Ser Urbano - Carlos Garaicoa

Page 1

DIÁLOGO AGUDO PENETRATING DIALOGUE Rodolfo de Athayde PARTITURA: UMA SINFONIA DA CIDADE PARA SOLISTAS E GRAND ESEMBLE SCORE: A SYMPHONY OF THE CITY FOR SOLISTS AND GRAND ESEMBLE João Fernandes COMPOSIÇÃO EM CATACRESE COMPOSITION IN CATACHRESIS Fernando Castro Flórez A CIDADE DA LUZ THE CITY OF LIGHT Leonardo Padura

CARLOS GARAICOA SER URBANO

SER URBANO BEING URBAN Rodrigo Villela

Catálogo produzido por ocasião da exposição Ser Urbano organizada pelo Espaço Cultural Porto Seguro, de 07 de fevereiro a 06 de maio de 2018, em São Paulo. / Publication produced for the exhibition Being Urban, organized by Espaço Cultural Porto Seguro, from February 7 to May 6 2018. In São Paulo, Brazil.

ESPAÇO CULTURAL PORTO SEGURO Alameda Barão de Piracicaba, 610 Campos Elísios - São Paulo (11) 3226-7361 espaçoculturalportoseguro.com.br Audioguia / Audioguide https://goo.gl/LxRC5L

ser urbano_capa FINAL LBjREV.indd 1

4/15/19 4:13 PM


MinistĂŠrio da Cultura e Porto Seguro apresentam

1


2


curadoria Rodolfo de Athayde

2018




SUMÁRIO SUMMARY


11

SER URBANO BEING URBAN Rodrigo Villela

12

DIÁLOGO AGUDO PENETRATING DIALOGUE Rodolfo de Athayde

14

PARTITURA SCORE

26

PARTITURA: UMA SINFONIA DA CIDADE PARA SOLISTAS E GRAND ESEMBLE SCORE: A SYMPHONY OF THE CITY FOR SOLISTS AND GRAND ESEMBLE João Fernandes

36

FIN DE SILENCIO END OF SILENCE

54

QUEM TEM TELHADO DE VIDRO... IF YOU HAVE A GLASSHOUSE...

62

SAVING THE SAFE – BANCO CENTRAL DO BRASIL

68

PORTFÓLIO PORTFOLIO

80

INFAMES CASAS OCULTAS INFAMOUS HIDDEN HOUSES

86 90

ABISMO ABYSS

152

A CIDADE DA LUZ THE CITY OF LIGHT Leonardo Padura

COMPOSIÇÃO EM CATACRESE COMPOSITION IN CATACHRESIS Fernando Castro Flórez




10


SER URBANO

BEING URBAN

2018: São Paulo, Havana, Madri. Ou Hong Kong, Luanda, Cidade do México, Alepo. Como acessar as especificidades de megalópoles ou de cidades pequenas? Pelas incontáveis diferenças e particularidades de cada lugar, ou pela aparente semelhança de um mundo urbano e global? “Ser Urbano”, de Carlos Garaicoa, é a primeira grande exposição individual em São Paulo de um dos artistas mais questionadores de nosso tempo. Seu interesse pelo espaço físico, social e imaginário da cidade como invenção humana se destaca no mundo todo. Há décadas ele investiga novos caminhos para o desenho, a paisagem urbana, a fotografia, e também para a arquitetura, em um sentido muito ampliado. A cidade que Garaicoa questiona poeticamente, com dureza e com beleza, traz em si um contexto de energia social, tensão política, ironia, crítica e efervescência.

2018: SÃO PAULO, HAVANA, MADRID. Or Hong Kong, Luanda, Mexico City, Aleppo. How to access the specificities of megalopolises or small towns? By the countless differences and peculiarities of each place, or by apparent similarities in na urban and global world? “Being Urban”, by Carlos Garaicoa, is the first large solo exhibition in São Paulo of one of the most questioning artists of our time. His interest in the physical, social and imaginary space of the city as a human invention stands out worldwide. For decades he has been exploring new paths for drawing, urban landscape, photography, as well as architecture in a much broader sense. The city that Garaicoa questions poetically, with rigor and beauty, carries within itself a context of social energy, political tension, irony, criticism and effervescence.

Esta mostra apresenta um recorte bastante específico da produção recente do artista cubano. Com obras em diferentes suportes – desenho, instalação, vídeo, escultura –, a seleção aqui apresentada, com curadoria de Rodolfo de Athayde, faz um percurso repleto de sutilezas, que convida o público a olhar para aspectos cruciais e nem sempre amenos de nosso tempo.

This show presents a very specific selection of the Cuban artist’s recente production. With works in diferente supports—drawing, installation, video, sculpture—, the selection presented here, curated by Rodolfo de Athayde, comprises an itinerary filled with subtleties, inviting the public to look at crucial—and not always pleasant— aspects of our time.

A urbe da qual Garaicoa faz sua matéria artística nos questiona: o que esperamos do mundo? Quais armadilhas estão diante de nós? Como olhar para o passado? E como arquitetar o futuro? Entre muitas outras.

The urb that Garaicoa takes as his artistic subject asks: What do we expect from the world? What pitfalls lie before us? How should we look at the past? And how should we architect the future? Among many other questions.

Nesse caminho, detalhes e sutilezas dizem muito. Cada obra parte de histórias, personagens e locais reais, que muitas vezes trazem em si chaves para as perguntas que suscitam ou para as emoções que evocam. O “ser urbano” de Garaicoa é um surpreendente apelo em torno das poéticas urgentes do nosso tempo.

Following this path, details and subtleties say a lot. Each work starts with real stories, characters and places, which often bring with them keys to the questions they raise or the emotions they evoke. Garaicoa’s “being urban” is a surprising appeal around the urgent poetics of our time.

Rodrigo Villela Diretor executivo | Executive Director Espaço Cultural Porto Seguro

11


DIÁLOGO AGUDO Durante anos considerei a ausência de uma exposição individual de Carlos Garaicoa no circuito institucional de São Paulo uma dívida para com a cena local da arte contemporânea. Pode-se dizer que o artista de origem cubana não é exatamente um estrangeiro nesta cidade. A julgar pela interação permanente com outros artistas, curadores e instituições culturais no Brasil, podemos vê-lo quase como um personagem local, um semionauta que busca decifrar os códigos das muitas “brasilidades”. Carlos Garaicoa pensa o “ser urbano”, condição ontológica por excelência do homem contemporâneo. Sua obra aborda uma relação existencial com a cidade, para além do espaço físico. Embora as estruturas das metrópoles sejam a argamassa fundamental de seus trabalhos, não escapa do leque criativo do artista a análise das simbologias do poder, desde uma visão subjetiva, quase íntima, que reflete história e sensibilidade. Partitura, obra elaborada ao longo de 10 anos, condensa as mais variadas gravações de músicos de rua, como se esses formassem uma orquestra. Originalmente dispersos pelas cidades, tais músicos são harmoniosamente reunidos e regidos pela batuta do artista em uma “suíte da cidade”. O núcleo que reúne os trabalhos Saving the Safe, Port– fólio e Infames Casas Ocultas promove um ambiente

12

PENETRATING DIALOGUE FOR YEARS I CONSIDERED THE LACK of an individual exhibition of the work of Carlos Garaicoa in São Paulo as a kind of indebtedness to the local contemporary art scene. It is true that the artist of Cuban origin is not exactly a foreigner in this city. Judging by his permanent interaction with other artists, curators and cultural institutions in Brazil, we can see him almost as a local personage, a “semionaut” who seeks to decipher the codes of the many “Brazilianesses”. Carlos Garaicoa ponders the “urban being”, ontological condition par excellence of the contemporary man. His work adresses an existential relationship with the city, apart from physical space. Although the structures of the metropolises comprise the fundamental mortar of his works, the analysis of the symbologies of power does not elude the artist’s creative scope, coming from a subjective, almost intimate vision that reflects history and sensitivity. Score, a work developed over the course of 10 years, condenses widely varied recordings of street musicians as though they formed an orchestra. Originally scattered throughout the cities, these musicians are gathered together harmoniously and conducted by the artist’s baton in a “city suite”. The segment that brings together the Works Saving the Safe, Portfolio and Infamous Hidden Houses promotes a suitable environment for discussions and thoughts on the current relations of power and the contradictions of the


onde cabem discussões e pensamentos sobre as relações atuais de poder e as contradições da crise estrutural da sociedade contemporânea dominada pela lógica do capital. O simbolismo mudo de Saving the Safe, cercado pelo grito impresso nas placas de Portfólio, alude às manifestações contra a ordem imperante. Nesse mesmo espaço, os desenhos Infames Casas Ocultas colocam o observador na condição do voyeur que flagra o covil daqueles — terroristas, criminosos, corruptos — que encarnam os excessos do sistema. Fim do Silêncio nos leva pelas calçadas comerciais da capital de Cuba, Havana. Por meio de uma experiência semântica e tátil, os nomes das lojas, gravados no piso frio e sujo das calçadas de granito, lavados pelo tempo e pela história, são subvertidos no aconchego cálido de grandes tapetes. A alforria da palavra — tantas vezes sequestrada pelo contexto político — promove a subversão do uso do espaço urbano e de seus símbolos de comunicação, ao transformar cada um dos nomes originais em intrigantes frases grandiloquentes. A obra de Garaicoa e sua densidade inerente são muito bem-vindas no Brasil de hoje, onde arte e complexo cultural travam batalhas importantes na defesa de um projeto de resistência para o país. Dívida sanada, é com essa gama de obras questionadoras que SER URBANO aguarda seu público para o diálogo agudo que demanda o nosso tempo.

structural crisis of contemporary society dominated by the logic of capital. The mute symbolism of Saving the Safe, surrounded by the outcries engraved on the Portfolio plates, alludes to demonstrations against the prevailing order. In this same space, the Infamous Hidden Houses drawings place the observer in the position of a voyeur who unexpectedly discovers the lair of those— terrorists, criminals, corrupt—who embody the excesses of the system. End of Silence takes us for a walk on the commercial sidewalks of the Cuban capital, Havana. Through a semantic and tactile experience, store names—registered on cold, grimy granite sidewalks, washed out by time and history—are subverted in the warm coziness of large rugs. The emancipation of the word—so often sequestered by the political context—promotes the subversion of the use of urban space and its symbols of communication, transforming the original names into intriguing grandiloquent phrases. The work of Garaicoa and its inherent density are very much welcome in Brazil today, where art and the cultural complex wage important battles in defense of a project of resistance for the country. Indebtedness remedied, it is with this spectrum of interrogative works that BEING URBAN awaits its audience for the penetrating dialogue that demands our time.

Rodolfo de Athayde Curador | Curator Arte A Produções

13


PARTITURA SCORE 2017

Instalação – som, animação, pedestais, tablets, papel, tinta. Dimensões variáveis.

Installation – Sound, video-animation, music stands, tablets, paper, ink. Variable dimensions. CORTESIA/ COURTESY: O ARTISTA, AZKUNA ZENTROA, BILBAO; GALERIA LUISA STRINA (SÃO PAULO), GALLERIA CONTINUA (SAN GIMIGNANO/BEIJING/LES MOULINS/HAVANA)

14


Partitura é uma obra participativa, desenvolvida ao longo de 10 anos. Foi concebida como um trabalho plural, envolvendo 70 pessoas no projeto, incluindo músicos e técnicos, em diversas viagens entre Madri e Bilbao, onde foi criada. É fruto da relação pessoal e estreita de Garaicoa com músicos de rua. O trabalho é composto pelo som de instrumentos de corda, sopro, percussão e cantores, além do compositor que participa da orquestração final da obra. Paisagem sonora das cidades e encontro dos sons imprevisíveis da urbe, Partitura é um espaço em constante transformação.

Score is a participatory work, developed over a period of 10 years. It was conceived as a plural work involving 70 people, including musicians and technicians, and was created in the course of several trips between Madrid and Bilbao. It is a fruit of Garaicoa’s close personal relationship with street musicians. The work consists of the sound of stringed instruments, winds, percussion and singers, as well as the composer who participates in the final orchestration of the work. A city soundscape and an encounter with the unpredictable sounds of the urb, Score is a space in constant transformation.

15


16


17


18


19


20


21


22


23


24


25


PARTITURA: UMA SINFONIA DA CIDADE PARA SOLISTAS E GRAND ENSEMBLE João Fernandes

I am alone in a box of stone Benjamin Clementine, Cornerstone

Uma grande cidade confronta sempre os seus habitantes com a solidão. Quanto maior é o número de pessoas que nela vive e circula, mais se ampliam os abismos entre a singularidade e a anonimia, o indivíduo e o grupo, os afetos e a indiferença, a vida solitária e a vida em companhia. Os confrontos que afetam a vida do indivíduo na cidade têm sido o terreno de aluvião onde germinaram muitas das vanguardas artísticas a partir do aparecimento das grandes metrópoles no século XIX. Do flâneur, esse “botânico do asfalto”, que Walter Benjamim identifica em Baudelaire, até à deriva psicogeográfica com a qual Debord e os situacionistas lhe redefiniram a cartografia, ou até ao modo como nos nossos dias muitos artistas registram em vídeo aspectos do seu cotidiano mais anódino, ou lhe sobrepõem performativamente sons e movimentos que rompem ou se integram nesse mesmo cotidiano, a cidade assume-se como o lugar do não lugar, o território no qual a intimidade se confronta com a descaracterização, a emoção individual com a sua invisibilidade forçada, no seu rotineiro apagamento e neutralização. Muitas vezes as cidades foram vistas como sinfonias, como se aqueles que nelas vivem fossem solistas de uma orquestra que colectivamente constrói uma partitura a partir da interação dos sons, imagens e quadros de vida que nelas acontecem. Do cinema à música e à pìntura, encontramos inúmeras expressões desta dimensão sinfônica da cidade. A obra de Carlos Garaicoa é uma delas, quando o artista colige, edita e transforma muitos dos vestígios que nela encontra. Garaicoa assume os fragmentos da cidade de que se apropria do mesmo modo que Walter Ruttmann revela as cenas urbanas de Berlim, no seu filme Sinfonía de uma gran-

26

SCORE: A SYMPHONY OF THE CITY FOR SOLOISTS AND GRAND ENSEMBLE João Fernandes

I am alone in a box of stone Benjamin Clementine, Cornerstone

A large city always confronts its inhabitants with solitude. The greater the number of people who live and circulate in it, the wider the chasms between singularity and anonymity, individual and group, affections and indifference, solitary life and life in company. The confrontations that affect the life of the individual in the city have been the alluvial terrain where many of the artistic vanguards have germinated since the emergence of the great metropolises in the 19 th century. From the flâneur, this “asphalt botanist"; that Walter Benjamim identifies in Baudelaire, to the psychogeographical rambling with which Debord and the Situationists redefined cartography, or even to the way in which many artists today record the most anodyne aspects of their daily life in video, or performatively overlap sounds and movements that rupture or integrate that same everyday life, the city recognizes itself as the place of non-place, the territory in which intimacy confronts the loss of its distinguishing characteristics, and individual emotion


de cidade [Berlin: Die Sinfonie der Großstadt] (1927), Mondrian junta a retícula das ruas nova-iorquinas aos seus ritmos e cores num quadro como Broadway Boogie Woogie (1942-43), Charlie Mingus utiliza e rearranja o ruído do tráfego para um ensemble de jazz em A Foggy Day (1956) ou Steve Reich se apropria dos sons da urbe em City Life (1995). Na obra de Carlos Garaicoa, a cidade foi sempre uma referência e um território de investigação. O artista junta a atitude do flâneur baudelaireano que por ela deambula ao trabalho de campo do arqueólogo que nela encontra vestígios, objetos e situações reveladoras das camadas temporais que nos seus itinerários se acumulam, indistinguindo o passado do presente, a memória do que dela persiste no cotidiano. A cidade é um grande mosaico em permanente construção e destruição, que Garaicoa investiga a partir dos fragmentos que encontra e que lhe servirão, num processo de apropriação, mimese e metamorfose, de material para uma obra polifônica que lhe reinventa sentidos, emoções e percepções. A fotografia e o vídeo revelam-se no seu trabalho como utensílios de registro e documentação que depois o artista edita e apresenta frequentes vezes em instalações, combinados com objetos realizados a partir das referências visuais encontradas e coligidas, transferindo a memória do espaço público para o espaço interior do museu ou da galeria, inventando situações resultantes de um processo de transformação poética dessas referências, como acontece nas tampas de bueiro que produz em Sin Título (Alcantarillas) (2014-2016), nas impressões digitais sobre azulejo que apresenta em Cerâmicas Porno-indignadas (20122014), ou nos tapetes que surgem em Fin de silencio (2010). Signos visuais, frases informativas ou publicitárias são recontextualizados num processo em que a citação e a transformação icônica ou textual lhes subvertem as suas próprias referências originais, originando transferências semânticas que introduzem uma consciência crítica do presente na convocação de uma memória construída a partir do seu registro documental. Partitura (2017) é uma obra na qual Carlos Garaicoa amplia estes processos na sua dimensão coral e polifônica. Manifesta-se nela uma contínua relação recíproca e reversível entre o indivíduo e o colectivo, o compositor

confronts its forced invisibility, in its routine erasure and neutralization. Cities were often seen as symphonies, as if those who lived in them were soloists of an orchestra that builds a score collectively from the interaction of the sounds, images and pictures of life that take place within them. From cinema to music to painting, we find countless expressions of this symphonic dimension of the city. The work of Carlos Garaicoa is among them, when the artist collects, edits and transforms many of the vestiges that he encounters. Garaicoa assumes the fragments of the city that he appropriates in the same way that Walter Ruttmann reveals the urban scenes of Berlin in his film Symphony of a Great City [Berlin: Die Sinfonie der Großstadt] (1927), that Mondrian connects the grid-like arrangement of the streets to his rhythms and colors in a painting like Broadway Boogie Woogie (1942-43), that Charlie Mingus uses and rearranges the noise of traffic for a jazz ensemble in A Foggy Day (1956) or Steve Reich appropriates urban sounds in City Life (1995). In the work of Carlos Garaicoa, the city has always been a reference and a territory to investigate. The artist brings together the attitude of the Baudelairean flâneur, who rambles through the city, and the fieldwork of the archaeologist who finds vestiges, objects and situations that reveal the temporal layers that accumulate along his itineraries, the memory of what persists of the city in everyday life, without distinguishing the past from the present.

27


e o intérprete, o músico e a orquestra. Trata-se de um modo diferente de trabalhar na cidade e com a cidade. O artista registrou, ao longo de cerca de dez anos, imagens e música de dezenas de músicos de rua que tocam variadíssimos instrumentos em praças e ruas de diferentes cidades. O espaço público urbano sempre ofereceu um palco alternativo aos lugares codificados e selectivos do teatro e da sala de espectáculos burguesa, quando é ocupado por intérpretes emergentes ou excluídos dos espaços de representação e legitimação social, constituindo-se como um palco alternativo para músicos, atores e dançarinos que nele encontram um modo de sobreviver. Garaicoa parte em busca desses instantes em que um músico de rua apresenta a sua música na “selva das cidades”, como diria Brecht, no meio do ruído e da agitação do seu cotidiano, situação órfica por excelência, que subverte o movimento da urbe, no qual todos têm uma finalidade: chegar a algum lugar para fazer alguma coisa. O músico de rua surpreende nessa tradição que remontará ao saltimbanco, ao jogral ou ao trovador da Idade Média: ele entretém-nos com a sua música, mas, sobretudo, surpreende-nos com a situação que origina, esse intervalo que cria nas nossas vidas com a irrupção da sua presença, dos seus sons. Mesmo que a atuação de um músico de rua busque a obtenção de uma remuneração que lhe permita sobreviver, sentimos a sua presença como algo generoso, sobretudo se a música que toca, o som imprevisto de um instrumento musical, ou o modo como toca, nos chamam a atenção no meio da desatenção generalizada que a cidade propõe àqueles que nela se movem, conduzidos apenas por um interesse individual. Todos nós já agradecemos uma música que ouvimos nessas circunstâncias e que nos trouxe um momento de beleza que nos alegrou o dia. Todos nós já sofremos também com a intromissão de uma música que bem dispensaríamos ouvir. Em qualquer dos casos, o imprevisível acontece e essa imprevisibilidade convoca o nosso desejo de sermos surpreendidos na maquinal rotina urbana que nos orienta o movimento na cidade, na qual os horários, os relógios, as agendas de cada um estruturam as horas e os dias. Na sua deriva, na sua busca desses instantes em que o espaço urbano seja subvertido pelos músicos que nele acontecem,

28

The city is a great mosaic in permanent construction and destruction, which Garaicoa investigates taking the fragments he finds as a starting point, in a process of appropriation, mimesis and metamorphosis of material for a polyphonic work that reinvents meanings, emotions and perceptions. Photography and video reveal themselves as tools for making records and documentation, which the artist then edits and often presents in installations, combined with objects deriving out of the visual references found and city, Garaicoa registers it in order to present it and disseminate it in places where he won’t be found, presenting this musician and his work as a fragment of memory by which his ephemerality is perpetuated. The choice itself is transformed into an act of sharing, and Score is also a summoning of our attention to each of these moments that Garaicoa shares with us as we wander through the exhibition space where he now presents these musicians. The collective situation in which several people can cluster around each musician in a public space is now transferred to the exhibition hall, but in a way that radicalizes the difference between collective experience and individual experience, questioning in that transfer the solitary condition of the individual. In his spacial device for Score, Garaicoa constructs a place where dozens of music stands surround the position of a bandstand. On each of the music stands we find sheets of music manuscript paper on which the artist has inscribed drawings that suggest an unknown musical notation, an unknown writing, like an idiosyncratic, gestural and abstract code. Each drawing takes on a linearity that suggests


Garaicoa não procede a uma escolha destes, legitimada por critérios e objetivos definidos por um programa pré-definido, como se de um casting se tratasse. Ele deixa-se fascinar, como qualquer transeunte, pelo som de um instrumento, pelo virtuosismo da sua execução, pela presença da música e do intérprete. Os instantes musicais que encontra pelas cidades levam-no a partilhá-los de modo similar ao que acontece hoje em redes sociais como o Facebook ou o Instagram. Assumindo a generosidade que cada músico encontrado lhe oferece no seu lugar específico da cidade, Garaicoa irá registrá-lo de modo a apresentá-lo e difundi-lo nos lugares em que ele não se encontrará, mostrando esse músico e o seu trabalho como um fragmento de memória pelo qual a sua efemeridade se perpetua. A escolha transforma-se numa partilha, e Partitura é também a convocação da nossa atenção para cada um desses instantes que Garaicoa divide conosco na deambulação que façamos pelo espaço da exposição onde ele agora nos apresenta estes músicos. A situação coletiva em que várias pessoas se podem aglomerar em torno de cada um deles num espaço público é agora transferida para a sala de exposição, mas de um modo que radicaliza a diferença entre a experiência coletiva e a experiência individual, questionando, nessa transferência, a condição solitária do indivíduo. No seu dispositivo espacial para Partitura, Garaicoa constrói um espaço onde dezenas de suportes de música circundam o lugar de um coreto. Em cada um dos suportes encontramos folhas pautadas de papel de música em que o artista inscreveu desenhos que sugerem uma notação musical desconhecida, uma escrita ignota, como um código idiossincrático, gestual e abstrato. Cada desenho assume uma linearidade que sugere a possibilidade de uma leitura, de uma sua decifração, como num texto ou partitura cujos signos revelam tanto uma caligrafia singular como esse movimento da mão pela folha de papel na inscrição de uma linguagem misteriosa. Composição e improvisação espelham-se nesta escrita em que a possibilidade do alfabeto se dissolve na sucessividade linear dos seus tag freestyle. Sobre cada uma destas folhas de papel, encontra-se um tablet que nos apresenta um músico diferencia-

the possibility of being read, of being deciphered, as in a text or score whose signs reveal both a singular calligraphy and the hand’s movement over the sheet of paper as it inscribes a mysterious language. Composition and improvisation are mirrored in this writing in which the possibility of the alphabet dissolves in the linear successiveness of its freestyle tags. On each of these sheets of paper, there is a tablet that presents us with a different musician interpreting his own music on a wide diversity of instruments. Today the tablet, like the cell phone or the laptop, is an expression of contemporary solitude and individuality, regardless of the possibilities of connection and participation in social networks that it offers. All of these devices are tools that combine mobility with solitude—simultaneous and contradictory characteristics of urban life since the beginning of the great metropolises. The collective experience of listening in public spaces is restricted here to the individual listening inherent in the nature and function of the transmitting devices. The distribution of the music stands throughout the space suggests the distribution of a symphony orchestra’s musicians around their conductor. Each visitor listens to the music of each of these musicians through headphones. The relation between the singular and the collective is revealed in this relation between the one and the multiple: each musician was recorded in a different place, the place where he chose to play in the city. There are as many places as there are instants— the moments and the situations in which we see each of these musicians. Seventy musicians and seventy instruments for seventy places in an alternative cartogra-

29


do interpretando a sua própria música, numa ampla diversidade de instrumentos. O tablet, como o celular ou o laptop, é hoje uma expressão da solidão e da individualidade contemporâneas, independentemente das possibilidades de conexão e participação em redes sociais que ofereça. Todos eles são utensílios que conjugam a mobilidade com a solidão, características simultâneas e contraditórias da vida urbana desde o início das grandes metrópoles. A experiência coletiva da audição no espaço público vê-se aqui restringida à escuta individual inerente à natureza e função dos dispositivos que a transmitem. A distribuição dos suportes de música pelo espaço sugere a distribuição dos músicos de uma orquestra sinfônica em torno do seu maestro. Cada visitante escuta a música de cada um destes músicos por meio de auriculares. A relação entre o singular e o coletivo revela-se nessa relação entre o um e o múltiplo: cada músico foi gravado num local distinto, o lugar que ele escolheu para tocar na cidade. Tantos são os lugares como os instantes, os tempos e as situações em que vemos cada um desses músicos. Setenta intérpretes, setenta instrumentos para setenta localidades, numa cartografia alternativa de duas cidades, Madrid e Bilbao, a cidade onde o artista mora e a cidade onde apresenta pela primeira vez este trabalho. Sopros, percussão, cordas, instrumentos populares e eruditos, uma orquestração tanto de sons como de vivências. No centro, o lugar do maestro é, por sua vez, o lugar em que surge uma construção que sugere um coreto. Este coreto será o estrado desse maestro invisível que, neste caso, em vez de dirigir um conjunto de músicos que toquem em conjunto, reúne, aglutina, acumula e transforma a música de cada um deles, incorporando-a numa nova situação, numa nova composição, essa partitura composta pelo compositor cubano Esteban Puebla, que o artista convidou para trabalhar numa nova composição feita da colagem, edição e justaposição dos sons de todos os outros músicos gravados, reunindo e amalgamando as suas sonoridades numa composição única e singular, na expressão de uma unicidade construída a partir da diversidade. Puebla adiciona-lhes uma pequena orquestração, na qual surgem outros instrumentos musicais inexistentes na sua “orquestra” original, que lhe possibilitarão a expressão de um

30

phy of two cities, Madrid and Bilbao, the city where the artist lives and the city where he presented this work for the first time. Winds, percussion instruments, strings, popular and erudite instruments—an orchestration as much of sounds as of experiences. In the center, which would be the conductor’s place, there is a construction suggesting a bandstand. This bandstand will be the podium for the invisible maestro who, in this case, instead of directing a group of musicians who play together, gathers, agglutinates, accumulates and transforms the music of each one of them, incorporating it into a new situation, a new composition—the score composed by the Cuban composer Esteban Puebla, invited by the artist to devise a new composition made from the assemblage, editing and juxtaposition of the sounds of all the recorded musicians, bringing together and amalgamating their sonorities into a unique and singular composition, the expression of a unity built from diversity. Puebla adds a small orchestration where musical instruments that do not exist in the original “orchestra"; will allow the expression of a Modo perpetuo, underlining the creation of a musical piece distinct from the material he started with. Improvisation and composition, popular and erudite culture come together in the process of collage and editing that structure this composition, in a postmodern revisitation of those roots that made past experiences of collage in the historical vanguards contemporaneous with the mixture of sounds and cultural references that erupt in those times, for example, in the music of Stravinsky or Ravel. In a way, in this installation Garaicoa will be a kind of Diaghilev of the continuous intersection of different artistic and cultural levels that his Score manifests.


mote contínuo, sublinhando a criação de uma peça musical distinta do material de que parte. Improvisação e composição, cultura popular e erudita reúnem-se neste processo de colagem e edição que estrutura esta sua composição, numa revisitação pós-moderna dessas raízes que fizeram contemporâneas no passado as experiências da colagem nas vanguardas históricas, com a mistura de referências sonoras e culturais populares que nesses tempos irrompem, por exemplo, pela música de Stravinski ou de Ravel. De certo modo, Garaicoa será nesta sua instalação um Diaghilev do contínuo cruzamento de distintos níveis artísticos e culturais que esta sua Partitura manifesta. A composição de Esteban Puebla é difundida a partir de três telas de vídeo instaladas sobre uma pequena construção de cimento localizada no centro do espaço, circundada por uma varanda, como um coreto num jardim público. As imagens dos músicos que encontramos distribuídas pelos tablets reaparecem em sucessivos trios, que se articulam com a estrutura em tríptico das imagens apresentadas nessas telas. O corte e montagem dos planos acentua a dimensão coral e polifônica da música que acompanham. Num segundo momento, que se poderia descrever como um segundo andamento, Garaicoa apresenta um filme de animação que produziu a partir dos sinais que desenhou para as folhas pautadas que se distribuem pelos suportes de música da sua “orquestra”, extendendo graficamente os ritmos e as sequências musicais desta sua partitura acústico-visual, suscitando uma relação entre animação, abstração e música, na linhagem de uma relação entre imagem e som que poderá encontrar antecedentes nessa utopia de uma relação entre cinema e abstração que remonta aos filmes dadaístas de Hans Richter, ou a esses exercícios experimentais que Walt Disney desenvolve em Fantasia. Este coreto define um centro que ressoa, transforma e redifunde os sons que da cidade absorveu. Partitura é, com efeito, uma peça que resulta de vários níveis e qualidades de colaboração: a colaboração dos músicos de rua com o artista, a colaboração de um compositor, a colaboração do visitante, que é convidado a uma deriva pelos vários níveis de percepção sonora e

Esteban Puebla’s composition is transmitted from three video screens installed on a small cement construction located in the center of the space, surrounded by a kind of veranda, like a bandstand in a public garden. The images of the musicians that we find distributed on the tablets reappear in successive trios that are articulated with the triptych images presented on these screens. The cropping and assembling of the planes accentuates the choral and polyphonic dimension of the music they accompany. In a second moment that could be described as a second tempo, Garaicoa presents an animated film that he made from the signs or symbols he drew for the sheets of music manuscript that are distributed on his “orchestra’s” music stands, graphically extending the rhythms and musical sequences of his acoustic-visual score, evoking a relationship between animation, abstraction and music, in the lineage of the relation between image and sound that can find antecedents in this utopia of the relation between cinema and abstraction that goes back to the Dadaist films of Hans Richter or the experimental exercises that Walt Disney develops in Fantasia. This bandstand defines a center that resonates, transforms and re-disseminates the sounds that the city has absorbed. Score is, in effect, a piece that results from various levels and qualities of collaboration: the collaboration of the street musicians with the artist, the collaboration of a composer, the collaboration of the visitor, who is invited to wander through the various levels of visual and sonorous perception offered by this eminently synesthetic piece. The whole piece is a scenario that invites the viewer to move and interact. His inclusion as a participant in the situation he visits and discovers, in a scenic interaction meant to stimulate

31


visual que esta peça, eminentemente sinestésica, lhe oferece. Toda a peça é um cenário que convida o espectador ao movimento e à interação. A inclusão deste como participante da situação que visita e descobre, num jogo cênico proposto à sua curiosidade, consciência e percepção, é característico das instalações recentes do artista, como se constata por exemplo em Yo nunca he sido surrealista hasta el día de hoy (2017). Estas suas instalações desafiam a reflexão sobre as condições de representação do espaço público urbano nesse lugar filtrado por outras convenções culturais que é o lugar da obra de arte no espaço da galeria ou do museu. A sala de exposições transforma-se num dispositivo cênico, artifício de uma teatralidade explícita que inclui o espectador como seu ator principal, num jogo de inclusão e distanciamento com as referências da cidade representadas. Com Partitura, Carlos Garaicoa realiza também o seu primeiro musical, mas, diferentemente desses filmes de Hollywood que encantaram o mundo entre guerras, o artifício do lugar assume a sua teatralidade não como um cenário para a evasão, mas como um convite à escuta, à introspecção, a um redobrar da nossa atenção ao que de mais generoso a vida nas cidades nos pode oferecer: a existência dos seus habitantes, a nossa existência como parte do universo que como parte deles somos. Talvez nos sintamos menos sós depois de conhecer esta Partitura, quando regressemos às caixas de pedra da “dura poesia concreta” de nossas esquinas. Essa também é a utopia desta Partitura: o convite a partilhar o que dentro de cada um ouvimos quando transferimos a nossa atenção para o que dentro de nós em nosso redor descobrimos. Como Fernando Pessoa escreveu no seu Livro do Desassossego, por meio do nome desse seu sub-heterônimo Bernardo Soares, outro grande nômade da história da nossa vadiagem urbana:

“Não há diferença entre mim e as ruas”.

his curiosity, conscience and perception, is characteristic of the artist's recent installations, as seen for example in I’ve Never Been Surrealistic Until Today [Yo nunca he sido surrealista hasta el día de hoy] (2017). These installations prompt reflection on the conditions of the representation of urban public space in this place filtered by other cultural conventions—that is, the place of the work of art in the space of the gallery or the museum. The exhibition gallery becomes a scenic device, an artifice of an explicit theatricality that includes the viewer as its main actor, in an interplay of inclusion and distancing with regard to the urban references represented. With Score, Carlos Garaicoa also realizes his first musical but, unlike those Hollywood movies that charmed the world between wars, the device of place assumes its theatricality not as a scenario for evasion but as an invitation to listening, to introspection, to a redoubling of our attention to the most generous of all that life in cities can offer us: the existence of its inhabitants, our existence as part of the universe which, as part of them, we are. Maybe we will feel less lonely after hearing this Score, as we return to the stone boxes of the “hard concrete poetry" of our street corners. This is also Score’s utopia: the invitation to share what we hear within ourselves when we turn our attention to what within us can be discovered around us. As Fernando Pessoa wrote in The Book of Disquiet, under the name of his semi-heteronym Bernardo Soares, another great nomad in the history of our urban vagrancy:

˝There is no difference between me and these streets.̏

32


33


34


35


FIN DE SILENCIO END OF SILENCE 2010

9 tapeçarias (algodão, lã, trevira-cs, lurex, alumínio e algodão mercerizado). Dimensões variáveis. 9 Tapestries (cotton, wool, trevira-cs, lurex, aluminum and mercerized cotton). Variable dimensions. CORTESIA / COURTESY: O ARTISTA, GALERIA LUISA STRINA (SÃO PAULO), GALLERIA CONTINUA (SAN GIMIGNANO/BEIJING/LES MOULINS/HAVANA)

36


Fim de Silêncio transforma as calçadas comerciais de Havana em uma experiência sensorial e de linguagem. As frases dos tapetes derivam de nomes de lojas gravados nos passeios públicos da capital de Cuba. Criando uma poesia urbana inusitada que alude à história da ilha, Garaicoa subverte a experiência das esferas pública-privada ao utilizar mensagens presentes nas ruas em um elemento comum a ambientes internos – os tapetes – sobre os quais o público pode caminhar.

End of Silence turns the commercial sidewalks of Havana into a sensory experience that is also an experience of language. The phrases on the rugs derive from the names of stores inscribed on the public sidewalks of Cuba’s capital. Creating an unusual urban poetry that alludes to the island’s history, Garaicoa subverts the experience of the public-private spheres by using messages that appear on the street in an element common to indoor environments—rugs on which the public can walk.

37


38


39


40


41


Sin Rival / Without Rival 2010

Sem medo – Viver / Without fear – Live Sem rival – Sem Rival / Without Rival – Without Rival Morrer – Sem medo / To Die – Without fear

42


Reina / Reign 2010

Reina, destrรณi ou redime. Reign, destroy or redeem.

43


La Lucha / The Fight 2010

A luta ĂŠ de todos, de todos ĂŠ a luta. The fight is for everyone, the fight is everyone's.

44


El Volcรกn / The Volcano 2010

O vulcรฃo hรก de explodir, iluminados, esperamos. The volcano will explode, illuminated, we wait.

45


O Pensamento / The Thinking 2010 46


La General / The General 2010

A tristeza geral negarĂĄ prazeres. General sadness will deny pleasures.

La Fortuna / The Fortune 2012

A fortuna dos homens. O infortĂşnio dos homens. The fortune of men. The misfortune of men. 47


RBC 2012

Revolta / Batalha / Câmbio Revolt/ Battle/ Change

48


El Cairo 2012

O Cairo: o berรงo dos faraรณs; o templo dos apaixonados; o tempo dos indignados. Cairo: the cradle of the pharaohs; the temple of the lovers; the time of the indignant.

49


Frames dos vídeos que fazem parte da instalação. / Stills from video installation.

50


51


Frames dos vídeos que fazem parte da instalação. / Stills from video installation.

52


53


QUEM TEM TELHADO DE VIDRO... /

IF YOU HAVE A GLASS HOUSE... 2013

Instalação – cristal, ímãs, metacrilato e madeira. Installation – Glass, magnets, methacrylate and wood. CORTESIA / COURTESY: O ARTISTA, BARBARA GROSS GALERIE, GALERIA LUISA STRINA (SÃO PAULO), GALLERIA CONTINUA (SAN GIMIGNANO/BEIJING/LES MOULINS/HAVANA)

54


Esta obra representa a Haus der Kunst, um edifício icônico da época de Hitler, localizado em Munique, feito para abrigar a chamada “verdadeira” arte alemã em oposição à arte das vanguardas da época (Impressionismo, Cubismo, Dadaísmo, entre outras) que, para os nazistas, era “arte degenerada”. Com o uso do vídeo e do metal na construção da peça, subverte-se a lógica nazista de construir em pedra e em estilo neoclássico. O projeto torna-se a antítese do prédio original e essa versão modernista, representa o próprio vanguardismo ao qual se opunha.

This work represents Haus der Kunst, an iconic building created by Hitler in Munich and built to house what the dictator considered “true art," as opposed to the avant-garde of the time (Impressionism, Cubism, Dadaism, Futurism, among others) which the Nazis considered “degenerate art.” With the use of glass and metal, Garaicoa subverts the Nazi logic of building in neoclassical style and utilizing stone. Embodying its opposition to the original building, the project represents the same avant-gardism that the original construction opposed.

55


56


57


58


59


60


61


SAVING THE SAFE – BANCO CENTRAL DO BRASIL Escultura de ouro 21K, cofre, base rotatória, luz LED e madeira. Sculpture in 21 Kt gold, safe, rotating base, LED light, wood. CORTESIA / COURTESY: O ARTISTA, GALERIA LUISA STRINA (SÃO PAULO), GALLERIA CONTINUA (SAN GIMIGNANO/BEIJING/LES MOULINS/HAVANA)

2017

62


A escultura em ouro do Banco Central do Brasil faz parte de uma série que representa outras importantes instituições financeiras: o Bundesbank alemão, o Banco de España, o HSBC de Hong Kong, o Banco Central Europeu, o Lehman Brothers, de Nova York. No título, Saving the safe, o artista explora em jogo de palavras a partir do inglês saving (salvar, economizar, proteger) e safe (cofre, salvo, protegido). As miniaturas dos prédios expostas em cofres compõem uma instalação que questiona a sociedade contemporâ-

The gold sculpture of the Central Bank of Brazil is part of a series that represents other major financial institutions: the German Bundesbank, the Bank of Spain, HSBC Hong Kong, the European Central Bank, Lehman Brothers, New York. In the title, Saving the Safe, the artist makes a pun on the words “saving” and “safe” in English. The miniatures of the buildings are displayed in vaults for an installation that questions contemporary society, ruled by the financial system which is powerful and fragile at the same time.

nea, regida pelo sistema financeiro, poderoso e frágil ao mesmo tempo.

63


64


65


66


67


PORTFÓLIO PORTFOLIO 2013

Instalação – oito pranchas de latão gravado, molduras de veludo e caixa de couro Installation – eight engraved brass plates, velvet frames and leather case.

CORTESIA / COURTESY: O ARTISTA, GALERIA LUISA STRINA (SÃO PAULO), GALLERIA CONTINUA (SAN GIMIGNANO/BEIJING/LES MOULINS/HAVANA)

68


Oito baixos-relevos sobre pranchas metálicas compõem a obra Portfólio. As pranchas estão associadas a países marcados por recentes manifestações populares, em reação a crises econômicas: Irlanda, Grécia, Espanha, Portugal, Itália, Chipre e Argentina. Os símbolos e palavras foram extraídos de fotografias de jornal e representam o enfrentamento às estruturas de poder.

Eight bas-reliefs on metal plates comprise the work Portfolio. The plates are associated with countries marked by recent popular demonstrations in response to economic crises: Ireland, Greece, Spain, Portugal, Italy, Cyprus and Argentina. Symbols and words taken from newspaper photographs represent the confrontation with power structures.

69


70


71


72


73


74


75


76


77


78


79


INFAMES CASAS OCULTAS

INFAMOUS HIDDEN HOUSES JOSEF FRITZL, O MONSTRO DE AMSTETTEN / JOSEF FRITZL, THE MONSTER OF AMSTETTEN FRANCISCO CORREA, BEM-VINDO SR. GÜRTEL / FRANCISCO CORREA, WELCOME MR. GÜRTEL OSAMA BIN LADEN / OSAMA BIN LADEN RUTH MADOFF / RUTH MADOFF

Grafite sobre papel Guarro® Graphite on Guarro paper

CORTESIA / COURTESY: O ARTISTA, GALERIA LUISA STRINA (SÃO PAULO), GALLERIA CONTINUA (SAN GIMIGNANO/BEIJING/LES MOULINS/HAVANA)

2014

80


Desenhadas a grafite, quatro casas de personalidades tristemente conhecidas do mundo contemporâneo são retratadas: a do terrorista Osama bin Laden; a de Ruth Madoff, esposa do fraudador financeiro Bernie Madoff; a do empresário espanhol Francisco Correa, implicado em diversos crimes de corrupção no chamado Caso Gürtel; e a do austríaco Josef Fritzl, conhecido como Monstro de Amstetten, por ter prendido e violentado a filha no porão da sua casa por 24 anos. Nos sutis desenhos de Garaicoa, esses edifícios aparecem parcialmente encobertos por uma vegetação exuberante, como se a natureza pudesse esconder a infâmia.

Four houses belonging to unhappily famous personalities of the contemporary world are portrayed in graphite: that of terrorist Osama bin Laden; that of Ruth Madoff, wife of the US financial fraudster Bernie Madoff; that of Spanish businessman Francisco Correa, implicated in several crimes of corruption in the so-called Gürtel Case; and that of Austrian Josef Fritzl, known as the Amstetten Monster for having imprisoned and raped his daughter in the basement of his house for 24 years. In Garaicoa’s subtle drawings, these buildings are partially covered by exuberant vegetation, as if nature could hide the infamy.

81


82


83


84


85


ABISMO ABYSS 2017

Animação rotoscópica, som. HD 1080p, 9 min. Rotoscopic animation, sound. HD 1080p, 9 min.

MÚSICA: “ABÎME DES OISEAUX”, SOLO DE CLARINETE, III MOVIMENTO DE “QUATUOR POUR LA FIN DU TEMPS” DE OLIVIER MESSIAEN. INTERPRETADA POR MAHÉ MARTY, CLARINETE MUSIC: “ABÎME DES OISEAUX”, CLARINET SOLO, MOVEMENT III OF “QUATUOR POUR LA FIN DU TEMPS” [QUARTET FOR THE END OF TIME], BY OLIVIER MESSIAEN. PERFORMED BY MAHÉ MARTY, CLARINET CORTESIA / COURTESY: O ARTISTA, GALERÍA ELBA BENÍTEZ (MADRID), GALERIA LUISA STRINA (SÃO PAULO), GALLERIA CONTINUA (SAN GIMIGNANO/BEIJING/LES MOULINS/HAVANA)

86


A animação Abismo aproxima a gestualidade teatral de Hitler em seus discursos de seu gosto pela música clássica. A melodia que serve de base à obra é o solo de clarinete “Abîme des oiseaux” (“Abismo dos pássaros”), terceiro movimento de Quatuor pour la fin du temps (Quarteto para o fim dos tempos), peça composta por Olivier Messiaen durante a Segunda Guerra Mundial (1939-45), no período em que o compositor foi capturado pelos nazistas. A peça musical foi executada pela primeira vez no próprio campo de prisioneiros, em 1941, por Messiaen e outros três músicos detentos. Na animação de Garaicoa, as mãos reproduzem os gestos mais comuns de Hitler, em seus inflamados discursos. Essa mímica, que por vezes pode remeter à imitação de um regente de orquestra, contrasta com a música vanguardista, nascida da resistência.

The Abyss animation confronts the theatrical gesturing in Hitler’s speeches with his taste for classical music. The melody that serves as the basis for the work is the solo clarinet “Abîme des oiseaux” [Abyss of the birds], third movement of the Quatuor pour la fin du temps [Quartet for the end of time], work composed by Olivier Messiaen during

the

Second

World

War

(1939-45), in the period when the composer was held captive by the Nazis. The musical work was performed for the first time in 1941 in the prison camp itself by Messiaen and three other inmates. In Garaicoa’s animation, hands reproduce the gestures most commonly used by Hitler in his inflamed speeches. Sometimes this mimicry seems to suggest the imitation of an orchestra conductor, even as it contrasts with the avant-garde music engendered as a form of resistance.

87


88


89


COMPOSIÇÃO EM CATACRESE Fernando Castro Flórez

“Viver no mundo estranho, encontrar suas ambivalências e ambiguidades encenadas na casa da ficção, ou encontrar sua separação e divisão representadas na obra de arte é também afirmar um profundo desejo de solidariedade social: ‘Estou buscando o encontro [escreve Toni Morrison] quero o encontro... quero o encontro’”.1 1

A caça se desenvolveu com uma casa de cristal (na instalação audiovisual intitulada El cazador [O caçador], 2008) e câmaras de “contravigilância”, como se as artimanhas da inteligência, a astúcia arcaica, ainda servissem para escapar da pulsão policial-voyeurística estatal. Carlos Garaicoa, um dos artistas “globais” mais lúcidos de um tempo perturbado, transborda a posição fóbica (bunkerizada) ou inflacionariamente especulativa (entregue a um hermetismo lúdico) para indagar, nas práticas de espaço, com uma tática de desvio que lhe permite dar conta da política do escamoteio em que estamos atolados. A presença imponente e constante daquilo que está em ruínas não é algo estranho para alguém que viveu a dimensão endêmica do chamado Período Especial cubano (quando houve a queda do sistema comunista global a partir da icônica queda do Muro de Berlim, em 1989), e, é claro, o tom com o qual ele registra e modifica esses cenários do desastre não remete ao romantismo, mas à certeza de que o deserto do niilismo está em toda parte. Garaicoa é um artista do “projeto” e, como José Roca apontou adequadamente, da projeção,2 1 BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998, p. 42. 2 ROCA, José. “Arquitectura como proyección del desejo”. In: Carlos Garaicoa. Orden aparente. Santander: Fundação Botín, 2014, p. 18. “A palavra ‘projeção’ tem significados diferentes no campo da representação e da psicologia. O primeiro se refere à forma de imaginar (no sentido de dar imagem) a realidade percebida pelo olho humano mediante diversos sistemas óptico-geométricos. No campo da teoria psicanalítica, a projeção é um mecanismo de defesa por meio do qual o sujeito atribui aos outros os seus defeitos, suas carências ou seus desejos. Na obra de Carlos Garaicoa convergem ambas as acepções: em suas plantas, alçados e perspectivas, a ruína se

90

COMPOSITION IN CATACHRESIS Fernando Castro Flórez

“To live in the strange world, to find its ambivalences and ambiguities staged in the house of fiction, or to find its separation and division represented in the work of art, is also to affirm a deep desire for social solidarity: ‘I am seeking the encounter [writes Toni Morrison] I want the encounter... I want the encounter.’”11

The hunt unfolded from a crystal house (in the audio-visual installation titled El cazador [The Hunter], 2008) and “counter-vigilance” chambers, as if the contrivances of intelligence—archaic cunning—would still suffice to escape the state’s police-like voyeuristic impetus. Carlos Garaicoa, one of the most lucid “global” artists in disturbed times, overflows the phobic (bunkerized) or inflationarily speculative position (given to a playful hermeticism) in order to question, in spatial practices, using a tactic of diversion that allows him to account for the politics of glossing over in which we are mired. The imposing and constant presence of what is in ruins is not unknown to someone who lived the endemic dimension of the so-called Cuban Special Period (when the global communist system collapsed starting with the iconic fall of the Berlin Wall in 1989) and, of course, the tone with which he records and modifies these disaster scenarios does not reference romanticism, but the certainty that the desert of nihilism is everywhere. Garaicoa is an artist of the “project”2

1 BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998, p. 42. 2 ROCA, José. “Arquitectura como proyección del desejo”. In: Carlos Garaicoa. Orden aparente. Santander: Fundação Botín, 2014, p. 18. “The word ‘projection’ has different meanings in the field of representation and psychology. The first refers to the way of imagining (in the sense of attributing an image) the reality perceived by the human eye through various optical-geometric systems. In the field of psychoanalytic theory, projection is a defense mechanism by which the subject attributes to others his or her defects, needs or desires. In the work of Carlos Garaicoa both meanings converge: in his blueprints, elevations and perspectives, the ruin becomes the germ of the city that is desired


desde obras como Homenaje al Seis [Homenagem ao Seis] (1992-1995), em Havana,3 suscitou uma peculiar deriva urbana: reúne marcas, “chamarizes de rua”, dá conta da desordem presente e, em certo sentido, vem ratificar que, tal como em Benjamin, a catástrofe não é o último ato da tragédia, mas a impotência de que as coisas permaneçam as mesmas. Enquanto algumas pegadas metropolitanas ficam fixas no olhar testemunhal deste artista, em sentido geral, parece que a cidade literalmente (como ocorre na peça feita com cera Ahora juguemos a desaparecer [Agora brinquemos de desaparecer], 2001) pode ser consumida e desaparecer. Uma fotografia de 2004 mostra uma estrada em Cuba, perto de Havana, com um suporte metálico para “propaganda” que ficou vazio com o contraponto e um pequeno anúncio em que, com esforço, podemos ler “Seguro de vida. Proteja-se da AIDS” na frente do qual há um sinal de cruzamento, tudo isso sob um céu nublado. Bastaria esse documento antipitoresco para compreender as perambulações políticas de Carlos Garaicoa, que não desvia o olhar dos escombros da utopia, ciente de que a palavra “Resistir” dos “cartazes” programáticos está sujeita, irremediavelmente, à erosão pós-histórica. Esta tática da fotografia “em abismo”, herdeira da concepção entrópica smithsoniana, se expande para além do “ser-em-demolição” cubano para mostrar que também em Houston, Birmingham, Capetown, Luanda e Madrid aparece a realidade quebrada, a lixeira, o solar imundo em que por acaso está abandonada uma pedra filosofal que nada mais é que o terror. Garaicoa escava a propaganda em

converte em gérmen da cidade desejada e a arquitetura projetada se converte em crítica para o presente. Garaicoa evidencia de forma contundente que a arquitetura não existe no vazio, mas em um espaço político, e que, consequentemente, “perspectiva” é sempre equivalente a “ponto de vista”. 3 CANDELA, Iria. “La metáfora del templo”. In: Carlos Garaicoa. Orden aparente. Santander: Fundação Botín, 2014, p. 118. “Homenaje al 6 consistiu em marcar um lugar da rua com um número seis, o qual repetia um seis pré-existente, confundindo o pedestre com seu significado e, por extensão, com o significado dos sinais urbanos. Garaicoa participava da “escrita” do traçado urbano com o mínimo e sutil gesto de uma inscrição temporal. Essa ação espontânea teria consequências fundamentais, porque a sinalização de um lugar definiria o eixo teórico e intelectual em que a obra do artista gira até hoje”.

and, as José Roca pointed out so appropriately, of projection2 that, from works such as Homenaje al Seis [Homage to the Six] (1992-1995) in Havana,3 has given rise to a peculiar urban deviation: it brings together brands, “street lures”, takes the present disorder into account and, in a certain sense, as in Benjamin, confirms that the catastrophe is not the last act of the tragedy, but the impotence meaning that things remain the same. While some metropolitan footprints are fixed in the artist’s witnessing gaze, in a general sense, it seems that the city literally (as occurs in the piece made with wax Ahora juguemos a desaparecer [Now let’s play to disappear], 2001) can be consumed and disappear. A 2004 photograph shows a road in Cuba, near Havana, with a metallic support for “propaganda” that was empty but with the counterpoint of a small advertisement in which, with effort, we can read “Life insurance. Protect yourself from AIDS”, in front of which there is a crossing sign, everything under a cloudy sky. This anti-picturesque document would suffice for understanding Carlos Garaicoa’s political wanderings—he does not look away from the debris of the utopia, realizing that the word “Resist” in programmatic “posters” is irremediably subject to post-historical erosion. This tactic of photography “in abyss”, a heritage of Smithson’s concept of entropy, expands beyond the Cuban “being-in-demolition” to show the broken reality that also appears in Houston, Birmingham, Capetown, Luanda and Madrid—the trash bin, the filthy manor house where, by chance, a philosopher’s stone is abandoned, which is nothing if not terror. Garaicoa

and the projected architecture is converted in critique of the present. Garaicoa shows emphatically that architecture does not exist in a void, but in a political space, and that, consequently, ‘perspective’ is always equivalent to ‘point of view.’” 3 CANDELA, Iria. “La metáfora del templo”. In: Carlos Garaicoa. Orden aparente. Santander: Fundação Botín, 2014, p. 118. “Homenaje al 6 [Homage to the Six] consisted in marking a place on the street with the numeral six, which repeated a pre-existing six, confusing the pedestrian as to its meaning and, by extension, the meaning of urban signs. Garaicoa participated in the “writing” of the urban ground plan with the slight, subtle gesture of a temporal inscription. This spontaneous action would have fundamental consequences, because signalizing a place would define the theoretical and intellectual axis around which the artist’s work revolves until today.”

91


séries como La palabra transformada (2009), faz um détournement [desvio, apropriação] dos slogans políticos, como quando cria o seguinte: Perseguido pela palavra, opto pelo gesto. Errar e arriscar. Convém ter presente que esse artista começou a realizar sua obra em uma época de enorme precariedade e desilusão,4 quando a realidade, se me permitirem o trocadilho de paradoxo “climático”, se congela em Cuba.5 Garaicoa, não há dúvida, consolidou seu caráter criativo em um espírito de rebeldia,6 colocando em funcionamento não só sua proposta artística, mas também incidindo no contexto com a exposição Las metáforas del templo [As metáforas do templo] (Centro de Desarrollo de las Artes Visuales, Havana, 1993), da qual foi curador junto com Esterio Segura.7 Suas propostas surgem na órbita do pós-conceitual8 e articularão, 4 VALDÉS FIGUEROA, Eugenio: “El espejo del deseo. Algunas consideraciones sobre la obra de Carlos Garaicoa” In: Carlos Garaicoa. La ruina; la utopía. Bogotá: Biblioteca Luis Arango, 2000, p. 21. Carlos Garaicoa apud Eugenio Valdés Figueroa: “Ainda quando éramos estudantes no Instituto Superior de Arte (Havana, Cuba), fazíamos piadas sobre a relação com esse legado da geração que nos precedia, e dizíamos, com nostalgia, e também com sarcasmo, que a nossa era uma promoção que nascia repleta de inversões e contradições – éramos os anos 1960 ao avesso, e, portanto, estávamos condenados a sofrer tudo de uma perspectiva invertida, seríamos os hippies light dos anos 1990. Depois de vários anos de escândalo, entre 1989 e 1991 sobreveio uma época de silêncio. A cidade estava calada, o duplo exílio era evidente [...], chegou-se a um vazio quase absoluto, um vazio existencial... A ausência de debates e a apatia criaram, para todos, um desconcerto tão nocivo quanto a ausência dos principais protagonistas da época”. 5 “Meu projeto começa no exato momento em que a realidade não pôde ir além, mas se manteve congelada” (Carlos Garaicoa, declaração para a Documenta 11). 6 SÁNCHEZ, Suset. “Carlos Garaicoa: anotaciones inconclusas sobre una práctica artística [Carlos Garaicoa entrevistado por Suset Sánchez]”. In: Carlos Garaicoa. Orden inconcluso. Móstoles: Centro de Arte Dos de Mayo Comunidad de Madrid, 2014, p. 192. “Ter iniciado minha formação na Cuba dos anos 1980 me ensinou que havia uma preocupação para além do mero fato de querer produzir uma forma, de querer pintar ou fazer uma escultura. Isso me precedia e cresci dentro de uma mitologia da arte cubana daqueles anos: de como ela havia enfrentado diretamente ao poder político, às instituições, e como ela retomava um espírito vanguardista, rebelde e de oposição ao sistema em termos políticos e morais”. 7 Cf. TONEL (Antonio Eligio Fernández). “Árbol de muchas playas: del arte cubano en movimiento (1980-1999)”. In: Arte cubano. Universidad de Arizona, 1999. Reproduzido In: POWER, Kevin (ed.). Pensamiento crítico en el nuevo arte latinoamericano. Lanzarote: Fundación César Manrique, 2006, p. 589. Sobre essa geração dos anos 1990 da arte cubana, ver MOLINA, Juan A. “Arte cubano: las ganas de seguir jugando” In: Utopian Territories: New Art from Cuba. Belkin Morris and Helen Art Gallery, University of British Columbia, Vancouver, 1997. 8 SÁNCHEZ, Suset. “Carlos Garaicoa: anotaciones inconclusas sobre una práctica artística [Carlos Garaicoa entrevistado por Suset Sánchez]”. In: Car-

92

digs through the propaganda in series like La palabra transformada [The Word Transformed] (2009), makes a détournement [detour, misappropriation] of the political slogans, as when he creates the following: Perseguido pela palavra, opto pelo gesto. Errar e arriscar. [Persecuted by the word, I opt for the gesture. Erring and risking]. One should remember that this artist began his work in a time of enormous precariousness and disillusionment,4 when reality, if I may be allowed the pun of calling it a “climatic” paradox, is frozen in Cuba.5 Garaicoa, without a doubt, consolidated his creative character in a spirit of rebellion,6 putting into operation not only his artistic proposal, but also drawing attention to the context with the exhibition Las metáforas del templo [The metaphors of the temple] (Centro de Desarrollo de las Artes Visuais [Center of Development of the Visual Arts], Havana, 1993), of which he was curator along with Esterio Segura.7 His propos-

4 VALDÉS FIGUEROA, Eugenio: “El espejo del deseo. Algunas consideraciones sobre la obra de Carlos Garaicoa” In: Carlos Garaicoa. La ruina; la utopía. Bogotá: Biblioteca Luis Arango, 2000, p. 21. Carlos Garaicoa apud Eugenio Valdés Figueroa: “Even when we were students at the Instituto Superior de Arte (Havana, Cuba), we joked about the relationship with this legacy of the generation that had preceded us, and we said, with nostalgia, and also with sarcasm, that ours was a promotion born full of inversions and contradictions—we were the 1960s inside out, and therefore we were doomed to suffer everything from an inverted perspective, we would be the hippies—light version—of the 1990s. After several years of scandal, between 1989 and 1991 there came a time of silence. The city was subdued, the double exile was evident ... reaching an almost absolute emptiness, an existential void... The absence of debate and the apathy created for everyone a bewilderment as harmful as the absence of the main protagonists of the era.” 5 “My project begins at the very moment when reality could go no further, but remained frozen” (Carlos Garaicoa, Statement for Documenta 11). 6 SÁNCHEZ, Suset. “Carlos Garaicoa: anotaciones inconclusas sobre una práctica artística [Carlos Garaicoa entrevistado por Suset Sánchez]”. In: Carlos Garaicoa. Orden inconcluso. Móstoles: Centro de Arte Dos de Mayo Comunidad de Madrid, 2014, p. 192. “Starting my training in Cuba in the 1980s taught me that there was a concern beyond the mere fact of wanting to produce a form, of wanting to paint or make a sculpture. This preceded me and I grew up in a mythology of Cuban art from those years: of how it had directly confronted political power, institutions, and how it reengaged the avant-garde spirit—rebellious and in opposition to the system in political and moral terms.” 7 Cf. TONEL (Antonio Eligio Fernández). “Árbol de muchas playas: del arte cubano en movimiento (1980-1999)”. In: Arte cubano. Universidad de Arizona, 1999. Reproduced In: POWER, Kevin (ed.). Pensamiento crítico en el nuevo arte latinoamericano. Lanzarote: Fundación César Manrique, 2006, p. 589. With regard to the Cuban art of the 1990’s generation, see MOLINA, Juan A. “Arte cubano: las ganas de seguir jugando” In: Utopian


de forma obsessiva, uma prolongada especulação sobre a cidade9 que tem algo de planejamento distópico em que o recurso à utopia tem, principalmente, um componente crítico.10 Diante da arquitetura do poder, disciplinar e, em última análise, geradora de uma biopolítica que nos uniformiza apesar de toda a retórica da “experiência diferencial”, Garaicoa materializa, por meio de suas instalações, maquetes, desenhos e fotografias, uma concepção diferente do espaço urbano, uma heterotopia, para empregar um termo foucaultiano, que coloca em questão o espaço em que (sobre)vivemos.

als emerge in the orbit of the post-conceptual8 and will obsessively articulate a prolonged speculation about the city9—with a touch of dystopic planning in which the recourse to the utopia has, above all, a critical component.10 Faced with the disciplinary architecture of power, which ultimately generates a biopolitics that standardizes us, despite all the rhetoric as to “differential experience,” Garaicoa materializes, through his installations, scale models, drawings and photographs, a different conception of urban space, a heterotopia, to employ a Foucaultian term, which calls into question the space in which we live (survive).

Carlos Garaicoa ressaltou que seu interesse pela arquitetura é subsidiário daquele que ele tinha pela fotografia: “Estava muito interessado nas discussões que estão na raiz da arte conceitual, de como representar um objeto e se a documentação de uma obra era uma obra ou não. Cheguei até a cidade, cheguei a representar cidades, com textos e objetos concentrados na rua. O que queria era colocar algo novo nos espaços públicos, estabelecer um padrão de comunicação que fosse diferente...”.11 Sem dúvida, foi crucial na configuração de suas abordagens

Carlos Garaicoa emphasized that his interest in architecture is subsidiary to his interest in photography: “I was very interested in the discussions that are at the root of conceptual art, about how to represent an object and whether the documentation of a work was a work or not. I came to the city, I came to represent cities, with texts and objects concentrated on the street. What I wanted was to put something new in public spaces, to establish a pattern of communication that was different...”.11 Undoubtedly,

los Garaicoa. Orden inconcluso, op. cit., p. 188. “Desde muito cedo, inclinei-me para uma formulação pós-conceitual, próxima à aridez museável, essa exibição do objeto de museu que fala a partir de uma linguagem que, mais do que conotar, quer denotar diretamente uma realidade, falar dela sem subterfúgios nem adornos”. 9 DE LA NUEZ, Iván. “Una ciudad que se piensa a sí misma”. In: Carlos Garaicoa. Orden inconcluso, op. cit., p. 31. “A dele foi uma persistente indagação no rastro que a cidade deixa na arte, pelo menos em sua arte. Dá no mesmo se reconhecemos nela as ruínas de Havana ou as utopias impossíveis, o dinheiro perfila as construções urbanas ou a cidade que se transforma em uma espécie de biblioteca a céu aberto, encarregada de organizar o léxico de nossos passeios através do traçado urbano”. 10 RUIZ, Alma. “Carlos Garaicoa” In: Carlos Garaicoa. Capablanca’s real passion. Los Angeles: MOCA – Museum of Contemporary Art, 2005, p. 158. “A ideia de Utopia tornou-se cada vez mais importante em sua obra, que estabelece paralelos entre a Cuba de hoje e a ilha imaginária descrita por Sir Thomas More em Utopia, onde as pessoas desfrutam de uma vida de perfeição política e social”. 11 FUSI, Lorenzo. “Una conversazione con Carlos Garaicoa”. In: Carlos Garaicoa. La misura de quasi tutte le cose. Siena: Palazzo delle Papesse, 2004, p. 10. “Credo che sia attraverso l’incontro con la fotografia, con l’arte processuale, e con quella concettuale che sono arrivato all’idea della città come spazio di passagio” [Creio que é através do encontro com a fotografia, com a arte processual, e com a arte conceitual que cheguei à ideia da cidade como um espaço de passagem]. Disponível em: <http://blog.uprising-art. com/es/entrevista-exclusiva-carlos-garaicoa-2> (Acesso: 04 mai. 2018).

Territories: New Art from Cuba. Belkin Morris and Helen Art Gallery, University of British Columbia, Vancouver, 1997. 8 SÁNCHEZ, Suset. “Carlos Garaicoa: anotaciones inconclusas sobre una práctica artística [Carlos Garaicoa entrevistado por Suset Sánchez]”. In: Carlos Garaicoa. Orden inconcluso, op. cit., p. 188. “From an early age, I have been inclined to a post-conceptual formulation, close to a museum-worthy aridity, this exhibition of the museum object that speaks from a language that, more than connoting, wants to denote a reality directly, to speak of it without subterfuge or adornment.” 9 DE LA NUEZ, Iván. “Una ciudad que se piensa a sí misma.” In: Carlos Garaicoa. Orden inconcluso, op. cit., p. 31. “His was a persistent inquiry into the trail the city leaves in art, at least in its own art. It does not matter if we recognize in it the ruins of Havana or the impossible utopias, money that queues up the urban constructions, or the city that transforms itself into a kind of library in the open, charged with organizing the lexicon of our outings through the urban layout.” 10 RUIZ, Alma. “Carlos Garaicoa” In: Carlos Garaicoa. Capablanca’s real passion. Los Angeles: MOCA—Museum of Contemporary Art, 2005, p. 158. “The idea of Utopia became increasingly important in his work, establishing parallels between today’s Cuba and the imaginary island described by Sir Thomas More in Utopia, where people enjoy a life of political and social perfection.” 11 FUSI, Lorenzo. “Una conversazione con Carlos Garaicoa”. In: Carlos Garaicoa. La misura de quasi tutte le cose. Siena: Palazzo delle Papesse, 2004, p. 10. “Credo che sia attraverso l’incontro con la fotografia, con l’arte processuale, e con quella concettuale che sono arrivato all’idea della città come spazio di passagio” [I believe that it is through the encounter with photography,

93


artísticas sua aproximação, em seu período formativo, com fotógrafos da imprensa cubana12, embora convenha lembrar que o documentário na obra de Garaicoa está sempre entrelaçado com o ficcional ou o fabulado.13 As fotografias permitem que este artista dê conta do efêmero da cidade, esse espaço extremamente complexo, no qual ele propriamente não pretende construir nada, ou, para ser mais preciso, está tentando edificar uma nova noção de realidade.

it was crucial in the configuration of his artistic approaches to get closer to photographers from the Cuban press12 during his formative period, although it is important to remember that the documentary in Garaicoa’s work is always intertwined with the fictional or the invented.13 The photographs allow this artist to get a handle on the ephemeral of the city, this extremely complex space in which he does not actually intend to build anything, or, to be more precise, is trying to build a new notion of reality.

Em certo sentido, todo relato, como os mostrados em diferentes mídias por Garaicoa, é o relato de uma viagem; os lugares utilizados não se tornam abstratos na forma do mapa, mas mantêm a vivacidade de uma travessia, revelam uma espécie de condição “delitiva”, porque “o delinquente”, adverte Michel de Certeau em A invenção do cotidiano, “só existe deslocando-se, se tem por especificidade viver não à margem, mas nos interstícios dos códigos que desmancha e desloca”.14 O que é decisivo é o percurso, não o estado, a combinação de familiaridade e estranheza confere ao passeio sua potência tentadora. O lugar é o palimpsesto, as moradas da memória podem ser percorridas como se fossem um território familiar, nossa

In a sense, every account, like those Garaicoa shows in different media, is the story of a journey; the places used do not become abstract as on a map, but maintain the vivacity of a journey, revealing a kind of “transgressive” condition, because, as Michel de Certeau warns in A Invenção do Cotidiano [The Practice of Everyday Life], “the delinquent exists only by displacing itself, if its specificity is to live not on the margins but in the interstices of the codes that it undoes and displaces.”14 What is decisive is the trajectory, and

12 SÁNCHEZ, Suset. “Carlos Garaicoa: anotaciones inconclusas sobre una práctica artística [Carlos Garaicoa entrevistado por Suset Sánchez]”. In: Carlos Garaicoa. Orden inconcluso, op. cit., p. 193. “Outro dos momentos-chave em minha formação, minha aproximação com os fotógrafos da imprensa em Cuba: José Ney, Pedro Abascal, Mario García Joya, Juan Carlos Alom, René Peña etc. Essa aproximação com a imagem fotográfica e com a fotografia documental contribuiu para que me considerassem, por muitos anos, um fotógrafo, coisa com a qual não concordo totalmente porque, embora tenha empregado muitos mecanismos que aprendi com eles, eu o fiz com um olhar externo à documentação tradicional. Nunca fui um fotógrafo imbuído no fenômeno da imagem como instante decisivo, já que sempre me debati no espaço existente entre a própria imagem e o pensamento, entre a imagem e minhas próprias digressões linguísticas e existenciais”. 13 FADRAGA, Lillebit. In: Carlos Garaicoa. La fotografía como intervención. Madrid: Ed. La Fábrica, 2012, p. 18. “O trabalho de Carlos Garaicoa tem mantido, há mais de vinte anos, esse caráter documental como ponto de partida, que imediatamente se desdobra em um complemento de fábula. Suas obras foram muitas vezes chamadas de utópicas e isso não está inteiramente equivocado. Eu as entendo como projeções desejadas, como possibilidades de futuro para um presente sem solução, como desafios à nossa imaginação e a nosso estatismo. Mas não captar a agressividade inerente a muitos de seus projetos, a agudeza de sua ironia ou desespero impotente com o qual ele se dirige ao espectador é enganar-se a si mesmo, fazer rodeios”. 14 DE CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano (v. 1). Petrópolis: Vozes, 1998, p. 216.

94

with processual art, and with conceptual art that I came to the idea of the city as a place of passage]. Available at: <http://blog. uprising-art.com/en/exclusiva-exclusiva-carlos-garaicoa-2> (Accessed: May 4, 2018). 12 SÁNCHEZ, Suset. “Carlos Garaicoa: anotaciones inconclusas sobre una práctica artística [Carlos Garaicoa entrevistado por Suset Sánchez]”. In: Carlos Garaicoa. Orden inconcluso, op. cit., p. 193. “Another of the key moments in my formative experiences, my contact with the press photographers in Cuba: José Ney, Pedro Abascal, Mario García Joya, Juan Carlos Alom, René Peña etc. Getting closer to the photographic image and to documentary photography contributed for many years to my being considered a photographer, something that I do not entirely agree with because, although I used many of the mechanisms I learned from them, I did so with a way of seeing that came from outside traditional documentation. I have never been a photographer imbued with the phenomenon of the image as a decisive moment, since I have always wrestled with the space that exists between the image itself and thought, between the image and my own linguistic and existential digressions.” 13 FADRAGA, Lillebit. In: Carlos Garaicoa. La fotografía como intervención. Madrid: Ed. La Fábrica, 2012, p. 18. “The work of Carlos Garaicoa has maintained as a starting point, for more than twenty years, this documentary character which immediately unfolds as a complement of fable. His works were often called utopian and this is not entirely wrong. I understand them as desired projections, as future possibilities for a present with no solution, as challenges to our imagination and our stasis. But not to grasp the aggressiveness inherent in many of his projects, the keenness of his irony or the impotent despair with which he addresses the viewer is to deceive oneself and go around in circles.” 14 DE CERTEAU, Michel. The Practice of Everyday Life, Third edition, translated by Steven F. Rendall. Oakland: University of California Press, 2011, p. 130.


mente guarda analogias com um wunderblock. Garaicoa, sem dúvida, compartilha com Borges a certeza de que o mapa não é o território e que sem a diegese (guia que instaura um caminho e uma transgressão) a única coisa que teríamos seria a repetição fatal do mesmo. Talvez a forma de se aproximar da cidade deste artista possa ser entendida como uma leitura catacrésica, entre as linhas, em que ele assume a condição heteroglóssica do mundo e atua em conformidade, ou seja, gerando uma composição ou partitura “dialógica”, no sentido bakhtiniano.15 A videoinstalação de Garaicoa intitulada Partitura [Partitura] (2016) foi apresentada em sua exposição Epifanías urbanas [Epifanias urbanas] no Centro Azkuna de Bilbao (2017). Algumas gravações que o artista fez de músicos de rua em Madrid e Bilbao foram utilizadas como material sonoro pelo compositor cubano Esteban Puebla para criar uma bela peça musical. Essa impressionante colagem compositivo-musical poderia ser relacionada com o elogio da multidão que se depreendia do manifesto do futurismo (publicado na primeira página do jornal Le Figaro em 20 de fevereiro de 1909) como um canto coletivo extremamente animado.16 Lembremos como Russolo, em Arte dei rumori [A arte dos ruídos], (1913) falou de “portas metálicas das lojas, das portas batendo, o murmurar e o pisoteio da multidão, os vários estrondos nas estações, nas metalúrgicas, nas tipografias, nas tecelagens, nas centrais elétricas e no metrô. Nem devemos esquecer os ruídos novíssimos da guerra moderna”. A música de rua que Garaicoa recolhe me faz pensar nas Sinfonías de las sirenas [Sinfonia das sire-

15 BAKHTIN, Mikhail: Speech, Genres, and Other Late Essays. Austin: University of Texas Press, 1986, p. 93. “A emissão parece ser atravessada por ecos distantes e quase inaudíveis de mudanças de sujeitos de fala e insinuações dialógicas, fronteiras de emissão muito debilitadas que são completamente penetráveis pela expressão do autor. A emissão prova ser um fenômeno muito complexo e multiplanar se for considerada não em seu isolamento e com relação a seu autor [...] mas como um elo na cadeia da comunicação falada e com relação a outras emissões relacionadas”. 16 MARINETTI, Filippo Tommaso. “Manifesto futurista”. In: Le Figaro, 20 de fevereiro de 1909. Disponível em: <https://www.monde-diplomatique.fr/ mav/151/MARINETTI/57076>. (Acesso: 07 mai. 2018); “Cantaremos as grandes multidões agitadas pelo trabalho, pelo prazer e pela revolta”.

not the state, the combination of familiarity and strangeness gives the journey its power to tempt. Place is a palimpsest, the abodes of memory can be traversed as if they were a familiar territory, our mind is analogous to a wunderblock. Garaicoa undoubtedly shares with Borges the certainty that the map is not the territory and that without diegesis (a guide that establishes a path and a transgression) the only thing we would have would be the fatal repetition of the same. Perhaps the way to approach this artist’s city can be understood as a catachrestic reading—between the lines—in which he assumes the heteroglossic condition of the world and acts accordingly, that is, generating a composition or “dialogical” score, in the Bakhtinian sense.15 Garaicoa’s video installation titled Partitura [Score] (2016) was presented in his Epifanías urbanas [Urban Epiphanies] exhibition in the Centro Azkuna of Bilbao (2017). Some recordings that the artist made of street musicians in Madrid and Bilbao were used as sound material by the Cuban composer Esteban Puebla to create a beautiful work of music. This striking compositional-musical collage could be compared to the acclamation of the crowd, likened to an extremely lively collective song, inferred from the Futurist manifesto (published on the front page of Le Figaro on February 20, 1909).16 Let us recall how Russolo in Arte dei rumori [The Art of Noise] (1913) spoke of “the metal roll up doors of shops, doors slamming, the murmuring and trampling of the multitude, the multifarious racket of the stations, in the metalworks, the typographies, weavers, power plants and the sub-

15 BAKHTIN, Mikhail: Speech, Genres, and Other Late Essays. Austin: University of Texas Press, 1986, p. 93. “The emission seems to be crisscrossed by distant and almost inaudible echoes of changing speech subjects and dialogical insinuations, the boundaries of the emission being completely penetrable by the author’s expression. The emission proves to be a very complex and multiplanar phenomenon if it is considered, not in isolation and in relation to its author [...], but as a link in the chain of spoken communication and in relation to other related emissions.” [Loose translation from Spanish.] 16 MARINETTI, Filippo Tommaso. Manifesto futurista. In: Le Figaro, 20 de fevereiro de 1909. Available at: <https://www.monde-diplomatique.fr/mav/151/MARINETTI/57076>. (Accessed: May 7. 2018); “We will sing of the great multitudes agitated by work, pleasure and revolt.”

95


nes], iniciadas por Arseny Avraamov no período pós-revolucionário russo,17 mas também na reivindicação que Kandinsky fez do Prometeo de Skriabin como exemplo de representação paralela de elementos musicais e pictóricos,18 ou o projeto que ele mesmo realizou em 1928, ao fazer a cenografia para Cuadros de una exposición [Quadros de uma exposição], de Modeste Mussorgsky, no Friedrich-Theatre de Dessau. Se Arnold Schönberg reconhecia o esforço estético de Kandinsky em plasmar a sua fantasia cromática e formal tal como um músico,19 o futurista Fanco Casavola identificou o intérprete com o criador e defendeu a embriaguez improvisadora.20 Tanto 17 BISHOP, Claire. Infiernos artificiales. Arte participativo y políticas de la espectaduría. México: Ed. T-e-eoría, 2016, p. 106-107. “As Sinfonías de las sirenas é um dos gestos culturais mais alucinantes do período pós-revolucionário. Esta empresa musical não só procurava facilitar a participação em massa, mas reinventou igualmente todo o conceito de instrumentalização ao utilizar vantajosamente sirenes e ruído industrial da cidade moderna e levá-los a um novo entendimento daquilo que constituía uma orquestra. Concebida como uma música nova e verdadeiramente proletária, as Sinfonías de las sirenas se propunham a transformar a cidade inteira em um auditório para uma orquestra de um novo ruído industrial, dirigido, a partir de um telhado, por um homem que carregava longas bandeiras; eles recebiam com júbilo ‘todos os ruídos da idade mecânica, o ritmo da máquina, o estrondo da grande cidade e da fábrica, o zumbido das correias de transmissão, o chacoalhar dos motores, e as estridentes notas das cornetas dos motores”. 18 Cf. Wassily Kandinsky. “e”. In: Escritos sobre arte e artistas. Madrid: Ed Síntese, 2003, p. 95. “A retórica e a música alcançaram o mais alto desenvolvimento; durante os últimos e mais recentes tempos, começaram a se desenvolver a arte do movimento e a arte dos puros jogos de luzes – sinfonia das cores. Encontramos hoje, cada vez mais frequentemente, as tentativas de reviver a arte do movimento, e não se pode denominar de outra forma o estilo de alguns inovadores na pintura senão como uma aproximação da pintura com o puro jogo de cores. Chegou a hora da reunificação da totalidade dessas artes dispersas. Esta ideia, que já foi formulada confusamente por Wagner, é hoje muito mais claramente concebida por Skriabin. Cada uma das artes alcançou enorme desenvolvimento e todas elas, reunificadas em uma obra, têm que dar a sensação de uma elevação titânica, que tem que seguir imprescindivelmente um êxtase real, uma verdadeira visão das esferas mais elevadas” (SABANEIEV, L. “Prometheus, de Scriabin” In: El Jinete Azul (Der Blauer Reiter). Barcelona: Ed. Paidós, 1989, p. 112). 19 SCHÖNBERG, Arnold. “La relación con el texto”. In: El Jinete Azul (Der Blauer Reiter). Barcelona: Ed. Paidós, 1989, p. 72. “E se para Karl Karl Kraus a língua é a mãe do pensamento, para W. Kandinsky e Oskar Kokoschka é o ato de pintar quadros quem o é, pois para eles o exterior e o material do objeto não são nada além de um pretexto para plasmar sua fantasia em cores e formas, e se expressar tal como até então apenas o músico fazia”. 20 CASAVOLA, Franco. “La música futurista. Manifiesto futurista”. In: SAN MARTÍN, Francisco Javier (ed.). La mirada nerviosa. Manifiestos y textos futuristas. San Sebastián: Arteleku, Diputación Foral de Gipuzkoa, 1992, p. 274. “A música futurista consiste em uma nova relação entre ritmo, canto e harmonia. Como canto e ritmo, a música surge da embriaguez improvisadora. [...] Ideal futurista: identificar o intérprete com o criador, levar a improvisação à totalidade da orquestra”.

96

way. Nor should we forget the very new noises of modern warfare.” The street music that Garaicoa collects makes me think of the Symphony of Sirens, initiated by Arseny Avraamov in the Russian post-revolutionary period,17 but also of Kandinsky claiming Scriabin’s Prometheus as an example of the parallel representation of musical and pictorial elements,18 or the project that he himself carried out in 1928, when he made the scenography for Modeste Mussorgsky’s Pictures at an Exhibition at the Friedrich-Theater in Dessau. If Arnold Schönberg recognized Kandinsky’s aesthetic effort to shape his chromatic and formal fantasy as a musician does,19 the futurist Franco Casavola identified the performer with the creator and defended improvisatory inebriation.20 Both the approach of the visual to

17 BISHOP, Claire. Artificial Hells: Participatory Art and the Politics of Spectatorship. London: Verso, 2012, p. 65. “…the ‘Hooter Symphonies’ is one of the most mind-boggling cultural gestures of the post-revolutionary period. Not only did this musical endeavor seek to facilitate mass participation, it also reinvented the entire concept of instrumentation by harnessing the sirens and industrial noise of the modern city into a new understanding of what constituted an orchestra. Conceived as a new and truly proletarian music, the Hooter Symphonies aimed to turn the whole city into an auditorium for an orchestra of new industrial noise, conducted from a rooftop by a man carrying large flags; they embraced ‘all the noises of the mechanical age, the rhythm of the machine, the din of the great city and the factory, the whirring of the driving belts, the clattering of motors, and the shrill notes of motor horns.’” 18 Cf. Wassily Kandinsky. “e”. In: Escritos sobre arte e artistas. Madrid: Ed Síntese, 2003, p. 95. “Rhetoric and music have reached the highest development; during the latest and most recent times, they have begun to develop the art of movement and the art of the pure, free interplay of lights—a symphony of colors. Today, more and more frequently, we encounter attempts to revive the art of movement, and it is not possible to call the style of some innovators in painting anything other than an approximation of painting with the pure play of colors. The time has come for the reunification of all these dispersed arts. This idea, which had already been formulated confusedly by Wagner, today is much more clearly conceived by Skriabin. Each one of the arts has attained tremendous development, and all of them, reunified in a work, must give the impression of a titanic elevation, which necessarily must follow a real ecstasy, a true vision of the highest spheres.” (SABANEIEV, L. “Prometheus, de Scriabin” In: El Jinete Azul (Der Blauer Reiter). Barcelona: Ed. Paidós, 1989, p. 112). 19 SCHÖNBERG, Arnold. “La relación con el texto”. In: El Jinete Azul (Der Blauer Reiter). Barcelona: Ed. Paidós, 1989, p. 72. “And if for Karl Karl Kraus language is the mother of thought, for W. Kandinsky and Oskar Kokoschka it is the act of painting pictures that engenders thought, for to them the exterior and the material of the object are nothing more than a pretext for shaping their fantasy using colors and shapes, and expressing themselves as only the musician had done until then.” 20 CASAVOLA, Franco. “La música futurista. Manifiesto futurista”. In: SAN MARTÍN, Francisco Javier (ed.). La mirada nerviosa. Manifiestos y textos futuristas. San Sebastián: Arteleku, Diputación


a aproximação do visual com o musical quanto a potência da improvisação são cruciais em Partitura, de Garaicoa, que se liga, a seu modo, com o anseio mallarmeano de unir verbo, gesto e cor em uma clave musical.21 A hibridação musical-instalativa de Carlos Garaicoa em Partitura tem menos a ver com a Music of Changes [Música de Mudanças], de Cage, ou com a conspiração nômade do Fluxus, do que com certa chave barroca. Alejo Carpentier salienta que o barroco, “longe de significar decadência, marcou por vezes o ponto culminante, a máxima expressão, o momento de maior riqueza de uma determinada civilização”. A mestiçagem engendra um barroquismo22 e, sem dúvida, a condição festiva cubana23 é crucial nessa composição que transforma músicas que poderiam ser banais ou até mesmo cacofônicas em seu desdobramento simultâneo, em algo que flui de forma sedutora e tremendamente vital. Se Deleuze meditou sobre o barroco conceptista a partir de Leibniz como uma “dobra”, na partitura de Garaicoa o que se faz visível e audível é um desdobramento, uma realidade dinâmica que entendemos na chave da hibridização latino-americana,24 mas também como uma singular mistura do

21 LEZAMA LIMA, José. “Nuevo Mallarmé”. In: La dignidad de la poesia. Barcelona: Ed. Versal, 1989, pp. 33-34. “Mallarmé morre querendo levar as possibilidades do poema para além da orquestra por meio da união do verbo e do gesto, e das organizações da cor”. 22 CARPENTIER, Alejo. “O barroco e o real maravilhoso”. In: A literatura do maravilhoso. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais/Edições Vértice, 1987, p. 121. “Toda simbiose, toda mestiçagem, engendra um barroquismo”. 23 SÁNCHEZ, Osvaldo. “Carnaval, política y kitsch”. In: La cita transcultural – Art from Latin America. Sidney: Museo de Arte Contemporáneo, 1993. Reproduzido em POWER, Kevin (ed.). Pensamiento crítico en el nuevo arte latinoamericano. Lanzarote: Fundación César Manrique, 2006, p. 500. “É no efêmero performático da festa em que se deve procurar a autenticidade ‘barroca’ da Cuba colonial. E esse barroquismo nada mais é do que um artifício para conquistar espaços-territórios de discurso e de interpretação sobre a novidade de ser outro”. 24 ZAMUDIO-TAYLOR, Victor. “Ultrabaroque: Arte, mestizaje, globalización”. In: Ultrabaroque. San Diego: Museum of Contemporary Art, 2000. Reproduzido em POWER, Kevin (ed.). Pensamiento crítico en el nuevo arte latinoamericano, op. cit., p. 625. “O real maravilhoso, o Barroco, e o hibridismo estão dinamicamente relacionados a projetos que tentavam definir as culturas nacionais da América Latina. O Barroco latino-americano – por sua elasticidade e energética capacidade de inscrever, acomodar e contaminar – levou à criação de tropos paradoxais da identidade cultural. O Barroco surgiu na história da arte euro-americana como um clichê de homogenei-

the musical and the power of improvisation are crucial in Garaicoa’s Score which, in its own way, connects with the Mallarmean yearning to unite words, gesture and color in a musical key.21 Carlos Garaicoa’s musical-installational hybridization in Score has less to do with Cage’s Music of Changes or with the nomadic conspiracy of the Fluxus, than with a certain baroque quality. Alejo Carpentier points out that the baroque, “far from signifying decadence, sometimes marked the climax, the maximum expression, the moment of greatest wealth of a particular civilization.” Miscegenation engenders baroquism22 and, without a doubt, the festive Cuban condition23 is crucial in this composition that transforms passages of music that could be banal or even cacophonous in their simultaneous unfolding, into something that flows seductively and with tremendous vitality. If Deleuze meditated on Leibniz’s baroque conceptism as a “fold,” what becomes visible and audible in Garaicoa’s score is an unfolding, dynamic reality that we understand as the key to Latin American hybridization,24 but also as a singular mixture of the irreg-

Foral de Gipuzkoa, 1992, p. 274. “Futuristic music consists of a new relationship between rhythm, song and harmony. Like song and rhythm, music comes from improvisational inebriation. [...] Futurist ideal: to identify the performer with the creator, to take improvisation to the totality of the orchestra.” 21 LEZAMA LIMA, José. “Nuevo Mallarmé”. In: La dignidad de la poesia. Barcelona: Ed. Versal, 1989, pp. 33-34. “Mallarmé dies wanting to take the possibilities of the poem beyond the orchestra through the union of word and gesture, and the organizations of color.” 22 CARPENTIER, Alejo. “O barroco e o real maravilhoso”. In: A literatura do maravilhoso. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais/ Edições Vértice, 1987, p. 121. “All symbiosis, all miscegenation, engenders baroquism.” 23 SÁNCHEZ, Osvaldo. “Carnaval, política y kitsch”. In: La cita transcultural – Art from Latin America. Sidney: Museo de Arte Contemporáneo, 1993. Reproduced in POWER, Kevin (ed.). Pensamiento crítico en el nuevo arte latinoamericano. Lanzarote: Fundación César Manrique, 2006, p. 500. “It is in the ephemeral performance of the festivity that one must look for the ‘baroque’ authenticity of colonial Cuba. And this baroquism is nothing more than an artifice to conquer spaces-territories of discourse about and interpretation of the novelty of being another.” 24 ZAMUDIO-TAYLOR, Victor. “Ultrabaroque: Arte, mestizaje, globalización”. In: Ultrabaroque. San Diego: Museum of Contemporary Art, 2000. Reproduced in POWER, Kevin (ed.). Pensamiento crítico en el nuevo arte latinoamericano, op. cit., p. 625. “Magical realism, the Baroque, and hybridism are dynamically related to projects that tried to define the national cultures of Latin America. The Latin American Baroque—through its elasticity and energetic ability to inscribe, accommodate and contaminate—led to

97


irregular e do minuciosamente composto. Severo Sarduy fala da retombée como uma causalidade acrônica (causa e consequência sem sucessão temporal, mas em estrita coexistência, ou a segunda precedendo, de forma estranha, a primeira, para chegar a atingir a imagem de que ambas podem se embaralhar como em um jogo de cartas). “Retombée é também uma semelhança ou similaridade no descontínuo: dois objetos distantes e sem comunicação ou interferência podem revelar serem análogos; um pode funcionar como duplo – a palavra aqui também é tomada no sentido teatral do termo – do outro: não há nenhuma hierarquia de valores entre o modelo e a cópia”.25 Em vez de ficar preso no horror vacui barroco, Garaicoa coloca na tela intermediária entre duas projeções de músicos de rua uma área desenhística que tem algo de emblema amoroso.

ular and the minutely composed. Severo Sarduy speaks of the retombée as an atemporal causality (cause and consequence without temporal succession, but in strict coexistence, or with the second strangely preceding the former, to arrive at the image of both being shuffled as in a card game). “Retombée is also a resemblance or similarity of the discontinuous: two distant objects without communication or interference may prove to be analogous; one can function as a double—the word here is also taken in the theatrical sense of the term—of the other: there is no hierarchy of values between the model and the copy.”25 Instead of being caught in a baroque horror vacui, Garaicoa places, on the middle screen, between two projections of street musicians, an area of “planning by means of drawing” [área desenhística] that is something like an emblem of love.

Partitura é um impressionante jogo de presenças e ausências, de autorias esfumadas ou recompostas. Garaicoa filma os músicos de rua que são, em certa medida, performers casuais (uma espécie de música tomada ou apropriada como ready-made sonoro), e Esteban Puebla utiliza esses materiais sonoros para fazer a peça musical, mas a coisa não fica aí, porque a disposição instalativa introduz tanto as imagens dos intérpretes quanto a tela com desenhos que são reações ao som. Nos atris da instalação são colocados tablets nos quais é possível ver e ouvir o que cada um dos músicos submetidos ao proceder compositivo toca na rua. Poderíamos pensar que as telas de vídeo “dirigem” os dispositivos técnicos que são colocados na frente dos atris ou que os desenhos dinâmicos são propriamente “a partitura”. Aqui surge tanto a questão da direção quanto a da autoria, mas também encontramos uma alusão aos rituais e disciplinas da música. Deve-se ter em mente que será somente em meados do século XIX que a figura do diretor da or-

Score is an impressive interplay of presences and absences, of blurred or reconstituted authorships. Garaicoa films the street musicians who are, to some extent, casual performers (a kind of music taken or appropriated like a sound-based ready-made), and Esteban Puebla uses these sound materials to make the work of music, but that isn’t all, because the configuration of the installation introduces both the images of the performers and the screen with drawings that are reactions to the sound. On the music stands in the installation there are tablets on which it is possible to see and hear what each of the musicians who were part of the compositional procedure plays on the street. We might think that the video screens “conduct” the technical devices that are placed in front of the music stands or that the dynamic drawings are actually “the score”. Here both the question of direction and that of authorship

zação de diferenças culturais entre regiões e países. Na realidade, o Barroco é ao mesmo tempo múltiplo, alegórico e fluido, e, por definição, é poroso, absorve e destaca uma infinidade de especificidades”.

the creation of paradoxical tropes of cultural identity. The Baroque emerged in the history of Euro-American art as a cliché of the homogenization of cultural differences between regions and countries. In reality, the Baroque is at the same time multiple, allegorical and fluid, and, by definition, it is porous, it absorbs and highlights an infinity of specificities.”

25 SARDUY, Severo. “Nueva estabilidad”. In: Ensayos generales sobre el barroco. México: Ed. Fondo de Cultura Económica, 1987, p. 35.

25 SARDUY, Severo. “Nueva estabilidad”. In: Ensayos generales sobre el barroco. México: Ed. Fondo de Cultura Económica, 1987, p. 35.

98


questra sobe ao pódio.26 O autor é, como o homem, lembrando novamente Foucault, uma invenção com data recente, e já faz algumas décadas que ele foi submetido a um severo questionamento. Roland Barthes expressou a impessoalidade das transações semióticas como “a morte do Autor”: não é um indivíduo que fala, mas a Linguagem que fala através dele.27 É importante retomar as considerações do autor como produtor de Benjamin, que ressaltava que uma obra de arte é melhor à medida que ela coloca mais participantes em contato com o processo de produção;28 não há dúvida de que em Partitura intervêm muitas vozes e sujeitos que diluem a autoria, ao mesmo tempo em que se referem a uma direção compositiva extremamente lúcida. Na “caça metropolitana” de Garaicoa aparecem, desta vez, os músicos de rua como se viessem confirmar a ideia de Jacques Attali de que “nada de essencial ocorre onde o ruído não esteja presente.”29 Em Partitura, vemos como aparecem e desaparecem os músicos que forneceram o material sonoro que Esteban Puebla utiliza para a composição. Falta significativamente a imagem de um intérprete que toca clarinete o qual, aliás, tem um grande protagonismo musical. O mesmo artista me avisa que a pessoa que executa as passagens de clarinete não é ninguém além de Mahé Marty, a esposa dele. A tela central das projeções de vídeo, na qual vemos os desenhos em movimento, é propriamente um acompanhamento do belo e intrincado som do clarinete. Quando sugeri ante-

26 ATTALI, Jacques. Ruidos. Ensayo sobre la economía política de la música. México: Ed. Siglo XXI, 1995, p. 101. “Até Beethoven, aliás, as sinfonias eram executadas por alguns poucos músicos (23 executantes para a 9ª sinfonia), e sem diretor. Mas combinatória implica o crescimento, e o crescimento implica o diretor. A partir de 1850, quando o volume de público e as dimensões da sala permitirem, as mesmas obras serão executadas com mais de cem músicos, superfluamente. Berlioz, o ‘diretor organizador’, será um dos primeiros a subir ao pódio e, a partir de 1856, teorizará esse poder”.

arises, but we also find an allusion to the rituals and disciplines of music. It should be borne in mind that it will only be in the middle of the 19th century that the figure of the orchestra conductor rises to the podium.26 The author is, like man—remembering Foucault once again—a recent invention, and for some decades he has been subjected to severe questioning. Roland Barthes expressed the impersonality of semiotic transactions as “the death of the Author”: it is not an individual who speaks, but Language that speaks through him.27 It is important to return to Benjamin’s considerations of the author as producer, emphasizing that a work of art is better inasmuch as it puts more participants in touch with the production process;28 there is no doubt that many voices and subjects take part in Score, diluting authorship, even as they refer to an extremely lucid compositional direction. In Garaicoa’s “metropolitan hunt”, street musicians appear this time as if to confirm Jacques Attali’s idea that “nothing essential occurs where noise is not present.”29 In Score, we see how the musicians who provided the sound material that Esteban Puebla uses for the composition appear and disappear. Significantly, the image of a performer who plays the clarinet is missing, a performer who, moreover, has a major musical role. An artist tells me that the person who performs the clarinet passages is none other than Mahé Marty, his wife. The central screen with the video projections, in which we see the drawings in movement, is actually an accompaniment to

26 ATTALI, Jacques. Ruidos. Ensayo sobre la economía política de la música. México: Ed. Siglo XXI, 1995, p. 101. “Up until Beethoven, by the way, symphonies were performed by just a few musicians (23 performers for the 9th symphony), with no conductor. But combinatory implies growth, and growth implies the conductor. Starting in 1850, when the size of the audience and the dimensions of the room allow, the same works will be performed with more than one hundred musicians, superfluously. Berlioz, the ‘organizing director,’ will be one of the first to get up on the podium and, from 1856 on, he will theorize that power.”

27 BARTHES, Roland. “A morte do autor”. In: O rumor da língua. São Paulo: Brasiliense, 1988, pp. 65-70.

27 BARTHES, Roland. “A morte do autor”. In: O rumor da língua. São Paulo: Brasiliense, 1988, pp. 65-70.

28 Cf. BENJAMIN, Walter. “O autor como produtor”. In: Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1987, pp. 115-136.

28 Cf. BENJAMIN, Walter. “O autor como produtor”. In: Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1987, pp. 115-136.

29 ATTALI, Jacques: Ruidos. Ensayo sobre la economía política de la música, op. cit., p. 11.

29 ATTALI, Jacques: Ruidos. Ensayo sobre la economía política de la música, op. cit., p. 11.

99


riormente que Partitura tem algo de “retrato amoroso”, estava propondo um apontamento para assumir que, como Barthes escreveu em seu último texto, não é possível falar propriamente daquilo que se ama. Como em A câmara clara barthesiana, nos falta a fotografia da “louca verdade” e o retrato que nos toca, a tiquê que nos coloca na condição atóptica, se refere, inevitavelmente, a uma ausência.30 Mahé, como a mãe de Barthes, brilha por sua ausência ainda que tenha uma presença sonora imponente como se a composição fosse, em certo sentido, um concerto de clarinete com acompanhamento “orquestral” da metacolagem de sons da rua. Também seria possível interpretar o desenho de Garaicoa em Partitura como uma espécie de “poema pitagórico”, um adejo gestual que não revela seu sentido.31 O artista é um dispositivo por meio do qual a “música coletiva” se funde em uma composição. Poderíamos usar a ideia de Guattari de um agencement collectif d’énonciation [agenciamento coletivo de enunciação] para entender essa videoinstalação na qual o percurso urbano capta, com um olhar cúmplice, as interpretações dos músicos na rua. A música coral desta obra tem algo ready-made-expandido, mas também se liga com a ideia de Kandinsky de “pintura composicional”.32 A posição do 30 BARTHES, Roland. A câmara clara. Nota sobre a fotografia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 13. “O que a Fotografia reproduz ao infinito só ocorreu uma vez: ela repete mecanicamente o que nunca mais poderá repetir-se existencialmente. Nela, o acontecimento jamais se sobrepassa para outra coisa: ela reduz sempre o corpus de que tenho necessidade ao corpo que vejo; ela é o Particular absoluto, a Contingência soberana, fosca e um tanto boba, o Tal (tal foto, e não a Foto), em suma a Tiquê, a Ocasião, o Encontro, o Real, em sua expressão infatigável”. 31 LEZAMA LIMA, José. “Preludio a las eras imaginarias”. In: La dignidad de la poesía. Barcelona: Ed. Versal, 1989, p. 234. “Este combate entre a causalidade e o incondicionado oferece um signo, rende um testemunho: o poema. Acompanhemos, com um esboço, uma sentença de Pitágoras rica em evidências: ‘Existe um triplo verbo. Há a palavra simples, a palavra hieroglífica e a palavra simbólica. Em outras palavras, o verbo que expressa, o verbo que oculta e o verbo que significa’. Nessa frase, Pitágoras parece retomar e nos levar de novo à dimensão anterior em que estávamos, pois o verbo que expressa se mostra em uma grande causalidade incandescente, na qual tudo é transparente, esclarecido; o verbo que oculta, oculta a voz do incondicionado, mas em seu próprio verbo hermético, em seu movimento ocultado, ele carrega o desejo de adejar em um gesto, demonstrar seus sobressaltos em alguns passos de dança”. 32 KANDINSKY, Wassily. “La pintura como arte puro”. In: Escritos sobre arte y artistas. Madrid: Ed. Síntesis, 2003, p. 59.

100

the beautiful and intricate sound of the clarinet. When I suggested earlier that Score has something of the characteristics of an “amorous portrait,” I was proposing a note to assume that, as Barthes wrote in his last text, it is not possible to speak properly of what one loves. As in Barthes’ Camera Lucida, we lack the photograph of the “crazy truth” and the portrait that touches us, the Tyche that puts us in the atopic condition, inevitably refers to an absence.30 Mahé, like Barthes’ mother, shines by her absence even though she has an imposing sound presence, as if the composition were, in a sense, a clarinet concert with the “orchestral” accompaniment of the meta-collage of street sounds. It would also be possible to interpret Garaicoa’s drawing in Score as a kind of “Pythagorean poem,” a gestural fluttering that does not reveal its meaning.31 The artist is a device through which “collective music” melds into a composition. We could use Guattari’s idea of an agencement collectif d’énonciation (collective arrangement of enunciation) to understand this video installation in which the urban trajectory captures, with an abetting eye, the interpretations of the musicians on the street. The choral music of this work is something of an expanded-ready-made, but it also connects with Kandinsky’s idea of “com-

30 BARTHES, Roland. A câmara clara. Nota sobre a fotografia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 13. “What the Photograph reproduces to infinity occurred only once: the Photograph mechanically repeats what could never be repeated existentially. In it, the event is never transcended for the sake of something else: it always leads the corpus I need back to the body I see; it is the absolute Particular, the sovereign Contingency, dulled and somehow stupid, the This (this photo, and not the Photo), in short, what Lacan calls the Tyche, the Occasion, the Encounter, the Real, in its indefatigable expression.” 31 LEZAMA LIMA, José. “Preludio a las eras imaginarias”. In: La dignidad de la poesía. Barcelona: Ed. Versal, 1989, p. 234. “This struggle between causality and the unconditioned offers a sign, yields a testimony: the poem. Let us follow with an outline a sentence from Pythagoras that rich in evidence: ‘There is a triple verb. There is the simple word, the hieroglyphic word, and the symbolic word. In other words, the verb that expresses, the verb that conceals and the verb that means’. In this sentence, Pythagoras seems to take [the idea] up again and take us back to the previous dimension where we were before, because the verb expressed is shown in great incandescent causality, in which everything is transparent, cleared up; the verb that conceals, conceals the voice of the unconditioned, but in its own hermetic verb, in its hidden movement, it carries the desire to flutter in a gesture, to show with some dance steps that it is startled.”


observador, movendo-se pela sala da videoinstalação, permite tanto que ele suba ao estrado onde podem ser contempladas as três telas de vídeo, quanto ouça nos atris as peças que cada um dos músicos executava. Considero que Garaicoa planeja aqui uma proposta compositiva sem tentar recriar artificialmente os velhos códigos para restabelecer a comunicação. Barthes, em um texto sobre Beethoven publicado no número 40 da revista L’Arc, falava da necessidade de “operar a música, atraí-la para uma práxis desconhecida”. Sem dúvida, Partitura é uma “deriva performativa” na qual escutamos a diferença e sentimos uma reivindicação do direito de compor a vida.33 “A composição se revela como a exigência por um sistema de organização realmente diferente, como uma rede na qual outras músicas e outras relações sociais possam ser produzidas. Uma música produzida por cada um para si mesmo, para desfrutar fora do sentido, do uso e da mudança”.34 Garaicoa está, como ele declara, próximo das propostas estruturalistas, buscando a maior densidade entre significante e significado, mas também fazendo uma crítica nada óbvia da realidade, recorrendo a “desvios” ou derivas questionadoras.35 Partitura é uma obra híbrida na qual não apenas se compõe musicalmente, mas em

position painting.”32 The position of the observer, moving through the video installation room, allows him to get up on the platform where the three video screens can be seen, or to listen at the music stands to the pieces that each of the musicians performed. I think that here Garaicoa plans a compositional scheme without trying to artificially recreate the old codes to reestablish communication. Barthes, in a text about Beethoven published in number 40 of the magazine L’Arc, spoke of the necessity of “to operate the music, to attract it to an unknown praxis.” Without a doubt, Score is a “performative deviation” in which we hear the difference and feel a claim to the right to compose life.33 “The composition shows itself to be the insistence on a really different system of organization, like a network in which other music and other social relationships can be produced. Music produced by each one for himself alone, to enjoy outside of meaning, usage and change.”34 Garaicoa is, as he declares, close to the structuralist propositions, seeking the greatest density between signifier and signified, but also making a critique of reality that is not obvious, resorting to “deviations” or questioning digressions.35 Score is a hybrid work which is not only com-

32 KANDINSKY, Wassily. “La pintura como arte puro”. In: Escritos sobre arte y artistas. Madrid: Ed. Síntesis, 2003, p. 59.

33 ATTALI, Jacques. Ruidos. Ensayo sobre la economía política de la música, op. cit., p. 196. “A única reformulação possível do poder repetitivo passa, então, pela ruptura da repetição social e pelo controle da emissão de ruídos. Em termos mais cotidianamente políticos, passa pela afirmação permanente do direito à diferença, pela recusa obstinada do armazenamento do tempo de uso e de mudança, para a conquista do direito de fazer barulho, ou seja, de criar para si mesmo o seu próprio código e sua obra sem fixar de antemão a finalidade, e o direito de se conectar com o direito de outra pessoa, escolhida livre e revogavelmente, isto é, o direito de compor sua vida”. 34 Ibid., p. 203. 35 SÁNCHEZ, Suset. “Carlos Garaicoa: anotaciones inconclusas sobre una práctica artística [Carlos Garaicoa entrevistado por Suset Sánchez]”. In: Carlos Garaicoa. Orden inconcluso, op. cit., p. 190. “Identifico-me com uma tese básica do pensamento estruturalista: a maior densidade entre significante e significado obriga o espectador a percorrer um caminho mais longo para chegar à mensagem e, portanto, a mensagem se torna mais produtiva. Roland Barthes dizia que o modo de enfrentar o poder não deve ser direto, porque qualquer gesto de oposição imediata faz apenas com que você seja reprimido. No entanto, se você pegar um desvio, pode sempre encontrar uma maneira de dinamitar o poder, de ir à essência dele fazendo um percurso linguístico, de significação mais profunda”.

33 ATTALI, Jacques. Ruidos. Ensayo sobre la economía política de la música, op. cit., p. 196. “The only possible reformulation of repetitive power involves, then, the rupture of social repetition and the control of noise emission. In more everyday political terms, it involves the permanent affirmation of the right to difference, the obstinate refusal to put time of use and change in storage, the appropriation of the right to make noise, that is, to create for yourself your own code and piece of work without fixing beforehand the purpose, and the right to connect with the right of another person, chosen freely and revocably, that is, the right to compose your life.” 34 Ibid., p. 203. 35 SÁNCHEZ, Suset. “Carlos Garaicoa: anotaciones inconclusas sobre una práctica artística [Carlos Garaicoa entrevistado por Suset Sánchez]”. In: Carlos Garaicoa. Orden inconcluso, op. cit., p. 190. “I identify with a basic thesis of structuralist thinking: the greatest density between signifier and signified forces the viewer to take a longer path to reach the message, and the message, therefore, becomes more productive. Roland Barthes said that the way to confront power should not be direct, because any gesture of immediate opposition only causes you to be repressed. However, if you take a detour, you can always find a way to dynamite power, to go to its essence by taking a linguistic path, of deeper meaning.”

101


que a presença dos músicos introduz um elemento corporal-performativo. Okwui Enwezor ressaltou, com perspicácia, que a obra de Garaicoa remete, apesar de toda a estética do arquitetônico e a proliferação de planos e projeção em forma de maquetes, à corporalidade e, sobretudo, tem a ver com o problema da construção da subjetividade.36 Penso na obra intitulada Cuando el deseo se parece a nada [Quando o desejo se parece com nada] (1996), na qual um sujeito tatuou em seu braço a imagem das Torres Gêmeas, ou em John-New York-Paris-Havana (2001), com um indivíduo que também tem tatuada em seu braço a Torre Eiffel. Garaicoa apontou que “essas obras são metáforas sobre como transgredir um espaço real, ou como transpor um espaço real por meio do próprio corpo”.37 Nessas obras que testemunham as tatuagens da arquitetura, revela-se tanto um “mapa corporal” quanto o peso obsessivo do desejo.38 Quando ficamos reduzidos a uma pseudocomunidade de consumidores,39 quando compreendemos o caráter 36 ENWEZOR, Okwui. “Entre el concepto de dispositivo y lo subjetivo: la arquitectura post-utópica de Carlos Garaicoa”. In: Carlos Garaicoa. Noticias recientes. Centro de Arte Caja Burgos, 2011, p. 21. “O trabalho de Garaicoa está centrado nas condições espaciais da corporalidade da escultura e nas redes sociais e estruturais que ele constrói entre as instituições da arte e da política. Mesmo quando seu trabalho é bidimensional, como uma fotografia ou um desenho, o registro esquemático da obra dirige a atenção para a maneira como o espaço é gerado ou como a arquitetura pode ser imaginada, habitar ou representar o espaço e como ele é experimentado ou um diálogo social é produzido entre eles. Isso se torna mais evidente na medida em que sua obra se centra no corpo e, portanto, na subjetividade”. 37 GARAICOA, Carlos. Texto para o folheto de Cuando el deseo no se parece a nada. Nova York: Art in General, 1996. 38 FUSCO, Coco. “Cuando el deseo se parece a nada [Carlos Garaicoa entrevistado por Coco Fusco]”. In: Carlos Garaicoa. La ruina; la utopía. Bogotá: Biblioteca Luis Arango, 2000, p. 87. “É uma tatuagem feita com os instrumentos mais primitivos, como a feita nas prisões cubanas, com sabão e agulhas de costura, lápis, pasta de dentes derretida... É a grandiloquência de um discurso externo dirigido a si mesmo, como um espaço pode nos penetrar, pode entrar em nós... até se tornar uma obsessão, uma tortura, um limite total para ver a realidade. Este é o tema desta obra: o desejo como obsessão. É uma metáfora sobre como transgredir um espaço real, ou transpor um espaço real através de nosso próprio corpo – o que podemos inscrever em nós mesmos, nosso próprio desejo, mas como esse desejo pode ser tão doloroso que somos conscientes dele”. 39 KESTER, Grant. Conversation Pieces: Community and Communication in Modern Art. Berkeley: University of California Press, 2004, p. 29. “O historiador de arte Grant Kester, por exemplo, observa que a arte está situada unicamente para se opor a um mundo no qual ‘somos reduzidos a uma

102

posed musically, but in which the presence of the musicians introduces a corporeal-performative element. Okwui Enwezor pointed out with perspicacity that Garaicoa’s work—despite all the aesthetics of the architectonic and the proliferation of planes and projection in the form of scale models—deals with corporality and, above all, has to do with the problem of the construction of subjectivity.36 I think of the work entitled Cuando el deseo se parece a nada [When Desire Resembles Nothing] (1996), in which a person tattooed the image of the Twin Towers on his arm, or in John-New York-Paris-Havana (2001), with another individual who has the Eiffel Tower tattooed on his arm. Garaicoa pointed out that “these works are metaphors about how to violate a real space, or how to transpose a real space by means of one’s own body”.37 In these works that testify to the architectural tattoos, both a “corporeal map” and the obsessive weight of desire are revealed.38 When we are reduced to a pseudo-community of consumers,39 when we understand the obso-

36 ENWEZOR, Okwui. “Entre el concepto de dispositivo y lo subjetivo: la arquitectura post-utópica de Carlos Garaicoa”. In: Carlos Garaicoa. Noticias recientes. Centro de Arte Caja Burgos, 2011, p. 21. “Garaicoa’s work is centered on the spatial conditions of sculpture’s corporality and on the social and structural networks he constructs between the institutions of art and politics. Even when his work is two-dimensional, such as a photograph or a drawing, the schematic record of the work directs attention to the way space is generated or how architecture can be imagined, how space can be inhabited or represented and how it is experienced, or a social dialogue is produced between them. This becomes more evident insofar as his work is centered on the body and, therefore, on subjectivity.” 37 GARAICOA, Carlos. Text for the folder Cuando el deseo no se parece a nada. Nova York: Art in General, 1996. 38 FUSCO, Coco. “Cuando el deseo se parece a nada [Carlos Garaicoa entrevistado por Coco Fusco]”. In: Carlos Garaicoa. La ruina; la utopía. Bogotá: Biblioteca Luis Arango, 2000, p. 87. “It is a tattoo made with the most primitive of instruments, like those done in Cuban prisons, with soap and sewing needles, pencil, melted toothpaste... It is the grandiloquence of an external discourse directed towards itself, as a space can penetrate us, can enter us... until it becomes an obsession, a torture, a total limit to seeing reality. This is the theme of this work: desire as an obsession. It is a metaphor about how to transgress real space, or transpose real space by means of our own body—what we can inscribe in ourselves, our own desire, and how that desire can be so painful that we are conscious of it.” 39 KESTER, Grant. Conversation Pieces: Community and Communication in Modern Art. Berkeley: University of California Press, 2004, p. 29. “The art historian Grant Kester, for example, observes that art is uniquely placed to counter a world in which


obsolescente da utopia,40 temos que tentar criar diferentes formas de comunidade, ocasiões para, pelo menos, estarmos juntos. A palavra “território” deriva tanto de terra quanto de terrere (amedontrar) – de onde territorium, “um lugar do qual as pessoas são expulsas pelo medo”.41 Diante das ideologias nacionalistas da “unissonância” ou da busca hegemônica por uma cantilena que nos amodorre ainda mais, Garaicoa acolhe sons da rua para propor um concerto estranho. Em certo sentido, a música cria comunidade ao canalizar a violência ou ao sublimar a experiência sacrificial.42 Partitura transmite prazer e sensualidade mais do que introduz uma dinâmica sublimatória. Os materiais que ele coletou em muitos casos não passavam de temas pegajosos, músicas para conseguir ganhar a vida; não é nada fácil frear o passo do cidadão acelerado e conseguir algumas moedas para um “trabalho artístico” no limite do declarado “legal”. Muitos dos músicos que tocam nas ruas se formaram em conservatórios e aspiravam, seguramente, a se tornarem virtuoses e realizar suas interpretações em lugares onde o público prestasse uma atenção completa. Garaicoa, durante mais de dez anos, gravou mais de sessenta músicos, em Madrid e em Bilbao, sujeitos que vivem mal na cidade. O olhar do artista cubano não busca o virtuose, mas quer alcançar um “som coletivo”, no qual ele possa continuar a enfrentar a ideologia do “virtuosismo” estético. “Não se trata”, afirma Carlos Garaicoa, “do deleite na pintura, na fotografia, na escultura ou qualquer outra forma de

lescence of the utopia,40 we have to try to create different forms of community, occasions, at least, to be together. The word “territory” derives both from earth or land [terra—think terrain] and from terrere [to frighten]—from which territorium, “a place from which people are driven out by fear”.41 Faced with the nationalist ideologies of “everyone in unison” or the hegemonic quest for a chant that lulls us even more, Garaicoa gathers sounds from the street to propose a strange concert. In a sense, music creates community by channeling violence or by sublimating the sacrificial experience.42 Score transmits pleasure and sensuality more than it introduces a sublimatory dynamic. The materials he collected in many cases are nothing more than tacky themes, music for making a living; it is not at all easy to slow down the accelerated citizen’s pace and get a few coins for an “artistic work” within the limits of what is declared “legal”. Many of the musicians playing in the streets studied in conservatories and doubtless must have aspired to become virtuosos and perform their interpretations in places where the public paid full attention. Garaicoa, over the course of over ten years, recorded more than sixty musicians, in Madrid and Bilbao, individuals who barely get by in the city. The Cuban artist’s way of observing does not seek virtuosity, but wants to achieve a “collective sound” in which he can continue to confront the ideology of aesthetic “virtuosity”. “It is not a question,” says Carlos Garaicoa, “of the delight in painting, photography, sculpture or any other form of visual expression. It is very easy to learn mastery of a

pseudocomunidade atomizada de consumidores, nossas sensibilidades obscurecidas pelo espetáculo e pela repetição”.

‘we are reduced to an atomized pseudocommunity of consumers, our sensibilities dulled by spectacle and repetition.”

40 DE LA NUEZ, Iván. “Tapices bajo la playa”. In: Carlos Garaicoa. Fin de silencio. Lleida: Centre d’Art La Panera, 2011, p. 16. “A utopia, precisamente, traça uma linha contínua na obra de Carlos Garaicoa. Uma utopia transbordada, sim, devido ao fato, nem sempre perceptível, de sua obsolescência”.

40 DE LA NUEZ, Iván. “Tapices bajo la playa”. In: Carlos Garaicoa. Fin de silencio. Lleida: Centre d’Art La Panera, 2011, p. 16. “Utopia, precisely, draws a continuous line through the work of Carlos Garaicoa. A utopia that has overflowed, yes, due to the fact, not always perceptible, of its obsolescence.”

41 BHABHA, Homi K. O local da cultura, op. cit., p. 147.

41 BHABHA, Homi K. O local da cultura, op. cit., p. 147.

42 ATTALI, Jacques. Ruidos. Ensayo sobre la economía política de la música, op. cit., p. 43. “A música é criadora de uma ordem política porque é uma forma menor de sacrifício. No espaço dos ruídos, ela significa simbolicamente a canalização da violência e do imaginário, a ritualização de um homicídio que substitui a violência em geral, a afirmação de que uma sociedade é possível sublimando os imaginários individuais”.

42 ATTALI, Jacques. Ruidos. Ensayo sobre la economía política de la música, op. cit., p. 43. “Music is the creator of a political order because it is a lesser form of sacrifice. In the space that belongs to noise, it means, symbolically, the channeling of violence and the imaginary, the ritualization of a homicide that substitutes for violence in general, the affirmation that a society is possible by sublimating individual imaginaries.”

103


expressão visual. É muito fácil aprender a dominar uma linguagem e alcançar certo virtuosismo, o problema reside naquilo que é possível insuflar nessa habilidade, como a individualidade pode ser traduzida através dessa linguagem em diálogo com a realidade do contexto ao qual pertence o artista”.43 Partitura tem, por outro lado, o traço de virtuosismo da gramática da multidão, no sentido de Paolo Virno, isto é, tem como base o testemunho de práticas coletivas, de hoje, que se articulam em uma rede descentralizada e heterogênea do pós-fordismo.44 No cerne do “novo espírito do capitalismo”, o artista ou, para ser mais preciso, a noção de “criatividade”, funciona como um álibi ideológico ou desdobramento de storytelling para legitimar a precarização.45 Garaicoa desenvolveu nos últimos anos uma série de obras, muitas delas ligadas com a cidade de Madrid, nas quais dá corda à sua indignação, como é evidente nas Cerámicas porno-indignadas [Cerâmicas porno-indignadas] (2012-2014), ou nas mutações do sistema de esgotos (realizadas também em 2014). Este artista presta atenção à capacidade das cidades de se expressarem e manifestarem dissenso

43 SÁNCHEZ, Suset. “Carlos Garaicoa: anotaciones inconclusas sobre una práctica artística [Carlos Garaicoa entrevistado por Suset Sánchez]”. In: Carlos Garaicoa. Orden inconcluso, op. cit., p. 193. 44 Cf. Paolo Virno entrevistado por Alexei Penzin. “The Soviets of the Multitude: On Collectivity and Collective Work”. In: Manifesta Journal, 8, 20092010, p. 56. Quando em Gramática de la multitud, Paolo Virno reivindica o “virtuosismo” no trabalho, ele introduz uma consideração que pode ser pertinente com relação à videoinstalação de Garaicoa, intitulada explicitamente “O intelecto como partitura”: “O pianista interpreta uma valsa de Chopin, o ator é mais ou menos fiel a uma encenação preliminar, o orador sempre tem alguma observação à qual se referir: todos os artistas intérpretes podem se apoiar em uma partitura. Mas quando o virtuosismo é inerente à totalidade do trabalho social, qual é a partitura? De minha parte, sustento, sem duvidar muito, que a partitura seguida pela multidão pós-fordista é o Intelecto, o intelecto como faculdade humana genérica” (VIRNO, Paolo. Gramática de la multitud. Para un análisis de las formas de vida contemporaneas. Buenos Aires: Ed. Colihue, 2008, p. 62). 45 Luc Boltanski e Eve Chiapello destacam, em seu importante livro O novo espírito do capitalismo (São Paulo: Martins Fontes, 2009), que as atuais formas de compreender o “projeto de trabalho” têm a ver com as mutações dos anos 1970 e 1980, mas, sobretudo, com modos críticos que surgiram no final dos anos 1960: a crítica artística (a demanda por maior autonomia, independência e satisfação criativa no âmbito de trabalho) e a crítica social (a demanda por maior paridade, transparência e equidade) .

104

language and achieve a certain virtuosity, the problem lies in breathing life into this ability, in translating individuality through that language in dialogue with the reality of the context to which the artist belongs.”43 Score has, on the other hand, the trace of the virtuosity of the grammar of the multitude, in the sense of Paolo Virno, that is, it is based on the testimony of collective practices, today, themselves articulated in a decentralized and heterogeneous network of post-Fordism.44 At the core of the “new spirit of capitalism,” the artist or, to be more precise, the notion of “creativity,” functions as an ideological alibi or a development of storytelling in order to legitimize precariousness.45 Over last few years, Garaicoa has developed a series of works, many of them related to the city of Madrid, in which he incentivizes his own indignation, as is evident in the Cerâmicas porno-indignadas [Porno-Indignant Ceramics] (2012-2014), or in the mutations of the sewage system (also carried out in 2014). This artist pays attention to the ability of cities to express themselves and manifest dissent in crisis situations. He confessed that in his last years of living in Madrid he participated in demonstrations or

43 SÁNCHEZ, Suset. “Carlos Garaicoa: anotaciones inconclusas sobre una práctica artística [Carlos Garaicoa entrevistado por Suset Sánchez]”. In: Carlos Garaicoa. Orden inconcluso, op. cit., p. 193. 44 Cf. Paolo Virno interviewed by Alexei Penzin. “The Soviets of the Multitude: On Collectivity and Collective Work”. In: Manifesta Journal, 8, 2009-2010, p. 56. When, in Gramática de la multitud, Paolo Virno afirms the work’s “virtuosity”, he introduces a consideration that can be pertinent with respect to Garaicoa’s video installation, explicitly titled “El intelecto como partitura” [The intellect as score]: “The pianist interprets a Chopin waltz, the actor is more or less faithful to a preliminary staging, the orator always has some observation to which he refers: all artist-performers have recourse to a score. But when virtuosity is inherent in the totality of the social work, what is the score? For my part, I maintain, without much doubt, that the score followed by the post-Fordist multitude is the Intellect, the intellect as a generic human faculty” (VIRNO, Paolo. Gramática de la multitud. Para un análisis de las formas de vida contemporáneas. Buenos Aires: Ed. Colihue, 2008, p. 62). 45 Luc Boltanski and Eve Chiapello point out in their important book The New Spirit of Capitalism (New York: Verso, 2018—reprint edition) that the current forms of understanding the “work project” have to do with the mutations of the 1970s and 1980s, but especially with critical modes that emerged in the late 1960s: artistic criticism (the demand for greater autonomy, independence, and creative satisfaction in the workplace) and social criticism (the demand for greater parity, transparency and fairness).


em situações de crise. Ele confessou que em seus últimos anos de vida em Madrid participou de manifestações ou foi testemunha de repressões policiais, isto é, pode dar testemunho da imposição de severas políticas, estritamente “austericidas” e, é claro, é contemporâneo do colapso das democracias “turbocapitalistas”.46 O que Garaicoa quer é “fazer uma arte que resiste a ser panfletária”,47 em uma época perturbada em que todos somos convidados a ser figurantes do espetáculo.48 Na cartografia desejante de Garaicoa49 esta Partitura tem uma presença singular, como se nos convidasse a criar um mapa diferente das cidades em que vivemos. Os traços da canção, que evoca Bruce Chatwin, estão aqui hiper-fragmentados e, por conseguinte, re-compostos em uma música que podemos ver e ouvir tanto dos atris quanto do estrado do diretor ou colocados em uma posição que englobe o conjunto como uma comunidade híbrida. Os movimentos em ziguezague da tela desenhada por Garaicoa podem ser vinculados às meditações sobre a linha de Paul Klee,50 mas, sobretudo, introduzem uma dimensão que é, ao mesmo tempo, 46 SÁNCHEZ, Suset. “Carlos Garaicoa: anotaciones inconclusas sobre una práctica artística [Carlos Garaicoa entrevistado por Suset Sánchez]”. In: Carlos Garaicoa. Orden inconcluso, op. cit., p. 195. “Fomos testemunhas de que o modelo das sociedades democráticas, tal como conhecemos até agora, entrou em colapso, ou pelo menos sua imagem ficou seriamente danificada”. 47 Ibid., p. 199. 48 BOURRIAUD, Nicolas. Estética relacional. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 54. “Estamos num estágio posterior desse desenvolvimento espetacular: o indivíduo passou de um estatuto passivo, puramente receptivo, para atividades minúsculas ditadas por imperativos mercantis [...]. Somos convidados a ser figurantes do espetáculo”. 49 ROCA, José. “La ruina; la utopía”. In: Carlos Garaicoa. La ruina; la utopía, op. cit., pp. 15-16. “Garaicoa traça uma cartografia motivada pelo desejo e colocada na terra pela constatação. Os mapas de sonhos, que surgem da imaginação; os mapas do desejo de alguém obrigado a ‘nunca estar ausente’, e os mapas físicos – que Garaicoa chama de mapas do encontro – conformados por paralelos formais entre as arquiteturas de Havana e de Nova York, assim como por objetos encontrados ou comprados em mercados populares, colocados em relação com estas imagens: objetos resgatados do espaço real para situá-los no espaço do discurso”. 50 KLEE, Paul. Sobre a arte moderna. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001, p. 62. “As proporções no campo linear podem estar relacionadas, por exemplo, a ângulos: movimentos muito angulados de ziguezague, em contraposição a um curso linear horizontal, suscitam ressonâncias expressivas igualmente contrapostas”.

witnessed police repressions, that is, he could testify to the imposition of severe policies, strictly “austericidal” and, of course, is contemporary with the collapse of “turbo-capitalist” democracies.46 What Garaicoa wants is to “make an art that resists being activistic”47 in troubled times when we are all invited to be extras in the show.48 In Garaicoa’s cartography of desire,49 Score has a singular presence, as if it had invited us to create a different map of the cities in which we live. The traits of the song, which evokes Bruce Chatwin, are hyper-fragmented here and subsequently re-composed in music we can see and hear either on the music stands or on the conductor’s platform or in a position that encompasses the ensemble as a hybrid community. The zigzag movements of the screen designed by Garaicoa can be linked to Paul Klee’s meditations on the line50, but, above all, they introduce a dimension that is at the same time abstract and deeply empathetic.51 Score is a true fiesta, a system of

46 SÁNCHEZ, Suset. “Carlos Garaicoa: anotaciones inconclusas sobre una práctica artística [Carlos Garaicoa entrevistado por Suset Sánchez]”. In: Carlos Garaicoa. Orden inconcluso, op. cit., p. 195. “We were witnesses to the fact that the model of democratic societies, as we have known them up to now, has collapsed, or at least its image has been seriously damaged.” 47 Ibid., p. 199. 48 BOURRIAUD, Nicolas. Estética relacional. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 54. “We are at a later stage of this spectacular development: the individual has gone from a passive, purely receptive status to miniscule activities dictated by market imperatives. We are invited to be extras in the show.” 49 ROCA, José. “La ruina; la utopía”. In: Carlos Garaicoa. La ruina; la utopía, op. cit., pp. 15-16. “Garaicoa traces a cartography motivated by desire and placed on earth by this realization. Dream maps, which arise from the imagination; the maps of someone’s desire to ‘never be absent’, and the physical maps—which Garaicoa calls maps of the encounter—shaped by formal parallels between the architectures of Havana and New York, as well as objects found or bought in popular markets, placed in relation to these images: objects salvaged from real space to place them in the space of discourse.” 50 KLEE, Paul. Sobre a arte moderna. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001, p. 62. “The linear proportions may involve angles: for instance, angular zigzag movements, in contrast to a smooth horizontal line, strike resonances that contrast correspondingly.” 51 BREDEKAMP, Horst. Teoría del acto icónico. Madrid: Ed. Akal, 2017, p. 91. “Worringer does not see in empathy, for example, respect and acceptance of what is in front of him, but a substitution for the self that develops sentimentally in an imperious manner. Empathy would have shifted the focus from the observation of the form of the work to the ‘behavior of the subject contemplating it’, which would be expressed as ‘objectified self-enjoyment’

105


abstrata e de profunda empatia.51 A Partitura é uma verdadeira festa, um sistema de ordenamento do mundo a partir da desordem,52 como quando Kulbin defendia, em Der Blaue Reiter, uma “música livre” fundida com o movimento da nova pintura, plasmada em uma escrita que poderia ser um “desenho de linhas ascendentes e descendentes”53 dos rumores que estão nas margens da história, ou melhor, daquilo que mal se pronuncia quando tudo se desmantela.54 A Partitura conecta cidades (quer seja Madrid e Bilbao) e é um sedimento da flânerie.55 A composição dessa obra é, metaforicamente, freak, um divertimento carnavalizante ou, como indiquei, neobarroco que busca produzir algo diferente,56 convi51 BREDEKAMP, Horst. Teoría del acto icónico. Madrid: Ed. Akal, 2017, p. 91. “Worringer não vê na empatia, por exemplo, respeito e aceitação do que está à sua frente, mas sua substituição pelo eu que se desenvolve sentimentalmente de maneira imperiosa. A empatia teria deslocado o foco da observação da forma da obra para o ‘comportamento do sujeito que a contempla’, que se expressaria como ‘autogozo objetivado’ da percepção estética: ‘Gozar esteticamente é gozar a mim mesmo em um objeto sensível diferente de mim mesmo, projetar-me para ele”. 52 ANTELO, Raúl. “Apostilla antropofágica”. In: MÉTRAUX, Alfred de. Antropofagia y cultura. Buenos Aires: Ed. El Cuenco de Plata, 2011, pp. 74-75. “Talvez seja por isso que Roger Caillois dizia que ‘a festa se apresenta como uma atualização dos primeiros tempos do Universo, do Urzeit, da era original eminentemente criadora que viu se fixar em sua forma tradicional e definitiva todas as coisas, todos os seres, todas as instituições’, ou seja, que a festa restabelece uma situação bipolar em que a ordem nasce da desordem, o sentido do disparate e em que caos e cosmos ainda são contíguos”. 53 KULBIN, Nikolay. “La música libre”. In: El Jinete Azul (Der Blauer Reiter). Barcelona: Ed. Paidós, 1989, p. 130. 54 VALDÉS FIGUEROA, Eugenio: “El espejo del deseo. Algunas consideraciones sobre la obra de Carlos Garaicoa” In: Carlos Garaicoa. La ruina; la utopía, op. cit., p. 18. “Durante os últimos anos, Carlos Garaicoa parece ter estado desenvolvendo uma tese fundamental: que a realidade mede sua idade no lapso em que transcorre sua inevitável queda; e enquanto esse evento acontece, a realidade vai deixando trajetórias, nas quais a obra pode ser introduzida, justaposta ou mesmo camuflada, adotando a aparência de um rumor”. 55 Seán Kissane cita a teoria benjaminiana do “flâneur” para se aproximar da obra Proyecto para mirar al cielo y tratar de verlo azul y transparente (1994-1997), de Garaicoa. Cf. KISSANE, Seán. “Radix Malorum”. In: Carlos Garaicoa. Overlapping. Dublin: Irish Museum of Modern Art/Ed. Charta, 2010, p. 10. O mesmo Garaicoa enfatiza que o espectador, em sua mostra [referindo-se à exposição que fez no Centro de Arte Dos de Mayo] é um flâneur, “ao insistir na noção do passeio citadino” (“Carlos Garaicoa: anotaciones inconclusas sobre una práctica artística [Carlos Garaicoa entrevistado por Suset Sánchez]”. In: Carlos Garaicoa. Orden inconcluso, op. cit., p. 189). 56 ATTALI, Jacques. Ruidos. Ensayo sobre la economía política de la música, op. cit., p. 210-211. “Produzir na composição é, em primeiro lugar, desfrutar da produção de diferenças. Esse conceito novo é claramente pressentido pelos músicos. Assim, improvisar, diz-se na terminologia do jazz,

106

ordering the world starting with disorder,52 as when Kulbin defended, in Der Blaue Reiter, a “free music” fused with the new painting movement, embodied in a writing that could be a “drawing with lines ascending and descending”53 from the murmurings on the margins of history, or better, from what can barely be pronounced when everything breaks apart.54 Score connects cities (whether Madrid and Bilbao) and is a sediment of flânerie.55 The composition of this work is, metaphorically, freak, carnivalizing fun or, as I indicated, the neo-baroque that seeks to produce something different,56 inviting

of aesthetic perception: To ‘enjoy aesthetically’ is to enjoy myself in a sensitive object different from myself, to project myself on it.” 52 ANTELO, Raúl. “Apostilla antropofágica”. In: MÉTRAUX, Alfred de. Antropofagia y cultura. Buenos Aires: Ed. El Cuenco de Plata, 2011, pp. 74-75. “Perhaps this is why Roger Caillois said that ‘the fiesta presents itself as an updating of the earliest times of the Universe, of the Urzeit, of the original eminently creative era, which saw all things, all beings, all institutions’, fixed in their traditional and definitive form, that is, that the festivity reestablishes a bipolar situation in which order arises from disorder, the sense of the absurdity in which chaos and cosmos are still contiguous.” 53 KULBIN, Nikolay. “La música libre”. In: El Jinete Azul (Der Blauer Reiter). Barcelona: Ed. Paidós, 1989, p. 130. 54 VALDÉS FIGUEROA, Eugenio: “El espejo del deseo. Algunas consideraciones sobre la obra de Carlos Garaicoa” In: Carlos Garaicoa. La ruina; la utopía, op. cit., p. 18. “During the last few years, Carlos Garaicoa seems to have been developing a fundamental thesis: that reality measures its age by the lapse of time before its inevitable fall; as this event takes place, reality is leaving behind trajectories, in which the work can be introduced, juxtaposed or even camouflaged, adopting the appearance of a murmuring.” 55 Seán Kissane cites Benjamin’s theory of the “flâneur” to approach Garaicoa’s work Proyecto para mirar al cielo y tartar de verlo azul y transparente [Project to look at the sky and attempt to see it blue and transparent] (1994-1997). Cf. KISSANE, Seán. “Radix Malorum”. In: Carlos Garaicoa. Overlapping. Dublin: Irish Museum of Modern Art/Ed. Charta, 2010, p. 10. The same Garaicoa emphasizes that the spectator, in his exhibition [referring to his exhibition at the Centro de Arte Dos de Mayo] is a flâneur, “by insisting on the notion of the urban stroll” (“Carlos Garaicoa: anotaciones inconclusas sobre una práctica artística [Carlos Garaicoa entrevistado por Suset Sánchez]”. In: Carlos Garaicoa. Orden inconcluso, op. cit., p. 189). 56 ATTALI, Jacques. Ruidos. Ensayo sobre la economía política de la música, op. cit., p. 210-211. “To produce in a composition is, first of all, to delight in the production of differences. This new concept is clearly anticipated by musicians. Thus, to improvise is, in the terminology of jazz, ‘to freak (to deviate) freely’. Freak is also the monster, the marginal. To improvise, to compose, refers, therefore, to the idea of assuming differences, of rediscovering and expanding the body. ‘Something that allows me to find myself among the measures of my own rhythm’ (Stockhausen). It links the music with the gesture, of which it is the natural support; it connects the music with the noises of life and of the body to which it gives energy for its movement. The improvisation, then, is risky, restless, unstably rethought, a festivity that is


dando-nos a escutar o inaudito dentro do convencional. Partitura é uma “leitura-deambulatória”, no sentido de Michel de Certeau, da cidade.57 É manifesto que Garaicoa não é um “documentalista” daquilo que acontece (conosco), pelo contrário, em sua obra ele tenta mostrar o triunfo do imaginado versus o real”.58 “A história de um lugar”, diz Garaicoa, “isto é, a nossa história, a de todos e de cada um de nós, não está escrita; mas a história está inscrita, está desenhada nas ruas – ela é como um recipiente inesgotável”.59 Uma certa ironia aparece com frequência em sua estética, como na série das Frases [Frases] (2010), que questiona as imposições históricas em um presente inequivocamente convulsivo.60 “A obra de Garaicoa”, ‘to freak (desviar-se) freely’. Freak é também o monstro, o marginal. Improvisar, compor, remete, pois, à ideia de diferenças assumidas, de corpo reencontrado e expandido. ‘Algo que permite que eu me encontre entre as medidas de meu próprio ritmo’ (Stockhausen). Vincula a música com o gesto, do qual ela é o suporte natural; conecta a música com os ruídos da vida e do corpo ao qual dá energia para seu movimento. A improvisação é, então, arriscada, inquieta, repensada instavelmente, festa anárquica e ameaçadora, como um Carnaval cujo fim seria incerto”. 57 Adriano Pedrosa citava precisamente um fragmento de Michel de Certeau no breve texto que escreveu sobre a cidade no catálogo de Carlos Garaicoa no MOCA: “Ler é peregrinar por um sistema imposto (...). [O leitor] inventa nos textos outra coisa que não aquilo que era a ‘intenção’ deles. Destaca-os de sua origem (perdida ou acessória). Combina os seus fragmentos e cria algo não sabido no espaço organizado por sua capacidade de permitir uma pluralidade indefinida de significações”. In: DE CERTAU, Michel. A invenção do cotidiano, op. cit., pp. 264-265 (citado em PEDROSA, Adriano. “El texto y la ciudad. (Fragmentos de ciudad)”. In: Carlos Garaicoa. Capablanca’s real passion, op. cit., p. 160). 58 Os edifícios e projetos de Garaicoa “pretendem demonstrar o triunfo do imaginado versus o real”. Nesse sentido, tento provar como a História, com o livre arbítrio de certas políticas, pode ser superada ou simplesmente colocada em evidência diante do gesto livre e anárquico da linguagem artística” (Carlos Garaicoa: Statement para Documenta 11). 59 FUSCO, Coco. “Cuando el deseo se parece a nada [Carlos Garaicoa entrevistado por Coco Fusco]”. In: Carlos Garaicoa. La ruina; la utopía, op. cit., p. 88. 60 HERNÁNDEZ CHONG CUY, Sofía. “Proyectista-farsante”. In: Carlos Garaicoa. Overlapping, op. cit., p. 14. “Disparar memórias, completar imagens e imaginar escalas são aspectos essenciais do trabalho de Garaicoa. Estas são também algumas das proezas que a obra oferece ao público. Sua combinação de imagem e texto, ready-mades com formas esculpidas, figuração e poesia, assim como história e ficção, definem, juntos, um mundo onde o passado pode ser mudado, e, futuros, projetados se imaginários sociais forem criados” [Triggering memories, completing images and imagining scales are essential aspects of Garaicoa´s work. These are also some of the undertakings the work offers its public. His combination of imagen and text, assisted ready-mades with sculpted forms, figuration and poetry, as well as history and fiction, together pin down a world where the past can be changed and futures projected if social imaginaries are created].

us to listen to the unheard-of within the conventional. Score, in the sense of Michel de Certeau, is a “deambulatory reading” of the city.57 It is clear that Garaicoa is not a “documentalist” of what happens (with us), on the contrary, in his work he tries to show the triumph of the imagined versus the real.”58 “The history of a place,” says Garaicoa, “that is, our history, that of each and every one of us, is not written; but this history is inscribed, it’s drawn on the streets—it’s like an inexhaustible vessel.”59 A certain irony often appears in his aesthetics, as in the series of Frases (Phrases) (2010), which questions historical impositions in an unequivocally convulsive present.60 “Garaicoa’s work,” José Roca points out, “is situated at the imprecise point where the tension between opposites manifests itself—presence and absence, utopia and ruin, project and vestige—, never a reliable document, never a precise formulation; an interstitial space in which reality is suddenly taken by a critical eye projected upon it.”61 Homi K. Bhaba observed that the performative intro-

anarchic and threatening, like a Carnival with an uncertain end.” 57 It is precisely a fragment of Michel de Certeau that Adriano Pedrosa quoted in the brief text he wrote about the city in the catalog for the Carlos Garaicoa exhibition at MOCA: “To read is to make a pilgrimage through an imposed system (...). [The reader] invents in the texts something other than what was their ‘intention’. He detaches them from their origin (lost or secondary). He combines their fragments and creates something unknown in the space organized by their ability to allow an indefinite plurality of meanings.” In: DE CERTAU, Michel. A invenção do cotidiano, op. cit., pp. 264-265 (cited in PEDROSA, Adriano. “El texto y la ciudad. (Fragmentos de ciudad)”. In: Carlos Garaicoa. Capablanca’s real passion, op. cit., p. 160). 58 In: DE CERTAU, Michel. A invenção do cotidiano, op. cit., pp. 264-265 (cited in PEDROSA, Adriano. “El texto y la ciudad. (Fragmentos de ciudad)”. In: Carlos Garaicoa. Capablanca’s real passion, op. cit., p. 160). 59 FUSCO, Coco. “Cuando el deseo se parece a nada [Carlos Garaicoa entrevistado por Coco Fusco]”. In: Carlos Garaicoa. La ruina; la utopía, op. cit., p. 88. 60 HERNÁNDEZ CHONG CUY, Sofía. “Proyectista-farsante”. In: Carlos Garaicoa. Overlapping, op. cit., p. 14. Triggering memories, completing images and imagining scales are essential aspects of Garaicoa´s work. These are also some of the undertakings the work offers its public. His combination of image and text, ready-mades with sculpted forms, figuration and poetry, as well as history and fiction, together define a world where the past can be changed and futures projected if social imaginaries are created. 61 ROCA, José. “Arquitectura como proyección del desejo”. In: Carlos Garaicoa. Orden aparente, op. cit., p. 32.

107


aponta José Roca, “se situa no ponto impreciso em que a tensão entre opostos se manifesta – presença e ausência, utopia e ruína, projeto e vestígio –, nunca documento fiável, nunca formulação precisa; um espaço intersticial em que a realidade é tomada repentinamente por um olhar crítico projetado sobre ela”.61 Homi K. Bhaba observou que o performativo introduz uma temporalidade do “inter-médio” (in-between),62 e é justamente nesse interstício que intervém Garaicoa em Partitura: entre o músico urbano e a composição barroca, entre a posição do espectador metropolitano e as opções para o visitante da exposição, entre as partes e o todo, desenhando entre duas telas que nos oferecem temas performativos reapropriados. Para além do horror vacui,63 Garaicoa cria uma imagem abstrata no “entre-dois” da projeção. Se os tapetes de Fin de silencio [Fim de silêncio] (2010) “revelam”, perdoem o trocadilho, o velamento do discurso utópico,64 a videoinstalação musical torna presente a polifonia cotidiana, quando não cede ao desejo de se submeter aos ditames do Grande Outro.65 Em certo sentido, Partitura é uma situação construída, na qual o “momento de vida66” é composto, mas 61 ROCA, José. “Arquitectura como proyección del desejo”. In: Carlos Garaicoa. Orden aparente, op. cit., p. 32. 62 BHABHA, Homi K. O local da cultura, op. cit., p. 301. 63 LEZAMA LIMA, José. “Confluencias”. In: La dignidad de la poesía. Barcelona: Ed. Versal, 1989, p. 289. “A imagem é o incessante complementar dos entrevistos e o entreouvidos, o temível entredeux pascaliano só pode ser preenchido com a imagem. O horror vacui é o medo de ficar sem imagens, nas épocas em que predominava a finitude combinatória e pessimista dos corpúsculos sobre a ruptura espiraloide do demiurgo”. 64 DE LA NUEZ, Iván. “Tapices bajo la playa”. In: Carlos Garaicoa. Fin de silencio, op. cit., p. 14. “Em Fin de silencio, Carlos Garaicoa inverte o sentido dessa frase [‘Sob os paralelepípedos, há a praia’] e da utopia que a anima. Os tapetes e mensagens que compõem este projeto – hieróglifos populares que hoje são lidos como parábolas quase místicas; feitiços antes inócuos, agora ameaçadores – haviam permanecido escondidos sob a areia uniforme (ideológica ou turística, ideológica e turística) que se costuma projetar como o presente da experiência cubana”. 65 Lacan argumenta que é mais ético para o sujeito agir de acordo com o desejo (inconsciente) do que modificar seu próprio comportamento aos olhos do Grande Outro (sociedade, família, lei, normas). Cf. LACAN, Jacques (1959-1960). O seminário, livro 7: A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008. 66 A Internacional Situacionista definiu a questão da situação construída como “um momento de vida, concreta e deliberadamente construído pela

108

duces a temporality of the “in-between,”62 and it is precisely in this interstice that Garaicoa intervenes in Score: between the urban musician and the baroque composition, between the position of the metropolitan spectator and the exhibition visitor’s options, between the parts and the whole, drawing between two screens that offer us reappropriated performative themes. Beyond the horror vacui,63 Garaicoa creates an abstract image in the “between-two” of the projection. If the rugs of Fin de silencio [End of Silence] (2010) “reveal,” forgive the pun, the veiling of utopian discourse,64 the musical video installation makes the everyday polyphony present, when it does not yield to the desire to submit to the dictates of the Great Other.65 In a sense, Score is a constructed situation, in which the “moment of life”66 is composed, but

62 BHABHA, Homi K. O local da cultura, op. cit., p. 301. 63 LEZAMA LIMA, José. “Confluencias”. In: La dignidad de la poesía. Barcelona: Ed. Versal, 1989, p. 289. “The image is the ceaseless complement of the glimpsed and the overheard, the fearful entredeux Paschalian can only be filled with the image. Horror vacui is the fear of being left without images, in eras when the combinatorial and pessimistic finitude of the corpuscles predominated over the spiraloid rupture of the demiurge.” 64 DE LA NUEZ, Iván. “Tapices bajo la playa”. In: Carlos Garaicoa. Fin de silencio, op. cit., p. 14. “In Fin de silencio [End of Silence], Carlos Garaicoa inverts the meaning of this expression—‘Under the paving stones, the beach’—and the utopia that gives it life. The tapestries and messages that make up this project—popular hieroglyphics that today are read as quasi-mystical parables; previously innocuous, now threatening, charms—had remained hidden under the uniform sand (ideological or touristic, ideological and touristic) that is usually projected as the present of the Cuban experience.” 65 Lacan argues that it is more ethical for the subject to act in accord with (unconscious) desire than to modify his own behavior in the eyes of the Great Other (society, family, law, norms). Cf. LACAN, Jacques (1959-1960). O seminário, livro 7: A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008. 66 The Situationist International defined the question of the constructed situation as “a moment of life, concretely and deliberately constructed by the collective organization of a unitary ambience and the free play of events” (“Definições”. In: Internacional Situacionista, Nº. 1, 1958, p. 13). “Collectively realized ‘constructed situations’ were figured as oppositional to capitalism in their sublation of individual authorship, but primarily in their refusal of bureaucracy and consumerism through the free activity of the game. The notion of constructed situations was indebted to the writings of Henri Lefebvre, specifically his ‘theory of moments’: perishable instants that intensify ‘the vital productivity of everydayness, its capacity for communication, for information, and also and above all for pleasure in natural and social life’” (Claire Bishop: Artificial Hells: Participatory Art and the Politics of Spectatorship, op. cit., p. 86).


também continua afirmando (nas imagens dos atris) os desejos singularizados. Temos que levar em conta que a relacionalidade é uma condição da arte cubana, pelo menos desde os anos 1980,67 e que em toda a sua trajetória Garaicoa não deixou de se preocupar com a articulação do comunitário. Partitura é um trabalho no qual o relacional é tão manifesto quanto a condição claramente “pós-produtiva”.68 Trata-se de um trabalho sofisticado que edita a performatividade dos músicos na rua, sem cair na retórica da performance “delegada”.69 O suplemento performativo70 é, neste caso, tanto o organização coletiva de um ambiente unitário e de um jogo de eventos” (“Definições”. In: Internacional Situacionista, Nº. 1, 1958, p. 13). “As” situações construídas”, realizadas de forma coletiva, eram consideradas como sendo opostas ao capitalismo, por sua superação da autoria individual, mas principalmente por causa de sua rejeição da burocracia e do consumismo por meio da atividade livre do jogo. A noção de situações construídas estava em dívida com os escritos de Henri Lefebvre, especificamente sua “teoria dos momentos”: instantes perecíveis que intensificar “a produtividade vital da capacidade diária, sua capacidade para a comunicação, a informação, e também, e sobretudo, para o prazer na vida natural e social” (Claire Bishop: Infiernos artificiales. Arte participativo y políticas de la espectaduría, op. cit., p. 140). 67 Cf. “Carlos Garaicoa: anotaciones inconclusas sobre una práctica artística [Carlos Garaicoa entrevistado por Suset Sánchez]”. In: Carlos Garaicoa. Orden inconcluso, op. cit., p. 200. “Esse público extra-artístico, que se tentou descobrir e construir desde os anos 1980 em Cuba, dá origem à raiz relacional de grande parte da arte que se produziu nessa geração, apontando para algo que Nicolas Bourriaud começava a teorizar como estética relacional nos anos 1990, mas que era discutido e pesquisado antes disso em Cuba, com uma nova vanguarda que praticou o happening e a performance dentro de uma sociedade comunista, tentando criar uma rede de relações com o espectador como sujeito ativo nos processos artísticos”. 68 BOURRIAUD, Nicolas. Pós-produção. Como a arte reprograma o mundo contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2009, pp. 7-8. “Desde o começo dos anos 1990, uma quantidade cada vez maior de artistas vem interpretando, reproduzindo, reexpondo ou utilizando produtos culturais disponíveis ou obras realizadas por terceiros. Essa arte da pós-produção corresponde tanto a uma multiplicação da oferta cultural quanto – de forma mais indireta – à anexação ao mundo da arte de formas até então ignoradas ou desprezadas. Pode-se dizer que esses artistas que inserem seu trabalho no dos outros contribuem para abolir a distinção tradicional entre produção e consumo, criação e cópia, ready-made e obra original”. 69 BISHOP, Claire. Infiernos artificiales. Arte participativo y políticas de la espectaduría, op. cit., p. 363. “A arte da performance contemporânea não necessariamente privilegia o momento vivo ou o próprio corpo do artista, mas, ao contrário, se relaciona com estratégias de mediação múltiplas que incluem a delegação e a repetição; ao mesmo tempo, ela continua interessada no caráter imediato por meio da apresentação de performers autênticos e não profissionais, os quais representam grupos sociais específicos”. 70 O double entendre do suplemento sugere que ele intervém ou se insinua em-lugar-de: “Se ele representa”, – aponta Derrida na Gramatologia (São Paulo: Perspectiva, 2006, p. 178), “e faz imagem, é pela falta anterior de uma presença [...] o suplemento é um adjunto, uma instância subalterna

it also continues to affirm (in the images on the music stands) the individualized desires. We must take into account that relationality is a condition of Cuban art, at least since the 1980s,67 and that throughout his trajectory Garaicoa has not ceased to be concerned about community articulation. Score is a work in which the relational is as manifest as its clearly “post-productive” condition.68 It is a sophisticated work that edits the performativity of the street musicians, without falling into the rhetoric of the “delegated” performance.69 The performative supplement70 is, in this case, both the “many as one” and also the testimony that the composition does not exist without the ephemeral and precarious sound recorded in the city. The border or parergon of this piece is in movement, like the drawing on the central screen, in a claim to dif-

67 Cf. “Carlos Garaicoa: anotaciones inconclusas sobre una práctica artística [Carlos Garaicoa entrevistado por Suset Sánchez]”. In: Carlos Garaicoa. Orden inconcluso, op. cit., p. 200. “This extra-artistic audience—there had been attempts to discover and build such an audience in Cuba since the 1980s—gives rise to the relational roots of much of the art produced in this generation, pointing to something that Nicolas Bourriaud began to theorize as a relational aesthetic in the 1990s, but was discussed and investigated before that in Cuba, with a new avant-garde that practiced the happening and the performance within a communist society, attempting to create a network of relations with the spectator as an active subject in the artistic processes.” 68 BOURRIAUD, Nicolas. Pós-produção. Como a arte reprograma o mundo contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2009, pp. 7-8. “Since the early 1990s, more and more artists have been interpreting, reproducing, re-exposing or using available cultural products or works by others. This post-production art corresponds both to a multiplication of cultural offerings and, more indirectly, to the annexation of previously ignored or neglected forms by the art world. It can be said that these artists who insert their work in the work of others contribute to the abolition of the traditional distinction between production and consumption, creation and copy, ready-made and original work.” 69 BISHOP, Claire. Artificial Hells: Participatory Art and the Politics of Spectatorship, op. cit., p. 229. “Contemporary performance art does not necessarily privilege the live moment or the artist’s own body, but instead engages in numerous strategies of mediation that include delegation and repetition; at the same time, it continues to have an investment in immediacy via the presentation of authentic non-professional performers who represent specific social groups.” 70 The double meaning of the supplement suggests that it intervenes or insinuates itself in-the-place-of: “If it represents”,— Derrida points out in Of Gramatology (Baltimore: Johns Hopkins, 2016, 157)—“and makes an image, it is due to anterior default of a presence [...] the supplement is an adjunct, a subaltern instance [...]. As substitute, it does not simply add itself to the positivity of a presence, it produces no relief [...]. Somewhere, something cannot fill itself up by itself [...] if not by allowing itself to be filled through sign and proxy.”

109


“muitos como um” quanto o testemunho de que a composição não existe sem o som efêmero e precário gravado na cidade. A borda ou parergon dessa peça está em movimento, como o desenho da tela central, em uma reivindicação da diferância (a diferença iterativa, processual, in fieri), que não é uma essência, como, na verdade, nada é, tampouco o é a vida, se o ser se determina como presença, essência/existência, substância ou sujeito. Trata-se de pensar a vida como traço, compreendendo que a não origem é o que irrompe ou emerge.71 Garaicoa é um artista especialista em processos de “transculturação”, entregue à flânerie na cidade canibal72 e talvez quando se apropria das “performances” dos músicos urbanos está, por baixo dos temas que eles interpretam, escutando uma frase inquietante: “Lá vem a nossa comida pulando”.73 O olhar trans-documental de Carlos Garaicoa oferece, desde os anos 1990, uma fascinante topografia do pre-

[...] Enquanto substituto, não se acrescenta simplesmente à positividade de uma presença, não produz um relevo [...] Em alguma parte, alguma coisa não pode se preencher de si mesma [...] apenas permitindo ser preenchido com o signo e o substituto performativo”. 71 DERRIDA, J. “Freud e a cena da escritura”. In: A escritura e a diferença. São Paulo, SP: Perspectiva, 2005, pp. 179-226. 72 DE LA NUEZ, Iván. “Una ciudad que se piensa a sí misma”. In: Carlos Garaicoa. Orden inconcluso, op. cit., p. 35. “Há algo de cidade canibal nesta cidade pensante [de Garaicoa]. Algo relativamente normal para um artista cubano, latino-americano, ocidental, trabalhando nas metáforas colocadas em voga na primeira metade do século XX pela antropofagia cultural brasileira, as ideias de Lévi-Strauss sobre a incidência da preparação da comida na cultura, o uso do termo “transculturação” de Fernando Ortiz no Caribe e sua famosa teoria do ajiaco (guisado ou olla podrida crioula), que Malinowski assumiu como uma boa teoria para abrigar a identidade cultural. Nesta linha tênue, esta cidade não estabelece a priori uma divisão entre ‘estrangeiros’ e ‘autóctones’, mas dá um passo além”. Sobre o conceito de “transculturação”, conferir o texto capital de Fernando Ortiz, Contrapunteo cubano del tabaco y el azúcar (Madrid: Ed. Cátedra, 2002, pp. 254-260). 73 Alfred de Métraux descreve os Tupinambá entrando na aldeia com um escravo: “Se, ao se aproximarem da aldeia, a tropa encontrasse mulheres, elas obrigavam o prisioneiro a gritar com elas: ‘Eu, sua comida, estou chegando’” (DE MÉTRAUX, Alfred. Antropofagia y cultura, op. cit., p. 8). A prática antropofágica estava, de alguma forma, ligada à profecia sobre a sobrevivência da comunidade. “[Em 1928] os vanguardistas de São Pablo, liderados por Oswald de Andrade que, sob o lema antropofágico, lançam uma entrevista e um manifesto em que se lê o lema ‘Lá vem a nossa comida pulando’, lá vem nossa força viva e ativa” (ANTELO, Raúl. “Apostila Antropogáfica”. In: DE MÉTRAUX, Alfred. Antropofagia y cultura, op. cit., pp. 70-71).

110

ferance [différance] (the iterative, procedural, in fieri difference), which is not an essence, as, in fact, nothing is, neither is it life, if being is determined as presence, essence/existence, substance or subject. It is about thinking life as a trace or sketch, understanding that non-origin is what erupts or emerges.71 Garaicoa is an artist specialist in processes of “transculturation,” given to flânerie in the cannibal city72 and perhaps when he appropriates the performances of the urban musicians he is, underneath the themes they interpret, listening to a disturbing phrase: “Here comes our food jumping about.”73 Since the 1990s, Carlos Garaicoa’s trans-documentary way of seeing has provided a fascinating topography of the precarious74 (understanding that this is evident as much in the photographs of buildings in ruins as in the presence of the musicians who are outdoors seeking a living) which transforms the architectural ruin (trying to escape from exoticism and cliché) in a metaphor of con-

71 DERRIDA, J. “Freud e a cena da escritura”. In: A escritura e a diferença. São Paulo, SP: Perspectiva, 2005, pp. 179-226. 72 DE LA NUEZ, Iván. “Una ciudad que se piensa a sí misma”. In: Carlos Garaicoa. Orden inconcluso, op. cit., p. 35. “There is something of a cannibal city in this thinking city [of Garaicoa]. Something relatively normal for a Cuban, Latin American, and Western artist, working with the metaphors that came into vogue in the first half of the 20th century by way of Brazilian cultural anthropophagy, Lévi-Strauss’s ideas on the incidence of food preparation in culture, the use of Fernando Ortiz’ term ‘transculturation’ in the Caribbean and his famous theory of the ajiaco (stew or Creole olla podrida), which Malinowski assumed as a good theory for accommodating cultural identity. Along this tenuous line, this city does not establish a priori a division between ‘foreign’ and ‘autochthonous,’ but goes a step further.” On the concept of “transculturation,” see the main text in Fernando Ortiz, Contrapunteo cubano del tabaco y el azúcar (Madrid: Ed. Cátedra, 2002, pp. 254-260). 73 Alfred de Métraux describes the Tupinambá entering the village with a slave: “If, on approaching the village, the troop encountered women, they forced the prisoner to shout with them: ‘I, your food, am coming” (DE MÉTRAUX, Alfred. Antropofogia y cultura, op cit, p. 8). Anthropophagic practice was somehow tied to the prophecy of community survival. “[In 1928] the avant-gardists of São Paulo, led by Oswald de Andrade who, under the anthropophagic motto, launch an interview and a manifesto in which one reads the motto ‘Here comes our food jumping about, here comes our living and active strength” (ANTELO, Raúl. “Apostila Antropogáfica”. In: DE MÉTRAUX, Alfred. Antropofagia y cultura, op. cit., pp. 70-71). 74 Cf. Carlos Garaicoa. La fotografía como intervención, op. cit., p. 41. “The city lifts itself up in fragile materials, a topography of the precarious, the last attempt to be reborn from the ashes.”


cário74 (entendendo que isso é evidente tanto nas fotografias dos edifícios em ruínas quanto na presença dos músicos que estão ao ar livre procurando ganhar a vida) que transforma a ruína arquitetônica (tentando escapar do exotismo e do clichê) em uma metáfora da sociedade contemporânea.75 “Assim como a política se apaga no par do consenso e da justiça infinita, eles tendem a ser redistribuídos entre uma visão da arte que consagra o serviço do laço social e outra que consagra o testemunho interminável da catástrofe”.76 Garaicoa não incide nem no assistencial, nem na inércia niilista, sem tampouco cair no caráter pitoresco ou no olhar compassivo; à maneira smithsoniana, que reconheceu a dívida contraída com os detritos beckettianos, este criador cubano sabe que não fazemos nada além de construir as ruínas do futuro.77 Em sua memória visual deixou uma profunda impressão tanto a experiência do colapso dos edifícios quanto os imponentes sistemas de escoramento. A tarefa do artista não é tanto a do atlante quanto a de Hermes, em vez de se entregar à grandiloquência ou ao decadentismo, ele deveria colocar em ação a desconstrução para compor as diferenças. Para além da Gesamtkunstwerke wagneriana ou dos rumori futuristas,78 Ga-

74 Cf. Carlos Garaicoa. La fotografía como intervención, op. cit., p. 41. “A cidade se ergue em materiais frágeis, uma topografia do precário, a última tentativa de renascer das cinzas”. 75 Ibid., p. 103. “Não é um olhar exclusivamente nostálgico, como seria muito fácil pretender, não é o exotismo e o clichê do velho carro americano, nem o trio de velhos idosos tocando música tradicional, não é a Havana do passado lutando para continuar ali, Deus e peças de reposição... É um olhar crítico, que condena cada ausência, um olho ferido por trás da câmera, um olho que busca se curar a partir do exorcismo”. 76 RANCIÈRE, Jacques. “La política de la estética”. In: Otra parte, nº 9. Primavera Buenos Aires, 2006.

temporary society.75 “Just as politics fades in the pair consensus and infinite justice, these tend to be redistributed between a vision of art that enshrines the service of the social bond and another that consecrates the interminable testimony of catastrophe.”76 Garaicoa focuses neither on the issue of assistance nor on nihilistic inertia, nor does he stumble into picturesque character or the compassionate gaze; in the manner of Smithson, who acknowledged the debt contracted with the Beckettian debris, this Cuban creator knows that we do nothing apart from building the ruins of the future.77 In his visual memory he left a deep impression both of the experience of the collapse of the buildings and the imposing systems for shoring them up. The task of the artist is not so much that of the Atlante as that of Hermes; instead of indulging in grandiloquence or decadentism, he should put deconstruction into action in order to compose the differences. Going beyond the Wagnerian Gesamtkunstwerke or the futuristic rumori,78 in Score Garaicoa indicates a kind of parody of the “Babelic”.79 The animated drawings enchant

75 Ibid., p. 103. “It is not an exclusively nostalgic look, as would be very easy to propose, it is not the exoticism and cliché of the old American car, nor the trio of old people playing traditional music, it is not the Havana of the past struggling to remain there, God and replacement parts... It is a critical eye, which condemns every absence, an injured eye behind the camera, an eye that seeks to heal itself starting with exorcism.” 76 RANCIÈRE, Jacques. “La política de la estética”. In: Otra parte, nº 9. Primavera Buenos Aires, 2006. 77 In speaking of the project Continuidad de una arquitectura ajena [Continuity of Somebody’s Architecture] (2002), a survey of the situation of buildings that were in a complete state of ruin in Havana, Garaicoa indicates that “the encounter with these places evokes a rare sensation: they are not the ruins of a luminous past, but a present of incapacity. We see ourselves before an architecture that was never finished, poor in its incompleteness, proclaimed ‘Ruins’ before its existence. It is the true image of ruin by abandonment. I will call them ruins of the future” (Carlos Garaicoa: Statement for Documenta 11).

77 Ao falar do projeto Continuidad de una arquitectura ajena [Continuidade de uma arquitetura alheia] (2002), um levantamento da situação dos edifícios que se encontravam em completo estado de ruína em Havana, Garaicoa indica que “o encontro com esses lugares evoca uma rara sensação: eles não são as ruínas de uma um passado luminoso, mas um presente de incapacidade. Nós nos vemos diante de uma arquitetura que nunca foi terminada, pobre em sua incompletude, proclamada ‘Ruínas’ antes de sua existência. É a verdadeira imagem da ruína por abandono. Vou chamá-las de ruínas do futuro” (Carlos Garaicoa: Statement para Documenta 11).

78 KANDINSKY, Wassily. “Sobre la composición escénica”. In: El Jinete Azul (Der Blauer Reiter), op. cit., p. 182. “[Wagner’s] main thought was to unite the isolated parts organically and thus create a monumental work. [...] Wagner’s idea took more than half a century to cross the Alps, where it takes the form of an officially expressed law. The ‘manifesto’ of the futuristi says: “Proclaim as an absolute necessity that the musician be the author of the dramatic or tragic poem that he must transform into music [Proclamer comme une nécessité absolue que le musicien soit l’auteur du poème dramatique ou tragique qu’il doit mettre en musique]” (May 1911, Milan).

78 KANDINSKY, Wassily. “Sobre la composición escénica”. In: El Jinete Azul (Der Blauer Reiter), op. cit., p. 182. “O pensamento principal [de Wagner] era

79 ROCA, José. “Arquitectura como proyección del desejo”. In: Carlos Garaicoa. Orden aparente, op. cit., p. 20-22. “The works

111


raicoa mostra em Partitura uma espécie de paródia do “babélico”.79 Os desenhos em movimento nos encantam e, convenientemente, não requerem “tradução”, porque é possível que não sejam nada além de uma manifestação do prazer que o artista sente diante da composição musical. Nos planos vazios da série Blueprints [Plantas] (2012) encontramos uma escrita nas bordas: “Imitemos a realidade, nos confundamos com ela”. Buscamos um lugar entre a ausência e o desejo, quando a partitura da vida não é legível ou funciona, à maneira lacaniana, como um véu que protege o semblante amado. Embora Garaicoa seja um artista interessado em fugir do discurso local para ir ao encontro do “espectador global”,80 ele não renuncia, contudo, às lembranças de Havana, ainda que elas estejam a ponto de serem reduzidas à condição de escombros.81 Em suas obras o vaunir organicamente as partes isoladas e criar, dessa maneira, um trabalho monumental. [...] Esse pensamento de Wagner precisou de mais de meio século para atravessar os Alpes, onde recebe a forma de lei oficialmente expressa. O ‘manifesto’ dos futuristi diz: “Proclamar como uma necessidade absoluta que o músico seja o autor do poema dramático ou trágico que ele deve transformar em música [Proclamer comme une nécessité absolue que le musicien soit l’auteur du poème dramatique ou tragique qu’il doit mettre en musique]” (Maio de 1911, Milão). 79 ROCA, José. “Arquitectura como proyección del desejo”. In: Carlos Garaicoa. Orden aparente, op. cit., p. 20-22. “Dessa época [os anos 1990] são também os trabalhos em torno de paliçadas que foram colocadas pelo governo cubano para impedir o desmoronamento de muitos edifícios de Havana que já ameaçavam ruir. Em vez de reparar e reestruturar os edifícios, a solução transitória foi escorá-los com vigas e colunas de madeira, muitas vezes de tal complexidade, que se tornavam estruturas elaboradas de grande valor expressivo. Garaicoa tirou fotos desses edifícios e, improvisando como um projetista arquitetônico, transformou, em chave irônica, essas sugestivas estruturas em projetos grandiloquentes: atlantes incansáveis sustentando o presente, a verdadeira Torre de Babel etc. A transformação de carência em desejo para dali projetar o futuro reaparece na série que se transformou em uma de suas produções mais características: os desenhos em fios com os quais se projetam edifícios (que presumivelmente dariam uma solução ao conflito presente), e que reformulam a perda como forma arquitetônica, presenças fantasmagóricas de um futuro claramente incerto: precário, elusivo, improvável”. 80 BLOCK, Holly. “Carlos Garaicoa [Garaicoa entrevistado por Holly]”. In: BOMB 82, inverno 2002-2003, p. 29. “Durante mais de cinco anos [dirá Garaicoa em 2002], minha obra se centrou em fenômenos que dizem respeito ao contexto cubano, suas cidades e suas expectativas sociais. Mas, ao mesmo tempo, ela também tenta traçar caminhos mais amplos, para que minhas ideias possam circular e se encontrar com o espectador global. Tenho receito de obras que remetem a problemas locais ou nacionais e que não interessam a ninguém fora dessas áreas”. 81 “Havana, 1992. Quando você é estudante, e atravessa todos os dias a cidade para ir e voltar à universidade, você tem muito tempo para pensar. Tempo

112

us and, conveniently, do not require “translation,” because it is possible that they are nothing more than a manifestation of the artist’s pleasure in the musical composition. In the empty plans of the series Blueprints (2012) we find writing on the edges: “Let us imitate reality, we confound ourselves with it.” We seek a place between absence and desire, when life’s score is not legible or functional, in the Lacanian sense, like a veil that protects the beloved countenance. Although Garaicoa is an artist interested in escaping from local discourse to respond to the “global viewer,”80 he does not, however, renounce the memories of Havana, even though they are about to be reduced to rubble.81 In his works the void82 is important, but the way in which, in

around palisades that were put up by the Cuban government to prevent the collapse of many buildings in Havana that were already threatening to collapse are also from that time [the 1990s]. Instead of repairing and restructuring the buildings, the transitory solution was to shore them up with wooden beams and columns, often with such complexity that they became elaborate structures of great expressive value. Garaicoa took photos of these buildings and, improvising as an architectural designer, ironically transformed these suggestive structures into grandiloquent projects: untiring Atlantes supporting the present, the true Tower of Babel, etc. The transformation of a lack into desire and from there to project the future reappears in the series which has become one of his most characteristic productions: the drawings made with thread with which buildings are designed (which presumably would bring a solution to the present conflict), and that reformulate the loss as an architectural form, ghostly presences of a clearly uncertain future: precarious, elusive, improbable.” 80 BLOCK, Holly. “Carlos Garaicoa [Garaicoa entrevistado por Holly]”. In: BOMB 82, inverno 2002-2003, p. 29. “For more than five years [Garaicoa said in 2002], my work has focused on phenomena that relate to the Cuban context, its cities and its social expectations. But, at the same time, it also tries to trace broader paths, so that my ideas can circulate and encounter the global viewer. I have misgivings about works that refer to local or national problems and that do not interest anyone outside those areas.” 81 “Havana, 1992. When you are a student, and you go through the city every day on your way to and from the university, you have plenty of time to think. Time to see the building from nineteen hundred or so that gradually lost a veranda, that has scaffolding resembling all kinds of figures, and one day you discover that the building no longer exists, that it got lost in the debris of a landslide, and that it only exists in the memory of your daily passing by that place, now a hole full of stones, a vestige of the unsustainable” (Carlos Garaicoa. La fotografía como intervención, op. cit., p. 77). 82 José Roca stressed that the three themes that constantly appear in Carlos Garaicoa’s work are the ruin, the fragment and the void: “The third essential component of his work is the void, understood as absence, as abandonment, as silence and death. This emptiness is expressed in several ways: in the ruin as the irremediable testimony of what has been lost; in the formulation of


zio82 é importante, mas também é importante o modo pelo qual, nas fissuras da realidade, somos capazes de fazer algo inesperado. Se algumas peles estão tatuadas com edifícios emblemáticos (as Torres Gêmeas ou a Torre Eiffel), os muros das casas e as ruas estão baleados, cheios de grafites ou decompostos até gerar uma espécie de “pintura acidental”. Garaicoa encontra, à maneira de Brassaï, uma realidade aleatória e pulsional, os vestígios de um tempo perturbado que não pode alimentar apenas a decepção. Os projejtos “heterotópicos” deste artista, seja em seus desenhos, nos quais expande de forma delirante um escoramento imundo, ou nas fotografias de cinemas abandonados, são uma dilatada conversa política que leva a sério os encontros como o da palavra “La Maravilla” em uma arcada decomposta de Havana. Certeau terminava seu livro fascinante sobre a invenção do cotidiano nomeando que o tempo acidentado é o que conta no discurso efetivo da cidade e, certamente, Garaicoa propõe uma série de fábulas ou articulações metafóricas, ciente de que os lugares estão estratificados e o que acontece conosco não pode responder exclusivamente às evidências deprimentes da tecnocracia funcionalista. Alguns escombros em Cuba podem evocar um jardim japonês, e uma velha propaganda de azulejos em Madrid pode passar do terapêutico ao indignado. Lacan destacou que “somos seres olhados no espetáculo do mundo”. Esse espetáculo pode surgir em algo tão inpara ver o edifício de mil novecentos e tanto que foi perdendo uma varanda, que tem andaimes que lembram todos os tipos de figuras, e um dia você descobre que o prédio não existe mais, que se perdeu nos escombros de um deslizamento de terra, e que ele só existe na memória de sua passagem diária por aquele local, agora um buraco cheio de pedras, um vestígio do insustentável” (Carlos Garaicoa. La fotografía como intervención, op. cit., p. 77). 82 José Roca ressaltou que os três temas que aparecem constantemente na obra de Carlos Garaicoa são a ruína, o fragmento e o vazio: “O terceiro componente essencial de sua obra é o vazio, entendido como ausência, como abandono, como silêncio e morte. Este vazio se expressa de diversas formas: na ruína como o testemunho irremediável daquilo que se perdeu; na formulação de projetos utópicos a partir delas; no silêncio como uma renúncia a arriscar dar respostas às causas de um fato absurdo; no vazio positivo da filosofia zen; no gesto obsessivo, esvaziado de um sentido prático; no desejo (que implica a carência daquilo que se busca) como um tipo de espaço utópico” (ROCA, José. “La ruina; la utopía”. In: Carlos Garaicoa. La ruina; la utopía, op. cit., p. 12).

the fissures of reality, we are able to do something unexpected is also important. If some skins are tattooed with emblematic buildings (the Twin Towers or the Eiffel Tower), the walls of the houses and the streets have been subject to gunfire, covered with graffiti or decomposed to generate a kind of “accidental painting.” Garaicoa finds, in the manner of Brassaï, a random and impulsive reality, the vestiges of a disturbed time that cannot feed disappointment alone. The artist’s “heterotopic” projects—whether the drawings, in which he deliriously expands the filthy reinforcements of buildings, or the photographs of abandoned cinemas—are a dilated political conversation that takes seriously encounters like the one with the word “La Maravilla” in one of Havana’s decomposed arcades. Certeau ended his fascinating book on the invention of the everyday saying that rugged times are what counts in the effective discourse of the city and, certainly, Garaicoa proposes a series of metaphorical fables or articulations, aware that places are stratified and what happens to us cannot respond exclusively to the depressing evidences of functionalist technocracy. Some ruins in Cuba may evoke a Japanese garden, and an old advertisement made of tiles in Madrid can go from the therapeutic to the indignant. Lacan pointed out that “we are beings who are looked at in the spectacle of the world.” This spectacle may emerge in something as insignificant as the number 6, which had something of a Lezamian magic game.83 Garaicoa knew how to pay attention both to the murmurings of the streets

utopian projects starting from them; in silence as a renunciation of the risk of responding to the causes of an absurd fact; in the positive void of Zen philosophy; in the obsessive gesture, emptied of practical meaning; in desire (which implies the lack of that which is sought) as a kind of utopian space” (ROCA, José. “La ruina; la utopía”. In: Carlos Garaicoa. La ruina; la utopía, op. cit., p. 12). 83 VALDÉS FIGUEROA, Eugenio: “El espejo del deseo. Algunas consideraciones sobre la obra de Carlos Garaicoa” In: Carlos Garaicoa. La ruina; la utopía, op. cit., p. 20. “When, at the beginning of the last decade [1990s], Garaicoa decided to mark a place in the city of Havana with a number 6, he was inserting himself, with traces of an unusual gesture, in the ‘writings’ of the urban layout, without other apparent intentions,” says the artist, “except for experiencing that ‘magical Lezamic moment,’ in which ‘I place the spectator unawares inside my own game, on the basis of the possibility of the imago.’”

113


significante quanto o número 6, que tinha algo de jogo mágico lezamiano.83 Garaicoa soube prestar atenção tanto nos rumores das ruas quanto nas ficções que podem ser projetadas a partir da ideia da cidade; influenciado por As cidades invisíveis, de Italo Calvino,84 não deixou de percorrer a paisagem artificial na qual temos que conviver para trançar histórias visuais e, em Partitura, adicionar uma fascinante composição musical. Em termos lacanianos, o “ruído” é o “resto” após a capitonnage ou o posicionamento do significante para o sujeito. Diante das derivas de Garaicoa, emerge a questão do que as imagens querem: talvez nada ou apenas desejem preservar sua condição enigmática.85 Em todo caso, elas nos convidam a nos deslocarmos, por exemplo, a partir de atris do estrado, através da multiplicidade da música, ou até mesmo dentro da composição, de um espaço intermídia, apreciando dobras barrocas sem deslizar para o encantamento sublimatório, mantendo a consciência de que a civilização é uma cloaca,86 e o labirinto do qual temos que sair está desenhado até nos esgotos. Não somente a cidade é posta à venda (gentrificando-se

83 VALDÉS FIGUEROA, Eugenio: “El espejo del deseo. Algunas consideraciones sobre la obra de Carlos Garaicoa” In: Carlos Garaicoa. La ruina; la utopía, op. cit., p. 20. “Quando, no início da década passada [os anos 1990], Garaicoa decidiu marcar um lugar da cidade de Havana com um número 6, ele estava se inserindo, com os traços de um gesto insólito, nas ‘escritas’ do traçado urbano, sem outras intenções aparentes, afirma o artista, a não ser experimentar aquele ‘mágico instante lezamico’, em que ‘coloco o espectador desprevenido dentro de meu próprio jogo, com base na possibilidade da imago’”.

and to the fictions that can be projected from the idea of the city; influenced by Italo Calvino’s The Invisible Cities,84 he did not fail to travel the artificial landscape in which we must coexist in order to weave visual stories and, in Score, add a fascinating musical composition. In Lacanian terms, “noise” is the “remainder” after the capitonnage or positioning of the signifier for the subject. Considering Garaicoa’s digressions, the question emerges of what the images want: perhaps nothing or maybe they only want to preserve their enigmatic condition.85 In any case, they invite us to move to another place, for example, from the music stands to the platform, through the multiplicity of the music, or even within the composition, to an intermedia space, relishing baroque folds without slipping into sublimatory enchantment, maintaining awareness that civilization is a cesspool,86 and the labyrinth we must leave is projected even into the sewers. Not only is the city up for sale (gentrifying at a dizzying speed or coming to the point of touristic collapse), but fissures can also be found for developing critical thinking. At a time when the street is nothing more than a theme park (blatantly privatized), Garaicoa proposes “careful readings” (as when he fabricates stamps in which totalitarian leaders camouflage their homicidal instincts with empathetic rhetoric— Hitler, for example, caressing the face of a child), and develops extraordinary visual essays that al-

84 FUSCO, Coco. “Cuando el deseo se parece a nada [Carlos Garaicoa entrevistado por Coco Fusco]”. In: Carlos Garaicoa. La ruina; la utopía, op. cit., p. 88. “Meu trabalho de vários anos, cerca de cinco anos, tem sido o espaço urbano. Situei-me no espaço urbano por mil razões... Primeiro fui pintor, e logo decidi me aprofundar mais nos problemas de representação. Tirei a ideia do mapa do livro As cidades invisíveis, de Italo Calvino. Ele trabalha a cidade, isto é, diferentes tipos de cidade; ali está a divisão tão mitológica, tão imaginária...”.

84 FUSCO, Coco. “Cuando el deseo se parece a nada [Carlos Garaicoa entrevistado por Coco Fusco]”. In: Carlos Garaicoa. La ruina; la utopía, op. cit., p. 88. “My work for several years, about five years, has been urban space. I situated myself in the urban space for a thousand reasons.... First I was a painter, and soon I decided to go deeper into the problems of representation. I took the idea of the map from the book The Invisible Cities, by Italo Calvino. He works with the city, that is, different types of cities; there the division is so mythological, so imaginary....”

85 Maurice Blanchot apontava que “a imagem é um enigma, desde o momento em que, por nossa leitura indiscreta, fazemo-la surgir para pô-la em evidência arrancando-a do segredo de sua medida”. Nesse instante, o enigma levanta novos enigmas, sem perder sua riqueza, seu mistério ou sua verdade. “A imagem é também um enigma, uma pergunta, solicita toda nossa aptidão a responder, fazendo valer as garantias de nossa cultura e os interesses de nossa sensibilidade” (BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita – A ausência do livro (v. 3). São Paulo: Escuta, 2010, p. 66).

85 Maurice Blanchot pointed out that “the image is an enigma, from the moment in which, by our indiscreet reading, we make it emerge to draw attention to it, tearing it away from the secret of its measure.” At that moment, the enigma raises new enigmas, without losing its richness, its mystery or its truth. “The image is also an enigma, a question, it demands all our ability to respond, asserting the guarantees of our culture and the interests of our sensitivity” (BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita – A ausência do livro (v. 3). São Paulo: Escuta, 2010, p. 66).

86 LACAN, Jacques. “Lituraterra”. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, p. 15.

86 LACAN, Jacques. “Lituraterra”. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, p. 15.

114


a uma velocidade vertiginosa ou chegando ao colapso turístico), mas também podem ser encontradas fissuras para desenvolver o pensamento crítico. Em um momento em que a rua não é nada além de um parque temático (descaradamente privatizado), Garaicoa propõe “leituras atentas” (como quando fabrica selos em que os líderes totalitários camuflam seus instintos homicidas com retórica empática – por exemplo, Hitler acariciando o rosto de uma criança), desenvolve extraordinários ensaios visuais que nos permitem encontrar outros sentidos em meio a nossas peregrinações sem destino. “Reivindicar a catacrese”, adverte Gayatri Spivak, “de um espaço que não se pode querer habitar (a frase, o sentencioso), mas deve criticar (de fora da frase) é, então, a dificuldade desconstrutiva do pós-colonial”.87 A Partitura de Garaicoa é, como a cidade ou a ruína, uma estrita catacrese, um uso metafórico em uma realidade que não pode ser nomeada de forma precisa. O olhar do artista, que assinalou a importância que teve na configuração de suas ideias o texto de Thomas McEvilley “On the Manner of Addressing Clouds”, é sempre contextual.88 Suas vivências em Cuba, Itália, Brasil e Espanha foram, sem dúvida, decisivas em suas composições: a partitura que ativa o seu comportamento artístico não é um texto com uma notação fixada para sempre, pelo contrário, está se transformando em uma dinâmica pulsional, desejante. Michel Serres assinalava que a música é o confronto dialético com o curso do tempo. Lembro a extraordiná87 SPIVAK, Gayatri C. “Poscolonial and value”. In: COLLIER, P.; GAYA-RYAN, H. (org.). Literary Theory Today. Cambridge: Polity Press, 1990, p. 225. 88 “No texto ‘On the Manner of Addressing Clouds’, um ensaio fundamental no programa de estudos que era usado no Instituto Superior de Arte (ISA) em minha etapa de formação, Thomas McEvilley fala do contexto como um elemento essencial entre todas as propostas de conteúdo que, segundo ele, estão presentes na obra de arte. Em todas as oficinas que dou, em que submeto minha prática e minhas metodologias a escrutínio no desdobramento que comporta o gesto de ensinar, cito McEvilley e abordo a significação especial que ele dá ao contexto para o processo artístico” (Cf. “Carlos Garaicoa: anotaciones inconclusas sobre una práctica artística [Carlos Garaicoa entrevistado por Suset Sánchez]”. In: Carlos Garaicoa. Orden inconcluso, op. cit., p. 194). O texto de McEvilley foi originalmente publicado na revista Artforum, no verão de 1984, pp. 61-70. Ele está traduzido em MCEVILLEY, Thomas. De la ruptura al “cul de sac”. Arte en la segunda mitad del siglo XX (Madrid: Ed. Akal, 2007, pp. 105-125).

low us to find other meanings in the midst of our pilgrimages without a destination. “To lay claim to the catachresis,” warns Gayatri Spivak, “of a space one cannot want to inhabit (the sentence, the sententious), but must criticize (from outside the sentence) is then the deconstructive difficulty of the postcolonial.”87 Garaicoa’s Score is, like the city or the ruin, a strict catachresis, a metaphorical usage in a reality that cannot be named with precision. The artist’s way of seeing—and he indicated the importance of Thomas McEvilley’s “On the Manner of Addressing Clouds” in the configuration of his ideas—is always contextual.88 His experiences in Cuba, Italy, Brazil and Spain were undoubtedly decisive in his compositions: the score that activates his artistic behavior is not a text with a notation that is fixed forever, but on the contrary, is transforming itself into a dynamic, desiring impetus. Michel Serres pointed out that music is the dialectical confrontation with the course of time. I remember the extraordinary and mysterious reflection of Confucius: “In order for one to say there is music, do you think it necessary to organize the pantomimes in a definite space, get feathers and flutes, sound the bells and drums? Fulfilling the word that has been given is a ceremony. To act without effort or violence, this is music.”89 In music there is a way of channeling an essential violence or a “promise of reconciliation.” Score is something more than mere neo-baroque en-

87 SPIVAK, Gayatri C. “Postcoloniality and value”. In: COLLIER, P.; GAYA-RYAN, H. (org.). Literary Theory Today. Cambridge: Polity Press, 1990, p. 225. 88 “In the text ‘On the Manner of Addressing Clouds’, a key essay in the syllabus that was used at the Instituto Superior de Arte (ISA) during my training, Thomas McEvilley speaks of context as an essential element among all proposals of content that, according to him, are present in the work of art. In all the workshops I give, in which I submit my practice and my methodologies to scrutiny in that unfolding which includes the gesture of teaching, I quote McEvilley and discuss the special significance he gives to the context for the artistic process” (Cf. “Carlos Garaicoa: anotaciones inconclusas sobre una práctica artística [Carlos Garaicoa entrevistado por Suset Sánchez]”. In: Carlos Garaicoa. Orden inconcluso, op. cit., p. 194).McEvilley’s text was published originally in Artforum, summer 1984, pp. 61-70. It is translated in MCEVILLEY, Thomas. De la ruptura al “cul de sac”. Arte en la segunda mitad del siglo XX (Madrid: Ed. Akal, 2007, pp. 105-125). 89 CONFÚCIO apud ATTALI, Jacques. Ruidos. Ensayo sobre la economía política de la música, op. cit., p. 48.

115


ria e misteriosa reflexão de Confúcio: “Para que se possa dizer que há música, achas que é necessário organizar as pantomimas em um espaço definido, pegar plumas e flautas, fazer soar o sinos e tambores? Cumprir com a palavra dada é uma cerimônia. Agir sem esforço ou violência, isso é música”.89 Na música se encontra um modo de canalização de uma violência essencial ou de uma “promessa de reconciliação”. Partitura é algo mais do que um mero divertimento neobarroco, também não é música da desarmonia,90 trata-se da composição dos sons (já não tão futurista quanto do presente) que expressa ou capta a alma da multidão.91 Schönberg apontava que as partituras da música moderna eram “cada vez mais difíceis de ler92” e para entender as dinâmicas da instalação audiovisual de Garaicoa temos que ler uma configuração retórica complexa, uma espécie de composição-em-catacrese que nos convida a nos deslocarmos para termos experiências diferentes. Lezama Lima recordava, citando Walter Pater, que all arts approach the condition of music [toda arte aspira à condição de música] ao mesmo tempo que apontava que a poesia é uma matemática inspirada.93 Não 89 CONFÚCIO apud ATTALI, Jacques. Ruidos. Ensayo sobre la economía política de la música, op. cit., p. 48. 90 ZAMUDIO-TAYLOR, Victor. “Ultrabaroque: Arte, mestizaje, globalización”. In: Ultrabaroque, op. cit., p. 633. “O barroco atual, o neobarroco, reflete estruturalmente a desarmonia, a ruptura da homogeneidade e o logos enquanto absoluto... [Neobarroco]: reflexo necessariamente pulverizado de um saber que já não está pacificamente encerrado sobre si mesmo”. 91 “No canto, damos a cada voz uma individualidade livre, improvisadora: do imprevisível conjunto que resulta, das relações improvisadas e irrepetíveis, nascerá o novo canto, rico e profundo como a alma da multidão. A música é, antes de tudo, movimento. Nossos ritmos devem ser decididos, insistentes, de desenho limpo; cada um deve corresponder a um movimento fisiológico, mecânico, de funcionamento preciso, o qual constitui a base necessária de qualquer composição musical” (CASAVOLA, Franco. “La música futurista. Manifiesto futurista”. In: SAN MARTÍN, Francisco Javier (ed.). La mirada nerviosa. Manifiestos y textos futuristas, op. cit., p. 275). “Poderíamos fazer uma analogia entre esse “desenho limpo” que Casavola menciona e o desenho geométrico da partitura de Carlos Garaicoa, que “unifica” ou serve como “reação central” à colagem musical de “improvisações” de rua. 92 SCHÖNBERG, Arnold. “La relación con el texto”. In: El Jinete Azul (Der Blauer Reiter), op. cit., p. 68. 93 LEZAMA LIMA, José. “El acto poético y Valéry”. In: La dignidad de la poesía. Barcelona: Ed. Versal, 1989, p. 35. “Por trás do número e da proporção,

116

tertainment, nor is it music of disharmony,90 it is the composition of sounds (already less futuristic than of the present) that expresses or captures the soul of the multitude.91 Schönberg pointed out that the scores of modern music were “increasingly difficult to read”92 and to understand the dynamics of Garaicoa’s audiovisual installation we have to read a complex rhetorical configuration, a kind of composition-in-catachresis that invites us to move around to other places in order to have different experiences. Lezama Lima recalled, citing Walter Pater, that all arts approach the condition of music, while pointing out that poetry is an inspired mathematics.93 It is not easy to feel, as Kandinsky proposed, the pure inner sound of a line.94 Garaicoa, in a singular way, seems to be looking for the musical basis of painting that Goethe95 de-

90 ZAMUDIO-TAYLOR, Victor. “Ultrabaroque: Arte, mestizaje, globalización”. In: Ultrabaroque, op. cit., p. 633. “The current baroque, the neo-baroque, structurally reflects the disharmony, the rupture of homogeneity and the logos as absolute... [Neo-baroque]: reflex necessarily pulverized of a knowledge that is no longer peacefully closed on itself.” 91 “In singing, we give each voice a free, improvisational individuality: from the unpredictable arrangement that results, from the improvised and unrepeatable relationships, the new song will be born, rich and deep as the soul of the multitude. Music is, above all, movement. Our rhythms must be deliberate, insistent, with a clean design; each must correspond to a precisely functioning physiological, mechanical movement, which constitutes the necessary basis of any musical composition” (CASAVOLA, Franco. “La música futurista. Manifiesto futurista”. In: SAN MARTÍN, Francisco Javier (ed.). La mirada nerviosa. Manifiestos y textos futuristas, op. cit., p. 275). We could make an analogy between this “clean drawing” that Casavola mentions and the geometric design of Carlos Garaicoa’s score, which “unifies” or serves as a “central reaction” to the musical collage of street “improvisations”. 92 SCHÖNBERG, Arnold. “La relación con el texto”. In: El Jinete Azul (Der Blauer Reiter), op. cit., p. 68. 93 LEZAMA LIMA, José. “El acto poético y Valéry”. In: La dignidad de la poesía. Barcelona: Ed. Versal, 1989, p. 35. “Beyond number and proportion, we are surprised not only by the simple play of favorable combinations but by the daimon of music and the unexpected grace of Harmony, and we find, then, that the momentary coincidence of two dissimilar spirits in a phrase, far from tempering us, provokes us once again, placing us in an unexpected equidistance from the gift and the counting of quantities or groupings of metric.” 94 KANDINSKY, Wassily. “Sobre la cuestión de la forma”. In: El Jinete Azul (Der Blauer Reiter), op. cit., p. 154. 95 LANKHEIT, Klaus. “Comentario (Epílogo)”. In: El Jinete Azul (Der Blauer Reiter), op. cit., p. 262. “Kandinsky had already spoken in his treatise [Concerning the Spiritual in Art] of Goethe’s ‘prophetic statement,’ and then reproduced in the Alma-


é fácil sentir, como propunha Kandinsky, o puro som interior de uma linha.94 Garaicoa, de uma forma singular, parece que procura a base musical da pintura que Goethe95 reivindicava, e reage à bela melodia (familiar em sua aparente velatura) do clarinete e aos multicoloridos ritmos da rua (fragmentados e re-compostos, mas também mantidos testemunhosamente nos atris) com seu desenho rítmico. Platão já apontou, na República, que “a pintura está repleta das mesmas leis que a rítmica musical” e, em grande parte, o ritmo de Partitura se conecta, sem cair em qualquer recurso panfletário, com os problemas da vida dis-cordante, com a dificuldade de sobreviver na cidade.96 Garaicoa sabe que toda arte é específica de um lugar,97 mas também tem claro que a voz da rua98 pode ressoar, metaforicamente (assim como o bastante citado “bater de asas de uma nos surpreende não apenas o simples jogo das combinações favoráveis, mas o daimon da música e a graça inesperada da Harmonia, nos deparamos, então, com o fato de que aquela coincidência momentânea de dois espíritos dissimilares em uma frase, longe de nos amansar, nos aferroa novamente para nos situar em inesperada equidistância do dom e da contagem das quantidades ou agrupamentos da métrica”. 94 KANDINSKY, Wassily. “Sobre la cuestión de la forma”. In: El Jinete Azul (Der Blauer Reiter), op. cit., p. 154. 95 LANKHEIT, Klaus. “Comentario (Epílogo)”. In: El Jinete Azul (Der Blauer Reiter), op. cit., p. 262. “Kandinsky já havia falado em seu tratado [Do espiritual na arte] da ‘profética declaração de Goethe’ e reproduziu então no Almanaque [Kandinsky: “Sobre a questão da forma”] de modo representativo daquele parágrafo das Conversações com Goethe, de Riemer, que pode valer como um leitmotif para todos os esforços conjuntos: ‘No ano de 1807, Goethe disse que ‘na pintura falta há muito tempo o conhecimento da base harmônica, falta uma teoria estabelecida e aprovada como na música”. 96 DE LA NUEZ, Iván. “Una ciudad que se piensa a sí misma”. In: Carlos Garaicoa. Orden inconcluso, op. cit., p. 35. “Talvez, mais do que ser vivida, a cidade pensante que Garaicoa foi construindo nos é oferecida como um manual de instruções para que esta, pelo menos, possa ser sobrevivida. Talvez o cidadão tenha podido, ou possa em algum momento futuro, “viver” a cidade, mas ao habitante não resta outro remédio a não ser ‘sobreviver’ a ela”. 97 MCEVILLEY, Thomas. “Sobre la manera de disponer nubes”. In: De la ruptura al “cul de sac”. Arte en la segunda mitad del siglo XX. Madrid: Ed. Akal, 2007, p. 112. “Toda arte é declaradamente específica de um lugar até aquele ponto. A arte declaradamente específica de um lugar implica a seleção do contexto como uma declaração fundamental acerca do conteúdo”. 98 SÁNCHEZ, Suset. “Carlos Garaicoa: anotaciones inconclusas sobre una práctica artística [Carlos Garaicoa entrevistado por Suset Sánchez]”. In: Carlos Garaicoa. Orden inconcluso, op. cit., p. 191. “Você está levando a voz da rua para a galeria, para o cubo branco, para o museu, para o quadro restrito da instituição arte, com o risco que isso acarreta e a possível perda de sua potência política”.

manded, and reacts to the beautiful melody (familiar in its apparent velatura) of the clarinet and to the multicolored rhythms of the street (fragmented and re-composed, but also maintained in the manner of witnesses on the music stands) with its rhythmic design. Plato has already pointed out in the Republic that “painting is filled with the same laws as musical rhythm,” and in large part the rhythm of Score connects, without falling into any pamphletary expedient, with the problems of discordant life, with the difficulty of surviving in the city.96 Garaicoa knows that all art is specific to a place,97 but it is also clear that the voice of the street98 can resonate, metaphorically (like the much-quoted “if a butterfly flutter in Brazil” of chaos theory), in extremely remote places. This artist creates yet another element in his writing of the city, appropriating the music of the street, citing and composing, showing up for the encounter with a baroque score.99 “We know now,” writes Barthes in his text

nac [Kandinsky: ‘On the problem of form’], in a manner representative of that paragraph of Riemer’s Conversations with Goethe, which could be a leitmotif for all the joint efforts: ‘In the year 1807, Goethe said that in painting there has long been a lack of knowledge of the harmonic basis, it lacks an established and approved theory as in music.’” 96 DE LA NUEZ, Iván. “Una ciudad que se piensa a sí misma”. In: Carlos Garaicoa. Orden inconcluso, op. cit., p. 35. “Perhaps, more than being lived, the thinking city that Garaicoa has been building is offered to us as an instruction manual so that it can at least be survived. Perhaps the citizen could, or may at some future time, ‘live’ the city, but the inhabitant has no other remedy than to ‘survive’ it.” 97 MCEVILLEY, Thomas. “Sobre la manera de disponer nubes”. In: De la ruptura al “cul de sac”. Arte en la segunda mitad del siglo XX. Madrid: Ed. Akal, 2007, p. 112. “All art is avowedly specific to a place up to that point. The avowedly specific art of a place entails selecting the context as a fundamental statement about the content.” 98 SÁNCHEZ, Suset. “Carlos Garaicoa: anotaciones inconclusas sobre una práctica artística [Carlos Garaicoa entrevistado por Suset Sánchez]”. In: Carlos Garaicoa. Orden inconcluso, op. cit., p. 191. “You are taking the voice of the street to the gallery, to the white cube, to the museum, to the restricted framework of the art institution, with the risk that this entails and the possible loss of its political power.” 99 This (catachrestic) meditation that I composed around Garaicoa’s work and, particularly, trying to understand his Score, “appropriates” a hundred citations that generate an intricate mass of footnotes. To a large extent, Thomas McEvilley’s essay, “On the Manner of Addressing Clouds,” (so important to Garaicoa’s formative experiences) offers me a legitimation of my Alexandrian compulsion: “Alexandrian or postmodern citation is simply a process of bringing to light what all modes of expression, of course, do all the time, but usually without bothering to

117


borboleta no Brasil” da teoria do caos), em áreas extremamente remotas. Esse artista cria mais um elemento de sua escrita da cidade, apropriando-se das músicas de rua, citando e compondo, comparecendo ao encontro com uma partitura barroca.99 “Sabemos agora”, escreve Barthes em seu texto sobre A morte do autor, “que um texto não é feito de uma linha de palavras a produzir um sentido único, de certa forma teológico (que seria a ‘mensagem’ do Autor-Deus), mas um espaço de dimensões múltiplas, onde se casam e se contestam escritas variadas, das quais nenhuma é original: o texto é um tecido de citações, saídas dos mil focos da cultura”.100 Em Partitura ouvimos e vemos a beleza101 da composição coletiva, nos sentamos no estrado para contemplar e ouvir a música que encontrou suas notas e intérpretes nos acasos do passeio: a sinfonia da cidade não termina nunca.

99 Esta meditação (catacrésica) que compus em torno da obra de Garaicoa e, particularmente, tentando compreender sua Partitura, se “apropria” de uma centena de citações que geram uma massa intrincada de notas de rodapé. Em grande parte, o ensaio de Thomas McEvilley, “On the Manner of Addressing Clouds” (tão importante na formação de Garaicoa) me oferece uma legitimação de minha compulsão alexandrina: “A citação alexandrina ou pós-moderna é simplesmente um processo de trazer a luz o que todos os modos de expressão fazem, por certo, o tempo todo, mas normalmente sem se preocupar em reconhecê-lo (ou sem sequer se dar conta disso). A citação é um componente inevitável de todos os atos de comunicação; é o que torna possível a comunicação. A comunicação opera sobre uma base de hábitos; isto é, códigos compartilhados entre emissores e receptores de mensagens. Toda mensagem é, portanto, uma citação ou uma alusão a toda a massa de mensagens passadas no mesmo código, que estabeleceram os hábitos de reconhecimento. Falar sem citar seria um galimatias, ou melhor, não seria de forma alguma uma fala, mas um som, como o vento ou as ondas” (MCEVILLEY, Thomas. “Sobre la manera de disponer nubes”. In: De la ruptura al “cul de sac”. Arte en la segunda mitad del siglo XX, op. cit., p. 123). 100 BARTHES, Roland. “A morte do autor”. In: O rumor da língua, op. cit., p. 68-69. 101 SÁNCHEZ, Suset. “Carlos Garaicoa: anotaciones inconclusas sobre una práctica artística [Carlos Garaicoa entrevistado por Suset Sánchez]”. In: Carlos Garaicoa. Orden inconcluso, op. cit., p. 200. “Talvez eu devesse salientar que, quando falo de beleza, falo obviamente de uma categoria complexa, historicista, mas primordial, revolucionária e crítica, que sempre implica a necessidade de entender a sociedade. Acredito que é imprescindível também que a arte, além de seu potencial crítico, conserve sempre um espaço para o encantamento”.

118

on The Death of the Author, “that a text is not a line of words releasing a single ‘theological’ meaning (the ‘message’ of the Author-God), but a multi-dimensional space in which a variety of writings, none of them original, blend and clash. The text is a tissue of quotations drawn from the innumerable centers of culture.”100 In Score we hear and see the beauty101 of the collective composition, we sit on the platform to contemplate and listen to the music that found its notes and interpreters in the happenstances of the stroll: the symphony of the city never ends.

acknowledge it (or without even realizing it). Citation is an inevitable component of all acts of communication; it is what makes communication possible. Communication operates on a basis of habits; that is, codes shared between senders and receivers of messages. Every message is therefore a quotation or an allusion to the whole past mass of messages in the same code, which established the habits of recognition. To speak without citing would be a galimatias, or rather, it would not be speech at all, but a sound, like the wind or the waves” (MCEVILLEY, Thomas. “Sobre la manera de disponer nubes”. In: De la ruptura al “cul de sac”. Arte en la segunda mitad del siglo XX, op. cit., p. 123). 100 BARTHES, Roland. “A morte do autor”. In: O rumor da língua, op. cit., p. 68-69. 101 SÁNCHEZ, Suset. “Carlos Garaicoa: anotaciones inconclusas sobre una práctica artística [Carlos Garaicoa entrevistado por Suset Sánchez]”. In: Carlos Garaicoa. Orden inconcluso, op. cit., p. 200. “Perhaps I should point out that when I speak of beauty, I am obviously speaking of a complex, historicist, but primordial, revolutionary and critical category that always implies the need to understand society. I believe it is also imperative that art, in addition to its critical potential, always retain a place for enchantment.”


119


OUTRAS OBRAS REPRESENTATIVAS DA TRAJETÓRIA DE CARLOS GARAICOA

120


121


Cerâmicas porno-indignadas

(pgs. 122- 123)

- nas pags 122-123 estĂĄ reproduzida a

nadas, mas com as imagens muito a ele acha melhor eliminar a obra ou

nas, porque do jeito q estĂĄ colocada entender a obra

122


CERÁMICAS PORNO-INDIGNADAS / PORN-OUTRAGED CERAMICS 2012-2014 Instalação. Oito dípticos. Impressão digital sobre cerâmica. Impressão Ilfordjet montada e laminada em alumínio. Dimensões variadas. / Installation. Eight diptychs. Digital print on ceramic. Ilfordjet Printing assembled and laminated in aluminum. Varied dimensions. VISTA DA INSTALAÇÃO EM CA2M, MADRI, ESPANHA. / INSTALLATION VIEW AT CA2M, MADRID, SPAIN.

a obra Ceramicas porno-indig-

apertadas, a criterio do artista, colocar a obra em mais pagi-

a ele considera q não da para

123


124


SEM TÍTULO (ALCANTARILLAS) / UNTITLED (ALCANTARILLAS) 2014

Instalação. Cinco baixos-relevos em bronze, paralelepípedos, projeção de fotos. Dimensões variadas. / Installation. Five bronze low-reliefs, cobblestones, photo projection. Varied dimensions. VISTA DA INSTALAÇÃO EM CA2M, MADRI, ESPANHA. / INSTALLATION VIEW AT CA2M, MADRID, SPAIN

125


126


PROYECTO FRÁGIL (SANTANDER) / FRAGILE PROJECT (SANTANDER) 2014 VISTA GERAL DA INSTALAÇÃO NA FUNDACIÓN BOTÍN. SANTANDER (ESPANHA), 2014. / VISTA GERAL DA INSTALAÇÃO NA FUNDACIÓN BOTÍN. SANTANDER (ESPANHA), 2014.

127


128


129


130


E DEPOIS, O QUE FAREMOS? / AND AFTER, WHAT WILL WE DO? 2016

Madeira e resina de vidro, dimensĂľes de acordo com o local. / Wood and cristal resin, site specific dimensions.

131


ANIVERSÁRIO / ANNIVERSARY 2015

Instalação com coleção de selos inspirada em um exemplar de 1940 desenhado por Richard Klein. / Installation with inspired stamp collection in a 1940 copy designed by Richard Klein.

132


133


134


135


136


137


SAVING THE SAFE (BUNDESBANK) 2013

Instalação. Escultura em ouro de 21 K, 10 x 16,5 x 6,5 cm. Cofre, plataforma giratória, luz led, madeira. Dimensões variadas. / Installation. Gold sculpture of 21 K, 10 x 16.5 x 6.5 cm. Safe box, turntable, led light, wood. Varied dimensions.

VISTA DA INSTALAÇÃO EM CA2M, MADRI, ESPANHA. / INSTALLATION VIEW AT CA2M, MADRID, SPAIN

138


139


140


SAVING THE SAFE HSBC BUILDING 2017

Instalação. Escultura em ouro 21 K, cofre, plataforma giratória, luz led, madeira. Dimensões variadas. / Installation. Sculpture in gold 21 K, safe, turntable, led light, wood. Varied dimensions. FOTO SEBASTIANO PELLION

141


142


SAVING THE SAFE (BANCO DE LA NACIÓN ARGENTINABANCO DE LA REPÚBLICA ARGENTINA) 2013 Instalação. Escultura em ouro de 21 K, cofre, plataforma giratória, luz led, madeira. Dimensões variadas. / Installation. Gold sculpture of 21 K, safe, platform rotating, led light, wood. Varied dimensions. 3 x 13 x 8 cm VISTA DA INSTALAÇÃO NA GALERÍA RUTH BENZACAR, BUENOS AIRES, ARGENTINA / INSTALLATION VIEW AT RUTH BENZACAR GALLERY, BUENOS AIRES, ARGENTINA COLEÇÃO PRIVADA, BUENOS AIRES. / PRIVATE COLLECTION, BUENOS AIRES.

143


SAVING THE SAFE (BANCO CENTRAL DO BRASIL) 2017

Escultura de ouro 21 K, cofre, base rotatรณria, luz LED e madeira / 21 K gold sculpture, safe, rotational base, LED light and wood 15 x 12,5 x 9 cm

144


SAVING THE SAFE (BANCO DE ESPAÑA) 2014

Instalação. Escultura em ouro de 22 K, Cofre, plataforma giratória, luz led, madeira. Dimensões variadas. / Installation. Gold sculpture of 22 K, Safe, turntable, led light, wood. Varied dimensions. 3,2 x 13,4 x 14,9 cm VISTA DA INSTALAÇÃO EM CA2M, MADRI, ESPANHA. / VISTA DA INSTALAÇÃO EM CA2M, MADRI, ESPANHA.

145


146


SOBRE EL BIEN Y EL MAL SE HAN ESCRITO MILES DE PÁGINAS / ABOUT GOOD AND EVIL HAVE BEEN WRITTEN THOUSANDS OF PAGES 2017 CORTESIA DO ARTISTA / COURTESY OF THE ARTIST, GALLERIA CONTINUA (SAN GIMIGNANO/BEIJING/LES MOULINS/HAVANA).

147


148


AS RAÍZES DO MUNDO / THE ROOTS OF THE WORLD 2016 Instalação. Mesa de madeira, aço inox cortado a laser e cabos de faca / Installation. Wooden table, stainless steel, laser cut and knife cables 90 x 50 x 160 cm

149


150


CARLOS GARAICOA, PHOTO-TOPOGRAPHY 2011 Impressões digitais e fotografias em preto e branco / Digital inkjet prints and black-and-white photographs. COLEÇÃO/COLLECTION: NATIONAL MUSEUM OF CONTEMPORARY ART, ATENAS/ATHENS (EMST)/, VISTA DA INSTALAÇÃO/INSTALLATION VIEW,ANTIDORON. THE EMST COLLECTION,FRIDERICIANUM, KASSEL

151


A CIDADE DA LUZ

THE CITY OF LIGHT

Leonardo Padura

Leonardo Padura

“Eles podem fazê-lo dizer qualquer coisa — qualquercoisa —, mas não podem fazê-lo acreditar nisso". ORWELL, George. 1984. São Paulo: Cia Editora Nacional, 1984.

“They can make you say anything – anything – but they can’t make you believe it." ORWELL, George. 1984. London: Penguin Books, 2018.

O dia em que tomara a grande decisão acabou sendo uma manhã luminosa e quente de abril. Ou setembro? Wilmer, que naquele momento achava que sabia algumas coisas, mal conseguia ter certeza do império da luz, pois a havia sentido e podia se lembrar dela sobre sua pele. Em vez disso, apesar de seu esforçado e perigoso empenho em fazê-lo, ele não poderia dizer a data precisa, nem sequer a hora de um momento tão memorável de sua existência, pois Eles também haviam se apropriado do tempo mensurável — assim como de quase tudo — até transformá-lo em uma massa amorfa na qual se havia imposto a sensação de viver em um presente perpétuo. Somente a alternância da noite e do dia, a chuva a cair ou o a chegada do calor tinham sido salvos de Seu domínio, embora, conforme havia sido anunciado após a última Assembleia, uma Comissão de Especialistas já estava trabalhando nisso, pois nem mesmo os caprichos e ciclos da natureza podiam permanecer indomáveis ​​no mundo perfeito da harmonia total ao qual aspirava chegar a Cidade da Luz.

The day he made the big decision tuned out

Wilmer teve a certeza de que era um dia mais luminoso do que o habitual porque, sob aquela aura, o Palácio de Cristal e a Casa do Povo, os Jardins da Vida, o Memorial da Luz e a Calçada Negra dos grandes desfiles resplandeciam como as joias que eram. Como a maioria de seus compatriotas, Wilmer nunca tinha visto a cidadela do poder da perspectiva que tinha naquele momento e, apesar daquilo que agora acreditava saber, ou talvez por aquilo que agora pensava que precisava saber, não pôde deixar de se admirar com seus aspectos singulares.

mony to which the City of Light aspired.

152

to be a bright and warm April morning. Or was it September? Wilmer, who at that moment thought he knew a number of things, was barely able to be sure of the empire of light, for he had felt it and could remember it on his skin. On the other hand, despite his strenuous and dangerous endeavour to do so, he could not have specified the date, and not even the hour of such a memorable moment of his existence, for they too had taken possession of measurable time—as they had of almost everything else—to the point of turning it into an amorphous mass in which one had the sensation of living in a perpetual present. Only the alternation of night and day, the fall of rain or the arrival of warmth had been saved from His dominion, although, as announced after the last Assembly, an Expert Committee was new working on it, for not even the whims and cycles of nature could remain un-dominated in the perfect world of total harWilmer was certain that it was a brighter day than usual because under that aura the Crystal Palace and the House of the People, the Gardens of Life, the Memorial of Light and the Black Causeway used for the great parades shone like the jewels they were. Like most of his compatriots, Wilmer had never seen the citadel of power from the perspective he was enjoying in this moment, and despite what he now thou-


A torre do Palácio, de onde os destinos do Estado eram regidos, era uma estrutura de aço e cristal, a mais alta do mundo (ou Eles diziam isso), e seus andares superiores se perdiam entre as nuvens. A obra fora concebida pelo Pai Supremo, que, além de ser um visionário e, como já havia sido legislado, o pai espiritual dos habitantes da Cidade da Luz, havia sido reconhecido também como o Grande Arquiteto do Universo e o homem capaz de acumular todos os saberes e, portanto, tomar todas as grandes (e sempre sábias) decisões. Sua morada e escritórios haviam sido colocados precisamente nos andares superiores do arranha-céu, uma espécie de torre sobre a torre. Aquele ninho de águia, quase sempre envolto entre nuvens, geralmente era impossível de ser visto. A partir de tal altura estratosférica, pensou Wilmer, qualquer vislumbre do mundo devia ser como um manto de algodão impoluto, justamente celestial, capaz de proteger ao morador da torre e, ao mesmo tempo, poupá-lo da desagradável contemplação da cidade devastada e imunda que se estendia até a Grande Muralha.

ght he knew, or perhaps because he was now

A Casa do Povo, por sua vez, também tinha sido concebida, desenhada e construída pelo Pai Supremo, e sua característica era ser uma espécie de longo recinto ancorado com inúmeros contrafortes, pétreo, de uma sórdida cor terracota, atravessado por pequenas janelinhas, como um castelo medieval, um cárcere ou uma das igrejas dos Anos Remotos. Ali trabalhava o Exército dos Acólitos, o combativo congresso de Eleitos que se encarregava de executar e, sobretudo, de interpretar as ideias do Pai e colocá-las em prática como exercício político e forma de governo. Entre um e outro edifício, com formas que se assemelhavam a conchas gigantes, distribuíam-se várias cúpulas baixas, cuja função ninguém sabia ao certo, embora se comentasse — na cidade só se comentava, pois nada poderia ser confirmado fora das palavras firmadas pelo patriarca — que eram, na verdade, abrigos antinucleares. Mas enquanto nenhum ataque inimigo, anunciado por anos e nunca materializado, ocorresse, eles eram usados ​​como local de lazer para os Acólitos, que ali desfrutavam de piscinas, bares e restaurantes abarrotados de delícias que, de alguma

rse, and able to protect the dweller in the tower,

thinking what he needed to know, he could not stop admiring its unique aspects. from which the destinies of the State were governed was a structure of steel and glass, the highest in the world (or so They said), and its upper floors were lost in the clouds. The work had been conceived by the Supreme Father, who as well as being a visionary and, as had already been legislated, the spiritual father of the inhabitants of the City of Light, had also been recognised as the Great Architect of the Universe and the man able to accumulate all knowledge and, therefore, to take all important (and always wise) decisions. His dwelling and offices had been placed on the upper floors of the skyscraper, a sort of tower above the tower. This eagle’s nest, almost always wrapped in clouds, was generally usually impossible to see. From such a stratospheric height, Wilmer thought, any glimpse of the world must be like a mantle of pure cotton, celestial of couand at the same time, spare him the unpleasant contemplation of the ravaged and filthy city that extended to the Great Wall. The House of the People, on the other hand, had also been devised, designed and built by the Supreme Father, and its characteristic was that of being a kind of long enclosure anchored with countless buttresses; stony, of a sordid terracotta colour, dotted with little windows, it resembled a medieval castle, a prison or some of the churches of the Remote Years. It was here that the Army of the Acolytes worked, the combative congress of the Elected, which was responsible for executing and, above all, interpreting the ideas of the Father and putting them into practice as a political exercise and form of government. Between the two buildings, with shapes resembling giant shells, there were several lower domes whose function nobody knew for certain although it was mentioned—in the

153


city there was only a guess, since nothing could be known for certain, apart from the words signed by the patriarch—that they were actually anti-nuclear shelters. But since no enemy attack had been announced for years and had never materialised, they were used as a recreation site for the Acolytes, who here could enjoy swim-

forma, chegavam do outro lado da Grande Muralha. No entanto, o privilégio máximo e fonte de verdadeiro poder era o direito de acesso a equipamentos de navegação global, umas enormes telas tácteis por meio das quais era possível se deslocar em tempo real pelo presente da cidade e do mundo e, graças a certos códigos, voltar também para o passado e, se comentava, até mesmo para o futuro. Tais benefícios acabaram sendo tão inatingíveis para o restante dos habitantes da Cidade da Luz, que até mesmo a possibilidade de eles existirem tinha sido esquecida ou completamente ignorada por muitos. O Memorial da Luz, a mais resplandecente de todas as construções daquele Kremlin privilegiado, era um lago de onde brotava um holograma do Pai Supremo, adornado com a espécie de peplo ou toga que, segundo as crônicas autorizadas pelos Acólitos, se costumava usar nos tempos cada vez mais remotos em que ele teve a Maior Revelação e concretizou o que seria sua maior obra: a Cidade da Luz. Sua cidade. Aquela perspectiva do magnífico centro de poder só poderia ser obtida a partir do Monte Carmelo, a única colina que não havia sido desmontada no território soberano da Cidade. A colina, também visível de qualquer ponto da urbe, havia sido conservada, pois em seu cume se levantava, até dobrar de altura, o segundo maior edifício da cidade, o Mausoléu em Vida do Pai Supremo, uma pirâmide truncada, de proporções faraônicas. Rodeada por um jardim de rosas brancas que desciam por todas as ladeiras, seria embaixo dessa estrutura onde, se alguma vez morreu — também se especulava que ele não morreria —, acabariam sendo depositados os restos presumivelmente incorruptíveis do líder, para que dali continuassem guardando e guiando os destinos da cidade que ele havia criado do Nada e conduzia, com sua infinita sabedoria, rumo à perfeição. Incorporado ao interminável cortejo de cidadãos que todos os dias era intimado a subir a colina e prestar tributo à memória passada, presente e futura do Pai Querido, Wilmer dera como pretexto uma dor de estômago para se separar da fileira que andava e, do Bosque do Mundo,

154

ming pools, bars and restaurants packed with delights that somehow came from beyond the Great Wall. However, the greatest privilege and source of real power was the right of access to global navigation equipment, one of the huge touch-screens through which it was possible to travel in real time through the present of the city and the world and, thanks to certain codes, to look also on the past and, it was suggested, even in the future. Such benefits were so unattainable to the rest of the inhabitants of the City of Light that even the possibility of their existence had been forgotten or had remained completely unknown to most people. The Memorial of Light, the most resplendent of all the constructions in that privileged Kremlin, was a lake above which floated a hologram of the Supreme Father, adorned with the species of peplos or toga that, according to the chronicles authorised by the Acolytes, it was customary to wear in the ever more times in which he had the Great Revelation and realised the project that would be his greatest work: the City of Light. His city. This view of the magnificent centre of power could only be had from Mount Carmel, the only hill that had not been cleared within the sovereign territory of the City. The hill, also visible from any point in the city, had been preserved, for the second highest building of the city rose from its summit, doubling its height: the Mausoleum in Life of the Supreme Father, a truncated pyramid of pharaonic proportions. Surrounded by a garden of white roses that descended all the slopes, it would be under this structure that, were he ever to die—for it was also speculated that he never would die—that the presumably incorruptible remains of the leader would be deposited, so that from here he could continue to guard and guide the destinies of the city that he had created out of Nothingness and developed with his infinite wisdom towards perfection.


Incorporated into the interminable procession of citizens who were daily urged to ascend the hill and pay tribute to the past, present and future memory of the Dear Father, Wilmer had invented a stomach ache to separate himself from the flowing stream, and from the Forest of the World, stopped to look at the urban lands-

se debruçar para contemplar a paisagem urbana e, com especial atenção, o refúgio do poder. E ali havia tomado a decisão de tentar saber. O mórbido e atrevido interesse do cidadão Wilmer pelo presente e, sobretudo, pelo passado do mundo em que vivia havia despertado alguns dias antes, durante uma das jornadas de Demolição do Oprobioso Passado, quando, como todos os cidadãos registrados, ele cumpria suas horas obrigatórias de trabalho voluntário nas ruínas daquilo que outrora fora uma biblioteca. Embaixo de algumas paredes caídas, como se estivesse esperando por ele, Wilmer encontrara uma caixa de metal, selada, que lhe causou um magnético desejo de possuí-la. Cautelosamente, ele escondeu o pequeno cofre embaixo dos escombros que devia mover em seu carrinho de mão, e procurou o ponto mais distante para depositar os destroços e esconder seu achado. Wilmer esperou até o cair da noite para retornar ao seu cubículo no Bairro Novo. A escuridão perene das ruas fez com que ele se sentisse protegido enquanto prosseguia com a caixa debaixo da camisa, através do labirinto da vila satélite onde, provisoriamente, mas por várias décadas, viviam os cidadãos do Estado. A promessa de construir as confortáveis ​​Casas dos Cidadãos havia sido negligenciada por tantos anos, que ninguém se lembrava mais se alguma vez ela havia sido feita ou não. Naquela madrugada, no cubículo de placas de metal e isopor que lhe haviam sido concedidos no Bairro, procurando não fazer nenhum barulho suspeito que seus vizinhos pudessem ouvir através das indiscretas divisões dos espaços, Wilmer conseguira abrir a arca, na qual encontrou o inimaginável: um testemunho material do Passado Oprobioso. Tratava-se de um caderno de papel, de grande formato, em que textos, fotografias e planos reproduziam as obras e a estrutura que, em 1984, a Capital tinha tido, a urbe misteriosa que pode ter existido, onde agora se erguia a Cidade da Luz. Aquela Capital desbotada, que fora governada durante muitos anos por um dignitário conhecido como o Grão-Mestre e cuja existência real tinha sido

cape and, with special attention, the refuge of power. And there and then he took the decision to try to find out more. Wilmer’s morbid and bold interest in the present and, above all, for the past of the world in which he lived had awakened a few days earlier, during one of the Days of Demolition of the Odious Past when, like all registered citizens, he undertook his compulsory hours of voluntary labour in the ruins of what had once been a library. Under some fallen walls, Wilmer had found a sealed metal box, as if it had been waiting for him, which caused him a burning desire to possess it. Cautiously he hid the small chest under the rubble he was to move in his wheelbarrow and sought the furthest point to deposit the waste and hide his discovery. Wilmer waited until nightfall to return to his cubicle in New Quarter. The perennial darkness of the streets made him feel protected as he advanced with the box under his shirt, through the labyrinth of the satellite slum where the citizens of the state had been living for years. The mention of the promise to build the comfortable Town Houses had been overlooked for so many years that no one remembered whether it had ever been made or not. This morning, Wilmer had managed to open the box in the cubicle of metal and polyurethane foam that had been assigned to him in the Quarter, trying not to make any suspicious noise that his neighbours might hear through the indiscreet divisions of the spaces. And what he saw was unimaginable: a material testimony of the Odious Past. It was a large-format paper notebook, in which texts, photographs and plans reproduced the works and structure that the Capital had in 1984, a mysterious city that might have existed where the City of Light now was. This indistinct Capital, ruled for many years by a dignitary known as the Great Master, whose real

155


existence had been first criticised and questioned, and then finally denied when it was opportune to deny it, seemed to have disappeared, engulfed by an economic cataclysm, if indeed the site, the cataclysms and the economy had ever existed in the past. In the notebook it was

primeiramente criticada, posta em dúvida, em seguida, finalmente negada quando era oportuno negá-la, parecia ter desaparecido, engolida por um cataclismo econômico, se, de fato, o local, os cataclismos e a economia tivessem existido em algum momento do passado. No caderno era possível observar imagens e lendas da topografia ainda não alterada do território, distinguir a forma original de alguns edifícios esquecidos e agora em ruínas (construídos, se dizia no texto, por inspiração e com desenhos do Grão-Mestre), ou até mesmo seguir o curso do rio canalizado e cercado com tapumes que atravessava a Cidade da Luz. Aquele testemunho revelava que a existência do passado não era parte da propaganda inimiga interna e que, no lugar onde eles moravam agora, havia existido vida, e essa vida era feita em ruas, casas, edifícios, campos de esportes que já existiam em uma época tão remota e obscura como 1984.

possible to observe images and captions for the still undisturbed topography of the territory; it was possible to distinguish the original form of some forgotten buildings now in ruins (constructed, it was said in the text, by inspiration and with designs by the Great Master), and even to follow the course of the canalised and enclosed river that crossed the City of Light. This testimony revealed that the existence of the past was not part of the internal enemy propaganda and that, in the place where they now lived, life had existed and had gone in streets, houses, buildings, sports fields that had already existed at such a remote and dark date as 1984. During the nights he devoted to studying the book, Wilmer thought hard about what might actually have happened since the publication of the volume, thirty-five years before the Great Catastrophe, when the ubiquitous virus had

As noites que passou estudando o caderno, Wilmer se empenhou em meditar e, sobretudo, supor o que realmente podia ter ocorrido a partir da data de edição do volume, trinta e cinco anos antes da Grande Catástrofe, quando o vírus ubíquo, que escapara de alguns laboratórios imperiais, havia provocado o blecaute digital e universal e, com ele, a perda de toda a informação acumulada e em uso que sustentava e movimentava o Mundo de Ontem.

escaped from some imperial laboratories and

A gestação do vírus — isso se sabia, ou se acredita saber — havia sido obra do grande poder fanático do Mundo Unipolar, e pretendeu em princípio ser um instrumento controlável ​​para atacar pontos sensíveis da trama econômica da época e, com as perdas reguladas que provocaria, aliviar ou superar a grande crise econômica que ameaçava a sobrevivência do sistema. No entanto, em algum momento o vírus havia mutado até forjar para si mesmo uma inteligência própria, e começado um processo de autofagia, no qual devorou tudo o que estava a seu alcance, inclusive sua própria estrutura e inteligência. O cataclismo tecnológico global foi de tal magnitude que provocou a rebelião da natureza e tinha sido a causa — dizia-se, estava escrito, referendado pelo Pai Supremo — de que o infausto Mundo Unipolar desapa-

ded at first to be a controllable instrument to

156

caused the universal digital blackout and, with it, the loss of all the information accumulated and in use that had sustained and moved the World of Yesteryear. The gestation of the virus—and this was something that was known, or was believed to be known—had been the work of the great factional power of the Unipolar World, and was intenattack sensitive points of the economic fabric of the time: with the regulated losses that it would cause, it was intended to alleviate or overcome the great economic crisis that threatened the survival of the system. However, at some point the virus had mutated into self-intelligence and begun a process of autophagy in which it devoured everything within its reach, including its own structure and intelligence. The global technological cataclysm turned out to be of such magnitude that it provoked the rebellion of nature and had been the cause—it was said, as it was written and endorsed by the Supreme Father—of the disappearance of the hapless Uni-


polar Worldand its conversion into the dark spot that was the Odious Past. Wilmer knew—this at least he did know—that after the historical catastrophe and the sudden interruption to human thinking, only a few years after being instituted as a State, the City of Light

recesse do modo que até então havia existido e se tornasse a mancha escura que era: o Passado Oprobioso. Wilmer sabia — isso pelo menos ele sabia — que, após a catástrofe histórica e o corte do pensamento humano, apenas alguns anos depois de instituída como um Estado, na Cidade da Luz havia sido colocado em funcionamento, de formas muito diversas e enigmáticas, um apagamento e redesenho dos restos remanescentes da memória coletiva da cidade e, obviamente, das memórias de seus moradores sobreviventes da catástrofe, dos quais, agora, só permanecia com vida o suposto imortal fundador. Desde então, com o Pai Supremo e já distinguido por unanimidade como o Máximo Historiador, Eles haviam se empenhado na execução de um processo que foi chamado de Resgate da Memória Histórica, que haviam começado a induzir e orientar cada acontecimento do passado para a inevitável e magnífica existência do Presente Luminoso, o único modelo social capaz de salvar a espécie e dar-lhe um porvir melhor após o fracasso de todos os experimentos e sistemas anteriores. Para atingir aquele objetivo tinha se tornado imprescindível não apenas potencializar alguns esquecimentos e realçar os acontecimentos necessários que referendaram a pertinência do novo modelo, mas também apagar as existências das pessoas do passado e, naturalmente, a daqueles que não se conformavam com o presente. Mas, sobretudo, silenciar os pensamentos que não poderiam ser reciclados em função do Futuro Manifesto para o qual, por décadas e com passo firme, o Patriarca os conduzia. O Exército dos Acólitos dia a dia, e durante anos, se encarregou daquele trabalho, censurando, vedando, invisibilizando homens e ideias, enquanto que por todos os meios ao seu alcance, que na cidade chegaram a ser todos os meios, enalteciam e exaltavam aos dóceis e criavam algo muito parecido com uma nova religião, baseada nas ideias do Pai Supremo e expressas em seu Livro da luz e da vida, o único texto que, há meio século era impresso, circulava e era lido na Cidade da Luz, e no qual era possível encontrar as poucas referências dadas como válidas daquilo que havia sido o Passado Oprobioso.

had been set in motion in many different forms, with an erasure and redesign of the surviving remains of the collective memory of the city and, of course, of the memories of its residents who had survived the catastrophe, of whom, now, only the supposedly immortal founder was alive. Since then, with the Supreme Father already unanimously distinguished as the Greatest Historian, They had engaged in the execution of a process called the Rescue of Historical Memory, which had begun to induce and guide each past event towards the inevitable and magnificent existence of the Luminous Present, the only social model capable of saving the species and of giving it a better future after the failure of all the previous experiments and systems. In order to achieve this objective, it had been necessary not only to promote certain forgotten events and to emphasise those necessary to endorse the correctness of the new model, but also to erase the existence of people of the past and, of course, the nonconformists of the present. But, above all, it was necessary to silence the thoughts that could not be recycled in favour of the Manifest Future towards which, for decades and with steady pace, the Patriarch had been leading them. The Army of the Acolytes had day after day, year after year been in charge of that work, censuring, hiding, ‘invisibleising’ men and ideas, while they used all the means at their disposal, which in the city meant everything, to commend and exalt the docile and to create something very similar to a new religion, based on the ideas of the Supreme Father and expressed in his Book of Light and Life, the only text that had been printed, circulated and read in the City of Light for the past half century, in which could be found the few references taken as valid concerning what had been the Odious Past. A week after his wonderful discovery, when he succeeded in exchanging and bringing forward his scheduled turn to visit the Mausoleum and

157


ascend Mount Carmel, Wilmer had been surprised by that extraordinarily luminous morning. It seemed almost to have been readied for him, an almost unusual day in which it was possible to distinguish the whole city and even the stratospheric floors of the Crystal Palace. Was such

Uma semana depois de seu maravilhoso achado, quando conseguiu trocar e adiantar seu turno programado para visitar o Mausoléu e subir o Monte Carmelo, aquela manhã extraordinariamente luminosa havia surpreendido Wilmer, como se tivesse sido preparada para ele, um dia quase insólito em que era possível discernir toda a urbe e até os andares estratosféricos do Palácio de Cristal. Tal conjunção era um sinal? Foi então que aquele cidadão, até aquele instante exemplar, tinha tomado uma decisão, a qual, ele sabia bem, podia custar-lhe a vida: investigaria para saber se havia alguma outra verdade e poder ter uma noção mais confiável de que, se havia existido um passado diferente do que eles conheciam, talvez pudesse haver outro presente, e até mesmo outro futuro, não regulamentados nem decididos apenas por Ele e por Eles. No dia seguinte à sua inquietante estadia no Monte Carmelo, Wilmer fingiu um mal-estar e conseguiu escapar das horas programadas de trabalho voluntário para ir em busca do único lugar da Cidade da Luz onde, pensava ele, poderia encontrar alguma pista do que precisava. O Bairro Obscuro constituía, fisicamente, o mais patente testemunho de que o Passado Oprobioso havia realmente existido. Becos estreitos que tinham perdido o asfalto muitos anos atrás, conectavam alguns edifícios de três, cinco, sete andares, com aspecto de colmeias, cuja construção, de concreto armado, havia sido feita (agora Wilmer sabia) por inspiração, com o financiamento e a partir do projeto do Grão-Mestre em algum momento de seu dilatado governo, antes da catástrofe. Naquele setor da cidade parecia ter vivido a grande massa dos Esquecidos, os cidadãos tiranizados e explorados pelos testas de ferro do Grão-Mestre, indivíduos que só valiam pela única coisa que possuíam: sua força de trabalho, naturalmente mal paga, para gerar a mais-valia destinada a sustentar a elite política de uma época chamada, com bastante justiça, de Passado Oprobioso. Apesar de seu aspecto de ruínas, as edificações tinham resistido à passagem do tempo e à fúria da história, embora naquele trânsito tivessem perdido portas, janelas, muitos

158

a coincidence a sign? Thus it was, then, that a citizen who up to that point had been exemplary, took a decision that he well knew could cost him his life: he would investigate to see if there were any other truth and a more reliable notion about whether a different past had existed to the one they knew about. Perhaps there could be another present, even another future, not regulated nor decided only by Him and Them. The day after his disturbing visit to Mount Carmel, Wilmer pretended to be unwell and managed to escape the scheduled volunteer hours to search for the only place in the City of Light where, he thought, he might find some glimpse of what needed. The Dark Quarter constituted, physically, the clearest evidence that the Odious Past had actually existed. Narrow alleys that had lost their asphalt too many years ago connected three-story, five-story, seven-story beehive-like buildings, whose reinforced concrete construction had been done (now Wilmer knew) by inspiration, with funding and based on the design of the Great Master at some point in his long government, before the catastrophe. It was that part of the city that had been home to the great mass of the Forgotten, the tyrannised citizens exploited by the Grand Master’s front men, a number of individuals who were only worth their sole possession: their strength as labour, and badly paid, of course, to generate the surplus value destined to sustain the political elite of an era with so much justice called the Odious Past. In spite of their ruinous appearance, the buildings had withstood the passage of time and the fury of history, although along the way they had lost doors, windows, many of the floors and the private sanitary services: a waste of space and materials, in addition to being at risk of generating individualism, they had been replaced by collective latrines, one of the most celebrated contributions by the Army of the Acolytes as


regards the style of construction and life of the new society. As the site was a forbidden place for the registered inhabitants of the City of Light, it had been used for decades as a refuge for the Outsiders,

dos pisos e serviços sanitários individuais — um desperdício de espaço e materiais, além de uma forma de gerar o individualismo, que tinha sido substituído por latrinas coletivas, uma das contribuições mais celebradas pelo Exército dos Acólitos e ao estilo de construção e vida da nova sociedade. Como o local era um lugar proibido para os moradores registrados da Cidade da Luz, há décadas era utilizado como refúgio para os Forasteiros, os famintos e sujos imigrantes que, empregando os meios mais inconcebíveis, conseguiam transpor a Grande Muralha e chegavam à Cidade da Luz atraídos pela promessa de um Futuro Luminoso e para escapar dos abusos em que viviam nos mais ou menos próximos territórios de A Aldeia e O Vulcão, onde governavam os ferozes tiranos Grande Bruxo e Bendita II, filho da déspota Bendita I, cuja supremacia havia durado mais de setenta anos – os mais inflamados inimigos da Cidade da Luz. Na realidade, os Forasteiros tinham um importante, embora nunca reconhecido, espaço no organismo da Cidade da Luz: eram os encarregados da fabricação dos alimentos sintéticos com os quais se alimentavam os cidadãos comuns do Estado. Sua faina produtiva era realizada em naves gigantescas que, antes da Catástrofe, e antes mesmo da Terrível Guerra, dizia-se que haviam sido projetadas para a construção de automóveis. Em troca de seu trabalho e da proteção que lhe era oferecida pelo Pai Supremo em seus domínios, os frugais Forasteiros podiam cultivar bananas, grãos e cenouras nos terrenos do que havia sido a Cidade dos Esportes, o aeroporto e a fábrica de foguetes que nunca voariam, pois nunca foram fabricados. Todas essas obras tinham sido criadas pelo Grão-Mestre no Passado Oprobrioso, o qual — era o que assegurava o Livro de luz e da vida, a partir de sua vigésima quarta edição, impressa quando houve a grande arribação de Forasteiros — tinha utilizado mão de obra barata, quase escrava, de outros refugiados conhecidos como Os Estrangeiros. No Bairro Obscuro, além disso, também havia sido permitida a fabricação de álcool e o cultivo de plantas com propriedades opiáceas, as quais consumiam, até o embotamento, os geneticamente descerebrados Forasteiros.

the famished and dirty immigrants who, using the most inconceivable means, managed to get past the Great Wall and reached the City of Light, attracted by the promise of a Shining Future and to escape those who lived in the more or less close territories of The Village and The Volcano, ruled by the fierce tyrants called Great Wizard and Blessed II, son of the despot Blessed I, whose supremacy had lasted more than seventy years – These were most bitter enemies of the City of Light. In reality, the Outsiders had an important though never recognised space within the organism of the City of Light: they were responsible for manufacturing the synthetic foods that fed the ordinary citizens of the State. Their productive work was carried out on gigantic ships that, before the Catastrophe, and even before the Terrible War, were said to have been designed for the construction of cars. In exchange for the work and the protection afforded them by the Supreme Father in his dominions, the frugal Outsiders could cultivate bananas, grains, and carrots on the land of what had been the City of Sports, the airport, and the factory making rockets that would never fly because they had never been made. All these works had been created by the Great Master in the Odious Past, who—as the Book of Light and Life had assured him since its twenty-fourth edition, printed at the time of the mass arrival of Outsiders—had used the cheap, almost slave labour of other refugees known as The Foreigners. In addition, in the Dark Quarter the manufacture of alcohol and the cultivation of plants with opiate properties had been allowed and these were consumed by the genetically mindless Outsiders to the point of torpor. Wilmer did not know for sure what he was looking for in the Dark Quarter, though he had the feeling that he would find something there to clear his mind, to understand his personal perpetual present without memory or perspective.

159


For this reason, he walked through the dark streets, where he even discovered two dead unburied bodies, seeking a sign, a look, a call, some trace capable of enlightening him, he who was a Citizen of Light, in this place where he was a foreigner with a high likelihood of becoming a

Wilmer não sabia ao certo o que estava procurando no Bairro Obscuro, embora tivesse o pressentimento de que ali encontraria algo capaz de aclarar sua mente, entender seu próprio e perpétuo presente sem memória nem perspectivas. Por isso andava pelas ruas tenebrosas, nas quais chegou até mesmo a encontrar dois cadáveres ainda insepultos, sempre atento a qualquer sinal, um olhar, um chamado, algum traço capaz de iluminá-lo, ele que era um Cidadão da Luz e, naquele lugar, algo como um forasteiro com altas probabilidades de se tornar também um cadáver... Era uma tarde plúmbea, muito quente: disso ele tinha certeza. Não poderia dizer ao certo, claro, se era do mês de agosto ou janeiro, e menos ainda de que ano do governo do Pai Supremo. Então ele o viu, e desde o primeiro momento não teve dúvidas de que era Ele quem procurava: o Forasteiro, parado no dintel do mais arruinado dos edifícios, fumava com deleite um cigarro de folhas de bananeira secas, e quando finalmente ficaram face a face, tanto Wilmer quanto o Forasteiro tiveram a impressão de ter sido colocados diante de um espelho que apenas alterava, de forma aleatória, alguns atributos físicos: o comprimento do cabelo, a direção das rugas, a profundidade das olheiras. Mas o resto de suas anatomias era uma cópia mais exata do que uma reprodução holográfica da pessoa que cada um deles tinha à sua frente. — Estava esperando por você — disse o Forasteiro.

corpse… It was a leaden afternoon, too hot: that was certain. He could not be sure, of course, whether it was August or January, and not even what year it was of the Supreme Father’s reign. Then he saw it, and from the first moment he had no doubt that it was the One he was looking for: the Outsider standing at the doorway of the most ruined of the buildings was smoking a cigarette of dried banana leaves with delight and when at last they were face to face, both Wilmer and the Outsider had the impression that they were standing before a mirror that barely and only randomly, distorted certain physical attributes: the length of hair, the pattern of wrinkles, the depth of circles under the eyes. But the rest of their anatomy was a copy more exact than a holographic reproduction of the person each of them had before them. “I was expecting you,” said the Outsider. “I was looking for you,” Wilmer said, and without further ado he set off behind his unexpected, or perhaps predictable, double. The building, as Wilmer later discovered, had once been a community clinic, characterised by small cubicles that might have been medical consulting rooms. With the collapse of the system and the neglect of welfare projects, it had been reused as a brothel until the days of the catastrophe. Wilmer’s double entered one of the narrow rooms and he followed. The space

— Estava procurando por você — disse Wilmer e, sem mais palavras, começou a seguir seu inesperado, ou talvez previsível, sósia.

was occupied by a cot and a chair, while in a

O edifício, Wilmer viria a saber mais tarde, havia sido no passado uma policlínica comunitária, repleta de pequenos cubículos que poderiam ter sido os consultórios médicos. Com a decadência do sistema e a deterioração de seus projetos de saúde, ele havia sido reutilizado como um prostíbulo até os dias da catástrofe. O duplo de Wilmer entrou em um dos estreitos quartos, e ele o seguiu. O espaço era ocupado por um catre e uma cadeira, enquanto que em

proffered the half-smoked cigarette to Wilmer,

160

corner a sink had survived, now dry and grimy. The stranger settled himself on the cot and offered Wilmer the chair, and then immediately who had never used any drugs or narcotics, but who accepted the rustic joint and inhaled, as if he had always done so. The outside said he was called William Wilson and reproached Wilmer for his delay. He knew Wilmer would come because he had left the metal box with the book several weeks before.


After several days of surveillance he had seen that Wilmer had found it, and was sure that he had read it too. That book, he told him, had appeared in a basement of the old clinic along with three other books William wanted to give Wilmer by hand: a Bible, a copy of the Qur’an, and a scroll of the Torah, the most favoured texts

um canto havia sobrevivido uma pia, agora seca e encardida. O forasteiro se acomodou no catre e ofereceu a cadeira a Wilmer para, imediatamente, estender-lhe seu cigarro fumado pela metade. Wilmer, que nunca havia consumido qualquer tipo de drogas ou narcóticos, aceitou a rústica bagana e tragou, como se sempre tivesse feito isso. O forasteiro dizia chamar-se William Wilson e repreendeu Wilmer por sua demora. Ele sabia que Wilmer viria porque havia sido ele quem, várias semanas antes, deixara a caixa de metal com o livro. Depois de vários dias de vigilância, ele havia visto que Wilmer o havia encontrado e, com toda certeza, pensava que ele também o havia lido. Aquele volume, ele lhe disse, havia aparecido em um sótão da antiga policlínica junto com três outros livros que William queria entregar nas mãos de Wilmer: uma Bíblia, um exemplar do Corão e um rolo da Torá, os textos mais apreciados das antigas e difamadas religiões do passado.

of the ancient and reviled religions of the past. “Why me?,” Wilmer wanted to know. “Because you and I, who are one, have the mission to be the memory of the world. I do not know why we have this responsibility. Besides, I no longer believe that memory be of much use, but it is our mission.” “And why should I risk the punishments that might given me if you yourself think there’s not much point in it?” “Because it’s our destiny. And it may be not of much use because very possibly you and I cannot do anything. We are here just to know and transmit this knowledge at some moment. Because in reading these books we will understand two things. First, that the human condition has the curse of repeating itself over and over again in time. And secondly, if it is not in the next, it

— E por que eu? — quis saber Wilmer.

will be in the one after that, or even in the gen-

— Porque você e eu, que somos um só, temos a missão de ser a memória do mundo. Não sei por que temos essa responsabilidade. Além disso, não acredito que a memória sirva para muita coisa, mas é nossa missão.

of use. Because some books will always appear

— E por que eu deveria me arriscar aos castigos que poderiam ser aplicados a mim se você mesmo acha que isso não serve para muita coisa? — Porque é o nosso destino. E não servirá para muita coisa, porque muito possivelmente você e eu não possamos fazer nada. Nada além de saber e transmitir em algum momento esse conhecimento. Porque ao ler esses livros, entenderemos duas coisas. Primeiro, que a condição humana tem a maldição de se repetir várias vezes no decorrer tempo. E, segundo, que se não for na próxima, será na próxima, ou mesmo na próxima geração que esse conhecimento servirá para algo. Porque alguns livros sempre vão aparecer e porque, como já disse, o ser humano sempre foi igual. Embora hoje os patriarcas tenham feito um acordo secreto de colaboração e entendimento, e tenham

eration after that, that this knowledge will be and because, as I told you, human beings have always been the same. Even though today the patriarchs have made a secret agreement of collaboration and understanding and succeeded in repressing them, the work and memory of man, with his fears and hopes, will once again come to light and defeat the universal oligarchy of the Self-Elected. The present we know cannot be eternal.” “And how do you know that?” “Because I’ve read it and you’ll read it. One day the Anointed One or the Prophet or Universal Saviour will come and put things in their place… until a Self-Elected once again sends them back to such a cursed place as this. And so it will be until the end of time.” “Time has an end?” “Time does not… but unfortunately, our species does. But, until then, there will always be a mes-

161


siah and he will come. Although from what I have read and learned, I do not know whether to save us or to condemn us.” Wilmer managed to buy an ascent to Mount Car-

conseguido reprimi-las, a obra e a memória do homem, com seus medos e esperanças, um dia voltarão à luz e derrotarão a oligarquia universal de Autoeleitos. O presente que conhecemos não pode ser eterno.

mel, paying for the privilege as though it were gold. During the last few weeks, or perhaps two or three months (how to know?) he had read the books received from William Wilson, the outsider, whenever he could. And he had understood,

— E como você sabe?

or at least believed he understood the words of

— Porque li, e você lerá. Um dia o Ungido ou o Profeta, ou o Salvador Universal chegará e colocará as coisas no lugar... até que um Autoeleito volte a colocá-los de volta em um lugar tão amaldiçoado como este. E assim será até o fim dos tempos.

the perpetual present of the City of Light and

— O tempo tem um fim?

the man who was a physical replica of himself: the promises of a Bright Future were nothing more than the stratagems of power, as he had always sensed. What he now knew, however, was that for centuries the men who had preceded him as inhabitants of the planet had lived their own perpetual presents and generated their

— O tempo não... Lamentavelmente, nossa espécie sim, tem. Mas, até lá, então, sempre haverá um messias e ele chegará. Embora, pelo que li e aprendi, não sei bem se para nos salvar ou nos condenar novamente.

own hopes for luminous futures, until a social,

Wilmer conseguiu comprar a preço de ouro uma entrada para subir o Monte Carmelo. Durante as últimas semanas, talvez até os últimos dois ou três meses (como saber?), tinha lido, a cada instante que lhe foi possível, os livros recebidos das mãos de William Wilson, o forasteiro. E havia entendido, ou pelo menos, acreditava ter entendido, as palavras daquele homem que era uma réplica física de si mesmo: o presente perpétuo da Cidade da Luz e as promessas de um Futuro Luminoso eram nada mais do que artimanhas do poder, como ele sempre havia pressentido. O que agora ele sabia, no entanto, era que durante séculos os homens que o precederam como habitantes do planeta tinham vivido seus próprios presentes perpétuos e gerado suas esperanças de futuros luminosos, até que uma catástrofe social, política, econômica, natural ou tecnológica os fazia refundar aqueles estados, ou até mesmo vê-los desaparecer da face da terra, como algumas tribos e civilizações perdidas.

At the summit of Mount Carmel, from the For-

No topo do Monte Carmelo, da Floresta da Vida, naquela manhã fria e nublada — disso ele sabia, assim como de algumas outras coisas —, Wilmer mal conseguiu discernir as

162

political, economic, natural or technological catastrophe had made them re-found those states or even see them disappear from the face of the earth, like some lost tribes and civilisations. est of Life, on that cold, cloudy morning—this he knew, as also some other things—Wilmer could scarcely distinguish the silhouettes of the structures of the Crystal Palace, the House of the People, the Gardens of Life, the Memorial of Light and the Black Causeway where the previous day he himself had paraded with millions of disciplined and fervent registered citizens to celebrate the launching of the new edition of the Book of Light and Life, with a prologue recently rewritten by its author, the Supreme Father. Wilmer knew that beyond the privileged buildings was the increasingly ruined New Quarter and, beyond that, the Dark Quarter. And at the end of the whole are ruled by the City of Light stood the Great Wall, compact and impassable. At least for now. Because now Wilmer knew that there was another world beyond, others past, others present, and if the human species resisted and sought it, there could be other futures, in which there would be other human beings, equal and different at the same time.


“Someone once said that if we can feel that it is worthwhile remaining human, even when it serves no purpose, we will have defeated them,” William Wilson had told him during their only

silhuetas das estruturas do Palácio de Cristal, da Casa do Povo, dos Jardins da Vida, O Memorial da Luz e a Calçada Negra por onde, no dia anterior, ele próprio havia desfilado com milhões de disciplinados e fervorosos cidadãos registrados, para celebrar o lançamento da nova edição do Livro da luz e da vida, com um prólogo recentemente reescrito por seu autor, o Pai Supremo. Wilmer sabia que, para além dos edifícios privilegiados, se encontrava o cada vez mais arruinado Bairro Novo e, ainda mais além, o sombrio Bairro Obscuro. E, no final de todo o domínio da Cidade da Luz, erguia- se a Grande Muralha, compacta e intransponível. Pelo menos por enquanto. Porque agora Wilmer sabia também que muito mais além havia outro mundo, outros passados, outros presentes e, se a espécie humana resistisse e buscasse, poderia haver até outros futuros, nos quais haveria outros seres humanos, iguais e, ao mesmo tempo, diferentes.

meeting, and Wilmer, from the top of Mount Carmel, swore to himself to make his small but essential contribution in the battle for memory and for the species. Just in case. "There is no difference between me and the streets."

Mantilla, August 2017

© Leonardo Padura, La Ciudad de la Luz © Leonardo Padura, 2017. Published by arrangement with Tusquets Editores, S.A., Barcelona, Spain

— Uma vez alguém disse que se pudermos sentir que vale a pena continuar sendo humanos, até mesmo quando isso não serve para nada, nós os teremos derrotado — William Wilson dissera isso para ele durante único encontro que tiveram, e Wilmer, do alto do Monte Carmelo, jurou para si mesmo lutar, dar sua pequena, embora necessária, contribuição pela memória e pela espécie. Para que ela servisse para algo. “Não há diferença entre mim e as ruas”.

Mantilla, agosto de 2017.

163


SOBRE OS AUTORES

ABOUT THE AUTHORS

Rodrigo Villela é formado em letras pela Universidade de São Paulo (USP) e tem especialização em edição pela Universidad Complutense de Madrid. Atua como gestor cultural e no desenvolvimento de exposições.

Rodrigo Villela has a degree in languages/lit-

erature from University of São Paulo (USP) and postgraduate specialization in editing from the Universidad Complutense de Madrid. He works with cultural administration and in the development of exhibitions.

Rodolfo de Athayde é mestre em Filosofia pela Universidade Estatal Lomonosov (Moscou). À frente da produtora Arte A Produções, desempenha há mais de uma década um trabalho de curadoria e promoção da arte no Brasil e no exterior.

Rodolfo de Athayde has a master degree in Philosophy from Lomonosov State University (Moscow). He leads the production company Arte A Produções, and for more than a decade he has been curating art exhibitions in Brazil and abroad.

Leonardo Padura é um jornalista, escritor e diretor de cinema cubano. É autor de 19 livros, incluindo O homem que amava os cachorros. Mora em Havana e já recebeu inúmeros prêmios, dentre os quais com o Prêmio Princesa das Astúrias de Literatura. João Fernandes é vice-diretor e curador principal do Museu Nacional Centro de Arte Reina Sofia (Madrid). Foi diretor do Museu de Arte Contemporânea de Serralves. Trabalhou como curador independente, período em que organizou três edições do Festival de Arte Contemporânea do Porto e fez a curadoria de várias exposições em Portugal, Espanha e França. Foi o curador das representações de Portugal na 1ª Bienal de Arte de Joanesburgo (1995), na 24ª Bienal de São Paulo (1998), e na 50ª Bienal de Veneza (2003), em colaboração com Vicente Todolí. Fernando Castro Flórez é doutor em Estética pela Universidad Autónoma de Madrid, onde é professor titular. Escreveu em suplementos culturais como no jornal El País, Diario 16, El Independiente, El Sol e El Mundo. Há mais de dez anos atua como crítico de arte do ABC Cultural. Colabora com diversas revistas de arte, e entre suas publicações se destacam: Escaramuzas. El arte en el tiempo de la demolición, Fasten seat belt. Cuadernos de campo de un crítico de arte.

Leonardo Padura is a journalist, writer and a Cuban film director. He is the author of 19 books, including The Man Who Loved Dogs. He lives in Havana and has already received numerous awards, including the Asturias Prize for Literature. João Fernandes is deputy director and chief curator of National Museum Reina Sofia Art Center

(Madrid). He was director of the Serralves Museum of Contemporary Art. He worked as an independent curator, period during which he organized three editions of the Porto Contemporary Art Festival and curated several exhibitions in Portugal, Spain and France. He was the curator of the representations of Portugal at the 1st Biennial of Art of Johannesburg (1995), at the 24th Biennial of São Paulo (1998), and at the 50th Venice Biennial (2003), in collaboration with Vicente Todolí. Fernando Castro Flórez holds a PhD in Aes-

thetics from Universidad Autónoma de Madrid, where he is a full professor. He wrote in cultural supplements such as the newspaper El País, Diario 16, El Independiente, El Sol and El Mundo. For more than ten years he has been an art critic of ABC Cultural. He collaborates with several art magazines, and his publications include Escaramuzas. El arte en el tiempo de la demolición, Fasten seat belt. Cuadernos de campo de un crítico de arte.

164



SER URBANO – CARLOS GARAICOA CATÁLOGO

Assessoria de imprensa A4 & holofote comunicação

ESPAÇO CULTURAL PORTO SEGURO

Editores Rodolfo de Athayde Rodrigo Villela

Projeto luminotécnico Fernanda Carvalho – Design da luz

Direção geral Marco Griesi

Coordenação editorial Fábio Furtado Pedro Campanha Projeto gráfico Casaplanta Designer-assistente Lila Botter Pedro Ishikawa Tradução Cícero Oliveira Ruth Adele Dafoe Revisão Cícero Oliveira Tratamento de imagem Motivo | Jorge Bastos Fotografias Fábio Furtado Kelson Spalato

CARLOS GARAICOA – SER URBANO EXPOSIÇÃO | EXHIBITION Idealização e produção Arte A Produções Curadoria e direção geral Rodolfo de Athayde Coordenação geral Ania Rodríguez Gerenciamento de projeto Jennifer Mclaughlin Direção de montagem Karen Ituarte Design gráfico Complexo D – Bete Esteves Lucas Bevilaqua Design expográfico Adriana Milhomem – Luz em formas Gestão financeira Lisiany Mayão

166

Relações externas Helena Kavaliunas Audioguia Studiozut Cenografia Cenotech Tradução de textos Ruth Adele Cícero Oliveira Revisão Cícero Oliveira Transporte e logística Fink Montagem Install

ESTUDIO CARLOS GARAICOA Artista visual Carlos Garaicoa Diretora Lillebit Fadraga Maquetista Víctor A. Obín Arquitetos Jetter González e Rafael Alonso

Direção executiva Rodrigo Villela Direção de comunicação Marco Rangel Comunicação Fábio Furtado Priscilla Brossi Coordenação de conteúdo Tiago Cunha Conteúdo e redes sociais Vinicius Brito Redação Leonardo Castelo Branco Mídia Caio de Jesus Criação Fabio Montesanti Assessoria de imprensa Adriana Balsanelli Programação Felipe do Amaral Assessoria institucional Guga Queiroga

Assistente Havana Studio Marian García

Consultores Gustavo Seraphim Helena Kavaliunas

Gerente Madrid Studio Victoria Lozano

Coordenação de produção Rodrigo Lourenço

Assistentes Madrid Studio Jean-Paul Tremont e Daniel Crespo

Produção Camila Brandão Marcos Miranda William Keri

Agradecimentos Galleria Continua Galeria Luisa Strina Barbara Gross Galerie

Operações Elisa Matos


Coordenação Talita Paes Educadores Andressa Pallomo Carla de Oliveira Diego Braz Fernando Carvalho Ioná Moraes Janaina Machado João Claro Frare Nina Knutson Sara Souza Talita Fiocchio Thais Geraldini Coordenador geral dos ateliês Pedro Campanha Coordenação do PortoFabLab Juliana Henno Instrutores dos ateliês Mayara Polizer Tiago Pessoa Vinicius Juliani Administrativo Deise Concetto Paloma Martinez Recursos humanos Jéssica Almeida Financeiro Natacha Mendonça Assessoria jurídica Marisa Tomazela Recepção Marta Quintelhano Priscila Beex Regina Santos Gerente de facilities Carlos Alberto Lopes Gerente de manutenção Fabiano Ribeiro Coordenação de manutenção Valdeci Bernardo

Equipe de manutenção Valter Bonfim Rogério Cláudio Alla Cesar Francisco Heráclito Heitor Soares Jucivan Santos Tiago dos Reis Santos Lena Silva Líder de segurança Daniel Boarini Agentes de segurança Lucas Evangelista Andre Serra Martinez Marcos Vinicius Brandão Daniel de Paiva Alencar Fernando Torres Santos Camila Regina Gonçalves Yuri Favero Leite João Paulo da Silva Gestão TeTo Cultural

INSTITUTO PORTO SEGURO Renata Aguiar César Pedro Mariana Conti

AVCB N° 261287 | ALVARÁ DE FUNCIONAMENTO N° 2018/10153-000. VALIDADE DE 21/06/2018 A 21/06/2019

Núcleo educativo

167


Este livro foi composto na fonte MONTSERRAT, e impresso em maio de 2018 na Gráfica Ezkenazi, sobre papel couché fosco 120 g/m².

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP) Bibliotecária responsável: Aline Graziele Benitez CRB-1/3129 U65 1.ed.

Ser Urbano, exposição individual de Carlos Garaicoa / João Fernandes, Leonardo Padura, Fernando Castro Flóres; [curador] Rodolfo Athayde. -- 1. ed. -- São Paulo: Espaço Porto Seguro, 2018.

ISBN: 978-85-54961-01-5.

1. Carlos Garaicoa - exposição. 2. Catálogo de exposição. I. Título.

Índice para catálogo sistemático: 1. Carlos Garaicoa: exposição 2. Catálogo

168

CDD 012


DIÁLOGO AGUDO PENETRATING DIALOGUE Rodolfo de Athayde PARTITURA: UMA SINFONIA DA CIDADE PARA SOLISTAS E GRAND ESEMBLE SCORE: A SYMPHONY OF THE CITY FOR SOLISTS AND GRAND ESEMBLE João Fernandes COMPOSIÇÃO EM CATACRESE COMPOSITION IN CATACHRESIS Fernando Castro Flórez A CIDADE DA LUZ THE CITY OF LIGHT Leonardo Padura

CARLOS GARAICOA SER URBANO

SER URBANO BEING URBAN Rodrigo Villela

Catálogo produzido por ocasião da exposição Ser Urbano organizada pelo Espaço Cultural Porto Seguro, de 07 de fevereiro a 06 de maio de 2018, em São Paulo. / Publication produced for the exhibition Being Urban, organized by Espaço Cultural Porto Seguro, from February 7 to May 6 2018. In São Paulo, Brazil.

ESPAÇO CULTURAL PORTO SEGURO Alameda Barão de Piracicaba, 610 Campos Elísios - São Paulo (11) 3226-7361 espaçoculturalportoseguro.com.br Audioguia / Audioguide https://goo.gl/LxRC5L

ser urbano_capa FINAL LBjREV.indd 1

4/15/19 4:13 PM


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.