Corpos Vinculantes: Sérgio Canfield

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ENELÉO ALCIDES E ROSÂNGELA CHEREM

APOFENIA | tinta acrílica sobre tela | 145 x 150 cm

ORGANIZAÇÃO

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02 Alcides, Eneléo e Cherem, Rosângela (orgs.) Corpos Vinculantes, Sérgio Canfield 158 p. ISBN 978-85-66820-08-9 1. Catálogo de Arte Contemporânea. 2. Exposição Corpos Vinculantes, Sérgio Canfield. CDD 66820


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APOFENIA | tinta acrílica sobre tela | 145 x 150 cm


04 CATÁLOGO

PROJETO EDITORIAL E ORGANIZAÇÃO ENELÉO ALCIDES ROSÂNGELA CHEREM

DIRETORIA EXECUTIVA

PROJETO GRÁFICO

ENELÉO ALCIDES

BIANCA JUSTINIANO DOS SANTOS

DIRETOR GERAL

ENELÉO ALCIDES

HELENA MAYER

FOTOGRAFIAS DAS OBRAS

DIRETORA ADMINISTRATIVA E FINANCEIRA

MARIO OLIVEIRA

FOTOGRAFIAS DOS EVENTOS

CONSELHO CURADOR

KARINE JOULIE

JUSTINIANO PEDROSO

FRANCHÊSCOLLI GOHLKE

até 12/2018

PRESIDENTE DO CONSELHO CURADOR

EDIÇÃO DE IMAGENS

OLÍVIO KARASEK ROCHA até 12/2018 LUIZ HILTON TEMP até 12/2018 LUCIANO DE MARCO até 12/2018

KARINE JOULIE FRANCHÊSCOLLI GOHLKE MARIO OLIVEIRA

CONSELHEIROS

EDUARDO ALEXANDRE CORRÊA DE MACHADO

BIANCA JUSTINIANO desde 01/2019

PRESIDENTE DO CONSELHO CURADOR

PAULO RENATO VIEIRA CASTRO desde 01/2019 CRISTIANO SOCAS DA SILVA desde 01/2019 CONSELHEIROS

CONSELHO FISCAL

EXPOSIÇÃO TODOS OS ESPAÇOS DA CASA DE 01 DE DEZEMBRO DE 2018 A 09 DE FEVEREIRODE 2019

CURADORIA ROSÂNGELA MIRANDA CHEREM

AMAURI EVALDO NAU desde 08/2017 JOSÉ HENRIQUE WAGNER desde 08/2017 RUI CARLOS CORDIOLI desde 08/2017

CO-CURADORIA

EQUIPE DE PRODUÇÃO DA FUNDAÇÃO CULTURAL BADESC

MEDIAÇÃO

BIANCA JUSTINIANO SANTOS designer gráfico CAROLINA RAMOS NUNES arte educadora KARINE JOULIE produtora cultural, até 04/2019 VANESSA SANDRE produtora cultural, desde 04/2019 JONAS LAURIANO admistrativo financeiro ELMADSON ALMEIDA estagiário jornalismo, até 05/2019 FRANCHÊSCOLLI GOHLKE estagiário cinema, desde 08/2018 WILLIAN SCHUTZ estagiário jornalismo, desde 06/2019

LUCIANA KNABBEN JANAINA FORNAZIERO BORGES KETHLEN KOHL CAROLINA RAMOS NUNES

SOFIA AMORIM CAROLINE GARLET DE OLIVEIRA


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APRESENTAÇÃO ENELÉO ALCIDES

CORPOS VINCULANTES ROSÂNGELA MIRANDA CHEREM

BIBLIOTECAMENTE MUTÁVEL JANAINA FORNAZIERO BORGES

O CORPO RESÍDUO KETHLEN KOHL

SÉRGIO CANFIELD ELMADSON M. ALMEIDA

CARNE, PAPEL, PLÁSTICO: AMARRAÇÕES DE UM MÉDICO ARTISTA CAROLINE GARLET DE OLIVEIRA

EXPOSIÇÃO ‘CORPOS VINCULANTES’ DE SÉRGIO CANFIELD SOFIA AMORIM

DA INATUALIDADE DA ARTE DE SÉRGIO CANLFIELD EM TEMPOS DE CÓLERA ROGÉRIO ROSA

O LABORATÓRIO EM QUE OS EXPERIMENTOS GRITAM LUCIANA KNABBEN

O ENCONTRO COM A OBRA DE SÉRGIO CANFIELD LAURECI NUNES

SOBRE UM LABORATÓRIO DE IMAGENS: PERTURBAÇÕES E COMPULSÕES ENTRE ARTE E MEDICINA THAYS TONIN

CHAVES PARA PENSAR CRITICAMENTE PRODUÇÃO E CIRCUITO CAROLINA RAMOS NUNES

DEPOIMENTOS COLHIDOS POR ROSÂNGELA MIRANDA CHEREM NO MÊS DE JANEIRO DE 2019

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ABERTURA

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RODA DE CONVERSA

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CURRÍCULO


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SEM TÍTULO | ossos, papelão, penas e colher de prata | 20 x 3 cm


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APRESENTAÇÃO ENELÉO ALCIDES


09 O nome Sérgio Kisperger Canfield (Skcanfield) era desconhecido destes organizadores até dois anos antes deste catálogo. Dividindo seu tempo de produção com a carreira de médico gastrocirurgião na cidade de Jaraguá do Sul, o artista já havia mostrado parte de sua produção em uma dezena de exposições coletivas e cinco individuais no eixo JaraguáJoinville-Itajaí-Blumenau. Mesmo assim, pode-se dizer que produzia “à margem do circuito catarinense de artes”. Quando estudante de medicina, na cidade de Curitiba, sustentava seu curso com obras vendidas em feiras de praças públicas. A medida que a medicina substituiu a manutenção da família, sua arte ganhou outro espaço, mais livre, e assim se desenvolveu por décadas sem a preocupação de circulação ou comercialização. Em 2016, Sérgio publicou o catálogo Olhares , com obras em que refotografa imagens famosas sobrepostas com animais mortos. A pesquisadora Rosângela Cherem teve acesso ao livro quando lançado em 2017 na cidade de Joinville e o compartilhou comigo. O estranhamento causado pela fusão das imagens provocou um convite para que o artista apresentasse essa série no Espaço Paulo Gaiad da FCBADESC e para que a pesquisadora pensasse a curadoria da exposição. Esta foi a razão destes organizadores irem à Jaraguá do Sul entrevistar o artista e estudar suas obras. Assombro é palavra que encontro para descrever a sensação ao entramos no ateliê. Uma profusão de objetos, instalações, esculturas, fotografias, colagens, desenhos, pinturas, textos, que deixaram nossa respiração em suspenso por diversas razões. Uma delas: como pode um artista produzir tão obsessivamente e se manter desconhecido do circuito. Senti imediatamente que tinha uma questão a resolver: teria que cancelar a exposição inicialmente programada e repensar um evento maior que revelasse essa vivacidade criativa. Na casa de Sérgio, as obras ocupam dois grandes ateliês, além de se espalharem por salas, escada e hall . Cada ambiente guarda características próprias. Nas áreas sociais, os óleos escuros de nus solitários, lavados com jatos de água, dividem espaço com suas fotografias que sobrepõe literalmente o eros e o tânatos. Subindo a escada, no ateliê à esquerda, uma imensa mesa acumula mais de mil e duzentas pinturas em papel enquanto as paredes apoiam inúmeras telas, diversas delas marcadas pela lama de enchentes que foram incorporadas às obras. Mas é o segundo ateliê que guarda o resultado de incontáveis madrugadas de trabalho. Diversas cabeças e partes de corpos dilacerados, esmagados, engasgados, violentados, sacrificados ou suturados como só um cirurgião-artista é capaz de evidenciar. Obras com milhares de comprimidos, seringas e agulhas reafirmam a fragilidade da existência humana. Quilômetros de fitas de exames e procedimentos clínicos pendem do teto em esculturas como seres bizarros que povoam os imaginários ficcionais. Pequenos animais mortos viram objetos ao lado de caixas de desenhos, assemblagens que preenchem cada canto de parede e uma dúzia de estantes que guardam tudo que se pode


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SEM TÍTULO | material plástico prensado entre placas de acrílico | 22 x 12 cm


11 amalgamar: quase um aleph-resíduo 1 da arte contemporânea. Durante horas o artista nos contou sobre seus processos (não posso referir no singular), mergulhos compulsivos, gestuais, acelerados, impulsivos. Em uma das séries, o artista começa por fotografar um veículo com placa que termina pelo número 58, seu ano de nascimento. Continua buscando outras placas e passa a empreender uma verdadeira caçada para completar as 200 possibilidades de números iniciais, de 00 a 99. A “obsessão criativa” o leva a perseguir automóveis até conseguir fotografá-los, nem que para isso seja preciso segui-los entrando em garagens particulares. A série ilustra sua persistência em concluir um projeto. A maior parte desta produção jamais havia sido exposta. Escolher algumas de suas séries e selecionar obras nos parecia inábil perante o interesse de pensar, aprofundar e apresentar esse conjunto que representa o fenômeno da compulsão criativa. Surgia ali um sentimento de responsabilidade institucional (FCBADESC e UDESC) de que esse farto material se tornasse público para que o circuito conhecesse melhor esse artista. Além disso, as características de seus processos, os quais permeiam projetos premeditados tanto quanto experimentações intuitivas, sem prescindir de um inacabento proposital e um aparente desinteresse pela comercialização, também instigam repensar os limites do que é arte e do que é um artista nas contraditórias concepções do circuito. Para evidenciar essas questões, a solução primeira seria simplesmente transferir o cenário encontrado nos ateliês para uma exposição em Florianópolis, mas mesmo com um recorte grande, o material ocuparia facilmente todos os espaços expositivos da FCBADESC. A questão é que exposição de casa inteira costuma ser projeto de retrospectiva de artistas consagrados que possuam uma longa trajetória. Abrir precedente a um nome pouco conhecido significaria expor a instituição à críticas previsíveis. Ainda mais considerando que o conjunto da obra em questão seria também polêmico, dado que Sérgio é um artista que se interessa por uma estética do bruto, do grotesco, do inacabado; que o cerne de relevância transita entre obra e processo; que os limites entre experimentação e obra nem sempre são claros. A proposta da FCBADESC, em sintonia com o interesse curatorial, nunca foi de selecionar o melhor das séries, nem facilitar a deglutição do que seria visto. Antes, optou-se por mostrar toda a força que essa produção contém e toda a contradição que ela gera. Na expografia, as obras ainda não registravam os títulos apontados e definidos pelo artista na construção desse catálogo. De alguma forma, apostou-se nesse total bruto e profuso, que só poderia ser visto circulando-se pelos halls , galerias, biblioteca e laboratório em que se transformaram os espaços que receberam Corpos Vinculantes . A exposição, que ocupou cada canto do casarão amarelo da FCBADESC, foi marcada pela polêmica no seu sentido mais literal de debate, confrontação e opiniões divergentes. Nomes relevantes do circuito dividiram-se entre aplaudir ou desqualificar; amar ou odiar. Registramos


12 testemunhos exaltados. Profissionais que entenderam ser uma das melhores exposições já visitadas e outros que acusaram a instituição de legitimar algo incabível. Quanto ao grande público, a experiência parece ter sido mais de assombro, de surpresa e de interesse. Relato essas impressões por diferentes razões. Pela fidelidade à memória da instituição e das artes visuais em Santa Catarina. Por perceber um certo espelhismo em diversos desconfortos no cerne da produção contemporânea e, principalmente, por entender que a polêmica é uma característica inerente, e aceita, na obra de SCKanfield.

NOTAS 1

Aleph, no sentido dado por Jorge Luis Borges em seu conto homônimo, como um portal que permite acessar todas as experiências e

conhecimentos existentes. Por extensão, a diversidade contida nos ateliês parece dardejar como reflexo da vasta gama de procedimentos e valores que atravessa a arte contemporânea.

ENELÉO ALCIDES Eneléo Alcides possui graduação em Jornalismo pela Universidade Federal de Santa Catarina (1993), graduação em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí (1990), mestrado em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina (1998) e doutorado em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (2004). Realiza Pós doutorado na linha de História da Arte no PPGAV/UDESC, com supervisão da Profa. Doutora Rosângela Miranda Cherem. Atuou como professor universitário com ênfase nas disciplinas ligadas à antropologia e Direito de família. É procurador - advogado - consultor jurídico do BADESC - Agência de Fomento do Estado de Santa Catarina e autônomo. Possui experiência na área de Direito, atuando principalmente nos seguintes temas: direito empresarial, direito de família, antropologia, interdisciplinaridade e sexualidade. Desenvolve atividades autodidatas na área de música e fotografia. Atualmente é gestor cultural exercendo a função de Diretor Geral da Fundação Cultural Badesc.


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TOY ART | boneca e seringas | dimensão variável


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CORPOS VINCULANTES Rosângela Miranda Cherem


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O artista e as imparidades de seu arquivo: fascínios e metamorfoses Sérgio Canfield (Paranaguá, PR-1958) conta ter sido um menino que colecionava figurinhas e acumulava objetos que lhe pareciam peculiares, fazendo experimentos sem muitos interditos morais: Na minha

infância fui estimulado a ser um colecionador. Não um acumulador, mas um capturador das coisas que me interessavam e tomava para mim. Meu interesse sempre foi pelas coisas vivas e depois mortas, este dueto de situações da existência. Cabia-me preservar o que teimava em não deixar desaparecer, fixando em álcool, formol ou até cachaça, impedindo o esquecimento, embalsamando uma individualidade perturbadora. Seriam como alimentos em frascos de conservas para serem consumidos antes do apagamento definitivo? abstinência da memória ou fome do esquecimento? 1 Formou-se em medicina pela UFPR e especializou-se em cirurgia geral nos mesmos anos 80 em que desenvolveu um fazer artístico autodidata, passando a exercer suas atividades profissionais e a se apresentar em exposições coletivas e individuais entre PR e SC, concomitantemente. Assim, engendravase um médico que reconhecia na arte uma escapatória para o esmagamento da existência. Mas enquanto num campo de conhecimento o erro precisa ser evitado, no outro é este que ganha destaque. Entre os principais gestos que, desde então passaram a despontar em sua obra, estão os relacionados a cortar, amarrar, espremer, suspender, espetar, torcer, reverter... Em cada trabalho, observa-se um estado de esboço, mas também uma compulsão pelos desenhos e anotações, além de uma obstinada e proliferante criação de formas- seres oriundas de materiais avariados, acumulados e metamorfoseados:

Acho que há algo em estado de gosma nos vãos e circunvoluções do meu cérebro! Parece uma mosca que se debate no fundo do copo, ainda úmido pelo resto de leite. Tenho que piscar, piscar e piscar... Ela não sai de lá. Maldita mosca, maldita gosma que me põe a vasculhar esses recônditos para força-la a escorregar para outro espaço. Talvez um cômodo que não me incomode. Vou fazer algo. Preciso fazer algo...2 Experimentando diferentes materiais e inventando soluções técnicas para alterar os objetos e dotarlhes de sentido artístico, seu pensamento plástico parece ocorrer a partir da desfuncionalização das coisas e de jogos de des-re-montagens, onde prevalece um estado poético de inacabamento. Assim, não seria impróprio relacionar a mosca a que se refere a um estado de incessante desassossego, que não conclui e nem se encerra na coisa mesma. Ressignificando esteticamente coisas descartadas como remédios vencidos, êmbolos metálicos de injeções, fitas de laparoscopias, luzes de centro cirúrgico, suas percepções e conexões parecem advir de um pensamento que acompanha o próprio feito criador:

Coloquei essas larvas vivas dentro do frasco com álcool... Demoraram mais de 10 minutos para morrer. Assim como o homem, são seres difíceis para tal. Mas o conceito da mistura me agrada muito...3 Nesta espécie de estado magmático, indiviso e sem hierarquia, onde as imagens vão se formando e as formas se transformando, o artista ignora a (re-) apresentação do mundo, recusando a consecutividade


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DEUS LÁ, NÓS CÁ | acrílica sobre tela | 200 x 40 cm


20 e o linearismo. Assim, colhe histórias como a do encontro com o caricaturista de rua que fez o rosto de um médico de um seriado de TV, sendo que Sérgio Canfield compra o trabalho e o emoldura a partir de uma intervenção com adesivo. Em outra ocasião, colocou num recipiente as cinzas de uma árvore numa certa praça em Belo Horizonte, onde dormia um mendigo, depois fez uma instalação com vídeo, como se fosse uma balada para um criança refugiada morta, cuja tragédia assistiu no noticiário:

Hoje passo para conversar sobre guardar coisas. Tralhas e corpos, tudo a mesma coisa. Não é nova a referência às gavetas, dali e daqui, interessa, eventualmente, pensar nelas. Para que servem? Excepcionalmente, guardar o que foi um dia visto, usado, curtido, saboreado, compartilhado, amado ou odiado, depois foi parar nas gavetas. Algumas para não serem abertas nunca mais. E as gavetas alheias? Por que despertam eventual curiosidade indulgente? O que escondem essas gavetas emboloradas? O que há nas gavetas fechadas das mentes abertas? E nas gavetas abertas das cabeças fechadas? Sorte dos que já preenchem gavetas mortuárias com seus segredos não revelados.4 Tais depoimentos dão a ver uma paixão pelas formas significantes, atravessada pelo desejo de execução. Entretanto, o contundente problema das relações entre imagem e forma parece remeter a um esforço de aproximação do fosso inapreensível para onde seguem todos os seres viventes, em sua inexorável condição de morrentes. Como materializar a lei do perecível que iguala a todos? Neste adro, Sérgio Canfield põe-se a imaginar, reconhecendo que só a imaginação lê o que nunca foi escrito e torna todo o absurdo possível de ser encarado, ainda que apenas precária e ficcionalmente. Ocorre que para ele a imaginação não é um dado e sim uma empreitada do sensível, capaz de processar tudo o que entra pela fenda do espírito: as lembranças e os esquecimentos, o olhar e os desejos, o sonho e a fantasia, os fascínios e as perturbações... Eis o menino, o médico, o artista tentando alcançar a vida num estado bruto, não lapidado e sempre inconcluso. Entre as pungências e as metamorfoses, eis também o que busca o que nunca cessa de doer: o ponto onde se enfrentam o desejo de conhecer e o medo de saber, no seu núcleo, a própria morte. Em Giordano Bruno encontramos que sem conhecimento e paixão não há nada que se possa ligar (...)

é preciso haver certa disposição mútua entre raptor e raptado (...) e assim, seres vários são atados por coisas várias e diversas (...) o vínculo é aquilo pelo qual as coisas querem estar onde estão e não perder aquilo que têm, mas também querem estar em toda parte e ter aquilo que não têm(...)5. A reflexão deste filósofo do barroco italiano, condenado pela inquisição, permite compreender que é por meio do vínculo que se pode estabelecer conexões entre coisas díspares e seres desgarrados. Somente os humanos são capazes de estabelecer elos profundos, inextensos e incorpóreos, sendo que os que o conseguem não obedecem a um princípio único, nem simples. Sergio Canfield parece ser movido pela capacidade de estabelecer incessantes vínculos entre a vida e a morte, o orgânico e o inorgânico. O vinculável é sua condição, e tanto permite atar, como deixar-se atar. Reconhecendo em cada matéria, forma e estrutura um corpo vinculante, o artista materializa seu pensamento plástico e sua sensibilidade poética atando o destino humano e sua ausência de sentido, uma coisa qualquer entre todas as outras. Considerando o arquivo como uma estrutura imaterial e


21 intransferível da qual cada artista é portador, faz uso e é constituído no seu processo de criação, pode-se considerar a empreitada singular de armazenamentos e experimentações como parte de sua capacidade de estabelecer vínculos e reconhecer nas coisas, suas possibilidades vinculantes. A presente expografia ocupa todos os espaços da Fundação Cultural BADESC e está concebida a partir de três ambientes e diversas salas, pelas quais se distribuem seus desenhos, pinturas, escritos, vídeos, fotografias, objetos e instalações. No piso térreo encontra-se a GALERIA, onde retratos figurativos ou alusivos dão a ver corpos-seres-carnes processados por meio de pinturas em telas, em cartolinas, em pranchetas, onde surgem rostos rasurados ou cabeças encobertas, máscaras carnavalescas ou mortuárias. Nas telas maiores, sob fundo preto, comparecem corpos vulneráveis e instáveis, sendo que um deles está sentado numa poltrona igualmente preta, em tinta trabalhada com espátula. Casal, mulher, indivíduos em escorço ou posição de louvor, basta um olhar atento para perceber que todos têm em comum o fato de não portarem nenhum traço individualizante, podendo ser, ao mesmo tempo, todos e qualquer um. É preciso ter conversado com o artista para colher o pequeno segredo das telas lavadas com mangueira, enquanto a tinta ainda estava fresca, dando às formas um aspecto fantasmático, ou perceber em outras, as marcas de lama, deixadas por uma enxurrada que assolou o ateliê e que foram incorporadas. No piso superior encontra-se a BIBLIOTECA, onde livros de artista estão dispostos em prateleiras e mesas com escritos e desenhos em estado de notas ou esboços compulsivos, além de um vídeo de corposinsetos, passíveis de serem compreendidos como livros-sumas-fardos. Numa outra sala deste mesmo piso, encontra-se o LABORATÓRIO, cujas estantes encostadas nas paredes e uma grande mesa no centro acolhem naturezas-mortas com toda sorte de artificialias, tais como remédios vencidos, objetos desre-atualizados, embulos, toy art e conservas, compondo em estranho conjunto de peças-lascas-órgãos. Relacionando e complementando estes ambientes, nas sacadas, varandas, hall e corredores encontram-se os implementos-coisas-apetrechos, compostos por gaiolas-jaulas, vassouras-ornamentos e cadeiras inoperantes, utensílios como pás, mangueiras de aspirador. Destaque para as fitas VHS de laparoscopia transformadas em anêmonas, medusas, morcegos, estandartes, perucas, enfim, seres- coisas que jamais saberemos a que reino pertence ou que nome possuem. Entre os dois ambientes, BIBLIOTECA e LABORATÓRIO, há um espaço onde, de um lado, estão as fotografias e, de outro, molduras diversas com objetos enquadrados e figurações inusitadas. Aqui é possível reconhecer o mesmo procedimento, indiferente à biplanaridade ou ao tridimensional: a sobreposição de formas como montagem impiedosa. O verme é um personagem relevante nesta cenografia toda. As pinturas originais sobre estas formas foram feitas com uso de um pequeno rodo e estão sobre uma mesa no hall de entrada. Seus adesivos foram multiplicados em diferentes tamanhos e espalhados por diferentes ambientes, inclusive pelos banheiros da FUNDAÇÃO CULTURAL BADESC. Segundo o artista, a imagem deste animal nasceu a partir de uma indignação sobre os comportamentos humano. Também sempre esteve associado ao conteúdo de uma pesquisa científica sobre um verme pré-histórico, encontrado nas profundezas do Mar do Norte, cujas células são idênticas às identificadas na córtex cerebral humana. O espectador tem a oportunidade de pisar nestes seres serpentiformes e vertebrais numa pintura com tinta acrílica sobre um tapete que


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LEI É ORDEM ? | Escultura , barbante e livros de direito | 35x 30 x 16 cm


24 leva ao LABORATÓRIO, enquanto se pergunta quem é o verme: o pisado ou o pisante? Além disto, há pequenos textos selecionados e editados a partir dos escritos das agendas que se encontram numa mesa expositora da BIBLIOTECA. Eles estão igualmente distribuídos pelas paredes de todos os ambientes expositivos. São pequenas pensatas e notações variadas, cuja poesia contém uma certa crueza realista e irônica. Do mesmo modo que na figuração dos vermes, há uma seriação compulsiva e pouco premeditada, oriunda das observações cotidianas. Um pouco maiores são os fragmentos que se encontram na parede que antecede o auditório, onde acontecem sessões de cinema. Trata-se de recolhas de cenas, pequenos enredos narrados em estado ligeiro, mas quase sempre contundentes acerca das afecções testemunhadas ou percebidas pelo artista.

Imaginação e ciência: deslindamentos de um passado possível Os corpos vinculantes de Sergio Canfield podem ser relacionados a um tipo de saber muito ancestro, quando os conhecimentos médicos ainda não estavam apartados da arte e da filosofia, nem das meras especulações e bizarrices que ajudavam a explicar a vida, o comportamento e o destino humano. Durante os quase mil anos que compreendem a idade média na Europa ocidental, este entendimento não desvinculava o pecado e a astrologia das dores físicas, nem desatrelava a eficácia da cura da intervenção espiritual. Os conhecimentos de médicos antigos, como Pseudo Longino e Galeno, ainda eram usados, mas curandeiros e benzedores faziam tanto sentido como os poderes taumaturgos e benfazejos de certas pessoas que recorriam igualmente ao uso de ervas, rezas e simpatias. No período que antecede à criação das universidades e academias de ciências, a sistematização de conhecimentos não demandava hierarquia e nem competências específicas, tampouco os procedimentos de cura demandavam uma titulação, podendo ser exercidos, inclusive, por barbeiros em praças públicas, por ocasião das feiras. Neste contexto, a antiga prática da alquimia abarcava um entendimento de mundo em que ciência e magia estavam interligadas. Um de seus maiores propósitos, além de criar o elixir da vida e assegurar a imortalidade, era o de transmutar um elemento em outro, sobretudo metais menos nobres em ouro. Assim, um exemplo de interligação de saberes pode ser lembrado no século XII numa pequena localidade do que hoje se denomina Alemanha. Trata-se de Hildegarda de Bingen, monja beneditina, mística, teóloga, compositora, poeta, dramaturga, naturalista, médica. Seus primeiros biógrafos dão conta de que a música estava em estreita associação com seu projeto de criar uma língua composta de cerca de novecentas palavras inventadas para descrever os seres fantásticos que reconhecia em suas visões, sendo que também possuía seu próprio alfabeto de letras desconhecidas. Seus escritos guardam


25 uma concepção mística e integrada do universo, além de um olhar atento para as plantas medicinais. Apesar da dificuldade de interpretação, seus escritos indicam que natureza e homem estavam sempre correlacionados e compartilhavam uma simbologia comum. Poderíamos dizer que para ela, todos os corpos tinham propriedades vinculantes. Vivendo no mesmo século, mas na Espanha árabe, Averroes transitou entre a filosofia e a astronomia, o direito, a teologia e a medicina. Estudioso de Aristóteles, entendia a existência do mundo como independente de Deus, sendo este um motor imóvel que assegurava eternamente um mundo existente, nem feito e nem conhecido por Ele. Defendia que havia uma inteligência fora dos seres, mas que esta era uma unidade impessoal. Diferente dos cristãos, para quem a alma é imortal e o mundo é criado, reconhecia que a alma é corruptível e o mundo é eterno. Até o renascimento, inúmeros textos médicos gregos, conhecidos como Corpus Hippocraticum, somaram-se aos textos árabes, sendo o Cânone da Medicina de Avicena. Conforme material vindo de Galeno, o corpo humano trazia consigo quatro humores, associados ao fogo, ar, terra e água, através das propriedades de quente, frio, seco e úmido, respectivamente. A saúde consistia em manter esses humores balanceados dentro de cada pessoa. Mas no período barroco, filosofia e ciências já conheciam correntes opostas, como o racionalismo e a experimentação. Na primeira corrente estariam Descartes, Francis Bacon e Galileu Galilei. No âmbito dos conhecimentos relacionados ao corpo, um empiricismo visibilizou a prática dos estudos anatômicos de Vesalius e também os conhecimentos sobre a circulação sanguínea apresentados por William Harvey. O resultado de seus estudos morfológicos, funcionais e matemáticos deste contemporâneo de Sheakespeare, foi apresentado após mais de uma década de pesquisa sobre fisiologia comparada com a vivissecção de mais de cinquenta espécies de animais. Sobre os estudos sobre anatomia e fisiologia, merece referência as lentes, as quais ultrapassaram as evidências obtidas à olho nu e produziram um novo tipo de conhecimento. A arte de esculpir e polir pedras e cristais veio dos antigos que conheciam o poder convergente das lentes convexas. Na idade média foram usadas como uma lupa para ler, o que resultou nos óculos. Não se sabe com certeza quem inventou o telescópio e o microscópio, aparentemente, ambos são de invenção italiana do final do século XVI ou início do século XVII. Mas também é atribuída aos holandeses. Logo os microscópios chegaram a um aumento de cerca de dez a duzentas vezes de diâmetro. Entre os microscopistas mais famosos está Anthony van Leeuwenhoek, testamenteiro de Vermeer, artista a quem se atribui o uso de lentes para produzir efeitos pictóricos muito realistas. Dedicando-se à anatomia microscópica, o italiano Marcello Malpighi ocupou uma cadeira de medicina prática na Universidade de Bolonha, não se limitando apenas ao estudo do reino animal, também dos vegetais. Suas primeiras contribuições se referem ao desenvolvimento do embrião de galinha, dos somitos, do contorno cardíaco e do encéfalo com suas vesículas primitivas. Ele também descreveu pela primeira vez o estrato celular que leva seu nome, as papilas linguais, os corpúsculos gustativos, os folículos esplênicos e os corpúsculos renais. Neste período, sem excluir a bagagem dos conhecimentos medievais, uma série de teorias médicas confrontavam a tradição galênica, tal como a iatroquímica, a iatromecânica, o animismo, o vitalismo,


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SÉRIE QUADROS NÃO QUADROS | morcego, fita adesiva, tachinhas | 20 x 15 cm


28 o solidismo, o brownismo, dentre outras, dando origem a diferentes conceitos de doença. Importantes filósofos continuaram tendo influência no campo dos conhecimentos médicos, tais como Leibniz, Helvetius, D ‘Alembert, Condorcet, Schelling e Hegel. Basta lembrar que na primeira metade dos oitocentos, além de seus estudos de ótica, química, mineralogia e anatomia, Goethe, também se interessou pela forma das nuvens e das plantas, procurando entender os sentidos empíricos e simbólicos, metafóricos e analógicos pelos quais as coisas e os seres reagiam uns aos outros, colocando-se em constantes jogos de aproximação e repulsão, formação e alteração. Afinidades eletivas é sua obra literária em que mais deixa explícito o entendimento em que a vida, como a natureza é ritmo e movimento. Do mesmo modo que o estudo dos fenômenos invisíveis a olho nu ganhava importância, a caricatura médica teve seu esplendor nos séculos XVIII e XIX. Neste período as cirurgias já estavam bastante alicerçadas nos estudos anatômicos, permitindo um importante triunfo sobre a dor, quando o dentista William Morton usou a narcose etérica em seu trabalho diário, realizando uma demonstração pública no Hospital Geral de Massachusetts. Aproveitando o material humano abundante em hospitais, inúmeras obras e experiências constituíram os fundamentos da clínica moderna, tentando produzir a separação entre crenças mágicas e filosofia, religião e ciência. Muito do que ficou pelo caminho foi esquecido ou desqualificado, pouco se considerou acerca do quanto daqueles entendimentos engendrados ao longo da história têm a ver com as especialidades médicas ou o quanto das engenhocas e artefatos inventados e dispensados guardam a intimidade das compreensões fabulosas, os desejos de controlar as vicissitudes da vida e de dominar a persistência da morte. De modo impremeditado, estas camadas moventes e heteróclitas parecem ter sobrevivido ao tempo, espreitando e incidindo sobre o que Sérgio Canfield faz em suas horas silenciosas e fora da atuação profissional no espaço do consultório ou do centro cirúrgico, quando o artista sobrevém ao exercício da competência médica, tentando pensar para além do âmbito racional e disciplinar. É neste sentido que seus corpos pintados e desenhados, modificados e profanados refazem e adulteram um percurso de conhecimento anatômico, ao mesmo tempo em que seus escritos parecem obliterar os ensinamentos obtidos a partir deste esforço, alargando o sentido das coisas e, em última instância, da vida mesma.

Sensibilidade estética e arte: um retrovisor das formas sem nome Buscando um outro aspecto para pensar os vínculos entre as obras de Sérgio Canfield, chega-se a uma certa história da arte das vanguardas do século XX, repleta de estruturas antinaturais e criaturas sem nome. É o caso de certos arranjos instáveis de Brancusi, das abstrações figurativas à maneira de Henri Moore, dos objetos autônomos e experimentais de Bárbara Hepword e das concreções de Jean Harp. Em


29 tais objetos parece prevalecer um estranhamento contemplado nas construções assentadas num estado de pré-lógico, tal como pode também ser exemplificado no caso dos objetos Merz de Kurtz Schwinters. Bem verdade que Franz Kafka deu ao ser que inventou o nome de Odradek, definido-o como um ser-coisa que ultrapassa a mais palável das realidades, um ser inexistente que sobrevive ao existente. Borges denominou de Zahir um contingente de seres ou coisas que têm a virtude de serem inolvidáveis, o verso e o reverso e as duas coisas, uma face que se superpõe à outra. Ferreira Gullar explicou o não-objeto como não sendo um anti-objeto, mas um objeto especial em que se pretende realizada a síntese de experiências sensoriais e mentais: um corpo que se dá à percepção como pura aparência. Reconhecendoos como objetos singulares para os quais a denominação de pintura e escultura já não era suficiente, identificava-os nos contra-relevos de Tatlin e Rodchenko, bem como nas formas suprematistas de Malevitch, e as formas neo-concretas de Lygia Clark e Amílcar de Castro. Espantosa máquina de imaginação, Xul Solar ganhava a vida como astrólogo. Amigo de escritores como Borges, Bioy Casares, Macedônio Fernandez, Oliverio Girondo e de pintores como Berni, Pettoruti e Raúl Soldi, além dos mais de vinte idiomas que falava, criou dois outros: a panlingua, com raiz na astrologia e na numerologia, e o neocriolo, mistura de português, espanhol, inglês, latim e alemão. No museu que leva seu nome estão dezenas de seus quadros, sendo que também é possível reconhecer a materialização de suas imagens em inventos como o panxadrez, cujas regras incluem notas musicais e símbolos planetários e um teclado de piano composto de três fileiras de chaves com cores e relevos com uma escala musical de seis notas. Assim, o pintor, escultor, escritor , músico, inventor, esoterista e lingüista argentino colocou-se em constante movimento criativo e suas figurações maquínicas parecem se constituir nas unidades seminais as quais também poderíamos chamar de corpos vinculantes. Discordando do entendimento de que o gesto artístico é produzido por um ser mediúnico, situado num labirinto que está para além do tempo e do espaço e que cria como quem caminha em direção a uma clareira, em O ato criador Marcel Duchamp reconhece o gesto do artista através de duas pontas. Numa delas está o que acontece através de uma série de esforços, sofrimentos, satisfações, recusas, decisões que não são totalmente conscientes ao artista. Disto resulta um coeficiente entre a intenção e sua realização, ou seja, o que permanece inexpresso embora intencionado e o que o artista consegue realizar, embora não de modo completamente consciente e premeditado. Na outra ponta está o que acontece quando o espectador experimenta a transformação da matéria inerte em obra de arte, cabendolhe o papel de determinar qual o peso da mesma na balança estética. Assim, reconhece uma espécie de unidade móvel capaz de acionar um fluxo entre o pensamento e o artista, o artista e a obra, a obra e o espectador, o espectador e o pensamento: máquinas capazes de pensar, sentir, desejar. Não à toa, o próprio objeto máquina, tal como o moedor de café e o de chocolate, aparecem figurados em diversos de seus trabalhos, sendo O grande vidro, o mais conhecido deles. Objetos sem nome e máquinas próprias apenas para pensar, as estantes do LABORATÓRIO de Sérgio Canfield estão lotadas de formas surpreendentes e inclassificáveis, cuja matéria foi extraída de seu cotidiano. Eis o que parece ser uma impensada herança que chega até o médico ao preencher suas


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LABORATORIO


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32 agendas com pequenos relatos testemunhados e observações extraviadas das vidas que lhe cercam, e que encontra incansavelmente nas coisas dispensadas um modo de transformá-las em coisas outras. Do mesmo modo, eis o repertório relacionado à fatura singular que remete aos objetos inscritos na cultura industrial, onde se deslinda uma tarefa ensejada desde o dadaísmo, os ready mades e o surrealismo, que persistiu na pop art e na arte povera. Trata-se da materialização de uma ideia, menos voltada para o acabamento e mais para a experimentação, frequentemente associada a pequenos encontros e segredos, índices biográficos arremessados para um alhures, esperando serem vistos com o mesmo fascínio com que recordamos a história dos gabinetes de curiosidades com seus arranjos maravilhosos e assombrosos achados. Desta linhagem, na qual o repertório poético e ótico de Sérgio Canfield parece ser um desavisado tributário, merecem lembrança, ainda, os trabalhos de Claes Oldenburg e Raushemberg. O ponto em que eles parecem nos inquietar tem a ver com a lógica da cultura em que estamos imersos, pautada pelo consumo e pelo descarte. Ao invés de objetos novos e radiantes, aptos ao gozo e à aquisição, conforme promete a publicidade, ou da euforia das prateleiras e vitrines, o que temos é um reflexo da nossa própria condição. Seus objetos lembram que nossa condição é também a avaria, a desfuncionalidade e a obsolescência. Nossa natureza confirma o que o mercado ratifica de modo voraz: entre o que nos excede e o que nos falta, somos seres fadados ao perecível, destinados a nos tornar apenas coisas entre coisas.

Vestígios da cultura e elos da infância: contingências do artista Conta a mitologia que ao filho de Cronos e Reia, chamado Hades, coube um reino a que os gregos tinham como menor, se comparado ao reino dos céus e do dos mares. Era para as profundezas sombrias dos domínios deste lugar que iam os mortos. Numa caverna distante destes domínios, próximo ao rio do esquecimento, ficava o castelo de Hipnos, deus do sono e irmão gêmeo de Tanatos. Enquanto Hipnos percorria a terra à noite, seu filho, ser alado chamado Morfeu, se comunicava com os mortais através do sonho, assumindo várias formas. Por sua vez, Poseidon, a quem coube o reino dos mares, teve um filho chamada Proteu, reconhecido como muito sábio, capaz de se metamorfosear em animais e elementos da natureza. Mas, se parecem semelhantes por terem o poder de assumir formas distintas, o que difere os herdeiros destes dois reinos, Morfeu e Proteu, deve-se ao fato de que só um deles poderia adentrar no sono dos mortais, enquanto ao outro era dada a faculdade de verdadeiramente se encontrar com eles, assumindo a forma que bem quisesse, podendo visitá-los e interpelá-los. Agora bem, consideremos o artista como aquele que incarna estes dois personagens: de um lado o que adentra o sonho dos humanos, com seu poder de tocar algo


33 de muito profundo e particular que pertence à dimensão onírica de cada um, e de outro, o que se conecta com os mortais através das formas criadas no mundo vigil. Se assim for, persiste em nossa cultura, através da arte, um elo muito antigo e mítico, resíduo do encontro extraordinário entre os mortais e as forças que os excedem. As obras não seriam o vestígio desse elo com o incôndito e o intangível? Em alguma de suas cartas, Lacan disse que era um menino com cinco anos. Benjamin admitiu que, quando adulto, escrevia para voltar a ser o menino que um dia viveu o prazer oceânico de aprender a ler. De sua parte, as rendeiras cantam e conversam enquanto fazem suas tramas com a mesma alegria e leveza das meninas brincando de roda. Tudo isto pode ser dito quando se reconhece a criança em estado de descoberta, sem regras nem competências, longe da ordem racional das taxonomias e dicionários. Tudo isto, igualmente, pode ser dito quando se reconhece no adulto um feito que, diferente do hábito consciente ou impremeditado, do movimento, da intenção ou do estilo, produz uma alteração e suspende o estabelecido. Não haveria nos trabalhos de Sérgio Canfield os volteios do artista que se reencontra com o estado de criação vivido em sua infância, longe dos limites regrados e estabelecidos para o pensamento? Para considerar as perguntas formuladas nos dois parágrafos anteriores é preciso uma última observação: se sobrevivem na criação as marcas deixadas pelas visitas e vagâncias de Morfeu e Proteu, se persiste no artista os deslumbramentos da criança em seu estado de descobertas, a ele cabe a tarefa ímpar e intransferível que toma para si: processar a sua maneira as fronteiras tênues entre a vida e a morte, elaborar a seu modo o vínculo em que todos os corpos se igualam. De que maneira ou de que modo? De volta ao começo do texto...

NOTAS 1

Texto extraído de uma agenda artista.

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IDEM.

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IDEM.

4

IDEM.

5

BRUNO, Giordano. Os vínculos. São Paulo: Hedra, 2012, Coleção Bienal, p.54 a 67.

ROSÂNGELA MIRANDA CHEREM Doutora em História pela USP (1998) e Doutora em Literatura pela UFSC (2006); Profa. Associada de História e Teoria da Arte no Curso Artes Visuais e Programa de Pós-graduação em Artes Visuais no CEART- UDESC; coordenadora do Grupo Imagem-acontecimento; orienta, possui pesquisas e publicações sobre História das Sensibilidades e Percepções Modernas e Contemporâneas; atualmente desenvolve pesquisa intitulada ACERVOS E ARQUIVOS ARTÍSTICOS EM SANTA CATARINA, IMPLICAÇÕES E CONEXÕES.


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SEM TÍTULO | plástico | 30 x 10 x 15


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TOY ART | boneca plástico | 30 x 20 x 20 cm

TOY ART | boneca, corda, madeira, penas | 30 x10 x 5 cm


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BIBLIOTECAMENTE MUTÁVEL Janaina Fornaziero Borges


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Uma biblioteca de mutações Sérgio Canfield (Paranaguá, PR – 1958) e seus livros mirabolantes. Conhecer seu ateliê e dar de cara com sua biblioteca ambulante de livros-obras foi curioso. Identificar um livro e ir descobrindo mais e mais que irão surgindo entre suas prateleiras. É de uma curiosidade que só aumenta: procurar, observar e achar mais um. Digo mais um, porque eles são numerosos, aproximadamente trinta livros-objetos-obras, considerados na exposição como livros-sumas-fardos. Seus livros são livros-obras. São únicos em quantidade, não tem tiragem extra. Cada livro é modificado artisticamente por ele, tornando-se ímpar. São esculturas. Sérgio modifica cada livro, inserindo elementos do cotidiano como, por exemplo, peças de teclado de computador antigo, canudos descartáveis, pedaços de bonecas, miçangas, pérolas, bitucas de cigarros, pregador de roupa, linha de barbante, palitos de madeira de churrasco, grampos, tarraxas etc. Em alguns livros ele apenas dobra o material, usa cola para enrijecer ou recortar, metamorfoseando cada um. Seus livros deixam de ser livros, nesse contexto eles têm um caráter híbrido é mutável, deixando de ser livro literário para ser uma obra de arte plástica, carregando inúmeros outros significados e outras narrativas. São livros com temas variados, alguns têm relações diretas com seu conteúdo, outros são implícitos, colocando em jogo próprio tema do livro como uma relação entre linguagens. Interessante pensar no material final de seus livros-obras, resultando em diversas formas geométricas cheias de texturas, cores e volumes, apresentando-se como um ready-made. Integrando essas formas em um novo processo de significação, relega a narrativa verbal em proveito de uma nova narrativa visualsensorial, desocupando, assim, o espaço literário de uma leitura de escrita convencional para ocupar o espaço das artes plásticas na escultura como um livro-obra. Sérgio Canfield aqui demarca sua poética, por meio das peculiaridades de ludicidade, de experimentação e de novas possibilidades. O artista também é médico. Seus pedaços de corpos fictícios também aparecem em meio seus livrosobras. São fragmentos de bonecas, elemento recorrente no restante de sua produção, como por exemplo, pedaços de braço de plástico, amassado por um instrumento da marcenaria chamado grampo sargento, que prende-amassa o pedaço do corpo da boneca dentro do livro, até parece gente de verdade, é sufocante apreciar. Suas bonecas também aparecem em miniaturas em meio aos palitos que estão furando um livro. São uma espécie de um estudos de corpos, ironizados, refletindo indiretamente-diretamente em seu trabalho, direcionando-se para uma espécie de discurso imagético, que traz o livro como suporte para essa série de trabalho. Cada elemento cotidiano inserido no livro transcreve características diferentes e únicas para a respectiva obra escultórica. Com as pérolas, seu livro fica sofisticado. Com percevejos fincados dentro do livro, há uma maior coincidência, talvez. Assim os livros que são reprocessados pertencem a uma coleção diversificado do artista. Seus conteúdos iniciais são bastante díspares e quase aleatórios: livros de anatomia humana e animal, de medicina, livros antigos de literatura, livros de sebo, enciclopédias, dicionários e até mesmo o livro sacro aparece que é a bíblia. Enfim, ao que parece, qualquer livro, torna-se uma matéria ou um material, um objeto de arte. O livro em sua exposição deixa de ser mais uma obra literária de escrita


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NÃO OBJETO | livro | dimensão variável


39 convencional e para tornar-se um objeto escultórico artístico. Sua biblioteca é dada a ver num estado de transformação. Como médico, opera o seu fazer-ato artístico, seja nos livros, nos objetos ou na sua galeria de pintura. São as suas “cirurgias” artísticas de figurações inusitadas. Podemos imaginar a o livro Suck it traduzindo do inglês para o português chupe isso descrito na capa do livro da Nova enciclopédia de pesquisas atuais e direitos humanos que está preso por um grampo-sargento bem forte e dois canudos inseridos no meio do livro, um de cada lado, imaginamos uma caixinha de suco ou o que quisermos. E você bebendo tudo que está dentro desse livro, bebendo tudo sobre direitos humanos: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade.” Isso a Declaração Universal dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas afirma, são os direitos básicos de todos os seres humanos sendo direitos civis e políticos. Mas no que estes preceitos se transformam, o que deles é feito, além das palavras? Vivemos hoje em dia com valores trocados, tirados, roubados e fantasiados que precisamos Suck It desse livro-obra? Evidencia-se uma irreverência crítica, uma perturbadora inquietação. E agora, se estivéssemos preso nas grades de algo que desse para escaparmos tão facilmente que se saíssemos cairíamos em um abismo? Um livro que virou suporte sobre outros palitos de madeiras que o sustentam, de forma bamba, de forma que a qualquer movimento ele caia e o suposto homem que está preso, facilmente fuja e caia novamente com facilidade. Podemos pensar assim, e relacionar com várias situações semelhantes que passamos em nossa vida e em qualquer aspecto em qualquer outra questão. Ou o que mais podemos pensar sobre essa falsa ilusão estruturada sob nossos pés? Esse mesmo corpo solitário tem outros mini-corpos simpatizantes que parecem perdidos, isolados e em grupos sobre outras varetas que perpassam os três livros de um lado para o outro. São cinco ambientes divididos pelos livros. Nessas cinco partes, podemos pensar amplamente e imaginar pessoas em seus continentes, em seus mundos, será que podemos entrar nesse meio? Ou será que já estamos nesse meio, perdidos? A obra do artista Sérgio Canfield convida-nos a imaginar e estranhar mil e uma coisas. O que nos gera estranheza? Será apenas aquilo que vemos com nossos olhos? Ou o quê sentimos no nosso contato humano-corporal-espiritual? Sua produção do artista nos faz pensar sobre nosso corpo, bem como sobre esse peso que carregamos nas nossas experimentações, tanto as cotidianas como radicais. Todo esse fardo que portamos é visto com outros olhos. Olhos esses de um artista, que trabalha diretamente com a vida e com o fim de uma vida. No exercício médico, ele trata diariamente com questões que podem ser tanto melancólicas e angustiantes, como inevitáveis contingentes. Na arte ele processa e altera o que lhe afeta e, então, apresenta-nos a meio caminho entre a constatação e o espanto.

JANAINA FORNAZIERO BORGE Mestranda do programa de pós graduação em Artes Visuais pela Universidade do Estado de Santa Catarina UDESC na linha de Teoria e História das Artes Visuais (2018). Graduada em Artes Visuais pela Universidade Estadual de Maringá UEM (2016). Tem experiência na área de Artes, com ênfase em Professor; Oficinas de Arte; Monitorias; Ações Educativas em espaços museológicos e Mediação Cultural. É bolsista PROMOP, integrando a Equipe Editorial da Revista Palíndromo do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais do Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina. É Artista Visual, com trabalhos artísticos entre: Fotografia e Intervenções urbanas, como a pintura de mural, a gravação do stencil, sticker e a colagem. Portfólio online: http://janafborges.tumblr.com/


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(no alto) INSUSTENTÁVEL EQUILÍBRIO | livro e corda | 130 x 30 x 16 cm


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O CORPO RESÍDUO Kethlen Kohl


43 Quando percorremos o laboratório de Canfield nos deparamos com uma bomboniere de vidro cheia de cinzas. Quase passa despercebida no meio de diversos fragmentos de corpos plásticos envoltos em arames e fitas, insetos em vidros com formol ou uma quantidade absurda de pílulas em grandes urnas de vidro. Entre todos esses experimentos, encontra-se a bomboniere com ornamentos kisch e junto dela um pequeno papel com as seguintes palavras Cinzas de um morador de rua. No meio de todos aqueles corpos fragmentados, observamos esse outro corpo, um corpo que virou pó. Um dos elementos muito importantes nas obras deste artista é que seus objetos possuem narrativas, pequenas histórias do universo fictício do artista. As cinzas de um morador de rua na verdade são as cinzas de uma árvore perto da qual o mendigo dormia. Essa obra começou a ser construída em uma de suas viagens para um congresso em Minas Gerais. Nos dias que esteve na cidade o artista sempre passava por uma rua chamada Rua Curitiba. Em uma sexta-feira ele avistou um grupo de funcionários da prefeitura tentando arrancar uma árvore que estava no meio da calçada. Os funcionários cortaram a árvore, mas tiveram dificuldade para tirar o caule, então resolveram queimar o pedaço que havia restado. Canfield documentou todo esse processo da queimada, que durou três dias, de sexta a domingo. No fim da queima, a única coisa que restou foram cinzas, o artista coletou as cinzas e levou para casa. Com esse trabalho Canfield ressalta que tudo o que é vivo é chamado de individuo, é um ser concreto. Aquele indivíduo que morava na calçada foi morto e queimado. A ausência daquele individuo só passou despercebida pelo olhar de um artista, o artista que olha a cidade com sensibilidade e percebe a árvore como vida. As cinzas foram armazenadas no recipiente tornado urna. Essa peça é provocadora, pois, compõe a estante como se fosse as cinzas de um parente querido que é posto em um santuário. Quem guardaria a cinzas de um morador de rua? Talvez, apenas o artista/cientista que coloca em seu laboratório um objeto que simboliza toda a ironia humana em relação a vida. No laboratório ele não toma forma de santuário, mas sim de um experimento social, um objeto puramente filosófico. Quem não conhece essa história pode acreditar que as cinzas são realmente de uma pessoa moradora de rua, já que no brasil existem relatos de vários casos de mendigos que foram queimados nas ruas. A vida do morador de rua é a vida nua ele é o homo sacer1. A vida de um morador de rua sem identidade só importa para que o soberano (poder religioso, político ou jurídico) possa exercer poder sobre alguma vida. A vida do homo sacer só pode ser vida a partir do momento que o soberano2 se satisfaça através dela, ela apenas existe para a satisfação de um assassino. Várias obras de Canfield possuem objetos com duplos sentido e também proporcionam uma questão importante sobre os limites da soberania. A cadeira é um objeto importante do arquivo do artista, assim como várias de suas obras ela também possui uma história. Como médico, muitas vezes fez atendimentos domiciliares. Por vezes, recebia a chamada de casos de suicídio, muitos deles eram de homens enforcados. Toda vez que penetrava na cena, ao lado do corpo, havia uma cadeira que estava lá revirada ou caída. Aquele objeto era um cumplice, a pessoa morria e a cadeira ficava, o objeto se tornava um outro corpo, ela era a única companhia na hora da morte, o objeto de apoio que participava de toda a ação. A cadeira, um objeto tão banal, servia como um dispositivo


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CÚMPLICE | instalação | cadeira, fita adesiva , corda | acrílica sobre papel


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CINZAS DE UM MORADOR DE RUA | instalação | objetos


47 do enforcamento, como se fosse o gatilho de uma arma. No hall FUNDAÇÃO CULTURAL BADESC, a obra mostra uma cadeira pendurada como um corpo enforcado e as fitas amarelas como as fitas de isolamento da cena de suicídio. Todos os elementos unidos formam os resíduos cenográficos da morte. Tanto as cinzas, como as cadeiras são corpos vestígios, através deles ressoam um eco da morte. Quando refletimos sobre o suicídio, a questão dos limites sobre a vida e a morte se coloca, sendo que se tal limite, pode ou não ser ultrapassado. O fato de podermos ou não escolher quando vivemos e quando morremos apresenta paradoxos e tabus. Tais decisões são controladas pelas interdições. Esse é o que Bataille aponta A proposição: ‘o interdito existe para ser violado’ deve tornar inteligível o fato de que o

interdito no caso do homicídio, embora universal, em parte alguma se opôs à guerra. Estou mesmo certo de que, sem o interdito, a guerra é impossível, inconcebível! (BATAILLE, 1987, p. 60). As obras de Canfield trazem à tona as interdições e transgressões a respeito da vida e morte. Esses objetos deixam o resíduo da morte, a vida se vai mas sempre fica o rastro do instante. Esses resíduos nos fazem pensar em uma relação sobre a própria morte e sobre aqueles corpos que se pode matar sem cometer homicídio e daqueles que se deve salvar a todo custo.

NOTAS 1

O termo Homo sacer é desenvolvido pelo filósofo Giorgio Agamben. O termo corresponde a seguinte descrição “E é essa vida nua (ou vida “sagrada”, se

sacer designa acima de tudo uma vida que se pode matar sem cometer homicídio), que, na máquina jurídico-política do Ocidente, funciona como limiar da articulação entre zoé e bios, vida natural e vida politicamente qualificada.” (AGAMBEN, 296 p. 2017). 2

A soberania em Agamben não parte apenas da esfera da política, mas ela também se estende a uma questão sagrada, para ele: [...] soberana é a esfera

na qual se pode matar sem cometer homicídio e sem celebrar um sacrifício, e sacra, isto é, matável e insacrificável, é a vida que foi capturada nesta esfera [...] a sacralidade da vida, que hoje se pretende fazer valer contra o poder soberano como um direito fundamental em todo o sentido, expressa na origem, ao contrário, precisamente a sujeição da vida a um poder de morte. Sua irreparável exposição na relação de abandono (AGAMBEN, 2002, p. 91.

BIBLIOGRAFIA AGAMBEN, Giorgio. O uso dos corpos. São Paulo: Boitempo, 2017. AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: O Poder Soberano e a Vida Nua I. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. BATAILLE, Georges. O erotismo. Porto Alegre: L&PM, 1987.

KETHLEN KOHL Doutoranda em Teoria e História da Arte, na Universidade do Estado de Santa Catarina (CEART-UDESC). Mestre em Teoria e História da Arte pela Universidade do Estado de Santa Catarina (CEART-UDESC), com bolsa CAPES (2016-2017). Pós-Graduação Especialização em História da Arte pela Universidade da Região de Joinville - UNIVILLE. Graduada em História pela Universidade da Região de Joinville - UNIVILLE. Graduada em Artes Visuais pelo Centro Universitário Leonardo da Vinci. Atuou como professora de História e Artes do Ensino Fundamental no Município de Joinville e do Ensino Médio no Estado de Santa Catarina


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SÉRGIO CANFIELD Elmadson M. Almeida


49 A obra do artista Sérgio Canfield traz de forma poética, uma nova leitura sobre um dos grandes temores da existência, a morte. O autor aborda a diversidade do corpo humano, nos aproximando, de certa forma, ao apresentar na exposição às varias faces da morte, dentre eles o desconhecido e a existência. No livro sagrado Bíblico, em Eclesiastes 7:2, Salomão aborda o contato com a morte para um aprendizado presente. Mais vale ir a uma casa em luto do que ir a uma casa em festa, porquanto este é o fim de todo

ser humano; e deste modo, os vivos terão uma grande oportunidade para refletir (Bíblia King James Atualizada). O Rei destaca questões primarias para a evolução intelectual, como: Qual nosso papel? Para onde vamos? Um passo para o desconhecido. A última linha. As fantasias criadas sobre o que virá. O final da existência, ou passagem para o pós-morte, remete e instigue a criação de sua arte, isso inclui os quadros, objetivos, pinturas e montagens. Uma experiência que nos faz refletir sobre o papel em sociedade. Dentre as obras do artista, destaco o vídeo que apresenta um corpo humano imóvel sobre o qual há um besouro. Com as patinhas levantadas e moventes, parece se debater, repetindo varias vezes o Estertor, que é o som produzido por todo animal antes da morte. Observa-se um modo, aparentemente, desconfortável que captura esse “último suspiro” em vida, o ponto final. Convém destacar que a utilização de insetos em montagens sobre fotografias com mulheres, preferencialmente despidas, consiste numa recorrência do artista e permite uma conexão entre o corpo humano e o animal. A junção entre o belo da fotografia e a morte, gera um uma terceira imagem. A imagem do morcego dissecado em colagem sobre o papelão, com o desenho de um humano com as vísceras à mostra aborda novamente a semelhança entre os seres. A aproximação entre os vários corpos mortos persiste em diversas obras do artista. Seria esta uma chamada à reflexão sobre a conscientização do ciclo da vida e a maneira como estamos vivendo? Seria um modo de dizer que a morte não é para ter visto como algo ruim ou feio, mas como parte do percurso e apreciado, como tal? Ah beleza no desconhecido, paz na morte e arte no temor...

ELMADSON M. ALMEIDA Possui ensino-médio-segundo-grau pelo Colégio Olindina Nunes Freire (2000). Atualmente é Aluno da Faculdade Estácio de Florianópolis. Tem experiência na área de Comunicação


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OLHARES | fotografias | 30 x 20 cm


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CARNE, PAPEL, PLÁSTICO: AMARRAÇÕES DE UM MÉDICO ARTISTA Caroline Garlet de Oliveira


53 Espetar com uma seringa a carne humana. Cortar finas e grossas peles, abrir corpos, tatear o seu interior, ver o que há por dentro, reconhecer o sangue vivo e escuro, sentir nos dedos as tripas, e, perceber ‘de perto’ os caminhos que as substâncias ingeridas percorrem em nossas tubulações. Pele, carne, cabelo, pelo, osso, sangue, veia, intestino, saliva, urina, fezes, secreção, corpo. O que é corpo? O que é você corpo? Corpo é tanto natureza como cultura, percepções e entendimentos sobre ele estão cruzados por esses ambos universos de saberes que, inclusive seus próprios limites e distanciamentos se confundem. No dia a dia, mergulhados em discursos e culturas, formulamos ideias e afetos sobre nossos corpos, atravessados pelos ambientes que frequentamos. Canfield, envolto em sua profissão, relaciona-se muito proximamente com os corpos, com a matéria, substância, textura, cheiro, cores, onde pratica todos os procedimentos citados anteriormente. Para ele todos os corpos seguem um padrão, onde ele aplica da mesma forma seus saberes e técnicas. No entanto, cada pessoa vivencia de uma maneira muito particular seu jeito de ser corpo. Por exemplo, uma bailarina, um biólogo, um cristão, um Hare Khrishna, uma professora de Educação Física, professor de matemática, uma mãe em gestação ou amamentando, um programador ou um médico cirurgião lidam diferentemente com o corpo. Para mim, o não dito da profissão de um médico e de seus bastidores surgem no trabalho artístico de Canfield. Ficam evidentes as angústias de ser responsável pela vida de alguém e ter de lidar com a linha tênue entre a vida e a morte e visitar com frequência toda parte interna do corpo asquerosa para alguns, fascinante para outros. Assim, com base nesses pensamentos lanço a questão: se a gestualidade de Canfield tanto em sua profissão quanto em seus trabalhos artísticos é muito semelhante, onde está o artista e onde está o médico? O que distancia um de outro? Pois toda a produção, tanto a manualidade quanto os processos emocionais e psíquicos surgem de um mesmo homem, tanto o fazer médico como o fazer artístico, e ambos se entrelaçam e se complementam. A exposição de Canfield tem despertado reações muito diferentes. Desde alguém que o classifica como psicopata, até quem diga que prefere se consultar com esse médico ao invés dos que não se expressem. De uma criança que sentiu medo nas obras expostas no térreo, as anêmonas e as pinturas, até uma menina que vasculhou trabalho por trabalho e queria tocar em tudo o que há no Laboratório de Curiosidades, principalmente na cabeça do pássaro morto. Houve muitas leituras como se esse artista-médico fosse um doido, um perturbado. Ao meu ver, ele é um corajoso. Penso que ele, assim como todo ser humano na nossa cultura, tem seus muitos fantasmas e pulsões, no entanto coloca para fora de uma forma muito saudável. Penso que vivemos em uma sociedade onde existem normatividades em nossas formas de expressão, e assusta tudo que foge destas. Talvez este seja o ponto que impacta quem visita a exposição, um profissional da saúde se expressando livremente, de uma forma visceral, sem muitas rédeas e correntes. Aqui surge uma distância entre Sérgio artista e Sérgio médico. O aventureiro, pesquisador, explorador e


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SEM TÍTULO | acrílica sobre papel


55 curioso. E o calculista, seguidor das regras, técnico e responsável. Conforme suas palavras, na medicina os erros são previstos e evitados. Todos procedimentos têm um mapa de orientação, há protocolos a serem

seguidos. Contudo, a arte permite erros e experimentações, possibilitando que do acaso surjam produções surpreendentes. Dentre todas as visitações surge uma pergunta muito recorrente: O que significa essa obra? Nem todas as obras são nomeadas pelo artista, assim, é difícil pensar que todas têm um significado já dado pelo artista. Cheguei ao pensamento de que muito se busca um significado na arte, como algo que venha pronto, ao invés de aproveitar o momento para olhar para o que a obra nos diz, como nos sentimos olhando para aquilo, quais memórias essa combinação de materiais e gestualidades nos despertam, antes de termos uma resposta certa e fechada sobre o que é isto. Aqui lanço a pergunta, o artista disse o que ele sente? E o que ele diz, é a mesma coisa que é escutada? Porque não nos conceder a liberdade de criar nossas próprias respostas? Por que a necessidade de saber o que o artista quis dizer? De onde vem essa prática e o que isso quer dizer sobre o momento em que estamos na sociedade? Sobre nossa autonomia de nos permitir criar respostas. Se nos deslocarmos a escola e a educação tradicional, percebemos que é comum recebermos respostas prontas no lugar de termos autonomia de criar nossas próprias ideias. Nunca é validado o que pensamos e sim o que os professores nos dizem e o que está nos livros, só dizemos a resposta certa se ela confere com o que o livro diz. Pergunto-me também sobre a necessidade de saber o que é isto. Será que um dia saberemos? Será que ele mesmo sabe? Penso que existe alguns abismos, entre o que sentimos, o que queremos dizer, o que dizemos e como isso é interpretado. Não temos controle dos significados do que colocamos no mundo. Talvez mesmo com as respostas exatas, com os trabalhos intitulados, a significação vai depender mais de quem está interpretando do que de significado contido na obra. Percebo o trabalho da mediação cultural muito próximo da prática de professora, que seria o de mediar saberes. Como eu mediadora posso possibilitar um conhecimento para quem eu converso, sem amarrar as ideias, sem cerrar o processo criativo? Como contribuir para que o caos da vida seja, ao menos em parte, apreendido? Como posso auxiliar numa elaboração de significações livres?

CAROLINE GARLET DE OLIVEIRA Graduada em Comunicação Social - Publicidade e Propaganda pela Universidade Estácio de Sá (SC) (2013). Mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina (2016). Cursando Licenciatura em Artes Visuais pela Universidade Estadual de Santa Catarina (término previsto para 2020).


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PHYSALIAS | ilhoses, fitas VHS | 260 x 80 cm


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PHYSALIAS | ilhoses, fitas VHS | 260 x 80 cm


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SEM TÍTULO | Não objetos


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EXPOSIÇÃO ‘CORPOS VINCULANTES’ DE SÉRGIO CANFIELD Sofia Amorim


61 Durante os dois meses em que mediei a exposição tive a oportunidade de adentrar num cenário artísticovisual em diferentes níveis pela ótica de uma estudante de artes visuais - e também artista. Nunca antes eu havia conhecido um artista da atualidade que trabalha como médico, paralelamente. As amarras impostas pela sociedade ocidental e capitalista que convivemos, alinhada à moral cristã, facilmente prende o artista a apenas uma visão de mundo. Felizmente, não impediu Sérgio Canfield de equilibrar dois mundos tão opostos e mesmo assim tão vinculados. A desconstrução de um pensamento (ou de um conjunto deles) é muito mais complicada que o inverso. Foi esse processo de desconstruir imagens, limites e a própria razão que me fez admirar as obras de Canfield. Para além do que é possível enxergar a olho nu, o que me fascina são os fatores interior e anteriores a suas obras. ‘Interior’ porque, ao olhar uma obra deste artista é inevitável sentir-se observado e questionado pela mesma, explorando fato ou imagem que se assemelhe a ela, um movimento inconsciente do observador para tentar compreendê-la. E ‘anterior’ devido ao meio empírico pelo qual ele realiza sua produção. Durante as aulas práticas da faculdade, costumo me questionar de onde partirei ao iniciar um projeto, esforçando-me racionalmente em um espaço de tempo planejado, reservando o resto do tempo para me dedicar a outras atividades. Aprendi com Canfield que não podemos limitar nossa mente e separá-la como uma caixa de sete buracos.

SOFIA AMORIM Cursando Bacharelado em Artes Visuais na Universidade do Estado de Santa Catarina.


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NEED YOU | mickey, papel | 60 x 30 x 30 cm


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SEM TÍTULO | cabeça de cerâmica | 30 x 20 x 20 cm

SEM TÍTULO | madeira | dimensão variável


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DA INATUALIDADE DA ARTE DE SÉRGIO CANLFIELD EM TEMPOS DE CÓLERA Rogério Rosa


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Faz-me o estro dizer formas em novos corpos mudadas. Ovídio, Metamorfoses O real cotidiano tende a arrancar de nós a humanidade, ou seja, a capacidade de sofrer, desejar, inventar, criar, ousar, subverter. O que pode a arte diante desse real imponderável? Desestabilizar nossas crenças é uma possibilidade. Assombrar nossas fantasias é outra. Provocar repulsa, pavor, júbilo, dor e gozo faz parte do estado da arte. Nos afeta no sentido mais ancestral que essa palavra carrega. Aquele que do latim remete a affectus, essa disposição da alma que toma posição diante do que vê, assim como também remete à disposição da obra que exige de quem dela se aproxima uma tomada de posição. A arte de Sérgio Canfield afeta quem se dispõe espreitá-la. Dos corpos desfigurados em tela de fundo preto às sobreposições de animais exumados em fotografias, a sensibilidade do artista derrama vestígios da atividade profissional que exerce como médico/cirurgião. Mais que isso, faz dos objetos, das histórias e experiências que exerce na medicina o laboratório de onde jorra sua criatividade artística. Isso é um jeito peculiar de ser artista. E de ser médico. Sérgio Canfield não teme, nem recusa os monstros que povoam seu cotidiano. A arte humaniza o médico, enquanto a medicina assombra o artista. Um salva o outro. Assombro criativo que faz com que desloque o sentido originalmente atribuído às coisas. Um livro perde a função de leitura, um pássaro perde a capacidade de voar, uma tela pode ser uma urna funerária, assim como tubos de pvc aspiram ser vísceras. Poderíamos pensar na taxonomia dos seres criados pelo artista: a) os que rastejam como os vermes onipresentes; b) os que anunciam o vento, como os seres produzidos com fitas magnéticas; c) os que zombam do expectador como um cavalo de troia com pênis gigante; d) os impedidos de voar, como um livro com as folhas cravadas por parafusos; e) os que se submetem a experiências para prolongar a beleza como as bonecas com umas seringas espetadas na cabeça substituindo o cabelo; f) os seres alados produzidos pela junção de asas de animais e insetos sobre corpos esculturais sequestrados de catálogos de artistas; g) os que não resistem ao mundo real, como os enforcados e mutilados; h) os que assombram o expectador com olhos agonizantes, como o olhar dos seres que nos espreitam em seu estranho laboratório de curiocriatividades; i) os deformados; j) Et cetera... São infinitas funções conferidas aos objetos, sujeitos e valores. O artista não se contenta com o literal. Sua capacidade de metáfora, ou seja, de transferir as coisas de lugar, amplia o mundo, aumenta a realidade e não sucumbe ao rosa para meninas e ao azul para meninos. Daí provém sua contemporaneidade. Aquela capaz de ser inatual em tempos de cólera. Um tempo dominado pela cegueira das certezas e das verdades absolutas. Expressão de um artista/médico que não se contenta em distribuir receitas prêt-à-porter. A inatualidade de suas obras, feitas para apaziguar os monstros que povoam o real de sua profissão, tanto quanto o self do artista, se choca, e ao mesmo tempo se harmoniza, com a realidade/contexto do nosso presente. Vivemos um momento de aceleração do tempo histórico e da produção sem fronteiras, sejam elas morais ou mesmo humanitárias. E mais do que a mecanização da rotina, experimentamos uma fase em que o cotidiano, sobretudo o do trabalho,


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GABRIEL | esqueleto plástico,vidro, ossos e penas | dimensão variável


67 nos coloca não tanto na condição de homens-máquina - como da época da Revolução Industrial-, mas de narcisos em era pós-humanismo. A regra é ficarmos encapsulados em nossa própria imagem. Fazer dos nossos desejos - cada vez mais normatizados - a referência única para se posicionar, julgar o outro e o mundo. Alteridade é algo que passou a ser vista como doutrinação esquerdista. Se um pensador disse certa vez que a história se repete primeiro como farsa, depois como tragédia, hoje é possível dizer que ela nos surpreendeu como tragédia mediocremente falseada. E isso nos tomou de tal forma que parece não haver saída, pois até os fatos brutos foram colocados sob suspeita. Agora eles são passíveis de “novas interpretações”. Nessa suprema relativização do relativo a imaginação e os desejos viraram alvos fundamentais das políticas e políticos de plantão. Sejam eles os que agem na virtualidade, sejam os que ocupam postos de autoridade capazes de instituir políticas oficiais, ou pagar por bombardeios diários de fake news nos dispositivos eletrônicos que viraram órgãos vitais em nosso sistema imuno-tecnológico. A arte de Sérgio Canfield não se faz para o mercado. Não se fez para a militância política, social ou cultural. Não cedeu aos imperativos do chamado circuito das artes. Nasceu para aplacar os monstros que povoam sua sensibilidade no exercício da medicina. Fiel a si e aos seus tormentos. Obra de arte coerente com a perspectiva artística que construiu a partir dos seus estudos, observações e intuições. Trabalho construído em décadas de reclusão, de viagens, de anotações e inquietações sobre os sujeitos, atitudes e experiências de perda, morte e expectativas. Arte inútil e inatual. Sem fins, nem ambições, mas embebida, estética e formalmente, nas contradições e dispositivos de controle do tempo presente. Inacabada como tudo que nos cerca, mas não menos criativa e potente. Não se trata de arte engajada, mas arte capaz de afetar. Afeto cuja dimensão política se faz presente. Creio que à sua obra se aplica a frase dita por Ferreira Gullar. A de que a arte existe porque a vida não basta.

ROGÉRIO ROSA É professor e pesquisador de História na Universidade do Estado de Santa Catarina, credenciado ao Programa de Pós-Graduação em História do Tempo Presente e Diretor da Associação Nacional de História – Seção Santa Catarina.


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O LABORATÓRIO EM QUE OS EXPERIMENTOS GRITAM Luciana Knabben


69 Ao abrir a porta escutamos aquele ruído estranho, como se as ferragens não fossem mais as mesmas. Estamos diante de uma sala retangular longa, repleta de estantes, mesas com objetos, coisas sobrepostas e não temos mais dúvida: estamos diante de um laboratório concebido por Sérgio Canfield. Com formação médica, especialista em gastroenterologia, não trata de doenças relacionadas à digestão e ao aparelho digestivo, sendo que ele é também cirurgião. Além de toda essa formação e ocupação, produz objetos estranhos no ateliê situado no piso superior de sua casa. Após passar dias inteiros operando pessoas e escutando histórias absurdas de pacientes reclamando de dor, física ou de outra natureza, em seu tempo livre Sérgio Canfield entra em seu ateliê para criar objetos, pinturas, desenhos e fotografias. Parte deste material foi apresentado durante dezembro de 2018 e início de 2019, quando sua produção ocupou todos os espaços da Fundação Cultural Badesc, na Exposição Corpos Vinculantes.

Lugar incomum O laboratório é o lugar onde Sérgio Canfield pode experimentar formas estranhas, abusar de gestos como espetar bonecas, colar formas e dissecar insetos – coisas que faz desde criança. Com gosto especial por colocar objetos em vidros transparentes e classificá-los, o cientista médico tem sua imagem presente no procedimento do artista que classifica, nomeia e disseca a matéria viva ou morta. Não temos dúvida: ao entrar naquela sala do segundo pavimento, todo aquele mundo de anotações e descobertas é mais um experimento, uma sala de um mundo de imagens que dificilmente são digeridas pelo espectador comum. Algumas obras lembram um pouco o sistema digestivo, como uma caixa da qual saem mangueiras corrugadas usadas na construção civil para abrigar a fiação da instalação elétrica. A quantidade de objetos na sala é imensa, tornando complexa a ação de descrevê-los individualmente, mas é possível descrever a sensação de entrar nesse laboratório, e é o que fica na nossa memória. O laboratório de coisas estranhas tem cabeças de boneca, alfinetes espetados, pontas de lanças, coisas coladas, tudo isso no mais completo absurdo. Quando estamos neste lugar devemos impedir que a razão nos conduza para podermos entrar no mundo dos sonhos. Entrar nesse laboratório é como estar diante de um filme de Jan Svankmajer, artista nascido em Praga. Seu trabalho é abordado como surrealista, sendo que produz filmes em stop motion em que lugares estranhos aparecem para os objetos que passam a ter vida. A insanidade presente em seus filmes nos dá uma certa compreensão muito intensa do absurdo, e são essas formas que aparecem no laboratório de Sérgio Canfield. No manifesto surrealista, André Breton, investiga o funcionamento real do pensamento em forma de um automatismo psíquico puro e ausência do controle da razão. Podemos perceber esse procedimento na obra do cineasta Jan Svankmajer, que teve suas primeiras influências na infância, no teatro de fantoches que ganhou no Natal. Sérgio Canfield, também foi tocado por essa atmosfera, numa infância marcada por procedimentos de abrir insetos e colocar objetos e seres em


70 potes de vidros. Ambos – o artista e o cineasta - se expressam numa linguagem em que o automatismo psíquico comanda a ação, com imagens surreais remetendo a sonhos e pesadelos. Em Jan Savankmajer, nos stop motions , encontra-se a combinação de animação de atores reais com imagens que redimensionam o mundo mágico de Lewis Caroll em Alice, por exemplo, ou em filmes nos quais, na dimensão de travar um diálogo, três cabeças de diversos materiais devoram-se incessantemente. Além de sermos devorados por suas imagens, no laboratório de Sérgio Canfield, nos encontramos perdidos no caos dos diversos materiais. De qualquer lugar de onde olhamos, um ser surge encarando-nos de forma estranha. O universo onírico entre sonho e pesadelo está presente na obra desses dois artistas, de formas muito diferentes, mas com uma obsessão em comum: explorar o universo das coisas que fogem da razão. Um com quase 80 anos de produção (Jan Svankmajer) e outro com 20 anos de produção, em seu próprio laboratório. No entanto, não cabe aqui discutir o tempo de produção de cada um: buscamos detectar suas características mais oníricas.

A sala que contém o sonho Na abertura da Exposição Corpos Vinculantes, Sérgio Canfield apresentou seu processo como um ato necessário ao cotidiano, a partir de uma profissão que não admite erro. O menor que seja seu deslize, na cirurgia ou na medicação, pode matar um paciente. Ele encontrou na arte sua forma de extravasar e errar. Mas será que podemos errar na arte? Quando será que a arte erra? O laboratório de Sérgio Canfield é um acúmulo de objetos que deram errado? Mas se deram errado por que a porta range ao entrarmos, como colocamos no início do texto? O fato de a porta ranger, no laboratório do segundo pavimento do Badesc, é apenas uma sensação que temos ao entrar no mundo onírico, é como se a porta estivesse

rangendo apenas para nós, ou como se os objetos nos mirassem. É como se o som pudesse nos dar uma pista para distinguir entre realidade e sonho. Mas assim como os objetos, esse ranger da porta está apenas na nossa imaginação. Ficamos presos ao mundo onírico que o laboratório nos propõe. Sendo assim, mais perguntas inquietam nossa mente: por que o cheiro de formol nos domina de forma intensa e ficamos levemente nauseados sem saber para onde olhar? A sensação de que ali há morte, e ela está diante de nossos olhos com delicadeza tão profunda que chega a ser constrangedor (fetos, morcegos, insetos estão em vidros em conserva nas prateleiras em formol). A sensação da morte bate no nosso ombro e diz: estou aqui ao seu lado. Mais uma vez, nesse laboratório, estamos encurralados entre a mente e a imaginação, assim como a porta que ranger e a morte nos passa a sensação de tocar nosso ombro e nos dizer que está presente naquele lugar.


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REFLECTIVAS | espelho com moldura, objeto plástico, fita adesiva | 25 x 20 x 5 cm


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O delírio Mas antes mesmo de raciocinar sobre este estar dentro da experiência de Sérgio Canfield, podemos considerar as pistas que o artista nos dá, através dos bilhetes de anotações que nos dão informações irônicas sobre a vida, e uma infinidade de desenhos nos dão a direção certa: sim, estamos perdidos. Podemos fugir daquele lugar – o laboratório – mas as formas que parecem um intestino de plástico feitos de mangueira corrugada amarela começam a sair da caixa (mais uma sensação estranha). Diante de todo este nosso delírio, temos apenas uma escapatória: deixar aquela voz que escutamos sair da nossa mente, ela pode ter vindo de um anjo que fugiu da gaiola de pena (outra obra que está presente na prateleira do laboratório). Temos outra sensação: um vento percorre o laboratório, entrando pela janela que se abre, e a obra composta de um Mickey Mouse de borracha esmagado por uma prensa nos olha devagar. Não precisamos nos preocupar, ali é apenas o laboratório do Sérgio Canfield, nada ali deu errado, está tudo certo e tranquilo. Mas ao tentar sair daquele mundo onírico, percebemos que estamos diante de um morcego, preso em alfinetes, a fixar em nós o seu olhar. Numa tentativa de questionar quando a arte dá certo, estamos com todos esses delírios diante de um lugar específico. O modo como entramos no laboratório e percebemos o som, o ranger da porta, o vento entrando pela janela nos dão a dimensão de que tudo surge dos objetos de Sérgio Canfield, de todo o seu mundo onírico. A morte a nos tocar o ombro é apenas uma impressão. Logo, a arte que não deu certo pode nos envolver numa teia de morte-vida, e são as obras do Sérgio Canfield que fazem esse caminho. Líquidos vermelhos, seringas, comprimidos, potinhos, mais alguns potinhos. Está tudo ali, devidamente armazenado, todos aqueles gestos contidos nos objetos e todas aquelas anotações sugerindo mais algumas pistas de localização para sair do delírio, levam-nos a compreender que estamos diante de algo semelhante a cena de um filme surrealista. Estamos no laboratório de Sergio Canfield, onde todas as tentativas de errar e liberar a tensão do dia a dia da medicina deram certo. Mas não estamos falando de um circuito artístico com curadores e críticos vestidos em guarda-pós brancos, com luvas estéreis e livros de história da arte debaixo do braço; estamos falando da sensação de entrar neste acúmulo material de objetos estranhos e deixar a memória e o mundo onírico nos levar. Não é possível entrar naquele lugar e sair ileso, intocado, não ter uma imagem colada na mente a ruminar: por que este inseto não sai de mim, por que não paro de me coçar? Sérgio Canfield faz sua arte em forma de natura naturans, ou seja, o status criativo da natureza, funcionando como élan vital que produz vida ativa no processo. Mas o que produz vida no processo são objetos que tratam da morte. A morte está ali evidenciada em forma de vida. Vida de fantasmas, vida de insetos, vida de acúmulo.


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PANDORA | caixa de madeira e tubos de plástico | 60 x 50 x 40 cm


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LABORATORIO


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Filme-objeto O que Sérgio Calfield nos propõe é um diálogo com seus objetos, mas estes não são mudos, eles são dotados de uma fala que vai além da sua aparência. E é nesse aspecto que podemos aproximá-lo do cineasta tcheco Jan Svankmajer. Com quase oitenta anos, o cineasta propõe filmes nos quais o absurdo é convenientemente aclamado. No filme, móveis experimentam uma tarde agradável no parque, cadeiras jogam futebol e um imenso guarda-roupa aproveita o sol. Na exposição, surgem vassouras de pérolas, sutiã em forma de armadura, cabeças de cerâmica com canos acoplados à boca. O cineasta Jan Svankmajer não apenas resume seu trabalho cinematográfico numa animação tcheca: seu acervo inclui obras com uma dimensão surrealista que refresca a aversão na pessoa civilizada. O cineasta tem trinta e sete filmes que são uma mistura de longa, curta e animação. E o material para a animação, de preferência com ou sem bonecas, inclui: barro, resíduos apodrecidos ou pedaços de carne. Os atores são colocados em ação como se fossem bonecos. No caso de Sérgio Canfield, os atores são os espectadores; o material não é apenas o resto: é escolhido meticulosamente pelo artista. O que pode aparentemente surgir como um diálogo entre Jan Svankmajer e Sérgio Canfield é a obsessão no modo de fazer. Fazer sem ter um fim específico além de cumprir sua própria obsessão. Nos filmes daquele, ficam aparentes os bonecos nervosos; nos objetos deste, a aparência de que seu laboratório pode não ter um fim: os seres que ele criou podem continuar a multiplicar-se. Ambos atribuem sua obra ao subconsciente: tanto o surrealista tcheco, quanto Sérgio Canfield passam a ideia de que viver nas proibições da sociedade racional não é possível, sempre há algo que sobra. O trabalho é preenchido de adegas escuras e estranhas fantasias sexuais; objetos inanimados se insurgem contra a sociedade. Para o artista da exposição, a permissão para errar na medicina o faz criar seres e criaturas que vivem entre o mundo do sonho e da imaginação. Somos convidados a entrar neste diálogo e nos perguntar: onde está o erro? Quando a obra de arte está errada, se a obra é resultado ou demonstração de que o artista precisa fazer até acertar? Quando o artista acerta? Será que o medo de errar faz o artista criar sem parar, como uma obsessão?

Aquele objeto funciona? Sem medo de errar, Sérgio Canfield erra muito bem, porque este errar é o alívio para seus acertos do dia a dia. Observamos a obsessão clara em suas obras, para compensar o fato de que na medicina não se pode experimentar, sempre se tem de acertar. No caso da arte, quando se erra muito bem, pode-se ter uma sensação de morte e vida. A arte que acerta pode conduzir-nos para outro lugar, para outro tempo, referenciar-nos a outros artistas, levar-nos a escutar ruídos e vozes. A arte que perturba o


77 ■ JAN SVANKMAJER Conspirators of Pleasure, 1996 | animation | Fonte: Jan Svankmarjer

■ JAN SVANKMAJER Objetos, 2018 | Exposição Corpos Vinculantes. Fundação Cultural Badesc | Fonte: Acervo pessoal


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SEM TÍTULO | Não objetos


80 espectador e a obsessão podem construir um método operatório dos artistas, mas a forma como a ação é articulada é que faz uma obra errar muito bem. É no ato de repetir o erro inúmeras vezes que as obras de arte criam vida, criam sensações e criam também pesadelos. As obras podem não atingir determinadas pessoas: enquanto para alguns entrar no laboratório do artista e escutar vozes, sons e olhares é uma tentativa de arte que funciona, para outras pessoas entrar no laboratório é não sentir nada. Mas esse procedimento entre diferentes pessoas não legitima o que é arte ou não. Estamos diante de uma questão: o que, ou quem legitima o que é arte ou não? Quando a arte acerta ou erra?

Bonecos Amassados Enquanto o trabalho do cineasta Jan Vankmajer trata de um contexto social tcheco, numa técnica de vanguarda e de visão da humanidade, o laboratório de Sérgio Canfield fala por si mesmo, de suas memórias e seus pesadelos; seus objetos estranhos são o fator que separa os silenciosos bonecos amassados dos espectadores dos que ali estão a percorrer as prateleiras do segundo pavimento da Fundação Badesc. Para o cineasta da Tchecoslováquia comunista, a censura desempenha um papel no seu trabalho; já a obra da exposição não sofre nenhum tipo de censura, porque é naquele lugar – o laboratório – que se pode encontrar a censura, dentro de cada espectador. Objetos de fetiche táteis em forma de esculturas? Em ambos – no artista e no cineasta ¬– os objetos surgem através de experimentos do próprio gosto. Objetos, esculturas, bonecos que recebem um lugar importante. Bichos de pelúcia presos em luminárias cirúrgicas, no caso do médico-artista. Em ambos, o relacionamento com o espectador é tratado de forma específica: através de inúmeras combinações inusitadas de objetos que formam novos seres. Em sua obra a morte aparece não apenas no mundo da fantasia, mas na ilusão de que um inseto a qualquer momento poderá desprender-se dos alfinetes em que está preso e sair voando. Cada espectador pode entrar no laboratório e sentir o frescor do voo do inseto que se desprendeu do objeto de determinada maneira; outros podem ouvir o grito do boneco amassado. Entre esse mundo onírico do cineasta Jan Svankmajer e o de Sérgio Canfield, apenas ao espectador é permitido apropriar-se desses absurdos: depende da vontade de cada um.

LUCIANA KNABBEN Possui graduação em Artes Plásticas pela Universidade do Estado de Santa Catarina (2006), graduação em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal de Santa Catarina (2001), especialização em Linguagens Visuais Contemporâneas pela Universidade do Estado de Santa Catarina (2003) e mestrado em Artes Visuais pela Universidade do Estado de Santa Catarina (2015). Tem experiência na área de Artes, com ênfase em Artes Plásticas.


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APOFENIA | acrílica sobre tela | 145 x 150 cm


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CABEÇAS | acrílica sobre papel | 65 x 90 cm


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SEM TÍTULO | plástico | 10 x 10 x 10 cm


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O ENCONTRO COM A OBRA DE SÉRGIO CANFIELD Laureci Nunes


87 Uma invasão é a melhor palavra para descrever o efeito o encontro com a produção do artista Sérgio Canfield. Os objetos, as figuras, as imagens... tudo fora da ordem habitual – inusitada mistura entre o inanimado e o vivo. A vida e a morte atravessadas: diferentes universos entrelaçados produzindo uma inquietante nova apresentação. Na biblioteca, livros para não serem lidos e sim vistos. O mundo simbólico transformado em pura e criativa forma. Pinturas com recortes de fotos colados sobre os olhos e as bocas, enxertos concretos sobre os buracos do corpo dando efeito de real. O olho que olha aquele que vê – instante em que o observador se torna o próprio quadro 1, como objeto do olhar do Outro, prato cheio para o surgimento do afeto de angústia, afeto que se produz como efeito do encontro com o real. No laboratório, onde o minucioso ajuntamento de tralhas 2 – suas coleções – mostra as invenções com a mistura do heteróclito, ressaltam-se a ironia, a indignação e a posição crítica de Sérgio. Jacques Lacan 3, acolhendo o que a arte pode ensinar à psicanálise, ao tratar da sublimação nesses dois campos, distingue o objeto da arte do da psicanálise. No primeiro, trata-se de um ponto de fixação imaginária que dá satisfação a uma pulsão – o objeto aí não é a Coisa 4. Na obra de arte, o objeto pode ser elevado à dignidade da Coisa e o exemplo que Lacan usa é a coleção de caixas de fósforo de Jacques Prévert: a surpresa, o enigma produzido pelo encontro com o objeto fora do uso previsto, longe de sua função banal, faz vacilar a posição do sujeito, permite a elevação da Coisa para além do objeto. Trata-se de elevar, que é algo diferente do exibir e do mostrar; significa introduzir uma borda significante em torno do real, pois a criação artística faz surgir o objeto sobre

o vazio da anulação significante como signo dessa mesma anulação e de seu inevitável resíduo5. Essa presentificação-ausência da Coisa no objeto é o que atrai também o interesse do psicanalista nas maçãs de Cézanne, nos sapatos dos camponeses ou nas garrafas de Giorgio Morandi.

Sirvo-me da medicina para sobreviver enquanto que da arte para viver , escreve Sérgio. Ele também assinala 6 que desenha, monta, recorta, pinta ou fotografa tentando resolver algum problema – relativo ao comportamento humano, acrescenta. Diferentemente de seu fazer profissional, que não admite erro, no qual se exige que seja preciso – já que se serve da técnica cirúrgica –, na arte, ele pode ou gosta de errar: do erro pode surgir um novo trabalho, uma peça nova. Lacan, ao se deparar com a obra de James Joyce, altera a grafia do sintoma para sinthoma 7. Seu extenso estudo sobre a vida e a obra do artista fez com que Lacan concluísse que o tratamento que Joyce deu ao irredutível de seu gozo seria o melhor a ser esperado do trabalho de um psicanalista. Lacan destaca o savoir y faire de Joyce, que, retirando sentido da língua inglesa e a transformando ao emendar palavras, produziu uma obra destinada a ser lida em voz alta, redirecionando a palavra ao estatuto fonético. A sobredeterminação infinita de sentido deu à luz um texto sem sentido algum, como no Finnegans wake. O que estaria predestinado a ser lido só se entrega a ser ouvido, ou visto, como os livros de Sérgio. O encontro com o absolutamente contingente e absolutamente necessário


88 produz o singular de cada um, o sinthoma . O trabalho sobre, com e a partir do irredutível do gozo, na medida em que transformado em objetos oferecidos à cultura no ateliê-garagem 8, poderia ser uma forma de falar dos impasses que o artista evoca em seu fazer, no processo da obra.

NOTAS 1

LACAN, J. O Seminário. Livro 11 – os quatros conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: JZE, 1985, p. 103-115.

2

Uma das nomeações dadas pelo artista.

3

LACAN, J. O Seminário. Livro 7 – a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: JZE, 1991, p. 127-144.

4

Um dos nomes do real, como impossível de representação.

5

RECALCATI, M. As três estéticas de Lacan, in: Opção Lacaniana – Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, n. 42, fev. 2005, São Paulo, p. 98.

6

BADESC. “Roda de conversa sobre a exposição de Sérgio Canfield”. Florianópolis, 09/02/2019.

7

LACAN, J. O Seminário. Livro 23 – o sinthoma. Rio de Janeiro: JZE, 2007.

8

Correlação feita por Roberto Vargas na Roda de Conversa, mencionada acima.

LAURECI NUNES Psicanalista, membro da Escola Brasileira de Psicanálise e da Associação Mundial de Psicanálise, diretora geral do Instituto Clínico de Psicanálise de Orientação Lacaniana de Santa Catarina.


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SEM TÍTULO | acrílico, inseto, metal | 10 x 15 cm


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SEM TÍTULO | cabeça de crocodilo e plástico | 40 x 16 cm


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TOY ART | múltiplos


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TOY ART | múltiplos


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SOBRE UM LABORATÓRIO DE IMAGENS: PERTURBAÇÕES E COMPULSÕES ENTRE ARTE E MEDICINA Thays Tonin


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Perturbações Objeto e não-objeto, obra e não-obra, ateliê e consultório, artista e médico. As produções de Sérgio Canfield habitam um espaço dual e dão forma a compulsões várias, encontrando-se e desencontrando-se com o que permeia o fazer artístico . Em suas exposições, como em seu ateliê, transita-se pelo âmago de questões que a arte contemporânea não cessa de colocar: seus processos, seus suportes, suas emergências, suas (des)operações, suas (des)funções, seus lugares, suas heranças, seus herdeiros e assim por diante. Num dos ambientes da exposição “Corpos Vinculantes”, denominado Laboratório , emergem jogos de des-montagem, objetos que destoam entre si e entre os espaços. Trata-se de espaços que pouco consideram as narrativas habituais sobre biografias de artistas, cronologias e fases. Sérgio Canfield dissona. As obras presentes entre os ambientes Galeria, Biblioteca e Laboratório dissonam e ressonam, contra si e entre si, levando o expectador desavisado a quase concluir, erroneamente, que se tratam de exposições distintas, custando-lhe a compreender, justamente, quanto todas são vinculantes. Seus gestos inacabados, seu desinteresse em pensar o suporte antes da obra ou de pensar a Arte como finalidade, nos leva a ver aquilo que a curadora Rosângela Cherem, ao afirmar do artista a sua indiferença quanto ao uso da biplanaridade ou do tridimensional, nominou de impiedosa montagem (CHEREM, 2019). Impiedosa com os críticos, com os historiadores, com os artistas; impiedosa com o público, impiedosa com qualquer um que se encontre naquele Laboratório e se veja, novamente, a refazer as mesmas perguntas que, Ferreira Gullar, em seu texto da década de 1960, destacava. Sua Teoria do

não-objeto destacou aquilo que ainda pulsa nas obras do artista, que as nomeia de maneira homônima ao texto do poeta e crítico construtivista - e não sem razão:

Pode dizer-se que toda obra de arte tende a ser um não-objeto e que esse nome só se aplica, com precisão, àquelas obras que se realizam fora dos limites convencionais da arte, que trazem essa necessidade de deslimite como a intenção fundamental de seu aparecimento. [...] O não-objeto não é um antiobjeto mas um objeto especial em que se pretende realizada a síntese de experiências sensoriais e mentais: um corpo transparente ao conhecimento fenomenológico, integralmente perceptível, que se dá à percepção sem deixar resto. Uma pura aparência. (GULLAR, 1960). Seu fazer incomoda: não porque exista o intuito de perturbar, mas porque perturba a ausência de certos limiares esperados. Dizendo de outro modo, perturbar, disturbar consiste em, transitivamente, transtornar, abalar, interromper, envergonhar, perder a serenidade de espírito,

atrapalhar-se. (PRIBERAM, 2019). Todavia, porque tamanha perturbação? Ao que parece este artista perturba porque situa-se num limiar entre resíduo e obra, entre descarte e arte, entre o desejo de ser artista e o desejo de “desatormentar-se” usando de suportes artísticos, ou melhor, de um suporte que serve ao


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LETARGIA | desenhos sobre papel | 16 x 20 cm


98 escape ao acerto de angústias para não padecer na presença de fantasmas. Perturba, talvez, agora nas palavras de um dos seus comentadores, ali onde parece que a obra de Sérgio Canfield

nunca se realiza, parece que o tempo torce contra, parece um temporal fora de tempo e fora de lugar. Redemoinho do impossível. Mas a obra está no museu. (DE LOS CAMPOS, 2019). Perturba, ainda, porque surge no abrupto, na satisfação pulsional de outrem que desordena a ficção da história da arte. As obras não-finalizadas, jamais envernizadas, e a simultaneidade de produções em diferentes suportes fazem da incompletude inerentemente seu traço e sua pulsão. Tudo que disturba o olhar e faz das criações do artista esta experiência de poucos confortos se fez presente na exposição Corpos Vinculantes. A experiência é acrescida ainda das impossibilidades de colocar suas obras em cronologia, de falar em fases, de nominá-las e, por fim, também de apresentá-las fora da disposição caótica que assumem em seu ateliê, inundado de ícones e temas. Em seu ateliê-laboratório , as obras em produção convivem com o acervo, convivem com os resíduos, convivem com as memórias de Sérgio Canfield em suas Agendas e com os desenhos feitos em versos de receituários, rascunhados entre a saída e a entrada de pacientes em seu consultório médico. Cabe destacar que, por todas as partes, em todas as formas, sua com (pulsão) comparece nos inidentificáveis rostos, feições, cabeças, bustos pintados, desenhados, esculpidos, imaginados. Essa quantidade de rostos sem identidade parece uma constante entre as suas centenas de trabalhos, alegorizando uma relação de prosopagnosia , compreendida como uma espécie de esquecimento ou cegueira que impede de reconhecer as feições, resultando numa percepção alterada ou danificada das faces humanas. O artista parece expressar, com tais cabeças sem corpos (e sem memória) aquilo que retorna e torna inidentificável o singular, o que constituiria em um distúrbio vai se apresentando rascunho à rascunho, de tela a tela, de papel a papel. Com o material que encontra fortuitamente, na medida que a questão se apresenta como problemática de suas próprias vivências, de marcantes e de mundanas experiências, Canfield produz. Obcessivamente (re)produz. E do resultado dessa obsessão, se vê desvinculado enquanto artista, já que não se vincula o artista

a obra (CANFIELD, 2019), diz o mesmo. Ao final, não é possível identificar se a patologia seria do paciente ou do médico que (se) vê em todos os consultados, examinados, operados algo que é o mesmo, que dá no mesmo. Eis, o artista tomando para si o que há de inseparável entre o gesto poético e a atividade médica, tornando-se o que há de mais real em sua obra:


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Só pinto rostos Só desenho rostos Rostos e mais rostos Por/que só rostos? Porque /só/ vejo rostos e mais rostos. Um atráas do outro. Rostos e mais rostos. Não os faço por gosto. Mas porque só vejo rostos Um atrás do outro Rostos e mais rostos. Tudo é uma unidade esfacelada

(CANFIELD, S/D)


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PHYSALIAS | fitas VHS , ilhoses , prendedores de silicone | dimensĂľes variadas


102 Constatamos o desejo pelo erro, aspecto inaceitável na medicina e tão intrinsecamente presente no seu fazer artístico. Sérgio Canfield deseja errar (n)a arte, deseja que sejam permanentes as instabilidades, os processos de deterioração. Suas obras se transformam em outras sem o menor apego à forma/suporte precedente, deixando rastros de sua obsessão por inacabá-las , dando a ver uma arte como/em contínuo processo:

A criação como processo implica continuidade, sem demarcações de origens e fins precisos. O tempo contínuo da investigação enfrenta diferentes ritmos de trabalho, e envolve esperas do artista pelo tempo da obra, assim como esperas da obra pelo tempo das avaliações do artista. O tempo de maturação leva, muitas vezes, à simultaneidade de diferentes obras. O tempo da hesitação e da dúvida leva a idas e vindas, fluxos e pausas. A continuidade defronta-se também com rupturas, como nas intervenções do acaso e nos bloqueios de criação. Há, também, os instantes sensíveis da continuidade, associados às descobertas. O processo de criação, que está inserido em seu tempo histórico e em suas redes culturais, não pode ser desvinculado do tempo de autocriação do artista. (SALLES, 2010, P.130).

Compulsões Consideremos agora outra anotação não datada de Sérgio Canfield numa de suas agendas:

Fagomorfose – uma forma come a outra, uma ideia se apropria da outra (CANFIELD, s/d). Tal consideração parece remeter ao problema das formas pelas quais a medicina se apropria da arte e a arte da medicina. Premeditado ou não pelo artista, é impossível caminhar por entre os espaços/ cenários da exposição e não nos perguntarmos quão profunda são as marcas, os sulcos, de uma esfera na outra. Por vezes, os materiais se confundem, assim como os suportes e os anseios de médico e de artista. Enquanto médico, gravou por anos em fitas VHS suas operações em salas de cirurgia, várias delas imprescindíveis para a sobrevivência de um paciente. Tais procedimentos transformaram-se em material artístico (assim como sua arte em operações psicanalíticas) e nos são apresentadas como suas Physalias, criando uma outra visibliIdade àqueles materiais cuja função se perdeu, mas que doravante se tornam ressignificados como matéria//material de suas instalações. O título Physalias , provém do nome dado ao animal do grupo das medusas, águas-vivas e anêmonas, chamado cavarela-portuguesa, organismo em colônia heteromorfa que flutua sobre as águas, movidas pelo vento, colônia de seres zooides que não podem viver independentemente. As physalias do artista também ganham vida pelo vento, e ainda, não existiram sem o trabalho de Sérgio como médico que não existe independentemente dos seres do qual ele trata em suas fitas VHS.


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TOY ART | múltiplos


104 Em outras palavras, Sérgio Canfield retirou das fitas suas funções de vídeo, alterando-as numa operação de des-funcionalizar os objetos, e ao fazê-lo, levá-los a pura aparência, pois só aquilo

que não serve para nada é arte (CANFIELD, 2019). Sobrevivem como arte os sobreviventes de um médico, assim como, sobrevivem ao descarte os remédios vencidos, os êmbolos, as seringas, laparoscopia, suporte de luz-cirúrgica, cadernetas de receitas médicas, e outros resíduos em suas produções, que são nada menos que a contaminação imprescindível de uma esfera na outra: o

artista-médico, o ateliê-consultório. Dessas novas configurações surgem incontáveis e obsessivos não-objetos ou esculturas, desenhos, formas, fragmentos textuais e porquanto compulsões por outros e novos materiais. E então, na Biblioteca vemos antigos manuais de medicina, enciclopédias de psiquiatria e de direitos humanos, todos estes retirados da sua função de livros, e jogados no mundo novamente como não-objetos, ilegíveis, moldados para um lugar outro.

Laboratório de imagens Em Corpos Vinculantes há espaço para laboratórios, bibliotecas, galerias, arquivos e museus. Tornase possível colocar em discussão o visível e o sensível, a vida e a morte, e portanto, as imagens e aquilo que lhes é constituinte: o engano e o retorno, a presença e a ausência, a autoridade e a sujeição. Desse modo seus trabalhos situam-se entre vontades, contaminações e interdependências, que, enquanto mnemônicas, apresentam em si um ecossistema estético próprio da imagem, onde as imagens se potencializam e proliferam, desdobrando-se e reproduzindo-se como arquivo do arquivo, dispositivo de dispositivo e imagem da imagem (CHEREM, 2013, p.2077). O que dizer mais das perturbações e compulsões de Sérgio Canfield? É inelutável este querer resolver as questões que nos perturbam. É inelutável também, que quando nos referimos às artes, essa resolução nunca chegue. Tal inquietação talvez seja, justamente, a potência do artista, que nos instaura inseguranças ontológicas ao visitar sua exposição. Com poesia e crueldade, o artista nos faz retornar às demandas que historiadores da arte e artistas ainda não têm por resolvidas, pendências que teimam, novamente e mais uma vez, em estar entre a história e a arte.


105 NOTAS CANFIELD, Sérgio K. Fragmento de uma agenda particular, S/D – Agenda e transcrição estavam disponíveis como parte da exposição Corpos Vinculantes. BADESC: Florianópolis, S/D. CANFIELD, Sérgio K. Fala do artista na Roda de Encerramento da Exposição “Corpos Vinculantes”. BADESC, Florianópolis, 2019. (Grav. acervo pessoal Thays Tonin). CHEREM, Rosangela M. Sobre três maneiras de arquivar e seus inumeráveis modos de experimentar. Anais da Anpap, 2013. pp.2065-2078. CHEREM, Rosângela Miranda Cherem. Corpos Vinculantes. Texto de Introdução ao Catálogo. BADESC, Florianópolis, 2019. DE LOS CAMPOS, Diego. Sobre Corpos Vinculantes, a exposição do artista e médico Sérgio Canfield. Fala do autor na Roda de Encerramento da Exposição. BADESC, Fevereiro, 2019. GULLAR, Ferreira. Teoria do não-objeto. Suplemento Dominical do Jornal do Brasil. Contribuição à II Exposição Neoconcreta, Palácio da Cultura, Estado da Guanabara (Atual RJ), 1960. Publicado em: ______. Teoria do Não-objeto. In: Experiência Neoconcreta: momento-limite da arte. São Paulo: Cosac Naify, 2007. “Perturbar”, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, https://dicionario.priberam.org/perturbar [consultado em 23-07-2019]. SALLES, Cecilia Almeida. Arquivos de criação. Arte e Curadoria. Ed. Horizonte, Vinhedo, 2010.

THAYS TONIN Pesquisadora Pós-Doutoral do Programa de Artes Visuais da UDESC (Universidade do Estado de Santa Catarina). Possui Doutorado pela Università degli Studi della Basilicata (Itália), no Programa de Ph.D intitulado Cities and Landscapes: Architecture, Archaeology, Cultural Heritage, History and Resources. Fez período-sandwich na Sapienza Università di Roma (Itália), sob orientação da Prof Dr Claudia Cieri Via. É pesquisadora da Cátedra UNESCO intitulada Mediterranean Cultural Landscapes and Communities of Knowledge, e coordenadora desde 2019 da sede em Florianópolis (UFSC). Possui Mestrado em História (Ênfase em História Cultural) pela Universidade Federal de Santa Catarina (2015), assim como Bacharelado e Licenciatura em História pela mesma Universidade (2014). Tem experiência na área de História, com ênfase em Historiografia, Teoria e História da Arte, atuando principalmente nos seguintes temas: Aby Warburg, Arquivos e Acervos Artísticos, Crítica e Teoria da Arte e Historiografia Contemporânea. Atualmente é Conservadora do Ateliê Sérgio Canfield.


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LEI É ORDEM ? | escultura, barbante e livros de direito


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NÃO OBJETO | livro e boneco plástico


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CHAVES PARA PENSAR CRITICAMENTE PRODUÇÃO E CIRCUITO Carolina Ramos Nunes


109 Uma cadeira cravejada de bijuterias balança com o sopro do vento. Uma série de pinturas que engolem o espectador que as confronta. Objetos peludos pairam nas salas expositivas. No laboratório , um cheiro que não é pútrido, mas ácido-doce que invade as narinas e delimita outra dimensão do espaço expositivo. Livros dilacerados, recosturados, emoldurados. Desenhos rápidos, mas que mostram um tempo que não segue os minutos cronológicos. Uma sala de horrores, de objetos cotidianos repensados e reorganizados em estruturas perturbadoras. Sérgio Canfield ocupa a Fundação Cultural Badesc de modo nunca antes pensado. Enquanto arte educadora, conviver com a exposição foi um ato de encontrar outras formas de habitar uma casa que recebe exposições com diferentes perspectivas artísticas. O silencio agora passa a ser notado, não como a ausência de som, mas como uma trilha sonora específica para a mostra Corpos Vinculantes. Os passos ressoantes no piso de madeira intensificam as notas silenciosas. As fitas dos seres-anêmonasórgãos são o fundo da sinfonia oculta. Como produzir, montar, mediar e compartilhar uma mostra que demanda a imersão do corpo com todos os sentidos? A produção dessa exposição começa muito antes, mas no meu caso, enquanto responsável pela produção de artes visuais da Fundação, começa com a chegada das obras. Um caminhão repleto de objetos, a primeira vista assustadores. Um amontoado de formas irreconhecíveis e objetos disfuncionais começa a sair aos poucos para ocupar uma reserva técnica temporária até o começo da montagem da mostra. As prateleiras começaram a formar paredes com caixas e mais caixas empilhadas. Dentro delas não se sabe ao certo o que tinha, mas cheiros, ruídos e movimentos estranhos ressoavam delas. Os objetos maiores foram deixados por último, já que seu espaço ela delimitado pela impossibilidade de mobilidade próxima a eles: anêmonas perfuro-cortantes ou uma cadeira coberta de palitos de churrasco afiados. O corpo da Casa, aos poucos, começa a dimensionar a exposição. O processo da montagem inicia com um reorganizar, espalhar, revisitar todas as obras, juntamente com a curadora, outras produtoras e assistentes de montagem. Pensar como todas aquelas obras se comportariam nos, então agora, pequenos espaços da instituição? O fim da montagem marca outro começo, o processo de pensar sobre as visitações. As mediações e conversas partem tantos dos conceitos latentes presentes na exposição quanto de obras independentes. Seleciono uma das obras para continuar este texto: Secret (pág. 70). Como cadeados podem dar conta do processo de produção até a mediação de uma exposição de arte? Parece até antagônico ao se pensar a arte como um par: cadeado e chave ou, até mesmo, como uma senha, cuja possibilidade seria decifrá-la com um movimento de girar de chaves. Contudo, é exatamente sobre essa série de conceitos e de problemáticas que não só um cadeado, mas vários, compõe-se a exposição Corpos Vinculantes. Um cadeado fechado com a chave em seu cilindro tranca outros oito cadeados. Todos do mesmo tamanho, formato e pintados de preto. Há uma chave dourada no topo do objeto escultórico. A única


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SECRET | cadeados de metal, uma chave | 10 x 10 cm


111 parte reluzente da obra são os seus ganchos. Na sala, há centenas de outras assemblagens escultóricas, composições cujos corpos não seguem a lógica da física, objetos que perderam suas características primordiais. Mas Secret problematiza algo maior que a própria exposição: quais os questionamentos trazidos por Sérgio que reverberam no contexto da arte contemporânea. Sabe-se, a partir das informações presentes no texto inicial da exposição, bem como nas falas do artista e da curadoria, sobre as potências da produção compulsiva, das assemblagens com aparelhagens médicas, das intempéries do tempo apropriadas na poética, dos ateliês abarrotados de obras que em sua completude não caberiam na Fundação. Esta é uma possível chave para compreender o processo. Uma chave que libera os outros oito cadeados. O cadeado principal, agora “solucionado” mantêm-se constante na exposição, uma unidade que dá corpo à mostra e mantém cada espaço coerente com um todo. Os outros oito cadeados, todos sem chave, mesmo se soltos do cadeado dito principal, agora sugerem outras questões possíveis à exposição: a contemporaneidade, a legitimidade, o circuito de arte, a técnica, a razão, a emoção, os processos artísticos e a própria arte.

CAROLINA RAMOS NUNES Carolina Ramos Nunes é arte educadora da Fundação Cultural Badesc e professora de artes na Escola Estadual José Matias Zimmermann. Possui graduação em Artes Visuais, habilitação Licenciatura, pela Universidade do Estado de Santa Catarina (2013). Especialização em Mídias na Educação pela UAB no Instituto Federal de Santa Catarina (2015). Mestrado em Artes Visuais do Programa de Artes Visuais da UDESC (2017) e doutoranda pelo mesmo programa, ambos sob orientação da Profª Dra Elaine Schmidlin


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ARÍETES E PASSEATAS | acrílica sobre prancheta de madeira | 36 trabalhos de 16 x 26 cm


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DEPOIMENTO COLHIDO POR ROSÂNGELA MIRANDA CHEREM NO MÊS DE JANEIRO DE 2019


115 Claires Terezinha Fernandes da Conceição (Florianópolis, 1959) trabalha desde muito cedo e está há dois anos na Fundação Cultural BADESC, onde exerce a profissão de faxineira e é conhecida como Dona Terezinha. Tem três filhas e três netos. Ficou viúva duas vezes, mas planeja se casar em maio. Acredita que o amor vence o ódio e a vida vence a morte. Considera-se habilidosa com trabalhos manuais e também com trabalhos domésticos, reparos de construção e jardinagem. Adora perfumes, sabe fazer sabão e gosta de aproveitar muito bem os restos, inclusive para fazer enfeites para a casa e adornos pessoais. Estudou até a terceira série do ensino fundamental, é leitora da Bíblia e dá aula para crianças entre quatro e dez anos na escola dominical da igreja evangélica que frequenta, onde ensina a recortar, desenhar, misturando com um pouco de religião e bons hábitos. É com estes saberes acumulados ao longo da vida que aprecia os trabalhos de Sérgio Canfield e sua capacidade de reaproveitamento dos materiais que poderiam ser jogados fora. Assim, na parte da

Biblioteca do artista destaca os livros pela sua estranheza, embora reconheça que podem servir tanto de distração para os olhos como ensinamento para a vida. Chama atenção para a marcação das páginas com bonequinhos, prendedores, palitos, tachinhas, miçangas, recortes e lacres. Destaca as pontas de cigarro que estão num livro que para ela fala sobre os vícios e sua capacidade de destruição. Afirma que a caveira que se encontra sobre a mesa se refere ao fim da vida que chega para todos. Este assunto continua no vídeo, onde chama atenção para o inseto que está se despedindo de sua dona, enquanto está morrendo em cima de seu corpo. Diz que os humanos são sempre intrusos em relação aos animais, pois eles chegaram antes no planeta e continuarão depois dos humanos. Gosta que o artista os tenha valorizado também nas fotografias, onde eles estão posicionados sobre os diferentes corpos. Chama de sala de desespero a parte do Laboratório de artista, sendo que reconhece nos objetos um modo de tratar de assuntos como ganância, vaidade, dores e humilhações cotidianas. Aponta os comprimidos e seringas como referência tanto às doenças como aos vícios. Ao mesmo tempo, valoriza a utilização dos brinquedos antigos, ferramentas e utilidades domésticas que ganham novas formas e fazem pensar outras coisas. Considera que os corpos deformados, retorcidos, prensados, enforcados, afogados e queimados, guardam uma espécie de visão do inferno. Chama atenção para a desumanização cruel dos corpos e os compara com os animais que estão nos vidros, destacando a importância de recolher e conservar ou de enterrá-los. Quanto aos adesivos espalhados pelos ambientes, os vê como lagartas, criaturas que Deus colocou no mundo e devem ser respeitadas no lugar onde forem encontradas. No piso térreo, onde estão as pinturas de Sérgio Canfield, aponta dois ambientes. Num deles, onde estão as telas maiores e mais escuras, onde reconhece os corpos frágeis e indefesos, numa situação de algum desastre da vida. Imagina uma enchente que deixou lama e marcas nos corpos, cuja sequencia narrativa pode ir do que caiu ao que agradece por estar vivo. Na sala ao lado chama atenção para o aspectos carnavalesco dos rostos coloridos e mascarados, além dos objetos suspensos que parecem fantasias enfeitadas com prendedores e miçangas. Foliã confessa, diz que poderiam ser roupas de frevo e saias de baiana, combinando com sombrinhas e lanternas numa ocasião em que as individualidades ficam mais protegidas para experimentar e mais livres para transgredir.


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NÃO OBJETO | livro | tamanho variável

NÃO OBJETO | livro | dimensão variável


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SEM TÍTULO | Instalação | dimensões variadas


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PALPITES/RECADOS/CONSELHOS | urna de acrílico, fita, comprimidos | 70 x 40 x 40 cm


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GLAMOUR/ FAXINA | vassouras, esferas de plástico | 110 x 30 x 20 cm


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DEPOIMENTO COLHIDO POR ROSÂNGELA MIRANDA CHEREM NO MÊS DE JANEIRO DE 2019


121 Elcio José Codoy Finger (São Carlos, SC- 1975) é descendentes de colonos alemães, com quem aprendeu a falar fluente o idioma. Até os 24 anos trabalhou na agricultura. Com o segundo grau completo, foi morar no Rio de Janeiro, onde trabalhou como garçom. Há quatro anos é vigilante na Fundação Cultural BADESC e exerce a mesma função, em horário alternado, no Museu Histórico de Santa Catarina. Conta que, desde pequeno teve paixão por guardar coisas e, na idade adulta passou a frequentar feirinhas de objetos antigos, os quais também recolhe entre seus familiares. Possui cerca de 3500 cartões telefônicos, além de cédulas, moedas, objetos como ferro de passar roupa, canecos de chope, livros e móveis antigos. Seu ambiente preferido é o Laboratório de curiosidades, onde reconhece em Sérgio Canfield um artista que tematiza a dor, tal como nas seringas e na caixa com mangueiras que lembram vísceras expostas. O grande aparelho de iluminação cirúrgica faz lembrar o quanto a luz é necessária à vida e a boneca num vidro de remédios assinala o quanto os humanos precisam buscar alívio para as dores causadas pelos males da sociedade. O Mickey Mouse pisando no dinheiro figura os enganos do consumo capitalista e a mão portando um revólver lembra a violência e o medo que afeta nosso cotidiano. Tudo isto lhe parece estar relacionado às dores do corpo e da alma. Na árvore com desenho de corpos pendurados nos galhos, vê uma árvore da vida com seus descaminhos e acertos, vivências e aprendizados. Na criança com asas vê um despertar para o conhecimento e na criança que está dentro da cabeça do que parece ser um crocodilo, imagina os medos face ao desconhecido que impedem de tomar decisões ou agir. O mesmo pode ser dito da gaiola que parece lembrar as amarras impostas à vida, enquanto o sino dentro lembra os momentos do despertar da consciência. Isto também parece estar contido no rosto retorcido e amarrado com cordas numa pequena cadeira, expressão de uma luta entre os entraves e o desejo de libertação. Na cena que parece ser um parto, observa que a criança nasce de costas para o mundo, como se soubesse o quanto viver é difícil e preferisse mais o conforto do ventre materno do que enfrentar os desafios e perigos do mundo. O frasco de plástico que parece conter dois olhos lembra a importância de mantermos atenção ao que nos rodeia, sem deixarmos de olhar aquilo que é importante, conservando o foco em nossos ideais. Ao entrar na Biblioteca do artista chama atenção para o fato de que cada vida cabe em muitos livros e que cada livro pode conter muitas vidas e ensinamentos. Observa a presença de diversos corpos de bonecas que aparecem na montagem de vários deles, além de um pequeno homem, cuja cabeça desapareceu entre as páginas. Pensa nos comportamentos humanos, o quanto eles estão contemplados nas leituras e o quanto estas nos afetam. Reconhece no livro preso com cordas um convite às descobertas e aos mais diferentes saberes que precisam ser desamarrados pela leitura. Da mesa de estudo destaca a cadeira que parece um objeto de tortura, sendo que o livro com xepas de cigarro e a caveira lembram o quanto os vícios e desacertos podem prejudicar o corpo e abreviar a vida. Considera a luminária sobre a mesa um objeto que favorece o estudo e a busca de conhecimento, libertando dos medos e confortando a alma muito antes de nosso fim.


122 Das fotografias do corredor, chama atenção para os corpos femininos mostrados de modo erótico em meio às montagens com insetos, reconhecendo estas imagens como uma brincadeira com certo gosto pelo perverso. Vê os nus e as naturezas mortas como um estímulo visual e provocação ao desejo, a partir de uma percepção inserida no universo masculino. Considera que os textos espalhados pelos diferentes ambientes registram o comportamento humano, seus transtornos e peculiaridades. No piso térreo, chama atenção para as pinturas em cartolina, cujos rostos parecem cobertos por véus, destacando um ar de mistério, segredo e sedução, os quais parecem encontrar um contraponto na tela sob fundo preto em que dois corpos parecem envergonhados de sua nudez. Na varanda reconhece os objetos em fitas de VHS como medusas que cantam com o vento, sendo extensão de nossos pensamentos. No jardim aponta os utensílios agrícolas como um modo instigante de dar a ver algo que perde sua função e se torna outra coisa. Se a medicina ajuda a sobreviver, a arte ajuda a viver com imaginação. Assim como um ser humano sem seus sonhos não passa de um morto- vivo, um mundo sem arte é um mundo mais pobre.


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INSTALAÇÃO | galho seco, barbante, desenhos sobre papel | 130 x 60 x 40 cm


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TOY ART | múltiplos


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SEM TÍTULO/ NÃO OBJETO | cadeira de palha , bambu | 80 x 40 x 40 cm


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PHYSALIAS | ilhoses e corda de seda | 250 x 50 x50 cm


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PHYSALIAS | ilhoses, vara de madeira e corda de seda | 140 x 70 x 50cm


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APOFENIA | tinta acrílica sobre tela | 145 x 200 cm


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APOFENIA | tinta acrílica sobre tela | 145 x 150 cm


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BRANCUZI | cabeça de plástico, tachinhas e madeira | 19 x 30 x 10 cm


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BARROCOS | livro | 40 x 16 cm


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TOY ART | boneca, cerâmica | 10 x10 cm


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AMASSA | metal e plástico | 15 x 10 cm


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SEM TÍTULO | gaiola metálica, grampos de madeira e sino | dimensão variável


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(série) OLHARES | fotografias | 30 x 20 cm


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ENCANTOS | madeira, carvão, plástico, tachinhas | 40 x 15 cm


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SEM TÍTULO | escultura cerâmica | 15 x 25 cm


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ERA UMA VEZ ... | frasco com álcool, sapos e boneca de plástico | 49 x 10 cm


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ESTUDO SOBRE A VIOLÊNCIA | desenho sobre papelão | 40 x 30 x 5 cm


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SEM TÍTULO | plástico, prendedores, metal ,acrílico | 20 x 10 x 10 cm


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SEM TÍTULO | frasco, rato, álcool | 10 x 20 x 10 cm


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SEM TÍTULO | madeira, objeto plástico, elásticos de borracha | 30 x 15 x 15 cm


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SEM TÍTULO | livros, bambu, plástico | 40 x 5 x 10 cm


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SECRET | cadeados de metal, uma chave | 10 x 10 cm


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TOY ART | boneca e seringas | dimensão variável


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PIEDADES | mini estátuas sacras, miniatura de lambreta | 30 x 10 x 15 cm


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LABORATORIO


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OBJETO PEQUENO “A” | boneca de plástico, poliuretano | 90 x 40 x 35 cm


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LABORATORIO


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ABERTURA


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RODA DE CONVERSA


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Sérgio Kisperger Canfield, SKCANFIELD (Paranaguá, PR – 1958)

EXPOSIÇÕES INDIVIDUAIS

1993 - Exposição individual, no Espaço Cultural da Caixa Econômica Federal em Jaraguá do sul. 2008 - Apofenia, no Anexo II do Espaço Cultural Antarctica do Museu de Arte de Joinville. 2009 - Apofenia, no Centro Cultural de Jaraguá do Sul. 2011 - Questions/Questões, na Galeria Municipal de Arte de Itajaí. 2012 - Apofenia, no Museu de Artes de Blumenau - Fundação Cultural de Blumenau. 2018 e 2019 - Corpos Vinculantes, na Fundação Cultural Badesc em Florianópolis PREMIAÇÕES

1983 - Primeiro prêmio Pirelli Pintura Jovem, parceria Pirelli e MASP, em São Paulo. 1984 - Diploma Jubileu de Ouro pela Participação Especial, no II Salão de Artes Plásticas do Círculo Militar do Paraná em Curitiba. 1984 - Mostra 3 Artistas (Joel Guardiano, Paulo Bastos e Sérgio K. Canfield), na Sala Bandeirante de Cultura do Museu de Arte Contemporânea do Paraná em Curitiba. EXPOSIÇÕES COLETIVAS

1980 - Arte Nova, no Salão de Exposições do SENAC em Curitiba. 1983 - 27o Salão Artes Plásticas para Novos, promovido pela Secretaria de Estado da Cultura e do Esporte do Paraná, em Telêmaco Borba, Paraná. 1984 - 4a Jovem Arte Sul América, em Curitiba. 1985 - Coletiva de Médicos, em Curitiba. 1988 - Concurso Tanakan de Artes, no Rio de Janeiro. 1988, Exposição mundial Associação Artistas Médicos, em Barcelona, Espanha. 1995 - Exposição de Artes Plásticas - Jaraguá do Sul 119 anos. 2000 - Coletiva de Artistas Plásticos de Jaraguá do Sul. 2002 - II Coletiva de Artistas Plásticos de Jaraguá do Sul. 2003 - Perspectiva 2003, coletiva de Artistas de Jaraguá do Sul no Centro Cultural de Jaraguá do sul. 2006 - Perspectiva 2006, coletiva de Artes Plásticas de Jaraguá do Sul e Região, em Jaraguá do Sul. 2018 - Dizer e ver Cruz e Sousa, no Museu cruz e Souza, em Florianópolis. 2018 - Eppur Si Muove, no Museu da Escola Catarinense, em Florianópolis.


QUESTIONS/ QUESTÕES | acrílica sobre papel | 66 x 90 cm

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