Angeli em seu estúdio de criação em 1980, local que mantém até os dias de hoje

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O ÚLTIMO DOS UNDERGROUNDS Para obter a posição que mantém há mais de três décadas no jornal Folha de S. Paulo, Angeli precisou bater o pé desde muito cedo. Hoje, aos 51 anos, para compor suas charges anárquicas, o cartunis­ta continua com o mesmo espírito rebelde POR DANÚBIA GUIMARÃES

“O

Dinho nunca se deu bem com a escola. Certa vez, a professora dele me chamou porque não sabia o que fazer. Seus cadernos viviam cheios de desenhos pornograficos

feitos por ele.” Dona Teresinha Astrini Angeli lembra que passou uma vergonha danada com o episódio. Hoje, cerca de 40 anos depois, apesar de sua vista já não ser tão boa como no tempo em que dava aulas de bordado, a memória continua funcionando bem. A senhora de 75 anos e sorriso sempre presente se diverte ao lembrar das estripulias do filho caçula na época escolar. Já seu Arnaldo, esposo de dona Teresinha, diz que nem esquentava a cabeça com o garoto. “Logo percebemos que o negócio dele não era os estudos mesmo. Tudo o que ele queria era desenhar.” E quando o diretor solicitou a presença imediata de um deles na escola, tiveram a certeza de que a incompatibilidade do filho com o ambiente escolar havia de fato alcançado um ponto limite. “Fiquei com tanta vergonha que pedi ao meu marido que fosse resolver o problema com o diretor. No fim das contas, Dinho, que cursava a 5º série na época, acabou sendo expulso por mau comportamento.” Seu Arnaldo confessa que não se lembra da convocação, muito menos de ter ido falar com o diretor, são “coisas da idade”, diz. Típico “italianão”, com sotaque carregado e voz mais alta que o tom normal, mantém o mesmo pique da juventude, quando, nas horas vagas, distraía os filhos e sobrinhos com seus desenhos. Mal sabia o funileiro mecânico, sua formação original, que as aulas caseiras serviriam mais tarde como inspiração para seu caçula. Apesar da mente falha, algo de que seu Arnaldo não se esquece é do temperamento difícil do garoto, desde os primeiros anos. Admite, inclusive,

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que já lhe deu umas boas palmadas, na tentativa de endireitálo. “O Dinho foi sempre rebelde. Quebrava orelhões pelas ruas, fazia bagunça nas festinhas em que era chamado, essas coisas. Na família tem sempre um que é assim. Mas até que tivemos muita paciência, sabe?” Dona Teresinha confessa que a paciência deles veio, principalmente, em decorrência da fragilidade física do filho. “Dinho sempre foi um menino muito doente. Logo que estive grávida dele sofri alguns problemas, quase precisei interromper a gestação. Por isso, nós sempre o incentivamos a ter uma vida correta, com bons hábitos. Nosso relacionamento sempre foi à base da conversa.” Talvez tenha sido por causa da colher de chá que o garoto sempre aprontou das suas. Segundo o próprio Dinho, o ambiente escolar nunca lhe agradou. Era a guerra de mamonas com os amigos, ou a luta livre, que o atraía até o colégio. “Eu logo comecei a não me dar bem com a escola. Queria deixar o cabelo comprido igual ao dos hippies, então começou a ter um embate entre o que eu queria e o que ela propunha. E aí eu comecei a utilizá-la para ver meninas, descobrir o prazer dos beijos, dos namoros e acabei deixando a escola de lado”, recorda-se Dinho. HERANÇA DE FAMÍLIA Depois de repetir três vezes a 5º série e de ser transferido para um colégio da rede municipal, já não era mais nenhuma novidade para dona Teresinha e seu Arnaldo a falta de vontade do filho em continuar freqüentando a escola – qualquer que fosse ela. “Para quê estudar se o que eu quero mesmo é ser desenhista, mãe?”, reclamava e reforçava o garoto que acabara de repetir pela quarta vez o ano. “Jubilei o sistema de ensino de vez de minha vida”, conta Dinho. Viciado em histórias em quadrinhos desde criança, principalmente as de velho oeste, gosto que herdou do pai, Dinho tornou-se especialista em desenhar caubóis. “Desde os três anos ele vivia com lápis e papel na mão. Acho que isso é coisa de família. Tanto meu marido, quanto meu cunhado também desenham muito bem. Só que o Dinho foi mais persistente”, conta dona Teresinha, orgulhosa. Não demorou muito para os primeiros trabalhos do garoto serem publicados na imprensa. Logo aos 14 anos, Dinho teve um de seus desenhos estampados na revista Senhor, uma publicação voltada para o público masculino, especializada em contos eróticos. Foi a sua estréia e o primeiro calote, já que não lhe pagaram pelo serviço. “Nem me lembro sobre o que era a charge. Apenas me recordo que era uma bela porcaria”. Alguns outros desenhos foram publicados com o passar do tempo, até que, aos 17 anos, depois de muito bater o pé, finalmente Dinho conseguiu o que tanto havia sonhado: a carta branca para tentar única e exclusivamente a vida de desenhista. A mãe até que tentou forçá-lo a trabalhar com o pai como funileiro, mas o próprio Arnaldo sentiu pena do filho. “Ele disse que as mãos do Dinho ficariam muito grossas, o que não

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“LOGO PERCEBEMOS QUE O NEGÓCIO DELE NÃO ERA OS ESTUDOS MESMO. TUDO O QUE ELE QUERIA ERA DESENHAR” TERESINHA ASTRINI, MÃE DE ANGELI combinava com o trabalho de um desenhista, que tinha que ter a mão fina”, lembra-se dona Teresinha. Como o garoto não tinha mesmo afinidade para os estudos, os pais, mesmo admitindo uma possível carreira como desenhista, insistiram mais um pouco em outra ocupação. Durante dois anos, Dinho trabalhou como office boy no Banco de Investimentos do Brasil que, no futuro, viria a tornar-se o Banco Itaú. Na empresa todos o conheciam devido à pastinha em que carregava seus desenhos. Depois do expediente, o rapaz visitava religiosamente o cartunista Zélio Alves Pinto, onde aprendeu a aperfeiçoar sua técnica. “Na época, diversos jovens artistas visitavam o meu ateliê. Como nos conhecemos durante a ditadura, nosso objetivo de redemocratização logo tornou nossa empatia imediata”, lembra-se o cartunista, famoso por sua atuação em O Pasquim, um dos ícones da imprensa alternativa dos anos 1970. Mas o período em que dividia seu tempo com a obrigação de ser office boy e o encantamento e aprendizagem que tinha com Zélio já estava se tornando insustentável para o aspirante a cartunista. “Foi um tremendo martírio para ele. Mas o Dinho foi levando até que surgiu a oportunidade de participar do Salão de Humor de Piracicaba. Não pensamos duas vezes. Juntamos um dinheirinho e o mandamos para lá”, lembra dona Teresinha. ONDE TUDO COMEÇOU Com 33 anos de estrada, o Salão Internacional de Humor de Piracicaba, hoje é considerado um dos mais importantes do mundo do universo das artes gráficas. Em sua primeira edição, na qual Dinho participou, grandes nomes das charges estavam presentes, entre eles, Ziraldo, Jaguar, Fortuna, Alcy, dentre outros colaboradores de O Pasquim. Naquela ocasião, Dinho foi incentivado a participar por nada mais, nada menos que o próprio Zélio, idealizador do concurso. “É importante que o artista sofra influências, mas que no final das contas, sua obra seja autêntica. Esse era o trabalho do Dinho”. Com todas as fichas na mão, o garoto não fez feio. Um dos três trabalhos que inscreveu acabou ficando com o terceiro lugar. Zélio lembra que na época estava nos Estados Unidos, mas que não foi nenhuma surpresa a conquista do pupilo. “Surpresa seria se ele não tivesse ganhado”, enfatiza. O cartunista confessa que seu interesse em criar o Salão de Humor surgiu justamente da intenção de poder mostrar o talento dos “moleques” que freqüentavam a sua casa. “Lembro-me que a cada vez que Dinho voltava, seu desenho estava melhor. Ele literalmente tomava porres de influências das obras que lia em minha biblioteca”. Os cartunistas underground Robert Crumb, Robert Shelton, Crepax e Wolinski eram os favoritos do rapaz. A charge que deu a medalha de bronze a Dinho retratava


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De família tradicional católica, os primos Milton e Arnaldo Angeli Filho (Dinho) momentos antes de realizarem a primeira comunhão

ANGELI E A POLÍTICA Era o ano de 1963 quando os primos Dinho e Milton se preparavam para a primeira comunhão. Na época, o presidente João Goulart havia acabado de assumir a presidência da República, depois da votação em plebiscito da volta do regime presidencialista. Uma ano mais tarde, com o Golpe de 1964, o Brasil foi submetido a uma ditadura que durou 21 anos, e que, diretamente ajudou a construir a consciência política de Angeli

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a falsa impressão de felicidade da população brasileira, em função do famoso “milagre econômico”. A falsidade era notada porque todos os personagens abordados estavam tristes, e para disfarçar e criar uma outra atmosfera, mais antenada com as exigências da ditadura militar, essas figuras usavam uma máscara de sorriso no rosto. “Esse salão foi o início de muita coisa para mim”, recorda-se orgulhoso. No entanto, por ironia do destino, o traço firme e inquisidor que mais chamou a atenção não foi o da ilustração vencedora mas uma das outras duas inscritas. O desenho retratava uma cena de caos urbano, na qual pessoas corriam para se desviar de bebês que eram jogados pela janela. Enquanto isso, um exército entrava expressando ódio em uma via chamada Rua Feliz. A idéia foi muito elogiada pela cartunista alemã Hilde Werber, famosa por seu traço bem-humorado para retratar a política. Com bom faro para detectar talentos, algo que aprendeu nos 33 anos em que trabalhou no jornal O Estado de S. Paulo, Hilde logo se encantou por Dinho. Na mesma hora, a cartunista ligou o marido, o jornalista Cláudio Abramo, indicando o rapaz para o cargo de chargista no jornal Folha de S. Paulo. No dia seguinte, o garoto, que nem havia com­pletado a maioridade, já estava contratado. SURGE UM CHARGISTA POLÍTICO Como nem mesmo os desenhos podem controlar o tempo, 34 anos se passaram desde então. Hoje, aos 51 anos, Arnaldo Angeli Filho, ou simplesmente Angeli, (pronuncia-se “Ángeli”,

“QUANDO SURGIU A OPORTUNIDADE DE PARTICIPAR DO SALÃO DO HUMOR DE PIRACICABA, NÃO PENSAMOS DUAS VEZES. JUNTAMOS UM DINHEIRINHO E O MANDAMOS PARA LÁ” TERESINHA ASTRINI como sua herança italiana exige), tornou-se um cartunista de mão cheia e língua afiada. “Até “Angéli”, como falam os portugueses, é melhor que “Angelí”. “Angelí” é coisa de boiola, mas pegou, fazer o quê, né?” Sem fazer rodeios, o Dinho, garoto encrenqueiro da Casa Verde, mostra que não perdeu quase nada de seu jeito moleque galhofeiro. Na juventude, eram comuns as idas ao bar Riviera, nas proximidades da rua da Consolação com a avenida Paulista, para tomar cerveja e falar besteiras com os amigos. Para ele, a prática ajudava a criar alguns de seus personagens. Esses encontros, contudo, foram diminuindo até que pararam de vez. “Atualmente, quando eu saio, volto logo! (risos) Nunca fui, tirando meu período junkie da vida, que durou uns 10, 15 anos, no qual eu saía toda noite, bebia toda noite, usava tudo toda noite, minha vida sempre foi muito caseira. Eu gosto de ficar em casa. E quando não tenho trabalho para fazer, eu gosto de ficar pesquisando, lendo coisas. Tenho prazer de ficar sozinho, isso é quase que crucial para mim”, justifica. O que não quer dizer, definitivamente, que o cartunista não tenha amigos ou vida social. Aliás, muito pelo contrário. Desde cedo foi namorador, tanto que poucos anos depois de ingressar na Folha, aos 19 anos, Angeli decidiu casar-se com Regina Reca, uma colega de escola - a mais bonita delas - a qual reencontrou no bar Riviera. Sobre o incidente, Dona Teresinha recorda-se que achou precipitada a atitude do filho que acabara de se mudar para Pinheiros, local mais próximo do trabalho, mas que também não foi contra. Ela lembra que nem mesmo no dia do próprio casamento, o filho abdicou de seu jeito rebelde de ser. “Nunca vou me esquecer deste dia. Ele estava de calça jeans e pedi a ele que colocasse ao menos a gravata. Mas ele não quis de jeito nenhum. Quando chegamos no cartório, o juiz de paz deu a maior bronca nele, dizendo que casamento era coisa séria”. Quatro anos mais tarde, aos 23 anos, Angeli acabou

SALÃO INTERNACIONAL DE HUMOR DE PIRACICABA OS ARTISTAS QUE PARTICIPARAM DO EVENTO E CONSAGRA­RAM-SE CARTUNISTAS ANOS MAIS TARDE

www.bravonline.com.br Charge que levou o 3º lugar no concurso cultural

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• Laerte Coutinho (1974 e 1977) • Angeli (1974) • Alcy Linares Deamo (1974 e 1976) • Francisco Caruso (1976) • Glauco Vilas Boas (1977 e 1978)


descobrindo o significado do que o juiz havia lhe dito. Percebeu que o seu relacionamento não iria para frente. Com medo de machucar os sentimentos de Regina, acabou mantendo em segredo um outro relacionamento com a diretora de TV Márcia Aguiar. Passado um ano, o cartunista tomou coragem para contar a verdade para a esposa. Se com Regina a história não deu certo, com Márcia a coisa foi diferente. Desta vez, o re­lacionamento durou 18 anos e deste amor nasceram Pedro e Sofia, as verdadeiras paixões do cartunista. Até os dias de hoje, apesar de separados - o cartunista namora atualmente a arquiteta Carolina Guaycurú - Angeli e Márcia se encontram, principalmente em alguns dos almoços de domingo na casa da mama. INÍCIO NA FOLHA Desde que chegou ao jornal Folha de S. Paulo, em 1974, o cartunista batalhou por sua liberdade editorial para a criação de suas charges, espaço que o próprio estabeleceu no veículo. “Fui eu que fixei esse espaço. Talvez pela minha persistência de dizer: ‘eu vou ficar aqui’. Isso é típico de virginiano.” Um ano depois de sua entrada no jornal estréia a coluna Tendências e Debates, mesma época em que o cartunista passou a sentir o peso da ditadura. Além disso, Angeli trabalhava na redação no período noturno, para o desespero de dona Teresinha. Preocupada com a violência de São Paulo, sugeriu ao filho que pedisse para ser freelancer e, assim, poder trabalhar em casa. Não demorou muito para que o pedido da mãe coruja fosse aceito. Assim, o caçula passou a trabalhar em casa, hábito que mantém até os dias atuais. “Faz uns 15 anos que eu não apareço por lá. Eles sabem o horário

Levado e sapeca, apesar de não ser fã de livros, Dinho desde cedo foi apaixonado por histórias em quadrinhos

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Produção da primeira tira Chiclete com Banana para o Caderno Ilustrada - 1893

que eu mando a charge por e-mail e pronto”. O cartunista conta que antes de sua chegada ao jornal, o espaço da charge política era pouco explorado e utilizado para a publicação de fotos de agências internacionais. “Aquele espaço não tinha um chargista fixo. Quando eles não tinham o desenho, eles colocavam uma foto curiosa, de um macaco vestido de bailarina, por exemplo.” Durante os 10 anos iniciais em que Angeli permaneceu como chargista, foi uma pressão atrás da outra devido a ditadura militar. Na época, o governo de Ernesto Geisel e mais tarde, o de João Figueiredo, pressionavam os jornais a não se manifestarem contra o regime. Acuada e para não ser empastelada, a imprensa cedia a autocensura. “Acabou que a charge perdeu o seu valor, já que passou a tornar pessoas que mereciam a devida crítica em engraçadinhas. Como se fosse mais uma sacanagenzinha do ministro de tal. Porque não tinha como fazer uma crítica que destruísse o cara.” De “saco cheio” com a censura e de ter que lidar com a política de forma superficial, Angeli decide dar um tempo com as charges e partir para um outro nicho pouco explorado pelo jornal: as histórias em quadrinhos. “Parei com a política, falava mal mesmo. Com a ditadura, não podia me aprofundar. Decidi fazer aquilo que eu sempre quis. Então comecei a negociar com a Folha para colocar outro chargista no meu lugar e eu ir para o caderno Ilustrada fazer tiras, criar, ilustrar. Queria ir para a área cultural.” Sexo e drogas, dentre tantos outros assuntos, tornaram-se recorrentes em suas tiras diárias a partir de 1983, momento em que Angeli abandonou as charges políticas no jornal Folha de S. Paulo. A ida para o caderno Ilustrada lhe permitiu o espaço de criador que tanto lhe fazia falta, sem necessariamente abandonar de vez a crítica e a política nacional. “Como sempre fui muito profundo, eu utilizo quadrinhos também para discutir assuntos que acho serem travas que as pessoas têm. Como política, ou mesmo sexo, por exemplo. É uma forma de colocar a discussão em pauta. Para que o leitor olhe para aquilo e pense até contra mim se quiser. Que diga: ‘o Angeli pensou bobagem, não é assim’, ou ‘não concordo com a opinião dele’, mas que cause alguma polêmica, uma discussão sobre o assunto.” Angeli percebeu que precisava desenhar sobre as coisas em que realmente acreditava e que essa exigência naquele momento não conseguia ser exposta por meio das charges. “Comecei a desenhar logo de cara o Meia Oito, uma crítica aos esquerdistas de botequim, aos revolucionários de meia pataca, que só conheciam a palavra de ordem, mas não faziam nada.” Se há alguém que possa falar com propriedade sobre política, este é Angeli. O cartunista passou por um período turbulento da história com a ditadura militar, mas sempre buscou expressar seu posicionamento alternativo, mesmo que contrário ao que era exigido na época. Ele conta que quando jovem produziu com os amigos um fanzine chamado Patatá, primeiro veículo no qual trabalhou e que foi apreendido pelo DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), criado justamente para reprimir movimentos contrários ao regime. “Eu fiz um cartum, que, na

“LEMBRO-ME QUE A CADA VEZ QUE DINHO VOLTAVA, SEU DESENHO ESTAVA MELHOR. ELE LITERALMENTE TOMAVA PORRES DE INFLUÊNCIAS DAS OBRAS QUE LIA EM MINHA BIBLIOTECA” ZÉLIO ALVES, CARTUNISTA 12/2007

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Laerton, Angel Vila e Glauquito na ĂŠpoca auge da revista Chiclete com Banana

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“PAREI COM A POLÍTICA, FALAVA MAL MESMO. COM A DITADURA, NÃO PODIA ME APROFUNDAR. DECIDI FAZER AQUILO QUE EU SEMPRE QUIS. QUERIA IR PARA A ÁREA CULTURAL” verdade, era uma ilustração de um texto de alguém lá da revista, que era um mapa do Brasil com uma tarja de censura. Hoje em dia isso é ridículo. Não diz nada. É idéia de uma ilustração de baixa qualidade. Mas aquilo criou problema”, recorda-se. A ligação do cartunista com movimentos de redemocratização, autênticos e, de certa forma, alternativos, veio de garoto, quando leu pela primeira vez as tirinhas do cartunista Robert Crumb, na revista francesa Actuel e mais tarde, na O Grilo. “Como não compreendia os textos por não dominar o francês, o que me chamava mesmo a atenção era o traço. A opinião que o Crumb expressava pelo traço. Aquilo não precisava de palavras. Me identifiquei com ele na hora. Não há quem faça quadrinhos que não tenha passado por ele.” Talvez por desde cedo ter se preparado para ser um formador de opinião e não simplesmente um robô nas mãos da ditadura, Angeli não fazia o tipo conformado com a situação em que vivia. Ele lembra que esse foi um dos principais motivos para

abandonar a escola, que nada mais era que a extensão da ditadura dentro da sala de aula. “Lembro que o diretor fazia com que os alunos cantassem o hino nacional como se fossem soldadinhos contra o comunismo. Era um homem com cara de fascistão, sabe? Cabelo cortadinho no estilo militar. Eu logo comecei a não me dar bem com aquilo tudo.” Todas essas experiências com a política da época veio a influenciar muitos de seus personagens, a começar pelo Meia Oito. Os saudosos Sobrinhos do Capitão, a dupla de pestinhas que aprontava em uma ilha, também influenciou o cartunista. “Aqueles quadrinhos eram uma coisa para criança, mas ficaram muito na minha cabeça. Sempre carreguei a imagem deles e o jeito que era feito o quadrinho. Então muito mais tarde eu resolvi homenagear esses personagens e fiz os Skrotinhos“, lembra Angeli. Os brasileiros Ziraldo, Henfil, Millôr Fernandes, dentre tantos outros nomes também serviram de inspiração para o artista. RÊ BORDOSA, A JUNKIE DOS ANOS 80 Logo depois do sucesso de Meia Oito, Angeli atingiu o auge de sua carreira com a criação da junkie Rê Bordosa. A personagem libertina, alcoólatra e viciada em sexo conquistou seu espaço e tornou-se símbolo da mulher da década de 80. Rê Bordosa surgiu como praticamente todos os seus personagens: fruto de muita observação. Angeli conta que a junkie foi inspirada em um episódio que presenciou no bar Pirandello, localizado na rua

ANGELI E LOS TRES AMIGOS

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O cartunista criou juntamente com Glauco Vilas, Laerte Coutinho e, mais tarde, Adão Iturrusgarai a tira Los Tres Amigos, um dos maiores sucessos da Chiclete com Banana. O quadrinho foi inspirado no filme norte-americano de mesmo nome

Comecei a publicar na Folha Eu e o Angeli nos conhecemos quando Angeli era editor do hu- no início dos anos 70, quando estávamos fazendo mor Vira-Lata, encarte do Fol- ambos fanzine e tentando começar a hetim. Ele viu meu trabalho nos publicar em jornais maiores. arquivos do jornal e me convidou a integrar o time de cartunistas Amigos, mesmo, foi apenas 10 anos depois com ele

Fui conhecer Angeli pessoalmente quando lancei a revista Dum Dum, em 1990. Foi bastante emocionante para mim. Pensei: ‘putz, quero que o meu trabalho seja como o 12/2007 desse carawww.bravonline.com.br


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“LEMBRO QUE O DIRETOR (DA ESCOLA) FAZIA COM QUE OS ALUNOS CANTASSEM O HINO NACIONAL COMO SE FOSSEM SOLDADINHOS CONTRA O COMUNISMO. EU LOGO COMECEI A NÃO ME DAR BEM COM AQUILO” Augusta, o qual freqüentava vez ou outra com os amigos. O bar pertencia a um casal gay de amigos jornalistas de Angeli e era um dos pontos onde grandes nomes da cultura se reuniam. Na ocasião, em um certo fim de noite, o cartunista estava com o escritor Mário Prata e outros amigos quando percebeu que em uma determinada mesa havia uma moça com um “cara” de cada lado. “Eles meio que se esfregavam, se malhavam ali”, recorda. Mas o fato que chamou mesmo sua atenção foi que a toda hora a moça abaixava e mexia em alguma coisa debaixo da mesa. “Na hora até pensamos besteira (risos), mas depois a gente descobriu que era o filho dela, uma criança que estava deitada em duas cadeiras juntas.” Angeli conta que foi nesse momento que alguém em sua mesa comentou: ‘pô, olha aí a nova mulher brasileira’. O comentário surgiu como um estalo. A partir de então Angeli começou a refletir sobre a situação da mulher na época. ‘Pô, tá aí alguém diferente, no início dos anos 80’, pensou. “Foi daí que eu pensei na Rê Bordosa.”, recorda-se. Mas Angeli admite que o bar Pirandello foi apenas o estopim para a criação da junkie. A maioria das cenas que presenciou, e que mais tarde virariam história em quadrinhos, aconteceram no bar Riviera. O cartunista lembra-se de um episódio que veio a ser um dos mais emblemáticos da história de Rê Bordosa. “Certa noite, entrei no banheiro dos homens, às quatro da manhã, e tinha uma menina fazendo xixi em pé e bêbada. Fiquei meio assustado, sem jeito, até pensei que devia ter entrado no lugar errado. Mas ela estava fazendo no urinol de homem. Daí ela virou para mim e falou: ‘olha meu, depois das quatro da manhã eu faço coisas que até Deus duvida’. O cartunista conta que essa foi a frase exata de uma história da Rê Bordosa anos mais tarde. “Fcou uma tira muito emblemática. Todo mundo fala que lembra dessa tira. Acabou sendo meio que uma homenagem ao bar também.” REDESCOBRINDO TALENTOS Durante os quatro anos seguintes, as tiras da personagem na Folha foram um verdadeiro sucesso, e só não durou mais porque a personagem acabou “travando” o instinto criativo de seu autor. “A Rê Bordosa cresceu demais, já estava perdendo o controle. Além do mais, não queria ser como o autor do Charlie Brown, que faz o mesmo personagem há 50 anos”. Sem dó nem piedade, o cartunista assassinou sua personagem e retratou sua morte nas tiras. A justificativa para o fato foi que a junkie não suportava mais a vida de casada que

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ANGELI NO TÚNEL DO TEMPO 1970 - 1º desenho publicado e também seu primeiro calote aplicado pela revista Senhor 1974 - Participa da 1º edição do Salão Internacional de Humor de Piracicaba - É contratado pelo jornal Folha de S. Paulo como cartunista político 1983 - Abandona a coluna Tendências e Debates na qual produzia sua charge e migra para o caderno Ilustrada 1985 - Lança em parceria com o amigo Toninho Mendes a revista Chiclete com Banana, um verdadeiro marco editorial brasileiro 1991 - Revista chega ao fim devido aos diversos planos econômicos 1993 - Angeli volta a produzir charges para a coluna Tendências e Debates 2005 - Estréia nos cinemas Wood & Stock: Sexo, orégano e Rock and Roll, inspirado em seus personagens 2007: Pós-produção do curta A Calda do Dinossauro, inspirado no pers­o­nagem Edi Camapana, da Chiclete com Banana

passou a levar e acabou explodindo. Apesar da preocupação de ser reconhecido por causa de apenas um personagem, Angeli, definitivamente não é dono de um sucesso só. Na mesma linha de Bordosa, ele criou também o punk Bob Cuspe, inspirado em seus tempos de office boy, sem falar na dupla de pestinhas Skrotinhos, no tarado Bibelô e no rare krishna Ralah Ricota, em homenagem ao amigo e parceiro de trabalho Glauco Vilas Boas. Com o tempo, todos os seus personagens foram ganhando o seu devido espaço, até que a Folha sentiu a necessidade de chamar novos artistas que seguissem a mesma linha de Angeli. Logo, Glauco Vilas Boas e Laerte, colegas da época em que freqüentavam a casa do Zélio quando jovens, foram integrados ao time. Surgia então o simpático e hilário Geraldão, o solteirão que mora com a mãe, e os Piratas do Tietê. Os personagens, a exemplo da Chiclete com Banana, pouco tempo depois,


também ganharam revista própria. Aos poucos, e por influência de Angeli, os cartunistas brasileiros começaram a tomar conta de um espaço que, até então, era praticamente dominado pelos quadrinhos importados, com exceção dos personagens da Turma da Mônica, criados por Maurício de Sousa. “Aquele foi um período ótimo. O Angeli tem um espírito alegre, aliado a forte vocação organizadora”, recorda-se Laerte. Já Glauco vai além e reconhece que tem muito a agradecer ao amigo, já que foi chamado por ele a ingressar na Folha. “Comecei a publicar no jornal em 1980. Na época, Angeli era diretor da parte de humor do encarte Folhetim. Certo dia, mexendo nos arquivos do jornal, ele encontrou os meus desenhos e me convidou para integrar o time. Ele foi um verdadeiro padrinho.” Adão Iturrusgarai, criador da adolescente Aline e do casal gay Rocky e Hudson, embora tenha chegado uma década depois à Folha, também admite que foi um prazer trabalhar com o amigo e verdadeiro ídolo. “Lembro-me quando Angeli foi me visitar pela primeira vez em casa. Pensei: ‘não acredito que esse cara está vindo até aqui.’ Aprendi muito com ele.” O bom relacionamento entre o quarteto, unido ao sonho de infância de Angeli e do amigo Toninho Mendes, colega de infância também fissurado por quadrinhos, resultou na criação de uma revista que faria história em sua época, como a primeira de quadrinhos destinada ao público adulto. O SUCESSO DA CHICLETE A parceria entre Angeli e Toninho Mendes, a qual culminaria não só na criação da revista Chiclete com Banana, como em todos os outros projetos juntos, é mais antiga do que se possa imaginar. Os dois se conheceram quando ainda usavam calças curtas e freqüentavam a banca de gibis velhos do Manelão, próxima a casa dos dois. Depois disso, passaram a fazer diversas coisas juntos, de viagens ao Rio de Janeiro a passagens pela prisão por baderna. De acordo com a versão de Angeli, os dois se conheceram ainda

“LEMBRO-ME QUANDO ANGELI FOI ME VISITAR PELA PRIMEIRA VEZ EM CASA. PENSEI: ‘NÃO ACREDITO QUE ESSE CARA ESTÁ VINDO ATÉ AQUI” ADÃO ITURRUSGARAI crianças, pela afinidade que tinham pelos quadrinhos. “Estávamos na banca do Manelão quando olhei para ele e disse: ‘ah, você tem o gibi do Batman?’ Passamos a discutir coisas de colecionador e acabamos virando amigos inseparáveis.” Já para Toninho Mendes a história foi um pouco diferente. Ambos foram apresentados pelo irmão de Toninho, Levi, que na época tinha o apelido de Batatinha. “Nós acabamos nos conhecendo na adolescência eu devia ter 13 anos e o Angeli 11. Segundo o editor, por uma série de circunstâncias, os dois passaram a partir dali a estar mais próximos, não só profissionalmente, mas pessoalmente. “Eu fui padrinho do primeiro casamento do Angeli, sem contar mais um monte de coisas que fizemos juntos.” Toninho confessa que até mesmo experiências das mais bizarras estava ao lado do amigo. “Nós viramos hippies de fim de semana juntos, gastávamos o dinheiro que recebíamos como office boy comprando um monte de miçanga, anel, pulseira, chapéu e depois íamos para a Praça da República fantasiados. Assistimos ao filme “Woodstock” várias vezes juntos, mesmo sendo menores de idade, sem falar na primeira vez que fomos presos.” O editor conta que ele e Angeli eram delinqüentes por natureza. Atitude que os levou para a prisão por diversas vezes. A mais marcante foi, sem dúvida, a primeira, logo que Angeli ingressou na Folha, aos 17 anos. “Eu, ele e mais dois cartunistas mais velhos fomos presos por baderna. Fazíamos várias coisas. Ficávamos de porre e estragávamos a festa dos outros, coisas de moleque. Nisso fomos parar na delegacia. Segundo a versão de Angeli,

OTTO DESENHOS ANIMADOS

A junkie teve vida curta, apenas três anos, mas foi sem dúvida o maior sucesso do cartunista

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Debates em época de ditadura: da esquerda para direita: Zélio, Ciça, Fortuna, Angeli, Glauco e Laerte

“A REVISTA SURGIU EM UM MOMENTO QUE AS HQs PROCURAVAM MAIS ESPAÇO. ELA SE ESTABELECEU COMO UM MODELO DE REVISTA VOLTADA PARA O PÚBLICO ADULTO, SEJA PELA TEMÁTICA, DIAGRAMAÇÃO, ESTILO E PÚBLICO” WALDOMIRO VERGUEIRO, COORDENADOR DO NPHQ-USP

o carcereiro mandou que eu limpasse a privada do banheiro, mas segundo a minha versão nós limpamos juntos e o cara liberou a gente antes que o delegado chegasse pela manhã”, recorda-se. Quem não gostou nada da peripécia do filho foi dona Teresinha. Ela conta que passou a noite inteirinha na janela à espera do caçula. “Fiquei tão desesperada que assim que Dinho chegou em casa o coloquei de castigo. Ele estava proibido de sair nos próximos dias. O problema é que logo em seguida chegou o Toninho Mendes o chamando para sair. Fui dura na queda, mas acabei deixando Toninho ficar em casa com o Dinho”, lembra-se. Outro fato que ficou muito marcado entre os amigos foi quando decidiram viajar para o Rio de Janeiro, já que lá ficavam os ícones do cartum do humor brasileiro. “Tanto eu quanto o Angeli desenhávamos e queríamos muito conhecer o Rio de Janeiro e fomos indicados por amigos que escreviam poesia e literatura para passar uma temporada na casa do poeta Antônio Ventura. Queríamos conhecer o Carlos Drummond de Andrade, e o Angeli queria mais do que nunca conhecer o pessoal do Pasquim para mostrar seus desenhos”, lembra-se Toninho. Na

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época, Angeli tinha apenas 16 anos. O desenhista confessa que para sobreviver no estado, os dois ajudavam a vender os poemas de Antônio Ventura de mão em mão. “Fomos vivendo de uma maneira bem elementar.” ANOS DOURADOS DA CHICLETE Essa e outras histórias de vida entre Angeli e Toninho Mendes não se perderam com o tempo e acabam desaguando depois de muitos anos, na criação da revista Chiclete com Banana e na editora Circo Editorial. “O Toninho conseguiu sócios, pessoas para a equipe, gráfica mais barata, enquanto eu me mostrei um bom editor.”, lembra-se o cartunista sobre os primeiros passos da revista. Segundo a dupla, a revista começou como um trabalho somente de Angeli e, com o tempo, foi integrado ao time nomes como Glauco, Laerte, Adão entre outros. “Comecei a perceber que seria impossível dar continuidade sozinho. Então transformei a Chiclete em um apanhado de autores de qualidade.” Não demorou muito até que a revista se transformasse em algo de influência. Em seu auge, a Chiclete vendeu 110 mil exemplares, algo inédito no mercado editorial de quadrinhos brasileiros até então. “Ficamos muito surpresos. Nossa propaganda era feita de boca a boca e deu muito certo. Eu e Toninho achamos que a Chiclete não resistiria.” A revista era impressa em papel jornal, aos moldes dos fanzines underground os quais serviram como influência ideológica tanto para Angeli quanto para todos os integrantes da revista. A diferença era que a revista foi mais bem acabada, desenhada e distribuída, como ressalta Waldomiro Vergueiro, membro do Núcleo de Pesquisa de Histórias em Quadrinhos da USP. “A revista surgiu em um momento que as HQs procuravam


“SEM DÚVIDA, O MAIS BAGUNCEIRO ERA O GLAUCO, MAS ANGELI TAMBÉM FALAVA MUITA MERDA. ERA O MAIS GALHOFEIRO, ADORAVA TIRAR SARRO DOS OUTROS” ADÃO ITURRUSGARAI mais espaço, é um marco. Ela se estabeleceu como um modelo de revista voltada para o público adulto seja pela temática, diagramação, estilo e público. É um modelo alternativo ao fanzine, já que não fica presa a produção amadora. Mas, por outro lado, ela não perdeu sua raiz underground por isso. Ela se mantém alternativa no estilo, mas com a devida profissionalização e atualização necessárias.” Uma das grandes heranças deixadas pela Chiclete foi a parceria entre Angeli, Laerte, Glauco e, mais futuramente, Adão. Juntos, deram origem à tira Los Tres Amigos, uma das mais famosas e comentadas da publicação. Para conceber as histórias, os amigos se reuniam todas as quintas-feiras, geralmente, na casa de Glauco. O cartunista recorda-se que Angeli sempre foi o “manda-chuva”, o mais disciplinado do grupo. Já Adão lembra que o clima das reuniões era muito divertido, tempo em que aproveitavam para colocar o papo em dia. “Só faltava sexo ali. Era muito bacana. Sem dúvida o mais bagunceiro era o Glauco, mas Angeli também falava muita merda. Era o mais galhofeiro, adorava tirar sarro dos outros.” Laerte faz coro aos amigos e ressalta que era das milhares de besteiras que falavam, que surgia uma idéia para ser transposta para o papel. “Nos reuníamos para falar muita bobagem, até pintar uma piada. Íamos trabalhando nela até que ficasse satisfatória para todos.” Além de Los Tres Amigos, a revista também dispunha de colunas, escritas pelo próprio Angeli. Ele incorporava o correspondente internacional Edi Campana, voyerista que tinha o fetiche de ficar observando suas vizinhas em sua intimidade pela janela. A sessão de fotonovelas, intitulada Angeli em crise, na qual os dramas e dilemas do próprio cartunista eram expostos, também faziam sucesso.

influenciada pela revista. Às vezes, encontro até hoje blogs de Portugal de cartunistas que dizem que tudo começou quando leram pela primeira vez a Chiclete com Banana.” Além de Portugal, os personagens de Angeli permearam pela imprensa italiana, mexicana e argentina por alguns anos. Durante quase uma década a revista participou da história da imprensa até que com o passar dos tempos foi perdendo a força. Com os anos e os diversos planos econômicos colocados em prática no país, a Chiclete começou a dar sinais de que não se sustentaria por muito tempo. “Na época do fim, com a inflação alta, o plano Collor confiscou todo o dinheiro que tínhamos em caixa, mas ainda resistimos um bocado mesmo com problemas financeiros”, lembra Angeli. “As vendas foram caindo para 50 mil, 40 mil exemplares. O processo de encerramento da Chiclete com Banana foi tão natural quanto o seu nascimento”, lembra Toninho Mendes. A venda de apenas 30 mil exemplares mensais rompeu uma barreira simbólica e acendeu um sinal amarelo. “Começou a ser pouco. Então foi cansando todo esse estresse. Até que decidimos fazer a última edição da revista seguindo os moldes da primeira edição. Quase tipografia mesmo. Eu fazia quase todos os layouts, desenhava, escrevia os textos. Fiquei grisalho com a revista”, confessa Angeli. HUMOR, POLÍTICA E INFORMAÇÃO Mesmo com o fim da Chiclete, o gosto de Angeli pelas tirinhas não desapareceu. Nunca mais ele parou de colaborar para a Ilustrada. O que não o impediu de, desde 1993, retomar com as charges políticas, tornandose imbatível com suas críticas em dias alternados para a página A2 do jornal Folha de S. Paulo. Nesse momento, o cartunista retorna com toda a verve acumulada, em pleno governo Itamar Franco. Mas seu político “favorito” foi, sem dúvida, o

FOTO ARQUVO PESSOAL DO AUTOR

CHICLETE INTERNACIONAL A revista alcançou um patamar tão elevado que a editora Abril, responsável pela publicação, decidiu exportá-la também para Portugal. Durante 10 anos, os portugueses tiveram contato com o trabalho dos cartunistas brasileiros por meio da Chiclete. Angeli conta que não sabia sobre a aceitação de seus personagens no exterior e só foi descobrir quando começou a receber cartas de fãs comentando sobre a revista. O cartunista confessa que foi uma surpresa a sua aprovação em terras estrangeiras, principalmente de Portugal, já que sempre teve um certo preconceito com o país. Ele lembra que, inclusive, quando viajava pela Europa, fazia questão de circundar o país, mas não passar por ele. “Acho que é a revolta do colonizado né? Eu tinha raiva mesmo. Até que fui convidado para fazer uma exposição em um Festival de Humor por lá e topei”. Surpresa maior foi quando logo na alfândega, Angeli foi reconhecido. O cartunista conta que na ocasião levava uma caixa cheia de livros com ilustrações de seus personagens e foi obrigado a abri-la para um policial. “Quando ele viu que a capa era dos Skrotinhos começou a chamar o pessoal que gostava das tirinhas. Fiquei até assustado. Foi minha primeira entrada no aeroporto. Aí fui vendo que tinha uma geração toda que era

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PERFIL

ANGELI E WOOD & STOCK - O FILME O diretor Otto Guerra, que também esteve à frente do longa Rocky e Hudson, conta em entrevista à BRAVO! como foi o processo criativo do longa inspirado nos personagens de Angeli O convite de produzir o filme partiu do Angeli, ou a idéia foi sua? Otto: Foi minha. A princípio pensei no Ozzi, mas o Angeli disse que odiava o personagem, que o achava infantil demais. Daí ele sugeriu o Wood e Stock. Quer dizer então que você já conhe­ cia o trabalho dele? Otto: Já sim. Comprava sempre a Chi-

clete com Banana.. Acho que o tipo de humor dele é completamente atual, visionário, cruel. Nem preciso dizer que sou o maior fã, né?

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E o Angeli não achou ruim essas mudanças? Otto: Angeli lavou as mãos. Confiou muito no nosso trabalho. E no final das contas acabou dando tudo certo. Ainda me lembro da primeira vez que Angeli assistiu ao filme. Foi em Recife. Todo mundo gostou, aplaudiu. Qual foi a participação do Angeli na produção do filme?

E foi fácil fazer a releitura dos quadri­ “EU, ELE MAIS DOIS CARTUNISTAS Otto: Ele liberou os direitos de imagem nhos para asEtelonas? MAIS VELHOS FOMOS PRESOS POR dos personagens, opinava em uma coisa BADERNA. FICÁVAMOS DE PORRE E ou outra, mas não participou da roteirizaOtto: Na verdade foi bem complicado! ção, não colocou a mão na massa. ApeESTRAGÁVAMOS A FESTA DOS OUTROS, Como no filme misturamos vários persar disso, fiz questão de manter o roteiro COISAS DE MOLEQUE” TONINHO MENDES sonagens de épocas diferentes, tiveo mais fiel possível às tirinhas dele. mos de fazer algumas modificações.

ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Por se considerar de esquerda, não admitia um representante “aristocrático” como chefe maior da nação. Nos desenhos, FHC era retratado pelos traços de Angeli como um homem fútil, com aspecto de vampiro, comandado pela mulher, completamente sem inteligência e educação. Em uma de suas charges mais emblemáticas, publicada em 3 de fevereiro de 1997, FHC aparece tatuando a faixa presidencial no corpo. Na legenda do desenho apenas o dizer: “radical”. Em outra delas, publicada em 25 de fevereiro de 2001, o presidente aparece com sua mulher, Ruth Cardoso sob os dizeres: “Francamente Fernando!? Eu preferia quando você se fantasiava de sociólogo”. A relação nada amigável com o presidente da época culminou em uma biografia não-autorizada composta por um compilado de charges envolvendo FHC e o seu governo. A obra que abrange os anos de 1995 a 2001 foi publicada pela editora Ensaio, mas, hoje, também pode ser conferida no site oficial do cartunista. Apesar de ter feito sucesso com as caricaturas de FHC, Angeli confessa que não é fã do gênero e que não deseja ser lembrado pelas caricaturas que fez. “Prefiro desenhar o comportamento das pessoas sem precisar ligá-lo ao nome de um político. Observo comportamentos condenáveis, o chamado jeitinho brasileiro, por exemplo, que desemboca na corrupção. Essa é a forma que utilizo para que leitores que não têm o hábito de ler sobre política

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A Rê Bordosa, por exemplo, ficou meio misturada com a personalidade da Mara Tara. Angeli também é muito exigente, muito complexo. Engraçado o paradoxo, porque ele leva tudo muito a sério mas não é sério (risos).

também compreendam o mundo em que estão inseridos.” Esse comportamento pode ser traduzido, segundo o jornalista Gonçalo Junior, autor do livro Guerra dos Gibis, como “humor reflexivo”. Ele afirma que essa vertente é típica de Angeli, já que ele assume uma posição nada condescendente com a política e faz o leitor compreender toda essa situação. “Angeli continua coerente com o que fazia desde os anos 80. Ele mantém essa fidelidade de ser muito sarcástico, irônico com tudo que o cerca. Ele é muito crítico, e principalmente o grande lance dele é fazer você refletir, te fazer perceber o ridículo de tudo.” Justamente por não vender sua independência e manter o padrão de qualidade com o que desenha é que o cartunista ocupa hoje uma posição na qual praticamente faz somente o que quer na Folha. “Eu cheguei num ponto que eu conheço como desenhar para eles. Procuro ser incisivo, ácido, nesse espaço. Não faço outra (charge) se me pedirem para trocar. Só se o dono do jornal me pedir, daí eu troco! (risos)” Angeli lembra, inclusive, que não faz muito que uma

“AQUILO FOI O INÍCIO DE UMA GRANDE PARCERIA ENTRE MIM E O OTTO. FALAM DO WOOD & STOCK 2, MAS NÃO SOU MUITO A FAVOR DE CONTINUAÇÕES”


um porrete no lugar de seu cetro. Não tem jeito, eu desenho apenas o que eu sinto”. UM CARTUNISTA AUDIOVISUAL “Aquilo foi um prazer. Era algo que todo mundo pedia, comentava. Até que veio o convite do Otto Guerra”, lembra-se Angeli sobre o momento em que recebeu a proposta do diretor para a produção de um filme sobre seus personagens. Não era a primeira vez que Otto Guerra assumia o desafio de transportar personagens em quadrinhos para as telonas. Entre 1993 e 1994, ele adaptou a história dos caubóis gays Rocky e Hudson, personagens do amigo e cartunista Adão Iturrusgarai. A idéia deu tão certo que o gaúcho não pensou duas vezes para fazer o mesmo com os personagens de Angeli. “A princípio, pensei no Ozzi, mas o Angeli disse que temia que

“CURTA NÃO TEM MUITO LUGAR, NÉ? FICA MEIO SEM PAI NEM MÃE. JÁ O FILME DA MARA TARA É MAIOR, JÁ ESTÁ COM O ROTEIRO PRONTO E TUDO” seu personagem se transformasse na Turma da Mônica. Ele sugeriu o Wood e Stock, e eu decidiu incorporar também a Rê Bordosa.” Por serem personagens mais adultos, a nova proposta recebeu a aprovação imediata do cartunista. Como boa parte das produções brasileiras, a jornada de Wood & Stock: Sexo, Orégano e Rock and Roll até a sua estréia em 2005 não foi nada tranqüila. Guerra lembra que demorou cerca de dez anos para o roteiro sair, angariar fundos e as gravações começarem. “Eu e a produtoraexecutiva Marta Machado tentamos inscrever o projeto em vários concursos públicos. Ganhamos um, em 2000, organizado pelo Ministério da Cultura, o Primeiro Concurso Nacional para Filmes de Baixo Orçamento.” O diretor conta que do concurso saíram filmes de qualidade como Amarelo Manga, de Cláudio Assis. “O nosso foi um dos últimos a ficar pronto”, recorda-se. Com vozes de Rita Lee (Rê Bordosa) e Tom Zé (Raul Seixas), além de atores e dubladores profissionais gaúchos, o filme remonta os embalos dos anos 70 no qual vivem os jovens Wood, Stock, Lady Jane, Rê Bordosa, Rampal, Nanico e Meia Oito que fazem uma louca viagem no tempo ao darem de cara com o futuro. O resultado final da produção não poderia ser melhor para seu autor, que pensa, inclusive, em uma nova adaptação cinematográfica. Angeli, contudo, não quer nem saber de uma continuação de Wood & Stock, mas sim, sobre a ninfomaníaca Mara Tara. “Aquilo foi o início de uma grande

Wood & Stock: Sexo, Orégano e Rock and Roll Direção: Otto Guerra Gênero: Animação Duração: 81 min. Elenco: Rita Lee, Tom Zé, Zé Vitor Castiel, Sepé Tiaraju de Los Santos e Janaína Kremer Ano: 2005

OTTO DESENHOS ANIMADOS

dessas ocasiões aconteceram. Com a vinda do papa Bento XVI ao Brasil em maio, ele não perdeu a oportunidade de deixar a sua crítica contra a pressão da Igreja Católica. Como nunca foi a favor da religião, apesar de já ter sido coroinha na infância, tratou de compor uma crítica questionando a proibição do aborto. Na charge, o cartunista descreve uma clínica clandestina onde uma jovem grávida expressava pavor. Havia ainda um médico e uma enfermeira com cara de vampiro e aventais imundos de sangue com os dizeres: “Relaxe, você está em boas mãos! Nossa clínica, além de super-equipada e esterilizada, ganhou recentemente a bênção do Papa!” Foi batata. Pouco tempo depois de enviada à redação, Angeli recebeu um telefonema pedindo que mudasse o desenho. “A Folha vetou, não teve jeito. Eles alegaram que a vinda do Papa estava sendo muito comentada, que pegaria mal. Mas até que não fiquei tão irado porque a charge acabou saindo no meu site no UOL. Para o jornal, fiz a imagem do Papa segurando

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FOTO CAIO KENJI

PERFIL

O cartunista em seu estúdio: “Você se importa se eu ascender um cigarro?”

parceria entre mim e o Otto. Falam do Wood e Stock 2, mas não sou muito a favor de continuações. Estamos pensando na produção de um filme exclusivo sobre a Mara Tara”, confessa. Em julho deste ano foi produzido um curta-metragem intitulado A Calda do Dinossauro, baseado em Edi Campana, colunista vivido pelo próprio Angeli nos tempos da Chiclete com Banana. A intenção do curta foi totalmente de experimentação, a fim de testar e preparar a equipe técnica para o longa de Mara Tara. Angeli conta que a idéia de produzir O Rabo do Dinossauro surgiu de um texto em que escreveu para a Chiclete com Banana e, que anos depois, conseguiu financiamento do governo, devido a persistência de uma colega atriz. “Bolei uma história que era do último ser sexual do planeta. Ninguém fazia sexo no mundo, o prazer havia sido substituído por outra coisa, a procriação era diferente, era até por pó, você comprava, mexia e nascia um bebê. E eu escrevi isso em forma de roteiro. Mas era só um charmezinho, uma brincadeira.” Mal sabia ele que a tal amiga ficou com seu texto por quase 20 anos a fim de transformá-lo em filme. Quando finalmente

“DESENHISTA DE PUBLICIDADE NÃO TEM ALMA. JÁ EU DESENHO O QUE ME INCOMODA, O QUE EU TENHO VONTADE. EU SOU UM CARA DE OPINIÃO” 18

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saiu o financiamento da Prefeitura de São Paulo, Angeli já nem se lembrava do texto, que agora, passa pelo processo de pósprodução. “Provavelmente, o que eu ouvi dizer, ele será exibido antes dos filmes no cinema. Curta não tem muito lugar né? Fica meio sem pai nem mãe. Já o filme da Mara Tara é maior. Já está com o roteiro pronto e tudo”, conta orgulhoso. Outra novidade que está no forno é a série animada da tira Los Tres Amigos para o canal pago Cartoon Network. A princípio serão cinco episódios. Para dar conta do trabalho, Laerte, Angeli e Glauco, ou melhor, Laerton, Angel Villa e Glauquito se encontram semanalmente para criar os roteiros. FAMÍLIA, FAMÍLIA, NEGÓCIOS A PARTE Apesar do sucesso das novas investidas na área da animação, possíveis principalmente graças à tec­nologia, o que Angeli ama mesmo é a boa e velha prática de rabiscar em seu ateliê até que surja uma boa idéia digna de ser publicada. Para ele, dois maços de cigarro, papel vagabundo e nanquim preto são tudo o que precisa para suas criações. Muito centrado, para ele, cartum é coisa muito séria e justamente por isso, se dedica horas e mais horas a função. Virginiano até o último fio de cabelo, como gosta de lembrar, é teimoso, do tipo que bate o pé até o fim sobre seu ponto de vista. Revolucionário nato, Angeli conta que não faz muito tempo já teve problemas por ser acusado injustamente de


ter “virado a casaca” e estar a serviço do capitalismo. Tudo por conta de um mal entendido gerado pelo primo que resolveu adotar o sobrenome da família. Marco Angeli é artista assim como o primo, mas ligado a publicidade. O cartunista conta que o parente foi responsável durante algum tempo por produzir alguns cartazes para o Mc’ Donalds. Como passou a assinar apenas Angeli toda a imprensa caiu matando em cima de Angeli, o cartunista, indagando-o sobre o porque do novo trabalho. Mas o engano não durou muito. “Eu acho que ele já abandonou essa idéia de usar só o sobrenome como eu. Porque ele viu que já deu muita

Questionado se aceitaria o convite de trabalhar para uma rede de fast food como o primo, Angeli é rápido e ferino na resposta. “Eu fiz a opção de fazer desenhos de opinião e uma de minhas opiniões é contra o lixo americano que entra no país. Até comeria um lanche deles, mas divulgar a marca, isso nunca. Desenhista de publicidade não tem alma. Já eu desenho o que me incomoda, o que tenho vontade. Eu sou um cara de opinião. Alguém se habilita a duvidar? ! ____________________________________________

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DANÚBIA GUIMARÃES é estudante do 4º ano de jornalismo da Universidade Anhembi Morumbi

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