TAMAR, um oceano de transformações

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FICHA CATALOGRÁFICA M169t

Magalhães, Tamyres Cereja Sbrile Tamar, um oceano de transformações. / Tamyres Cereja Sbrile Magalhães. - 2020. 71 p. : il. Trabalho de conclusão de curso de Comunicação Social com habilitação em Jornalismo – Centro Universitário das Faculdades Associadas de Ensino, São João da Boa Vista, 2020. Orientação: Prof. Me. Camilo Antônio de Assis Barbosa.

1. Projeto Tamar. 2. Histórias reais. 3. Tartarugas marinhas. I. Magalhães, Tamyres Cereja Sbrile. II. Título. CDU 504.06

©2020, TAMAR, UM OCEANO DE TRANSFORMAÇÕES; Todos os direitos reservados a autora. Projeto gráfico e diagramação: Gabriel Saraiva Ilustração de capa: dgim-studio - br.freepik.com Um livro reportagem desenvolvido e apresentado como projeto de conclusão de curso para a obtenção do título de bacharel em Jornalismo, no Centro Universitário, UNIFAE.


SUMÁRIO 10. 15. 17. 23. 29. 37. 43. 51. 57. 63. 71.

Introdução Tartarugar Família Marcovaldi Zé Mero Mariuchia Ferreira Itamar Santana Bianca Anjos Norma e Amanda Denise Mora Espécies Sobre a autora



Tamarear É andar pela praia Descalço na areia Olhando pro céu Tamarear É mesmo molhado Mareado, cansado Não desistir Tamareei Numa noite de estrelas Te conheci Me apaixonei Tamareamos Quando junto saímos Pra conhecer Esses oceanos (O mar quando quebra na praia É bonito) Tamareando Levo a vida em frente No contravento Ao mar levando Tamareando Acordo de um sonho Olhando pra areia Te esperando Tamarearia Mesmo que a tempestade Não dissipasse aquele dia Não desistiria Mesmo que alguém Mesmo importante Me criticaria [...] Letra: Milton Nascimento, Dudu Lima (Trio), Stanley Jordan



Caro leitor, Histórias, sentimentos, conquistas. “Tamar, um oceano de transformações” conta a trajetória de oito pessoas que tiveram a vida transformada por meio desse projeto maravilhoso. Sempre fui apaixonada pelo projeto Tamar e, desde o primeiro ano da faculdade, já sabia que faria meu trabalho sobre o tema. O projeto vai muito além das tartarugas marinhas. Mostra como esses animais passaram de caça a seres protegidos. Aborda como um projeto bem administrado e sério pode mudar a realidade das comunidades e vilas de pescadores, bem como de todo um ambiente marinho. A obra retrata, principalmente, os bastidores daqueles que cuidam, com tanto amor, das tartaruguinhas. BOA LEITURA!



ESSE LIVRO EU DEDICO

Aos meus pais, Marilina e Reginaldo, que sempre me apoiaram e me cercaram de amor durante toda a minha vida. A minha tia avó Celia, que me inspira e incentiva até hoje. A minha cachorra Charlottie e a gata Amora, que nesses tempos escuros de pandemia me ajudaram a lidar com os dias ruins. Aos meus familiares, amigos e colegas de sala por estarem ao meu lado em todos os momentos, inclusive os ruins. Agradeço imensamente ao meu professor e orientador Camilo Barbosa, por ser esse exemplo de integridade, profissionalismo e bondade. Ao projeto Tamar e Fundação Pro-Tamar, por serem sempre solícitos e por terem topado fazer parte desse sonho e a todos os entrevistados. Obrigada.


INTRODUÇÃO Na década de 1970 na cidade de Porto Alegre mantinha a Universidade de Rio Grande, a única em território brasileiro que possuía o curso de oceanologia. Um de seus professores, Eliezer de Carvalho Rios, pesquisador renomado no campo de estudos sobre moluscos, decidiu reunir estudantes que tivessem interesse em se aventurar e pesquisar para, assim, ajudá-lo no descobrimento de novas espécies. E alguns alunos dos últimos anos de oceanologia toparam a ideia. Partiram para Fernando de Noronha na primeira expedição, em 1976. Foram ao Atol das Rocas, em 1977, e duas vezes a Abrolhos 1978/1980 além de percorrerem várias praias do litoral nordestino. Com as experiências e aventuras, a caravana ficou conhecida. Durante a viagem ao Atol, os estudantes percebiam que ao amanhecer havia marcas diferentes na areia, mas, não sabiam o que eram. Em uma noite, os pescadores que acompanhavam a equipe desceram do barco e mataram, de uma só vez, 11 tartarugas marinhas. Elas eram animais ainda pouco conhecidos pelos brasileiros. Além de se chocarem com a brutalidade da matança, os jovens não queriam deixar o fato passar em branco. Decidiram fazer uma denúncia ao IBDF (Instituto de Desenvolvimento Florestal) que se localizava em Brasília, enviando fotos daquela noite. O grupo de acadêmicos era integrado por José Catuetê de Albuquerque (Catu), Lauro Barcellos, Guy Marcovaldi, Lauro Madureira, Eunice Maria (Nice) e Maria Ângela (Neca) Azevedo. As tartarugas marinhas já possuíam o título de ameaçadas de extinção. Porém, o respaldo legal vinha de uma portaria 10 TAMAR, um oceano de transformações


da SUDEPE (Superintendência de Desenvolvimento da Pesca), de 29/10/1976, adaptada de estudos mexicanos, que proibiam a captura dos animais em época de reprodução. Na época ainda havia dúvidas sobre a ocorrência de tartarugas marinhas no Brasil, levando em consideração que não possuíam nenhum estudo preliminar sobre. Assim, não foram levados muito a sério. Hoje, consideradas um recurso natural compartilhado, é indispensável o trabalho conjunto e a participação de todos os países que recebem a migração dessas espécies. Quando um não faz, prejudica o todo. Era o que acontecia com o Brasil. Em 1979, assume a diretoria do Departamento de Parques Nacionais e Reservas Equivalentes do Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal, a pesquisadoraMaria Tereza Jorge Pádua. Em visita a Washington (EUA), para participar de uma reunião da Organização dos Estados Americanos, percebe o total despreparo brasileiro em relação à conservação das tartarugas marinhas. Quando retorna, decide criar um projeto que seria o primeiro programa nacional voltado a recursos marinhos. Inicia a estruturação de uma equipe e, entre os convidados, estava Roberto Petry Leal. Passou a ele o cargo de Divisão de Proteção da Fauna Silvestre. Leal precisava de oceanológos para integrar o grupo e lembrou-se dos ex-alunos da faculdade de oceanologia. Primeiro, convocou José Catuetê de Albuquerque, em 1979, que um ano depois convidou o amigo Guy Marcovaldi. Ambos, já formados, iriam fazer o levantamento de dados sobre as tartarugas e peixe boi. Em 1980 Maria Tereza inicia as primeiras etapas da implantação do que se tornaria o projeto Tamar. A ação

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inicial era o levantamento das espécies e das principais áreas de reprodução. Nos primeiros meses de 1980 foram feitos os levantamentos das praias de desova, com envio de questionários às prefeituras, delegacias regionais do IBDF, universidades e comunidades de pescadores de todo o litoral. Queriam saber se as tartarugas eram vistas, se usavam a praia para desova e em qual período do ano apareciam. E não demorou para as repostas chegarem com a conclusão de que as tartarugas marinhas existiam em solo brasileiro. As pesquisas começaram em maio de 1980 nas praias da Paraíba, batendo de porta em porta, conversando com as comunidades e colhendo informações. Cascas de ovos, de tartarugas e objetos confeccionados eram encontrados durante a peregrinação. Em Pernambuco os agentes encontraram uma loja de artesanatos especializada em entalhe de tartaruga. Em Ponta das Pedras, distrito do município de Goiana, Pernambuco, carne de tartaruga era servida em restaurante. Em Sergipe, o menor estado do Brasil, os ovos eram oferecidos como petiscos em bares. No Espírito Santo, além dos bares e restaurantes, as casas também apresentavam cascos como enfeite. Em Macaé, no Rio de Janeiro, o grupo testemunhou carne de tartaruga sendo vendida no mercado de peixe local. Os pesquisadores do IBDF continuavam a trilhar caminhos por novas descobertas, mas agora havia reforços. Lauro Madureira que também era formado em oceanologia e havia participado de algumas viagens com a turma e Neca Marcovaldi, uma das estudantes da universidade de Rio Grande agora integra a equipe como estagiária. O grupo no total contava agora com quatro pesquisadores. 12 TAMAR, um oceano de transformações


Em janeiro de 1981 a segunda etapa do projeto entra em ação com a avaliação das potencialidades e fase experimental para implantar o plano de manejo. A partir de julho os preparativos para a viagem que ocorreria até Atol das Rocas começou. Iriam realizar a primeira marcação e avaliação qualitativa e quantitativa. O grupo se dividiu e duplas foram enviadas para diversos locais, entre eles Maranhão e Bahia. Em abril de 1982 José Catuetê de Albuquerque e Lauro Madureira partem para o Norte, checando do Maranhão a Guiana Francesa. O casal Guy e Neca Marcovaldi ficaram responsáveis por Bahia e Sergipe. Pisam em praia do Forte pela primeira vez. No final de 1982 e início de 1983 a equipe do Tamar consegue monitorar a primeira temporada de reprodução das tartarugas marinhas a partir de bases instaladas previamente no litoral de Sergipe, litoral norte do Espírito Santo e litoral norte da Bahia. Após todos os levantamentos verificaram que das sete espécies de tartarugas marinhas no mundo, cinco aparecem no Brasil: cabeçuda (caretta caretta), de Pente (eretmochelys imbricata), Verde (chelonia mydas), Oliva (lepidochelys olivacea) e de Couro (dermochelys coriacea).

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TARTARUGAR, um novo significado


Quando os pesquisadores chegaram a região de Sergipe, mais especificamente em Pirambu, década de 1980, se depararam com um costume negativo da população: matança das tartarugas e a caça aos ovos. Era considerado tradição da cidade as pessoas se reunirem para competir para ver quem conseguiria pegar mais ovos de tartaruga em uma única noite. Alguns jovens registraram a marca de até 60. Os próprios nativos de Pirambu chamavam a prática de tartarugar (verbo específico criado pelos nativos) ou seja, o ato de ir as praias durante a noite e caçar os ovos e matar tartarugas. Vale ressaltar que essa prática não era por necessidade, e sim por lazer e até mesmo diversão. Uma curiosidade a parte é que, durante a época de desova, os nativos não matavam as tartarugas, pois era considerado pecado. Porém, caso encontrassem uma fêmea na praia fora da temporada, a matavam. Quando a equipe do Tamar entendeu todo esse contexto, precisou de muito tempo e dedicação para ensinar sobre a importância da preservação dessa espécie. Após longos anos e conversas, os cidadãos da região aprenderam os benefícios da preservação. Pirambu conta, inclusive, com uma base de pesquisas desde 1980 e que funciona até hoje. Após o aparecimento do Tamar, a equipe ressignificou o “verbo” tartarugar. Hoje a palavra é usada em todas as bases do projeto entre funcionários e frequentadores. Tartarugar, hoje em dia, significa a prática de ir às praias a noite e monitorar os ninhos, medir as tartarugas, conferir peso, saúde, enfim, cuidar desses animais que são importantes para o ciclo marinho. Tamyres Sbrile

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FAMíLIA MARCOVALDI


A Praia do Forte fica situada no distrito homônimo de Mata de São João, no estado da Bahia, a 80 km da capital Salvador. Nessa pacata vila, em 1982, os pesquisadores do Tamar começaram uma pequena base, que seria a estrutura para estudos e, futuramente, parque para visitações. Foi nesse cenário que o casal Neca e Guy Marcovaldi plantou a sementinha da preservação.

Nina Marcovaldi Nina é filha do casal Guy e Neca, dois integrantes da caravana de estudantes que começaram todo o processo de criação do Tamar. A menina nasceu em Salvador, em 1985, em um quartinho da Marinha Brasileira. Foi levada com apenas 24 h de vida para a Praia do Forte, na Bahia, onde moravam seus pais e local em que vive até hoje. Teve uma infância diferente das demais crianças dali. Loira, de olhos claros, chamava a atenção pela diferença entre os nativos que são morenos e de pele escura. Nina sempre se orgulhou das origens e de sua história. Durante o tempo escolar vivia um paradigma. Com a influência dos pais frequentou uma escola Americana, em Salvador. Pegava carona logo cedo e ia para o colégio. A realidade dos alunos de lá eram bem diferentes das dela. Os pais eram advogados, médicos, pessoas da alta sociedade e quando perguntavam a profissão dos pais de Nina, respondia: “oceanógrafos”. Na época as pessoas ainda não tinham o conhecimento sobre a importância da profissão e do trabalho realizado pelos pesquisadores.

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“As crianças usavam roupas de marca, iam passar as férias de julho nos Estados Unidos, chegavam com motorista particular. Eram realidades bem diferentes levando em consideração que meu quintal era a areia da praia”, conta. Muito comunicativa a loirinha nunca deixou se abalar pelas diferenças, mas entendia o quanto o sistema era cruel. Enquanto na escola de Salvador Nina era “pobre”, para as crianças da Praia do Forte ela era a “riquinha”. Foi a primeira a ganhar um aparelho de rádio e, quando essa novidade se espalhou, a vila toda ia até a casa dela para escutarem música e brincar. À noite os pesquisadores e equipe do Tamar iam para as praias acompanhar as desovas. Nina acompanhou esse processo desde o ventre da mãe, que mesmo gravida não deixou de realizar as atividades de campo. Depois do nascimento dela a rotina continuou a mesma, mas agora a pequenina ficava dentro do carro aguardando o retorno dos pais. “Eu participei da minha primeira tartarugada dentro da barriga da minha mãe”, brinca. As vezes chegará a dormir no meio da noite. “Eu lembro que sempre levava uns lanchinhos para comer”, comentou. Como o mar ficava em frente à casa dela, a garota vivia brincando. Passava os dias de biquíni, indo pescar com os garotos, pegando coco, nadar no mar. “Eu não tinha horário para ir ao mar, esperava a maré encher pra ir nas piscininhas. Eu era uma ratinha de praia”, brincou. A amizade entre pai e filha também marcou a infância dela. Guy Marcovaldi esteve sempre presente nas aventuras. Os dois chegaram a mergulhar com tubarões em Fernando de Noronha e o animal deu uma mordidinha na perna de Nina, mas não foi nada grave. Além disso eles andavam de 18 TAMAR, um oceano de transformações


windsurfe, um esporte aquático. “Eu tinha dois aninhos e ele colocava as boinhas nos meus braços e eu até dormia. A minha conexão com o mar era tanta, eu ficava confortável ali”. “A amizade que tinha com meu pai era como irmão, as pessoas falavam isso. Já a minha mãe era mais responsável por cobrar minhas lições de casa e estudos”. Por não serem naturais de Praia do Forte, a família Marcovaldi não tinham família lá, mas isso não os impediu de criar laços. “Eu nunca tive muita família ao redor, a não ser as tartaruguinhas e os nativos, que se tornaram meus irmãozinhos” conta Nina. Nina foi começar a entender a importância do trabalho dos pais na faixa dos dez anos e, após esse processo se apropriou daquilo e vestiu a camisa do projeto. “Me empoderei daquilo quando comecei a entender o trabalho deles sobre o meio ambiente”. Os pais sempre a deixaram livre para escolher o que quisesse seguir como profissão. Nunca se deu bem com exatas e não queria fazer oceanologia, pois na grade curricular havia física, matemática e até mesmo química. Procurava uma profissão que pudesse juntar o útil ao agradável. Como gostava de se comunicar, optou pelo Jornalismo. Após a conclusão da faculdade foi para a Califórnia, onde fez mestrado em vídeo documentário. Atualmente Nina está com 34 anos e responde como coordenadora para projetos e ações de sustentabilidade do Tamar, além de criar campanhas, fazer vídeos, tirar fotos e ter algumas funções de RH. Mil e uma utilidades. Dona Neca Marcovaldi, como Nina chama a mãe brincando, ainda faz muita diferença na rotina dos funcionários e voluntários. São 40 anos de projeto, histórias e mudanças.

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“Através do Tamar eu pude perceber que com persistência e resiliência a conversação da natureza acaba vingando”, disse. A dedicação e o esforço da família Marcovaldi durante todo esse tempo gerou bons frutos. Três gerações (avó, mãe e filha) vivendo no mesmo lugar e lutando por um mesmo ideal. Kiara, filha de Nina, hoje aos oito anos, já entende e participa da rotina do Tamar. Muito esperta, a menina se orgulha do trabalho que os pais e avós realizam em praia do Forte. “A dedicação e amor por uma causa são abastecidas diariamente em nossa rotina. Vale muito a pena”, completou Neca. Devido ao isolamento social em abril de 2020 o Tamar precisou fechar as portas pela primeira vez em 40 anos. Além de alguns funcionários que precisaram ser afastados, o clima dos que ficaram foi bem triste. “É estranho ver tudo fechado; estamos acostumados a movimento e pessoas. É um momento bem difícil”, diz Nina. Para o futuro, Nina pretende continuar o legado dos pais. Acredita que as crianças da comunidade e suas gerações continuarão protegendo e cuidando de Praia do Forte, onde a casa da família Marcovaldi transformou-se em base de visitantes do projeto.

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Guy, Nina e Neca Marcovaldi Foto: Revista Trip - UOL

Nina nos primeiros passos do Tamar

Nina, hoje coordenadora de coordenadora para projetos e açþes de sustentabilidade do Tamar, na soltura de filhotes (Banco de Imagens TAMAR)


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Zé MERO


José Pereira dos Santos mais popularmente conhecido como “Zé Mero” é pescador, nativo de Praia do Forte, na Bahia. Aos 58 anos, recorda que recebeu esse apelido logo na mocidade. “Aqui na região e até em Salvador só me conhecem assim. Se falar José Pereira ninguém vai saber quem é”, brinca. Zé precisou parar de estudar na terceira série, aos nove anos, já que tinha que trabalhar para ajudar em casa. Foi com os tios que aprendeu a arte de pescar e não parou desde então. “Eu fiz até a terceira série arrastado, na tora”, brinca. “Eu não tinha tempo para estudar; precisava pescar para me virar”. Zé fazia parte do grupo de pessoas que caçavam e matavam tartarugas lá na década de 1982. Quando o casal Guy e Neca Marcovaldi chegaram à Praia do Forte, precisaram conquistar a população e ensinar sobre a importância da conservação. Os co-fundadores do Tamar alegaram que se o projeto desse certo, todos dali seriam prestigiados: pescadores, filhos de pescadores, conhecidos... todos seriam empregados. Parte crucial nesse processo foi conquistar a confiança dos pescadores. No começo houve uma certa desconfiança entre os dois lados, afinal, os pescadores não confiavam nos pesquisadores e o casal não sabia como seria a recepção da população. Muitas conversas e trabalhos precisaram ser feitos para os pescadores entenderam a importância da preservação. “Antes de trabalhar no Tamar eu não era um conservador de tartaruga, eu era um predador”, conta. As atividades de conscientização eram rodas de conversas, palestras,

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tudo o que facilitava o entendimento sobre a importância preservação. No começo houve uma certa relutância dos pescadores. Alguns inclusive até hoje não aceitam a presença do projeto. “Alguns ficaram de bronca com o Tamar, acharam que eles só vieram para pegar dinheiro”. Comer carne de tartaruga não era necessidade, era apenas lazer. Qualquer oportunidade seu Zé e os conhecidos aproveitavam para isso. Aniversários, encontros entre amigos.“Pra gente era diversão, farra”. Depois que entendeu sobre preservação ambiental, quis passar aos colegas, que tiveram certa resistência. “Eu brigava com meus amigos pescadores que as matavam. Com muito trabalho a gente conseguiu mostrar que a tartaruga viva era muito mais valiosa que morta”. Antes mesmo de ser contrato oficialmente como funcionário, o pescador fez trabalhos voluntários na base. Ele havia entendido toda a importância da preservação. “Eu achava bonito o trabalho que eles faziam com as tartarugas e com o turismo”. Praia do Forte foi por muito tempo um lugarzinho esquecido no mapa e, após a chegada da equipe Tamar, todo um trabalho foi realizado para incentivar além da preservação, o turismo. Hoje ambos caminham lado a lado, pois no final, a base é hoje um dos pontos turísticos mais visitados da vila. “O pessoal não ia vir pra Praia do Forte ver pescador. O pessoal começou a conhecer Praia do Forte através do projeto Tamar”. Seu Zé tem orgulho da história que construiu em conjunto com o Tamar. Foi por meio dessa união que conseguiu 24 TAMAR, um oceano de transformações


construir a casa em que mora e ajudar na criação dos filhos. Pai de seis e tendo 12 netos, são eles que acompanham a rotina do avô e pescam de vez em quando juntos, já que os próprios filhos tomaram outros rumos. “Meus filhos mesmo não gostam de pescar; alguns netos que as vezes vão comigo”. Viveu muitas aventuras durante todos esses anos de Tamar. Inclusive diz ter um problema nas costas, devido ao galão de ar que usava quando mergulhava com Guy Marcolvadi nas tarefas de rotina. O pescador foi professor das turminhas do Tamarzinho. Ensinava as crianças a pescarem, indo até mesmo em alto mar. A relação que criavam era sempre muito boa e divertida. O sentimento que descreve isso é gratidão. “É gratificante ensinar o pouco que aprendi com os mais velhos para essa molecada. É gratificante quando a gente aprende uma coisa e passa pra eles”. Seu Zé ensina desde técnicas para utilizar uma tarrafa1, como dar nó em anzóis, sobre os peixes que a criançada pode levar para casa e até mesmo as espécies que estão em extinção. A relação que ele tem com o Tamar é de amor. É o lugar que mais gosta. ‘É a coisa que eu mais sei fazer, a coisa que eu mais gosto”. Como o curso dos Tamarzinhos é anual, sempre chegam novas crianças e outras vão embora. Para os que ficam, como seu Zé, é triste ver a partida. “No período de despedida todo mundo chora, fica emocionado. É muito boa a nossa relação”. Quando a pandemia da Covid-19 chegou, seu Zé precisou ser afastado do emprego e, claro, o pescador sentiu muito. “Foi triste, né, ficar sem ver eles”. 1 Rede de pesca circular, de malha fina, com pesos na periferia e um cabo fino no centro, pelo qual é puxada.

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Atualmente tem vivido da restituição. Como pescar depende muito do clima, as vezes fica meses sem ir para alto mar e, consequentemente, não tem uma renda fixa. “Estou vivendo dos dinheiros dos tempos, né. Quando acabar só Deus sabe o que vai ser”.

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ZĂŠ Mero na rotina de pescador

FOTO: Banco de Imagens TAMAR

Foto: Arquivo Pessoal

ZĂŠ Mero ensinando a Tamarzinha Amanda como usar uma tarrafa


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MARIUCHIA FERREIRA


Guia Mirim – Tamarzinhos Criado em 1995 com o objetivo de educador ambientalmente os jovens da Praia do Forte, o antigo Guia Mirim (Programa de Treinamento para Formação de Guias Ecológicos Mirins) era mantido pelo FNMA (Fundo Nacional do Meio Ambiente). Com 25 anos, hoje o programa se mantém por meio do auxílio da Fundação Pró-Tamar e trocou o nome para Tamarzinhos. Um dos objetivos é conscientizar as crianças da região sobre a importância de preservar e cuidar do meio ambiente. É um trabalho de educação ambiental e social. O programa acontece anualmente e conta com a participação de toda a população regional. As crianças residentes da Vila da Praia do Forte e proximidades são convidadas a participar da seleção, que determina quem poderá integrar o projeto.

Mariuchia Ferreira Mariuchia faz parte dessa história. A pedagoga de 40 anos é responsável atualmente pelo projeto Tamarzinho. Filha de marisqueira e faxineira, Mariuchia desde pequena demonstrava ser diferente das demais crianças. Como a mãe, dona Benta trabalhava para Paulo Sapienza (que fazia parte da administração do Tamar na época) Mariuchia andava por todas salas do local, pois ficava sempre grudada na asa da mãe. Quando dona Benta ia arrumar as salas e recolher o lixo, Mariuchia pegava para si os papéis jogados fora e guardava para levá-los embora. Dona Benta sempre brigava com a Tamyres Sbrile

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pequena pois achava aquilo perda de tempo, visto ela que ainda não sabia ler. Teimosa, foi aprender a ler para não dar motivos para a mãe brigar. Assim, começou a ler tudo o que encontrava, de textos teóricos, dados, informações referentes as tartarugas e meio ambiente, frases complexas demais para uma criança. Mariuchia era tão levada que até pulava a cerca para pegar quiabo na horta que tinha na base. Na época, quem tomava conta do local era seu Cecílio. Ele sempre dizia o quanto Mariuchia era danada. Em 1995, ela e mais 30 crianças começaram a integrar o projeto piloto Guia Mirim. Crianças de toda a Praia do Forte iam até o Tamar fazer um curso introdutório sobre conservação ambiental. Das 30 que começaram, apenas nove foram até o final. Por ser um curso novo, as próprias crianças iam perdendo o interesse e desistindo. Os professores eram os próprios veterinários e biólogos do projeto. Ensinavam desde ciclo reprodutório, alimentação, características básicas de cada espécie até limpar os cascos das tartarugas. As crianças iam para o projeto em horário aposto ao da escola. Iam fazendo rodízio para todos participarem das atividades, inclusive aos fins de semana. Quando os visitantes chegavam no centro para ver os tanques com as tartarugas, ficavam boquiabertos ao ver as crianças tão pequenas, mas já tão espertas, sabendo tanto sobre o assunto. Mariuchia recorda da expressão de espanto e felicidade das pessoas ao verem os guias mirins dando um “aulão” sobre tartarugas. Quando não sabiam, iam pedir ajuda para os monitores, mas nunca deixavam alguém sem resposta. 30 TAMAR, um oceano de transformações


Pessoas do Brasil e do mundo visitavam a base e as crianças mais desinibidas aproveitavam a chance para ganhar a atenção. Mariuchia estava entre as que mais se destacavam. Sempre muito querida por todos os funcionários, por ter o respaldo da inteligência e também do carisma, começou a dar palestras para as novas turmas do guia mirim, além de ficar responsável pelas salas e organização dos materiais. “Eu sempre fui muito organizada, não podia ver bagunça”, comentou rindo. Como passava muito tempo na base, as novas turmas do guia mirim começaram a olhá-la de forma diferente, com mais respeito e admiração, já que sabia tanto. As crianças a chamavam de ‘sabitudo’. “Eu dizia assim: eu não sei tudo, sei só um pouquinho assim. Aquilo que eu não sabia ia pesquisar”, conta. Passados os anos havia chegado o momento de prestar vestibular. Mariuchia e Bianca Anjos (uma amiga) - que também frequentava o Tamar - queriam fazer biologia. Começaram a estudar em um cursinho pré-vestibular em Lauro de Freitas, a 60 km de Mata de São João. As meninas pegavam o ônibus as cinco da manhã e só retornavam após a 13h. O Tamar ajudava a custear o curso e o transporte. Assim que chegavam, iam direto para a base. O Tamar auxiliava as crianças participantes do guia mirim com uma bolsa de R$ 30,00 o que na época era muito dinheiro. Mariuchia brinca “na época era muita coisa; dava para comprar material de escola, mandar fazer bolo e comprar refrigerante no aniversário dos meus irmãos mais novos e ainda dividir com minha mãe”. Por estarem na década de 1990 uma novidade estava

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chegando na vida de muitos brasileiros: o computador. Muito recente, a internet ainda era discada, ou seja, caso precisasse utilizar o telefone fixo não conseguiria, pois, a internet vinha por lá. Mariuchia via aquela máquina e se frustrava por não saber o que era e como mexer. Assim começou um curso de informática que durou cerca de dois anos em Camaçari, cidade a 23 km dali. Ela relembra as dificuldades que enfrentou. “As vezes eu não tinha dinheiro para o lanche, mas só de ter o da passagem estava bom”. Quando estava no Tamar e o computador estava livre, os funcionários a deixavam navegar na internet e praticar o que estava aprendendo no curso. Após o cursinho pré-vestibular acabar, as meninas foram prestar prova na faculdade. Ambas, acostumadas com pouca gente, se assustaram ao ver a quantidade de pessoas no dia do teste. Após um ano de esforço foram aprovadas. Porém, era preciso ter um fiador e apenas Bia começou a cursar biologia, mas também acabou precisando parar. Mariuchia, que vinha de família muito humilde, decidiu aguardar um momento mais propício para conseguir fazer o curso superior. Assim, começou a fazer outros cursos menores. Como se dava bem em trabalhos manuais iniciou um curso de confecção e manuseio de fantoches. “Eu fui buscar aquilo que me dava prazer. Se no momento eu não podia estudar em uma instituição superior, fui buscar as coisinhas que estavam ao meu alcance”, lembra. Quando chegou o momento da faculdade, Mariuchia recebeu novamente o apoio do Tamar, tanto emocional quanto financeiro. “Eu escolhi a pedagogia porque tinha tudo a ver com aquilo que eu acreditava; tinha muito sentimento. Precisa de muito envolvimento humano, né. 32 TAMAR, um oceano de transformações


Como pedagoga eu poderia contribuir muito mais do que se fosse bióloga”. No começo, ficou um pouco temerosa, afinal como poderia ajudar o Tamar como pedagoga? Depois de muita reflexão e conversas, percebeu que a pedagogia possibilitava um novo caminho e que poderia passar tudo o que havia aprendido em questões sociais e emocionais. “A notícia no Tamar foi bem recebida. Todo mundo me incentivou, pois era algo que eu gostava”. O Tamar não era uma instituição formal como uma escola, mas havia a necessidade de ter alguém capacitado para administrar as aulas e, claro, os alunos do projeto Tamarzinho. Ninguém se adequaria mais a esse cargo do que uma própria guia mirim, que já possuía bagagem de conhecimentos específicos sobre tartarugas e, agora, iria participar da rotina dos alunos como pedagoga. Antes mesmo de conquistar o diploma, Mariuchia já desenvolvia atividades com as turminhas e, consequentemente, possuía uma certa experiência em lidar com crianças. “As minhas apresentações nos seminários eram sempre as melhores; todo mundo queria fazer parte do meu grupo na faculdade. Eu já tinha a vivência e outros não. Estavam vendo primeiro a teoria para depois a pratica”. Mariuchia lembra das várias personalidades diferentes das crianças e como o projeto auxiliou na formação moral delas. “Eu lembro que sempre quando as aulas terminavam, íamos limpar a sala para o dia seguinte e as crianças deixavam chiclete em baixo da mesa, lixo jogado no chão e aquilo foi me incomodando”. Assim, começou a pensar em como poderia reverter a situação. “Tive a ideia de pegar

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o lixo, garrafa pet, jornal e joguei pela sala toda antes do horário da aula. Quando as crianças entraram levaram um choque. Começaram a perguntar o que tinha acontecido e eles mesmos se uniram para catar os lixos e reorganizar o ambiente”. Um dos obstáculos que precisou enfrentar para conseguir o tão sonhado diploma, era se locomover até Salvador, a 80 km de Mata de São João. Depois de uma carga de oito horas de trabalho no Tamar, precisava pegar o ônibus e ir a aula. Chegava em casa depois das 1h da madrugada, para acordar cedo no dia seguinte. “Para mim essa era a parte mais difícil; precisava ter muita força de vontade. A gente tem que fazer de toda dificuldade uma oportunidade e assim foi feito”. Ao todo foram 24 anos fazendo parte da história do Tamar. Mariuchia é mãe de duas crianças: Enzo, de 11 anos, e Alice de dois. Enzo cresceu ouvindo as histórias sobre o Tamar e aprendendo sobre tartarugas e, assim que teve a oportunidade, também ingressou no Tamarzinho. O menino contou das diversas experiências e amigos legais que o projeto trouxe para a vida dele. Em março de 2020 o Brasil começou a enfrentar uma pandemia que já estava espalhada pelo mundo todo. Escolas, faculdades, teatros, shoppings, cinemas. Todos os locais que eram de aglomeração foram fechados temporariamente. O Tamar se incluiu nessa lista. Mariuchia precisou dispensar os alunos do Tamarzinho por tempo indeterminado. Atualmente, é diretora de uma escola municipal de Praia do Forte.

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Foto: (Banco de Imagens TAMAR)

Foto: Arquivo pessoal

A pedagoga comemorando a conquista do sonhado diploma


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ITAMAR SANTANA


Itamar, 27, é biólogo, nativo de Praia do Forte. O jovem cresceu entre duas comunidades: pulava entre Praia do Forte e Barra do Pojuca, a sete quilômetros dali. Tendo mais quatro irmãos, tinhacomo exemplo o mais velho, Mazinho, que também foi Tamarzinho na fase juvenil, tendo se tornado o primeiro biólogo de Praia do Forte. Travesso, Itamar vivia na cola dele e, por isso, sempre estava na base do projeto. Com os pais separados, aproveitava sempre as chances que tinha para estar com o irmão. Iam almoçar na casa da tia e o menino insistia para Mazinho contar sobre a rotina e as descobertas do trabalho.Durante dois anos acabou perdendo as inscrições que dariam a chance de participar do Tamarzinho. Aos 13 teve a última chance para realizar o sonho. Itamar pediu para que o irmão pegasse uma ficha de inscrição e respondeu à pergunta chave: “por que você quer participar do Tamarzinhos?” e a resposta agradou o pessoal. “Eu respondi que queria pra poder comer os doces, risos. Mas o motivo principal era porque queria ficar perto dos bichos e que um dia eu seria biólogo porque os biólogos de lá eram tudo massa!!!”, disse. O menino achava incrível o trabalho do irmão e queria sempre estar perto dos bichos. “Foi muito natural, muito orgânico. Eu achava massa o que ele fazia e queria fazer também”. Esperto e com alguns conhecimentos prévios sobre tartarugas, o garoto acabou se destacando entre as crianças. Bagunceiro, “mãe Mariuchia”, como as crianças chamavam a coordenadora, teve que ficar de olho nele. A aula preferida de Itamar durante o curso dos Tamarzinhos

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era a de teatro. As crianças produziam os fantoches e depois se apresentavam para a população. As vezes iam se apresentar em hotéis chiques de Praia do Forte e era nessa hora que Itamar andava de carro. Por ser uma vila pequena, o pessoal andava muito a pé e era rara as vezes que andavam de carro. “Eu andava de carro umas três vezes por ano só. Quando íamos nos apresentar nos hotéis, aproveitava a chance”. Após a conclusão do ano letivo, Mariuchia Ferreira foi ter seu bebê e, consequentemente, não estaria sempre presente na base. Foi quando surgiu a vaga de jovem aprendiz, de carteira assinada e com salário. Itamar agarrou a oportunidade de continuar onde tanto amava. Para começar essa nova fase, precisava da aprovação de Mariuchia e foi falar com ela. Após a permissão, começou. “Ela diz até hoje que ele não falou nada, que não se lembra disso”, brinca sorrindo. Itamar ficou cerca de três meses na parte de atendimento ao público. Gostava, mas o que queria realmente era estar em contato com os bichos. Nesse período o Tamar iria começar um projeto diferente, o submarino amarelo, que nada mais é que mostrar aos visitantes animais marinhos inusitados em um grande aquário amarelo. A responsável pelo projeto convidou Itamar para ser o ajudante e ele logo aceitou. Sua função era trocar água do aquário, alimentar os bichos, ajudar nas pesquisas. “Foi um dos períodos mais encantadores. Como eram bichos abissais1, vinha todo o tipo e muitos eram s estranhos, risos. E eu ia ter contato 1 O ser abissal, criatura abissal ou animal abissal são termos para os seres vivos aquáticos que vivem abaixo da zona eufótica do oceano, conhecida como zonas abissais, parte mais profunda dos oceanos que geralmente possui mais de dois mil metros de profundidade, com temperaturas muito baixas e sem luz.

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direto com pesquisador, mesmo sendo moleque. Eu favala o tempo todo”. O contato direto com os animais o motivou a seguir o sonho de ser biólogo. Ficou um ano nessa função de ajudante da pesquisadora. Depois do término da experiência, Itamar passou a trabalhar como tratador. Alimentava tartarugas, tubarões e peixes. O contrato de jovem aprendiz tinha dois anos de validade. Um dia após o término Itamar já estava assinando os documentos que o tornariam um funcionário oficial do Tamar. Ajudou a médica veterinária da base e acompanhou vários tipos de processos clínicos. Paralelo a isso, o jovem finalizava o último ano do ensino médio, aos 18 anos. A primeira opção da faculdade era veterinária, porém, os horários não batiam. A faculdade era diurna e Itamar precisava trabalhar para se sustentar. Logo foi para o curso de biologia, que era noturno. Assim poderia trabalhar e estudar. Em 2012, aos 19 anos,começou a faculdade de biologia em Salvador. Durante quatro exaustivos anos sofreu com a rotina. Trabalhava oito horas por dia, batia o ponto correndo e já saia para esperar o ônibus. Chegava de madrugada da faculdade e precisava acordar cedo para o trabalho. “Esse pessoal que fala que faculdade é só farra... Foi um período horrível, tanto profissional quanto pessoal. Eu não tinha tempo nem para a minha namorada (atual esposa) ”. Itamar recebia o apoio de todos os colegas de trabalho, mas só ele sabia o quanto precisou se dedicar durante a faculdade. O Tamar o auxiliava financeiramente com uma porcentagem.Depois de todo esse sufoco de acordar cedo, dormir tarde, estudar, trabalhar, tudo ao mesmo tempo,

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o biólogo conquistou o diploma em 2016 e, de imediato, começou a exercer a função no projeto. Começou na área de manejo. ‘Assim que formei eu vim com todo o gás, cheio de energia. Queria retribuir todo o incentivo que os meus colegas tinham me dado durante a faculdade”. Atualmente atua com educação ambiental. Existem programas direcionados ao público como o: biólogo por um dia; tartarugas bynight; visita com biólogo. Essas atividades possibilitam uma maior vivência e entendimento do trabalho que os biólogos realizam diariamente dentro do Tamar. A recepção das crianças que visitam a base foi muito positiva. Itamar sempre se deu bem com a molecada. “Eu queria ser legal com as crianças igual foram comigo na minha época. É meu brother, sabe? Por ser um local pequeno todo mundo se conhece. A criança vai na base, depois você vê ela na rua e depois no mercado. São primos, filhos de conhecidos”. Elas saem de lá felizes e motivadas com a experiência e Itamar se orgulha de poder fazer parte disso. “A criança chega na escola falando que tocou em tubarão, que é biólogo do Tamar. Eles ganham certificado pela participação, né”. A realidade de jovens entre 14 e 16 anos pode ser muito distinta. Enquanto alguns têm uma vida confortável, outros podem se perder nas drogas. Itamar é feliz por ter vivido todo esse período de juventude dentro do projeto. “Agradeço muito ao Tamar, porque em todo esse período de adolescência, de rebeldia, aprendi o que é certo e oo que é errado. Esse período todo eu sempre estive dentro do Tamar e todo mundo era legal. Você pedia um copo de água para um, era capaz de receber dois”. 40 TAMAR, um oceano de transformações


Com a chegada da Covid-19 a rotina do biólogo mudou drasticamente. Além de perder muitos colegas de trabalho que precisaram ser afastados, a base ficou sem visitantes, o que era triste. “Tinha dia que eu ia ver um funcionário depois de quatro horas de trabalho. De 100 funcionários estamos em 15 agora. Foi muito triste; foi duro. A pior parte foi ficar sem gente”. Itamar trabalhou durante os meses de isolamento, visto que a função dele era muito importante para o bem-estar dos animais. Aos poucos os centros de visitantes de todo o Brasil estão reabrindo, inclusive o de Praia do Forte, o que possibilita um conforto nesses tempos difíceis.

Foto: Arquivo pessoal

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BIANCA ANJOS


A gestora ambiental Bianca também participou do projeto Guia Mirim. Era o ano de 2006 quando Bianca teve a oportunidade de conhecer o Tamar e teve a vida completamente transformada. O pai dela, seu Ademario Filho, era motorista do Tamar e foi ele quem levou a ficha de inscrição para casa. No começo Bianca ficou receosa sobre a ideia, pois, por ser muito tímida não sabia qual decisão tomar. Com o incentivo dos pais decidiu arriscar e mandar a inscrição. A primeira fase já começava ali. As crianças deviam responder porque queriam participar do projeto. As melhores respostas eram as selecionadas. Eram mais de 100 inscritos disputando apenas 16 vagas. Além da melhor resposta, outros critérios como matrículas em instituições de ensino, faixa etária (10 a 13 anos) e localização são levados em consideração. Das 100, 40 foram pré-selecionadas para a segunda fase. Para surpresa de Bianca, a resposta que deu foi boa o suficiente para ser chamada. A partir de então os alunos começam um cursinho de duas semanas: “introdução a conservação marinha”. Os próprios biólogos e veterinários do Tamar é que dão as aulas e acompanham a criançada. As turmas são divididas entre horários. Oito entram as 8h30 e saem as 11h30, frequentando a escola no período da tarde. Já as oito restantes entram as 14h30 e saem as 17h30, frequentando a escola no período da manhã. Bianca acabou perdendo o primeiro dia de cursinho por ter confundido as datas e, quando chegou no segundo dia, entrou em choque. Havia muitas crianças as quais ela não conhecia. Ao ver a turma animada e respondendo

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às perguntas que os monitores faziam, começou a ficar interessada no assunto. Logo que chegou em casa pegou o material que havia ganhado e começou a estudar. “Eu não queria perder tempo, queria ser tão boa quanto eles”. As duas semanas passaram bem depressa. Com o cronograma cheio, as crianças participavam de atividades dentro e fora da base. Como tudo o que é bom dura pouco, outro corte seria feito e apenas algumas continuariam no processo. O grande momento havia chegado e a lista com os nomes escolhidos tinha saído. O de Bianca estava lá. Foi uma choradeira só: lágrimas de felicidade para alguns e de tristeza para outros. A rotina começava cedo. Entrava as 8h30 no projeto Tamar e passava as manhãs realizando as atividades. Além de tarefas como alimentar as tartarugas, havia aula de culinária, fantoche, artesanato e pesca. Quem ministrava as atividades “extracurriculares” eram próprios nativos de Praia do Forte. Estudos sobre fauna e flora, palestras, oficina de histórias, resgate cultural local, questões sobre poluição e descarte de lixo também são tratadas com os pequenos. Quando questionada sobre o contato direto com os animais que correm risco de extinção, responde seriamente: “eu sabia que tinha privilégio por tocar em uma tartaruga. Muitos visitantes iam lá e falavam ‘eu quero passar a mão’ e não podiam. Tinha muito respeito também. Eram os dois sentimentos que eu tinha”. Bianca sempre foi muito tímida e ao ver os colegas de turma conversando e interagindo, foi tentando acompanhar. Uma das atividades era guiar os visitantes pela base e explicar sobre as tartarugas, ação que dependia de conhecimentos 44 TAMAR, um oceano de transformações


prévios e até mesmo um pouco de jogo de cintura, já que vinham pessoas do Brasil e do mundo. “Eu ouvia das pessoas ‘nossa, você é tão pequenininha e sabe tanto’. Aquilo me motivava a continuar e me dedicar”. Na escola, quando a professora pedia para ler na frente, chegava a chorar de timidez. Foi durante o projeto que começou a desenvolver o lado social. O programa requeria disciplina, responsabilidade, atenção e muito esforço. Alunos que eram considerados bagunceiros ou até mesmo com mau comportamento também tinham chance de participar do programa. Depois de um tempo, mudavam totalmente o comportamento. A paixão pelo Tamar e pelo programa eram tão grandes que ninguém queria correr o risco de perder. A criançada ficava tão apaixonada que alguns diziam querer estudar biologia para voltar a trabalhar lá. A equipe do Tamar sempre deixou claro que poderiam retornar como funcionários, jovem aprendiz ou, até mesmo, como profissionais. Tudo dependia somente deles. Existia uma aliança de três lados: o Tamar, a escola e a família. Todos em conjunto monitoravam e acompanhavam a trajetória dos pequenos, sempre dando suporte quando necessário ou puxando a orelha. Essa aliança funcionava como elo para desenvolvimento social e intelectual. Não há como uma criança ser um bom biólogo caso não seja uma boa pessoa antes. Mesmo muito nova, Bianca entendia da responsabilidade que tinha com horários, comportamento e compromisso com as atividades propostas. “Eu gostava tanto de estar lá que já sentia que eu trabalhava lá” comentou em meio a sorrisos.

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Foi no meio desse processo que Bianca foi se soltando e mudando o comportamento. Apaixonada pela dança, deixava de participar das apresentações do colégio por vergonha. Depois de entrar no programa decidiu enfrentar o medo e começou a integrar um grupo de dança. “Percebi que não podia deixar de fazer as coisas por medo. Se eu não enfrentasse aquilo, poderia perder muitas chances na vida”. Algumas ações aconteciam fora do Tamar. As crianças tinham aulas e faziam o “pré-teste” para saber o que conheciam sobre o assunto. Após a visita de campo faziam novamente um “pós-teste” para mostrarem o que haviam aprendido. A metodologia utilizada durante as avaliações dos testes é a PPP – Planejamento, Processo e Produto, levando em consideração as questões teóricas, as emoções e comportamento. A Praia do Forte é cercada pela Mata Atlântica, rica em biodiversidade e os passeios eram repletos de aventura e muito aprendizado. No começo o programa era para educar ambientalmente as crianças, mas com o passar do tempo a educação social também surgiu. O Tamar entendeu que precisava acolher e ensinar sobre convívio social e ajudar as crianças com mau comportamento. Inclusive os bagunceiros que faziam parte do programa começaram a enxergar a vida de uma outra forma. “As crianças precisavam ter um bom comportamento na escola, tirar notas boas para poder continuar no programa. Como algumas tinham medo de perder isso, acabaram mudando o jeito” relembrou Bianca. Na época de Bianca, as crianças ganhavam uma ajuda de custo de R$ 100,00 mais uma cesta básica. Porém, com o passar do tempo, o Tamar percebeu que muitas famílias 46 TAMAR, um oceano de transformações


carentes acabavam inscrevendo os filhos pensando nessa ajuda mensal que receberiam. A partir de então, a fundação custeia somente o transporte, além dos passeios, testes, alimentação diária e materiais. Após o término do ano letivo do programa a turminha comemora com uma formatura, recebem certificado e um livro com todas as atividades realizadas durante o tempo que passaram lá. Os pais também participam desse dia, relatando as mudanças e fazendo uma devolutiva ao programa. Mais uma vez a base do Tamar era invadida por lágrimas. Chororô para cá, chororô para lá. Afinal, o grupo acaba se tornando uma equipe, passando horas juntos, aprendendo, tudo como uma grande família. Como forma de presenteá-las, o Tamar os leva para um passeio em Salvador, pelos pontos turísticos e recebendo mimos como lanchinhos de alguns parceiros do projeto. No fim do programa Bianca estava com 14 anos e iria começar o ensino médio, mas o coração continuava com as tartarugas. Depois de uns anos, em 2009 especificamente e perto de se formar, foi chamada para retornar ao Tamar, integrando a equipe de atendimento, sendo guia. Já com 16 anos abraçou a chance e continuou frequentando o lugar que tanto amava. No último ano de escola, fase em que os jovens ficam loucos se questionando o que escolher para a faculdade, ficou dividida entre a dança e as tartarugas. De família muito humilde e com os pais separados, a realidade não permitia que somente estudasse, como seria necessário caso quisesse tentar uma vaga na faculdade pública de dança que, na época, só existia em Salvador. “Eu não tinha essa opção: só

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estudar. Precisava estudar e trabalhar e aí escolhi continuar no Tamar”. Por esses motivos optou por esperar uma melhor ocasião e continuou a trabalhar. A paixão pelas tartarugas e por ensinar sobre o meio ambiente vinham muito fortes na rotina, o que auxiliou na escolha da profissão quando teve a chance. Como era muito atenta e focada, a equipe pediu que integrasse o grupo de fotografia da unidade, porém, não se identificou muito. Gostava mesmo era do setor de atendimento onde se destacava, sendo até chefe. Retornou assim para o atendimento onde ficou até a faculdade. Em 2014, agora aos 21 anos, conseguiu realizar o sonho da faculdade, escolhendo o curso de gestão ambiental. Três longos anos se passaram até o esperado diploma. Em 2017 começa a integrar a equipe de monitores do Tamarzinho, lugar onde tudo começou. Durante todos esses anos o amor e admiração pelo projeto gerou bons frutos. Em 2020, com 27 anos, Bianca dava palestras, acompanhava a turminha nova e ensinava sobre o meio ambiente. A junção entre ensinar e conscientizar tornava prazerosa a rotina. Com a chegava da Covid-19 e o isolamento social, em março de 2020, vários funcionários foram desligados por tempo indeterminado. Bianca e amigos acabaram precisando sair, tendo todo o respaldo e tramites jurídicos assegurados.

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Bianca na ĂŠpoca do Guia Mirim em (2006) Fotos: Arquivo pessoal

A gestora ambiental no espaço em que ministra aulas para os Tamarzinhos em (2020)


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NORMA E AMANDA


Norma Santos Filha de pescador, nativa de Mata de São João, na Bahia, Norma vinha nas férias para Praia do Forte ficar com o pai. “Seu Natureza” (pai de Norma), como é conhecido por todos, foi um dos pescadores que ajudou o Tamar nos primeiros passos após a chegada da equipe. E assim foi a infância dela, vendo o trabalho dos pesquisadores de perto e acompanhando os processos de resgate das tartarugas. Aos 29 anos, em 1997 Norma trabalhava na área de hotelaria e certa vez o amigo pessoal Silvio Luiz, que trabalhava no Tamar, fez o convite para que fosse auxiliar administrativa lá. No começo levou na brincadeira, mas depois de certa insistência aceitou. “Eu achei que era brincadeira e no fim terminou em eu indo pra lá”. No mesmo ano, em 1997 Norma foi aprendendo e executando vários tipos de atividade, desde ligações a atendimento ao público. Com o tempo, Silvio deixou o cargo e passou a vez para Norma, que começou a trabalhar diretamente como secretaria de Guy e Neca Marcovaldi. “Eu comecei sendo tipo uma auxiliar administrativa e com o tempo foi agregando mais serviço”. Norma acabava fazendo um pouco de tudo, atendia as pessoas que chegavam, os estagiários e os visitantes. Muito simpática, acabava fazendo amizade com todos que cruzavam o caminho dela. “A gente começa a cuidar de todo mundo, a querer o bem de todo mundo”. Percebendo a necessidade de aperfeiçoar as atividades, começou em 2014 a cursar Tecnologia em Secretariado. “Eu vi a necessidade de aperfeiçoar, de concluir o curso Tamyres Sbrile

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superior”. Recebeu auxílio do Tamar, que permitia que folgasse aos sábados para assistir as aulas e também ajudou financeiramente. Após três anos conquistou o diploma, em 2017. Norma é vista como a mãezona do Tamar, deu até uma entrevista em 2005 para a própria revista do Tamar. É um pouco brava, de temperamento forte, mas sempre está disposta a ajudar e acolher a todos que chegam. Filho de peixe, peixinho é e Norma influenciou a filha, Amanda Louise, de 14 anos. Amanda é filha de Norma e cresceu na base do projeto. No horário de fome levavam a pequena ao local de trabalho da mãe, que amamentava a filha em um cenário diferente do convencional.

Amanda Louise A menina sempre gostou de frequentar o Tamar e, antes mesmo de completar a idade necessária para participar do Tamarzinho, já escapulia para aulas de surf de outras turmas. Ingressou de vez em janeiro de 2020 e, além do contato direto com os animais, a menina não desgrudava de Itamar, que além de biólogo do projeto também é seu primo. “É surreal estar presente no Tamar todos os dias. É um momento inesquecível quando estamos em contato com as tartarugas”, destacou a adolescente. Amanda já tem planos para a carreira dos sonhos e planejou tudo. “Meu sonho de verdade é ser veterinária, porque vou poder trabalhar desde cavalos até as tartarugas”. No meio de tantas aventuras a garota sorri com suas lembranças. “Uma vez o Itamar e eu mergulhamos no tanque 52 TAMAR, um oceano de transformações


dos tubarões. Eu fiquei com medo, mas vi que eles não faziam nada”. Muito comunicativa sempre está no Instagram oficial do projeto, onde aparece em vídeos e fotos da rotina do Tamarzinho. Além das atividades teóricas sobre fauna e flora, os testes aplicados servem para extinguir qualquer dúvida. “Eu gosto desse jeito que eles fazem, porque se a gente tem alguma dúvida podemos entender certinho cada coisa”. Das cinco espécies de tartarugas encontradas no Brasil, apenas a de couro não aparece pelas bandas da Bahia. Por ser um animal bem maior que as demais espécies, gera curiosidade. Amanda sempre teve o sonho de ver uma Dermochelys coriaceade de perto e conseguiu. O animal chegou debilitado ao projeto e precisou passar alguns dias em tratamento. Acostumada com a rotina movimentada e cheia de energia, sentiu muito quando a pandemia da Covid-19 chegou ao Brasil. Além de ficar separada dos amigos, não estaria em contato direto com os animais. “Quando começou a pandemia, vieram falar com a gente e explicaram tudo o que estava acontecendo. Assim que parou a aula da escola, pararam as do Tamarzinho também. Foi ruim ficar longe dos amigos”. O curso dos Tamarzinhos dura um ano aproximadamente e a turminha de 2020 completou apenas seis meses. Assim, a garotada não se formou.

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Amanda com uma tartaruga jovem Foto: Banco de Imagens,TAMAR


Foto: Arquivo pessoal

Norma, já tem duas décadas de Tamar


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DENISE MORA


Denise cresceu e viveu grande parte da vida em Caieiras, SP. Muito apaixonada por bichos, decidiu em 2003 fazer faculdade de biologia. Durante esse tempo continuou a trabalhar como atendente em uma loja de vídeo locadora. A rotina era exaustiva. Ela pegava três horas de condução para ir trabalhar e mais três horas para voltar e ainda dedicava tempo aos estudos. Após quatro longos anos, Denise se formou em 2007 aos 27 anos. Entretanto, por morar em São Paulo as oportunidades na área de biologia eram poucas e ela continuou trabalhando em comercio. Em 2010 Denise decidiu que estava mais do que na hora de fazer um estágio na área dela e foi no período de férias em abril que conseguiu um estágio de um mês na base do projeto Tamar em Ubatuba. Apesar de poucos dias foi ali que ela descobriu o amor pelas tartarugas. “Minha mãe e irmã foram me visitar durante esses dias e me falaram que nunca me viram tão feliz na vida”. A história de Denise é um pouco diferente das demais, além de ser de São Paulo, a bióloga não tinha contato direto com as tartarugas. Em certo dia alguns pescadores pegaram algumas tartarugas por incidente e constataram a equipe do projeto. Assim que Denise avistou as tartarugas o coração dela se derramou em lagrimas. “O meu supervisor estava perto e eu não queria chorar. Ele me viu e disse que é assim que se descobria um verdadeiro apaixonado por tartarugas, quando a pessoa se emociona ao vê-las”. Após o termino do estágio voltou para a rotina corrida da cidade grande e para o emprego. Ficou cerca de dois anos

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tentando e enviando currículos para as bases do Tamar espalhadas por todo o Brasil. Denise fez amigos durante o período de estagio que manteve contato mesmo após o termino. Uma dessas amigas foi selecionada para a base de Praia do Forte e começou a indicar Denise para as vagas que estavam disponíveis. Em janeiro de 2012 chegaram a entrar em contato com ela para uma vaga de atendente, porém não era o que Denise queria e ela recusou. Em agosto do mesmo ano surgiu uma vaga de trainee de campo e Denise não precisou pensar duas vezes, aceitou na hora. “Eu nem parei para pensar, afinal sempre morei com a minha mãe e era a filha mais velha. Eu larguei tudo e fui”. A vaga que havia surgido era para a temporada de 2012/2013 e assim Denise fez tudo o que sempre quis. Acompanhou desovas, viu filhotes, marcou ninhos, tartarugou pelas noites. Como nem tudo são flores as primeiras dificuldades surgiram. No momento de contratação perguntaram a Denise se ela tinha experiência em dirigir e ela respondeu que sim, porém não era verdade. Os funcionários do Tamar precisam dirigir por horas, por estradas irregulares, pela areia e Denise foi se desesperando por medo de acabar prejudicando os colegas. Quando estava a ponto de desistir, a chefe dela na época pediu mais um tempo para que alguém a ensinasse a dirigir por esses lugares. Após alguns sufocos, aulas com os colegas e embreagens afundadas, Denise finalmente aprendeu a dirigir. Depois do fim da temporada Denise não sabia o que seria da vida dela, afinal não havia sido contratada, pois não 58 TAMAR, um oceano de transformações


havia nenhuma vaga de biólogo em aberto. Ela retornou a São Paulo e depois de um mês entraram em contato para que ela ajudasse em uma pesquisa de coleta de tecidos, já que em Praia do Forte há um banco nacional de pesquisas. Denise ficou cerca de dois meses apenas trabalhando nessa área. Denise retornou novamente a São Paulo e depois de algum tempo a chamaram para a temporada de 2013/2014. Chegando no fim dessa temporada, a chefe de Denise estava gravida e precisaria se afastar. Assim surgiu uma vaga de bióloga de campo fixa e ela aproveitou a chance, sendo assim contratada. Em 2015 novos desafios surgiram. Arthur estava a caminho. Em 2016 o bebe chegou e mudou completamente a vida de Denise, teve que se descobrir mãe. Logo ela precisou retornar ao trabalho, teve que conciliar a maternidade, o trabalho exaustivo de tartarugar e lidar com a ansiedade e medos do primeiro filho. Um ano depois, sua antiga chefe estava esperando o segundo filho e desistiu do cargo, o que proporcionou a chance de Denise de se tornar executora da base de praia do Forte. “Eu fui a pessoa certa na hora certa, passam muitas pessoas por aqui e acabam não tendo tantas oportunidades e eu consegui”. A função exige que Denise planeje e coordene, treine e participe, junto com a equipe de campo, das atividades de proteção, manejo e pesquisa das tartarugas marinhas, planejar e promover ações educação e sensibilização ambiental, elaboração e acompanhamento de orçamento, relatórios, escalas, planilhas. “É satisfatório falar que sou a executora da principal base, do principal projeto de

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conservação marinha do Brasil”. O pai de Arthur é músico e quando perguntam ao filhinho o que os pais fazem, o pequeno responde “papai é cantor, mamãe salva tartarugas”. Denise se emociona ao repetir as falas do filho. Denise ainda ressalta que as tartarugas mudaram totalmente a vida dela. “Elas já fizeram muito mais pra mim... Me fizeram uma mulher mais forte, menos medrosa...que superou e supera muita coisa inspirada na força e na determinação delas... Hoje tenho meu sustento, do meu filho, tenho minha casa, pago minha contas...tudo através das tartarugas, fruto do meu trabalho tão lindo e que me orgulho muito em fazer”

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Fotos: Arquivo pessoal

Denise e o filho Arthur na soltura de uma espécie de tartaruga

A bióloga Denise em uma avaliação


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ESPÉCIES de tartarugas


Existem sete espécies de tartarugas marinhas no mundo. Aqui no Brasil há a ocorrência de apenas cinco deles. As tartarugas procuram praias que sejam largas, de topografia plana, águas quentes e área própria para a escavação do ninho, com pouca compactação e sem a presença de pedras ou raízes. A cada 1.000 filhotes apenas um ou dois chegam a fase adulta. Além dos predadores naturais como caranguejos, raposas, lagartos, aves marinhas, as tartarugas sofrem com as influências do homem. Postes de luz nas praias, caça irregular, poluição, carros e motos nos locais de desova e doenças são alguns fatores que também influenciam no ciclo de vida desses animais. Há leis e portarias que asseguram medidas para a conservação e preservação das tartarugas. Caso de iluminação artificial Portaria do IBAMA nº 11, de 31 de janeiro de 1995), transito de veículos Portaria do IBAMA nº 10, de 30 de janeiro de 1995) e conta também com a Lei de Crimes Ambientais (Lei nº 9605 de 12 de fevereiro de 1998) que assegura punição para caças, matança, coleta de ovos. Os machos passam a vida toda no mar e vêm para a costa apenas no período reprodutório. As femeas além de serem maiores que os machos, são as únicas que vêm para a terra firme. Elas retornam para as praias onde nasceram para desovar.

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Tartaruga de Couro (Dermochelys coriAcea) A maior espécie que visita o Brasil, está criticamente em perigo de extinção. É muito difícil conseguir ver a desova dessa espécie. Procura por locais próximos à foz do Rio Doce e praias arenosas são as favoritas dela. A cada ano, cerca de 5 a 15 fêmeas desovam em áreas do norte brasileiro, precisamente no Espírito Santo. Conhecida também como tartaruga gigante, seu casco tem a cor acinzentada, com pequenas manchas brancas. Pode chegar a 750 kg e medir até dois metros. Os registros são de 120 ninhos contando todas as femeas que chegam até a praia por temporada. Essa espécie desova cerca de seis vezes por temporada. O intervalo durante as desovas é de 9 a 11 dias. Foto: Banco de Imagens,TAMAR

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Foto: Banco de Imagens,TAMAR

Tartaruga cabeçuda (Caretta caretta) Conhecida também como tartaruga-mestiça, é a espécie mais presente no Brasil. Sendo a segunda maior espécie, apenas a cabeça pode chegar a medir 25 cm. Está em perigo de acordo com classificação do Ministério do Meio Ambiente. O peso médio é de 140kg e pode chegar a 136cm. Contando todas as fêmeas que desovam no Brasil por temporada, contabiliza-se 8.200 ninhos por temporada e cada desova pode chegar até 130 ovos com tempo médio de 60 dias. O tempo entre uma desova e outra pode variar de dois a três anos. A ocorrência dessa espécie acontece em Espirito Santo, Bahia, Sergipe e litoral norte do Rio de Janeiro. Tamyres Sbrile

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Tartaruga oliva (Lepidochelys olivacea) É a menor de todas as espécies; chega em média a 72cm, pesando 42 kg. Conhecidas pelas famosas dancinhas, têm um jeito próprio de cavar os ninhos. Por serem pequenas, usam o casco para ajudar a compactar o ninho. As fêmeas dessa espécie fazem em média por temporada 8.700 ninhos, botando aproximadamente 100 ovos em cada. Tem ocorrência no Sul de Alagoas, Sergipe, até o litoral da Bahia. Está igualmente ameaçada de extinção, o status é vulnerável.

Foto: Banco de Imagens,TAMAR

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Foto: Banco de Imagens,TAMAR

Tartaruga de pente (Eretmochelys imbricata) é conhecida por tartaruga legitima e é a mais caçada em todo o mundo. Recebeu esse nome, pois é perseguida pela beleza de seu casco, sendo utilizado para adereços, como pentes, armações de óculos e bolsas. Ela gosta de arrecifes de coral e usa o bico comprimido para comer esponjas nos recifes de corais. Pode chegar até 110 cm e pesar 86 kg. Essa espécie produz 2.200 ninhos por temporada no Brasil levando em consideração todas as femeas e chega a botar até 140 ovos por ninho. É encontrada no litoral da Bahia, e no litoral sul do Rio Grande do Norte. Tamyres Sbrile

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Tartaruga verde (Chelonia mydas) conhecida também como tartaruga aruanã, está vulnerável. Recebeu esse nome pois, quando abriam o casco para fazer sopa com a carne de tartaruga, saía uma água verde, pois a alimentação delas tem como base as algas. Pode pesar em média 160 kg e chegar a 143 cm. Contando todas as femeas que chegam para desovar, calcula-se 4.800 ninhos por temporada, desovando em nas ilhas oceânicas de Trindade, Reserva Biológica Atol das Rocas e Parque Nacional Marinho de Fernando de Noronha.

Foto: Banco de Imagens,TAMAR

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SOBRE A AUTORA Tamyres Sbrile é natural de São João da BoaVista, SP. É jornalista, escritora e ativista ambiental e gordoativista. Além disso, é criadora de conteúdo no Instagram desde 2018. (@itstamyres) Se apaixonou por tartarugas marinhas durante a adolescência e tinha esse sonho desde o início da faculdade: poder mostrar às pessoas o real motivo de ser encantada pelo Tamar. Esse livro reportagem é fruto disso.

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