FIAMINGHI: Corluz

Page 1

FIAMINGHI: CORLUZ

M. A. AMARAL REZENDE

FIAMINGHI: CORLUZ

SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO

Administração Regional no Estado de São Paulo

Presidente do Conselho Regional

Abram Szajman

Diretor Regional

Danilo Santos de Miranda

Conselho Editorial

Ivan Giannini

Joel Naimayer Padula

Luiz Deoclécio Massaro Galina

Sérgio José Battistelli

Edições Sesc São Paulo

Gerente Iã Paulo Ribeiro

Gerente adjunta Isabel M. M. Alexandre

Coordenação editorial Clívia Ramiro, Cristianne Lameirinha, Francis Manzoni, Jefferson Alves de Lima

Produção editorial Simone Oliveira

Coordenação gráfica Katia Verissimo

Produção gráfica Fabio Pinotti, Ricardo Kawazu

Coordenação de comunicação Bruna Zarnoviec Daniel

FIAMINGHI: CORLUZ

© M. A. Amaral Rezende, 2022

© Edições Sesc São Paulo, 2022

Todos os direitos reservados

Preparação de texto Vanessa Gonçalves

Revisão Elba Elisa, José Ignacio Mendes

Versão para o inglês Anthony Cleaver

Capa, projeto gráfico e diagramação

Rico Lins +Studio (Rico Lins/Julieta Sobral)

Imagem da capa Corluz, superposição de quadrados em transparência, 1958, têmpera sobre tela, 70 × 35 cm, Fundação Coleção Edson Queiroz, fotografia por Jorge Bastos

R339fRezende, M. A. Amaral

Fiaminghi: Corluz / M. A. Amaral Rezende. –São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2022. –352 p. il. Bilíngue (português/inglês).

Referências

Cronologia

ISBN 978-85-9493-169-6

1. Artes plásticas. 2. Artes gráficas.

Edições Sesc São Paulo

Rua Serra da Bocaina, 570 – 11º andar

03174-000 – São Paulo SP Brasil

Tel. 55 11 2607-9400

edicoes@sescsp.org.br

sescsp.org.br/edicoes

/edicoes sesc sp

4
3. Pintura. 4. Corluz. 5. Brasil. 6. Biografia. 7. Hermelindo Fiaminghi. I. Título. II. Fiaminghi, Hermelindo. CDD 750 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Ficha catalográfica elaborada por Maria Delcina Feitosa CRB/8-6187 A meu pai, Marcos, e a minha mãe, Suzana, in memoriam.

SUMÁRIO

Apresentação TRAJETÓRIAS IDIOSSINCRÁTICAS

Danilo Santos de Miranda 12

Introdução METAMORFOSE DA COR: LUZ 14

VIDA ARTE

FIALUZ Décio Pignatari 18

O SURGIMENTO DO PINTOR 21

A UTOPIA DA ARTE CONCRETA 27

ARTE-RUMO 34

DO CONCRETO GEÔMETRA AO CONCRETO BARROCO 37

CORLUZ, A VERDADE, O ENIGMA 41

ARTE VIDA

FIAMINGHI Haroldo de Campos 54

OBRAS SELECIONADAS 57

RETROSPECTO 172 DE FIAMINGHI, SOBRE FIAMINGHI

DEPOIMENTOS, ENTREVISTAS E

CORRESPONDÊNCIA 177

FORTUNA CRÍTICA 247

CRONOLOGIA Silvana Brunelli 258

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 275

BIBLIOGRAFIA ESPECIALIZADA 276

ENGLISH VERSION 283

AGRADECIMENTOS | Acknowledgments 348

SOBRE O AUTOR | About the author 349

TRAJETÓRIAS IDIOSSINCRÁTICAS APRESENTAÇÃO

O projeto construtivo brasileiro nas artes plásticas é idiossincrático. Temporalmente situado nas décadas de 1950 e 1960, reflete a influência exercida tardiamente pelas vertentes construtivas europeias no campo artístico brasileiro, a saber, o construtivismo soviético, o neoplasticismo, a Bauhaus e a Escola de Ulm. Algo da peculiaridade desse projeto de vocação vanguardista provém do fato de que, antes dele, sequer as rupturas desencadeadas pelo cubismo nos esquemas pictóricos de representação haviam sido suficientemente absorvidas pelos artistas do nosso primeiro modernismo.

É o crítico de arte Ronaldo Brito que afirma que as disruptivas operações plásticas realizadas, nas primeiras décadas do século XX, por artistas como Picasso e Braque, não foram completamente incorporadas pela produção de expoentes nacionais como Tarsila, Di Cavalcanti e Portinari. Segundo o crítico, embora esses artistas tenham se apropriado de algumas conquistas modernizadoras do cubismo, suas pinturas ainda conservam antigos preceitos representacionais. Logo, os artistas à frente do projeto construtivo brasileiro tomariam para si a dupla tarefa, por um lado, de efetivar a inserção do Brasil no tabuleiro de conquistas formais da arte moderna e, por outro, de levar adiante a objetividade testada, através da abstração e da

visualidade pura, por artistas como Malevich, Mondrian e Max Bill, com base em critérios decididamente racionais e funcionalistas.

Articula-se a esses compromissos, ademais, a intenção dos artistas concretos paulistas de estender suas práticas de criação visual aos setores da produção industrial, com vistas a ampliar a penetração da arte na sociedade por meio da lógica aplicada. Nisso reside outra particularidade da proposta construtiva local, que projeta num ambiente industrial ainda incipiente (recém-alavancado pelo desenvolvimentismo do Estado Novo) a ambição de elevar o nível estético da população e de aperfeiçoar o ambiente social através dos produtos utilitários que o povoam – à revelia de uma crítica estrutural do sistema de produção capitalista, diga-se.

Inversamente, esse mesmo “parque industrial” terá fornecido elementos determinantes para a obra de Hermelindo Fiaminghi, artista cuja trajetória é marcada por movimentos singulares na interação com o Grupo Concreto Paulista, do qual fez parte. O ofício de litógrafo em uma das maiores gráficas de São Paulo está na base de sua pintura, uma vez que a decomposição e a recombinação de formas e cores correspondem a um aspecto comum entre a criação artística geométrica e a reprodução técnica de imagens. À ortodoxia racionalista pontificada por líderes como Waldemar Cordeiro, Fiaminghi contrapõe uma atitude de suspeita frente à dominação da razão e ao determinismo concreto, abrindo caminho para a incerteza da forma subjetiva.

Conhecer as especificidades do processo de criação desse artista – sempre às voltas com os segredos da cor – nos permite olhar tanto para o concretismo como para seus representantes de maneira menos monolítica, transcendendo relatos totalizantes e simplificadores que, ao repisar o tão propalado dogmatismo do movimento paulista, tendem a obscurecer suas heterogeneidades internas. A relação tensa estabelecida por Fiaminghi com os princípios desse empreendimento artístico revela, a um só tempo, os limites do nosso projeto construtivo e as características únicas da obra desse artista, que, tendo rompido com a arte concreta na década de 1960, adota a noção de Corluz como uma espécie de guia para a sequência de suas investigações plásticas.

Perpassado por aspectos biográficos, Fiaminghi: Corluz traz uma análise detida da obra do artista, a partir da eleição de exemplares paradigmáticos dos diferentes momentos de sua produção pictórica, com foco no período entre os anos 1950 e 1990. A esse conjunto, somam-se artigos selecionados, cronologia, entrevistas e depoimentos, perfazendo um panorama favorável à compreensão não apenas do sistema visual constituído por Fiaminghi ao longo da carreira, mas também de suas contribuições para a história da arte brasileira.

Para o Sesc São Paulo, a edição deste estudo representa a oportunidade de trazer a público, de maneira estruturada e detalhada, os contextos, as ideias e os desejos inerentes à obra de um criador que vasculhou, incansavelmente, as possibilidades expressivas da cor.

13

INTRODUÇÃO

METAMORFOSE DA COR: LUZ

Do pai Calixto, que pintava grandes fachadas, Hermelindo Fiaminghi aprendeu a arte como um ofício de técnicas úteis como a litografia. Com Waldemar da Costa, iniciou-se na pintura de objetos estéticos, em uma dialética que marcou sua existência. Do exato ao incerto, do dinheiro e da beleza, conservou a liberdade de errar e a indeterminação até na geometria. Em 1957, intuída a corluz, começou a buscar a pintura por uma via original, implodindo a geometria e reinventando as cores a partir da centenária têmpera de Volpi. Fiaminghi insistia em materializar a corluz no prazer da pincelada, na tinta feita em casa (contra as tintas industriais dos anos 1950) e na gestualidade essencial, indo muito além do abstracionismo hedônico, do expressionismo e do decorativismo.

Fiaminghi sabia que a corluz seria sua singularidade na história da pintura. Aquela pós-utópica – galáxia de fogos de artifício de estrelas coloridas e transparentes. A materialidade surge não mais como concreta, mas como concreção. Um percurso de quase cinquenta anos em que a pintura concreta geométrica não foi mais que um acidente, sua plataforma de lançamento para entrar

no universo infinito da arte solitária. Sabia que seria difícil, mas necessário; descobrira, como Proust, que a obra de arte era o único meio de reencontrar o tempo perdido. O acerto de sua escolha se confirmou pelas opções similares de seus pares concretos, pintores e poetas: Geraldo de Barros, Mauricio Nogueira Lima, Waldemar Cordeiro, Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Décio Pignatari.

Aqui, nesta obra, concentrei-me na ekphrasis, isto é, na reflexão após a contemplação de cada obra, o único meio correto para a interpretação do trabalho artístico, após sua contemplação. Este livro é uma tentativa de decifrar os enigmas de Hermelindo Fiaminghi, com apoio na estética negativa de Theodor W. Adorno. A corluz é a síntese que poderia ser impossível se Fiaminghi não a tivesse realizado, como também fizeram o impossível Van Gogh, Mondrian, Pollock e Rothko, que integraram estruturas formais seriais na gestualidade do fazer pictórico, em uma informalidade apenas aparente, pois construtiva, como revelam seus traços iniciais a lápis. Fiaminghi metamorfoseou a têmpera do mestre Volpi, de origens medievais, com

14

base em receitas secretas, resina dâmar e pigmentos que os amigos traziam da famosa loja Sennelier, de Paris. Assim, chegou a um pintar próprio, aquele de quem descobriu, profundamente, a essência da pintura.

M. A. AMARAL REZENDE

VIDA ARTE

17
18
19

O SURGIMENTO DO PINTOR

O branco, a cor nenhuma, marca a pré-infância de Fiaminghi, nascido em 1920. Na Revolução do Isidoro1, a cidade do menino, São Paulo, e seu bairro, o Canindé, acordaram brancos. Os saques aos armazéns de farinha resultaram em uma espécie de lençol dessa cor cobrindo tudo. Nessa mesma época, o moleque pintara as calçadas com a brocha e a tinta compradas para pintar a casa. A repreensão do pai veio logo: “Desperdício! Gastar a tinta para fazer arte!”. Assim, o branco, a não cor, era o mundo das sombras: os saqueadores, as explosões dos obuses, a bronca do pai.

Para o pai de Hermelindo, Calixto, filho de imigrantes, a arte sempre se arriscava a ser uma atividade inútil. Só era aceitável se fosse uma fonte de renda, como no caso de sua profissão: “fachadista”, ou mestre de fachadas, no Liceu de Artes e Ofícios. As plantas de suas obras deslumbravam Fiaminghi. Poderíamos dizer que ele investiria sua vida para provar ao pai que fazer arte não é gastar tinta, não é algo inútil.

Fiaminghi descobriu as cores e o pintar ainda criança, com pouco mais de 7 anos, quando foi morar na Lapa, na

rua Espártaco, próximo à Companhia Melhoramentos, uma das maiores gráficas de São Paulo. Andando pelas redondezas, encontrou os restos de tintas litográficas da empresa, que eram jogados em um buraco, atrás do prédio. Passou a buscá-los em caixas de fósforos, para pintar. Mais tarde, já amigo dos funcionários da gráfica, pegava as sobras das tintas diretamente das máquinas impressoras.

Alguns anos depois, em 1936, ingressou na Melhoramentos como aprendiz de litografia2 artesanal, “cromista”, como se designava naquela época. Seus olhos iriam se capacitar para “desler”3 o real.

O ofício guardava muito das origens de sua pintura. O litógrafo artesanal fazia o que hoje fazem os scanners eletrônicos. A partir de uma imagem original, ele separava as cores em diversas pedras de impressão, seguindo o método de Senefelder, a cromolitografia. Assim, os olhos de Fiaminghi foram treinados para decompor uma cor em matizes a serem sobrepostas

2 A litografia é o exercício de decompor cores na mente e na pedra para depois recompor na sobreposição de matizes.

21
1 A Revolução do Isidoro refere-se à Revolução Paulista de 1924. [N.E.] 3 Décio Pignatari, Fiaminghi (catálogo de exposição), São Paulo: Galeria São Paulo, 1986.

na impressão, para reproduzir a imagem original. As áreas de cores chapadas ou reticuladas por pontos eram aplicadas manualmente, por meio do controle sensível, sem ajuda de instrumento algum. Esse exercício para criar o avesso da imagem gerou uma das principais forças da visualidade do artista.

Ainda em 1936, Fiaminghi percebeu a necessidade de aprender a desenhar. Além de copiar, queria criar as suas próprias imagens. Frequentou, então, por seis meses, o curso de Giglio, professor de desenho e pintor de porcelana. Nesse período, descobriu o trabalho de um pintor acadêmico, alguém como Porbus, a personagem de Balzac em A obra-prima ignorada: João Oppido, morador da rua Duílio, que vivia em uma casa oposta à sua, também litógrafo da Companhia Melhoramentos. Fiaminghi passava em frente à residência do vizinho ao ir às aulas noturnas de desenho com Giglio e observava Oppido trabalhando em suas aquarelas. Até que este deixou a Melhoramentos para se dedicar exclusivamente ao ofício de pintor.

O exemplo de Oppido foi uma iluminação transformadora para o jovem Fiaminghi, suficiente para até mesmo colocar em dúvida a certeza do “empregão” na Melhoramentos: “Achei que podia fazer o que ele fazia… Por causa dele é que comecei a pintar”4

No mesmo ano, iniciou a formação como artista-pintor. Ingressou no curso noturno do Liceu de Artes e

4 Todas as citações de depoimentos de Fiaminghi foram extraídas do livro: Isabella Cabral & M. A. Amaral Rezende, Hermelindo Fiaminghi, São Paulo: Edusp, 1998.

Ofícios, onde estudou desenho, escultura e arquitetura. As disciplinas eram desenho artístico (fazer cópias de Michelangelo), anatomia, perspectiva, xilogravura, gravura em metal, geometria e geometria descritiva. Enquanto muitos aprendizes de pintura apenas copiavam, Fiaminghi desenvolveu uma postura mental diferente: a de ver através da imagem para encontrar a sua essência. Não a essência conceitual, expressa pelo discurso verbal, mas a que se registra como forma visual, como o modo de pensar intrínseco ao pintor. Essa preocupação marcará o trabalho estético de Fiaminghi ao longo de toda sua vida: uma interrogação permanente sobre o que é a essência de sua arte, origem e fim da pintura.

Tal visão se conformava por uma outra disciplina: a geometria descritiva. “A base da geometria descritiva é que me levou à arte concreta”, reconheceu mais tarde. Mais do que o desenho, matéria ministrada pelo português Waldemar da Costa, um pós-vanguardista de 1910-1930. Com ele, aprendeu o rigor da representação que sempre perseguiu, inclusive na qualidade de execução própria ao desenhista técnico. Somando o virtuosismo da reprodução das imagens com a base intelectual da geometria, Fiaminghi dava a si mesmo uma nova autodignidade. Como se conhecesse o ensinamento de Alberti, escrito séculos antes, em 1425:

“Faço o voto de que o pintor, tanto quanto possível, seja sábio em todas as artes liberais, mas desejo, antes de

22

mais nada, que seja hábil em geometria […] aquele que ignora a geometria não será jamais um bom pintor”5

Waldemar da Costa transmitiu a Fiaminghi os modos de ser e de pintar dos impressionistas e pós-impressionistas que trouxera de Paris, ainda que tardiamente: Monet, Cézanne e Van Gogh, aqueles que viriam a ser os ídolos de Fiaminghi. Este seguiu o exemplo dos colegas e saiu para pintar a natureza, buscando as paisagens dos arredores da cidade, a Freguesia do Ó, o Canindé e as margens do rio Tietê. Eram paisagens quase bucólicas, campos à beira d’água, com canoas, edifícios no horizonte e postes de fiação elétrica.

Fiaminghi não precisou cumprir os degraus entre impressionismo, cubismo, expressionismo e abstracionismo típicos dos pintores brasileiros das primeiras décadas do século XX, nem viveu a pintura como uma válvula de escape para as emoções, angústias ou projetos políticos. Ela já lhe surgiu como uma prática estética em si.

Na Galeria Itá, em 1940, visitou a II Exposição Francesa, sempre levado por Waldemar da Costa, que ali ministrou um curso de história da arte. “Essa Exposição Francesa me marcou espetacularmente… Picasso com as fases azul e rosa”, lembrou-se. Em 1941, Fiaminghi concluiu a formação no Liceu de Artes e Ofícios, mas não foi nem buscar o diploma. Abandonou o curso de Waldemar da Costa e decidiu seguir a profissão de litógrafo. “Saí porque não achava que ia ganhar a vida com pintura. Largava, parava, fui, parei…” Não

poderia ter agido diferente. Se hoje é difícil sobreviver da pintura e conseguir reconhecimento social, naquela época era quase impossível. “Pintor não tem grana para sustentar família”, me dizia Fiaminghi. Arte era coisa de ricos ou de miseráveis.

Aos 21 anos, fez “um balanço de consciência e de vida”. Na Melhoramentos, atingiu a posição de litógrafo oficial. E aceitou a oferta de 120 mil réis por mês para trabalhar no ateliê da litografia Benasatto, “um ateliê famoso na época. Todo cara que tinha passado por lá ia trabalhar de cartola”.

A opção foi radical. Afastou-se também de Lothar Charoux, amigo de muitos anos. Jogou o equipamento e o material de pintura no rio e assumiu-se como arrimo de família. “Ganhava três vezes o que meu pai

23
5 Leon Battista Alberti, De pictura, Paris: Allia, 2014, p. 71. Canindé, 1939. Óleo sobre tela, 32 × 40 cm, coleção família Fiaminghi, fotografia por Carlos Mancini

ganhava.” Mas essa condição era algo angustiante. “Comecei a pintar muito cedo. Sempre estive voltado para ser pintor, mas não acreditava que podia sê-lo. Fazia no sentido de hobby, fazia algumas paisagens, ao mesmo tempo que desenvolvia o trabalho da gráfica.”

Com o fim da Segunda Guerra Mundial, Fiaminghi reforçou sua opção por uma atividade economicamente mais rentável. Em 1946, decidiu virar seu próprio patrão: abriu a Graphstudio Ltda. Antevendo o fim da litografia como técnica de impressão comercial, substituída pelos fotolitos e pelo offset, optou pela produção gráfica e tornou-se diagramador. Fez ilustração e paginação e chegou à publicidade. No final de 1948, como um ambicioso jovem de negócios, Fiaminghi vendeu a Graphstudio aos sócios e entrou na Lintas, a agência de publicidade da Gessy Lever, antigo nome da Unilever, para ocupar uma importante posição: diretor de arte responsável pelo estúdio. No ano anterior, havia sido inaugurado o Museu de Arte de São Paulo (Masp), grande divisor de águas da cultura paulista, abrindo para a modernidade uma cidade industrial que se queria menos provinciana. Fiaminghi não foi à abertura do Masp, por desinteresse. Tampouco visitou a Galeria Domus, criada também em 1947, a primeira dedicada à arte moderna em São Paulo. Também não foi à exposição 19 pintores, no mesmo ano, na Galeria Prestes Maia, que reuniu Charoux, Maria Leontina, Sacilotto e muitos outros jovens artistas, e atraiu milhares de visitantes. Tal era a sua vontade de afastar-se da pintura.

Durante a Segunda Guerra, as indústrias paulistas aumentaram a produção para atender a demanda local, acelerando o processo de substituição de importações. Assim, teve início a era do consumo, cuja consequência foi o desenvolvimento da publicidade e da comunicação de massa. O trabalho de Fiaminghi ganhou mercado a ponto de alterar o sentido de sua vida e minimizar a importância da pintura nela.

Foi na Lintas que conheceu Joaquim Alves, que o estimulou a voltar à pintura. Saíam regularmente para desenhar os tipos das ruas de São Paulo, no Jardim da Luz e no Mercado Municipal. “Instantâneos de rua”, diria. Mas essa era sempre uma atividade de fim de semana. Nessa época, Fiaminghi já namorava Mercedes Ribeiro da Silva, sua futura esposa e companheira de toda a vida. As descrições de Joaquim Alves entusiasmaram Fiaminghi a conhecer São Sebastião, no litoral norte do estado. Quando Mercedes aceitou o convite para anteciparem o casamento, aproveitou as férias da Lintas e os dois desceram a serra para passar dois meses no litoral. Em São Sebastião, foi sedução à primeira vista. Voltou a pintar e decidiu se estabelecer por lá. Pintou três telas, que o tempo consumiu, com as quais presenteou amigos. Esse impacto, somado à morte de sua irmã, Lydia, em maio de 1950, o levou a contestar, pela primeira vez, o sentido de um emprego alienante, ainda que bem remunerado. Permaneceu na Lintas porque cedeu à pressão de seus patrões. Lá

24

conheceu um dos futuros membros do Grupo Ruptura 6 , Leopold Haar, designer e artista construtivo de origem polonesa. Este lhe apresentou a pintura construtiva –Malevich, Pevsner, Moholy-Nagy, os neoplasticistas, Kandinsky e até mesmo representantes da nascente pintura concreta, como Max Bill. Mais do que uma nova visão da pintura, recebeu valores transfiguradores: o sentido do “novo”, disciplina e clareza, ordem e movimento, sistema, “fatores que correspondem ao espírito do tempo”7

Foi na prática da criação publicitária que Fiaminghi encontrou os vetores de sua linguagem futura. Por encomenda de Leopold Haar, em 1951 criou a capa do catálogo da Escola de Propaganda do Masp 8, identificada por Haar como “arte construtiva”. De fato, era uma obra serial, com organização visual de módulos curvos e retangulares, duas cores, preto e branco, sobre um fundo amarelo ocre, uma coluna quase vertical, em movimento integrado, de cima para baixo, decompondo o título em suas divisões e subdivisões.

A peça, ainda que utilitária, não artística, marca o reencontro de Fiaminghi com a pintura e, mais do que isso, a sua decisão pela pintura como propósito

6 Em dezembro de 1952, foi inaugurada pelo Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP) a exposição Ruptura, que marcou o início oficial da arte concreta no Brasil. Tal mostra foi concebida e organizada por um grupo de sete artistas, conhecido como Grupo Ruptura. [N.E.]

7 Leopold Haar, “Práticas novas”, Habitat, São Paulo: 1951, n. 5.

8 Atualmente, corresponde à Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), em São Paulo. [N.E.]

de vida. “Achei que tinha chegado a hora de fazer pintura”, concluiu. Essa decisão interior se confirmou nas conversas com Leopold Haar, Waldemar da Costa e Lothar Charoux, que tinha como projeto de vida a pintura abstrata com viés construtivo.

Em 1951, ano dessa metamorfose, o micromundo da arte paulista vivia uma euforia de eventos. Em março, aconteceu a exposição de Max Bill no Masp, organizada por Pietro Maria Bardi. A arte concreta nascia, articulada pelo manifesto do Grupo Ruptura, substituindo a simples arte abstrata, e ganhava visibilidade com a premiação da obra Unidade tripartida, de Max Bill, no Grande Prêmio da I Bienal, em outubro.

Fiaminghi voltou a frequentar o ateliê de Waldemar da Costa. Tomou impulso e, em abril de 1952, pediu demissão da agência Lintas. Foi quando passou a viver o sonho de ser pintor, somente pintor, com dedicação exclusiva à pintura, misto de ousadia e ingenuidade, sem real possibilidade de concretização. Isso porque, em São Paulo, nesses anos, não havia mercado de arte para viabilizar a sobrevivência de um artista pela venda de obras figurativas, desconsiderando as encomendas oficiais. Assim, em julho de 1952, Fiaminghi assumiu um emprego, de meio período, como desenhista na loja Sensação Modas, para garantir a sua sobrevivência e ainda ter tempo para pintar. Dois dias na semana, passava meio período no ateliê de Waldemar da Costa. No final de 1952, pintou sua obra de ruptura, Mulher sentada, sua última tela figurativa. Mesmo com o incentivo de Waldemar da Costa, não quis enviá-la à Bienal

25

de São Paulo. “Não, essa eu não quero mandar. Não é isso que quero mostrar na Bienal… Não é assim que quero ser visto”, dizia. “Se até aquela idade ainda não tinha participado de nenhuma exposição, quando participasse tinha de ser pra valer. Eu sabia o que queria. Precisava encontrar a obra que me desse o caminho. Não queria ser pintor a qualquer custo.” Fiaminghi tinha pavor de ser visto como artista acadêmico ou como impressionista.

26
Mulher sentada, 1952. Óleo sobre tela, 56 × 45 cm, coleção família Fiaminghi, fotografia por Carlos Mancini

A UTOPIA DA ARTE CONCRETA

Quando Fiaminghi encontrou a pintura do Grupo Ruptura, em dezembro de 1952, sua reação foi de indiferença. “Não calou nada em mim”, disse. Apesar de o manifesto do grupo falar em “os que criam formas novas de princípios novos”9, a exposição foi apenas um entre muitos estímulos à mudança estética que acontecia na época.

Como iria acontecer em outros momentos críticos de seu percurso, Fiaminghi se transformou em reação a um grande impacto catalisador. Foi assim com a II Bienal de São Paulo, em dezembro de 1953. “Com um elenco de primeira grandeza, refletiu o clima de euforia que se espalhou por toda a cidade.”

A exposição mostrou artistas já consagrados nos centros europeus, mas pouco conhecidos em São Paulo. Havia salas especiais de Picasso, Klee, Braque, Duchamp e Mondrian. Volpi foi escolhido como o melhor pintor brasileiro, prêmio dividido com Di Cavalcanti, por pressão de Herbert Read e Mário Pedrosa. São Paulo se queria vanguarda. Institucionalizou-se a ideologia do novo, do crescimento e do progresso pela industrialização, do moderno e da internacionalização. Fiaminghi visitava a Bienal com frequência, em

9 Grupo Ruptura, Manifesto, São Paulo: Museu de Arte Moderna de São Paulo, 1952.

27
Sequência de curvas, 1953. Têmpera sobre papel-cartão e gesso, 60 × 48 cm, coleção família Fiaminghi, fotografia por Carlos Mancini

companhia de Charoux, Waldemar da Costa e Valentino Cai. Como dizia, “era boteco e corredor”.

Fiaminghi reagiu ao impacto com recolhimento e trabalho interior. Não ia mais pintar no ateliê de Waldemar da Costa; só aparecia lá para conversar. Em regime de meio período, pintava em casa. Porém, mais fazia estudos do que obras. Na retrospectiva Fiaminghi:

décadas 50/60/70, não é mencionada nenhuma pintura datada de 1954. Porém, seus trabalhos em guache daquele ano – raríssimos em fases posteriores de sua produção – indicam que o novo rumo, a arte concreta, já se decidira.

O artista havia encontrado a estrutura dinâmica de módulos, em cores básicas, prenunciando o movimento de formas seriais que distingue suas obras concretas. Já se diferenciava em relação aos outros pintores concretos pela invenção na racionalidade ou pela racionalidade inventiva – uma pintura disruptiva, podemos dizer. Max Bill, por exemplo, pintava soluções racionais de formas seriais e programadas a partir de um algoritmo único, enquanto as formas seriais de Fiaminghi se autossurpreendiam pela interferência da informação original criada pelo artista. No concretismo suíço, imperava a ordem e a continuidade das relações visuais, estáveis. Em Fiaminghi, a invenção ou a criatividade transgrediam a sequência racional, como se introduzissem um algoritmo do caos, recusando a dominação da razão.

Em 1955, o tempo de recolhimento deu lugar ao tempo de pintar. Aos 35 anos, resolveu concentrar toda a sua vitalidade no trabalho artístico. Em junho, participou da abertura da III Bienal com duas obras: Composição vertical I e Sequência de curvas. Na crítica de J. G. Vieira, é identificado como pintor concretista, junto com um grupo de artistas. “Fui pego em flagrante”, reagiu, com seu jeito histriônico. A partir de então, passou a viver e a pintar a utopia da arte concreta, uma

28
Elevação vertical com movimento horizontal, 1955. Esmalte sobre madeira, 60 × 60 cm, coleção Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC-USP), fotógrafo desconhecido

visão de transformação da pintura e da sociedade, na esteira da euforia social das décadas após a tragédia da Segunda Guerra Mundial.

Em relação à sociedade, esperava-se um heterogêneo “admirável mundo novo”, indo da fantasia da perfeição da técnica e da indústria ao fetichismo dos objetos e de ambientes de bom design, do desenvolvimento tecnológico e econômico à igualdade social e à abolição da propriedade privada. Nas artes visuais, o projeto era mais homogêneo: a perfeição de uma nova ordem estética, sustentada pelo entendimento da psicologia da forma, a gestalt, como meio para realizar a recepção imediata da obra de arte, como se isso fosse efetivamente possível.

Este trecho de Arte concreta, manifesto de Theo van Doesburg de 1930, sintetiza bem a utopia do concretismo na pintura:

O quadro deve ser inteiramente concebido e formado pelo espírito antes de sua execução… deve ser inteiramente construído com elementos puramente plásticos, isto é, planos e cores. O elemento pictural só significa a “si próprio” e, consequentemente, o quadro não tem outra significação que “ele mesmo”… A construção do quadro deve ser simples e controlável visualmente…A técnica deve ser mecânica, isto é, exata, anti-impressionista… Esforço pela clareza absoluta10.

10 Theo van Doesburg, “Arte concreta”. Em: Aracy Amaral, Projeto construtivo brasileiro na arte (1950-1962), São Paulo: Museu de Arte Moderna de São Paulo e Pinacoteca de São Paulo, 1977, p. 43.

No Brasil, esses princípios se traduziram em guias para a nova pintura concreta, a exemplo do resumo escrito por Waldemar Cordeiro:

a) construção espacial bidimensional (o plano);

b) atonalismo (as cores primárias e complementares);

c) movimento linear (fatores de proximidade e semelhança)11.

29
Long Play, 1956. Tinta esmalte sobre eucatex, 44,5 × 44,5 cm, coleção Décio Pignatari, fotografia por Romulo Fialdini/Tempo Composto 11 Waldemar Cordeiro, “Ruptura”. Em: Aracy Amaral, Waldemar Cordeiro, uma aventura da razão, São Paulo: Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, 1986, p. 63.

Fiaminghi continuou em suas conversas:

O que é pintura concreta? Postulações e princípios, alguns princípios que defendíamos. A nossa proposta de objetivos e princípios com relação às nossas obras era: o despojamento total da forma; pretendíamos uma forma racional e própria das artes plásticas, descongestionadas dos conteúdos literários desnecessários. Os conteúdos literários extrapictóricos, que invadiam as demais tendências. Para nós, um quadro concreto não deveria contar uma história, e sim propor problemas de pintura antes de tudo. Em si próprio conter e transmitir uma visualidade permanente, constante de sua própria linguagem cromática. Um quadro concreto para nós é aquilo que se vê e não aquilo que se pensa que se está vendo. Ou ainda pensar que o que se está vendo no quadro serve apenas de suporte para imaginações gratuitas fora do próprio quadro. O imaginário do inexistente da obra. A nossa obra é geométrica na medida em que a arte não deve ser geometria. Eu vou citar aqui o que Platão considerava e me parece que isso vem bem a calhar neste momento. Platão considerava que copiar os objetos da realidade imediata significava lidar com modelos inferiores. Considerava isso uma imperfeição do mundo das ideias e definia que o uso das formas geométricas seria o absoluto em arte, por serem as únicas a permitir uma visualização do mundo das ideias. As obras tinham em comum a cor e a forma como funções principais, e não os estímulos delas decorrentes. A vibração ótica da cor e da forma, os efeitos produzidos pelo

inter-relacionamento da simultaneidade, era o que propúnhamos, era o que executávamos.

Como “princípio de esperança”, na expressão de Ernest Bloch, a utopia concreta aconteceria como expressão do mundo da tecnologia da sociedade industrial, o chamado “mundo administrado” de Adorno. Com sua realização, a humanidade atingiria a perfeição, a plenitude do desenvolvimento do espírito na visão hegeliana. Essa era a húbris, o sentimento de hiperpotência dos concretistas e da cultura brasileira na década de 1950, uma fantasia que durou pouco, mas deixou marcas capazes de ser consideradas como prenúncios de outra fantasia: a de que a cultura brasileira teria um significado global, um discurso que quase cinquenta anos depois ainda pode soar como fantasioso.

Por explorar o limitado código das formas geométricas, altamente redundante e, no fundo, contrário à busca da originalidade, essencial à arte, em pouco tempo se reconheceu que a utopia concreta era uma distopia para os artistas. Como escreveu Haroldo de Campos, ela “aliena a singularidade de cada poeta pela necessidade de uma poética, perseguida em comum, pelo esforço coletivo”12.

A série Virtuais contesta a certeza concreta, uma vez que “seu objeto é determinado negativamente como

12 Haroldo de Campos, De la razón antropofágica: diálogo y diferencia en la cultura brasileña, Cidade do México: Siglo Veintiuno, 2000, p. 44.

30

indeterminável”13 . Essa indeterminação – o objeto é positivo ou negativo? – faz com que a arte concreta deixe de ser a certeza da geometria para ser a incerteza da forma subjetiva, aquela que poderia ser a forma virtual. Ela mesmo provoca e encontra seu fracasso, formula e atesta seu equívoco.

Com essa série, Fiaminghi contestou a sua prática de pintor concreto. Procurou a autotransformação de sua visualidade pela síntese entre elementos opostos: o pleno e o vazio, o triângulo e o losango, as cores complementares. A resultante seria uma não forma tridimensional, ou melhor, uma forma de duas dimensões e meia: a forma-possibilidade ou a forma que almeja vir a ser outra forma, como quer o título da série.

As obras se dão a entender como componentes da autointerrogação do artista, como provocadoras de reflexão, algo totalmente distinto da racionalidade que leva à percepção imediata e autossuficiente, como a arte concreta queria ser. Ou será que o conflito entre o triângulo pleno e o triângulo virtual não representa uma dupla denúncia da arte como ilusão, lembrança da perigosa tendência da arte concreta?

As obras Virtuais se autocontestam enquanto obras de arte, enquanto unidade. Se a série Alternados era um modelo de unidade visual, esta nega tal unidade e se mostra como uma heterogeneidade, como duas formas percebidas como três. A unidade visual da utopia concreta torna-se uma fixação: objetivamente real,

13 Theodor W. Adorno, Aesthetic Theory, Mineápolis: The University of Minnesota Press, 1996, p. 72.

subjetivamente irreal – sem querer ser ilusão. É uma situação de interrogações, não mais a do autoritarismo visual, centralizado na própria obra de arte concreta.

Dentro de sua obra pictórica, na tela Corluz, superposição de quadrados em transparência (1958), na página seguinte, Fiaminghi já previra o fim da utopia concreta, movido por sua inquietude e pela permanente busca do novo. Assumiu essa intuição e rompeu com o grupo de pintores concretos em 1959, por meio de uma carta dirigida a Waldemar Cordeiro e a outros colegas.

Fiaminghi foi além da obra concreta. Realizou a objetivação da obra de arte ao negar a forma ideal do

31
Virtual VII, 1958. Tinta esmalte sobre eucatex, 50 × 50 cm, coleção Ernesto Poma, fotografia por Alberto Romeu

capitalismo. Em seu trabalho, não há qualquer traço do processo de produção industrial. Ao contrário, ele propõe a própria materialidade, a forma como a inscrição da própria forma: “a densidade de alguma coisa em si mesma, como alguma coisa colocada em uma obra de arte, não pode ser alguma coisa em si mesma”14

A ação política de Fiaminghi não se realizava por meio do discurso verbal, mas pela própria pintura, com a recusa da forma preestabelecida ou da ornamentação, resultado da beleza fácil, ao gosto do mercado. Ao invés do prazer dos sentidos, sua obra busca expressar sua inquietação intelectual e denunciar o mito do novo capitalismo brasileiro.

O concretismo, sob a liderança intelectual de Waldemar Cordeiro, se queria um movimento de esquerda; porém, hoje é possível constatar que ele se integrava à ideologia desenvolvimentista de Juscelino Kubitschek. Fiaminghi soube intuir esse avesso da realidade que era a sua verdade. Ao buscar ir além das limitações da utopia concreta, estava fazendo um duplo movimento, estético e político. Ele buscava a verdade estética, isto é, aquela gerada por uma “racionalidade arcaica” e expressa por: “toda obra autêntica propõe igualmente a solução do seu enigma insolúvel”15

Nas obras concretas, Fiaminghi operava somente com as aparências, como se a Pintura, com P maiúsculo, pudesse se limitar à sua exterioridade. Na teoria, os pintores concretos entendiam que a pintura se orientaria

14 Ibidem, p. 108.

15 Ibidem

32
Corluz, superposição de quadrados em transparência, 1958. Têmpera sobre tela, 70 × 35 cm, Fundação Coleção Edson Queiroz, fotografia por Jorge Bastos

por um discurso sobre sua exterioridade, sem propor uma expressão própria, como se fosse possível uma existência sem essência, ou um acidente sem substância, uma contingência sem necessidade – usando dicotomias próprias da filosofia aristotélica. Podemos assegurar, então, que o concretismo cometeu um equívoco semelhante ao do existencialismo sartriano – por coincidência, na mesma época, no final dos anos 1950.

Logo os concretos se deram conta de sua impossibilidade, não mais como membros de um grupo uno, mas como artistas individuais. Se a série Virtuais expressa a ruptura de Fiaminghi com os programas da arte concreta, as duas obras Superposição sintetizam a sua heureca ao prenunciar o futuro de sua pintura.

O primeiro destaque é a inscrição do gesto pictórico. Antes, suas obras se apresentavam com acabamento industrial, como se tivessem sido pintadas como automóveis, sem intervenção da mão humana. Agora, a pintura passou a revelar a si mesma ou o ato de pintar, assumindo-se como expressão objetiva de uma subjetividade: criação e execução em uma única pessoa – essência e existência em identidade.

As formas, cujo módulo seria o quadrado, deixam de ser definidas por contornos e passam a ser definidas por si mesmas, com limites irregulares, e revelam a inscrição do gesto ou a expressão do pintor.

O segundo destaque refere-se à forma. É preciso salientar que a ruptura de Fiaminghi se realizou pelo quadrado, e não pelo círculo, como seria de se esperar de um gráfico. Nesse momento, para marcar

sua descoberta de uma nova pintura, Fiaminghi cria um neologismo – corluz – que viria a identificar sua produção na maturidade.

Na tela já citada, Corluz, superposição de quadrados em transparência, enigmática como As meninas de Velázquez, implode o conflito das formas geométricas com as manchas de cores. Os quadrados existem apenas no título. Na tela, seus contornos foram dissolvidos pela variação da cor, como se marcados pela erosão. A pintura decompôs a geometria, mais do que a desconstruiu. Mesmo as linhas mestras verticais ou horizontais não são contínuas, à exceção das linhas externas, os limites da pintura. Pintar essa tela foi para o artista como comer a maçã da árvore do Paraíso, o fruto proibido para Adão e Eva: o pecado mortal que o expulsou da arte concreta e o condenou a vagar de tela em tela, sem mais nenhum princípio ou guia, e a adotar um discurso sem método, sem esperança de encontrar uma saída, a síntese entre o que via e o que pintava. Uma saída impossível e, por contradição, a porta de entrada para o pedregoso caminho da beleza.

33

Na arte, a expressão não se origina apenas do apuro da técnica, mas desponta da ousadia da experimentação e da insistência na descoberta de algo novo: a própria voz. Por meio do trabalho de encontrar e moldar a própria linguagem, o artista se esforça para nos comunicar sua forma única de ver o mundo.

O artista Hermelindo Fiaminghi (1920-2004) fez tal percurso confluindo diversos saberes técnicos em obras cuja potência está no embate entre a luz e a cor. Artista gráfico, desenhista, litógrafo e publicitário, Fiaminghi condensou no ser pintor a plataforma para tentar entender e representar o surpreendente comportamento da luz.

Este livro reúne grande parte de seu legado na arte brasileira. Junto a nomes como Geraldo de Barros e Waldemar da Costa, ou a poetas como Décio Pignatari, Augusto de Campos e Haroldo de Campos, Fiaminghi revela em sua arte o esmero da pesquisa imagética pela liberdade da cor em sua dependência da luz. Resta a nós, espectadores do belo, apreciar sua voz.

Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.