COMO SE FÔSSEMOS INVÍSIVEIS

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Júlio Emílio Braz ilustração

Thaís Mesquita

como se fôssemos INVISÍVEIS



Júlio Emílio Braz ilustração

Thaís Mesquita

como se fôssemos INVISÍVEIS


Texto © Júlio Emílio Braz Ilustrações © Thaís Mesquita Este livro ou parte dele não pode ser reproduzido por qualquer meio sem a autorização da editora.

Cip-Brasil. Catalogação na Publicação l Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

B827c

Braz, Júlio Emílio Como se fossemos invisíveis / Júlio Emílio Braz ; ilustração Thais Mesquita. - 1. ed. - Belo Horizonte, MG : Fino Traço, 2014. 82 p. : il. (Traço Jovem ; 8) ISBN 978-85-8054-199-1 1. Literatura infanto juvenil brasileira. 2. Literatura brasileira. 3. Mesquita, Thais. 4. Título. 5. Série. CDD: 028.5 CDU: 087.5

Produção editorial Lilian Lopes Revisão de textos Cláudia Rajão Projeto gráfico e diagramação Aline Vasconcelos

Fino Traço Editora Ltda. Av. do Contorno, 9317 A I|Barro Preto Belo Horizonte - MG - Brasil Telefone: (31) 3212 - 9444 finotracoeditora.com.br


Todas as cores concordam no escuro. Francis Bacon



SUMÁRIO Veias abertas

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Hipocrisia

11

Aparências

15

História

21

Uma pequena história do cotidiano

27

Apenas brincando

31

Olhos fixos Na sala de espera

35 41

Interrogatório

45

Slogan

49

Humilhação

53

Trincheira

59

Filhos de um mesmo destino

63

Como se fôssemos invisíveis

67

Terra de ninguém

73

Bomba relógio

77



Veias ABERTAS 7


Mais triste nação. Na época mais podre Compõem-se de possíveis Grupo de linchadores. Circulandô — Caetano Veloso

De repente, alguém gritou: Pega! Pega! Pega! Não se sabe por que ou para quê. Na verdade, ninguém se importou. Rua cheia. Multidão apressada. Gente amedrontada. Calor insuportável. Mentes enlouquecidas e atormentadas por tudo e qualquer coisa, a começar pela própria vida. Todo mundo se voltou logo para ele. Negrinho. Magrinho. E por ser negrinho e magrinho principalmente, por estar correndo, suspeito. Como alguns diriam mais tarde, tinha cara de culpado. Agia como tal. Bastou o dedo do primeiro alcançá-lo e indicá-lo para os outros, para que todos, irmanados na certeza mais apressada, precipitada e por isso mesmo, estúpida, o condenarem... É ele! Juntou gente e apareceu imediatamente o primeiro pedaço de pau; com ambos, o lado mau e enlouquecido de cada um. 8


Sequer teve tempo de gritar. Protestou inocência, mas ninguém ouviu ou quis ouvir. Desesperado, tentou correr, mas foi agarrado. Apelou e pediu clemência. Seu apelo sucumbiu rapidamente na fúria anônima e coletiva. Catarse aviltante. Veias abertas de um mal ainda maior. A polícia apareceu — rostos aborrecidos, penúria de carros e uniformes, tudo dentro dos mais conhecidos padrões nacionais. Tarde demais. O rapaz — magrinho, negrinho, sem cara alguma para mostrar ou pelo menos capaz de identificá-lo mais facilmente — jazia numa grande poça de sangue, vítima indefesa da satisfação e do alívio geral. Alguns tinham até a certeza do dever cumprido nos rostos suados. Ninguém ouviu ou deu importância àquela velhinha que brandia um guarda-chuva sozinha na entrada do metrô e gritava — parecia não ouvir bem, coitadinha — e gritava: — Pega... pega... pega... pega o ônibus para Mesquita logo ali, meu filho... Como se o negrinho magrinho ainda pudesse ouvi-la.

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HIPOCRISIA

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— Racista, eu? Mas que absurdo! Eu não sou racista... — Mas a senhora agora mesmo estava dizendo que aqueles pretos... — Pretos? Eu não disse pretos... — Falou gente escura, é verdade... — Pois é. Gente escura é diferente de preto. — É? — E não é? — Ah, tudo bem... Claro que é. Mas a senhora estava dizendo... Ah, sim. É o que eu disse, meu filho. Eu e minha amiga estávamos ali sentadas quando aqueles rapazes se aproximaram e... — Eles disseram alguma coisa? — Não que eu me lembre... — Pareciam ameaçadores? — Não... bom, na verdade, eles não pareciam nem um pouco ameaçadores. — Eram mal-encarados? — Bom, eu não saberia dizer. Como todo pre... quer dizer, a gente sabe como as pessoas escuras têm um certo ar... um ar de... bom, o senhor compreende, não? Silêncio.

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— Eu realmente não sei por que me assustei tanto, mas... mas... bom, pra falar a verdade, quem realmente se assustou foi a minha amiga. — Foi? — Claro. Eu... — Sim, eu sei. Prossiga, prossiga. — Como eu disse, quando a gente viu aqueles três rapazes se aproximando, nós pensamos... o senhor entende, não? Essa cidade anda de tal maneira violenta que... — Que a senhora pegou o seu revólver e... — Eu não queria, juro que não queria. Foi o meu filho que insistiu para que eu carregasse aquela coisa dentro da bolsa. Só para me proteger, o senhor entende, não? Tem tanto ladrão nessa cidade que a gente... — Mas eles só queriam saber onde ficava a rua Dou... — E como é que eu ia saber? Essa gente escura é tão... tão... o senhor... Sílvia, você me entende, não? A amiga entendia.

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Nas narrativas, em textos curtos e diretos, Júlio Emilio Braz nos demonstra de modo inequívoco que os conflitos raciais no Brasil estão muito mais presentes no nosso dia a dia do que desejaríamos. A sociedade brasileira ainda nega aos pobres e aos negros a sua existência, tornando-os invisíveis aos nossos olhos e mentes para que não tenhamos que aceitá-los e incluí-los em nosso cotidiano, em nossas vidas. Uma realidade que irá se impor mais cedo ou mais tarde.

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