Imaginários Cariocas - Catálogo Virtual

Page 1

Distribuição gratuita. Venda proibida.

apresenta

1



apresenta

08 A 27 DE SETEMBRO DE 2015 CAIXACULTURAL.GOV.BR WWW.MOSTRAIMAGINARIOSCARIOCAS.COM.BR WWW.FACEBOOK.COM/IMAGINARIOSCARIOCAS



A CAIXA é uma das principais patrocinadoras da cultural brasileira, e destina, anualmente, mais de R$ 60 milhões de seu orçamento para patrocínio a projetos culturais em seus espaços, com o foco atualmente voltado para exposições de artes visuais, peças de teatro, espetáculos de dança, shows musicais, festivais de teatro e dança em todo o território nacional, e artesanato brasileiro. Os eventos patrocinados são selecionados via Programa Seleção Pública de Projetos, uma opção da CAIXA para tornar mais democrática e acessível a participação de produtores e artistas de todas as unidades da federação, e mais transparente para a sociedade o investimento dos recursos da empresa em patrocínio. No ano em que a cidade comemora 450 anos, a mostra “Imaginários Carioca: a representação do Rio no Cinema” exibe filmes que têm o Rio de janeiro não apenas como pano de fundo, mas também como um personagem em si, objeto de intensos embates políticos e simbólicos que encontraram no cinema um lugar de constante atualização. Em um momento em que a cidade passa por grandes transformações urbanísticas e políticas, a mostra propõe a partir de um recorte histórico, discutir os diversos imaginários que o Rio de Janeiro teve e poderá ter daqui para frente. Desta maneira, a CAIXA contribui para promover e difundir a cultura nacional e retribui à sociedade brasileira a confiança e o apoio recebidos ao longo de seus 154 anos de atuação no país, e de efetiva parceira no desenvolvimento das nossas cidades. Para a CAIXA, a vida pede mais que um banco. Pede investimento e participação efetiva no presente, compromisso com o futuro do país, e criatividade para conquistar os melhores resultados para o povo brasileiro.

CAIXA ECONÔMICA FEDERAL



IMAGINAR AS CIDADES QUE COMPÕE O RIO Ao longo do século XX vimos nas telas a cidade se mos-

rioquice e malandragem, ou a cidade que é fascinada

trar nos mais variados matizes: maravilhosa, oficiales-

por sua beleza que chega a cegar-se a si mesma?

ca, partida, violenta, pobre, carnavalesca, urbana, etc. Hoje não é a primeira vez que vivemos um crescimento econômico acompanhado de radicais transformações simbólicas e urbanas, cujos rumos não podem ser vistos sem se considerar o imaginário e os símbolos que acompanham essas mudanças. O que constitui a identidade carioca que hoje, com tantos projetos tentando modificá-la ou maquiá-la, está em jogo? O cinema é um instrumento valioso para respondermos a esta pergunta e encararmos os mitos que formam nossa cidade. É uma fabulação que começa com filmes documentais, nas primeiras décadas do século XX, passa pelas grandes produções dos estúdios da Atlântida, pelas ruas da zona sul flagradas no Cinema Novo, pela reinvenção da realidade em filmes de gênero, pela hiperestetização de suas curvas e cores e, mais do que isso tudo, pelas representações, momentos e personagens que escapam à uma rápida indexação. O Rio de Janeiro, no limite, caberá no cinema? O que seria a cidade hoje, quando comemora seus 450 anos? Como formar um retrato das várias camadas que a compõe – solo, horizonte, habitantes, fachadas, entranhas, espirito – e perceber suas mudanças desejadas e indesejadas? Como capturar uma identidade fugidia e cambiante? Se Calvino fosse descrever a cidade do Rio de Janeiro em seu Cidades Invisíveis, como seria? A cidade que se espelha para o mar, ou quem sabe a cidade que se engole em seu próprio caos? A cidade que se engana com seus estereótipos de ca-

Todas essas e tantas outras cidades cabem no Rio, com suas camadas de história, memória, fantasmas e assombrações. Andar, ou melhor, flanar por essa cidade é sempre uma experiência de assombro, surpresa. Como confrontar essa paisagem? Como desconfiar da promessa do êxtase? Entre o mar e a montanha, entre o carnaval e o sonho, o cinema nos faz imaginar as cidades que seremos ou talvez as cidades que nunca fomos. Qual é a história dessa cidade, o seu movimento captado e construído pelas câmeras? O que há para olharmos antes de sairmos da sala de exibição e encarar a vida urbana e suas tradições, sempre em xeque? O momento atual pede uma reflexão sobre como o imaginário cinematográfico carioca foi construído. Com 53 títulos de todas as épocas, pretendemos sediar relevante parte dessa reflexão.

CURADORIA IMAGINÁRIOS CARIOCAS


8

SUMÁRIO


PAISAGEM CARIOCA NO CINEMA BRASILEIRO

10

SEIS PALAVRAS SOBRE O RIO DE JANEIRO

20

FILMOGRAFIA

33

MEDO

34

PARAÍSO

40

SOLIDÃO

46

CAOS

52

MITO

58

PROMESSA

66

CURTAS

74

ENTREVISTAS

81

NIREU CAVALCANTI

82

MARCOS BRETAS

90

ANTÔNIO HERCULANO LOPES

97

JOSÉ MURILO DE CARVALHO

108

TEXTOS

115

MORROS, MARES E CARNAVAIS POR MÔNICA PIMENTA VELLOSO

116

RIO DE JANEIRO E CINEMA: OXIMORO POR HERNANI HEFFNER

122

SUGESTÕES PARA QUANDO VOLTARES À MONSTRUOSA E MUITO CINEMATOGRÁFICA VILA DE SÃO SEBASTIÃO POR FELIPE BRAGANÇA

128

PROGRAMAÇÃO

136

FICHA TÉCNICA

143


A Mostra Imaginários Cariocas teve sua origem nos encontros do ATELIÊ RIO - grupo de discussão, estudos e produção audiovisual sobre a cidade do Rio de Janeiro, em processo de pensar e propor novos imaginários para uma cidade em transformação. Apadrinhado por Hernani Heffner e coordenado por Marina Meliande e Felipe Bragança, o grupo é composto por cerca de 10 jovens cineastas em livre processo, não acadêmico, de articulação poética e teórica sobre esse universo. Uma das primeiras leituras do ATELIÊ RIO foi o artigo “Paisagem Carioca no Cinema Brasileiro” de autoria de Hernani Heffner, escrito no ano 2000, que nos inspirou a lançar um olhar histórico sobre um grande conjunto de filmes e a pensar uma curadoria para a Mostra Imaginários Cariocas.

10


PAISAGEM CARIOCA NO CINEMA BRASILEIRO Todo e qualquer espaço urbano, por menor e mais

um certo zelo em salvaguardar determinadas áreas ou

insignificante que seja, constrói uma identidade es-

construções mais antigas, algumas das quais sobrevi-

pacial, visual e de usos e costumes. Referências são

veram até o presente, como o Paço, o Passeio Público,

criadas, percursos instaurados, uma imagem se for-

a Ladeira da Misericórdia, etc. Isto talvez se explique

ma. A permanência ou não das características básicas

pelo fato de que as nações emergentes do novo conti-

do sítio é que determinará a configuração de uma sim-

nente procuravam quase sempre transmitir a idéia de

bologia mais perene, algo que sinaliza suas virtudes (e

um certo lastro civilizatório. Não houve Idade Média

eventualmente seus “defeitos”). Entramos, portanto,

por aqui, mas assim mesmo procurávamos construir

no caudaloso rio da história e suas marchas e con-

uma certa tradição, procurávamos nos envelhecer.

tramarchas, idas e vindas, construções e desconstruções. A formação de uma identidade maior, quer do ponto de vista interno, ou seja, um enraizamento cultural da cidade na mente de sua população, quer do externo, ou seja, a fixação de determinadas imagens recorrentes, chegando mesmo a uma marca “oficial”, é um processo longo, parcialmente inconsciente e ideologicamente seletivo.

O fato de termos permanecido ligados a uma determinada configuração espacial e a uma determinada arquitetura durante a segunda metade do século XIX, quando o crescimento populacional assustador e a incompatibilidade da infra-estrutura urbana com diversos avanços tecnológicos e sociais (tipo bonde, carruagem, passeata, etc.) puseram em xeque o velho passado colonial, liga-se a esta difusa construção de

A augusta cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro

uma “idade adulta” e à falta de um projeto concreto

tem quase cinco séculos e por volta de 1800 já podia

para a cidade. O maior intercâmbio com o exterior

ser considerada um dos maiores sítios urbanos do

durante o império trouxe novidades, comércio, bens,

país, apta a ratificar dentro em pouco a condição de

mas trouxe também o estrangeiro, que, em geral, saía

melhor opção como capital nacional. Embora seu pas-

daqui horrorizado com a péssima qualidade de vida na

sado viesse se constituindo com alguma racionalida-

cidade. A falta de noções mínimas de saneamento pú-

de, baseado no modelo geométrico português, uma

blico também colaborou para a primeira imagem públi-

vez ultrapassada a faixa litorânea, prosseguiu ao sabor

ca do Rio de Janeiro e, por extensão, do Brasil. A idéia

das circunstâncias e premido pela sinuosa cadeia de

genérica de cidade pestilenta metamorfoseou-se em

morros da região. O ar levemente bagunçado pela pai-

inferno tropical. Éramos o foco maior das endemias,

sagem citadina se esboça aqui. Não havia nesta época

o espaço da morte por excelência. Não por acaso as

um projeto urbanístico propriamente dito para a cida-

agencias de viagem marítima estampavam avisos de

de. Tal coisa a rigor só surgiria intencionalmente com

advertência quanto aos perigos de rotas que incluís-

a reforma hausmanniana. Mas curiosamente já havia

sem o Brasil e mais especificamente o Rio de Janeiro.

11


Pode-se dizer que esta foi nossa primeira imagem,

“rituais do poder” e ao “berço esplendido”, ou seja,

nossa primeira marca. Este estigma foi tão forte, que

registrava quase sempre cerimônias oficiais e signos

a passagem à República trouxe não só o lema do pro-

da supostamente prodigiosa beleza natural do país.

gresso como um projeto político e social, mas tam-

No primeiro caso, havia um óbvio foco nos homens,

bém uma atitude concreta para acabar com a mácu-

deixando-se o entorno físico em segundo plano. No

la. Governantes, intelligentzia e mesmo a população

outro encontraríamos efetivamente a construção

engajaram-se não apenas na reversão do pecado,

de uma geo-iconografia que atuasse como símbolo

mas sobretudo na construção simbólica de uma nova

das virtudes nacionais. Mas aqui surge um primeiro

cidade. É quando o Rio deixa de ser lúgubre, soturno,

problema. Se isto é verdadeiro, e aparentemente o

sombrio, mal iluminado e triste para se tornar ale-

é, para a maior parte dos registros feitos no país, não

gre, gaiato, arejado, imponente, bonito e moderno.

parece válido justamente para o Rio de Janeiro. Se en-

O bota-abaixo, em grande (cortiços, morros, favelas)

contramos o paranaense Aníbal Requião fazendo um

e pequena escala (quiosques, carroças, camelôs) é o

Cataratas do Iguaçu (1907), não conhecemos um Baía

momento de ruptura com esse passado, é o ponto de

de Guanabara ou um Pão de Açúcar realizado por aqui.

inflexão para uma construção simbólica do Rio de Ja-

Nenhum cineasta, ou melhor dizendo, cinegrafista ca-

neiro. O símbolo aqui é quase literal, pois o que mudou

rioca, parece ter se preocupado em destacar ícones

na prática foi muito pouco, sobressaindo-se apenas a

da beleza da cidade, pelo menos não como tema ex-

Avenida Central e arredores. Mas não se negligencie a

clusivo de um filme. Nas listagens de filmes que che-

força que a idéia teve. O morador do rio praticamente

garam até nós nada parece indicar a presença deste

se reinventou nesses poucos anos, a ponto de deixar

tipo de approach.

de ser fluminense para ser carioca. O Rio de Janeiro que habita nossas mentes nasce aqui.

brasileiro, a filmagem de Afonso Segreto enfocando a

Contemporâneo dessa nova cidade, o cinema brasilei-

Baía de Guanabara, não se sustenta porque na verda-

ro teve o privilégio de acompanhar as transformações.

de o que teria sido enfocado eram as fortalezas e os

Infelizmente as centenas de filmes aqui realizados de

navios e não um delineamento do acidente geográ-

1898 a 1930 perderam-se quase todos. O que ficou de

fico. Isto é tão mais certo quanto não se verifica nas

material e de informação representa muito pouco e

suas filmagens posteriores qualquer destaque nesse

não sustenta afirmações categóricas. Por isso o que

sentido para este ou aquele local. Afonso filma o Lar-

vai dito adiante tem caráter meramente hipotético e

go do Machado (1898), como filma a Rua Uruguaiana

pode deformar grandemente a compreensão desse

(1898) e na verdade, até onde sabemos, só filma luga-

objeto fugidio.

res comuns como estes. Pode ser que o tal deslum-

Como dizia o crítico Paulo Emílio Sales Gomes, o cinema desses primeiros tempos dedicava-se aos

12

O possível óbice do também possível primeiro filme

bramento inicial com o cinema estivesse presente aqui. O êxtase valia para qualquer coisa: muro, bebê


comendo, pessoas andando diante da câmara, lá fora,

de marchinhas, lundus e cia., na neutralidade do

e funerais, meetings e ruelas, por aqui. Isto não signifi-

repertório teatral e nas imagens reiterativas de nossos

ca que lugares importantes não tenham sido filmados.

prósperos e iniciantes produtores cinematográficos.

Em 1908, a Empresa Paschoal Segreto vai ao Pão de

Uma peça como A capital federal, de Aluísio de Aze-

Açúcar e instala uma câmara no teleférico colhendo

vedo, não é propriamente uma ácida critica às con-

planos mais ou menos gerais da cidade. Mas sua in-

tradições da cidade e sim uma celebração do seu pro-

tenção com isso é destacar a Exposição Nacional que

gresso, pois o matuto não só não a entende como não

esta ocorrendo bem embaixo, na Urca. Ou seja, a ci-

consegue dominá-la. Nesse sentido compreende-se

dade não é ainda, pelo menos cinematograficamente,

o alcance e a agudeza da obra de Lima Barreto, que

algo de apreciável, objeto definido e definível através

procura desmascarar a impostura reinante.

de imagens enquadradas com intenções conscientes.

Para o bem ou para o mal, essa construção imagética

Ao contrario, o primeiro registro a delimitar claramen-

avança e vamos encontrá-la no registro fílmico mais

te um lócus urbanus tomando-o como tema enfocará

antigo preservado da cidade. O luto pelo Barão do Rio

justamente a Avenida Central. As imagens colhidas

Branco (1911), anônimo, encaixa-se na categoria dos

durante a inauguração em 1905, frequentemente

rituais do poder, mas curiosamente enfoca pouco as

atribuídas a Antônio Leal, provavelmente enfatizam

autoridades, pouquíssimo o velório e muito a Avenida

o marco urbanístico e social que a obra representava

Central, logo denominada justamente Rio Branco por

desde a sua proposição alguns anos antes. Reforça

conta do falecido. O tom dos planos, porém, não tem

esta idéia, a profusão de documentários que se se-

nada de solene ou grandioso como seria de se esperar.

guem, também dedicados exclusivamente ao logra-

A estatura política e pública do Barão não correspon-

douro. Este interesse intenso pelo jovem boulevard

de este ou aquele plano geral. Ao contrário, há uma

e a ausência completa de exames detidos em outros

indisfarçável dispersão na forma como as imagens

pontos chics da cidade leva a crer em uma primeira po-

são compostas. Os planos são surpreendentemente

rém difusa simbolização do Rio de Janeiro. A Avenida

rápidos, os enquadramentos não reconstituem inte-

Central é uma metáfora de toda a cidade, a única pas-

gralmente nenhum prédio ou local mais conhecido e o

sível de apresentação frente às classes médias que

ir-e-vir de pessoas não merece destaque maior, exce-

frequentavam as salas de exibição de então e ao mun-

ção feita ao presidente da República. O morto, inclu-

do, neste caso muito provavelmente de acordo com

sive, só aparece em recorte de jornal e não “ao vivo”.

nossas elites pensantes. Aliás, a construção literária do Rio segue o mesmo padrão; João do Rio a frente. A belle époque é propriamente uma construção discursiva, apoiada na coloquialidade da imprensa e dos polígrafos, na leveza do art-nouveau, no chiste

O que este filme e alguns outros fragmentos parecem traduzir é a familiaridade compartilhada entre quem filma e quem irá assistir. Os realizadores aparentemente se restringem a indicar o signo – Avenida Central, por exemplo -, sem conceber a necessidade de empres-

13


tar-lhe qualquer outra conotação. A interdição do

lidados outros exemplos de intervenção urbanística

resto da cidade por falta de qualificação civilizatória e

que sustentam e difundem a sua magnificência. O

a ausência de preocupações estéticas maiores para

campo de signos se alarga e ganha agilidade narra-

com as imagens revelam a integração do cinema da

tiva. A maioria dos filmes “sérios” da década de 20,

época ao projeto da belle époque, em que a intimida-

cariocas ou não, inclui uma seqüência de montagem

de surge como o índice mais acabado de tradução de

relativa à movimentação urbana (trânsito, corre-cor-

um status quo. Isto talvez seja corroborado pelo fato

re, símbolos locais, etc.), querendo com isso sinalizar

de que só encontraremos uma visualização mais re-

o tal avanço civilizatório.

finada da cidade na década de 20. O Pão de Açúcar será enfocado como cartão-postal em Esposa do Solteiro (1926), de Carlo Campogalliani, merecendo a honra de ser palco do desenlace da fita, com direito a luta em cima do bondinho em pleno movimento (Moonraker, de Lewis Gilbert, não é uma novidade). E a ainda importante Avenida Central, agora Rio Branco, apresenta-se em diagonal perfeita, vista do alto, com os imponentes prédios construindo uma imagem de pujança, no olhar de Adhemar Gonzaga e seu Barro Humano (1929).

Esta nova postura significa propriamente um mapeamento, um inventário daquilo que a cidade pode oferecer de melhor. Houve exemplos isolados dessa atitude nos primeiros tempos; as tais exceções que confirmam a regra. Mais especificamente em dois filmes muito famosos, Nhô Anastácio chegou de viagem (1908), anônimo, tido como o primeiro filme de ficção brasileiro e Paz e amor (1910), de Alberto Moreira, o de maior sucesso da bela época. O primeiro contava a história do matuto que vem à capital pela primeira vez e a percorre entre assombrado e assustado, decidin-

Essas novas imagens que, podemos aproximar de uma

do ao final voltar para o campo. Seu itinerário pode ser

certa visão turística em formação, e que servem ao

entendido como uma indicação do que consideráva-

projeto estético do cinema brasileiro da década de 20,

mos naquele momento como nossas glórias citadinas:

preocupado em afirmar uma qualidade e uma estatura

Estrada de Ferro Central do Brasil, Caixa de Amortiza-

similares ao cinema americano e europeu (vide filmes

ção, Palácio Monroe, Arcos da Lapa, Passeio Público,

não cariocas como A filha do advogado [1926], de Jota

Avenida Central, etc. Se o enquadramento praticado

Soares, Fragmentos da vida [1929], de José Medina,

tinha o mesmo ar de familiaridade aqui enunciado, o

São Paulo, a sinfonia da metrópole [1929], de Adalberto

foco era muito mais o matuto do que este ou aquele

Kemeny e Rodolfo Lustig, entre outros), são contem-

prédio ou lugar. O segundo tem o mesmo parti-pris.

porâneas também da percepção de que efetivamente,

Acompanha o cronista Tibúrcio da Anunciação em sua

para além de o Rio de Janeiro ser “seguro”, em termos

peregrinação pela cidade, revelando o que ela tem de

sanitários, e “avançado”, em termos culturais, ele é

ímpar – cinematógrafo, ópera, mundanismo social,

isso e mais alguma coisa. É uma grande cidade e como

meetings – e de criticável – a política, certas figuras

tal comporta diferenciações internas e possui conso-

públicas. Não se sabe exatamente o que era mostrado, mas claramente a intenção é a cultura da cidade.

14


O mapeamento pode ter começado na série sobre os

ria e um presente à família real italiana, que visitaria o

estados brasileiros realizada em 1910 e que dedicava

país dentro em breve. O que transparece neste filme

um número à então capital federal, Brasil Pitoresco no 1

é a construção altamente racional do urbanismo ca-

(1910), anônimo. É mais provável que isso tenha acon-

rioca. Em que pese a evidente influência francesa em

tecido no malogrado filme de episódios Os mistérios

prédios, jardins, parques e traçado urbano, é notável

do Rio de janeiro (1917), de Coelho Neto, primeira vez

a diversidade apresentada e o sentido de composição

em que a cidade é alçada ao título de um filme em tom

dos locais, com o filme realçando-lhes, harmonia, li-

pomposo e indicativo de sua condição de personagem

nhas de força, enfim beleza. Botelho é cuidadoso mas

principal. O impulso pode ter recebido uma ajuda ex-

não exatamente plástico, talento inato em Silvino.

terna por ocasião da exibição do filme inglês A trip from

É na obra deste que a cidade é alçada visualmente à

Gibraltar to Rio de Janeiro (1919), anônimo. Registro de

condição de maravilhosa. Utilizando recursos como

uma daquelas costumeiras epopéias de aviação, a obra

tilting, panorâmica, plongée e contre-plongée, filmado

aparentemente apresentou a primeira visão aérea

do alto de prédios, de carros em movimento, de dia e

marcante da cidade, colhendo a Baía de Guanabara e

de noite, nas ruas e no interior dos prédios e fazendo

a urbis interior adentro. A façanha logo seria repetida,

uma extraordinária comparação via montagem entre

tomando-se o cuidado de elaborar a “grande” imagem

a graça feminina (com direito a primeiros planos) e o

do local. Juan Etchebarne sobe num avião no ano se-

esplendor da cidade, o português sediado em Manaus

guinte e procura dar uma idéia do skyline carioca, à se-

recria o espaço urbano carioca emprestando-lhe um

melhança da já comum imagem de Manhattan, em Rio

sentido de magia. Esta terra possuiria tantos deta-

de Janeiro visto de aeroplano (1920). É talvez a primeira

lhes, tantas facetas, tanta riqueza, que um olhar vir-

elaboração consciente, mas a não-recorrência desta

gem se deslumbra com sua profusão, sua inesgotável

forma talvez indique a inadequação do Rio de Janeiro

capacidade de desdobrar-se que logo estaria em vias

para esse tipo de construção. Ele destacou também o

de desaparecer, encoberta pelo concreto e desfigura-

Pão de Açúcar, o Corcovado (o morro, pois a estátua

da pela ocupação humana.

não existe ainda) e o Campo dos Afonsos. O marco definitivo desse processo de embelezamento cinematográfico da cidade ficou por conta da Terra Encantada (1922), de Silvino Santos, filmado por ocasião das comemorações do centenário da independência, quando a cidade foi preparada para sustentar o ufanismo pátrio. Algo talvez dispensável, como o demonstra Cidade do Rio de Janeiro, realizado por Alberto Botelho, em 1924, como uma ilustração preparató-

Este período – que, grosso modo, vai até meados dos anos 40 – apresenta uma espécie de sagração da cidade. É quando se desenvolvem grandes obras como o Jockey Club, a urbanização da Lagoa, a construção do Cristo Redentor, a abertura da Avenida Presidente Vargas, entre outras, e se compõe justamente Cidade Maravilhosa (1936), a marchinha de André Filho, transformada quase que imediatamente em hino. Além do Centro, a Zona Sul também se afirma,

15


desenhando um perfil art-déco na paisagem e elegen-

de Watson Macedo, e O homem do Sputnik (1959), de

do a praia como ponto de encontro entre a natureza e

Carlos Manga, para citar apenas um marco e alguns fil-

a ação humana, aspecto esse imortalizado no famoso

mes expressivos. Inclusive, não há discrepância entre

calçadão. Estamos em um momento em que a ima-

a imagem cenográfica construída pelas obras e o hotel

gem é tudo, tendo pouco peso aspectos salientes da

real. O que importa é referenciar o ícone. Além disso,

cultura da população, entre eles o carnaval. Por isso,

na medida em que as narrativas vão dando campo a

não há contradição entre a visão “turística” que se ins-

filmagens em locação, o efeito se torna mais intenso

taura, e da qual Lábios sem beijos (1930), de Humberto

e direto, como a abertura de 24 horas de sonho, uma

Mauro, talvez seja o representante maior, ou entre a

curiosa narrativa em torno de uma campeã mundial de

forte estilização implementada pelo cinema de estú-

tentativas de suicídio. A escolha do Cristo Redentor

dio advindo com o sonoro e da qual Favela dos meus

como palco de mais uma tentativa fracassada apro-

amores (1935), Humberto Mauro, certamente é um

veita-se da simbologia (e mitologia) nascente da “ci-

dos maiores exemplos, e a dura realidade do cotidiano,

dade abençoada”, aquela que acolhe a todos, propor-

onde claros urbanos, obras inacabadas, desmonte de

cionando-lhes uma trajetória árdua mas feliz ao final.

morros e favelização crescente construíram uma imagem um tanto menos risonha.

16

Não houve vozes discordantes internamente com relação a esse “ufanismo carioca”. Não que não exis-

Lábios sem Beijos reflete a ascensão da Zona Sul e a

tissem intenções nesse sentido. Dentro em pouco

flagra ainda distante e levemente deserta. Os locais

Moacyr Fenelon começaria a desenvolver seu pro-

retratados transmitem garbo, tranqüilidade, placidez

jeto de um cinema mais engajado socialmente, pro-

em contraste com o já tradicional vaivém do Centro,

movendo um retrato mais nuançado da sociedade

incluído nas seqüências iniciais. Vemos o Jardim Bo-

carioca e trazendo para o campo cinematográfico o

tânico, a Vista Chinesa, a Visconde de Albuquerque,

universo das classes médias baixas e do subúrbio.

a praia do Leblon, a Avenida Niemeyer, ou seja, justa-

Nada porém com a força e o vigor do documentá-

mente locais onde a natureza foi domada e organizada

rio realizado por Orson Welles em 1942. It’s all true

para fazer ressaltar sua beleza “única” no mundo. Não

representa o ponto de ruptura com essa imagem

por acaso, pouco depois, o mesmo Humberto Mauro

idílica, incursionando com olhar investigativo pelas

realizaria uma série de sete curtas documentais in-

verdadeiras raízes da cultura popular carioca, o que

felizmente perdida intitulada “As sete maravilhas do

significou adentrar não só o subúrbio (filmou em

Rio de Janeiro” (1934). Este sentido distintivo levará

Cascadura e Quintino) como principalmente o morro

os realizadores a se aproximarem cada vez mais des-

(Providencia, Mangueira e Saúde, entre outros). O fil-

ses marcos e a repeti-los com freqüência. Temos as-

me, porém, não foi concluído na época e sua possível

sim o Hotel Copacabana Palace em 24 horas de sonho

influencia não ocorreu. As obras sérias da Atlântida,

(1941), de Chianca Garcia, Carnaval no fogo (1950),

portanto, permanecem como o ponto de inflexão na


busca de um reconhecimento do homem que habita

deslocamento dessa paisagem mais tradicional e co-

esse espaço e de uma problematização de sua vivên-

nhecida, muito pelo contrário. Será justamente contra

cia na cidade. Os objetivos são alcançados apenas

ela que se colocarão os dramas humanos, como na

parcialmente, na medida em que a presença desses

utilização do Maracanã, no filme de Nelson Pereira dos

ícones já não vem envolta numa fotografia glamou-

Santos. Há inclusive uma certa sutileza em todos es-

rosa, desaparecendo assim o tom “turístico”. Os fil-

ses novos filmes, pois eles escolhem marcos mais no-

mes falham em externar as contradições existentes

vos, mais modernos, tanto no sentido estético, como

entre ricos marcos citadinos e pobres e esmagados

no sentido social, já que são obras para as massas, al-

cidadãos. Isto pode ser percebido por exemplo na

gumas delas para as massas populares.

seqüência clímax de Amei um bicheiro (1953), de Jorge Lleli e Paulo Vanderley, passada no recentíssimo e já famoso Aeroporto Santos Dumont.

Contudo, Rio 40 graus é mesmo um divisor. O tratamento da paisagem carioca seguirá de agora em diante duas grandes linhas. Uma se dedicará a

Esta questão implicava não só em um reconhecimen-

apresentar a cidade de forma harmoniosa, recorrendo

to mais pertinente das diferenças entre as classes e do

aos ícones como confirmação e não mais como

mecanismo de exploração capitalista brasileiro, como

sagração. Um clichê se instaura e será repetido quase

na construção estética de uma nova escala imagética.

a exaustão, privilegiando-se o Corcovado e o Pão de

Um trabalho mais propriamente estético em torno

Açúcar. Neste sentido basta citar obras bem recentes

da cidade começa a ser esboçado curiosamente em

como Bete Balanço (1984), de Lael Rodrigues, e Como

dois filmes institucionais encomendados pela Light,

ser solteiro (1998), de Rosane Svartman, e verificar

Cidade do Rio de Janeiro (1948), de Humberto Mauro,

a presença desses mesmos pontos servindo como

e O transporte do carioca (1950), de Jean Manzon. O

marcos do que seria o Rio de Janeiro. Esta visão

que transparece aqui é que a infra-estrutura urbana

conservadora ganha lastro visual na obra do cineasta

já não funciona tão bem. Há problemas - que a Light

argentino Carlos Hugo Christensen, que adota a

obviamente irá resolver... - e sua existência é eviden-

cidade para viver e a exalta em sucessivas elegias:

ciada por curiosos jogos de montagem, por diverti-

Meus amores no Rio (1958), Esse Rio que eu amo (1961),

das e irônicas narrações e por enquadramentos mais

Crônica da cidade amada (1965). O que há de distintivo

descontraídos, integrando ícones à paisagem comum,

aqui será justamente o emprego pioneiro da cor, como

como se o Rio de Janeiro tivesse atingido uma maturi-

que renovando a já tradicional imagem da cidade. A

dade que lhe permitisse inclusive revelar seus proble-

outra linha procurará justamente o confronto entre

mas. Logicamente o alcance dessas supostas críticas

esse Rio cartão-postal e sua vivencia cotidiana. São

é limitado. Só ganham verdadeira consistência no divi-

obras como Assalto ao trem pagador (1962), de Rober-

sor de águas que é Rio 40 graus (1955). A colocação do

to Faria, Cinco vezes favela (1962), de Carlos Diegues e

homem comum no centro das atenções não implica o

outros, A grande cidade (1965), de Carlos Diegues, As

17


cariocas (1966), de Roberto Santos e outros e Opinião

construção desse ser único chamado carioca. A paisa-

pública (1967), de Arnaldo Jabor, em que contradi-

gem empresta signos que definem o morador auten-

ções, oposições, situações inconciliáveis são ence-

tico da cidade. Beleza, alegria, descontração, bom hu-

nadas justamente em locais “tradicionais” da cidade.

mor, musicalidade, misticismo, miscigenação, enfim,

Isso não significa uma desglamurização da paisagem,

integração, fazem um resumo do descompromissado

ainda que ela realmente não seja mais tratada como

bando que se engaja no desbunde e cria novos sítios

símbolo de beleza em si. A escolha tem a intenção

urbanos como as famosas Dunas da Gal. A proposição

de integrar o homem a esta paisagem e mostrar que

se dilui e se caricaturiza na pornochanchada e no por-

ela também lhe pertence pelo menos idealmente. A

nô-chic, chegando a uma visão francamente negativa

violência que se vê nesses locais não é culpa da pai-

como a de Rio Babilônia (1980), de Neville D’Almeida.

sagem e sim das relações sociais que se expressam

Estamos em vias de expor com o máximo de violên-

através dela. É notável começar a ver um filme como

cia possível a cidade “partida”, para usar o termo do

Garrincha, alegria do povo (1962), de Joaquim Pedro de

jornalista Zuenir Ventura. A cidade se parte e sua ima-

Andrade, justamente por uma grande homenagem a

gem se fragmenta. Não há nada de particularmente

esse palco popular chamado Maracanã. A imagem o

distintivo na Copacabana de A viúva virgem (1972),

trata como um templo e a banda sonora se abstém

de Pedro Carlos Rovai, no Centro de A dama da lota-

de qualquer comentário, deixando o coro das torci-

ção (1975), de Neville D’Almeida, ou na Zona Norte de

das evidenciar o êxtase que percorre o concreto e o

Chuvas de verão (1978), de Carlos Diegues. São filmes

gramado. É mais notável ainda ver o filme tomar uma

comuns sobre uma cidade comum. Os velhos ícones

posição bastante critica em relação ao futebol (seria o

são agora ícones de uma decadência como a Estação

ópio do povo) sem no entanto desfazer a mística cria-

da Leopoldina que aparece em Romance da emprega-

da no inicio em relação ao local. O cinema novo pro-

da (1984), de Bruno Barreto. O esplendor se foi.

move ao seu modo também uma sagração desse novo Rio de Janeiro, às vezes emprestando-lhe conotações insuspeitas, como no caso do Parque Lage, reinventado em Terra em transe (1967), de Glauber Rocha, e Macunaíma (1970), de Joaquim Pedro de Andrade.

18

Isso não significa que a cidade não tenha sido mais filmada. Muito pelo contrário. O documentário continuará a registrá-la em profusão, eventualmente ainda fazendo-lhe elogios como em Rio amado (1966), curta de Fernando Cony Campos. Mas as centenas de com-

Essa apropriação prossegue de forma mais significati-

plementos que lhe são dedicados ao longo dos anos

va, embora efêmera, em um conjunto de filmes de me-

70 apontam na verdade para a busca de uma cidade

nor quilate, como Todas as mulheres do mundo (1966),

que já não existe mais. Os temas giram quase sempre

de Domingos de Oliveira, El justiceiro (1966), de Nel-

sobre costumes ou locais em vias de desaparecimen-

son Pereira dos Santos, e Os Paqueras (1969), de Regi-

to, como Cinema Íris (1977), de Carlos Diegues, que

naldo Faria, entre outros, nos quais o que desponta é a

inclusive ajudou na luta pelo tombamento da sala, ou


Palácio Monroe (1978), de Célio Gonçalves, que documenta a demolição do palácio de mesmo nome. Há inclusive um tom nostálgico em alguns projetos como Folia (1974), de Adhemar Gonzaga, e Memória do carnaval (1976), de Alice Gonzaga, em que imagens de arquivo servem de contraponto ao vazio ou degradação contemporâneos. O esplendor realmente se foi. Era preciso portanto reinventar a cidade, ainda que isto não ocorresse de fato na realidade. É ao que se propõem filmes como Bete Balanço e Ópera do Malandro (1984), de Ruy Guerra, estilizações altamente sofisticadas, que brincam com as noções do espectador a respeito de seus conhecimentos visuais e sonoros a respeito do Rio de Janeiro daquele momento e de outrora. Signos como bondes, carrilhões e blocos de carnaval surgem na banda sonora deste, enquanto aquele promove uma desconstrução geográfica da cidade, apresentando um novo Rio para um novo público, que estava voltando a consumir cinema naquele momento. O que prevalece no entanto é a imagem fracionada e violenta, vista de Uma avenida chamada Brasil (1989), de Octávio Bezerra, a Primeiro dia (1999), de Daniela Thomas e Walter Salles, este inclusive baseado parcialmente no livro Cidade partida. A nova geo-icono-

HERNANI HEFFNER

grafia (um Sambódromo em Isto é Noel [1991], de Ro-

Conservador-chefe da Cinemateca do Museu de

gério Sganzerla, a Gávea e o Leblon em Não quero falar

Arte Moderna do Rio de Janeiro, professor do Curso

sobre isso agora [1991], de Mauro Faria) não tem força

de Cinema da Universidade Pontificia Catolica,

e a velha imagem (Maracanã, Central do Brasil, Copa-

Hernani Heffner vem trabalhando nas últimas

cabana em Veja esta canção [1994], de Carlos Diegues

décadas como pesquisador, curador, restaurador e

e novamente a Baía de Guanabara e o Pão de Açúcar

professor relacionado a História do Cinema Brasileiro.

em Como ser solteiro) parece apenas rebarbativa. Em

É referência em preservação audiovisual no Brasil,

que pese a beleza do plano sobre o Pão de Açúcar no

responsável pela restauração de uma dezena de filmes

filme de Rosane Svartman, ele indica que o Rio é ape-

em longa parceria com acervos como os da Cinédia e

nas isso ou se resume a isso. Nada de novo no front.

Cinemateca do Mam-Rj.

19


SEIS PALAVRAS SOBRE O RIO DE JANEIRO por Isabella Raposo, Manuelle Rosa, Marina Meliande, Pedro Henrique Ferreira e Virginia Primo.

“Cada cidade recebe a forma do deserto a que se opõe” Ítalo Calvino

20


Pensar em uma cidade é entrevê-la nas muitas máscaras que ela pode vestir. O Rio de Janeiro, particularmente, sempre vestiu mais do que pôde carregar. Talvez nossa sina seja o nosso excesso de orgulho: a maldição da Guanabara foi ter sido desde sempre o grande farol do país. Tudo que acontecia aqui era imediatamente alçado à imagem da nação. O grosso dos nossos artistas, principalmente os modernistas e aqueles que acreditavam na função diletante da arte, menos por culpa deles e mais das tarefas que continuamente lhes incumbiam, boa parte do tempo dedicavam-se a entender o Brasil, estabelecer critérios do que era o próprio nacional, discutir o imaginário do país e recriá-lo. Defendê-lo, acusá-lo, reinventá-lo. A identidade do país é que se encontrava em xeque. O que estava em jogo não era só o fazer artístico, mas a arte como um todo: sua função, seu lugar. Uma função e um lugar. A virada do século XXI impôs à produção nacional um forçado abandono à concepção de nacionalidade e cultura nacional, mas o movimento criou uma força mais centrífuga que centrípeta. Nasciam reflexões sobre fronteiras, fluxos cambiantes, crises de identidade. Era um retorno à matéria, com efeito. Mas a matéria era o corpo e não a geografia. Era a pele e não a rua. Nós mesmos como prisão e não como liberdade. Principalmente no cinema, abandonávamos dos ombros os grilhões do passado e nos abríamos às influências externas. Mas passamos a tomar como inspiração aquilo que acontecia no dia-a-dia dos nossos vizinhos ou nas páginas cotidianas dos jornais? Sublimamos o que acontecia na esquina mais próxima? Voltávamos a células mais primordiais, experiências mais prosaicas? Falar de nós, mas de nós em contato com este mundo mais imediato que nos sublinha. A cidade como unidade. Como ponto de partida para a arte. É uma proposta. Foi e tem sido para nós uma procura, um estudo, uma pesquisa. Tateando no escuro, é possível que nos conduza novamente a lugar nenhum. Baseia-se numa crença na possibilidade do cinema como intervenção, como ato básico e tão material quanto a britadeira que erige os prédios, ato concreto e onírico, capaz de modificar a forma como nossos concidadãos enxergam, tocam, cheiram e ouvem os lugares que lhe são mais cotidianos e próximos. Uma arte que sonha, mas sonha o mundo e não as quimeras. Uma tentativa de nos aproximar, nem que por um milímetro, das coisas que nos cercam. A crença de que o cinema deve sempre se aproximar de um processo cultural mais amplo, adentrando uma espécie de corrente vital que flui no coração dos moradores dessa cidade, recobrar a força propulsora que Platão ou Rousseau tanto temiam ao expulsar artistas de suas repúblicas. É explodir os limites da sala de cinema. Ou melhor: que as próprias salas de cinema se

21


ampliem ao ponto de explodirem seus próprios limites. O cinema não deve apenas ir para a rua. Ele deve, a partir de si mesmo, reinventar a cada instante o que a rua é. Uma utopia, com efeito, mas é preciso sempre lembrar: utopia não como finalidade, mas como convite à experimentação. E a cidade no entanto não passa de uma outra quimera. Ela até convive com dilemas morais mais palpáveis. Respira, engasga, tosse. Mas nunca adquire feições muito definidas. Por mais que se queira, a cidade nunca é uma só. Em seu espaço, frequentam não apenas figuras das mais diversas, mas também fábulas, memórias, fantasmas, anseios nunca realizados, projetos naufragados. O que podemos dizer sobre o Rio de Janeiro? É possível que a fala aqui jamais dê conta da experiência. Por ora, apenas estas seis palavras, que significam ainda muito pouco ou quase nada. Seis palavras. Seis máscaras que sabem que, no fundo, todas as máscaras espelham o grande vazio do rosto que escondem. Um dos signos mais visíveis no Rio de Janeiro é o MEDO. Ele afeta não apenas as formas de organização geográficas da cidade e a política pública do município como um todo, mas pauta também a própria experiência de se estar no mundo. Sobre seus ombros, escoram-se não só as ações do estado e do capital financeiro. Erige-se todo um imaginário do que é o cotidiano carioca, explorado por alguns de nossos principais sucessos de bilheteria, como Cidade de Deus, Ônibus 174, Tropa de Elite ou Lucio Flávio, o passageiro da agonia. O medo nas telas nos fascina por ser parte daquilo que também nós de algum modo fazemos parte.

22

É uma ilusão se pensar que ele nasce com o tráfico de drogas ou a violência urbana do século XX. O medo carioca não é um dado novo. Como escreveu a historiadora Maria Fernanda Bicalho, “a história do Rio sempre fora marcada por uma intensa experiência do medo”1. Como um fantasma assombrando o nosso histórico, ele tomou ao longo dos séculos diversas formas e objetos: homens, mulheres, ciganos, vadios, criminosos, capoeiras, negros escravos e libertos, invasões, doenças, revoltas, insubordinações à autoridade, traições, delações. “Medos internos e externos que atualizavam na vivência cotidiana da cidade”, escreve a autora, “a suspeita e o temor generalizados”. O medo é um de nossos principais espectros. A própria fundação do Rio de Janeiro foi berço de medo, construída perante o extermínio dos Tupinambás e a migração dos primeiros colonos, capitaneada por Mem de Sá, para o antigo Morro do Castelo, o local de difícil acesso que favorecia única e exclusivamente a defesa contra investidas francesas. Viveu-se por séculos em “constante estado de sítio”. Visto por todos como a principal pérola do império português, a cidade era o ponto nevrálgico do acesso à toda riqueza lusa. E, no entanto, era uma das fortalezas mais desprotegidas do mundo, que eventualmente seria invadida e tomada pela esquadra do pirata francês Duguay-Trouin com certa facilidade. Desde sempre, o Rio de Janeiro viveu o faz-de-conta de jóia rara que pode ser subitamente tomada na próxima esquina. Herdamos um agouro com o qual temos inevitavelmente de lidar. Viver no Rio de


Janeiro sem o medo é ainda uma experiência sublimada, mas cada vez mais necessária. Se o fantasma histórico não for enfrentado diariamente, fará sucumbir aquela que Benjamin considerava uma das experiências mais concretas de se estar numa cidade: caminhar por ela. Uma cidade erguida sobre o espírito do medo é uma cidade que se esconde de si mesma, que esconde e oprime quem a assusta, que se fragmenta voluntariamente. Que se paralisa. E o estado de perigo, que é um dado definitivo da cidade, pode também fazer suscitar outros muitos sentimentos, como a coragem ou o amor. Um futuro Rio de Janeiro que não seja marcado por este signo só pode ser sonhado se tornarmo-nos uma cidade que não se esconde de si mesma. O signo histórico e constitutivo do medo faz com que vivamos sob uma sensação de estranheza. É ela como sensibilidade que nos marca: a frequente sensação de deslocamento que o temor nos causa. Mesmo o mais acolhedor dos confortos convive com a possibilidade de ser subitamente interrompido por um ato violento, por um assombro, um acontecimento traumático que force a perda de nós mesmos. No ônibus, no trem ou na rua que conhecemos de cor e salteado, mesmo na máxima certeza do arredor, a atmosfera carrega também uma acentuada incerteza. Como Francis Vogner dos Reis escreveu sobre o Rio de Janeiro retratado no longa-metragem No meu lugar, “é como se a qualquer momento pudesse irromper algo inesperado, que alterasse a ordem das coisas de maneira drástica”. Há mesmo um perigo oculto ou simplesmente um medo que se tornou nosso algoz? E precisamos dele ou precisamos vencê-lo?

O tradicional signo carioca diametralmente contrário ao do medo é o da cidade como PARAÍSO. Centro, metrópole e espelho nacional, o Rio de Janeiro foi por muito tempo visto pelos navegantes como um cartão postal, terra edênica de natureza esplendorosa, selvagem e virgem, o Eldorado que contrastava com a cultura antiga da Europa. O que para os estrangeiros era a personificação do sonhado paraíso índico-americano aos poucos foi incorporado como imagem da cidade e logo do país. A visão figurou até mesmo no nosso hino nacional, nos versos retirados da Canção de Exílio de Gonçalves Dias, “Nosso céu tem mais estrelas/nossas várzeas têm mais flores/nossos bosques têm mais vida/nossa vida mais amores”. A natureza tornouse ao longo da nossa história política o principal motivo de ufanismo, e impulsionou diversas campanhas. Segundo as pesquisas de José Murilo de Carvalho2, o motivo edênico sobrevive até hoje com vitalidade no imaginário brasileiro. Em 1997, cerca de 87% da população afirmava se orgulhar de ser brasileiro, e o principal motivo deste orgulho era a natureza. O autor interpreta negativamente estes dados, salientando o fato de que ela (a natureza) estava aqui antes de nós. Ou seja, o povo não teve nenhum mérito nela. Sugere que é de se indagar “se o predomínio edênico não teria a ver com a ausência de outras razões de orgulho”. Diante da péssima autoimagem do brasileiro e sua desconfiança de si mesmo (cerca de 60% da opinião pública da época), o historiador contrasta o motivo edênico com a razão satânica: o problema do país é justamente

23


o brasileiro; não nos sentimos agentes de nossa história e não acreditamos que temos méritos por nossas conquistas políticas e sociais. O que o leva a concluir que o motivo edênico erigido historicamente e que ainda habita o imaginário brasileiro é na realidade um grande consolo diante da falta de reais motivos de orgulho. Com razão, Nelson Rodrigues escrevia em tom lúgubre que “o Brasil é uma paisagem”. Mais do que qualquer outra das cidades do país, o Rio de Janeiro é propriamente uma paisagem. Machado de Assis reclamava que trazia amigos estrangeiros para visitar a cidade; que lhes mostrava seus locais, sua arquitetura e sua história, mas que no fim das contas, estes só queriam saber do pôr-do-sol visto do alto do morro do castelo. Através de aterramentos e desmontes, o que era um emaranhado bruto e impenetrável de charco, lagos e montanhas ganhou feições quase milimetricamente desenhadas. Verena Andreatta observa que no processo de expansão do Rio de Janeiro, houve “uma vontade permanente de transformar o território original, de se construir contra a sua topografia”, operações que podem “ser adjetivadas como desproporcionais em relação àquelas levadas a cabo em qualquer outra cidade”. O Rio de Janeiro é paisagem construída. E paradoxalmente, “a cidade é tida como exemplo de adaptação à natureza, e não, como realmente é: natureza construída”3. Graças a estas paisagens construídas que a cidade tornou-se um grande cartão postal e ocupou o lugar de paraíso incondicional até pelo menos meados do século XX. Mesmo nas mudanças estru-

24

turais que desenharam as novas paisagens da república, entre 1904 e 1922, onde o que deveria ser exaltado era a democracia e a ação dos homens, no fim das contas a nova arquitetura da cidade e sua principal avenida conduziam o olhar novamente a um de nossos mais exaltados acidentes geográficos: a Baía da Guanabara. Ao longo de toda a história, o Rio de Janeiro beneficiou-se do imaginário edênico. E principalmente ao longo do século XX, assumiu-o como vocação e o explorou financeiramente. Cada vez mais os mercados imobiliários e turísticos repetem o diapasão e assumem um espaço de destaque e poder diante das decisões políticas da cidade. A paisagem por si só explica muitos dos nossos feitos urbanísticos e justifica escolhas precipitadas. É quase uma missão ao artista de hoje em dia desconstruir a visão da cidade como local paradisíaco; propô-la um outro imaginário de si mesmo. Derrubar esta representação que temos de nós mesmos é impulsionar mudanças e redirecionar o sentido daquilo que escolhemos ser. José Murilo de Carvalho parafraseava Hegel para dizer que as Américas talvez estivessem mesmo fadadas a nunca superar o seu status de natureza e adentrar a história (leiase, a história política). Para o Rio de Janeiro, podemos pensar num simples paralelo: continuaremos a cometer os mesmos erros, num ciclo de eternos retornos, enquanto não deixarmos de entender a cidade como uma paisagem. Não obstante as conquistas da história política carioca, o motivo edênico persiste como consolo e elemento de unificação nacional. A péssima autoi-


magem do brasileiro, em especial, do carioca, e a absoluta desqualificação que faz de si mesmo e de suas instituições políticas é lúgubre. Nunca encontramos outros tão fortes motivos de orgulho. Nos anos 90, menos da metade dos moradores do Rio de Janeiro diziam confiar em seus concidadãos enquanto a porcentagem média das principais democracias do mundo variava entre 85% e 95%. Avaliavam mais positivamente os parentes, amigos, vizinhos e líderes religiosos do que políticos, e menos ainda o deputado em quem votou, quem deveria representá-lo mais diretamente na esfera constitucional. É possível que as estatísticas tenham se transformado sensivelmente ao longo das últimas duas décadas, e no entanto, continua visível a forma como esta antiguíssima constrição se tornou de certo modo parte da atmosfera carioca. Esta constrição faz remissão a um passado histórico que não foi plenamente sanado. Embora a Guanabara tenha sido centro e farol do país por séculos, seu povo jamais foi protagonista de suas principais decisões. Aristides Lobo, pai da república, escrevera com pesar que a proclamação fora um fato puramente militar, que “a colaboração do elemento civil fora quase nula” e que “o povo assistiu aquilo bestializado, atônito, surpreso, sem conhecer o que significava”. Era um povo que desde sempre não se identificava com as suas próprias instituições, que não compartilhava de seu ideário. Não acreditava que essa história era a sua história. Enquanto a cidade tentava se modernizar, afundava-se na situação precária típica de metrópoles com elevada desigualdade social e passado escravocrata, onde o ideário republi-

cano ainda parecia “fora do lugar”. Encrustou-se ao longo dos séculos em seu imaginário que o Estado e a ordem eram seus inimigos. A lei é o outro: não faz parte de nós mesmos. Passamos a viver com certa naturalidade sob o signo do CAOS. Sem participação ativa nos processos de decisão, o povo carioca dedica suas forças organizacionais a esforços comunitários e outras coisas: festas, eventos religiosos ou esportivos, relações condôminas, dentre outras. Não espera mais do governo que ser deixado em paz, e reage violentamente quando este lhe bate à porta, o que justifica as eventuais participações em revoltas e outros fenômenos de mobilização tão comuns à vida da cidade. Por outro lado, surge esporadicamente sua própria concepção do que é uma organização social nas relações que tem para com os vizinhos e mais próximos. Em ruas um tanto ingovernáveis, a imposição da lei é caduca. De uma relação anárquica com as instituições governantes, o caos elevou-se a um verdadeiro estado de espírito que pauta o dia-a-dia do carioca em diversas esferas. É um sentimento amorfo que povoa nossos espaços públicos. É a cidade turbilhão mencionada no refrão do samba de Alberto Ribeiro e José Maria de Abreu, que pulsa violentamente como um eterno carnaval de confusão e loucura. Os acontecimentos surgem espontaneamente, como que sem eira nem beira, e terminam do mesmo modo. Os eventos tendem ao excesso, atropelam-se, emaranham-se, invadem uns aos outros. Em todo gesto, trato ou encontro, a burocracia e a etiqueta são imediatamente descartadas por uma

25


enorme informalidade, tão caótica que por vezes beira o cômico, a irreverência e a amoralidade. Não é incomum que um taxista pare o trânsito para pedir para um pedestre desconhecido que está passando que o ajude a abrir uma garrafa d’água selada. E que o pedestre naturalmente o ajude, adeus amigo, passe bem, enquanto o resto da rua buzina. O caos não é essencialmente um problema. Pode ser inclusive uma panacéia. É um problema do ponto de vista mais tradicionalmente democrata. Mas ele também é libertador. O que o caos tem a ver com a arte? Como se perseguir uma arte carioca sem concebê-la como também fruto e expressão deste espírito cotidiano? Não deveria uma arte carioca, para o bem ou para o mal, também colocar em seu centro o caos, a informalidade, a aleatoriedade quase íntima dos acontecimentos? O caos é parte tão entranhada do nosso imaginário, e ao mesmo tempo tão escondido e maquiado pelo verniz de um ideário de ordem que não encontra ecos na nossa realidade, que revela-lo com rigor tornouse um verdadeiro problema. Embora o caos tenha sempre matizado a arte carioca como um fantasma, ele raramente vem à tona, principalmente por conta de outros mitos que surgiram a partir dele. Um destes MITOS é a figura do malandro. Ele nasce de uma sociedade erguida na dialética entre a ordem e a desordem, como proposta por Antônio Cândido em sua célebre interpretação de Memórias de um sargento de milícia, “ordem dificilmente imposta e mantida, cercada de todos os lados por uma desordem vivaz”4. Com seu jogo de cintura e sua capacidade de adaptação a um mundo sem

26

identidade concreta, é esboçado como o anti-herói, o sujeito que corrompe facilmente a lei sem ter de confrontá-la, esquivando-se e driblando-a, nem que isso envolva lesar os outros à sua volta. O malandro é eleito a figura ideal e mais apta à sobrevivência dentro de uma sociedade tomada pelo caos, que precisa dar seu jeito diante da origem humilde e o desamparo da sorte. Em um lugar onde a única lei é a lei de Gerson, reage ao destino quase que instintivamente, individualisticamente, como um pícaro que busca agradar não ao monarca, mas somente a si mesmo. A gênese da figura está diretamente ligada à idéia de mestiçagem. Como colocado pela historiadora Lilia Moritz Schwarcz, “o malandro parece personificar com perfeição a velha fábula das três raças, numa versão mais recente e exaltadora”5. A fábula das três raças - que narra a síntese brasileira de índios, negros e europeus - surge principalmente a partir da independência do país em 1822, com a necessidade de se estabelecer critérios de definição do que seria o ser brasileiro. A mestiçagem, até então tomada como mácula, passa a ser exaltada, principalmente nas defesas de Sílvio Romero, como o caráter formador da sociedade brasileira, a identidade sincrética do nosso povo, uma defesa que se alastrará pela nossa história sociológica e antropológica, de Gilberto Freyre a Darcy Ribeiro. A aparição do malandro como protagonista frequente nas artes e na cultura se dará no final do século XIX e princípio do século XX, inicialmente no teatro carioca, num contexto pós-abolição da escravatura. Ele representa uma síntese positiva


do negro recém-liberto e adotado ou integrado à sociedade carioca, que poucos anos antes o considerava um objeto e cuja existência no interior da lógica social não podia mais ser plenamente ignorada. Um decreto que acompanhava a libertação propunha a criação de condições básicas para essa grande massa de ex-escravos, mas foi rejeitado. O negro foi praticamente despejado às ruas do Rio de Janeiro. A malandragem representou seu processo de adaptação a esta nova realidade. O malandro surge como uma máscara tipicamente carioca, e é rapidamente alçado à condição de estereótipo nacional. A universalização da figura se concluiu nos governos Vargas, quando não só tornou-se elegia à nossa cultura, mas também objeto de exportação (p.e.: Zé Carioca). Como o mito das três raças servira à unificação nacional, o malandro representava também uma atualização da incorporação do elemento negro, uma nova estratégia de defesa da nossa história como mestiçagem. A popularização fez com que o signo abandonasse suas raízes históricas e se entranhasse no nosso imaginário, como um misto de criatividade e individualismo típicos a nós, expandindo-se para além da sua origem social e ganhando as conotações de um verdadeiro modo de ser e estar no mundo carioca. Como estado de espírito, adentrou mesmo os círculos da elite, que inicialmente eram seu completo oposto. Este processo de exaltação do signo do mito representou também a diluição da matriz africana, o embranquecimento de muitos dos nossos fenômenos culturais. As características do malandro,

por exemplo, bebiam diretamente de outra figura histórica da cidade, a do capoeira. Eram como o abrandamento da sua violência, da sua revolta pela herança escravocrata e da situação desigual do negro na sociedade carioca. O capoeira era criminalizado e perseguido pelo estado, deveria ser extirpado do nosso mundo um a um. Aceitar a mestiçagem como dado histórico e o malandro como estereótipo nacional necessariamente significou também propor uma conciliação derrisória e ocultar um outro fantasma que ainda subsiste na terra do velho porto do Valongo. O grande mito é uma resposta ao espírito do caos, mas é também uma maquiagem a ser despida pela revelação de que o conflito social e racial nessa cidade adquiriu cada vez novas conotações e formatos, mas que jamais foi resolvido. Não da forma como o espírito conciliador do mito parece querer. Ele eventualmente o será? Ou ele continuará a surgir no horizonte eternamente como uma PROMESSA não-cumprida? O Rio de Janeiro é a terra de um mesmo habitante de duas faces, ora afirmando-se como mitologia, ora como promessa, sem ser exatamente nenhum dos dois. Esta dupla condição está mesmo aqui? Há ainda uma terceira, que talvez faça remissão à nossa matriz europeia. O difícil é distinguir se a tomamos por herança genética ou simplesmente vestimos a máscara até que ela se adaptasse a feições congruentes com os nossos traços. O difícil é também saber se fomos nós que em algum momento a vestimos, ou se não foi alguém que chegou e pendurou-a nos nossos rostos. É um Rio

27


de Janeiro habitado não apenas pelo espírito da alegria, mas também pelo espírito da SOLIDÃO. O sentimento carioca de exílio é uma outra face que não está à mostra, mas que perpetua vivaz na percepção da cidade como balneário. O Rio de Janeiro foi historicamente um grande porto. Economicamente, por séculos o principal porto do país. E como todo porto, local de entrada e saída, de identidade esfacelada, que recebe passivamente, exporta e espelha com facilidade o que chega. A solidão daqui é a solidão da cidade-voyeur. Isto é mais facilmente notável na visão que os regionalistas paulistas tinham de nós durante a marcada disputa de influência pela hegemonia nacionalcultural nos anos 20. A presença do mar teria nos tornado seres contemplativos, envoltos por devaneios, e que se deixam levar por fantasias vindas de fora. Com os olhos fixos lá e incapazes de resguardar o que temos dentro de nós, os regionalistas defendiam que não estaríamos mais aptos a ser o modelo nacional. “Minha esposa é a terra firme / as sereias estão no mar”, diz o bandeirante de Canção Geográfica, de Cassiano Ricardo. Seres contemplativos que perdem-se na infinidade do mar em contraposição à terra autêntica representada por São Paulo. Mais do que as querelas políticas da época, o interessante é perceber como o olhar deste grupo paulista revelou uma faceta mais recôndita da cidade como um silencioso poço de dúvidas, como um balneário imóvel e contemplativo, povoado por seres de personalidade lírica, afeitos a modismos de toda a natureza, vagabundos delirante e dramáticos,

28

mundanos e frívolos, atraídos pelo supérfluo. “O traço característico atribuído ao carioca”, escreve Monica Velloso, “é o seu instinto de navegação que o faria debruçar-se saudoso ao cais, sempre em busca de novos horizontes”6. A tipologia carioca é o dândi (e tivemos célebres jornalistas que seguiram a tendência, como João do Rio, Lima Barreto ou Joaquim Manuel de Macedo). Espremido entre a montanha e o mar, trava contato com uma quantidade enorme de pessoas e diversas origens e classes sociais. Na mesma medida em que abraça o mundo como um voyeur, perde a si mesmo. É um solitário, de identidade esfacelada, que mesmo no meio da multidão carnavalesca, tem sempre a impressão de estar sozinho. Caminha entre as muitas coisas, e no entanto, sempre termina a sonhar nostálgico em frente ao mar. A solidão carioca é peculiar porque não se caracteriza particularmente como isolamento, dor ou tristeza. Nossa imobilidade se caracteriza pelo dandismo, ou seja, o perpétuo andar. Não é enclausuramento, mas voyeurismo decadentista, anacrônico. O nosso vazio não é o nada. É o espelho. Como um porto, o Rio de Janeiro projeta sobre si mesmo todas as imagens do mundo. O protagonista de Fulaninha (1986), por exemplo, vive a observar uma menina que passa na rua diariamente. Sonha com ela, a sublima, embora não saiba e nem procure saber seu nome. E no entanto, passa o dia no boteco, com amigos preguiçosos, olhando o mundo correr à sua volta. Nem mesmo com seus amigos se identifica. É provável que a solidão seja a expressão maior de


nossa face mais propriamente cosmopolita. A solidão carioca fica ocultada no véu dos clichês de boa praça. O Rio de Janeiro como um grande balneário é a revelação também da nossa histórica falta de identidade, o vislumbre da impossibilidade do mito ou da promessa. Imitamos os modismos que chegam aos nossos portos. Os imitamos bem ou mal? E porque o fazemos? Por que não obstante o grande mito das três raças, temos dificuldade de nos reconhecer como qualquer coisa? Estas seis palavras falam um pouco sobre o processo histórico e cultural da nossa cidade. Mas os filmes espelham elas? Como o fazem? Mais do que uma resposta peremptória a esta pergunta, o que temos a oferecer é a procura, como exercício e ponto de partida. São raros os casos na nossa filmografia em que a cidade se impõe como tema definitivo. E no entanto, ele nunca é um mero pano-de-fundo. A cidade é o concreto filmado. Podemos esconder a cidade; podemos querer que o cenário seja simplesmente um lugar qualquer do mundo. Mas a todo momento em que lhe oferecemos uma brecha, as contradições da nossa realidade invade os limites do quadro. Há todo momento em que este breve gesto de abertura é permitido, todo um imaginário toma a conta e faz o filme pulsar alguma coisa que também faz parte de nós. Para que o cinema possa servir à vida, é necessário também um deslocamento do olhar. Se não é facilmente encontrado, se ele prefere se esconder, o Rio de Janeiro deve também ser perseguido nos filmes. O dito popular é que uma imagem vale por mil palavras. Mas quantas novas imagens, afinal, pode também valer uma única palavra?

29


1 BICALHO, Maria Fernanda. “A Cidade e o Império: o Rio de Janeiro no século XVIII”. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003 2 CARVALHO, José Murilo de. “O motivo edênico no imaginário social brasileiro” em Revista Brasileira de Ciências Sociais. vol. 13 n. 38. São Paulo. 3 ANDREATTA, Verena. “Cidades quadradas, paraísos circulares: os planos urbanísticos do Rio de Janeiro no século XIX”. Rio de Janeiro: Mauad X. 4 CÂNDIDO, Antônio. “Dialética da malandragem (caracterização das Memórias de um Sargento de Milícia)” em Revista do Instituto de estudos brasileiros, n. 8, SP, USP, 1970 5 SCHWARCZ, Lilia Moritz. “Complexo de Zé Carioca: notas sobre uma identidade mestiça e malandra” em Revista brasileira de Ciência Sociais v.10 n.29 São Paulo out. 1995 6 VELLOSO, Monica Pimenta. “Cidade-voyeur: o Rio de Janeiro visto pelos paulistas” em Revista Rio de Janeiro. Niterói. Dez. 1986. n. 4

30


31


32


33

FILMOGRAFIA


A ALEGRIA (2010)

MEDO “A história do Rio sempre fora marcada por uma intensa experiência do medo”. Maria Fernanda Bicalho

34


O medo carioca é espetáculo. Historicamente, foi produzido pela mídia através da ênfase em figuras de criminosos (revistas e jornais concedendo espaço a entrevistas com criminosos) e do alarde de eventos trágicos selecionados. Neste sentido, Cidade de Deus adere à tradição na mesma medida em que o faz metalinguísticamente. A trajetória da favela, a organização do crime e a exaltação da figura de Zé Pequeno repetem a clássica espetacularização da violência. Por outro lado, a trama reflete sobre sua própria condição e se organiza a partir do ponto-de-vista daquele menino que se tornará justamente o jornalista responsável pela invenção do mito do tráfico. O medo carioca é angústia. O carnaval de O Dominó Negro encobre um outro mundo, o do tráfico de drogas e da violência. Anunciado como primeiro policial brasileiro (embora não o tenha sido), o longa-metragem rapidamente se constrói como tragédia. A tragédia, no entanto, tem pouco ou nada a ver com a violência urbana. Ela tem a ver com o amor. O amor enganado por ilusões e máscaras. O grande medo das metrópoles é justamente você não conhecer mais as pessoas com quem convive. “Em ti, procuro o amor, para encontrar a dor”, canta Elvira Pagã. O medo carioca é covardia. No filme Ópera do Malandro,​​ ​Max sempre quer se dar bem, mesmo que para isso tenha que enfrentar o delegado com uma arma apontada para ele. Aparentemente destemido de tudo, Max só revela seu maior medo quando o país entra em guerra e ele precisa tomar a decisão de encará-la ou fugir com a namorada - acredita que será um covarde se optar pela fuga. Ele precisa manter a pose do malandro macho e corajoso - não só para os outros, mas para ele mesmo. O medo carioca é coragem. O protagonista de Roberto Carlos em Ritmo de Aventura reage com naturalidade diante dos perigos pelas quais passa. Mais do que destemido, parece pouco se importar com o mal que lhe ronda. Organiza-se para não ser vítima (quando opta, por exemplo, em ir para casa no carro do diretor e evitar a armadilha), mas não reage com alarde. Maior que o medo é a música, a paixão e a bravura. “O que você acha da maldade?”, lhe indaga uma menina, e peremptoriamente ele responde: “existe, mas acho uma bobagem”. O medo é eventualmente aquilo que

35


também inventa a coragem, a mesma que lhe força a grandes feitos, como, por exemplo, atravessar um túnel de helicóptero. O medo carioca é alegria. Ou ainda que seja o seu oposto, é uma bandeira política para não se deixar paralisar. Em A Alegria, existe uma razão concreta para o medo (o irmão que foi baleado em Queimados). Embora a protagonista não tenha vivenciado o perigo, este é sublimado à imagem de um fantasma ou monstro que ronda e precisa ser vencido. O longa-metragem é como um percurso de cura/redenção contra este estado de espírito. O homem não se curva a ele. Recobra o seu poder de ação através de uma percepção da sua capacidade moral de sobrepôr-se a estruturas já dadas.

36


A ALEGRIA (2010) Luiza, menina de 16 anos, não aguenta mais ouvir falar no fim do mundo. Em uma noite de Natal, seu primo João é baleado misteriosamente em uma rua na Baixada Fluminense e desaparece no meio da madrugada. Semanas depois, enquanto Luiza passa dias sozinha no apartamento onde vive com sua mãe no Rio de Janeiro, um misterioso visitante vem bater à sua porta: João, como um fantasma, pedindo para se esconder ali. Direção: Felipe Bragança e Marina Meliande; Elenco: Tainá Medina, Junior Moura, Flora Dias, César Cardadeiro, Rikle Miranda, Mariana Lima, Marcio Vito, Maria Gladys, Sandro Mattos, Clara Barbier; Roteiro: Felipe Bragança; Produção: Lara Frigotto, Felipe Bragança e Marina Meliande; Empresa Produtora: Duas Mariola Filmes; Fotografia: Andrea Capella; Som: Felippe Mussel, Vampiro; Música: Lucas Marcier; Montagem: Marina Meliande. 100 minutos, Colorido, Sonoro. Exibição em 35mm. O DOMINÓ NEGRO (1949) Baseado no conto homônimo de Hélio do Soveral, o filme narra a história de Florêncio Alvarez, traficante de drogas que é assassinado durante uma festa organizada em sua casa no carnaval. Elenco: Elvira Pagã, Paulo Porto, Álvaro Aguiar, Milton Carneiro; Direção: Moacyr Fenelon; Roteiro: Hélio do Soveral; Produção: Moacyr Fenelon; Empresa Produtora: Flama Filmes; Fotografia: Sílvio Carneiro; Direção de Arte: Cajado Filho; Assistente de Direção: Walter Duarte; Som: Luiz Braga Jr., Cesar de Abreu, Nelson Ribeiro; Montagem: Rafael Justo Valverde; Música: Leo Peracchi. 85 minutos, P&B, Sonoro. Exibição em 35mm.

37

O DOMINÓ NEGRO (1949)


ÓPERA DO MALANDRO (1986) Anos 40, Rio de Janeiro. Max é um malandro elegante, que é também uma popular figura do boêmio bairro da Lapa. Ele explora uma cantora de cabaré e vive de pequenos trambiques. Até que suerge Ludmila, a filha do dono do cabaré, que pretende tirar proveito da 2ª Guerra Mundial fazendo contrabando. Direção: Ruy Guerra; Elenco: Edson Celulari, Cláudia Ohana, Ney Latorraca, Elba Ramalho, Fábio Sabag, Wilson Grey; Roteiro: Ruy Guerra, Chico Buarque, Orlando Senna; Produção: Ruy Guerra, Marin Karmitz; Empresa Produtora: Embrafilme; Fotografia: Antônio Luis Mendes; Som: Claud Villand, Bernad Le Roux; Música: Chiquinho de Moraes, Chico Buarque; Montagem: Mair Tavares, Idê Lacreta. 110 minutos, Colorido, Sonoro. Exibição em 35mm. ROBERTO CARLOS EM RITMO DE AVENTURA (1968) Roberto Carlos, ídolo da música jovem brasileira, é perseguido por um bando que pretende utilizá-lo para a produção em massa de canções, com a ajuda de um cérebro eletrônico. Roberto, que está fazendo um filme com o vilão francês Pierre, é obrigado a fugir de helicóptero, avião, automóvel, tanque e até foguete espacial, indo do Rio a São Paulo e a Nova York e Cabo Kennedy, mas no fim, tudo acaba bem, para ele, seus amigos e os adversários. Direção: Roberto Farias; Elenco: Roberto Carlos, Reginaldo Farias, José Lewgoy, Rose Passini, David Cardoso, Jorge de Oliveira; Roteiro: Roberto Farias, Paulo Mendes Campos; Produção: Roberto Farias, Riva Farias; Empresa Produtora: Produções Cinematográficas R. F. Farias; Fotografia: José Medeiros; Musica: Carlos Roberto; Montagem: Roberto Farias, Raimundo Higino; Direção de arte: Arthur Jorge. 99 minutos, Colorido, Sonoro. Exibição em DVD.

38 ROBERTO CARLOS EM RITMO DE AVENTURA (1968)


CIDADE DE DEUS (2002) Saga urbana que acompanha o crescimento do conjunto habitacional de Cidade de Deus, entre o fim dos anos 60 e o começo dos anos 80, pelo olhar de dois jovens da comunidade: Buscapé, que sonha em ser fotógrafo, e Dadinho, que se torna um dos maiores traficantes do Rio de Janeiro. Nos anos 70, Dadinho muda o nome para Zé Pequeno e passa a controlar o tráfico de drogas em Cidade de Deus. Nos anos 80, Zé Pequeno encontra um rival: Mané Galinha, que quer vingança pelo estupro de sua namorada e pela morte de seu irmão. Estoura a guerra na Cidade de Deus. Nesse meio tempo, Buscapé consegue sua primeira câmera profissional e começa a registrar esta guerra. Direção: Fernando Meirelles e Kátia Lund; Elenco: Douglas Silva, Darlan Cunha, Leandro Firmino, Alice Braga, Alexandre Rodrigues, Thiago Martins, Roberta Rodrigues; Roteiro: Bráulio Mantovani; Produção: Walter Salles; Empresa Produtora: O2 Filmes, VideoFilmes; Fotografia: César Charlone; Som: Guilherme Ayrosa, Paulo Ricardo Nunes; Música: Antônio Pinto, Ed Côrtes; Montagem: Daniel Rezende. 130 minutos, Colorido, Sonoro. Exibição em 35mm.

39 CIDADE DE DEUS (2002)


BABILÔNIA 2000 (2001)

PARAÍSO “O meu sentimento nativista sempre se doeu desta adoração da natureza. Eu não fiz, nem mandei fazer, o céu e as montanhas, as matas e os rios. Já os achei prontos”. Machado de Assis

40


O paraíso carioca é paisagem. Ora deslumbrante, ora consoladora. Admirar a paisagem ou desconfiar da promessa do êxtase? No filme Em busca de um lugar comum, o Rio de Janeiro em sua representação de cidade-marca é desmembrado em diversos discursos dos guias turísticos que fazem diariamente os Favela-Tour na Rocinha. As imagens que os turistas registram em suas câmeras desejam o cartão postal, a excitação, o perigo, talvez o filme que eles viram e que gostariam de encontrar aqui… O filme confronta o que se espera e o que se vê. O paraíso carioca é gozo. As placas de trânsito indicam: a vida é feita de escolhas. No Rio de Eu transo... Ela transa os personagens parecem se movimentar em direção ao que é mais óbvio no paraíso: desfrutar de seus prazeres. Todos dão um jeito de conseguir passagens expressas para o céu, só possível através do dinheiro fácil, com o menor esforço possível. O pai é a figura mais empenhada nesse cenário, capaz de vender tudo, inclusive a “honra” da sua família, pelo fim de suas dívidas. Embalados pela trilha bossa-novista de Carlos Lyra, a Zona Sul carioca é um parque de diversões para os mais jovens. Como transar essa vida hedônica sem ser tragado pela sociedade de consumo? Carlinhos quer um carro importado ou uma estrada sem placas? O paraíso carioca é consolo. Em Amor, Carnaval e Sonhos o carnaval é redenção. Figuras solitárias encontram nos quatro dias da folia carioca o elixir de seus problemas. A Leila Diniz na primeira cena encontra o homem que procura. O fotógrafo aprende a sambar. O Oxossi encontra Iansã e percorre um ritual em plena natureza, inaugurando o carnaval. O Rio de Janeiro é a terra dos solitários, mas é também o paraíso que os redime, que os consola. O carnaval de Saraceni é mítico. Nele, os deuses estão presentes. O paraíso carioca é flutuante. Na primeira imagem de O Uivo da Gaita vemos um pequeno barco atravessar o mar da Baía de Guanabara. Duas moças remam com a paisagem do Pão de Açúcar ao fundo, a imagem paradisíaca se revela logo em tormenta. Existencial, minimalista, epifânico, a câmera flutua entre os corpos, os espaços e sensações. A paixão

41


derrete os corpos e os faz dançar em alucinação, enquanto a fuga é sempre uma perspectiva para o amor. O paraíso carioca é carnaval. Em Orfeu Negro, Eurídice foge de um homem misterioso que a persegue. O Rio será esse lugar de destino, esconderijo e promessa de nova vida. Na comunidade, unida na preparação e celebração carnavalesca, a jovem se apaixona por Orfeu. Exuberância de cor e frenesi através da dança, o carnaval também é tragédia. Mesmo com máscaras e alegorias, o paraíso não é para todos. O paraíso carioca é uma invenção. Babilônia 2000 nos revela as muitas contradições dos discursos formadores destas imagens mais tradicionais da cidade, evidenciando como elas forçam à unidade o que na realidade é uma polifonia. Alguns dos moradores do morro esperam do futuro um milagre, outros pensam que nada irá mudar. Alguns acreditam que estão abençoados por viver ali, outros não. As operações de montagem de Coutinho forçam estes muitos discursos a evitarem sínteses óbvias e põe em crise todo discurso que alimenta os muitos signos pelo qual o morro é visto. Babilônia surge como espaço ora edênico, ora infernal.

42


AMOR, CARNAVAL E SONHOS (1972) Na véspera do carnaval, uma jovem faz um pedido a sua santa devota: quer um homem com quem possa se divertir. O milagre acontece. Ela conhece um rapaz. Em pleno desfile dos blocos, um fotógrafo conhece Aninha, a passista, e leva-a a seu apartamento. Em outro plano, Tristão e Isolda estão brincando no Baile do Municipal. O casal ainda se encontra nas figuras de Oxossi e Iansã. Direção: Paulo César Saraceni; Elenco: Arduino Colassanti, Ana Maria Miranda, Leila Diniz, Hugo Carvana, Paulo César Saraceni, Isabel Ribeiro; Produção: Carlos Alberto Diniz, Ricardo Moreira, Sérgio Saraceni; Empresa Produtora: Atlantida Cinematográfica Ltda.; Fotografia: Marco Bottino; Som: Juarez da Costa; Montagem: Ricardo Miranda. 80 minutos, Colorido, Sonoro. Exibição em DVD.

BABILÔNIA 2000 (2001) Na manhã do último dia de 1999, uma equipe de filmagens sobe o Morro da Babilônia, no Rio de Janeiro. Lá existem duas favelas, Chapéu Mangueira e Babilônia, as únicas situadas na orla de Copacabana e cujos moradores podem acompanhar ao vivo o reveillon de Copacabana. Durante 12 horas, as câmeras da equipe de filmagens acompanham os preparativos locais para o reveillon, assim como ouve os moradores locais a fim de saber as expectativas deles para o ano 2000 e para que possam fazer um balanço de suas vidas. Direção: Eduardo Coutinho; Elenco: Maria Augusta do Nascimento, Ranulfo Gonçalves e diversos moradores das favelas Chapéu Mangueira e Babilônia, Roseli da Silva; Produção: Donald K. Ranvaud, Eduardo Coutinho; Empresa Produtora: CECIP; VideoFilmes; Fotografia: Consuelo Lins, Daniel Coutinho, Eduardo Coutinho, Geraldo Pereira; Som: Paulo Ricardo Nunes, Ivanildo da Silva; Montagem: Jordana Berg. 80 minutos, Colorido, Sonoro. Exibição em 35mm.

43


EM BUSCA DE UM LUGAR COMUM (2012) Rio de Janeiro, 2011. Anunciadas mundo afora como principal cenário das mazelas sociais brasileiras, as favelas cariocas se consolidaram como um dos pontos turísticos mais visitados do Rio, produzindo não só a remodelação dos roteiros turísticos tradicionais, como uma mudança nas memórias que os estrangeiros guardam da cidade. Imerso nos passeios pela Favela da Rocinha, o documentário investiga os desejos e as imagens envolvidas na construção deste disputado destino turístico. Um mercado que, atento às demandas, não cessa em projetar seus novos atrativos. Direção: Felippe Schultz Mussel; Produção: Angelo Defanti; Empresa Produtora: Sobretudo; Fotografia: André Lavaquial, Pedro Urano, Rodrigo Graciosa, Thiago Lima Silva; Som: Felippe Schultz Mussel; Montagem: Felippe Schultz Mussel. 80 minutos, Colorido, Sonoro. Exibição em Blu-ray.

EU TRANSO... ELA TRANSA (1972) Roberto, de 45 anos e que mora na Zona Sul, é um chefe de família sempre bem disposto e com a simpatia peculiar a certos homens de negócio que costumam resolver facilmente todos os problemas. Vivem ao seu lado Dedé, sua mulher, Maria Inês, a cunhada solteirona e antiquada, Afonso, o sogro aposentado, que perambula pela casa numa cadeira de rodas, criticando tudo e todos, Carlinhos, o filho mais velho, garotão de Ipanema, que jamais enfrentou qualquer problema na vida, Vanda, a filha de dezessete anos, que começa a sentir o problema da afirmação pessoal, e Kiko, de quatorze anos, ainda completamente inconsequente. Filme baseado na peça teatral Copacabana S/A, de Jota Gama. Direção: Pedro Camargo; Elenco: Jorge Dória, Sandra Barsotti, Marcos Paulo, Dayse Lucidi, Rodolfo Arena; Roteiro: Pedro Camargo; Produção: Mozael Silveira, Maurício Nabuco; Empresa Produtora: R. F. Farias Produções Cinematográficas; Ipanema Filmes; Fotografia: José Medeiros; Som: Alberto Vianna; Música: Aécio Flávio, Carlos Lyra; Montagem: Waldemar Noya. 102 minutos, Colorido, Sonoro. Exibição em DVD.

44 EU TRANSO... ELA TRANSA (1972)


ORFEU NEGRO (1959) Adaptação para o cinema da peça teatral Orfeu da Conceição, escrita por Vinícius de Morais, com música composta por Antônio Carlos Jobim, que ambienta no Carnaval do Rio de Janeiro uma versão moderna do mito grego de Orfeu. Aqui, ele é um condutor de bonde e sambista que mora no morro e se apaixona por Eurídice, uma jovem do interior que vem para o Rio fugindo de um estranho fantasiado de Morte. Mas o amor de Orfeu por Eurídice desperta o ciúme de sua ex-noiva. Direção: Marcel Camus; Elenco: Breno Mello, Marpessa Dawn, Lourdes de Oliveira, Léa Garcia; Roteiro: Marcel Camus, Jacques Viot; Produção: Sacha Gordine; Empresa Produtora: Dispat Films; Fotografia: Jean Bourgoin; Som: Amaury Leenhardt; Montagem: Andrée Feix, Geneviève Wilding; Uma coprodução Brasil, França e Itália. 100 minutos, Colorido, Sonoro. Exibição em DVD.

O UIVO DA GAITA (2013) Uma história de amor entre Antonia, Luana e Pedro. O Porto do Rio de Janeiro, a famosa Casa das Canoas de Oscar Niemeyer e uma paradisíaca praia em Niterói com vista exuberante para a cidade do Rio de Janeiro, são as locações onde os personagens vão flanar e viver seus desejos contemporâneos. O filme faz parte da Operação Sonia Silk, série de três filmes de longa-metragem produzidos de forma cooperativa, com mesmo elenco e equipe, coproduzidos pelo Canal Brasil e Teleimage. Direção: Bruno Safadi; Elenco: Leandra Leal, Jiddu Pinheiro, Mariana Ximenes; Roteiro: Bruno Safadi; Produção: Elaine Soares de Azevedo; Empresa Produtora: Alumbramento; Fotografia: Ivo Lopes Araújo; Som: Pedro Diógenes, Edson Secco; Montagem: Guto Parente, Luiz Pretti. 75 minutos, Colorido, Sonoro. Exibição em Blu-ray.

45 O UIVO DA GAITA (2013)


24 HORAS DE SONHO (1941)

SOLIDÃO “O Rio de Janeiro é a cidade contemplativa, cercada de montanhas, olhando o mar”. Cassiano Ricardo

46


A solidão carioca é espelho. Um dos primeiros gestos de Violeta, de O Abismo Prateado, ao ser abandonada pelo marido, é pendurar um espelho. É um gesto prosaico, sem metáforas, que não será retomado mais adiante. O Rio de Janeiro como balneário é um lugar de entradas e saídas, que absorve e reflete as influências que vem de fora. É a cidade como espelho. Os signos tradicionais de Copacabana serão redimensionados para que a cidade se torne este balneário. Durante a noite, a solitária Violeta irá se sentar à beira da praia para observar o mar. A solidão carioca é neurose. Em Ipanema Adeus, o Rio de Janeiro não é Shangri-lá, mas Babilônia. O paraíso é Porto Seguro, berço do país. Rio de Janeiro é uma metrópole odiosa, vítima da modernidade, caótica, burocrática, que transforma o seu habitante num ser neurótico. “A neurose é a poluição da alma” grita Carlos, personagem que sonha em abandonar a cidade em busca de um lugar de natureza reconfortante. Os tempos mortos povoados por trilhas sonoras pesadas refletem o estado de espírito de um personagem que tem dificuldades de lidar com o mundo. A solidão carioca é delírio. Em 24 horas de sonho, a campeã internacional de tentativas de suicídio passa um dia fingindo ser uma pessoa que não é. Após mais uma tentativa fracassada no Morro do Corcovado, onde até o Cristo Redentor lhe dá as costas, resolve seguir o conselho do taxista Cícero e aproveitar seu último dia de vida: hospeda-se num hotel luxuoso sob um falso nome e título de baronesa. Assim como a cidade, Clarice esconde a própria tristeza adquirindo novas identidades. Afinal, como diz um dos personagens, “nada é impossível pra quem vai morrer”. A solidão carioca é excesso. Ao invés de ápice da alegria, é possível que o carnaval carioca seja a nossa experiência maior da solidão. Flanamos pelas ruas seguindo o bloco, e nele não temos identidade além das máscaras que vestimos. Encontramos brevemente alguns desconhecidos e continuamos adiante, rumo a lugar nenhum. O rosto triste e delirante de Paulo César Pereio nas primeiras cenas de A Lira do Delírio nos revela este sentimento. O carnaval no filme é uma mistura de loucura embevecida, tristeza viciante e agressividade. Três dias de expurgo não dos ímpetos

47


carnais, mas destes sentimentos que escondemos. Seus personagens nunca se comunicam muito bem. “... A vida dura só um dia, um porre, um gesto, um gemido, um canto... um delírio…” A solidão carioca é superfície. Em O Mandarim, Julio Bressane imagina um Rio nostálgico em dois tempos: passado e presente, encarnado no solitário e misterioso cantor Mario Reis diante de sua morada no Copacabana Palace. A história da música popular brasileira é contada através desse personagem em seu cotidiano na cidade e nos encontros com outros compositores e seus duplos: Sinhô/Gil, Noel/Chico, Tom/Edu Lobo, Carmem Miranda/Gal. A recriação da primeira imagem filmada na nossa história do cinema, onde a Baía de Guanabara é a protagonista, o mar como centro desse mundo, ora para ser sonhado, ora para ser olhado. O “primeiro cinema” de Bressane é artificial e superfície, mas também farol. “A voz de alguém que canta / A voz de um certo alguém / Que canta como que pra ninguém / A voz de alguém quando vem do coração / De quem mantém toda a pureza / Da natureza / Onde não há pecado nem perdão” canta Caetano Veloso como ao final de O Mandarim.

48


24 HORAS DE SONHO (1941) As peripécias de uma moça decidida a colocar um fim à vida e aproveitar seus últimos momentos de existência. Instala-se num luxuoso hotel, sob o nome de uma baronesa. Compra a crédito toilletes faustosas, arranja um flirt e... deixa a vida correr. Como pano de fundo, uma aristocracia europeia de verdade, hospedada no hotel, vítima da 2ª Guerra. Direção: Chianca de Garcia; Elenco: Dulcina de Moraes, Odilon Azevedo, Oscarito, Aristóteles Pena; Roteiro: Joracy Camargo; Companhia(s) produtora(s): Cinédia S.A.; Produção: Gonzaga, Adhemar; Coordenação de produção: Manoel Rocha; Assistência de direção: Fernando de Barros; Direção de fotografia: George Fant; Câmera: Reginaldo Calmon; Direção de som: Hélio Barrozo Netto; Figurinos: Iracema Gomes Marques; Cenografia: Hipolito Collomb ; Música: Arthur Brosmans. 101 minutos, P&B, Sonoro. Exibição em 35mm.

O ABISMO PRATEADO (2011) Violeta é uma dentista casada e com um filho, que tem um dia normal de trabalho. Ao ouvir uma mensagem deixada na secretária do celular ela entra em desespero. A mensagem foi gravada por seu marido, Djalma, que disse que estava deixando-a e partindo para Porto Alegre. Ele pede para que Violeta não o siga, mas ela não segue o conselho e tenta viajar, o quanto antes, para a capital do Rio Grande do Sul. Direção: Karim Aïnouz; Elenco: Alessandra Negrini, Alice Borges, Carla Ribas, Gabi Pereira, João Vitor da Silva, Rebecca Orenstein, Thiago Martins; Roteiro: Beatriz Bracher, Karim Aïnouz; Produção: Pedro Paulo Magalhães, Rodrigo Teixeira, Luiz Affonso Otero; Empresa Produtora: RT Features; Fotografia: Mauro Pinheiro Jr; Som: Leandro Lima, Ricardo Cutz; Música: Rica Amabis, Tejo Damasceno, Dustan Gallas; Montagem: Isabella Monteiro de Castro. 84 minutos, Colorido, Sonoro. Exibição em Blu-ray.

49 O ABISMO PRATEADO (2011)


A LIRA DO DELÍRIO (1978) No intervalo entre dois carnavais de um bloco de Niterói, uma “taxi-girl” se envolve com um rico e ciumento amante que, para retê-la, contrata um marginal do submundo das drogas para raptar o bebê da moça. Desesperada mas firme, ela procura um amigo jornalista que, investigando casos policiais paralelos, procura reaver a criança. Direção: Walter Lima Jr.; Elenco: Anecy Rocha, Paulo César Peréio, Cláudio Marzo, Antonio Pedro, Tonico Pereira, Otoniel Serra, Pedro Bira; Roteiro: Walter Lima Jr.; Produção: Walter Lima Jr.; Empresa Produtora: Walter Lima Junior Produções; Fotografia: Dib Lutfi; Som: Aloysio Vianna, Geraldo José; Música: Paulo Moura; Montagem: Mair Tavares. 105 minutos, Colorido, Sonoro. Exibição em 35mm.

IPANEMA ADEUS (1975) Carlos, executivo bem sucedido, casado e pai de três filhos, resolve abandonar a poluição da vida moderna no Rio de Janeiro e parte para Porto Seguro, na Bahia, com a idéia de recomeçar sua vida como pescador. De todas as mulheres que convida para acompanhá-lo, inclusive a própria esposa, Helena, a única que aceita é Gilda, jovem livre e sem preconceitos. Mas quando chegam a Porto Seguro, ela tenta convencê-lo de que aquele é um belo lugar para um grande empreendimento imobiliário, e que ele deve retomar suas funções de empresário. Direção: Paulo Roberto Martins; Elenco: Hugo Carvana, Monique Lafond, Bibi Vogel, Cláudio Cavalcanti, Ênio Santos, Leda Valle, Moacyr Deriquem; Roteiro: Paulo Roberto Martins; Produção: José Carlos Escalero; Empresa Produtora: Totem Filmes; Fotografia: Dileni Campos; Som: José Tavares, Antonio Cezar, Walter Goulart; Montagem: Waldemar Noya. 88 minutos, Colorido, Sonoro. Exibição em DVD.

50 A LIRA DO DELÍRIO (1978)


O MANDARIM (1995) No Rio de Janeiro, compositores de gerações contemporâneas interpretam metalingüisticamente papéis de sambistas de gerações passadas, numa digressão atemporal sobre a trajetória do cantor Mário Reis pelas situações mais adversas do cotidiano da cidade. Ele encontra Sinhô no Hotel Copacabana Palace. Ele canta na rádio. Uma cigana lê sua mão e diz que conhecerá uma mulher. Anda de lancha pela baía de Guanabara com Carmem Miranda, depois encontra Villa-Lobos num parque. Mais tarde na piscina do Copacabana Palace conhece uma mulher casada que acaba recusando os flertes do cantor. Conhece uma médica estudiosa do prazer e da filosofia. Eles têm um caso e depois vão dar um passeio no parque com Noel Rosa e uma mulher. Ele também encontra Tom Jobim que mostra um chorinho composto por ele e Noel. Na sacada de um casarão conhece Caetano Veloso que diz ser indicado por Lamartine Babo e ter composto uma canção com Sinhô. Ele visita uma festa no Copacabana Palace e mostra suas canções para a elite carioca. Dois médicos o avisam que ele corre risco de vida e que necessita de uma cirurgia. Ele pede licença e canta uma última canção. Mário pendura as chuteiras. Direção: Júlio Bressane; Elenco: Fernando Eiras, Giulia Gam, Daniela Arantes, Catarina Abdala, Drica Moraes, Noa Bressane; Roteiro: Júlio Bressane; Produção: Júlio Bressane; Empresa Produtora: Movie Track; Sagres; Fotografia: José Tadeu Ribeiro; Som: Toninho Muricy; Música: Lívio Tragtenberg; Montagem: Gilberto Santeiro. 90 minutos, Colorido, Sonoro. Exibição em 35mm.

51 O MANDARIM (1995)


AS AVENTURAS AMOROSAS DE UM PADEIRO (1975)

CAOS “Rio de Janeiro, cidade que nos seduz, de dia falta água, de noite falta luz”. Vitor Simon e Fernando Martins

52


O caos carioca é agressão. A miséria dos personagens de A Navalha na Carne não é uma condição social; é também uma condição existencial. Abandonados pelo mundo, os três protagonistas, ao invés de se unirem, atacam uns aos outros, como urubus caçando carniça. Aos trinta minutos de silêncio seguem outros sessenta de humilhações e agressões gratuitas. Uma verborragia que só conduz seus personagens de volta ao cansaço. O caos carioca é impotência. Ao menos para quem quiser resolvê-lo. O protagonista de Terra em Transe, entre os castelos da aristocracia e o populismo, procura os meios de devolver ao povo a democracia que lhe pertence. A sua crise é a crise de quem recobra da política institucionalizada uma força primitiva, mas rapidamente decreta também a sua impossibilidade nestas terras. Na esfera política, o Rio de Janeiro é uma grande ficção. Aqui, a política só existe como alegoria. Não existe o povo e suas vidas. O povo não participa desse mundo senão como um breve signo. Eldorado deveria ser perfeito, e no entanto, a polifonia da cidade só cria bestas ou bilontras. O caos carioca é solidariedade. A protagonista de Agulha no Palheiro chega a um Rio de Janeiro onde as pessoas não tem nome próprio. Encontrar José da Silva é uma tarefa impossível. Diante do cenário, os familiares e vizinhos ajudam uns aos outros a sobreviverem e conseguirem resolver seus problemas. O coletivo triunfa. A amizade é a resposta ao caos, na mesma medida em que nasce dele. O caos carioca é liberdade. A tríade clássica do teatro carioca sofre uma curiosa inversão em As aventuras amorosas de um padeiro: o português otário passa a ser o malandro, o mulato passa a ser o artista, a mulher é branca e, ao invés de prêmio submissa, confunde a todos os homens. O burguês controlador é um chorão alcoólatra. Nada é o que parece porque, no caos, as coisas não podem ser limitadas por esteriótipos e imagens óbvias. A única lei é a lei da pluralidade. No Campo Grande de Onofre, tudo é cabível: a procissão, o samba, o show de reggae, shakespearianismos e espiritismos, o cômico e o trágico, a ordem (representada no flagrante do adultério) que nunca vencerá a desordem.

53


O caos carioca é corpo vivo. “O homem está na cidade, assim como a cidade está no homem”, declama Gatto Larsen em Esse amor que nos consome. É através do amor que essas anatomias se fundem, os corpos dos dançarinos e o organismo da cidade. Os canteiros de obra da cidade se movimentam com as máquinas e um casarão abandonado carece de ser ocupado por uma companhia de dança. Nessa espiral de desejos não há como controlar a pulsação da cidade. No caos, a cidade-retalho resiste a qualquer lógica e os afetos são linhas de costura invisíveis.

54


AGULHA NO PALHEIRO (1953) Mariana é uma jovem provinciana que chega ao Rio de Janeiro à procura de seu noivo, José da Silva, de quem engravidou. Ela se hospeda na casa de seus primos, Baiano, motorista de ônibus tipo lotação, e Elisa, fã de todas as novelas radiofônicas. Direção: Alex Viany; Elenco: Fada Santoro, Jackson de Souza, Roberto Batalin, Sarah Nobre, Dóris Monteiro; Roteiro: Alex Viany; Produção: Moacyr Fenelon; Empresa Produtora: Flama Filmes; Fotografia: Carlos Neffa Olmedo, Mário Pagés; Direção de Arte: A. Monteiro Filho; Assistente de Direção: Nelson Pereira dos Santos; Som: Luiz Braga Jr.; Montagem: Rafael Justo Valverde; Música: Cláudio Santoro, José Maria de Abreu. 95 minutos, P&B, Sonoro. Exibição em DVD.

AS AVENTURAS AMOROSAS DE UM PADEIRO (1975) Ritinha é uma jovem humilde, virgem e que vive no subúrbio do Rio de Janeiro. Ela se casa com um homem mais velho, o conservador Mário. Meses depois, Ritinha percebe o quão entediante é sua vida de casada, sobretudo nas questões do sexo. É quando ela conhece Marques, que se não passa de um estupido padeiro português, pelo menos faz a jovem realizar suas fantasias na cama. E ele acaba tirando fotos dos dois transando. Mais tarde, Ritinha conhece Saul, artista negro de quem se torna amante. Mas Marques, tomado pelo ciúmes, revela as fotos ao marido dela, criando enorme confusão. Sátira popularesca explorando assuntos como infidelidade conjugal, preconceito racial e desejo de ascensão social. Direção: Waldyr Onofre; Elenco: Maria do Rosário, Paulo César Pereio, Haroldo de Oliveira, Ivan Setta, Mariano Procópio, Rafael de Carvalho; Roteiro: Waldyr Onofre; Produção: Nelson Pereira dos Santos; Empresa; Produtora: Regina Filmes; Fotografia: Hélio Silva; Som: José Tavares; Montagem: Raymundo Higino 106 minutos, Colorido, Sonoro. Exibição em 35mm.

55


ESSE AMOR QUE NOS CONSOME (2012) Gatto e Barbot são companheiros de vida há mais de 40 anos e acabam de se instalar em um casarão abandonado no Centro do Rio de Janeiro. Ali, eles passam a viver e ensaiar com sua companhia de dança. A luta do dia a dia se mistura à criação artística e à crença em seus orixás. Através da dança eles se espalham pela cidade, marcando seus territórios. Direção: Allan Ribeiro; Elenco: Gatto Larsen, Rubens Barbot, Wilson Assis, Cláudia Ramalho, Rubens Rocha; Roteiro: Allan Ribeiro e Gatto Larsen; Produção: Ana Alice de Morais; Empresa Produtora: 3 Moinhos Produções; Fotografia: Pedro Faerstein; Som: Ives Rosenfeld. 80 minutos, Colorido, Sonoro. Exibição em Blu-ray.

A NAVALHA NA CARNE (1969) Neusa Suely, prostituta profissional, sai de casa para a vida noturna, deixando na mesa da cabeceira algum dinheiro para o seu amante Vado, que dorme despreocupadamente. Veludo, um homossexual, entra para arrumar o quarto e rouba o dinheiro para dá-lo a um rapazinho que pretende conquistar. Ao acordar, Vado fica furioso com a amante e a espera para reclamar o dinheiro. Ele a maltrata fisica e moralmente. A mulher fica surpresa e rebate violentamente as investidas do amante. Os dois chegam à conclusão de que só poderia ter sido Veludo o ladrão. Este acaba por confessar. Mas, agora, é Neusa quem agride Vado, acusando-o de ter relações com Veludo. Neste clima de recriminações mútuas, os três personagens vivem um drama trágico e violento, num desafogo para suas vidas trágicas e derrotadas. Baseado na peça teatral de Plínio Marcos. Direção: Braz Chedak; Elenco: Jece Valadão, Glauce Rocha, Emiliano Queiróz, Ricardo Maciel, Carlos Kroeber; Roteiro: Braz Chedak, Emiliano Queiróz, Fernando C. Ferreira; Produção: Jece Valadão; Empresa Produtora: Magnus Filmes; Fotografia: Hélio Silva; Som: Geraldo José; Montagem: Rafael Justo Valverde. 99 minutos, P&B, Sonoro. Exibição em 35mm.

56 ESSE AMOR QUE NOS CONSOME (2012)


TERRA EM TRANSE (1967) Em Eldorado, o poeta e jornalista Paulo Martins, à beira da morte, rememora sua participação em lutas políticas. Dividido entre dois aspirantes ao poder e manipulado pela multinacional Explint, ele agoniza, sem conseguir solucionar as contradições de Eldorado e as suas, ao tentar equacionar de forma conseqüente poesia e política. Direção: Glauber Rocha; Elenco: Jardel Filho, Paulo Autran, José Lewgoy, Glauce Rocha, Paulo Gracindo, Hugo Carvana, Danuza Leão, Jofre Soares, José Marinho, Mário Lago, Paulo César Peréio, Zózimo Bulbul, Francisco Milani, Emanuel Cavalcanti, Telma Reston, Flavio Miggliaccio; Roteiro: Glauber Rocha; Produção: Zelito Viana; Empresa Produtora: Mapa Filmes e Difilm; Fotografia: Luiz Carlos Barreto; Música: Sérgio Ricardo; Montagem: Eduardo Escorel. 115 minutos, P&B, Sonoro. Exibição em 35mm.

57 TERRA EM TRANSE (1967)


ALÔ, ALÔ, CARNAVAL! (1936)

MITO “Malandro é malandro, mané é mané”. Bezerra da Silva

58


O mito carioca é resistência. O malandro de Vai trabalhar, Vagabundo! sai da cadeia e vê que seu estilo de vida é anacrônico diante das mudanças da cidade. Inicialmente desenhado como preguiçoso, vive de pequenos expedientes que envolvem atos fora-da-lei, tramóias e enganações. Mas rapidamente este estilo de vida se mostra como postura moral. Contra a domesticação exercida pelo ideal do progresso e do trabalho, contra o abismo social da cidade e também contra a loucura e a solidão, a malandragem se torna uma verdadeira ferramenta de resistência. O mito carioca é empatia. Em Maria 38, a perigosa Maria vive de roubos e pequenos delitos na região da Lapa. Aparentemente Maria não tem escrúpulos, mas isso será posto em prova na operação de sequestro do menino Marinho. O menino, órfão indomável, se encanta pela falsa babá, com suas gírias e gestos da rua, e seu pouco apreço à ordem. Maria não topa participar do sequestro e de vilã vira mocinha, salva o garoto. A figura do mito em Maria 38 é a do malandro apaziguado, o criminoso de bom coração, transfigurado em mulher branca e bem vestida, interpretada pela atriz Eliana. O mito carioca é ginga. Em Alô, Alô, Carnaval!, dois artistas populares tentam montar uma revista musical, mas o empresário não está interessado em cultura brasileira e contrata uma trupe estrangeira para realizar as apresentações. Quando não dá certo acaba tendo que contratar os dois artistas brasileiros que, com suas gingas e malandragens, “tirando partido da situation”, conseguem apresentar números de destaque. O mito carioca é individualismo. Se em algum momento dos anos 1950s e 1960s, a figura do malandro perdeu a sua raiz imediatamente popular e tornou-se fenômeno universalizante, a elite da Zona Sul também vestiu o espírito, como retratado em Copacabana Me Engana, retendo principalmente o seu caráter individualista. Em cada área da cidade, o mito ganha suas próprias feições. Marquinhos é um playboy, sustentado pelos pais, acomodado na vida. O universo de Copacabana de Fontoura é povoado por estas figuras que passam o dia a arranjar confusões e cantar mulheres que conhecem na rua, sem o menor respeito por nada e ninguém. Da

59


constatação da personalidade frívola de seu protago-

a carona e não consegue, acaba voltando para casa,

nista, o filme passa a despir suas contradições inter-

descrente de qualquer possibilidade de mudança.

nas, que são também as contradições de uma geração e de uma cidade (ou fatia de cidade) que se acreditavam prósperos.

toma alegre a avenida, uma equipe estrangeira filma um bloco de índios no Carnaval e seus equipamentos

O mito carioca é sagacidade. O Rio de Janeiro oi-

são roubados: assim começa Ladrões de Cinema. Os

tentista de Bete Balanço é uma terra jovem e de pro-

“marginais” em posse da câmera resolvem então fazer

messas realizadas. O interessante é perceber o mo-

um filme que os represente. As alegorias da escola de

vimento de concretização destas promessas, pois os

samba viram figurino para a encenação da Inconfidên-

caminhos não são tão óbvios. A protagonista vem do

cia Mineira e o samba a forma de narrá-la. Os meios de

interior de Minas. No entanto, não estamos diante da

produção roubados não serão vendidos e sim usados,

típica saga de iniciação da interiorana à cidade grande,

reformulados. Meta-linguístico, o filme é transgressor

como por exemplo em A Grande Cidade ou Agulha no

ao colocar o “marginal” como produtor de sua própria

Palheiro. Nos anos 1980, a ‘malandragem’ já havia sido

história, representação.

alçada à imagem nacional, ao ponto de estar presente mesmo na juventude feminina de uma mineira. No filme de Lael, surge como o oposto da caretice. Quando chega ao Rio de Janeiro, Bete rapidamente percebe que as coisas não se resolvem pelas vias oficiais. Que a promessa pode vir a acontecer, mas que para isso, há todo um caminho de artimanhas, insistências, contatos e amizades a ser traçado. O mito carioca é preguiça. Retrato de uma geração, o jovem de Marcelo Zona Sul é libertário e utópico, mas individualista e preguiçoso. Marcelo diz o tempo todo que vai para São Paulo, a terra do dinheiro e das possibilidades, e se recusa a trabalhar em escritórios - coisa de otário. Ele é malandro e afirma que malandragem para cima dele não cola, porque desse assunto ele conhece bem. O Rio aparece como esse lugar de muita natureza, fácil de se perder e difícil de ganhar dinheiro, uma terra ainda em processo de descoberta. O dinheiro está mesmo em São Paulo, mas quando ele tenta

60

O mito carioca é a imagem. O povo desce o morro e


ALÔ, ALÔ, CARNAVAL! (1936) Esse clássico musical de Adhemar Gonzaga conta a dificuldade de dois autores que procuram um empresário para “sustentar” a revista musical Banana da Terra. Quando encontrado, o empresário recusa a oferta porque está aguardando uma grande atração francesa. Como o número não acontece, ele é obrigado a reconsiderar sua decisão anterior, promovendo a revista. Carmem e Aurora Miranda atuam nesse filme, cantando músicas como Querido Adão e Cantores de Rádio. Direção: Adhemar Gonzaga; Elenco: Carmen Miranda, Francisco Alves, Jayme Costa, Barbosa Júnior, Oscarito, Elvira Pagã; Argumento: João de Barro e Alberto Ribeiro; Roteiro: Ruy Costa e Adhemar Gonzaga; Empresa Produtora: Cinédia S.A.; Produção: Adhemar Gonzaga e Wallace Downey; Fotografia: Antônio Medeiros, Edgar Brasil e Vitor Ciacchi; Som: Moacyr Fenelon; Montagem: Ruy Costa. 75 minutos, P&B, Sonoro. Exibição em 35mm.

COPACABANA ME ENGANA (1968) Marquinhos mora com a família e vive na rua com os amigos fazendo arruaças. Conhece Irene, uma mulher experiente; tornam-se amantes mas Alfeu, um cinquentão que já morara com ela, tenta inutilmente interromper o idílio. Melancólico retrato da classe média carioca, com fotografia de Affonso Beato. Odete Lara tem uma de suas melhores interpretações de sua carreira no papel de Irene. Direção: Antonio Carlos Fontoura; Elenco: Odete Lara, Carlos Mossy, Paulo Gracindo, Lícia Magna, Ênio Santos; Roteiro: Antonio Carlos Fontoura; Produção: Antonio Carlos Fontoura, Mário Fiorani, José Aluisio Matoso; Empresa Produtora: Difilm; Fotografia: Affonso Beato; Som: Aloisio Viana; Montagem: Mario Carneiro; Direção de arte: Maria Dulce, Marília Bandeira. 93 minutos, Colorido, Sonoro. Exibição em 35mm.

61 COPACABANA ME ENGANA (1968)


MARCELO ZONA SUL (1970) Marcelo é um carioca adolescente de 16 anos, filho de um rigoroso e comum funcionário público. Ele tem boa índole mas temperamento rebelde e não liga para a escola. O que ele gosta mesmo é de ficar com sua namoradinha Renata, também estudante, passeando pelas praias e indo em cinemas e festinhas. As coisas se complicam quando seu pai corta a mesada e a escola descobre suas “pilantragens”. Marcelo então resolve partir em busca de seu sonho: viajar pelo mundo pedindo carona. Direção: Xavier de Oliveira; Elenco: Stepan Nercessian, Françoise Forton, Simone Malaguti, Francisco Dantas, Neila Tavares; Roteiro: Xavier de Oliveira; Produção: Carlos Frederico; Empresa Produtora: Ipanema Filmes; Lestepe Produções Cinematográficas; Fotografia: Edison Batista; Som: Onélio Motta; Música: Geni Marcondes e Denoy de Oliveira; Montagem: Manoel Oliveira. 98 minutos, P&B, Sonoro. Exibição em 35mm.

MARIA 38 (1960) Maria é uma criminosa, apelidade de “Maria 38” por andar armada com um revólver escondido, com várias detenções pela polícia por roubos e delitos diversos. O Guarda Chico gosta dela e tenta protegê-la mas a moça não consegue mudar os hábitos. A quadrilha de Eurico entra em contato com Maria para um novo plano: se passar por babá de Marinho, um garoto rico de sete anos. Ela pensa que vão roubar a casa mas quando lhe contam que na verdade planejam o sequestro do garoto, Maria não concorda e tenta avisar a família. Direção: Watson Macedo; Elenco: Eliana, John Herbert, Anabella, Marinho; Roteiro: Ismar Porto; Produção: Watson Macedo; Empresa Produtora: Watson Macedo Produções; Fotografia: Amleto Daisse, Ugo Lombardi, Konstanti Tkaczenko, Afonso Viana; Direção de Arte: Watson Macedo; Assistente de Direção: Ismar Porto, Geraldo Mianda; Som: Celso Muniz. 94 minutos, P&B, Sonoro. Exibição em DVD.

62


VAI TRABALHAR, VAGABUNDO! (1973) Um malandro carioca sai da prisão depois de longo tempo e, sem dinheiro, utiliza seu talento para ganhar algum. Preocupado com o fim da malandragem carioca, ele planeja uma revanche entre os dois maiores jogadores de sinuca da época, Russo e Babalu. Mas Russo está internado em um hospício desde sua última derrota, e Babalu agora é um trabalhador controlado de perto pela esposa Vitória, o “prêmio” da disputa com Russo. Direção: Hugo Carvana; Elenco: Hugo Carvana, Odete Lara, Paulo César Peréio, Otávio Augusto, Zezé Motta; Roteiro: Hugo Carvana, Armando Costa; Produção: Heloisa Villela, Paulo Bertazz; Empresa Produtora: Alter Filmes; São Bento; Fotografia: José Medeiros; Som: José Tavares; Música: Chico Buarque de Hollanda, Roberto Menescal; Montagem: Nazareth Ohana. 100 minutos, Colorido, Sonoro. Exibição em 35mm.

63 MARCELO ZONA SUL (1970)


LADRÕES DE CINEMA (1977) Durante o carnaval, no Rio de Janeiro, uma equipe de cineastas norte-americanos tem seu material de filmagem roubado pelo bloco de índios que eles documentavam. Os ladrões, favelados do morro do Pavãozinho, resolvem eles mesmos fazer um filme tendo por tema a Inconfidência Mineira. Toda a população do morro adere à idéia com o mesmo espírito e a alegria da preparação de uma escola de samba, com exceção de Silvério, que preferia vender o equipamento e dividir o dinheiro. O filme é realizado mas a polícia recupera o equipamento e prende os ladrões. Os americanos levam o filme dos favelados para os Estados Unidos, lançando-o com o título Sweet Thieves, com sucesso de público e crítica. No dia da estréia, no Brasil, os favelados comparecem à sessão algemados, levados por um camburão da polícia. Direção: Fernando Cony Campos; Elenco: Milton Gonçalves, Jean-Claude Bernadet, Luiz Lutero, Antonio Pitanga, Wilson Grey, Mariano Procópio; Roteiro: Fernando Cony Campos, Jorge Laclette; Produção: Fernando Cony Campos; Empresa Produtora: Lente Filmes; Fotografia: Sérgio Sanz, Noilton, Anselmo Serrat; Som: Aloysio Vianna, Walter Goulart; Montagem: Sérgio Sanz. 127 minutos, Colorido e P&B, Sonoro. Exibição em 35mm.

BETE BALANÇO (1984) Bete é uma garota de Governador Valadares, recém aprovada no vestibular e cantora eventual do bar da cidade. Liberada na relação sexual com o namorado, curte teatro e sonha com um espaço maior para o seu prazer, na batalha do trabalho e da vida. A música atrai Bete para o Rio de Janeiro, pouco antes de completar 18 anos. Tudo o que experimenta, então, é a inevitável sucessão de coisas boas e más: a redescoberta de Paulinho; a violência urbana; a chance como modelo; o carinho da desconhecida Bia; a decepção com o dono da gravadora; um novo namorado, Rodrigo; e a batalha constante pela música. Bete é cheia de conflitos, mas tem o pique do jovem que acredita naquilo que gosta e vai em frente, porque sabe que precisa satisfazer seus impulsos. As relações com Paulinho, Rodrigo e Bia seguram o astral e Bete consegue uma chance como cantora de um conjnto de rock. Novos tombos, revelações e sempre a busca do inusitado. Tudo diferente do que foi sonhado, mas invariavelmente estimulante para uma menina iluminada, de ‘cabeça feita’. Direção: Lael Rodrigues; Elenco: Débora Bloch, Lauro Corona, Diogo Vilela, Hugo Carvana, Arthur Muhlenberg, Jessel Buss; Roteiro: Lael Rodrigues; Produção: Carlos Alberto Diniz; Empresa Produtora: CPC - Centro de Produção e Comunicação; Fotografia: Edgar Moura; Som: Irapuã Jardim, Roberto Carvalho; Música: Cazuza, Roberto Frejat; Montagem: Lael Rodrigues. 78 minutos, Colorido, Sonoro. Exibição em 35mm.

64


LADRÕES DE CINEMA (1977)

65

BETE BALANÇO (1984)


CARLOTA JOAQUINA - PRINCESA DO BRAZIL (1995)

PROMESSA “Fui escravo no reino / E sou / Escravo no mundo em que estou / Mas acorrentado ninguém pode amar”. Ruy Guerra

66


​A promessa carioca é miragem.​Visto do sertão, o Rio de Janeiro é uma grande cidade, mar de oportunidades. Em A Grande Cidade, entretanto, nunca os três personagens nordestinos estiveram tão perto de um estado desértico. Para Luzia o horizonte é um abismo. Rejeitada por seu noivo, que está ameaçado de morte, Luzia embarca no estado delirante de Calunga, o malandro solidário. “Bota o inferno para dentro de você!”, proclama o malandro baiano, o único dos três personagens que parece ter se adaptado ao espaço caótico da cidade. Em outro transe, Inácio, o operário conformado, de costas para o mar, avista a terra deixada para trás e, por um momento, a seca parece o menor de seus males. A promessa carioca é opressão. Copacabana Mon Amour é uma chanchada-psicodélica-carioca em scope. Os fantasmas esfomeados do planeta, o parangolé de Oiticica, o candomblé, entre outros, nos levam à Sonia Silk - a fera oxigenada, a deusa-mito que transita e transgride entre o morro e o asfalto, a histeria e o deboche. Sonia Silk quer ser cantora da Rádio Nacional, mas tem fome, fome de uma cidade onde ela possa circular livremente. O sol de Copacabana os enlouquece, deixando-os completamente tarados, atônitos e lelés. O paraíso oprime e Sonia Silk tem pavor da velhice! A promessa carioca é cisão. Suas “zonas” não podem se reunir sem estabelecer entre elas uma forma de hierarquia. Os dois jovens suburbanos de Nos embalos de Ipanema tem de se deslocar diariamente para trabalhar na Zona Sul do Rio de Janeiro. De um lado está a moça, dedicando-se seriamente ao namoro e procurando formas mais idôneas de sobreviver. Do outro, o rapaz que não tem pudor em se prostituir para juntar dinheiro e realizar o seu grande sonho de surfar no Havaí. O Rio de Janeiro de Calmon apresenta a seus personagens a promessa de uma ascensão social possível. No entanto, como no Palácio dos Anjos, de Walter Hugo Khouri, o mito é desfeito no decorrer da trama. Eventualmente, percebem e aceitam que, de formas mais lícitas ou ilícitas, a prostituição é a sua condição de existência numa cidade que jamais os permitirá serem iguais aos moradores da Zona Sul. Nesta cidade fragmentada, o seu berço já é a sua mácula intransponível.

67


A promessa carioca é abismo. O talento ímpar do

A promessa carioca é farsa. Em Carlota Joaquina o Rio

compositor do morro de Rio, Zona Norte, sua absoluta

é destino incontornável de fuga da família real portu-

grandeza, não chegará às rádios. Suas composições

guesa: uma cidade suja, estranha, confusa. Carlota

ganharão gravações em acordes eruditos e vozes fa-

chega contrariada à Colônia, tudo o que ela quer é

mosas. Estes o estimulam, mas não conseguirão com

se ver livre dessa terra. Caos, calor, escracho, humor,

que ele encontre na sociedade eco que faça justiça

olhar para o Rio como quem olha de fora, como quem

ao tamanho de sua grandeza. O abismo que o isola

chega à terra aventurosa, esperando o refúgio e en-

do mundo é enorme. “E o criminoso ninguém viu...”

contrando o inferno.

conclui os versos de Malvadeza Durão. Talvez o criminoso seja a cidade, que esconde seus próprios crimes para logo em seguida vestir a máscara de suas vítimas. Resta lá no morro esta grandeza, que é ao mesmo tempo pequena, dócil e simples, cantada numa caixinha de fósforo. Como escreveu Candeias em Vivo isolado do mundo, “se tu fores à Portela, gente humilde, gente pobre, que traz o samba na veia, o samba de gente nobre”. A promessa carioca é dor. As crianças de rua em Fábula lutam para sobreviver e existir em meio ao enorme abismo social. Fragmentado, o bairro de Copacabana é promessa que não se concretiza, entre as belezas e tristezas do mar e do céu, do morro e do asfalto. Apesar de ser um dos cartões postais do Rio de Janeiro, as desigualdades sociais presentes no bairro eclodem nas imagens do filme de Sucksdorff, cineasta sueco que viveu mais de trinta anos no Brasil. A promessa é clara, mas sua realização é nebulosa e obscura - é sofrida.

68

A promessa carioca é grilhão. Os favelados de Esse mundo é meu querem ser livres para amar, mas aos poucos percebem que o conceito de liberdade é só mais um truque dessa cidade ilusionista. Por mais que se trabalhe, falta dinheiro pra comprar uma bicicleta pra passear com a namorada. O tal mundo prometido não está disponível para todos. A chave está em tomá-lo de assalto, seja roubando a bicicleta de um padre ou liderando uma greve na fábrica.


CARLOTA JOAQUINA - PRINCESA DO BRAZIL (1995) O filme conta a história de Carlota Joaquina, a infanta espanhola que se casou com o príncipe de Portugal, D. João VI, e veio – muito a contragosto – com a corte portuguesa para o Brasil. Aqui, Carlota se envolveu em muitas aventuras e romances, em paralelo às atividades de D. João, o monarca fugitivo que criou as bases do Brasil moderno. Direção: Carla Camurati; Elenco: Marieta Severo, Marco Nanini, Marcos Palmeira, Beth Goulart; Roteiro: Carla Camurati, Melanie Dimantas; Produção: Marcelo Torres; Empresa Produtora: Quanta Central de Produção; Fotografia: Breno Silveira; Som: Aloysio Compasso; Música: André Abujamra, Armando Souza; Montagem: Cezar Migliorin, Marta Luz. 107 minutos, Colorido, Sonoro. Exibição em 35mm.

69 COPACABANA MON AMOUR (1970)


COPACABANA MON AMOUR (1970) Sônia sonha ser cantora da Rádio Nacional e para conseguir sobreviver se entrega a turistas em Copacabana. Seu irmão Vidimar, empregado doméstico do Dr. Grilo e homossexual, apaixona-se pelo patrão. A mãe de Sônia e Vidimar, uma favelada, acha que ambos estão possuídos pelo demônio. Sônia, que vê espíritos baixarem em seres e objetos os mais estranhos, resolve procurar o pai de Santo Joãozinho da Goméia. E, para quebrar o feitiço que atua sobre seu irmão (também acha isso) só vê uma saída: assassinar o Dr. Grilo. Indo à casa onde o irmão trabalha, deixa-se seduzir por Grilo. Finalmente, rompe-se o feitiço que atua sobre Vidimar e este fica em pânico com tudo o que acontecera. Direção: Rogério Sganzerla; Elenco: Helena Ignez, Otoniel Serra, Paulo Villaça, Lilian Lemmertz, Guará, Laura Galano; Roteiro: Rogério Sganzerla; Produção: Julio Bressane, Rogério Sganzerla; Empresa Produtora: Belair Filmes; Fotografia: Renato Laclete; Som: Aluisio Viana, Onélio; Música: Gilberto Gil, Rogério Sganzerla; Montagem: Mair Tavares. 85 minutos, Colorido e P&B, Sonoro. Exibição em 35mm.

FÁBULA (1965) Título original: Mitt hem är Copacabana

História de três irmãos - Paulinho Lici e Jorginho - órfãos de pai, que perdem também a mãe e são despejados do barraco onde vivem na favela. Eles conhecem um quarto menino, Rico, foragido de um reformatório. Juntos eles invadem um barraco abandonado e passam a viver ali até serem expulsos pelos bandidos. Sem ter para onde ir, encontram nas areias da praia de Copacabana um lugar seguro para viver. Entre risos e brincadeiras, eles lutam para conseguir o pão de cada dia, até que Rico fica gravemente doente. Direção: Arne Sucksdorff; Elenco: Leila Santos de Souza, Cosme dos Santos, Antonio Carlos de Lima, Josáfa da Silva Santos; Roteiro: Arne Sucksdorff, Flavio Migliaccio, João Bethencourt; Produção: J. Olle Bohlin, Arne Sucksdorff; Empresa Produtora: Svensk Filmindustri; Fotografia: Arne Sucksdorff; Assistente de Direção: Flavio Migliaccio; Som: Amadeo Riva; Montagem: Arne Sucksdorff; Figurino: José Barrinho; Uma coprodução Brasil e Suécia. 88 minutos, P&B, Sonoro. Exibição em 35mm.

70 FÁBULA (1965)


ESSE MUNDO É MEU (1964) Contraponto de duas histórias de dois casais de favelados. Um engraxate vencendo obstáculos financeiros com seu trabalho junta o dinheiro para comprar uma bicicleta e com ela conquistar a garota que ama. O enterro de seu padrasto consome-lhe a economia e sua solução é apoderar-se da bicicleta de um padre para concretizar seu objetivo. Um operário não consegue dissuadir sua mulher de um aborto arriscado por falta de recursos, e perde o filho e a mulher. Revoltado se exaspera no trabalho levando seus companheiros a uma ação contra a fábrica, tornando-se o líder da classe. Direção: Sérgio Ricardo; Elenco: Léa Bulcão, Antonio Sampaio, Luiza Aparecida, Ziraldo, Sérgio Ricardo; Roteiro: Sérgio Ricardo; Produção: Sérgio Ricardo; Empresa Produtora: Copacabana Filmes; Fotografia: Dib Lufti; Assistente de Direção: Nelson Dantas; Som: Aluízio Alves; Montagem: Ruy Guerra. 92 minutos, P&B, Sonoro. Exibição em DVD.

RIO ZONA NORTE (1957) Espírito da Luz (Grande Otelo), um talentoso compositor de sambas, tenta vender suas músicas e fazer sucesso no Brasil, mas acaba enganado por oportunistas. Inconsciente após um acidente de trem, ele relembra passagens de sua vida e carreira, baseada num bairro da zona norte carioca. Direção: Nelson Pereira dos Santos; Elenco: Grande Otelo, Jece Valadão, Paulo Goulart, Maria Petar; Roteiro: Nelson Pereira dos Santos; Produção: Nelson Pereira dos Santos; Fotografia: Hélio Silva; Direção de Arte: Lito Cavalcanti; Assistente de Direção: Guido Araújo, Ivan de Souza; Som: Sílvio Rabelo; Montagem: Mário del Rio; Música: Alexandre Gnatalli e Radamés Gnatalli. 86 minutos, P&B, Sonoro. Exibição em 35mm.

71 RIO ZONA NORTE (1957)


A GRANDE CIDADE (1966) Vinda do Nordeste, Luzia chega ao Rio de Janeiro à procura de seu noivo, Jasão. Nessa busca, ela conhece Calunga, um malandro carioca que lhe mostra a cidade e a apresenta para Inácio, um outro nordestino que deseja loucamente voltar para sua terra. Finalmente, Luzia descobre que o noivo Jasão mora em uma favela e que se transformou num temido assaltante. Mas, antes que ela consiga salvá-lo do crime, ambos acabam sendo vítimas dos conflitos e da violência gerados pela grande cidade. Direção: Carlos Diegues; Elenco: Anecy Rocha, Antonio Pitanga, Leonardo Villar, Joel Barcelos, Hugo Carvana, Maria Lucia Dahle, Jofre Soares; Roteiro: Carlos Diegues e Leopoldo Serran; Produção: Zelito Viana; Empresa Produtora: Mapa Filmes; Fotografia: Fernando Duarte; Montagem: Gustavo Dahl. 80 minutos, P&B, Sonoro. Exibição em 35mm.

NOS EMBALOS DE IPANEMA (1978) Toquinho, rapaz pobre, morando no subúrbio carioca de Marechal Hermes, na companhia da mãe viúva e de uma irmã pequena, ambiciona mudar de vida. Aficcionado pelo surfe, passa a maior parte do tempo em Ipanema, na Pedra do Arpoador, acompanhando as proezas dos surfistas sobre a prancha. Mas Toquinho tem outros motivos para freqüentar o local: Patrícia, uma menina rica e liberada é a sua paixão. Para atender aos caprichos de Patrícia, Toquinho deixa-se seduzir por André, um homossexual que em troca dos carinhos que recebe, promete-lhe uma viagem ao Havaí, durante um campeonato de surfe. Aos poucos, Toquinho vai se afastando da família e de Verinha, sua namorada do subúrbio. O pouco dinheiro, que consegue extorquir de André, não é suficiente para conquistar Patrícia. Verinha que trabalha numa imobiliária, é seduzida pelo patrão e acaba descobrindo que está sendo utilizada da mesma forma que Toquinho. Desiludidos, os dois se reencontram, cínicos e amargurados. Direção: Antônio Calmon; Elenco: Milton Gonçalves, Jean-Claude Bernadet, Luiz Lutero, Antonio Pitanga, Wilson Grey, Mariano Procópio; Roteiro: Antônio Calmon, Armando Costa, Silvan Paezzo, Leopoldo Serran, Pedro Carlos Rovai; Produção: Pedro Carlos Rovai; Empresa Produtora: Sincrocine; Fotografia: Roberto Pace; Som: Roberto Melo Leite, Onélio Mota, Geraldo José; Montagem: Manoel Oliveira. 100 minutos, Colorido, Sonoro. Exibição em 35mm.

72


73 A GRANDE CIDADE (1966)


CURTAS O QUE FOI O CARNAVAL DE 1920! (1920) Aspectos do carnaval no Rio de Janeiro: o corso na Avenida Rio Branco; Baile à Fantasia no Hotel de Santa Rita; o Baile Infantil do Teatro República; desfile de carros alegóricos das sociedades carnavalescas dos Fenianos e dos Democráticos. Direção: Alberto Botelho; Empresa Produtora: Carioca Film; Fotografia: Alberto Botelho. 15 minutos, P&B, Silencioso. Exibição em 35mm.

FRAGMENTOS DA TERRA ENCANTADA (1922) O Rio de Janeiro de 1923 a partir de fragmentos do longa A TERRA ENCANTADA, do pioneiro Silvino Santos. Direção: Silvino Santos; Empresa Produtora: J. G. de Araujo e Cia.; Fotografia: Silvino Santos. 40 minutos, P&B, Silencioso. Exibição em 35mm.

MOVIMENTO URBANO DO RIO DE JANEIRO (1935) - Cia. de Bondes do Rio de Janeiro Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro da perspectiva de um bonde, em um filme resultante da montagem de material bruto. Empresa Produtora: Cia. de Bondes do Rio de Janeiro 15 minutos, P&B, Silencioso. Exibição em 16mm.

74


JORNAL CARIOCA (1930 - 1935) Coletânea de reportagens referentes ao Rio de Janeiro produzidas entre os anos 1930 e 1935. Entre as imagens, vemos o Pão de Açúcar e o bondinho, o Corcovado, o Cristo Redentor, a avenida Rio Branco, e o Graf Zeppelin sobrevoando a Baía de Guanabara. 13 minutos, P&B, Silencioso. Exibição em DVD.

CIDADE DO RIO DE JANEIRO (1948) Dados históricos da cidade do Rio de Janeiro ilustrados por planos gerais da Capital. Direção: Humberto Mauro. Fotografia: Manoel Ribeiro, José A. Mauro. Empresa Produtora: INCE Instituto Nacional de Cinema Educativo 31 minutos , P&B, Sonoro. Exibição em DVD.

RIO, UMA VISÃO DO FUTURO (1966) Avisão de futuro do arquiteto Sérgio Bernardes para o Rio de Janeiro. Maquetes e desenhos de aeroportos, portos, e bairros remodelados propõem a criação de uma cidade vertical para o problema urbanístico e a sua transformação num centro internacional de atividades comerciais e culturais. A recuperação da natureza num Rio de Janeiro mais habitável do ponto de vista humano. Direção: Xavier de Oliveira; Roteiro: Xavier de Oliveira; Produção: Norma Pereira Rego; Empresa Produtora: INCE - Instituto Nacional de Cinema Educativo; Fotografia: José Mauro; Som: Walter Goulart; Narração: Renato Machado; Montagem: Alberto Salvá. 10 minutos, Colorido, Sonoro. Exibição em DVD.

A CIDADE CRESCE PARA A BARRA (1970) Urbanização da Barra da Tijuca no Rio de Janeiro. Projeto do arquiteto e urbanista Lucio Costa, levará para aquela região as mais modernas concepções de arquitetura, urbanismo e paisagismo resolvendo, inclusive, o problema da superpopulação e poluição. Direção: Paulo Roberto Martins; Texto Original: Lucio Costa; Produção: Stenio Pereira e Echio Reis; Empresa Produtora: Totem Filmes; Fotografia: Roland Henze; Música: Luiz Bonfá; Narração: Echio Reis; Montagem: Manoel Oliveira. 10 minutos, Colorido, Sonoro. Exibição em DVD. 75


RIO, CAPITAL MUNDIAL DO CINEMA (1972) O curta apresenta cenas de filmes brasileiros, alguns dos principais produtores do nosso cinema, suas principais obras e a repercussão no exterior. Mostra ainda partes do Festival Internacional do Cinema, realizado na cidade do Rio de Janeiro durante as comemorações do seu 4º centenário, focalizando a participação de artistas e o clima de festa e alegria que a cidade proporciona. Direção: Arnaldo Jabor; Produção: José Viana, Eduardo Coutinho; Empresa Produtora: Mapa Filmes; Fotografia: Dib Lutfi; Montagem: Nello Melli. 14 minutos, Colorido, Sonoro. Exibição em 35mm.

NA TRILHA DO BONDE (2009) Imagens do Rio de Janeiro, nas quais os elementos visuais e sonoros característicos dos anos 40 situam o espectador no espaço e no tempo. Uma série de seqüências faz uso da relação entre a cidade e os bondes, e trabalha os elementos audiovisuais de diversas formas. Direção: Virginia Flores, Rodolfo Caesar e Alexandre Fenerich; Produção: Alvarina Souza Silva; Vozes: Manuelai Camargo, Pádua, José Santa Cruz; Som: Cristiano Maciel; Edição de Som: Virgínia Flores. 29 minutos, P&B, Sonoro. Exibição em DVD.

MENINO DA CALÇA BRANCA (1961) Um menino favelado realiza seu sonho ganhando uma calça branca no Natal. Vestido com ela sai pelos caminhos do morro. Com cuidado para não suja-la evita as brincadeiras com os companheiros e busca o asfalto para mover-se mantendo-a limpa. Fica a imitar o andar de adultos vestido de branco, sentindose um igual. Ao assistir a uma pelada de rua, a bola, caindo numa poça espalha lama sobre seu presente. Volta correndo aos braços de seu habitat, reintegrado à sua gente. Direção: Sérgio Ricardo; Elenco: Ziraldo, Sérgio Ricardo; Roteiro: Sérgio Ricardo; Fotografia: Dib Lutfi; Música: Sérgio Ricardo; Montagem: Nelson Pereira dos Santos. 22 minutos, P&B, Sonoro. Exibição em DVD.

76


CINEMA NOVO (1967) Curta-metragem realizado por Joaquim Pedro de Andrade para a TV alemã em 1967. No registro vemos Glauber Rocha filmando “Terra em Transe”, Nelson Pereira dos Santos dirigindo “El Justicero”, Domingos de Oliveira assistindo o primeiro copião de “Todas as Mulheres do Mundo”, Arnaldo Jabor montando “A Opinião Pública”, Cacá Diegues conferindo o público de “A Grande Cidade” nos cinemas da Cinelândia, Leon Hirszman escrevendo o roteiro de “Garota de Ipanema” com Vinicius de Moraes, que também aparece junto a Maria Bethânia num encontro musical documentado com raro e jovial frescor. Direção: Joaquim Pedro de Andrade; Produção: K. M. Eckstein; Empresa Produtora: Filmes do Serro, ZDF (TV Alemã); Fotografia: Hans Bantel; Texto e narração em alemão: K. M. Eckstein; Narração em português: Paulo José; Montagem: Bearbara Riedel. 32 minutos, P&B, Sonoro. Exibição em 35mm.

MAXIXE, A DANÇA PERDIDA (1980) No início, o maxixe era uma forma de dançar certas músicas européias, popularizadas no Brasil. Depois, adquiriu personalidade própria, impondo por 40 anos seu predomínio no teatro de revista, bailes e carnaval. Ganhou fama e espalhou-se pelo mundo, nos pés de marinheiros, viajantes e dançarinos. Ressaltando a presença do maxixe nos Estados Unidos e particularmente na carreira de Fred Astaire, o filme inclui trechos de Carioca, do longa-metragem americano Voando para o Rio, com música e coreografia inspiradas no maxixe. O samba de salão, música mais simples e mais fácil de dançar, fez o maxixe cair no esquecimento. Direção: Alex Viany; Elenco: Angela Maria; Empresa Produtora: Embrafilme; Fotografia: David Neves; Som: Manoel Guilherme; Narração: Sérgio Cabral; Montagem: Manfredo Caldas. 32 minutos, Colorido, Sonoro. Exibição em DVD.

77


TIM MAIA (1987) O pensamento e a música do controvertido e genial Tim Maia (1942-1998), muito à vontade em seu dia-adia, nos bastidores de seus shows e até em um passeio pela orla carioca. Com suas típicas declarações bombásticas, sobre música, dinheiro e mulheres, o cantor expõe seu universo cultural e pessoal. Direção: Flávio Tambellini; Produção: Flávio Tambellini, Tuinho Schwartz, Aluizio Abranches, Joni Natorf Schölmer, João Alfredo Viegas; Empresa Produtora: Ravina Comunicações e Produções; Fotografia: José Tadeu Ribeiro, Toca Seabra; Som: Toninho Murici, Marc Van Der Willigen, Bob Nadkharnil; Montagem: Virgínia Flores.

GERALDO VOADOR (1994) Um conto fantástico passado na realidade brutal de uma favela. A vida de um menino com o raro dom de voar. Baseado em história de Will Eisner; Direção: Bruno Vianna; Elenco: Rogério Costa, Robson Dos Santos, Bruno Garcia, Maria Gladys; Roteiro: Bruno Vianna; Produção: Márcia Derraik; Fotografia: Estevão Pantoja; Música: Carlos Pontual, Tom Zé; Montagem: Adriana Borges. 16 minutos, Colorido, Sonoro. Exibição em 16mm.

LÁ E CÁ (1995) Lá é um lugar que não existe. Uma história sobre estar aqui e não estar. O cotidiano de uma moça que habita a periferia, e fica em dúvida sobre mudar-se para a casa da irmã na Zona Sul ou continuar lá. Direção: Sandra Kogut; Elenco: Regina Casé, Claudio Mascarenhas; Roteiro: Hermano Vianna, Regina Casé, Sandra Kogut, Sergio Mekler; Produção: Moema Muller; Fotografia: José Tadeu Ribeiro; Música: Herbert Vianna; Montagem: Sandra Kogut, Sergio Mekler. 25 minutos, Colorido, Sonoro. Exibição em 35mm.

78


MEU COMPADRE ZÉ KETI (2001) Homenagem ao sambista Zé Kéti, numa roda de samba que reúne seus amigos saudosos de sua memória. Direção: Nelson Pereira dos Santos; Elenco: Colombo, Délcio Carvalho, Elton Medeiros, Guilherme de Brito, Jair do Cavaquinho, Monarco, Nelson Sargento, Noca da Portela, Walter Alfaiate, Wilson Moreira, Zé Cruz, Nelson Pereira dos Santos; Roteiro: Nelson Pereira dos Santos; Produção: Raquel Freire Zangrandi; Empresa Produtora: VideoFilmes; Fotografia: Flávio Zangrandi, Reynaldo Zangrandi; Som: Juarez Dagoberto; Música: Zé Keti. 12 minutos, Colorido, Sonoro. Exibição em DVD.

PICOLÉ, PINTINHO E PIPA (2006) A chegada do carro do troca-troca no morro sempre desperta a curiosidade de todos, principalmente das crianças. A troca de sucatas por picolé, pintinho e pipa precisa ser rápida, o carro só visita o morro uma vez por mês. Ele sobe até o pico do morro e desce a rua, indo embora de vez. Direção: Gustavo Melo; Elenco: Henrique César, Ana Miranda, Xande Alves, Luis Otávio, Chico Santana, Diego Francisco, Felipe Paulino, Arthur Bispo, Wallace Coutinho, Newton Magalhães, Ana Carla; Roteiro: André Santinho, Gustavo Melo; Produção: Luciana Bezerra, Cavi Borges; Empresa Produtora: Grupo Nós do Morro; Fotografia: Fabrício Tadeu; Som: Adriano Guerra, Evandro Lima; Montagem: Alessio Slossel. 16 minutos, Colorido, Sonoro. Exibição em 35mm.

FUNK RIO (1994) O documentário mostra, através de quatro jovens que moram no subúrbio do Rio de Janeiro, o universo do funk carioca, suas ligações com a marginalidade, a música e a dança desta tribo que cria no isolamento um novo código estético e cultural. Alguns observadores do movimento funk acreditam que ele seja equivalente - em crescimento numérico, repressão policial e localização - ao maior fenômeno cultural carioca, hoje internacionalmente conhecido: o carnaval. Direção: Sergio Goldenberg; Pesquisa e Roteiro: Rosane Lima; Produção: CECIP, Canal+ e Point du Jour; Fotografia: Fred Rangel; Som: Nilson Naisson; Edição: João Alegria. 46 minutos, Colorido, Sonoro. Exibição em DVD.

79


80


81

ENTREVISTAS


NIREU CAVALCANTI “Era uma sociedade onde o medo fazia parte do dia-a-dia”.

Nireu Cavalcanti é arquiteto, historiador e professor da Escola de Arquitetura da Universidade Federal Fluminense. Considerado uma das maiores autoridades em História do Rio de Janeiro, é autor dos livros “O Rio de Janeiro Setecentista: a vida e a construção da cidade da invasão francesa até a chegada da Corte”, “Histórias de Conflitos no Rio de Janeiro Colonial: da carta de Caminha ao contrabando de camisinha (1500-1807)”, “Crônicas históricas do Rio Colonial”, “Construindo a violência urbana”, “Santa Cruz, uma paixão”, “Arquitetos e engenheiros: Sonho de entidade desde 1798”, entre outros.

82


IC: Quais eram os principais medos da cidade no período colonial? Nireu Cavalcanti: O medo na colônia, como em todas as colônias, tem sua origem no conflito entre duas culturas completamente diversas: uma cultura europeia - que se acha a dona da religião, da sabedoria, dos caminhos, do comércio - e uma outra cultura com seus valores próprios. Enquanto uma cultura era acumulativa, consumista e guerreira, a outra não tinha essa noção de propriedade. Esta outra cultura nativista vivia em ambientes paradisíacos, mas também não vivia plenamente em harmonia: um grupo ia avançando sobre o outro e ocupando os territórios. Erigiam cidades provisórias. Era uma cultura do efêmero. Uma cultura andante (e não nômade), a medida que esgotava a caça e a pesca eles caminhavam. Essa cultura, com toda sua estrutura de valores e de simbolismos, entra completamente em choque com a cultura europeia. Os colonizadores portugueses se achavam no papel de efetivamente trazer a cultura, o saber, o Deus, para nossos índios, que eram considerados “brutos”, sobretudo se comparados aos indígenas da América espanhola, que tinham um imenso desenvolvimento material, cultural e matemático. Então, os portugueses se apossavam daquelas propriedades, estabeleciam um regime completamente estranho a eles, e aquele índio que não aceitava ser “amigo” era escravizado ou morto. Aquele que aceitava ser “amigo” era completamente desestruturado na sua própria relação com o mundo. Eram batizados, perdiam seus nomes originais, colocados em aldeias (mas não as aldeias com ocas distribuídas em função de valores cósmicos, culturais, simbólicos, religiosos, como eram as aldeias tradicionais deles), os vestiam e transformavam seus filhos através de um grande reformatório, para que as crianças efetivamente fossem moldadas para o mundo ocidental, o mundo da sabedoria. Foi um grande massacre cultural. Aí já começa uma grande questão: até quando esses índios vão aceitar esse domínio? Até quando aqueles índios que foram rechaçados não vão se vingar do que aconteceu com eles? Essa relação europeu-índio era complicada, porque os índios entraram

83


numa guerra e perderam: viraram escravos. Esse co-

era o grande ser do mundo da América. O grande ser

lonizador confinou esses índios numa sesmaria (nor-

porque ele não era branco, não era negro, não era ín-

malmente de duas léguas, cerca de treze quilôme-

dio. Nasceu numa terra estranha. Teve que construir

tros), para que esses 200 a 400 índios vivessem uma

a sua identidade e ser brasileiro. Ele não tinha como

nova realidade, uma nova relação de trabalho. Fazia-se

voltar para a África. Já nasceu batizado. Formou-se na

uma rocinha de sobrevivência, as mulheres faziam ce-

escola dos brancos. É um ser estranho, um novo ser.

râmica, os homens eventualmente eram convocados

Um ser que tem outras perspectivas, e que começa do

para a guerra. Essa relação, que poderia ser uma rela-

zero um mundo novo na América. É ele que constrói

ção construtiva, é muito complexa. Porque você po-

essa brasilidade. Essa procura por sua identidade cul-

dia escravizar, mas tinha que ter a justificativa de que

tural, por sua identidade e espaço próprio, é o que leva

eram escravos de guerra. Obviamente grandes farsas

esse mulato ao sentido da brasilidade.

eram feitas para aprisionar esses índios e obrigar eles a serem confinados. Você tem índio condenado pelo Tribunal da Santa Inquisição como feiticeiro, porque ele recebeu a sua divindade, bebeu seu chá, fumou, etc. Então, podemos dizer que essa relação inicial dos colonos cariocas com os que viviam foi nosso primeiro grande conflito, na prática, não resolvido até hoje. Você vê o Museu do Índio ser desmontado do lado do Maracanã, levado para Botafogo... E agora tem o dia do índio na escola, as crianças pintadas, aquela coisa. Então a população indígena foi a primeira grande vítima dessa colônia. IC: E os conflitos entre colonizadores e os escravos africanos vindos no século XVI?

84

Eu não estou excluindo todos os brancos e índios deste processo. Obviamente todos fizeram parte dele... Mas o negro vinha para cá nas condições mais adversas. Ele já vinha escravizado da África. Havia uma grande disputa entre os diversos reinos da África e foi percebido que era um grande negócio fazer escravos para vender. Tornava-se escravo quem era um prisioneiro de guerra ou quem cometia algum ato que feria as normas legais daquele reino ou tribo. Os brancos pagavam impostos aos reis (da Angola, Guiné, Moçambique) para que eles tivessem um porto na África, e esse reis recebiam pela concessão dos escravos para esse grande negócio. Esses escravos aqui eram batizados, perdiam o seu nome, e perdiam a sua genealogia. Ele passava a ser “João, escravo vindo da Angola, aparên-

Nireu Cavalcanti: Esses eram vistos como bicho. Coi-

cia 30 anos”. Não tinha o nome dos pais. O senhor fa-

sa. Mercadoria. Os colonizadores incentivavam o ca-

zia um investimento como se fosse a bolsa de valores,

samento do branco com a índia, porque, supostamen-

como se comprasse uma ação, ou um cavalo, qualquer

te, depois de batizadas, as índias teriam alma. Então,

coisa rentável. Esse ser humano era tratado como ob-

não havia problema. Os escravos africanos não. Essa

jeto, ao ponto que, nos documentos, eram nomeados

miscigenação com a “mercadoria” não era bem vista

como “peças”. Ele vinha para servir aquele seu senhor

pela colônia, porque obviamente o filho daquele casal

o resto da vida ou até o momento em que conseguis-


se acumular algum recurso para comprar a sua alfor-

que eram católicos. Eram batizados, mas no dia-a-dia,

ria. Também podia consegui-la por comoção do seu

na distância do olhar do senhor, obviamente pratica-

senhor, pelo reconhecimento de algum ato de impor-

vam os rituais das suas origens. Principalmente os

tância, ou também no caso de relação sexual seguida

pais, porque os primeiros filhos jamais iam fazer isso.

de gravidez. Nesse caso, a liberdade podia ser conce-

Eles não iam perder a oportunidade de se inserir, se-

dida somente ao filho ou aos dois (mãe e filho). Mas a

rem formados, ocupar cargos importantes. A socieda-

maioria das alforrias no Rio de Janeiro foram compra-

de do Rio de Janeiro era constituída de uma minoria de

das mesmo. Dentro dos alforriados as mulheres eram

titulados, de pessoas que tinham privilégios. E, entre

o maior número. A explicação é que era o ventre da

os titulados, tinham os formados na universidade, que

mulher que perpetuava a escravidão: se alguém nas-

tinham que ir para Lisboa, pois as universidades eram

cia de um ventre de uma escrava, nascia já escravo.

proibidas na colônia. Então, se o negro se formasse

Por isso, houve depois um esforço muito grande para

numa universidade, recebia um título e passava a ter

que libertassem primeiro as mulheres, porque a partir

os mesmos privilégios que um Conde. Podia assumir

daí o filho era liberto.

qualquer papel no serviço público. Essa pequena elite

Foi uma população que chegou a números imensos, quase metade da sociedade carioca. Foi uma grande fonte de renda para o comércio na cidade do Rio de Janeiro. Boa parte dessa população optou pela revolta: são os quilombolas, os assaltantes de estrada, os assassinos dos senhores que não aguentaram a escravidão. Nós tivemos como exemplo Palmares, que foi uma grande comunidade africana, com rei, com toda uma estrutura. Eles eram monarquistas, assim como foram na África. Eles instituíram um reino em Palmares, com quase cem anos de vida independente. Esse exemplo despertou nos colonizadores uma atenção redobrada

de negros titulados eram tão convictos de sua posição que eram compromissados com os valores da elite. Viviam esse grande sonho, acumulando recursos para fazer benesses, mostrar o quanto eram súditos, e praticavam a religião com uma devoção e uma expressão pública que pudesse ser destacada. E a grande massa dos escravos, por outro lado, tinha como grande sonho iniciar no nível mais baixo, que era a camada dos livres. Depois de alforriado, todos aqueles códigos de escravo eram extintos e agora ele era um homem livre. Obviamente com aquela marca, que ele não tinha como esconder: da pele.

para que não acontecesse aqui no Rio de Janeiro o que

Então era uma sociedade onde o medo fazia parte do

aconteceu em Alagoas e Pernambuco. Por isso, a re-

dia-a-dia. O medo desses índios, que em determina-

pressão a esses negros e negras que se revoltavam, e

do momento podiam atacar, se indignar e fugir para

fugiam para os quilombos, era muito grande.

a floresta, matando e roubando no caminho o grupo

Por outro lado esses negros eram divididos conceitualmente por culturas. Tinham negros maometanos, das mais diversas religiões, todos eles com a capa de

que administrava as terras, os senhores, os fazendeiros em volta. E também, medo desses escravos, que a qualquer momento podiam se revoltar. É uma socie-

85


dade que vive em um processo onde você tem quase

A colônia era um investimento. Mas havia esse confli-

metade da população considerada como coisa. E era

to entre os que ficavam e sentiam que aqui era a sua

legalmente aceito. Deus permitia. A religião católica

terra, e os que se diziam somente donos da terra, do-

permitia. As regras da colonização do reino de Portu-

nos dos escravos, donos dos índios, e, que, a qualquer

gal permitiam. Comprar negros era um investimento.

momento podiam voltar para o reino com o que foi

Era uma sociedade que, principalmente essa elite, seja ela econômica ou titulada, achava que podia fazer tudo. O Estado era deles. Só eles ocupavam os diversos cargos. Eles tinham todo um arcabouço legal e religioso que dizia que eles podiam ter escravos. E o mais complexo de entender: esses ex-escravos ascendidos à elite, a primeira coisa que faziam era comprar escravos

acumulado aqui. É claro que, nessa relação, os nossos comerciantes, os nossos traficantes negreiros, a nossa elite imobiliária, foi criando raízes, deixando seus filhos, os seus netos. Vai surgindo um sentimento de pertencimento: “é isso que eu sou”. Não por acaso o Casimiro de Abreu disse “que saudade que tenho da minha terra”.

para si. Então não era aquela dicotomia vulgar: senho-

Mas a grande miscigenação ainda não era bem vista

res e escravos. Era uma sociedade muito mais comple-

pela Corte. Havia um controle da saída de mulheres da

xa, que, na sua maioria, achava que podia fazer tudo.

colônia que desejavam ser freiras. Não tinha privilégio

Me diz: como que se constrói uma cidade com uma

maior do que ter alguém na família que quiçá um dia se

sociedade com esses valores? E com um colonizador,

tornasse santo, santa, beato, etc... Porém, o convento

que como todo colonizador, tem como objetivo sugar o

de freiras demorou muito tempo para ser permitido

máximo do investimento que ele fez aqui?

aqui. Essas moças tinham que ir para os conventos do reino e isso gerou um problema: sobra um bando de

IC: Mas esses colonizadores não tinham nenhuma

homens brancos, bonitos, com dinheiro, de famílias

sensação de pertencimento? Era só explorar mes-

tradicionais, tituladas, que não encontram suas es-

mo? O controle desses investimentos deveria ser

posas e vão transar com a negra ou com a mulata. Al-

muito rigoroso, não?

guns, inclusive, chegam a casar. A Corte passou então

Nireu Cavalcanti: Sim, havia na colônia um controle muito grande. A Coroa não permitiu que nós tivéssemos universidades - diferentemente da Espanha, cujas colônias tiveram universidades já no século XVI - , não

permissão e uma justificativa. Então é uma sociedade com uma dominância muito forte dos valores religiosos e com um controle imenso.

permitiu que nós tivéssemos imprensa - nenhuma

IC: Havia também um controle muito grande com a

gráfica podia reproduzir nada. Então, para que

chegada de estrangeiros.

alguém da colônia pudesse cursar a universidade, tinha que se deslocar para a Universidade de Coimbra ou outra qualquer da Europa.

86

a cercear a saída dessas mulheres. Havia de ter uma

Nireu Cavalcanti: Claro. Outro grande personagem do nosso medo foi o estrangeiro. Primeiro, houve as invasões dos estrangeiros. E a cidade do Rio de Janeiro


teve na invasão dos franceses, na figura de Villegaig-

lita, a população tinha a oportunidade de conviver com

non, a primeira concretude desse medo do estrangei-

essa diferença de povos e de culturas. Além dessas

ro invadir e “tomar o que é meu”. Durante o período

quatro famílias holandesas e inglesas, outros deram

colonial, a legislação portuguesa estabelecia a proibi-

um jeito de se estabelecer, fugiram dos navios, foram

ção de estrangeiro no Brasil.

apadrinhados por alguém e foram ficando por aqui.

Depois dos diversos tratados internacionais nas guer-

Em 1709, houve um escândalo: saíram relatórios para

ras e a expulsão dos holandeses, Portugal assinou dois

a Coroa reportando que o Rio de Janeiro estava cheio

grandes tratados comerciais e de amizade que esta-

de estrangeiros. Então, veio uma ordem do rei para

beleceram que os ingleses e os holandeses, poderiam

expulsar todos esses estrangeiros. Mas a legislação

ter quatro famílias em cada capitania: quatro no Rio de

também dizia que, se esse estrangeiro fosse casado

Janeiro, quatro em Pernambuco, quatro no Maranhão…

aqui e tivesse filho, estava com a sua permanência

Somente quatro famílias em cada capitania. Era proibi-

quase totalmente garantida. Então, aqueles que já

do o comércio com os estrangeiros. Mesmo essas fa-

estavam casados não tiveram problema nenhum. Os

mílias que aqui estavam não podiam fazer comércio. Era

que estavam solteiros correram desesperadamente

muito bem-vindo um médico, um cirurgião, alguém que

para se casarem. Foi a alegria das mulheres, das mu-

fosse para a lavoura... Mas comércio não!

latas, prostitutas, solteironas, coroas... porque esses

A mesma coisa acontecia em relação aos navios estrangeiros, que não podiam aportar no Brasil. No entanto, havia normas internacionais que estabeleciam que, se um navio estivesse passando por algum problema (falta de alimento, doença da tripulação), eles tinham direito de aportar no ponto mais próximo de onde que eles estavam, resolver aquele problema e ir embora. No Rio de Janeiro, estabeleceu-se que só poderiam descer as autoridades do navio, os comandantes, com o passaporte e uma permissão do governador, isto é, do vice-rei. Então o que ocorria? Você percebe que teve ano que nós tivemos 70 navios estrangeiros aqui: russos, dinamarqueses, franceses,

estrangeiros casaram imediatamente quando veio a segunda ordem. Uns dez anos depois, com a chegada da Corte, já estava quase todo mundo casado, estruturado. Eu fiz um levantamento, parece que tinham mais de 90 estrangeiros no Rio de Janeiro no século XVIII. O período colonial é um período onde o estrangeiro é visto com muita ressalva. Era considerado um indivíduo que estava invadindo o seu espaço, a sua cidade. Ele tinha que fazer uma força muito grande para se inserir na sociedade. IC: Havia motivos reais para se ter tantas ressalvas com os estrangeiros aqui?

todos com uma história de que estavam com algum

Nireu Cavalcanti: Sim, para preservar a colônia. Olha,

problema… Apesar de todas as restrições, nós tínha-

eu diria que a inteligência portuguesa é mais compe-

mos no Rio de Janeiro uma quantidade imensa de es-

tente do que a inglesa e a espanhola, porque os in-

trangeiros. O Rio de Janeiro era uma cidade cosmopo-

gleses perderam os Estados Unidos rapidamente, a

87


Espanha perdeu a América inteira e Portugal só veio

ser obrigado a viver com a vigia constante das auto-

a perder o Brasil, e de uma forma muito amena, com

ridades, que estavam fazendo relatórios sobre você o

a Independência, em 1822. Os mecanismos que eles

tempo todo.

montaram para que a colônia não tivesse possibilidade de libertação foram enormes. Além da proibição de universidades, havia um controle imenso feito pela Igreja, pelas autoridades, pelo Exército, pelo governador, pelo ouvidor... Era toda uma estrutura montada, e, de tempos em tempos, eram feitas estatísticas dizendo quanto cada morador da colônia possuía de escravos, a sua produção, qual era a sua família, quantas pessoas tinham. E havia também, por ser católico, um controle sobre a obrigação de comungar uma vez por ano. Esse ato de comungar, principalmente na quaresma, era registrado nos livros da freguesia. Se você não foi lá e não levou os seus escravos, o pároco registrava que você não foi comungar. Era aberto um processo e você tinha que explicar porque você não foi. Era um controle total: esses párocos faziam as estatísticas e toda essa relação ia para a Corte. Além disso, havia uma enorme estrutura da delação. Era um grande negócio você denunciar alguém que estava praticando corrupção, roubando, sonegando impostos, fazendo tráfico ilegal de escravos ou a mais premiada: que estava conspirando contra a monarquia. Foi o caso conhecido do Silvério dos Reis: ele estava devendo uma fortuna à Coroa e foi perdoado por conta da denúncia na Inconfidência Mineira. O denunciante poderia ficar com parte dos bens do denunciado. Então o seu amigo, o seu caixeiro, o seu escravo, poderia ir à administração pública e denunciar. Com isso houve muitas traições… era algo que te dava um grande prêmio. Passamos a ser uma sociedade onde todo mundo desconfiava um do outro. Além de

88

E havia ainda o pior de todos os medos: você podia ser denunciado por estar praticando algum ato de ofensa à Igreja Católica. Esse era o pior de todos. A Igreja Católica tinha o seu tribunal próprio, independente de toda a legislação da Coroa, que tinha seus próprios rituais. Era aberto um processo, você acompanhava, tinha suas testemunhas… O Santo Tribunal da Inquisição foi a coisa mais perversa e mais pavorosa para a colônia. Se alguém fosse denunciado, vinha a ordem para que fosse preso, feita a relação dos seus bens, e tudo era encaminhado para Lisboa. Você não sabia porque tinha sido preso. No início do século XVI nós tivemos várias denúncias... O governador de uma das capitanias foi denunciado, preso, mandado para lá. Estava acima das normas jurídicas. Tinha uma independência total. O tribunal tinha direito legal à tortura. A pior de todas as acusações era ser acusado de judaísmo, porque nas outras (feitiçaria e pederastia, por exemplo) a pena era individual. No judaísmo, a punição ia para toda a sua família. Era o fim da sua família. Depois de sessões de tortura, se você sobrevivesse e confessasse, eles pediam para você fazer a sua genealogia, listar todos da sua família, e listar também todos os seus bens. Aí eles abriam um processo dizendo que você era um cristão novo. Tornou-se um grande negócio a denúncia de cristão novo. Era o maior medo da população do Rio de Janeiro. Quando você era condenado, era obrigado a assinar dois documentos perversos: o primeiro dizendo que ia denunciar qualquer pessoa que você percebesse que estava


praticando atos judaizantes, e o segundo, o de sigilo,

mo. Conseguimos iniciar o Império Brasileiro. A ques-

dizendo que você jamais iria revelar para ninguém o

tão do escravo continuou, o medo do estrangeiro foi

que havia acontecido no tribunal. Eu, pessoalmente,

um pouco reduzido e o Tribunal da Santa Inquisição

considero o maior absurdo essas pesquisas que listam

acabou oficialmente. Houve um processo de D. João

os cristãos novos no Brasil. É uma farsa. É a legitima-

com a Inglaterra para iniciar gradativamente o fim do

ção da tortura. Os pesquisadores não foram lá, pega-

comércio negreiro. Foi um processo gradativo que se

ram essas listas e procuraram as certidões de batismo

arrastou até 1888.

até chegar ao judeu que se converteu. Simplesmente essas listas não tem fundamento nenhum. Não existem provas. Essas pesquisas são falsas. IC: Quanto tempo durou esse Tribunal da Santa Inquisição?

Houve uma grande discussão no congresso, porque uma linha de abolicionistas, de parlamentares humanistas, propuseram que a libertação viesse acompanhada de um projeto de assentamento, de geração de trabalho, de moradia, para esses libertos. Essa proposta foi derrotada e ficou apenas a Lei Áurea dan-

Nireu Cavalcanti: Só veio a acabar com os liberais portu-

do liberdade a esses escravos. Ou seja, jogaram toda

gueses em 1821. Depois fizeram a Constituição Liberal.

essa gente nas ruas do Rio. Surgiu um novo conflito.

Mas eu diria que o Rio de Janeiro continuou a viver sob

Já tínhamos começado um processo de enbranqueci-

o medo depois da independência, agora com a possibi-

mento, se preparando para a entrada de mão de obra

lidade de invasão de Portugal e das outras monarquias.

paga. O Brasil estava com várias colônias de imigran-

Havia um grande acordo assinado em 1815 pelas principais monarquias e impérios da Europa dizendo que, se a independência do Brasil fosse considerada uma traição de Dom Pedro ao seu pai, Portugal, Inglaterra, Holanda, Espanha, poderiam invadir o Brasil e restituir o Brasil a Portugal. Logo, surgiu esse enorme medo.

tes, que ofereciam uma mão de obra qualificada a um preço mais baixo que a dos nossos pedreiros e carpinteiros, ex-escravos ou livres. Ofereceram um trabalho mais técnico, mais branco, mais europeu a um preço melhor do que o dos nossos profissionais. Isso leva a uma grande crise, que aqui no Rio de Janeiro ganhou as feições da criação e inchamento das favelas. Aquela

Felizmente, poucos anos depois, houve uma bela ne-

elite, que se achava no direito de ter um ser humano

gociação, e Portugal reconheceu a independência de

como escravo, se mantém no poder político com essa

uma forma diplomática. Foi feito da seguinte forma:

visão: “demos a liberdade, o que que eles querem

Dom João VI assumiu que era o Imperador do Brasil e

mais?”. Então a nossa administração sempre seguiu a

imediatamente renunciou em bem do seu filho, Pedro,

lógica de exclusão de uma parte da sociedade. É uma

primeiro imperador do Brasil. Então o problema foi

administração descontínua, a serviço de grupos eco-

resolvido legalmente. O Brasil pagou todos os bens

nômicos, de grupos políticos, de interesses momen-

que pertenciam a D. João, pagamos parte da dívida

tâneos. Essa má distribuição da renda se tornou um

que Portugal tinha com a Inglaterra e ficou tudo óti-

caldeirão para o nosso grande medo atual.

89


MARCOS BRETAS “Você não pode tornar o medo o norteador das suas experiências”.

Marcos Bretas é professor de História do Brasil na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Autor dos livros “Ordem na cidade: o cotidiano da autoridade policial no Rio de Janeiro, 1907-1930” e “A guerra das ruas: povo e polícia na cidade do Rio de Janeiro”.

90


IC: Quais eram os principais medos da cidade nos séculos XIX e XX? Marcos Bretas: Nós costumamos começar o século XIX com a vinda da família real portuguesa para cá. Aqui encontraram um cenário muito diferente do que eles tinham em Lisboa. Era um mundo cheio de escravos. De caras negras com as quais eles não estavam acostumados. Para muitos deles, isso provocava um desassossego enorme. Se você tomar, por exemplo, pelo depoimento do Luís Santos Marrocos, o bibliotecário da corte, o Rio era um lugar terrível, onde você não podia sair à noite se não ia ser assassinado. Ele manda cartas para o pai falando o tempo todo do medo que ele sentia na cidade, da vontade que tinha de voltar para Lisboa. Mas a gente tem que reconhecer que isso é uma forma de se perceber a cidade do período. Existia uma discussão grande sobre em que medida você tinha uma cidade realmente perigosa no período Joanino. Muitos portugueses vieram para cá e acharam ótimo. Pensaram no império transatlântico, nas vantagens de ficar aqui, e que não era tão mal assim. Existiam divergências. O medo então não é uma categoria absoluta. O medo é de classe, de posição social, inserção geográfica. Esse medo dos escravos é algo que perpassa o século XIX. Medo de uma grande revolta. Ele existe, mas ao mesmo tempo, você vê pessoas convivendo com os escravos ombro a ombro o tempo todo. Era uma cidade onde não havia uma preocupação enorme com segurança, no sentido de trancar portas, isolar. Eu acho que era uma cidade razoavelmente tranquila. Não existem muitas histórias de grandes bandidos. Uma ou outra: o terrível Pedro Espanhol, aterrorizando o Rio de 1930. E mesmo neste caso, não há muito registro sobre o que ele fez. A cidade ainda era muito aberta à experiência e circulação nessa época. Não tinha grandes sustos. Não temos nem histórias de grandes crimes atrozes que nos apavoram.

IC: Mas mesmo sem perigos muito palpáveis, o medo existia? Marcos Bretas: Esse medo é falado. Se você pega no discurso das elites, ou na assembleia legislativa, fala-se em medo. Havia uma política de se alimentar estes medos. Mas se você pega a prática cotidiana, ela não é muito preocupada com isso. A própria escravidão era cotidiana, naturalizada. Não era uma cidade com índices de violência criminal muito grande. Havia uma violência social incorporada, e as pessoas achavam isso normal, conviviam com isso. No final do século XIX, haverá uma outra construção do medo com a imigração. Quem são estas pessoas que estão vindo para cá? Anarquistas? Ladrões? O fenômeno do medo é uma categoria muito ligada ao mundo do moderno. Historicamente, se você pensar na Europa, a violência diminui nos séculos XIII em diante, mas o medo aumenta. Esse medo urbano tem a ver com essa cidade onde você já não sabe muito bem com quem está falando. Você encontra na rua pessoas diferentes, com costumes diferentes. Isso é desconcertante. Pode ser assustador.

91


O meu grande fascínio é justamente como as pessoas

gente vai passar a viver com essa figura do bandido,

do Rio de Janeiro começam a aprender a lidar uns com

que invade o seu mundo. A cidade deixa de ser partida

os outros no final do século XIX. Como elas passaram a

entre a área perigosa e a área segura.

entender que o mundo do outro pode ser interessante. Certamente as populações europeias vem com um

IC: Essa construção da mídia é baseada em coisas

racismo forte para o Brasil, e alguns vão descobrir que

que de fato estavam acontecendo na cidade? Ao que

aqui também tem coisas interessantes e positivas. A

interessa ela propagar este medo?

violência é um dado corriqueiro. A população andava mais armada que hoje em dia. Era instrumento de uso cotidiano você ter uma faca, por exemplo, de cortar fumo. No século XIX existem perigos, mas eu não diria que o medo é uma categoria central. A construção do medo é um processo muito posterior.

uma intenção, ou se estes casos fazem parte de uma estrutura da mídia de narrar coisas que acontecem e parecem significativas. Mesmo as coisas pequenas parecem maiores sob a lupa da mídia. Então você começa nesse momento a contar histórias de ban-

Eu dataria os grandes medos da cidade já do pós-

didos. Até os anos 1940, eles existiam, mas estavam

1945, saída da ditadura e entrada na democracia. Uma

distantes. A partir dos anos 1950, tornou-se comum

sociedade que começa a produzir uma diferença social

na mídia a criação dos “inimigos públicos”, um mode-

descrita em torno de ameaça. Você agora tem o risco

lo importado do norte-americano. O perigo da cidade

de poder ser assaltado na rua. Em 1920, o bandido pe-

então é atrelado a figuras específicas, como “O Carne

rigoso vivia no morro ou na favela. Era só você não ir

Seca”, ou “O Mauro Guerra”. Depois “O Mineirinho”.

lá. Depois de 1945, a favela começa a descer. A expli-

Segundo o que é propagado, há uma série de homens

cação que a mídia vai dar é que “agora no morro você

perigosos a se perseguir, que devem ser caçados.

tem uma droga – a maconha – que deixa as pessoas vi-

Concomitantemente, surge também uma história da

ciadas, e daí vão às ruas assaltar porque elas precisam

polícia. Surge a concepção de que você tem de pe-

de dinheiro para comprar”. Você vai demarcando uma

gá-los e matá-los. O embate é extremamente natu-

cidade dividida entre o espaço vitimizado da “boa so-

ralizado: a polícia mata. A história reproduzida é essa:

ciedade” e o espaço perigoso, que é o morro ou a fave-

os bandidos tem 20 anos, fumam maconha, assaltam

la. No cinema, a gente vê claramente a construção do

e se tornam perigosos; aos 22, a polícia sobe o morro

morro da Mangueira, lugar fronteiriço entre a cidade e

numa caçada e os mata. Histórias repetidas com no-

o subúrbio, como um grande lugar de ameaça. É lá que

mes diferentes a cada ano. Não é inventado pela im-

se passa o Assalto ao trem pagador, o Mineirinho, vivo

prensa. Mas o lugar que isso ocupa ganha destaque e

ou morto. O subúrbio é muito pouco descrito pela cul-

se torna uma percepção social.

tura e pela mídia. Só tem a história da criminalidade. Nos anos 1950, é notável como você passa da memória da vítima à memória dos criminosos. A partir daí a

92

Marcos Bretas: Eu não sei se necessariamente existe

Com o crescimento urbano, alguma coisa realmente muda na cidade. Há um componente de realidade


nisso tudo. Mas a imprensa e a cultura tem um pa-

as pessoas a se aprisionarem em seus espaços. É uma

pel fundamental. A forma como isso é tratado pela

perda para o tecido urbano carioca, que é riquíssimo.

mídia muda o pensamento das pessoas. Até aquele momento, as pessoas não tinham medo de viver na

IC: Essa forma de organizar a cidade é tipicamente

cidade. Não tinham esse desassossego. A sensação

carioca?

que você tem hoje em dia na cidade é a de que pode acontecer algo com você em qualquer lugar. IC: Queria que você comentasse um pouco essa sensação cotidiana.

Marcos Bretas: Tem um aspecto muito forte daqui. Somos pensados como uma cidade violenta. O mundo inteiro reconhece que o Rio de Janeiro é violento. Em outras cidades, você ainda tem a possibilidade de não ir a certos bairros e evitar o perigo. Fazer isto aqui

Marcos Bretas: É muito fácil perceber que as pes-

é muito difícil. Você compartilha o risco. E ao mesmo

soas se organizam em relação ao medo controlando

tempo, as pessoas convivem com isso. Tem de viver.

o lugar onde elas frequentam. O Rio de Janeiro é uma

Ninguém pode viver o medo como uma paranoia, ficar

cidade enorme. Nele existem mapas culturais e afeti-

trancado em casa. Você feudaliza muito, cria condomí-

vos. A cidade é onde você anda. E nessa cidade onde

nios fechados. A forma de ser criança mudou enorme-

você anda, teu risco num certo sentido é menor. Você

mente na cidade. Hoje em dia, não se deixa os filhos

controla o seu ambiente, conhece o espaço. Você es-

nas ruas sozinhos. Você tem esses arranjos sobre

pera que as coisas não aconteçam. Isso é muito evi-

como sobreviver aqui. Mas a maioria das pessoas tem

dente em pesquisas sobre o medo. As pessoas nor-

de acordar cedo e sair para o trabalho. O medo não pa-

malmente não tem medo do lugar onde elas moram.

ralisa o carioca num certo sentido. Ele afeta o espaço

Elas tem medo de sair da cidade conhecida. A cidade

de lazer e outros lugares. O processo de mudança do

vai ficando mais restrita, mais encravada. Um exemplo

amadurecimento das crianças está mudando.

disso é a Barra da Tijuca. Você mudou essa circulação e organização. Para quem não conhece o Centro, pode

IC: Pessoas que vivem em áreas de risco também

parecer um lugar muito perigoso. As pessoas pas-

naturalizam o perigo que elas vivem?

sam a estruturar a cidade com lugares de segurança e medo. As histórias que mais chocam são justamente de pessoas que estão em seus espaços familiares e de repente acontece alguma coisa. A perda dessa segurança para a elite carioca é muito visível. O caso do médico assassinado na Lagoa é um exemplo disso. A cidade é dividida cognitivamente pelas pessoas. Existem territórios do medo sendo construídos. E isso vai levando

Marcos Bretas: Elas se organizam de acordo com ele. Existe uma discussão enorme sobre isto e as UPPs hoje em dia. Você encontra muitos depoimentos dizendo que a UPP desorganizou um espaço que antes era organizado. As pessoas dizem coisas do tipo: “antigamente eu sabia onde e quando tinha tiroteio. A garotada soltava foguetes. Agora eu não sei como me proteger”. As pessoas perderam a noção das re-

93


gras dos espaços onde elas vivem. Antes, viviam sob

IC: Me parece que você coloca o fenômeno do medo

certas regras dentro da sociedade controlada pelo

como resultado desta cisão da cidade.

crime organizado. Isto é uma coisa muito particular. As pessoas também dizem: “olha, agora eu não sei mais a quem recorrer se eu tiver um problema. Se eu recorrer ao traficante, a polícia me pega. Se eu recorrer à polícia, o traficante me pega. Quando só tinha o traficante, eu sabia a quem recorrer. Não existia roubo na favela, as pessoas eram forçadas a descer para roubar”. Esses mapas estão sendo transformados. Por um lado, diz-se que é bom introduzir o Estado e a segurança nas favelas. Por outro, que as pessoas sabiam viver melhor quando não tinham estas novas regras. Eventualmente as pessoas dizem: “bons tempos quando tinha o tráfico”. Naturalmente, é o tipo de coisa que não se pode dizer, porque significa aceitar uma opressão. Mas do ponto de vista deles, era ao menos uma opressão conhecida, estruturada, e não uma opressão aleatória.

Marcos Bretas: Sim. O medo é uma incompreensão do outro. É isto que te desassossega. O medo que marca a experiência urbana nasce do contato com este outro que te é desconhecido e pode ser ameaçador. A cidade te força o tempo todo a ter de lidar com isto. Como você vai lidar com isso? O medo estrutura um pouco estas fronteiras de segurança, controle e domínio. A cidade é um território de diversidade. A gente vive hoje um esforço muito grande de se reduzir esta pluralidade, este caráter plural. Por outro lado, politicamente, o discurso é do pluralismo. IC: Queria voltar um pouco ao papel da mídia nisso... A mídia teve um papel significativo na propulsão do medo. Mas ao mesmo tempo, ela também não responde a uma demanda que já existe por parte da população? Marcos Bretas: Exatamente. A mídia ressoa. A inse-

IC: Pessoas que vivem em área de risco se sentem

gurança existe. Quando você conta estas histórias, as

ameaçadas quando saem dela?

pessoas consomem. O consumo da violência é muito

Marcos Bretas: Talvez outras ameaças. Você está sendo notado. A polícia fica esperta e quer saber o que você está fazendo. É uma sociedade com demarcações. Andar em um território de gente rica é perigoso para quem não é. Porque você é visto como uma ameaça. Existe um controle de aparências. O suposto perigo de arrastão nas praias, por exemplo. As praias deveriam ser o lugar mais democrático da cidade. Não sei se são. Faz vinte anos em que se disputa o controle da praia. É curioso para gente pensar no medo que as pessoas podem ter de andar em Ipanema ou Leblon. Mas tem. Um medo outro. Não é medo do ladrão. É medo da polícia.

94

intenso. Não penso que a mídia tem uma estratégia de propagação do medo. É um resultado do mercado. Mas ele só ganha esta proporção por causa da mídia. Se você for para o cinema, você vai ver que no cinema policial brasileiro, o papel do jornalista é fundamental. Eles que produzem a história. A imprensa é sempre uma multidão que invade a cena. Ela tem um certo ar de vândalo. O lugar da imprensa nisso tudo é muito forte. O Cruzeiro, por exemplo, a grande revista dos anos 1950, entrevistava bandidos e dava destaque para eles. A imprensa faz estas coisas ressoarem mais. E hoje há todo um esforço da imprensa de se diferen-


ciar disso tudo, quase uma mea-culpa, dizer que isto é

canos e alemães. Tentando controlar, pensaram em

coisa do passado. E que supostamente, hoje em dia, isso

proibir as drogas, a marijuana. Isto se espalhou para o

teria mudado. Que haveria outras questões mais éticas.

mundo inteiro e causou um efeito perverso. Passamos

A maioria dos crimes são vividos pela população media-

um século tentando combater algo que as pessoas

tizados pela imprensa, e não pelas pessoas realmente.

experimentam e que faz parte de uma experiência de sociabilidade. E os danos desta luta foram muito altos.

IC: Como você acha que temos de lidar com este medo? Marcos Bretas: Do ponto de vista psicológico, acho o medo até saudável. Não ter medo é perder um pouco o bom senso. Mas você não pode ser dominado por ele. Você não pode tornar o medo o norteador das suas experiências. Este embate está presente o tempo todo na nossa cidade. Um exemplo é a Lapa, que

Você produz uma ilegalidade. Produz um mercado criminoso. Talvez este seja o grande problema do Rio de Janeiro hoje em dia. Nós o criamos. Isto não deveria ser um problema nesses termos. IC: Queria que você comentasse um pouco o fenômeno do jogo do bicho.

é um lugar fascinante. Parte da imprensa reproduz o

Marcos Bretas: É um bom exemplo de algo

discurso de que lá é um lugar cheio de viciados, assal-

criminalizado e que ninguém tem medo. Faz parte do

tantes, figuras ameaçadoras. E por outro lado, há todo

cotidiano. O aspecto curioso é porque aquilo deu tão

um burburinho falando sobre como lá tem muitos

certo, porque o homem teve esta sacada de botar 25

eventos bacanas, shows, botecos incríveis. Tem duas

bichos e isto dar certo. Um colega, Felipe Magalhães,

lapas na mesma Lapa: a da diversão e a do perigo. Para

escreveu um livro sobre o jogo do bicho. Ele entrevis-

os jovens, o perigo talvez até seja um bônus. Uma vez

tou pessoas ligadas ao fenômeno. E ninguém comen-

dei uma entrevista para um jornal que não teve este

ta o aspecto violento do jogo. É uma história sem vio-

trecho publicado que eu disse, “olha, se limparem a

lência. São pessoas que ficam ali na esquina, pegam as

Lapa, as pessoas vão parar de ir lá, porque a Lapa é um

apostas, pagam no final do dia, todo mundo se diverte.

lugar de prazer e perigo”. Ela tem o encanto de estar

Novamente, o Estado vem e diz que aquilo é ilegal. O

nesse submundo. Na rua, tem perigo. Mas isto não

Estado cria um conflito.

justifica as pessoas quererem ficar em casa. A Lapa é um lugar culturalmente fascinante. A gente vive um risco enorme de perder a qualidade de vida do Rio por estarmos sempre com medo. Não podemos reagir ao perigo desta forma. IC: Por que escolhemos a droga como inimigo?

Naturalmente, tem a questão de quem comanda isso. É uma história que a gente não conhece. Em algum momento, este jogo que era feito nas esquinas do Rio de Janeiro passou a ser concentrado nas mãos de poucos donos. A produção do jogo na cidade foi dividida entre eles. E este foi um processo violento, pois envolveu tirar certos donos. Muita gente morreu nes-

Marcos Bretas: Herdamos isto de uma sociedade

ta história. Ela é mal contada. Não conhecemos muito

americana desassossegada com os imigrantes mexi-

bem essa história do jogo do bicho. Em larga medida,

95


o jogo do bicho não é isso. A população não tem medo dos bicheiros. Não é uma figura que assusta. Fazem caridade, ajudam a população, financiam escolas de samba. As mortes estão em outro mundo. Estão no mundo da disputa interna. Não ameaça a sociedade. Contam que o jogo do bicho evoluiu para outras formas de ilegalidade, como a prostituição, por exemplo. Mas para a sociedade, ele nunca foi um medo. É uma prática cotidiana. Todo mundo quer fazer a sua “fezinha”. É um lugar curioso do social. Um dos entrevistados neste livro do Felipe Magalhães, ao ser indagado se o que ele fazia era certo ou errado, respondeu que é “meio errado”. Acho muito curioso esta margem entre o socialmente aprovado e o não-aprovado. Por que um Estado decide que não podemos nos divertir com este mercado de apostas? Ele existe em certos lugares legalizados como a Mega-Sena ou o Jóquei. É um espaço definido de forma imprecisa, mas que faz parte do ser carioca. Não produz grandes medos. Existem discursos de políticos contra o jogo do bicho, mas a sociedade não está preocupada com isso. IC: O Rio de Janeiro é particularmente perigoso? Marcos Bretas: O Rio de Janeiro é um lugar violento. Mas acho que isto não deveria produzir o nível de medo que é produzido. O medo exagerado é a derrota da cidade. Não podemos viver somente em torno dele. Tem coisas que podemos fazer para reduzir os perigos. Mas o que chamo atenção é justamente que boa parte destas coisas realmente perigosas, não são elas que produzem o medo. Porque a gente convive com e legitima uma série de violências. No fundo, o medo é algo a ser combatido.

96


ANTÔNIO HERCULANO LOPES “O malandro, na sua origem mais remota, está vinculado ou tem uma de suas grandes matrizes na figura do capoeira”.

Diretor de Pesquisa da Casa Rui Barbosa. Publicou como organizador e autor “Entre Europa e África: a invenção do carioca”, “Diversidade cultural brasileira” (com Lia Calabre) e “História e linguagens: Texto, imagem, oralidade e representações” (com Monica Pimenta Velloso e Sandra Jatahy Pesavento), além de artigos em livros e revistas científicas.

97


IC: O que é o estereótipo do malandro? Antonio Herculano: Para um historiador da cultura, o estereótipo é uma coisa importantíssima. Ele revela visões que podem ser simplificadas, exageradas, mas que são assumidas na consciência de certos grupos sociais como imagens de si ou do outro. Em geral o estereótipo é construído para o outro, mas com muita frequência ele é assumido para si também. O meu trabalho vem buscando refletir um pouco sobre

isso nos define enquanto grupo social, enquanto cidade, enquanto uma cultura urbana. Uma das coisas que foi interessante perceber é como esse termo “mulato” ou “mulata” era estratégico para definir uma coisa que não era nem negro nem branco, mas que tinha um pouco das duas coisas. Notei que era uma estratégia recorrente na cultura da cidade para lidar com as dificuldades, situações conflituosas.

essas construções identitárias, não em um sentido

Estou falando de século XIX, momento pós abolição,

de denunciá-las e dizer que elas são furadas, mas de

cheio ainda de tabus, preconceitos (que continuam

justamente dar uma expressão de por que se cons-

até hoje), mas uma baixíssima consciência de que

trói esse tipo de imagem. Por exemplo, o malandro...

aquilo era preconceito. Você começa então a valorizar

o que está por trás dessa construção? O ponto de

a figura dos negros, usando sobretudo essas imagens

partida é que é uma construção. É uma construção

do mulato e da mulata. A mulata ainda tinha esse lado

histórica, localizada. Ao longo do tempo essas coisas

machista da celebração da mulher sensual, de ape-

vão mudando, vão adquirindo novos sentidos, podem

lo sexual. E o mulato, quando era o mulato sestroso,

inclusive desaparecer e aparecer novas construções e

era o mulato legal, não era o negro perigoso, não era

novas expressões.

o ”capoeira”. Era aquele que queria falar bonito e fa-

Eu trabalhei durante muito tempo com o teatro de revista no início do século XX, e o teatro de revista funcionou um pouco como uma espécie de “commedia dell’arte” nacional, no sentido de criar esses tipos nacionais. O trio malandro-mulata-português era um trio bem forte, bem típico desse teatro e que eu acho que é um dos canais pelos quais a população carioca estava refletindo sobre a sua identidade, num momento pós-abolição. A situação dramática de exclusão das populações negras desse imaginário da identidade tinha que ser repensada. Agora aquele não-cidadão, que era um escravo, passava a ser um cidadão, ainda que de segunda classe. Você tinha os artistas da época, os intelectuais da

98

época, que começam a recolocar, pensar como é que

lava com palavras pernósticas. Que se vestia de uma forma apurada. Ele tem uma contribuição para a construção dessa figura do malandro muito grande e vai confluir com certas construções que vêm, sobretudo, da imagem do “capoeira”, que é a questão da ginga, dos recursos de sobrevivência que passam por uma certa ilegalidade, de uma esperteza. Isso no teatro vai aparecer com essas características. Essa figura está colada com a representação do negro na sociedade carioca, que enfrentava com grande dificuldade essa situação de conflito interétnico entre brancos e negros. Mas eram figuras populares. O recurso do mulato permite dar uma disfarçada e amenizada na coisa. Tem um pé cá outro lá, não é uma


coisa nem outra, então é mais aceitável. E há de fato

portuguesa muito forte, que ocupa esses pequenos

um processo, ao longo das primeiras décadas do sé-

comércios, além de uma comunidade enriquecida e

culo XX, de branqueamento do malandro, mas um

dona de negócios. O teatro usa dessas figuras.

branqueamento não declarado. Começa a aparecer aquele malandro que não é definido como branco ou

IC: O “capoeira” então era uma espécie de oposto da

preto. Quando você diz que é mulher ou que é negro

figura do Malandro?

aí você está especificando, mas quando você não define acaba criando um padrão: a do homem branco de um certo grupo social. Então o malandro passa a ser o branco “genérico”. E o malandro que trazia uma carga de perigo, que vinha do “capoeira”, foi desaparecendo também. Você tira, de um lado, a agressividade, e mantém, do outro, o que a ginga representa simbolicamente, que é aquele jogo de corpo necessário para sobreviver em um contexto difícil. Então a construção vai sendo um pouco por aí.

Antonio Herculano: Não, o capoeira não era oposto ao malandro. Os capoeiras estavam muito identificados na monarquia e, sobretudo na segunda metade do século XIX, como negros, elementos de classes populares, que eram arrebanhados pelos políticos para decidir, ou ajudar a decidir, na base da violência, uma eleição a favor deles. Junto com isso tem a perseguição da polícia, tem uma série de fatores. Logo depois da abolição da escravidão existiu aquele movimento do José do Patrocínio de formar a Guarda Negra. Pa-

Meu foco de pesquisa parte do teatro, sobretudo o

trocínio, que era um republicano que se converte a

teatro musical ligeiro, o teatro de revista da virada

monarquia porque ela deu a abolição aos negros, for-

do século XIX pro século XIX, em que você tinha essa

mou a Guarda Negra para proteger a Princesa Isabel e

questão do malandro, do português e da mulata. To-

o Novo Reinado, o Terceiro Reinado. Logo depois vem

dos os elementos de classes populares – não era o

a primeira República. Uma das primeiras medidas dos

português enriquecido, era o português dono de uma

chefes de polícia é acabar com as maltas de capoeira.

vendinha que gostava da mulata; o malandro duro,

Tinham as famosas maltas na cidade do Rio de Janeiro

mas que se virava na vida; e a mulata cobiçada pelos

e as rivalidades entre elas acabavam dando em morte,

dois. E a mulata ficava entre os dois porque o por-

em violência. Então a polícia entrou firme para acabar,

tuguês lhe oferecia mais segurança, pois era o cara

mas não acabou. Acabou com as maltas organizadas,

que trabalhava, tinha sua vendinha, seu dinheiro. E o

mas a capoeira e os capoeiras se recolocaram. A ima-

malandro tinha uma vida mais aventureira, sem uma

gem que era puramente da violência e do perigo co-

segurança, mais charmoso e interessante. Esse trio

meça a ser associada a esse movimento. No plano do

é bastante importante nesse tipo de teatro que era

simbólico, na literatura, no teatro, nas representações

feito na época. O Rio de Janeiro é descrito pelos via-

artísticas, você começa a representar a imagem do

jantes do século XIX como uma cidade luso-africana:

carioca com essas características que hoje a gente

o que se via na rua eram os negros de ganho, os traba-

chama “malandro”. O cara que se vira na vida, em pe-

lhadores de rua, e há uma imigração de classes baixas

quenos expedientes que podem não ser muito hones-

99


tos, mas que tem o jogo de cintura. E a ideia da ginga e

rioca porque não há uma identificação gaúcha com

do jogo de cintura é obviamente baseada na capoeira,

esse tipo de personagem. Mas ganhou foro de nacio-

que é um elemento de cultura que não tinha como não

nalidade também. “O brasileiro é assim”. Nós somos

associar a essa matriz africana. Porque a matriz eu-

“bons de futebol” e futebol pensado com isso, com a

ropeia era o esgrima, o boxe. São artes marciais que

ginga, com a malícia, com o jogo de corpo, nós somos

não envolvem essa ideia da negaça, da flexibilidade,

do samba. Tudo isso é um processo que vai estourar

desse jogo de cintura, da ginga. Eles pegam esses

mesmo nos anos 30 com Vargas, que inclusive tem

elementos e vão tirando elementos mais perigosos

um investimento nessa criação da identidade nacional

nessa construção, nessas representações.

e estimula estas coisas.

Muito tempo mais tarde, quando alguns composito-

O carnaval também vira o grande carnaval das escolas

res populares começam a falar da morte do malandro

de samba, a grande festa nacional. Você passa a inves-

e que o malandro hoje é um funcionário de alguma

tir nessa imagem do Brasil associada a esses elemen-

repartição, é um pouco da nostalgia desse malandro

tos que até muito pouco tempo eram impossíveis de

que vivia sempre à beira, na fronteira da legalidade, da

serem celebrados, porque estavam associados a essa

ordem e da desordem, essa dialética que comandava

matriz africana.

a vida de setores populares que estavam sempre um pouco à beira da ordem estabelecida e que, simboli-

IC: Vamos voltar ao tema da dialética entre ordem e

camente era calcado naquela mesma imagem do ca-

desordem na vida do carioca.

poeira antigo, do capoeira tido como perigoso, antes de ser domesticado como um esporte, uma dança nacional. E também já com o elemento étnico esvaziado por uma espécie de geleia geral carioca: “somos todos um”. É um pouco a imagem do Rio de Janeiro. Foi um processo que envolveu várias outras coisas, muitos elementos dessa matriz africana, o processo de canonização do samba como o ritmo nacional, da feijoada como a comida nacional.

foi consagrada pelo Antônio Cândido. Ele tem um artigo dos anos setenta que é uma análise literária do romance do Manuel Antônio de Almeida, “Memórias de um sargento de milícias”. A leitura dele é que o romance se estrutura dentro dessa dialética da ordem e da desordem. O diagnóstico para o romance é muito apropriado para você pensar a cultura urbana carioca. É claro que isso também é uma situação bastante tí-

Nós estamos falando de Rio de Janeiro capital, então

pica de classes populares: ter que sobreviver em con-

tinha essa repercussão nacional. As comidas regionais

dições economicamente adversas e dar soluções um

podiam ser outras, mas a feijoada virou a grande co-

pouco à margem da lei.

mida nacional. O samba virou o grande ritmo nacional por causa do Rio de Janeiro. E o malandro passou a ser essa representação. É claramente uma coisa ca-

100

Antonio Herculano: Estou usando uma expressão que

Por exemplo, um povo que dentro do reino do simbólico preza a questão da ordem, como os Estados Uni-


dos, você não pode fazer uma crítica à polícia. Ou me-

cularmente no Rio de Janeiro, e na construção dessa

lhor, até pode, mas em princípio a polícia é o elemento

autoimagem do que se chamava fluminense no século

da ordem, que você tem que prezar e valorizar. Aqui

XIX, e que hoje é o carioca.

não. A cultura já está entranhada pela coisa da polícia “são os homi”. É o pessoal do mal, porque o pessoal do

IC: Porque você acredita que o carioca tem essa rela-

bem é aquele que se vira e corre da polícia.

ção muito particular com a ordem? E como isso tem

Esse tipo de abordagem é uma construção da cultu-

a ver com o malandro?

ra. Como a minha pesquisa está vinculada ao teatro,

Antonio Herculano: Como uma construção da cultura,

eu começo a pegar isso desde o início do século XIX,

isto foi sendo absorvido como um elemento geral do

décadas de trinta e quarenta, com Martins Pena. Ele já

carioca. Mas é uma construção de classes populares

lida com essa situação. Ele não fala muito da escravi-

que enfrentam situações de grandes dificuldades para

dão e das populações negras, porque foi considerado

sua sobrevivência e têm que apelar com frequência

na época um elemento não dito. Você não podia trazer

para esses expedientes fora da ordem. Então o pro-

para o palco, em um espetáculo público, no teatro, a

cesso é você tornar uma coisa que a princípio seria ne-

questão da violência da escravidão. Então, ele foca

gativa - ir contra a ordem estabelecida - em uma coisa

muito nas populações pobres, livres, que são essas

positiva. O malandro, na sua origem mais remota, está

populações, parafraseando o Caetano, “pretas ou

vinculado ou tem uma de suas grandes matrizes na fi-

quase pretas, brancas ou quase brancas”, que vivem

gura do capoeira, que tem esse elemento da resistên-

nas margens do sistema, da ordem, mas que precisam

cia. É o sujeito mais oprimido da sociedade, o escravo

sobreviver na base de certos expedientes. Então você

que tem seus elementos todos de cultura muito repri-

pega a quantidade de pequenas comédias do Martins

midos, perseguidos. E cria seus mecanismos de resis-

Pena que são esse tipo de situação, por exemplo, do

tência a essa ordem. Então é normal que ele valorize a

carinha que usa as esmolas para a igreja em benefício

resistência à ordem. A ordem é fortemente contrária a

próprio. E é curioso porque ele faz de uma forma a não

seus interesses, pois é a situação extrema da escravi-

simplesmente condenar esse sujeito. Você tem sim-

dão, a situação dramática da perda absoluta da liberda-

patia pelo personagem, porque ele não é do mal. Está

de, da coisificação do ser humano.

dando um jeito, se virando na vida. Pede as esmolas paras as pessoas e embolsa aquilo, pronto. Mas então essa construção é de uma população que vive desses pequenos expedientes e está à margem da grande ordem oficial. A grande ordem oficial é uma coisa distante e a ser temida e não a ser reverenciada. É uma coisa bastante antiga na cultura brasileira, mais parti-

O oposto do malandro na cultura popular é o otário. O otário é aquele que aceita a ordem, acorda às quatro e meia da manhã, pega um ônibus, vai trabalhar. E isso resulta em grandes problemas que a gente tem de uma incapacidade de construir um modelo de cidadania, de participação, de responsabilidade social. Porque é a cultura do cada um por si. Essa cultura da selva

101


é uma cultura que é construída na adversidade. Mes-

vel ao interesses do Estado - que é a paz social, é não

mo que você tenha um processo de desenvolvimento

estimular o conflito de classes, étnico, intergêneros, a

econômico, cultural, em que há outros mecanismos,

harmonia social - é você tirar essa parte mais perigo-

inclusive uma ordem mais democrática, a cultura tem

sa desses elementos simbólicos e reconstruí-los. Vou

um processo de mudança muito mais lento do que

dar um exemplo: o maxixe. O maxixe é uma forma de

a política e a economia. O tempo da mudança é um

dançar os ritmos mais sincopados, portanto de matriz

tempo longo, e esses elementos de cultura, que são

africana, que é desenvolvidas nos bailes populares do

formados lá atrás, na colônia, dentro dessa situação

Rio de Janeiro no fim do século XIX. É uma dança muito

escravocrata, persistem e se reproduzem - vão sem-

sexual, corpo colado com corpo, movimentos circu-

pre mudando, mas vão se reproduzindo. É um proces-

lares de quadris, uma certa indução do ato sexual no

so difícil construir hoje uma sociedade com valores

movimento... Mas na hora em que dois bailarinos talen-

republicanos de cidadania e responsabilidade social

tosos, o Duque e a Maria Lino, vão para Paris, dançam

a partir de uma matriz extremamente individualista e

no cabarés e começam a fazer sucesso, já é uma versão

hostil à ordem.

edulcorada. Você mantém os movimentos circulares, mas sem sexualidade muito explícita. Da mesma forma

IC: Como é a relação do Estado com a figura do malandro? Antonio Herculano: O Estado tem o interesse de estimular criações simbólicas que valorizem a unidade. Na medida em que esses elementos de cultura que provocam o conflito e a dissensão perdem esse elemento

res de Paris, onde mulheres dançavam sem calcinha e na hora de levantar a perna mostravam tudo, mas quando virou teatro que sai viajando pelo mundo, passaram a usar um figurino mais comportado.

mais violento, esse processo no qual o malandro deixa

Esses elementos de tirar a parte mais violenta, peri-

de ser o capoeira perigoso e passa a ser simplesmen-

gosa, de ameaça, seja em termos políticos, sexuais,

te aquele malandro benéfico - digamos assim, que

conflitos étnicos, de classe, permite que em determi-

tem os pequenos expedientes, vai se virando na vida,

nado momento (na Era Vargas) haja um investimento

mas não é do mal - ele passa a ser mais possível de

em transformar esses elementos da cultura popular

ser assimilado. Essa cultura popular é muito vibrante:

em elementos da identidade nacional. O carnaval vira

você tem aquele início de século com a música po-

a festa nacional, o samba vira o gênero musical nacio-

pular, o carnaval, a capoeira transformada em arte,

nal, feijoada vira a comida nacional, o brasileiro é esse

enfim, uma cultura urbana carioca muito vibrante.

mulato (não é o negro nem o branco) sestroso, cheio

Por mais que eventualmente quisessem estimular a

de manha, de ginga. A linguagem corporal da ginga

construção de uma identidade com bases em valores

passa a ser significativa. Claro que o imigrante alemão

externos, não conseguiriam.

do interior do Paraná não tem ginga nenhuma. Mas

A forma de construir essa identidade de forma favorá-

102

que tinha acontecido com o cancã nos cabarés popula-

isso não importa. A questão é no nível simbólico. O


que representa a nação é isso. Então acho que não há

a coisa mudou: o garoto que gosta dos Beatles é me-

uma contradição. Há na verdade uma sacação do Es-

nos nacional? Não. Essas questões hoje são mais ma-

tado que aqueles elementos destituídos de seu lado

tizadas, mas ao longo do século XX, essa construção

mais agressivo são elementos que ajudam uma cons-

da ideia de Brasil era o grande projeto da intelectuali-

trução dessa noção de que somos todos partes de

dade. Inclusive de estimular um orgulho de fazer parte

um mesmo país, todos compartilhamos uma mesma

dessa comunidade. Até por causa do nosso “comple-

cultura, todos fazemos parte de um povo que é alegre,

xo de vira-lata”, como dizia Nelson Rodrigues. A gente

musical, cheio de ginga.

precisava de um pouco de autoestima.

IC: Isso não é simplificar a identidade nacional em

IC: A figura do malandro não atende também a uma

uma figura?

demanda internacional, de uma visão exótica do

Antônio Herculano : Toda identidade simplifica. A re-

brasileiro? Pensando no Zé Carioca, por exemplo...

gra é a diversidade, cada um é cada um. Não quer dizer

Antônio Herculano: Quando chega nesse momento, é

que não existam elementos de comunhão, mas sem-

porque essa construção já foi feita aqui internamente,

pre há um dado de simplificação em toda construção

e de uma certa forma já foi vendida para fora. Quando

identitária. As artes são elementos muito fortes nes-

Disney chega aqui, você já tem na consciência do grupo

sas construções. Os artistas e os intelectuais são fi-

essa ideia de que somos assim, legais, malandros, temos

guras da sociedade que, de um modo geral, ainda que

essa ginga. Então essa construção já foi feita. Da mesma

provenientes de partes mais abastadas, eles têm uma

forma como a gente cria os estereótipos. O português,

circulação mais ampla na sociedade e pegam aqueles

por exemplo, foi nossa vítima maior historicamente.

elementos de cultura popular e traduzem eles em for-

Sabemos que são estereótipos: o português é burro, bi-

mas estéticas que vão criando essas imagens que vão

godudo. Todo estereótipo é construído com elementos

se consolidando na consciência ampla desse grupo.

de realidade e simplifica, exagera, molda a partir dos in-

Ao longo do século XIX e XX, houve uma forte ideia de investir numa identidade nacional. Hoje, ela é mais matizada. As pessoas dizem que há varias identidades: sexual, etária, etc. Somos todos múltiplos e temos diversas identidades. E a identidade nacional não tem mais proeminência. Mas na época, tinha total proeminência na consciência dos artistas mais variados. Estava todo mundo querendo criar a arte brasileira, a

teresses que estão por trás daquela construção. E, também, da mesma forma que você estereotipa o outro, você acaba muitas vezes aceitando o estereótipo que o outro faz de você e absorve aquilo. No futebol isso é muito comum. Quando as outras torcidas começaram a chamar os flamenguistas de urubus e os tricolores de pó de arroz, era originalmente negativo. Eles absorveram e transformaram em uma coisa positiva.

cultura brasileira, contra uma invasão de uma suposta

No livro que eu organizei, chamado “Entre Europa e Áfri-

arte internacional, francesa e depois americana. Hoje

ca, a invenção do carioca”, a ideia do uso do termo in-

103


venção era justamente salientar que não existe uma es-

das classes opressoras faz com que esses elementos

sência do carioca, do brasileiro, do homem. Todas essas

sejam adotados, sem o lado de contestação deles, e

coisas são construções simbólicas, discursivas e estéti-

portanto isso simplesmente reproduz as relações

cas. Algumas mais bem-sucedidas. Outras menos bem-

de opressão. Eu acho que não é assim, as relações

sucedidas. E eu insisto: tem sempre que ter elementos

de opressão não são simplesmente definidas pelo

de realidade, senão estas imagens não vão ser aceitas

opressor. São definidas pela relação entre opressores

pelo grupo como construções que o identifiquem.

e oprimidos. Há sempre certos graus na negociação de aceitação e de contestação. Essas coisas vão se

IC: E quanto ao resultado destas imagens na prática?

movendo. No momento em que você vai, aos poucos,

Por exemplo, a figura do malandro, como apazigua-

tirando do malandro aquele dado mais contestador e

mento acabou com os capoeiras e as tensões raciais?

transformando ele em um símbolo nacional, ele não

Antonio Herculano: As tensões raciais estão aí, estourando a cada dia no nosso noticiário. A gente continua com uma sociedade extremamente preconceituosa, injusta. Qualquer ambiente profissional que você entra imediatamente você consegue identificar que o pessoal que está fazendo a limpeza é negro, o pessoal que está dirigindo é branco. Não é à toa. É um processo histórico. A escravidão ainda não terminou. É um processo longo que está se estendendo. Nas criações dessas tensões, a gente vê como as coisas estouram nas favelas, nas comunidades. Mas o que acontece é que você convive com elas historicamente em relações de poder. Tem os grupos que se mantém no poder, os grupos que estão brigando para chegar lá, e isso tudo é constantemente trabalhado no nível simbólico. As circunstâncias históricas vão dando os novos caminhos para isso. O processo da criação do malandro acompanha isso. É algo que tem lá na origem um dado de resistência a uma ordem que lhes é opressiva, injusta, violenta. Há uma tendência grande em fazer uma análise que eu considero mais simplista, de dizer que a manipulação

104

pode ser contestador. Vai contestar quem? No momento que tirou o outro, você tirou qualquer ideia de contestação. Mas nós estamos em um processo de tentativa de construção de uma sociedade mais justa, mais democrática e com elementos de convivência mais harmoniosa. O ganho de hoje em dia é que há uma consciência que não é uma história de harmonia e sim de conflito. Sempre foi. De conflitos muito violentos. Simplesmente a escravidão em si já é uma violência tão grande que já definiria uma sociedade estruturalmente violenta. No momento de você buscar uma construção desse tipo, essas construções simbólicas de desvalorização da ordem e de valorização da desordem são negativas. Como você vai construir uma ordem mais justa, mais harmoniosa, com a valorização da desordem, do individualismo, do cada um por si? IC: Foi nesse momento que você acha que a figura do malandro começou a morrer ou acabar? Antônio Herculano: Eu acho que ela se redefiniu, se retraduziu, ganhou novos contornos. Hoje é superdifundido na nossa sociedade que o otário é o cidadão


trabalhador sério, que faz as coisas que deve fazer,

soluções que não são as soluções pré-dadas. O uso da

respeitador, de família, e o malandro é o que da vida

criatividade, imaginação, para dar soluções para as di-

nada leva e tira proveito das coisas. É o lado nega-

ficuldades na vida. O ponto de partida é uma vida difícil

tivo - a lei de Gérson, cada um tem que se dar bem.

que você tem que batalhar, lutar contra elementos que

Acho que continua muito forte na consciência social

limitam suas possibilidades de realizar sua felicidade,

essa ideia de que o brasileiro é malandro. É muito

seus desejos. Você tem que dar soluções. E as solu-

entranhado dentro da consciência nacional, e eu acho

ções são valorizadas a partir dessa figura que é a figura

que é importante quando temos uma perspectiva crí-

iconoclasta, que não se adapta a uma coisa que é pré-

tica e analítica, de não dizer que é uma manipulação do

dada e constrói seu próprio caminho. Estimula você a

poder e nem que é a coisa a ser celebrada. São estra-

não funcionar só na caixinha. O ideal para mim é buscar

tégias de autorrepresentação e tem elementos reais.

um equilíbrio entre um elemento criativo, construtivo e um elemento negativo de incapacidade de abrir mão de

IC: Então, a figura do malandro não bate muito com a

suas individualidades para participar de um coletivo.

ideia de construir um lugar mais democrático? Antonio Herculano: Não é que não bata, eu acho que todas essas construções simbólicas e estereotípicas

IC: Pode-se dizer que existe o malandro da praia? Este, talvez, mais ligado à elite...

têm elementos positivos e negativos. O que eu esta-

Antonio Herculano: A cultura da praia no Rio de Janei-

va chamando atenção é que tem o elemento negativo

ro começa a se criar mais fortemente nos anos 1920s.

também. Afinal, como construir uma sociedade mais

É o momento da urbanização de Copacabana. Come-

democrática em um ambiente em que a ordem signifi-

ça a ter a ideia de que praia é uma coisa saudável. Não

ca a sua destruição enquanto ser humano, e é preciso

tem mais aquela coisa de ter que se proteger do sol.

resistir a essa ordem para sobreviver? Os lados ne-

Ser bronzeado passa a ser uma coisa legal. É uma mu-

gativos são muito claros, por exemplo, no trânsito: as

dança forte de cultura corporal, exposição do corpo.

pessoas dirigem sem nenhuma consciência de que

O bronzeado, inclusive, já revela a qual grupo a pessoa

estão dentro de um sistema, de uma coletividade, di-

pertence - são os brancos que se bronzeiam. Uma coisa

vidindo espaço com outras pessoas, que precisam ter

que era percebida antes como negativa porque te apro-

uma consideração. “Eu quero passar na frente, esta-

ximava dos pretos, agora passa a ser uma coisa valori-

cionar onde eu quiser”. Essa questão da entronização

zada. Você tem um ar saudável quando está bronzeado.

do desrespeito à ordem passa a virar um elemento

É uma coisa que ninguém queria ser: branquelo azedo.

negativo, onde há dificuldade de construir uma cultura

É um momento em que essa neutralização étnica e de

que valorize o social, o comunitário.

classe da figura do malandro estava acontecendo.

IC: E os pontos positivos? Antonio Herculano: É uma cultura que valoriza as

O que eu acho que já aconteceu é que a figura do malandro, como foi originalmente construída, desapareceu mesmo. Você tem um outro tipo de malandro que

105


é uma coisa mais genérica. O surfista acho uma boa

IC: O malandro tende a sumir? Quando as coisas se

imagem. Primeiro lugar, pensando em termos de clas-

acertam, o malandro deixa de existir, por que ele só

se, esse surfista que é capaz de sobreviver na praia,

existe em uma situação social específica?

pegando onda, dificilmente é um cara que não tem uma infraestrutura por trás que permita ele ter esse estilo de vida. Então não é o cara ferrado do morro. É um cara que tem uma família ali que tá segurando essas pontas de alguma forma, que permite ele ter esse estilo de vida. Ele expressa uma incapacidade de entrar nesse mundo. O cara não quer entrar em um mundo que é hipercompetitivo do capitalismo brabo, que um passa a perna no outro para conseguir fazer mais dinheiro e comprar sua lancha. Prefere ficar no bem bom, fumar um baseado, pegar uma onda. É uma vida muito melhor, sem dúvida, mas como projeto social não se sustenta, não propõe uma alternativa para a sociedade. No momento que se construiu esse malandro genérico, também estava se construindo essa cultura de praia. O Rio de Janeiro estava se movendo para as praias oceânicas, que passaram a ser as partes mais valorizadas da cidade. Quando eu era garoto, tinha uma expressão que era o “fiscal de praia”, o cara que estava sempre lá, chova ou faça sol. Todo mundo durante a semana trabalhando, e ele sempre lá, de fiscal de praia, tomando conta e vendo como as coisas estavam acontecendo. São também mitos, porque quando você vai fazer levantamento de estatística econômica você vê que a população carioca trabalha tanto quanto a paulista. Mas você passa numa terça-feira às dez horas da manhã, em um dia quente, vê a praia cheia e diz “o que é isso, essa população não trabalha!?”

Antonio Herculano: Isso presume a ideia de que a sociedade humana vai chegar lá, criar uma sociedade em que você consiga superar esses conflitos sociais. Uma sociedade mais harmônica e solidária. Eu sou bastante cético em relação a isso. Melhorou bastante, mas o mundo está muito longe disso. Hoje você tem sociedades como a escandinava, a Holanda, que são modelos, mas só existem porque existe a violência e miséria em outras partes do mundo. Não são coisas dissociadas. Não que seja totalmente negativo, mas o que possibilita uma coisa é a existência da outra. IC: Na Suécia não deve ter malandro. Antonio Herculano: Seguramente não tem malandro, mas o grau de integração social é bem maior, e o grau de aceitação da ordem também. Pois a ordem é percebida não como uma coisa opressiva, mas sim positiva. Mas existem grupos insatisfeitos também, não integrados, que contestam essa ordem e a consideram opressiva. Acho que se você põe como um horizonte uma construção de uma sociedade equilibrada, harmoniosa, a figura do malandro perde o sentido de ser. Pode até se retraduzir em relação ao que eu estava falando do lado positivo, estímulo da criatividade, não se acomodar a situações que já estão dadas, criar novos caminhos, buscando uma certa insatisfação que estimula. IC: A cidade atual está caminhando para uma aparente “organização”.

106


Antonio Herculano: Sim, na medida em que a ordem passa a ser percebida como positiva, você deixa de ter a importância dessas figuras que se constroem pela resistência a ela. IC: O malandro tem um quê de oposto ao espírito comunitário das comunidade... Antonio Herculano: O malandro é essencialmente individualista. Ele é o que trilha seu caminho e dá soluções para sua vida. A mesma matriz social que dá origem a esse malandro, a esse sentimento de necessidade de resistência a uma ordem percebida como injusta, é a matriz social desse espírito comunitário. São pessoas que percebem essa ordem social como injusta e resolvem isso com um espírito de “juntos somos fortes”. É uma outra forma de lidar com isso. E o malandro pode até ser popular lá na comunidade dele, o cara desaparece e volta, pode ser generoso, compartilhar, mas ele não é do grupo da construção da solidariedade, do espírito comunitário. Esse é o grupo dos otários. É o cara que trabalha na obra e quando volta, no domingo, participa de um mutirão para construir a casa do vizinho. Hoje, pode estar nas igrejas evangélicas. Tem esse espírito de congregação, associação. Você tem uma garotada que tá nascendo e crescendo ali, e tem esses caminhos possíveis. São cenários múltiplos oferecidos na mesma situação, para pessoas que estão vivendo em dificuldades e podem ter respostas distintas. Essa cultura do coletivo não é a do malandro. Ele é o cara que vai pra vida e vai se virar.

107


JOSÉ MURILO DE CARVALHO “É preciso ser consciente do que se está ocultando”.

José Murilo de Carvalho é um dos mais importantes historiadores brasileiros, membro da Academia Brasileira de Letras e da Academia Brasileira de Ciências. Autor de dezenas de livros, entre eles “Os Bestializados” (1987), “A Formação das Almas” (1990), “A Cidadania no Brasil” (2001).

108


IC: No seu artigo “O motivo edênico no imaginário social brasileiro” (Revista Brasileira de Ciências Socias, 1998), você mostra como a ideia de paraíso está presente na formação da identidade brasileira. Especificamente no Rio de Janeiro como se deu essa construção? José Murilo de Carvalho: O paraíso do Rio obviamente é um paraíso natural. E essa natureza já estava aqui muito antes de chegarem os tamoios e toda população que era dessa região. Mas, durante muito tempo, isso ficou apenas como admiração de quem chegava na baía e via essa paisagem. Demorou muito para essa beleza, esse paraíso, ser utilizado. Ser transformado em marca da cidade. Porque nessa região central não havia propriamente praia. Aqui em Botafogo havia uma pequena praia, mas não era, inclusive, costume frequentar a praia. Foi depois da conquista da Zona Sul, via Túnel Velho e Túnel Novo, que se começou a construir uma outra cidade. Em Copacabana, Ipanema, Leblon, a cidade começou a se espalhar. Depois, novamente, atravessou outro túnel e foi para a Barra. Aí sim, começou muita frequência à praia e a ideia de praia como um lugar de prazer. IC: E como se deu essa construção da natureza como marca da cidade? José Murilo de Carvalho: Natureza é uma coisa, paisagem é outra. Paisagem é a natureza trabalhada pela cultura. Então esse encontro da natureza e da cultura, eu diria que houve, em um primeiro momento, na criação do Jardim Botânico. D. João VI criou o Jardim Botânico como uma primeira tentativa de fazer essa junção. A segunda importante foi o replantio das árvores da Tijuca, o Parque Nacional da Tijuca, por D. Pedro II. Isto porque o café estava sendo plantado ali, então tudo estava sendo praticamente destruído. A tendência, em geral, era destruir. Claro que aterrar os pântanos era necessário para viver, mas, em termos de criação de paisagem, o replantio foi uma enorme iniciativa de D. Pedro que ficou aí até hoje. A terceira intervenção, eu diria, foi o Aterro do Flamengo, pelo Carlos Lacerda. Foi uma ação de criação de paisagem também, porque destruíram a orla, mas construíram algo que tem a ver com natureza. As árvores são

109


todas nativas do Brasil. Então foi uma tentativa exitosa, com a ressalva de que hoje ficou meio abandonado. Então essa ideia da paisagem foi construída em um processo muito lento, que levou mais de um século para acontecer, e que depois - com a abertura de Ipanema e Copacabana e com o aumento da frequência de ir à praia - passou a adquirir mais força.

IC: Praça São Salvador? José Murilo de Carvalho: Isso. Você vai lá a qualquer hora e está cheio de gente. Talvez por causa dos bombeiros ali na frente. O resto das praças estão todas cercadas de grades, não pode entrar. Copacabana ainda tem, Ipanema... Mas onde está a vida da cidade? Se você vai para Madri, por exemplo, o negócio é desbun-

Outra construção, que não podemos esquecer, é a do

dante. Milhares de pessoas vão para rua. Fim do dia,

Cristo no Corcovado. Uma paisagem criada e que hoje

fim de semana. Você vê multidões andando na rua,

é marca do Rio. Quer marca do Rio? Bota o Corcovado.

brincando, passeando com a família. Tem vida urbana.

É o que o Sérgio Besserman chama de “marca da cida-

Já aqui... O Centro acabou. Não tem mais nada. Não

de”. Essas montanhas: o Pão de Açúcar, o Corcovado,

quero ser pessimista, mas às vezes me incomoda um

o Dois Irmãos... A baía circundada de montanhas pas-

pouco esse oba-oba de “carioquice”. Isso é ocultação.

sou a ser a marca da cidade e como marca é imbatível.

Em primeiro lugar, é uma visão muito limitada da cida-

Eu já viajei bastante e não há uma cidade, desse ponto

de, um pedacinho da cidade. É a parte pelo todo. E de-

de vista, da natureza e da paisagem, que seja mais bo-

pois, porque realmente oculta muito. Ernest Renan já

nita. Isso ainda é realmente a grande marca da cidade.

dizia que não criamos uma nação sem mentiras. Há de

Uma vista que parte da cidade tem acesso, claro, e ou-

se mentir e esconder, botar para debaixo do tapete o

tra não tem. Criou-se uma marca aqui, da qual muita

que não quer mostrar... Mas a gente que é historiador

gente da própria cidade não participa... Não participa

e trabalha com isso não pode entrar nessa não.

porque tá na Zona Oeste, tá na Zona Norte, etc. IC: Em que medida a ideia de Paraíso contribuiu e/ou IC: Então o Rio paradisíaco é apenas uma imagem?

contribui para a formação de uma identidade carioca?

José Murilo de Carvalho: Uma imagem que está sendo

José Murilo de Carvalho: O que é ser carioca? Ser ale-

corroída. Veja bem, o motivo de orgulho edênico coin-

gre, sambar o tempo todo, ter uma visão dionisíaca da

cide com uma das cidades mais violentas do país. As

vida? Se você for ver os níveis de pobreza e de violên-

duas coisas estão juntas. Como é que se resolve isto?

cia da cidade, não tem nada a ver, não é?

O que precisa é o outro lado, né? De que adianta a Floresta da Tijuca se você não pode andar por lá tranquilamente? Fazer isso é quase querer ser assaltado. Não tem muito jeito. Nessa região aqui (flamengo) só tem uma praça que é popular... Como chama?

Então essa coisa de identidade carioca, “carioquice”, isso não existe. Quer dizer, há uma pequena identidade de uma Zona Sul carioca (das praias de Copacabana e etc), que foi criada a partir da década de 1950/1960. Não existe UMA cidade. Isso aqui é um conglomerado. Zona Sul se compara com a Zona Norte? Com a Zona

110


Oeste? Com o Centro? Coisa nenhuma! São coisas

IC: As pesquisas citadas no seu artigo revelam que a

totalmente diferentes. Só que uma intelectualidade

natureza é o principal motivo pelo qual a maioria das

da Zona Sul da década de 1950 começou a ir à praia.

pessoas sente orgulho de ser brasileiro. Já que exis-

Começou a ir à praia por quê? O que é o Rio? No centro

te a ideia de que no Brasil nada do que é construído

do Rio: montanhas e pântanos. Isso era a cidade do Rio

pelo homem funciona, de que o sistema político é fa-

de Janeiro. Foram conquistando os pântanos e furan-

lho, a natureza seria um consolo? O único motivo de

do as montanhas com túneis. Faz um túnel pra Tijuca;

orgulho por morar aqui?

faz o Túnel Velho; faz o Túnel Novo, que vai pra Copacabana e Ipanema; cria-se uma outra cidade na Zona Sul. E depois faz o túnel Dois Irmãos e o Zuzu Angel... Vão criar uma outra cidade na Barra. Nesses exemplos já temos três cidades. O Centro; depois Botafogo, que foi a primeira mais ou menos chique, veio o que a gente chama mais ou menos de Zona Sul; e depois a Barra, que é outra cidade, parece mais Miami do que qualquer outra coisa. Aquilo ali é o Rio? A Zona Oeste é? Então cria-se uma marca do “ser carioca” que é exatamente o ser da Zona Sul.

José Murilo de Carvalho: Em termos do país eu acho que sim. No caso do Rio, eu acho que é diferente, porque isto está aqui, quer dizer, pelo menos ainda não jogaram no chão o Corcovado e o Pão de Açúcar, e não vão certamente dinamitá-los. Se fosse por interesse econômico até fariam, mas não fazem porque os dois dão dinheiro. Então no Rio acho que há, digamos, um interesse em preservar. E, como eu disse, é um imenso atrativo. Repito o que o Besserman diz: é a marca da cidade como turismo, está embutido na economia da cidade. Eu acho que essa ideia é válida para o país,

Eu tenho muito cuidado com a ideia de identidade,

onde se destruiu praticamente tudo. A Mata Atlântica

pois são criações. São criações que refletem um pe-

já quase desapareceu, a Amazônia está sendo destruí-

daço da cidade, de um determinado momento. O pe-

da, poluição para todo lado, agora estamos ameaçados

ríodo JK, na década de 1960, foram os chamados anos

de seca. As Sete Quedas já foram embora, quer dizer,

dourados para o país inteiro. Mas a capital estava aqui,

essa natureza maravilhosa está sendo sistematica-

havia uma intelectualidade nacional, havia cariocas

mente destruída. Curiosamente, em Itaipu, por exem-

importantes, sobretudo na música. Mas o fato do Rio

plo, a destruição tem interesse econômico. O restante

ser capital também trazia para cá o que de melhor ti-

é realmente irresponsabilidade. Aí sim, a manutenção

nha no resto do país, em termos de intelectualidade.

dessa ideia edênica é um total anacronismo hoje. As últimas pesquisas que eu cito são da década de 1990. Eu não sei se hoje as pessoas ainda iriam responder da mesma forma essa pergunta: “Por que você se orgulha do Brasil?”. Seria muito interessante atualizar essa pesquisa, mas com uma amostra que incorporasse todas as regiões da cidade. E ver em que

111


medida essa identidade - que, como eu disse, é cons-

IC: Mas vocês acha que a população está consciente

truída na Zona Sul - é comprada pelo pessoal da Zona

disso?

Norte. Isso seria uma coisa interessante: “Você se orgulha do Rio pela beleza da paisagem?”. Se for o caso de resposta afirmativa, aí sim poderíamos afirmar que existe um consolo, uma substituição. Essa gente não se beneficia em nada dessa paisagem. Seria uma pesquisa interessante.

José Murilo de Carvalho: Eu diria que é possível. Talvez hoje o resultado de uma pesquisa dessas não fosse o mesmo daquela de 1990, não é? Talvez houvesse uma diferença por classe social. Embora, de novo, quem se beneficia mais da paisagem, da praia e etc, é, obviamente, o pessoal de renda mais alta.

Eu creio que existe o motivo edênico, que é a ideia de exaltar o Rio e passar uma imagem positiva da cidade.

IC: Você acha que ideia de Paraíso, de valorização da

É a tarefa da Riotur e do governo. Nesse sentido, eu

natureza deveria ser abandonada?

acho que vocês têm razão. Esse tipo de propaganda, do ponto de vista da Riotur, embora seja parte importante da economia da cidade, tem também a finalidade de ocultar, de esconder ou contrabalancear a ideia da violência. Aí sim existe uma briga de imagens, lastreada obviamente por interesses econômicos, mas bem evidente. Eu acho que no Rio há essa dualidade. Muitos cariocas tem dúvida sobre o futuro da cidade. Você tem o Pão de Açúcar, mas você pode ser assaltado enquanto está olhando a paisagem.

José Murilo de Carvalho: A minha postura no artigo era negativa. A ideia que estava lá é de que isso é uma fuga: nos apegamos a algo que nós não construímos. No texto eu cito Machado de Assis. Ele ficou o dia inteiro mostrando a cidade para um amigo turista e no fim do dia subiu no antigo Morro do Castelo. O cara olhou para a baía e falou: “mas que natureza que vocês têm”! Esse é um episódio espetacular. E o Machado diz: “mas eu não fiz os morros, eu não fiz o mar, eu não fiz nada disso! Eu passei o dia inteiro mostrando

Então se pode dizer que as ações para promover o Rio

para ele o que a gente fez! E ele vira as costas e só vê a

tem a função de animar as pessoas. É óbvio. Não estou

natureza”! Este turista é o brasileiro. É o próprio brasi-

condenando, à princípio. É justificável que se faça isso.

leiro. Fica vendo o que não fez, a natureza. A diferença

Mas é preciso ser consciente do que se está ocultando.

hoje é que isso dá dinheiro. Pra mim é uma fuga e eu via isso negativamente. Alguns colegas discordaram de mim na época, dizendo que é uma maneira de se criar uma identidade, algo pelo qual você possa se vangloriar. Mas é falso, né? Eu realmente discordo completamente. Eu não vejo vantagem nessa postura. Mesmo quando a gente faz coisas boas, as pessoas não incorporam isso como parte de uma história que construimos. Nas minhas pesquisas não veio nenhum outro

112


país que tivesse a natureza com tanta força como o Brasil. E o pior é que a gente destrói tudo. IC: Mas no caso do Rio de Janeiro, particularmente, a gente opera pela mesma lógica? José Murilo de Carvalho: Eu acho que não. No Rio vangloriar a natureza faz um pouco mais de sentido, porque, como eu disse, é a marca internacional da cidade. Hoje eu acho que a natureza no Rio pelo menos está sendo preservada, protegida ou transformada em paisagem. Ainda não está tudo totalmente resolvido, claro, mas acho que nossa relação com a natureza chegou a uma situação mais ou menos de equilíbrio, e isso é um motivo de orgulho, dá dinheiro, é bom pra cidade. Certamente não justifica que a baía ainda não tenha sido despoluída, né? Mas aí já entra na questão da corrupção, da má administração, da ineficiência, etc.

113


114


115

TEXTOS


MORROS, MARES E CARNAVAIS por Mônica Pimenta Velloso Historiadora, tendo desenvolvido trabalhos na área de pensamento social brasileiro e histórica cultural. Pesquisadora da Fundação Casa Rui Barbosa e do CNPq. É autora dos livros “História e modernismo” e “A cultura das ruas no Rio de Janeiro: mediações, linguagens e espaço”.

“O Rio é a cidade contemplativa, cercada de montanhas, olhando o mar” Cassiano Ricardo

116


A frase foi escrita por Cassiano Ricardo, poeta paulista que na década de 1920 identificava o voyeurismo da cidade como um dos traços marcantes da cultura carioca. Propensos ao devaneio, ao lirismo e ao ócio, os cariocas se contrapunham aos paulistas pragmáticos e empreendedores. Na época, o Rio era a capital federal e tais ideias buscavam justamente legitimar a defesa da hegemonia paulista mostrando que a cidade teria maior competência organizacional administrativa para gerir o destino da nacionalidade. Cassiano Ricardo pertencia ao grupo verde amarelo, ala conservadora do modernismo paulista, que defendia as tradições regionalistas representadas pelo mito bandeirante como matriz da brasilidade. A geografia era a chave explicativa deste pensamento que apregoava a defesa das fronteiras contra as “invasões bárbaras” das ideias cosmopolitas. Mas essa visão não era consenso entre os paulistas. Mário de Andrade alertava para a história que criava um ritmo próprio de temporalidade. E este sinalizava o modo de ser e a cultura de cada nacionalidade. A década de 1920 foi momento chave de disputas simbólicas reunindo intelectuais de distintos estados que defendiam distintas visões da nacionalidade brasileira. O que era a nação e o que era a “anti-nação”? Quais as ideias e valores que identificavam um e outro polo? Na realidade, essa discussão já mobilizava os intelectuais desde finais do século XIX. Euclides da Cunha e Lima Barreto diferiam sobre a questão. Para Euclides a raiz da nacionalidade brasileira estaria na “civilização mameluca dos bandeirantes” e São Paulo deveria ser o foco da história do Brasil. Lima Barreto achava que eram os mulatos do litoral que iam garantir a homogeneidade étnica do país, devido a sua capacidade de adaptação. A questão ia além da etnia, pois o escritor considerava que a cidade de São Paulo era a capital do espírito burguês. Mas foi na década de 1920 que o imaginário carioca começou a tomar forma sistemática. E a configuração geográfica da cidade, em grande parte, serviu como fator legitimador dessas narrativas. O mar tornava o carioca sonhador, as montanhas faziam do mineiro um ser introspectivo enquanto as planícies levariam os paulistas às expedições de desbra-

117


vamento do território nacional. Acreditava-se que a

que incentivava o caráter emotivo, imaginoso e so-

geografia montanhosa do Rio servindo de décor ao

nhador dos seus habitantes. A própria Sociedade de

mar compunha um quadro de tamanha beleza que

Geografia do Rio de Janeiro definia a cidade como “ci-

provocava a dispersão das energias produtivas. Aver-

dade dos sentidos” dada a exuberância da sua nature-

são ao trabalho, atração pelas festas.

za, sobretudo quando descortinada das montanhas.

O cenário descortinado do Pão de Açúcar, Corcovado e Floresta da Tijuca ajudaram a reforçar a imagem de

uma nova nomenclatura da cidade.

uma cidade-cenário, balneário, um lugar quase mítico

Silvio Romero alertava para o enorme risco que re-

oferecendo, através da sua gente simples, experiên-

presentava a influencia francesa no Brasil, sobretudo

cias de humanidade e de êxtases estéticos e religio-

na capital, contribuindo para agravar uma natureza já

sos. Mário de Andrade e Albert Camus (em seu Jor-

propensa aos prazeres estéticos, corpóreos e dioni-

naux de Voyage) deixaram testemunhos eloquentes

síacos. Capital cultural do mundo, sede do cosmopo-

de suas visitas aos candomblés e macumbas nos su-

litismo e do encontro de culturas, Paris era vista como

búrbios cariocas. Jornalistas subiam os morros para

uma ameaça ao “Brasil real”, interiorano, onde jaziam

contar ao publico suas experiências. Em Mistérios do

as verdadeiras raízes da brasilidade. Se a maior parte

Rio, Benjamin Costallat declarava após sair de um bar-

dos intelectuais defendia a entrada do Brasil na mo-

racão onde fora consultar um pai de santo:

dernidade, existiam vários projetos em jogo, distintas

“ - ... senti uma infinita melancolia em não ser mulatinha e não acreditar em feiticeiros!” Imagens românticas, exóticas e também preconceituosas, claro. Mas que reforçavam a cidade como lugar de culturas que corriam a margem da órbita oficial. Oferecendo outras percepções e valores, o Rio era visto pelos intelectuais e artistas como passagem ritualística da mesma forma que Paris, com as devidas diferenças de legitimidade.

118

Sugeria que os acidentes geográficos inspirassem

matrizes civilizacionais. A meta do progresso urbano industrial e tecnológico, junto aos ideais da disciplina e da contenção, se inspiravam no modelo civilizatório dos Estados Unidos e da Alemanha. A arte e os valores estético-filosóficos seriam encampados pela matriz francesa. Os hábitos da boemia artística de Montmartre, o flerte nos boulevards, o mardi gras, e os bailes de máscaras do carnaval parisiense fascinavam os cariocas. Mas eram as danças que exerciam especial atrativo, sobretudo a

Mas para alguns intelectuais, geralmente egressos do

do cancan. No início do século XX, o Rio também fasci-

interior, o Rio representava o fantasma do contágio

nava Paris quando o maxixe tomava conta dos palcos

cultural devido à sua situação de cidade portuária,

franceses, logo ganhando o mundo. O casal Antonio

com acesso direto às influencias estrangeiras. Rio,

Lopes Amorim Diniz e Maria Lina ganhou destaque

Buenos Aires, Paris e Lisboa comporiam o mapa das

na imprensa internacional durante a sua tourné pelas

“nações meridionais”, reforçando uma vida cultural

principais capitais europeias, passando também por


Constantinopla e Nova York. O fato desencadeia as

tância das ruas como veiculadora de linguagens, com-

mais diversas reações. Delírio entusiasta, condena-

portamentos, valores e formas de vivenciar o espaço

ção, censuras, ponderações intelectuais... Silvio Ro-

urbano. Zé povo, melindrosas, o português da venda,

mero em discurso inflamado observava ser “quase

malandros, guarda civil, capoeiras, mulatas sestrosas,

impossível falar a homens que dançam”.

políticos de cartola, banhistas e dandys fazem parte da

O fato é que o maxixe pegou e o Rio mais uma vez

galeria dos personagens cariocas.

ganhou espaço nas manchetes internacionais como

Dentre eles destaca-se a figura do dandy, que drama-

“cidade dos sentidos”. Embora o casal de dançarinos

tiza com intensidade a nossa modernidade. Paulo Bar-

não fosse mulato, a ideia da sensualidade da dança

reto, o João do Rio, foi consagrado como exemplo do

era sempre evocada através da natureza tropical dos

dandismo à brasileira tendo construído, ao longo da

corpos brasileiros que, nos seus movimentos lasci-

sua vida, um tipo e uma obra nos quais se imortalizaria

vos e dengosos, materializavam heranças do sangue

enquanto tal. Inspirando-se na poética de Oscar Wil-

africano. Este imaginário exótico que enfatizava o es-

de e Baudelaire, o cronista conseguiu dramatizar os

pírito dionisíaco da cidade foi amplamente divulgado

aspectos desconcertantes de uma modernidade que

através da literatura, das artes plásticas, da música,

tentava fazer do Rio uma “Europa possível”, contras-

do cinema e da propaganda. Gerando visões simpli-

tando essa imagem a cada momento com a culturas

ficadoras, estereotipadas, mas também míticas e en-

das ruas. A visão crítica da modernidade baudelairiana

cantatórias, tais imagens também encontravam certa

experimentada como ambivalência de valores na jun-

ressonância na realidade histórica.

ção das tradições do passado ao presente alcançaria

A história da cidade do Rio de Janeiro e do farto ima-

este personagem quase ao paroxismo.

ginário que se construiu a seu respeito estão direta-

Na sua crônica Alma encantadora das ruas, o cronista ex-

mente relacionados ao fato de ser uma cidade de fun-

pressa com clareza a que veio, marcando o seu lugar na

ção político-administrativa. A cultura oficial e oficiosa

vida e na literatura. Andar pelas ruas do Rio registrando a

conviveu e ainda convive com uma gama muita rica

história miúda do cotidiano é atividade de conhecimento

de tradições de origem africana e indígena, misturan-

e de consciência. “Flanar é perambular com inteligência”,

do-se a toda sorte de influencias locais, regionais e

adverte o nosso cronista. Ao vestir a máscara do flanêur,

também imigrantes. Polo aglutinador e irradiador de

João do Rio caminha pelas pegadas de Baudelaire. Fren-

culturas, o Rio de Janeiro viveu os impasses da moder-

te ao choque das experiências, assume uma atitude de

nidade nas ruas da cidade cujos tipos foram flagrados

defesa combinando maldição e ironia.

pelo olhar arguto dos caricaturistas. Nas revistas de humor de grande circulação, dentre as quais Careta, Fon-Fon e D. Quixote, encontramos um testemunho de época extremamente rico expressando a impor-

Outros intelectuais cariocas foram simpáticos ao dandismo, dentre eles, Elísio de Carvalho e Benjamin Costallat. Percebia-se este personagem como expressão de uma sensibilidade intelectual marcada

119


pelo estranhamento, solidão e sentimento de aban-

sendo associada ao imaginário dionisíaco da beleza,

dono experimentado nas metrópoles urbanas sem

sedução, mas também ao do perigo. E este imaginário

alma. Críticos da modernidade, tais personagens dra-

tem claras raízes históricas, sendo fruto de um mo-

matizavam a perda de valores representada pela as-

mento em que se buscava definir no cenário internacio-

censão de uma sociedade que tendia a entronizar os

nal o que significava “ser brasileiro” e “ser moderno”.

valores mercantis. Nas páginas do Correio Paulistano e na Revista do Brasil o dandy é visto como caricatura síntese da nacionalidade brasileira ombreando com o Jeca Tatu. De distintas maneiras, ambos corporificariam a melancolia, passividade e ausência de pensamento incompatíveis com o propósito de se criar a nação, apelo bombástico no contexto do pós guerra.

to contemplativo versus espírito empreendedor: são construções estereotipadas, mas que certamente ofereceram elementos cognitivos e identitários servindo para organizar ideias, produzir referências de autoconhecimento e de ação para distintos grupos. “São Paulo dá café, Minas dá leite e Vila Isabel dá sam-

O imaginário do artifício e da máscara como defesa de

ba”, canta Noel Rosa no seu Feitiço da vila, mostrando

uma sensibilidade social ameaçada, veiculado através

que ideias vão sempre além, expressando caminhos

da figura refinada do dandy, não deixa lastros visíveis

mais amplos das sensibilidades sociais.

na vida carioca. Tradicionalmente, não pensamos no carioca como um ser solitário, melancólico, maldito. Mas talvez a máscara tenha sido deslocada para um outro domínio: o da festa. As revistas de humor cariocas são pródigas nesta ideia. O carnaval é considerado o momento da transfiguração da nacionalidade, pois se retiram as máscaras que se usam durante todo o ano. A nacionalidade é um artifício, o carnaval a possibilidade de revelação. A Gazeta de Noticias, de 09/02/1893, testemunha a força deste imaginário: “O carnaval é a onda que as conveniências contém dentro de uma máscara anual e que aberto o dique, espalha-se desregradamente inundando toda a sociedade. Depois de um ano inteiro de temperança, tendo cada um que representar um papel fora muitas vezes de sua índole, do seu temperamento, das suas paixões, a sociedade tem necessidade de uma folga ...” De alguma forma o a cidade do Rio de Janeiro continua

120

Litoral versus sertão, boemia versus trabalho, espíri-


121


RIO DE JANEIRO E CINEMA: OXIMORO por Hernani Heffner Conservador-chefe da Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, professor do Curso de Cinema da Universidade Pontificia Catolica, Hernani Heffner vem trabalhando nas ultimas décadas como pesquisador, curador, restaurador e professor relacionado a História do Cinema Brasileiro. É referência em preservação audiovisual no Brasil, responsável pela restauração de uma dezena de filmes em longa parceria com acervos como os da Cinédia e Cinemateca do Mam-Rj.

122


Rio de Janeiro e Cinema não rimam, não casam, não formam circuito de representação – imagem cinematográfica da cidade transformada em imagem mental da cidade, reapropriada como clichê, estereótipo, “paisagem”, formalizada como discurso audiovisual recorrente... – no máximo se olham à distância, cada um seguindo seu caminho. Não se recorre ao cinema como referência do aglomerado urbano conhecido como Rio de Janeiro. Literatura, música, jornalismo e até mesmo o teatro foram mais pródigos, com a possível exceção do filme Rio, 40 Graus, de Nelson Pereira dos Santos, responsável pela consagração da canícula e da metáfora infernal, embora revire esses clichês pelo avesso e lhes dê o rosto devido. As “imagens” que circulam, que permanecem, que alimentam o imaginário da “cidade purgatório da beleza e do caos” provém mesmo de outras fontes. Não que não existam filmes realizados no Rio de Janeiro, dos quais uma parcela considera mais diretamente algum aspecto da cidade como importante para a formação da paisagem e do “quadro mental” carioca. Na composição de uma mostra sobre os imaginários cariocas seria possível uma seleção partindo daqueles títulos que assumem claramente uma indicação adjetiva: Os mistérios do Rio de Janeiro (1917), As sete maravilhas do Rio de Janeiro (1934), Rio Fantasia (1957), Rio Babilônia (1982). Ou, ao contrário, poderia se partir daqueles que se colocam como aparentemente neutros: Cidade do Rio de Janeiro (1924 e 1947), Rio Zona Norte (1957), As cariocas (1966), Baixo Gávea (1986). Seria possível ainda identificar séries como a dos filmes “amorosos” - Esse Rio que eu amo (1960), Rio, verão e amor (1966), Rio, eu te amo (2014) -, os “enigmáticos” – Sertão carioca (1941), Ipanema Adeus (1975), O Rio nos pertence (2013) -, ou os “técnicos” – O Rio em aeroplano (1921), Movimento urbano do Rio de Janeiro (1935), Rio em chamas (2014). Todos parecem, assim, eleger a cidade como espaço privilegiado e transparente. Uma cidade marcada por um conjunto de características específicas ou mesmo únicas, responsável em alguma medida pelo ethos resultante. Mas até que ponto a paisagem intervém na configuração do ser carioca? Que paisagem, a da praia ou do “sertão”? E que carioca, o suburbano,

123


citadino ou morador da zona sul, com extensão do

impor o apagamento de suas inúmeras faces (e repre-

Leme ao Pontal? Bacana ou da “classe pobre”? Se os

sentações) antigas e contemporâneas. Quem discorda

muitos Rios de Janeiro podem inspirar múltiplas abor-

ganha a dubiedade da loucura, como Lima Barreto. O

dagens cinematográficas, como se deu de fato a cons-

Rio que nos pertence é o da loucura nada dissimulada

trução dessa geografia visual, física e humana? E qual

da juventude eterna, enfrentada em um cinema recen-

o papel do clichê dentro dela, ser mero estereótipo, ou

te pelo viés do exame da decadência histórica. Como

funcionar como cortina de fumaça para a cidade cifra-

memória esgarçada e já muito distante, a cidade vive

da em seus códigos de mobilidade, figurino, vocabulá-

de suas glórias já desbotadas, ainda que estas sejam

rio, panelinha, modernidade? Qual o espaço da moda?

rochas maciças espalhadas por toda a região desde

Certamente não o que sai no jornal com meses ou

tempos imemoriais. É preciso filmar seu mistério, as-

anos de atraso e que já saiu de moda. Virar manchete

sim como desencavar o Valongo, maior porto de escra-

não é um bom sinal, não é de bom tom e não garan-

vos do mundo, próxima atração turística do Porto Mara-

te entrada em lugar nenhum. Não basta correr “pra

vilha, movimento natural da cidade que reverte críticas

galera” para formar o bonde. Ao contrário, o jogo de

em virtudes duvidosas e imorais.

dissimulação da “cidade-mulher” exige preparação, experiência, coragem. Não é uma cidade de losers, e sim de aventureiros, que devem escolher entre serem solares ou noturnos, como sempre sugeriu Noel Rosa, compositor que contraria todos os clichês do artista popular carioca. A descida aos infernos e seu retorno às manhãs de sol no alto do morro requer não olhar para trás, para o passado, pois a paisagem sempre fica à frente, na frente. Só aqui o Orfeu tem que ser necessariamente Negro.

Não se deve ver imagens em movimento do Rio de Janeiro como meros signos de uma paisagem entranhada no imaginário. Na real, a maioria dos moradores da cidade jamais saiu de sua zona de conforto, quer seja a Norte, a Sul ou a Oeste. A necessidade de ir ao outro lado da cidade vira aventura rabugenta e resmungona. Realizar um longa metragem em Santa Cruz, Campo Grande e Guaratiba, ao contrário, pode resultar em sublime desmascaramento dos estereótipos, ou, melhor

O Rio de Janeiro não olha para trás, pois quando o faz

do que isso, na construção de novas caricaturas em

mergulha em tragédia. Cidade palimpsesto que escon-

chave crítica; que o diga Maria do Rosário em sua céle-

de, às vezes bem, todas as suas nódoas, todas as suas

bre interpretação/dublagem de uma professorinha su-

abjeções, o que a transforma na cidade da liminaridade

burbana libertária na obra prima de Waldyr Onofre, As

por excelência. Em nenhum outro lugar, elevador “so-

aventuras amorosas de um padeiro (na zona oeste). Se

cial” e elevador de “serviço”, “patrão” e “menina”, mor-

o inverno no Leblon é quase glacial, a inversão operada

ro e asfalto, Zona Sul e Zona Norte, são tão bem deli-

em Recife Frio cairia como uma luva no entorno do ma-

mitados e são tão borrados no infindável gato e rato do

ciço da Tijuca, não fossem as duas cidades espelhos do

jogo social. Jogo de cintura para se reconstruir como

mesmo movimento de ocupação do litoral.

algo sempre novo, jovem, belo. Jogo de poder para

124

Para uma cidade camuflada, uma arte de camuflagem.


Decadência, camuflagem, oximoro. Palavras. Jogo. Em

do carioca, que no caos está o seu encontro com a pai-

seis vocábulos à procura de uma imagem uma tenta-

xão, que no paraíso só há tragédia, que na solidão está

tiva de desvelar os retratos cinematográficos de uma

o rito de passagem, que na promessa está a morte e

cidade, desde os perdidos dos primeiros 30, 40 anos,

que no mito tudo se reinicia. Ratos e urubus larguem

dos quais sobraram pouco mais do que alguns frag-

minha fantasia.

mentos, até as recentes tentativas de compreender a lassidão do jogo quase terminado, busca-se a pele

Corte.

embaixo da pele, as entranhas por detrás da imagem.

No início a representação da cidade do Rio de Janeiro

Enquanto outros estados/cidades tentam entender o

pelo cinema brasileiro (e não só por um cinema cario-

que é entrar no jogo capitalista, com a consequente

ca, como nos lembra o ferino e preciso Cassy Jones, o

destruição das coisas belas do passado, um passado

magnífico sedutor, de Luís Sérgio Person) desconside-

tradicional, cuja ordem pouco havia se alterado até

rava os clichês, talvez porque eles ainda não tivessem

bem pouco tempo, fazendo dessa beleza expressão

se consolidado. A estátua do Cristo Redentor ainda

do conservadorismo e do autoritarismo de sempre,

existia, por exemplo, e mais importante do que isso,

o Rio de Janeiro lida há algum tempo com sua “deca-

a cidade ainda engatinhava na resolução de sua sín-

dência”, com sua internacionalização, com sua des-

tese urbana do ponto de vista social e humano. Pre-

personalização e, talvez, com o brevíssimo momento

cisava abrir as alas, considerar a contribuição negra e

de ver refletida no espelho sua face sem retoques,

inventar uma classe média arrojada e blasé. Os filmes

maquiagem, máscaras. Momento raro para penetrar

preocupavam-se com os detalhes mais do que com a

na camuflagem através de uma arte esquecida ou vi-

moldura-paisagem. Como escrevi em um texto antigo

venciada de maneira oblíqua por sua população, o ci-

sobre o assunto, faltava aos filmes as referências con-

nema. As seis palavras como chaves que desvendam a

solidadas culturalmente. A invenção do carioca prece-

criptografia citadina, que apontam para o reflexo nu da

deu a invenção da cidade maravilhosa, cujo percurso

donzela banguela, como queriam Claude Levi-Strauss

clássico passa certamente pela abertura da Avenida

e Caetano Veloso.

Central, pelo adentrar os morros, pela constituição e

Não se pode jogar esse jogo por meio de palavras. Basta ver os filmes, deixar-se impregnar deles, observar cada mínimo movimento, de corpos, luzes, sons, movimentos, cores, cinzas, piscar d’olhos, arcos de céu, como balas de estalo machadianas, mas sem procurar as garotas de Ipanema ou os meninos do Rio. É preciso ir buscar lá no fundo da imagem (e do som), isto

uma orla chamada Copacabana, replicada do Leme ao Pontal, em que pese as especificidades de Ipanema, Leblon, Barra, pela redescoberta do carioca, escondido no subúrbio, como o fez a certa altura Cartola no arrabalde sul da cidade, e finalmente pela finalização da “Cidade Nova”, associada agora ao “porto maravilha”, tema de tantos filmes recentes.

é, na superfície da tela, os elementos que compõem a

Acompanhar este percurso não é ver os filmes em or-

camuflagem. Descobrir que no medo está a coragem

dem cronológica, mas confrontar a cidade real, com a

125


cidade sonhada em forma de festa ou pesadelo pelos cineastas. Perceber que o percurso acima é só um entre muitos possíveis. Que há teorias sobre a cidade, como fonte de uma cultura modernista brasileira, no grupo experimental de 68 (Bressane, Sganzerla, Lanna, etc.), exímios escavadores de chanchadas psicodélicas, cujas fontes certamente são gênios como J. Carlos, Mário Reis e Adhemar Gonzaga. Assim como há plenitude na arte do malandro Otelo, que driblou a vida para ser um dos maiores atores de cinema do século XX e encarnação do carioca sem o ser. Basta ver a interpretação de Espírito em Rio Zona Norte e apreciar a síntese quase absoluta no momento lírico, onírico, oximoro, de apresentação do Malvadeza Durão, bamba do morro em derradeiro momento, despido de tudo, até da vida, menos de sua grandeza etérea. Há muito da cidade nesse momento, revelando o quanto essa paisagem fugidia sempre importou pouco, ou, na verdade, sempre funcionou como moldura, não para instaurar a representação mas para dissimular a sua pouca importância.

126


127 FILMAGENS DO LONGA-METRAGEM RIO, ZONA NORTE


SUGESTÕES PARA QUANDO VOLTARES À MONSTRUOSA E MUITO CINEMATOGRÁFICA VILA DE SÃO SEBASTIÃO por Felipe Bragança Felipe Bragança, 34, cineasta. Co-dirigiu 2 longas metragens ao lado de Marina Meliande e dirigiu 5 curtas metragens - todos presentes em festivais internacionais como Cannes, Locarno, Rotterdam e Berlin. Escreveu o roteiro de filmes como Praia do Futuro e O Céu de Suely, de Karim Ainouz. Em 2013, foi artista convidado do DAAD-Berlin onde desenvolveu o roteiro de seu primeiro longa-metragem solo - em finalização.

*Para Ricardo Miranda 128


1. PREMISSAS Sugiro que sente-se diante da Baía de Guanabara - onde o cinema talvez tenha começado no país - e sinta o cheiro que ela tem. Com a Cinemateca do MAM às suas costas, onde se escondem Bressanes, Sganzerlas, Davids Neves, e outros monstros que filmaram e filmam esta cidade que gosta tanto de ser a maior ferida exposta dos seus olhos de cineasta, faça o que eu recomendo: senta-se, sente o cheiro de esgoto da água e de vinagre dos filmes e lembra que cinema ocupa espaço, pesa, e se perde no tempo da sua cidade como fantasmas procurando um território a assombrar. O cinema é eterno mas não divino, o fantasma está mais para uma aparição das mais cruéis. Para filmar, então, o Rio de Janeiro, esse porto abandonado de si, recomendo respirar essa mistura de liberdade e prisão que a Baía nos dá, e em seguida caminhar entre a beirada da Baía de Guanabara e os ares vindos das latas de história escondidas nos porões da Cinemateca. Na caminhada, fechar os olhos e ir entendendo que para se filmar essa cidade, será preciso intuir o vulto dos clichês e os ícones que a cercam. Essas montanhas de cinema apinhadas em volta da água cercada da Guanabara - boca banguela sob véu de tantos paraísos idealizados e filmados, cartões postais de uma fuga para si mesma, de telenovelas e essa coleção de máscaras de mergulho em água lodaçal de mangue esquecido. Poucos lugares terão tanta memória cinematográfica quanto essa orgulhosa vila portuária transformada em balneário paradisíaco e inferno urbano por tantos e tantos anos de maquiagens e projeções de sonhos. 2. TEXTURA Sugiro que tire os sapatos antes de tirar a câmera da mochila. A história de uma cidade como essa é feita das camadas de chão que nela encontramos. Antes do lugar da câmera, o lugar de seus pés. Antes do tripé, as solas e seus calcanhares. O Rio de Janeiro de cinema que vai encontrar é lamacento como os mangues-gengivas que cercavam a baía, borrachento e quente como o asfalto das avenidas que amassaram as pequenas vielas de pedras irregulares, úmido e irregular como o chão escuro de terra que sustenta a floresta projetada no coração da cidade, pedregoso e íngreme

129


130

como as grandes rochas que sempre estiveram lá. Vai

obscura e cínica do mar que, não a serve, à espreita

perceber, ou lembrar, que essa cidade é uma sucessão

com ódio. Sugiro que na volta de Paquetá até a Praça

de camadas e véus sob seus pés. Perceberás que para

XV, deixe a câmera olhando por si a aproximação des-

filmar a cidade, vai caminhar por muitas máscaras, sob

ta cidade - para que seu equipamento se aclimate na

seus passos descalços - não só as máscaras do carna-

monstruosidade dessa contemplação. A forma como

val, mas as máscaras dessa cidade feita para ser outra

sua câmera flutuar, vai te ajudar a entender que tipo

Lisboa, outra Paris, outra NY, outra Miami, outra Dubai,

de navio-barco-plataforma pretende usar para aden-

outro Rio de Janeiro. Sugiro que antes de enquadrar o

trar a terra e filmar seu pequeno filme náufrago. Fazer

horizonte recortado e tão convidativo da cidade, olhe

cinema é pensar em escalas. Fazer cinema no Rio, é

para o chão dos seus pés sem sapato e veja que está

pensar na escala do naufrágio pelo qual pretende se

pisando em uma sucessão de telas muito finas de ci-

movimentar: suas pans, seus travellings, suas câme-

nema - sobrepostas como em um caleidoscópio tão

ras caminhando, até suas âncoras em tripés - tudo vai

fragmentado que, para os mais distraídos, pode pare-

se definir nesse naufrágio inaugural cinematográfico

cer-se com chão firme.

com o qual você desembarcará aqui - vindo de Paque-

tá, de alhures ou da sua sala-de-estar.

3. MOVIMENTOS

Sugiro que vá até Paquetá - onde nossos filmes todos

4. QUADROS

de pirata nunca foram feitos. E no caminho, observe as

Sugiro sentar no meio da Floresta da Tijuca e ficar ali

diferentes escalas de barcos, navios e plataformas de

cercado e esquecer que existe cinema. Subir e descer

petróleo que te observam e se movimentam. Filmar

uma trilha de aventura não basta, é preciso torcer os

será, sempre, uma questão de escala e portanto su-

pés e esquecer da civilização e do cinema. Ambos,

giro que reflita com que tipo de embarcação pretende

se possível. Nenhum plano dentro do tempo dessa

se lançar ao desafio. É uma cidade marítima essa para

cidade vai começar senão ali onde a cidade projetou

a qual voltaste com seus olhos - marítima não por

com um sonho uma floresta selvagem que seria

causa da amplidão das praias dos postais, mas pela

seu passado. Selvageria planejada e artificial, agora

monstruosa memória que essas águas guardam de

monstra recorrente da verdade: não há ordem aqui,

tanto sangue derramado, de tantos povos perdidos

há, no máximo, a espera pelos sentidos. A contem-

afogados, de tanta batalha entre a vontade da ordem

plação da floresta te ajudará a encontrar linhas onde

citadina de controlar o mar que a engolia, e aterrá-lo,

não há linhas, enquadros onde só há desmesura. E vai

fazê-lo seu em sua história; e a vontade do mar de ser

perceber que qualquer enquadramento desta cidade

eterno como é. Para filmar o Rio de Janeiro, vais ter

é fruto dessa interessante farsa: não há ponto de fuga

de aceitar que, seja qual for sua embarcação, vai estar

possível. No escuro da floresta, vais perceber que esta

instalando seu equipamento de cinema em uma zona

é uma cidade centrífuga, é uma cidade que gira para

de silenciosa batalha entre esta urbanidade e a raiva

dentro. Zoom in do zoom in. Sugiro que considere seu


cinema como esse mergulho completo na fantasia do

importa com seu bem-estar criativo ou com a beleza

enquadramento, que, acuo, nessa cidade, é sempre,

do que crias. Sugiro que percebas que seu cinema não

desde já, poesia e teimosia - nunca conformação.

é bem-vindo aqui. Que burocratas e aristocratas ain-

No Rio de Janeiro do cinema, e sugiro que percebas o

da odeiam este lugar para o qual foram sequestrados.

quanto o realismo no Rio suspira opressões no teu ou-

Que o mínimo gesto criativo sempre vai estar no cora-

vido, a imagem é sempre esse jogo de fingimento do

ção de um certo mal-estar do corpo, um certo delírio

quadro, do todo. Você não vai desenhar a cidade por-

da mente e um certo desbunde político. Os rostos e

que ela é como ela é - você vai filmar a cidade porque

mãos de seus personagens, os rostos e mãos de sua

ela te escapou e te deixou ali, quieta ou quieto, em um

equipe, vão estar todos tomados por essa atmosfera

descampado onde só cabem você, sua câmera e sua

viscosa da cidade - nesses vales imensos que vão da

respiração em vigília nesse desejo de selvajaria que

Guanabara até Campo Grande, que nos dão a sensa-

nunca retornará porque, me perdoe, você se tornou

ção de deserto e desespero e labirinto. Todo cinema

cineasta aqui.

feito no Rio de Janeiro vai lidar com esse imenso des-

conforto seminal que pode ser a vontade de matar a

5. ROSTOS E MÃOS

todos ou de dançar no meio da rua sem roupa. Sugiro

Sugiro muito suor em suas mãos, no rosto e no corpo.

que perceba que só se filma esta cidade por riso e fe-

Dizem que em Bangu não há brisa. Pois vá até lá mes-

bre, por raiva e comédia, não por conforto ou prazer.

mo assim. Dizem que no Méier o tempo pára ao meio

E sob esse visgo, os rostos brancos, pardos, pretos,

dia. Pois vá até lá. Dizem que na Baixada Fluminense

índios, estão todos ali, pegando fôlego e pensando:

o calor de Dezembro já matou dois papais noéis. Pois

quando esse calor terminar eu vou voltar ao paraíso

vá até lá. Toda psicologia de personagens de que pre-

que nunca veio. Sugiro que percebas que filmar essa

cisas, está ali. Antes que comece a escrever qualquer

cidade é um vício de esperar um paraíso impossível, e

cena, diálogo, ou anotação de narrativa - deixe suas

que, como o calor daqui não te deixa opções: vais so-

idéias suarem até a febre ou o ridículo. O fixo da psico-

frer e sofrer e não haverá banho/limpeza/bálsamo que

logia dos filmes dessa cidade tem alguma coisa a ver

te ajude a se sentir feliz ou limpo de novo. Só se filma o

com esse desespero emergencial do corpo debaixo do

espírito do Rio de Janeiro resmungando ou cantando

sol e a erupção de nossos póros. Dessa nossa desele-

ou morrendo. Os rostos e mãos da história de nossos

gância essencial surgem nossas narrativas. Antes da

filmes, são testemunhas. O rosto e as mãos desse

iconografia de qualquer sensualidade, qualquer ale-

nosso cinema são infelizes - alegres até, mas sempre

gria, qualquer tropicalismo - antes de qualquer feti-

infelizes. Sugiro que enterres seu rosto de felicidade e

che do delírio, está esse suor indescritível dos dias de

seu coração na curva do Rio Maracanã, e só então cha-

calor nesta cidade e que vai colar em todo e qualquer

me sua equipe para a rua e deixem seus rostos e mãos

cinema feito aqui. Sugiro que percebas, assim, que a

agirem por si.

atmosfera da cidade é viscosa e grudenta e que não se

131


132

6. TEMPO, TRILHOS E PONTES

-apolínea dos editais os quais mastiga todos os anos

Sugiro que pegues um trem na Central e vá até Para-

como moedas, mas em uma reforma sua, do tempo

cambi e se concentre no sacolejo do tempo nos trilhos

das vozes e do território das vozes que te erguem

mal costurados da cidade e a velocidade com que ela

pontes entre fronteiras. Sugiro, por fim, que você dei-

muda nas janelas turvas dos vagões enquanto as vo-

xe o medo de lado e faça mais amigos e mais inimigos

zes de vendedores, pregadores e oradores de toda

do que os limites da história da cidade - este desterro

ordem vão te engolindo. Que se concentre no tempo

tropical onde te abandonaram para ser feliz sozinho -

da viagem que vai se fragmentando entre muros de

quer te deixar fazer.

tijolos a mostra, na Leopoldina morrendo, cimento

salpicado, casas baixas, fábricas abandonadas, opinas

7. LUZES E NOMES

carecas, e colunas de fumaça subindo de montinhos

Sugiro que ande por Copacabana bêbada ou bêbado.

de lixo às margens da linha em um tabuleiro não-

Perambule por 24hs e, se possível, durma nas calça-

linear, trans-narrativo de possibilidades de visão. Que

das. Alugue um apartamento junto de um amor passa-

imagines uma cidade onde não há uma linha costeira

geiro de carnaval em Copacabana e divida seu tempo

balneária que possa resumir as miragens daqui. Sugiro

entre o cafofo, as ruas e luzes. Porquê todas as luzes

que o labirinto de ruas cortadas pelos olhares do trem

da cidade existem em Copacabana. Todas as luzes

vão desmontando e recortando suas expectativas

persistem, piscam, falham, exageram, se alugam, se

de entendimento dos atos, das ações, das reações,

apagam em Cocapabana. Sugiro que do sol ao néon,

das movimentações, até ter a sensação de que a ci-

as luzes da cidade sejam recolhidas das calçadas do

dade que narra é uma rede de fábulas sobreviventes,

bairro. Tão sozinhas são as luzes de Copacabana na-

de uma cidade que foi acumulando remoções e es-

quela multidão desarvorada. Sugiro que ande com um

quecimentos, expulsando as pessoas de si e assim

caderno anotando as cores e as intensidades de todas

se expandindo mais, virando essa rarefação cheia de

as cores de Copacabana, e também os nomes dos

segredos enraizada por todos os lados. Sugiro que

moços e moças, com quem vai cruzar nas esquinas.

talvez o seu cinema não seja obra tua, objeto de teu

Vai levar talvez um mês fazendo isso, na tarefa dessa

relicário, mas um desses pedacinhos removidos de

recolha luminosa, e ao poucos vai surgir também a

si, também tirado de sua casa e seu lugar, também

vontade de recolher as sombras que as povoam. To-

considerado menor diante da paisagem monolítica e

das as sombras da cidade se refletem, se escondem,

linear do poder instalado das imagens. Sugiro que ao

se camuflam, se compram e se alugam nas ruas de

chegar em Paracambi você nunca mais volte e faça

Copacabana. Sugiro que com esse caderno e luzes e

de lá seu centro da cidade, sua Ipanema, sua Copaca-

sombras anotadas você perceba que não há paredes

bana, sua orgulhosa capital do cinema. Sugiro que lá

no cafofo de aluguel naquele prédio-formigueiro que

você construa um mapa novo e que só depois do mapa

não possa ser rasgada, atravessada, devassada por

novo você escreva seu roteiro, não na forma máscula-

algumas dessas suas novas ferramentas. Converse


com seu amor passageiro de Carnaval e explique que

dos para a observação daquilo que em seu filme será in-

precisa partir porque tem um filme a fazer. Aproveite

visível mas estará em todos os cantos e em todos os fra-

o choro, a lágrima ou o suor para anotar as últimas co-

mes: a morte. Essa sugestão é um aviso, não uma opção.

res. Entregue o caderno de luzes e sombras para esse

amor que nunca mais poderás ver. Saia novamente

9. MÁSCARA E RAIVA

pelas ruas de Copacabana com a memória do amor,

Sugiro que vá a Marechal Hermes no Carnaval e use

das luzes e das sombras. Saiba que todas as luzes que

uma máscara de bate-bola. A máscara de bate-bola

vai buscar em seus filmes serão fruto desse caderni-

tem esse efeito de criar um véu sobre a realidade vista

nho perdido de anotações - serão sonhos e pesadelos

que ainda é a realidade vista mas é ela finamente re-

que terás para sempre com as luzes todas recolhidas

cortada por sua fantasia. Sugiro que sinta a liberdade, a

em Copacabana. Sugiro que acorde de ressaca em

raiva e a solidão debaixo da máscara - quando se cruza

uma calçada de Copacabana, reviste o próprio corpo

o coreto e as músicas ecoam vindas de caixas de som

e intua que toda fotografia da cidade começa sem câ-

instaladas em postes de luz. Sugiro que pense se esse

mera, sem carteira e sem dinheiro para pegar sequer

sentimento não tem algo a ver com seu desembarque

o metrô. Sinta uma saudade imensa daquele amor

na cidade e no cinema. Sugiro que pense que o cinema

passageiro e do caderno de luzes e sombras. E des-

daqui vai ser sempre e também uma fantasia raivosa,

sa saudade invente as luzes e os nomes do filme que

alegre e solitária que vai se vestir ao longo dos amigos

você vai fazer. Sugiro que observe Copacabana não

para se tentar desafiar o real monótono e militarizado

como objeto de seu cinema, mas como poço profundo

de nossas ruas. E que, como as máscaras, o filme será

de seu romantismo mais canalha, mais visceral e mais

essa farsa recortada de realidades que não te bastam,

bondoso - e faça filmes sabendo desses seus segre-

e que você vai usar não para se esconder mas para

dos luminosos da carne e da sombra.

mostrar como realmente se sente. A tristeza gigan-

tesca que carrega o clown, é a tristeza gigantesca de

8. FANTASMAS

uma beleza que nunca chega. Mas, é, ainda assim, uma

Sugiro que lembre o quanto o Rio de Janeiro gosta de

procura da beleza. Vista seu filme como quem veste

matar suas pessoas. O quanto não há uma esquina que

um manto completo de bate-bola e saia de casa sa-

não guarde seu fantasma. Sugiro que pare diante das

bendo que está sozinha mas não é o único, não é a úni-

ocupações desocupadas, sugiro que pare diante da

ca, não está na rua senão porque há mais gente como

Pedra do Sal, sugiro que pare diante do prédio aban-

você que acredita que a rua e o cinema, são os lugares

donado da Aldeia Maracanã, sugiro que pare diante do

mais importantes da sua cidade, que você construiu. E

esqueleto se desfazendo do Hotel Glória, sugiro que

que se morra nelas. E que se morra no cinema. Sugiro,

caminhe em volta da Candelária, sugiro que observe

por fim, que quando tentarem identificar seu corpo,

a Ponte Rio-Niterói, sugiro que pare cinco minutos de

você os lembre dos navios, dos piratas, da floresta,

respirar em Vigário Geral. São todos locais privilegia-

dos trilhos, do calor, das luzes e dos fantasmas e diga,

133


antes de ir, que tudo era apenas seu filme, sua alegria e

prensa local tratou os filmes feitos aqui com desprezo.

sua preguiça muito grande de obedecer.

Lembre-se do choro daquele casal mexicano ao ver

seu filme em um festival além fronteiras. Lembre-se

10. ALIMENTO E BANHO

do primeiro plano em que você filmou na vida em que

Sugiro que volte para casa cheio de areia, glitter e lama

a bateria da câmera morreu - e mesmo assim conti-

no corpo e tome um banho gelado. Saia em seguida e

nuaste. Lembre-se de Grande Otelo descendo aquela

monte uma tela de cinema na sua praça preferida da

ladeira do Leblon. Lembre-se que, apesar de tudo, não

cidade - que as praças ainda existem na cidade; da

aceitamos mais nesta cidade coronéis ou capitães de-

Pavuna ao Largo do Machado. Monte a tela e veja os

terminando o discurso de uma geração inteira. Lem-

filmes de seus companheiros de história cinemato-

bre-se que, apesar de tudo, não aceitamos ser pau-

gráfica recente que, como ti, planejaram sobreviver ao

tados por ninguém que não nossos próprios e muito

mar bravio e ao naufrágio inaugural do cinema carioca

delicados pesadelos. Lembre-se dos músicos, poetas

dos últimos 10 anos. Veja filmes de Bruno Safadi, Julia

e artistas de rua que você conheceu e que te ajuda-

Murat, Marina Meliande, Fellipe Mussel, Allan Ribeiro,

ram a ir além do cinema que você, ingenuamente, já

Rafael Saar, Eva Randolph, Daniel Caetano, Anita Ro-

habitavas como seu, como coisa tua. Lembre-se de

cha, Felipe Rodrigues, Cavi Borges e mais e mais gente

tudo isso e sorria; levante-se silenciosamente no final

que a praça é grande e boa para os olhos respirarem.

da sessão e atravesse a praça pública com um brilho

Relembre que Julio Bressane é um monstro dessa ci-

bom nos olhos. E - enquanto todos se olham de perto

dade em que habitas. Que Luiz Rosemberg toma café

depois de tanto tempo - abra seu corpo (alimentado,

todos os dias em Botafogo e tem bombas entre as

banhado e sombrio), vire a esquina e vá fazer cinema

pálpebras. Lembre dos gritos bêbados de cinema e

no Rio de Janeiro de 2016.

Cachaça daquelas noites no ODEON. Que os coletivos da Baixada, e outras margens, tem mais fome de cinema do que duas hollywoods. Lembre-se da revolta de 2014, daquele seu amigo levantando o dedo para aquele gestor público canalha. Lembre-se de ter tido que responder mais de mil vezes que o cinema carioca não se sintetiza ao maintream televisivo, Cidade de Deus ou Capitão. Lembre-se da sensação de exílio que compartilhou com alguns de seus companheiros. Lembre das sombras dos corredores da Cinemateca do MAM quando tentaram se desfazer da memória do cinema na cidade e muitos foram cercar o arquivo e impedir a loucura. Lembre-se das vezes que a im-

134


135


136

PROGRAMAÇÃO


EVENTOS Sessão de Abertura Seguindo a tradicão do primeiro-cinema, serão exibidos filmes brasileiros silenciosos dos anos 20 e 30, com acompanhamento musical ao vivo da Banda Bagunço, que mistura influências da fanfarra, carnaval carioca e do jazz de rua. Mesa: Iconografias Cariocas Nossos convidados Joaquim Marçal, Luciano Magno e Maria de Lourdes Horta expoem o desenvolvimento histórico de como o Rio de Janeiro foi imaginado pela fotografia, caricatura e pintura, respectivamente. Joaquim Marçal Ferreira de Andrade é mestre em design pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e doutorando em história social na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Pesquisador da Divisão de Iconografia da Biblioteca Nacional, é também professor de fotografia no departamento de Artes & Design e no curso de arquitetura e urbanismo da PUC-Rio, além de lecionar na grade de especialização em fotografia da Universidade Candido Mendes. É autor de História da fotorreportagem no Brasil: A fotografia na imprensa do Rio de Janeiro de 1839 a 1900 (Campus, 2003). Luciano Magno (pseudônimo de Lucio Muruci), nascido no Rio de Janeiro, tem dedicado sua vida à arte da caricatura. Em 2012, lançou o primeiro volume da obra “História da Caricatura Brasileira”, em 528 páginas e 90 capítulos, que recebeu diversos prêmios – dentre os quais o Prêmio Jabuti 2013, na categoria Livro de Arte/Fotografia e o Troféu HQMix como “Grande Contribuição”, da Associação dos Cartunistas do Brasil, sendo ainda considerado um dos 12 melhores livros do ano de 2012 pela crítica especializada de um dos principais jornais brasileiros, O Globo. Maria de Lourdes Horta é museóloga, graduada pelo Curso de Museus da Universidade do Brasil, atual Escola de Museologia da UNIRIO, doutorouse em Museologia pela Universidade de Leicester, Inglaterra, em 1992, defendendo a tese “A Semiótica dos Museus, uma nova abordagem da

137


comunicação museológica”. (“Museum Semiotics:

grupo vem participando ativamente no panorama das

a new approach to Museum Communication”). Pro-

artes contemporâneas.

fessora convidada e conferencista em diversas Universidades e cursos de especialização no Brasil e no exterior, é autora de inúmeros artigos publicados em revistas especializadas, sobre o tema dos museus, a educação e o patrimônio. Masterclass: O Cinema encontra o Rio

Bruno Safadi começou a carreira dirigindo curtas e sua filmografia inclui Na idade da imagem (2002) e Uma estrela pra Ioiô (2004), exibido no Festival de Roterdã. Dirigiu longas como Meu nome é Dindi (2007), Belair ( 2010), também exibido no Festival de Roterdã, e Éden (2013), premiado no Festival do Rio e de Gramado. Também em 2013 estreou o filme Uivo da Gaita em

Hernani Heffner abordará o olhar cinematográfico sobre o

Roterdã, um dos três longa-metragens que integram

Rio construido ao longo de mais de um século de história.

a Operação Sonia Silk.

Conservador-chefe da Cinemateca do Museu de Arte

Felippe Schultz Mussel é diretor, técnico de som direto

Moderna do Rio de Janeiro, professor do Curso de Ci-

em cinema e produtor. Graduado em Produção Cultu-

nema da Universidade Pontificia Catolica, Heffner vem

ral pela Universidade Federal Fluminense, onde dirigiu

trabalhando nas ultimas décadas como pesquisador,

o documentário Essa juventude (2005). É responsável

curador, restaurador e professor relacionado a Histó-

pelo som de mais de 30 filmes brasileiros produzidos

ria do Cinema Brasileiro. É referência em preservação

na última década, atividade pela qual recebeu premia-

audiovisual no Brasil, responsável pela restauração de

ções em festivais nacionais como o Festival de Brasília,

uma dezena de filmes em longa parceria com acervos

CinePE, Cinemúsica Conservatória e Jornada de Ci-

como os da Cinédia e Cinemateca do Mam-Rj.

nema da Bahia. Organizou e produziu o livroSebastião Barbosa – Afirmação da fotografia (Coleção Oi Futuro

Debate: Arte Carioca: um Futuro? Jovens artistas cariocas como Bruno Safadi, Felippe Mussel, Letícia Novaes (Letuce) e o coletivo de artes visuais Opavivará! debatem suas perspectivas atuais e futuras sobre a representação da cidade nas artes. OPAVIVARÁ! é um coletivo de arte do Rio de Janeiro, que desenvolve ações em locais públicos da cidade, galerias e instituições culturais, propondo inversões dos modos de ocupação do espaço urbano, através da criação de dispositivos relacionais que proporcionam experiências coletivas. Desde sua criação, em 2005, o

138

Arte & Tecnologia, Ed. Letra e Imagem, 2012), sobre a obra do fotógrafo amazonense. Em 2012 lançou o longa-metragem “Em busca de um lugar comum”, exibido em diversos festivais. Letícia Novaes é atriz, cantora, compositora, instrumentista e escritora. É integrante da banda Letuce, formada em 2007. Hoje a banda conta com três álbuns de estúdio: Plano de fuga pra cima dos outros e de mim, Manja Perene e Estilhaça. É autora do livro “Zaralha - abri minha pasta” (Editora Guarda-Chuva, 2015).


PROGRAMAÇÃO 8 a 27 de setembro de 2015 8 de etembro (terça-feira) 16h – Sessão de Curtas Cidade do Rio de Janeiro – Humberto Mauro, 1948, DVD (31min) Livre Rio, uma visão do futuro – Xavier de Oliveira, 1966, DVD (10 min) Livre Rio, capital mundial do cinema – Arnaldo Jabor, 1968, 35mm (14 min) Livre A cidade cresce para a Barra – Paulo Roberto Martins, 1970, DVD (10 min) Livre Na trilha do bonde – Virginia Flores, Rodolfo Caesar e Alexandre Fenerich, 2009, DVD (29 min) Livre 18h30 – Sessão gratuita de abertura, com acompanhamento da banda Bagunço O que foi o carnaval de 1920! – Alberto Botelho, 1920, 35mm (15 min) Livre Fragmentos da Terra Encantada – Silvino Santos, 1922, 35mm (40 min) Livre Jornal Carioca – Anônimo, 1930-1935, DVD (13 min) Livre Movimento urbano do Rio de Janeiro – Anônimo, 1935, 16mm (10 min) Livre

9 de setembro (quarta-feira) 16h – Cinema Novo – Joaquim Pedro de Andrade, 1967, 35mm (32 min) + A grande cidade – Carlos Diegues, 1966, 35mm (80 min) 16 anos 19h – Ipanema, adeus – Paulo Roberto Martins, 1975, DVD (88min) 12 anos

10 de setembro (quinta-feira) 16h – Orfeu Negro – Marcel Camus, 1959, DVD (100min) 14 anos 19h10 – Babilônia 2000 – Eduardo Coutinho, 1999, 35mm (80min) Livre

139


11 de setembro (sexta-feira)

15 de setembro (terça-feira)

16h – Tim Maia – Flávio Tambellini, 1987, 35mm (15

18h – Amor, carnaval e sonhos – Paulo Cesar Saraceni,

min) + Nos embalos de Ipanema – Antonio Calmon,

1972, DVD (75min) 14 anos

1978, DVD (100 min) 18 anos 19h10 – Eu transo... ela transa – Pedro Camargo, 1972,

19h45 – A lira do delírio – Walter Lima Jr., 1978, 35mm (105 min) 16 anos

DVD (102min) 18 anos 16 de setembro (quarta-feira) 12 de setembro (sábado) 14h – Em Busca de um Lugar Comum – Felippe Mussel, 2012, Blu-ray (80 min) Livre 16h – O Uivo da Gaita – Bruno Safadi, 2013, Blu-ray

18h – Maria 38 – Watson Macedo, 1959, DVD (94min) Livre 19h45 – Lá e cá – Sandra Kogut, 1995, 35mm (25min) + Bete Balanço – Lael Rodrigues, 1984, 35mm (78min) 16 anos

(75min) 14 anos 18h – Debate: Arte carioca: um futuro?, com Bruno Safadi, Felippe Mussel, Leticia Novaes (da banda Letuce) e Opavivará.

17 de setembro (quinta-feira) 18h – Copacabana mon amour, Rogério Sganzerla, 1970, 35mm (85min) 14 anos

13 de setembro (domingo)

19h45 – Copacabana me engana, Antonio Carlos Fontoura, 1968, 35mm (93min) 16 anos

15h – Meu cumpadre Zé Kéti – Nelson Pereira dos Santos, 2001, DVD (12 min) + Rio, Zona Norte – Nelson

140

Pereira dos Santos, 1957, 35mm (86min) Livre

18 de setembro (sexta-feira)

17h – Marcelo Zona Sul – Xavier de Oliveira, 1970,

18h – A navalha na carne – Braz Chediak, 1969, 35mm

16mm (98min) Livre * Sessão com presença do diretor

(99 min) 18 anos

19h – Ópera do Malandro – Ruy Guerra, 1986, 35mm

19h55 – O Mandarim – Julio Bressane, 1995, 35mm

(110 min) 14 anos * Sessão com entrada gratuita

(90min) 16 anos


19 de setembro (sábado)

23 de setembro (quarta-feira)

15h – Picolé, pintinho e pipa – Gustavo Melo, 2006,

18h – Maxixe, a dança proibida – Alex Viany, 1980, DVD

35mm (16 min) + Ladrões de cinema – Fernando Coni

(32 min) + Funk Rio – Sérgio Goldenberg, 1994, DVD

Campos, 1977, 35mm (127 min) 16 anos

(45 min) 14 anos

18h – Masterclass: O cinema encontra o Rio, com

19h30 – Terra em transe – Glauber Rocha, 1967, 35mm

Hernani Heffner

(115 min) 14 anos

20 de setembro (domingo)

24 de setembro (quinta-feira)

14h30 – O abismo prateado – Karim Aïnouz, 2013, Blu-

18h – Menino da Calça Branca – Sergio Ricardo, 1959,

ray (84 min) 14 anos

DVD (22min) + Esse mundo é meu – Sergio Ricardo,

16h30 – 24 horas de sonho – Chianca de Garcia, 1941, 35mm (86 min) 16 anos 18h30 – Geraldo Voador – Bruno Vianna, 1994, 16mm

1964, DVD (92 min) 14 anos 20h05 – Fábula – Arne Sucksdorff, 1965, 35mm (88 min ) 16 anos

(10 minutos) + Cidade de Deus, Fernando Meirelles e Kátia Lund, 2002, 35mm (130 min) 16 anos

25 de setembro (sexta-feira) 18h – Alô, alô, carnaval! – Adhemar Gonzaga, 1939,

22 de setembro (terça-feira)

35mm (75min) Livre

18h – Agulha no palheiro – Alex Viany, 1953, DVD

19h30 – Vai trabalhar, vagabundo! – Hugo Carvana,

(95 min) 16 anos

1973, 35mm (100 min) 16 anos

19h45 – Esse amor que nos consome – Alan Ribeiro, 2012, Blu-ray (80min) 12 anos

141


26 de setembro (sábado) 14h – As aventuras amorosas de um padeiro – Waldir Onofre 1975, 35mm (106 min) 16 anos 16h – Carlota Joaquina - Princesa do Brazil – Carla Camurati, 1995, 35mm (107 min) 12 anos 18h – Debate: Iconografias Cariocas, com Joaquim Marçal, Luciano Magno e Maria de Lourdes Horta.

27 de setembro (domingo) 15h – A alegria – Felipe Bragança e Marina Meliande, 2010, 35mm, (100 min), 16 anos 17h – O Dominó negro – Moacyr Fenelon, 1941, 35mm (85 min) 14 anos 19h10 – Roberto Carlos em Ritmo de Aventura Roberto Farias, 1968, DVD (99min), Livre

142


143

FICHA TÉCNICA


IDEALIZAÇÃO MARINA MELIANDE E ATELIÊ RIO REALIZAÇÃO E PRODUÇÃO DUAS MARIOLA FILMES APOIOS CINEMATECA DO MAM ARQUIVO NACIONAL CTAV VITRINE FILMES RESTAURANTE ADRIANO RESTAURANTE VEGAN VEGAN CURADORIA ISABELLA RAPOSO MANUELLE ROSA MARINA MELIANDE PEDRO HENRIQUE FERREIRA VIRGINIA PRIMO HERNANI HEFFNER PRODUÇÃO E EDIÇÃO CATÁLOGO ISABELLA RAPOSO MANUELLE ROSA MARINA MELIANDE PEDRO HENRIQUE FERREIRA VIRGINIA PRIMO

144

ENTREVISTAS ANTONIO HERCULANO JOSÉ MURILO DE CARVALHO MARCOS BRETAS MONICA VELLOSO NIREU CAVALCANTI TEXTOS HERNANI HEFFNER ISABELLA RAPOSO FELIPE BRAGANÇA MANUELLE ROSA MARINA MELIANDE MONICA PIMENTA VELLOSO PEDRO HENRIQUE FERREIRA VIRGINIA PRIMO DEBATEDORES BRUNO SAFADI FELIPPE MUSSEL HERNANI HEFFNER JOAQUIM MARÇAL LETÍCIA NOVAES LUCIANO MAGNO MARIA DE LOURDES HORTA OPAVIVARÁ COLETIVO ACOMPANHAMENTO MUSICAL SESSÃO DE ABERTURA BANDA BAGUNÇO


IDENTIDADE VISUAL FLÁVIA TRIZOTTO

AGRADECIMENTOS

ASSESSORIA DE IMPRENSA KAMILLE VIOLA GUILHERME SCARPA

MAGNO, ALICE DE ANDRADE, ALICE GONZAGA,

ADRIANO GUSTAVO, ALLAN RIBEIRO, ALBERTO ANA SILVIA, ANCINE, ANDREA CALS, ANGELO DEFANTI,

ANNA

MARIA

NASCIMENTO

SILVA,

ARQUIVO NACIONAL, BANDA BAGUNÇO, BARBARA CÓPIAS DOS ACERVOS CINEMATECA DO MAM ARQUIVO NACIONAL CINEMATECA BRASILEIRA CTAV

DEFANTI, BRUNO SAFADI, BRUNO VIANA, CANAL BRASIL, CINEARTE, CINÉDIA, CINEMATECA DO MAM,

CTAV,

DANIEL

TOLEDO,

DAGOBERTO

CADILHE, COPACABANA FILMES, DANIEL TOLEDO, EDUARDO CANTARINO, FABIAN CANTIERI, FÁBIO

REVISÃO DE CÓPIAS CAROLINE NASCIMENTO

VELLOSO,

FILMES DO SERRO, FILIPE PONTES,

GUSTAVO MELO, IVO RAPOSO, JANAINA GUERRA, JÚLIO BRESSANE, JÚLIO CARVANA, LUÃ BATISTA,

REGISTRO FOTOGRÁFICO GUILHERME TOSTES IMPRESSÃO HOLOGRÁFICA MONITORES ADRIANA SALLY BARBARA BEZNOSAI MARIANA REVOREDO PEDRO ALVES TATIANA DELGADO THEREZA LEVENHAGEN

LUIZ ABRAMO, LUZ MAGICA, MÁRCIA FARIA, MARIA FERNANDA

BICALHO,

MARIA

INEZ

TORAZZI,

MARIO CASCARDO, MAPA FILMES, MARINA LUFTI, MARTA MORATO, MERCURIO PRODUÇÕES, NORMA BERARDO, O2 FILMES, PAULO MARTINS, PEDRO CARLOS ROVAI, PRISCILA MORATO, REGINA FILMES, RENATA SARACENI, RITA TOLEDO, RIVA FARIA, ROBERTO FARIAS, ROSÂNGELA SODRÉ, SANDRA KOGUT, SERGIO GOLDEMBERG, SERGIO LUZ, SERGIO RICARDO, SILVIA CRUZ, SINAI SGANZERLA, SINCROCINE, TAMBELINI FILMES, TATIANA DEVOS, THIAGO BRITO, THIAGO ORTMAN, VIDEOFILMES, VERSATIL, VITRINE FILMES, VIRGINIA FLORES, WALTER LIMA JR., XAVIER DE OLIVEIRA, YARO CARVALHO.

145


Alvará de Funcionamento da CAIXA Cultural RJ: nº 041667, de 31/03/2009, sem vencimento.

Acesse www.caixacultural.gov.br Baixe o aplicativo Caixa Cultural Curta facebook.com/CaixaCulturalRioDeJaneiro

Realização

146

Apoio

Patrocínio


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.