Jornal de Letras Redesign (school project)

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Ano XXXI. Número 1075. De 14 a 27 de Dezembro de 2011 Portugal (Cont.) 2.80€ . Quinzenário. Director José Carlos de Vasconcelos

EMMANUEL NUNES Inéditos de Afonso Cruz, Francisco Duarte Mangas, Hélia Correia, João de Melo, José Viale Moutinho, Lídia Jorge, Mário Cláudio, Rosa Alice Branco, Rui Herbon e Rui Zink

Pensar a música e o mundo ENTREVISTA págs. 11 e 12

mini contos (quase) de natal

Págs. 3 a 6

Maria Teresa Horta

Poesia 61 uma memória págs. 7 e 8

JL/EDUCAÇAO

O ensino de uma segunda língua

Um texto de António Nóvoa

O Diário de

Carlos Reis contra-capa



A Secretaria de Estado da Cultura

agenda cultural

jornal de letras.pt / 14 a 27 de Dezembro de 2011

ALMADA Teatro Municipal de Almada Av. Prof. Egas Moniz. Tel.: 212 739 360 D Romeu e Julieta Pela Companhia Nacional de Bailado e a participação da Orquestra Sinfónica Portuguesa, sob a direcção musical de Joana Carneiro. 29 e 30 de Dezembro - 21h T O Teatro Cómico De Carlo Goldoni, encenação de Mario Mattia Giogetti. Produção da Companhia de Teatro de Almada. 5º A SÁB., ÀS 21H30; DOM., ÀS 16H até 18 de Dezembro T Verdi Que Te Quero Verdi A partir de Giuseppe Verdi, encenação de Teresa Gafeira, interpretação de João Farraia, João Maionde, Pedro Walter, Sofia Correia. Produção Companhia de Teatro de Almada. 14, 15 e 16 de Dezembro - 10h30 e 14h30 17 de Dezembro – 15h 18 de Dezembro – 11h T Laço de Sangue De Athol Fugard, encenação de Luís Vicente, interpretação de Luís Vicente e Mário Spencer. 16 e 17 de Dezembro – 21h30 18 de Dezembro – 16h

ALMANCIL Centro Cultura São Lourenço Tel.: 289 395 475 E Exposição de Pintura de Gervásio até 15 de Dezembro

Concertos Corais de Natal Teatro Nacional de São Carlos celebra o espírito natalício. Dia 21 e 22 de Dezembro, das 13h às 18h ANGRA DO HEROÍSMO Museu de Angra do Heroísmo Ladeira de São Francisco, Tel.: 295 240 800 3º A 6º DAS 9H30 ÀS 17H; SÁB. E DOM., DAS 14H ÀS 17H E Do Mar e da Terra… Um História no Atlântico Até 31 de Dezembro

AVEIRO Teatro Aveirense R. Belém do Pará, te.: 234 400 920 D Lago dos Cisnes Pelo Ballet do Teatro Nacional Russo de Moscovo. 13 de Dezembro – 21h30

BRAGA Theatro Circo Av. da Liberdade, 697, Tel.: 253 203 800 D Lago dos Cisnes 16 de Dezembro – 21h30

EXPOSIÇÕES Museu D. Diogo de Sousa R. dos Bombeiros Voluntários, Tel.: 253 615 844 3º A DOM., DAS 10H ÀS 17H30 E Pré e Proto – História, Bracara Augusta e o Império Romano, Bracara Augusta - Espaço Urbano, Bracara Augusta – Vias, Morte e Religião. Quatro espaços sobre história da região E Espaço Encontrado Instalação – pintura de Adrina Henriques. até 18 de Dezembro E Rota do Romântico do Vale do Sousa. Uma Experiência Fundada na História. até 31 de Dezembro E Espaço Encontrado Instalação – pintura de Adrina Henriques. até 18 de Dezembro E Rota do Romântico do Vale do Sousa. Uma experiência Fundada na História Esta mostra é composta por um conjunto de painéis que fazem o enquadramento do projecto Rota do Românico e apresentam uma breve descrição histórica e arquitectónica dos 21 elementos patrimoniais localizados na sub – região do Vale do Sousa. até 31 de Dezembro

MÚSICA Theatro Circo Av. da Liberdade, 697. Tel.: 253 203 800 M A Casinha de Chocolate 14 de Dezembro – 10h e 14h30 M Quarteto de Cordas de Matosinhos & Pedro Burmester 17 de Dezembro – 21h30

T Último Acto De Rui Madeira, Anna Langhoff e Alexej Schipenko, interpretação de Carlos Feio, Solange Sá, Rogério Boane, André Laires, Frederico Bustorff Madeira e Vicente Magalhães. Produção Companhia de Teatro de Braga. 14 e 15 de Dezembro – 21h30

SÁB. E DOM., DAS 10H ÀS 13H E DAS 14H30 ÀS 18H

BRAGANÇA

Museu de Arte Contemporânea de ELVAS R. da Cadeia, Tel.: 268 637 150

Centro de Arte Contemporânea Graça Morais R. Abílio Beça, 105. Tel.: 273 302 410 3º A DOM., DAS 10H ÀS 12H30 E DAS 14H ÀS 18H30 E Terra Quente – Terra Fria até 8 de Janeiro 2012 E Travessias do Desenho e da Escultura Mostra de trabalhos de José Rodrigues. até 8 de Janeiro de 2012 Museu Abade de Baçal R. Conselheiro Abílio Beça. Tel.: 273 331 595 E Ordo Zoelarvm: Arqueologia e Identidade do Nordeste de Portugal Até 30 de Dezembro E Nadir Afonso: Absoluto até 15 de Janeiro de 2012

CALDAS DA RAINHA Museu de Cerâmica R. Dr. Ilídio Amado. Tel.: 262 840 280 3º A DOM., DAS 10H ÀS 12H30 E DAS 14H ÀS 17H E Núcleo de Cerâmica Inglesa da Colecção Francisco Coutinho Carreira até 29 de Fevereiro 2012 Museu José Malhoa Parque D. Carlos I. Tel.: 214 848 900 3º A DOM., DAS 10H ÀS 12H30 E DAS 14H ÀS 17H E em desenho – ESAD.CR até 8 de Janeiro 2012

CASCAIS Centro Cultural de Cascais Av. Rei Humberto II de Itália. Tel.: 214 848 900 3º A DOM., DAS 10H ÀS 18H E Exposição Blick Mira Olha! O Arquivo Fotográfico do Instituto Arqueológico Alemão de Madrid até 31 de Dezembro

COIMBRA Teatro de Cerca de São Bernarod/Tel.: 239 718 238 T Animais Nocturnos Texto de Juan Mayorg, encenação de António Augusto Barros, interpretação de Maria João Robalo, Miguel Lança, Miguel Magalhães, Sofia Lobo. 3º A SÁB., ÀS 21H30; DOM., ÀS 16H 15 a 23 de Dezembro

CRATO Mosteiro de Santa Maria da Flor da Rosa Lg. Da Igreja. Tel.: 245 997 210 2º A 6º, DAS 9H30 ÀS 12H30 E DAS 14H ÀS 17H30;

E ou: do Avesso Exposição de pintura de Augusto Rainho. até 8 de Janeiro 2012

ELVAS

E Antena 5 – Staging the Archive até 31 de Dezembro

ESTORIL Casino Estoril Pç. José Teodoro dos Santos. Tel.: 214 667 700 T O Melhor de La Féria até 31 de Dezembro

ÉVORA Casa de Burgos R. de Burgos, 5. Tel.: 266 769 450 DIAS ÚTEIS, DAS 9H ÀS 12H30 E DAS 14H ÀS 17H30 E Poética da Luz Exposição de pintura de Oliveira Tavares Até 11 de Janeiro 2012

FARO Teatro das Figuras Horta das Figuras, E. N. 125. Tel.: 289 888 100 D Cinderela Baildado Inspirado no conto de Charles Perrault. 15 de Dezembro – 15h 16 de Dezembro – 10h30 e 21h30 17 de Dezembro – 21h30 Teatro Lethes R. de Portugal, 59. Tel.: 289 820 300 T Laço de Sangue De Athol Fugard, encenação de Luís Vicente, interpretação de Luís Vicente e Mário Spencer. Produção Companhia de Teatro de Braga e ACTA – A Companhia de Teatro do Algarve. 15 a 17 de Dezembro – 21h30 18 de Dezembro – 16h

GUARDA Museu da Guarda R. General Alves Roçadas, 30. Tel.: 271 213 460 E José Almeida e Silva: Exposição de Pinturas até 31 de Dezembro Teatro Municipal da Guarda R. Batalha Reis, 12. Tel.: 271 205 240 M Freetime Café 16 de Dezembro – 22h M Omar Souleyman (Síria) 17 de Dezembro – 21h30


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BREVE ENCONTRO

LUÍS TINOCO UMA CANTATA ONÍRICA

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passeio do sonhador solitário, cantata de Luís Tinoco, composta a partir do texto homónimo de Almada Faria, estreia a 16, às 21 horas, na casa da Música, no Porto. Sobem ao palco a soprano Ana Quintans, o narrador João Pedro Vaz, a Orquestra Sinfónica do Porto Casa da Música e o coro (infantil) de S. Tomé, sob a direcção de Pedro Neve. Repete a 17, às 18 horas. Luis Tinoco, 42 anos, músico, compositor e diretor do Prémio Jovens Músicos, doutorado pela Universidade de York, estreou no ano passado Paint me, ópera de câmara com libreto de Stephen Plaice.

Jornal de Letras: Como surgiu este projecto?

O Pameiro Homem do Mundo no Pólo Sul no Museu da Farmácia A 6 de Setembro de 1910, atracava no porto do Funchal o veleiro Fram, vindo da cidade de Kristiansand, na Noruega. Ao leme, Roald Amundsen, que, a 14 de dezembro de 1911, viria a pisar, pela primeira vez, o ponto mais a sul da Terra. Em jeito de celebração do centenário desse ‘grande salto para a Humanidade’, inaugura-se hoje, 14, no Museu da Farmácia, em Lisboa, a exposição Roald Amundsen, o Primeiro Homem do Mundo no Pólo Sul, que revela fotografias, fragmentos de diários e outros registos da passagem da tripulação pela Madeira, e da viagem ao Pólo Norte. Até 15 de fevereiro.

CARLOS VARGAS NO TNDM II

GRAÇA MORAIS, PRÉMIO E ÁLBUM

A VIDA DE MARIA, DE RILKE

PRÉMIO EUGÉNIO DE ANDRADE

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arlos Vargas é o novo presidente do conselho de administração (CA) do Teatro Nacional D.Maria II, em Lisboa, sucedendo a Maria João Brilhante que, na sequência do afastamento de Diogo Infante como diretor artístico, pôs o seu lugar à disposição. Aos 45 anos, Carlos Vargas já passou pela administração do OPART (Organismo de Produção Artistica, EPE), pela direção do Teatro Nacional de São Carlos e da Companhia Nacional de Bailado. Na reunião do Conselho de Ministros na qual foi aprovada a sua nomeação, foram também aprovadas as nomeações dos dois vogais do CA: António Pignatelli e Sandra Castro Simões.

Prémio de Artes Casino da Póvoa 2011 é entregue a Graça Morais num jantar de homenagem no próximo sábado, 17, que ali decorrerá. Na ocasição será lançado um álbum, parte integrante do prémio, dedicado à sua obra: Graça Morais – ordem e desordem do mundo, com coordenação editorial da Árvore. Reunindo/ reproduzindo muitas das mais significativas obras da pintora, o volume tem texto de Laura Castro e testemunhos de, entre outros, Agustina, M.A.Pina, V.Graça Moura, Nuno Júdice e vários críticos de arte. A fechar, um concerto pelo músico (nome destacado da guitarra clássica portuguesa) e compositor Pedro Caldeira Cabral, marido da artista.

É um retábulo cénico sobre a mansidão, quietude, a imagem sem mácula, a aura de umacerta santidade a que todos nós podemos aceder se o cinismo, a soberania e os outros sinais do já famoso mal-estar contemporâneo nos abandonar momentaneamente. (…) Este espectáculo é uma oração. Este espectáculo é um ato militante. Este espectáculo devia ser uma leve brisa”, palavras de Miguel Loureiro, encenador de A vida de Maria, de Reiner Maria Rilke, que se estreia a 16, às 23 e 30, no Jardim de Inverno do São Luiz Teatro Municipal, em Lisboa. A partir da tradução de Maria Teresa Dias Furtado, fica em cena até22.

volume a Criança que RI valeu a Carlos Alberto Torres Figueiredo o Prémio de Poesia Eugénio de Andrade 2011, criado este ano pelo editor José da Cruz Santos e a chancela Modo de Ler. Presidido por Luís Adriano Carlos e constituído por Inês Lourenço, Jorge Sousa Braga, José Manuel Mendes, Luís Miguel Queirós e Miguel Moura, o júri elegeu por unanimidade de um conjunto de aproximadamente meia centena de obras candidatas. O prémio garante 10 mil euros e a publicação do manuscrito, e será entregue numa cerimónia pública perto do aniversário de Eugénio de Andrade, em 19de Janeiro de 2012.

Luís Tinoco: A peça resultou de uma encomenda do serviço educativo e da Orquestra Sinfónica da Cada da Música. Tive total liberdade, com apenas duas condições : escrever para a orquestra e ter algum elemento relacionado com o serviço educativo. Interessou-me trabalhar com o Coro de S.Tomé, um projecto de carácter social da Escola de S.Tomé, situada numa zona complicada do Porto. São cerca de 50 crianças, entre os 7 e os 10 anos, que não leem música. Fizeram um trabalho incrível, com os monitores Joana Araújo e Gil Teixeira. A peça tem cinco dimensões : a electrónica (a cargo do compositor Filipe Lopes), a da imagem (da responsabilidade de Jérôme Bosc), do coro, da orquestra… …e do texto . Como chegou até ele?

“As personagens Sonhador e Desconhecida são uma espécie de Orfeu e Eurídice” Tenho o previlégio de ser amigo do Almeida Faria há alguns anos. É um melómano convicto e um profundo conhecedor de qualquer repertório que envolva texto. Eu sabia da sua vontade em trabalhar com uma partitura e como gosto muito da sua escrita – que tem características muito musicais - , desafiei-o. Ele acedeu, com grande entusiasmo. E Transformou o conto num libreto, parte em verso… Exatamente . Pensei logo que tinha potencial para ser adaptado. A descrição de todos os ambientes do metro de Nova Iorque, as figuras estranhas que o Sonhador vai absorvendo e aquele universo onírico inspiram a imaginação de um compositor. Eu tinha esse desejo secreto. Almeida Faria reformulou o texto para poder ser adaptado a uma peça vocal/orquestral e criou uma personagem nova, a Desconhecida, que assume uma enorme importância. O Sonhador e a Desconhecida são uma espécie de Orfeu e Eurídice. Luís Tinoco

VAI ACONTECER

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jornal de letras.pt / 14 a 27 de Dezembro de 2011

Quais os maiores desafios desta cantada? Em primeiro lugar o da proporção. São quase 40 minutos de música. Sendo uma peça orquestral e vocal que exige um grande fôlego. É a diferença entre um sprint e uma corrida de fundo. Sobreviver é o principal desafio e conseguir manter uma direção, uma narrativa coerente, em que a música avance de forma a sentirmos que, no final, se trata da mesma peça. Isto é ainda mais difícil porque se passaem continuum , sem estar dividida em andamentos. Francisca Cunha Rêgo


jornal de letras.pt / 14 a 27 de Dezembro de 2011

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editorial josé carlos de vasconcelos

Rebello, um nome para o teatro Português

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om a morte, aos 87 anos, de Luiz Franscisco Rebello (ler noticia) desaparece, quase me silencia, a mais importante e polifacetada figura de, em simultâneo, dramaturgo, estudioso “militante” do teatro e defensor dos direitos dos autores do século XX português e dos alvores desde século XXI. Que se distinguiu ainda pela sua constante intervenção intelectual e cívica, sempre do lado da defesa da liberdade e dos Direitos do Homem, nos duros tempos da ditadura. Luiz Francisco Rebello (LFR) pertencia a essa geração, de escritores nascidos entre 1919 e cerce de1925, a que aqui chamei de “ouro”, lembrando então alguns dos mais notáveis, de Sophia a Saramago, de Augustina a Eduardo Lourenço, de Sena a Eugénio de Andrade ou Cesariny, de Urbano ou França a O’Neill. Nessa geração, o autor de É urgente o amor e Alguém terá de morrer era a grande figura da área do teatro e por essa via, mas não só, uma personalidade de grande destaque na vida cultural portuguesa – como o foi durante mais de meio século. A obra dramatúrgica de LFR (que mereceu, em 1964, o então prestigiosíssimo Grande Prémio da Sociedade Portuguesa de Escritores – na poesia atribuído a Sophia), distinguia-se, e distingue-se, quer pela quantidade literária, quer pela atenção à realidade portuguesa, dando-lhe a expressão dramática possível nesse tempo de inquisitorial censura, quer pelo saber oficinal e sentido cénico. Daí que as suas peças, desde as dos anos 40 e 50, fossem tão desconhecidas, apreciadas e das mais representadas todos os níveis: dos Teatro Nacionais D. Maria II, Nacional Popular e Experimental do Porto, quando dirigido por António Pedro, a inúmeros grupos amadores, de todos o “género” e de todos o país. A sua primeira peça representada foi O mundo começou às 5 e 47, em 1947, no Teatro Estúdio do Salitre, de que foi um dos fundadores e directores, em 1950, os Comediantes de Lisboa, dirigidos por Ribeirinho (que encenou também Pássaros e Assas cortadas, tendo como protagonista Eunice Muñoz) levaram à cena Ventania, peça nunca publicada, em 52 o Nacional chegou a ensaiar O Dia Seguinte, que a censura proibiu (mas só esta peça seria representada em 12 países). E por ai fora. Se começo por falar da sua obra como dramaturgo é pela sua importância, pelo seu significado e porque não obstante editada, completa (Teatro Todo) , em 1999 e 2006, pela Imprensa Nacional, terá sido ofuscada, a partir de certa altura, pelas suas outras facetas do autor. Desde logo, ainda neste domínio, por Rebello, além de tradutor, adaptador, crítico, articulista, ente nós e no estrangeiro, ser o mais importante estudioso, historiador e ensaísta dos nossos dias do teatro português, com uma vasta e valiosa bibliografia, incluindo sobre a revista. Depois, LFR era o maior especialista nacional (de prestigio internacional) em Direitos de Autor contribuiu para a nossa melhor legislação autoral, ensinou na Universidade de Coimbra, bateu-se sempre, em primeira linha, em todas as frentes, para defender criadores a artistas, na sua liberdade e no seu património. Foi ele o verdadeiro idealizador e de longe o principal artífice da Sociedade Portuguesa de Autores (SPA), na dimensão e projecção que alcançou, presidiu aos seus destinos 30 anos - e o seu afastamento, ou talvez melhor: as condições em que ele se verificou, em 2003, amarguraram-no profunda e irremediavelmente. Por outro lado, Rebello foi um magnifico advogado e um cidadão que, como referi, esteve em múltiplas batalhas contra a ditadura, desde os famigerados tribunais plenários em que defendeu dezenas

“A mais importante figura de dramaturgo, estudioso “militante” do teatro e defensor dos direitos dos autores” de anti – fascistas, até tudo que tinha a ver com os combates pela liberdade, em particular de expressão, e pelos Direitos do Homem. Além do seu escritório ser uma espécie de gabinete de “provedor”, a título gracioso, de artistas e escritores, para as mais diversas questões. Disto (e não só) poderia e gostaria de, falar muito mais até porque o fiz com LFR o estágio da advocacia, ficamos amigos, trabalhamos juntos até ele deixar o escritório para se dedicar, praticamente a tempo inteiro, à SPA. Após o 25 de Abril, Rebello manteve o mesmo rumo e a mesma intensa actividade, embora na fase mais quente de 1975, tenha tomado algumas atitudes de que uma parte dos seus amigos não gostaram. Tudo isso, porém, passou, e todas as feridas acabaram por sarar, os seus mais próximos, como David e Natália, voltaram a ter com ele a relação de sempre. De tudo isto o dramaturgo falar, naturalmente, no significativo e bastante descritivo livro de memórias O Passado na Minha Frente, que publicou em 2004 (Ed. Parceria A. M. Pereira) e bem merecia ser agora relançado. Sublinhe-se, por último, que Luís Francisco Rebello foi sempre colaborador do JL, desde o início. Nas nossas páginas há imensos textos seus; em 1999, quando fez 75 anos, dedicamos-lhe um Tema (nº 755, de 8/9/1999), com colaboração do então Presidente da Republica, Jorge Sampaio, de José Saramago, Luciana Stegagno Pucchio, Mário Cláudio, Urbano, etc.; e escreveu para nós a sua autobiografia, publicada no nº 1008, de 20/5/2009. Quando a notícia da sua morte foi conhecida o nosso jornal já estava quase fechado, voltaremos à sua figura e obra da próxima edição.

Luiz Francisco Rebello (1924 – 2011) uma obra marcante

É o texto, a literatura dramática, que ocupa, quase obcessivamente, o lugar predominante neste livro”, escreveu Luiz Francisco Rebello (LFR) – falecido no passado dia 8, em Lisboa, com 87 anos, vitima de septisémia - no prefácio do seu último livro, Três espelhos – Panorama do Teatro Português, do liberalismo à ditadura (1820 – 2016),editado em 2010 pela IN /CM. E pode-se dizer que o Teatro, em todas as suas vertentes, ocupou quase obsessivamente a vida de LFR, sem prejuízo de suas outras destacadas atividade como jurista, cidadão e homem de cultura (ler comentário de JCV, nesta página). Em Teatro, aliás, trabalhou até ao fim. A, na medida do possível, boa notícia, é que deixou escritas centenas e centenas de páginas para o Dicionario de Teatro que era seu grande desejo concluir e ver editado – o que se crê poderá (deverá) vir (83) a acontecer. Dicionário que concebeu, de que presumivelmente terá já escritas a maioria das entradas, e que é de exclusiva autoria sua, e de duas destacadas estudiosas do teatro: Maria Helena Seródio, profª catedrática e investigadora da Faculdade de Letras de Lisboa, e Sebastiana Fadda, também investigadora e profª da Un. De Évora. Nascido a 10 de Setembro de 1924, em Lisboa, onde se licenciou em Direito, LFR começou a dedicar-se muito cedo ao teatro, escreveu as primeiras peças com 20 anos e ainda muito jovem foi o dramaturgo português da sua geração, e das gerações seguintes, mais representado, entre nós e no estrangeiro. Peças suas, como O Mundo Começou às 5 e 47(1948), O Dia Seguinte (53), Alguém Terá de Morrer (56), É Urgente o Amor (1958) Os Pássaros de Asas Cortadas (59, adaptada ao cinema por Artur Ramos), Condenados à Vida (63), etc – e, mais recentemente, Portugal, Anos Quarenta ou A Desobediência (98), entre outras, marcaram o nosso teatro e subiram a imensos palcos, quando a Censura o não impediu, o que fez múltiplas vezes, inclusive no Nacional. Entretanto, Todo o (seu) Teatro foi reunido e editado pela IN/CM, em dois volumes, em 1999 e 2006. Por outro lado, a sua obra como crítico, ensaísta e historiador do teatro (além de tradutor, adaptador – por exemplo a peça Çiberdade, liberdade - , animador, etc), constituída por dezenas de títulos, é importantíssima. Apenas como exemplos recordem-se Teatro Moderno. Caminhos e Figuras, Teatro Português, do Romantismo aos Nossos Dias, Imagens do Teatro Contemporâneo, História do Teatro Português, Combate por um teatro de combate, História do Teatro de Revista 82vol.), Teatro Simbolista e Modernista, Teatro Romântico, Teatro Naturalista e Neo-Romântico, Fragmentos de uma obra dramaturgia, O Palco Virtual etc., etc. De salientar igualmente a sua extraordinária ação como jurista, advogado e cidadão. Em matéria de Direitos de Autor, foi o principal edificador da atual SPA, e seu presidente durante 30 anos, teve participação destacada em numerosos congressos internacionais e em várias organizações, como a confederação mundial destinada a defendê-los, a CISAC, de que foi vice-presidente, liderou ou integrou grupos para reformas legislativas e ‘lutas’ várias. A sua obra e ação estendeu-se ainda por outros domínios, como se pode ver no seu livro de memórias O Passado na Minha Frente (2004). Teve uma forte e profunda ligação com a atriz Mariana Vilar, com que foi casado até à sua morte, em 1998, e de quem teve a filha, Catarina Rebelo, também jurista, especializada em Direito autoral.

Uma vasta bibliografia como criador, historiador, ensaista e crítico Luís Francisco Rebello


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especial

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Afonso Cruz Duas metades

O professor senta-se junto de um dos seus alunos. A janela está aberta e sente-se o ar frio do inverno na respiração. O professor quer dizer uma série de coisas, especialmente porque começam agora de férias de Natal e sente que o menino está triste, que se sente sozinho. Lembra-se de um história persa que ouviu em criança e vira-se para o aluno: - Disse Muqatil al-Rashid que quando divide um queijo ao meio fica com duas metades, mas quando um cabelo não fica com duas metades de cabelo, mas sim com dois cabelos. Há quem diga o mesmo do amor, que se for dividido, como quando temos dois filhos, são dois amores inteiros e não um dividido por dois. E assim, também acontece quando se tem apenas um dos nossos progenitores. Apesar de um deles ter morrido, continuamos a ser amados de uma modo total. Se retirares, metade do infinito ao infinito, ficas com o infinito à mesma. Percebes o que te estou a dizer? - Sim, diz o menino. -Sei que o teu pai não está muito tempo em casa sentes falta da tua mãe… -Não está. -Mas não é motivo para tristezas e nem podes achar que ele gosta menos de ti por isso. É o trabalho, mas… - Sim. -Quando dividimos algumas coisas em dois, não obtemos metades. Lembra-te disso, mas “ A matemática que se aprende na escola não inclui estas operações mais de acordo com os nossos sentimentos Sim duas coisas inteiras. Repara: quando um homem divide um pão e uma queijo com outro homem, não ficam duas metades de pão e queijo, mas sim duas refeições inteiras. A matemática que se aprende na escola não inclui estas operações que estão mais de acordo com os nossos sentimentos e menos de acordo os núme-

ros. Compreendes o que te quero dizer? - Sim O menino volta para casa enquanto o professor, com uma lágrima nos olhos para ele. Já é de noite e a casa está em silêncio. O menino abre os olhos quando ouve o pai a chegar. Fica deitado, mas não consegue adormecer e passado uma hora, levanta-se da cama. Dirige-se à despensa e depois do quarto do pai. Tira as algemas que estão penduradas no cinto, que por sua vez está pousado nas costas da cadeira o pai deixa a farda quando se deitar. O menino, com gestos delicados, pega nas mãos do pai que dorme um sono pesado de cansaço – nem sequer acorda com o barulho das algemas a fecharem - se junto à cabeceira da cama, apenas geme qualquer coisa e volta a ressonar. Só acorda quando sente uma dor aguda no flanco. Ao tentar mexer os braços, não consegue, tenta mexer as pernas, mas estão atadas aos pés da cama. Faz uns gestos bruscos para tentar libertar-se. O menino continua a serrar-lhe o flanco, apesar dos gritos. Só ao cabo de 12 minutos é que o pai desmaia e os gritos cessam. A cama está cheia de sangue e o menino continua a serrar até conseguir, passado hora e meia, dividir o pai em dois. O que obteve daquela divisão, não foi um pai e uma mão, como esperava, mas sim uma infinita uma infinita solidão.”

“ A matemática que se aprende na escola não inclui estas operações mais de acordo com os nossos sentimentos”

Rui Herbon Encontro inadvertido entre um conto de natal e um poema

contos de natal

Há muitos anos apanhados nesta gelosia. Leva por dentro os detalhes, as horas, os instantes preciosos de todas as histórias de todos os velhos desta ribeira. Hoje, como de costume, abre-se ao mundo, e as missangas das avós flutuam imprudentes entre ruelas e as gárgulas daquele santuário em ruinas. Vacilam muito, as mãos e a boca, mas sempre que se quer um grito interno, abre-se a jaula e transforma-nos em quadros plásticos maquilhados á maneira daquelas velhas lendas. Alaranjava-se a tarde na margem interior dos seus pómulos, e sobre os dentes desenhavam-se imagens marinhas repletas de esteiras e serena entrega. Todos recordamos a mais doce traquinice das nossas mocidades: cada um traz a sua atada às lágrimas na noite de ano novo. Cada andaime da rua retrai a mão tenra que roça furtivamente na pele de alguma rapariga, no meio da multidão de nomes que deixam pegada após o passar do tempo. Eu demorava-se sempre, quando ia ao teu encontro: era o senhor dos caramelos; e tu, montada no teu riso, davas-me o cheiro matinal das frutas do mercado. Aqui estas de novo – costumava pensar -: és Dezembro. A página em branco, um trago que flui por rios de gente e belos segredos que passeiam pela praça. Que maravilham o rosto banhado de óleos delineados na majestosidade de um esgar pícaro, por entre milhares de olhos que destecem o tempo. Pintores que acrescentam sons a nós. As gaitas, as suas vozes mágicas, Pessoa fabricando os seus dedos todo o amor do poeta para acariciar a cidade. Um busto de mármore que

nos oferece o silêncio com a paz do seu olhar. O terceiro selo, que é O’Neill no seu assalto ao salto e os bardos que percorrem os sonhos guiados por Cesariny, que dispara ao céu versos que regressam em cometas furtivos sobre as paredes que se acendem como quando amanhece nos teus olhos. Cada vez que chegas retrata-me profundo o olho tigre. E o teu olhar beduíno, como lua no deserto. Se agora quiseres compreender por que razão os incrédulos abundam em Dezembro, poderás perfeitamente aperceber-se de que perfeitamente aperceber-se de que tudo se deve a a que os não sabem se não vender para não acredites que é em vão ser uma manjedoura a luz do mundo, porque imagina por uns instantes que tudo se tinha desenrolado num hotel de cinco estrelas: como pedir ao que só tem esperança que acredite em milagres, se a ultima estrela que tinha para vender a tinha guardado para ti, de tanto esperar, morreu. Por isso o anjinho que me deste todos os dias pergunta: onde foi a dona da minha imagem, se tu ficaste somente com a solidão do meu espaço? A mim também me doeu, mas não te preocupes. Dezembro disse-me que este ano me exonerava do pranto. Portanto dá-me um abraço e devolvo-te para sempre a alegria que apenas uma vez sonhamos. Feliz Natal. Saboreio ainda os teus morangos. E esses incrédulos que nos olham.”


especial

jornal de letras.pt / 14 a 27 de Dezembro de 2011

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“Dezembro disse-me que exonerava do pranto. Portanto dá-me um abraço e devolvo-te a alegria”

Francisco Duarte Mangas

Hélia Correia Do meio para trás

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avia um espelho perto da saída e ele olhou-o distraidamente. Avançou mas depois voltou atrás. –ia apressado mas a imagem de sim mesmo, por razões pouco claras, atraiu-o. Tratava-se de um velho mas um velho sempre ele fora, não era uma surpresa. Cabelo e barba brancos, a figura avolumada na barriga, as rugas, misto de bonomia e desidratação. O casaco vermelho com os seus debruns de pele clara parecia iluminar de uma luz própria o rosto sorridente. O que o chamara, então? Os olhos tristes. Os olhos mergulhados numa sombra. A cara estava como dividida por uma linha reta horizontal. Na metade de baixo desenhava-se o movimento da satisfação, com os cantos dos lábios ascendendo. A metade de cima descaía com um inesperado abatimento. Era um dia de muito expediente e ele não podia demorar-se ali. Sentia-se, porém, apreensivo com a duplicidade do seu rosto. E pareceu-lhe que as costas começavam a perder altivez, a recurvar. Mas talvez isso se devesse ao facto de o espelho se encontrar mal colocado e o obrigar a um enquadramento. Sentiu-se, de algum modo, pessimista, com um grande desejo de sofrer, o que vinha bastante a despropósito. Pegou no saco dos presentes, pô-lo ao ombro e alguma coisa lhe doeu. Ouviu, lá fora, as renas resfolegarem. Estavam impacientes e mostravam-no. Queriam, por um lado, esvoaçar, batendo absurdamente com os cascos, contrra o ar muito frio de dezembro, por outro lado perguntavam a si mesmas porque razão teriam de descer sobre casas que nada lhes diziam e cujos habitantes ressonavam. Um deus vencera, havia muito tempo, os seres espirituais da natureza e todos o serviam desde então. Mas existia grande má vontade. E a metade de cima do chamado São Nicolau, mais comummente Pai Natal, talvez fosse o começo de um problema.

Foi o começo de um problema, sim. Corria um tempo de insatisfação pelo meio dos homens, dividindo a terra em duas forças que eram três: a do invisível, dita a do dinheiro, a do visível, dita a da miséria, e a do provável, dita a do combate. De tudo isso emanava um vapor tóxico e o Pai Natal também o respirou. Avistou o bonecos insuflados, imitações da sua personagem, que escalavam os prédios pelas suas varandas. A metade dos olhos, que não ria, reagiu, zangada. “Sou , por acaso, um bicho de trepar?”. A metade de cima era também, e com razão, a que gerava os pensamentos. A de baixo parecia um pouco idiota, de maneira que o riso se extinguiu. Uma realidade muito crua atravessava a noite, elucidando. “Enganos sobre enganos”, disso o Santo. “Não sou Santo nenhum. Sou um Druída”. O Druída, com o visco e o azevinho, com as lanternas de ouro e o fato quente, com a sua bebida alucinante que o faz voar e não subir pelas paredes, indignou-se ao mesmo tempo que os mortais. “Que faço eu? Sou algum moço de recados?”. Naturalmente, também ele se vitimou: “Andam a enganar-me há tanto tempo”. Ninguém o enganara e ele sabia que gostara daquilo: conforto, fama. Fotos por todo o lado. Mil embrulhos. Ceias de caridade. Talvez até a suspensão das guerras. O grau maior da civilização. Depois ouviu-se a terra e era um todo, um cântico para trás, um recomeço. Um esvoaçar de renas a baterem convictamente os cascos contra o ar. JL

A queda do muro

Praga de gafanhotos, primeiro. Arruina sementeiras, flor, os frutos. A primavera surge sem a cor e os seus cheiros, parece a terra coberta por penas de corvos – sisudas aves mais velhas que a eternidade. Depois as chuvas. Abundantes, espessas. Nem os remotos sumérios teriam assistido o diluvio igual. Calamidade. Divida por saldar a apócrifos deuses: ”Engorda o monstro”. São estas as palavras, apenas do presidente da devastada Republica de Erros Teus, Má Fortuna, expressas no Facebook. Ele, homem da caneta, remoçava através da moderna, barata, limpa, forma de solução dividida. Poupa no papel, na voz, na imagem. E está em todo o lado, toda a parte, à semelhança do Deus bíblico que nos vigiava a infância. Cada mensagem, concisa, a lembrar imaculado haiku, logo repousa em frondosa base de “gosto”,”gosto”,”gosto”,“gosto”,”go sto”,”gosto”,“gosto”,”gosto”. A ultima, a do monstro, súbito se povoaria do lisonjeiro e original comentário. Uma duvida assombra a serenidade presidencial. Gostam do monstro ou da metáfora? Se é do monstro, a insânia devora em definitivo a ditosa pátria sua: se a imagem, desvario de igual modo será. “Monstro apátrida” reconhece pela primeira vez. “gosto”,”gosto”,”gosto”, “gosto”,”gosto”,”gosto”. A enxurrada, reúne o Conselho. O mais profere: “É preciso escorchar o monstro”. Depois de sucinta evocação da penúria no tempo de uma sardinha matar fome a duas bocas, o presidente desencanta palavra mágica. “Poupa, meus senhores. Truncar o supérfluo”. Em tom visionário anuncia. ”O país tem um nome extenso, dispendioso”. Pausa, cerra os olhos (será essa sua forma fadista de juntar grandes números redondos). “ o dinheiro despendido na virgula dá para construir quatro episódios de futebol, um aeroporto moderno , sete polos,sete, universitários no interior!” Sem votos con-

tra, cai a virgula, o muro, desagrega-se Má Fortuna. Da pobreza beneditina, o homem da tinta permanente colhe a virtude do despojamento: arma de arremesso, letal. Nasce a Republica de Erros Teus. De velha pátria decrépita, desacreditada, apruma-se pais novo, maneirinho no dizer como livro de bolso. Um conselheiro felicita “a brutalidade” do corte, “gosto”,”gosto”,”gosto”, “gosto”,”gosto”,”gosto”, “gosto”,”gosto”,”gosto”, “gosto”. Todavia o nome afigura-se ainda sumptuoso, despesistas: para que dois um r basta. ”Só Deus basta!” Grita outro conselheiro antigo, antigo ministro, agora, no agasalho por três reformas, a dedicar-se ao estudo da vida de santos. Mas ninguém ouve esse grito contra a heresia. O presidente ergue-se, aproxima-se do conselheiro do r: ”Afectuosamente o abraço. Acaba de salvar uma pátria”. O outro diz: ”Em nome de escorchar o monstro, advérbios no modo como o que acaba de dizer, açambarcadores de espaço, devem ser banidos”. “Aprovado.” Rejubila o presidente da novíssima Republica de Eros Teus. Anunciada a medida, imenso cardume “gosto”,”gosto”,”gosto”, “gosto”,”gosto”,”gosto”, “gosto”,”gosto”,”gosto”, “gosto”, navega feliz na página oficial. Só um seguidor fura essa espécie de unicidade peixe de viveiro, escreve: “gosto perdidamente”. A notícia, as sociais não são rede de pesca, corre o mundo. “Meu bom amigo, castidade nunca foi virtude”, murmura o chefe do Estado ou ouvido do hagiógrafo. ”Lembre-se: um país sedutor, mesmo pequeno, nunca é completamente pobre”.

“ Pegou no saco dos presentes, pô-lo ao ombro e alguma coisa lhe doeu. Ouviu, lá fora, as renas resfolegarem “


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José Viale Moutinho As Hesitações dos Reis Magos

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uro, incenso e mirra, os Reis Magos mastigavam as palavras, procuravam atropelar os conceitos enquanto bebiam chá de um termo que Belchior colocara numa pedra. Baltazar já representara a proposta de, a partir daquele oásis, irem num só camelo. Gaspar dizia Menino não repararia na falsidade do ouro, o carpinteiro também não distinguiria o areão amarelo do pechisbeque e Maria estaria preocupada com outros problemas na miserável cabana em que viviam. Depois, Como não se tratava de uma Fábula, mas de um Conto de Natal, nem a Vaca nem o Burro poderiam falar. Além disso, a Vaca era a eterna enganada daí os cornos, e o Burro era mesmo burro. Depois, o incenso sempre foi algo incómodo para humanos, mesmo nos templos, e a mirra… sugeriu Belchior: Aposto que nem o tipo que está a escrever isto sabe o que é! Baltasar, amargo, concluiu: Que merda de Natal o deste ano, pois vocês sabem o que me aconteceu? Gaspar respondeu logo que decerto acontecera o mesmo a todos: os seus réditos haviam sido confiscados pela metade pelo Great Rabbit

da Galileia, o que lhes condicionava as homenagens ao Rei dos Reis do costume. E o que dirá o puto quando nos vir chegar num só camelo e com tão miseráveis prendas? Belchior, em trejeito infeliz, aventou que a Criança Divina faria birras, mas de certo já adivinhara o que se passara no Celeste Reino Fiscal. E o Senhor Deus, lá em cima, o que sabe tudo, seu pai, com os seus trovões, raios e coriscos, não nos castigará? Ora, tentou explicar Gaspar o mistério da omnipotência, e Ele não foi que inventou o Great Rabbit? Também tem culpas no cartório! Ora se tem, uma magano! Mas, ó meu querido irmão Gaspar, quem se trama somos nós, o Grande Deus assobia para o lado e o Menino está-se nas tintas: aos 33 deixa-se crucificar, morrer e enterrar e ao terceiro dia desanda para o céu e nós ficamos a braços com o Great Rabbit. E o carpinteiro? Esse sai de circulação como sempre. E a Mãe? Demora, mas também ascende. E a vaca? Nunca se sabe o que lhe acontece. E o burro? Esse vai dar uma volta até ao ano. O único que quase se safa é um tal Herodes, que se entretém a matar criancinhas, mas não acerta naquela que quer apanhar, nos

Rei dos Reis. Então vou ali à tenda daquele judeu que está a rir-se e já venho. Vou saber preços. E assim como foi, Belchior veio, mas escandalizado: o ouro não subiu de preço, mas ele compra e não vende, o que subiu foi a taxa que vai em 57%, o incenso a 49,6% e a mirra só de importação, só para Março. Tem ali um pedacinho do ano passado, mas a taxa é a 87%, e por ser para nós. Disseste-lhe quem somos? Por isso mesmo. E aluga-nos estábulo para os dois camelos. E que lhe disseste? Que fosse à merda. E ele? Que queria lá saber, que o que mais há são reis magos, magros, ou coisa assim. Por causa da crise. Então é melhor irmos andando para a Nazaré. Vamos lá. Mas, ó Belchior, a estrela que nos guia está a ir para a esquerda e nós para a direita. Gaspar, meu irmão, mas queres cumprir a tradição ou obedecer às directrizes do Great Rabbit? E Gaspar, titubeante, quis saber se o Great Rabbit pensava por si ou tinha um chip da Maior Ângela que Ele. Mas nem os magos nem o camelo souberam responder. Porém, ao longe, os cachais do orçamento estavam atentos.

“Ouro, incenso e mirra, os Reis Magos mastigavam as palavras, procuravam atropelar os conceitos”

rui zink não dê... Neste natal não dê dinheiro a um pobre Habitua-o mal Não dê comida a um pobre Habitua-o mal Não dê de beber a um pobre Ele vai gastar tudo em vinho Não dê guarida a um pobre Ele gosta mesmo é de chão Não dê livros a um pobre Ele queima-os para se aquecer Não dê carinho a um pobre Ele estranha e fica nervoso Não diga bom dia a um pobre Dá-lhe falsas esperanças Não dê saúde a um pobre É uma despesa inútil Se quer dar-lhe mesmo alguma coisa [porque enfim está no espírito de natal E você é uma alma piedosa] Dê-lhe porrada. Vai ver é o que ele gosta É o que ele está habituado E os pobres já sabemos como é Os pobres (coitados) não são muito de mudança não.

“O saco das prendas estava pouco mais do que assimetricamente vazio. Havia muitas prendas para poucos natais”

Rosa Alice Branco A artrose das renas

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uma das muitas desorbitas do planeta, todos os anos Art esperava este momento. Sentia-o aproximar quando focava de longe as primeiras luzes e enfeites. Ultimamente sentia-se um pouco perplexo, porque os sintomas de Natal cada vez se antecipavam mais. – Talvez este ano venha mais cedo. Começava a preparar a viagem com minúcia e depois o Natal demorava a chegar, depois das luzes nas ruas e dos enfeites das lojas, quero eu dizer. Art estava mais atento desde que o Natal se tinha tornado imprevisível e agora contava com mais uma preocupação: as renas este ano estavam surpreendentemente menos ágeis. Quanto a Art, era apenas o que queriam dele durante uma noite por ano. Mas exultava sempre com a ideia de partilhar este momento em que o espaço e o tempo se dissolvem num fluxo de deleite temporário. Esta noite, Art tinha como destino um pequeno país à beira-mar. Gostava de descer a sentir o cheiro salgado e, talvez por isso, sentia um entusiasmo ado-

lescente quando iniciou a viagem. Mas cá em baixo, Art pôs-se a pensar que tudo tinha sido um desencontro, que tinha confundido a noite inconfundível e tinha acabado por vir numa qualquer noite de um inverno frio. Tinha despercebido os sintomas, com certeza. Pousou em todos os pousos do país para ver se o Natal se avistava em algum lugar. Sentia a desilusão tingir-lhe as roupas, enquanto ia observando as ruas sem vida, as lojas à espera de ninguém. Ao olhar para dentro de uma casa, Art viu crianças a rondar com esperança a árvore iluminada, a despejar o desejo dentro da chaminé, e soube súbito que, estranhamente, era Natal. Também soube de sentir que alguma coisa no dentro das pessoas tinha mudado este ano. Essa coisa tinha varrido o cheiro inebriante da alegria da ceia, o frenesim dos fogões acesos, o giro das mãos em torno da felicidade, o sorriso dos lábios em vaivém, as prendas com os laçarotes escondidos no armário. Tudo estava em eclipse, um eclipse que não se esgotava no tempo desta noite. Art não sabia o que pensar. O seu carro de Pai Natal ar-

rastava-se nos ares de um lado para o outro. O saco das prendas estava pouco mais do que assimetricamente vazio. Havia muitas prendas para poucos natais, como ilhas num oceano de chaminés vazias. Ao pousar nesta outra cidade, o trem de aterragem das renas não desceu e andaram aos tombos no chão duro. Art verificou os danos: nada partido; só as pernas das renas tinham ficado doridas. Ao acaricia-las docemente, os seus olhos mergulharam nos olhos meigos das renas e vi lá no fundo que o entorpecimento delas – que o preocupava desde à meses – não vinha do reumatismo, ou de outra doença qualquer. Mais argutas do que ele, as renas já deviam ter pressentido nos seus músculos tristes o que Art só agora compreendia. - Está boa, está! Eu a pensar que as minhas renas tinham artrose. Afinal, artrose bem grave tem a cabeça de quem governa este país!


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João de Melo

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s crentes e confessos de verdade são quase sempre pessoas sumamente perigosas. Acreditam em tudo e mais alguma coisa: nas estações do ano, no novo acordo ortográfico, na Europa unida e até no ministro Paulo Portas. Foram elas, sem margem para dúvida, que mandaram colocar em todos os mupis de Lisboa um anúncio a uma revista mais ou menos pornográfica (de cujo nome não quero recordar-me) com uma frase irónica, escrita em letra maiúscula: “EU ACREDITO NO PAI NATAL”. Tanto quanto me recordo trata-se de um senhor de provecta idade, muito barrigudo e com um saco cheio de cães e gatos a pender do ombro. Alegre, um pouco bonacheirão, um pouco apalermado, porque só pode ser de um palerma aturar tanta criançada, tanta neve, tanto trenó, vindo da Lapónia e manter ainda assim, toda aquela bonomia de santo presenteiro. Não sei a quem o disse, mas nunca mais esqueci uma frase justa e lapidar, que vai bem com o moral de Dezembro e com o meu espírito natalício: “Os ricos tem todas as razões para acreditar em Deus. Os pobres limitam-se a crer

Soneto Natalício: Não penses, não escrevas, não digas nada o tempo é de outrem tu não pertences ao dia. Vens da noite antiga e calada vens do silêncio e do escuro Agora o Natal é isto o desprazer turvação ruído ciência e altivez tu calada aflito com o verbo ser eles rindo e vendo o que já não vês Tu não és nada tempo em que o verbo arde e de si não cura ser tempo modo e voz nem coisa nenhuma Unicamente a passagem da vida rente cortada sentes e não ser mas parecer o Natal por aqui sem graça nenhuma

no papa”. Certamente um filosofo, alemão ou holandês: têm sempre nomes muito difíceis de fixar. Tudo em nós sobe da infância para a idade, numa ascensão de sonho para o desencanto da verdade e da vida. Lembro-me da primeira prenda de Natal que me deram: um pacotinho de alfarrobas vindas de fora (não existiam nos Açores). Umas vagens quase doces, de uma cor quaresmal imprópria para a época. Não gostei dessa partida do Menino Jesus e nunca mais voltei a por o sapato na chaminé. Deixei de crer, cortei relações com ele. Mas isso não obstou a que, muitos e muitos anos mais tarde, eu lhe tivesse dedicado um breve conto autobiográfico, Ouro, Incenso e Mirra, escrito a pedido. Foi lido na televisão e comoveu os olhos da minha mulher até às lágrimas. Um texto pungente de poesia e dos seus contrários: da catequese, mas tocado pela espiritualidade do maravilhoso cristão, tal qual o concebemos no Ocidente. O problema é que, não sendo eu nem pobre nem rico, aquela frase acerca de Deus e do papa não me assenta bem nem com inteira justiça literária. E agora o tempo, folgado e rijo e impiedoso tempo, corre contra mim. Es-

tou para ser avô de uma menina a quem, um dia, espero vir a contar histórias de Natal que enformem em si o universo do mundo familiar. Esse é desde já um sarilho ou um desafio para mim, e não um pequeno, porque é suposto um avô transmitir crenças e histórias com um final feliz a uma netinha imanentemente amada que virá em breve ao mundo para me salvar da dor e dos amargores do cepticismo. Este é, por conseguinte, o último Natal em que não creio (ou não creio nele em sintonia com outras pessoas). No ano que vem sim, conto estar de regresso e reconvertido ao presépio, à consoada e à obra de caridade dos presentes (mesmo sem subsídio de Natal, graças ao Sr. Gaspar – não o rei mago, mas aquele lambido das Finanças). Dito o que, venho pedir licença de passagem para o meu último soneto de ateu – à conta das tais alfarrobas, de Deus e de todos os papas e doutores da igreja. Prometo desde já ter mais juízo e ser decente para o ano que vem – não vá pensar-se que serei um avô degenerado ou que a minha futura netinha não foi suficientemente desejada também pela fé da família.

“No ano que vem sim, conto estar de regresso e reconvertido ao presépio, à consoada e à obra de caridade dos presentes”

último Natal descrente


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poesia 61

uma memória

nos a fala e a poesia. Enquanto busca dos nossos imaginários e raízes. Prazer e língua materna. Roland Barthes observou: “Nenhum objeto mantém uma relação constante com o prazer. No entanto, para o escritor esse objeto existe; não é a linguagem, é a língua materna. O escritor é alguém que brinca com o corpo da mãe: para o glorificar, para o embelezar, ou para o desmembrar” . Para o amar? - pergunto. Logo acrescentando: na altura, manter uma relação intensa com o prazer, tendo como objeto de desejo a língua portuguesa, poderia ser entendido como um objetivo principal e credível? Para mim, sem dúvida - mas só posso falar em meu nome, pois não obstante os poetas que integram a Poesia 61 terem sido geralmente vistos como complementos uns dos outros, a verdade é que ao longo dos anos, fomos, isso sim. avesso. reverso e contrário. Cada qual diferente, embora todos um todo. Divisos. Diversos. Apesar de unos. No começo, juntos por elos de muita coisa determinante, num País amordaçado e sem perspetivas, perdido num tempo ameaçador-arrasador, transportando connosco o que pensávamos conter um olhar renovador sobre a poesia, itinerário de resistência, esperança e júbilo na invenção do poema. Cintilante na mão que o escrevia-inscrevia, habitando a página. Mudança e exaltação. É de sublinhar também o facto, historicamente singular, de a Poesia 61 ser constituída na sua Maioria por mulheres-autoras: a Flama Hasse Pais Brandão, a Luiza Neto Jorge e eu. Acontecimento Assinalado por Anna Klobucka No seu livro O Formato Mulher – A Emergência da Aurora Feminina na Poesia Portuguesa.

Incendiado gosto da criatividade, perplexas e maravilhadas perante os inesperados e deslumbrantes universos que perseguíamos. Desabrigadas em tudo o resto. À nossa beira, abria-se a floração dos poemas, que não raras vezes temíamos confundir com as paixões, a lima amarga das desilusões, a malvasia do resto da infância, e até por vezes connosco mesmas; enquanto seguíamos por caminhos incertos. Cada uma de nós admirada, a escutar as outras... a falarmos, a calarmos. A lermos alto o que íamos escrevendo, a deslindar símbolos, inconscientes obscuros e imagens; podia adivinhar-se o sobressalto e a inquietude, a percepção alada que nos havia ficado de crianças. Por isso, aqui e ali ainda parecíamos hesitar, embora também voássemos, marinhássemos pela luz, trepadeiras de hera ou de hera ou de roseira, numa cumplicidade desobediente e bem cumprida: a Fiama com a sua serenidade um tanto surpresa na continua descoberta de tudo à sua volta, e a Luiza, a mais determinada em sair ilesa, numa iludida fragilidade impossível de sustentar. De mim, lembro a desmesura voraz fazendo-se destemida. Mas recordo sobretudo, com alguma perplexidade, a ousadia e a ambição desmedida de querermos tomar nas mãos a própria existência: o mundo. Assim como a invenção quotidiana da escrita e a luta pelas tantas liberdades urgentes, num Portugal onde qualquer pensamento livre era considerado crime. Coisa natural seria, pois, dançarmos sem par, rirmos juntas, enumerar o que iriamos recusar e construir, exigir dali para a frente. Enquanto tentávamos entender igualmente as nossas diferenças múltiplas. Resguardando, afinal, o que mantínhamos trancado por dentro, fechadura de segredo na altura do peito, embora pretendêssemos demonstrar o contrário, a equilibrarmo-nos numa corda de trança. É assim que nos lembro: com uma certa reserva de expectativa, na invenção hábil duma alegria de proximidade, que nos fizesse sentir amadas, a iludir a solidão imensa. Temendo desorganizar a naturalidade, com que escrevíamos, colhíamos e habitávamos os dias. Harmoniosas e dissemelhantes.

LUZIMENTOS

TEMPOS DE ENTUSIASMO

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F

Há precisamente 5o anos, a Poesia 61 lançava algumas sementes de renovação da literatura portuguesa. Um “momento de viragem” protagonizado por Luiza Neto Jorge, Fiama Hasse Pais Brandão, Gastão Cruz, Casimiro de Brito e Maria Teresa Horta, que aqui recorda esse tempo de trocas, simbioses e lutas poéticas

Maria Teresa Horta

A

certa altura das nossas vidas, fizemos coabitar as linguagens. Cada qual com a sua poesia. Renovação de golpe rasando o tanto fulgor imaginário teimando na contenção, enquanto de nós tudo ia exigindo, num voltear perplexo e também incontido, delírio-lírio do seu próprio fogo. “Onde está o vulcão? Para escrever preciso de lava” , perguntei-afirmei então. Excesso e desmesura em vez da brandura indecisa, da passividade neutra a que, cruelmente, se pretendeu condenar as escritoras ao longo da história da literatura; desse modo impedindo que elas se expressassem com autenticidade rara, interdição que durante séculos foi ferrete e estigma na criadas mulheres, como urna indelével tatuagem. Aliás, Tatuagem foi o título que dei à plaquete que organizei para integrar a Poesia 61, minha parte de entrega ao grupo que, aflnal, mal chegaria a sê-lo. “Tentativa de refletir o interior das coisas no exterior delas”, lembro-me de ter garantido em entrevista ao Diário de Lisboa, na tentativa de explicar o que pretendíamos com a nossa poesia, indo se possivel muito mais além. Nessa época, cada um de nós procurava a sua face, conhecimento de si próprio, identidade... Eu em busca das raizes dos meus poemas a partir das suas origens portuguesasz Camões, Nobre, Antero, Cesário, passando pelos poetas do Cancioneiro de Garcia de Resende, seguindo-se Sá de Miranda, num aliciante e subversor jogo literário de falso fusionamento, entre a sua e a minha poesia, usando-o pelo seu oposto e avesso, no livro Minha Senhora de Mim. Mas, no tempo da Poesia 61, eu trazia por perto Mário de Sá Carneiro e Camilo Pessanha, encantatórios; Emily Dickinson. essencial; Florbela, Judite Teixeira, Cesariny, Ramos Rosa, Ruy Belo. Claro que para mim sempre houve Teresa de Ávila, Hildegarda de Bingen, Paul Eluard, Rainer Maria Rilke. E quando falávamos acerca

daquilo que liamos, do cinema que víamos, da música que nos acompanhava, sem nos importarmos se por vezes não encontrávamos reflexos iguais no espelho uns dos outros. Colocados diante do futuro, a arrasar os estereótipos, a recusar .o a nostalgia, e agindo em prol da a liberdade que em Portugal faltava. No entanto, ainda inconscientes, creio, da urgência de mudança, corremos atrás do sonho levados pela criatividade e o desassossego, urdindo a poesia e cerzindo-a à realidade; aturdida eu, pelo tanto que pretendia. Todos nós infringindo regras, subvertendo as proibições e imposições fascistas, prosseguindo com determinação pelos caminhos e os trajetos interditos pela censura. Os cinco diante dos mesmos instrumentos de trabalho: a escrita e a linguagem. A propor: a ruptura. Desse modo desejando demarcar da mediocridade, da passividade e do marasmo, a nossa geração, que a ditadura mantinha amordaçada? Quando da edição de Poesia 61, declarei ao Diário de Lisboa: “A minha geração é produto de uma época marcada: nasceu de um caos e vive num absurdo. Não encontra significado algum que justifique a presença valorativa dos atos realizáveis. A presença do futuro encontra-se no próprio presente em cada minuto que passa”. “Ora esse minuto - escreveu então Ernesto de Melo e Castro -, na poesia de Maria Teresa Horta, é sempre um átimo da realidade, um ato único, possível de coerência. ”

LINGUA MATERNA CORPO DA MÃE

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oerência como único itinerário plausível para qualquer de nós. Tenacidade e questionamento nos versos que escrevíamos. Testemunhos que, a partir de certa altura, quisemos dar a ver de um outro modo: numa publicação em que cada um guardasse a individualidade, embora em conjunto, e a que chamamos Poesia 61. Espécie de casulo de papel, capa comum a envolver-

os anos 60 andávamos as três Seguindo o luzimento dos versos, Das palavras que íamos colhendo Do nosso imaginário, a reinventar A vida, suspensas do indizível e

oram tempos ora de entusiasmo ora de agrura, de troca, de simbioses múltiplas; tempos de luta, lua e de muito sol, momentos de uma amizade solta e inesperada,


letras

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evocação, entrevista

josé agostinho batista O poeta na sua ilha Maria Leonor Nunes

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arece escrito de um só fôlego, pode ler-se de um trago. Como um copo, daqueles que se bebem até ao fim. Caminharei pelo Vale da Sombra, o novo livro de José Agostinho Baptista, uma edição Assírio & Alvim, é um narrativa poética como um sobressalto, um “rio caudaloso”, que corre torrencial, sem margens. E à margem das correntes poéticas mais “elogiadas e promovidas”, sente-se o poeta. “Um espesso véu de silêncio caiu sobre os meus livros”, diz. E é cada vez mais uma ilha, um “lugar estranho” na poesia. Prémio APE em 2004, com Esta Voz É Quase o Vento, José Agostinho Baptista, nascido na Madeira há 63 anos, leva mais de três décadas de obra poética. Estreou-se em 1976, com Deste Lado Onde, e publicou, entre outros, O Último Romântico, Agora e na Hora da Nossa Morte ou Anjos Caídos. Caminharei pelo Vale da Sombra dá continuidade a O Pai, a Mãe e o Silêncio dos Irmãos, publicado há dois anos, procurando mais uma vez o poeta o “refúgio” da ilha mítica da sua infância, a casa dos pais, os tempos antes das pedras, porto de abrigo que encontra nas palavras, cada vez mais desconcertado e desajustado do mundo. É um poema em prosa, que acusa o peso da morte sobre as coisas e os dias para falar do sintido da vida.

Jornal de Letras: Em Caminharei pelo Vale da Sombra, regressa a algum lugar da sua poesia. É um eterno retorno?

Caminharei pelo Vale da Sombra, desde logo pelo título, remete para a ideia da morte. Reflete as suas inquietações?

José Agostinho Baptista: Há mesmo um regresso a alguns livros iniciais. E curiosamente, comecei por uns contos de prosa poética, que publiquei no suplemento juvenil do Diário de Lisboa. Era nesse registo que sentia uma maior liberdade para me exprimir. Textos talvez menos cuidados, até porque tinha uns 19, 20 anos, mas muito espontâneos. E a autenticidade sempre foi uma bandeira da minha poesia. Já passaram 35 anos sobre a publicação do meu primeiro livro. Nem dei conta do tempo. Talvez o meu desconcerto, o desajuste em relação ao mundo real se traduza nesse esquecimento

É uma frase bíclica em que será realmente contida uma ideia de morte. Mas é a morte dos seres que fui perdendo que aparece no meu livro. Porque, a certa altura, o que nos toca mais é perder.

Este livro é uma continuidade do anterior? Só que um é mais prosa, o outro mais poesia, se assim se pode dizer. Mas é o mesmo universo, a mesma necessidade de regressar a um tempo perdido, à família, à casa, à ilha, às origens. Isto embora nada seja muito concreto, nem imediantamente biográfico. Sinto essa necessidade visceral de voltar sempre aos lugares perdidos, se calhar irrecuperáveis, ainda que fisicamente me possa proximar deles. Que procura nesse reencontro só possível pelas palavras? Um refúgio. Essa necessidade vem, de certo modo, do confronto com o real imediato, que me afronta. É uma espécie de fuga do quotidiano para reencontrar não um paraíso perdido, porque nunca o foi, nem sei se existem paraísos, mas apenas um território onde me sinto em sintonia comigo próprio. O território mítico da ilha da sua infância? E por isso há referências claras à casa, à mãe, ao pai, à irmã... Digamos que ao longo de seis décadas me dispersei e finalmente tudo se concentra nesse terreno, onde ainda crescem alguma flores, bonitas e encantadas, e por vezes o vento é demasiado frio. Há quase um desespero nessa demanda, à medida que se vai agravando o universo quotidiano, que tanto me magoa. Para o melhor e para o pior. Porque muitos medos e fantasmas povoaram de facto esse lugar físico insular. Não há, aliás, contornos muito reais nesses meus últimos dois livros, É justamente um universo mas mítico, aquele onde se inserem. Há neles sobretudo memórias e um avolumar de perdas, de nostalgia, de melancolia e até de alguma misantropia.

Essa é, aliás, uma presença forte nos seus últimos livros. Sim. A morte está cada vez mais presente. À medida que os anos passam, as minhas interrogações aumentam e não tenho respostas. Angustia-me perceber qual o sentido de uma vida: se é um mero acumular de dias, de horas, de momentos, ou se há algo de mais luminoso e elevado que justifique a nossa presença neste mundo. A ausência de respostas faz com que me volte para Deus, como já aconteceu em Agora e na Hora da Nossa Morte, depois da morte do meu pai. Essas inquietações aparecem cada vez mais no que escrevo. Também os anos são mais. E mais as perdas e as sombras no vale. Por que optou por um registo narrativo? Encontro numa linguagem mais narrativa as armas de que preciso para gritar aquilo que preciso de gritar. Mas as coisas acontecem-me, nunca são programadas. Não há planos, nem intenções. E o que brota é torrencialmente. A porta abre-se e entra tudo de rompante, com um rio caudaloso. Depois, há todo o trabalho da oficina, cada vez mais árduo e aturado. Tenho que cuidar das palavras e vigiar para não cair em sentimentos, que podem ser muito perigosos. Porquê? Porque podem banalizar tudo. Tenho sempre muita atenção ao escrever, para não cair na armadilha dos sentimentos. E há também um tom de despedida no livro. Não da vida...

“Sinto uma necessidade de voltar aos lugares perdidos” José Agostinho Baptista

acrescentada com o seu outro lado: a convivência e a amizade masculina, bem afastada dos laços dados pela nossa. Outra voz e completude, sedução diversa e áspera; outra face e tão diferente perfil de estranheza, na prisão de regras amistosas, empenhados mais, eles, em matar a fera adormecida dentro do peito, do que em intentar enfrentá-la no fragor da selva. Coniventes e inseparáveis da aventura que todos empreendêramos. O Gastão Cruz por perto, o Casimiro de Brito mais longe, através de telefonemas e cartas. E como centro aglutinador, havia o poeta António Ramos Rosa, que afinal nos juntara, acreditaÊ va em nós, encorajando-nos a 1 derrubar os limites impostos à 1 linguagem. É ~ De outra forma, também o Ruy Belo, 0 Armando Silva Carvalho, o E Passos Valente, o António Barahona, § o Sotto Mayor Cardia, a Luísa Ducla E Soares, o Ernesto de Melo e Castro; E a Maria Alberta Meneres, 0 crítico de arte Rui Mário Gonçalves, 0 I pintor Manuel Baptista. Í Nessa altura, porém, a memória parecia obviamente tão pouca que só de nós nos lembrávamos; com É medo das tempestades que já nos 1 assolavam, da vergonha de mostrarÉ mos a ternura sentida, assim como É a sede incontornável dos lábios, 0 E alongamento do corpo no ardente 1 corpo do poema. Achando maior 5 sossego aqueles que escolheram a E abordagem do rigor, da secura e da E disciplina, do que aqueles que preferiram a fissura do incêndio. Mas, no conjunto, asa e desassossego, numa poética de fruição e de Í deslumbre que, no que me diz respeito, se mantém intacta. É Prazer e desafio que cada vez É mais me sobressalta. E No entanto, ao invocar, ao E reconstruir e desfiar, buscar nas E minhas recordações desses dias, § redescubro ainda inteiro em mim E esse tempo de maravilhamento diante da linguagem poética: E Voo e queda. E Torre de Babel no seu excesso 1 desmedido, caule e caos cintilante de mistério É que sempre por resolver me precipita. E Tessitura poética que - creio E - nós os cinco de modos diversos E conseguimos, no desmontar dos E estereótipos, tentando derrubar os falsos moralismos, a prepotência e o negrume que naquela época nos rodeava e atingia, E no deslaçamento da claridade e E no intensificar da cinza. Discurso de resistência, de reflexão, linguagem de lume, com a qual se pode construir incendiando o texto. Tomando também para mim a E imagética do voo. Palavras de corpo e do corpo, E ao longo da sua equívoca beleza, numa mistura de estranhamento e É fascínio, de sigilo, gozo e gosto, de tessitura, metáforas e mitos. Num enredo fiado pelo sonho.

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Também não é dramático. Não estou à espera das luzes da ribalta, mas sinto que é cada vez maior o silêncio sobre os meus livros. É uma consciência do estado das coisas no “mercado” editorial? Não falaria tanto do mercado, mas da crítica, se é que existe. Sobretudo porque a minha poesia não coincide com os modelos que são elogiados e promovidos nos últimos anos. Está mesmo nos antípodas do que se está a fazer e se nunca se encaixou nesses modelos, cada vez se encaixa menos. Já voltou a escrever, depois deste livro? Não, não. Os meus livros são gestações difíceis, que me deixam esgotado e vazio. Preciso de algum tempo para retomar as energias, e estar preparado para receber de novo a poesia. Não tenho um poema inédito. Até porque nesta última fase, não escrevo poemas soltos, fragmentados, mas um poema único e longo. Quando começo a escrever , não paro a não ser quando se impõe um fim... Não sei como será agora, mas há mais de um ano que não escrevo uma linha. Mas isso não me preocupa. Se não voltar a escrever, não será um drama. Já dei tanta poesia ao mundo... Se o mundo não a quer, não posso impô-la. Não vou dizer que escrevo para mim ou para a obra. Escrevo porque há uma necessidade imperiosa em mim. É como uma doença. E nem sequer há bálsamo. A poesia não nos salva, mas talvez possa contribuir para que o mundo seja menos estéril e sombrio.

Então é da poesia?

José Agostinho Baptista

O meu lugar é cada vez mais estranho na poesia portuguesa e não só. Nunca mais direi que é o último livro, como afirmei há muitos anos, depois de Agora e na Hora da Nossa Morte... Só tenho uma certeza: não baterei com a porta na cara da poesia.

Casa da música/CESEM, 576 pp,

Sente-se à margem? Nos últimos anos, praticamente já ninguém se pronuncia sobre mim. Caiu um véu sobre a minha poesia, um véu muito espesso. Estou cada vez mais isolado.

CAMINHAREI PELO VALE DA SOMBRA 20 euros


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prendas de natal livros para todos Um livro lê-se e relê-se e nunca se esquece. Com ou sem crise, é sempre uma excelente prenda, como uma obra da área das ideias (ver pp. 34/35) ou um CD e um DVD (pp 28/31). Aqui destacamos os livros mais recentes que ainda não registamos (sem prejuízo de a eles voltarmos) e lembramos outros lançados nos últimos meses

Pequeno-Almoço do Sargento Beauchamp e O Mestre de Música. todos situados entre 1807 e 1814, com as invasões francesas em pano de fundo. Como o subtítulo indica, esta é uma “novela amoral”. pelo que “não relata casos edificantes_ nem procura dar conta de soluções éticas ou castigos exemplares para os comportamentos e desregramentos das suas personagens. nem sempre conformes aos bons costumes”.

PULP PORTUGUBA

FICÇÃO JOÃO TORDO

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que faz um herói? De que forma construímos o passado? O que acontece às pessoas que estão no sítio errado à hora errada ou, pelo contrario, no sítio certo à hora ideal? A perguntas como estas tenta responder o novo romance de João Tordo, Anatomia dos Mártires, uma edição da Dom Quixote (272 pp, 15,50 euros). Como se lê na contracapa, trata-se do resultado de uma “obsessão verdadeira transformada em ficção - a de uma investigação contemporânea (e original) sobre o mito de Catarina Eufémia - e também uma tentativa de reconciliação de um escritor nascido imediatamente após a Revolução de Abril com o passado”. A vida da camponesa que lutou por uma vida mais digna, um dos ícones do Partido Comunista Português, é, assim, o mote para uma reflexão sobre a matéria de que são feitos os mártires e sobre a contínua reconstrução da nossa memória coletiva.

ANA TERESA PEREIRA

Tom aprendera com José Quintero que não se deve roubar pão - o motivo é de ordem religiosa; e que uma peça ou um filme é procurar algo de tímido e interior, escondido nos bosques”. Assim começa o mais recente romance de Ana Teresa Pereira, que já este ano tinha lançado A Pantera. Semelhança deste, também O Lago (Relógio d´Água, 144 pp. 14 euros) é centrado em duas personagens e no mundo do teatro. E a certa altura lê-se “Ela não acreditava em contos de fadas. Mas a sua vida tinha mudado tanto em duas semanas, uma boa peça, e o papel principal, não tuna ou duas linhas sem importância. E dormia com um homem de quem gostava muito, não com um homem entre outros”. Um reencontro com o pessoalíssimo universo da escritora.

LEONOR XAVIER

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idas, Livros, Receitas. Eis as palavras-chave do novo livro de Leonor Xavier, Doze Mulheres e um Almoço Natal (Temas e Debates/Circulo de Leitores, 26o pp, 12,90 euros). Cruzando memórias, pessoas que conheceu e fragmentos retirados da sua imaginação, a jornalista e escritora, autora de duas dezenas de títulos, oferece-nos uma dúzia de personagens femininas que demonstram “que a palavra e o pensamento das mulheres podem fermentar o mundo, nesta aflição do século XXI em que nos encontramos”. São mulheres maduras, “na idade e na vida experimentada” , e estão todas de saída de casa para um almoço que as vai reunir. Consigo levam parte da refeição e Leonor Xavier, no final de cada capitulo/ personagem, revela-nos a receita dessas entradas, pratos principais e sobremesas.

VASCO GRAÇA MOURA

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Com Os Desmandos de Violante (Alêtheia, 164, 15 euros), Vasco Graça Moura encerra a trilogia O vermelho e as sombras, de que fazem parte os volumes O

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e não há tradição. nada melhor que inventar uma. Este pensamento não terá andado muito longe da cabeça de Luís Filipe Silva. que organizou para a editora Saída de Emergência tuna antologia da Pulp Fiction Portuguesa (416 pp, 18.85 euros). Em obscuras e até agora desconhecidas publicações. sobretudo das décadas 4o e 50 do século passado, encontrou uma variegada seleção de contos que fizeram. em Portugal. os anos de ouro deste género literário muito popular nos Estados Unidos da América. À apresentação biográfica de cada autor segue-se a reprodução facsi-

mile das histórias que assinaram. E se nada disto for verdade. é pelo menos muito bem Inventado.

JOSÉ RIÇO DIREITINHO

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nquanto se aguarda a publicação do novo romance de José Riço Direitinho. sai na Quetzal a reedição do Breviário das Más Inclinações (tos pp, 13.90 euros). o seu primeiro conto, de 1994. lançado depois da estreia fulgurante com os contos A Casa do Fim. História com universos fantásticos e maravilhosos, conta a vida e morte de José de Risso, um homen que nasceu marcado nas costas com um sinal em forma de folha de carvalho.”

VASSILI GROSSMAN

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ão é em vão que Vida e Destino (Dom Quixote, 856 pp,, 25 euros), de Vassili Grossman, tem sido comprado, em grandeza e estrutura narrativa, á Guerra e Paz, de Tolstói, numa espécie de equivalente para o século XX. O livro, entregue pelo escritor e repórter de guerra (os seus textos sobre a II Guerra Mun-

dial foram muito famosos na época) ao seu editor, em 1961, só viria a ser publicado anos mais tarde, devido ao apertado controlo do KGB. E á Rússia (foi editado primeiro na Suíça) apenas chegaria ao grande público em 1988, depois do início do processo de abertura política. Tudo isto porque, como lembra Filipe Guerra no prefácio, esta obra “percorre a sociedade soviética sob a mão de ferro de Estaline, assim como a sua involução a partir da Revolução de 1917”. Um fresco da utopia da URSS e do seu desmoronamento.

UMBERTO ECO POR JORGE VAZ DE CARVALHO

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e este foi ano de Umberto Eco — três livros em 2011 — foi-o também de Jorge Vaz de Carvalho. Cantor lírico (barítono), com repercussão internacional (vamos vê-lo, em janeiro, no São Carlos, a fazer de Don Alfonso, na ópera Così Fan Tutte, de Mozart), é também especialista em literatura portuguesa, nomeadamente em Jorge de Sena, tema da sua tese de doutoramento. Este ano (re) descobrimos o seu talento, preciso e criativo,

Património Mundial de Origem Portuguesa

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is uma bela o reconfortante obra, que ao mesmo tempo nos enche os olhos com as magníficas fotos dos sítios e monumentos que documenta, e faz bem ao ego nacional num momento em que, por razões sobejamente conhecidas, ele anda tão em baixo. Trata-se de Património Mundial de Origem Portuguesa, um volume/álbum em papel couché, cartonado e com sobrecapa, no qual se juntam imagens e textos (em português e inglês) sobre lugares do mundo, “marcado” pela presença dos portugueses ao longo do tempo dos séculos, considerados Património da Humanidade pela Unesco. A saber: a Cidade Velha, na Ribeira Grande – Cabo Verde; a Colónia de Sacramento, no Uruguai; Galle, no Sri Lanka (a antiga Ceilão, Tapobrana de Camões em Os Lusíadas); Goa, na índia, claro; a ilha de Moçambique; Macau, na china (de que que hoje é uma Região Administrativa Especial); Malaca, na Malásia; Mazagão, em EL Jadia, Marrocos; e, com natural predominância, no Brasil Central; Olinda, bem junto ao Recife, em Pernambuco; Ouro Preto, a esplendorosa ex Villa Rica, capital do Barroco Mineiro, em Minas Gerais; Salvador, a primeira capital do Império Português da América (que depois se transferia para o Rio de Janeiro), na Baía, Estado de que continua a ser capital; Santuário do Bom de Jesus de Matosinhos, em Congonhas do Campo, também em Minas, inspirado no de Braga, com as famosas esculturas do Aleijadinho; São Luís, no Maranhão, que também continua a ser capital do Estado. E há ainda, em três países – Argentina, Brasil e Paraguai – as Missões dos Jesuitas dos Guaranis, das quais foi superior o padre Manuel da Bóbrega e que se opuseram á escravização dos indígenas. As fotografias são de Miguel Valle de Figueiredo (MVF), a coordenação da edição – e, supomos, os textos, que nos dão a breve história de cada um desses lugares e monumentos ( paisagens, ruas, casas, igrejas, fortificações, obras de arte etc.), da autoria de João Correia Nunes, que

aparece como coordenador da edição; design gráfico de João Artur Peral e Rita Henriques. A abrir, como prefácio e boa introdução á obra, “Correr mundo pela memória”, por Elísio Sumavielle, especialista da matéria e anterior secretário de Estado da Cultura, que além do que escreve sobre o património aqui documentado e a “viagem” que ele significa, destaca a “inegável qualidade” e “o olhar culto e sensível” do fotografo MVF, bem como a informação precisa e rigorosa” do editor. De tudo resultando, salienta, uma “obra feliz e bem conseguida” que teve o apoio do Montepio, da Lusitânia, da TAP e da Comissão Nacional da Unesco. Miguel Valle de Figueiredo (fotos), Elísio Sumavielle e João Correia Nunes (textos)

PATRIMÓNIO MUNDIAL DE ORIGEM PORTUGUESA ed. Polígono, 300pp, 60 euros


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como tradutor, do italiano, na companhia de Umberto Eco. Do escritor italiano verteu para português, ainda no primeiro semestre, O Cemitério de Praga, um romance histórico em torno da conspiração dos protocolos dos sábios de Sião, que viria a inspirar Hitler na sua “solução final”. Seguiu-se Construir Inimigos e Outros Escritos Ocasionais, também na Gradiva, uma coletânea de ensaios, normalmente respostas a desafios de publicações, que mostram a variedade de interesses do também ensaísta e historiador de arte. Por fim, a mesma editora acaba de lançar a ultima espreitada de Jorge Vaz de Carvalho: a nova tradução de O Nome da Rosa (616 pp, 21,50 euros). Trata-se de uma edição revista e aumentada do célebre romance de Eco, agora expurgado de pequenas incoerências históricas e redundância, sobretudo nas citações latinas. Ainda de Umberto Eco acaba de ser lançado, noutra editora e com outro tradutor, o primeiro volume da sua nova abordagem à Idade Média (Dom Quixote, 800 pp, 37,90 euros), que envolveu um conjunto alargado de académicos e especialistas italianos e europeus”.

GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ

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lém de grande romancista, Gabriel García Márquez é um extraordinário contista. Em muitas histórias

curtas é possível encontrar toda a sua maestria narrativa e até algumas ideias que explorou nos seus romances mais conhecidos, como Cem Anos de Solidão. Depois de os publicar em vários livros, a Dom Quixote agrupo-os pela primeira vez num único volume, precisamente intitulado Contos Completos 1947-1994 (712 pp, 20 euros).

HARUKI MURAKAMI

O ano de 1984, como eu o conhecia, já não existe. Estamos em 1Q84. A atmosfera mudou, mudou a paisagem. Tenho de me adaptar quanto antes a este mundo-com-um-ponto-de-interrogação”. É neste insondável mundo novo que se situam as personagens do monumental romance do japonês Haruki Murakami. Dois professores, um de matemática e outro de artes marciais, escondem vidas secretas que se vão cruzar e enredar para assim perceberem o mundo em que vivem. Dividido em três partes, 1Q84 tem conquistado leitores em todo o mundo. Chega agora a Portugal o primeiro volume, com a chancela da Casa das Letras (492 pp, 18 euros).

GUY DE MAUPASSANT

U

m dos romances mais aclamados de Guy de Maupassant, Bel-Ami, publicado em 1885, sai numa tra-

10 outros destaques

dução de Miguel Serras Pereira, com a chancela do Relógio d’Água (260 pp, 19 euros). É uma obra fundamental para compreender o universo singular, marcado pelo fantástico, pelas questões psicológicas e sociais, do escritor francês, que nasceu em 1850 e morreu antes de fazer 43 anos, num manicómio, em consequência da sífilis que o atormentou mais de uma década. Foi amigo e discípulo de Flaubert e o seu génio, legado em romances, teatro e centenas de contos, abriu caminhos da modernindade.

José Saramago

CLARABOIA Caminho, 400 pp, 18,50 euros O segundo e inédito romance do Prémio Nobel da Literatura

António Lobo Antunes

COMISSÃO DAS LÁGRIMAS Dom Quixote, 328 pp, 16,60 euros

POESIA

Regresso a Angola, com ecos da guerra civil

FREDERICO LOURENÇO E ANA LUÍSA AMARAL

José Luís Peixoto

ABRAÇO

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ois livros de poesia, na Caminho. O primeiro é Clara Suspeita de Luz, de Frederico Lourenço (56 pp, 12,90 euros), com 19 poemas divididos em quatro partes: Trevas, A Avelaneira, No Espelho e a que dá título ao livro. Um exemplo: “Levarei por diante o prazo de existência/ com ventura, esse ganho apressado de uma perda,/ porque estar aqui na verdade é muito — e tudo/ o que é daqui preciso de nós, da efemeridade/ que nos identifica a nós, os efémeros.”.

Quetzal, 656 pp, 17,50 euros Dez anos de vida literária em crónicas e outros textos

Paulo Moreiras

O OURO DOS CORCUNDAS Casa das Letras, 280 pp, 15 euros As lutas entre absolutistas e liberais, num romance pícaro

Fernando Campos

A ROCHA BRANCA Alfaguara, 256 pp, 16 euros Evocação ficcional da poesia e das paixões de Safo

Miguel Gonçalves Mendes

Gonçalo M. Tavares micro e short

JOSÉ E PILAR

a lisboa de

Gonçalo M. Tavares

SHORT MOVIES Caminho, 160 pp, 11,90 euros

CANÇÕES MEXICANAS Relógio d’Água, 96 pp, 14 euros

Gonçalo M. Tavares

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Conversas inéditas do documentário homónimo

mariana e de pessoa

m 2001, Gonçalo M. Tavares surgiu na cena literária portuguesa com o volume de poemas Livro de Dança. Dez anos, que se cumprem precisamente neste mês, e 30 livros depois, o escritor continua a surpreender com novas abordagens aos temas que lhe são caros. De uma assentada, saem dois livros de micro histórias, contos, pensamentos, imagens e enredos. Textos curtos, precisos, no nervo. O primeiro tem o México como mote. São Canções Mexicanas inspiradas por lugares e ícones do país, com a capital como centro que perfazem um álbum de viagens, desfiado ao sabor da escrita e ficção. O segundo livro é a reunião dos textos que Gonçalo M. Tavares tem vindo a publicar sob o título genérico de Short Movies, a maioria aqui no JL. O denominador comum destas histórias é a sua plena visualidade, ou seja, na apresentação das cenas só há imagens visíveis pela leitura, sem conceitos abstractos ou vagos. É ler para ver. JL

Quetzel, 204 pp, 14,90 euros

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s livros/álbuns de Marina Tavares Dias (MTD) sobre Lisboa, em particular a Lisboa Desaparecida, são já uma espécie de ícones da bibliografia natalícia portuguesa. Desde 1987, ano em que saiu o 1º dos nove ou dez volumes com aquele título, logo distinguido com o Prémio Júlio Castilho, que a jornalista e estudiosa, muito sabedora e respeitada olisipógrafa, dá a lume, por esta época, livros que têm Lisboa como tema — alguns deles também sobre a presença na cidade, e a relação com ela, de grandes escritores: Eça de Queirós, Fernando Pessoa e Mário de Sá Carneiro, de que é, especialista. Aliás, exatamente, o seu magnifico livro Lisboa nos Passos de Fernando Pessoa (publicado em 1999, no âmbito do Festival dos Oceanos) tem agora uma nova edição, bilingue (português e inglês). Aí o leitor encontra, profusamente documentada com imagens, muitas delas inéditas, toda a geografia pessoana lisboeta, com um esclarecedor texto. Mais, a autora sugere-lhe (e acompanha-o em) aliciantes percursos relacionados com a obra e a vida do poeta, os muitos lugares em que morou e trabalhou. Ou seja, “um passeio memorável e uma vivência ímpar de cenários que Pessoa conheceu, tal como os conheceu”. O álbum novo de Marina deste ano é, porém, Lisboa Misteriosa. Na linha das suas outras obras, com grande soma ou predominância das imagens — fotos, quase todas antigas, velhos postais, reproduções de obras de arte, documentos, etc. — , e apta a satisfazer completamente os seus leitores fiéis, tem, contudo, para lá da sua assumida intenção divulgadora um carácter ainda mais inesperado de estudo ou ensaio. Ou seja, ao falar dos ”mistérios” de Lisboa a autora “inclui deliberadamente investigações mais definidas e tangíveis, como é o caso dos letreiros das lojas ou da invenção de certas frases lisboetas muitas vezes utilizadas sem conhecimento de origem”. Por exemplo: porque dizemos que caí o Carmo e a Trindade ou que qualquer coisa é resvés campo de Ourique? Desde “Ulisses que

Jorge de Sena

ANTOLOGIA POÉTICA Guimarães, 340 pp, 22 euros Leitura da poesia seniana feita por Jorge Vaz de Carvalho

Sophia de Mello Breyner Andresen

OBRA POÉTICA

Caminho, 920 pp, 49,90 euros Nova edição organizada por Carlos Mendes de Sousa

Eugénio de Andrade

POESIA E PROSA Modo de Ler, 758 pp, 45 euros (vol. I) 409 pp, 30 euros (vol. II) As obras completas do autor de As Mãos e os Frutos

Helder Macedo

POEMAS NOVOS E VELHOS Presença, 168 pp, 12,50 euros Reunião de livros anteriores com poemas inéditos

nunca fundou Lisboa” a “O mistério das palavras”, uma viagem diferente pela cidade das sete colinas.. JL Marina Tavares Dias

LISBOA MISTERIOSA Objectivo, 184 pp, 39,90 euros

LISBOA NOS PASSOS DE FERNANDO PESSOA Objectivo, 122pp, 22 euros


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jl/educação

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Carmen Muñoz A escola de Babel Como se aprendem línguas estrangeiras? Qual a melhor forma de o fazer em contexto escolar? Qual a importância do bilinguismo nos nossos dias? Forma alguns dos temas debatidos na conferência Aprender uma segunda língua, integrada no ciclo Questões – Chave da Educação, organizado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, temas de obvio interessante, até na ótica de uma próxima reforma curricular que o ministro Nuno Catro Está a preparar. O JL/Educação acompanhou os trabalhos, entrevistou a prof.ª catalã Carmen Muñoz, especialista em linguística e bilinguismo, da Universidade de Barcelona, e falou com os investigadores portugueses Luísa Araújo e Carlos Ceia

Francisca Cunha Rêgo

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JL/Educação: Existe a ideia generalizada de que quanto mais cedo se começa a aprender uma língua estrangeira na escola, melhor. A sua experiência prova-o? Carmen Muñoz: No projeto BAF – Barcelona Age Factor Project começámos a trabalhar motivados pela mudança que houve em Espanha, antes de outros países, antecipando a idade de início de aprendizagem de uma língua estrangeira. Queríamos encontrar provas empíricas das vantagens que supostamente teriam as crianças pequenas. Concluímos que, num meio escolar, quando as crianças tem tão pouca exposição à língua e somente a conhecem a partir das aulas – duas ou três vezes por semana -, começarem mais cedo, não é suficiente para avançarem a um ritmo rápido.

sultados. Não obstante, quando observámos o questionário e a entrevista, havia resultados muito diferentes (e melhores) para os alunos que tinham vivido um período no estrangeiro ou tivessem tido um contacto mais directo com o inglês. A nossa investigação tenta consciencializar os educadores e os poderes políticos para que as medidas a adoptar sejam as mais adequadas. Muitas vezes, gasta-se dinheiro de maneira que não surte nenhum efeito, quando os recursos se deveriam focar, por exemplo, na formação dos professores. Começar muito cedo a aprendizagem de uma língua estrangeira sem que os professores estejam bem formados, pode ter efeitos negativos.

MOTIVAÇÕES E RESULTADOS

Mas o que se passa a longo prazo?

Qual é então a melhor forma de ensinar uma língua estrangeira?

Quisemos precisamente investi-lo, por isso comparamos os estudantes em três momentos diferentes. Depois de 200 horas de exposição à língua, curto prazo, depois de 400 horas, nível medio, e depois 700, longo prazo. Quando chegamos às 700 horas, verificámos que os alunos que tinham começado mais cedo, não tinham avançado assim tanto em relação aos outros. Não tinham avançado assim tanto em relação aos outros. Dentro do período escolar, a esperança de que, no final, esses alunos seriam melhores e estariam mais avançados, não se verificou. Continuamos então o estudo com alunos que estavam na universidade e tinham quase 4 mil horas de aulas. Mais uma vez, não havia nenhuma diferença entre os que tinham começado aos 7 ou aos 9 anos. Nas provas estatísticas, o factor “idade de inicio”, não tinha uma consequência directa nos re-

O sistema ideal é por imersão. Várias escolas de elite, bilingues, proporcionam uma aprendizagem perfeita às crianças que podem ser fluentes em inglês, francês ou espanhol, se na escola, a maior parte do dia, lhes falarem nessa língua. Infelizmente, este sistema não é generalizável a toda a população. Assim, é preciso que no momento em que se começa a aprendizagem, os professores estejam bem preparados, haja os recursos adequados e tempo suficiente para se dedicar à aprendizagem. Há estudos feitos no Quebéc, no Canadá, que demonstram que, em apenas meio ano de ensino intensivo de uma língua, alunos com 11 anos adiantam muitíssimo mais do que nos seis anos anteriores a terem aulas duas e três horas por semana. Depois da análise de vários anos, esta metodologia vai-se agora generalizar a todas as escolas do Quebéc.

Carmen Muñoz

omeçar numa idade precoce não é necessariamente o fator mais importante para uma boa aprendizagem de uma língua estrangueira. Esta foi uma das conclusões da apresentação A aquisição de segundas línguas. Idade e contexto de aprendizagem, proferida pela profª Carmen Muñoz na ultima conferencia Questões – Chaves da Educação, que decorreu a 5 de dezembro, em Faro, (na Universidade do Algarve), e a 6, em Lisboa (na torre do Tombo). Como explicou ao JL/Educação, o que o seu estudo BAF, Barcelona Age Factor Project, demonstrou, foi que há muitos outros fatores a ter em consideração, sobretudo os relacionados com a formação dos professores o tempo de qualidade despendido com os alunos e os contextos em que a criança está inserida, bem como a utilização da língua o máximo tempo possível na sala de aula. “É fundamental que as crianças falem, que trabalhem em grupos, em pares, que façam o esforço cognitivo de utilizar a língua estrangeira”, diz-nos nesta entrevista. Carmen Muñoz, 56 anos, é profª de linguística Inglesa e de Linguistica Aplicada, na Universidade de Barcelona. Nascida na Catalunha e portanto desde muito cedo inserida numa sociedade bilingue, sempre se interessou por estas temáticas. Optou por seguir Psicologia, estudando mais tarde Filosofia Inglesa, com a ideia de se especializar na aquisição línguas estrangeiras «. “Quando se está inserido numa comunidade bilingue questionamo-nos constantemente sobre temas linguísticos. Como é que os miúdos separam as duas línguas, como se aprendem, como passam de uma a outra? São questões que estudo há mais de 20 anos. É uma verdadeira paixão”, revela ao JL/Educação. Mestre em Linguística Aplicada, pela Universidade de Reading, e doutorada em Linguística Inglesa, pela Universidade de Barcelona, é ainda vice – presidente da European Second Language Association. O ciclo de conferências dedicado à Educação, do qual Aprender uma segunda língua fez parte, via continuar durante o próximo ano, assim o garantiu à vasta plateia do Auditório da Torre do Tombo, em Lisboa. António Barreto, o presidente da Fundação Francisco Manuel dos Santos.

“Aprender uma língua é muito amis do que saber uma lista de fórmulas. A língua tem que ser utilizada. Tem que ser um veículo de comunicação. Os professores devem potenciar isso na aula.” É mesmo uma decisão política?

língua estrangeira?

Exactamente. Mas só depois de se ter provado que funciona. Há maneiras diferentes para chegar a uma situação melhor do que a que temos hoje em muitos países. Sabe-se que um par de horas numa semana não é suficiente. É muito mais importante a qualidade do ensino e a intensidade com que é desenvolvido. Aprender uma língua é muito mais do que saber uma lista de fórmulas. A língua tem que ser utilizada. Tem que ser um veículo de expressão e de comunicação. Os professores devem potenciar isso na sala de aula. Os alunos têm que utilizar a lingua, fazer tarefas simulando a realidade. Para isso, é preciso uma organização diferente da típica aula de idiomas, não se avança a um ritmo muito rápido.

Há uma diferença entre a aquisição implícita e explícita. Na língua, a aquisição implícita é muito importante. É a que vemos como ideal, a que fazem as crianças pequenas que aprendem todos os dias, por repetição. Estão 100% atentas ao que se está a passar, o que é diferente de uma situação de sala de aula. A atenção é um recurso cognitivo necessário, uma componente da memória operativa que permite a aprendizagem. Há diferenças nesta componente – que variam de pessoa para pessoa – que parecem produzir efeitos no nível de conhecimentos que se adquirem numa língua. A motivação também é um facto muito importante.

Qual é o mecanismo cognitivo para aprender uma

E as motivações variam consoante a idade dos alunos?


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aprender uma segunda língua

Sim. Em ambiente de aula, nos alunos mais novos, a motivação é intrínseca. A aprendizagem pela aprendizagem. Quando se pergunta às crianças se gostam das aulas de inglês, respondem quase sempre que sim. Gostam dos jogos da professora, das palavras, etc. Um adolescente irá responder que é importante aprender inglês por ser imprecindível no futuro. Já não se trata do inglês por ele mesmo, mas para conseguir algo. A motivação intrínseca é própria dos mais pequenos. Mas os adolescentes e adultos têm motivação integradora, instrumental, que é extrínseca e os ajuda muito. A língua é um instrumento para conseguir um objectivo. O termo – integradora – apareceu nos estudos feitos no Quebéc que, como se sabe, é bilingue. Houve uma série de programas de imersão em francês para crianças anglófonas e verificou-se que os que tinham intenção de se integrar na comunidade com os seus pares, etc… - obtinham melhores resultados. Mas quando falamos do ensino de inglês em Portugal ou Espanha não podemos dizer que os nossos alunos o que querem é integrar-se com os britânicos e os americanos. Não, mas hoje em dia, o que verificamos é que os jovens querem fazer parte da comunidade internacional que usa o inglês. Isso é muito claro. Por exemplo, é preciso falar inglês para fazer um Erasmus. Claro que se forem para Inglaterra, por exemplo, não serão só amigos dos ingleses. Mas do italianos, dos polacos, com quem vão falar em inglês. A língua é integradora da comunidade.

A IDADE IDEAL Em Portugal, introduziu-se o inglês no 1º Ciclo do Ensino Básico, mas não curricularmente. Como vê este funcionamento? Há o perigo de não se trabalhar bem a coordenação da escolaridade. Já é difícil fazer a transição entre o 1º e o 2º ciclo – um tema que preocupa muitos países na Europa – pois há uma rotura nos estilos de ensino e as crianaças perdem muitos dos conhecimentos e competências que haviam adquirido. E isto passa-se numa situação que é curricular. Por outro lado, estudos feitos em Inglateraa, nos anos 60, revelaram que os alunos que tinham começado a estudar francês mais cedo (aos 8 anos), não demonstraram nenhuma vantagem face aos que o tinham feito mais tarde. Havia um nivelamento por baixo. Isto fez com que o gover no britânico decidisse não avançar com esta politica relativamente ao francês. Mas se todos tivessem começado antes não seria mais positivo?

São dois problemas diferentes. Um: ter a mesma aula crianças que têm conhecimento prévio da língua e que não têm conhecimento prévio da língua. Isto faz com que os que têm conhecimento prévio percam, ou seja, foi um esforço em vão. Dois: vale a pena que todos comecem ao mesmo tempo e recursos. Mas aí não tem que ser aos 6, mas antes aos 8, se isso significar que os professores estão melhor formados, que há mais horas no currículo.

PARA ALÉM DO YES&NO

política?

Que conselhos dá os professores de línguas? O que é mais importante que façam nas aulas?

É complicado dizê-lo. Idealmente ter-se-ia que apostar em duas línguas. Para os alunos é claro que há vantagens ter duas línguas no currículo, mas têm que ser bem dadas. Trata-se sobretudo de uma decisão politica e não daquilo que é melhor para as crianças.

Depende, sempre das condições. No caso do Quebéc, os investigadores decidiram que aos 11 anos, os alunos produziam melhores resultados. São ainda jovens, mas ao mesmo tempo, do ponto de vista cognitivo, estão mais maduros e podem avançar mais depressa. Realizam aprendizagens implícitas e explicitas, porque o fazem intensamente. Então, a partir dos 11 anos, com esta intensidade de trabalho e com professores vem preparados, será perfeito. Se me disser que num país, a partir dos 6 anos, se dão muitas horas de aulas, há professores bem preparados, e actividades coordenadas com o seu desenvolvimento cognitivo, então 6 anos é a idade ideal para começar.

Além do que o professor proporciona por si mesmo, falando com os alunos na língua estrangeira, pode utilizar – caso haja na escola – outros recursos, como o quadro interactivo ou os computadores, que são meios que as crianças adoram e proporcionam muito bons resultados. Outro factor importante é dar-lhes input nativo de grande qualidade. Ou seja, fazer com que os alunos ouçam historias em inglês, narradas, por ingleses, adultos e crianças. São vozes com outros acentos que as vão ajudar muitíssimo. Além disto, é fundamental que as crianças produzam, que trabalhem em grupos, em pares, que falem, que façam o esforço de utilizar a língua estrangeira. Em muitas aulas que observámos, o professor faz perguntas a cada criança que responde repetindo uma estrutura ou apenas dizendo apenas ‘yes’ ou ‘no’. Temos que lhes exigir um esforço cognitivo, a produção de uma mensagem. É aqui que surgem os grandes avanços. É o que mais se assemelha à situação natural. Outro factor que contribui para o sucesso é ter assistentes nativos (falantes de língua materna) na sala de aula.

No fundo, tudo dependerá do contexto?

Como?

Exactamente. Em Espanha, começamos curricularmente com o inglês na pré-primaria, e os resultados não se vêem. Claro que estamos a avançar, porque vínhamos muito de baixo, mas continuamos a estar abaixo da média europeia. Ou seja, começar muito cedo não produz milagres. Sem as condições adequadas, as crianças não beneficiarão de aprender uma língua estrangeira. Há imensas vantagens em falar muitas línguas e há sistemas educativos que demonstram que se podem trabalhar bem até duas línguas no corriculo. O exemplo do Luxemburgo é flagrante. Tudo é possível, sobretudo com mais exigências no sistema educativo.

No Chile, que visitei há pouco tempo, têm um sistema de voluntariado de nativos das diferentes línguas, incrível. Os assistentes vêm da Nova Zelândia, da Austrália, de Inglaterra para estarem nas salas de aula com os estudantes. E ficam instalados com as famílias das crianças. Há maneiras muito criativas de aumentar a sua proficiência linguística. Em Espanha, temos um projecto de intercâmbios entre estudantes espanhóis vão pra Grã-Bertanha, e vice-versa. Chamamos-lhes auxiliares de conversação. E são muito úteis, também para turmas de crianças pequenas, que podem ser divididas em grupos. Aliás, a divisão das turmas é outra ideia a desenvolver quando se ensinam línguas.

Essa parece ser sempre a diferença. Há uma idade ideal para começar a aprender a língua estrangeira?

E até quantas línguas se pode falar vem? Há casos verdadeiramente extraordinários de pessoas que falam muitas línguas. Quase não há limite. Como não o há nos conhecimentos que alguém pode adquirir. Depende de muitos factores e também da habilidade, nem todas as pessoas têm a mesma. Devemos tentar que o sistema educativo seja o mais democrático possível, mas não podemos esperar que todos os alunos tenham os mesmos resultados.

Neste momento por causa da crise económica, o número de alunos por turma, no sistema público português, disparou. Como é possível ensinar línguas assim? Não se podem pedir milagres aos professores. É muito difícil. É em momentos de crise que se tem que pensar que talvez seja melhor atrasar a entrada da língua estrangeira um ano. Há rumores de que a nova reforma educativa vai cortar a segunda língua no 3º ciclo. Parece-lhe uma boa

“Devemos tentar que o sistema educativo seja o mais democrático possível, mas não podemos esperar que todos os alunso tenham os mesmo resultados”

Tendo em consideração o tempo necessário para aprender bem uma língua, considera possível, nos anos de escolaridade obrigatória, aprender duas, como pedem as metas europeias? Sim, uma melhor do que a outra. A que se começa mais tarde, terá sempre menos horas, mas com as condições certas é possível ter bases sólidas sobre as quais a pessoa poderá continuar a estudar. A aprendizagem de uma língua não acontece só pela língua, mas também pelo que ela nos trás de conhecimentos de outra cultura, de outras possibilidades. E isso é sempre benéfico, mesmo que não seja num nível de proficiência muito elevado.


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aprender uma segunda língua

CARLOS CEIA Assumir comprimissos

Há que fazer, em primeiro lugar, uma distinção fundamentao: aprender uma segunda língua, não é o mesmo que aprender uma língua estrangeira. Quem o afirma é Carlos Ceia, 50 anos, prof. associado com agregação, da Universidade Nova de Lisboa, da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, no departamento de Línguas, Culturas e Literaturas Modernas e o último dos oradores da terceira conferência sobre educação, organizada – em faro e em Lisboa – pela Fundação Francisco Manuel dos Santos. Na sua comunicação, precisamente intitulada Aprender uma segunda língua, o investigador explicou que quem aprende uma segunda língua assume “um muito maior compromisso com a aprendizagem”. Ao JL/Educação, exemplifica: “Língua segunda é o português para um emigrante que vem trabalhar para Portugal. Assim, a nossa língua concorre com a língua materna dessa pessoa, que vai querer aprendê-la com uma enorme profundidade. Normalmente , aprende-se uma segunda língua por razões da emigração, familiares ou diplomáticas. Quem aprende uma língua estrangeira não tem necessariamente que estudar as suas relações politicas, culturais, históricas e literárias”. Como conclui o também director do ILNOVA (Instituto de Línguas da Universidade Nova de Lisboa) num país, os falantes de uma língua segunda são normalmente em numero inferiror aos falantes de línguas estrangeiras. Carlos Ceia, que ainda é investigador do Center for English, Translation and Anglo-Portuguese Studies, contextualizou o ensino de línguas estrangeiras em três vertentes: na Europa, em Portugal, no Ensino Básico e Secundário e, em Portugal no ensino Universitário. Reconhecendo que, de país para pais, as realidades são muito diferentes e que tem havido, um esforço de promoção das línguas estrangeiras, avisa que ainda há muito trabalho a fazer: “Apesar das directrizes

europeias indicarem que todos os países devem promover o ensino de, pelo menos, duas línguas estrangeiras o mais cedo possível, o que existe à chegada, sobretudo no sul a Europa, é a inversão desta política.” O caso português é flagrante: “Na melhor das hipóteses, no 1º Ciclo há uma introdução do ensino do inglês, mas não curricularmente. Só no 2º Ciclo os alunos estudam uma segunda língua como parte do currículo, e no 3º podem então – até ver – estudar uma nova língua estrangeira. No Secundário, inverte-se tudo e os estudantes chegam ao 12º, com conhecimentos muito intermédios de uma língua estrangeira, e não de duas ou três como deveria ser”. O que falta então? O investigador não hesita: “Assumir os compromissos feitos com a União Europeia que durante os últimos 20 anos, os vários ministros da educação têm proclamado”. E lança outra pergunta: “Queremos ou não o ensino de pelo menos duas línguas estrangeiras, em toda a escolaridade obrigatória?” A nível universitário, como o investidor tem vindo a observar, a relidade é outra: “Com o Processo de Bolonha tem-se verificado uma enorme procura do ensino de línguas estrangeiras. Muitos estudantes já perceberam que se trata de mais-valias para os currículos”. E as universidades têm sabido corresponder com institutos de línguas como o ILNOVA, o Centro de Línguas da Universidade de Coimbra ou o Babelium, o Centro de Línguas da Universidade do Minho. Nos últimos anos, no ILNOVA, o caso que melhor conhece, as seis línguas mais procuradas foram: inglês, espanhol, mandarim, russo, japonês e árabe. Mas neste ano letivo, houve uma curiosamente entrou para o ‘top’: o alemão. “Face à actual conjuntura económica este súbito interesse não é de todo uma surpresa”, conclui Carlos Ceia.

LUÍSA ARAÚJO traçar metas de aprendizagem

A intenção é provocar. O título da sua comunicação Portugal numa Europa que se quer multilingue não é inocente. O que se quer, o que se deseja, promove e defende, nem sempre bate certo com a realidade e o multilinguismo europeu parece esbarrar num muro de vontades, ficando a prática longe do sonho. Para Luísa Araújo, 46 anos, douturada em Ciências da Educação, pela Universsidade de Delaware, nos Estados Unidos, especializada na área da literacia e do bilinguismo, hoje investigadora no Joint Research Centre, da União Europeia, em Ispra, Itália, há muito trabalho pela frente, como referiu, em jeito de conclusão, à (vasta) plateia de auditório da Torre de Tombo, em Lisboa, onde decorreu a última das três conferência Questões-chave da Educação, promovidas pela Fundação Francisco Manuel dos Santos. Baseando-se em vários estudos, nomeadamente do Eurostat, Luísa Araújo, confirmou ao JL/Educação: “Os adultos de hoje na Europa não apresentam grandes conhecimentos de línguas estrangeiras, nem no numero de idiomas que afirmam conhecer, nem no nível de proficiência que apresentam”. Mas a situação não tem que continuar assim. E todo o trabalho envolvido nos últimos anos nas escolas um pouco por toda a Europa, pretende precisamente combater essa falha. E estudar a situação actual é uma das formas para se perceber quais os problemas sobre os quais é necessário actuar e qual a melhor for-

ma de os resolver. A investigadora realça a importância de organismos como o Surveylang, um consórcio que trabalha num estudo para a Comissão Europeia, em 14 países europeus – Bélgica, Bulgária, Croácia, Inglaterra, Estónia, França, Grécia, Malta, Holanda, Polónia, Portugal, Eslovénia, Espanha e Suécia – testanto o nível dos alunos de 9º ano, em cinco línguas diferentes: inglês, francês, espanhol, alemão e italiano. “Com estes dados poderemos traçar metas de aprendizagem realistas e políticas específicas”, explica. Os primeiros resultados estarão disponíveis a partir do próximo ano. “Os questionários aplicados nas escolas aos alunos e professores incluem questões relacionadas com as metodologias adoptadas pelos professores, com o meio socioeconómico dos alunos e com a sua motivação para aprenderem determinadas línguas”, salienta a investigadora. Luísa Araújo referiu-se ainda a alguns factores que intervêm na aprendizagem de uma língua estrangeira como a motivação ou o domínio da língua materna, sabendo-se que a intensidade e a qualidade da exposição à língua estrangeira são outro dos factores determinantes. “Sabemos que quanto mais tempo um professor de uma língua estrangeira a falar na sala de aula – mesmo num nível m ais básico, de iniciação – melhores serão os resultados dos alunos. Como regra, deverá falar, inglês por exemplo, cerca de 90% do tempo, para que se evitem as possíveis traduções para a língua materna.


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Ana Pessoa Dedica a sua vida às palavras, entre trabalhos como tradutora, no Comité Económico e Social Europeu, em Bruxelas, onde vive, e a escrita, uma paixão que sempre a acompanhou. Com contos premiados e publicados em várias antologias e revistas literárias, Ana Pessoa, de 29 anos, acaba de vencer o Prémio Branquinho da Fonseca, da Fundação Calouste Gulbenkian e do Expresso, com a sua primeira história juvenil: O caderno vermelho da rapariga karateca. O JL/ Educação traça-lhe o perfil

Carolina Freitas

Senti que estava a trocar o meu joelho por um livro. Portanto, muito bem”. Eis como Ana Pessoa, recorda o dia em que venceu o Prémio Branquinho da Fonseca 2011, na categoria de literatura para a juventude. Voltava da primeira consulta após uma operação ao joelho, fruto de uma lesão que fizera a praticar karaté, na adolescência, e o médico dissera-lhe que a recuperação seria muito demorada. Estava então tristíssima, a rogar pragas aos pais por a terem inscrito naquele desporto, quando, ironia do destino, soube que tinha ganho o concurso com um texto, precisamente, sobre essa fase da sua adolescência: O caderno vermelho da rapariga karateca. A história de uma menina, a caminho dos 15 anos, que começa a escrever num diário as suas dúvidas e inquietações face ao mundo que a rodeia: a escola, a família, a catequese, o karaté. “Interessava-me explorar este período em que colocamos muitas questões, mas não deixamos de ter também as nossas certezas”, diz, ao JL/ Educação, a autora, natural de Lisboa. Nunca tinha escrito para o público juvenil. Surpreendida com o entusiasmo de uma prima mais nova, nem por isso dada à leitura, pela saga Twilight, de Stephenie Meyer, correu a comprar todos esses livros. “Foi o meu regresso à literatura juvenil, às questões mais essenciais, e que vamos esquecendo à medida que crescemos: a nossa relação com a morte, Deus, o amor, o sentido da vida, a procura de uma identidade”, explica. Mas não se engane o leitor. Como anota a ‘rapariga karateca’ no seu caderno vermelho: nada de vampiros nesta história. Em vez disso, Ana Pessoa procurou abordar aqueles “temas universais” através de breves narrativas de ficção, como a história da Bruxa má que quer ser boa ou da Mosca que nãos sabia quem era. Difícil foi chegar ao registo certo. Para isso, recorreu às dezenas de diários que escreveu durante a adolescência, e aí encontrou não só o tom, como também a personagem para a sua história. Uma versão, ficcionada, de si enquanto adolescente: uma rapariga que estuda num colégio católico, gosta muito de karaté, e cuja maior paixão é a escrita. Não sabe porquê. Simplesmente, preenchia-a. Tudo começou na Escola Primária, onde o que mais gostava era de escrever quadras. Mais tarde, a partir do 5º ano, veio a necessidade de uma escrita mais pessoal, e todos os diários eram poucos, enquanto, na escola, se tornava uma espécie de ‘escritora de serviço’ da turma: inventava histórias, criava capas “super elaboradas” que a professora de Português fotocopiava e distribuía por todos. Mal acabavam a leitura, vinham as sequelas. E embora reconheça o incentivo da docente, confessa que a grande motivação nascia dos livros: “Lembro-me de pensar especialmente em que escrevia, de perceber que me estavam a contar uma história, e interessar-me pela maneira como o faziam. Gostava de parar a leitura, voltar atrás, e dizer ‘ Ah, só me dizes isto agora!’”

UMA PESSOA DE BASTIDORES Em 2001, chegada ao curso de Estudos Portugueses e Alemães da Faculdade de Letras, da Universidade de Lisboa, Ana Pessoa troca a escrita pela “leitura e análise do que os outros escreveram”. E dedica-se também a uma outra ‘prosa’: a jornalista, integrando, a partir de 2001, a redacção do Fazedores de Letras, o jornal da faculdade. “Nessa altura estava convencidíssima de que ia ser jornalista. Mas fui-me apercebendo que não era pessoa para estar sempre com a minha energia em alta, disponível para os outros”, conta. E remata: “Sou uma pessoa de bastidores”. Assim que conclui a licenciatura, em 2004, parte para a cidade de Trier, na Alemanha, onde lecciona Português na Universidade de Trier e em várias escolas secundárias, e, em 2005, passa pela sua primeira experiência profissional como tradutora, no Parlamento Europeu de Luxemburgo. Em 2007, muda-se para Bruxelas, onde actualmente trabalha, como tradutora no Comité Económico e Social Europeu, e reside com o marido, Henrique. O seu primeiro e mais “cruel” leitor. “Estou convencida de que o que escrevo não teria mérito se ele não me ajudasse nas releituras. É incansável. Não que se voluntarie, mas chego ao ponto de o acordar para me rever páginas”, revela. Isto, sobretudo, quando Ana Pessoa tem algum concurso literário em vista, e começa a construir uma história com princípio, meio e fim. Porque, à partida, não completa muito aquilo que escreve: vai plantando ideias em dezenas de cadernos e, outras, apressa-se a finalizar para pôr no blogue (o BelgaVista). Vê, por isso, nos concursos uma oportunidade para estruturar um texto (sobretudo contos) a partir desses trabalhos dispersos, tendo já recebido inúmeros prémios como o Internacional de Poesia Castello di Duino (2001), Jovens Criadores, A Sea of Words e Aveiro Jovem Criador (todos em 2010). Não dá para pensar nos autores que a influenciaram. Só sabe aqueles que gosta de ler. Número 1 : António

Prémio Branquinho da Fonseca 2011: “O meu joelho por um livro…” Ana Pessoa

Contadora de histórias

Lobo Antunes. Ao qual se somam muitos outros como José Saramago, Gonçalo M. Tavares, Valter Hugo Mãe, ou a sua mais recente “paixão”, Dulce Maria Cardoso, e outros como E.T.A Hoffman, Haruki Murakami, Charlotte Bronté ou Albert Camus. Se um dia se dedicará exclusivamente à escrita. Também é coisa que não lhe tira o sono. “participo em concursos porque quero, de alguma forma, afirmar-me no mundo literário, mas, ao mesmo tempo, acho isso assustador”, diz. Gosta do anonimato, de se sentir “uma estrangeira entre os estrangeiros”, como em Bruxelas, onde ninguém tem nada a dizer sobre o que escreve. E sente que, para escrever, precisa dessa liberdade – “de poder investir o quanto eu quiser”. Tanto é que, depois de vencer o Branquinho da Fonseca, parou de trabalhar no seu primeiro romance. “Parece que estão a espreitar por cima do meu ombro, a ver o que escrevo, então, não me apetece”, esclarece. Só que, como diz o ditado, quem anda à chuva molha-se. E, desta vez, o prémio (também atribuído a Maria João da Silva Lopes, na categoria infantil), além de 5 mil euros, garante a publicação da obra junto de uma editora. Pelo que, já no próximo ano, Ana pessoa sairá dos bastidores para os escaparates das livrarias nacionais, com um livro – o seu primeiro – sobre uma rapariga que começa por sonhar ser karateca e acaba a dizer que talvez queira ser escritora.

“Quando comecei a ler, lembro-me de pensar especialmente em que escrevia os livros, de perceber que me estavam a contar uma história, e interessar-me pela maneira como o faziam”

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estante

Bela Adormecida e Pinóquio pop-up

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ão dois dos clássicos mais clássicos de literatura infantojuvenil. A Bela Adormecida e As Aventuras de Pinóquio acabam de ser editados em versão pop-up, mesmo a tempo do Natal… Louise Rowe baseou-se no conto tradicional Dornröschen, dos irmãos Grimm para esta sua versão de A Bela Adormecida. “Era uma vez um Rei e uma Rainha que desejavam muito er um filho. Um dia, andava a Rainha a passear, saltou da água um sapo que lhe disse: - o teu desejo vai ser realizado”. Assim começa a história de encantar carregada de reis e rainhas, príncipes e princesas, sonos de 100 anos, fadas, rocas e fusos – a que nesta versão se chamam máquinas de fiar… As ilustrações – tal como em O Capuchinho Vermelho, da mesmo autora e colecção – são belíssimas e os pop-ups surpreendem a cada nova página. Os jovens leitores podem mesmo sentir-se dentro da acção e tocar com as pontas dos dedos nas torres do castelo ou mesmo no fuso. Mas há que ter cuidado… Depois ninguém se pode queixar se adormecer… Ao Pinóquio não há sono que o vença. Quem começa por ser um simples bloco de madeira para depois se transformar num menino de verdade não tem muito tempo para dormir. Já para fazer asneiras… nesta edição da escritora britânica Stella Gurney (feita a partir do original de Carlo Collodi) e do ilustrador croata Zdenko Basic – cenógrafo e figurinista no The Merlin Theatre de Zagreb, distinguido com os prémios de ilustração Sheep in a box e Kiklop – as trapalhadas de Pinóquio são mais que muitas. Põe o pai – Gepeto – na prisão, incendeias os pés na lareira, entra no malogrado Grande Teatro de Marionetas e na tonta Cidade

de Apanha Tolos… Mas, no processo de se tornar num “menino de verdade”, conta com a ajuda da Fada Azul e do Grilo Falante. Ao longo das páginas, há muitos segredos escondidos que se revelam através de janelas para levantar, de tiras para puxar ou rodas para correr. Ler esta história magnificamente ilustrada é uma aventura (quase) tão grande quanto a de Pinóquio. Louise Rowe

Midas, sol e vento

Correr com o Faísca

O

U

rei Midas já era rico, mas sonhou mais ainda. Por ajudar um deus, ganhou um dom: tudo em que tocava transformava-se em ouro. O que lhe veio a gerar alguns problemas… da Grécia clássica para os nossos dias, a história de Midas é mote para mais um volume de colecção Programa de Leitura, que apresenta contos especialmente concebidos para crianças que dão os primeiros passos nas letras. O Sol e o Vento, uma narração da fábula clássica de Esopo. Cada volume tem , no final, jogos educativos para uma melhor compreensão do texto, cuja coordenação é de Alison Kelly, especialista em educação e leitura na Roechampton University of London.

UM PASSEIO COM OS CARROS Dom Quixote, 30 pp, 14,95 euros

O REI MIDAS

Editorial Presença, 14pp, 13,90 euros

Círculo de Leitores, 32 pp, 6,99 euros

Stella Gurney (texto) e Zdenko Gurney (ilustrações)

Mairi Mackinnon (texto) Francesca di Chiara (ilustrações)

Círculo de Leitores, 28 pp, 14,85€

Disney

Alex Frith (texto) Simona Sanfilippo (ilustrações)

A BELA ADORMECEDA

AS AVENTURAS DE PINÓQUIO

m computador e uma câmara de filmar são o que basta para horas de diversão interactiva com este “livro da realidade aumentada”. Com animações reais que permitem ao Faísca McQueen, ao Marte e aos outros Carros moverem-se no ecrã, através de um programa (de fácil instalação) e de quatro cartões de activação, os jovens leitores/ jogadores partem numa digressão mundial com início em Radiador Springs. Primeiro volume desta nova colecção destinada a crianças com mais de dez anos.

O SOL E O VENTO

Círculo de Leitores, 32 pp,6,99 euros

Hugo, mangas e Marte

Felicidade

Histórias de futebol

Natal ecológico

É

S

C

O Vovô era carpinteiro, e era sempre ele que fazia os meus brinquedos de madeira. Tenho um papagaio vermelho e azul com rodas que quando giram fazem bater as asas do papagaio, e tenho um leão que abre a boca de tal modo que solta uns rugidos enormes quando lhe puxo o rabo, e tenho uma girafa que não faz grande coisa, mas eu não me importo, porque tem quase a mesma altura do que eu e todos a acham espantosa e pode dizer-se que é a minha melhor amiga. Chama-se Henriqueta”. Assim começa a recente incursão de Richard Zimler na literatura infanto-juvenil. O tema é delicado, tal como este livro sobre a descolonização e suas consequências, vistas a partir do olhar atento de Hugo. Bicicletas, mangas, Marte, cartas que se encontram, viagens de regresso e emoções à flor da pele.

uma gigantesca pequena coisa. Pode estar num abraço, num cheiro, num floco de neve que se engole. Essa gigantesca pequena coisa até pode estar numa lágrima de saudade. Pode estar num riso, numa corrida, numa janela aberta para o mundo. A gigantesca pequena coisa que a Beatrice Alemagna nos faz (obriga-a?) recordar é a felicidade. Ela passa por todo o lado, há que abrir as portas, estar atento. Neste álbum belíssimo – com as ilustrações magníficas a que a autora já nos habituou – a magia das palavras está toda lá. Em tempo de Natal, um excelente livro para miúdos e graúdos, para ler todo o ano. Muitas vezes. Beatrice Alemagna (texto e ilustrações)

A GIGANTESCA PEQUENA COISA Tradução de Maria José Sarabando.

Richard Zimler (texto) Bernardo de Carvalho (ilustrações)

HUGO E EU E AS MANGAS DE MARTE Caminho, 44 pp, 12 euros

Bags of books, 22pp, 20 euros

e falassem o que diriam as chuteiras do Eusébio? A bola de uma final de selecção nacional? A trave da baliza? A luva do guarda-redes Ricardo ou a taça do Mundo de Futebol? É precisamente esse exercício que a escritora Margarida Fonseca Santos (ajudada pelas ilustrações de Inês do Carmo) faz em mais um volume de colecção 7X – que conta com 7X25 Histórias da Liberdade e 7X1910 Histórias da República. São histórias do futebol, sem emblemas clubísticos para evitar problemas, focadas nas proezas da selecção nacional, para assinalar os 85 anos da Federação Portuguesa de Futebol. Sete histórias, sete objectos carregados de memórias. Para continuar a recordar. Margarida Fonseca Santos (textos) Inês do Carmo (ilustrações)

7 X 11 HISTÓRIAS DE FUTEBOL Gailivro, 37 pp, 9,90 euros

omo viver um Natal feliz sem desperdiçar? Como se podem fazer decorações amigas do ambiente? E o fim de ano? Será que é possível fazer festas em harmonia com a natureza? O Alce verde – o guia desta aventura – acha que sim e ensina os jovens leitores a responder a estas perguntas da forma mais positiva. Construir as decorações natalícias, usar papel de embrulho reciclado, oferecer presentes ecológicos e garantir que não se acumula lixo no fim da festa são algumas propostas. Uma edição ilustrada que dá conselhos a pais e a filhos que integra a colecção Proteger a Terra. Choé Laborde (texto) Mélisandre Luthringer (ilustrações)

EU GOSTO DO NATAL Círculo de Leitores, 24 pp, 11,90 euros


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antónio estanqueiro formar pessoas e construir futuros

António Estanqueiro, 61 anos, é licenciado em Filosofia, pela Faculdade de Letras de Lisboa e professor de Filosofia e Psicologia, na Escola Secundária da Amadora. É coautor de vários manuais escolares e das obras Dicionário Breve de Filosofia, A Sabedoria dos Provérbios, Aprender a Estudar, Saber Lidar com as Pessoas e Boas Práticas na Educação.

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scolhi a minha profissão certamente influenciado pelos bons professores que tive. Sou professor há mais de 35 anos. Durante este tempo, fui colaborador de diversos órgãos de comunicação social e recebi convites para me dedicar em exclusivo ao jornalismo. Optei por ficar no ensino. Acredito que decidi bem! Participei na gestão da escola como coordenador dos professores de Filosofia, membro do conselho pedagógico e director de turma. Mas sinto-me mais realizado na interacção pedagógica com os alunos. Gosto da pratica lectiva. Por isso, na reflexão sobre a educação e sobre a minha experiência de professor, prefiro centrar-me no essencial da escola: ensinar e aprender.

autorretrato

de professor

Esforço e método Como a maioria dos professores, procuro conhecer e valorizar as capacidades, o estilo e o ritmo de aprendizagem dos alunos. Mas sou exigente em relação ao esforço que cada um deve fazer. Todos os dias, tento impedir que o vírus da mediocridade se propague a minha volta. Penso que o papel do professor é preparar os alunos para a vida, não é aumentar o sucesso estatístico, tão desejado pelos governantes! Adocicar as dificuldades não ajuda a crescer. Os alunos tem de ser desfiados em desenvolver gradualmente as suas potencialidades, a esforçar-se, a dar o seu melhor na conquista do sucesso. O sucesso é gratificante e o que é gratificante é motivador. Sei que o esforço dará melhores frutos se for acompanhado por um bom método de estudo. Nesse sentido, tenho dinamizado diversos projectos para ensinar a estudar. É certo que cada aluno deve construir o seu próprio método, de acordo com o seu estilo de aprendizagem. Valorizo a dimensão formativa da avaliação. Tenho por habito ajudar os alunos a fazer a sua auto avaliação e a tomar consciência dos vários factores que influenciam os resultados escolares. Um aluno consciente sente orgulho nos seus sucessos e, perante eventuais insucessos, não inventa justificações, atribuindo toda a culpa a outras pessoas ou à falta de sorte. Assume as suas responsabilidades e aprende as lições dos erros. Acredita nas suas capacidades. Sabe que, se persistir no esforço e aprefeiçoar o seu método de estudo conquistará melhores resultados.

RELAÇÕES HUMANAS NA ESCOLA O fenómeno da indisciplina, associado à desmotivação, será um dos maiores problemas da escola atual. A indisciplina na sala de aula prejudica o ensino e a aprendizagem. Rouba tempo e energias. Em casos extremos, leva ao esgotamento físico e emocional dos professores. Conheço alguns desses casos. No combate à indisciplina, julgo que é necessário responsabilizar os alunos e as famílias. Prefiro falar do investimento em medidas preventivas. A criação de um ambiente de disciplina é uma tarefa possível, se as turmas difíceis

tiverem menos alunos, se houver uma liderança forte e motivadora nas escolas e se os professores agirem em equipa, nos conselhos de turma. Um aluno não resiste facilmente a um grupo de professores unidos e determinados. Considero que a sala de aula, mais do que espaço físico, é um espaço relacional. Nesse sentido, procuro cuidar a minha relação com todos os alunos, mesmo com os mais difíceis, prevenindo ou resolvendo conflitos, através do diálogo. Exijo a cada aluno que cumpra, dentro da sala de aula, a regra de ouro das relações humanas: tratar os outros como gosta de ser tratado! Um clima conflituoso provoca condutas defensivas ou agressivas. Um clima de respeito mútuo influência positivamente a motivação, a disciplina e a aprendizagem dos alunos. Em determinadas circunstâncias, negoceio acordos informais com os alunos, desde que não contrariem o regulamento interno da escola. Julgo que a negociação, realizada com bom senso, não é perda de tempo, nem perda de autoridade.Pode ser a melhor forma e prevenir a indisciplina.Em educação, a regidez não funciona. É indispensável equilíbrio entre o controlo e a liberdade, a razão e a emoção, a distância e a proximidade, a firmesa e o afeto.

Valores Éticos A educação em valores é uma tarefa da família e da escola. Os valores fazem parte da alma da educação. Como professor, preocupo-me com a aprendizagem dos conteúdos programáticos e com o desenvolvimento das competências dos alunos. Mas também considero fundamental que os jovens aprendam valores éticos, para orientar a sua vida na relação com os outros e prevenir comportamentos de risco. Em geral, os professores estão de acordo quanto à necessidade da educação moral dos jovens. Apesar disso, alguns pensam que não lhes compete transmitir valores e, assim, deixam os alunos entregues ao relativismo moral. De acordo com o relativismo moral, os valores são subjectivos, dependem das escolhas individuais, vale tudo o mesmo. Nesse caso, o bem e o mal, o correto e o incorrecto, correm o risco de confundir-se com os gostos, os afetos, os interesses ou as conveniências de cada pessoa. Quem abraça o relativismo moral, pode justificar a mentira ou a desonestidade, o racismo ou a violência, com base nas suas convicções. A verdade é que uma pessoa não pode agir como se tudo valesse o mesmo. Não são toleráveis os comportamentos contrários ao respeito pela dignidade humana. Defendo que os professores devem oferecer aos alunos critérios objectivos para distinguir o bem do mal e devem assumir-se como modelos na prática dos valores éticos. Não há educação neutra. Não há educação sem valores. A sociedade de consumo continua a produzir pessoas interesseiras e egoístas. A educação tem de remar contra a corrente, para formar pessoas críticas, honestas, responsáveis e solidárias. Felizes!

Relação entre professores e pais Nos últimos 25 anos tenho sido formador de professores e pais. Como uns e outros, gosto de sublinhar as vantagens da cooperação. Pais e professores têm papeis diferentes, mas podem cooperar, num clima de confiança e respeito. Acusações mútuas, nada resolvem. Uma boa relação entre a escola e a família favorece a motivação dos alunos, previne a indisciplina nas aulas e facilita o rendimento escolar. Compete aos pais, como primeiros responsáveis pela educação dos filhos, acompanhar o estudo dos filhos em casa e tomar a iniciativa de manter contacto com a escola. O que se pretende no diálogo entre o diretor de turma e os pais é garantir uma boa integração do aluno na escola e promover o seu desenvolvimento pessoal e social. Verifico com satisfação que muitos pais acompanham a vida escolar dos filhos. Infelizmente ainda há pais ausentes. Em geral, justificam-se com falta de tempo, por causa dos compromissos profissionais. Esses pais precisam de repensar as suas prioridades e interessar-se mais pelos filhos, sobretudo nos primeiros anos de escolaridade. Quem quer educar, tem que estar presente. Não basta entregar os filhos à escola e fazer exigências aos professores. A escola e os professores, por melhor que sejam, não podem substituir a família na educação.

Conclusão Já vivi muitas reformas educativas. Cada governo quer deixar a sua marca. Espero que o atual Ministério da Educação reforce a autoridade dos professores e não ceda à tentação de impor apressadamente mais uma reforma, sem salvar o que já funciona bem nas escolas. Conheço, por dentro, as dificuldades de ser professor: sobrecarga de funções e responsabilidades, excesso de burocracia, desmotivação e indisciplina de alguns alunos. Mas também tenho o prazer de observar o brilho no olhar daqueles que querem aprender. No ensino, há naturalmente uns dias mais luminosos do que outros! Aprendo, todos os dias, reflectindo sobre as minhas práticas e partilhando experiências com outros professores. Apesar das dificuldades, acredito na importância da profissão docente para a construção de uma sociedade melhor, alicerçada em conhecimento e valores. Sinto orgulho na minha missão de formar pessoas, despertar vocações e construir futuros. Haverá profissão mais importante? JL


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Emannuel Nunes

Pensar a música e o mundo

Manuela Paraíso

A

Culturgest acolheu um simpósio internacional dedicado a Emmanuel Nunes, por ocasião dos seus 70 anos, celebrados em Agosto, no qual foi apresentado o livro Emmanuel Nunes – Escritos e Entrevistas, que reúne 20 ensaios escritos entre 1977 e 2009 (alguns dos quais inéditos), na sua maioria em francês e alemão e traduzidos para este volume, bem como críticas de música produzidas antes de ter iniciado o trabalho como compositor e entrevistas para várias publicações portuguesas e estrangeiras. O livro editado pelo CESEM Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical, da universidade Nova de Lisboa, e pela Casa da Música, foi concebido e organizado pelo musicólogo Paulo de Assis (também que compilou e traduziu muitos textos, selecionados por forma a obter um corpus representativo da amplitude do pensamento e dos interesses de Emmanuel Nunes (entre eles, a pintura), ao longo das diversas fases da sua actividade criativa. Pretexto para uma conversa com o compositor, com uma vasta e reconhecida obra, que lhe valeu, entre outros, o Prémio para Composição da Unesco, em 1999, e o Prémio Pessoa, em 2000 – conversa sobre o momento atual, e em especial o seu trabalho – que neste aniversário poucas apresentações públicas teve, seguindo-se a um longo período de apoio contínuo por parte da Fundação Calouste Gulbenkian, que durante três décadas e meia lhe encomendou mais de 20 obras. Jornal de Letras: Quando fez 60 anos, realizaram-se vários concertos e homenagens, nomeadamente uma retrospectiva no Centro Cultural de Belém. Dez anos depois, tivemos um simpósio internacional e a edição deste livro, mas ao cerne do ser trabalho, a música, quase não tivemos acesso. Qual a sua leitura disto?

Emmanuel Nunes: Primeiro, devo dizer que, para os meus 70 anos, foi o Pedro Amaral que organizou e impulsionou todos os concertos em Belém. Mas não constituiu uma consequência lógica de uma política cultural do Governo, mas sim de uma vontade e capacidade estreitamente individuais. Foi a única manifestação importante que houve em Lisboa, e esses concertos não foram nem organizados nem subvencionados pela Fundação. Mas antes disso, e ao longo dos anos, várias retrospectivas e inúmeros concertos se sucederam na Gulbenkian, e entre 2002 e 2007 a minha presença na Fundação prosseguiu o seu ritmo velho de 35 anos. A partir de 2005, a Casa da Música iniciou uma importante divulgação da minha obra, incluindo algumas criações mundiais – por exemplo, o espectáculo de teatro musical La Douce. Além de importantes participações internacionais em Berlim, Viena, Estrasburgo e Huddersfield. Este ano, para o meu aniversário, houve um enorme esforço da parte da Casa da Música: realizaram-se dois concertos pela Orquestra Nacional do Porto, onde foram tocadas Ruf e Musivus , bem como um concerto Remix, retomado parcialmente em Paris no Festival Agora, do IRCAM, que também queria celebrar os meus 70 anos. Em Lisboa, o contexto mudou radicalmente, o que é normal, depois da saída de Luís Pereira Leal da direção da Música da Gulbenkian. Tenho uma relação muito estreita com ele. Que se tornou ainda mais íntima depois dele sair dos Serviço da Música. A política da Gulbenkian tomou outra direção, da qual nunca fui diretamente informado, e não me compete a mim qualificá-la. Não tenciono voltar tão cedo à Fundação. É certo que a Gulbenkian é uma entidade privada e o Emmanue Nunes uma das maiores referências da criação musical portuguesa, mas não aceita a crítica de que foi por eles privilegiado face aos outros portugueses?

Nunca neguei que fui privilegiado e deixarei aos interessados indagar sobre a verdadeira razão desse privilégio. De resto, eles mostrarão certamente grande imaginação não-musical para descobrirem inúmeras razões. Mas há crítica e crítica, mesmo quando me é dirigida. Permita-me neste contexto citar quase integralmente um escrito de Augusto M. Seabra, ilustre intelectual da nossa praça (como diria Eça de Queiroz), datado de 24 de Novembro de 2008, e que é bem representativo duma certa vertente do nível cultural português: “António Jorge Pacheco tem grandes responsabilidades no modo canhestro como surgiu primeiro uma híbrida Remix Orquestra… Sobretudo, 1) o modo como fez inscrever internacionalmente o Remiz Ensemble ocorreu basicamente segundo a doxa vigente, com pouca autonomia e, 2) retomou da Gulbenkian o favoritismo nunesiano: foi indisfarçável intermediário fundamental na tristemente célebre entrevista de Emmanuel Nunes ao Público em que este, intriguista, anunciava ele próprio a próxima saída de Paolo Pinamonti de São Carlos; mesmo depois da catástrofe de Das Märchen (já estaria previsto antes, mas isso não altera o fundamental, Pacheco programou para Setembro do próximo ano uma nova obra de tetatro musical de Nunes, em que o nepotismo chega ao ponto do dispositivo cénico ser próprio compositeur portugais e da sua mulher e biógrafa, Hélène Borel, a qual é também responsável pelos figurinos!” Acho importante trazer ao conhecimento do público português o nível dum membro destacado da sua elite. Estamos muito longe das farpas do século XIX. Note-se que iniciei a redação definitiva da partitura de La Douce em Dezembro 2008. Acha que a sua música tem sido pouco tocada neste aniversário, e não apenas em Portugal? Talvez, mas não tem nada a ver com os 70 anos e sim com dois factos: primeiro, cada pequena época de cinco ou dez anos tem uma moda, uma predominância, e eu não sei escrever música em função da moda; como não estou na moda, automaticamente tenho menos concertos. Mas há uma coisa importante: apesar disso, nos últimos dois anos têm-se realizado alguns portraits da minha música, com intérpretes conhecedores da minha obra, por exemplo no festival de Huddersdfield, onde tive uma série de peças apresentadas, algumas tocadas em Remix Emsemble, ou ainda em Viena. Mas no plano da regularidade do calendário, é verdade, tenho poucos concertos. Certamente, tem isso também a ver com a minha personalidade, com a maneira como comunico socialmente, com uma opção estética que é muito antiga e não muda de um dia para o outro. Não é uma coisa que me impeça

de trabalhar, não é um parâmetro que vá mudar a minha maneira de viver. Apesar da sua música estar a ser menos tocada, está atravessar um período criativo importante, ligado ao drama lírico, depois de ter estreado a ópera Das Märchen e a peça de teatro musical La Douce… Sim, continuo a trabalhar dentro da minha ideia de teatro musical. Quer referir em quê? Não.

E quando estará pronto? Estará visível e audível na temporada de 2014/15, mas não será em Portugal.

“Uma política cultural honesta e virada para um verdadeiro projeto acaba sempre por ter efeitos de progresso económico na vida social e política do país”

“Não sei escrever música em função da moda” Emmanuel Nunes

Autor de inúmeras óperas, músicas vocais e instrumentais, distinguido com Prémio para Composição da Unesco, em 1999, e com o Prémio Pessoas, em 2000, Emmanuel Nunes é um dos mais destacados compositores portugueses, com peças tocadas um pouco por todo o mundo. Agora, no ano em que comemora o seu 70º aniversário, um livro, fruto de um simpósio internacional, revela o essencial do seu pensamento e da sua – de que aqui fala ao JL.

De qualquer forma, a ópera e o teatro musical são áreas em que normalmente um compositor não trabalha sem ter por detrás uma encomenda que garanta a sua produção… Essa agora! Trabalhei muito tempo, de maneira subterrânea, na minha ópera sem ter a mínima ideia de onde e com quem iria ser feita. E igualmente na minha intenção de vir a realizar La Douce. E teve desde o princípio a convicção de que iria conseguir? Não é bem uma convicção, é um modo de vida e de ser que me impede de não o fazer. Perante o atual cenário mundial de grande estrangulamento económico, como vê a realidade musical em Portugal, depois de uma evolução que permitiu a formação de muitos mais compositores e intérpretes portugueses? Para compor, não posso estar a analisar ativamente estes fatores. Mas a nível social e politico, não só em Portugal mas em toda a Europa, sou completamente contra a política da União Europeia. Mesmo quando se mascara de humanismo e de promoção cultural, a razão principal da minha oposição é que para mim, como ela existe, encarna a maneira mais eficaz de defender um capitalismo selvagem subordinado


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entrevista

à finança, de aumentar as grandes fortunas pessoais, e quem paga é quem trabalha sob o jugo de tal engrenagem. Um argumento que eu acho genial: não há dinheiro! É claro que não há, porque está noutro sitio. É como se houvesse um planeta onde há dinheiro e outro que não tem: isto é perfeitamente simbólico de um capitalismo desenfreado. Quanto a sua pergunta sobre o panorama em Portugal, há dois fatores. Um, puramente musical: é óbvio que não se pode comparar o que se podia aprender em 1962, e o que poder aprender hoje, desde os anos 80 ou 90 – e não me refiro a mim, aos seminários que realizei. Não é comparável. O outro fator te a ver com a falta de verdadeira competência de diversos quadros de ensino, muitas vezes associada a uma ausência de deontologia, mesmo quando há competência. Não é isto que vai desenvolver uma autêntica vida musical portuguesa… Tal situação sempre foi posta em evidência pelos próprios jovens que frequentavam os meus seminários, já que estes estavam abertos a todos os estudantes, independentemente do nível de cada um. De resto continuo a manter um contacto pessoal e regular com bastantes deles. Durante os 20 anos em que dei seminários, redescobri algo que eu sempre pensei: ninguém pode fazer de um estudante um génio, mas tanto uma incompetência camuflada por um cariz não autêntico como uma certa competência que transmite em contrabando um mero oportunismo pessoal (Lopes Graça dirá “de troca-tintas”), ambas podem desviar e diminuir o potencial de um jovem estudante, se este não possui uma forte personalidade direcionada para a busca desinteressada de uma autenticidade e de um métier sem falhas, a não ser aquelas falhas que são inerentes a cada um de nós. Defendeu que o investimento na cultura pode produzir riqueza económica. Pensa que, para Portugal, na atual conjuntura, ele seria benéfico? Para mim, esse problema não é apenas português, é comum a toda a Europa. Está a referir-se a uma passagem do meu discurso de aceitação do Prémio Pessoa, já lá vão 11 anos. A economia mudou e para pior. E continuo a dizer que mesmo sem o Estado ganhar dinheiro diretamente com um investimento da Educação e na Cultura, ter uma politica cultural honesta e virada para um verdadeiro projeto cultural acaba sempre por ter efeitos de progresso económico na vida social e política do país. Acompanhou a elaboração do livro agora publicado? O livro em certa medida demonstra o que disse antes: sem o Paulo Assis muito provavelmente não existiria. Continuamos a depender aleatoriamente da vontade e da capacidade de uma pessoa. Portanto na origem não é um ato de política musical das entidades governamentais, mas sim individual, mesmo tendo sido apoiada pela Casa da Música de uma forma extraordinária, mesmo que o CESEM, à sua maneira, tenha apoiado, é ele o obreiro, e isso para mim tem a ver também com uma desagregação no meio musical que é catalisada sub-repticiamente pelos poderes políticos. Mas não acha que esforços individuais como estes são usados pelo Estado para se demitir de iniciativas que lhe deveriam competir? Eu percebo-a completamente e diria que no fundo tem razão. É um problema que hoje em dia se põe a todos os níveis: se ninguém faz não há. Também é um problema económico, porque o Estado conta com isso. Por idealismo, por convicção profunda, é necessário fazê-lo. Mas há, provocada expressamente por uma política viciada, uma dialéctica perigosa utilizada sem escrúpulos pelos Estados. E voltamos ao problema de dinheiro estar noutro planeta.

Emmanuel Nunes

ESCRITOS E ENTREVISTAS Casa da música/CESEM, 576 pp, 20 euros

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filmes

cinema Manuel Halpern

Efeitos Secundários, de Paulo Rebelo Os lados do triângulo

ba por ser muito mais forte. Mais, o drama pessoal de Carmo, a sua história amarga, domina o filme, tornando a relação Laura-Rui um efeito secundário. Num melodrama, mais do que noutros géneros, conta a densidade das personagens. E estas três estão trabalhadas de forma desigual. Melhor Carmo, relativamente bem Laura e bastante menos Rui. Todas têm em comum a ideia de abandono e uma imensa solidão, mas com dimensões absolutamente diferentes, em decrescendo: Carmo é abandonada pelo pai e excluída da sociedade depois de contrair sida; Laura é naturalmente “abandonada” pelos filhos que entretanto cresceram e saíram de casa; Rui é ‘abandonado’ pela namorada. Há uma áurea misteriosa à volta destas figuras, pois à parte deste jogo de abandonos têm poucos pontos em comum. Contudo há elos demasiado frágeis, que o filme não consegue explicar. O que Laura pretende de Carmo? Uma mera substituição dos filhos? Parece excessivo. Deduz-se uma afectividade lésbica, mas ainda assim é pouco convincente. Menos ainda se percebe a relação entre Rui e Laura. O que ele pretende? Uma substituição do amor maternal? Esse drama nem sequer é focado… é um amor que não nos convence, nem revela a sua força, ao contrário do que acontece com as personagens de Douglas Sirk. Um dos melhores aspectos do filme é a forma como Paulo Rebelo sabe tirar partido da geografia privilegiada da Costa da Caparica, entre o morro que está nas suas costas e o mar. Tem bons atores embora já tenhamos visto Nuno Lopes em melhor nível. Rita Martis é a estrela.

O Rapaz da Bicicleta, de Luc e Jean Pierre Dardenne Estrada de terra

O

s irmão Luc e Jean Pierre Dardenne continuam a ser os assistentes sociais privilegiados no cinema, dirigindo o nosso olhar para as franjas e assimetrias dos países ditos desenvolvidos, no seu caso, a Bélgica. Tal como a Rosetta, o mais mediático dos seus filmes que ganhou a palma d’Ouro em Cannes, O Rapaz da Bicicleta ocorre-nos alertar: isto não se passa na Albânia nem na América Latina, nem os seus protagonistas são imigrantes desesperados que fogem de vidas ainda piores. Esta é uma história de miséria europeia e de europeus, de belgas na Bélgica, um dos países ricos do mundo, onde fica a sede da União Europeia. E volta a ser chocante. Em parte, graças ao estilo do enquadramento e movimento de câmara, de um realismo implacável, que contam dramas humanos numa perspetiva que se aproxima de documentário. O trabalho de realização e de montagem, por vezes rude, dá a ilusão constrangedora de quando estamos a ver um filme dos irmãos Dardenne não se trata de cinema, mas é à própria realidade que assistimos. O que, diga-se, é um caminho alternativo no cinema francófono que, na sua linha dominante, parece mais interessado em retratar a burguesia e foge a este cinema-do-real. Os mais recentes trabalhos de cinema-social francófonos retratam e são feitos por imigrantes: O Segredo de um Cuscuz (2007), de Abdellatif Kechiche, ou se quisermos recuar, Ódio, de Mathieu Kassowitz (1995). Aqui, tal como

em Rosetta (1999), os Dardenne recuperam o tema da infância, o que eleva a empatia e o choque. Se em A Criança (2005), o pai vendia o filho recém-nascido e, com toda a tranquilidade, dizia à mãe: depois fazemos outro. Desta vez, o pai (que é mesmo ator, Jérémie Renier) simplesmente abandona-o e reforça o abandono afirmando ‘nunca mais te quero ver!’. Se em A Criança, tal como em Rosetta, há uma espécie de desculpabilização social, que é como quem diz, a culpa, apesar de ser daquele pai, também é da sociedade (e por isso de todos nós) que não lhe oferece condições. Aqui tal não acontece em igual escala. Porque há um motivo egoísta que preside à atitude radical do pai: não é apenas a falta de dinheiro e de condições é ter novos planos de vida de que o filho não faz parte. E o miúdo comporta-se como um cão abandonado que insiste patologicamente em regressar a casa. Não acredita no que lhe dizem, tem que ver pelos seus próprios olhos. Há uma alma caridosa que o assiste, que lhe parece dar o amor que lhe falta. Mas, até certo ponto, os Dardenne parece quererem enveredar por uma certa crueldade social: uma espécie de condenação automática dos excluídos. Mas, para variar, desta vez o filme termina cheio de esperança. Uma espererança na humanidade. Depois de vermos O Rapaz da Bicicleta acreditamos que, afinal, sempre é possivel criar um mundo melhor.

Thomas Doret como Cyril Catoul

Nuno Gil e Rita Martins como Bruno e Carmo

Oh inclemência! Oh martírio! Estará por ventura periclitante a saúde desse nobre e querido menino que eu ajudei a criar?”, uma das mais famosas deixas d’O Pai Tirano. Era suposto ser dramático, mas as pessoas naturalmente, riem-se, porque a tragédia em excesso dá em comédia. O melodrama nunca foi uma das grandes especialidades do cinema português, não por falta de competência, pretexto ou saudade, apenas porque não cabe bem no nosso espirito o estilo de Douglas Sirk ou Pedro Almodóvar. Acaba por ser assim relativamente rara esta incursão de Paulo Rebelo, que estreou a sua primeira longa-metragem em 2009, no Festival de São Paulo, mas que só agora a conseguiu exibir comercialmente, numa dúzia de sessões no Teatro do Bairro Alto, em Lisboa. Não se tratando de forma alguma de um re-make, há uma influência clara e assumida de Tudo o que o Céu permite (1955), de Douglas Sirk. No filme do mestre americano, Cary Scott (Jane Wyman), uma viúva com filhos adultos, apaixona-se por Ron Kirby (Rock Hudson), o jardineiro, para escândalo dos filhos e daquela sociedade elitista. Paulo Rebelo transporta este universo para a Costa da Caparica, tendo como protagonistas uma cabeleireira (Laura-Maria João Luís) e um pescador (Rui-Nuno Lopes). Mas esta relação, directamente inspirada em Sirk (apesar de não haver a mesma clivagem social, nem o contexto aristocrático), passa a ser apenas um dos planos. Não é ali que reside o maior drama, antes na carga emotiva transmitida por outra personagem do filme, Carmo (Rita Martins). Em termos melodramáticos, o eixo Laura-Carmo aca-

EFEITOS SECUNDÁRIOS

de Paulo Rebelo, com Rita Martins, Maria João Luís e Nuno Lopes, 97min, em exibição no Teatro do Bairro (Lisboa)

O RAPAZ DA BICICLETA

de Luc e Jean-Pierre Dardenne, com Thomas Doret, Cécile De France, Jérémie Renier, 87min


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espetáculos

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música manuela paraíso

Silvestre, bem como a composição de Lopes-Graça Quatro Peças para Cravo. Na ocasião será entregue o prémio, parte do qual consiste na edição da obra em partitura. Outro incentivo à criação em que o Museu da Música Portuguesa se associa, juntamente com as edilidades de Cascais e Mafra, é uma iniciativa do extinto Ministério da Cultura com o objetivo de promover a preservação dos seis orgãos restaurados da Basílica de Mafra e de fomentar o aparecimento de novas obras para um tão raro conjunto instrumental. O Prémio Internacional da Composição Machado e Cerveira (nome do mestre organeiro setentista que construiu três dos históricos orgãos da Basílica) teve em 2011 a sua 1ª edição em qual participaram compositores de vários países, em duas categorias, obras originais e transcrições, na primeira das quais apenas foi atribuida uma menção honrosa ao grego Andreas Paparrousos, sendo o vencedor da segunda o suiço Yves Rechsteiner pela transição da Sinfonia nº 7 de Beethoven. O trabalho premiado será apresentado em concerto no dia 18, às 18 e 30, pelos organistas João Vaz, Tiago Ferreira, António Esteireiro e Filipe Veríssimo.

dança daniel tércio

mestiçagens

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José Montalvo em Orphée Na CULTURHEST de 16 a 18

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7 de dezembro, aniversário de nascimento de Fernando Lopes-Graça, é o dia em que, a cada nova edição do prémio de composição que austenta o seu nome, se realiza no Museu da Música Portuguesa-Casa Verdades de Faria, no Monte Estoril, o concerto de apresentação das obras distinguidas. Instituido em 1994, para o homenagear e fomentar a ampliação de repretórios para os instrumentos ou geometrias para os quais o compositor escreveu obras, o prémio nesta sua segunda edição de âmbito internacional, aberta á participação de compositores de todos os países, visou a criação de peças para cravo. Entre as participações, foram distinguidas duas obras, ambas de talentosos jovens compositores portugueses: Rewind for Harpsichord, de Sílvia Mendonça, que obteve uma menção honrosa, e, vencedora do prémio, Et Sequentes, de Hugo Ribeiro, que conta no seu palmarés com alguns prémios nacionais e internacionais. E para quem o desafio de compôr uma obra destinada ao cravo, instrumento que nunca tinha abordado, foi um trabalho estimulante. Estas duas obras serão apresentadas no concerto de dia 17, às 18 e 30, pela cravista Jenny

Fernando Lopes Graça

Sob o signo de Lopes-Graça

le: José Montalvo. Ela: Dominique Hervieu. Os dois encontraram-se em 1981 e sete anos depois fundaram a companhia que tem os sues nomes. Não e a primeira vez (nem será certamente a última) que vêm a Portugal. O tipo de espetáculo que apresentam tem todos os ingredientes para atrair o grande público: uma energia e uma fisicalidade poderosas combinadas com um cuidadoso tratamento visual e com um ambiente musical vibrante. Orphée – a obra que vai estar no grande auditório da CULTURGEST entre 16 e 18 deste mês – reúne todas as características anteriores. Este trabalho (como muitos dos anteriores) coloca o espetador face a face com uma espécie de ópera dançada, na medida em que reúne diferentes linguagens performativas e diversos estilos de interpretação. Um processo de mestiçagem, de géneros e de estilos, acontece no palco. No plano visual, o espetador terá oportunidade de apreciar as maravilhosas projeções na grande tela cenográfica, a fauna exuberante de um mundo simultaneamente próximo e bizarro. No plano musical, escutara trechos variados de compositores como Monteverdi, Gluck e Philip Glass, entre outros, e as belas vozes de quatro cantores-bailarinos. No plano da dança, apreciara a versatilidade dos estilos contemporâneos ao lado do trabalho lírico de dança clássica e de um certo frenesim da dança africana. O resultado não é exatamente a fusão de elementos, na medida em que estes resistem e permanecem facilmente identificáveis ao olhar e ao ouvido mais comuns. O resultado é uma fantástica colagem que transmuta a tela do palco em qualquer coisa como construção dadaística contemporânea. A história de Orpheu, do amor que o une a Eurídice e da terrível separação nas portas do Hades, é traçada

ao longo da peça, também com o recurso a múltiplos recursos mediáticos. A pirotecnia dos efeitos anula porem a relação trágica entre os dois. A tristeza profunda que preenchia psicologicamente o deus musico ao perder definitivamente a sua amada nas profundezas do inferno, na historia original e em diversas versões operáticas, ganha aqui uma inusitada leveza. A dramaturgia segue pois outro caminho, em direção a um lugar mais próximo e mais amigável, revelando sobretudo o poder encantatório da música, ou melhor, da musica-dança. Orphée torna-se assim uma espécie de tragicomédia engenhosamente concebida pela dupla de criadores. Na grande tela de fundo, imagens prazenteiras de animais familiares e de terríveis feras convivem com humanos e com paisagens urbanas. Na frente do palco, os cantores e os músicos tomam transitoriamente o lugar dos bailarinos, as personagens percorrem o espaço, correm, torcem-se, são andarilhos, feras e ternos bichos. Alterações de escala enchem barrocamente o olhar. Os cantores dançam, os bailarinos usam a voz, rosnam, todos saltam e quase voam como aves. Existe em Orphée um lado bem-disposto, que decerto modo caracteriza as aproximações e o trabalho criativo que Hervieu-Montalvo seguem na sua relação como espetáculo. Adivinha-se que o publico esta ali, como um grande olho, a entidade que finalmente justifica as opções cénicas. Se existe um conceito subjacente, talvez ele possa ser formulado da seguinte maneira: a diversidade do mundo não é complicada, mas finalmente simples. A vida é intrinsecamente luminosa e o futuro não é necessariamente negro. Estas são certamente ideias (ou sentidos) de que nos, espetadores, precisamos como de pão para a boca. O futuro é mestiço. E isso é uma coisa boa.


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artes D

Art Blakey

ianista autodidata, Art Blakey liderou a primeira banda com apenas quinze anos. Á chegada do magnífico pianista Erroll Garner muda para a bateria, onde se notabiliza, pautando-se por um estilo agressivo. Sessões de gravação para a editora Blue Note levam ao surgimento dos Jazz Messengers, numa liderança inicial de Horace Silver. Sob a designação de mensageiros do Jazz abrigar-se-ia uma quantidade incrivelmente carismática e variada de músicos que tocariam sob a liderança de Blakey ao longo de mais de trinta anos. Só para citar alguns: Wayne Shorter, Lee Morgan, Freddie Hubbard, Jackie Mclean, Donald Byrd, Branford Marsalis ou Keith Jarret. A EMI reedita agora, num preço simpático, quatro álbuns pela Blue Note ente finais dos anos 50 e princípios dos naos 60. Moanin’, de 1958, é o melhor do pacote. A maior parte dos temas é composta pelo saxofonista Benny Golson, mas há ainda o standard Come Rain or Come Shine, numa leitura surpreendente e cintilante e há também e acima de tudo, a absolutamente fantástica faixa titulo. Um álbum em que à estética do jazz mais sofisticado, se junta a intensidade das influências blues e gospel. O álbum Africane é gravado no ano seguinte, ’59. A Blue Note só o edita nos anos 70, alegadamente por diferenças em 1962 e cujo título é uma referencia ao “novo” Arthur Blakey, religiosamente renascido para o Islão uns anos antes e tendo-se convertido sob o nome Abdullah Ibn Buhaina, que lhe vale depois a alcunha de “Bu”. Musicalmente, nada de especialmente novo, ou seja, tudo a correr muito bem. Shorter mantem-se, sai Lee Morgan e entram novos mensageiros: o jovem trompetista Freddie Hubbard, Curtis Fuller em trombone, o pianista Cedar Walton e no contrabaixo Jymie Merrit. Estes elementos formam uma grande banda, um sexteto, que tanto comove nos tempos mais lentos, como se revela excitante nas passagens mais rápidas. Há dois exemplos destes dois lados: Contemplation é uma balada muito boa, composta por Wayne Shorter e com um solo fantástico em sax tenor e destaque ainda para uma versão fogosa de Moon River, tocada como se estivesse a ser tocada de braços abertos e não com a habitual lamechice. Finalmente, o quarto disco da caixa, que é o mais fraco: The African Beat, de 1962. Tem a vantagem de ser diferente dos outros e, na prática, diferente de grande parte da música que se fazia então. Blakey junta-se a músicos africanos, o Afro-Drum Ensemble. Cânticos e percussões são as grandes estrelas, num disco cuja principal matriz é a música africana. World music seria um termo estranho para a altura, mas de facto é mais isso do que propriamente Jazz o que se encontra neste registo. Yusef Lateef é o único intérprete nos sopros, alternado entre sax, flauta e oboé. Há um discreto contrabaixo e tudo o resto são ritmos, com oito músicos a marca-los. Há um caracter hipnótico inegável, mas a musica não é particularmente inventiva. O disco é uma boa prova de que a percussão não era para Blakey uma questão de cores e de tons, da relação entre melodias e timbres, mas sim, acima de tudo, a maquina que estava ao serviço de um único deus: o ritmo. Uma ultima palavra para uma grave lacuna destas reedições: alem de não trazerem textos, as notas explicativas das edições originais ou das reedições, não mencionam sequer os músicos que participam nas gravações, ou a data ou o local dos registos. Uma falta de informação básica e fácil de resolver. Saíram também reedições de Dexter Gordon, Cannonball Adderley, Chet Baker, Herbie Hancock e Cassandra Wilson no mesmo formato, que examinaremos com mais detalhe nas próximas edições.

jazz

discos

Julie & the carjackers

o deleite art blakey

P

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epois de um Ep de estreia na Optimus discos, Julie & the Carjackers editam o tao esperado primeiro álbum, Parasol. O nome ate pode fazer lembrar os conimbricenses Sean Riley and the Slowriders, mas na verdade só tem em comum a importação de uma linguagem pop internacional que pouco tem que ver com o universo português. Mas na banda lisboeta é bastante mais evidente a linguagem folk numa panóplia de influências, que vai desde a música americana dos anos 60, e em particular os melhores Beach Boys de Brian Wilson, aos melhores escritores de canções da Americana. A banda vive essencialmente do bom entendimento na escrita de canções de João Correia e Bruno Pernadas. E para a concessão deste disco foi importante a colaboração de João Paulo Feliciano. Julie & the Carjackers

Parasol

Poesia Feminina

A

movieplay tem vindo a lançar obras do precioso catalogo da Orfeu que a muito mereciam edição em cd. Entre elas esta Antologia da Mulher Poeta Portuguesa, em que grandes poetizas são recitadas por Eunice Munoz. São ditos poemas de vários seculos, desde Filipa de Almada a Luiza Neto Jorge, passando por Irene Lisboa, Florbela Espanca, Sophia, Natália Correia, Fiama, Ana Haetherly ou Maria Teresa Horta. A atriz é acompanhada por um vasto frupo de músicos, que servem bem a poesia, ao piano, violino, contrabaixo, citara, flauta viola braguesa e mesmo guitarra portuguesa. Eunice Munoz

Antologia da Mulher Poeta Portuguesa

Marisa Monte

Orfeu

A

nos passaram, mas o álbum ainda cheira a tribalismo. Talvez seja sugestão logo da primeira musica, que da o nome ao disco O Que Você Quer Saber de Verdade, assinada pelo trio fantástico – Marisa Monte, Arnaldo Antunes e Carlinhos Brown. Marisa Monte tem a voz mais sensual da música brasileira e aqui exprime-se da melhor forma, criando pontes entre todas a ilhas de que a sua música é feita. O álbum tem samba e iéié, tem pop e tropicalia, tem Jorge Benjor e Marisa aos montes. Há um lado de verdade crua e pragmatismo exacerbado em algumas destas canções, como Depois e Amar Alguém (ambas com Arnaldo Antunes). O álbum esta cheio de boas canções com aquela qualidade de apesar de não serem demasiado obvias terem o potencial para subirem ao top e agradar vários tipos de publico. Marisa Monte

O Que Você Quer Saber de Verdade

MAFALDA VEIGA

É

uma espécie de baralhar e voltar a dar. Depois do bom resultado, do salto que procurou dar no último disco, Chão, com os arranjos de António Pinto, Filipe Raposo, Miguel Ferreira e João Barbosa, resolveu servir-se do mesmo quarteto para voltar a gravar músicas antigas. E fez muito bem. As canções só ficam a ganhar com as novas leituras, com o novo foco. Mafalda encontrou os Assessores mais indicados para dar volta que a sua carreira necessitava, depois do natural desgaste dos anos. E assim dá mais gosto ouvir temas como Tatuagens, Era uma vez um pensamento teu ou O Lume. Há assim uma proximidade das voltas criativas que ate disfarçam as limitações de léxico. Mafalda Veiga

ZOOM Universal


artes

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dvd

Os tiros de Von Trier

os amores de visconti

Caixa com quatro filmes, Clap

Lars Von Trier

Irão livre

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afar-Panahi é o mais recente “mártir” do cinema e um símbolo extraordinário de resistência através da arte. Neste momento, o realizador iraniano esta preso em nome da “subversão”da sua arte e impossibilitado de filmar e de dar entrevistas. Enquanto estava retido, em prisão domiciliária, fez, juntamente com Mojtaba Mirtthamasb, uma coisa em forma de sim, a que chamou Isto Não É Um Filme (mas na verdade até é). Trata-se de um grito de liberdade de um realizador amordaçado. Panahi conta o filme que quer fazer, fala dos actores e de si próprio. As imagens saíram clandestinamente do Irão e chegaram a Cannes, as salas de cinema em Portugal e agora estão disponíveis em DVD. Quando as vemos estamos, no fundo, a celebrar a liberdade de expressão. Também em DVD uma das suas mais brilhantes obras, Offside , um filme que se passa no exterior de um campo de futebol, enquanto esta a decorrer o Irão-Barhein. Assistimos à frustração das raparigas, que se disfarçam de rapazes, para poderem entrar no jogo, mas que são apanhadas e retidas. Através de algo tão tribal como o futebol, Panahi faz uma reflexão sobre uma sociedade que é tão autoritária como absurda e cheia de contradições. Estes lançamentos coincidem com a estreia em sala de Uma Separação, de Jodaeiye Nader az Simin, mais uma grande obra do cinema iraniano, que ganhou o urso de ouro em Berlim. De Jafar-Panahi, Alambique

OFFSIDE ISTO NÃO E UM filme

O humor de Allen

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ualquer pretexto é bom para reveros grandes filmes de Woody Allen. Desta vez a proposta reedição, numa caixa, de 4 obras marcantes dos anos 90. Balas sobre a Broadways é uma hilariante comedia, em que um dramaturgo acaba por se meter com a máfia para subsidiar a sua peça, e descobre o talento de um gangster, que escreve diálogos melhor de que ninguém (porque sabe como é que a gente vulgar fala). Uma extrema ironia (anti-) intelectual, num dos melhores filmes de Allen. Toda a gente diz que te amo, é um musical em que as personagens arduamente conseguem cantar, som histórias de amor cruzadas entre Nova Iorque e Paris, em que o próprio Woody Allen é uma das estrelas. Em As faces de HarryI, Allen tem uma das suas mais brilhantes: umas das personagens sofre de uma espécie de distúrbio - - esta desfocada. E nós nunca chegamos a ver bem Robin Williams. Em Celebridades, deita o olhar sarcástico sobre a fama, com um elenco luxuoso que inclui Kenneth Branagh, Leonardo Decaprio, Winona Ryder e Melanie Griffth. Caixa com quatro filmes, Clap

WOODY ALLEN

A

irracionalidade do amor é a ideia subjacente das duas obras maiores de Luchino Visconti, dos anos 50, que a Alambique reedita pelo Natal, em versão restaurada: Sentimento e Noites Brancas. A oportunidade perfeita para rever em condições privilegiadas o grande cinema do realizador americano. Sentimento ,umas das sua obras primas, passa-se durante a guerra entre o Reino de Itália e o Império Austríaco, no séc. XIX, em que a Itália volta a reunificar-se e libertar-se graças, em grande parte, ao carisma do seu líder, o general Garibaldi. No mundo de contradições e lógicas frágeis, uma condensa apoiante da resistência Italiana durante a ocupação Austríaca de Veneza, enamorasse por oficial inimigo. Visconti é adepto do amor até à loucura que vence todas as barreiras e desafia a razão. Neste caso, o amor leva a Condensa ao ponto de torcer pelo o exercito opressor só para salvaguardar sua paixão. Mas o verdadeiro jogo é crueldade com que o amor se faz em engano e humilhação, em que nem a vingança consola a perda. Com colaborações de Tenesee Williams e Paul Bowles nos diálogos, o filme conta com interpretações lendárias de Alida Valli e Farley Gargner. Em Noites Branca, baseado num conte de Fiódor Dostoievzki, o amor ultrapassa novamente os limites da razão, quando encontramos Maria Schell, tal Penélope, a esperar insistentemente, todos os dias, durante um ano, sempre à mesma hora, por um homem, por essa mulher que por na espera. Uma relação que tem tudo para funcionar, mas que é assombrada por um amor fantasma que se materializa. Com um cenário minimalista passado quase sempre durante a noite, Noites Brancas é uma bola historia que mais uma vez nos confronta com a estranha e absurda lógica do amor.

Luchino Visconti

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ealizador sujeito a grandes amores e ódios, Lars Von Trier, depois de ter sido expulso do festival de Cannes, por ter revelado simpatia com ideais nazis, recebeu o premio principal dos European Fims Awards, com Melancolia. É tempo de rever algumas das suas obras mais marcantes, agora reeditadas nesta caixa pela Clap/FNAC, com quatro filmes. Ondas de Paixão é o primeiro filme de Lars Von Trier a criar grande polémica porque inventa um Deus cruel e impiedoso, que exige os mais duros castigos a quem lhe é fiel. Dancer in The Dark é um musical fora de tom, com uma interpretação notável de Bjork. Dogville e Manderlay trazem um novo conceito de cinema, próximo do teatro, com um cenário minimalista e uma ideologia subjacente bastante duvidosa, que revela sobre tudo uma descrença na humanidade.

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De Luchino Visconti, Alambique.

Independentes Americanos

SENTIMENTO E NOITES BRANCAS

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esta vez, o culpado não é o mordomo, mas sim….o pneu. Depois de vermos este filme não voltaremos a olhar para os ferros velhos da mesma forma. Mas nem é por essa bizarra antropomorfização que o filme vale. É antes por um certo humor, dentro de uma estética independente, e pela forma como desconstrói o próprio cinema e denuncia a sua artificialidade na ligação com o publico: o melhor é envenena-lo, conclui-se. Um filme cheio de piscadelas de olho cinéfilas que desfaz a construção de argumentos hollywoodesca. ~ Western Indie ou pré-western on the road vale apena ver ou rever O Atalho, o terceiro filme de Kelly Reichardt, realizadora que já ganhou um prémio no Indie Lisboa. Mais que os tiroteios entre bons e mau, interessa aqui os primórdios da busca da terra prometida, vemos os primeiros cowboys e os primeiros contactos com os índios, mas sobre tudo uma família Judia que parte em busca de uma vida melhor. É um on the road lento, com mais poeira do que estrada. De Quentin Depreuix

PNEU

De Kelly Reichardt, Alambique

O ATALHO

O cinema do divã

O espelho de Ceausescu

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N

De Sophie Fiennes (apresentado por Slavoj Zizek) Alambique DVD

De Andrei Ijiçã, Clap

ssim como Bruno Bettelheim escreveu a Psicanálise dos contos de fadas, em que nos oferece uma leitura freudiana das histórias infantis, Slavoj Zizek faz uma viagem freudiana pelo mundo do cinema em três episódios hilariantes. Mais do que o texto, conta o subtexto e a leitura inteligente que faz de clássicos do cinema (e não só), mostrando uma visão refrescante e desafiante. Como a questão do incesto em Os Pássaros ou a divisão dos andares da casa de Psycho em ID, ego e superego. Não esconde a sua predilecção por Alfred Hitchcock e David Lynch, mas também viaja também por outras obras, como o Matrix ou O Grande Ditatdor. A realização Sophie Fiennes ajuda a manter o ritmo, até pela escola do décors, há moda de Hitchcock apresenta, fazendo sempre uma ligação com os filmes escolhidos. Um filme que fará delirar os mais cinéfilos.

GUIA DO CINEMA PREVERSO

ão há um fotograma, nem uma fala ou uma legenda acrescentada, as imagens de arquivo falam por si e a realização deste filme é a montagem. Quatro anos demorou Andrei Ijiçã a fazer este filme. Percorreu mil horas de imagens de arquivo de televisão romena e do próprio Ceausescu para fazer uma síntese da vida ditador mais terrorífico da Europa de Leste. As imagens que foram recolhidas para enaltecimento do regime e do seu líder são agora usadas para mostrar a sua desumanidade, tornando-se um hino à capacidade irónica do cinema e à sua feliz adaptação ao contexto. Ceasescu foi uma figura atípica mesmo para ditador, uma espécie de rei comunista, que subverteu supostos ideais em nome do beneficio próprio, mas, ao mesmo tempo, resistiu a intervenções internacionais, até dos seus aliados, em nome da soberania romena. O filme é um rasgo.

AUTOBIAGRAFIA DE CEAUSESCU


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ideias

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estante

UM POLÍTICO ASSUME-SE

DA CHINA

Henry Kissinger

Carlos Brito

Coleção António Pedro Vicente

Temas e Debates e Círculo de leitores, 540 pp, 17,50 euros

Quetzal, 584 pp, 24, 90 euros

Edições Nelson de Matos, 192 pp, 19,00 euros

Fundação Mário Soares e INCM, 272 pp, 25,00 euros

Soares, na 1” pessoa

Da China, Sgd.Kissinger

Da resistência, por Carlos Brito

Iconografia da República

A

O

N

Mário Soares

Livros, LIVROS, LIVROS

í está o muito aguardado Um político assume-se, de Mário Soares, que foi mais ou menos ‘tudo’ na política portuguesa, de corajoso combatente contra a ditadura (o que levou 13 vezes à cadeia, e por fim ao exílio) a líder do PS, ministro dos Negócios estrangeiros, primeiro-ministro e Presidente da República durante dez anos – continuando, aos 87 anos, no ativo, bem ativo e em grande ‘forma’… O livro tem como subtítulo Ensaio autobiográfico, político e ideológico, mas de facto, tem pouco de ensaio ou reflexão aprofundada, antes constitui uma síntese narrativa do essencial do seu percurso político. Assim, para quem o conheça bem, para quem leu já os numerosos livros sobre si, de entrevistas consigo, ou de sua autoria, desde o excelente Portugal Amordaçado, dificilmente encontrará aqui novidades; e notará a ausência de algumas coisas, bem como a forma rápida, ligeira, por vezes controversa, como outras são abordadas. Mas para aqueles que não têm tal conhecimento – e serão a maioria, sobretudo entre os jovens -, trata-se de uma obra fundamental para ter uma visão de conjunto, dinâmica, daquele percurso e de uma continuada e tenaz ação pela liberdade e outros valores, ação que ajudou como talvez nenhuma outra a termos a democracia que temos hoje. De resto, ninguém no Portugal dos nossos dias assumiu uma política como ‘’paixão e destino’’ como ele, nem a fez com tamanho ‘prazer’. É também disso que nos fala o livro, com o qual pretende ainda mostrar, como disse em entrevista à Visão, que sempre foi ‘’um político, primeiro, coerente; e, segundo, sério’’; ‘’um político que na escola do republicanismo ético, que foi sempre a minha, inculcada pelo meu pai, se bateu pelos outros, pelos portugueses, e não por si próprio.’’

PÁGINAS VIVIDAS DA RESISTÊNCIA

poderoso ex-secretário de Estado dos EUA, no tempo dos presidentes Nixon e Ford, Henry Kissinger, um dos homens mais influentes e poderosos do Mundo, foi fundamental no retabelecimento das relações do seu país, e do Ocidente, com a China – e essa terá sido a principal razão por que lhe foi atribuído o Prémio Nobel Da paz. Este importante ‘relato histórico’, com reflexões e comentários, a que em próxima edição aqui se voltará, considera-o Kissinger ‘’um esforço, em parte baseado nas conversações com os líderes chineses, para explicar o odo conceptual como os chineses pensam acerca dos problemas da paz e da guerra e da ordem internacional, e a sua relação com a abordagem norte-americana, mais pragmática e casuísta’’.

ova edição, revista e ampliada, memórias/histórias ‘’vividas’’ da resistência à ditadura de Carlos Brito, que foi dos mais destacados dirigentes do Partido Comunista, na clandestinidade, nas prisões fascistas, após o 25 de Abril líder parlamentar, diretor do Avante e candidato à Presidência da República. Também escritores, estas são expressivas páginas do ‘’percurso de um homem’’ e da ‘’história de um país’’ (em breve, publicaremos um texto de Paulo Sucena sobre o livro). Recorde-se que outro seu volume de memórias, com a mesma chancela, é Álvaro Cunhal, sete fôlegos do combatente.

Fernando Henrique Cardoso

CARTA A UM JOVEM POLÍTICO Dom Quixote, 12pp, 18 euros

Miguel Cardina

MARGEM DE CERTA MANEIRA

Experiência e ‘lições’ de FHC

Tinta da China, 400 pp, 19,90 euros

D

Os pró- chineses entre 1964 – 1974

O

maoismo, e os grupos, até partidos, pró-chineses (os ‘’m – 1’’), alguns resultantes de ruturas dentro do PCP, tiveram papel muito ativo nos anos finais da luta contra a ditadura em Portugal – como o tiveram, em circunstâncias diferentes, em diversos países ocidentais. Este volume de Miguel Cardina, investigador de Estudos Sociais da Unviversidade de Coimbra (onde se doutorou com uma tese que constitui a base da obra), é ‘’um estudo inédito sobre a extrema-esquerda portuguesa de inspiração maoista nos anos que precederam a revolução de 1974’’. ‘’Não só o fenómeno em causa foi bem mais plural do que a referência continuada ao MRPP permite supor, como a sua compreensão exige um olhar atento’’, sublinha.

Entre os livros acabados de sair nesta área, de diversos géneros, e a que ainda não nos referimos, aqui destacamos sete, sem prejuízo de voltar a alguns deles. E, em caixa, lembramos outros, também recentes, dos quais já aqui se falou.

e forma muito simples, direta e pedagógica, servindo-se da -e citando amiúde a -sua própria experiência, Fernando Henrique Cardoso (FHC), que foi Presidente do Brasil desde o início de 1995 até ao fim de 2002 ( e não reeleito neste ano, como se escreve na badana), depois de ter sido exilado político, senador, ministro da Fazenda e das Relações Exteriores, dá aqui várias ‘’lições’’ a um hipotético jovem candidato a político. Com a sua formação científica, de sociólogo e professor. Falando muito do Brasil, seu passado, presente e futuro, contando coisas e dando opiniões. O que torna o livro particularmente interessante.

ENFIM, A REPÚBLICA!

’Um espólio central na compreensão do que foi a comunicação sobre os primeiros anos da República’’, salienta o desigar Henrique Cayette (HC) num dos textos introdutórios deste volume/álbum Enfim, a República, no qual se reproduzem todas as peças da coleção de iconografia republicana de António Pedro Vicente (APV), adquirida pela fundação Mário Soares. Este escreve uma nota de abertura, seguem-se textos de Alfredo Caldeira, o coordenador da obra, e do já referido HC – e, por último, um estudo do próprio APV, catedrático de História (jubilado) da Faculdade de Letras de Lisboa, investigador e grande colecionador em várias áreas, que escreve sobre a própria República, aquela iconografia e toda a sua simbologia, seja na fase de propaganda, seja já após a implantação do novo regime. Ilustrações, gravuras, desenhos, bustos, bandeiras, selos, moedas, documentos, postais e fotografias em grande número integram a coleção e aqui são reproduzidos, no que constitui também ‘’um contributo para o conhecimento do modo como se fazia política e propaganda naquele tempo’’ (primeiro quartel do século XX). António Marujo

DEUS VEM A PÚBLICO Pedra angular, 480 pp, 28,01 euros – I volume

Deus vem a público

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título (acima) deste livro é um ‘’achado’’, atendendo a que ele é constituído por uma série de entrevistas feita para o diário Público, entre1994 e 2011, pelo seu redator António Marujo, um dos raros jornalistas portugueses especializados em questões religiosas. As entrevistas, agora publicadas na íntegra, 60 no total, a 59 personalidades (59, porque, caso único, há duas entrevistas com o Dalai lama, de 2001 e 2007), todas estrangeiras, em geral ligadas a várias religiões e/ou ao seu estudo, do Abbé Pierre a Timothy Radcliffe, passando pelo Aga Khan ou por Roger, de Taizé, bispos, sacerdotes, teólogos, leigos. ‘’Entrevistas sobre a transcendência ‘’ lhes chama o autor – e este é só o I volume.


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estante crónica

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A PAIXÃO DAS IDEIAS

Edgar Morin:

que futuro europeu

F

oi há dias, em Paris, nas novas instalações da Fundação Calouste Gulbenkian, em La Tour Maubourg. Conversámos sobre o futuro da Europa. O convidado era Edgar Morin, e partilhei o diálogo com José Mariano Gago. Edgar Morin é um velho amigo de Portugal e recorda o momento, no início dos anos 70, em que, com Jean-Marie Domenach e nas proximidades do Congresso para a Liberdade da Cultura, de Pierre Emmanuel, começou a ter um contacto fraterno, que nunca mais seria interrompido, com António Alçada Baptista e o grupo de O Tempo e o Modo. Depois das desconfianças dos anos 40 e 50 relativamente a uma Europa de tecnocratas com conotações americanas, vieram novas circunstâncias. A Europa tornou-se oportunidade de aprofundar a democracia. A evolução a leste originou muitas perplexidades e dúvidas, a sul do velho continente havia uma opinião pública que se abria e se preparava para a democracia, depois, o choque petrolífero produziu uma nova consciência ecológica e obrigou a mudar de ideias e estratégias. Com Roselyne Chénu, braço direito de Pierre Emmanuel, presente no auditório de Paris, o pensador recordou esses encontros distantes, envolvendo oposicionistas ibéricos, tão diferentes como José Bergamín, Gil Robles, Dionísio Ridruejo ou Ruíz-Gimenez. Os jovens João Bénard da Costa e Helena Vaz da Silva tornaram-se facilmente referências de inovação e inconformismo e são lembrados com saudade. José Vidal-Beneyto vem à baia, cmo entusiasta de um projeto europeu, capaz de incoroporar a história antiga do Mediterrâneo e a evolução moderna, desde às guerras civis às novas exigências da ciência, da educação e da cultura. É a memória de grandes amigos comuns que há pouco nos deixaram, mas cuja lição está bem presente. E como será possível falar hoje de Europa sem lembrar esses contactos, de diálogo e de afeto, de uma geração para quem estavam ainda bem vivos os efeitos dramáricos da Guerra e a exigência da construção da paz e da democracia, através da liberdade de homens e mulheres de cultura? Hoje, a crise europeia é profunda e não admite ilusões. Morin não pode deixar de exprimir o seu pessimismo. Mas considera que não há saída pacífica e justa sem o aprofundamento dos elos europeus. A crise financeira que vivemos deve-se ao facto de a civilização do poder se ter sobreposto a uma civilização de diálogo. A ilusão, o imediatismo, o consumo exacerbado, o produtivismo, a indiferença ética, tudo isso contribuiu para chegarmos onde estamos. Em lugar de uma cultura de criação, impôs-se a especulação, a lógica de casino e a busca de ganhos sem sustentabilidade – enquanto outros poupavam nós gastávamos. A noção de um progresso sem interrupção nem limites gerou o fanatismo do mercado e a incompreensão sobre o facto de a humanidade ter de lidar com a consciência dos limites. Afinal, como o escritor diz na sua obra La Voie. Pour l’Avenir de l’Humanité (Fayard, 2011), celebrizada por Stéphane Hessel, há que compreender que existem elementos contraditórios que têm de ser articulados e tidos em consideração hoje: a mundialização e a desmundialização; o crescimento e o decrescimento; o desenvolvimento e o envolvimento; a conservação e a transformação. Edgar Morin fala-nos, por isso, de metamorfose como um processo complexo abrangendo a política, a sociedade, a economia e a cultura, em que vários fatores se influenciam, obrigando à compreensão da diversidade. Morin propõe, assim, a ideia de metamorfose, improvável mas possível, como alternativa à desintegração provável. A natureza está cheeia de exemplos de metamorfoses - por exemplo, a lagarta encerra-se na crisálida, num processo de autoreconstrução. A noção de metamorfose é, deste modo, mais rica que a de revolução, uma vez que preserva a radicalidade transformadora, ligando-a à conservação da vida e à herança das culturas. Sendo impossível travar a tendência que conduz aos desastres, devemos pensar que as grandes transformações começam com uma inovação, uma nova mensagem marginal, modesta, tantas vezes invisível… Se a mundialização está na ordem do dia, não podemos esquecer que o local e o tribal existem como elementos, a um tempo, de coesão e fragmentação, de proximidade e de distância. O crescimento económico torna-se insuficiente e perigoso, uma vez que desvaloriza a proteção dos recursos disponíveis e a sua renovação. O desenvolvimento humano tem de ser integrado e capaz de ligar a coesão, a confiança, o capital social e a solidariedade. Conservação e transformação vivem ligadas uma à outra, o que obriga à criatividade e ao “conhecimento do conhecimento”, como impulsionadores da compreensão. O escritor considera que a catástrofe pode estar no horizonte, mas acredita que é possível inverter o curso dos acontecimentos. E recorda dois exemplos marcantes de tempos muito diferentes. A resistência vitoriosa por duas vezes da pequena cidade de Atenas perante o poder formidável dos persas, cinco séculos antes da nossa era, foi altamente improvável, mas permitiu o nascimento da democracia e da filosofia. Do mesmo modo, foram tão inesperados como improváveis o atraso e o congelamento da ofensiva alemã em Moscovo no outono de 1941 e depois a contraofensiva vitoriosa de Jukov em 5 de Dezembro, seguida no dia 8 pelo ataque a Pearl Harbour que fez entrar os Estados Unidos na Guerra. A História reserva-nos inúmeros exemplos que nos permitem alimentar esper-

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anças, desde que haja capacidade de autocrítica e mobilização de vontades, em torno de objetivos inteligentes e justos. Terêncio é chamado – temos de entender que nada do que é humano nos pode ser estranho. E quando alguém pergunta o que é a identidade europeia, Edgar Morin recorda a sua ideia de um “comunidade de destino”, capaz de congregar a consciência das diferenças e a importância do outro. Prefiro usar a expressão comunidade plural (e democrática) de destinos e valores. E se falo de “comunidade”, dou-lhe o sentido de pessoa em comum (gesamtperson, de que falava Lansberg). A cultura é o que diferencia e a civilização é o que difunde a criatividade humana. A identidade corresponde, assim, à exigência de um caminho comum e partilhado. Impõ-se perceber que, na expressão de Denis de Rougemont ou de Daniel Bell, o Estado atual é grande e pequeno demais para responder aos problemas contemporâneos. Quando surge, por fim, a pergunta sobre o caracteriza uma ética europeia, na linha de Montaigne, Morin responde que o universalismo e a capacidade autocrítica são as características europeias fundamentais. Precisamos, no fundo, de uma Europa criativa e imperfeita, aberta ao mundo, universalista e cultora da crítica, capaz de incorporar um caminho que possa favorecer a ideia fecunda de metamorfose!

“ A crise financeira que vivemos deve-se ao facto de a civilização do poder se ter sobreposto a uma civilização do diágolo”

Holderlin “Onde cresce o perigo, cresce também o que salva”.

GUILHERME D’OLIVEIRA MARTINS

outros destaques

“Não há saída pacífica e justa [para a crise] sem o aprofundamento dos elos europeus” Edgar Morin

Leonor Costa, Pedro Lains e Susana Miranda

Eduardo Lourenço

HETERODOXIAS Fundação Calouste Gulbenkian, 558 pp, 20 euros

Os dois primeiros volumes de uma obra de viragem no pensamento português, acrescentados de um terceiro, - 1º tomo das Obras Completas de EL (ver n/última edição).

Luís Manuel Araújo

OS GRANDES FARAÓS

HISTÓRIA ECONÓMICA DE PORTUGAL

GUERRA SANTA

Nigel Cliff

euros

Esfera dos Livros, 516 pp, 26

Texto Editora, 600 pp, 29,95

Almedina, 772 pp, 45 euros

euros

euros

Do século V a.C., até ao pensamento ecologista de Hans Jonas, uma viagem por 2500 anos de ideias e filosofia, da qual DFA aqui falou, também na última edição.

O título diz bem do que se trata, e Guilherme d’Oliveira Martins dedicou-lhe as suas duas últimas crónicas.

Vasco da Gama foi a linha da frente de um conflito à escala mundial que opôs Cristianismo e Islamismo (ent. Com o autor, em 16/11).

São 30 os escolhidos pelo nosso primeiro especialista na matéria, que sobre o livro nos falou na edição de 2 de novembro.

Diogo Freitas do Amaral

PENSAMENTO POLÍTICO OCIDENTAL

Esfera dos Livros, 366 pp, 24

Vitorino Magalhães Godinho

PROBLEMATIZAR A SOCIEDADE Quetzal, 190 pp, 12,90 euros

O último livro, póstumo, do grande historiador. Um “itinerário de reflexão”, de “iniciação à sociologia” (JL de 10 de outubro).

E ainda, por exemplo, O Federalismo, de Viriato Soromenho Marques, os últimos Ensaios dda Fundação (Francisco Manuel dos Santos), os livros/manifestos de Stéphane Hessel, Falidos e Indignai-vos, e… e… e…


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debate-papo

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AUTOBIOGRAFIA IMAGINÁRIA valter hugo mãe

o comboio de todos os dias, a caminho da faculdade, eu azucrinava a paciência à Teresa. Ela era tão tímida, e via o mundo com tal espanto, que a minha timidez um pouquinho mais corajosa se tornava uma demasia bastante para a deixar descontrolada. A Teresa começou por destacar-me. Eu, um um pirralho atacado por fraca imaginação, puxava-lhe as tranças ainda nos tempos de liceu. Ela sentava-se com a Virgínia na mesa da frente durante as aulas de História do professor Amorim. Eu era um paz de alma com o resto da população mundial, mas ficava acometido de impaciência para com o modo dela. Não sei explicar. Dava-me picos. Precisava de me mexer, dizer coisas. No fim do liceu ainda fomos de viagem de finalistas a Paris. A professora de Filosofia, Laurinda Dantas, inventou umas rifas que, se vendessemos, ajudavam a juntarmos um dinheiro suficiente para pagar o autocarro e o hotel. Foi uma alegria chegar a Paris. Eramos um bando de putos parolos a querer ver a Mona Lisa e a Torre Eiffel. Lembro-me de pagar, naquela altura, 200 escudos por uma garrafa de água que nas Caxinas custaria dez. Lembro-me de a beber pela sobrevivência diante dos demais colegas, que arriscavam morrer sem terem como enfrentar o absurdo do custo de vida francesa de então. A Teresa e a Virgínia eram como duas siamesas em stresse. Não se separavam, mas uma gostava de estar comigo e a outra odiava. O empasse era rotundo. As duas, assim, pareciam um brinquedo cujas pilhas vão acabando e ficando como destruído de tino. Durante quase uma semana, foi aquilo. E foi um problema. Porque, para meu terror eterno, a Teresa pôde tirar-me fotografias constrangedoras. Daquelas em delírio adolescente, comigo feio, a dormir e a babar no autocarro, a barba por fazer, mal vestido, às vezes em camisola e os ossos a furar a pele. Soube logo que, a todo o custo, a Teresa teria de passar a gostar de mim. Precisava que ela gostasse muito de mim. Quando soubemos que entrámos no mesmo curso, na mesma faculdade, para ficarmos na mesma turma, ela pensou que de todos os rapazes insupor-

Diretor: José Carlos de Vasconcelos Diretor de arte: Vasco Ferreira

Rebatadores e colaboradores permanentes: Maria João Martins, Maria Leonor Nunes, Manuel Halperne, Luís Ricardo Duarte, Francisca Cunha Rego, António Carlos Cortez, Carlos Reis, Daniel Tércio, Eduardo Lourenço, Eugénio Lisboa, Fernando Guimarães, Guilherme d’Oliveira Martins, Gonçalo M. Tavares, Heldér Macedo, Helena Simões, Jacinto Rego de Almeida, João Medina, João Ramalho Santos, Jorge Listopad,

táveis lhe calhou o pior e mal disse a sorte com palavrões e tudo. Enfim, a Teresa não dizia palavrões. Ela talvez nem os pensasse. Da maneira que era, o vocabulário do mal ainda não a havia atendido. Mas sei que praguejou e que há de ter-se queixado a toda a gente. Talvez até tenha chorado de raiva e tristeza por tão preverso destino. Pois, no comboio, cada vez pior, eu já não lhe puxava as tranças porque estava a inchar doutor, era um homem adulto, usava blaser. Tinha um blaser verde muito chique que usei até sumir em pó. Hoje sei que ter usado um blaser verde foi um dos limites da pouca-vergonha da minha vida. No comboio, dizia, punha-me a disparatar contando histórias falsas de raparigas comigo nas traseiras da faculdade. Nessa altura, no inicio, a Virgínia do liceu também era nossa colega, mesmo curso e mesma turma, e quando eu mandava beliscar, ela mandava cortar às postas. A tortura ganhava eloquência e o embalo parecia impossível de conter. A Teresa, lentamente a deixar de odiar e a verme talvez como um maluco quase querido, ria-se escandalizada, corava, olhava para as pessoas e tinha vontade de lhes pedir desculpa pelo que eu dizia. Às vezes dizia aos velhotes que eu não era bom da cabeça, coitado. Os velhotes sofriam por ela. Deviam pensar que carregava uma cruz por me aturar, coitada. Subitamente, a Teresa tornou-se uma espécie de irmã que estudava comigo. claro que me arrependo de, antes disso, não a ter convencido a irmos para a cama, porque ela cresceu para ser uma mulher cheia de carisma e muito apelo. Enfim. Fui lento e depois não podia ser mais. Era incesto. Na altura da faculdade, confesso, também fui o meu auge de desconchavado e abstração estética. Só por muita piedade me safava. A Teresa, contudo, coração de ouro como é, achava que teria sucumbido. Se eu lhe pedisse muito e durante uns tempos, ela socumbia. A minha irmã Teresa foi trabalhar para Angola, toda convidada lá por ma empresa e toda a seguir uma carreira jurídica, adulta e senhora de si. Está em An-

José-Augusto França, José Luís Peixoto, Lídia Jorge, Manuela Paraíso, Maria João Fernandes, Maria Alzira Seixo, Maria Algusta Gonçalves, Miguel Real, Ondjaki, Onésimo Teotónio de Almeida, Pires Laranjeira, Rocha Sousa, Urbano Tavares Rodrigues, Valter Hugo Mãe e Viriato Soromenho-Marques. Outros colaboradores: Agripina Vieira, Alexandre Pastor, António Pinto, António Ramos Rocha, António Cândido Franco, Boaventura Sousa Santos, Carlos Vaz Marques, Cláudia Galhós, Conceição Moura Mendes, Cristina Rubalo Cordeiro, Gastão Cruz Inês Pedrosa, João Abel Manta, João Caraça, José Manuel Canavarro, João de Melo, João Ribeiro, Joaquim Moreira, Leonor Xavier, Luisa Lolão Moniz, Luiz Francisco Rebello, Manuel Alegre, Maria do Carmo Vieira, Maria Emília Brederode Santos, Maria Fernanda Abreu, Maria José Rau, Miguel Carvalho, Marina Tavares Dias, Mário Avelar, Mário Cláudio, Mário de Carvalho, Mário Soares, Marcello Duarte Mathias, Nuno Júdice, Óscar Lopes, Ricardo Araújo Pereira, Rita Silva Freire, Rui Canário, Rui Mário Gonçalves, Teolinda Gersão e Vasco Graça Moura. Paginação: Filipa Lourenço e Miguel Dias Sevretária: Otília Peixoto

gola, vive em Angola, Anda por Angola, Angola para aqui e para ali. O que significa que não estejamos nós com ela, não andamos com ela, não a vemos e fazemos a nossa vida privados de lhe falar mais vezes, de lhe puxarmos as tranças ainda que só para sabermos como o tempo entre nós passou. Arrelia-me que, com tanto cientista, nenhum tenha sido esperto o bastante para inventar o teletransporte de modo a chegarmos a qualquer lugar no tempo de um email. Que básica coisa de se inventar. um modo de nos enviarmos num upload simples, e sermos recebidos um download mais vulgar ainda. A melhor coisa do Natal tem que ver com a familia. e a familia que emigra para o bacalhau. Este Natal, passoume pela cabeça que só me aptece comer pinhões e beber batido de manga. Mas vou agradecer ao menino Jesus o ter inventado a festa mais íntima, a mais imperdível, aquela que, pelas alminhas ou não, traz ao pé quem está longe. A Teresa de Angola chega tarda nada. Aleluia.

Centro de Documentação: Gerso, SA Redação, Administração e Serviços Comerciais: Rua Calvet de Magalhães, n.º 242, 2770-022 Paço de Arcos - Tel.: 214 698 000 Fax: 214 698 500 Delegação Norte: Rua Conselheiro Costa Braga n.º 502 - 4450-102 Matosinhos - Tel.:22 043 7001 Publicidade: Tel.: 21 46 98 228 - Fax: 21 46 98 543 Maria João Peixe Dias (Diretora Comercial) mjdias@imprensa.pt, Maria João Costa (Diretora Coordenadora), Carlos Varão (Diretor), Luís Barata (Contacto), Miguel Diniz (Contacto), Rosa Lopes (Assistente de Publicidade), Ângela Almeida (Coordenadora Delegação Norte) aalmeida@imprensa.pt, Helena Almeida (Contacto), Miguel Aroso maroso@imprensa. pt (Contactos Delegação Norte), Ana Lúcia Moreira (Coordenadora de Materiais) alucia@imprensa.pt. Marketing: Mónica Balsemão (Directora), Ana Paula Baltazar (Gestora de Produto). Multimédia e Business Developement: Marcelo Leite (Diretor) Publicidade Online: publicidadeonline@imprensa.pt Tel.:214 698 970

“Este Natal, passou-me pela cabeça que só me apetece comer pinhões e beber batido de manga”

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A Teresa de Angola

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debate-papo

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biblioteca selvagem

o repúdio de jane eyre por jane eyre

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em sucesso, tenho-me interrogado amiúde acerca das razões que poderão ter levado a senhora Charlotte Brontë, que não conheço pessoalmente, a escrever uma obra com o meu nome e com o infeliz subtítulo: Uma aumbiogmfla. Eu sei escrever, sei mesmo ensinar a escrever, são certas as narrações dessa obra que me colocam como mestra de Adele Varens. Oh, melindrosa e bela Adele! Também tu arrastada para este enredo, pequena Adele! Como dizia, sei escrever, a minha ortografla é digna de ser gabada, não me envergonho das formulações que sou capaz de erguer pela via escrita; por essa sorte, tenho-me interrogado acerca do que podera ter contribuído para que a senhora Charlotte Brontë se tenl1a ocupado de forma tão engenhosa a roubar-me a voz e, na mesma leva, a tingir-me a vida a seu gosto com expressões e ideias que chegam bem para errvergonhar-me e, se tenho de dizer o meu nome publicamente, para ser olhada de lado por gentios que desconheço e que, com base nessas paginas pintadas, julgam ter apreendido o meu espirito. Não quero escutar a voz interior, sussurrante, que me fala em perfidia. Não creio queasenbora nte se desse a tanto uaballnfapenas por venenos dessa ordem. Até porque nunca tivemos o gosto bom ou mau de nos cruzarmos. Não acredito que alguma das minhas ações se possa ter estendido ao ponto de perturbar qualquer gesto ou de causar-lhe qualquer espécie de indisposição. Apesar de ser sempre difícil traçar uma fronteira ao alcance das práticas. Mesmo recusando a perfidia como propósito, recuso-a, sei bem que esses amargos podem surgir da simples existência. Se os espelhos da senhora Charlotte Brontë estiverem partidos, talvez lhe baste saber de run adjetivo valoroso que me tenha sido dirigido; se for propensa a unhas encravadas, talvez lhe baste saber da saúde das minhas; se for forte de ossos e gostar de pão untado com banha, talvez lhe baste a notícia da minha elegância para que eu própria lhe desgoste. Esse é o mal da inveja, um vapor poderoso que inebria e que, muitas vezes, se movimenta através das palavras. Em ‘lhomfleld Hall, no jardim, na superfície do lago, foram bastas as ocasiões em que me detive a observar urna espécie curiosa de insetos que pousa as suas patinhas finas, li.nhas perfeitas, sobre a água. É assim que se movimentam naquela superficie cristalina; a mesma superficie que nós, com menos sensibilidade, só conseguimos atravessar, mergulhar. É também assim que a inveja, como esses insetos, se movimenta pelas palavras, como a água do lago: agua cristalina no jardim de Thornfleld. Não sei. Já matei a cabeça demasiadamente com este assunto. Nunca julguei que viesse a referir tantas vezes a senhora Charlotte Brontë. I-louve noites em que, querendo donnir, precisando de descansar, apenas ouvia este nome repetido dentro de mim e, ao mesmo tempo, uma pergunta também repetida, a fazer eco: porquê? Edward disse-me até se cansar: esquece. Disse: esquece, Jane, a realidade é muito mais forte do que essas páginas toscas que tentam nomear-te, mas que não chegam a tocar a tua sombra ou o teu reflexo. Foi exactamente isto que Edward disse. Disse também: tu e eu sabemos. Disse: aquilo que os outros pensam vem muito depois. Meu doce Edward! Meus braços que abraçam! Peito que recebe o meu rosto a soluçar, que encontra sempre o consolo certo para me aliviar! Reoebo a ternura das suas palavras. São como beijos disfarçados de verbos. Sorrio mas passa o tempo, meses e, em algum instante, volto a interrogar-me: porquê? De facto, Edward e eu sabemos. O grosso das descrições da senhora Charlotte Brontë são rigorosas no que concerne a urna quantidade generosa de assuntos. No entanto, são incorretas com o mesmo rigor em relação a um número imenso de outros assuntos. Tentando, cheguei a encetar o trabalho de identificação dessas irnprecisões página a página. Cheguei quase a meados da obra. Cheguei quase louca, enlouquecida a meados da obra. A partir de certa altura, duvidava até de mim própria. A minha memória estava tão embara-

çada nas páginas, parágrafos e falas desse romance que tive de parar. Depois desse trabalho incompleto, suportei três dias de insónia total e, a seguir, três dias de sono ininterrupto. Como se vê, apoquentei-me com isto. ` É impraticável retirar de todas as bibliotecas e lojas de livros o romance que a senhora Charlotte Brontë decidiu intitular com o meu nome. Está em lados que desconheço, que desconhecemos todos, é um passo que não pode voltar atrás. É também impraticável deflnir uma relação completa dos dados que estão de acordo com a realidade e dos outros dados, longe, longe dessa mesma realidade. Lamento essa impossibilidade, mas aceito-a. Assim, resta-me apelar a que não pactuem com essa narrativa que parcialmente é irreal. Não sendo possivel destrinçar a fantasia do vivido, não vejo outra alternativa que não seja apelar à total recusa da obra. Espero que, desse modo, os meus dias possam encontrar alguma paz que, com esta idade, sinto ser-me merecida. Não tenho meios de estender esta mensagem a todos os lugares onde o romance se encontra, mas espero que, um a um, esta mesma mensagem se possa ir estender na boa vontade de quem lê. Como aqueles insetos do lago de lhomfield. Esta mensagem, como os insetos, e a boa vontade de quem lê, como a água do lago do jardim de Thornfleld.

Mia Wasikowska como Jane Eyre

o homem do leme Manuel Halpern

PRÓSPERO É A TUA TIA

F

eliz Natal ainda vá que não vá, porque o Natal é uma festa de família, e estar com a famflia é sempre bom, mesmo com meio subsídio, meio peru, duas patas de leitão, bacalhau ultracongelado da Iglo e bolo-rei rico em favas. Agora desejarem-nos mn próspero ano novo é que já entra no campo da ofensa. É que nem O Belmiro de Azevedo e o Fernando Ulrich esperam que o ano seja próspero, quanto mais os cidadãos comuns. Por isso, este ano, antes de entupirem as caixas dos correios e os telemóveis uns dos outros com mensagens de boas festas, pensem bem no que vão dizer. Talvez: “E um ano novo remediado”, “Um bom cá se vai andando 2012”, “Um ano pobrete, mas alegrete”, “Um 2012 bem poupadinho” ou, como subscreveriam certamente alguns elementos do Governo, “que em 2012 descubra a felicidade na austeridade”. Próspero é que não, porque isso vai contra a política

do governo, que acredita que a solução para sair da crise está no empobrecimento. E a ironia pode ser bastante ofensiva e mal interpretada. Por isso, como dizia o anterior governante, próspero é a tua tia. Eu por acaso não tenho nenhluna tia com esse nome. Chamam-se todas Maria. Mas Próspero, sabe-se bem, é a personagem d’A tempestade de Shakespeare. E, no sentido shakespeariano, já faz todo o sentido desejar algo de Próspero para o Ano Novo. É que Portugal, tal como o traído Duque de Milão, foi lançado à tempestade num barco frágil, que naufraga. Próspero e a sua fllha Miranda, no entanto, salvararn-se. Foram ter a urna ilha e, graças aos seus poderes mágicos, conseguiu engendrar a vingança conta aqueles que lhe fizeram mal. Mas só que, no fim, Próspero abdica da sua magia, por achar que os governantes e os homens devem estar ao mesmo nível. Ah quanto nós, país, precisá-

vamos de ser Próspero, encontrar uma ilha que nos salve do naufrágio e vingar-nos contra aqueles que nos ficaram com metade do peru:“Vai, inciunbe os meus duendes de torce-lhes com secas convulsões todas as juntas, de com cãibras os nervos repuxar-lhes, com beliscões deixando-os mais manchados do que os gatos selvagens e as panteras”. Um Próspero Ano Novo, pois então, que o país já está farto de meter água. homemdoleme@netcabo.pt

Esquece, Jane, a realidade é muito mais forte do que essas páginas toscas que tentam nomear-te

josé luís peixoto


diário

carlos reis

jornal de letras.pt / 14 a 27 de Dezembro de 2011

Carlos Reis, 61 anos, prof. Catedrático da Fac. De Letras da Universidade de Coimbra (e prof. Convidado de universidades de diversos países, sobretudo no Brasil e nos EUA), ensaísta, crítico, colaborador do JL desde o nº 2. Com vasta obra, em particular sobre Eça, de que é especialista E CUJA Edição Crítica dirige, foi, além do mais, diretor da Biblioteca Nacional, presidente da Associação Internacional de Lusitanistas e reitor da Universidade Aberta desde 2006 até renunciar ao cargo, em Julho último.

dos dois lados do equador Viçosa, 8 de novembro de 2011

Porto alegre, 26 de novembro

Porto Alegre, 5 de dezembro

E

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Lisboa, 10 de novembro

O

Observatório da Língua Portuguesa (OLP) organiza em Lisboa um conjunto de conferencias-debates sobre a língua portuguesa. Para quem eventualmente não saiba: o OLP é uma meritória associação que entende a cidadania como mais do que um slogan e, entre outras atribuições, trata de observar o estatuto e a projeção da língua portuguesa no Mundo. Para fazer aquilo, em suma que também cabe à sociedade civil. Pude intervir na primeira sessão e reafirmar, entre outras coisas, o que muitas vezes disse já: não temos, em Portugal, uma verdadeira politica de língua, gravíssima lacuna que não é de agora. Infelizmente, há longos anos (insisto, para evitar mal-entendidos: há longos anos), em regime democrático, com sucessivos agentes e partidos políticos no poder, tem proliferado a retorica e escasseado a ação. Os responsáveis por isso têm nome e os governos Sócrates acumularam, em tal matéria, omissões e descasos que não podem ser esquecidos, para que a Historia a fazer um dia saiba o que se passou e o que não se passou. Uma pergunta: nas atuais e dificílimas circunstancias, ainda iremos a tempo?

Coimbra, 12 de novembro

V

olto a Coimbra por uns dias, antes de outro regresso mais alargado, para participar num congresso organizado pelo “meu” Centro de Literatura Portuguesa. E volto com gosto, não só porque venho falar do sempre fascinante (para mim) romance oitocentista, mas também porque reencontro lugares e pessoas que fazem parte da minha memória afetiva. Essa que não se apaga, apenas de episódicos amuos que às vezes tenho com a Lusa Atenas, celebrada pelo conselheiro Acácio numa prosa (“Reclinada molemente na sua na sua verdejante colina…”) que já vi levada a serio por pessoas sisudas. Sempre fui critico da Coimbra “menina e moça”, das praxes e da universidade isolada no alto da tal colina. Verdade seja: ao contrário do que alguns pensam (as ideias feitas são persistentes), Coimbra e a sua universidade já não só isto, apesar de crises de “coimbrismo” ou de “coimbrinhas”, que, como a malária, de vez em quando ressurgem. No fim de contas, estou bem acompanhado na minha ambivalente relação com Coimbra: dois dos meus maîtres á penser, Eça e Eduardo Lourenço, viveram e vivem semelhante divisão de opiniões.

Natal, 23 de novembro

E

m Natal, no Rio Grande do Norte, para participar no II encontro de Escritores de Língua Portuguesa. Aqui revejo Miguel Anacoreta Correia, a cujo teimoso dinamismo se deve o labor da União das Cidades Capitais de língua Portuguesa (UCCLA), Rui Lourido, que o coadjuva, e Carlos Marques, agora radicado em Natal (lembram-se do antigo candidato da UDP à Presidência da Republica?). o encontro de Natal é mais uma oportunidade para se confirmar o que cada vez mais vamos sabendo: se organizações como a UCCLA e também a LisNatal, presidida por Marques, não se baterem pela causa da língua portuguesa, não sei quem o fará. Já agora: reencontro aqui o meu velho amigo Manuel Rui, com o seu inseparável boné branco e com memórias coimbrãs na ponta da língua; cruzo-me com Gabriel, o Pensador, um rapper que é um prodígio de comunicabilidade e simpatia; travo conhecimento com Tiago Torres da Silva, um letrista (é assim que me dizem, mas a expressão é redutora) com um talento invulgar para fazer dialogar a poesia com a música; e converso com Pedro Rosa Mendes, um jornalista e também escritor de grande qualidade, que a Lusa descartou. Assim se fazem as coisas.

o Jornal Zero Hora, leio uma crónica de Luis Augusto Fisher, sobre autoficção, autobiografia e autoexposição. Para quem não saiba: Fisher é professor de literatura brasileira na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, ensaísta e ficcionista, para além de marcar presença regular em jornais e em tertúlias. O que nos diz Fisher? Que parou no correio eletrónico e não encontra graça ou interesse algum no facebook, no twitter ou no blogue. Ressalvando este último (que, creio eu, é já um espaço de comunicação influente, com tendência para melhorar muito), revejo-me no que diz o cronista. E vou mais longe: para além de serem, a meu ver, uma abdicação ligeira e um pouco tonta de uma privacidade que deveria ser inegociável, twitter e facebook parecem-me, na esmagadora maioria das utilizações (há exceções, claro), frívolas manifestações de uma generalizada ansia de protagonismo ás vezes verdadeiramente patética. A quem interessam as fotos das férias e comentários (em 140 caracteres!) de cidadãos vulgares de Lineu, que se acham o centro do mundo? É assim que se chega à notoriedade que todos parecem desejar, indo além dos tais 15 minutos de glória? Estamos conversados.

Porto Alegre, 30 de novembro

L

eio na edição eletrónica do Público que mais de 60 cursos da rede de ensino Português no estrangeiro vão ser encerrados. Já no início do próximo ano. Lamento que assim seja, mas não estou surpreendido. Durante anos, foi afirmado, prometido e reitorado que agora é que era, agora é que o português seria consolidado como idioma com projeção internacional. As medidas que se anunciam são um princípio de inevitável desmentido de tanto que se prometeu – e mais estará para vir, nestes tempos sombrios que estamos a viver. Sendo fácil acusar quem agora enfrenta o ónus das medidas drásticas, é mais sério fazer duas perguntas singelas: o que fez o Governo português nos dois anos (2008 a 2010) em que Portugal ocupou a presidência da CPLP? E para onde foi o tão propagandeado, na época, Fundo da Lingua Portuguesa, dotado com 30 milhões de euros? Quem souber responder, faça favor. Somos todos ouvídos.

Carlos Reis

m Viçosa, no interior de Minas Gerais, há uma florescente universidade federal, com um campus de elegante desenho urbanístico – ao contrário da cidade, cujo nome é claramente irónico. Nessa universidade, participo num simpósio (onde encontro Ana Paula Arnaut, que viajou desde Coimbra até ao fundo de Minas), organizado por Gertson Roani, um estudioso de Saramago, que conheço desde os meus tempos da Biblioteca Nacional. Pois bem, um colóquio onde se fala de teoria narrativa, de semântica da personagem, de relações entre literatura e Historia, do cânone e da sua desmistificação, de poesia portuguesa e de romance brasileiro, deparo com uma sala de abertura com cerca de 200 pessoas, professores, estudantes de graduação e de pós-graduação. E nos três dias, são muitas dezenas de comunicações e em geral um intenso desejo de participa, de intervir e de questionar que dificilmente encontro na cena universitária portuguesa. Porque será?

esde que comecei a vir ao Brasil, há mais de 25 anos, muita coisa se alterou, pouca coisa se manteve. Uma destas, ou seja, uma das que parecem imutáveis, é o Jornal Nacional, da Globo: horário, formato e estilo são, com poucos reajustamentos, praticamente os mesmo de sempre. Num pais com uma disponibilidade bem conhecida para a mudança, o chamado “padrão Globo” contribui para assegurar a unidade nacional e para neutralizar variações linguísticas (sobretudo lexicais), bem naturais num espaço nacional com esta dimensão. De certo modo, cabe à TV Globo fazer o que antes atribuímos ao idioma: manter o país unido, do Oipoque ao Chuí. Assim é com o Jornal Nacional. Desde os tempos de Cid Moreira, o modelo é o mesmo, com algumas variações de rostos, coisa natural, porque as pessoas envelhecem, mas a Globo permanece. Pois bem, agora houve troca de apresentadora: saíu Fátima Bernardes, entrou Patrícia Poeta, mas a substituição não se fez sem um demorado e bem montado ritual de passagem, para tranquilidade do telespectador fiel. Durante cerca de dez minutos (uma eternidade, em televisão), William Bonner, que apresenta o JN desde 1996 (outra eternidade), caucionou a passagem de testemunho: louvou quem sai, acolheu quem entra, os três sorridentes à mesa do JN. E tudo com direito a reportagem acerca do currículo jornalístico da Bernardes, idem quando ao da Poeta. A isto acresce um pormenor não despiciendo: William e Fátima são casados, pelo que a saída da esposa não deve deixar lugar a dúvidas. Vai fazer um novo programa de informação e está, evidentemente, muito feliz. Assim o respeitável público pode continuar a confiar naquela grande instituição; e, num mundo harmonioso como este, Candide não gostaria de trabalhar no JN Globo. Bem vistas as coisas, antes assim do que enfrentar rostos esgazeados e comentários descabelados, como já vimos em Portugal.

Porto Alegre, 8 de dezembro

M

orreu Luiz Francisco Rebello. Muitas das coisas que aprendi sobre teatro português fiquei a deve-las aos seus livros. E pensando, além disso, no que foi a sua obra de dramaturgo, de crítico teatral e de diretor de teatros, pergunto-me se, depois de Garrett, terá havido em Portugal alguém que tanto fez por esse parente pobre da nossa cultura que é o teatro.


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