Impressoes

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IMPRESSÕES


Título: Impressões Ideia original: Ana Paula Gonçalves. Coordenação: Ana Paula Gonçalves , Maria da Luz Rosmaninho. Textos de professores e funcionários da Escola Artistica Soares dos Reis. Revisão dos textos: Fernanda Sousa, Margarida Mouta e Maria da Luz Rosmaninho. Imagens: espólio da escola. Trabalho realizado pela turma 12ºB2, no ano lectivo 2009-2010, no âmbito da Formação em Contexto de Trabalho dos alunos do curso de Design de Comunicação, especialização em Design Gráfico. Sob a orientação dos professores: Projecto: Maria José Santos Meios Digitais: Filipe Duarte Fotografia: Catarina Mendes Fotomecânica: Rui Lopes Offset: Fernando Teixeira e Vitor Teixeira Serigrafia: Manuel Ramos Monitor: Francisco Mesquita na qualidade de Designer, representante da Instituição Universidade Fernando Pessoa. Design: Pedro Oliveira (aluno 12º B2) Edição de 250 exemplares numerados no âmbito das Comemorações dos 125 anos da Escola Artística de Soares dos Reis.


ÍNDICE 9

Prólogo - Alberto Teixeira

50 Eu, Ana Maria - Ana Maria Cardoso

10 Um vitral de memórias - Alberto Martins

52 Local mágico de vida única sem contornos feita de manchas, luzes e sons - Rosário Forjaz

12 Impressões de uma diferença - Aurélia Ribeiro

54 De braço dado - Damião Oliveira Sousa

14 As minhas impressões - Clídio Nóbio

56 O Barão Vermelho ou Maurice / Manfred Von Richthofen: Herói e Vilão! - José Melo

16 Familia Escola - Luciano Inácio

58 Teresa Monteiro, In Memoriam - José Melo

18 Recordar é viver - Luciano Inácio

60 O presente é a grande folha onde escrevemos - Margarida Mouta

20 1954 - José Lopes Cardoso

64 O mestre - Ana Paula Gonçalves e João Paulo Pimentel

22 A memória é o edificio do futuro - Luísa Gonçalves

66 Memórias de uma reformada - Cristina Braga da Cruz

24 Utopos / Em lugar nenhum - Miguel Pais

68 Memórias da Soares - Sónia Cortez Gonçalves

26 Percursos distintos entre a indignação e a humanidade - Casimiro Martins

70 A diferença - Augusta Matos

28 Um carimbo - Maria José Pereira

72 Aulas na serra - Fernanda Lage

30 Lugares que tiveram os seus momentos - Ana Paula Gonçalves

74 Voo de uma gaivota - Palmira Lopes

32 Ano após ano - Leonor Soares

76 Deus quer, o Homem sonha, a Obra nasce - Alexandra Azevedo

34 Comemorações dos 125 anos - Maria Cecília

78 Se uma brisa - Maria da Luz Rosmaninho

36 A minha casa, a minha família - Isolino Barbosa

80 Sentir a escola - Natália Lobo

38 António Santiago Sottomayor - José Melo

82 Soares dos Reis - Manuel Couto

42 Se as paredes falassem - Cristina Melo

84 Curriculum Vitae da ESSR - Celeste Costa

44 Demo-cracia - José Gabriel

86 125 anos de luz de uma bela rosácia tripeira - José Melo

46 É para aqui que eu quero vir - Graça Ventura

88 Deus quer, o Homem sonha, a Obra nasce - Conceição Neto

48 O tempo passa... a memória fica - Ana Lagarto

92 Era como se um bando de pássaros tivesse entrado - Deolinda Rodrigues

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Alberto Teixeira

PRÓLOGO Desenganem-se os que aqui vierem procurar a história de 125 de escola artística. No entanto, felizes os que aqui sentirem as impressões duma escola mais que centenária. Qualquer história é uma fotografia a preto e branco que teima em congelar o tempo numa óptica objectiva. Este livro distancia-se dessa pretensão. Estamos perante fragrâncias que a nossa polaroid mental registou. Disse Pasolini que a realidade é uma soma de verdades tantas vezes discordantes. Este conjunto de memórias sentidas são apenas impressões, nada mais do que isso, que estão alojadas num endereço da nossa memória. Quem se atrever a desfolhar este livro perceberá a aura das estórias que a história não quis contar. Atrevam-se!

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Alberto Martins

UM VITRAL DE MEMÓRIAS A memória é a soma dos memos, os genes que absorvemos como se fossem um ar que inspiramos. A memória é a nossa Nemesis. Como num sonho, não há presente nem passado, todas as sequências temporais se misturam. Alguns nomes não abandonam os nossos sonhos. Onde não há nomes há estórias: o empregado Bastos que colava os olhos nos livro de ponto para determinar o nome da turma; o professor Truta e as sua eternas moideiras de estômago, prenúncio da doença que o haveria de vitimar; o riso do professor Sottomayor que anunciava a sua chegada; o Pinto, chefe dos empregados, com a sua farda que fazia dele uma espécie de oficial castrense; a Miquinhas que um dia foi atrás dum elemento do Conselho Directivo, de vassoura em punho, porque lhe pareceu um intruso; a chefe da secretaria que se movia em bicos de pés e dizia ao Presidente do Conselho Directivo “ai vá lá o senhor professor dizer isso porque se for eu, elas até me batem”; os alunos característicos, brincalhões uns, truculentos outros, irreverentes quase todos. Esta amálgama de gente foi o meu mundo durante anos. Outros tempos! Bons Tempos? Nesses tempos o professor era menos funcio-

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nário público, tinha um carisma próprio, percebia-se nele um desígnio. O professor não era ainda um nome à frente duma disciplina. Hoje o aluno está mais protegido, o ensino mais organizado mas, como toda a fruta calibrada perdeu o sabor, a diferença, o bom e o mau, o ruim e o excelente. Mas também as memórias tendem a depurar o que não interessa, coando apenas os ditos bons momentos, passe o perigo que esta definição representa. E não há melhor explicação para o uso dum capacete protector a uma certa turma que a dada por um certo docente: -Porque pá, se vais p’rá obra sem capacete e bates com a mona num prego tás lixado, se levas o capacete tás safo. Esse professor era um poço de cultura e sabedoria. Sempre avesso à sala de aula, bebiam-se dele as melhores aulas à mesa de café. Pedagogia? Nem por isso. Que seria hoje desse professor? Os sonhos costumam ser a preto e branco mas, as memórias são sempre a cores, dum colorido que fascina e embala. Das memórias surge a lenda que reinventa a realidade e a torna mais rica. Da mistura entre as duas surge a história que se auto-alimenta e se transforma ao longo dos tempos.


Aurélia Ribeiro

IMPRESSÕES DE UMA DIFERENÇA “Deus quer, o homem sonha, a obra nasce”. As frases. Sim. Sem dúvida que as frases, como esta de Fernando Pessoa, expostas e dispersas ao longo de corredores e átrios, sabiamente colocadas em sobranceria e conteúdo, marcaram a primeira impressão de fascínio e a percepção de um advento académico diferente. Seguiram-se as obras. A observação de um acervo artístico infindável em qualidade e variedade, espalhado por paredes, recantos, escadarias e salas, materializado em pinturas, painéis, baixos/relevos, volumosas esculturas como a monumental “Laocoonte”, bustos de arte Grega, relevos Assírios, quadros de autores contemporâneos, construíram um cenário mágico na imaginação adolescente da rapariguinha vinda do Liceu. Depois, os professores masculinos, o convívio com o sexo oposto, a integração de turmas mistas, as primeiras paixões, cedo desenvolveram a consciência da existência de um lado social, escamoteado, refreado. E uma vez mais, a sedução crescente porque de uma vivência diferente e única se tratava, face às outras escolas, então tão formatadas, controladas, reprimidas. Não que esse controlo e repressão não existisse também na nossa, mas porque a “formatação” imposta pelo poder político se afigurava incompatível com o espírito singular, personalizado, divergente, inerente ao pensamento artístico, de quem ia crescendo em aprendizagens e ideias, mas também de quem as transmitia e corporizava. Se como diz Pessoa “exteriorizar impressões é mais persuadirmo-nos de que as temos do que termo-las”, então poderei afirmar que as impressões foram as daquela época, mas a sua marca fizeram a mulher de hoje.

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Clídio Nóbio

AS MINHAS IMPRESSÕES As minhas impressões sobre a Soares dos Reis são muitas e estão entranhadas na minha consciência. É um”trauma mágico”, na medida que mexeu com a alma de um adolescente que, quando pela primeira vez chegou à Escola de Artes Decorativas de Soares dos Reis, pela mão do Mestre Pintor Isolino Vaz, ficou extasiado com as Obras de Arte e as Frases Filosóficas expostas estrategicamente, por todo o espaço da escola. Todo este mundo que despertava e motivava a imaginação e criatividade era algo de maravilhoso para um recém-chegado do ensino convencional. A Soares dos Reis era uma escola diferente de todas as outras, não só pelo curriculum mas sobretudo pelo Humanismo, na medida em que o sistema de ensino da época reproduzia os valores da ditadura vigente com tudo que lhe era inerente. Nesse aspecto, a Soares dos Reis distinguia-se pela relação professor/aluno, que era fantástica, e pelas turmas mistas (raparigas e rapazes) promovendo o respeito e a sã convivência entre os sexos, o que não era permitido no ensino em geral. De modo que as minhas impressões são as da amizade, solidariedade, cumplicidade que existia entre todos sobretudo Mestres e discípulos e que neste momento me vêm à memória; os Arquitectos Bruno Reis, Teixeira Lopes, os Escultores Pereira da Silva, Xavier Costa, Mário Truta, os Pintores Dario, António Sampaio, António Fernandes, António Cruz, Coelho Figueiredo, Isolino Vaz e a Pintora Esmeralda Calvário, Professora de História de Arte e, finalmente, o Dr. Sampaio e Castro, Professor de Química Aplicada e grande ecologista. Todos eles me marcaram como Artistas, Professores, Amigos. Havia muito mais a dizer sobre cada um deles e as suas facetas de mágicos nessa fábrica de sonhos. Fica para outra vez.

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Luciano Inácio

A CAMINHO DO CENTENÁRIO 1917 - 2017 FAMÍLIA ESCOLA Fui criado em contacto com objectos em prata, peças que o meu pai Domingos Inácio dos Santos criou e executou. O meu pai foi aluno da Escola Industrial de Faria Guimarães (Arte Aplicada) entre 1917/1923, tirando o curso de cinzelador. Com os conhecimentos adquiridos, foi operário especializado nas melhoras oficinas de ourivesaria do Porto e, em 1935, resolveu estabelecer-se como industrial. Com este percurso entendeu que o filho Luciano Inácio deveria tirar o curso de cinzelador, e assim aconteceu… O rapazinho humilde, bem educado, cabelo claro, olhos azuis e um pouco distraído, lá conseguiu, por ordem do pai, matricular-se em 1944 na Escola Industrial de Faria Guimarães (Arte Aplicada), já na Rua Firmeza, 49 – Porto, para tirar o curso. O meu percurso como aluno foi bastante importante para a minha formação como homem, como profissional e até como Professor das tecnologias de Ourivesaria, nesta especial Escola de Artes Decorativas Soares dos Reis. Recordo a minha necessidade de adquirir mais conhecimentos nas áreas tecnológicas e artísticas depois do curso. O Prof. Escultor Sousa Caldas, disponibilizou-me toda a Escola, assim como todos os professores que me aceitaram nas suas salas. O Prof. António Teixeira, verificando o meu desejo pelas artes, convidou-me a trabalhar num baixo-relevo de St. António, para a Central de Jovim, reservatório das Águas do Rio Sousa.

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Aquando da conclusão gratificou-me com 150 escudos. O meu desejo era aprender e não ganhar dinheiro. Isto passou-se por volta de 1949/50. A escola de Belas Artes era o meu próximo caminho, mas a oficina de Ourivesaria do meu pai foi mais forte. Mas continuei… A ligação da Escola, e especialmente do n/ director, com o Grémio de Ourivesaria na pessoa do Sr. Gabriel Ferreira Marques, permitiu a cedência das instalações necessárias para desenvolvimento dos artífices de classe. O Grémio de Ourivesaria contratou 3 professores para leccionar em regime póslaboral, com direito a juntar o material necessário. Mais uma vez, o Escultor Sousa Caldas entra em contacto comigo e aceito imediatamente. O contacto com o Prof. Emílio Wörner, e os conhecimentos adquiridos ao longo de 6 anos, levou-me a criar novas linhas de concepção e modernização oficinal. Estes contactos com a escola, mestres e professores levaram-me a criar a firma Luciano Inácio e Filhos., integrada nas áreas de Ourivesaria e posteriormente na Medalhística. Desde 1917 que a nossa Família frequenta esta Escola. Pai, filhos, sobrinhos, netos e bisnetos. Actualmente a minha neta frequenta o 11º Ano, fazendo questão de Ser Artista. O meu neto João Inácio também “quer ser”como o Avô. Sendo assim, e a confirmar-se, o Centenário da Família/Escola será em 2017. O espaço físico mudou-se, mas a Escola continuará a imortalizar os homens que dignificaram as Artes. O nosso agradecimento vai dirigido a todos os Professores que ao longo destes 125 Anos souberam orientar o melhor para engrandecimento da nossa Escola. A Escola é muito Mais! 125 Anos é uma Vida! PARABÉNS.


Luciano Inácio

RECORDAR É VIVER PROF. EMANUEL RIBEIRO Foi meu professor de “Desenho à Vista”, em 1944/45. Na apresentação, como era normal, a Saudação. A compra de materiais para a disciplina era obrigatória: papel, lápis, borracha, etc., mas de destacar foi o pedido de aquisição de um “Fio-dePrumo”. Naquela altura nunca reflectimos, mas hoje aceito-o como objecto elementar para analisar comparações de prumos dos objectos a desenhar. O Prof. Emanuel Ribeiro foi também professor do meu pai, Domingos Inácio dos Santos.

Recordo deste Professor: “E andam estes meninos a romper os fundilhos das calças!”. Risada geral… “Silêncio! Vejam lá se querem passear o corredor!” “Evidentemente” era a palavra que o professor usava para confirmar a interpretação positiva do aluno. Os alunos daquele tempo não conheciam o Prof. Casimiro de Freitas, mas sim “O Evidente”.

MESTRE ALVES DE SOUSA Que Saudade!

PROF. CASIMIRO DE FREITAS Professor de Matemática, nos meus 1º e 2º anos. A colocação dos alunos nas carteiras obedecia a uma Planta da Sala. A planta era sinalizada com o número de matrícula do aluno. Quase não se precisava de fazer chamada, os lugares vazios eram sinal de falta. O professor explicava a matéria, os alunos, por sua vez, procuravam estar com a melhor atenção. Terminada a explicação, o professor perguntava: “Há alguma dúvida?” O silêncio era total. “Confirmo que todos compreenderam.” O professor olhava a planta da sala e chamava um de nós ao quadro. O aluno escolhido era “esticado até rebentar”.

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Quando iniciei a disciplina de Cinzelagem, o Mestre Alves de Sousa constatou que já eu tinha alguns conhecimentos no contacto com as matérias-primas e ferramentas. Um certo dia, tive necessidade, com autorização do meu pai, de pedir dispensa da aula da tarde. O Mestre Alves de Sousa quis saber o motivo; então mostrei-lhe o cartão que meu pai escrevera a pedir a dita dispensa. Ele abriu o cartão, olhou para mim com “ar” que na altura não entendi, e disse: “Olha que o teu pai era bem melhor rapaz do que tu…” Confirmei então que o meu pai tinha sido aluno do Mestre Alves de Sousa, ainda nas precárias instalações da Rua de St. Ildefonso nº 422, escola anterior à da Rua Firmeza. Que satisfação! Eu não tinha conhecimento disso.


José Lopes Cardoso

1954 Acabada a 4.ª classe, aí vou, a caminho da Escola de Artes Decorativas de Soares dos Reis, para um curso técnico, não sabia bem qual, mas com a certeza que ao completar 14 anos iria trabalhar para complementar o magro orçamento familiar. Lá entrei na EADSR com uma alegria transbordante, mal sabendo o que me estava reservado na disciplina obrigatória de Religião e Moral, da qual era docente o padre Vasconcelos. Homem grave e duro no tratamento, cabelo curto ondulado, rosto rectangular, banal, bem escanhoado, uma boca que raramente sorria bem assim como os olhos escuros que despediam chispas de raiva quando amiudadamente se referia “àqueles senhores materialistas, que defendiam o evolucionismo e não acreditando num Deus criador, deveriam ser banidos para as profundezas do inferno”. Para reforçar as suas ideias criacionistas, utilizava uma cana da índia (antigas canas de pesca), para educar e meter na ordem aqueles que, como eu, não estavam atentos às suas “incontroversas e sublimes” palavras, fazendo-a cair sibilando, qual chicote divino (?) sobre as orelhas dos distraídos incautos, com uma precisão de cascavel. Um dia, resolvi faltar outra vez à aula do padre Vasconcelos e como sabia por experiência que nos ia pescar aos sítios mais recônditos da escola, procurei novo esconderijo. Depois de magicar, fui aconchegar-me no tecto falso das casas de banho. No tecto das casas de banho!!!

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Toma lá, que aqui não me encontras, pensei. Ingenuidade. Quando dei por mim, estava o contínuo Luís, homem de grande porte, alto e largo, metido num uniforme azul marinho, de botões dourados, rosto grosso, olhos claros céu, incrustados numa cara vermelha, com tonalidades magenta a tender para o violeta, a ordenar-me que descesse se não queria ter problemas (tipo físico, penso eu). Assim fiz: desci, tremelicando de medo e lá fui quase levitando até à sala do padre Vasconcelos. Levei dois monumentais puxões de orelhas, fui tão humilhado verbalmente perante a turma, que nunca mais esqueci, nem tão pouco aquela Religião e Moral, incompreensível e ditatorial, que recusei e recuso liminarmente aceitar. Pouco tempo depois, o padre Vasconcelos foi embora da escola, sendo substituído pelo padre Amaro, verdadeira antítese daquele, no que concerne à pedagogia no tratamento pessoal. Assim, a minha vida académica lá continuou com jovens dias de sobressaltos, mas isso são outras histórias, com doces recordações, ou como diz o povo: contas de outro rosário. Termino esta história verídica, com um pensamento de Victor Hugo: “ Há em cada aldeia um archote – o mestre-escola; e uma boca que sopra para o apagar – o pároco. “


Luísa Gonçalves

A MEMÓRIA É O EDIFÍCIO DO FUTURO No dia em que nasci, meu pai entrou como Mestre de Mobiliário Artístico na Escola de Artes Decorativas Soares dos Reis. Cresci, ouvindo falar da Soares dos Reis. Fiz-lhe algumas visitas em momentos especiais. De uma delas lembro-me como se fosse hoje. Tinha doze anos e fui ver uma apresentação de alguns alunos finalistas da escola que frequentavam o Teatro Experimental, na altura sob a direcção de António Pedro. Eram exercícios de postura de preparação para a representação teatral, realizados no palco do ginásio. Alguns desses alunos foram depois artistas de teatro, como o Joel Branco. Nessa altura, já tinha decidido que era nesta escola que queria fazer a minha preparação para a escola Superior de Belas Artes. Entrei com treze anos e durante quatro frequentei o curso de Pintura e a Secção Preparatória às Belas Artes. Tive como professores alguns nomes de referência da vida artística do país e da cidade, como os pintores António Sampaio, António Cruz, Esmeralda Calvário e o escultor Mário Truta, entre outros. Este último deixou uma marca especial na construção do meu futuro: foi ele que me revelou a escultura e fez nascer a vontade de a escolher como forma de expressão artística.

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A memória é o edifício do futuro, é com ela que temos que viver o presente e é a partir dela que o amanhã se vai fazer. O novo edifício, apesar de novo e por isso mesmo, vai receber a memória de todos os que passaram pela Escola Soares dos Reis. Amanhã serei recordada como a professora de alguns dos actuais professores que vão continuando a escrever a história da nova escola e até por alguns dos filhos desses professores ou de outros, artistas que, em diáspora por esse mundo, ainda me procuram para trocar ideias e afectos.


Miguel Pais

UTOPUS / EM LUGAR NENHUM Utopos - o que ‘ainda’ não existe em lugar nenhum. As saudades da minha Escola foram sempre as saudades de uma Escola que parecia nunca existir em lugar nenhum. Foram sempre saudades do futuro, a única dimensão do tempo em que ainda é possível pensar uma Escola para os que hão-de vir. Lembro-me de pensar no futuro como quem pensa num destino adiado. Lembro-me de imaginar uma Escola, uma outra Escola. Procurar o que não existe fora do pensamento trouxe-me até aqui. A Soares dos Reis é hoje, depois de 125 anos, o meu ‘topos’. Uma outra possibilidade de sentido. O lugar. A vida ensina, dizem alguns. O tempo traz a evidência do que nunca há-de existir em lugar nenhum, dizem outros. Recordo-me de sentir uma vontade enorme de acreditar no que há-de vir. A coragem de ensinar é a mesma que nos alimenta a passagem dos dias. Lembro-me daquela primeira aula. Sem ingenuidade, um professor é outra coisa. Não quero ser outra coisa! Que as palavras de Agostinho da Silva nos apontem para o caminho: “Que a Escola não seja uma máquina de fabricar adultos, mas um viveiro de conservar crianças.” Em nome da verdade.

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Casimiro Martins

PERCURSOS DISTINTOS ENTRE A INDIGNAÇÃO E A HUMANIDADE Num percurso de 45 anos de vivência na Soares dos Reis, muitas histórias teria para contar. Tal não me é possível. Pedem-me umas linhas e não um livro, contudo não posso deixar de dividir esse mesmo percurso em dois períodos marcantes para mim: a adolescência e o início da profissão docente na Soares dos Reis. Outubro de 1964. Encontro-me então a trabalhar na Empresa Gráfica Instaladora na Rua do Almada. Decidindo ir estudar à noite, matriculo-me na Escola de Artes Decorativas Soares dos Reis na Rua Firmeza, no Curso de Compositor Tipógrafo. As aulas começavam às 18,00 horas. Como saía a essa hora da empresa, peço à D. Olinda (patroa) para me deixar sair um pouco mais cedo para chegar a tempo às aulas. Opondo-se à valorização intelectual dos seus profissionais, a D. Olinda não acede ao meu pedido. Passo a correr diariamente desde o trabalho até à Escola. Chego sempre atrasado, por vezes, suado, no tempo de chuva todo encharcado, secan-

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do a roupa no meu corpo franzino até à 1,00 hora da madrugada. Ao primeiro tempo, tinha normalmente a disciplina de Desenho Geral com o Professor António Fernando, para nós “o Toninho remador”. Lembrome da sua face de Homem bom e Professor dedicado e da sua indignação pela atitude da minha patroa. Conseguiu, com o seu apoio, que eu não abandonasse os estudos. Outubro de 1986. Leio no JN um anúncio a pedir um Profissional de Artes Gráficas para leccionar trabalhos oficinais (Gráficas) na Escola de Artes Decorativas Soares dos Reis. Concorro, dão-me a preferência pois tinha sido aluno da escola e concluído aí o meu curso. Sou admitido. Após entrevista com a responsável do curso, a Profª Alzira, preparo-me para começar uma nova etapa da minha vida, quando um imprevisto acontece. Num grave acidente de automóvel, fico com o meu braço direito partido em três partes. O meu sonho parecia esfumar-se. Como é que poderia leccionar a disciplina de Trabalhos Oficinais no estado em que me encontrava, com o braço engessado? Passados uns dias, vou à Escola falar com a Professora Alzira. Mais uma vez sou confrontado com uma humanidade digna dos maiores encómios. Sensibilizada, a responsável do curso permitiu-me que, mesmo encontrando-me no estado em que estava, fosse dar as aulas. Iniciei assim um tempo que nunca mais esquecerei. Que enorme sacrifício fiz, estando quase um ano a trabalhar naquele estado físico… Com grande força de vontade, tudo superei. Contudo, nunca o teria conseguido se não fosse a extrema dedicação, simpatia e sentido de humanidade de todos aqueles “miúdos” dos cursos unificados que, numa prova de grande maturidade e carinho para comigo, me ajudaram bastante. Depois da aula terminada, “guerreavam-se” para decidir quem é que me ia lavar as mãos. E que feliz eu ficava…


Maria José Pereira

UM CARIMBO Uma das experiências mais marcantes enquanto professora e presidente do Conselho Directivo passou-se com o Batalha. Aluno que vagueava pelos corredores, com ar displicente, descomprometido. Um dia bateu à porta …. “Apanhar letras Três baldes, enchê-los, um objectivo Números embirrava o Télio Apanhar os vários feitios, os vários tamanhos, as várias dificuldades. “Mais empenho” exigia a Idalina num trocar de olhos. O primeiro balde enchia-se, todos enchiam o seu primeiro balde, Todos encheram o primeiro balde; todos menos eu. Aquela que me pedia mais empenho escapou-me. Veio o amarelo. Encaminhava-se para mim fundo e redondo. Enchia à pressa…pareceu-me. Todo?...por pouco. A que me pedia mais empenho fugia-me. O vermelho enchi com memórias, amizades, com tudo para encher baldes, água até. O carimbo final não era possível, faltava o empenho. “ Ajuda, precisa-se. Urgente. 02-4640177. Era necessário correr. Ajuda apareceu, “Le President”. Empenho circulava-lhe aos montes, quilos até. Cento e vinte minutos e muita cafeína bastaram para encontrar o meu empenho, O empenho necessário para dar cor ao carimbo. Treze…Azar? Nãoooooo Mamã, Papá, já tenho carimbo. O Batalha agradece à “La President”

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Ana Paula Gonçalves

LUGARES QUE TIVERAM OS SEUS MOMENTOS “... como o presente é antiquíssimo, porque tudo, quando existiu, foi presente, eu tenho para as cousas, porque pertencem ao presente, carinhos de antiquário, e fúrias de coleccionador .” O Livro do Desassossego Fernando Pessoa Memórias, que vão ganhando significado, encontro alguma dificuldade quando penso em seleccionar. Dia após dia, os corredores enchiam-se de alunos inquietos com o terminar do ano. Por um lado a vontade de sair por outro a de ficar na escola. Observava nas aulas uma surda inquietação crescente. Escutava e observava “distraidamente” esta agitação na turma de Produção Artística especialização de Cerâmica. Numa das aulas, informei os alunos da vinda à Escola do artista plástico Alberto Péssimo, no dia 7 daquele Novembro de 2006 e conteilhes dos seus objectivos. Ficaram muito contentes. No dia previsto, a escola estava em alvoroço; a funcionária chamou-me, porque havia uma pessoa no recreio a cantar, a arrancar fitas do chorão e a apanhar folhas e tinha perguntado por mim. Os alunos estavam na sala a dispor os azulejos sobre as mesas e fui ao recreio ter com o Péssimo. - Olá rapariga! Então os alunos? - Estão na sala a trabalhar.

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Entrou na sala, com um grande sorriso e disse: -Então artistas, estamos prontos? Como vamos fazer isto? Precisamos é das tintas mágicas. Pensaram em conjunto o que fazer, e começaram a trabalhar. Esta tarefa foi executada a uma velocidade estonteante e sem “regras”. Ao fim de 90mn, o Péssimo deu por terminado o trabalho, despiu a bata e disse-lhes: -Agora tratem do resto, e parabéns que vocês são bons, desenham bem, têm jeito para isto. Até um dia destes. E saiu. No final, o João comentou: – Oh professora, devíamos ter mais aulas destas durante o ano. Sorri.


Leonor Soares

ANO APÓS ANO Ano após ano, participo em sessões onde procuro que se criem vínculos fortes entre os alunos e o Desenho. Em duas mesas, amontoavam-se os diários gráficos do 11ºA de 2006. Percebia-se pelos cantos esfolados como foram manuseados ao longo de semanas, como num ritual. Tactearam o caderno, a caneta, acomodaram-se, concentraram-se, desenharam. “...este fiz num dia de chuva na estação... estava nevoeiro...as pessoas corriam...” “... estava lá uma velhinha, tinha uma cabeça lindíssima, tinha rugas, não eram tantas, exagerei, mas assim parecem-me mais verdadeiras...” “... as nuvens eram bonitas e de todos os matizes... adoro desenhar o céu...” “... são borboletas nocturnas, estavam secas na janela, desenhei-as, são interessantes!” “... estava num dia de neura, então desenhei borrões, mas no dia seguinte transformei-os em pássaros.” A Catarina mostrou os seus gatos, lindos, em desenhos emotivos, sensíveis e muito belos. A Bruna mostrou registos da irmã a dormir, em apontamentos rápidos, suaves, etéreos. O João apresentou um caderno cheio de desenhos, vigorosos, sensíveis, sábios na análise, eficazes na emotividade e na força, carregados de sentidos, notáveis! Após as explicações iniciais do João, começámos a ficar em silêncio e os desenhos a ficar maiores e maiores e ficaram do tamanho da sala, gigantes, por onde todos passeámos demoradamente. Teve “qualquer coisa de museu” essa tarde... Como quando nos perdemos num e enche-

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mos a alma e ficamos maiores por dentro. Obrigada ao João e a todos os meus alunos por estes momentos especiais que reforçam a minha vontade de continuar a trabalhar com eles e para eles. Já aluno universitário, uns anos mais tarde, o João ofereceu-me este desenho que conservo com afecto. Entre várias dezenas, fazia parte do caderno que vimos nessa tarde. Assim, já sabem do que falo...


Maria Cecília

COMEMORAÇÕES DOS 125 ANOS Chamo-me Maria Cecília e gostaria de partilhar alguns dos sentimentos que tive durante a minha passagem na Escola Soares dos Reis. Tal como seria de prever, passei por acontecimentos bons e outros menos bons. Dos momentos menos positivos que me marcaram, um deles foi o saneamento do meu director após o 25 de Abril e o outro foi a morte da chefe da secretaria, a saudosa D. Helena. Os melhores momentos que recordo com saudade são os de convívio e brincadeira com alunos e professores no início da minha actividade profissional. Devo também dizer que sempre gostei de fazer o meu trabalho de telefonista/recepcionista, no qual procurei ser cumpridora dos meus deveres. De salientar, a amizade que construí com algumas colegas e que ainda hoje mantenho. Quero agradecer a oportunidade que me deram de poder deixar o meu testemunho nas Comemorações dos 125 Anos da Escola Artística Soares dos Reis, que inevitavelmente faz parte da minha vida.

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Isolino Barbosa

A MINHA CASA, A MINHA FAMÍLIA 1981 / 2009 Entrei na Soares dos Reis em Setembro de 1981 com um contrato plurianual, para fazer a profissionalização em exercício. Tive como orientador de estágio o Mestre, o Professor, o metodólogo, o colega, o amigo Artur Ferreira (Arturzinho entre amigos). Encontrei na Soares dos Reis um grupo extraordinário de professores com quem tive o privilégio de conviver, nomeadamente os grandes Mestres das Oficinas, que formavam uma verdadeira família (a sua grande maioria, infelizmente, já não pertence ao mundo dos vivos). Guardo na memória todos os momentos vividos nesta Escola, desde o primeiro dia até ao momento em que escrevo estas palavras. Guardo mil e muitas recordações de todos com quem tive o privilégio de conviver, professores, funcionários, e principalmente os alunos. Sim os alunos, esses que mal põem um pé fora da Soares dos Reis e já estão a voltar para trás à procura de fonte que lhes dê de beber, para matarem a sede que lhes provoca o Ensino Superior ou o mundo do Trabalho. Ninguém melhor que os alunos (conscientes) sabe avaliar o professor. Somos nós os professores, juntamente com os alunos, formando uma equipa coesa, quem dá nome e estatuto à Escola, classificada com “Ensino de Excelência”. Já cá estava quando se comemorou o Centenário; agora, num novo edifício, com melhores condições, mas sem uma elevada percentagem do corpo docente que muito contribuiu para o estatuto alcançado, formulo o desejo para que não percamos a identidade, construída e alicerçada ao longo destes 125 anos. É por tudo isto que estou e estarei na Soares dos Reis, dando e fazendo sempre o meu melhor, pois esta é também a minha casa, a minha família.

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José Melo

ANTÓNIO SANTIAGO SOTTOMAYOR Confesso que é a primeira vez que me acontece escrever sobre alguém que já não se encontra no nosso meio…que “partiu”para o vale das sombras. Mas tenho a firme e obsessiva impressão de que, a haver homenagem a alguma figura grada, “marcante” da nossa “Soares”, teria de ser ao Professor Sottomayor. Não porque seja de bom tom elogiar os mortos, a sua memória, num contexto evocativo-afectivo, fazendo a sua hagiografia, destacando as virtudes e omitindo os defeitos por imperativos de decência comemorativa. O caso do meu amigo António Sottomayor é outro: há aqui muita cumplicidade, junta com uma grande amizade feita dos pequenos gestos do quotidiano, de idas conjuntas ao Café Vicobé (uma espécie de segundo gabinete do Conselho Directivo), onde ocupava uma mesa “oficial” do canto da televisão, no meio de nuvens e baforadas de fumo, a indispensável xícara de café e o invariável calhamaço de papéis (“está aqui tudo sobre a minha proposta de reforma da Escola!”- anunciava muitas vezes), indiferente à “fauna” mais ou menos eclética do ponto de vista social que frequentava este típico café de bairro, que o conhecia e lhe apreciava a pacatez, com um misto de reverência, por causa das longas barbas brancas e do cabelo comprido admiravelmente penteado. A modéstia no vestir media-se pela forma como resolvia, de modo invariável, as suas parcas necessidades de indumentária: contava-me a Dona Nilza, a nossa simpática vizinha da esquina da Rua Firmeza com a Anselmo Braancamp, da Casa “NILZA MODAS”, que “o Professor” lá se ia abastecer, em cada início de estação, com as invariáveis camisas de ganga ou de flanela axadrezada, “à pescador”, as parcas bem compridas

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e aconchegantes, por causa de frios e humidades…mas com boas algibeiras interiores que lhe serviam de “cabides” para a colecção impecável e impressionante de canetas, lapiseiras e outros luxos do género que coleccionava com uma “gula” de avarento incorrigível. E “o professor” lá partia pelo fim da tarde, já escuro, no seu velho Citroen AX carregado de livros, dossiês, papeladas…rumo ao Pinheiro Manso, ali para os lados da Avenida da Boavista, onde o esperava uma casa cheia de gatos, de netos, mulher e filhos, livros e desenhos (que não gostava de mostrar, por modéstia). O António – como carinhosamente o tratava – no meio das suas proverbiais risadas, tão estridentes quanto características, gostava de evocar a memória de seu pai, dos livros, dos gostos literários e estéticos, da sua educação no Colégio dos Jesuítas das Caldinhas, em Santo Tirso, onde recebera, com os seus irmãos, uma forte componente humanística, cívica e cultural. Recordava a casa da família, em Álvares Cabral, um antigo palacete onde, depois do 25 de Abril, se instalou um partido de extrema-esquerda. Afora isso mais o seu apego, quase patológico, à cidade, considerando a Circunvalação como o seu “limite”, para lá do qual “morava” apenas barbárie, o Prof. Sottomayor habitava a Escola Soares dos Reis como o seu vício privativo, de inverno ou de verão, onde, com muita frequência, se esquecia das refeições e “almoçava” uns rectângulos de chocolate, à pressa e distraidamente. Tal qual os três cigarros acesos em simultâneo, a arder placidamente nos cinzeiros das secretárias do Conselho Directivo. A porta deste espaço escolar estava aberta, em permanência, de manhã à noite, tanto para professores como


para alunos, funcionários ou simplesmente para quem quisesse. Sempre ali existia uma palavra de amizade, apreço, conforto ou simples cortesia. Relativamente à “ imagem de marca” do Prof. Sottomayor refiro o episódio, com frequência, porque é abonatório do estilo da sua personalidade. Foi a meio de uma soalheira tarde de Julho, naquelas alturas de intervalo dos exames nacionais. Qualquer razão me levou à Soares dos Reis. E eis que deparo com a cena única: estava o Presidente do C.D., Prof. Sottomayor, aninhado, no meio do átrio de entrada, a preencher um boletim de matrícula de um aluno desconhecido que vinha frequentar a escola. Assim, tal e qual, na disponibilidade para o serviço que nunca conhecia quaisquer barreiras, que desafiava todos os códigos, estereótipos e ideias feitas. Incapaz de dizer que não a ninguém, apenas um teimoso “sim” o venceu: o “sim” ao cigarro que prematuramente o levou da nossa companhia! Mas acredito e creio ser acompanhado por muita gente que privou de perto com ele na velha “Soares” da Rua Firmeza: o espírito de tolerância, de diálogo, de bonomia, de humanidade ilimitada, está e estará bem vivo e “realizado” como normativo ético e deontológico dos profissionais da Escola Artística Soares dos Reis. Daqui resultará seguramente a sua maior herança e testemunho. Por mim dir-te-ei aí para o teu cantinho do céu que habitas, com maior fidelidade do que a mesa do Vicobé: Obrigado, António, por teres sido um dos meus mestres maiores de Humanidade!

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Cristina Melo

SE AS PAREDES FALASSEM “Hoje a Educação compõe-se ordinariamente de quatro partes distintas: as letras, a ginástica, a música e, por vezes o destino. A primeira e a última por serem consideradas de uma utilidade tão positiva como variada na vida e a segunda para formar o valor.” Aristóteles A Política

Se as paredes falassem… Contariam as alegrias e o entusiasmo com que se aprende e ensina o Ensino Artístico no seu aspecto mais amplo, Contariam os momentos, as relações, as expressões/emoções vivenciadas neste nosso espaço. Não foi ainda muito o tempo por mim aqui vivido, mas foi o suficiente para poder escolher este mundo como o meu espaço/local de trabalho de 1ª escolha. Alunos especialmente sensíveis, de mente aberta e portanto também adeptos do Desporto e da Actividade Física, áreas de ensino especiais, colegas especiais, pessoas especiais, enfim um mundo à parte do qual me agrada especialmente fazer parte. Não é a Escola perfeita uma vez que a perfeição está sempre longe de se alcançar mas todos os dias trabalhamos para que tudo seja mais e melhor. Continuemos a trabalhar por uma “Soares” de eleição. Parabéns à nossa Soares dos Reis.

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José Gabriel

DEMO-CRACIA

A democracia anda muita vezes emperrada e nula de objectividade…mas é necessário ser-se democrata e aceitar toda essa treta dos políticos e do politicamente correcto – que eu abomino mas que não é para aqui chamado - o assunto é outro; é o de contribuir para “um livro de impressões” comemorativo dos 125 anos da “escola”. Penso que seria mais sensato, objectivo e de estética relevante, apoiar-me no pêlo sedoso do sacana do gato que tenho por empréstimo (não é meu), e ainda por cima, ou por baixo (tanto faz), chama-se Pocoyó…que raio de nome – mas é engraçado, o sacana!.. só 37% da vida dele é passada acordada. O resto é a dormir! E o que o torna mais engraçado nesta história é ele não me ter pedido nada, mas mesmo nada, para fazer parte da mesma. Tenho reparado – sem querer - que há muitos alunos “nesta escola”, também com pêlo muito sedoso, e poses de felino descontraído…até de mais! Passam a vida na escola a “lamber o pêlo sedoso” e a dormir. Só acordam, (quando chegam a acordar e mal), no final do 3º Período…vá-se lá saber porquê! MIAU!

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Graça Ventura

É PARA AQUI QUE EU QUERO VIR Parece que ainda foi ontem a primeira vez que entrei na Soares dos Reis para saber o que teria de fazer para entrar naquela escola. Mesmo depois de me dizerem que só com um exame Ad-Hoc eu pensei para mim: - É mesmo para aqui que eu quero vir! Hoje, falar da Soares dos Reis é o mesmo que falar de metade da minha vivência neste mundo, quer como aluna, quer como docente. Lembro-me que quando terminava o curso preparava-se o centenário, quando inicio a minha experiência como docente comemorava-se o centenário. Vinte e cinco anos depois sinto a maior satisfação por continuar a fazer parte desta grande “família” que é a Soares dos Reis. Fazendo uma retrospectiva só chego a uma conclusão: que fantástica lembrança!

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Ana Lagarto

O TEMPO PASSA... A MEMÓRIA FICA Ricas e positivas, as minhas memórias da Escola Soares dos Reis guardam momentos de crescimento interior quer como aluna quer como docente. Passaram-se 44 anos desde que entrei pela primeira vez nesta escola, como aluna, e nela permaneço, há 18 anos, como Docente. Em 1969, depois de muito argumentar para seguir um Curso Artístico, perante um permanente não dos meus pais, consegui entrar na única escola vocacionada para as artes. Em pleno regime Salazarista, a Soares dos Reis podia já considerar-se uma escola um pouco “ Progressista”. Era uma escola mista mas, apesar disso, os alunos só se juntavam nas aulas, mantinham a sua distância e separação no acesso às mesmas, “não fosse o diabo tecêlas”. Mesmo com todas estas medidas, não deixavam de existir fortes amizades e até namoricos. Aqui tirei dois cursos, Pintura Decorativa e Artes do Fogo - Cerâmica. As aulas, tardes ou manhã inteiras, davam-nos uma preparação impar para o acesso às Belas Artes. Os Currículos da época eram muito vocacionados para o Desenho, por esse facto crescia diariamente o meu desejo de um dia poder leccioná-lo. A sala 6 e 8 foram espaços que marcaram a minha passagem pela escola e a minha formação artística, com os professores Martins da Costa e Isolino Vaz. Para além destes, também recordo com muita saudade todos os outros que me deram formação.

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Ao escrever este texto, presto-lhes uma homenagem pelo modo como me ensinaram a crescer e a ver a arte de maneiras diferenciadas. Quando regressei à Escola como Docente esta tinha mudado. Apesar de se continuar a sentir o espírito da Arte, já não era a mesma, quer nos planos de estudo quer nos espaços. Outras alterações foram sendo feitas e, hoje, os alunos fazem uma espécie de “Kit Artístico”, ficando com algum conhecimento em diferentes campos da arte que passam pela Cerâmica, Têxteis, Equipamento, Fotografia, Serigrafia, Multimédia, Ourivesaria, Imagem e Som, Artes Gráficas e Artes do Espectáculo. Comparativamente ao passado, em que os alunos da Escola Soares dos Reis saíam com conhecimentos aprofundados dos cursos da época, ingressando muitos deles logo no mercado de trabalho, actualmente, os alunos, apesar de terem um ensino mais abrangente da arte, retêm mais o “ saber ver “ do que propriamente o “ saber fazer” que era tão peculiar no ensino desta escola. A escola muda assim como os seus docentes e demais funcionários mudam com ela. Mudam-se as instalações, mudam-se os planos de estudo, mas esperamos que prevaleça a sua essência e o espírito intrínseco do ensino da arte. Desejo que a mítica Escola Soares dos Reis e o seu ensino se mantenham para sempre na memória de todos os que a frequentam.


Ana Maria Cardoso

EU, ANA MARIA Eu, Ana Maria Cardoso, sou Assistente Operacional na Escola Artística Soares dos Reis há 28 anos. Ao longo de todos estes anos, passei por várias situações que me marcaram até hoje, principalmente porque, em determinadas alturas, não fui apenas funcionária, mas sim uma amiga, sempre pronta para ouvir e aconselhar nos momentos menos bons não só alunos, como também colegas e professores. Ao dar o meu testemunho destes anos de serviço, não quero deixar de lembrar os que já partiram e que tanto me ajudaram neste percurso. Contudo, o momento que nunca vou esquecer é o primeiro dia na escola, o dia em que fui à entrevista para ocupar o lugar de contínua pelo período de 4 meses. A entrevista, realizada pelos professores Ilídio Fontes e Mário Truta, foi longa. A certa altura, perguntaram-me porque concorria a um lugar disponível por tão pouco tempo. Respondi que, mesmo que fosse por um curto período, iria ter oportunidade de fazer o que realmente gostava: estar em contacto com as pessoas, pelo que, se me escolhessem, não se iriam arrepender, uma vez que faria tudo para honrar o nome da escola. Hoje, tenho orgulho em trabalhar nesta escola e não podia deixar de lhe prestar esta homenagem, pois foi graças a ela que evoluí pessoal e profissionalmente. Agradeço, naturalmente, a toda a comunidade escolar pela forma como me ajudou a ser o que sou hoje.

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Rosário Forjaz

LOCAL MÁGICO DE VIDA ÚNICA SEM CONTORNOS FEITA DE MANCHAS, LUZES E SONS 52 | Impressões

Exteriorizar vivências na Escola Artística Soares dos Reis transportame a momentos que ficam além do tempo e do lugar. De aluna a professora, entre a impressão global de emoções transferidas que se fixam em gestos, palavras ou olhares memorizados, o compasso faz de cada andamento um percurso contínuo. Ficaste cá? Foi uma pergunta a que me habituei a ouvir. Se o verbo ensinar abrange tantos sentidos no que se explica e transmite, então muito tenho aprendido em cada travessia. Mais do que uma narrativa, desenho uma biografia de caminhante pautada por um trabalho sério que acarinha a criatividade e a partilha. Se neste somatório de momentos atemporais procurar histórias que gratificam as vivências desta escola, com a prata da casa que aos alunos pertence, não faltam peripécias a recordar. Quando antigos alunos me descobrem na net e me ajudam a retroceder no tempo encarando-o sob um prisma que muitas vezes um professor não tem, fico feliz! São exemplo as palavras de uma antiga aluna que na Soares estudou, e diz: “Como pude eu durante um ano achar certas ideias, trabalhos e costumes extravagantes e sem sentido algum. Santa ignorância! Agora entrei eu também nesse mundo, nesse local mágico de vida única, sem contornos, feito de manchas, luzes e sons...onde a diferença aproxima as pessoas. Professora Rosário, obrigada por me ter feito ver que somos nós que temos que ir em busca e encontrar o sentido das coisas que vemos e sentimos. Posso dizer que, inevitavelmente, me fez encontrar o caminho e o sentido da minha vida.”


Damião Oliveira Sousa

DE BRAÇO DADO Tendo sido colocado na Escola Secundária Soares dos Reis no ano lectivo de 1989/90 como professor efectivo do 12º- grupo E, apresentei-me na escola no inicio de Setembro, sendo recebido pelo então Presidente do Conselho Directivo Professor António Sottomayor, o que para mim foi uma grande alegria porque o conhecia muito bem, tinha sido meu professor de desenho na Escola Secundária de Gondomar. Depois da troca de cumprimentos e de eu lhe recordar que tinha sido seu aluno, tivemos uma conversa sobre a escola e o seu funcionamento. No decorrer da conversa, a minha alegria foi-se desmoronando, porque o presidente me disse que não havia um horário completo no meu grupo para eu leccionar nesse ano lectivo. Tendo eu estado a leccionar no ano lectivo anterior na Escola Secundária de Arcozelo e o presidente ter feito alguma pressão para que eu não saísse da escola, e já que não tinha um horário completo, lá convenci o professor Sottomayor a deixar-me regressar nesse ano lectivo á Escola Secundária de Arcozelo. A partir do ano lectivo de 1990/91 regressei à escola onde me encontro há quase vinte anos. É uma felicidade fazer esta caminhada de braço dado com a Soares dos Reis nestas comemorações dos seus 125 anos.

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José Melo

O BARÃO VERMELHO OU MAURICE / MANFRED VON RICHTHOFEN: HERÓI E VILÃO! Quem calcorreia os corredores velhotes da nossa “Soares dos Reis” não esquecerá este personagem mítico, rodeado de mistério e oculto numa mortalha baça de silêncio e de tragédia. Foi há muitos anos já, em pleno consulado do saudoso António Santiago Sottomayor, que Nosso Senhor tenha em bom lugar, como diz o povo. Pois aquele famoso piloto-aviador da I Guerra Mundial desceu acrobaticamente sobre a nossa escola, em diversos voos picados e rasantes, com textos anónimos e verrumantemente verrinosos. O certo é que, de quando em vez, lá surgia mais uma “bicada”, isto é, uma folhinha A4, com uns exemplares dactilografados e espalhados, com desarrumo, na

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sala de professores...Sempre com a assinatura inconfundível de Maurice ou Manfred Von Richthofen, der Rote Baron, caíam raios e coriscos sobre a comunidade educativa e ninguém ficava a salvo: era o Conselho Directivo, era a Secretaria, eram os “artistas” do 5º grupo, era a professora responsável pelo N.A.D.A. (núcleo de apoio aos deficientes auditivos), eufemisticamente tratada por “senhorinha do R.I. E. N.”! Toda a gente levava “por tabela”...Os professores das disciplinas artísticas, de História de Arte, de Teoria do Design, de Oficina de Artes, etc., eram “convidados”, pelo anónimo aviador, a ir desenhar no chão da Rua de Sampaio Bruno, então uma moda importada, exemplo da chamada “arte de rua”. O Conselho Directivo apanhava forte e feio, por isto e por aquilo. Aos restantes docentes aconselhava-se leitura, muita leitura filosófica e literária: mas sempre clássicos e históricos, de tal forma que, entre a população visada, foram correndo as mais diversas teorias hermenêutico-estético-conspirativas. Tratar-se-ia de um conservador, de alguém cristalizado em compêndios da velha “filosofice” dos tempos do liceu! Alguns mais engenhosos, embrulhados nas Ciências da Linguagem, nos modestos estruturalismos que a faculdade lhes debitou, com algum tímido Barthes, com certo ousado Foucault, com ínfima Kristeva, desenrolavam a hipótese de se tratar de um pseudónimo colectivo, quiçá “obra de mulheres” que, em aceno de um feminismo algo serôdio e envergonhado, viriam à “praça pública” exercer o cívico”direito à crítica”, desinstalando a Escola, propondo “alternativas” enfim à negritude dessa coisa que na época todos conheciam por “alienação”. Quem seria? Quem ousaria desafiar? Ou “poluir os meus lençóis de linho”, no dizer de Camilo Pessanha? A Soares dos Reis andava num enorme reboliço, todos desconfiavam de todos, olhares de indignação, de espreitadela de fechadura, de suspeitas mais inverosímeis: “Ia lá ser aquele, se até nem sabe latim, quando o “gajo” até cita em latim!”, “Aquela erudição é demais para ser de um tipo desses, hum! Não me parece...”, “Mas como é que “ele” sabe tanta coisa da vida da escola?”... Passados uns dias...zás!...lá vinha outro “recado”. Agora dirigido à fogosa “chefa” da secretaria, a quem alguns alunos, atentos às parecenças físicas e mais aos programas televisivos, chamavam “La Belle Dominique” (Pobre Ana, por andarás tu agora?) O que ficou da bordoada moralizadora? Como foi possível “estancar” a hemorragia discursiva que, em vez de poetizar o quotidiano, o vinha atulhar de conceitos vazios, aturdindo as mentes ignaras, encharcando-as de convencimentos desmedidos e balofos? Pois, meus caros irmãos de ofício, o Barão Vermelho morreu! Como lá dizia o famoso “slogan” do Maio de 68: “Deus morreu, Marx também e eu próprio já não me sinto lá muito bem!” Morreu por suicídio! Esgotou-se, não chegou a professor “titular”. Como dizia Eça de Queirós nos “Maias” foi o medo do pingalim da polícia! Falou-se em chamar a Judiciária à escola e...acabaram-se os “bombardeamentos”! Quem foi, afinal? O segredo ficará colado a estes muros que o camartelo do “progresso” em breve irá derrubar.


José Melo

TERESA MONTEIRO (IN MEMORIAM) E quantas vezes das pessoas que se cruzaram na nossa vida profissional, com quem labutámos e sonhámos um futuro colectivo e melhor “para a nossa Escola” ou “para o Ensino” não ficaram senão simulacros, imagens amarelecidas dum sorriso, palavras mais ou menos sussurradas num intervalo, a fugir no corredor desta vida de corre corre… Foi e não foi o caso da Teresa, ou “Teresinha” como era hábito chamar-lhe. Ocupava um cargo discreto no Conselho Directivo, daqueles onde se trata das questões dos alunos ou doutras matérias um tanto vagas ou mesmo “chatas” de burocracia. Mas fazia-o com uma subtileza gentil, com uns modos tão humanamente raros que, dir-se-ia, ela habitava já o divino antes de este mesmo lhe acontecer… Um dia a Teresa, a Teresinha, ficou doente. Outro dia foi internada. Outro regressou a casa, mas não à Escola. Depois voltou ao hospital e lá “apagou-se”. Coisas do intestino. Ou do destino que é essa terrível dor de nos sabermos todos impotentes, mas estranhamente resignados com a miséria da morte. A não ser que a recusemos. Pelas inúmeras formas que a cultura humana foi inventando. A Memória, as Religiões, as Artes… Porque tu, Teresa não morreste! Quero-te bem viva e no nosso meio, nesta nova Soares dos Reis que é tua também: por causa disto escrevote, dou-te notícias! Porque a vida, esta vida que temos é tramada, com frequência. Um dia destes, o velho Gustavo Bastos, sim o escultor das Belas Artes que também deu aulas na Soares dos Reis, um ou dois anos, no começo da sua carreira, esse que “ainda gosta das raparigas” e di-lo sem rebuço, o meu amigo Gustavo dizia-me ao ouvido, ali na esquina do Jardim do Marquês: “Ser velho é uma merda!” E tu não foste, nem és, Teresa. Porque, apesar de andares por perto, na nossa Memória colectiva, por causa dos teus modos, da tua simpatia

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e da tua voz pausada, nunca elevada que nos faz tanta falta, continuas jovem no mundo que agora habitas. E é por isso e para te trazer para o nosso meio que te saúdo com o poema que te dediquei por alturas do teu “passamento”. Aqui fica: Teresa Não invento para ti mais cotovias, Que já cantam todas nessa tua Grande manhã! Janela aberta de cantos e claridades. Aí estás, amiga Nesse teu jeito tão leve De seres mais que gente, De teres Presença com letra grande, Quase imperceptível modo De roçar essas tuas asas Pela vida fora Como se já fosses Aquilo que finalmente és: um anjo! Prometo: Enxugarei a lágrima, Apaziguarei cá dentro Todos os gritos que me abafam. Deixarei que os ventos Me confiem outro lugar Acima da tristeza. Porque a vida em ti Enfim Já só te veste de poemas, Litanias coloridas de fim de tarde! E aí te contemplo, amiga Atenta, doce, bonita Nesse teu modo especial de seres Senhora Sentada, a sorrir-nos, No eterno fio do Horizonte. Um beijo do colega da ESSR, 14-03-2005 José Melo.


Margarida Mouta

O PRESENTE É A GRANDE FOLHA ONDE ESCREVEMOS A minha permanência de apenas três anos na escola não me autoriza a enveredar pelo registo de memórias. Este é, pois, um relato de impressões que se inscreve nos registos do meu primeiro ano na Soares dos Reis, um ano de reencontro com o Ensino Secundário, após cerca de vinte anos de ausência, em contacto com outros públicos, linguística e culturalmente diversos. Se evoco este episódio, é por me parecer que ele permite dar conta de uma atitude singular que releva, simultaneamente, da sensibilidade estética e dos valores éticos que a nossa escola visa promover.

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Era o início de Junho. Uma daquelas tardes em que o calor prenuncia já o início do Verão e a chegada das férias. Na aula, porém, o ambiente era ainda de trabalho, ocupados que estávamos na descoberta dos sentidos que se tecem no interior dos textos. Com algumas (justificadas) expectativas, tentava obter daqueles alunos da minha turma de 10º ano uma resposta criativa à tentativa de sensibilização para a escrita de um texto narrativo, a partir da leitura orientada de um livro de contos. Esperava produções interessantes porque a turma era composta por alunos motivados, revelando alguns até uma sensibilidade e um gosto pelas palavras fora do comum. Tínhamos praticamente acabado de dissecar o livro seleccionado para leitura colectiva. Tratava-se de uma obra recheada de pequenas narrativas que tinham em comum o facto de terem por cenário o Porto. Alguns alunos tinham-se revelado particularmente sensíveis aos pedaços de quotidiano aí narrados por um tal Dr. Domingos Pintado (narrador fictício), divertindo-se com as suas estórias do quotidiano, marcadas pelo insólito ou pelo pitoresco. Reconhecidos os lugares, haviam apreciado, na escrita ágil do autor, o retrato social de uma cidade que muitos deles só agora, com a ajuda das visitas de estudo, orientadas pelos professores de História de Arte ou de PT, começavam a conhecer. Dois dos grupos, porém, confessaram que teriam preferido debruçar-se sobre outro tipo de escrita e perguntavam-me se se podiam inspirar na leitura de outros contos. Foi então que, solidária com o desejo que este pedido encerrava, me lembrei de lhes ler O último dia de todos os verões. Comecei assim: “ O que vou fazer agora não fazia parte dos planos


desta aula, mas se vocês me derem licença, gostaria de vos ler um conto que li recentemente e que despertou em mim uma estranha e rara emoção. Foi escrito por um jovem que deve ter pouco mais de 30 anos, usa piercings nas orelhas como muito boa gente cá da escola e foi para mim uma autêntica revelação. Até agora, só o conhecia como poeta. Aproximei-me da secretária e retirei da pasta o exemplar de Cal, editado pela Bertrand que eu tinha comprado uns dias antes. Na capa, sobre o fundo de uma mão áspera e rugosa em tons de sépia, podia ler-se o nome do autor: José Luís Peixoto. E comecei a ler: “Era Julho. Era o coração e o sol e o centro do verão.” Depois a minha voz viajou por um universo de palavras simples, mas visualmente ricas, a evocar a realidade distante da rotina de um dia de trabalho no Alentejo rural. Um universo de um pai e de duas crianças; de sobreiros e machados; de reboques e tractores; de feridas da terra e do sol aplacadas pela frescura das águas de uma barragem. Um universo de uma tarde de Verão subitamente cortada pelo drama. E foi aí que sobreveio um outro drama dentro da sala de aula. À medida que a ficção trágica ganhava para mim contornos insuportáveis, apercebi-me de que me ia sendo difícil, senão impossível, prosseguir a leitura. A voz embargava-se e a ténue névoa que a princípio embaciava o meu olhar, em breve se transformou em grossas lágrimas que deixei de poder conter. O inusitado da situação deixou-me estupefacta. Em mais de 30 anos de ensino, nunca tal me havia sucedido. Confesso que não sou dada a fragilidades emocionais desta natureza, mas talvez o desgaste e o cansaço inerente aos esforços realizados para ultimar um projecto pedagógico em que estava envolvida pudessem justificar o descalabro da situação. Impunha-se, no entanto, uma saída. À minha frente, vinte e quatro pares de olhos fitavam-me expectantes, num silêncio composto de respeito e compreensão a que não era alheia uma pequena nota de frustração. Percebi que também eles tinham sido afectados pela beleza das palavras, se tinham deixado transportar pela emoção e, talvez mais do que conhecer o desfecho da narrativa, ansiavam agora por retomar o percurso de descoberta da dimensão estética que rodeava o texto. As palavras estavam carregadas de energia simbólica e eu tinha interrompido a corrente que a processava. Foi então que o Manuel – o mesmo Manuel a quem eu tantas vezes chamara a atenção por estar a desenhar quando deveria estar a tirar notas – erguendo-se de rajada, me arrebatou o livro das mãos e, de um modo delicado, mas assertivo, me interpelou: – Professora, dá-me licença? E, com a voz vibrante que o caracterizava, prosseguiu a leitura num tom e num ritmo que manteve os colegas suspensos até à última frase. Recordo-me que muito antes do último parágrafo, soou o toque. No entanto, contrariamente ao que sempre acontecia, naquele dia ninguém fez sequer menção de se levantar. E a aula só acabou quando o meu substituto desceu do estrado, fechou o livro e mo depositou nas mãos. Algo de mágico se tinha passado naquela tarde de quase-início de Verão.

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Paula Gonçalves & João Paulo Pimentel

O MESTRE Não se pode criar experiência. É preciso passar por ela. Albert Camus

O Mestre, homem sorridente de olhos azuis e sempre atento ao que de “novo” o rodeava. As suas primeiras palavras foram de delicadeza. Assim, começou o tempo... Na escola, passava os dias connosco, emprestando-nos a sua sabedoria e a sua ciência, sempre com uma alegria contagiante. A sua paixão pelo saber e o saber acumulado ao longo da sua vida tornavam-no um sábio, que nos foi ajudando ao longo das nossas vidas profissionais e da dos alunos. As vitórias e a satisfação dos outros (professores e alunos) animavam-lhe o corpo e a alma: a exemplo dos grandes Mestres, como professor, foi capaz de construir, aos olhos de quem com ele conviveu, a grandeza de cada um. Mais que as suas evidentes qualidades e competências profissionais, técnicas ou artísticas, foi sem dúvida a qualidade humana que nos deu a conhecer e partilhar que hoje recordamos com a mais profunda saudade. E a todos prestava carinhosa e frequentemente a sua homenagem e agradecimento. A todos, ausentes e presentes, venerava e preservava a sua memória e contributo. Com o sentido de humor que sempre o caracterizou relembrava carinhosamente o “Arturinho da Tapitanga”, o “Li”, o “Transatlântico”, o “Consumido”, a “Espanhola”, a “Patroa”, o “Mãozinhas”, o “Professor Ilídio”, os seus “dilectos amigos”… E eram os amigos que cerimoniosamente fazia questão de amealhar e consagrar. Essa era a maior fortuna e conquista de toda a sua vida… Em troca este homem foi-nos dando algo que não tem preço, davase a si mesmo, sem reservas ou formalidades…

E esta foi a nossa grande herança! Como ele, acreditamos na escrita, na história, no tempo... “Em memória do professor Francisco”

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Cristina Braga da Cruz

MEMÓRIAS DE UMA REFORMADA Como tantos outros professores cultivei o meu ego: queria ser uma “sôtora” a valer… ser “a maior”… ser um verdadeiro “sabonete” a cheirar a sabedoria até ao fim… (ninguém é perfeito…) e sonhava com a maneira de concretizar esse objectivo tornando as matérias inteligíveis e sedutoras para os alunos… Pois é…, mas para isso ser possível, era preciso que, pelo menos aos nossos olhos, esses alunos também fossem “os maiores”… (perfeitos…). Pois então… essa miragem, esse impossível, esse tão almejado afago ao ego de qualquer “sôtor”, que é ter alunos “VIP’s” à sua guarda…, foi no bom ambiente da Escola Secundária Artística Soares dos Reis, que se tornou realidade, durante os anos “felizes” em que lá leccionei Geometria Descritiva a turmas de 12º ano.

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Sónia Cortez Gonçalves

MEMÓRIAS DA SOARES Depois de separar as minhas recordações, ordenando-as, porque elas são como as cerejas…, chego ao princípio dos meus tempos nesta Escola: o estágio (1984-1986), a minha primeira passagem pela Soares. Com a curiosidade do distanciamento recordo a outra comemoração, a do primeiro Centenário, um quarto de século atrás e uma época em que as certezas eram tão diferentes das de agora. Tudo parecia possível e acreditava-se, às vezes quase de olhos fechados, na qualidade das transformações. Aqui conheci e trabalhei com pessoas que foram essenciais para o modo como encarei o ensino e como vivi a minha profissão. Seguiram-se anos em outros lugares; os últimos (2002-2009), os do retorno à Soares dos Reis, foram diferentes de todos os outros. Os novos cursos, mais adequados (?) às carências da sociedade, converteram-se num desafio e num desafiador trabalho de equipa em que partilhar conhecimentos, discutir projectos e metodologias fizeram esquecer as horas e às vezes a família. Dar a volta às coisas para as tornar interessantes, a entrega que por vezes me fazia lembrar entregas antigas, emoções desaparecidas que só a experiência pode qualificar, tornaram tudo mais vivo e genuinamente mais rico. Relembro o meu penúltimo ano na Soares como aquele que provavelmente mais satisfação me deu. Os alunos, os colegas, outras pessoas que partilharam os projectos e as várias fases de um ano de especialização fizeram-me sentir de forma intensa que estava a fazer o que realmente gostava. Valeu a pena. Chegou por fim, o fim da minha passagem por esta Boa Escola e pela profissão. Agradou-me terminar neste Lugar: brilhante, neutro e transparente com um cheiro a novo e a renovar a sua história. Posso, assim, recordar duas eras diferentes.

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Augusta Matos

A DIFERENÇA

Quiseste ser diferente. Conseguiste, mas manifestas essa diferença cultivando a faceta negativa da tua personalidade que, não contente com isso, se revolta, se contradiz nos seus actos e se repudia; é um constante estar aqui que não está presente, é um estar lá que também está ausente. Tu queres outra diferença que não consegues alcançar. A que cultivaste torna-te um ser egoísta e superior. Superior em quê? Analisa-te, conhece-te a ti mesmo e repara que essa superioridade que sentes é um refúgio à tua marginalidade para poderes sobreviver. Pensas que os outros precisam da tua ajuda, queres dar a mão para crescerem melhor, mas ficas desiludido quando negam essa ajuda. E sabes porquê? Porque aquilo que tens para dar não os vai ajudar, vai sim alimentar o que estás a cultivar em ti: egoísmo. Ah, se tu não o cultivasses! Ele daria lugar a manifestações de sentimentos tão nobres, tão elevados, que aí sim, a tua mão ia ser pequena para dar ajuda aos que te rodeiam. Mas repara, que quanto mais a desses, mais essa mão se fortaleceria para ajudar mais e mais e tu sentir-te-ias recompensado por cultivares a faceta positiva da tua personalidade. Há tanta gente à tua espera! Não provoques o desânimo, tens que agir depressa para não ser tarde demais e os sentimentos não se subverterem. Estás quase

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a encontrar a via que te leva a essa diferença. Sê persistente, não é fácil e se pensas que os outros nunca pensaram em cultivar a faceta que tu já cultivaste, enganas-te muito, só que tiveram um apoio que tu não tiveste, enveredando por um caminho mais difícil, mais conflituoso inicialmente, mas que agora tem as suas compensações. Tu seguiste o caminho mais fácil e não queres acreditar nas consequências que isso te vai trazer, para viveres melhor o teu egoísmo e dares largas ao teu momento: o presente. O futuro constrói-se com esses momentos consecutivos e se pensas que amanhã vais construí-lo melhor, pode ser tarde, porque a auto-destruição é eminente, e difícil ou impossível o retrocesso. Pára já, ou anulas-te perante ti e a sociedade porque, sem conseguires a tua própria dignidade e auto-estima, ninguém te dá a mão. Partilha os teus sentimentos tão nobres, que são tantos e não os vês! Fomos muitos os que quisemos fazer-te sair do eu, eu, eu. Não fomos bem sucedidos mas sentimos o que um dia sentiu Almada Negreiros quando escreveu: “Não deram resultado todas as esperanças que eu tinha posto no dia de hoje. Mas amanhã de manhã bem cedinho, todas as esperanças começam outra vez à procura da sua vez”. Recado para um aluno, para muitos alunos.


Fernanda Lage

AULAS NA SERRA O comboio chegou, das carruagens saltaram jovens carregados de mochilas e sacos de dormir, já dentro da carrinha do Parque Natural da Serra da Estrela fizeram-se as apresentações, professores, alunos e funcionários do Parque. Subimos, durante o percurso íamos ouvindo as explicações do guia, intercaladas com questões sobre o desenvolvimento dos trabalhos previamente tratados na escola. – Esta é a casa de que a professora nos falou? – Podemos fotografar? – Ali é o Mondeguinho! Apenas um fio de água… E finalmente as Penhas Douradas! Já ninguém estava sentado, a carrinha parou e rapidamente os alunos saíram, uns tiravam fotografias, outros carregavam a bagagem e havia uma grande curiosidade em conhecer a casa-abrigo onde ficaríamos alojados. Distribuídos os quartos fomos tratar do almoço: para além do farnel que levámos havia uma sopa quente, pão fresco, fruta, marmelada e queijo da “Tilinha”, que fez questão de almoçar connosco. Esta viria a ser uma personagem da serra, que nos acompanhou em mui-

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tas das nossas visitas, conhecedora da Serra, da vida dos residentes, do amanho dos rebanhos e da feitura do queijo e dos requeijões. E ali mesmo, durante o almoço, foram todos informados das tarefas que cada um de nós, professores e alunos, iríamos realizar naquele curto espaço de tempo. Estabeleceram-se horários e a primeira visita foi logo a seguir, depois de tudo arrumado. Não vou descrever as aulas mas apenas referir a vivência, a partilha, o entusiasmo, dedicação e empenho com que os alunos, ano após ano, realizaram esta experiência pedagógica. Dela demos mostra em vários pontos do país. Vivemos em comunhão, alunos, professores, funcionários e convidados. Quando regressámos alguém disse: – Finalmente sei o que quero fazer da minha vida… – Só agora conheço os meus amigos! – Com estes diários até gosto de escrever... – Esta é outra Serra, uma serra que se encontra no silêncio! – Deixe-me tirar mais uns apontamentos… Hoje relembro e afirmo: Que bom ter sido professora!…


Palmira Lopes

VOO DE UMA GAIVOTA Em 1996, a convite da empresa Soares da Costa, os alunos do 11º C de Oficina de Artes realizaram a pintura de um painel de 100 metros no tapume de protecção à obra de reabilitação e adaptação a hotel de um edifício antigo situado na Praça da Ribeira, no Porto. O projecto era a expressão do voo imaginário de uma gaivota (a gaivota do cubo de José Rodrigues) que levantando voo percorria a marginal, entrava no túnel da Ribeira e descia a R. de S. João. Foi um desafio único e uma experiência inesquecível.

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Alexandra Azevedo

DEUS QUER, O HOMEM SONHA, A OBRA NASCE Setembro, 1984. Entro pela primeira vez na escola. Vou apresentar-me. Caminho pelo corredor principal, escuro e feio e interrogo-me: Mas o que fui eu fazer? Por que não fiquei lá em baixo? Fora, um céu de chumbo, um céu de Porto, cabisbaixo e húmido. Interiormente revia o claustro luminoso da escola que acabava de deixar, a baía azul de Lagos, a luz intensa do sul. O que fui eu fazer? Subitamente, na minha frente, dois braços abertos fazem-me parar e uns olhos incrivelmente azuis, entre o grave e o divertido, apontam para a minha barriga e disparam num tom definitivo: - Pela morfologia, é um rapaz! E não me venha com essas modernices das ecografias. É um rapaz! Truta, disse com uma vénia teatral. Olhei-o sem compreender. Estendeu-me a mão. Mário Truta. Vai ao Directivo, não é? Eu vou consigo. Pronto. Estava dado o tom. A “escola nova” inesperadamente iluminou-se, de repente radiosa. O corredor sinistro coloriu-se. E nem mesmo a sala de professores sem vista de mar, acanhada e escura, conseguiu já impressionar-me. Aí assistiria a discussões espantosas entre o próprio Mário Truta e a pintora Esmeralda Calvário. Relembro uma, acalorada, renhida, retomada a cada intervalo daquela manhã e que terminou em amuo recíproco. Era uma discussão sobre...o cinzento-pombo! Outras vezes, pequenas picardias surgiam entre artistas mais sensíveis. Foste à exposição de Fulano? Fui. E então? Só azuis. Sai-se de lá gelado!

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Um texto de impressões sobre a escola? A escola é isto. A escola são as pessoas com quem trabalhamos e convivemos todos os dias, os colegas, os alunos, os funcionários. O melhor da escola? A resposta surge-me sem hesitações. O melhor da escola são os alunos. Motivação permanente e razão de ser de tudo. A escola é também a recordação dos que nos deixam saudades como o presidente António Sottomayor emergindo sorridente e afável por entre uma nuvem de fumo, no gabinete em que se podia entrar sempre, com a certeza de se ser bem acolhido. Mesmo quando as respostas eram negativas, ficava-se com a sensação de se ter sido atendido… E perante a ansiedade em que nos lançavam tempos conturbados de mudanças, de Conselhos Pedagógicos intermináveis e constantes, Sottomayor, uma das suas muitas canetas de aparo entre os dedos, atirava com um olhar malandro esta máxima extraordinária: Depois da Desordem, virá o Reino da Ordem! E dava uma gargalhada. Obviamente, ao longo dos anos, os desentendimentos também existiram, mas sempre ou quase sempre, eles decorreram da alma que todos pomos nas questões da escola, da nossa escola. Janeiro, 2009. O presente é todo o passado e todo o futuro*. Entro num átrio luminoso com Vénus à porta. E todos os dias a alegria se renova. A “escola nova”continua radiosa. Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.

* Álvaro de Campos


Maria da Luz Rosmaninho

SE UMA BRISA Se uma leve brisa me trouxesse todas as memórias dos anos que aqui passei, dir-me-ia que a escola é acolhedora, porque não rejeita; arisca, porque não se formata; iconoclasta, porque não é dada a convenções; difícil, porque nela nada é dado como adquirido; adulta, porque convive com os mais novos, ouvindo-os, orientando-os e partilhando com eles o espaço/tempo de uma vida; Dir-me-ia também que é um grande estímulo este quotidiano recheado de gente que quer, que faz, que abre caminhos; confirmar-me-ia que não devemos olhar só para a árvore e descurar a floresta; Mas dir-me-ia também que, por vezes, não é fácil a indiferença pelo evidente, a ausência de um conforto garantido que os nossos pequeninos mundos podem dar-nos. Trabalhamos, esforçamo-nos, nem sempre partilhamos. Mas avançamos, porque na escola há um desígnio comum: levar aos alunos um bem capaz de alterar os seus destinos - o conhecimento. E os alunos são generosos; eles sim, retribuem com as suas provas de confiança – melhoram, corrigem, investem. Nem sempre todos. Mas os que o fazem dão-nos o sinal de que podemos continuar, de que vale a pena continuar a trabalhar com eles e para eles.

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Natália Lobo

SENTIR A ESCOLA Há tantos acontecimentos, tantas imagens, palavras, sons e até cheiros que me vêm à memória. É difícil escolher o que referir daquilo que vivi na ESCOLA. Foram tantos anos, tantas lutas, tantas esperanças, algumas derrotas, mas tantas e tantas alegrias... Esta ESCOLA sempre foi para mim uma espécie de paraíso, onde era possível sonhar, inovar, lutar para melhorar, sempre num ambiente aberto, solidário, alegre até... Tive a oportunidade de contactar e conhecer pessoas maravilhosas, colegas, funcionários e alunos. Colegas especiais foram e são tantos, uns ainda cá estão, outros já não. Funcionários ... não me lembro de nenhum de que não tivesse gostado, ou com quem de alguma maneira me tivesse incompatibilizado, pelo contrário. Cada um com as suas características, sempre pude contar com todos eles. Alunos... ver aquelas caritas felizes quando nos encontram, aquele olhar límpido de quem viu um bocadito de si, a professora... é tão bom... E esta ESCOLA parece que duplica estas sensações, estes sentimentos, tem uma magia muito especial vinda do reino da sensibilidade. Aprendi tanto aqui... cresci tanto aqui... dei tanto de mim aqui... é tão difícil escrever sobre a ESCOLA sem cair na emoção e às tantas na lamechice... mas também não posso deixar de o fazer. É bom viver mais um aniversário da ESCOLA.

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Manuel Couto

SOARES DOS REIS Escola onde um dia fui colocado no quadro de professores efectivos e de onde, muitos e muitos dias depois, me aposentei. É com saudade que recordo os momentos vividos, todas as tarefas que se apresentavam no dia-a-dia desta Escola, bem como os afectos sentidos entre os que nela trabalhavam, independentemente da tarefa ou quadro a que pertenciam. Fossem docentes, discentes, auxiliares ou administrativos, estabelecia-se uma grande empatia e também verdadeira amizade. Lembro, com nostalgia, a dedicação daqueles que, já não estando entre nós, nunca serão esquecidos. Sottomayor, Terra, Mª Alzira, Magalhães, Vaz, Alberto Henriques, Manuel Pedro, Alfredo, Eduardo Marques, Fonseca, Mário Truta, Xavier Costa, Eduardo Marques, Esmeralda Calvário, Artur, Mesquita…Com todos estes, e outros que de momento não me ocorrem, com os que também já se aposentaram e os que ainda estão em serviço tive bons momentos de camaradagem nesta Escola... Como não há outra! Um abraço. Até sempre...

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Celeste Costa

CURRICULUM VITAE DA ESSR Nome : ESSR Data de Nascimento: 12/01/1885 Nacionalidade: Portuguesa Estado Civil: casada (com todos nós) Residência: Rua Major David Magno 139 4000-191 Porto Telefone : 225371010 Site da escola: www.essr.net NIF.: 600015190 Habilitações Académicas: 125 Anos Experiência Profissional: Formação de Adolescentes e de Adultos nas várias Artes ao longo do tempo. Aptidões e Competências Sociais: Formação e educação para a vida de muitas vidas incluindo a minha. OBRIGADO POR EXISTIRES. CONTINUA. O TEU TRABALHO É MUITO IMPORTANTE Testemunho de: Assistente Operacional - Celeste Costa

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José Melo

125 ANOS DE LUZ DE UMA BELA ROSÁCEA TRIPEIRA Fazer da Escola, da “nossa Soares” a nossa Casa! – Eis o melhor e o maior desígnio para um acto comemorativo digno e consistente destes 125 anos, verdadeiro exercício de vida, de acção, de aprendizagem, de criação, de movimento perpétuo, ponto de encontro de vontades, encruzilhada de Tradição e de Inovação, fórum de Sentidos e Experiência de Sedução de almas e corpos, abertos à usura do Tempo. Espaço de modernidade, fonte permanente de mil estimulações, abertura a um mundo de possíveis, sempre a Soares dos Reis tem sido, ao longo de gerações, a oficina quotidiana do Deslumbramento, o brilho nos olhos da Inquietação, a certeza partilhada desta Comunidade de gentes nortenhas que, de cara lavada, sabe conjugar como ninguém o significado das palavras Arte e Amor. Que rima com suor, sacrifício e dedicação de muitas e muitos que, de dia ou de noite, numa “escola prática” de “arte aplicada” ou de “artes decorativas”, chamando-se “Industrial Faria Guimarães” ou mais tarde “Soares dos Reis”, a nossa “Casa Comum” foi e há-de continuar a ser o exercício da cidadania e da abertura

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permanente aos ideais do Progresso que germinaram e hão-de continuar a fazer germinar a construção das ideias, a criação e o desenvolvimento dos projectos, a dinamização cultural e artística da cidade do Porto e da sua área metropolitana. Basta recordar que foi um antigo aluno, falecido há cerca de um ano, nome grande das artes nacionais, Jaime Isidoro, que lançou no Porto a primeira galeria, a Alvarez! E quantos nomes notáveis de artistas plásticos, de arquitectos, de cabouqueiros anónimos da Beleza ou da não-Beleza, artífices de um mundo sempre renovado pela humana vontade de aceder a níveis de Representação e de Formas superiores, libertas das negritudes e das sombras do infra-mundo caótico e invisível! Foram autênticas legiões de criativos das mais diversas expressões plásticas, desde a moda, a ourivesaria, o design de mobiliário, a cerâmica, as artes gráficas até à fotografia e ao cinema (recorde-se o nome de Luís de Pina) que deram ao nosso país, por via das suas práticas de aprendizagem e/ou (tantas vezes as duas coisas em sequência) de ensino, o melhor de si próprios, da sabedoria e da genialidade de que foram capazes… Não podemos ficar obviamente presos à impressão multicolor que esta magnífica rosácea pedagógica que esparge a luz de um passado glorioso de 125 anos nos vem trazendo! Aceitemos o peso institucional das eras passadas e sua glória, sem deixarmos de ter saudades do futuro. Sabemos que o mundo vive hoje num estado de revolução permanente de conceitos, de práticas, de estilos, de semânticas, de atitudes e de


valores…não apenas ao nível das comunicações e das expressões, mas também daquilo que os estímulos e as representações icónicas e eidéticas nos enformam os circuitos neuronais e os sistemas de organização social e de pertença ou de poder… Temos de acreditar na mudança. Na nossa. Endógena. Com persistência e teimosia. Para mais e melhor Não fosse o exercício da nossa profissão de educadores de aprendizes de Arte um ponto axial de Utopias várias com o Entusiasmo da aula iniciática, primordial. Das discussões e reflexões havidas e a haver em torno da “Nova Soares”, do seu Projecto Educativo e da sua “especificidade” estará, a meu ver, a garantia da prevalência de Fernando Pessoa sobre Oliveira Martins. Esclareça-se: No velhinho edifício da Rua Firmeza está um mural da Mensagem: “Deus quer, o homem sonha, a obra nasce”. Algures, num canto escondido do novo edifício da EASR, “resiste” um relevo escultórico, representando o antigo patrono, Oliveira Martins, acompanhado de um seu “pensamento” seguramente descontextualizado: “hoje não vou sonhar, vou aprender”. Creiamos, porém, nas virtudes de um “diálogo” de compromisso entre os dois vultos das letras lusas: porque não fazer a obra nascer a partir da aprendizagem do sonho? Pois não foi Shakespeare que avisou a Humanidade que “We are such stuff as the dreams are made”?

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Manuel Couto

DEUS QUER, O HOMEM SONHA, A OBRA NASCE Mensagem de Fernando Pessoa

Evocando Fernando Pessoa, o meu crescer na “Soares” foi sempre entre o sonho e o nascer de uma obra. Ao longo de mais de um quarto de século, no têxtil, apostei sempre no movimento e na magia de quem tem o fio e a cor para encantar. Entre as nuances ora coloridas, ora neutras, fui tecendo uma vivência que só vós, queridos colegas, alunos e funcionários podereis recordar e contar.

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Deolinda Rodrigues

ERA COMO SE UM BANDO DE PÁSSAROS TIVESSE ENTRADO Percorro o corredor sem ouvir os passos rápidos e os gritos de quantos atrás seguem o mesmo caminho….Cheguei! À minha frente aquela sala que dias antes me fizera pensar num terramoto! Num fragmento de tempo acontecera….era como se um bando de pássaros tivesse entrado num voo sereno para pousar… Assustados, inquietos, inquisitivos, irreverentes. Tudo se transformara… eram rostos, vozes, palavras que se inventavam numa força capaz de fazer renascer em marcos, cada estirador estragado, cada cadeira partida … Só quem entende a magia dos pássaros pode compreender! E ninguém poderá imaginar a alegria das palavras que naqueles anos levava comigo para lhes dar. E ninguém poderá compreender o mundo de entusiasmos da Ana, dos Paulos, do Tomé, das Patrícias, das Marias, do Ricardo, dos…. Um ano, depois de vários anos, e contra o vento do pensamento de muitos de nós, ali estávamos embrulhados e chegados a outro lugar de lugares.

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Não quero olhar à minha volta. Corre dentro de mim a última meta. Nos corredores repletos de pó e silêncio, os passos rápidos e os gritos de quantos atrás seguem o mesmo caminho…. Mas à minha frente outra sala … na mesma porção de tempo, de novo acontecera… outro bando de pássaros entrava pronto a pousar. Também inquietos, assustados, inquisitivos, irreverentes. O tempo não pára e rápido chegamos. Naquela manhã sentia um frio especial. Era o meu adeus aos pássaros! Será que poderei viver sem pássaros? O que vai acontecer aos meus bandos? Ficou o silêncio. E tive medo desse silêncio porque sabia que esmagava palavras. Os pássaros falaram cantos lindos e o meu silêncio rebentou em palavras de emoção. Todos os tempos são tempo de pássaros, é preciso estar atento à chegada dos bandos! Hoje para mim são dias diferentes de todos os que passaram, e de todos os que estarão para vir.


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