LIRISMO+CRÍTICA+ARTE=POESIA: Um século de Pauliceia desvairada

Page 1

(Um século de Pauliceia desvairada

)

SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO

Administração Regional no Estado de São Paulo

Presidente do Conselho Regional Abram Szajman

Diretor Regional Danilo Santos de Miranda

Conselho Editorial Ivan Giannini

Joel Naimayer Padula Luiz Deoclécio Massaro Galina Sérgio José Battistelli

Edições Sesc São Paulo Gerente Iã Paulo Ribeiro Gerente adjunta Isabel M. M. Alexandre

Coordenação editorial Clívia Ramiro, Cristianne Lameirinha, Francis Manzoni, Jefferson Alves de Lima

Produção editorial Thiago Lins

Coordenação gráfica Katia Verissimo

Produção gráfica Fabio Pinotti, Ricardo Kawazu

Coordenação de comunicação Bruna Zarnoviec Daniel

2

(Um século de Pauliceia desvairada

Org. Maria Augusta Fonseca Raul Antelo

)

© Edições Sesc São Paulo, 2022

© Maria Augusta Fonseca e Raul Antelo Todos os direitos reservados

Mário de Andrade: Pauliceia desvairada (1922)

Edição de apoio: Mário de Andrade, Poesias completas, vol. 1, edição de texto apurado, anotada e acrescida de documentos por Tatiana Longo Figueiredo e Telê Ancona Lopez, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2013. Curadoria texto e imagem Maria Augusta Fonseca Preparação Elba Elisa Revisão Isis De Vitta, José Ignacio Mendes Projeto gráfico e diagramação Homem de Melo & Troia Design Obra da capa O bailarino, de Ferrignac

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) L768 Lirismo+Crítica+Arte=Poesia: Um século de Pauliceia des vairada / Organização: Maria Augusta Fonseca; Raul Ante lo. — São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2022. — 436 p. il. ISBN 978-65-86111-92-7

1. Pauliceia desvairada. 2. Mário de Andrade. 3. Arte. 4. Poesia. 5. Crítica. 6. Lirismo. 7. Modernismo. 8. Literatura I. Título. II. Fonseca, Maria Augusta. III. Antelo, Raul. CDD 869.91

Ficha catalográfica elaborada por Maria Delcina Feitosa CRB/8-6187

Edições Sesc São Paulo

Rua Serra da Bocaina, 570 – 11º andar 03174-000 – São Paulo SP Brasil Tel.: 55 11 2607-9400 edicoes@sescsp.org.br sescsp.org.br/edicoes / edicoessescsp

4

Sumário

Apresentação ...... 7 Danilo Santos de Miranda

Introdução dos organizadores ...... 9

Bastidores

O gesto, a gênese: “Onde já se viu Cristo de trancinha!” ...... 14 Raul Antelo

Ilustração: Fernando Lindote d’après “Cabeça de Cristo” de Brecheret

“Um elogio explosivo: A propósito de ‘O meu poeta futurista’” ...... 32 Maria Augusta Fonseca Ilustração: Hilde Weber

Estudo sobre as capas ...... 40 Veronica Stigger

Ilustração: Capa atribuída a Guilherme de Almeida

Pauliceia desvairada, Mário de Andrade

Prefácio interessantíssimo ...... 58 Raul Antelo Ilustração: Regina Silveira

Inspiração ...... 93 Victor Knoll Ilustração: Carlos A. C. Lemos

O trovador ...... 103 Eduardo Sterzi Ilustração: Mario Cafiero

Os cortejos ...... 119 José Antonio Pasta Júnior Fotografia: Cristiano Mascaro

A escalada ...... 147 Celia Pedrosa Ilustração: Sergio Fingermann

Rua de São Bento ...... 163 Sérgio Alcides Fotografia: Lauro Escorel

O rebanho ...... 179 Ariovaldo Vidal Ilustração: Alberto Martins

Tietê ...... 193 Vera Chalmers Montagem fotográfica: Feres Lourenço Khoury

Paisagem no 1...... 209 Silviano Santiago Ilustração: Lasar Segall

Ode ao burguês ...... 227 Susana Scramim Ilustração: Antônio Paim

Tristura ...... 243 Roberto Vecchi Fotografia: João Farkas

Domingo ...... 253 Walter Garcia Ilustração: Anúncio automóvel Renault

O domador ...... 267 Eduardo Jorge de Oliveira Ilustração: Fernando Lindote

Anhangabaú ...... 281 Osvaldo Manuel Silvestre Ilustração: Evandro Carlos Jardim

A caçada ...... 295 Ettore Finazzi-Agrò Ilustração: Rafael Vogt Maia Rosa Noturno ...... 301 Mario Cámara Ilustração: Gilda Vogt Paisagem no 2 ...... 313 Telê Ancona Lopez Ilustração: Angela Leite

Tu ...... 323 Samuel Titan Jr. Ilustração: Rubens Matuck

Paisagem no 3 ...... 331 Davi Arrigucci Jr. Ilustração: Paulo Pasta

Colloque sentimental ...... 345 Manoel Ricardo de Lima Ilustração: Luiz Aquila

Religião ...... 363 Alexandre Nodari Ilustração: Alex Cerveny

Paisagem no 4 ...... 381 Maria Augusta Fonseca Ilustração: Arnaldo Pedroso d’Horta

As enfibraturas do Ipiranga ...... 399 José Miguel Wisnik Ilustração: José Resende

Sobre os autores e artistas ...... 427

Créditos das imagens ...... 434

Losangos móveis

Uma cidade alcunhada e desvairada, eis a personagem central do livro de poe mas de Mário de Andrade que completa um século de sua publicação pela Casa Mayença, no ano em que a Semana de Arte Moderna tomou de assalto o Theatro Municipal de São Paulo. Mais do que protagonista, a urbe é o motor das poesias desse lírico paulistano impressas na brochura de capa colorida em losangos, motivadas por sua devotada experiência citadina. Não vem ao caso indagar se a exaltação, a vertigem e o delírio advêm de Mário ou da Pauliceia — a quem ele se refere como “minha noiva”, no poema “Tristura”. Celibatário desposado por essa que, no início dos anos 1920, aspirava à condição de metrópole, foi com ela que o poeta deu curso ao desvario rigorosamente formalizado em palavras e versos, encontrando em suas paisagens, fenômenos climáticos, bairros, logradouros, veí culos e tipos humanos figuras quase míticas.

“São Paulo! comoção de minha vida”, assim ele começa o poema “Inspiração”, sugerindo que, além de incitar sua sensibilidade, a cidade rebatizada o move in tensa e constantemente. Tal arrebatamento produz nesse diligente cidadão literato um movimento duplo, interdependente: dos itinerários, corsos, giros e passos na sua “Londres das neblinas finas” — assim trasladada em “Paisagem nº 1” — rumo à composição metódica “destes poemas” originados, antes de mais nada, da “confiança pela arte livre e sincera”, conforme profere Mário para Mário, no solilóquio “A Mário de Andrade”, espécie de metadedicatória que abre a obra de 1922. A Pauliceia opera como força motriz de seu ethos poético, levando-o a des cobrir nos elementos e situações propiciados por ela os seus sentimentos mais subjetivos.

Esses enérgicos atrativos arrastam-no da rua para o seu gabinete de trabalho, da cidade para o seu coração — cujo abarrotamento faz a máquina escrever —, abarcando-o nas coreografias das costureirinhas, dos homens fracos, dos burgue ses-níquel, dos barbeiros espanhóis, dos mulatos cor de ouro e dos filhos de imi grante. Transpassam-no as carroças, os automóveis, os caminhões, os bondes, os trens e até os aeroplanos, ao cruzarem a rua São Bento, o Anhangabaú, a avenida São João e o largo do Arouche. Indo e vindo, por aqui e por ali, esse flâneur dos trópicos passa, de uma página a outra, do Centro, Higienópolis e Santa Cecília para o Brás, Cambuci e Ipiranga. Tudo isso em meio a finas neblinas, ventos cortantes, garoas monótonas, raios de sol riscando a chuva, fogaréus de aurora, nuvens de mariposas e arco-íris de perfumes. O cenário desse dinâmico teatro traz escadarias

7

imensas, casas plúmbeas, fábricas de tecido, chaminés de céu azul, clubes comer ciais e padarias espirituais.

Arlequim, com sua divertida e irreprimível astúcia, empresta o tom dessa imagética versificação, rica em lances linguísticos e surpreendente em seus instantâneos. Sensível às manobras poéticas e expressivas da lavra mariodean dradeana, a proposição editorial de Lirismo+Crítica+Arte=Poesia experimenta a conjugação de matrizes e formatos, repondo em certo sentido o mosaico multicor dos losangos que estampam a capa original de Pauliceia desvairada . Daí a justa posição dos vinte e dois poemas de Mário de Andrade a vinte e dois ensaios que os interpretam e analisam e, ainda, a combinação destes com vinte e duas ima gens artísticas que os ilustram. Nessas profusões de 22, este livro organizado por Maria Augusta Fonseca e Raul Antelo confere um prisma singular ao aporte de Mário de Andrade para a poesia paulista e nacional, reunindo contribuições de agentes de distintas gerações e áreas para refletir uma obra paradigmática do autor. Nisso desponta uma analogia com o trabalho realizado pelo Sesc, em sua permanente mobilização de repertórios e nomes cruciais para as culturas brasileiras, no plural.

8
Danilo Santos de Miranda, Diretor do Sesc São Paulo

Introdução

Maria Augusta Fonseca

Para marcar os 100 anos de Pauliceia desvairada apresenta-se aqui uma reunião inédita de ensaios sobre a referida obra, para a qual concorre uma grande varie dade de análises interpretativas, paleta artística e olhar fotográfico. Com um es tudo do prefácio de Mário de Andrade, na abertura, a presente obra — Lirismo+ Crítica+Arte=Poesia — traz leituras alentadas dos 22 poemas de Pauliceia desvai rada de que se ocupam 22 ensaístas (do Brasil e do exterior), cada qual respon dendo por um único poema. Assim, acompanhando a ordem original de distri buição, temos no elenco dos escritos Raul Antelo (“Prefácio interessantíssimo”), Victor Knoll (“Inspiração”), Eduardo Sterzi (“O trovador”), José Antonio Pasta Júnior (“Os cortejos”), Celia Pedrosa (“A escalada”), Sérgio Alcides (“Rua de São Bento”), Ariovaldo Vidal (“O rebanho”), Vera Chalmers (“Tietê”), Silviano San tiago (“Paisagem nº 1”), Susana Scramim (“Ode ao burguês”), Roberto Vecchi (“Tristura”), Walter Garcia (“Domingo”), Eduardo Jorge de Oliveira (“O domador”), Oswaldo Manuel Silvestre (“Anhangabaú”), Ettore Finazzi-Agrò (“A caçada”), Mario Cámara (“Noturno”), Telê Ancona Lopez (“Paisagem nº 2”), Samuel Titan Jr. (“Tu”), Davi Arrigucci Jr. (“Paisagem nº 3”), Manoel Ricardo de Lima (“Colloque sentimental”), Alexandre Nodari (“Religião”), Maria Augusta Fonseca (“Paisa gem nº 4”), José Miguel Wisnik (“As enfibraturas do Ipiranga”).

Ainda, nesta edição especial, no melhor espírito do modernista Mário de An drade, inclui-se um importante conjunto de ilustrações que acompanha e dialoga com os poemas, com a participação de artistas plásticos, gravuristas, fotógrafos, a saber, aqui citados pela ordem de distribuição dos textos introdutórios e dos poe mas: Fernando Lindote (d’après Victor Brecheret), Hilde Weber, Regina Silveira, Carlos A. C. Lemos, Mario Cafiero, Cristiano Mascaro, Sergio Fingermann, Lauro Escorel, Alberto Martins, Feres Lourenço Khoury, Lasar Segall, Antônio Paim, João Farkas, Fernando Lindote, Evandro Carlos Jardim, Rafael Vogt Maia Rosa, Gilda Vogt, Angela Leite, Rubens Matuck, Paulo Pasta, Luiz Aquila, Alex Cerveny, Arnaldo Pedroso d’Horta e José Resende.

Na antessala da obra encontram-se duas leituras representativas da história dos poemas e da própria obra, Pauliceia desvairada, com discussões em torno do artigo “O meu poeta futurista” (1921), de Oswald de Andrade, e sobre a obra Cabeça de Cristo (1919), do escultor Victor Brecheret. Esta última, mobilizadora dos poemas. Ambos, amigos de Mário de Andrade nas décadas de 1910 e 1920. Cada qual a seu modo provocou muita polêmica, discórdia e animação, potenciando a efervescente

9

Semana de 1922 que se anunciava. Os artigos em questão são assinados, respecti vamente, por Maria Augusta Fonseca, “Um elogio explosivo”, e por Raul Antelo, “O gesto, a gênese: ‘Onde já se viu Cristo de trancinha!’”. E mais. Acentuando diálogos entre literatura e artes visuais, ponto de partida deste livro, um ensaio pre liminar aborda as diferentes capas produzidas para Pauliceia desvairada, como explica o estudo de Veronica Stigger. Acompanha ainda esta edição singular uma apresentação da obra assinada por Danilo Miranda, diretor do SESC-SP, a quem manifestamos nossos agradecimentos, extensivos a toda equipe de trabalho e aos nossos colaboradores.

Guillaume Budé definiu a ars inveniendi do filólogo como uma caça, entre dolus e hallucinatio, dos ambivalentes traços disseminados por toda parte, no texto e no resto. Mas não nos encontramos, neste seu pioneiro tratado, De Philologia (1532), diante de uma inventio dialética, da qual parte, já nos primórdios da disciplina de leitura, a metáfora da caça (venari); trata-se antes, pelo contrário, do resgate de uma certa materialidade do texto que, a despeito do caráter dispersivo da própria disci plina interpretativa, traça um saber circular e absoluto em torno da experiência da leitura. Assim, o pioneiro Budé nos mostra, por meio da caça à caça, a caça à lingua gem, uma tentativa de método, que se tornaria paradigma da ars inveniendi1 .

Mas se De Philologia aparecia como um convivium, um diálogo fraterno entre o filólogo Budé e o rei Francisco I da França, à época de Rabelais, no caso de Mário de Andrade, a questão é toda outra. Em Há uma gota de sangue em cada poema (1917), mesmo ingenuamente, Andrade considera Guilherme II “o pior dos homens”, e reconhece, na ambição alemã, as causas da guerra de 1914. Mal poderia pensar-se a si próprio como conselheiro. Tanto o poema “Guilherme” quanto o que lhe segue, “Devastação”, mostram o governante como o pior dos seres. E, portanto, o filólogo (o leitor contemporâneo) como alguém para quem todo cuidado será pouco nesse campo minado.

Cria-se o livro. Os homens pensam. Pensam e agitam-se em tumulto. Por sobre os seus trabalhos paira a benção: e todos os trabalhos tomam vulto; O saber suspicaz penetra o alto segredo da vida. É tudo um labutar de ciência. O homem afoita-se, descobre, perde o medo…

— E brilha, altiva e forte, a inteligência.

E ele atinge afinal o cume do Jungfrau. Olha em redor e vê, na campina tamanha, uma herança que é sua e que se perde além:

10
1 Guillaume Budé, De Philologia, ed. M. M. de la Garanderie, Paris: Belles Lettres, 2001, p. 199.

e tem um pensamento mau. Ele atingiu o cume da montanha!

Só ele é grande, mais ninguém!

Cogita, e se entremeia em labirintos de sofismas agudos; e, infeliz!

diz tudo o que não pensa ou que não sente, mas o que sente ou pensa nunca diz.

O livro que segue, esta Pauliceia desvairada, que diz o que o poeta sente ou pensa, mas nunca diz, encarrega-se de imaginar o poeta itinerante como alguém que caça indícios na metrópole que ainda não é.

Só mais tarde, em Macunaíma, leremos, no capítulo X, “Pauí-Pódole”, que um mulato da maior mulataria trepou numa estátua e principiou um discurso entusiasmado, explicando pra Macunaíma o que era o dia do Cruzeiro. E embora as estrelas estivessem piscapiscando nessa terra sem mal, de muita saúde e pouca saúva, o firmamento apontava além. Desconfiado, Macunaíma, muito agradecido ao orador, só tardiamente reparou que o tal de Cruzeiro era, na verdade, o Pai de Mutum, morando no vasto campo do céu. E, mais adiante, no capítulo XVI, “Uraricoera”, lemos que o mimético Macunaíma pegou na violinha, fez talequal reparara e veio uma imundície de caça, viados cotias tamanduás capi varas tatus aperemas pacas graxains lontras muçuãs catetos monos tejus queixa das antas, a anta sabatira, onças, a onça pinima a papa-viado a jaguatirica, suçua rana canguçu pixuna, isso era uma imundície de caças! O herói teve medo daquela bicharada tamanha e saiu numa carreira mãe pinchando a violinha longe. A gaiola enfiada no braço dele ia batendo nos paus e o galo com a galinha faziam um caca rejo de ensurdecer. O herói imaginava que era a bicharia e disparava mais.

A violinha caiu no dente de um queixada que tinha umbigo nas costas e se par tiu em dez vezes dez pedaços que os bichos engoliram pensando que era gerimum. Os pedaços viraram nas bexigas das caças.

O herói estourou tapera a dentro feito um desesperado botando os bofes pela boca. Nem bem pôde respirar contou o sucedido. Jiguê teve ódio e falou:

— Agora que não caço nem pesco mais!

O conjunto de caçadores desta edição apanhou caça igual ou maior que aquela de Macunaíma, provando porém, a Budé e a nós todos, que um texto é sempre interminável.

Isso posto, cabe ainda registrar que Lirismo+Crítica+Arte=Poesia (Um século de Pauliceia desvairada) rende homenagens a três grandes caçadores-estudiosos da obra de Mário de Andrade, dedicando esta edição à memória de Gilda de Mello e Souza, João Luiz Lafetá e Victor Knoll.

São Paulo, fevereiro de 2022

11
12
Fernando Lindote

Bastidores

O gesto, a gênese: “Onde já se viu Cristo de trancinha!”

Mármol del siglo XX desvaído A quien un hombre púsole el latido Antiguo y fuerte de las grandes pruebas… Alfonsina Storni

Em fevereiro de 1920, dois anos antes da Semana, portanto, Monteiro Lobato, editor da Revista do Brasil, reproduz em tons de sépia, nas páginas da publicação, dois trabalhos de Brecheret, Eva e O despertar e, sem assinatura, inclui o seguinte comentário na rubrica “Resenha do Mês”:

Encontrará o leitor nesta revista duas reproduções de esculturas que merecem uma parada. Paremos juntos, e juntos admiraremos tão soberba manifestação da grande arte. Admiremos sem reserva, que isso é arte de verdade, da boa, da gran de, da que põe o espectador sério e, se é sensível, comovido. “Despertar” e “Eva” sugerem-nos de chofre grandes obras de grandes escultores mundiais. Porque as características essenciais destas — a vida, o movimento, a elegância da linha, a força da concepção e, sobretudo, esse misterioso quid que é a alma perturbadora das verdadeiras obras d’arte — são também as características que individualizam os trabalhos de Brecheret. Victor Brecheret — é este o nome do novo escultor, pau lista de nascimento, extremamente novo ainda, 22 anos apenas — Brecheret como escultor é um produto do seu próprio esforço.

Fez-se por si, sem a calentura cômoda do hálito oficial — mau hálito, muitas ve zes, conforme é a boca à qual inconsciência do Estado empresta a força divina de formar artistas. Honesto, fisicamente sólido, moralmente emperrado na convicção de que o artista moderno não pode ser um mero “ecletizador” de formas revelhas e há-de criar arrancando-se à tirania do autoritarismo clássico, Brecheret apresen ta-se-nos como a mais séria manifestação de gênio escultural surgida entre nós. Por mal seu, já que é assim, porém, uma coisa só tem a fazer: as malas, e raspar-se. S. Paulo — já o proclamou Martim Francisco — é um eito. O monumento da Inde pendência breve dirá se é assim ou não.1

14
1 Redação (Monteiro Lobato), “Victor Brecheret”, Revista do Brasil, São Paulo, fev. 1920, nº 50, p. 169.

Ora, quatro meses depois, em junho de 1920, no segundo número da revista Papel e Tinta, lemos, em sintonia com o anterior, o artigo de Ivan, “Victor Brecheret”, que Mário da Silva Brito identifica como sendo de Oswald de Andrade, mas Telê Ancona Lopez opina que é de Mário de Andrade (levando em consideração o estilo, a epígrafe recolhida em Frei Luís de Sousa, o conhecimento de história da arte, o nome Michelangelo abrasileirado para Miguel Anjo e, principalmente, a religiosidade que Mário explorara, concomitantemente, em seu ensaio sobre arquitetura colonial para a Revista do Brasil). Mas Ivan pode muito bem ser tam bém uma referência ao mestre de Brecheret, o escultor croata Ivan Mestrovic, um dos mais importantes escultores religiosos contemporâneos, radicado nos Estados Unidos a partir do após-guerra, e que o próprio Mário cita, em 1921, em artigo para a Ilustração Brasileira, junto a outros artistas, como Bourdelle, Lehmbruck e Carl Millès, pares todos de Brecheret. Mas quem era Mestrovic? O mestre de Brecheret em Roma formara-se, em Viena, com dois escultores, Otto Koenig e Edmund Helimer, e um arquiteto, Otto Wagner, um dos fundadores da Sezession2. Foi na academia vienense, aliás, que ele conheceu Rodin, em 1902, quem ficou fortemente impressionado por sua obra. Em 1906, Mestrovic compõe talvez sua obra mais ambiciosa, o grupo escul tórico em homenagem à batalha de Kosovo (1389), que marca, apesar da resis tência eslava, o início da secular dominação turca sobre a Sérvia. Após a guerra, o escultor viaja a Londres, onde Mestrovic desenvolve um intenso trabalho em madeira, com cenas da vida de Cristo, de forte estilização e inspiração góticas, em busca de expressionismo: assim Madonna e bambino (1917) relembra, na fi gura esbelta, as composições de Modigliani, bem como Milos Obilic. Cabeça do herói (1909) impressiona pelo dinamismo ascendente nos cabelos. São as figuras que tocam Alfonsina Storni e Alfredo Bigatti. As cabeças de Michelangelo (1925) e de seu admirado Goethe (1930), singulares em sua apresentação de perfil, dia logam com seu Autorretrato, em mármore e bronze (1911), em que se destaca o nariz aquilino e o intenso olhar cabisbaixo do artista, traços que se repetiriam em muitas outras esculturas, como a posterior cópia (1924) desse mesmo autorretrato, em gesso (Snite Museum of Art, Notre Dame, Indiana). Digamos, em linhas gerais, que Mestrovic, lacerado entre uma pulsão nacionalista e uma vocação

2 Daisy Peccinini informa que Mestrovic, em Paris, dedicou-se a realizar seu projeto político, simbólico e místico de vastas proporções, completando, ao todo, cerca de cinquenta esculturas de colossais dimensões. Deslo cando-se para Roma, recebeu, com esse impactante conjunto de obras, o prêmio de escultura na Exposição Internacional de 1911. Nesse momento, Brecheret descobre, com entusiasmo, a obra do artista croata, de tremenda força plástica e simbólica, marcando-lhe profundamente a sensibilidade. Dele absorveu não só a plástica vigorosa, monumental, tensa pela contorção dos volumes, mas também se abriu ao imaginário épico patriótico que, anos mais tarde, permitiu-lhe responder, plasticamente, aos projetos modernistas de plasmar um monumento para a saga dos bandeirantes. Daisy Peccinini, Brecheret: a linguagem das formas, São Paulo: Instituto Victor Brecheret, 2004; idem, “Brecheret e a Semana”, Revista USP, São Paulo, jun.-ago. 2012, nº 94, pp. 39-48. Outro tanto se poderia afirmar da arte de inspiração indígena de Brecheret, que tam bém encontra suporte em trabalhos como Peles vermelhas, de Mestrovic.

15

religiosa, notadamente, após a Grande Guerra, soube incorporar, a seu sentido sintético e arquitetônico, uma concepção arcaizante e um rigor helênico, que se adequaram, em última análise, a certas simplificações cubistas de que a escultura de Brecheret aliás muito se enriqueceu3. A leitura de Ivan, na Papel e Tinta, detecta, por sinal, esses valores:

A Cabeça de Cristo, uma das suas criações magistrais, é de uma concepção ori ginalíssima, belo na sua extravagância, denunciando um escultor com uma visão toda sua da arte. Naquela imobilidade pensativa, naqueles lábios sobrenaturais, no ríctus da boca, nas tranças arcaicas, o artista conseguiu prender, de modo ge nial, as tragédias, as esperanças, o sacrifício divino — todo um calvário de imola ções formidandas. O Cristo de Brecheret é Deus!4

Mas detenhamo-nos na assinatura. Mário teria adotado nela o nome do mestre do artista que, por sua vez, torna ele, Mário, poeta, numa clara disputa bí blica, Pai/ Filho, assunto aliás da escultura. Não obstante, ecoando as consolidadas convicções dos concílios de Niceia (325), Éfeso (431) e Calcedônia (451), no sentido de que Cristo é Deus, Mário de Andrade, sintomaticamente, revela-nos também, mesmo travestido de Ivan, nome de balé russo, sua implicação na causa, uma vez que ele era o proprietário da peça elogiada na Papel e Tinta, como consta na céle bre conferência de 1942, “O movimento modernista”. Em palavras de Telê: Nesse lúcido balanço das conquistas e dos percalços da renovação efetuada, ava lia a arte de Brecheret como o “gatilho” que fizera “Pauliceia desvairada estourar”. O depoimento restitui (ou encena) uma história: tendo o poeta, com suas economias e empréstimo de dinheiro, conseguido que Brecheret passasse para o bronze o gesso da Cabeça de Cristo que cobiçava e, modernista eufórico, a desembrulhado em casa, esperando os aplausos da família, frustrara-se com a recepção, com a intransigência de uma tia. Indignado, pudera, finalmente, pôr no papel os poemas modernos que tencionava compor sobre sua cidade, e achar o título Pauliceia desvairada. 5

3 O adido cultural da França no Brasil dos anos 1940, Raymond Warnier, amigo de Paulo Duarte e outros modernistas, ocupou-se de Mestrovic em sua última colaboração para a revista Colóquio. Cf. Raymond War nier, “Le sculpteur Ivan Mestrovic”, Colóquio, Lisboa: 1970, nº 61, pp. 34-9; José Frances, “Un gran escultor moderno. ¿Viene Mestrovic a España?”, La Esfera, Madrid, 28 set. 1918, vol. 5, p. 248; Roberto Cugini, “Ivan Mestrovic: algunas consideraciones sobre las formas del arte actual”, Nosotros, Buenos Aires, jul. 1928, a. 22, vol. 61, nº 230, pp. 53-66; Francisco Pompey, “La escultura de Iván Mestrovic”, Revista Lecturas, out. 1933, a. XII, nº 149, Madrid; Francisco José Portela Sandoval, “Ivan Mestrovic”, Anales de Historia del Arte, Madrid: Universidad Complutense, dez. 1994, nº 4, pp. 481-90; Ana Ara Fernández; Moisés Bazán de Huerta, “Fortu na crítica e influencias del escultor Iván Mestrovic en España”, De Arte: Revista de Historia del Arte, Universi dad de León, 2010, nº 9, pp. 183-200.

4 Ivan, “Victor Brecheret”, Papel e Tinta, São Paulo-Rio de Janeiro, jun. 1920, a. 1, nº 2, apud Marta Rosetti Batista et al., Brasil: primeiro tempo modernista 1917-1929, São Paulo: Instituto de Estudos Brasileiros, 1972, p. 52; Mário de Andrade, “Victor Brecheret”, Jornal dos Debates, São Paulo, 18 abr. 1921.

5 Telê Porto Ancona Lopez, “Mário de Andrade e Brecheret nos primórdios do modernismo”, Revista USP, São Paulo, jun.-ago 2012, nº 94, p. 34; idem, “Mário de Andrade, cronista de São Paulo nos primórdios do moder nismo”, Remate de males, Campinas-SP, jan.-dez. 2013, vol. 33, nº 1-2, pp. 51-89.

16

A Cabeça de Cristo (e, em última análise, os próprios poemas) plasma, por tanto, um longo debate filosófico concernente à encarnação, isto é, o caráter não equivalente da tensão helênica soma [σῶμα]/ sarx [σάϱξ], com relação aos conceitos latinos de corpus/ caro. O Evangelho segundo São João (3:6), por exemplo, estipula que entre sarx e pneuma não há equivalência, pois se referem a dois tipos distintos de criação: o que nasce da carne é carne, mas o que nasce do Es pírito é espírito. Soma, por sua vez, contém, em exclusivo, a possibilidade de autotransformação gloriosa, isto é, soma tem um caráter individual e particula rizante, ao passo que sarx é, por assim dizer, infraindividual. Em Platão e Aristó teles, na tensão soma/ psychê [ψυχή], ou corpo animado/ intelecto, é nous [νοῦς], o intelecto ou espírito, o que prevalece, preterindo assim a dimensão somática, tradição que será hegemônica até os modernos. Platão descreve soma, no Fédon (83d) e no Górgias (493a-b), como uma prisão ou túmulo, e o deslocamento pa ronomásico soma = sema [σῆμα] coloca o sinal no campo do desejo, entendendo, por sua vez, a psychê como uma forma de exílio. Em suma, o corpo (soma, corpus) deve ser ontologicamente insubstancial, sempre mantido à distância, como uma questão meramente passiva. Ele é, ambivalentemente, o objeto contingente de nossa precariedade e, ao mesmo tempo, a figura de um universo incorruptível. A tradição hebraica, pelo contrário, desconhece essa dimensão ontoteológica do corpo e devolve a ele sua esquiva dimensão libidinal, visível no peiot que a Cabeça de Cristo compartilha com a Sóror Dolorosa de Guilherme de Almeida, também de Brecheret. É isso que a vó Nhanhã recusa no busto em questão6, aquilo mes mo que Marie-José Mondzain descreve exemplarmente: a questão da imagem não depende dos objetos em si, mas do caráter do olhar que sobre eles se pousa7. Com efeito, a figura do Cristo evoca a paixão e a laceração, sentimentos que o aspecto paranoico de toda vanguarda identifica como próprios. Não era, con tudo, algo exclusivo do modernismo paulista. Assim, para nos atermos à área andina, onde a religiosidade popular é igualmente marcante, relembremos que a Novecientos: revista mensual de arte, literatura, historia y ciencias sociales, ins pirada pelo noucentismo de Eugeni d’Ors, tão próximo de Mestrovic8, publica, em seu segundo número (Lima, maio 1924, p. 20), a imagem de uma obra-prima da Renascença alemã, o Cristo morto, de Holbein (1521), artista que trabalhou próximo de Erasmo e cuja representação da divindade, segundo Julia Kristeva, é a de um homem realmente morto, abandonado pelo pai, sem promessa de res surreição, que coloca o espectador na posição de voyeur hesitante de sua própria

6 Em sua História eclesiástica (1,2,1), Eusébio de Cesareia diz que dúplice é a condição de Cristo. Quando con templamos a cabeça (képhalé), ele é Deus. Mas quando vemos seus pés, assistimos ao milagre da salvação em alguém, como nós, sujeito a suas paixões. Abre-se aí a dimensão “dedão-do-pé”, de Bataille a Barthes, ou seja, a dimensão acefálica do desejo.

7 Marie José Mondzain, Le commerce des regards, Paris: Éditions du Seuil, 2003, p. 91.

8 Eugeni d’Ors, “Ivan Mestrovic, el gran escultor croata”, Informaciones, Barcelona, 2 jun. 1944.

17

fé, perante um corpo de páthos recente, que exibe uma morte pungente, embora isenta de intimismo, graças à sua própria banalidade, que remontaria, no en tanto, à iconografia cristã vinda do Oriente9. Ainda em Lima, Amauta, a revista de José Carlos Mariátegui, publica (Lima, abr. 1929, nº 22, pp. 54-6) “El Cristo de George Grosz”, artigo de Armando Bazán, historiador e biógrafo de Mariátegui, que, conhecendo sua admiração (compartilhada, aliás, com Mário de Andrade) por Grosz, destaca o fato do Cristo aparecer, no traço do artista alemão, com uma máscara antigás, botas militares e a cruz em uma de suas mãos, o que prefigura a resposta de Grosz ao tribunal que o julgou: pensar no Cristo é pensar na guerra. Cristo vem à trincheira e prega o amor. Desatendido, ganha, em compensação, máscara e botas. Há uma gota de sangue em cada lance.

Mas donde vem a inspiração de Brecheret (certamente mediada por Mestrovic) para sua cabeça? Trata-se de assunto controverso e para o qual é oportuno atentarmos para o desenho, também de Brecheret, que ilustra, em janeiro-feve reiro de 1921, o sexto número da Papel e Tinta: “O sacrifício do herói”, que po demos ler como pervivência da figura de Milos Obilic, esculpida por Mestrovic. Nele se manifesta “o sacrifício divino — todo um calvário de imolações formi dandas”, no dizer de Ivan. Ora, a saga da agonia divina é absolutamente irrepre sentável. Basta lembrar o relato de Vasari de que Leonardo não conseguia con cluir a Última ceia por julgar a representação de Cristo messianismo sem religio, uma profanação.

O debate sobre uma imagem sem imagem, isto é, um vazio acéfalo, uma profanação, remonta ao cristianismo primitivo que, como sabemos, não admitia imagens, embora, com o correr dos séculos, vão se esboçando duas vertentes no tocante à representação: a dimensão prática alerta para o risco da idolatria, ao passo que a corrente teórica diz ser ela impossível porque Deus é absolutamen te transcendente e nada pode representar o mysterium tremendum et fascinans. Com a gradativa helenização do cristianismo, surgem, contudo, dois tipos ico nográficos dominantes, o pastor e o filósofo. O primeiro podia carregar, em seus ombros, um novilho (moscóforo) ou um cordeiro (crióforo). Nasce ali a tradição do Bom Pastor. Já a representação do Cristo como pensador coincide aliás com a tradição de plasmar em imagem o fundador de uma corrente filosófica. Baseados no salmo 44.3, que descreve Cristo como “o mais belo dos ho mens”, João Crisóstomo, Jerônimo e João Damasceno, entre outros, defenderam o semblante majestoso de Cristo, seu porte elegante e seus traços de inequívoca beleza viril. Mais adiante, a controvérsia em torno da imagem por contato que te ria obtido a Verônica, ou Berenice, confirma, ao longo da história, a dominância, particularmente a partir do século X, do modelo sírio-palestino, cristalizado no

9 Julia Kristeva, “Le Christ mort de Holbein”, em: Soleil noir: Dépression et mélancolie, Paris: Gallimard, 1987, pp. 117-50.

18

Pantocrátor ou Deus Todo-Poderoso. Entretanto, a partir do século XV, ou seja, no outono da Idade Média, assistimos a um irrefreável trânsito do mundo me dieval para a incipiente modernidade em que, não raro, a própria imitatio Christi se aproxima, até a fusão, da linguagem autobiográfica dos artistas modernos. É o caso de Dürer, quem, em várias ocasiões, notadamente no autorretrato do Pra do, imita a iconografia medieval de vera icona de Cristo, tradição que perdurará até o século XIX, com Alexander A. Ivanov, quem, em O aparecimento de Cristo perante o povo (1857), representa o Cristo com as feições de seu amigo, o escritor Nikolai Gogol. A essa tradição, por sinal, pertence Greco, quem conjuga, em sua representação do divino, a espiritualidade do ícone bizantino com a luminosi dade da pintura vêneta e a maniera miguelangelesca, e mesmo Velázquez, cujo Cristo (1632) para o convento de São Plácido, feito por encomenda de Felipe IV, nos apresenta uma figura cabisbaixa, como a de Brecheret. Particularmente na atenção concedida ao cabelo trançado de Cristo, deslocada pervivência do cor dão de seda sujeitando a capa parda sobre o ombro de Dürer, ou seja, as “tranças arcaicas” do Cristo, no dizer de Ivan, não podemos apagar, porém, a influência pré-rafaelita de Dante Gabriel Rossetti e, em especial, de William Holman Hunt, nem mesmo o expressionismo dramático e visionário de Lovis Corinth, artista da Sezession vienense, movimento de que Mestrovic participou. Mas, como aponta Jean Starobinski10, as representações do divino têm uma inflexão irreversível a partir do Pulcinella de Giandomenico Tiepolo, que por sinal não é uma personagem, mas uma coleção de personagens11: ele marca a substi tuição de deus por bufões. Com Baudelaire, o poeta-testemunha, numa relação triangular, como a estudada por René Girard12, capta a imagem de uma agonia da qual ele mesmo se torna exemplo simbólico e profético. Daí em diante, ascensão e queda, glória e decadência, dinamismo e ataxia tensionam a figura do bufão, como atestam os palhaços trágicos de Georges Rouault, largamente emparen tados com os saltimbancos de Baudelaire. Os farrapos do palhaço radicalizam, nesse sentido, o contraste, ao simbolizarem a desgraça de uma encarnação aber rante. A luta da alma contra os tormentos da encarnação encontra, enfim, sua expressão suprema no rosto de Cristo13. O holocausto do palhaço trágico oferece

10 Jean Starobinski, Portrait de l’artiste en saltimbanque, Genebra: Skira, 1970.

11 Benedetto Croce, Pulcinella o il personaggio del napoletano in commedia, Roma: Loescher & Co., 1899, p. 2. O corpo de Polichinelo, acrescenta Agamben, sua máscara, exprime a mais absoluta falta de vontade e de caráter, o fato de ser sempre colhido em flagrante, intransigente e inimputável abulia. Cf. Pulcinella ovvero Divertimento per li ragazzi, Roma: Nottetempo, 2015, p. 120. Relembremos que, no “Poema abúlico”, Mário pensa-se apenas como um entrelugar: “Sinto-me entre mim e a terra exterior. / TERRA SUBCONSCIENTE DE NINGUÉM” (Klaxon, São Paulo, dez 1922-jan. 1923, nº 8-9, pp. 13-5).

12 René Girard, Mentira romântica e verdade romanesca, trad. Daly Oliveira, Lisboa: Universidade de Lisboa, 2019.

13 Analisando, no inverno de 1928, a exposição de Ivan Mestrovic em “Amigos del Arte” de Buenos Aires (que por mediação de Alfredo Guttero se exibiria também, em 1929, em Montevidéu), o pintor Roberto Cugini (1898-1953), crítico dos jornais El mundo e Crítica, bem como das revistas Proa e Inicial, observou que os

19

então uma réplica inocente, porém paródica, da Paixão. O Cristo expõe a face pálida do clown, ao mesmo tempo em que o palhaço recebe a aura da santidade. Essa dimensão desvairada, anticomercial, é a que, finalmente, Mário aponta no herdeiro de Baudelaire e Rouault, Chaplin:

Carlito compôs uma cara decididamente caricatural e apesar disso bonita como arte. O que há de mais admirável na criação da cara de Carlito é que todo efeito dela é produzido diretamente pela máquina fotográfica. Carlito conseguiu lhe dar uma qualidade anticinegráfica, a que faltam enormemente as sombras e principalmente os planos. E é por isso em principal que a cara dele é cômica em si, contrastando violentamente com os outros rostos que aparecem no écran, e que a gente percebe como rostos da vida real. [...]

Tem um elemento exclusivamente artístico nela, a imobilidade. Mas esse elemento, que não se pode contestar que seja do domínio do cômico, além de prejudicar bastante a expressividade das personagens encarnadas por Buster Keaton (no que ele se mostra muito inferior a Haiacava, que foi esplendidamente expressivo dentro da imobilidade facial...) além de prejudicar a expressividade, é um elemento exterior, ajuntado. Não faz parte da estrutura da cara, não vem da carcaça óssea, não vem da carne, da epiderme. E não vem, muito menos, da máquina fotográfica. Não é um fenômeno plástico. É um elemento de ordem psicológica, ajuntado à estrutura da cara, para lhe dar interesse. Dá interesse, produz o cômico. Mas é sempre uma superfetação.14

É o que o próprio Mário de Andrade confessa, numa crônica de 1924:

Quero contar. Foi nesse delírio de profunda raiva que Pauliceia desvairada se es creveu, no final de 1920. Pauliceia manifesta um estado de espírito eminentemente transitório: cólera cega que se vinga, revolta que não se esconde, confiança infantil no senso comum dos homens. Esses sentimentos duram pouco. A cólera esfria. A revolta perde sua razão de ser. A confiança desilude-se num segundo. Comigo du raram pouco mais que um defluxo. Passaram. Deveria corrigir o livro e apagar-lhe esses aspectos? Não. Os poemas foram muito corrigidos. Muita coisa deles se tirou. Alguma se ajuntou [,] os exageros, tudo quanto era representativo do estado de alma, e não desfalecimentos naturais em toda criação artística, aí se preservou.15

Sabemos que a parte espiritual, não só de nossa subjetividade como também de nossa mente ou intelecto, foi conhecida pelos gregos como thumós, isto é, aquilo que aparece como algo vaporoso, uma nuvem, um hálito. Richard Broxton

heróis de Mestrovic não configuram deuses ao modo grego: são muito humanos, sensíveis a todos os erros comuns. Roberto Cugini, “Ivan Mestrovic”, op. cit., p. 62.

14 Mário de Andrade, “Caras”, Espírito Novo, Rio de Janeiro, jan. 1934, a. 1, nº 1; reproduzido em: Mário de Andrade, No cinema, org. Paulo José da Silva Cunha, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2010. É bom relembrar que Andrade lera o ensaio “Charlot”, de Élie Faure, na revista L’Esprit Nouveau (mar. 1921, nº 6) que definira, taxativamente, “Charlot est un conceptualiste”.

15 Mário de Andrade, “Crônicas de Malazarte VII”, América Brasileira, Rio de Janeiro, abr. 1924, a. 3, nº 28, p. 114.

20

Onians associa thumós com o verbo thumiao [θυμιάω], fumar. Já o Dictionnaire étymologique de la langue grecque, de Pierre Chantraine, menciona um verbo, thuo [θύω], com u longo, que significa correr desabaladamente, partir na dianteira, como uma rajada de vento. Ele se diferencia de seu homônimo com o breve, thuo [θύω], sacrificar. Seja como for, o entusiasmo heroico, um alento, é sempre contido na phrenés [φϱενές] e no prapides [πϱαπίδες], que designam o diafragma ou pericárdio16. Mas é bom sublinhar en passant que thumós difere de psyché, que também equiva le a sopro. Para os latinos, a seguir, o espírito encontrava-se invariavelmente próxi mo à noção de sopro, dada a relação entre spiritus e o verbo spiro (-are), traduzível como expirar, assoprar. O cristianismo fez dessa relação uma necessidade consti tutiva do método de interpretação alegórica: sem alegoria, não haveria Deus, uma vez que seria impossível afirmar a existência de uma realidade espiritual, avessa aos sentidos e carente, sempre, portanto, da interpretação de um logos absoluto17. Inserida nesta lógica, a gênese de Pauliceia desvairada atende a um movimento de fluidos, um estado de espírito transitório, um defluxo. É essa a sua paisagem18, a de uma cidade como palco feérico para os rodopios de um Cristo de trancinha:

São Paulo é um palco de bailados russos. Sarabandam a tísica, a ambição, as invejas, os crimes e também as apoteoses da ilusão... Mas o Nijinsky sou eu! E vem a Morte, minha Karsavina! Quá, quá, quá! Vamos dançar o fox-trot da desesperança, a rir, a rir dos nossos desiguais!

A cidade moderna, maniacamente negada pela dança desesperançada, é um espaço heteróclito situado, nietzschianamente, para além do bem e do mal.

16 Richard Broxton Onians, The

17 “Este logos absoluto era, na teologia medieval, uma subjetividade criadora infinita: a face inteligível do signo permanece voltada para o lado do verbo e da face de Deus. É claro que não se trata de ‘rejeitar’ estas noções: elas são necessárias e, pelo menos hoje, para nós, nada mais é pensável sem elas. Trata-se inicialmente de por em evidência a solidariedade sistemática e histórica de conceitos e gestos e pensamentos que, frequen temente se acredita poder separar inocentemente. O signo e a divindade têm o mesmo local e a mesma data de nascimento. A época do signo é essencialmente teológica. Ela não terminará talvez nunca. Contudo, sua clausura está desenhada”. Jacques Derrida, Gramatologia, trad. Miriam Schnaiderman e Renato Janine Ribeiro, São Paulo: Perspectiva, 1973, p. 16.

18 “Nem humano nem animal, aquele que contempla uma paisagem é ele próprio paisagem. Não quer compreen der, mas olhar somente. Se o mundo é inoperosidade do ambiente animal, a paisagem é inoperosidade da inoperosidade: é ser desativado. Por isso Agamben sustenta que a tese de Caproni é uma espécie de pelagia nismo levado às últimas consequências: por ser a Graça um dom tão profundamente infundido na natureza humana, resta-lhe incognoscível para sempre, para sempre “res amissa”, para sempre inapropriável. Inamissível por já estar para sempre perdida, e perdida por força de ser demasiado intimamente possuída, demasiado cio samente, isto é, irrecuperavelmente, guardada. [...] A paisagem é uso na medida em que aponta, combinada mente, um uso de si e um uso do mundo sem resto. Na paisagem, enfim, o homem está em casa. Pagus, pays, passagem era um cumprimento que trocavam os que se reconheciam igualmente vilãos, moradores da mesma vila”. Cf. Raul Antelo, “Poesia, paisagem, desapropriação”, Alea, Rio de Janeiro, jan.-abr. 2021, vol. 23/1, pp. 23-33.

21
Origins of European Thought: About the Body, the Mind, the Soul, the World, Time and Fate, Cambridge: Cambridge University Press, 1951.

Não raro, ela idealiza sua própria redenção com o movimento novo, o sopro alen tado da mímica anarco-modernista de Nijinski. A imagem de sua partenaire, Ta mara Karsavina (1885-1978), tornou-se assim um ícone, até mesmo em revistas de massa como a carioca Pelo mundo (1926). A propósito, uma das primeiras a desejar uma tournée latino-americana dos bailados russos foi a feminista norte -americana, radicada em Cuba, Blanche Zacherie de Baralt (1865-1950), amiga estreita de José Martí e a primeira profissional na área de letras formada na Uni versidade de Havana, em 1902. Aquela que colaboraria na Revista Social (191638), junto a Emilio Roig de Leuchsenring e Alejo Carpentier, escrevia, em 1912:

En cuanto a Mlle. Tamara Karsovina diré que es quizás la que de mayor fama goza por su gran talento y su belleza suprema. Ocupa el primer puesto en el cuerpo de baile imperial y, según se dice, tiene una tremenda influencia política en la corte rusa. Es una potencia con la cual hay que contar. Después de las ruidosas victorias obtenidas en París, la troupe cruzó la Mancha y conquistó a Londres. Alentada por el éxito, la sed de gloria... y de oro la empujó a través de los mares. Ya están los bai larines rusos en los Estados Unidos, y en vías de emprender una invasión artística desde el Atlántico hasta el Pacífico; desde los grandes lagos hasta el Golfo de Méxi co. Y aquí viene la parte interesante…

¡He visto en el itinerario el nombre de la Habana!19

A ambição universalista não esmorecia a fidelidade ao localismo. Todos que riam ver a Karsavina. Um ano depois, a companhia de Nijinski excursionaria, de fato, por boa parte da América Latina. Gastón Talamón (1883-1956), cronista musi cal, entre 1915 e 1924, de Nosotros, a revista de Buenos Aires, tendo admirado essa primeira visita, não se mostrou deslumbrado, porém, com o que viu e ouviu na se gunda, em 1917, quando a companhia de Diaghilev coincidiu com a de Pavlova20: lamentamos ter que dizer que o brilho da temporada anterior até agora não se reproduziu na atual, devido ao fato de que o conjunto de dançarinos é inferior àquela e de que o repertório nem se renovou, nem condiz com a arte atual.

As obras estreadas: Sadko, sobre um poema sinfônico de escasso interesse mu sical de Rimski Korsakoff, apesar de um conjunto suntuoso, é fraco, por causa de uma coreografia mais grotesca do que expressiva, a qual não chega a emocionar; Soleil de Nuit, do mesmo compositor, provoca um maior interesse, devido às dan ças populares russas que figuram nele; porém, este tampouco é um espetáculo perfeito, como o concebemos. O balé moderno é um drama-mímico que vai se desenvolvendo por meio de danças e mímica, como acontece em Scheherezade, Dieu bleu, Thamar ou Narcisse, obras características, as mais bonitas do gênero

19 Blanche Z. de Baralt, “Los bailes rusos”, Cuba y América, Havana, 1º jan. 1912, a. 15, nº 3, p. 9.

20 Algumas dançarinas abandonam as troupes de origem e decidem instalar-se na cidade, dando início assim à tradição de dança moderna na Argentina. É o caso, entre outras, de Ekatherina Galantha, bailarina da Pa vlova; Gala Chabelska, da companhia de Diaghilev; Maria Olenina, Esmeé Davis ou Vera Grabinska.

22

que já vimos; Les femmes de bonne humeur com música de Scarlatti, ou seja, sa turada pela elegância da época, é humorística, porém de um humorismo ingênuo e pouco inovador, que raras vezes nos faz rir verdadeiramente. Essas marionetes que vivem dançando e saltando carecem de humanidade. Papillon, de Schumann, também é um balé clássico, gênero através do qual a companhia Diaghilew não pode competir com a companhia de Pawlova, apesar de uma maior suntuosidade da encenação, por não ter um conjunto tão homogêneo e porque também carece de primeiras figuras. O admirável Nijinski não tem parceiros à altura.

Grande lástima que o diretor artístico não tenha tido a ideia de fazer conhe cer os balés escritos por grandes compositores europeus especialmente para essa companhia: Strauss, Schmidt, Dukas, Debussy e outros.

Esperamos, no entanto, a estreia das obras de Stravinsky; essas são as que im portam à companhia, pois reúnem todas as condições da arte moderna, que pro porcionaram fama aos balés russos.

Até hoje as obras com as quais a trupe se destacou, e através das quais conse guiram entusiasmar o público com um espetáculo quase perfeito, foram: a admi rável Scheherezade, de Rimski Korsakoff, as danças do Prince Igor, de Borodine, uma das páginas mais bonitas da música russa, o prelúdio L’apres midi d’un faune, de Debussy[,] e Narcisse, de Tcherepnin. Estas obras evidenciam a que patamar estético pode chegar a arte coreográfica, quando música, dança e cenografia se unem estreitamente num ideal comum de beleza e arte.21

Em 1922, Mário de Andrade, embora admirador das comemorações do centenário (1910) da independência argentina, insubordina-se, porém, contra o mesmo Talamón, cujas ideias colhe na Revue musicale, e logo o ataca no quinto número da Klaxon:

Um tal senhor Gaston O. Talamon espirra por “La REVUE MUSICALE” umas in dicações sobre “O Estado actual da Musica Argentina”. Estava no seu direito. A Ar gentina é um paiz mui honrado e cantador que tambem deve ter na sua evolução sonora um estado actual. Era tambem justo que apparecesse um erudito Gaston que desse noticia da cousa aos leitores da “Revue Musicale”. Mas o erudito Gaston, espirra suas indicações de uma maneira originalissima. Não tendo tempo para de soccupar as ventas escancaradas que estavam para respirar o perfume sangrento da carne crua, e talvez por tratar de musica, espirrou pelas orelhas. E, confessamos, enormes de pavilhão devem ellas ser pois são estes os espirros do erudito Gaston: “Buenos Ayres tornou-se o maior centro dessa cultura, é ella que aspira a traduzir os ideaes que agitam o Peru, o Equador, o Chile, o Mexico, o BRASIL, o Uruguay, etc...”

O snr. Henry Pruniéres, director da “Revue Musicale”, naturalmente não leu o espirro. Quem como elle escreveu já sobre o concerto realizado no Rio de Janeiro

21 Gastón Talamón, “Crónica musical”, Nosotros, Buenos Aires: 1917, a. 11, nº 27, pp. 128-30. Cf. Vera Wolkowicz, “En busca de la identidad perdida: los escritos de Gastón Talamón sobre música académica de y en Ar gentina en la revista Nosotros (1915-1934)”, em: Victoria Eli Rodriguez & Elena Torres Clemente (ed.), Música y construcción de identidades: poéticas, diálogos y utopías en Latinoamérica y España, Madrid: Sociedad Española de Musicología, 2018, pp. 33-44.

23

no seculo 18, por occasião da coroação do vice-rei (Feuillets d’Art); quem como elle já abrigou na “Revue Musicale” em artigo do snr. Milhaud sobre musica brasileira, certamente teria escoimado das paginas de sua revista uma tal asnidade. Mas não é a possivel erudição causada pelo artigo nos leitores da “Revue Musi cale” que nos interessa agora. O que nos interessa é a psychologia do tão argentino quão erudito Gaston. Pensa um pouco leitor, não te irrites, e rirás uma hora sem cessar. Pois não é que um homem, um Gaston! constipa-se tão patrioticamente, a ponto de ir espirrar, no coração da França, que Buenos Ayres traduz os anceios musicaes do Brasil! Caramba! Que valiente! É impagavel! Que nos importa se a pia neira de Marselha procurar nos diccionarios musicaes a historia de Carlos Gomes, ou no artigo do snr. Milhaud os nomes de Nepomuceno e Villa-Lobos, Nazareth ou Tupinambá, todos, todos compositores argentinos, concorrendo para a grandeza musical de Buenos Ayres! Que nos importa? É tempo de alegria! É o centenario da independencia de Buenos Ayres que celebramos a 7 de Setembro! Demo-nos as mãos! Bailemos ante a estatua de Monroe! A America para os buenairenses! E en viemos ao erudito Gaston um sorridente, muito amigo, espirro de amizade!22

Toda a mordaz sátira de Andrade gira em torno do espírito e suas canhes tras manifestações (espirrar e não falar; aspirar imerecidamente, constipar, “de socupar as ventas escancaradas que estavam para respirar o perfume sangrento da carne crua”), fazendo eco assim às oficinas do Ipiranga (o bairro e a independência), tossintes inveterados. Curiosamente, Talamón, porta-voz do nacionalis mo musical na América Latina, tornou-se um bravo defensor de Villa-Lobos. Em sua primeira visita a Buenos Aires, em 1925, ele exalta a decisão da Associação Wagneriana, cujo convite só poderia assustar “espíritus timoratos y retrógrados”, vendo, no músico brasileiro, o mais acabado exemplo de un grupo muy selecto de artistas, generalmente muy cultos, conocedores del mo vimiento clásico y moderno europeo, poseedores de una orientación noble y pro ba, pero casi siempre empeñados en seguir las huellas de los grandes maestros de allende los mares más que en crear un arte nuevo, genuinamente brasileño, me diante el uso de motivos del cancionero popular. En Villa-Lobos se siente palpitar la gran alma sonora del Brasil. Alma nueva y libre de prejuicios escolásticos: alma de un pueblo joven y vigoroso que quiere cantar con propio acento; que tiene con ciencia de su valer y de su fuerza.23

22 Mário de Andrade, “Luzes e refracções”, Klaxon, São Paulo, 15 set. 1922, nº 5, p. 14.

23 La Prensa, Buenos Aires, 2 jun. 1925, p. 16, apud Silvina Luz Mansilla, “Heitor Villa-Lobos en Buenos Aires durante la década de 1920”, Per Musi, Belo Horizonte: 2007, nº 16, pp. 42-53. Talamón mostra-se particu larmente encantado com o Noneto, que pertenece a una tendencia estética que no admite discusión y ante la cual imposible es permanecer indiferente: o gusta o se rechaza. Ele consiste numa evocación magistral y realista de una fiesta indígena, pero de indígenas primitivos, cuyo cancionero no ha logrado aún salir de los motivos embrionarios, de los ritmos y ruidos primarios — ¡pero cuán ricos y originales! — que no han dado a la voz humana el desarrollo alcanzado en un mayor estado de adelanto [...] En este noneto se explayan un di namismo brutal, una aparente incoherencia, una fuerza primitiva, casi diríamos un salvajismo, de los cuales emanan indudable grandeza y ese poder subyugador inherente a toda manifestación colectiva [...] Es una raza,

24

Talamón não só elogia os inegáveis méritos musicais de Villa-Lobos, mas qualifica-os até de ultramodernos. Uma resenha posterior, na revista Él, quando da visita do músico, em 1940, ilumina, retrospectivamente, a recepção de sua obra por parte de Talamón:

Frente al cuarteto y las danzas, el público se desconcertó un tanto; pues la mayo ría de los auditores no había transpuesto aún la era del wagnerismo. Pero como, entre nosotros, raras veces se producen reacciones violentas contra las obras que se apartan de los hábitos auditivos imperantes, el concierto logró éxito innegable. Los que comprendieron — y no fueron pocos — la trascendente novedad de esas expresiones dinámicas amerindias, aplaudieron con fervor; y los que no las com prendieron, impresionados por su extraordinaria pujanza y por una emoción hu mana, acaso percibida únicamente por el subconsciente, unieron sin resistencia su cordialidad a la de los convencidos.

As visitas dos bailados russos e o elã primitivista, filtrado por Debussy, das peças de Villa-Lobos ganham imediata transposição plástica. Um dos primeiros a manifestá-la, em 1917, é o artista catalão Lluis Macaya (Barcelona, 1888; Buenos Aires, 1953), em revistas como Fray Mocho ou La Nota. Fotodinâmicas, as imagens de Macaya revelam que seus começos deram-se em ambiente cinematográfico, pois sua família era a representante da Pathé em Barcelona (lembremos que, em 1901, Loie Fuller foi filmada em preto e branco, na sua famosa dança-serpentina, filme posteriormente colorizado com tecnolo gia Pathé, no laboratório barcelonês de Segundo de Chomón e Macaya). Chegou a colaborar assim com as primeiras filmagens na Espanha e integrou o grupo Els Negres, com Manuel Ainaud, Joaquim Biosca, Enric Casanovas e Martí Gimeno, pautado por traço firme no grafite, com pendor pelos temas populares. O grupo expôs, em 1903, num famoso local modernista de Barcelona, o café Els Quatre Gats, frequentado por Picasso, que ali fez a sua primeira exposição, em 1900. Emigrado para Buenos Aires a inícios do século XX, notabilizou-se como dese nhista de revistas como Caras y Caretas, Fray Mocho, El Hogar ou jornais como La Nación ou Crítica, onde colaborou no Suplemento Multicolor de los Sábados, dirigido por Jorge Luis Borges e Ulyses Petit de Murat.

todo lo primitiva que se quiera, que vibra y palpita en esta página; haberlo logrado es un mérito singular. Sin duda, cuando Villa-Lobos realice sus obras definitivas, acaso sin perder su originalidad, ni carácter, ni fuerza, suavice esas asperezas, poetice y embellezca esas escenas tan realistas; pero, con todo, mucho es haber escrito una obra semejante. Cf. La Prensa, Buenos Aires, 18 jun. 1925, p. 15.

25

> Ilustrações “Ballets russes”, de Luis Macaya, para a revista La Nota

O segundo artista a acusar o impacto desse drama mímico desenvolvido por meio de danças e gestos, para retomarmos a expressão de Talamón, é Jorge Larco (Buenos Aires, 1897-1967), quem estampa uma gouache, em 1920, no núme ro 49 da revista Plus Ultra: “Bailes rusos: Scherazade”.

Vinte anos depois, em 1941, um dos mais destacados compositores naciona listas argentinos, Carlos Guastavino, musicou o poema “La paloma”, do poeta espa nhol Rafael Alberti, exilado em Buenos Aires. O poema, retirado de seu livro Entre el clavel y la espada (1941), seria integrado na Suite argentina (1941), de Guastavino, estreada, como balé, em Londres (1947-9). Ele se constrói em função de fortes opo sições binárias (norte/sul; trigo/água; mar/céu; noite/manhã), em que a vida zoé é pura errância e abandono. A partitura foi ilustrada também por Jorge Larco, ocupando a pomba a mesma posição diagonal, crescente de esquerda à direita, tal como a Karsavina de Scherazade em 1920. Postumamente, conheceríamos ainda uma ter ceira pervivência da Karsavina = morte, tal como na “Paisagem nº 2” de Mário de Andrade. Trata-se de uma ilustração para a plaquette com Siete poemas de Jorge Luis Borges, extremamente sintomática daquilo a que o próprio Borges alude no soneto inicial, “somos como un sueño”. Na aquarela de Larco para o poema de Borges, um anjo transparente abduz o corpo terreno de um rapaz que, embora em posição

26

> Ilustração “Ballets russes”, de Jorge Larco, para a revista Plus Ultra vertical, mantém o braço flexionado, como no repouso de uma sesta lasciva, ima gem muitas outras vezes abordada pelo pintor24. Imagem-sintoma, a composição em diagonal assemelha-se à busca do su blime em “Scherazade” e à composição da partitura de “Se equivocó la paloma”. A pomba torna-se, neste caso, um anjo, e o corpo de cores terrosas substitui as raízes aéreas da partitura. Mas não há dúvida, a aquarela de Larco (ou em última análise, a Karsavina de 1920) lê, de fato, anacronicamente, “El sueño” de Borges:

Si el sueño fuera, (como dicen) una Tregua, un puro reposo de la mente,

24 Jorge Luis Borges, Siete poemas, Buenos Aires: Francisco A. Colombo, 1967. Os poemas são: “El sueño”, “El mar”, “Junín”, “Una mañana de 1649”, “Un soldado de Lee (1862)”, “El laberinto” e “Laberinto”, ou seja, uma seleção de poemas de El otro, el mismo (1964) e de Elogio de la sombra (1969).

27

¿Por qué, si te despiertan bruscamente, Sientes que te han robado una fortuna? ¿Por qué es tan triste madrugar? La hora Nos despoja de un don inconcebible, Tan íntimo que sólo es traducible En un sopor que la vigilia dora De sueños, que bien pueden ser reflejos Truncos de los tesoros de la sombra, De un orbe intemporal que no se nombra Y que el día deforma en sus espejos. ¿Quién serás esta noche en el oscuro Sueño, del otro lado de su muro?25

A poesia, a Karsavina em sua macabra dança derradeira, imaginada por Mário de Andrade no poema de Pauliceia, fala, com efeito, numa língua morta, a língua do outro lado do muro, mas é essa morte, precisamente, que define a pai sagem. A cena póstuma da memória visual, associada ao sopro poético, consiste, portanto, num dom infinito, a montagem de inúmeras conexões que o presente nem sempre está preparado para receber. Karsavina é um simples vestígio da pai sagem, o resto de um passo. Pura negatividade. Não é sua imagem, porque o pas so não consiste em nada além do que seu próprio vestígio. A partir do momento em que ele é feito, pronto, ele já é passado26.

Manuel Bandeira, pioneiro em captar esse “espírito eminentemente tran sitório” do poemário de Mário de Andrade, dirige-se “aos espíritos de boa vonta de”, leitores de Árvore Nova: revista do movimento cultural do Brasil, em outubro de 1922, para explicar-lhes que:

A Paulicéia desvairada é um livro impressionista. O desvairismo é escrever sem pensar tudo o que o inconsciente grita quando explode o acesso lírico. Os românticos escreviam assim. Foi assim também que Rimbaud escreveu as Iluminações. Rimbaud — avô de Blaise Cendrars! Ora, Mário de Andrade evoluiu para o simultaneísmo e para o verticalismo. Isso pede algumas explicações. Ofereço-as aos espíritos de boa vontade. Em vez de fazer o verso como uma melodia simples, serve-se o poeta de pa lavras soltas, de frases soltas, que, por isso mesmo que são desconexas, ficam vi brando em nossa imaginação, que as compõe depois numa síntese harmônica. É o verso harmônico. Foi, meus caros passadistas, uma aspiração de Victor Hugo. É claro que essa harmonia poética não tem lugar nos sentimentos como a harmonia musical e sim na inteligência. É toda subjetiva. O simultaneísmo domina toda a

25 Jorge Luis Borges, “El sueño”, em: Obras completas, Buenos Aires: Emecé, 1974, p. 940.

26 Jean Luc Nancy, “O vestígio da arte”, em: Stéphane Huchet, Fragmentos de uma teoria da arte, São Paulo: Edusp, 2012, p. 304.

28

arte moderna, na poesia pelo verticalismo das imagens, nas artes plásticas pela interpenetração dos planos e dos volumes.

A Paulicéia desvairada não é um livro que tenha sido composto na intenção de ser moderno. Nem mesmo na sujeição de qualquer sistema técnico. São poemas impressionistas, intuitivistas, desvairistas. Numa grande comoção de ternura e sar casmo, o poeta cantou, chorou, riu e berrou, como confessa no “Prefácio interes santíssimo”. Em suma — viveu os seus poemas. A diferença dos poetas modernos é que eles amam e confessam amar a sua época, com os aeroplanos, os automóveis, o cinema, o asfalto — tudo aquilo enfim que para os falsos poetas é banal e prosaico. A vulgaridade e o prosaísmo são outra coisa. A lua, por exemplo.

E atacando o argumento teratológico de Monteiro Lobato, Bandeira con clui escolhendo seu próprio Talamón, um poeta discípulo de Mallarmé e próxi mo de Maeterlinck, Camille Mauclair:

Para muita gente a arte moderna não passa de uma enorme mistificação. Sem dúvida aqui, como em todos os movimentos, e nem só os artísticos, há os aprovei tadores, os adesistas, os débeis, os Camille Mauclair, que mais tarde viram a ca saca de empréstimo com que a princípio acompanhavam a procissão. Guillaume Apollinaire, porém, sugeriu que não se conhece em toda a história das artes um só exemplo de mistificação coletiva. Esse corajoso movimento que alastrou toda a Europa e agora suscita em São Paulo um grupo de artistas como Brecheret, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Anita Malfatti, Rubens de Morais, Sérgio Buarque e tantos outros (leiam a Klaxon!) não é uma mistificação efêmera, mas a integração definitiva na consciência artística de uma porção de coisas que antes oscilavam pesadamente e penosamente nos limbos do instinto. E que alegria ver refletido na arte o momento que vivemos!

A passiflora! o espanto! a loucura! o desejo! Cravos! mais cravos para a nossa cruz!27

Vitória final do Cristo de trancinhas.

27 Manuel Bandeira, “Mário de Andrade”, em: Crônicas inéditas I. 1920-1931, ed. Júlio Castañón Guimarães, São Paulo: Cosac Naify, 2008, pp. 24-7. O dístico final pertence às Juvenilidades Auriverdes, em contraponto com os Orientalismos Convencionais, de “As enfibraturas do Ipiranga”. Agradeço o apoio dos professores Marcos Antonio de Moraes e Davi Pessoa.

29
30

Bastidores

“Um elogio explosivo: A propósito de ‘O meu poeta futurista’”1

Muita gente pensa que ser moderno é andar de casaca e chinelo. Oswald de Andrade 2

O movimento de transformação urbana que se processava em São Paulo, nas pri meiras décadas do século XX, seguia em descompasso com os costumes acanha dos, a vida cultural medíocre, e com o marasmo intelectual de uma elite presa a valores artísticos ultrapassados, “uma conservação de formas cada vez mais vazias de conteúdo, uma tendência a repisar soluções plásticas que, na sua su perficialidade, conquistaram por tal forma o gosto médio, que até hoje represen tam para ele a boa norma literária”3. Nesses tempos em que “as letras, o público burguês e o mundo oficial se entrosavam numa harmoniosa mediania”4, propos tas de mudanças nas artes prosperavam num pequeno reduto antagônico sobre quem recaía a pecha de “loucos” ou, como o termo então vigente, “futuristas”, que, naquele ambiente conservador, rápido assombrou o público e se tornou o xingamento da moda. Embora disseminado, a grande maioria ignorava o teor dos manifestos de 1909 e 1912, do italiano Filippo T. Marinetti, ou do “Ultimatum fu turista” de Fernando Pessoa e Almada Negreiros, por exemplo, este último lança do em Portugal no alvorecer do século XX. Para uns poucos intelectuais paulistas, rebeldes, informados sobre tendências da vanguarda artística europeia, o termo era índice de espírito aberto, arrojado, atualizado. De acordo com o registro de Alfredo Bosi, “com todas as conotações de ‘extravagância’, ‘desvario’, ‘barbarismo’, [o termo] começa a circular nos jornais brasileiros a partir de 1914 e vira ído lo polêmico na boca dos puristas”5. Em sua avaliação, ainda, o crítico não deixa

1 Oswald de Andrade, “O meu poeta futurista”, em: Jornal do Comércio (Edição de São Paulo), 27 maio 1921. Texto integral reproduzido em: Mário da Silva Brito, História do modernismo brasileiro: I. Antecedentes da Sema na de Arte Moderna, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1964, pp. 228-9.

2 Idem, “O divisor das águas modernistas”, em: Estética e política, pesquisa, org., introd., notas e estabelecimen to de texto de Maria Eugenia Boaventura, São Paulo: Globo, 1991, p. 54.

3 Antonio Candido, “Literatura e cultura de 1900 a 1945”, em: Literatura e sociedade, Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2010, p. 126.

4 Ibid., p. 126.

5 Alfredo Bosi, História concisa da literatura brasileira, São Paulo: Cultrix, 1972, p. 374.

32

de assinalar que “o termo ‘futurismo’, no Brasil, ia além do sentido atribuído por Marinetti, para alcançar ritmos e anseios de um tempo e de suas turbulências”6 Por essas e outras razões não foi simples a preparação do terreno para levar a cabo a Semana de Arte Moderna em São Paulo, ajudada por artistas do Rio de Janeiro, e tampouco foi fácil o processo de maturação e de modificação promovi do no meio intelectual e artístico, passada a “batalha” de 1922. Dadas as circuns tâncias desfavoráveis que envolviam no meio da população aquele rótulo, não é de espantar que, em maio de 1921, Oswald de Andrade, impressionado com a força criadora dos poemas de Mário de Andrade (então seu amigo próximo), tenha provocado escândalo ao publicar no Jornal do Comércio (edição de São Paulo) o artigo “O meu poeta futurista”, anunciando com pioneirismo uma obra ainda inédita: Pauliceia desvairada. A intenção do articulista era saudar o poeta, sem lhe dar o nome, trazendo-o enigmaticamente, por adivinhas: “É longo como um círio e evoca para as minhas meditações um cálice do Graal suspenso nos lábios ávidos da ‘girl’ babilônica que é esta cidade de mil portas”7. Cria suspense, e não declina o nome, afirmando que iria apresentar apenas “a figura e a arte”. Até então, só os pares conheciam aqueles poemas, como rememorou Mário de Andrade, explicando:

o movimento se alastrando aos poucos, já se tornara uma espécie de escândalo público permanente. Já tínhamos lido nossos versos no Rio de Janeiro; e numa leitura principal, em casa de Ronald de Carvalho, onde estavam Ribeiro Couto e Renato Almeida, numa atmosfera de simpatia, Pauliceia desvairada obtinha o consentimento de Manuel Ban deira, que em 1919 ensaiara os seus primeiros versos-livres, no “Carnaval”.

Neste relato retrospectivo, o escritor imputa a um sério e tumultuado atrito familiar a motivação decisiva que o impeliu a escrever os poemas. E explica:

Não sei o que me deu. Fui até a escrivaninha, abri um caderno, escrevi um título em que jamais pensara, “Pauliceia desvairada”. O estouro chegara afinal, depois de quase um ano de angústias interrogativas. Entre desgostos, trabalhos urgentes, dívidas, brigas, em pouco mais de uma semana estava jogado no papel um canto bárbaro, duas vezes mais do que isso que o trabalho de arte deu em livro.

A isso acrescenta: “depois sistematizaria este processo de separação nítida entre o estado de poesia e o estado de arte, mesmo na composição dos meus poemas mais ‘dirigidos’”8.

6 Ibid., p. 374.

7 Oswald de Andrade, “O meu poeta futurista”, em: Jornal do Comércio (Edição de São Paulo), 2 maio 1921. Texto integral reproduzido em: Mário da Silva Brito, História do modernismo brasileiro: I. Antecedentes da Semana de Arte Moderna, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1964, p. 228.

8 Mário de Andrade, “O movimento modernista”, em: Aspectos da literatura brasileira, São Paulo: Martins, 1974, p. 234.

33

Para Oswald de Andrade, “sem a publicação de Pauliceia desvairada, o grande livro de versos de Mário, nada se teria precisado”9. Em outro segmento do mesmo artigo, o escritor foi também taxativo: “Posso afirmar e já afirmo que sem a presença de Mário de Andrade o modernismo teria sido, pelo menos, retarda do”10. Juízos como esses foram reiterados em muitas manifestações de Oswald, em diferentes publicações, ao longo de sua vida. Em 1949, por exemplo, em uma palestra no Museu de Arte Moderna de São Paulo, tratando das “Novas dimensões da poesia”, o autor de Pau Brasil procura explicar o uso do termo que agastara Mário de Andrade, e afiança:

A palavra “futurista” que tanto pareceu infirmar o movimento de 22 foi utilizada em Portugal por Fernando Pessoa e Almada Negreiros. Eles lançaram um “ultima tum futurista” às gerações portuguesas do século XX. O futurismo russo foi firma do por Maiakóvski. Era uma bandeira límpida, sadia, mecânica para exprimir as transformações da época.11

Perseguindo o tema, Oswald buscou articular suas reflexões sobre a arte de vanguarda, desvencilhando-se da redução dos clichês, como se lê num artigo de 1922 no Jornal do Comércio:

Para nós, num século de síntese como o atual, cubismo é movimento. E como é a mais forte palavra achada para dizer o movimento existente, escapa como “futurismo” à pequenez vaidosa de grupos ortodoxos. Cubismo não é só o que faz Fernand Léger, para os salons, cubismo é a reação construtiva de toda a pintura moderna. Assim futurismo não é marinettismo e sim toda reação construtiva da literatura moderna.12

No final de sua vida, Oswald voltará ao tema no artigo “O modernismo” (revista Anhembi, 1954), assim explicando numa passagem do texto: Mesmo antes da publicação de Pauliceia, eu abri o escândalo, lancei pelas co lunas do Jornal do Comércio, edição de S. Paulo, um artigo sobre o inédito de Mário de Andrade. Esse artigo intitulava-se “O meu poeta futurista”. Era a palavra da época. O “futurismo” se desitalianizara. Em Portugal, por exemplo, Fernando Pessoa lan çava nesse momento o seu “Ultimatum futurista”.13

9 Oswald de Andrade, “O modernismo”, em: Estética e política, op. cit., 1991, p. 122.

10 Ibid., p. 122.

11 Idem, “Novas dimensões da poesia”, em: op. cit., p. 116.

12 Artigo citado por Mário da Silva Brito em: As metamorfoses de Oswald de Andrade, São Paulo: Conselho Es tadual de Cultura/Comissão de Literatura, 1972, p. 32.

13 Idem, “O modernismo”, em: op. cit., p. 122.

34

Essas explicações posteriores ajudam a entender não o choque imediato que o artigo de Oswald causou à época, mas a importância dessa obra pioneira de nossa literatura modernista, que então contagiou o pequeno grupo da “Camelot paulista” com seus versos feéricos, arlequinais, expressão do “desvairis mo”, que naquele momento respondia por anseios da experimentação poética daqueles jovens denominados “futuristas”. E aqui, uma vez mais, a avaliação de Oswald de Andrade ajuda a entender o quadro no seu contexto e complexidade, sintetizando de modo cabal: “O termo pegou e tinha que pegar porque a primeira fase da revolução literária brasileira não deixaria de ser a exata eclosão de uma sensibilidade burguesa, atingida enfim na selva semicolonial da América, pela era da máquina, pela era burguesa e futurista da máquina. […] Fomos burgueses em 22 e tínhamos de ser. Isso já era uma notável superação”14.

Contrário aos luminosos rótulos estrangeiros, para Mário de Andrade “fu turista” e “futurismo” respingavam no ideário de F. T. Marinetti, escritor e crítico que, em seus manifestos15, bania a história, propunha cantar a velocidade e a máquina, exaltava a guerra como “higiene do mundo”, pregava a violência sem pretexto, e desprezava qualquer que fosse a tradição poética, como exposto em “Matemos o luar!”16. Por isso, embora o artigo de Oswald de Andrade tratasse da atualidade estética de modo abrangente, sem filiar o poeta, aquele “lívido e longo Parsifal”, a nenhuma escola literária, Mário de Andrade não gostou daquela eti queta e dias depois apresentou sua réplica: “Futurista?!”. Secundando em tom de blague, como se escrevesse em nome do amigo saudado por Oswald, invocava na sua contestação a liberdade estética da obra, indagando:

Futurista, por quê? [...] Será porque os versos da “Pauliceia desvairada” [...] não têm certos ritmos estereotipados, em que algumas épocas respeitabilíssimas ima ginaram que a poesia continha? Ou será porque refoge à vulgaridade cheia de lazer da rima, inútil numa língua vibrante, vária e sonora como a nossa? Ou ainda por que o autor salta por cima de certos pragmatismos sintáticos a que aliás não fugi ram o numeroso Frei Luís de Sousa, o oceânico Camões, e o rendilhado Garrett, o sinfônico Latino, o ático Machado de Assis, que deixaram obras-primas incontes táveis de bem falar?17

14 Oswald de Andrade, “Gênese da Semana de Arte Moderna”, em: Hoje: o mundo em letra de fôrma, ano VII, abr. 1944, nº 75, p. 13.

15 F. Tommaso Marinetti, “Manifesto do Futurismo” (20 de fevereiro de 1909); “Matemos o luar!” (abril de 1909); “Manifesto técnico da literatura futurista” (11 de maio de 1912), em: Antologia do futurismo italiano: mani festos e poemas, trad., introd. e notas de José Mendes Ferreira, Lisboa: Editorial Vega, 1979.

16 Nesse texto reafirma a necessidade da guerra e acrescenta: “Sim, os nossos nervos exigem a guerra e despre zam a mulher, pois tememos que braços suplicantes se agarrem aos nossos joelhos no dia da partida”. Idem, “Matemos o luar!” (abril de 1909), op. cit., p. 54.

17 Mário de Andrade, “Futurismos?!”. Texto integral reproduzido em: Mário da Silva Brito, História do modernismo brasileiro: I. Antecedentes da Semana de Arte Moderna, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1964, p. 235.

35

Na sequência dessa prismática argumentação, Mário continua dando pis tas da multiplicidade de campos explorados em Pauliceia desvairada, uma vez mais, indagando:

Será a concepção ideal do livro que Oswald de Andrade considera futurista? Mas não existem por acaso o Rei Davi, Petrônio, Juvenal; e mesmo, antes destes, os primitivos que, atemorizados pelos fenômenos estranhos da natureza, usavam fórmulas mágicas sem significação alguma, e pintaram búfalos simbólicos nas ca vernas de Altamira e gravaram versículos de exorcismo na pirâmide com degrau de Sacara? E, mais perto de nós, o que fizeram Heine, Stechetti, Walt Whitman, Verlaine, Verhaeren e tantos mais?...18

Depois disso, naqueles dias, haveria tréplica de Oswald. E não pararia por aí. No prefácio de Pauliceia desvairada, Mário de Andrade voltou ao tema, desta vez se colocando como parte responsável, sem abrir mão da discordância, como se lê em um de seus módulos: “Não sou futurista (de Marinetti). Disse e repito-o. Tenho pontos de contato com o futurismo. Oswald de Andrade, chamando-me de futurista, errou. A culpa é minha. Sabia da existência do artigo e deixei que saísse. Tal foi o escândalo que desejei a morte do mundo. Era vaidoso. Quis sair da obscuridade”19.

O futurismo, que fomentou tanta e acalorada discussão entre Mário e Oswald, ganhou a atenção do jovem Sérgio Buarque de Holanda, que, pouco an tes da Semana de 1922, publicou um artigo bem-humorado e de fina percepção crítica, assim definindo: “Vamos aos futuristas de São Paulo que, como se vê, podem ser chamados assim. Não se prendem aos de Marinetti, antes têm mais ponto de contato com os moderníssimos da França desde os passadistas Romain Rolland, Barbusse e Marcel Proust até os esquisitos Jacob, Apollinaire, Stietz, Sal mon, Picabia e Tzara”20.

Oswald, que chamou Mário de Andrade de “Tiradentes de nossa Inconfi dência”, nunca deixou de assinalar a revolução causada por sua obra artística em nossa literatura. Assim, no intuito de dissipar mal-entendidos e reafirmar a importância do modernismo brasileiro e do livro inaugural de Mário, o autor de “O meu poeta futurista” manteve seu juízo e seu encantamento por Pauliceia desvairada, até o final da vida, sintetizando-a como “Desafio genial do Verbo Novo”21. Ou, antes disso, em “Gênese da Semana de Arte Moderna” (1944), em

18 Ibid., p. 235.

19 Mário de Andrade, “Prefácio interessantíssimo”, em: Poesias completas, vol. 1, edição de texto apurado, ano tada e acrescida de documentos por Tatiana Longo Figueiredo e Telê Ancona Lopez, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2013, p. 62.

20 Sérgio Buarque de Holanda, “O futurismo paulista”, em: O espírito e a letra, vol. I, org. Antonio Arnoni Prado, São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 132.

21 Oswald de Andrade, “O modernismo”, em: Anhembi, nº 49, dez. 1954, vol. VII, p. 32 (publicação póstuma).

36

que argumentou mais amiúde ter chamado Mário de Andrade de poeta futurista “porque na desordem regional de seus versos vinha esse ‘algo nuevo’ que já era velho na Europa, mas que aqui somente assim podia exprimir uma coeva independência”22.

Em carta a Manuel Bandeira, datada de 1925, Mário reassegurou esse juízo a respeito do papel pioneiro desempenhado pelos modernistas: desbravadores de caminhos e preparadores do futuro, à feição dos antigos cantadores medie vais. Por esse entender, neles reconhece um campo formador, exemplificando: “Dante seria incapaz de escrever o italiano da Comédia se antes dele não tives se a escola siciliana e toda a porção de trovadores que já escreviam em língua vulgar. Eles é que permitiram a existência dum Dante pra língua italiana como os cronistas e cantadores portugueses permitiram o português de Camões”23. E foi Mário de Andrade, nesse mesmo ano de 1925, que colocou uma pá de cal no “futurismo”, como designação do movimento vanguardista local. Naquela opor tunidade, o jornal A Noite (Rio de Janeiro) anunciou uma série de entrevistas em homenagem aos artistas de 1922, cujo título era “Mês Futurista”. A primeira con versa foi com Mário de Andrade, que o jornal denominava “o papa do futurismo”. O entrevistador principiou a conversa de modo direto: “— Falemos de literatura futurista [...]”. De imediato, então, Mário de Andrade rebateu: “— Já vem você com futurismo!... Fale Modernismo, que custa! E fica certo”24. E assim ficou.

22 Oswald de Andrade, “Gênese da Semana de Arte Moderna”, em: Hoje: o mundo em letra de fôrma, ano VII, abr. 1944, nº 75, p. 13.

23 Mário de Andrade, Carta de 25 de janeiro de 1925, em: Marcos Antonio de Moraes (org.), Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira, São Paulo: Edusp/Instituto de Estudos Brasileiros, 2000, p. 181.

24 Mário de Andrade, “1925: assim falou o papa do futurismo”, em: Entrevistas e depoimentos, org. Telê Ancona Lopez, São Paulo: T. A. Queiroz, 1983, p. 46.

37
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.