REVISTA SEXTA FEIRA Nº2

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editoral Sexta Feira configurava uma idéia. Com a publicação de seu primeiro exemplar, ganhou materialidade e agora, tendo em mãos o segundo, o projeto se efetiva, devolvendo à Sexta Feira Feira a a idéia idéia que que transcende transcende o o número número 1, i, o o Sexta e os os que que vierem. vierem. Ela Ela passa passa a a ser ser Revista Revista sem sem 22 e deixar de de ser ser livro. livro. deixar A idéia irradia os desejos de fazer dialogar dialogar a Antropologia com as artes e as humanidades em geral, além de promover encontros de uma produção acadêmica com outras linguagens e linhagens (extra-acadêmicas, interacadêmicas, interacadêmicas, contra-académicas...). Reconhece ainda ainda o o lugar lugar d da contra-acadêmicas ...). Reconhece Antropologia no mundo mundo contemporâneo, contemporâneo, em em que que Antropologia no a diluição diluição de de tempos tempos e e espaços espaços só só faz faz acirrar acirrar as as a diferenças e e conflitos, conflitos, arena arena na na qual qual o diferenças o antropólogo pode pode ser ser um um importante importante mediador, mediador, antropólogo seja a a partir partir de de análises análises teóricas, teóricas, seja seja atuando atuando seja política ou ou socialmente. socialmente. política O O caráter experimental que procuramos cu cultivar repercutiu, em cada exemplar, de maneira maneira particular. O O número 1i procurou explorar ao máximo a pluralidade de temas, abordagens e recursos gráficos. gráficos. O O número 2, por sua vez, sem recursos abrir mão da d diversidade, privilegiou a convergência de de boà boa parte parte dos dos textos textos em torno convergência de blocos blocos temáticos: temáticos: os os usos usos da da imagem imagem na na de construção de realidades e relações, o cinema ema "ficcional" e "etnográflco" "etnográfico" e suas Jij fronteiras, eiras, e um . grande bloco sobre festas brasltelras. brasileiras. Às inq·uietações inquietações do corpo editorial vieram somarse as opiniões e sugestões, elogios e críticas, fruto das "relações exogâmicas" com um rico

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elenco de leitores - professores, colegas, artistas, jornalistas, poetas, psicanalistas, estudantes estudantes universitários, cineastas; enfim, desconhecidos e hecidos e amigos, renomados e anônimos - , que nos estimulou e influenciou nas continuidades e rupturas deste número em relação ao anterior. Surpreenderam-nos os variados matizes desse público, não apenas no que diz respeito às diferentes áreas de interesse, como também o contato com leitores de outros estados (Paraná, Amazonas, Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Bahia) e, particularmente, do Rio de Janeiro estimulando a vontade de estreitar vínculos com a produção cultural e intelectualpara além do quintal paulista.No interior do nosso grupo, as "relações endogâmicas" entre o corpo editorial e os diretores de arte afincaram-se, ampliando o clã com a entrada de duas pessoas na editoria e duas no projeto gráfico. Esse casamento de texto e imagem faz com que a linguagem gráfica esteja, definitivamente, atada à identidade da Sexta Feira, levando a cabo a máxima de Horácio (séc. V a.C), recuperada pelo Barroco, ut pictura poesis. Ela espelha a idéia da poesia como pintura cega e da pintura como poesia muda. Imagem e texto acessam acessam pprovíncias intelectuais, sensoriais sensoriais e e emociona emocionais, num intelectuais, embate entre entre forma forma e e conteúdo, conteúdo, aberto a embate contrapontos, dialogias dialogias e e concordâncias. concordâncias. ""Ler é contrapontos, ver." Matéria Matéria de de luz, luz, a a imagem imagem pode pode ilum iluminar ver." regiões obscuras obscuras das das entrelinhas entrelinhas do do texto, texto, regiões multiplicando-lhe as as faces faces e e revelando-lhe revelando-lhe outras outras multiplicando-lhe que, sozinho, sozinho, não não poderia poderia vislumbrar. vislumbrar. que,


Na contemporaneidade, tempo de saberes (e prazeres) virtuais, Sexta Feira procura cultuar a materialidade do livro como peça, objeto, fetiche. Assim canta o Livro do cancionista: os livros são objetos transcendentes, mas amá-los do amor táctil que votamos aos

podemos maços

de cigarro. Brincar com o livro, como Narizinho (desenhos, rabiscos, leituras e releituras infindas); como os intelectuais, "tragá-lo" (grifos de canetas de diferentes cores e épocas, manchas de café, páginas dobradas, leituras e releituras, enfins). Reflexo da ambigüidade que carrega no nome, Sexta Feira está imersa em dualidades que, por um lado, lhe conferem o caráter lúdico que imantou um público tão diverso; por outro, denunciam a ausência de um continente onde convivem os anseios acadêmicos com o público eclético. Nem revista nem livro - antes um e outro - como a ilha de Crusoe e Sexta-Feira, que paira nos limbos do Pacífico, entre o céu e o mar, a Revista procura desbravar e, mais, inventar seu espaço, seu público, sua identidade. A escolha por um bloco temático que protagonizasse o número 2 foi um recurso para eSCUlpir, esculpir, COm com maior preciSãO, precisão, OS os CQnrn,rnl'lC contornos dessa tal tal identidade. identidade. Preenchida Preenchida de de ambigüidades, ambigüidades, aa festa festa emerge emerge como como uma uma metáfora metáfora reveladora reveladora do do Brasil Brasil e, e, em em .muitos muitos sentidos, sentidos, da da Sexta Sexta Feira: Feira: espaço espaço de de ambivalências, ambivalencias, onde onde os os contrários contrários convivem, A festa convivem, interagem, interagem, ganham ganham coerência. coerência. A festa tem por tem se se mostrado mostrado assunto assunto antropológico antropológico por no excelência, excelência, de de Mareei Mareei Mauss Mauss aa Victor Victor Turner, Turner, e, e, no

Brasil, Maria Lúcia Montes, Roberto DaMatta, José Guilherme Magnani, Carlos Rodrigues Brandão, entre tantos outros. A festa sugere uma identidade brasileira inerente ao próprio festejar, sediando encontros e confrontos, desnudando e fantasiando desigualdades sociais. Caleidoscopicamente, a diversidade ganha unidade e a confluência social coreografa uma dança de papéis sociais invertidos, reafirmados, reinventados, num bailado em que os pares são flutuantes e, por isso, volúveis a trocas, transgressões e toda sorte de volteios. Nesta festa, os escritos desfilam lineares (artigos, ensaios, etnografias, resenhas) ou pululam descosturados (poemas, canções, cartas, excertos) em meio aos blocos, abrindo alas para enredos visuais (ensaios fotográficos, ilustrações, filmes) e configurando uma composição em que tempo e contratempo se encaixam numa mesma harmonia. Locus de crítica e gozo, desperdícios, vícios, vísceras, Sexta Feira confunde-se com a festa. Esperamos fazer valer a metáfora, adentrando o tempo cíclico do retorno periódico, como o moto contínuo que funda a reciprocidade pela qual o "dar" implica "retribuir", regra universal universal que que ribuir", regra move as trocas trocas materiais materiais e e simbólicas. simbólicas. A move A concretização deste deste segundo segundo número número nos nos permite permite concretização entrever a a possibilidade possibilidade de de alcançar alcançar uma uma entrever periodicidade, retribuindo retribuindo aa cada cada número número aquilo aquilo periodicidade, que recebemos recebemos dos dos leitores leitores ee colaboradores. colaboradores. EE que que aa recebam recebam com com um um hau, hau, presente presente que embriagado de de espírito; espírito; ee que que a a leitura leitura tenha tenha o embriagado o júbilo da da festa, festa, em em todos todos os os sentidos. sentidos. júbilo


FESTA

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Edito ria TOS

DE

FESTA

Carlos Rodrigues Brandão ARRADOR

De outros carnavais ... entrevista com Roberto DaMatta Editaria A mensagem das festas: reflexões em torno do sistema ritual e da identidade brasileira Roberto DaMatta

EDITO

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José Miguel Wisnik

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Carlos Rodrigues Brandão

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Eduardo Coutinho e a Câmera da Dura Sorte

Entrevista Editaria

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"Índios eletrônicos": a rede índigena de comunicação

Marcelo Manzatti

Evelyn Schuler

Stélió Marras

XIX

TRACANTO

Pelos olhos de Kasiripinã: revisitando A Experiência Waiãpi do "Vídeo nas aldeias"

VELOSO,

DO

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Valéria Macedo

Dominique Gallois e Vincent Carelli

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DA FESTA DIVINO

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Festa do Rosário em Serro Patricia Gouvêa


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FEIRA

Heitor Ferraz A

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DAS

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Monge Marcos Moraes

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Márcio Silva

BRASILEIRA

Rita de Cássia Amaral POEMA Vagner Gonçalves Silva

O CRU E o cozido? Comida de Santo, Comida de Homem Paula Miraglia e Paula Pinto e Silva

ROBINSON

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Milton Meira do Nascimento CAUINAGEM, UMA

COMUNICAÇÃO

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Uma Estrada para o Impenetrável Rose Satiko Gitirana Hikiji Céu de estrelas ou sobre o inferno terreno

SÍTIO

DIRETAS Hélio Campos Mello e editoria O

ARCAICO

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PAÍS

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Guto Lacaz

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Dafne de Souza Sampaio

Editoria FESTA

DE

PROVISÓRIO

Renato Sztutman OFICINA

DECISIVA

FESTA

E

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IDENTIDADE

O

PÓS-MODERNO E

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CONSTRUÇÃO

CULTURA DA

Edgar Teodoro da Cunha Crede no baile de memórias Ana Lúcia Ferraz 0 Brasil no circuito do cinema etnográfico Patrícia Monte-Mór Berlim vê o Brasil: antropólogos e realizadores em foco Paula Morgado

BRASILEIRA

Maria Lúcia Montes

ADEUS,

ROBINSON

adaptação de uma peça de Júlio Cortázar Florencia Ferrari e Kiko Ferrite


apresentação Através de algumas revistas feitas com recursos inventados do nada, grupos de alunos da USP têm espalhado às vezes sinais de vitalidade e animação intelectual que vêm faltando, com toda certeza, ao convívio acadêmico. É o caso da revista Caramelo, passada como um bastão por várias gerações de alunos de graduação da FAU, e é o caso desta Sexta Feira, iniciativa recente de alunos de pós-graduação em Antropologia. Nos dois casos, não domina aquela mentalidade de escaninho fora da qual os professores parecem ter dificuldade de se mover em conjunto (refiro-me às revistas-repositorio de departamentos e compartimentos de artigos especializados). Os assuntos estão vivos e abertos em campos e contracampos polêmicos e compreensivos. A entrevista com o cineasta Eduardo Coutinho focaliza a relação entre documento e ficção, história e pessoalidade, método cinematográfico e método antropológico. Entrevistar um cineasta cujo trabalho está centrado ele mesmo na

pcperiência problemática da entrevista expõe, provoca e esclarece o trabalho do antropólogo, que tem também na experiência da entrevista um momento crucial. A tese da intervenção do olhar armado peta lente documental, científica ou artística, no que esse olhar tem de distorção e espelhamento, refração do outro e de si, questão aguda na entrevista com Coutinho, vai rebater por sua vez no conflito sobre Vídeo nas Aldeias, onde se confrontam antropólogos do Centro de Trabalho Indigenista e poderes públicos do Estado do Amapá. A posse de meios de registro e comunicação visual pelos índios, propiciada pelo antropólogo, faz deste aquilo que ele também é: trafegador de instrumentos do olhar e, no limite, ambivalente traficante de meios de verse e vice-versa que perturba os impuros defensores da pureza. Não obstante, a experiência do trânsito de olhares, disparada pela presença do vídeo nas aldeias, e que desafia c antropólogo a aprender, suscita com os índios um diálogo sobre a natureza da re-


presentação - verdade-imaginação, realidade, invenção, mito, ficção - que incide comoventemente, me parece, sobre a questão fundamental da poesia e da antropologia, no vértice das culturas. Tudo isso resulta, nesta Sexta Feira, da refração entre os textos, do diálogo entre eles, de um certo trânsito reflexivo e inventivo que deixa transparecer questões ee aspectos aspectos que o ponto de vista fixo dos tões especialistas não não deixa ver e muitas vezes especialistas não quer quer deixar deixar ver. ver. não Falando Falando nisso, nisso, as as referências à música popular lar disseminadas disseminadas na na revista, juntamente com o o texto texto sobre sobre caetano Caetano Veloso, registram o quanto quanto elaela - a a música música popularpopular - se se constituiu num num instrumento instrumento privilegiado privilegiado de de expressão e de de reflexão reflexão sobre sobre o o Brasil, Brasil, abrindo abrindo asas asas para o o bloco bloco temático temático sobre sobre as as festas festas brasileiras, brasileiras, que que ocupa ocupa lugar lugar central central neste neste número. número. Aqui Aqui também também prevalece prevalece um um ponto ponto de de vista vista móvel móvel que que entretece entretece os os trabalhos trabalhos de de pesquisa pesquisa com com entrevistas, entrevistas, cartas, cartas, ensaios ensaios fotográficos, fotográficos, rereceitas. história familiar familiar de ceitas. AA história de Roberto Roberto DaMatta, DaMatta,

filho de um (semi)incesto amazônico-baiano, os rojões e o mijo na festa de Santa Cruz em Minas Gerais, no belo depoimento poético de Carlos Rodrigues Brandão, as quadras poéticas compiladas por Marcelo Manzatti, apaixonado e incansável pesquisador-perseguidor das festas populares do Brasil de dentro, o rojão tança-perfume do pensamento em movimento de Zé Celso, junto com as receitas de comida de santo e de cauim, tudo isso é elemento de festa e de pensamento da festa. festa, irrigando os excelentes excelentes ensaios ensaios de de pesquisa pesquisa acadêmica. Entre Entre aa imprensa imprensa corrente corrente ee aa academia academia paraparalisada. lisada, revistas revistas como como esta esta (atentas (atentas também também ao tam ao apuro apuro ee à imaginação imaginação gráfica) gráfica) apontam par~ para oo que que é é e e oo que que pode pode ser ser uma uma revista sta universitária, universitária, ou ou mais, mais, para para oo que que pocfe: pode ser uma uma universidade, universidade, se se esta esta não não estiver estiver morrendo rendo definitiva definitivamente. O O fato fato éé que que os os alunos alunos estão estão dando dando um um babanho. nho. Resta Resta aa nós, nós, professores, professores, tomarmos tomarmos esse esse banho banho como como uma uma lição lição e e como como uma uma festa. festa.

José Miguel Wisnik Wisnik


Numa festa imodesta como esta Vamos homenagear Todo aquele que nos empresta sua testa Construindo coisas pra se cantar Tudo aquilo que o malandro pronuncia E o otário silencia Toda festa que dá ou não se dá Passa pela fresta da cesta E resta a vida Acima do coração Que sofre com razão A razão que vota no coração E acima da razão, a rima E acima da rima, a nota da canção Bemol, natural, sustenida no ar Viva aquele que se presta A esta ocupação Salve o compositor popular Caetano Veloso


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campo e contracampo Eduardo CoutInho e a Câmera da Dura Sorte Valéria

Macedo*


O silêncio que vem depois de uma fala é a coisa mais linda que tem.

Os contornos da palavra, desenhados de pronúncia, gesto, silêncio, rugas no canto dos olhos, mãos sobre a nesga da roupa. Eis a matéria-prima da obra de Eduardo Coutinho: a oralidade como expressão de experiência, convergência de imaginário e fato, de história e "estórias". O essencial em seus filmes é o contar diante da câmera, que virá a cristalizar o efêmero daquele momento em que a fala confere materialidade ao dito, o qual se constrói e se descobre no desdobramento do falar. Há então a combinação imprevista entre conteúdo e forma no discurso, que pode resultar maravilhosa ou banal. A câmera, que multiplica ao infinito as possibilidades de reprodução da imagem captada, no caso de Coutinho paradoxalmente instaura uma espécie de sacralidade ao momento do relato, revestindo-o de unicidade aurática, o híc et nunc de que fala Walter Benjamin (1975). Como o autor contará na conversa que se segue, seu método consiste em não armar o set da entrevista (posicionar luz, câmera, equipe e entrevistado) e procurar só ter contato com a pessoa com a câmera ligada. Assim, há uma tensão compartilhada e a surpresa com o dito, pois não há ensaio, as perguntas são amplas e dão margem a qualquer tipo de resposta. Portanto, o que a câmera capta possui o frescor de uma apresentação ("Não é um pão amanhecido ... ") e dificilmente irá se repetir da mesma forma. Nesse momento, os olhos do cineasta estão vidrados naquele que fala, e então cada palavra sua vai sendo deliciada, e ele é a pessoa mais importante do mundo. A pessoa que conta, nessa hora, se vê imbuída de uma responsabilidade de síntese, metafórica ou metonímica, não só do que ela é, mas do que ela gostaria de ser, ou do que gostariam que ela fosse. Ela se descobre então personagem e autora desse personagem. Processo que faz convergir os marcos pessoais de sua vida com os contextos históricos em que eles se deram, a subjetividade de sua experiência e as construções coletivas que ela expressa. Então, os silêncios, ao mesmo tempo que engasgam uma palavra, falam sobre essa pessoa. E a câmera, ao convertê-la em imagem, decupada e bidimensional, se desmente como linguagem. Como disse José Miguel Wisnik, "no sentido forte, a visão é uma evidência do invisível, do indizível e do indivisível" (1995). É aí que a câmera também cala. E nos diz. Cada um dos filmes de Eduardo Coutinho recria o método de atingir o coletivo por meio do particular e privilegiar os resíduos como o mais contundente das falas. Em meio à diversidade de contextos, há uma circularidade temática que diz respeito a uma poética da narração. Seus filmes configuram narrativas de narrações, contam histórias sobre o contar histórias. São também por isso filmes sobre o tempo como personagem da memória; tempo que também é matéria-prima da película; memória na qual o filme mesmo se converte. Cabra marcado para morrer (1964-1984), O fio da memória (1988) e Boca de lixo (1994) são concretizações emblemáticas desse movimento. 11


Cabra marcado para morrer a história das estórias da história O ano é 1961. O paulista Eduardo de Oliveira Coutinho volta de Paris, onde cursou a Escola de Cinema IDHEC, e ingressa no CPC (Centro de Cultura Popular) do Rio de Janeiro. Com a UNE-Volante, vai captar imagens do "Nordeste subdesenvolvido" e assiste ao comício-enterro de um líder camponês. Resolve fazer Cabra marcado para morrer. Um filme sobre as Ligas Camponesas que tinha o falecido João Pedro como personagem central. Em 64 começam as filmagens com locações "verdadeiras" e os próprios camponeses como atores. Mas, com o golpe militar, a produção se inviabiliza, havendo a apreensão do material filmado, além da perseguição e prisão de camponeses-atores e da equipe envolvida no projeto. Só restou a parte do filme que estava sendo revelada no Rio de Janeiro e algumas fotografias. Dezessete anos depois, Coutinho retorna ao cenário não mais para filmar a história de João Pedro, mas a história da história do filme e as histórias de cada um de seus personagens. Arma-se então uma rede de versões, discursos e trajetórias, revelando a disparidade de destinos e visões de mundo dos que compartilharam aquele set. Elizabeth, viúva de João' Pedro e que representava a si mesma no filme de 64, precisou fugir para um lugar desconhecido, mudar de identidade e perder contato com sua família e filhos, com exceção do mais velho e do

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mais novo. Coutinho a encontra e traz à tona seu passado, fazendo com que ela revele sua verdadeira identidade aos moradores da cidade em que tinha passado os últimos quinze anos como Marta. Ele também vai atrás de cada um de seus filhos, espalhados em várias regiões do Brasil e com histórias de vida absolutamente diversas. Há portanto no filme uma descontinuidade espaço-temporal que se reestrutura na continuidade da narrativa cinematográfica. Na sucessão dos fotogramas, pessoas afastadas no tempo e no espaço são aproximadas e confrontadas, entrelaçando as diversas narrações por intervenção da montagem. Dessa forma, a narrativa se constrói em dois eixos: um paradigmático, em que cada pessoa conta sua história e destila suas memórias; outro sintagmático, no qual Coutinho combina e rearranja essas diferentes trajetórias e versões, de tal forma que resultam numa versão, numa história, que é a sua. Mas não é só no eixo sintagmático que Coutinho interfere como narrador. As perguntas, as reações, o encaminhamento que dá às conversas acabam por direcionar o "rumo da prosa". É aí que reconhecemos a instabilidade simbólica de seu lugar, pois, estando do outro lado da câmera, não consegue ser apenas ouvinte. E as versões se contaminam de seu olhar.


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O fio da memória as histórias da memória das histórias O fio condutor desse filme é Gabriel dos Santos, filho de ex-escravos, divulgaçãoque viveu solitariamente na ci dade fluminense de São Pedro da Aldeia. A poesia da escrita de Gabriel poderia confundi-lo com um personagem de Guimarães Rosa. Ele aprendeu a escrever com um amigo da igreja batista e passou a vida empenhado em duas obras: o diário e a casa. As falas no filme (na voz do ator Milton Gonçalves) são provenientes desse diário. Em suas notas há relatos de conteúdo histórico, como dizer que o Brasil foi ·uma roça portuguesa, ou falar bem de Getúlio, ao lado de delicadezas cotidianas, como "Guilherme me deu um pedaço de concha em 12 de março de 1964". Portanto o efêmero, o resíduo, dialogam com os fatos da história oficial - assim como toda obra de Coutinho e nesse filme especificamente. O fio da memória foi encomendado para a comemoração do centenário da abolição e tinha como

proposta resgatar a história dos negros no Brasil. Aqui mais uma vez se constrói uma trama de versões, encontros e confrontos, visões de mundo, histórias de vida, memória coletiva e pessoal, religiosidade e política, arte e marginalidade. Enfim, há uma infinidade de depoimentos que cercam o universo dos negros brasileiros pela via da história oral, do imaginário, do cotidiano. Mas, se temos novamente uma infinidade de narrativas, é Gabriel dos Santos o grande narrador. Em seu diário, conta o processo de construção de sua casa: "Morava nessa casa velha que a senhora tá vendo aí; de maneira que em 1912 tive um sonho de fazer uma casinha para eu viver sozinho, fora lá da família. (...) Quando acabei a obra da casinha, aí veio um pensamento pra eu enfeitar essa casinha. Enfeitar de que maneira? Pensei. A gente não tinha dinheiro pra

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comprar certas coisas. Então imaginei de catar aqueles caquinho de louça no lixo. Apanhar caco de vidro, fazer aquelas florzinha de vidro, pra pregar na parede da casa pra enfeitar. Veio aquela coisa na mente, só apanhar os cacos, restos das grandes obras da cidade. Veio uma pessoa com um azulejo, eu boto; veio uma pessoa com um caramujo, eu boto. (... ) O que é que vale uma lâmpada queimada? Nada. A lâmpada queimada, nas casa grande, apanha, bota fora. Não tem mais luz. Eu vou lá no lixo, apanho a lâmpada; ou por outra, as criancinha me traz pra eu fazer abajur de lâmpada queimada". Assim como o diário, a casinha foi construída com as sobras da cidade, o que foi rejeitado e inutilizado pelas outras casas. Ela não possui qualquer fim utilitário, não tem cozinha, banh.eiro ... foi feita apenas para "zelar". E com os restos, vindos de diferentes usos e procedências, ele constrói flo· res, vasos, enfeites, abajures; ele desconstrói a feiúra ·do lixo recuperando uma integridade de conteúdo novo, que reconstrói a beleza. A casa de Gabriel é então uma bricolage, nos termos em que Lévi-Strauss a define: a composição inesperada e não planejada de fragmentos de diver-

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sas proveniências que tem como resultado algo novo e diferente de cada uma das partes que o consti· tuiu. Enquanto bricoleur, Gabriel não tem uma idéia preconcebida do que resultará o rearranjo dos cacos e, quando tornados flores, uma pétala é de telha, outra de vidro e as outras de outros materiais. Mas, se dissemos que Gabriel é o grande narrador, é porque sua bricolage só faz metaforizar o trabalho de bricoleur de Coutinho que, na mesa de montagem, recombina imagens e discursos de diferentes proveniências e cria um universo de significado em que cada fala se redimensiona ao ser aproximada a outras imagens e discursos desencontrados na realidade. Ou seja, ele decupa várias histórias para criar a sua história, diversa de cada uma das outras que a compõem. E, além da diversidade dos materiais, há as sobras da película: as pausas, os silêncios, as contradições, as fragilidades que não vão para o lixo, como talvez fossem em outros filmes. Elas são elementos essenciais para a construção das narrativas e informam muito sobre aquele que fala. Portanto, podemos dizer que, em alguma medida, a casa de Gabriel alegoriza a proposta cinematográfica de Eduardo Coutinho.

Filmografia 1964-1984: Cabra para morrer

marcado

1987: Santa Marta, duas semanas no morro* 1988-91: O fio da 1993: Boca de

memória

lixo*

'Produzidos em vídeo.

Referências Bibliográficas BENJAMIN, Walter. "A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica" in: Os pensadores. SP, Abril Cultural, 1975. WISNIK, José Miguel. "Iluminações Profanas" in: O olhar. SP, Cia. das Letras, 1995.


Boca de lixo as sobras das falas de sobras

* Valéria Macedo é

membro do corpo editorial da

Sexta Feira.

O cenário é desconcertante: um ponto de escoamento de lixo no subúrbio carioca, em que pessoas selecionam objetos e comidas que possam reaproveitar. Ou seja, o que foi rejeitado pela cidade é convertido em material de consumo e sustento. A câmera de Coutinho se aproxima dessas pessoas e ouve suas histórias. E, se Gabriel dos Santos reconstrói uma integridade a partir da fragmentação das sobras, podemos dizer que essa é a proposta de Coutinho no vídeo Boca de lixo. A desagregação do cenário - restos de comida, injeções usadas, roupas rotas, cadeiras mancas e mais uma infinidade de cheiros e formas em estado de decomposição - não exterioriza o estado de espírito daqueles que trabalham nesse espaço, antes o contrasta e desmente. Há nas histórias e visões de mundo dessas pessoas uma integridade, composta de princípios, valores e verdades que ressignificam a desagregação do lixo. Há doçura, há gozo, há moralidade em suas vidas. E mais

uma vez a rede de versões e biografias é mapeada: alguns negam que comem coisas do lixo (mesmo que a câmera os desminta), outros afirmam com orgulho; uns estão ali por falta de oportunidade, outros por opção ("é melhor do que ter patrão"). Ou seja, o lixo dá margem à reconstrução dos edifícios - concretos e simbólicos - da cidade a partir de suas ruínas, ao mesmo tempo que faz a sua crítica, ao subverter seus valores e ressignificar o resíduo. Assim, esse filme também consiste numa poética da narração, pois as pessoas contam suas vidas e arrancam poesia de um contexto adverso a nossos padrões. E as sobras são também catalisadoras de significado. Nesse, como nos outros filmes de Coutinho, o documentário se desvincula da pretensão de registrar uma realidade monolítica e arranca dela contradições e ambigüidades, que por sua vez são capazes de redimensioná-la, redescobri-la e, no limite, reinventá-la.

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entrevista Rio de Janeiro, 2 1 de julho de 1997

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editoria

Gostaríamos que você comentasse as palavras de Consuelo Lins, publicadas na Revista Cinemais 1, sobre sua relação com os entrevistados em seus filmes: "De fato, algo se constrói entre a palavra e a escuta que não pertence ao entrevistado, nem ao entrevistador. É um contar em que o real se transforma num componente de uma espécie de tabulação, onde os personagens formulam algumas idéias, tabulam, se inventam, e assim como nós aprendemos sobre eles, eles também aprendem algo sobre suas próprias vidas. É um processo onde há um curto-circuito no ato de falar".

ed uardo coutinho

Eu gosto que as coisas estejam abertas a interpretações, e essa é uma interpretação. Espero que seja correta. O que pode ser interessante pensar é que o real e o imaginário estão entrelaçados. Não existe um cinema de documentário que seja o real. Não estou preocupado se o cara que eu entrevisto está dizendo a verdade- ele conta sua experiência, que é a memória que tem hoje de toda sua vida, com inserções do que ele leu, do que ele viu, do que ele ouviu; e que é uma verdade, ao mesmo tempo que é o imaginário. Não estou preocupado com a verdade pedestre das coisas, por isso a palavra dele me interessa. Se eu tiver que escolher entre dois projetos - um sobre um tema medíocre filmado no sertão do Nordeste e um sobre um tema quente filmado na cidade de São Paulo -, eu escolho o do Nordeste. A linguagem oral é essencial no imaginário presente, no lugar em que a cultura industrial não penetrou tanto. Ao contrário do que se pensa, o cara que é analfabeto ou pouco alfabetizado e que vive num espaço em que a cultura Não estou preocupado com a verdade oral é predominante, ele tem uma necessidade mais absoluta de se exprespedestre das coisas. sar bem do que o cara que vive numa cultura industrial. As pessoas da cidade de São Paulo falam mal, enquanto que no sertão a expressão é riquíssima, não só no que dizem, não só porque é eloqüente, mas porque no fundo é mais precisa que a linguagem urbana. Eu me lembro de expressões do Nordeste, até da Zona da Mata, que falam coisas como: "É na dura sorte". Essa expressão é de uma beleza extraordinária, e assim são. Essa eloqüência você não vai encontrar na cidade. 17


Você poderia contar um pouco do seu processo de trabalho no que diz respeito à relação com as pessoas que se tornam personagens em seus filmes, antes, durante e depois das filmagens? Eu não sou especialmente simpático com as pessoas. Quando falo com um nordestino, aparentemente não tenho nada que ver com ele. E essa diferença eu não procuro falsamente diminuir. É claro que eu uso uma linguagem coloquial, mas não tento fingir que sou igual. Eu não sou igual duplamente: porque estou atrás da câmera e porque não sou igual socialmente. Ao não fingir, você começa a limpar a área. É a partir dessa diferença assumida que certa igualdade pode se estabelecer. Então, eu não tenho empatia com as pessoas, e, apesar de não ter nenhum elemento prévio para Eu não sou igual duplamente: porque estou atrás da câmera e porcriar uma relação positiva na entrevista, eu que não sou igual socialmente. Ao não fingir, você começa a limpar consigo criar uma certa intimidade que a a área. É a partir dessa diferença assumida que certa igualdade maioria dos diretores não consegue. pode se estabelecer. A primeira regra é que ninguém me contará uma coisa na câmera que já tenha me contado fora. Então, de um lado, o cara está me dizendo aquilo pela primeira vez, não é um pão amanhecido. Ele pode ter dito a um assistente, mas não a mim. Para mim, o momento da filmagem é sempre o momento da relação, isso é essencial. O transe do cinema ocorre nesse momento, nem antes, nem depois. Eu não quero fazer uma sociologia da favela; por isso é importante que, no momento da filmagem, eu não saiba o que esse cara vai dizer. Nessa hora, minha tensão é maior que a dele. De repente, o cara pode ser um chato, ou então você pensa que não vai render nada e o cara dispara e é maravilhoso. Esse tipo de coisa possui uma tensão extraordinária, tudo está em aberto. Segunda coisa, geralmente há um set da entrevista, assim como tem o set da psicanálise: muitas luzes sobre uma pessoa sentada a 3 ou 4 metros distante do diretor, porque a câmera não pode mostrá-lo. E ninguém fala normalmente a essa distância. Então, se criou esse clima, dificilmente a conversa será boa. O que cria a tensão é chegar na casa da pessoa com a câmera ligada. Isso obriga toda a equipe a inventar: o câmera, o cara do som, porque eu tenho que estar absolutamente ligado na pessoa que está falando. Em muitos casos, portanto, o câmera é que tem que decidir o enquadramento.

Uma das cenas mais bonitas do Cabra marcado para morrer ocorre quando Elizabeth está na janela e conversa com vocês, que estão chegando da rua con1 a câmera ligada... Uma das coisas mais extraordinárias do filme é aquela janela. E não acontece nada, Elizabeth não diz nada de mais, mas é uma cena luminosa. Ela estava sendo filmada não com uma, mas

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com duas câmeras. Eu não escondi as câmeras, mas ela reage com uma espontaneidade, como se não houvesse câmera para ela. E quase todos os documentários não têm isso. Porque as pessoas filmam em situação de entrevista e conversam muito antes de ligar a câmera. Essa agilidade de filmar em situações de não-entrevista foi uma das coisas que a televisão deu, embora use mal, e que o cinema de documentário quase nunca teve. O Cabra tem isso didaticamente.

Qual a sua ética e qual a sua estética como documentarista? Eu procuro respeitar a cronologia da filmagem e não entrar num processo ficcionalizante. É claro que sempre que você contar uma narrativa haverá seu lado ficcional. E sem narrativa não há documentário, mas a montagem pode privilegiar a ficção. Eu tento manter uma certa lógica de progressão do personagem e da ação. Em Boca do lixo eu fui na casa de cinco pessoas, depois fui na da Jurema, aquela negra linda. Liguei a câmera, o som e a chamei. A partir daí, tudo que acontece é contínuo: ela aparece na porta e vem falar, as crianças estavam na porta, aparece a mãe dela e abre a janela, depois vem o marido na outra janela. E é um teatro, a mãe aqui, o marido ali, os nove filhos, e ela. E foi maravilhoso. As filmagens são assim: acontecem ou não. Aquilo tudo aconteceu em meia hora. E só no final da conversa ela confessa que eles comem lixo: "a gente come mesmo, mas não tem sentido mostrar, não quero que mostre para os outros. Não adianta nada, alguém vai me ajudar?". Isso eu mantive. Eu poderia tirar na montagem as situações em que aparecem as pessoas se criticando, me criticando, ou criticando a situação. Mas eu faço questão de deixar, explicitando o processo de um documentário. E se eu estou deixando é porque eu acho que tem algo ali que faz pensar. Para mim, o momento da filmagem é semPor isso agora eu só filmo em vídeo, porque em cinema, você é obrigado a ser tão econômico que não dá para contar história de vida. Então, você é pre o momento da relação, isso é essencial. O transe do cinema ocorre nesse momento, 1 obrigado a fazer o que todos fazem, conversar antes, ou é obrigado a fazer ' perguntas muito diretas. Mas se você quer começar uma entrevista dizendo nem antes, nem depois. 1 "conta tua vida", só o vídeo para agüentar. Não me interessa o plano curto. Eu quero a dimensão temporal das coisas. Às vezes uma pessoa fala, e é cinco, três minutos, e é isso mesmo. Tem uma densidade, tem progressão, ela hesita, volta para trás. Isso é inadmissível na televisão. As pessoas têm um · tempo, têm uma memória, têm um passado, mas para isso vir à tona tem uma temporalidade, que precisa estar nos planos, na edição. Essa dimensão do tempo está no conteúdo e na forma, na memória e no plano. Por isso a televisão não me interessa, ela vive no presente puro.

Paulo Menezes, sociólogo e professor da USP, publicou um artigo sobre Cabra marcado para morrer na Revista Tempo Social de 1994. Segundo seu ponto de vista, você manipulou as entrevistas e a articulação das imagens de forma a contar a história que você queria, que não corresponde ao ponto

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de vista dos entrevistados. Você quis recuperar seu tempo perdido a partir do filme interrompido em 64, mas as vidas das pessoas ficaram alheias a esse processo; a família de Elizabeth foi recomposta na moviola, mas não na realidade. Em suas palavras: "Este exercício termina, através do sujeito que filma, impondo um silêncio mais profundo e mais vigoroso dos que antes não tinham espaço para falar e agora têm a sua própria fala apropriada e deslocada, como um fake de si mesmos, muito mais perturbador porque, ao ser simulacro, impõe-se como verdade no lugar onde antes era evidente, ao menos, a ausência". Como você entende esse comentário? Acho falso. Ele agrupou tudo o que eu deixei de contradição para usar contra o filme. Eu poderia ter tirado tudo isso na montagem, mas a minha intenção é mostrar a instabilidade do meu lugar. O problema é que eu não parto do pressuposto de que o documentário é a busca da verdade. Para qualquer história, as versões nunca são iguais. É claro que eu tenho uma versão da história e estou profundamente imbricado nela. É claro que eu estou recuperando meu tempo perdido, e estou recuperando com paixão porque também é a minha história. Mas há uma solidariedade de recuperação que eles também sentiram. Há o camponês que fazia o papel de João Pedro na história e que nos rejeita porque foi expulso da religião depois do filme. Ele tem toda razão de rejeitar a gente. Mas há outros que incorporaram o passado, como Elizabeth, ou aquele cara que guarda o livro da gente durante todos esses anos. São todos contraditórios, não são representantes de uma classe, iguais. O forte do filme é justamente esse mundo de versões e de vivências. O filme é forte não pela história da Liga Camponesa, mas porque tem personagens diferentes, numa rede de aproximações, desencontros e versões. Desde o Cabra eu tento mostrar que existem dois lados da câmera e eles interagem. Há conflito, criam-se situações complicadas que eu quero mostrar. Isso para mim é essencial. Tem sempre alguém do outro lado da câmera, ninguém fala sozinho. O que me interessa num filme 90% é o diálogo, que é difícil porque ocorre entre pessoas diferentes socialmente. Pelo diálogo, a diferença abre uma possibilidade de igualdade, temporária e utópica, mas que pode existir. Se Paulo Menezes tivesse visto minhas outras obras, teria notado que explicitar as contradições e fragilidades da filmagem é um sistema de trabalho. Se eu mostro as circunstâncias de uma filmagem, estou mostrando que as "verdades" são contingentes. A interferência do acaso e da circunstância para mim é fundamental. Aquilo que não entra nos outros filmes, a sobra, é o que me interessa.

Qual sua vinculação com a Antropologia, em termos de autores ou referências? Sistemas de parentesco nem pensar, porque tudo que tem gráfico, matemática, eu fujo. 20

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Mas O pensamento selvagem, de Lévi-Strauss, por exemplo, me influenciou fundamentalmente para entender o Gabriel [personagem de O fio da memória], no que se refere ao mito e o bricolage. O mito tem um jorro de resignação e de revolta com o mundo que se encaixa muito no Gabriel. No caso de O fio da memória e em outras coisas que eu fiz, tenho uma fascinação pelo Walter Benjamin e a alegoria do anjo do Paul Klee sobre a ruína. Tem uma melancolia com a qual eu me identifico, apesar do lado messiânico dele que é mais difícil de compartilhar. Mas tem um lado poético do descontínuo que eu acho fascinante. E quando eu estava filmando a história do Gabriel, eu pensei: "esse filme tem que ter um anjo";divulgação e quando eu descobri aqueles sacos de ossos no cemitério, terminei colocando aquele anjo do cemitério. Para mim, aquilo foi uma homenagem a Benjamin, mas ninguém nunca falou disso. Colocar aquele anjo olhando para os ossos do Gabriel foi uma forma de alegorizar a destruição do passado dele e dos negros. Como o anjo voltado para as ruínas, em que o passado é uma catástrofe de ruínas e o vento do progresso arrebata o anjo. Mesmo que ninguém tenha entendido, o anjo é lindo e estava no cemitério, então tudo bem.

Seu olhar sobre o Brasil vai nessa direção? Eu fiz o Cabra já velho, e depois de tantos fracassos políticos do Brasil e da minha própria experiência de vida, eu tenho a impressão de que eu só consigo fazer alguma coisa porque eu já não acredito nas grandes palavras. Quando eu estou fazendo um filme eu não estou querendo ensinar ninguém. Isso é um pouco terrorista, porque na verdade eu não sou indiferente ao que acontece no mundo. Mas meu problema é mais ético que político. O que eu quero é conhecer as razões das pessoas. As minhas razões não interessam. É claro que não podemos nos desligar da nossa ideologia, mas se um cara me diz "sou pobre, sou progressista, mas sou a favor da pena de morte", eu quero entender as suas razões.

Nesse sentido, seus filmes poderiam ser definidos como etnográficos? É complicado você lançar mão das grandes palavras. Mas eu acredito que a minha visão nos filmes é antropológica, embora selvagem. Eu não sou cientista, mas tratamos dos mesmos pro"blemas: o que é um relato, a fidelidade de um relato, como traduzi-lo. Eu não preciso traduzir o oral para o escrito, mas tenho que editar, e a edição também é um ato de intervenção. O engajamento que há nos meus filmes é uma tentativa de conhecer as razões e versões que andam por aí. É um engajamento ético porque eu tenho que ser leal com as pessoas que eu filmo. Eu não tenho que ser leal com os camponeses, nem com os favelados em geral, mas com aquelas pessoas com quem eu conversei, que podem ser camponeses ou favelados. Isso quer dizer: impedir que o filme cause prejuízo a essas pessoas (prisão, perda do emprego, autoimagem negativa etc.), mas também não vou garantir que lhes traga grandes vantagens. 21


• Ninguém vai nu para uma entrevista.Eu vou ao lixo pensando em encontrar pessoas que digam que o lixo não é um inferno, mas um modo de sobrevivência como outro qualquer. Mas a forma como isso aparece é totalmente inesperada.

E se houver alguém que queira filmar o lixo e encontrar pessoas que digam que aquilo é um inferno, também vai encontrar... Vai encontrar! A coisa essencial é a seguinte: o cara pode ser um camponês na Amazônia, mas ele te vê e intui o que você quer ouvir. Eles são muito mais vivos que todo cineasta que vai procurá-los. No meu caso, eu fui para o lixo preparado para fazer a seguinte pergunta: "como é trabalhar no lixo, é bom ou é ruim?". Quando você está disposto a perguntar se é bom ou se é ruim, surge uma abertura para você ouvir deles qualquer tipo de resposta. Estar aberto para ouvir que é bom ou ruim é não desqualificar previamente a opinião dessa pessoa. Por exemplo, se você vai fazer um filme sobre os sem-terra e procura só as pessoas que correspondem aos parâmetros do senso comum sobre o grupo: o cara consciente, revoltado, você vai encontrar. Mas se você vai aberto para escutar, a coisa é diferente. Depois de uma semana filmando num lugar, você estabelece uma confiança que faz aflorar as contradições. No caso do Lixo, eu tinha mil imagens deles comendo, mas eu queria o depoimento de alguém que verbalizasse isso. E só depois de uma semana a Jurema confessou que comia. Eu cheguei a isso por meio de um trabalho de campo, convivendo com aquelas pessoas, mas só durante as filmagens, nem antes nem depois.

Em quase todos os seus filmes há uma interpenetração entre histórias de

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divulgação

vidas e a história oficial. Gabriel dos Santos, por exemplo, tece reflexões sobre os pequenos fatos de seu cotidiano, ao lado de comentários sobre a história do país. Podemos dizer que você faz dialogar subjetividade e objetivação, ou realidade e imaginário, como forma de ampliar os matizes do senso comum sobre um dado grupo social, ou a história dos negros no Brasil etc.? Juntar a grande história e a pequena história é maravilhoso. No Brasil, em que quase não existe cidadania, se você for perguntar como uma pessoa viveu o golpe de 64, você vai ver que tudo que eles viveram nesse ano, tirando uma minoria politizada, são visões da vida familiar. Os marcos provêm da vida privada. Se você falar da Copa de so. isso tem penetração, as pessoas ligam com sua vida real, mas os marcos históricos ... eu queria fazer um filme só sobre isso. Eu gosto de mostrar (demonstrar é uma palavra que eu não gosto) e aguçar essa separação entre o real e o ideal.

Você tem, em vista um próximo filme? Para mim, o que interessa é fazer filme de conversação. Minha vontade agora é fazer um filme que tenha uma hora e meia de duração, cem horas filmadas em vídeo, sobre religião no Brasil. Vou pegar uma favela de 2ooo pessoas. Tem uma antropóloga que está fazendo uma pesquisa sobre esse tema numa favela do Rio. O que há no Brasil é uma luta de santos que ninguém conhece a dimensão, pelo menos no cinema. Em cada momento da vida está presente o mágico, cada ato tem significado. São histórias extraordinárias. Não me interessa filmar os

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rituais afros, os caras matando animais, só a fala me interessa, a narração das experiências. Falar de religião, você acaba entrelaçando histórias de família, sexo etc. E você descobre a coerência daquelas pessoas, elas não são loucas. E pessoas de religiões diferentes, você vai ver, são pai, filha. Só me interessa trabalhar no micro e ir até o fim. Senão pode ficar uma coisa um pouco estéril e superficial: "o mosaico do Brasil". E gosto de trabalhar no singular, não procurar o caso típico. Eu sou apaixonado por esse caráter obsessivo da fala, dos santos e queria que fosse um filme tão obsessivo quanto é o pensamento deles.

O que você pensa da inserção de elementos ficcionais no documentário? No caso do Cabra tinha um elemento ficcional que era o filme de 64. Mas eu não gosto de inserir gratuitamente uma ficção. Claro que há pessoas que fazem isso de forma fascinante. Os filmes dos iranianos são evidentemente filmes de ficção, mas também têm uma forte base documental. O Kiarostami tem uma coisa genial de confundir os níveis, você não sabe se o cara é ator ou não é. Mas também há muitas fraudes nesse campo, como os docudramas para a televisão, as reconstituições vulgares. Viva o cinema também é fascinante. Mas meu trabalho é o oposto do trabalho desses diretores, eu trabalho no bruto. Eu vou lá e converso com a pessoa. Alguns têm uma concepção de que você só chega à verdade por meio da mentira. Até o Orson Welles, com o genial É tudo verdade. Mas eu acho que não é exatamente isso. Você só chega à verdade pelo imaginário, e nem é um problema de se chegar à verdade, são versões da verdade. Uma pessoa pode te dar um relato extraordinário da vida dela, um relato da história do Brasil que seja, que tem alguma coisa de verdade, e tem mil coisas que são inventadas; a pessoa se projeta no papel que não teve, e que a memória construiu. Mas não é completamente fictício, tem que ter uma base no real, para você subir ao imaginário e voltar. E no real, às vezes as histórias são tão ricas que não há ficção que consiga superar. Não é fácil inventar alguém como Gabriel dos Santos, que escreve aquele diário, constrói aquela casa; ou como o Bispo do Rosário, que constrói um manto para encontrar Deus. E as lacunas nos relatos são extraordinárias. O que me interessa é explorar a relação entre os dois lados da câmera e contar histórias. O que eu faço é alguma coisa extremamente marginal no mercado. Não consigo vender nada, sou preguiçoso, não sei se consigo mais subir morro, porque fumo três maços de cigarro por dia, então só vou fazer alguma coisa que eu tenha paixão. Na hora que eu filmo uma pessoa, eu a amo mais que a qualquer outra. Aliás, quando a câmera está ligada é que eu vejo as pessoas. Eu sou uma pessoa que não olha para o mundo. Sou totalmente distraído, me perco nas ruas, em todas as cidades. Agora, quando eu ligo a câmera e selo os olhos na pessoa, é isso que vale a pena para mim.

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Como se dá a dinâmica de filmagem na sua equipe? Se eu pegar numa câmera eu morro, porque eu caio no primeiro buraco. Nesse ponto eu sou diferente de Jean Rouch e outros diretores que são seus próprios câmeras. Se você vai filmar um ritual, tudo bem. Mas na hora de conversar não dá. Por isso eu dependo do fotógrafo como nenhum diretor de documentário depende. Se eu olho para o entrevistado, eu não posso olhar para o monitor. A intenção tem que estar too% na sua atitude. Essa relação de olhar é essencial. Naquele momento, aquele cara é o mais importante do mundo. Tem outra pessoa bebendo as palavras dele. Então eu não olho para a câmera nem para o monitor. No Lixo, eu cometi um erro. Fui entrevistar um cara que era funcionário público e que volta para o lixo. Ele diz que voltou porque perdeu o emprego, mas ali também não estava bom. E eu comecei a me sentir mal, mas não de culpa, é que a situação é mesmo foda. Aí ele abaixou a cabeça. E se eu ficasse calado, ia acontecer alguma coisa. Daí eu iria saber algo que eu não vou jamais saber: o que aconteceria se eu não tivesse feito uma pergunta por causa do meu malestar. Ele iria ficar dez segundos em silêncio, ele iria chorar, ou ele iria sair do buraco. Isso era essencial para mim, mas quando ele abaixou a cabeça, eu me senti tão mal que falei: "mas agora vai ser melhor ... ". E ele saiu daquele clima. Aí, quando eu vi o copião, me arrependi amargamente de ter interferido. Às vezes não dá para controlar a emoção, a ansiedade, no entanto aquele momento não ia mudar a sorte dele. Eu sei que ele iria sair do buraco, tinha uma câmera em frente, mas como iria ser fascinante. Depois que ele acabasse, eu poderia abraÇá-lo e beijá-lo, mas não naquela hora. O silêncio depois de uma fala é a coisa mais linda que tem. Agora tem gente que manipula tudo isso, tira a pausa, tira o erro.

Como você vê dialogar sua obra com o panorama do documentário no Brasil ou no mundo? O que me chateia um pouco é que o Cabra ganhou prestígio internacional, mas eu não conheço no cinema brasileiro filmes que tenham sofrido essa influência, exceto o vídeo "Chico Antônio", do Eduardo Escorei, e alguns do Sérgio Goldenberg. Não por acaso, o Escorei foi o montador do Cabra e o Sérgio meu assistente em outros filmes. Eu faço documentário para não ter que preparar um roteiro. E para mim escrever é insuportável porque eu tenho que escolher palavras, e o mundo das palavras é infinito, cada palavra .gera dúvidas e dramas de consciência. E eu opto pela reportagem, pelo improviso, diferentemente da maioria dos documentaristas, porque aí eu me livro de outro problema, tão insolúvel na minha consciência quanto o da palavra: onde colocar a câmera? Eu só filmo o outro para resolver um mal-estar comigo mesmo. Um dos filhos da Elizabeth, apesar de todos os problemas, falou uma coisa: "o cara está é procurando uma família". E talvez seja verdade.

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O Centro de Trabalho lndigenista (CTI), uma organização não-governamental fundada em 1979, que apóia os projetos de autonomia dos índios Waiãpi np Amapá, tem sido alvo de uma campanha de difamaçãb lançada há vários anos e, recentemente, de inquéritos por parte da procuradoria do Estado do Amapá. Entre esses inquéritos, um visa apurar a "possível exploração de ouro em área de reserva indígena, o outro, o uso indevido de imagens dos índios" pela antropóloga Dominique Gallois, docente da Universidade de São Paulo, que desde 1978 vem realizando pesquisa etnológica entre os Waiãpi, e desde 1991 coordena os projetos do CTl junto a essa população. Recusando -se a ouvir o posicionamento da maioria da comunidade Waiãpi, o procurador João Bosco de Araújo )r. encaminhou, em junho de 1997, uma Ação Civil Pública ao juiz federal de Macapá, que determinava a retirada e a proibição de ingresso de qualquer representante ou técnico do CTI na área indígena Waiãpi, diante da "nocividade de sua presença para os índios". Conseqüência: suspensão de todas as atividades e convênios firmados com o CTI em vigor na área sem ouvir os representantes da maioria da população. Uma caravana de oito chefes Waiãpi foi a Brasília neste mesmo mês. Os jovens secretários do Conselho das Aldeias (Apina) vêm produzindo documentos, cartas e, incansavelmente, procuram ser ouvidos pela imprensa. Mas, no Amapá, suas vozes são caladas, a favor daqueles que se pretendem conhecedores e mediadores permanentes dos índios, vistos como incapazes de escolher seus parceiros e assumir a condução de seu futuro fora do modelo assistencialista.


"(ndios eletrônicos": a rEde lndrgena de comunlcaçio Dominique T. Gallois* Vincent Carelli* *

A década de 90 representou, para a mídia brasileira, um período de intensa transformação e globalização. As TVs a cabo transmitem noticiários de todo o mundo, as antenas parabólicas se multiplicaram na zona rural, a TV Escola retransmite a milhares de escolas rurais programações antes reservadas aos centros urbanos. Vive-se a expectativa de uma comunicação abrangente, em que todos os segmentos da sociedade poderiam expressar suas contribuições específicas à construção de uma nação pluriétnica. Espera-se de tal aquecimento na comunicação a revisão de preconceitos, o respeito pelas diferenças culturais, idealmente aproximadas por meio de informações diretamente conduzidas por representantes dos mais diversos segmentos culturais. Participar desta rede global de comunicação também é a expectativa dos índios. A abertura de novos espaços na mídia representa, para eles, um duplo desafio: o de viabilizar seu espaço e o de controlar a difusão de suas próprias vozes numa mídia que prefere difundir falas sobre os índios, em detrimento da fala dos índios.

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A mídia e o "crepúsculo" dos povos lndrgenas O preconceito mais difundido na mídia brasileira é certamente o do "primitivismo"- ou o da fragilidade- das culturas indígenas, que justifica "preocupações" paternalistas sobre seu futuro. É o que afirmava o sociólogo Hélio Jaguaribe quando, em 1995, ocupou os meios de comunicação para decretar que "o Brasil não terá índios até o final do próximo século"• . Esta versão etnocêntrica de nossa história de relacionamento com as sociedades indígenas não é confirmada pela história vivida por milhares de grupos étnicos diferenciados no planeta. O futuro das sociedades não-ocidentais dependeria, segundo Jaguaribe, da absorção "por conta própria ou por difusão" de elementos de nossa cultura. O sociólogo menciona o uso de equipamentos eletrônicos, como TVs e câmaras de vídeo, como um sinal de assimilação e perda de identidade. Na verdade, os "índios eletrônicos" ainda representam uma pequena minoria, tratando-se de uma tecnologia dificilmente acessível à maioria das comunidades indígenas. Os avanços tecnológicos colocados à disposição dos índios - que sejam manufaturados como ferramentas, armas de fogo ou produtos químicos, dentre os quais os farmacêuticos - nunca representam, por si só, um progresso rumo ao estágio que o sociólogo denomina "civilizado"; tampouco a absorção de bens industrializados dos quais passam a depender representa necessariamente melhoria em suas condições de vida. O futuro que o Brasil tem oferecido aos índios é em geral o da marginalidade, resultante da espoliação Ços recursos de suas terras, uma situação que não permitiu à maioria dos povos indígenas do país o acesso às novas tecnologias. Um número sempre crescente de intervenções, de iniciativa privada e governamental, atinge esses povos, sem o neces28

sário repasse de informações. A maior parte dos grupos indígenas no Brasil ainda tem uma compreensão limitada das motivações que levam nossa sociedade a interferências das mais diversas em suas vidas, sem acesso aos centros de decisão que geram essas investidas. Eles continuam tendo, portanto, uma carência enorme de informação, indispensável para que possam se posicionar em relação a tais ações. Os índios não se recusam a ser "cidadãos brasileiros". Tampouco estão alheios, por incapacidade cultural, às técnicas e conhecimentos que lhes permitam melhorar suas condições de vida, de acordo com padrões culturais e formas de organização social que eles não pretendem abandonar. Mas suas formas de apropriação seletivas de elementos culturais externos não têm, forçosamente, como resultado, a perda de identidade. Nossa civilização nem "desbota" nem representa uma escolha exclusiva. Nas últimas duas décadas, os povos indígenasatravés de movimentos locais e nacionais - vêm investindo no seu futuro, especialmente por meio de novas formas de organização que fortalecem sua presença no país. É nesse contexto de intensificação do contato que esses povos têm tido a oportunidade de dinamizar suas diferenças, não apenas em relação aos não-índios, mas entre si. Sua transfiguração numa categoria de "índio genérico" não ocorreu, nem está em processo. Nem se pode afirmar, hoje, que a preservação das particularidades étnicas depende do isolamento. A experiência mundial e a dos índios no Brasil mostra que a vivência e a afirmação das diferenças resultam de experiências de múltiplas formas de articulação de interesses- econômicos, políticos ou culturais - na interação com nossa sociedade. Cabe indagar, nesse sentido, se os impactos da apropriação e uso de instrumentos de comunicação por "índios eletrônicos" correspondem ao prognóstico de Hélio Jaguaribe: o desaparecimento de suas culturas.

'A matéria do sociólogo é apenas um evento de uma série, difundida pela grande imprensa, que privilegia esta visão etnocêntrica do futuro dos índios. Ver, na mesma sé· rie, as matérias intituladas: "Índios: crepúsculo de uma raça" - Manchete, o8.07.89, e "Índios Brasileiros: crepúscu· lo de um povo" - OESP, 08.12.96.


A comunicação entre povos indígenas

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Cf. e x p e r i ê n c i a s retratadas em vários d o c u m e n t á r i o s da A série Vídeo nas Aldeias: Festa da Moça, 1 9 8 7 ; Vídeo nas Aldeias, 1989; O Espírito da TV, 1990; A arca dos Zoz, 1993; Eu já fui seu irmão, 1993 e Morayngava, 1997.

Estudos empreendidos em vários continentes evidenciaram que a apropriação da tecnologia, quando garante comunicação entre culturas, fortalece a persistência das diferenças culturais. No Brasil, algumas experiências localizadas ilustraram como a vivência de intercâmbios, da comparação e do confronto, permitiu a comunidades indígenas um novo olhar sobre suas próprias especificidades culturais, que elas passam a valorizar num novo contexto2. É exatamente o debate da diferença - especialmente quando levarmos em conta o contexto das políticas assimilacionistas - que representa para esses grupos a oportunidade de reivindicar um espaço próprio e garantias para um futuro mais digno. O interesse dos povos indígenas em incrementar suas experiências de intercâmbio se torna mais relevante ainda se considerarmos que, no Brasil, os índios estão isolados entre si: existem cerca de 210 etnias, falando 180 línguas e mantendo enorme diversidade cultural, multiplicadas pela variação das experiências de contato. Quando obtêm informações sobre a existência de outros povos indígenas, quando percebem que todos experimentam as mesmas dificuldades no convívio com os "brancos", quando se sentem, então, muito mais numerosos, eles captam a dimensão da posição de "índio" que lhes reservamos. Aprendem uns com os outros novas formas de interação com a sociedade nacional, constroem alternativas próprias que experimentam primeiro internamente, mas que também estão interessados em divulgar. São novas modalidades de representação que envolvem a reconstrução de sua auto-imagem, um processo seletivo de particularidades culturais, que cada povo realiza em função de sua experiência e de seus interesses no contato. Os povos indígenas se fortalecem em circunstâncias de comunicação, quando as situações particulares fazem sentido, e

então eles podem manifestar respostas culturalmente adequadas. O formato de suas culturas depende, efeefetivamente, de uma dinâmica de recriação permanenpermanente de diferenças, que assumem como afirmação política e que têm muito a ganhar no acesso aos meios de comunicação. Esta é a verdadeira face do "índio eletrônico". O projeto Vídeo nas Aldeias, doCTI, CTI, tem realizado - nos últimos dez anos - uma experiência de interintervenção reveladora nesse sentido, colocando à disdisposição de algumas comunidades indígenas informações e tecnologias que permitiram a manipumanipulação de sua própria imagem, construindo uma rede de videotecas em aldeias, incentivando o intercâmintercâmbio e treinando câmaras indígenas. Implantar Implantar um monitor de vídeo numa aldeia é, no conceito comum e nas intenções do projeto Vídeo nas Aldeias, uma revolução tecnológica. Representa uma ponte direta da cultura oral para os meios audiovisuais, sem paspassar pela escrita. E justamente por não passar por esta via individualizada de apropriação e transmistransmissão de conhecimentos, potencializa processos traditradicionais, como o debate coletivo da informação, no momento da apropriação de novas informações. Ao registrarem e visualizarem, no pátio das aldeias, suas performances- sejam rituais ou negociações polítipolíticas - , essas comunidades selecionam, reconstroem e fortalecem manifestações culturais que elas desedesejam preservar para as futuras gerações e, sobretusobretudo, que elas julgam adequadas para se contrapor aos não-índios. Neste segundo momento, a exigênexigência de acesso à informação se completa com a exiexigência de comunicação.


VOZES indígenas nos novos espaços da mfdla mídia televisiva televisiva dessas técnicas ancestrais. Este ponto de vista persiste em abordar a situação dos índios nos termos impostos pelo preconceito comum de "povos "povos ameameaçados". Ou Ou seja, trata parcialmente dos impactos da globalização da cultura, na forma de uma simples denúncia das "perdas" "perdas" "sofridas" "sofridas" pelas culturas "dominadas". Os índios não se reconhecem nestas imagens, que representam sempre a versão de algum "bran"branco" sobre eles, comprometidas com a idéia da fragilidade de suas culturas, descritas em suas c a r a c t e r í s t i c a s "primitivas "primitivas e e autênticas", e conduzidas na perspectiva da superioridade de nossas formas de desenvolvimento, quando descrevem No atual contexto de expansão da mídia no Braos problemas de adaptação no convívio com nossa sil, o desafio que se coloca aos índios - e às entisociedade. dades que têm investido há vários anos na superação Apostando no futuro e demostrando seu dinamisdas barreiras da comunicação e da tutela imposta mo cultural, as imagens produzidas pelos índios soaos índios - é garantir-lhes espaço nestes novos bre si mesmos não evidenciam preocupação com a canais. A abertura da mídia à voz dos índios deverá preservação simples de traços culturais que nós filtracontribuirá produção de materiais alternativos aos mos como "autênticos". "autênticos". Suas produções evidenciam clichês exóticos e/ou catastróficos embutidos no outro fio de memória, que lhes é próprio. Nessas socicurricutum escolar brasileiro e na maioria dos pro- edades, a memória da tradição, relacionada à dinâmigramas da mídia televisiva. São imagens que reiteca da oralidade, revela outra dimensão de ram o papel marginal das sociedades indígenas autenticidade, manifesta na vivência de processos de em nosso futuro, focalizando sempre uma das duas contínuas adaptações. Esse é o conteúdo de algupontas de nossa história de contato com esses mas produções dirigidas por documentaristas indígepovos: ou a origem ou o término de um processo nas 3 , que expressam a maneira como s u a s considerado irreversível de apagamento das difecomunidades vêm mantendo acervos culturais próprirenças culturais. os, que elas estão agora interessadas em difundir nos No Brasil, os povos indígenas saíram do isolameios de comunicação. mento e, neste processo, formularam demandas esPara combater os preconceitos existentes no senso pecíficas para a nossa s o c i e d a d e , que são comum acerca dos índios, é essencial, portanto, aturaramente abordadas nos documentos que pretenalizar as informações do público, com respeito aos dem tratar do "problema do índio". A maior parte ganhos obtidos na apropriação da "eletrônica". Se é dos documentários difundidos na mídia televisiva de fato aceito que a experiência da comunicação continua evidenciando o fascínio pelos saberes traglobalizada representa para os índios um processo dicionais e o saudosismo diante do desaparecimento extremamente rico de atualização de suas identida30

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Ver,

por

exemplo,

os

documentários de Kasiripinã Waiãpi: 1995,

"Nossas

e "Caime

festas", Waiassê"

(Tem que ser curioso), 1997 (Vídeo nas AldeiasjCW).


des, eles teriam assim oportunidade de participar diretamente deste debate, em plano nacional. Dar voz aos índios é permitir que eles expressem, sem tutor, sua posição quanto ao convívio com nossa sociedade. Em inúmeras oportunidades, líderes indígenas investem todos seus esforços em passar suas reivindicações locais ao plano global da comunicação, dominada por não-índios. Uma janela que eles encontram dificuldade em abrir, no Brasil. Austrália e Canadá, dois países que massacraram cultural e economicamente suas minorias, incluíram recentemente em suas constituições o direito dessas minorias às redes de comunicação próprias, difundidas em língua nativa. Tudo indica que esses países acabaram admitindo que· as minorias étnicas não iriam desaparecer e que sua permanência não representa nenhuma ameaça à soberania nacional. No Brasil, essas "preocupações" com relação aos índios ainda não foram superadas. É portanto urgente a abertura de espaços exclusivos para os índios na mídia, pelos quais eles teriam a oportunidade de responder ao olhar que nossa sociedade coloca sobre eles. Graças à eletrônica, as objetivas de suas câmaras poderão retransmitir para o mundo o ponto de vista dessas comunidades sobre as "ameaças" que pesam sobre suas "técnicas ancestrais", mas também as opções que esses povos estão fazendo para defender sua participação ao desenvolvimento, seu interesse em adquirir novos saberes, o modo como estes conhecimentos são absorvidos, adaptados, por processos criativos, reveladores das diferenças culturais. Para abrir-se à voz desses povos, é preciso abandonar a perspectiva da distância para privilegiar a da aproximação. Priorizar o contato exige priorizar a demanda de interação que esses povos colocam para nossa sociedade, difundir, nos espaços da mídia televisiva, todo um acervo de experiências que eles têm a oferecer à nossa sociedade.

• Dominique Tilkin Gallois é profa. dra. do Depto. de Antropologia da FFLCH·USP, autora de Mairi revisitada e co-diretora dos vídeos A arca dos Zoé e Segredos da Mata. - Vincent Carelli é videasta e um dos idealizadores do projeto Vídeo nas Aldeias, do CTI, e co-diretor dos vídeos A arca dos Zoé e Segredos da Mata. Fotos: Dominique Tilkin Gallois

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Pelos olhos de Kaslrlplnã: revlsltando a experiência walãpl do VldEO nas AldEias 1 Evelyn Schüler" Não tem problema não, Waiwai falou, nós mesmo filma, filma parente. Isso sempre vai continuar. Quando morre, sempre televisão, não fala, aparece só televisão. Meu filho vai falar: meu pai tá vivo ainda. Olha, aparece na televisão. (Kasiripinã, videasta da aldeia Mariry, janeiro de 1996).

Kasiripinã filma. É bom assim, filma nós, é bom. Depois mostra televisão, pra assistir. (Capitão Waiwai da aldeia Mariry, janeiro de 1996).

Agosto de 1992: Kasiripinã, com cerca de 30 anos, sai de sua aldeia, na área indígena Waiãpi•, e vem a São Paulo para participar como palestrante da exposição Índios no Brasil, organizada pela Secretaria Municipal de Cultura. Nessa ocasião, recebe de Vincent Carelli, idealizador do projeto Vídeo nas Aldeias, do CTI, uma câmera VHS de presente. Ainda em São Paulo, Kasiripinã faz as suas primeiras experiências com a câmera, praticamente sozinho, tendo apenas uma breve noção de seu funcionamento, o que lhe possibilita encontrar seu próprio jeito de fazer os registros. De volta ao Amapá com sua câmera, Kasiripinã - que (por ter um amplo repertório mítico, conhecer muitos cantos, saber tocar e fazer todos os instrumentos) já era considerado excelente músico e profundo conhecedor das tradições waiãpi - passa a ser reconhecido como cameraman do grupo. Em função de sua idade e relações de parentesco, Kasiripinã tem acesso direto à "roda" dos líderes de sua aldeia Mariry e de outras aldeias waiãpi, e sua posição como primeiro videasta do grupo potencializou sua capacidade de transmissão de conhecimento 3 e de todo o grupo (em frente da câmera), como se nota desde os primeiros registros em 1992, frutos de um trabalho em conjunto.

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' Neste texto, procuro dar seqüência à descrição da experiência que Dominique Gallois e Vincent Carelli comentam no artigo Vídeo nas Aldeias: a experiência Waiãpi (1992). ' Os Waiãpi, povo falante de uma língua tupi-guarani, vivem em ambos os lados da fronteira do Brasil com a Guiana Francesa. A população total da etnia é de cerca de mil indivíduos. No Estado do Amapá, cerca de 520 índios distribuem-se entre 12 aldeias, numa área com 607 milha. 3 Sua posição como videasta do grupo lhe conferiu também, de certa forma, um certo poder em relação aos outros, pois Kasiripinã não passa a sua câmera para um outro Waiãpi. Exceção era o seu filho mais velho (o que tem a ver com a importância da transmissão de conhecimento de pai para filho num grupo em que as relações de parentesco são estruturantes na divisão de diferentes papéis), que cuidava das baterias, filmava e, como Kasiripinã não sabia nem ler nem escrever, era ele quem rotulava todas as fitas. Para Kasiripinã, foi muito grave e perturbador a perda de seu filho, que se suicidou em 1993·


• Para uma introdução à "Antropologia da comunicação visual", ver, por exemplo, Worth, 1981, e Hymes, 1964. s Entre as quais: Nambiquara /MT, Gavião Parkatejê/PA, Kayapó/PA, Krahó/ TO, Canela /MA, Xavante/MT, EnawenêNawê/MT, Terena/MS e Waiãpi/AP.

Community based fllms and vldeo proJects Ao mostrar, em 1920, aos seus dois protagonistas lnuit Allakariallak e Nuvalinga, na Ártica Canadense, os papéis para o seu filme Nanook of the North, e ao discutir com eles os procedimentos posteriores, o cinedocumentarista britânico Robert Flaherty envolveu-se num projeto que hoje encontraria seu lugar na categoria dos "community based films and video projects" (Lüem, 1995; Worth & Adair, 1972; Nigg, 1980), que poderia ser traduzida como "projetos de vídeo e filmes em trabalho conjunto com as comunidades". Assim nasce o próprio filme etnográfico. Datam da mesma época as discussões sobre os problemas que surgem quando a equipe do filme e os antropólogos envolvidos dividem sua autoridade performática com aqueles a serem filmados, desconstruindo assim sua superioridade técnica. Fica difícil definir a objetividade, que é freqüentemente exigida; e as fronteiras entre documentário e ficção se atenuam. Todo trabalho em conjunto entre os que filmam e os que foram filmados traz necessariamente uma auto-representação, e surge a questão acerca do público ao qual os filmes ou vídeos se dirigem. Isto se torna polêmico no caso do filme etnográfico, em que os modos de ver e de pensar do público ocidental divergem muito daqueles do grupo local, dificultando assim um compromisso aceitável para ambos os lados. Trata-se de negociar os diferentes interesses e assumir que tanto os vídeos ou filmes etnográfiéos quanto os textos antropológicos giram em torno de construções interpretativas. Como narrativas audiovisuais, estes constituem "textos" que podem ser "escritos" e "lidos" de diferentes formas, dependendo dos contextos de comunicação e das tradições audiovisuais específicas. Nesse sentido, as questões relativas à objetividade, às formas diversas de auto-representação, aos

diferentes modos de ver e de pensar, assim como às reações de várias comunidades diante de novas mídias e tecnologias, são raramente criticadas como prejudiciais à pesquisa antropológica, e cada vez mais se tornam centro das atenções da chamada "Antropologia da comunicação visual""· Dentro do panorama dos "projetos de filmes e vídeos em trabalho conjunto com a comunidade", encontramos no Brasil uma situação particular em conseqüência da atuação do projeto Vídeo nas Aldeias, que promove um programa de informação e comunicação alternativa entre várias áreas indígenas do país5. Ao colocar este projeto no rol de experiências em outros países, é importante ressaltar a particularidade de cada projeto dentro do contexto político local. No Brasil, o Vídeo nas Aldeias enfrenta várias barreiras, pois, desde seu início em 1987, o CTI vê também neste projeto uma forma de "lutar por uma maior autonomia para as sociedades indígenas, [o que] implica contribuir para que estas sociedades alterem a relação que mantêm com o exterior" (Azanha e Novaes, 1981). Com isso, há o confronto com barreiras políticas, pois o autoritarismo de alguns setores da po lítica assistencialista choca-se com a apropriação do vídeo pelas comunidades indígenas, de um lado como uma estratégia de autodeterminação, resistência e reafirmação étnica e, de outro, com barreiras conceituais, porque ainda hoje vigora no senso comum um conceito de cultura "pura" e estática, na qual a apropriação do vídeo pelos índios é tida como um fator de "perda" da cultura indígena. De fato, perde-se de vista que é justamente a maneira pela qual os índios se apropriam da mídia que reafirma a identidade étnica e demonstra as diferenças culturais. No decorrer dos anos, o projeto Vídeo nas Aldeias foi ampliado e existe hoje em 15 aldeias, nas quais foram instaladas videotecas. Em algumas dessas aldeias, formaram-se videastas indígenas, 33


que receberam câmeras para fazer seus próprios registros e tornar viável uma troca cada vez maior entre as aldeias e as comunidades indígenas. No início de 1996, outra idéia foi concretizada por este projeto: o Programa de !ndio, realizado pelos próprios índios, que vai ao ar na TV Universidade de Cuiabá. Cada área indígena em que o Vídeo nas Aldeias atua, ocorre uma história diferente; voltemo-nos aqui para a experiência em questão: os Waiãpi.

A experiência waiãpi Não tem problema não. Nós viu como dança. Faz na televisão, não tem problema nada. Assim é bom. Não é bom karaiko vem, filma e leva embora, não é bom. Assim é bom, festa, aqui, vendo televisão na aldeia. Porque nosso avô não tem filmagem, assim nós agora não vê nada, nada, nenhum sinalzinho. Só grava na cabeça. Agora não. Tem filmagem. Quando gente morre, aparece na televisão, lembra ainda. Antigo atrás, nada, morreu, pronto, não tem nem foto. Primeiro foto, depois filma, aí é bom. É bom assim, filma nós, é bom. Depois mostra televisão, pra assistir. (Capitão Waiwai da aldeia Mariry, janeiro de 1996).

Essa fala de Waiwai explícita dois tipos de experiências relativas a filmagens que os Waiãpi conheceram: uma negativa, que remete a uma primeira experiência nos anos 70 com os karaiko (os "brancos" em waiãpi), que vieram para a área indígena, filmaram e levaram o material filmado embora; e outra positiva, que eles conheceram pelo projeto Vídeo nas Aldeias, em que o processo de filmagem se dá em conjunto com os Waiãpi e o material filmado, seja por um videasta "branco" ou indígena, sempre pertence ao grupo, qu~ opina e discute o que e para quem este material pode ser mostrado ou não. Na implantação do Vídeo nas Aldeias waiãpi, em 1990, a antropóloga Dominique Gallois 6 conta que a intenção era de "explicitar o impacto de uma nova forma de comunicação sobre a representação que os Waiãpi têm de si mesmos. A reprodução e

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circulação, em vídeo, de discursos e de posturas deles mesmos e de outros grupos indígenas, promoveram uma transformação na 'lógica do saber' tradicional. As informações veiculadas pelo ·vídeo apresentam a diversidade dos povos indígenas em situações que associam aspectos da realidade normalmente separados na transmissão das tradições orais: características tecnológicas, lingüísticas e aparência física, posição em relação aos brancos etc. A circulação dessas informações em vídeo contribuiu para a revisão da auto-imagem, propiciando associações inéditas e ampliando as informações anteriormente limitadas aos fundamentos míticos e às peculiaridades da experiência histórica, exclusiva ao grupo Waiãpi" (Gallois, 1992:14-15) 7• Como em muitas áreas da Amazônia, a apropriação do vídeo, que possibilitou novas formas de comunicação entre os Waiãpi e os "outros"- os "brancos" e diversos grupos étnicos8 - relacionouse diretamente com seus projetos culturais e políticos, como, por exemplo, o processo de demarcação de suas terras 9• O vídeo desencadeou, desta maneira, mudanças no plano cognitivo, que dizem respeito tanto à consciência de novas formas de ação (em relação aos "brancos", por exemplo), quanto à apreensão de uma nova dimensão do tempo do contato e da história. Em outras palavras, propiciou uma "consciência da mudança" num processo que se mostrou em dois movimentos simultâneos e interativos: o de repensar a relação entre eles e com os "outros". A atuação de Kasiripinã como primeiro videasta Waiãpi marcou novas mudanças neste processo desencadeado pelo Vídeo nas Aldeias. Desde agosto de 1992, Kasiripinã começou a fazer, em ritmo bastante intenso, os primeiros registros sobre aspectos da vida política, cotidiana e ritual•o. Registrou, sobretudo, rituais que estavam sendo

6 A antropóloga Dominique Gallois trabalha com os Waiãpi desde 1977 e acompanha as atividades do projeto Vídeo nas Aldeias desde janeiro de 1990 na área indígena Waiãpi, quando a primeira unidade de vídeo (gerador, monitor e vídeo VHS) foi instalada na aldeia Mariry (em 1992, uma segunda unidade foi instalada na aldeia Aramirã; uma terceira, na aldeia Taitetuwa em 1993; e ainda uma outra, na aldeia Ytuwasu em 1995). Os Waiãpi dispõem, em suas videotecas, da íntegra do material e/ou a montagem resumida dos registros da equipe deste programa nestes últimos seis anos, incluindo: reuniões e negociações para a demarcação da área (o8/89 e 04/92) e a primeira visita dos Waiãpi às aldeias de seus parentes da Guiana Francesa (07/91), o trabalho nos garimpos manuais controlados pelos Waiãpi (o6/89 e 09/91), a festa do Pakuasu, um ritual importante que é realizado a cada oito anos (10/91), a visita de chefes de diferentes aldeias às minas e garimpos da região (o6/92), algumas narrativas míticas sobre a Fortaleza de Maca pá (05/92) e as atividades da demarcação (94/95/96). 'O vídeo O Espírito da TV (in: Catálogo de Distribuição/CTI) conta como chegou o primeiro vídeo e monitor na aldeia em 1990 (quase vinte anos depois do "contato oficial", feito durante a construção da Rodovia Perimetrai-Norte no Estado do Amapá), mostrando as primeiras reações dos Waiãpi ao ver as imagens emitidas pela TV. Como estas imagens


são reconhecidas como produtoras e materializadoras de uma força vital, elas foram vistas, num primeiro momento, como perigosas. Nas primeiras sessões, os Waiãpi passaram a se pintar de urucum e a usar espelhos para se protegerem do "espírito da TV" e só começaram a "se acostumar" após um longo processo de dessacralização. 8 Ver o encontro dos Waiãpi com outro grupo étnico no vídeo A Arca dos Zo -é (in: Catálogo de Distribuição/CTI/ São Paulo); ver o artigo de Gallois e Carelli, 1995. 9 Ver vídeo Placa não fala, sobre a experiência da autodemarcação Waiãpi (in: Catálogo de Distribuição/CTI/ São Paulo). ' 0 Estes registros incluem: diferentes eventos políticos importantes (como as reuniões com agentes governamentais na área e em Macapá), as negociações para a demarcação da área (em março de 1996 a experiência piloto da autodemarcação waiãpi foi reconhecida oficialmente e Kasiripinã registrou muitas cenas da demarcação física, desde leituras com GPS, localização dos pontos geodésicos, colocação de marcos até as plantações nas zonas de entorno), a visita aos Waiãpi do Camopi (Guiana Francesa), festas de caxiri. etc. u Desde outubro de 1996 Muru, da aldeia Taitetuwa, é cameraman waiãpi também.

organizados para serem filmados por ele. Estes registros são marcados pelos discursos in loco, que incentiva ao fazer perguntas específicas que só ele, conhecedor da tradição, sabe fazer. Este tipo de registro merece uma atenção especial, pois a maior parte das cenas captadas por Kasiripinã é composta justamente para ser filmada por ele, que, sendo considerado um dos videastas do grupo", vê através de uma câmera interna, a qual em muito difere dos registros feitos por uma câmera externa (por pessoas não-pertencentes ao grupo) em relação ao ritmo, a temas, a vozes etc.

lfj,,I§'fii externa e interna Numa primeira etapa da apropriação do vídeo, os Waiãpi conheceram pela equipe do 01 os registros de uma câmera externa. Esta etapa foi marcada pela primeira experiência de se ver e de se ouvir, o que provocou um rico processo de reflexão coletiva durante as projeções. Esta experiência contribuiu para acelerar e enriquecer a revisão da autorepresentação que os Waiãpi estavam - e estão constantemente - elaborando, em função da intensificação de suas relações com os "brancos".

Nesse contexto·, os Waiãpi interessaram-se logo em assumir seu próprio registro em vídeo e pediram câmeras. Os argumentos apresentados foram motivos práticos, e sobretudo conceituais e políticos: a equipe do CTI não mora na área e não consegue visitar e filmar todas as aldeias, como eles haviam solicitado, nem poderia estar presentes em todas as reuniões e/ou negociações que deveriam ser gravadas. Assim como eles conheceram out ros grupos indígenas pelo vídeo, os Waiãpi também queriam gravar, eles mesmos, os aspectos que consideram mais significativos de seu modo de vida e do saber dos mais velhos. Os registros de Kasiripinã dão início a uma etapa seguinte da apropriação do vídeo, na qual se acentua um significado de "resgate", complementar e subseqüente à reflexão de revisão coletiva de sua auto-imagem. É interessante notar que este aspecto foi muito reforçado a partir do momento em que os Waiãpi passaram a "se filmar", sem precisar esperar a vinda dos amigos de São Paulo. Desde o início, os registros de Kasiripinã diferiam muito dos registros da equipe do CTI: enquanto Vincent Carelli mostra poucas seqüências longas, planos mais fechados e muitos doses e cortes, Kasiripinã mostra muitas seqüências longas, planos abertos, poucos doses e falas inteiras, que muitas vezes são dirigidas a ele ou por ele suscitadas. Tratase de diferentes produções e narrativas audiovisuais, que, a meu ver, estão relacionadas a diferentes propósitos e conceitos de cultura. Kasiripinã tem o propósito de documentar a própria "cultura", registrando um conjunto de expressões do grupo. Por sua vez, a equipe do CTI não pretende registrar um "todo", mas retratar uma questão (o impacto da imagem, o encontro dos Waiãpi com os Zo'é, a demarcação etc.), e para tal existe um roteiro por trás. Ambas as posições denotam "autoridades", mas enquanto a equipe do CTI assume a dos registros - e da edição - de uma posição externa 35


ao grupo, Kasiripinã divide aquela do que vai ser registrado com o grupo. Como é patente em seus primeiros registros, existe uma complementaridade essencial entre o operador do equipamento e as lideranças que dirigem o registro". A documentação visual diz pouco da personalidade do videasta não se pode perceber a intenção pessoal de Kasiripinã, mas muito da intenção do grupo -, o que evidencia relações entre cameraman e comunidade. Não se trata de uma câmera oculta, mas participativa, que coloca as pessoas em cena, chama, pergunta, espera resposta, pede para recomeçar; enfim, uma câmera que dialoga. Nesse sentido, os registros de Kasiripinã incorporam o discurso dos outros: é o "discursovisão" construído em diálogo com os outros Waiãpi que predomina, como se houvesse um acordo tácito entre "ator" e câmera. Por isso, pode-se considerar que as imagens e as falas que ele capta em vídeo "passam de criações individuais para o domínio das representações públicas, isto é, culturais" (Sperber, 1989). Pode-se dizer que o registro de Kasiripinã produz um outro: ao trazer para o vídeo aspectos culturais, ele está, ao mesmo tempo, produzindo cultura e reinventando as tradições em conjunto com o grupo. Assim, por exemplo, ao filmar a "Festa da Onça" (na aldeia Aramirã em janeiro de 1996), Kasiripinã fazia constantemente comentários e perguntas sobre o que estava acontecendo: Antigamente onça que nem gente, só depois lanejar separou e falou: "agora vai virar só onça mesmo". Agora só índio canta, dança. Ainda tem muito caxiri para Jawaron ficar de porre? Agora a cabeça de Jawaron está béjlançando, será que está bêbada? Será que Jawaron vai mergulhar muito tempo? Quanto tempo ele vai ficar no fundo quando mergulha? Será que muito tempo e não volta logo? Será que .é? Como é que é? Aiwo nhengato? lpypoko'ó? (Kasiripinã, janeiro de 1996).

Desta maneira, ele instigava o comportamento performático dos Waiãpi, que estavam tocando as flautas e dançando, para poder registrar um ritual

rico em informações. Através de seus comentários e perguntas, Kasiripinã fazia com que os "atores" lembrassem de detalhes que não podiam deixar de acontecer na performance. Desta forma, não se trata de uma construção individual, mas coletiva. Nesta apropriação de caráter interpretativo se manifesta o desejo de guardar, através deste veículo, a própria "cultura" e ver com orgulho que suas manifestações são desempenhadas corretamente,' são bonitas e diferentes das dos "outros". Percebe-se isto em muitos comentários, tais como "somos diferentes, só nós fazemos isto, nossa festa é a mais bonita". Com sua câmera, Kasiripinã- diga-se de passagem, um personagem muito carismático - tem o dom de captar especificidades, curiosidades e brincadeiras que só ele consegue e que os outros Waiãpi apreciam muito em poder ver. As cópias deste material, na íntegra ou na forma de "edições-resumo", formam o acervo das videotecas das aldeias waiãpi.

"Filmar editando" e "editar filmando" Vendo este material bruto, tenho a impressão que Kasiripinã "filma editando", pois seu corte é de fato um corte do evento. Em geral, os Waiãpi preferem ver este material na íntegra e repetidas vezes. Durante uma sessão de vídeo, raramente alguém da platéia waiãpi pede para "passar para frente", e freqüentemente é expressa a vontade de "passar para trás" para ver uma mesma cena repetidas vezes. Eis, ao meu ver, uma diferença significativa, tanto em termos de "escrita" quanto em termos de "leitura", em relação à nossa gramática audiovisual, na qual a preferência geralmente é dada a "textos audiovisuais" que sejam editados de forma sintética. Em 1995, Kasiripinã teve a idéia de experimentar fazer um vídeo, cuja intenção explícita era a de mostrar para os "brancos" a documentação que vem sendo realizada na área indígena waiãpi. Um vídeo que, diferentemente daqueles destinados a circular

" Na aldeia Mariry, por exemplo, a maioria dos registros (Kasiripinã manusea ndo a cãmera) é dirigida sobretudo pelo Capitão Waiwai.


' 3 A festa Tamokotem por tema a guerra e representa a morte de um mostro canibal. Na festa oo Pikyry os dançarinos encenam a piracema. No Turé, a dança das flautas, os Waiãpi encenam a morte da anta, em homenagem a lanejar, o criador (In: Catálogo de Distribuição/CTI/ São Paulo).

nas aldeias, significou um trabalho de transposição de conceitos, de desconstrução de uma narrativa e de tradução (pois para os "brancos" é preciso explicar mais do que a própria imagem apresenta). Esta idéia resultou no vídeo Jane Moraita (Nossas Festas), no qual Kasiripinã apresenta e comenta três festas que encenam episódios do ciclo mítico da criação do universo'3 • O argumento deste vídeo foi todo montado por Kasiripinã - ele explicou cada festa escolhida e também selecionou as imagens que considerou mais representativas -, e a edição se deu em trabalho conjunto com Dominique Gallois, Vincent Carelli e Tutu Nunes, na sede do CTI em São Paulo. Kasiripinã hesitou em se aproximar desta outra tecnologia (a da edição) e, apesar de seu talento para lidar com a câmera sozinho, optou por não operar a ilha de edição, dizendo que "não quer mexer na máquina" e que "editar é coisa de karaikd' (Kasiripinã, janeiro de 1996). Ao mesmo tempo, sente muita vontade de "cortar", alegando que quer "tornar o material mais curto". No caso do vídeo Jane Moraita, Kasiripinã não operou a ilha de edição, mas foi ele quem decidiu quais cortes fazer, editando assim primeiramente a fala e, em seguida, as imagens sobre a fala. A idéia de "fazer cortes" não parece ser o problema, que só surge a partir do momento em que a seqüência, tal como ela foi registrada, é alterada por meio de comandos (ainda) não apreendidos numa ilha de edição. Sua concepção de edição difere muito da nossa- acompanhada de conceitos de montagem, ritmos alterados, efeitos etc. Interessante notar (em fevereiro de 1996) como Kasiripinã criou algumas "edições-resumo" numa ilha de edição VHS, associando o que aparecia na tela do monitor, que mostrava a fita do material todo gravado, com a "realidade" a ser registrada - não com sua câmera VHS no ombro, mas por meio dos comandos (basicamente rec e pause) da ilha de edição VHS. Associou também o que aparecia num

outro monitor, que mostrava a fita que estava sendo editada, com os "registros" que ele estava fazendo (rec) ou não (pause). Nesse sentido, vejo um paralelo entre o seu jeito de "filmar editando" e sua maneira de "editar filmando".

Sessões de vídeo nas

ffl§$6§ hoje

Existem hoje diferentes demandas do que os Waiãpi desejam assistir, que variam entre vídeos deles mesmos, de "outros" - índios e não-índios (mas sobretudo de outros índios, como foi notado desde o início) -, de reportagens de TV, de filmes documentários e de filmes de ficção (ver boxe). __jA ficção entre os Waiãpi

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Pelo fato de muitos Waiãpi já terem assistido à televisão junto aos funcionários da FUNAI na Casa do Índio, em Macapá, Dominique Gallois resolveu mostrar um filme de ficção num dos cursos em 1992 a pedido de alunos e chefes. A escolha do Avaeté gerou polêmica, tratando-se de um filme bastante violento - muito criticado pela FUNAI e pelos missionários (Missão Novas Tribos) que moravam na aldeia Ytuwasu -, mas que desencadeou um processo comunicativo muito rico, tendo sido bastante comentado e discutido. Muitos Waiãpi perguntavam a Dominique: "é anga?"- é falso? ou aconteceu realmente? Suas explicações- de que era um fato histórico, que tinha acontecido, mas que as pessoas que estavam lá estavam "brincando", fazendo de conta, recontando história - criaram confusões e acentuaram a dúvida. Então a opção foi, em seguida, mostrar filmes de ficção "históricos" (como Guerra do Fogo), em que ficava claro que se tratava de um acontecimento tão antigo que era impossível que alguém tivesse filmado o "real". A partir daí, alguns começaram a entender, num processo que levou no mínimo um ano e meio. Até hoje, segundo Gallois, muitos da platéia waiãpi (principalmente os mais velhos) não 37


distinguem um filme documentário de um filme de ficção. Um outro viés de entendimento se deu pela idéia de representação: após ter ouvido muitos comentários entre os Waiãpi relacionando a ficção ao mito, Dominique tentou explicar a questão do falso ou verdadeiro de um filme de ficção, associando-o ao ritual mítico. Tomou o exemplo da festa dos peixes, onde os Waiãpi também agem como se fossem peixes, ou seja, eles também estão representando como atores. Muitos entenderam essa associação como um mito que para eles não é falso, uma vez que assumem que de fato os peixes eram gente, que só depois foram transformados em peixes, representando desta forma algo que aconteceu antigamente. Não entra no parâmetro a idéia de representar uma coisa falsa, que não aconteceu antigamente e que é uma invenção, pois não faz sentido criar do nada uma situação falsa: é falsa a idéia do falso. Foi por isso que, quando Dominique comentou com um grupo de jovens que estavam assistindo ao filme de ficção Alien, o oitavo passageiro em Maca pá, que nada disso existia, Japaropi, um dos jovens presentes, reagiu fortemente, dizendo que ela não queria admitir que os karaiko (os "brancos") também tinham os seus jurupari(os seus monstros). Ela concordou que os nossos filmes de ficção têm muito que ver com os nossos monstros e que nós temos, assim como os Waiãpi, uma categoria de horror (e considera que Japaropi remeteu desta forma a algo que parece ser universal). Esta relação que os Waiãpi fizeram entre o filme de ficção e o mito me parece ser comparável à relação entre mito e história, na qual a questão também não é a de distinguir um como verdadeiro e outro como falso. Nesse sentido, penso que um filme de ficção pode ser uma variante tão verdadeira quanto um filme documentário. É como as variações de um mito, em que não há a mais verdadeira.

Ao assistirem a diversos vídeos que nós classificaríamos de "gêneros" distintos (reportagem de filme documentário, filme de ficção, comédia, thrtller etc.), os Waiãpi dificilmente fazem uma distinção como a nossa, assim como os discursos "dificilmente podem ser rotulados como pertencentes a 'gêneros' distintos, na acepção dada pela maioria dos estudiosos da tradição oral.[ ... } Como a maioria das tradições orais, os Waiãpi não explicitam nenhum classificador absoluto para diferenciar gêneros narrativos" (Gallois, 1992: 21). Ou seja, ao assistirem a diversos vídeos, não existe como critério um classificador para o entendimento do que estão vendo e ouvindo. Os comentários sobre as diferenças e as semelhanças que são comparadas (entre eles mesmos e em relação aos "outros") expressam sinais de comunicação cultural e revelam as diferentes reações do público. Uma grande diferença expressa-se nas formas de percepção e recepção dos mais velhos e dos mais jovens. Quando o líder da aldeia convoca todos para assistirem a uma sessão coletiva nas "casas de TV", são os comentários dos mais velhos que predominam. No começo (em 1990), só os mais velhos podiam comentar durante as sessões coletivas, o que demonstra um poder exercido diante das projeções. Os dois ou três jovens responsáveis pelos equipamentos em cada aldeia (que, desde o início, foram escolhidos pelos chefes) também adquiriram uma certa forma de poder, pois acabaram sendo os únicos a manipulá-los e conseqüentemente os únicos a poder viabilizar uma sessão. A partir de 1992, estabeleceu-se também um acesso individual ou familiar à TV. A cada sessão, coletiva cnl individual e/ou familiar, as cadeias de comunicação foram se ampliando e agora os jovens também podem comentar, embora continuem mais silenciosos e a voz dos mais velhos ainda predomine. Estas diferentes vozes estão relacionadas a diferentes formas de percepção entre os mais jovens e os mais

:v,


•• Ver o artigo '(in ema da Floresta: filme, alucinação e sonho na Amazônia peruana", no qual Peter Gow explora a analogia que a população local faz entre o cinema e o alucinógeno ayahuasca, denominado "cinema da floresta", que torna visíveis os seres poderosos, normalmente invisíveis. ' ' Em outubro de 1995, Kasiripinã foi convidado para mostrar seu vídeo jane Moraita num festival de filmes indígenas no Museu do Índio, em New York, onde registrou muitas cenas do evento (como outros videastas indígenas, apresentações de música etc.) e da cidade também (como: um trompetista de jazz tocando no Central Park, edifícios, a estátua da liberdade, a rua de dentro de um táxi etc.). Pude acompanhar Kasiripinã fazendo uma "ediçãoresumo" deste registro e posteriormente ver com ele nas aldeias Waiãpi (Aramirã e Mariry) . ' 6 História de um pajé mexicano que conseguiu curar com um remédio do mato alguém que, segundo os médicos americanos, tinha uma doença incurável.

velhos, que poderiam ser expressas como uma diferença entre privilegiar o "assistir" e o "imaginar" 14 : enquanto os mais jovens assistem a todo um vídeo e compreendem a narrativa de uma história, os mais velhos até hoje apreendem algumas das cenas por si só. Na forma de percepção dos mais velhos, parece que é o impacto da imagem que conduz à sua leitura. Nele, não é o conjunto das imagens que é lida como uma narrativa visual, mas a imagem por si é associada a diversas leituras visuais possíveis, nas quais "a imagem impõe conceitos éticos, sentimentos, sensações que são universais, que transcendem a diversidade das culturas. Por serem atos de percepção, elas se aproximam" (Gallois, 1994:9). Nesse sentido, é muito curioso ouvir o que os mais velhos comentam durante as sessões, que são muitas vezes frutos de associações espontâneas, sem nenhuma relação direta com a seqüência de imagens que estão vendo. Por exemplo, numa sessão que projetava o "vídeo-resumo" da viagem de Kasiripinã a New York em 1995'5 , ao ver uma cena que mostrava uma apresentação de um grupo de jazz, uns comentavam sobre que tipo de flauta seria aquele saxofone, enquanto Kasiripinã lembrava

de uma história que lhe foi contada durante sua viagem sobre um pajé mexicano'6 , e comentava esta com os mais velhos, que faziam muitas perguntas e comentários sobre esta história. A situação de recepção deste "texto audiovisual" era a seguinte: enquanto passavam várias cenas, alguns comentavam o que estavam vendo e ouvindo na tela (a música, o saxofone etc.), mas os mais velhos (e conseqüentemente a maioria da platéia waiãpi) estavam discutindo o assunto do pajé mexicano e, só após encerrada a discussão, voltavam a prestar atenção (ou não, dependendo das imagens e dos sons) no que estava passando na tela. Ou seja, a geração mais velha entre os Waiãpi não vê e ouve as imagens e os sons em busca de "informações" e de um saber, pois é sobretudo o saber dos velhos que guia suas emoções, leituras e visões. Apesar de a leitura dos mais velhos servir como guia para todo o grupo, percebe-se na polifonia da recepção de um "texto audiovisual" nas sessões de Vídeo nas Aldeias"- pelas diferentes vozes expressas nos comentários dos mais jovens e dos mais velhos que na platéia waiãpi coexistem diferentes leituras possíveis. Uma outra diferença significativa diz respeito àquela entre ver o evento no momento de sua performance e vê-lo no monitor. O fato de poder "ver na televisão" (no monitor) marcou uma grande mudança na história Waiãpi, como se pode notar numa fala de Waiwai em janeiro de 1996: "vô Waiwai não viu, neto de Waiwai vai dizer: minha vô, Waiwai, primeiro viu televisão, agora nós vê. Assim é bom. Bom mesmo. Se nós viu festa com televisão, aí é bom, nós vai ficar alegre, kasi, kasi. .. "

Este "ver na televisão" tem um valor próprio, que é muito diferente de ver o mesmo evento sendo registrado no momento de sua performance. Um valor do "ver na televisão" muito presente no discurso waiãpi consiste na possibilidade de poder passar aquilo que está sendo visto na tela

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posteriormente para gerações futuras. Não visa apenas ao futuro, mas também ao passado que foi atualizado na instância do registro e que sempre é lembrado no momento de vê-lo na tela. Por isso, o evento em sua performance é visto de outra forma: seu valor está no próprio presente do evento, num processo constante de rememoração e reinterpretação. Entre os Waiãpi, o vídeo viabiliza, por meio de sua linguagem inovadora - com a qual os antropólogos ainda têm muito a aprender, tanto em termos de "escrita" quanto de "leitura"de "textos" de diferentes tradições audiovisuais -, novos mecanismos de seleção de autorepresentações e "auto-(re)interpretações" de sua memória. Em janeiro de 1996, durante uma conversa sobre os rumos do projeto Vídeo nas Aldeias, Kasiripinã comentou: Tem que continuar sempre assim. Se acaba, neto vai perguntar: como é que é antigamente? Vai perguntar, aí não é bom. Se não tem televisão, depois, não é bom não. Não tem problema índio Waiãpi aprende filmagem. Depois grava índio Waiãpi mesmo. Se depois não vai ter filmagem, aí sim, difícil, como é que é? Cadê agora? Nós vai falar assim. Não é bom parar...

'Evelyn Schuter é membro do corpo editorial da Sexta Feira.

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CAETANO VELOSO Pensador

do BTas1l1

Stéllo Marras*

nEu sou mulato, me s1nto mulato, sou c::ulturat e f1sacamente mulato.•

'Texto produzido em 1995 e revisto em 1997. Agradecimento especial · à Lilia K. Moritz Schwarcz. 'Revista lstoé Senhor, 28/6/89. 3 Sobre a semiótica da canção, ver Tatit, 1996. •Isto é Senhor, idem.

O interesse por Caetano Veloso, inscrevendo-o como um pensador do Brasil, passa por duplo entendimento. Primeiro, por considerar a temática recorrente que atravessa o conjunto de sua obra desde o tempo fundante do tropicalismo: o Brasil- o compositor privilegia o seu país como objeto de questionamento, de compreensão, de reflexão. E segundo, daí derivado, porque Caetano se forja, e é forjado, como um pensador, o sujeito que observa, o intelectual que experimenta, tal como o antropólogo, o exercício circular de "estranhar o que é familiar, e tornar familiar o que era estranho" (DaMatta, 1987). Trata-se de um pensador em ampla acepçãonão aquele ligado ao restrito círculo desta ou daquela tradição legitimada historicamente a formar pensadores, como a tradição acadêmica ou instituições oficiais dessa ordem. Caetano pensa, tematiza questões sensíveis ao ser brasileiro; ele as expõe na ordem do dia, atinge, interpreta e serve-se de uma estrutura mítica legada pela tradição do pensamento, que talvez tenha em Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda seus mais importantes e influentes autores, de quem Caetano é tehor confesso. E tudo coloca à prova do tempo histórico: o tempo presente, as perguntas e aflições urgentes do hoje. O pensamento se realiza e resulta especial porque move-se em contexto especialíssimo, a tradição da música popular. Herdeiro pródigo, Caetano serve-se da riqueza desse repertório quase imemorial e o conjuga com toda informação que entende profícuo cruzar.

"Pensar é bom e não é antagônico ao sentimento. A clareza é muito excitante e a cunosidade científica, bastante sexual">

Pois é como pensador, neste justo sentido, que se tomou uso de suas falas, espalhadas que estão ao longo de um histórico de entrevistas, depoimentos, escritos, veículos e fontes gerais. Colocadas em paralelo às canções, esses ditos revestem-se pois de significação e atuam na finalidade de corroborar algumas idéias, enfatizar aspectos, costurar e ordenar sentidos para a proposição geral do que se quer tratar aqui. Porém, a obra de seu cancioneiro bastaria em si, se assim quisesse; poderia ser tomada como fonte única para exploração de infinitos temas acerca da cultura brasileira. O fato de recorrer a emissões de outras naturezas do autor- e de certa forma esquivando-se em centrar-se no essencial de Caetano, as canções deve ser entendido aqui meramente como um recurso metodológico do analista social, cuja pouca intimidade com a teoria e a crítica literárias deverá lhe justificar indulgência. 3 O interesse por Caetano Veloso extrapola a esfera artística ou a dos consumidores de música brasileira. Desperta investigações acadêmicas - como é o caso aqui. Já foi referido como uma "espécie de esfinge para parte da intelectualidade brasileira" 4 • Na arena política, não por acaso, seu prestígio é visado. Basta lembrar o episódio em que o ex-presidente da República, Fernando Collor de Melo, 43


A gesta tTopJCahsta• redescoberta do BTasJI I want to hear and see everything

queria a todo custo uma visita do compositor ao Planalto - e isto em função do desencadeamento provocado por uma de suas falas. Mandou cartas, mandou recados - tudo em vão. Mais sorte teve o sociólogo Fernando Henrique Cardoso. Depois de ter merecido o voto declarado do singular eleitor, o recém-eleito Presidente aproveita, já na primeira entrevista coletiva, para demonstrar reciprocidade, ao mesmo tempo em que associa a figura de Caetano Veloso ao país que toma nas mãos pelo mandato -o país original de futuro promissor: "O Presidente tem destinado a Caetano Veloso um tratamento muito especial. Citou-o já em sua primeira entrevista coletiva, após as eleições, como uma espécie de intérprete da originalidade cultural brasileira e de sua perspectiva de afirmação do mundo."5

Inscrever Caetano na história da intelectualidade brasileira leva-nos imediatamente a refletir sobre o lugarde onde ele fala. Pois esse lugaré o que hoje distinguimos como Música Popular Brasileira. É a essa tradição que se liga o nosso pensador - a essa linhagem de autores, fonte seminal de informação, de história, amálgama de representações, substrato gerador de idéias, repositório p-rivilegiado da cultura brasileira. A história da música no Brasil deve revelar o lugar original para proc~ssamento e veiculação de idéias, pensamentos, filosofias- a canção: Incrivel: E melhor fazer uma cartão. Se v o e i tem uma i c idéia incrível, é melhor fazer uma canção. Está provada q que só é possível filosofar em alemão. 11

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Não há aqui a intenção de investigar a multiplicidade de aspectos que o tropicalismo encerra; mas iluminar alguns deles - aqueles que se mostram pertinentes a uma nova sugestão de Brasil que o movimento trazia com coerência e alto grau de originalidade sob sua exterioridade exuberante, um caleidoscópio, uma metralhadora giratória cujos efeitos viriam a formar e informar gerações a posteriori. Ora, o que se desenha no tropicalismo 7 é a retomada radical - e por isso agressiva - de uma questão estrutural ligada à identidade nacionaf, qual seja, a de reiteradamente, de tempos em tempos, perguntar-se sobre a sua natureza. A pergunta obsessiva assenta-se sobre a seguinte base: a de partir do ponto de vista - que encerra uma questão de fundo mítico - do amálgama de raças, amálgama cultural fundante da idéia do ser brasileiro; tratar-se-á, parece que sempre, de mobilizar a "fábula das três raças" (DaMatta, 1978) no afã de responder ao "quem somos nós, ou o que faz do brasil, o Brasil." "A mistura tropicalista notabilizou-se como uma forma sui generis de inserção histórica no processo de revisão cultural que se desenvolve desde o início dos anos 6o. Os temas básicos dessa revisão consistiam na redescoberta do Brasil, volta às origens nacionais, internacionalização da cultura, dependência econômica, consumo e conscientização" (Favaretto, 1979:13).

A ambição tropicalista revela-se na intenção do empreendimento: há que reler o país; isto que é próprio de uma ambição de natureza antropofágica, embora se tratasse de incorporar elementos contrários.

sRevista da Folha de São Paulo. 6 Caetano Veloso, canção Língua. De entrevista ao Jornal do Brasil, em 6/1/92: "Gosto de falar, tenho algumas coisas a dizer e sou solicitado a fazer isso. Sei que articulo bem as idéias. Mas o fato de um músico popular ocupar assim tanto espaço na mídia é bem um reflexo da situação cultural brasileira. Também sei que a instãncia da canção popular brasileira é possivelmente o pior lugar para levantar, discutir certos problemas. Mas não abdico desse lugar no qual acabei trabalhando." ' "0 nome de 'tropicalismo', que rejeitei a princípio por considerar restritivo, hoje me parece adequado como nenhum outro o seria. Justamente por eu ter preferido enfatizar em primeiro lugar nossa aceitação do repertório do pop internacional como oposição de choque ao nacionalismo-, apelido hoje me soa como uma revelação involuntária da essência do movimento. Sua p rópria construção - por jornalistas ingênuos a partir de uma sugestão de Luis Carlos Barreto por causa da obra de Oiticica - tem a marca do acaso significativo, do acercamento inconsciente a uma verdade. Uma responsabilidade pelo destino do homem t ropical, um dínamo escondido que desencadeasse uma resposta histórica para uma pergunta semelhante à de Nietzsche - eis a motivação íntima do que se chamou de tropicalismo em música popular brasilei-


r a " ( V e l o s o , Verdade

Tropical,

1997:501). 8 "Nós, os tropicalistas, diferentemente de muitos amigos nossos da esquerda mais ingênua, que pareciam crer que os militares tinham vindo de Marte, sempre estivemos dispostos a encarar a ditadura como uma expressão do Brasil. Isso aumentava nosso sofrimento, mas hoje sustenta o que parece ser meu otimismo. É que penso e ajo como se soubesse na carne quais as potencialidades verdadeiras do Brasil, por ter entrado num diálogo com suas motivações profundas - e simplesmente não concluo que somos um mero fracasso fatal. Aprendi então a reconhecer os indícios de formação de forças regeneradoras e, embora saiba que aposto com alto risco, sempre sou levado a dobrar minhas fichas." (Veloso, 1997:467/468). 'Caetano Veloso, Especial Rede Manchete, 1992 - comemoração aos 50 anos do compositor. I0" A idéia do canibalismo cultural servia-nos, aos tropicalistas, como uma luva. Estávamos 'comendo' os Beatles e jimi Hendrix. Nossas argumentações contra a atitude defensiva dos nacionalistas encontravam aqui uma formulação sucinta e exaustiva. Claro que passamos a aplicá-la com largueza e intensidade, mas não sem cuidado, e eu procurei, a cada passo, repensar os termos em que a adotamos." (Veloso, ^ 7 : 2 4 7 / 2 4 8 ) . " Especial Rede Manchete, idem.

Não é difícil imaginar o impacto dessa postura junto a boa parte da intelligentzia brasileira de classe média no contexto por si só provocativo dos anos 60. Da turbulência do momento sobra à história do pensamento a exposição de um claro conflito dominante entre interpretações polarizadas sobre o que era e o que devia ser o Brasil. De um lado, o ideal ideologizado de autenticidade nacional, que tinha suas bases num suposto original autêntico que devia ser resgatado do passado na sua forma pura, acabada, definitiva; de outro, não menos eivado de ideologia, o Brasil aparecia como o país que sofreria para sempre a pena fatal, o pecado original de ser nação colonizada, mero reprodutor reflexivo de idéias estrangeiras - macaqueava. Ora, o tropicalismo invade o fulcro que separa esses dois pólos e assume-se na incômoda posição de vincular um caldo de tradições a "estrangeirismos"8. Pois é daí - isso que pode ser chamado de uma eterna tradução da tradição, tarefa sempre histórica - que advém nossa originalidade.

mão da unidade que lhe garanta ser reconhecido como tal - um país com identidade definida, como uni sincretismo de misteriosa untura. O centro do projeto ambicioso tropicalista está no assumir a cultura brasileira como algo que traz inerentemente a si mesma a virtude sincrética, como na expressão do "samba do crioulo doido". E faz disso festa; e a música brasileira revelou-se locus com importância de primeira grandeza a explicitar o fato. Assumir Beatles não excluía Vicente Celestino; pois este é o país da "Geléia Geral"; a baixa música importada dos anos 60, sob o signo geral do iê-iêiê, é devorada pelo Bumba-meu-boi, que o digere em Bumba-iê-iê-meu-boi. O olhar estrangeiro sobre nós, personificado em Carmem Miranda, ganha novo sentido na retomada tropicalista:

"Com relação à idéia que se fazia de que nós fôssemos talvez traidores de um possível nacionalismo, na verdade, o tropicalismo tinha no seu cerne uma atitude radicalmente nacionalista... [movimento] imensamente ambicioso, e que não morreu de todo. Era um nacionalismo de tomar posse de tudo e passar a ter as forças em nossas mãos, uma atitude de país que estava se tornando sujeito da história do mundo, e que queria ser um sujeito diferente, original. Eu ainda quero isso."'

A faceta moderna do país, sua vitalidade que reclamava expressão estética, encontrou na fórmula da música pop o veículo certo para realizar-se. Mas a pretensão de fazer caber tradições aparentemente inconciliáveis num mesmo disco, promover alguma unidade estética entre Bob Dylan e Roberto Carlos, Vicente Celestino e Beatles, bossa nova e música de vanguarda; esse imenso projeto caleidoscópico haveria ainda que dispor de um instrumento fundamental que fizesse ligar coisas díspares entre si:

"Ver com olhos livres" - a máxima modernista oswaldiana era retomada pelos tropicalistas10. Pois não se tratava de buscar espelhamento de um único Brasil; mas de Brasis. O país assumido é o que se mostra multifacetado, sem, no entanto, lançar

"Na época do tropicalismo, a gente se interessou em ouvir Carmem Miranda com atenção, com carinho. Era o Brasil visto pelos estrangeiros e revisto pela gente, com muito amor, retomando a caricatura e afirmando a verdade interna.""

"Dessa mistura toda nasceu o tropicalismo, essa tentativa de superar o nosso subdesenvolvimento partindo exatamente do elemento "cafona" da nossa cultura, fun-


dindo ao que houvesse de mais avançado industrialmente, como guitarras e roupas de plástico. Não posso negar o que já li, nem posso esquecer onde vivo.""

Tal instrumento, tal o papel da alegoria'3 • Aqui, a alegoria, por excelência, faz uso de recursos carnavalescos. O Carnaval é ele mesmo o lugarda percepção sincrética, ambivalente, excêntrica. A dimensão da festa fora incorporada pelos modernistas e agora reapropriada pelos tropicalistas; e isso porque trazia (traz) à flor da superfície, tanto mais explícito, o seu caráter constitutivo de dinâmica cultural, um constante movimento de incorporar os dados mais inusitados num universo de significações, num jogo lúdico e dessacralizado dos significados - dos eventos, coisas ou pessoas; uns em contraste com os outros 14 • Além disso, e para além do espetáculo no palco, o tropicalismo interiorizava o "discurso do Carnaval" nas canções: funcionava como uma espécie de

linguagem da mistura.

Favaretto- "música inaugural", "matriz estética do movimento" -, denuncia claramente essa interpretação de Brasil, o uso de um caldo cultural selecionado ao lado de novas informações estrangeirízadas, a estética da mistura, estética da inclusão, a harmonização entre forma e conteúdo, o contexto histórico que mobiliza imaginários: Sobre a cabeça os aviões Sob os meus pés os caminhões Aponta contra os chapadões Meu nariz Eu organizo o movimento Eu oriento o carnaval Eu inauguro o monumento No planalto central do País Viva a bossa-sa-sa Viva a palhoça-ça· ça-ça' 5

"No caldeirão antropofágico tudo remete a tudo, produzindo-se uma relativização alegre dos valores em conflito e uma degradação contínua da informação" (Favaretto, ídem:99).

A imagem mítica de uma "montagem sincrônica de fatos, eventos, citações (...)" (idem:41) aparece nos ícones de jóia:

A festa, o Carnaval, a paródia, o humor, o pastiche, a cafonice traduziam-se em recursos formais adequados no cumprimento da tarefa tropicalista. A idéia de Brasil daí derivada; o entendimento do que devia parecer ser o Brasil, a representação desse ente devorador, antropófago insaçiável, tornavam indispensáveis, naquele momento (não se pode esquecer do diálogo histórico, pois o tempo era de provocações), tais e quais instrumentos que viabilizavam a ambição. A análise da canção Tropícália, feita por Celso

Beira de mar, beira de mar, beira de mar é na América do Sul Um selvagem levanta o braço abre a mão e tira um caju Um momento de grande amor de grande amor. Copacabana, copacabana louca total e completamente louca A menina muito contente Toca a coca-cola na boca Um momento de puro amor De puro amor.

"Caetano Veloso, citado por Favaretto, 1979:12-13. 13 Esse recurso garantiu unidade estética entre os produtores culturais contemporâneos. Por isso, o diálogo entre os tropicalistas e Glauber Rocha, no cinema; Hélio Oiticica, nas artes plásticas; José Celso Martinez Corrêa, no teatro. Além de promover a própria mistura constitutiva do tropicalismo, a alegoria tinha ainda a virtude de esquivar-se da censura, dado este caráter ambíguo, de mensagens obtusas. 14 "Na visão carnavalesca do mundo, a realidade está em constante transformação, pois instala um jogo em que as dissonâncias e contrastes permanecem como luta contínua de forças contraditórias. O rito carnavalesco é ambivalente; é


a festa do tempo destruidor e regenerador" (Favaretto,

idern:91). 1 5"(... ) o luxo no lixo e a carnavalização do monumen· tal; a bossa e a palhoça, cada uma contendo a outra- a bos· sa é o nosso jeito brasileiro que, no entanto, pressupõe o velho e o contém; a palhoça é o velho que pressupõe e con· tém o novo"(Favaretto,

Aqui temos, na primeira estrofe, uma espécie de momento inaugural do contato, algo que soa romântico e idílico (pois a lógica do mito é autônoma e não se obriga a cotejar, por exemplo, a historiografia) com o selvagem oferecendo o fruto da terra ao estrangeiro num gesto de nítida benevolência e disposição à troca, clara transigência com o "outro" e abertura ao intercâmbio que resultaria na miscigenação elevada ao elogio, como em Gilberto Freyre ou Darcy Ribeiro, ou como na proposição tropicalista. Dá-se o caju, fruta caracteristicamente tropical, que serve aqui como metonímia da originalidade e da diferença'6 , e tem de volta, num brusco salto histórico que revela uma solução de reciprocidade em longa duração, a Coca-Cola nas mãos da menina contente de Copacabana. E tudo permeado de amor nobre untura que rege o contato, a troca e a reciprocidade ideais. Esta é a configuração mítica que parece guiar seu otimismo básico em relação ao Brasil. A angústia do sujeito nasce do que diverge ao cumprimento social desse ideal: a nação que falha à sua promessa e instaura uma contradição fundante, entremeada da dor e da delícia de ser o que é.

O Brasll ongmal de Caetano Veloso

idern:47). 16 E também mediador de troca paradigmático em Caeta· no, como sendo o mote propulsor de Cajuína. 1 ' C. Veloso, O Estado de São Paulo, 1019/92. 18A baía de Guanabara - Rio de Janeiro - é, para Caetano, " a imagem oficial do Brasil, mais do que nossa bandeira. É o nosso hino nacional visual." lstoé Senhor, 28/6/89.

"Para que uma cultura seja realmente ela mesma e esteja apta a produzir algo de original, a cultura e os seus membros têm de estar convencidos de sua originalidade e, em certa medida, mesmo da sua superioridade sobre os outros" (Lévi-Strauss, 1981:34). "Me sinto com sorte por ser brasileiro. Não me refiro às boas ou más qualidades, ou ao sofrimento terrível das crianças, ou à enorme distância entre ricos e pobres. Uma nação é algo que pode transcender tudo isso e

estar abaixo ou acima de todos os prazeres e dores. É como uma linguagem: não é o que ela faz, mas o que ela é; é um ser, um organismo, algo que tem íntimas ligações com ela mesma. Um país é sua realidade e seus mitos; e o Brasil é certamente um mito." 17

O país de opostos, contraditório, fascinante e detestável, aparece ao observador quando este se flagra como tal; ou quando o observado é feito de objeto. Na canção Estrangeiro, o autor, fora de seu país ele a compõe nos Estados Unidos -. vê-se distante do familiar, e assim faz-se a oportunidade do estranhamento. A situação do compositor fora do país, ele mesmo então estrangeiro, talvez o tenha incitado a elencar três olhares de ilustres estrangeiros sobre o lugar que ele tem como "a imagem oficial do Brasil" - o Rio de Janeiro'8 O pintor Paul Gauguin amou a baía de Guanabara O compositor Cole Porter adorou as luzes na noite dela da baía de Guanabara O antropólogo Claude Lévi-Strauss detestou a baía de Guanabara Pareceu-lhe uma boca banguela

Mas ele a ama porque a amava antes sequer de tê-la visto concretamente. Imagem íntima e familiar, a baía que trouxera à mente era a baía antecipadamente amada - cegamente E eu menos a conhecera mais a amara Sou cego de tanto vê-la de tanto tê-la estrela o que é uma coisa bela O amor é cego

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A familiaridade da imagem é que faz cegar. De tão profundamente arraigada a imagem do Rio de Janeiro no espírito que a preconcebeu, a cidade se fez estrela a hipnotizar com a força de sua luminosidade incontestável. Mas aí não existe problema para o sujeito; afinal, o amor seria mesmo cego. O desafio do estrangeiro, no entanto, faz-se no exercitar o estranhamento a fim de descobrir essa familiaridade dissimuladora que encobre de afeição. O país que aparece velado é o país essencialmente contraditório - por isso amado e detestado —, que marca a continuidade entre o antigo e o novo nas gerações que se sucedem. O exercício do pensador apanha o fluxo do tempo e faz dele objeto de reflexão Estão às minhas costas um velho com cabelos nas narinas E uma menina ainda adolescente e muito linda

E eu menos estrangeiro no no lugar lug.1•que que no no momento Mo>nt"lto sigo mais sozinho caminhando contra cont·aoovento ve 1to e entendo o centro do que estão ec:;t odizendo d1z nd1aquele aquElE cara car<~ef aquela

A canção que revela a contradição explícita do país - com a mesma violência de que se serve como mote - é Haiti. Não só a música guarda um estado de tensão repetindo três acordes básicos ao longo do texto quase falado, que remete imediatamente ao rap de inspiração americana - a música negra de conteúdo social; não só forja este clima sonoro adequado ao chamamento da consciência, como também a letra por si só compõe um texto feito de tensões. Pois ao mesmo tempo em que o autor sugere o paralelo com o país nos limites da catástrofe social, O haiti é aqui

ele mesmo, imediatamente, recusa essa realidade. Os dois estão lá. Mas o estrangeirado agora manipula a cegueira, o próprio olhar, o que quer ver O haiti não é aqui do que já sabe preexistir E segue então oscilando entre o país da grande promessa

Não olho para trás mas sei de tudo Cego às avessas, como nos sonhos, vejo o que desejo

A grandeza épica de um povo ;>ovoem en formação formaçCJo .a. ,.1-. nos atrai, nos deslumbra e estimula

Do velho e da menina, ouve em coro a continuidade das injustiças no tempo, as mazelas que se repetem:

E o país sobre o qual recai outra realidade - caótica, violenta, autoritária, cruel e racista -, que obscurece a grandiosidade da nação

O macho adulto branco sempre no comando (...) Riscar os índios, nada esperar dos pretos

Não importa nada (...) Ninguém, ninguém é cidadão

Em seguida, na volta do olhar estranhado, sente-se só, mas agora com a lucidez adquirida:

O país profundamente desigual que se revela na imagem patética do provável mendigo mijando sobre o lixo dos ricos envolto em saco plástico de


'9 Entrevista, em 17/11/91. Fonte não- identificada. 20 Especial Rede Manchete,

idem. " "Em rápidas palavras, eu próprio poderia dizer que não vivendo o que me interessa em minha criação a partir da perspectiva do 'século americano' e sim de uma sua possível superação" (Veloso, 1997:soo).

" Idem. Canção homônima do disco Circuladô, 1992. A comparação Brasil X Estados Unidos aparece tematizada logo nas duas primeiras páginas de Verdade Tropical: "O paralelo com os Estados Unidos é inevitável. Se todos os países do mundo têm, hoje, de se medir com a 'América', de se posicionar em face do Império Americano, e se os outros países das Américas o têm que fazer de modo ainda mais direto - cortejando suas respectivas histórias com a do seu irmão mais forte e afortunado -, o caso do Brasil apresenta o agravante de ser um espelhamento mais evidente e um alheamento mais radical. O Brasil é o 2'

outro gigante da América, o outro melting pot de raças e culturas, o outro paraíso prometido a imigrantes europeus e asiáticos, o Outro. O duplo, a sombra, o negativo da grande aventura do Novo Mundo" (grifo meu).

luxo, brilhante Um homem mijando na esquina da rua sobre o saco brilhante de lixo do Leblon

é o país que esconde cinicamente sua face autoritária, cruel, racista, hipócrita E quando ouvir o silêncio sorridente de São Paulo diante da chacina 111 presos indefesos. Mas presos são quase todos pretos ou quase pretos, ou quase brancos quase pretos de tão pobres E pobres são como podres e todos sabem como se tratam os pretos

Essa verve insurgente do autor tem nas canções Podres Poderes e Cu do Mundo igual teor de crítica severa. Mas o Brasil de Caetano "tem jeito": "VeJO tudo esgarçado e me machuca o deplorável estado físico e psicológico do brasileiro. Sei que não há uma razoável perspectiva de futuro, mas é preciso lembrar que as dificuldades estão em toda parte e em todos os tempos. Há alguma coisa na minha vontade que me faz acreditar, me dá a certeza de que o Brasil tem jeito 9

A natureza dessa espécie de clarividência de Caetano sobre o destino do Brasil liga-se à maneira como entende a nossa formação como povo, como nação original "Tudo o que faz nossa possível glória [a promessa épica do povo em formação], faz também nossa miséria cotidiana.-•o

A superação das dificuldades diz respeito portanto a nós mesmos; tarefa esta que, de acordo com o entendimento do pensador, figura algo perfeitamente realizável para esse país que se consti-

tui a si mesmo uma promessa. A solução há de ser inevitavelmente original, diferente: · I

Acho que nos somos um povo que ndo conseguimos criar uma nação saudável, robusta e afirMada. Eu não quero pôr a culpa nos outros porque eles se deservolveram bem ... Não, eu adoro os americanos ... Nós somos diferentes; e dessa nossa diferença podemos fazer uma coisa muito melhor, mais interessante do que os americanos fizeram até aqui"; ... é uma ambição nacional muito grande que rola na minha cabeça -.,

A diferença aparece como tema exercitado regularmente na obra de Caetano Veloso. O Brasil a ser descoberto é questão posta desde Tropicá/ia e que atravessa seu cancioneiro. Aqui, são osAmericanos 2J submetidos a espelho da brasilidade. Diaqte deles, os "tipicamente americanos", estoura eloqüentemente a diferença: o Brasil multirracial, mestiço, em que "a mulata é a tal": Para os amencanos, branco é branco, preto é preto E a mulata não é a tal

A mulata, figura paradigmática que cerca o pensamento sobre a formação étnica e cultural brasileira, preenche a categoria intermediária entre o branco e o preto, uma posição estrutural a qual recorreu tantas vezes o pensador da história social, ou da mitologia do Brasil- ou, ainda mais precisamente, sua mito-história social. Ora se a classifica (como a seu par, o mulato, mas cujo destaque e posição significativa seguem distintos dos da mulata na história do pensamento) em registro positivado, o elogio da miscigenação; ora se o negativiza (como para o baiano médico-cientista Nina Rodrigues ou n·os romances naturalistas de um Aluísio de Azevedo). É o tipo nuançado que

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"Essa coisa de q u e o Brasil n ã o presta p o r q u e não tem isso, mas pode vir a ter e então vai se salvar ... Eu acho q u e o Brasil presta c o m o ele é. O B r a s i l é interessante p o r q u e é ele."

se denuncia evidentemente na epiderme; é o produto explícito da mistura de raças e culturas. Em Caetano (como se deduz diretamente de Gilberto Freyre), esta nuança aparece destacada positivamente, uma apologia gloriosa da mistura. Mas a originalidade também carrega seu ônus (o que há de épico e a seu modo escatológico no mito). Por isso somos tributários do que decorre negativamente de uma indefinição própria de país que se forja original: Enquanto aqui embaixo a indefinição é o regime E dançamos com uma graça cujo segredo nem eu mesmo sei tn tre a delícia e a desgraça Entre o monstruoso e o sublime Mas justamente por ser o Brasil essa grandiosa "sugestão", tal posto provocaria uma reação de "medo", de "autodestrutividade", e mesmo "autosabotagem". A "desacreditada" idéia de "país do futuro" seria produto de uma sociedade que se espanta diante de si mesma, diante do destino eloqüente que se lhe desenha e reclama realização e consumação histórica. É como se o país se quedasse inerte diante da tarefa épica que ele próprio - exatamente por determinação dessa sua singular natureza constitutiva - impõe a si mesmo: "O Brasil tem medo de si mesmo."2" Conseqüentemente, revela-se o centro da percepção da originalidade: essa imensa extensão de

"O "O Brasil é de fato uma promessa de algo grande e original. Isso Isso éé fatal. fatal. Isso Isso não é uma crença minha, uma esperança, uma hipótese. Isso é a nossa realidade. Nós somos uma imensa extensão de terra americana onde um povo mestiço fala português. Quer dizer, qualquer coisa que funcione aqui será imensamente original. E isso mete medo, a quem não é brasileiro, mas também a quem é brasileiro."" Tamanha aparece a diferença, de tão eloqüente e promissora é que afinal resulta uma configuração mítica, como um ideal a ser cumprido, o destino a ser tomado pelas próprias mãos, a utopia a ser realizada26: "Eu "Eu tenho em relação à idéia de Brasil um otimismo básico, um otimismo mítico que, eu suponho, o Brasil tem condições de preencher. Na verdade, eu acho que o Brasil excede essas exigências.*27. Na tradição que o liga à produção do pensamento do e sobre o Brasil, Caetano Veloso, igualmente, retoma a "fábula das três raças" (DaMatta, derivado de Gilberto Freyre), como o registro ideal a partir do qual a identidade brasileira haverá de revelar sua face mais autêntica. "0 "O fato de nós sermos América portuguesa, único país que é América portuguesa, cria um estilo nacional ... nossa realidade racial é muito diferente ... o que o aca28 so so nos nos deu deu éé muito muito rico." rico."' 8

terra americana onde um povo mestiço fala por-

tuguês. Por isso mesmo há que cumprir a tarefa de se assumir original e lidar com essa singularidade em proveito próprio:

Porém, Porém, não obstante as mazelas que a missão épica traz em si - mas justamente por ser épica - , Caetano Caetano positiviza a fábula - é o nosso trunfo:

í4 Especial Rede Manchete, idem. "Entrevista a Marília Gabriela, Rede Bandeirantes, programa Cara-a-Cara, 1993. 26 Não é o caso de se desenvolver aqui, mas essa idéia, que aparece recorrente nas falas do autor acerca do destino, do dever mítico, do vir a cumprir, esse ideal genuinamente escatológico, não me parece ser algo descolado de uma estrutura de cultura popular profundamente enraizada no brasileiro; uma profundeza cultural de teor mítico. 21 Especial Rede Manchete, idem. 28 Idem (grifo meu).


"Como desacreditar de uma nação com esse grau de originalidade, com um esforço de solução racial diferente de qualquer outro país, um lugar que pode ser belo, amâvel, gerador de amorP9

,. Rev. lstoé Senhor, idem. "Ter como horizonte um mito do Brasil - gigante mestiço lusófono americano do he· misfério sul - como desem· penhando um papel sutil mas crucial nessa passagem é simplesmente uma fantasia inevitável" (Veloso, 1997:sot). 3a Da letra da canção Fora da ordem. 3' Especial Rede Manchete, idem. 32 "Caetano parece ter em mente uma pendular e com· plexa equação para o país. Se, de um lado, vê a neces· sidade do fortalecimento das leis da cidadania e do desen· volvimento segundo certos cânones das sociedades eco· nomicamente mais avança· das, mostra·se igualmente zeloso quanto aos traços socioculturais que fazem do Brasil · o que ele é" (Revista da Folha de São Paulo, 1994, autor não-identificado) . n idem. 34 idem.

As dificuldades a serem transpostas terão de dispor dos recursos advindos dessa via resultante da originalidade. Enquanto isso, construímos e desconstruímos o destino, num misto de grandeza (pletora de alegria) e miséria que o cotidiano flagra: Aqui tudo parece que é ainda construção e jâ é ruína 30

E numa espécie de síntese da dualidade, a externalidade gritante da contradição resulta na imagem em que o cano da pistola que as crianças mordem reflete todas as cores da paisagem que é muito mais bonita e muito mais intensa do que no cartão-postal

universalizante da ordem, donde apontaria o autor uma saída original, de país originaiY Afinal o autor não abre mão do que distingue como caráter informal da cultura social brasileira os "laços pessoais", por exemplo -, ainda que reconheça nisso entraves no alcance do Brasil ideal: "Às vezes estou em lugares do mundo em que as leis da cidadania são muito respeitadas, mas sinto que isso não basta, que as coisas não estão humanamente bem. Eu senti em Nápoles um calor propriamente humano, que se identifica em grande parte com nossa informalidade, com essa desorganização e essa supre· macia do indivíduo sobre o cidadão - que é tratada num texto de Jorge Luís Borges e que aparece nitidamente em Rafzes do Brasil, de Sérgio Buarque." n

• Desde o momento em que o Bush pronunciou essa expressão 'nova ordem mundial', eu imediatamente senti a tristeza de estar excluído dessa possível nova ordem mundial, e a grande alegria de não estar com ela comprometido, de não estar identificado com ela."3'

Nesse mesmo sentido é que não exclui o "jeitinho" brasileiro. Pelo contrário, esse traço nos diferencia e compõe uma espécie de doce originalidade brasileira que não deve ser extinguida, nem para que venhamos a superar o que deva ser superado - é aspecto constitutivo, revelador da originalidade, o anúncio do caráter singular e porventura libertário:

Ou seja, o Brasil que está fora do que seja desejável nessa nova ordem, como as leis da cidadania, está igualmente fora do que seja repugnante ao espírito do pensador, como a submissão dos traços socíoculturais específicos à voraz hegemonia

"Resumindo, eu acho que o Brasil pode se utilizar de uma capacidade mínima que ele tem para a cidadania para impor seu estilo próprio. Mas, no fundo, quando eu vejo Jor· ge Amado dizendo que o fim do jeitinho não seria bom, eu concordo com ele... Eu não gosto dessa fetichização da cidadania como panacéia." 3•

Estar fora da ordem, como da nova ordem mundial, é motivo de alegria e tristeza para o poeta:

51


Post- Scriptumi Verdade Trop1cal e outras mals

Haveria que considerar o lançamento, no final de 97, do livro Verdade Tropical, de Caetano Veloso, uma longa narrativa de soo páginas tecida em prosa meioensaística-meio-confessional; e de natureza claramente digressiva, como próprio da rememoração um assunto engendrando outro conforme tal ou qual aspecto que os associa. A leitura do livro, em linhas gerais, corrobora o exposto aqui, e não acrescenta mesmo maiores verdades acerca do tema não antes reveladas nos depoimentos e entrevistas (como as da seleção desse trabalho), ou sobretudo com o vigor, a complexidade ou o poder de impregnação da forma das canções - e a singularíssima canção brasileira em especial. O livro cumpre dar mostras dos fundamentos objetivos do tropicalismo pela lente do inelutável subjetivismo de Caetano. Esses dois registros se confundem virtuosamente e resulta num tratamento, digamos, historiográfico do movimento, e que retira poder de convencimento pelo seu tom rememorativo e confessional. A devida remissão ao contexto dos anos heróicos serve a pensar que o tema Brasil - tão marcadamente característico em Caetano desde então - lhe tenha, ao tropicalismo e à Caetano, sido fruto da influência, ou ainda mais, do diálogo que a seu tempo travara com ·o pensamento e as manifestações nacionalistas de esquerda- como as discussões do CPC da Une ou o teatro de B_oal. O esforço de memória do autor recria vivamente esse ambiente. O que Glauber Rocha fazia na perspectiva do Cinema Novo- Barravento, Deus e o Diabo na Terra do Sol Js, Terra em Transe 36 , repunha a tematização acerca do Brasil em novos 52

patamares, e sob novas formas, e que certamente acabou instigando Caetano, cuja referência jamais abandonou. Não por acaso é mais que sintomático que o livro inicia e termina falando sobre o Brasil. As primeiras linhas: "No ano 2000 o Brasil comemora, além da passagem do século e do milênio, quinhentos anos do seu descobrimento. (...) É um acúmulo de significados para a data, não compartilhado com nenhum outro país do mundo."

Tal "acúmulo de significados" que recai sobre o "país nesse final de milênio" diz respeito justamente à contraditória (mas fundante) oposição entre "nação falhada" e "país do futuro" (ver Introdução). Esta contradição parece-me que atualiza algo de ordem mito-histórica que Sérgio Buarque de Holanda descreve em Visões do Paraíso- esta terra do imaginário pré-colombiano e pré-cabralino a um tempo paradisíaco e anômalo. Vereda, o capítulo final do livro, soa-me duplamente significativo. Ali o autor ergue uma discussão sobre o Brasil contrapondo autores diversos como Samuel Huntington, Eric Hobsbawm e o filósofo brasileiro Antônio Cícero (também discute a questão com o psicanalista italiano Contardo Calligaris, no capítulo Antropofagia, pp. 241-262). Penso imediatamente no capítulo final de Raízes do Brasii("Nossa Revolução"), de Sérgio Buarque, de quem Caetano é leitor. Lá, como em Vereda, a parte final destina-se a apontar as perspectivas que o Brasil guardaria para si mesmo. Malgrado a comparação imprópria entre autores que falam a partir de registros completamente distintos, entendo que esta similitude de estrutura dos livros não deva ser aleatória. Guardadas as devidas cautelas

Js Este filme o teria impactado mais que todos na medida em que via nele a coragem criadora do cineas· ta em "dar conta de todo um imaginário e de toda uma problemática particulares do Brasil. Via-se na tela o pró· prio desejo dos brasileiros de fazer cinema. Não era o Brasil tentando fazer direito (ou provando que o podia), mas errando e acertando num ní· vel que propunha, a partir de seu próprio ponto de vista, novos critérios para julgar erros e acertos" (Veios o, 1997:101). J6 Terra em Transe, cujas imagens "procuravam revelar como somos e perguntavam sobre nosso destino", representou para o tropicalismo de Caetano, na rememoração de hoje ( Veloso,1997- 105), "o golpe no populismo de esquerda[que]libertava a mente para enquadrar o Brasil de uma perspectiva ampla, permitindo miradas críticas de natureza antropológica, mítica, mística, formalista e moral com que nem se sonhava. (. ..) experimenta-se a um tempo o grotesco e o arejado da situação dessa ilha sempre recém-descoberta e sempre oculta, o Brasil. (. ..) O povo brasileiro é captado em seus paradoxos que não se sabe se são desesperantes ou sugestivos".


que permitem transitar de um a outro registro, percebo-os, no entanto, como igualmente pensadores do e sobre o Brasil. Mas Vereda conota mais que o vir-a-ser, o rumo, a direção a ser trilhada, a perspectiva que se abre para um futuro; o termo também indica a região abundante de água Vejo a A m é r i c a c o m o u m estágio radicalmente n o v o da história da cultu- em meio à aridez da caatinga. E r a o c i d e n t a l . T r a u m a t i c a m e n t e significa ainda atalho, o caminho 'lavada e m s a n g u e n e g r o e í n d i o ' , descoberto, o que corre ao largo toda ela é urna antítese agressiva da do percurso convencional. Ora, E u r o p a ( Verdade Tropical, 1997i497). toda essa significação se tece coerentemente na solução tropicalista acerca do Brasil, como ser antropofágico que é (e que deveria entender-se mais e mais como tal), devorando as idéias que lhe são (im)postas, mas assumindo e (re)criando o próprio destino, o próprio caminho. As águas que abundam na caatinga seriam a metáfora do otimismo básico a que se refere Caetano em relação ao Brasil - o país abun37 Caetano V e l o s o em entredante em meio à árida miséria.

vista para Almir Chediak in: Songbook s/d. 38 Veloso, 1 9 9 7 : 2 5 8 . 35

ifi'e/77:502.

"°ln: Chediak, s / d : i 6 . 41 ln V e l o s o , 1 9 9 7 : 2 6 6 - 7 . Caetano liga ainda Orlando Silva a João Gilberto, pois sua compreensão da modernidade instaura uma Uberdade inventiva que transcende todas as questões de dependência cultural. Foi essa chama viva que o gênio de João retomou, e é no sentido profundo desse gesto que se deve entender o acontecimento da bossa nova -e suas relações com a antropofagia.

Cabe aqui notar que as idéias expostas por Caetano Veloso nascem ou desaguam nas canções. "Eu vejo tudo preferencialmente através da canção, primeiramente passando pela canção."37 A canção opera a mediação para tudo que vê, como um mecanismo privilegiado de percepção do mundo e das coisas, como parâmetro necessário a que recorrer todo o tempo. O mundo reformata-se sob essa lente. A narrativa do livro denuncia este traço. As questões fundas de quase tudo chamam uma correspondência qualquer com a música. Quase todo assunto armado desemboca aí. 0 ícone maior - o herói civilizador para Caetano (civiliza-

ção tropical?) - é João Gilberto: "Depois dele, na minha profissão, não se pode aceitar nada menos do que fazer a massa mundial comer o biscoito fino que se fabrica no Brasil."38 Melhor produto e produtor da originalidade, o nome maior da bossa nova redime o Brasil afirmando-o na sua mais legítima expressão: "Fique apenas claro aqui que a vereda que leva à verdade tropical passa por minha audição de João Gilberto como redentor da língua portuguesa, como violador da imobilidade social brasileira - da sua desumana e deselegante estratificação —, como desenhador das formas refinadas e escarnecedor das elitizações tolas que apequenam essas formas. Por meu intermédio, o tropicalismo tomou a realidade da música popular no Brasil pela sua vocação mais ambiciosa materializada no som de João."39 "O Brasil ainda não acredita serenamente na inacreditável riqueza que se formou em sua música popular", anotou José Miguel Wisnik 4 0 . Pois de fato não há mesmo como dissimular a extraordinária importância que se precipita no acervo dessa tradição. Noel Rosa terá sido, digamos, muito mais modernista, em amplo (e mesmo restrito) sentido, do que Villa-Lobos. Mas qual o seu lugar, como o de um Pixinguinha, de um Monsueto Meneses, de um Herivelto Martins, ou de um Custódio Mesquita, ou Ataúlfo Alves, A s s i s Valente, Lupicínio Rodrigues, Lamartine Babo, Luís Gonzaga, Ary Barroso, Cartola? Qual exatamente o lugar dessas figuras na história das artes no Brasil? Quando se ouvirá falar de Orlando Silva, que, nos anos 30, observa Caetano, "criara um estilo moderno brasi-


M e n o s do q u e u m a visão mística d a História, eu g o s t a r i a q u e estas palavras fossem tomadas como u m esforço de lucidez diante do q u e se a p r e s e n t a c o m o a m a t é r i a m e s m a da nossa história vivida (Verdade Tropical, 199tt02).

leiro de canto - com todas as firulas do choro, a ginga dos capoeiras e o sentimento latino"41. Não me lembro de menções devidas a esses nomes na escola (ocorre-me agora uma lembrança entusiasmada de ter visto A Banda, de Chico Buarque, num livro didático de primeiro grau - talvez a tenha ouvido em sala de aula). Mas retenho-me feliz e seguro de saber que enquanto a oficialidade ou o gosto exclusivista e caolho das elites babava em Bach (um exemplo ao acaso), o Brasil inteiro ouvia a Rádio Nacional. Não há nada de errado em reconhecer o gênio de um Bach ou de um Mozart; o problema está na hierarquização: a música erudita sendo o supra-sumo, algo insuperável, e que todo o resto derive dela, que tudo venha abaixo dela, e que tudo se meça em relação a ela. Ora, sejamos antropofágicos e comamos Bach ou Mozart - eis o que diz o tropicalismo, e antes dele Oswald de Andrade, e o Oswald que chega a Caetano por meio do teatro de Zé Celso (especialmente a montagem de O Rei da Vela nos anos 6o) e por meio do grupo dos concretistas, Augusto de Campos, o irmão Haroldo e o companheiro Décio Pignatari. Se tratados como documento de primeira ordem - o documento

cancionista

brasileiro - , as ciências

humanas brasileiras cotejariam uma reserva fabulosa e pouco ou pobremente explorada. Mas se as teses de escopo social até agora produzidas ainda não corresponderam à altura de tal riqueza, lembre54

se que nessa área a semiótica e a crítica literária nas figuras de um Luis Tatit ou de um José Miguel Wisnik - têm-se demonstrado muito mais profícuas e seminais. Para Caetano Veloso, cuja inserção nessa tradição lhe levantaria suspeita - não fosse a capacidade de articulação que estabelece entre a produção desses autores e tudo o mais que concerne ao Brasil - , a música popular realiza a mais bela promessa que já se vislumbrou para essa ilha continental; redescobre o Brasil e o afirma em todas as suas virtudes: "(...) a música popular brasileira tem sido, de fato, para nós como para estrangeiros, o som do Brasil do descobrimento sonhado (e aqui já se vislumbra um outro descobrimento, mútuo, em que o coração tende mais para o índio, que subiu à nau alienígena tão sem medo que ali adormeceu, do que para o grande Pedr'Áivares, que mal pôs os pés em solo americano). Ela é a mais eficiente arma de afirmação da língua portuguesa no mundo, tantos insuspeitados amantes esta tem conquistado por meio da magia sonora da palavra cantada à moda brasileira."41

O n o m e do Brasil n ã o apenas m e p a r e c e ,portodososmotivos, b e l o ,comotenhodeledesd e s e m p r eumarepresentação i n t e r n a u n aesatisfatória(VerdadeT r o p i c a l ,1997:253)

«'Veloso,

1997:17-


vol.

^ R e f e r ê n c i a Bibliográfica CHEDIAK, Almir. Caetano Veloso -songb vol. I e II. Rio dejaneiro, Lumiar Editora, s/ Roberto. Relat DAMATA, Referên c i a B i àbAntropologia l i o g r á f i c asocial Rio dejaneiro, ;trodução CHEDIAK, Almir. Caetano Veloso -songbook.. I e II. Rio dejaneiro, Lumiar Editora, s/d. DAMATA, Relativizando - u FAVARETTO, CelsoRoberto. F. Tropicália - alegoria, ;trodução à Antropologia social Rio dejaneiro, alegria. São Paulo, Kairós, 1979. LÉVI-STRAUSS, Claude. Mito e significado. 70,1981. FAVARETTO,Lisboa, Celso F. F.Tropicália - alegoria, CelsoEdições Tropicália - alegoria, NITSCHE, Marçelo et alli. TropicáUa 20 anos. alegria. São Paulo, Paulo,Kairós, Kairós,1979. 1979. São Claude. Paulo, Sele, 1987. LÉVI-STRAUSS, Mito e significado. Claude. Mito e significado. TATIT, Luis. O cancionista - composição de Lisboa, Edições 70,1981. 70,1981. canções no*Bras(/, São Paulo, NITSCHE, Marçelo etet alli. a/li.TropicáUa Tropicália20 20anos. anos.Edusp, 1996 VELOSO, Caetano. Alegria, alegria. Rio São Paulo, Sele, 1987. 1987. dejaneiro, Pedra Q. Ronca, 1977. TATIT, Luis. O cancionista - composição de tropical. São Paulo, Cia canções no*Bras(/, SãoVerdade Paulo, Edusp, 1996. das Letras, 1997. alegria. Rio VELOSO, Caetano. Alegria, dejaneiro, Pedra Q. Ronca, 1977. Verdade tropical. São Paulo, Cia. das Letras, 1997.

tos ZHMZp&Í ' ~M *Z « Tl® • W' m C-*tiF '««Bf tPpi * 1 lS2! A stB^ vv.TSffV-»' . a h . 'ft» • ' '«MT * Stelio A. Marras é membro do corpo e editorial da Sexta-feira Ilustração de Claudio Dlaferla

j S H f ii J F

*


festas


festas


preâmbulo Há algo de comum inscrito na algazarra inerente aos comícios, às congadas e aos terreiros de candomblé; ao comer um tacacá durante o carnaval de rua de Belém, ao dançar em um baile funk da periferia do Rio de Janeiro ou em uma disco de Cuiabá. A festa está em toda parte; da bandeira do Divino ao Oktoberfest, da Folia de reis ao trio elétrico, dos turés aos afoxés. O Brasil revela-se assim palco para cenários festivos dessemelhantes, que no entanto compartilham o simples desejo de celebrar, estar junto, marcar uma determinada passagem. Enfim, socializar o prazer e a dor dispersos pelo cotidiano. Subjacente a toda esta predisposição ritual, reside a certeza de que a festa nos une. Processo fervoroso, a construção da identidade brasileira parece encontrar analogia nos procedimentos da festa antropofágica tupi, aludida por Oswald de Andrade em seu "Manifesto Antropofágico" de 1928. Lendo os cronistas quinhentistas e seiscentistas, as teses de Florestan Fernandes e mais um bocado de trabalhos etnológicos sobre os clássicos tupinambá, lembramos que a tal antropofagia consistia não simplesmente numa

f prática canibal, mas numa festa indígena grandiosa, em que comer o inimigo de guerra significava apropriar-se de sua humanidade inegável. Valendo-se da antropofagia como metáfora, Oswald e seus companheiros modernistas imaginaram um Brasil concebido pela incorporação de elementos estranhos entre si, trazidos de fora para serem, por fim, recarregados de significado. Este constante "por fazer" e "re-fazer" da identidade brasileira reconhece-se em nossa praxis festeira. É preciso, por meio do drama, fazer conviver as diferenças, pensá-las, avaliá-las. E preciso, por conta da festa, colocar em dia as questões mais elementares, os dilemas fundantes, os ideais de porvir. Trata-se da criação de um espaço crítico, um caldeirão composto de ingredientes variados, de natureza conhecida ou ignorada, cuja combinação produz movimento. A festa atribui realidade mágica ao mundo, impregnando-o com seu mana. Promove misturas entre o "eu" e o "outro", de maneira que a diferença seja ao mesmo tempo celebrada e abolida (em nome de uma humanidade irredutível), oscilando incessantemente entre hipérboles e eufe-


mismos. Atualiza sua feição transgressora, subvertendo fronteiras entre o "real" e o "extraordinário", o centro e a periferia, a casa e a rua. Aspirando ao todo, torna universal o particular, nacional o regional, coletivo o individual. Constitui propriamente um "outro mundo", espaço do ambíguo e do indeterminado, revelando à sociedade o que ela possui de alternativa a si mesma. Re-une pedaços, trazendo para a aldeia a cidade, para a política a poética, para a metrópole o sertão. A festa brasileira, carnavalizada e carnavalizante, evidencia dimensões limiares da experiência social. Trazendo à tona temporalidades distantes para um campo de embate, ela anuncia o pretérito no presente. Reconhece em suas heranças barrocas um projeto de modernidade que, para sê-lo, não exclui as glórias e desventuras passadas, a presença inesgotável do catolicismo, as lendas e a moldura patrimonialista. Uma encruzilhada no mais do termo, a festa no Brasil (e alhures) apresenta-se como congraçamento e confronto de elementos de proveniência múltipla, uma típica profusão de variações sobre a tópica do excesso, do excêntrico, do lúdico.

festa é e continuará sendo um tema antropológico por excelência. "Sistema de prestações totais", "drama", "pletora de alegria", ela é capaz de condensar, iluminar e desnudar situações-chave que colocam em causa o estado de coisas social. Enquanto "microcosmos", reproduz em seu espaço quase fictício a maquete da vida social total, almejada pelos estudiosos, dos mais clássicos aos mais pós-modernos. Enfim, realiza (dramatiza) o que em potência poderia ser chamado de cultura ou sociedade. É pois que, na festa, a própria Antropologia encontra seu momento experimental: o ambiente perturbador e criativo da festa revela uma cumplicidade ontológica com a disciplina, também desconfiada dos esquemas preestabelecidos. Antropofagicamente, ambas, a festa e a Antropologia, tendo em vista a impossibilidade de um mundo estático, encontramse sob a obrigação de (re)significar: a primeira por um viés mais sensorial, a segunda por um viés sobretudo conceitual. Desta forma, há que se pensar uma interpenetração. Que a Antropologia nos dê a festa e vice-versa.



Os do trabalho Os rostos rostos do trabalho mudam na festa. Mudam nela e para ela. Moças de cidade, do pequeno bairro rural, os dos sítios da "roça", viram princesas, rainhas, jovens índias. Os homens do trabalho, brancos, negros, camponeses, operários, por uma tarde, por um dia, por dois ou três, são guerreiros mouros ou cristãos. São congos ou moçambiques de uma África distante, amorosamente metafórica.

o rosto da

festa

Crianças nos braços da mãe são anjos pagadores de promessas, pois na festa as pessoas cobrem o rosto de máscaras, de fitas e dé tintas. Cobrem o rosto dos sinais da festa, para descobrirem, no disfarce fugaz, a face verdadeira de quem são, quando sonham ser. Esta seqüência de fotos é de faces do povo em festa em lugares de de São Goiás, de Minas Gerais e de de São Paulo, por onde andei nos nos últimos 20 anos. C a r l o s Rodrigues Brandão é antropólogo e poeta, autor de A Cultura na Rua; As Cavalhadas de Pirenópolis; Memória do Sagrada, Plantar, Colher, Comer; Diário de Campo - A antropologia como alegoria, entre outros. Fotos de Carlos Rodrigues Brandão,


o narrador

D E OUTROS

CARNAVAIS

Entrevista com

RobERTO DAMATTA

editoria


Fotos pag. anterior: Valéria M acedo Claudio Edinger

Em 21 de julho de 1997, o antropólogo Roberto DaMatta nos recebeu em sua casa em Jardim Ubá, Niterói. "Ah, vocês querem falar de festa! ", foi logo nos introduzindo no clima festivo de sua casa, com netos, esposa, boas comidas e mu itas histórias. Em seu gabinete, narrou-nos sua trajetória pessoal, desde a infância rememorando a época em que costumava freqüentar bailes de Carnaval e assistir a festejos regiona is - até a vida adulta - da pesquisa etnológica entre os índios Apinajé, do estado de Goiás (quando era integrante do projeto Brasil-Central, em Havard), às teorias sobre o Bras i I, suas festas e sua identidade. O autor de O mundo dividido; Carnavais, malandros e heróis; A casa e a rua, entre tantos outros livros e ensaios, assume como desafio a interpretação da sociedade brasileira em seus dilemas e ambigüidades. Dividindo seu tempo entre Niterói e a Universidade de Notre Dame, nos Estados Unidos, onde é atualmente professor, continua a publicar artigos sobre a especificidade da cultura brasileira, da qual compartilha a paixão pelo Carnaval. Daí o sentido das palavras que se seguem ...


trava retrato de meus tios vestidos de Rodolfo Valentino, meu tio se fantasiou de sheik, era um tipo muito Don }uan ... Bonito pela fotografia, um pouco estranho, porque parecia artista de cinema de 1920. Aquela fotografia em preto-e-branco, as sobrancelhas acentuadas. Mamãe •nos fantasiou de pierrô. Mas eu queria me vestir de cowboy ou de piloto. Estávamos lá: eu e meus quatro irmãos vestidos de pierrô com a carinha triste. UMA dAS COiSAS OUE EXplicA pOROUE CONSEGUiMOS fAZER ANTROpOlOGiA É OUE NÃO TEM OUEM NÃO GOSTE dE fAlAR dE si pRÓpRio; ATÉ fNdio GOSTA dE fAlAR dE si, dE SUA biOGRAfiA.

É

boM fAlAR dA GENTE.

i·S!MilMR·i

velhos !I;AHNAVAIS

O carnaval era muito importante para minha mãe. Minha mãe era uma mulher que tocava piano muito bem; poderia ter sido uma grande pianista se não tivesse gerado seis filhos. Tinha um casamento tipicamente brasileiro, foi uma mulher tipicamente, digamos assim, oprimida, não por maldade,-mas pelas · condições sociais e culturais em que ela viveu. Meu pai era um homem muito controlador. Minha mãe tocava as músicas de Carnaval todas, todas as músicas ' americanas, tocava música ·clássica. Lembro de minhas experiências no Carnaval em Maceió. Mamãe botando batom na gente. "No carnaval, homem pode usar batom, meu filho." Mos-

Eu sou de Niterói. Meu pai era fiscal de consumo. Ele viajou o Brasil inteiro. Era uma família interessante: minha mãe amazonense, meu pai baiano. Eles se conheciam em Manaus, desde criança, porque eram filhos de viúvos que se casaram. Um. negócio complicadíssimo. Muitos anos depois, conversando com minha irmã e meus irmãos, concluímos que o casamento dos nossos pais foi um casamento, do ponto de vista social, incestuoso. Minha mãe soube, entendeu, e passou uma "esfrega". Claro que eles não eram parentes, do ponto de vista biológico, mas foram criados juntos. Imaginem só a confusão de categorias. Quem estuda a lógica do parentesco sabe. Você é enteado e cunhado das mesmas pessoas. Você misturou a afinidade com a consangüinidade. Mas o que aconteceu? Isso eu aprendi logo que comecei a estudar Antropologia ... Porque o casamento é a busca da exogamia. Porque as pessoas quando se apaixonam ficam encantadas com o outro porque esse outro é o objeto do desejo. Essa coisa de estudar uma cultura diferente da sua, e o casarriento é isso. Você sai da sua casa. No caso dos meus pais, isso não aconteceu. Eles ficaram na mesma casa. Então eles eram muito diferentes e parecidos.


lifi!tF.iir.ti.iiSJMIS.iii&

05 ApiNAjÉ Meu doutorado foi sobre os Apinajé. Eu depois armei uma pesquisa com patrocínio da Fundação Ford e voltei com dois alunos para estudar uma festa de São José que os Apinajé faziam na aldeia. A festa era um momento em que se verificava uma carnavalização, porque os índios se vestiam de brancos, e os brancos entravam na aldeia e se comportavam como índios. Mas havia um congraçamento. Os Apinajé faziam postes. Era uma festa típica de interior. Levantavam mastro de santo, havia alferes da bandeira. Enfim, era uma coisa interessantíssima, e eles é que eram os anfitriões. De manhã já estava todo mundo vestido. O motivo era a celebração de São José. Quer dizer, os índios faziam a festa de um santo ibérico tradicional do panteão católico e convidavam os sertanejos que moravam em volta. Era uma festa de integração étnica que eu pretendia estudar. Quando cheguei com essa equipe- dois alunos-, o encarregado nos disse que a festa tinha sido cancelada, foi realmente um choque. Pela primeira vez presenciei um fenômeno típico de situação de contato. Os regionais, os sertanejos, a elite da cidade e os índios se solidarizaram todos contra o encarregado. Eu

Acho A ANTRopoloGiA bRAsilEiRA MAis iNTERESSANTE

OUE A AMERiCANA. HÁ UMA difERENÇA SiGNificATiVA ENTRE O

scoffAR,

O ACAdÊMico, OUE É O pROfESSOR AMERiCANO E

iNGlÊs, E O iNTElECTUAl, OUE É O CASO AlEMÃO E fRANCÊs, E O NOSSO CASO.

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iNTElECTUAl É UM iNTÉRpRETE dA 50•

CiEdAdE, E fiCA EMbUTidA A pROdUÇÃO ciENTÍfiCA COM A pOSTURA pOlíTiCA, COM UMA iNflUÊNciA foRA do MUNdO UNiVERSiTÁRiO.

MftMtliiMt!t§61f411!!1 A A

ElA dAs fESTAS

Uma coisa fundamental: como é importante o seu próprio testemunho, a sua própria paixão pelo que está fazendo. É uma coisa que eu não tinha quando estudava índio. Quantos antropólogos podem se associar a uma cultura estranha a sua para

praticar uma análise como Malinowski praticou dos trobriandeses ao falar de sua vida sexual, dos seus sonhos sexuais? Que intimidade incrível que esse sujeito teve. Aí você valoriza a minha pesquisa apinajé em perspectiva. É uma pesquisa realmente múito pobre, eu imitei muito ... Tenho hoje uma série de críticas. Não estou dizendo que vou jogá-la fora. Foi uma espécie de noivado que me preparou para um grande casamento, que foi com a análise da sociedade brasileira, o que eu gosto de fazer. Porque a minha primeira motivação profissional era ser escritor, que é o que eu acho que sou. Como Clifford Geertz, que faz comentários sobre a cultura ocidental. Não que eu seja um Geertz brasileiro, o que eu nem quero ...

l.l4J.It75tm.P.L4.P.

).

CRITICA

Quando eu voltei aos Apinajé - já tinha feito o meu exame de doutoramento-, no final de 69, o Brasil estava virando ditadura. Era uma situação muito difícil, beirava a guerrilha urbana. Naquela época, a gente não telefonava tanto, não tinha Internet. O Brasil estava mais longe. A situação era preocupante, sobretudo para quem era intelectual e fazia Antropologia. Era uma coisa de muita responsabi Iidade. Éramos muito jovens naquela época. Certo dia, recebi um disco do Caetano Veloso. Tropicália, claro. Ouvi Tropicália e fiquei encantado. Tive vontade de analisar essas letras, entender o que elas queriam dizer. Eram letras de uma grande ambigüidade, tinham uma certa ironia, parodiavam certas situações, faziam críticas aos militares que ninguém evidentemente entendia. Nem sabíamos se era uma crítica ou não. Quando eu ouvi Noite dos mascarados, com o Gilberto Gil e a Nara Leão, estava lá em casa (em Cambridge) com os meus amigos, comemorando minha passagem no exame de doutoramento. Ao ouvir esta canção, pensei: "quando eu chegar no 6s


Brasil Brasil vou vou fazer fazer uma uma análise análise desta desta música" música".. NaqueNaquela la época época eu eu tinha tinha descoberto descoberto a a obra obra do do Victor Victor Turner, Turner, que que depois depois se se tornou tornou um um grande grande amigo. amigo. No No meu meu livro livro sobre sobre os os Apinajé Apinajé eu eu apliquei apliquei um um conceito conceito insinssubstância"), pirado pirado na na sua sua obra obra ("comunidade ("comunidade de de substância"), mas mas o o meu meu adviser adviser não não gostou gostou muito. muito.

Cambridge e o (r

COM A AMDIIqUIIU~,u~ AMbiquidAdE

Conheci, em Cambridge, Cambridge, muitos muitos daqueles rapazes zes de cabelão comprido, aqueles meninos americanos cujos pais tinham tinham estudado nas melhores melhores universidades e cujo objetivo de vida é fazer uma agenda - todo americano tem uma agenda, agenda, pois a competição lá é muito forte. forte. Eu falava para eles eles que seria interessante que entrassem num navio e fossem sem para o Brasil. Se Se eles eles queriam repressão, repressão, confusão e hibridismo, porque não iam para o Brasil? Mas estudantes brasileiros iguais a mim iam para os Estados Unidos porque o que nós queríamos era fuum gir daquela coisa toda. Queríamos o silêncio, um mínimo mínimo de ordem. ordem. Era Era como se, nos anos anos 60, a Antropologia Antropologia inglesa, digamos ... eu diria mais, anglo-saxã digamos... mais, a cultura anglo-saxã dos dos anos anos 60, descobriu uma coisa que nós nós no mundo luso-brasileiro, ibérico, mais híbrido, tínhamos tínhamos descoberto há muito tempo. Descobriram nos Estados dos Unidos sexo, política e festafesta - três coisas explosivas ao mesmo tempo. Toda Toda cultura conhece conhece isso. Mas entre os os americanos, americanos, para quem tudo isso estava va reprimido, reprimido, esse negócio veio àà tona. Então descobriam o paradoxo e a ambigüidade, o que que caracterizava muito o movimento movimento hippi~. hippie.

i!i.ili!@!it.l1.!1 u m l u g a r ao sol p a r a a-

ANTR~TANICA AlNTROpOLOqiA DRITANICA Os Os antropólogos ingleses foram influenciados por por correntes estruturalistas. estruturalistas. Uns Uns soldadinhos de chumbo tipo Rodney Rodney Needham, Needham, repetidores, se se apropriaapropriaram da obra de Claude Claude Lévi-Strauss de uma maneira maneira mais inglesa, inglesa, mais quadrada. quadrada. A obra de Needham Needham

66 66

A

não comportou comportou a ambigüidade, manteve as as duas colunas. Mas pessoas como Victor Victor Turner destoavam vam deste modelo modelo inglês. inglês. Turner, que não era inglês mas mas escocês, que tinha passado passado pela literatura, literatura, que illiam tinha gostado de W Will iam Blake, e que era era um cara religioso, católico de conversão, era èra muito preocupado com a questão do efêmero, com a festa, festa, com os os encontros, com o amor. Ele Ele era um indivíduo indivíduo muito romântico. Dizia assim assim para mim: "tem mulheres nesse mundo mundo que a gente não pode deixar de amar, embora a gente sempre seja apaixonado pelas las nossas esposas". Ele Ele tinha essa preocupação, sempre queria reun reunirir alunos, e os reunia porque titinha nha uma capacidade, capacidade, uma energia muito grande, uma uma certa disponibilidade. disponibilidade. A ENTREVÍSTAS OUE QUE A A GENTE qENTE A AlMA AIMA do do !toMEM hOMEM ESTÁ NAS NAS ENTREViSTAS fAZ, FAZ, NAS NAS ltiSTÓRiAs IIÍSTÓRÍAS OUE OUE CONTAMOS E E OUE QUE sobREViVEM. SOÒREVÍVEM. A A GENTE CjENTE sobREvivE, S 0 b R E V Í V E , TALVEZ T A L V E Z siM, SÍ|H, TAlvEZ T A I V E Z NÃO. NÃO. Nós NÓS soMos SOMOS AS ltinÓRiAs hÍSTÓRÍAS QUE OUE A A GENTE CJENTE CRiA CRÍA UNS UNS SObRE SobRE OS OS OUTROS E OUE OUE OS os GRUpOs q R u p o s CONSEGUEM CONSEQUEM CRiAR. CRÍAR.

Michael lackson e ~ATOGROSSO

INEy M A T O Q R O S S O

É É claro claro que que na na visão visão anglo anglo -- e e se se vocês vocês relerem relerem dentro desta perspectiva Mary Mary Douglas, Douglas, o próprio próprio Turner ou Leach - , a ambigüidade é negativa, negativa, afinal afinal são são ingleses. ingleses. Não há há lugar para ambigüidade na culcultura inglesa. inglesa. No regime ideológico britânico britânico e americano, ricano, evita-se aquilo que está está no meio. Mas para um antropólogo antropólogo brasileiro, esse quadro muda. muda. OBraO Brasil possui possui uma cultura em que a ambigüidade é valosil está no meio, resolver não rizada - aquilo que está resolver, decidir não decidir, "deixar para para amanhã resolver, ,que amanhã amanhã a gente resolve". resolve". A maneira maneira de resolver resolver brasileira prolonga prolonga mais. mais. Roberta Roberta Close foi a mulher mulher mais desejada do Brasil. Os travestis são deslumbranmais Brasil. Os são deslumbrantes. Isso Isso vende muito muito... ambigüidade Ney tes. ... A ambigü idade do Ney Matogrosso é diferente da ambigüidade do Michael Matogrosso é diferente da ambigüidade do Michael Jackson. Ney Ney Mato Mato Grosso Grosso é é muito muito mais mais abertamenabertamenJackson. te erótico. Michael Jackson tem que ficar fazendo te erótico. Michael Jackson tem que ficar fazendo


paga-se pedágio para a estrada real; há a polícia rodoviária e uma porrada de automóveis circulando junto com você, te atrapalhando. E as histórias secundárias? É o "sabe quem está falando", é o Carnaval que ninguém tinha visto.

&I .. IJF.fi.Hii L TROpiCA

uma certa androgenia de menino, ele se aproxima mais do "complexo de Peter Pan". E Matogrosso tem uma sensualidade baseada no ambíguo.

&Jih.A.MIIPJ!i.t. r.t Eu

OUERO ENTENdER O BRAsil ATRAVÉS dAS fEsTAS.

Comecei a me perguntar: "as músicas que deCarnaval, quantas são? " . São finem o pouquíssimas. Tem Lamartine Babo, com o qual abro inclusive um artigo- "quem foi que inventou o Brasil/foi seu Cabral/foi seu Cabral/no dia vinte e dois de abril/dois meses depois do Carnaval". O que Lamartine fez: carnavalizou a história oficial do Brasil, fazendo com que ele fosse descoberto depois do Carnaval. Genial. Então,' quando eu comecei a fazer pesquisa sobre o Carnaval, descobri que não havia nada "sério" sobre o Carnaval. Não era uma estrada real para entender o Brasil. Estudava-se a história das etnias, a história do povo, o que fez Gilberto Freyre. Estudava-se a história da família patriarcal ou a história dos oprimidos. Essa era a estrada real. Havia que se passar por isso para entender o Brasil. Mas agora

O Carnaval é uma festa nacional. Se está mudando, se não está mudando, o que significa isso? Por isso, a minha démarche não é histórica. Tenho sido acusado por alguns colegas de não ter estudado a história. Meu interesse não era estudar a história, meu interesse era implantar a temática, fazer uma provocação. Este carnaval não é metáfora, o Brasil não pode ser metaforizado só pelo Carnaval. O Brasil tem várias leituras de si próprio. Há que se entender a sociedade por uma lógica de englobamento; não é só isso ou aquilo. Às vezes a sociedade é englobada por uma visão de si própria, às vezes não, exatamente como acontece no Brasil. Algumas dessas visões podem ser reprimidas, você cria as identidades assim. O Brasil é uma sociedade com uma lógica tripartida. Eu até hoje fico muito chateado quando algumas pessoas querem fazer uma crítica do meu trabalho - super legítimo -, mas fazem esta crítica dizendo que eu sempre estou vendo tudo em dualismo; justamente a contribuição que estou querendo dar é dizer que o Brasil não pode ser lido dualisticamente. O Brasil não é um país só de opressores e oprimidos, tem alguma coisa sempre no meio, a relação é importante.

i.t§Fltlt1tti4i•!!ESTA Jorge Amado tem razão quando diz que o Brasil é o país do Carnaval. Mas como país do Carnaval com um regime autoritário? E a fascinação pelo autoritarismo? Mas isso eu estava escrevendo na década de 70, não estava fazendo isso em 1997, quando todo mundo pode esculhambar todo mun-


do, quando a polícia está nas ruas dando tiros no exército. Nós estamos vivendo um regime democrático. Eu estava escrevendo isso na época da ditadura, quando a esquerda antropológica, a intelectualidade que era hegemonicamente de esquerda, não via esses assuntos como legítimos para análise. Tinha que estar estudando classe operária e camponês. Rituais? Era um epifenômeno ... O ritual não era visto como uma coisa que instaurava, era uma conseqüência, uma visão clássica do marxismo, a perfumaria da superestrutura. Aliás, no máximo, era um arroto da superestrutura, para usar uma expressão feia. E no caso do Brasil, que obviamente eu verifiquei quando comecei a estudar o Carnaval, qual é o maior paradoxo? Aprendi com Lévi-Strauss. Desconfie dos modelos dados pelos nativos. Se os nativos não falavam naquilo é que aquilo devia ser importante. E se falavam demais de economia e política, provavelmente não era importante. Quem falava disso era aristocrata. A esquerda brasileira estabeleceu uma aristocracia, com número 1, número 2, quem fala primeiro, quem fala em segundo lugar etc. Os ideólogos montaram um sistema e eu não conseguia romper. 0u4NdO EU ENCONTREi O JORGE i\M4dO pElA pRiMEiR4

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N4 Bdti4, pERGUNTEi: FIAubERT dissE "Eu sou l'rbd4ME Bov4Ry". VocÊ di Ri-" ou E É DON-" FloR?

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popUlAR C SMICO

Sobretudo, a fascinação pela inteligência da cultura popular. Lamartine Babo, que escolaridade esse cara tinha? É uma sociologia espontânea; ela é muito mais sabida, muito mais inteligente do que aquilo que eu estava lendo produzido por meus colegas. Superestrutura, infra-estrutura, tudo em conflito, os burgueses querem controlar os operários. Fazer uma pesquisa durante um mês, um ano, e concluir isso eu achava que era uma perda de tempo. Eu queria saber por que essa sociedade que tinha ricos e po68

bres, opressores e oprimidos, aristocratas e escravos, produzia um negócio chamado Carnaval, em que os escravos podiam se vestir de nobre. Que negócio é esse? Íamos aprender a dançar samba com as nossas empregadas. Hoje se aprende pela televisão, graças ao Gera Samba ["É o Tchan"]. Isso é uma agressão para muita gente da classe média alta, intelectual cosmopolita. Basta ver artigos que estão saindo agora no jornal. Porque aquilo ali é preto no preto, branco no branco, homem com mulher, não tem negócio de viadagem, negócio de ambigüidade, de menino do Rio, aquelas coisas de Caetano Veloso. É aquilo ali: "mete em cima, mete em baixo, depois de nove meses você vê o resultado". Segura o tchan, entendeu? É uma espécie de popular cósmico. Volta às origens. Um cara chamado Adão e uma mulher chamada Eva. A serpente aparece depois para expulsar os caras do Paraíso, em que se estabelece um paradoxo. Eu fiquei impressionado quando vi aquele negócio.

F.t F.1 rr: f!ffi mF.TII·

NACIONAl

Agora o pan-brasileirismo da minha obra vem da minha família . Eu ouvia história do Bumbameu-boi do Amazonas quando era criança. Tocava as músicas do Bumba-meu-boi e cantava. "Pai Francisco entrou na roda ... " é música folclórica que os meninos sabem. Mamãe cantava para os netos, tocava no piano e cantava. Era uma coisa Bahia-Manaus: comidas amazonenses, comidas baianas, morando no Rio de Janeiro e Minas Gerais. Então o regional para mim é que é a afronta. O Brasil é todo igual, eu morei em todos esses lugares e nunca precisei fazer nenhum esforço de tradução de nada. Sabia exatamente como eu tinha que me comportar. Por que os regionais se projetam de maneira nacional para poderem ser regionais de sucesso? Você tem que ter uma afinidade entre sua imagem regional e uma coisa chamada imagem nacional,


que é uma síntese da imagem das outras regiões. É muito mais complicado do que falar que o Brasil é simplesmente um mosaico, dividindo as regiões. Isso é um dos elementos da minha obra.

Eu Acho difícil iMAGiNAR o BRAsil SEM CARNAvAL ..

IJ.Ii.kGAilbii.t.!. NOSSA

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ldENTI A E

Essa liberdade, essa ausência de definição ou essa definição por ausências, talvez seja o nosso dado mais interessante. Talvez o Brasil seja o país do futuro ... É possível corrigir as injustiças por outros mecanismos. Talvez um mundo futuro seja um mundo em que as identidades sejam superadas e substituídas por outras. Talvez não. Talvez sejam mais acentuadas. Para Huntington, aquele cientista político de Harvard, no futuro, o maior rival da sociedade nacional serão as diferenças étnicas . Evidentemente, ele está partindo da experiência americana. Talvez, no caso brasileiro, não seja esse o problema. Sempre haverá alguma diferença. Nesse ponto, eu concordo com o princípio básico do estruturalismo de que só há significado com oposições e diferenças. Agora, que diferenças serão estas, isso eu não posso dizer. O que é intrigante é isto; há sociedades que têm uma válvula de escape muito poderosa. O Carnaval tem este aspecto de um mecanismo em que a sociedade se reencontra nas suas misérias. Um dos pontos teóricos mais interessantes sobre o Carnaval é: afinal de contas, o que o Carnaval celebra? Porque todas as festas têm um centro, têm um foco. A festa de aniversário, o funeral, um ritual religioso ... No Carnaval, qual é o foco? O Carnaval descentraliza, muita coisa acontece ao mesmo tempo. Ele cria uma série de eventos paralelos, desfile de escola de samba, os bailes, as fantasias de rua, dissolve as instituições. E o Carnaval tem outro dado, que depois eu escrevi mas não publiquei, que é uma

comparação entre a formalidade e a informalidade das situações sociais - uma especulação -. As festas formais são curiosas porque elas só pedem seu corpo, só querem o bom comportamento, mas as orgias, que são informais, pedem teu corpo e tua alma. No Carnaval , você tem que brincar; o teu contrato com a situação, a tua conivência com a situação, ela tem que ser integral. Que interessa você chegar num baile e não dançar?

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orgia ONÍVORA Como toda orgia, o Carnaval tem essa capacidacapacidade de permitir múltiplas interpretações. Eu Eu não sei o significado do do Carnaval. Carnaval. O O Carnaval Carnaval celebra celebra oo mito da sexualidade? sexualidade? Qual é a festa que não celebra de alguma maneira a sexualidade? Até as as festas festas religiosas. religiosas. Como pensava pensava Freud, Freud, tudo é baseado baseado em libido, a motivação para se se fazer a festa. festa. Não se se vai brincar de Carnaval Carnaval com a relação que se se tem no cotidiano. Jogo de forma e fundo. As As festas festas fazem isso de maneira geral: geral: mudam a perspectiva. Mas o Carnaval muda de uma maneira específica. específica. Eu Eu ainaincontinuo interessado nesse código que implanta implanta da continuo exclusiva. Essa pauta pauta essa possibilidade que não é exclusiva. interpretada sempre do mesmo musical não vai ser interpretada musical, ela vai variar jeito. Como ela é uma pauta musical, limites. segundo certos limites. Por que o Brasil tradição Brasil é o grande herdeiro da tradição medieval que o Bakhtin descreve tão bem? bem? Por que em nenhum outro país do Novo Mundo Mundo aconteceu aconteceu isso? Estados Estados Unidos jamais. Lá Lá o Carnaval é localizado, é regional. .. Não se regional... se vai a um baile de Carnaval para ficar incólume, ninguém assiste a um desfile de escola escola de samba samba incólume. Veja o nosso ex-presidente Itamar, que não me deixa mentir. mentir. O presidente da República ou um governador governador de Estado que quiser correr correr o risco de ser desmoralizado, vai a um baile de Carnaval. Itamar foi, flertou flertou com aquela moça (porque (porque Carnaval Carnaval é um momento em que se flerta abertamente). ... abertamente). A moça já foi sem sem calcinha calcinha... A mais alta autoridade autoridade do país foi carnavalizada. carnavalizada. EE o sujeito se se liquidou. Ninguém conseguiu englobar englobar politicamente politicamente o Carnaval, ou por falta de teoria sobre o carnaval, carnaval, o que significa que estamos lidando com um elemento elemento que a sociologia tradicional tradicional nã<? não nos deu instrumentos instrumentos para compreendê-los inteiramente. teiramente. Se você pagar o folclore brasileiro, Reisados, Congadas, tem muita coisa coisa semelhante ao Carnaval. Há uma certa hierarquia. Esses populares estão 70

observando os os aristocratas nas nas suas fazendas, fazendas, nas suas mansões, mansões, nas nas suas casas grandes, estão se se vestindo como tais, tudo é muito ritualizado. O própróprio candomblé tem muito desse desse ritual, algo que veio da corte. Nas Nas paradas paradas militares, nas nas procissões, procissões, isso também aparece. aparece. Congadas e Reisados são são no mais das das vezes vezes dradramas em que também se se inverte inverte o mundo. mundo. Os Reisados alagoanos, alagoanos, pelo menos alguns, alguns, fazem dramatizações de golpes de Estado. Estado. Os Os embaixadores visitam reis, há a guerra de mouros com cristãos etc. É o passado passado voltando voltando a ser presente. Isso tudo ocorre nas festas populares. Elas têm um foco definido que o Carnaval. O Carnaval Carnaval remais bem definido úne esses elementos todos. Como diz o Bakhtin, o digerindo tudo que é Carnaval é onívoro, ele vai digerindo Ele pode integrar; integrar; famoderno, tudo que é antigo. Ele das fesfeszendo uma síntese toda especial, inclusive das tas religiosas.


~ade Eu acho que o Carnaval é um dos mecanismos pelos quais a gente expressa a nossa identidade. Evidentemente, sempre por contraste. Nunca falei em caráter- caráter é um traço. Identidade, para mim, sempre foi uma coisa muito mais leve, muito mais contextual. A identidade é fugidia, ela é demarcada por contextos. (Há um exemplo maravilhoso, que está em algum trecho de Louis Dumont.) Veja o exemplo do Rio e São Paulo: você constrói a identidade carioca e a identidade paulista, que é amesma coisa entre Lisboa e Porto. No Rio de Janeiro, praia, Carnaval, os cariocas não trabalham; em São Paulo, ao contrário, se trabalha. Mas se um paulista e um carioca forem a Nova York, essa diferença desaparece e eles serão englobados numa identidade brasileira em oposição a uma identidade calvinista, puritana, americana, que é hipócrita, que segue as regras. Aquele negócio de americano que nunca tem tempo para nada, não aprecia a vida, nunca toma uma bebidinha ... UM AMERicANO podE dizER QUE QUANdo pENSA Nos

EUA,

dE

pENSA NA bANdEiRA AMERiCANA; NÓS NÃO NOS pENSAMOS ASsiM.

Eu

pENSO NO CARNAVAl dA BAitiA, NUMA pRAiA, NO sol,

UMA fAMÍliA, UMA VARANdA, AS pESSOAS CONVERSANdO.

Jorge ·Amado, que eu tinha lido na faculdade, era leitura obrigatória (a gente só lia os comunistas). Jorge Amado é um comunista que deixou de ser comunista, como eu disse duas vezes em dois artigos sobre o Dona Flor e seus Dois Maridos. Jorge Amado, quando saiu do "partidão", permitiu-se a liberdade de escrever este tipo de coisa. Eu, como não entrei em partido algum, já comecei com essa

história de ambigüidade ... Basta você observar o Carnaval. Se não é o país do Carnaval, como é que se explica o autoritarismo? Carlos Lacerda? UDN? O sucesso eleitoral extraordinário do Jânio Quadros, que é eleito com a vassoura, que vai limpar a corrupção, a bandalheira?

liijM!iH!jm.m.t:!. • AR 050

O que estão pedindo para o Fernando Henrique, mas graças a Deus ele não faz? Querem que ele vá apoplético para uma rede de televisão dizer que vai mandar prender a polícia, dar comida para pobre e não sei o quê. E sabe que não pode fazer porque a sociedade democrática tem uma série de instâncias. Essa visão praticamente primitiva do poder do presidente que é frazeriana: o presidente é o sacerdote, é o mago, e sua vontade política poderia resolver todos os problemas do Brasil. É uma visão elementar, incompatível com um regime democrático numa sociedade pós-moderna. As pessoas que estão pedindo isto estão entrando numa pastelaria querendo comer comida francesa. Estão num restaurante francês querendo comer carne-seca, com tutu. A coisa é muito mais complicada. Tem um Congresso funcionando, são seiscentas pessoas, tudo tem uma dinâmica. E o presidente, na realidade, é um diretor de cinema, ele é o gerenciador de certas coisas. É claro que tem responsabilidades. Mas para que esse poder executivo se normalize no Brasil, é preciso acontecer o que está acontecendo: o Congresso, as alianças com pessoas diferentes. 71


Roberto DaMatta *

A mensagem das festas: reflexões em torno do sistema ritualeda

identidade

brasileira

Abordo neste ensaio três assuntos vastos e perigosos: mensagens, rituais e identidade nacional. Dir-se-ia que são temas ultrapassados num mundo cada vez menor devido à densidade das comunicações, do comércio internacional e dos intensos deslocamentos de população, transmigração que engendra novos hábitos, inventa sociabilidades híbridas e, irremediavelmente, ameaça os mais bem estabelecidos estilos de convivência coletiva. Não há como discordar dessas obviedades. Num plano mais profundo, porém, cabe perguntar se tal diagnóstico não seria um exagero diante das reações extremadas de certos grupos locais contra correntes globalizantes que impõem uma homogeneidade freqüentemente acachapante e opressora. Estão aí os vários "fundamentalismos" — do Oriente Médio ao México e Peru indígenas — a demonstrar esse ascender de valores locais que se supunha esquecidos. Do mesmo modo, e certamente pela mesma lógica cultural, no outro pólo do sistema mundial encontramos reações do mesmo teor. Assim, países ricos e pós-industriais tomam medidas contra imigrantes pobres que representam uma ameaça às suas formas de vida tradicionais. Isso para não falar do ocaso do sistema soviético, engolfado numa implosão étnica. Tais fenômenos revelam uma surpreendente reversão da "modernidade",


fotos pag. anterior: Va lé ri a Macedo Famíli a Ve iga de Castro

quando um discurso universalizante e aberto cede lugar a reações exclusivistas que desejam Paris para os franceses, Berlim para os alemães e a ensolarada e "democrática" Califórnia - a fábrica dos sonhos liberais do planeta - para os americanos brancos. Nada mais paradoxal, portanto, do que constatar que ao lado de uma corrente universalista, que prega o fim das fronteiras, das histórias e das culturas, apareçam movimentos que forçosamente requerem uma retomada da reflexão sobre a identidade social nos países pós-industriais. Precisamente essas coletividades, que tendo inventado o Estado Nacional moderno, produzem uma retórica de condenação de valores locais como algo ultrapassado ou medíocre. Quer dizer, o nacionalismo e, com ele, a cultura, (re)surgem não na xenófoba e subdesenvolvida América Latina, mas numa Alemanha paradoxalmente sem muro e nos Estados Unidos dos livres e iguais. Tais considerações fazem-me também duvidar da afirmação de que o mundo contemporâneo não tem pontos de referência. Pergunto-me se não é precisamente nessas situações de irresistível globalização que mais ficamos conscientes da nossa singularidade e identidade. O fato de poder comer pizzas em Chicago, Manaus ou Nova Deli talvez acentue ainda mais o caráter arbitrário e impositivo desse universalismo que tenta disfarçar a força opressora dos grandes centros de poder. Finalmente, será preciso questionar o seguinte: ao aceitarmos o multiculturalismo moderno, não estaríamos nos esquecendo que globalização e neoliberalismo não significam ausência de poder e de centro? Até onde o neoliberalismo marca uma mudança relativamente aos "centros", no sentido de diminuir sua responsabilidade como instituições que agendam o futuro e o controle político de milhões de pessoas em todo o planeta? Tais questões revelam que não podemos confundir tendências e problemas dos países centrais com o que ocorre no resto do mundo. Sobretudo na Amé-

rica Latina, um continente tão obcecado com a "norma moderna", que até hoje está perdido no seu próprio labirinto de medidas e contramedidas que objetivam chegar a um ponto inatingível. O fato é que hoje, talvez mais do que nunca, verifica-se uma pol'ârização entre o universal e o local. É verdade que sociedades fechadas e grupos tradicionais estão expostos a mensagens multiculturais, mas isso não significa que eles dancem de acordo com a música, nem que mudem de acordo com a receita. Muito pelo contrário, a universalização crescente e imposta pela ausência de um "outro lado" implica uma necessidade premente de autodefinição e, acima de tudo, de autoconhecimento. Daí a minha preocupação com a identidade brasileira. Em Torno da Identidade e Identidades

das Nacionais

Neste ensaio, a identidade brasileira é lida não como um caroço ideológico imutável , mas como um arranjo historicamente dado de elementos- objetos, relações, palavras, vestimentas, espaços, valores, personalidades e mitos - , que, embora existentes em todas as sociedades, combinam-se de modo especial, constituindo o que brasileiros e estrangeiros reconhecem como sendo o " Brasil" . Tal modo de ler a identidade permite conciliar universalismo com particularismo, estereótipos com opiniões sistemáticas, bem como ser menos ingênuo relativamente a certos fenômenos mundiais. O fato de que todo mundo usa blue-jeans não significa que todos caminhem do mesmo jeito e sigam para o mesmo lugar. Tomar café na Etiópia, onde ele foi inventado, é bem diferente de tomar coffee nos Estados Unidos e "cafezinho" no Brasil ... A identidade não é algo substantivo e imutável como uma pedra, mas uma "coisa" concreta e real como um mandamento, uma jura, um ritmo ou um contrato. Para percebê-la, é preciso colocar-se numa 73


certa posição. Conforme acentuei alhures (DaMatta, 1979, 1991 a, 1991 b, 1993), a identidade é dada num jogo complexo de lembranças e esquecimentos. Tudo numa sociedade é inventado, mas nem tudo é minuciosamente lembrado ou transformado em fantasmas capazes de assaltar a nossa consciência. A dialética entre lembrança e esquecimento pode ser melhor percebida pela comparação. Sobretudo pela comparação por meio de diferenças e contrastes.

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AM.:RICAS

Usando tal perspectiva, descobre-se que no plano da história das Américas, os Estados Unidos adotam uma posição ideológica rígida e intransigentemente cívica no que se refere aos valores que estão por trás das narrativas que constituem o solo de sua identidade nacional, ao passo que a América Latina combina, criativa e perturbadoramente, a tradição moderna com valores tradicionais. Deste modo, a história americana é construída como um drama de "fundadores" brancos, sábios e revolucionários, que, a partir de um pacto constitucional descrito como consciente, foram impondo esse pacto ao resto de um território que vai se conformando e se integrando como nação. Nesta saga de anexações a partir "dos 13 estados originais", excluem-se o papel dos índios e dos negros na formação nacional. Ou seja, na história americana, só ao branco protestante e puritano cabe o papel de formador da cultura e dos valores. O mito da origem nacional americana contrasta notavelmente com a América Latina e com o Brasil, região na qual índios, brancos e·negros são lidos como estando em constante interação e são interpretados como atores importantes nas diversas narrativas de formação nacional. Se a " história empírica" ou "objetiva" das Américas mostra índios, brancos e negros como atores importantes, na América do Norte o drama é construído tendo apenas o branco como elemento englobador. Já na 74

América do Sul, índios, brancos e negros são atores fundamentais na constituição de sua identidade nacional. E dentro dessa América, o Brasil se destaca, propondo uma leitura de sua história nacional como um drama no qual "três raças" desempenham um papel básico, pois, no caso brasileiro, brancos, negros e índios formam um "triângulo racial" e constituem o que chamei de " fábula das três raças" (DaMatta, 1987) - uma narrativa na qual podem desempenhar papéis principais ou secundários simultaneamente, caso se queira salientar certas dimensões ou características do sistema. Isso não é tudo, pois é curioso lembrar que amaioria dos festivais nacionais americanos, com exceção do Natal, são comemorações explicitamente


1 Estudei essa t e nd ên c ia " natur.ali st a" que permei a a constru çã o da id entid ade brasileira no ensaio " Em Torno da Representa ção de Natureza no Brasil ", publi cado em DaMatta, 1993.

inventadas pelo governo dos Estados Unidos, constituindo-se em datas cívicas conscientemente estabelecidas; ao passo que, na grande maioria da América Latina, as datas cívicas se confundem e competem com os velhos dias santificados e com as festas populares que o mundo ibérico trouxe para o continente sul-americano. Assim, menos do que comemorações cívicas sobrepostas ao conjunto de festas locais, existem rituais que exprimem uma mistura entre estilos de vida locais (que quase sempre o colonizador queria liquidar) e modos de comemorar impostos pelo país colonial. Deste ângulo, portanto, existe um outro conjunto de diferenças palpáveis entre o Norte e o Sul do continente e, dentro da América Latina, diferenças notáveis entre o seu lado espanhol e português. No que diz respeito aos mitos fundadores do Estado Nacional, por exemplo, deve-se ressaltar que a América Latina dispensa "pais fundadores" burgueses, modernos e versados nas teorias contratualistas de Hobbes, Locke e Rousseau, para adotar um mito fundador de caráter mítico-religioso, no qual uma figura feminina desempenha um papel fundamental. Assim, o caso mexicano da Virgem de Guadalupe, que com sua aparição miraculosa motiva as lutas pela autonomia nacional, cria um terreno intermediário entre o mundo local e o do colonizador, somando à tradição revolucionária burguesa antigos valores católicos. Com isso, todos os países latino-americanos têm uma narrativa nacional, que em graus variados combina uma história burguesa, baseada em heróis, batalhas e conquistas liberais que se somam linearmente, com uma narrativa sobrenatural e milagrosa, ausente da história norte-americana. Não deve ser, portanto, casual que nossos movimentos de independência tenham como ponto culminante não um pacto constitucional calmo e frio, mas que sejam caracteristicamente chamados de "gritos". Ora, para nós latinos, o "grito" é um desabafo,

uma forma violenta (e carismática) de protesto e confronto, que se localiza no plano da comunicação verbal e da alta emoção. Deste modo, ele representa um rompimento acima de tudo emocional com o colonizador, afirmando um desabafo, primeiro s'inal de que não suportamos mais o elo com a matriz. Vale então constatar que a Colômbia, o Uruguai, o México, o Equador, Porto Rico e o Brasil têm nos "gritos" de independência o evento climático do seu "rito de passagem histórico" mais importante. Foi, pois, com o "grito" (que se associa ao confronto personalizado, violento e à reclamação forte) que esses países transformaram uma sociedade imperial em duas nações individualizadas e independentes. De todos, porém, o caso do Brasil é o mais interessante, visto que o "grito" de "independência ou morte!" que libertou o Brasil do jugo português foi proferido pelo Príncipe Regente D. Pedro I, em 1822, que assim consuma a independência política de cima para baixo com pouquíssima participação popular.

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Outro contraste significativo é que no Brasil não há nem a figura do "pai fundador", nem a do "conquistador", nem a do "libertador". Nela o que existe é a figura do "descobridor" que, ao lado do "catequista" paciente e protetor dos índios, encarnado na figura de um jesuíta casto e puro, ajudou a fundar a identidade nacional. Assim sendo, o Brasil não foi fundado ou conquistado, mas descoberto, "catequizado" e finalmente tornado independente por um príncipe português, D. Pedro I, numa narrativa que obviamente enfatiza uma natureza (ou essência) brasileira independente de história e cultura'. Deste ângulo, o movimento de independência do Brasil é o ponto culminante de uma curiosa reversão histórica que se inicia com a vinda do Rei de Portugal, D. João VI , para o Rio de Janeiro, em 1808, 75


quando Napoleão invade a península Ibérica e faz guerra aos aliados da Inglaterra. Com isso, na fase histórica que modernizou politicamente o mundo Ocidental, quando a América Latina foi libertada do jugo espanhol por Simón Bolivar, espatifando-se numa multidão de repúblicas e dando margem à penetração da Inglaterra e dos Estados Unidos como novos poderes imperiais, o Brasil permanecia "tranqüilo", governado que era pelos descendentes de D. João VI, D. Pedro I e D. Pedro 11, que foram responsáveis pela independência e pela modernização política do país. Imperadores brasileiros que desenharam um perfil aristocrático e clientelístico de comportamento, sem esquecer, porém, de criar o conjunto de instituições políticas que iriam modernizar o país, tornando-o liberal - senão na prática social, pois que era uma sociedade de senhores e escravos - ao menos na letra da lei. Deste modo, a história política e social do Brasil combina tradição e modernidade. Tal como o seu sistema de festas, no qual se juntam datas cívicas, datas populares imemoriais (como o Carnaval) e feriados religiosos católicos.

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BRAsl EIRA

Tudo isso mostra como identidade se faz com história e, num certo sentido, sem ela. Pois se a história inventa a memória, é a sociedade que, salientando certos acontecimentos em vez de outros, constitui as recordações e os valores - aquilo que é inscrito no corpo social como o que não pode ser esquecido e deve ser perseguido, dramatizado e reeonstruído 2 • No Brasil, as festas populares, as comemorações cívicas e as solenidades religiosas formam um claro "sistema" ou um "triângulo ritual" (DaMatta, 1979). Com a Semana da Pátria, a Semana Santa e o Carnaval, a sociedade brasileira constituiu uma visão idealizada e equilibrada de si mesma -visão que ela nem sempre pode adotar em outras dimensões de

sua vida coletiva. Na América Latina e no Brasil, combinam-se, em graus variados de intensidade e sucesso, comemorações tradicionais (que foram transmitidas por um colonizador catól ico e contra-reformista) a tradições cívicas modernas que suas elites 'descobriram numa Europa revolucionária ou num universo norte-americano próspero, desenfreadamente capitalista e independente. Falar, portanto, das festas brasileiras implica discutir as relações entre tradição e modernidade. Entre uma modernidade hegemonicamente marcada pelo individualismo e pela igualdade burguesa abstrata, universalista e política (uma igualdade perante as leis que teoricamente valem para todos) e uma outra orientação caracterizada por uma visão relaciona! do mundo. Orientação em que a pessoa (e suas relações) é mais importante do que o indivíduo obediente às leis que governam um novo tipo de coletividade: a nação3 • Assim sendo, quando refletimos sobre a mensagem dos ritos latino-americanos, entramos em contato com uma cosmologia na qua l a disciplina burguesa, preocupada em controlar o espaço e o tempo, é substituída por uma visada relaciona! e mágica do mundo. Uma orientação emocional, intelectual e cognitiva na qual se afirma a disjunção entre meios e fins e na qual se abre a possibilidade de inverter o mundo pela troca de lugar. Ademais, a visão relaciona! - e por isso mesmo festiva- do mundo assegura também uma "igualdade substantiva" entre os homens. Pois afirmando uma esquecida "equivalência moral" entre as pessoas, ela diz que somos todos iguais, não perante as leis que inventamos, mas diante da morte, do desejo e das necessidades fisiológicas básicas que fazem parte de nossa natureza. Assim, tanto o mais poderoso e arrogante rei quanto o mais pobre e humilde trabalhador têm direito ao prazer de cantar, dançar, comer, beber, fazer amor e rir. Esse prazer incomensurável é muito pouco estudado, como salientou Bakhtin

2 Pa ra um estudo do te mpo na soc iedade brasileira, pe la categoria "saudade", veja-se DaMatta, 1993 . 3 Que é um a colet ivid ade baseada nu m territó rio indepe nd e nte , na presença do Estado como órgão admini strativo, e e m contratos e ntre os seus me mbros, não no pe rte nc imento a algu ma famíli a o u gru po de pare ntesco, co m o é o caso n as c ha madas "sociedades tradi c io na is", em q ue o indi vídu o como fi gu ra jurídi ca e mo ra l está su b met id o ao gr u po (DaMatta , 199 1 a; 1993). Para uma visão ma is e la b o rada da noção d e "pessoa" e de " ind ivíduo" no Bras il, veja-se DaMatta, 1979.


(1974, 1981), que relativiza o sério e zomba dos poderosos que controlam este mundo. Quando falamos do Carnaval brasileiro, e de outras festividades que dão margem a uma leitura relativizadora da estrutura social - sobretudo das estruturas de poder-, estamos falando do "popular". Não do popular nascido da tradição moderna que se transformou em "cu ltura de massa", mas do "popular" ligado a uma concepção antiindividualista e antiburguesa do mundo. Popular que afirma uma perspectiva "holista" na qual tudo está inter-relacionado (a natureza com a cultura, este mundo com o outro, os mortos com os vivos) por meio de elos visíveis e invisíveis que a festa deixa conhecer. Laços que recriam um universo palpitante de pessoal idade e, sobretudo, de intencional idade. Um universo que terminantemente recusa a indiferença decorrente da especialização do conhecimento e do trabalho. No fundo, essas festas populares reafirmam um mundo encantado: um universo no qual, como indica Dumont (1983), o todo governa as partes e as relações entre os homens são mais importantes do que as relações entre os homens e as coisas. Popular que reintroduz no mundo individualizado do capitalismo, em que a racionalidade do comércio tudo domina, a velha generosidade da troca. Uma ética na qual são os seres humanos como pessoas -como filhos, amigos, parentes, irmãos, mari-

dos, pais, avós e companhei ros que têm a obrigação de dar e receber - que englobam as coisas, não o contrário. Eis uma tradição que resiste tanto em se transformar em cultura de massa, quanto protesta contra a visão aristocrática que vem de cima. Tal é um popular que pode ser definido como a "ideologia dos pobres". Uma ideologia que tanto na América Latina quanto em outras regiões do mundo resiste e insiste em apresentar, nas festas que engendra e nas identidades que ajuda a manter, esses va lores reprimidos pela cultura burguesa. Porque a festa, sobretudo a "festa popular", rompe com alguns aspectos básicos da ordem burguesa. Primeiro, porque ela potencializa a congregação aparentemente ingênua e espontânea dos pobres para suplicar, pedir, homenagear e incensar abertamente com cantos, rezas, velas, comidas e esperanças, os Mortos, os Santos e as Virgens Maria- uma atitude que nega com veemência uma vida social compartimentalizada e indiferente, e reintroduz no universo dos homens um estilo de relacionamento que o mundo burguês vê como despudorado e irracional. Depois, porque ela incita a um abandono do individualismo, quando pede proteção mágica contra um mundo que, ao contrário do que assegura o credo burguês, não é nem linear, nem rac ional. Deste modo, as festas afirmam o mundo como o espaço do acidental, do paradoxal e do miracu loso. Finalmente, porque as festas negam o poder do mercado, do dinheiro e da racionalidade capitalista que constrói os preços e o mundo. Assim, são os pobres, os ignorantes e os destituídos que produzem a reu nião cuja pompa e energia causam inveja e conduzem a ponderação reacionária que questiona: "mas não seria melhor aplicar esta energia em outra parte?" Mas é precisamente esta negação da racionalidade que faz a festa. Agora, não temos mais a linearidade que deseja que a festa venha depois do trabalho, ou aquela coerência que permite festejar somente quando se acumula. Pois o que a festa temporariamente

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ao nosso santo padroeiro", de "celebrar nossa independência", "nossa revolução" ou "nossa bandeira" e, assim, reordenar a sociedade, inventando a necessária distância que dará a cada um desses fatos um sentido tão pleno que a gente pensa que essas celebrações são " naturais" e iguais à 'chuva, às pedras e ao mar. E assim vivemos como naquele quadro famoso de Bruegel, o Velho, num perpétuo combate entre o Carnaval e a Quaresma, entre os valores hedonistas do Carnaval e a racionalidade burguesa que, destacando-se do velho D. Carnal, acabou impondo-se como hegemônica e como "dona" de todo sistema.

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institui é o congraçamento como trabalho e, melhor ainda, a proposição antiga e certamente utópica do ponto de vista capitalista do trabalho não como castigo, vocação ou ética, mas como festa, como energia que se gasta em benefício do grupo de modo livre e alegre. Tudo isso se atualiza através da fórmula carnavalizante pela qual temporariamente se abolem as obrigações e distinções. Assim, na festa popular-como lembra Bakhtin (1974)- não se pode mais separar com precisão atores e espectadores, produtores e consumidores. Por serem momentos básicos de redefinição (ou desconstrução) da ordem, as festas se associam a períodos específicos (e especiais) de tempo e de espaço. Daí falarmos em "tempo de plantar e de colher", de "iniciar os jovens", de "mostrar devoção

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FnTAS BRAsi EiRAs

No Brasil, como em muitas outras sociedades nacionais, complexas e industriais há muitos rituais que não se realizam em todo o território nacional, sendo exclusivos apenas de uma cidade ou região. Estudar todos esses ritos em suas variantes locais é uma tarefa complexa e certamente impossível. Aqui, quero simplesmente indicar alguns aspectos gerais que orientam as festas brasileiras. De modo geral, podemos dizer que uma das características mais flagrantes dos rituais brasileiros é o seu aparecimento como "festas" ou "solenidades". Na festa há sempre a obrigatoriedade de rir, dançar, cantar, "comer" 4 e mostrar alegria; ao passo que as solenidades dizem respeito ao " sério" e uma prescritiva circunspecção corporal. Isso é tão verdadeiro que podemos dividir os ritos em duas modalidades fundamentais, de acordo com as demandas que fazem do nosso corpo, do nosso espírito, do nosso status social e das nossas bolsas. Assim, teríamos os "rituais da ordem", que legitimam, acentuam, reforçam e exageram posições sociais; e teríamos "ritos da desordem", que promovem a inversão, o caos ou até mesmo a destruição da velha moralidade que sustenta a ordem vigente.

4 No Brasil, o verbo comer tem uma importância críti ca na c on stitui ção d o universo simbólico. Assim, os brasileiros comem "comida" e não alimento; e come m "comidas" adequadas para certos momentos e pessoas. Ademais, o verbo comer é usado no Brasil como metáfora para a relação sexual, de modo que pessoas (mulheres e homossexuais) são "com idos" no Brasil. Conforme sugeri um tanto solitariamente, creio, em mais de um trabalho, o "comer" e a "comida" servem como metáforas para uma apropriação hierárquica do outro - um englobamento do "comido" pelo seu ativo e englobante "comedor". Veja-

se DaM atta, 1991 b.


Na prática, essas festas se confundem e se misturam. De fato, a história e as mensagens de muitas festas brasileiras revelam uma estranha dialética, mostrando tanto a oficialização do Carnaval, hoje quase domesticado como um show de massas, em que se paga entrada para ver os seus principais desfiles, com a presença de políticos e empresários, quanto a carnavalização de certas festas religiosas, quando a Virgem ou o Santo são combinados com ritos "afro-brasileiros" . O resultado disto tudo é um conjunto no qual o profano e o sagrado, a ordem e a desordem convivem numa admirável ambigüidade que, de resto, parece caracterizar a construção da identidade brasileira, conforme tenho sugerido no meu trabalho (DaMatta, 1979; 1991 a, 1991 b, 1993). Realmente, chama atenção no caso do Brasil a combinação e o equilíbrio entre as "festas da ordem" (que são dominantes nas sociedades burguesas tradicionais) e as "festas da desordem" em vários níveis de coletividade- do nacional até o regional e o local. Todo grupo brasileiro tem seus ritos (como as festas de santo que só fazem sentido para aquela comunidade específica), mas, não obstante, festejam também as chamadas "datas nacionais" (como o Dia da Pátria) e os rituais de desordem como o Carnaval. De um ponto de vista global, temos um sistema que celebra tantos ritos quantas são as coletividades que se mantêm vivas em seu espaço. Para a coletividade como nação existe uma série de ritos cívicos que são cerimoniais conscientemente inventados, datados e exp Iicitamente voltados para a comemoração da sociedade como pátria e Estado Nacional moderno. Os ritos da Independência e da República, as solenidades para incorporar em cargos públicos novos personagens (as chamadas solenidades de "posse"), bem como os ritos que celebram a ordem industrial e comercial (como as inaugurações de bancos, fábricas, estradas etc.) em escala nacional e internacional (como o Dia da Confrater-

nização Universal, o Dia dos Namorados, o Dia do Trabalho e o Dia das Mães) são típicos desta classe de festas que geralmente tomam a forma de solenidades. Nelas, inspirados pela Revolução Francesa, pela via parlamentar inglesa e pela organização naciónal dos Estados Unidos, adotamos um conjunto de práticas ritualísticas coladas à idéia de sociedade enquanto conjunto de cidadãos que aspiram a igualdade, a liberdade e a justiça social. Mas não abandonamos os valores centrais que estão na raiz das outras formas de celebração. Não abrimos mão dos rituais católicos que têm como centro e foco não o indivíduo e um ideário liberal, mas se fundam numa visão hierarquizada e complementar do mundo. Enquanto a comemoração da Independência, por exemplo, tem como alvo a idéia de Estado Nacional, a festa da paixão de Cristo e as solenidades da Semana Santa, bem como o Carnaval, focalizam os elos entre Deus e os homens, propondo para reflexão as complementaridades entre estados morais. Tanto que a idéia de pecado é parte fundamental do Carnaval brasileiro, mostrando que a maior festa do Brasil só pode ser devidamente entendida quando situada no contexto dos valores da Igreja Católica Romana. Num sentido sociológico muito preciso, portanto, os "rituais da ordem " dramatizam aspectos do Estado moderno e da vida constitucional. Mas os "ritos da desordem", como o Carnaval , os Reisados, as Marujadas e muitos outros, querem ir além da celebração da comunidade de cidadãos, para desenharem, na comunidade de devotos, de vizinhos e de pobres, uma teia de relações hierárquicas que faz com que todos sejam diferentes, mas equivalentes como membros de uma comunidade moral certamente pré-existente ao Estado Nacional. Talvez seja por causa disso que o Carnaval ri de tudo e de todos, enquanto as festas da Igreja assumem uma posição mediadora entre uma perspectiva hierarquizada e uma visão moderna e 79


individualista individualista da vida social. i I, os rituais moO fato é que, no caso do Bras Brasil, modernos estão ao lado das festas da desordem, quando se substituem substituem as autoridades constituídas pelo pelo dinheiro, pelos santos, voto e pelo dinheiro, santos, deuses e demônios, conforme conforme ocorre no Carnaval Carnaval e nos ritos ritos conseqüência, afro-brasileiros afro-brasileiros da Umbanda. Em Em conseqüência, descobre-se uma tríplice tríplice lógica nos ritos brasileiros. Se Se o ritual privilegia o universo da rua (espaformalidade jurídica, dos estilos legais" e ço da formalidade estilos ""legais" "oficiais" e do Estado), seu seu estilo incluirá incluirá elementos típicos da formalidade formalidade moderna. Assim, essas obrigar o uso de festas irão salientar o indivíduo, obrigar enfatizar o controle controle corporal e adovestes talares, enfatizar tar o ""discurso" discurso" como modo básico de comunicareunião,, porém, tiver como foco o ção. Se Se a reunião universo da casa, sua tônica será a da plena informalidade, incluindo incluindo comidas comidas típicas, música informalidade, popular e roupas descontraídas. descontraídas. Nestas ocasiões, popular posições sociais formais ficam suspensas, o foco as posições nas relações relações e se se faz uso do canto, da anedota, é nas da "brincadeira" e da conversa conversa inconseqüente (ou "bate-papo") como elementos típicos de comunise o rito focaliza o espaço cação. Finalmente, se espaço do sagrado (em que pre""outro outro mundo", combina-se sagrado as hierarquias e formalidades) valecem as formalidades) e uma área as roupas e gestos solenes solenes cedem aberta, na qual as comportamento muito lugar a inversões e a um comportamento porque tenho tenho insistido insistido em falar mais aberto. aberto. Daí porque ternária para caracterizar o que chade uma lógica ternária brasileiro".. Haveriam, Haveriam, enmei de "sistema ritual brasileiro" mundo", tão, rituais ligados ao Estado, ao "outro mundo", as intimidades intimidades do corpo e da casa que, no cone as ordem moderna, surgem como festexto de uma ordem tas da desordem. Os "rituais "rituais da ordem" incluem celebrações celebrações cujo cujo pontó ponto focal é o mundo mundo público. As festas da desordem operam dissolvendo o lado histórico, pois apontam, como disse, para dimensões "arcaicas" e ""elementares" elementares" da vida social; ou, como muitos muitos 8o

afirmam, seus s", "atrasados" " atrasados" seus aspectos aspectos "selvagen "selvagens", ou "primitivos" "primitivos".. Neste sentido, os rituais da desordem seriam como que objetos objetos deslocados, deslocados, ou coisas "fora do lugar" lugar",, no dizer de mais de um crítico literário brasileiro 5,, dentro do quadro quadro das festividades modernas que têm no consumo e no lazer o seu seu valor central. 5

A Mensaeem das Festas e a IIdentiddce

NACIINAL

riO que, entretanto, mais chama chama atenção nos ""ritos de desordem", ou "festas populares", é a apresentação ordenada (mas ao inverso) de grupos grupos cuja posição concreta no sistema é das mais humildes, mas que no momento momento da festa surgem militar como aristocracia, organização m i litar ou conjunto mitológico. mitológico. Assim arujadas, a festa exprime A s s i m , nas M Marujadas, exprime (e relativiza pelo viés cômico) aspectos do poder. Nelas há um General do Almirantado, Almirantado, um Capitão Inglês, um Padre Capelão, um Rei EmRei Mouro, Mouro, um Embaixador do Marrocos, um Capitão-de-Mar-e-Guerra, vários Ajudantes de Ordem, um Piloto e um juntamente Tenente Guarda-Marinha, os quais, juntamente Caseiro-Grande, o Médico, o Dentista, o com o Caseiro-Grande, Capitão Patrão, os Vassalos, o Caretinha (que é comissário ou cozinhe iro), os Cristãos e os Mouros, cozinheiro), Mouros, leitura singular e original original de um desenham uma leitura por outro, focalizando teatral e segmento social por ironicamente seus aspectos como ironicamente aspectos mais marcantes, como seu rebuscado padrão de comportamento comportamento relatirelatio seu sua fasvamente ao poder, suas intrigas internas, sua cinação por títulos títulos honoríficos, sua sua autoridade autoridade e sua riqueza. riqueza. O mesmo ocorre nas Festas do Divino nas nas quais os Príncipes Príncipes ordenam a celebração, ce lebração, e nas nas Coroações Coroações de Reis do Congo, em que surge uma Cavalaria Cavalaria de São São Benedito (o santo padroeiro dos pretos e dos pobres), pobres), um Rei, Rei, uma Rainha, vários Juízes e também Capitães Capitães e Tenentes, Tenentes, PaPasijens e o tradicional tradicional Alferes da Bandeira. Bandeira. Fato si-

sO lavo Bil lac, poeta e Olavo Billac, cronista de um Rio de janeiro Janeiro cronista ávido entrando no século XX, ávido de modernização, modernização, homem de grande prestígio, prestígio, que defende obrigatório o serviço militar obrigatóriouniversalismo do Estado Estado-, os o universalismo - , os esportes e a educação física esportes como instituições a serem nacomo cionalmente difundidas como medidas fundamentais de ""himedidas higiene socia social", destinadas a giene l", destinadas raça" mestiça do do "'limpar limpar a raça" Brasil, popular Bras il , lê a festa popu la r dedicada a Nossa Senhora da dedicada Janeiro como como Penha no Rio de janeiro um objeto fora do lugar. Como uma ocasião na qual o povo uma aciona ignorante e anárquico anárquico acio na manifestação indesejável indesejável uma manifestação de velhas tradições trad ições que proigualdade substantisubstantimovem a igualdade va entre as pessoas pessoas perante a santa, sa nta, adotam a regra da gastança e da reciprocidade e atualizam uma uma liberdade de atualizam comportamento incompatível com a norma cu culta lta das elites cosmopolitas.Deste tal cosmopol itas. Deste modo, tal como faria o crítico literário como depois, Roberto Schwartz anos depois, como um um Billac vê essa festa como evento que que promove promove comporcomporevento tamentos deslocados dentro do formall e utopiespaço urbano forma camente modern modernizado. izado. Para camente ele, isso seria uma agressão à modernidade modem idade que estava se impondo no Rio de Janeiro. AsAstal "espetáculo "espetáculo sim, ele diz que tal desorde desvairada e bruta desorcompreensídem ainda seria compreensível no velho Rio de Janeiro de ruas tortas, de betesgas [= rua sórdidos. estreita], de becos sórd idos. Janeiro de hoje, hoje, Mas no Rio de janeiro o espetácu espetáculo lo choca e revolta como um d disparate..." como isparate... " (in: ReRevista Kosm Kosmos, 3,1906, vista os, n2 3, 1906, citado em emSoheite, 1990). do Soheite, 1990). 5

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* Roberto DaMatta é antropólogo e prof. Dr. da Universidade de Notre Dame, em Indiana, EUA. (e-mail:damatta@rio.com.br e roberto.a.damatta.l @nd.edu)

As fotos de Claudio Edinger são reproduções feitas a partir do livro Carnaval (São Paulo: DBA Artes Gráficas, 1996), gentilmente cedidas pelo fotógrafo.

milar ocorre nos Reisados, festas nas quais se dramatiza com muito senso de ironia os golpes de Estado, bem como se faz uma sátira abusiva às autoridades. Em todos esses ritos são representados patrões, governadores, embaixadores, reis, rainhas, príncipes, almirantes, médicos, padres, engenheiros e outras figuras estrutural e socialmente superiores, em interação constante e sempre desabonadora com os marginais e os inferiores: os malandros, palhaços, escravos, prostitutas, monstros informes, figuras sexualmente ambíguas, animais e mascarados, cuja função é a de introduzir incerteza e comicidade no drama. Incerteza que provoca a reversão bakhtiniana-carnavalizadora do mundo social. Quem conhece o Carnaval brasileiro de qualquer região sabe que nos desfiles e nos "autos carnavalescos" há uma apresentação ostensiva dos mesmos papéis sociais, todos inseridos em situações em que a admiração, a subordinação e a submissão são substituídas pela sedução, pela ironia e pela paródia. Isso tudo contra, como falei no início, o desencanto de um mundo moderno e capitalista compartimentado, cada vez mais impessoal. Será, a meu ver, nos termos deste combate do Carnaval contra a Quaresma, das tradições holistas contra uma modernidade individualista e baseada no mercado, que decidiremos o futuro do planeta. Vivendo em sociedades que têm aprendido a ver melhor os excessos dos dois lados, poderemos - quem sabe - coordená-los os dois, para finalmente tirar partido de nossa criativa tradição híbrida e culturalmente mestiça. Com isso, em vez de ficarmos praticando o nosso familiar exercício de flagelação cultural, seremos capazes de usar a força da tradição para fazer florescer uma modernidade singularmente nossa, latina, brasileira e preocupada com os oprimidos e com a solidariedade humana. Essa, no fundo, é a mensagem dos nossos carnavais e das nossas festas.

Referências biblio ráficas BAKHTIN, Mikhail. La cultura popular en la edad media y en e/ renacimiento. Madri, Barrai, 1974.

_ ....___ . Problemas da poética de Dostoievski. Rio de janeiro, Forense/Universitária, 1981. DAMATIA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis. Rio de Janeiro, Zahar, 1979.

-----,-· Relativizando: Uma introdução à Antropologia social. Rio de janeiro, Rocco, 1987. _ _ _ _ . A casa & a rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. Rio de Janeiro, Guanabara, 1991 a. ____. O que faz o brasi/, Brasil?. Rio de janeiro, Rocco, 1991 b. - - - -.

Conta de mentiroso: sete ensaios de Antropologia brasileira. Rio de janeiro, Rocco,1993. DUMONT, Louis. Essais sur /'individualisme: une perspective anthropologique sur /'ideologie moderne. Paris, Collection Esprit/Seuil. 1983

SOHEITE, Rachei. " Um Ensaio sobre Resistência e Circularidade Cultural: a festa da Penha (1890-1920)" in: Cadernos do ICHF. UFF, nº 31, Agosto, 1990.

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Festal òe Santa Cruz em Ouro Preto Festa de Santa Cruz em Ouro Preto Vindo de longe em carro rápido em busca Vindo de longe busca de outras minas,em"ocarro que rápido hão de em ser?" perde outraso minas, "o que hão de ser?" de peraqueles clarões foguntaria passante, guntaria o passante, clarõesno demorrer fogos no meio da noite?aqueles E que ruídos gos tarde no meio da noite? E que ruídos morrer da acendem lembranças denopovoados da tarde acendem lembranças de povoados e vontades travessas de olhar de novo o mune vontades travessas de olhar novo mundo e o corpo das fêmeas dodealto deo um terdo e o corpo das fêmeas do alto de um terraço? Ontem havia festa de Santa Cruz no raço? Ontem havia festa de Santa Cruz no lugar em Ouro Preto chamado Ponte da Barlugar em Ouro Preto chamado Ponte da Barra. rojões sobem, sobem, rasgam rasgamo ovéu véudodo céu ra. Que Que rojões céu que outras outras noites noitesé éo osilêncio? silêncio? ee silvam no que silvam no As do bairro bairro eede delonge longecom comtrajes trajes As pessoas pessoas do desábado, sábado,asasbandeirolas bandeirolas de gestos de de feriado feriado ee gestos de cores ee um umcerto certoararcúmplice cúmplicedede de quatro quatro cores quem bebeu ee quer quer ser seranjo. anjo.A Amúsica músicadede quem bebeu duas clarinetas ee aa pele pele uniforme uniformee emulata mulata duas clarinetas da roceira sobre sobre quem quem um umuniforme uniforme da banda banda roceira azul de é é dede dá um umtom tomBerbere Berbereaoaoque que azul de anil anil dá Bom Jesus dede Bom Jesus dos dos Matozinhos. Matozinhos. Alguns Algunspés pés prata calçam cheiro prata calçam sandálias sandáliasde defeira feirae emais maiso o cheiro no ar ar de no de perfume perfume de deaçucena açucenae eo odedepólvora pólvora o do ee o do mijo: mijo: tudo tudo oo que queé ésempre sempreigual iguala a sempre, mas nessa noite em que os anjos e e sempre, mas nessa noite em que os anjos os homens homens bebem i -f i os bebem juntos juntos e etrocam trocamc ocnof n

Carlos Rodrigues Brandão*

CarlosLaterza Rodrigues para Moacyr e Adelmo Brandão* Café, mineiros queridosCafé, por isso mesmo irredutíveis, notáveis eeAdelmo para Moacyr Laterza mineiros irredutiveis, notáveis e queridos por isso mesmo


dências, as pessoas fazem com um outro diferente coração e entre um sorvete e um soluço semeiam a mágica da festa nas almas do lugar. Quem levará a banda da leitoa e quem o frango? Quem acordará do sonho antes do tempo e berrará: "outra vez! ah, outra vez!" Quem, bêbado tocará com os dedos os seios da moça ou, com as duas mãos, o rosto de Deus? Tudo é nessa noite igual a sempre e mais os fogos no clarão dos montes e isso é a festa e mais a vida. E os velhos que hoje dormem depois das onze e contam casos de servos e senhores, sentados - sentinelas - nos bancos de pedra e limo nas pontas dos dois lados da Pote da Barra. E outra vez os rojões e nunca o trabalho da pólvora foi tão generoso, pois aqui ele clareia a alma das casas velhas e o peito verde dos morros de Minas. Aqui, no lugar chamado Ponte da Barra em Ouro Preto, onde uma oculta festa aos olhos dos vivos fazia dançar, entre tambores e segredos, fantasmas devotos de negros e congos: homens que quando escravos cavavam com o sangue da farpa dos dedos em busca do ouro deste rio. Ah, os dias de sofrer sob a brasa do calor de março à procura de algumas pe-

quenas fagulhas brilhantes da mesma cor amarela e vida do fogo desta noite! RamaIhetes de luz materializada que a terra cria e o rio esconde. E quando achadas - raras flores de outro, rosas de metal e brilho - levantam sobre os rios as pontes, como aqui, e semeiam o pequeno viveiro de tudo que a riqueza fácil faz: pontes e cruzes de pedra, casas e igrejas. Tudo o que tem um nome e o ouro ruim batiza: sandálias de moças de vielas; os seus segredos, aras e altares; sacrários, sacrilégios; a púrpura do padre e os foguetes bons da noite; o mijo seco no canto ao lado do rio, a cerveja e, à volta da ponte, um imemorial odor de fé e pinga. Monumentos, mestiços e mortalhas; panelas, pelicas e objetos de uma fina pedra. Cestos mais do que solenes acompanhados em coro da palavra amem e um suave roçar contrito da mão no peito. Heranças do que o homem faz e a chuva lava. Responsórios de ontem e restos por onde agora viajam sob a ponte suja da praça da festa os dejetos dos vivos e seus sucos. Sobras do trabalho, os seus degredos: restos do viver que o rio acolhe e indiferente à festa leva longe, entre águas sem ouro e sem segredos.

* Carlos Rodrigues Brandão é antropólogo e poeta, autor de A Cultura na Rua\ As Cavalhadas de Pirenópolis; Memória do Sagrado; Plantar, Colher, Comer; Diário de Campo- A antropologia como alegoria; entre outros. (extraído de "Anotações de viagem sobre Minas Gerais" - texto inédito)


Os Impérios da Festa A festa do Divino no Rio de Janeiro ddo XIX

"'Valéria Macedo Valéria Macedo*

Espírito Santo folião, amigo de muita pão... " "OO Divino Divino Espírito Santo é um grande grande folião, muita carne, carne, muito muito vinho vinho e muito muito pão..."

cc


1 A descri ção que se segue procura sintetizar numa mesm a narrati va info rm ações obtidas po r di versas fo ntes sobre a Festa do Di vino na primeira metade do 11 Império no Brasil. A intenção foi alinhavar vários relatos na tentativa de recriar a atmosfera de uma festa no período incorrendo por isso na infidelidade a um só documento. 2 Extraída de M emórias de um sargento de milícias, de M anuel Antônio de Almeida, escrita entre 1854 e 55, mas reportando-se ao período em que D. João VI estava no Brasil. O autor se valeu de festas, ca nções e cos tum es do cotidiano carioca para ambientar o romance. 3 As irmandades são confrarias de católicos leigos devotos de um santo. No contexto em questão, eram responsáveis pela festa do santo de devoção e sua paramentação no altar e nas proc issões. Poderiam ainda ser encarregados de uma igreja e tinh am grande aderência na vida de seus m embros, receb endo contribui ções fin ance iras e ajudando " irmãos" que passassem por dificuldades. 4 Os festejos acontecem em três freguesias da cidade que rivalizam entre si - Santana, M ataporcos e Lapa do Desterro. Di ze m os c roni st as (Ew bank, 185 5/ 1976; Lira, 19 5 1) que a da Lapa era a mais animada, e a maiori a dos documentos que tomei

Estamos nas estreitas ruas do Rio de Janeiro, Corte do Império do Brasil, entre as décadas de 1820 e 18601 • A eventual monotonia do cenário é então irrompida por essa quadrinha2 , entoada por um bando de rapazes- cantores, músicos e dançarinos- com seus chapéus alegres e pitorescos trajes, devotos da folia do Divino. As soleiras das portas e as janelas são então preenchidas das gentes que vêm assistir à algazarra dos foliões e pedir bênçãos ao Divino Espírito Santo, beijando a bandeira estampada com a pomba branca, fazendo promessas ou agradecendo graças. As esmolas se multiplicam, fazendo pesar os sacos de moedas e a carroça enfeitada de velas para receber os leitões, frangos e doces a serem leiloados por ocasião da festa - esta sim, o acontecimento mais grandioso do calendário festivo da cidade. Meses antes da festa, as irmandades 3 já começam a enviar seus pedidos à Câmara da Corte para sair com a folia a esmolar para o Divino. É preciso angariar rendimentos para que a festa possa ostentar luxo e alegria, expressando a devoção dos homens e a glória do Espírito Santo. A semana que antecede a data é intensa em preparativos e novenas. Num descampado4 , em geral vizinho a uma igreja, uma profusão de barracas é erguida ao redor do coreto onde ocorre o leilão de prendas, importante fonte de diversão e de moedas. Mas a construção mais contundente configura uma estrutura de pedra, madeira ou cal, próxima à igreja: o chamado "império". Sábado, véspera do Domingo de Pentecostes, 50 dias após a Páscoa, data da ascensão do Divino Espírito Santo sobre os apóstolos. Estamos então em plena festa, com as barracas exalando cheiros diversos e convidativos (bolinhos de aipim,

cocadas), ou exibindo curiosidades vindas da distante Europa e das igualmente longínquas províncias do Norte do Império. As pessoas, com suas famílias, amigos, ou irmãos de opa 5 , vindas das mais diversas proveniências -geográficas e sociais-, avolumam o percurso entre as barracas, se aproximam do coreto, em que um comediante leiloa prendas (comidas ou animais) e faz pilhérias com a perna-de-pau, figurinos bizarros e variados recursos circenses. Outras atrações também remontam a atmosfera de circo: dançarinas de corda, macacos adestrados, palhaços, acrobatas, saltimbancos, teatro de cavalinhos e outras peças teatrais. Os passantes deparam com uma infinidade de folguedos, danças e músicas, como o lundu, a música dos barbeiros, as cavalhadas, as congadas, moçambiques, batuques e o rabo de arraia (capoeira). Mas, na multiplicidade de eventos que se interpelam nesse emaranhado festivo, há uma parada obrigatória no itinerário dos passantes, na qual se reverencia a principal personagem da festa:

o Imperador do Divino. Em geral, trata-se de um menino de cerca de 1O anos, eleito entre os membros da irmandade para ser o representante do Divino nas comemorações, ganhando uma luxuosa vestimenta à Luís XIV, manto, cetro, coroa e o poder de imperar sobre a cidade nos dias da festa, podendo inclusive soltar presos 6 e devendo protagon izar todos os eventos da ocasião, como a visita a hospitais, a doação de comida aos pobres, a precedência na procissão e a reverência de todos os moradores da cidade, dos escravos aos nobres. As outras reale zas do imaginário popular (personagens dos folguedos) também iam participar de sua festa, como o Santo Rei Baltazar e seus súditos da Lampadosa 7 , os pares

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do imperador Carlos Magno nas cavalhadas, os reis negros nas congadas- e também um certo Pedro 11, nesses dias ofuscado e convertido em súdito do

Império do Divino. A grande procissão de Domingo é acompanhada pela família imperial, além do alto clero e da nobreza, mas também pelas camadas intermediárias e pelos escravos. Na frente de todos, subvertendo a hierarquia cotidiana, vem o Imperador do Divinoe os diversos grupos sociais ali presentes se vêem membros de uma mesma "Corte", mesmo os que, acabada a festa, se encontrem excluídos da Corte do Império do Brasil, que se quer branca e europeizada. A minoria que não segue a procissão enfeita as janelas de colchas adamascadas e atira flores enquanto ela serpenteia pelas ruas. No dia de Pentecostes, dia do Divino, as celebrações sagradas e profanas compartilham espaços cada vez mais imbricados, com a multidão permeando os festejos e as missas, fazendo promessas, capitalizando namoradas, tomando aguardente, cheirando rapé e louvando ao Divino Espírito Santo. Acima de todos, paira o mastro ostentando a bandeira do Divino, símbolo dessa monarquia paralela. Anoitece e a escuridão é perfurada pelas incontáveis luminárias penduradas nas barracas, circunscrevendo o descampado, os contornos da igreja, do coreto e do império. A obra humana rivaliza então com o cenário celestial em beleza e encantamento, as velas de cera pontilhando a terra e apagando fronteiras com o estrelado do céu. É justamente para lá que todos os olhos se voltam ao final da festa, onde um grandioso espetáculo pirotécnico tem lugar em meio a uma tremenda excitação. Os fogos de artifício levam para o céu figurás terrestres, como homens e flores, e ainda desenham uma outra lua, além de transformar em mar o espaço celeste, promovendo um combate marítimo entre a "fortaleza" e as "fragatas". Melo

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Moraes, que participava da festa na infância, relata o findar dos festejos na década de 1850:

Nas noites de fogo, a afluência aumentava, as famílias aguardavam, sentadas em esteiras, por essa radiante conclusão dos festejos, e magníficas ceias, trazidas de casa, as congregavam expansivas. Depois da meia-noite queimava-se a primeira roda: formavam-se partidos para saber-se quem venceria, se a fortaleza ou as fragatas: As moças gostavam dos girassóis e da lua, os meninos da mulher que mija fogo e do barbeiro, e a rapaziada tinha como o melhor as vaias e os "fora" ao fogueteiro, que andava em verdadeira roda-viva. Ao arder a derradeira peça, quando lia-se no transparente em cifras cambiantes - Glória ao Divino -, a turba saía das barracas, os sinos repicavam, o acampamento levantava-se, os aplausos redobravam, e a multidão pouco a pouco dispersava-se(1893/1979:126). E quem as freqüentava? A plebe e a burguesia, o escravo e a família, o aristocrata e o homem de letras (idem :122). Os fogos de artifício alegorizam no céu a pletora humana, expressando a devoção dos homens ao Divino, mas também o desafiam, tentando eclipsar suas constelações e riquezas por meio da caridade, do luxo e do engenho humano, capaz de produzir fogos artificiais, como as montanhas de mantas queimadas pelos Kwakiult, das quais o mana emanava8 • O jugo do homem no jogo da festa Ao tomar como referência esse breve esboço do Império do Divino que se assistia na Corte do Brasi l, é possível reconhecer o diálogo entre festa e contexto. Na manipulação lúdica de conteúdos e formas, a festa se inscreve numa dimensão sincrônica- como diz Roberto DaMatta, "é o ritual que permite tomar consciência de certas

contato são a respeito da festa nessa localidade. 5 Membros de uma mesma irmandade, já que trajam a mesma opa: veste usada para distinguir seus membros. 6 Geralmente os presos que estavam para ser soltos ou que tinham passado a noite na cadeia por bebedeira ou " vadiagem". 7 Desde o século XVIII, na Igreja de N.S.a. Sra. da La mpadosa, havia uma " Irmandade do Santo Rei Baltazar", composta por negros, que elegia um rei entre seus membros no dia de Reis Filho, 1893/ (Moraes 1979:225). 8 Mareei Mauss, em seu Ensaio sobre a Dádiva (1923/1974), analisa os sistemas de prestações entre tribos do noroeste americano, os Kwakiult. H á uma regra de reciprocidade que faz com que o presente recebido seja obrigatoriamente retribuído, num ciclo ininterrupto de trocas materiais e simbólicas. Eles passam o inverno em festa, quando tudo - clãs, casamentos, in ic i ações, xamanismo, cu lto dos deuses- se enreda numa trama de ritos , prestações -jurídicas, econômicas e posições políticas. Essas práticas são dominadas por um princípio de rivalidade e antagonismo, atingindo seu auge quando o chefe de um clã destrói riquezas para eclipsar o chefe rival. Este, por sua vez, terá que superá-lo posteriormente, se desfazendo de mais riquezas no próximo pot/atch. Quanto maior a retribuição das dádivas, por meio da destruição de bens, maior o mana: autorida-


de espiritual e a fonte de ri queza que ela representa. Há uma quadrinha de foli a ca ntada na Corte que exprime de ce rta maneira a relação de potlatch, em que o Di v in o testa o mana dos homens: O

Di vino pede esmolas I m as não é por carecer I pede para experimentar I quem seu devoto quer ser (M oraes, 1893/ 1979: 11 8). 9 As cava lh adas constitu em um fo lguedo de origem lusa, do qual geralmente parti cipava m nobres e descendentes de portu gueses. El es representava m cava leiros medieva is, di v idid os em cri stãos ("os p ares d e Fr ança") e mouros, sob o .comando do " Imperad or Ca rl os M agno" . En ce nava m um c omb ate com desfil es, jogos eqüestres e lutas simul adas. Assim como as cava lh ad as, as co nga d as também encenam combates entre cri stãos e mouros, mas seus parti c ipantes eram os escravos e Iibert os, todo s afri ca nos o u descendentes. El as consisti am em bail ados com espadas ou bastões que encenavam o seguinte conflito (que poderia ser representado como um Auto o u estar implíc ito na dança) : o Rei de Congo, que é o Rei dos Cri stãos, recebe um a embaixada do Rei dos Mouros (em algum as va ri antes, da Rainh a Xin ga) e, na recusa deste se converter, há um a sé ri e de co mbates, até que o> mouros são derrotados e convertidos ao cri sti ani smo. 10 O u, segundo Gustavo Barroso, nas guerras entre portugueses e angolanos no XV II (192 1 :21 9).

cristalizações sociais mais profundas que a própria sociedade deseja situar como parte dos seus ideais ' eternos"' (1978/1990:25); ou , segundo Walter Benjamin, "o tempo da festa é o tempo cíclico do calendário, de uma memória de tempos imemoriais" (1975:56). Mas ela celebra não apenas o [desejo do] imutável, uma vez que está também inscrita na diacronia, incorporando traços, esquecendo outros, dando novos conteúdos a antigas formas ou, ao contrário, atribuindo novas formas a antigos conteúdos. Dialoga, portanto, com a história e com elementos circunstanciais, da ordem do dia, da moda, que são absorvidos pela festa e podem vir ou não a integrar o estoque simbólico acessado no ano seguinte. Mas é também a fuga do tempo e da história, colocando-os em suspensão e convergindo na celebração do eterno e do efêmero. Enquanto províncias cindidas por especificidades, cotidiano e festa guardam entre si uma relação dialógica e lúdica, pois que são a um só tempo contradição e coerência, crítica e legitimação. Os folguedos que aconteciam por ocasião do Divino exacerbam essa dual idade. As cavalhadas e congadas 9 nos reportam a conflitos entre mouros e cristãos que provavelmente têm referência histórica nas guerras contra os mouros travadas pelos portugueses na África do século XIV 10 • No cenário brasileiro, a congada atualiza esse diálogo, essa "embaixada" entre africanos e portugueses. Nela, todos se convertem em cristãos, mas o conversor é o rei do Congo e não um monarca português. De certa forma, esse enredo alegoriza o lugar dos negros rio contexto brasileiro , já que eram convertidos ao catolicismo, ma s também seus conversores , uma vez que tomaram para si esse repertório e I h e inseriram traços de procedência africana, que pas saram a integrar um estoque simbólico inexoravelmente atado à identidade brasileira. No século XIX, a ênfase com que os negros 87


abraçavam os rituais do catolicismo era motivo de comentário para a maioria dos viajantes europeus ou americanos que visitavam o país. Ewbank, Kidder, Fletcher, Koster 11 , para citar alguns nomes, se admiravam com a fé obstinada dos negros nas imagens santas e seu empenho nas comemorações católicas. Nas palavras de Fletcher:

Não há classe que tome parte nessas paradas santas com mais zelo do que a gente do povo. Ficam, além disso, especialmente satisfeitas, de vez em quando, em avistar um santo de cor, uma Nossa Senhora representada em imagem que tem pele cor de azeviche. "Lá vem o meu parente", foi a exclamação ouvida de um preto pelo Dr. Kidder, quando uma imagem de cor com cabelo lanoso e lábios e beiços grossos surgiu à vista; nessa manifestação de alegria, o velho preto exprimiu precisamente os sentimentos causados por esses apelos aos sentimentos e à mentalidade dos africanos(1857/1941 :167-8). No Brasil do XIX, quando os escravos eram privados de direitos políticos e sociais, os rituais católicos eram momentos raros de participação de todas as camadas da sociedade. Enquanto durasse a procissão, nobres, mestiços, escravos, imperador, todos se convertiam em súditos da Corte do santo homenageado. Não que as desigualdades do cotidiano fossem suspensas, pelo contrário, cada qual tinha um lugar na configuração espacial da procissão. Mas a hierarquia cotidiana estava sujeita a uma negociação simbólica com a disposição hierárquica das irmandades, santos e ·demais participantes do ritual. Assim, a exclusão social vivida no cotidiano era negada e reforçada, deixando espaço tanto para uma crítica social (intencional ou inconsciente) quanto para a reafirmação da ordem vigente. Nesse jogo de identidade e alteridade entre festa e cotidiano, se insinua o protagonista dos festejos:

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11 Thomas Ewbank, missionário protestante inglês, esteve no Rio de janeiro em 1846. ]ames C. Fletcher veio com a missão evangélica, rea lizada no Bras i I entre 1851 e 1865; escreveu O Brasil e os Brasileiros a partir de suas anotações e elas notas de Daniel P. Kidder, outro reverendo norte-a merica no q ue veio ao Bras il co mo missioná ri o metodista, chegando no Rio em 1836. Henry Koster, viajante inglês, chegou no Brasi I em dezembro de 1809 onde morreu em 1820. 12 Koseritz foi um alemão que


morou por 32 anos no sul do Brasil e esteve no Rio de janeiro em 1883. 13 Costume que caíra em desuso na monarquia portuguesa desde D. Sebastião, no século XIV, e fora reavivado por D. Pedro I e O. Pedro 11 (Coaracy, 1988:90). 14 Como exemplos: das congadas só participavam negros e das cavalhadas os brancos. 15 Gilberto Freyre não interpreta as relações entre senhores e escravos a partir da lógica do conflito, mas da complementaridade (que acabou se tornando senso comum sob o rótulo da "democracia racial"). Talvez a festa católica tenha um papel importante na formação desse mito do Brasil mestiço e cordial, pois nela ele se confirma e se questiona dialeticamente. 16 Não só entre os cronistas estrangeiros, mas Manuel Antônio de Almeida, Vieira Fazenda e escritores da Revista Kósmos, entre outros autores nacionais. 17 Ao descrever a festa do Divino: Com muita antece-

dência elas eram anunciadas ao povo pelo grupo de foliões de chapéus desabados com muitas fitas e vestidos quase como "pierrots", dansando e cantando versos dedicados ao Espírito Santo (1943:470).

o imperador menino, representante de uma instância religiosa (membro da Santíssima Trindade), que instaura uma monarquia paralela e faz desmandos na ordem cotidiana. Esse império do eterno, nos poucos dias de sua duração, ao transformar escravos em reis, dá lugar a um diálogo de realezas, trazendo à tona figuras Reais presentes no imaginário das festas populares (integrantes dos Autos e folguedos). As coroas, portanto, passam a abrigar múltiplas cabeças, escravas e livres, pobres e ricas, e, entre elas, está a cabeça de Pedro 11 (de 1841 a 1889). Em tal festa de Reis, em que todos são cortesãos, se fortalece o imaginário da realeza e sua eficácia na ordem vigente. José Bonifácio, por ocasião da fundação do Império, percebe a inserção desse imaginário e sugere que D. Pedro I receba o título de "Imperador do Brasil", ao invés de "rei", devido à popularidade do termo por causa da festa do Divino (Cascudo em nota a Moraes, 1979:43). Posteriormente, D. Pedro 11 também cultiva esse diálogo com os impertos das festas, seja participando entusiasticamente das celebrações religiosas da cidade ou trajando "à Luis IV dos trópicos" . O autor dessa expressão, Karl von Koseritz 12 , ao assistir a um cortejo público de D. Pedro 11 em 1883, o compara a uma figura de festa popular:

Não lhe pude achar majestade, com seus sapatos de fivela, meias de seda, calções, gola de penas e manto de veludo verde, sob o qual brilhavam as condecorações de ouro. Especialmente o curioso ornamento de penas (papo de tucano) produz uma impressão quase carnavalesca (1883/1972:32-3). O olhar germânico de Koseritz não compartilha a familiaridade com os reis das festividades populares, trazidos da península ibérica e dos reinos africanos. Nessa época crepuscular do Império, talvez a população tampouco visse em D. Pedro a majestade de outrora, mas por muitas décadas ele

gozou de grande popularidade. Sua figura se aproxima do Imperador do Divino não apenas nos trajes e no título; assim como este, ele subiu ao trono menino (então com 14 anos), foi ungido e sagrado 13 (revestido de divindade) e inaugurou um Império independente, que precisava construir sua autonomia e identidade, mas para isso era preciso construir uma unidade em meio a tanta desigualdade social, cultural e "racial" (para usar um termo da época). A festa constituía um instrumento privilegiado para se forjar essa identidade. Locus de construção do uno e do diverso, ela promovia simultaneamente a unidade social e a individuação dos grupos. Legitimava uma pluralidade de manifestações como expressões de devoção e, com isso, promovia diálogos interculturais de grupos apartados no cotidiano. Configurava, portanto, um espaço para ver e ser visto, reconhecer igualdades e diferenças. Cada grupo se particularizava em relação ao resto da sociedade 14 , mas todos se identificavam como devotos do Divino. A diversidade social, com seus díspares e ímpares, ganhava coerência por integrar um mesmo motivo celebrativo - momento privilegiado para a construção de uma "identidade", uma "história", uma "tradição": o grande Império Tropical, festivo e católico, bricolage de temperos, ritmos, cosmologias, costumes e toda sorte de ingredientes culturais.

O jogo do homem no jugo de Deus "O Brasil nasceu pela mão barroca dos jesuítas" (Coutinho, 1994:220). A participação da Companhia de Jesus no início da colonização brasileira marcou profundamente a sociabilidade entre colonizadores e colonizados no Brasi l, mediada por um "catolicismo lírico", na expressão de Gilberto Freyre 1 s, "com muitas reminiscências fálicas e animistas das religiões pagãs: os santos e anjos só faltando tornar-se carne e descer dos altares nos dias


de festa para se divertirem com o povo" (1933/ 1994:22). A conversão católica era determinante para a inserção social, social, mas as formas de exteriorização da fé se mostravam bastante condescendentes condescendentes na absorção de elementos "pagãos", advindos da cultura cultura africana e indígena; de tal forma que, para o autor, "o "o Catolicismo foi realmente o cimento da nossa unidade" (idem:30). (idem:30). As palavras do jesuíta Antonil Antonil ilustram de forma exemplar a pragmática de inclusão dos negros e índios ao universo do catolicismo por meio do ritual festivo: festivo:

Não lhe estranhem o criarem criarem seus seus reis, reis, cantar e bailar por algumas algumashoras horashonestamente honestamente em emalguns alguns dias do do ano, ano, ee oo alegrarem-se alegrarem-se honestamente honestamente àà tarde tarde depois de terem feito pela manhã festas de manhã suas suas festas Nsa. Sra. Sra. do Rosário, de São São Benedito e ao orago da capela do engenho (1711 (1711 /1982:96). /1982:96). A linhagem barroca das celebrações disseminadas pelos jesuítas tinham sua origem na Península Ibérica. O barroco barroco foi aa manifestação manifestação por por excelência do do movimento contra-reformista, tendo Deus como como paradigma absoluto e a humanidade como seu seu grande dinâmica contraponto. Entre os séculos XVI e XVIII, a dinâmica natureza oscilante de identidade e alteridade entre a natureza humana e a divina constituía o grande mote da arte barroca e das problematizações do homem dessa (Ávila, 1994). época (Ávila, Num conflito constante entre o espírito medievocristão e o secular-renascentista, a ludicidade do do barroco estava em conciliar a visão teocêntrica do do mundo m u n d o com c o m um catolicismo c a t o l i c i s m o terrenizado, terrenizado, ostentatório, triunfalista. A festa católica trazia para para o ritual ritual uma uma profusão profusão de antíteses antíteses que que permeavam permeavam a ética ética ee aa estética estética barrocas barrocas -- ascetismo ascetismo e mundanidade, carne e espírito, sensualismo e espiritualismo, religiosidade e erotismo, realismo e idealismo, naturalismo naturalismo e ilusionismo, ilusionismo, céu e terra, terra, deus e diabo; d i a b o ; enfim, e n f i m , o sagrado e o profano profano (Coutinho, 1994). 1994).

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Para o homem barroco, a vida podia ser metaforizada como um espetáculo que passa (Wofflin, 1952), já que o homem vivia a agonizante descontinuidade entre sua natureza e a divina, esta eterna e aquela perecível. Mas a celebração da grandeza de Deus dá margem à expressão do engenho humano, enfatizada no aspecto triunfalista do ritual. Enquanto um espetáculo que passa, a procissão, a festa, celebra o divino e eterno, mas também o efêmero e os desfrutes da mortalidade. A festa irrompe o cotidiano e retorna fatalmente a ele, mas instaura o tempo cíclico, do eterno retorno, o tempo do divino. No tempo da festa, homens reverenciam a Deus, celebram sua glória, mas fazem também tudo aquilo que a natureza ascética da divindade não pode gozar: os prazeres carnais e sensoriais, o comer e o beber, o tocar e o dançar, o chorar e o rir; enfim, na festa se celebra também a glória da humanidade. Os fogos de artifício e o luxo das procissões são exemplos contundentes dessa relação de reverência e rivalidade entre os feitos divinos e humanos. Com sua estrutura eminentemente barroca, a festa do Divino exacerba e aproxima as dualidades, fazendo convergir a pompa e a alegria com a devoção e a reverência; terreniza o corpo divino, ao mesmo tempo que sacraliza o corpo do rei. É provável que ela tenha chegado ao Brasil no XVIII (Pereira e Jardim, 1978), quando a Colônia viveu seu mais intenso período barroco. A festa rapidamente se alastrou, sendo raro alguma província que não a celebrasse em uma ou mais localidades. Sua origem portuguesa, obra da rainha Isabel de Aragão (1271-1336), é, porém, bastante anterior (século XIII, segundo Pereira e Jardim, 1978, ou no início do XIV, de acordo com Câmara Cascudo, 1969). O crepúsculo do ciclo minerador; a vinda da Corte de Portugal para o Rio de Janeiro ; a Independência. A festa do Divino perpassou esses

eventos e adentrou o período imperial sendo a festividade mais grandiosa do calendário litúrgico da maioria das províncias brasileiras. D. João VI era um grande promotor dos festejos católicos e estimulou a proliferação de procissões e festas no Rid de Janeiro, sede da Corte portuguesa. A partir da Independência, as festividades continuaram intensas na cidade, então convertida em Corte brasileira. Mas a consolidação da autonomia do Império em relação a Portugal implicava a negação do barroco, eminente herança lusa. As festas católicas sobreviveram a isso, mantendo sua estrutura barroca e apontando para as continuidades em relação ao período colonial, como as desigualdades sociais, o escravismo, o personalismo. Elas destoavam do projeto de modernidade, de inspiração francesa, que alardeava as igualdades de direitos, o individualismo e o racionalismo. Assim como o barroco fazia a crítica dos paradigmas renascentistas, ao mesmo tempo que os incorporava parcialmente, a continuidade da estrutura barroca nas festas do XIX faziam a crítica do romantismo e da modernidade, sem deixar de apropriar-se de muitos de seus elementos. No XIX, a presença da Corte nas festividades certamente deslocou para si o foco de parte das celebrações. Mas a participação daqueles que viviam à margem da ordem social (escravos e pobres livres) nunca deixou de ocorrer. Pelo contrário, são poucos os cronistas estrangeiros que não comentam a participação intensa dos negros nessas ocasiões. Desse modo, se notarmos a quantidade de procissões e a profusão de santos e irmandades, podemos ver que, para além das grandes celebrações, pequenas festas aconteciam quase diariamente na Corte carioca, muitas vezes à revelia da nobreza e da administração imperial. E, se no XVIII a participação nas festas era compulsória (Kantor, 1996:1 04), no XIX elas eram muitas vezes ilegais e ocorriam com uma espantosa freqüência. 91


Deus e o diabo no Império das festas Uma das características barrocas que mais destoava dos ideais iluministas do XIX era a íntima convivência do sagrado e do profano nos rituais católicos. Os viajantes (muitos dos quais protestantes) que assistiram a esses festejos se indignavam com o caráter ostentatório e sensual das festas, além da freqüência que aconteciam. A isso se refere Ewbank em vários momentos de sua obra:

No Brasil, por toda parte encontra-se a religião ou o que receba tal nome. Nada se pode fazer nem observar sem deparar com ela de uma forma ou de outra. É o mais importante detalhe da vida pública e privada que aí temos. As festas e as procissões constituem os principais divertimentos populares: são os principais esportes e passatempo do povo, e neles os próprios santos saem de seus santuários e, juntamente com os padres e a multidão, participam dos folguedos gerais(1855/1976:18). Seidler, para dar outro exemplo, se indignava com a confluência de beijos, bebida e rapé em meio aos andores. A descrição de uma procissão feita pelo cronista nos remete a características barrocas por excelência, como a exuberância de cores e formas, o luxo e a pompa excessivos, a hierarquia explicitamente coreografada (fazendo dialogar a hierarquia cotidiana com a religiosa/ festiva), além do sensualismo enlaçado à devoção.

Tais procissões festivas estão na ordem do dia, e quase diariamente são vistas a serpear com suas variegadas cores pelas ruas principais do .Rio. Vão precedidas por música militar, a tocar, e nas festas mais importantes, como por exemplo de Coração de Jesus ou de Nossa Senhora de Conceição, tomam parte os principais funcionários do Estado, com as pesadas estátuas da Madonna, em tamanho natural e, crucifixos- quanto mais coloridos e mais pesados, melhor. Seguem-se os outros santos, na ordem 92

hierárquica, a variar com a tradição e a quadra do ano, todos sobrecarregados mais do que a decência manda, com roupas, asas e pedraria legítima, todos seguidos de pagens ricamente vestidos, velas de cera acesas, com a chama oscilante a espalhar claridade baça. (...) Muitos beijos, bebida t! rapé; mas isso não se nota, pois o encobrem os estandartes das diversas igrejas e claustros a drapejar alto e numerosos - barraca sagrada, onde os homens não podem meter os olhos - um sacrossanto, a cuja animação todos os passantes se ajoelham, até as guardas com suas espingardas, e cobrem os olhos, como se houvesse algo que ver, que não tolice humana" (1835/1942:42). A tensão barroca do acirrado embate entre o sagrado e profano, expressão da identidade e alteridade com o paradigma divino, foi sendo afrouxada com o avançar das décadas. Quanto mais próximos ao fim do XIX, mais os relatos vinculam festa e "vadiagem ", criticando a presença de "vadios e desocupados", como os capoeiras, predominando nas festividades religiosas 16 • A comparação irônica das festas católicas com o carnaval também passa a ser cada vez mais freqüente (se bem que era feita desde Debret, no início do XIX). Vieira Fazenda chega a aproximar os foliões do Divino a pierrots, foi iões carnavalescos 17 • O mesmo tipo de comparação é feito em Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida. O autor comenta longamente as procissões do começo do século e, quando se refere à procissão do Ouvires, diz que era a mais concorrida por ter uma especificidade:

Queremos falar de um grande rancho chamado das Baianas, que caminhava adiante da procissão, atraindo mais ou tanto como os santos, os andores, os emblemas sagrados, os olhares dos devotos; era formado esse rancho por um grande número de negras vestidas à moda da província da Bahia,


donde lhe vinha o nome, e que dançavam nos intervalos dos Deo-gratias uma dança lá a seu capricho. Para falarmos a verdade, a coisa era curiosa: e se não a empregassem como primeira parte de uma procissão religiosa, certamente seria m:Jis desculpável (1855/1982:52-3).

18 Roberto Schwarz, dialogando com Candido, reconhece a matri z da malandragem "desde a Colônia e se manifesta na figura folclórica de Pedro M alazarte, em Gregório de M atos, no humorismo popular, na imprensa cômica e satírica da Regência, num veio de nossa literatura culta do século XIX, e c ulmina no século XX, com M acunaíma e Serafim Ponte-Grande, onde é estilizada e levada à símbolo" (1989:1 30).

O rancho das baianas, que veio a se cristal izar como uma ala carnavalesca das escolas de samba cariocas, é ironizado pelo autor por estar integrado a uma procissão religiosa. Antonio Candido, ao analisar a obra (1992), a considerou um clássico fundante do que chamou de "dialética da malandragem", traço revelador da identidade brasileira que diz respeito a uma fluidez moral (e comportamental) entre a ordem e a desordem. O protagonista do livro e muitos de seus personagens, como precursores do malandro, se movem num mundo ambivalente e lançam mão dos recursos a que tiverem alcance para jogarem bem o jogo, mesmo que isso implique romper regras legais ou morais, prejudicar o outro ou romper os limites do público e do privado. Os malandros da primeira metade do XIX, personagens da narrativa, faziam parte das camadas intermediárias da população, que não eram escravos nem senhores; portanto, sem trabalho fixo, sem riquezas e sem poder de mando, configurando uma sociabilidade ambígua e anômica. Candido entende a dinâmica a que estão sujeitos, a "dialética da malandragem", como uma especificidade estrutural da sociedade brasileira, que permeia as relações sociais e vem resistindo às mudanças conjunturais18 • No decorrer do XIX, assistiu-se a um processo de diluição da ética barroca na festa popular, mas sua estética permaneceu e foi ressignificada , fazendo com que o Imperador do Divino sobrevivesse aos "dons Pedros". Talvez essa estrutura barroca de concepção dual do mundo tenha perdido seu conteúdo agonizante e moralizante, desmembrando-se numa dialética 93


amoral, festiva, própria da malandragem, em que as baianas dividem espaço com os santos, como diferentes alas num desfile carnavalesco. Numa dimensão lúdica, poderíamos d izer que na passagem do século o Imperador do Divino passou o cetro para o re i Momo, mas trata-se de um mesmo reinado, pertencente aos desdobramentos da festa na hi stóri a do Brasil 19 • A tran sição se deu porque o caráter litúrgico da comemoração do Divino foi cedendo lugar ao predomínio do profano no Carnaval. Mas, em um e outro, os cortejos e procissões contam com a profusão de reis, rainhas, figuras e histórias da nobreza, personagens históricas ou lendárias e toda uma série de elementos de forma e conteúdo confundidos. Dessa maneira, entre o imperador da ordem políti ca (D. Pedro) e o imperador da ordem divina (Divino Espírito Santo), impera a desordem do rei folião (Momo), configurando o Carnaval como o reinado que parodia a si próprio (Bakhtin, 1970/1993)- o que o Divino já fazia, porém comprometido com o repertório religioso. Afinal, como disse Oswald de Andrade, não fomos catequizados, fizemos foi Carnaval.

Créditos das imagens 1. DEBRET, Jean Bastiste. Viagem pitoresca e história do Brasil. Tomo 11, vol.lll, Belo Horizonte, Edusp/ Livraria Itatiaia, 1978. 2. EWBANK, Thomas. " Leiloeiro da festa" in: Vida no Brasil. Belo Horizonte, Edusp/ Livraria Itatiaia Ltda, 1976. 3. E\f\!'BANK, Thomas. Vida no Brasil. Belo Horizonte, Edusp/Livraria Itatiaia Ltda, 1976. 4. EWBANK, Thomas. Vida no Brasil. Belo Horizonte, Edusp/Livraria Itatiaia Ltda, 1976. S. MORAES FILHO, M ello. " Folia do Divino" in: Festas e tradições populares do Brasil. 6. EWBANK, Thomas. "Leiloeiro da festa" in: Vida no Brasil. Belo Horizonte, Edusp/ Livraria Itatiaia Ltda, 1976. 7. DEBRET, Jean Bastiste. "Cavalhadas" in: Viagem pitoresca e história do Brasil. Tomo 11, vol.lll, Belo Horizonte, Edusp/Livraria Itatiaia, 1978. 8. DEBRET, Jean Bastiste. "Cavalhadas" in: Viagem pitoresca e história do Brasil. Tomo 11, vol.lll, Belo Horizonte, Edusp/Livraria Itatiaia, 1978.

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19 A festa do Divino foi se tornando rara na maioria das grandes cidades, mas continua acontecendo em inúmeras l oca l id ades menores, particularmente nas comunidades ru rais.


Referências bibliográficas

·valéria Macedo é membro do corpo ed itori al da Sexta Feira.

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contra

c a n t o

Como havia dito, a oposição entre sagrado e profano, que vocês pretendem trabalhar em um dos tópicos da revista é um problema bastante delicado. Ele seria melhor caracterizado pela percepção dos elementos musicais, coreográficos e poéticos todos de uma vez, como no contexto das festas. A mera exposição do texto nem sempre é suficiente para expor a convivência de universos religiosos distintos no mesmo discurso. O exemplo que me ocorre é de uma Ave Maria cantada à moda do Moçambique mineiro que vi uma vez. Esta interpretação soava de forma extremamente africana, muito distante da contrição com que ela freqüentemente é rezada. A mistura dos dois universos nem sempre se constitui como problema para eles, uma vez que a dimensão do sagrado perpassa todos os momentos e ambientes cotidianos, além daquelas datas marcadas pelo calendário festivo tradicional. A "mistura" mais recorrente se dá entre os dogmas e práticas do catolicismo com os cultos afro-brasileiros, principalmente a umbanda. As quadras que eu separei estão mais ou menos em ordem com relação à adequação ou não ao tema proposto. Assim, se alguma coisa for cortada, os últimos exemplos são os que estariam mais distantes da concretização da idéia. O Paulo Dias também foi responsável pela captação de algumas delas, portanto, gostaria que fosse citado obrigatoriamente. Marcelo Simon Manzatti

Marcelo Simon Manzatti é antropólogo e historiador formado pela FFLCH USP. Desenvolve, junto ao etnomusicólogo Paulo Dias, acervo multimediático de festas e manifestações musicais do povo brasileiro.


A d e u s , a d e u s , povaria Ey v© m ' e m b o r a Me diverti b a s t a n t e S e n h o r diz q u e está na hora Jongo do Tamandaré, Guaratinguetá/SP S i © G o n ç a l ® d<s A m a r a n t e Mão I í ã s s e s s t r s sa/íía T o d o s a n t o pede reza S i © G a n ç a l ® pede d a n ç a Dança de São Gonçalo do Bonito, Urucuia/MG

[feg© ni© v a i pro e i u Meots q y e suja rezado C a b a l ® da n e g o é d u r o Espeía Nosso Sínhê Folia de Reis Antônio Mainarte, Sete Lagoas/MG

Ê assim, i assim Q y ® S i ® Benedito quê U m a roda é te h o m e © y t r a rada i das mmê Jongo

de São Benedito, São Mateus/ES

Naseey n u m a m a n g e d o y r a fto artá d© S e n h o r Divido 0% a n j ® c a n t a v a alegra E a igreja batia o s i n o  viola na v e r d a d e É a f o r ç a d© destino No p r e s é p i o d© S e n h o r Viola c h e g o tinln® Moçambique de São Benedito, Cunha/SP E

N u m me b a í a nesse n e g o Q u e ele caro me e y s t ô Esse n e g o i Z é Pelintra Filh® d e Mosso Sinhfi Jongo Taubaté/SP

l a m b i I nossa gyia Mossa S e n h o r a m i n h a Í mirim dos Arturos, Moçambique Contagem/MG

k v i d a cl a 1;»- a r a s a Mo balanço d a a l v o r a d a Mosso K®i d e s e e y d© c l y Pra v e r a d a n ç a c h e g a r Reis-de-boi, São Mateus/ES

 Senhora do tosárí© Q u e c h e g ê pra s a r a v á A S a n í a Efigênia Ela q u e foi me b u s c a Moçambique de Nossa Senhora Oliveira/MG

Aparecida,


ensa1o fotográf1co festa do rosár1o em Serro Patrícia Gouvêa*

"Essa festa é do princípio do mundo. Desde Adão e Eva tem essa festa. É do tempo antigo. Essa festa veio da Áfnc:a. Foi os nego que inventaram prá aliviá os escravo. O nego faz o que sempre gostou de fazer."


Dona Cesรกria, Ra1nha G1nga


igreja do Rosรกno


Ra1nha de ano

Ivo, mestre do catopĂŞ de Milho Verde


Mesa de d o c e s


Caboclinho

Ma..-u)lnho

Catopezinho


CesĂĄria, Ra1nha G1nga e seus netos

Nelson, chefe do catopĂŞ


*Patrícia Gouvêa é fotógrafa e sócia da Agência Foto IN Cena, escola e cooperati va de fotógrafos, localizada no Rio de Janeiro. Estas fotos fazem parte de um ensaio feito por mais sete fotógrafos, Iiderados por Walter Firmo, que dará origem a um livro sobre a Festa do Rosário do Serro, M G, a ser lançado em 1988.

Proossão


A ORAÇÃO DAS ÁGUAS Nosso mosteiro é uma casa que tem buscado obedecer aos apelos ecumênicos e macroecumênicos como condição para construir a paz. Em agosto de 1 996, tivemos mais um sinal que veio confirmar esta nossa vocação: recebemos a visita de Mãe Stella de Oxóssi, lyalorixá do Ylê Axé Opó Afonjá (Salvador). Desde então, uma amizade se firmou entre as nossas casas. Para simbolizar esta nossa


comunhão como "o povo de santo", resolvemos dedicar a pequena fonte que temos em nosso bosque ao Oxun e a Yemanjá, que são Orixás das águas. Segundo Mãe Stella, especialmente a energia de Oxun está muito presente nesta região. A fonte recebeu como nome "lyá dura Omi", que traduzindo do lorubá significa "A mãe que ora nas águas". Temos a alegria de compartilhar com vocês este axé!

Marcos Moraes Monge do Mosteiro da Anunciação do Senhor, Goiás


A alternativa da festa à brasileira Rita de Cássia A m a r a l '

O Brasil vem sendo cada vez mais conhecido como o "país das festas", e este rótulo merece ser melhor compreendido, particularmente quando ele se encontra associado ao senso comum de um festejar constante, crescente e sistemático, indicando um caráter de certa forma "irresponsável", alienado e desperdiçador intrínseco ao povo brasileiro - ainda se este julgamento surge acompanhado do elogio de nossa alegria, criatividade, cordialidade etc. Se é certo que a identidade cultural brasileira passa pela festa, é preciso compreender as especificidades deste fenômeno numa cultura marcada pela diversidade em todos os sentidos. De acordo com dois dos principais e antagônicos modelos teóricos das Ciências Sociais sobre a Festa, ela reitera ou nega o modo pelo qual uma sociedade se organiza num dado momento histórico. Para Durkheim, em As formas elementares da vida religiosa (1909), a dissolução temporária que o desregramento da festa permite torna perceptível a n e c e s s i d a d e das regras limitadoras a fim de que a sociedade não se dissolva no caos, na anomia da qual a festa costuma ser o exemplo. Por outro lado, s e g u n d o Caillois, em L'homme et le sacré (1950), a festa


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Nos últimos dez anos surgiram várias festas inspiradas no modelo da Oktoberfest de Blumenau (Fe narreco, Fisherfest, Cajufest, Festas da Uva em vários municípios, Festas de Peão de Boiadeiro, além das inúmeras Micaretas, como Carna Sampa em São Paulo, Micarandanga, em Brasília, Fartai em Fortaleza, e muitas outras).

de organização, para afirmar a utopia da sociedade nova e ideal, na qual a alegria e a interação total com a própria natureza humana sejam o modelo do viver pleno e feliz. A utopia do retorno ao Paraíso primordial. É preciso, entretanto, levar em consideração que ambos os modelos teóricos foram construídos tomando como referência as festas das sociedades "simples", nas quais a adesão a valores culturais pode se dar de modo um pouco mais homogêneo que numa sociedade "complexa", em que os vários grupos coexistentes defendem valores próprios, exclusivos e até mesmo antagônicos. A maioria dos exemplos que venho estudando em minha pesquisa induz à conclusão de que a festa brasileira (ou talvez seja mesmo possível estender esta afirmação às festas dos países em desenvolvimento, em que as regras sociais se encontram também em efervescente transformação) constitui um modelo intermediário entre os dois acima, exercendo simultaneamente o papel de negar e reiterar o modo como a sociedade se organiza, justamente selecionando o que deve ser lembrado e o que deve ser relegado ao esquecimento; o que deve ser transformado e o que deve permanecer. A festa

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brasileira se apresenta, então, como med iação privilegiada entre dimensões e estruturas várias, unindo o passado ao presente, o presente · ao futuro, a vida e a morte (nas festas comemorativas de eventos históricos, por exemp lo), o sagrado e o profano, a fantasia e a realidade, o simbólico e o concreto, os mitos e a história, o local e o global, a natureza e a cultura. Diante do "dilema brasileiro", apontado por DaMatta (1978) - a dificuldade de escolher entre opostos, que culmina em " escolher não escolher" -, a festa se mostra como solução virtual , pois, ao unir o ser ao não-ser, através da realização das utopias ainda que por breves períodos, " coloca em cena", por seus aspectos mais dramatizados, projetos coletivos e individuais, concretiza sonhos, anseios e fantasias; ao mesmo tempo em que, longe de constituir um fenômeno alienante, separado e distante da vida real , volta-se à resolução de problemas rea is, por meio da organização dos grupos em plano local, visando, por exemplo, angariar fundos para a construção de escolas, asilos, creches, igrejas, fundos de auxílio às pessoas carentes. Algumas festa s, mais · recentes, são mesmo criadas visando fortificar a economia local de certas cidades 1 •

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A Antropologia brasileira da Festa Contrária à idéia da "destruição simbólica" das regras que fundam a sociedade, que perpassa as teorias estrangeiras sobre as festas, a ênfase dada pelos autores brasileiros que as estudam é posta no caráter positivo, afirmativo da festa, percebida sob os termos: enfatizar, expressar, destacar, que aparecem em suas interpretações. Roberto DaMatta, por exemplo, define ritual como um discurso simbólico que "destaca" certos aspectos da realidade e os agrupa por meio de inúmeras operações, como junções, oposições, integrações e inibições. Segundo ele, os rituais podem dividir-se em três grupos: ritual de separação ou ritual de reforço, no qual uma situação ambígua torna-se claramente marcada; ritual de inversão, em que há quebra dos papéis rotineiros; ritual de neutralização, combinação dos dois tipos anteriores. Para o autor, o Carnaval brasileiro seria um ritual de inversão, em que as hierarquias se apagam,: o pobre fantasia-se de príncipe, o homem de mulher e assim por diante. No Carnaval, contrariando o projeto social, as leis são mínimas: "É o folião que conta. É o folião que decidirá de que modo irá 'brincar' o Carnaval" . (DaMatta, 1978:93).

Esta perspectiva fundamentalmente simbólica é criticada por Maria lsaura Pereira de Queiroz, para quem isto acontece apenas no plano dos sentimentos e expectativas. Mas ao adotar essa perspectiva acaba-se deixando de lado o fato de que a festa, tal como se organiza e de fato acontece dentro de uma sociedade específica, apresenta estruturas e hierarquias que devem ser analisadas de perto para se verificar se são ou não subvertidas no espaço festivo. Para Maria lsaura, a festa de Carnaval deve ser entendida como um rito de um mito nacional sobre a sociedade ideal (1992). Segundo sua análise, a visão de DaMatta é reforçadora do mito popular do Carnaval como um mundo "às avessas". A perspectiva adotada pelo autor se deteria no discurso sobre o Carnaval feito pelos informantes em termos de emoções, sensações e não daria a devida atenção ao que realmente acontece (ao "vivido") em termos da estrutura social e econômica, que informam e regem os comportamentos. Contudo, é preciso argumentar a favor do plano simbólico da festa, pois o vivido não teria sentido se não fosse representado. Mais do que a experiência em si, importa aquilo que se pensa dela, o sentido que os homens atribuem às suas ações. Em segundo lugar,


porque esta afirmação dá a entender que existe grande distância entre o vivido e o mito, especialmente ao falarmos em ritual de inversão. É preciso lembrar que o rito tem grande conteúdo dramático e é uma linguagem, resultado de aspectos combinatórios de vários momentos da vida cotidiana. Como mostrou Leach, a matéria-prima do ritual é a mesma da vida diária representada. A diferença entre ambas não é de qualidade, mas de grau. É assim que a inversão é possível no plano simbólico. Além do mais, se tivéssemos uma inversão real das estruturas sociais, estaríamos realizando uma revolução, ao invés de um rito. Carlos Rodrigues Brandão, por sua vez, ao estudar as festas e procissões no interior de vários estados brasileiros, especialmente do Brasil central, e sua importância para a vida daqueles que as realizam e delas participam, observa também que a · festa é o lugar simbólico onde cerimonialmente "separam-se o que deve ser esquecido e, por isso mesmo, em silêncio não-festejado", e aquilo que "deve ser resgatado da coisa ao símbolo, posto em evidência de tempos em tempos , comemorado, celebrado" (Brandão, 1989:8). Para Brandão, a festa toma a seu cargo os mesmos sujeitos, objetos e estrutura de rela-

ções da vida social e os transfigura. A festa exagera o real. Ela toma posse da rotina mas não a rompe; ela excede sua lógica, e é nisso que ·ela força as pessoas ao " breve ofício ritual da transgressão " . Assim , a idéia de transgressão, em Brandão, relaciona-se ao exagero, à ultrapassagem de limites, aos excessos. Até as inversões seriam exageros, simbolizando aspectos sempre latentes no comportamento dos homens.

A festa é mais que explosão de alegria e devo~ão A pesquisa comparativa de um grande número de festas que venho realizando mostra que, além dos aspectos simbólicos estudados por DaMatta, Brandão, entre outros, e aspectos concretos justamente lembrados por Queiroz, existem ainda outras dimensões relevantes, como a organização política local e a construção de modelos de ação que, se não são novos - os revolucionários franceses muito relevaram a importância da festa como modo de ação, participação e rebeldia -, ao menos vêm sendo atualizados na forma de incentivo do Estado ao turismo. Esta atitude, se por um lado "desapropria" as festas populares e as devolve à

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sociedade remodeladas, transformadas em produtos rentáveis (mas nem sempre bem-recebidas), por outro lado, recebe como resposta popular a atitude de "aproveitar" certas iniciativas da Igreja e do Estado em benefício próprio. As festas também são bem mais racionalizadas e conscientizadoras do que se imagina. A festa brasileira é principalmente atitude, apesar de ser também alienação, comemoração e devoção. É um fato social total, no sentido que Mareei Mauss deu ao termo2 • E ela é o espaço onde a sociedade se reconhece e escreve sua história tal como ela a compreende. Não é à toa que nas paradas do dia da Independência do Brasil o Estado desfila com seu aparato de força pelas ruas e o povo assiste nas calçadas, enquanto na Festa da Independência dos Estados Unidos o povo desfila nas ruas. A população, que não se reconhece no Estado, não participou da história oficial do país, assistiu "bestializada" (Carvalho, 1987) aos principais acontecimentos nacionais, conta sua verdadeira história, seu ponto de vista, no Carnaval, nos desfiles das escolas de samba, em que temas históricos são narrados por meio de alegorias; nas festas juninas; nas festas do Divino, quando a bandeira vai de casa em casa pedindo donativos a todos e dando aos pobres. Na história da colonização alemã revivida na Oktoberfest; na devoção do Círio de Nazaré, em Belém do Pará. Se á festa nega a submissão da população ao poder instituído, ao prover as próprias necessidades pela associação de indivíduos, ela usa, quando possível, este mesmo poder para conseguir realizar-

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se, o que pode significar pedir ao Serviço Viário que interdite ruas, às Administrações Regionais, ou órgãos públicos e empresas que divulguem ou financiem alguma coisa. Muitas vezes até mesmo a presença de políticos é bem-vinda, pois dá ao evento uma importância maior perante os grupos "adversários" ou perante o público em geral.

Os muitos sentidos das festas o exemplo de Sio Paulo Mais que mera "válvula de escape", mais que ser "contra" ou "a favor" da sociedade tal como se encontra organizada, as festas podem também ser o modo próprio de expressão da identidade de um dado grupo ou mesmo instrumento político deste, uma vez que mobiliza grande contingente de pessoas e recursos com finalidades assistenciais, no sentido de cumprirem um papel de apoio a seus membros ou de outros grupos, que terminam gerando uma consciência política que dá origem a associações, como as de bairro ou de leigos na igreja, por exemplo. É o caso de associações como a de São Vito Mártir, que realiza anualmente, há 75 anos, a Festa de São Vito no bairro "italiano" do Brás (durante 7 semanas), a partir do começo de junho. Além de festejar o santo, a festa tem como objetivo arrecadar fundos para uma escola e uma creche mantidas pela associação . O mesmo acontece com a Festa da Achiropita, de São Genaro e de Santo Emídio, realizadas por cerca

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A noção de fato social tota l refere-se a determinado tipo de trocas ceri moniais materiais e simbólicas - , que acionam de maneira simultânea diversos planos (rel igioso, eco nô mi co, j urídi co, moral, estético, morfológico) de uma sociedade (Mauss,

1950:145-279).


de três semanas pela população do Bexiga e da Vila Prudente, respectivamente, na capital de São Paulo. Elas fazem parte do "ciclo italiano" de festas de santos católicos. As comunidades envolvidas, todas de imigrantes e seus descendentes, de classe média, cuidam com a maior severidade, interesse e disciplina dos costumes herdados dos pais e avós, boa parte deles fundados na religião e, segundo alguns participantes, ainda em vigor nos países de origem. A paróquia da Achiropita, por exemplo, homenageia o santo há 84 anos, durante todo o mês de agosto, e a principal atração da festa é a comida típica italiana. Lasanha, rondelli, canelloni, pizzas, fogaças, entre outras, fazem parte da tonelada de massas "oferecidas" durante a comemoração. Para fazer toda essa comida, os moradores do bairro se reúnem para r dinheiro por meio de outras festas, do.._..._...ti/ll,......ações dos comerciantes, bingos, rifas e do auxílio de instituições públicas, como a Administração Regional do Bairro, a Companhia de Engenharia de Trânsito e a Eletropaulo. Conseguidos os recursos para a compra dos ingredientes para fazer as massas, molhos etc., a comunidade passa a dedicar todo seu tempo à execução dos pratos, que são vendidos nas ruas dos bairros, prontos ou só as massas cruas, com ·acompanhamentos di versos. Além da comida típica, há também espetáculos musicais de artistas da própria comunidade. Apesar do cardápio e dos convidados, a comuni-

dade da Achiropita não é formada apenas.por it!:llianos, mas um "cadi nho" de miscigenação de imigrantes. A quantia arrecadada nestas festas excede cerca de 20% do dinheiro investido em sua organização. Nos anos de existência da festa já foram construídas creches, asilos para idosos e a própria igreja matriz do bairro. O poder associativo, reiterativo, identificador e reanimador da festa fica evidente quando pensamos naquelas realizadas por imigrantes, ano a ano, ou mesmo nas festas de grupos rei igiosos diversos. Os italianos, católicos marcando fortemente a colonização paulista, realizam um ciclo de festas tradicionais, cujo ápice é o mês de agosto. Os irlandeses e seus descendentes realizam no pub paulistano Finnegan's (em Pinheiros) a festa de Saint Patrick, santo do qual são muito devotos. Os portugueses se reúnem nas Marejadas, quando comem peixe, bebem vinho (muitas vezes feito em casa ou de Portugal) e dançam ao som de fados e viras. Os japoneses fazem festas religiosas e profanas (como o Tanabata - Festa das Estrelas ) nas ruas decoradas com bambus e iluminadas com lanternas de papel, no bairro da Liberdade. Os norte-americanos e as escolas de ingleses disseminaram e introduziram recentemente, no calendário brasileiro, uma festa tipicamente americana: o Haloween, Festa das Bruxas, bastante apreciada pelas classes média e alta, que festejam em clubes, com bailes à fantasia. Outros religiosos também realizam grandes festas com finalidades comemorativas e filantró-

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picas. Em São Paulo os umbandistas festejam no Ginásio Esportivo do lbirapuera o orixá guerreiro Ogum (São Jorge) e, em várias ruas da periferia, São Cosme e São Damião. No dia 27 de setembro ou no primeiro domingo depois deste dia, os umbandistas oferecem um bolo pesando uma tonelada, confeitado, cuja extensão ocupa grande parte de uma das ruas do bairro onde é realizada.

Conclusão Não é à toa que se diz que " no Brasil tudo acaba em festa" . Isto é compreensível, já que ela pode comemorar acontecimentos, reviver tradições, criar novas formas de expressão, afirmar identidades, preencher espaços na vida dos grupos, dramatizar situações e afirmações populares. Ser o espaço de protestos (as passeatas e manifestações pelo impeachment do presidente Fernando Collor de Mello, em 1992, eram imensas festas, com música, dança e comida) ou da, construção de uma cidadania " paralela"; de resistência à opressão econômica ou cultural ou, ainda, de catarse. A festa concentra recursos dos grupos e os redistribui. A fartura e a possibilidade de fazer 114

uma festa cada vez mais "rica" são motivo de orgulho de uma comunidade. É desse modo que os participantes criam um "espelho " no qual percebem, concretamente, o que são capazes de acumular e distribuir, ou desperdiçar, e qual a estatura do grupo na sociedade . Em casos como estes, a festa deixa de ser a simples "válvula de escape", como pensam muitos teóricos, para ser momento de auto-aval i ação dos grupos sociais. Ela não é unicamente manifestação religiosa, e sim uma "parceria" entre homens, santos, orixás e outros deuses na luta por uma vida mais digna. Desse modo, ela pode ser uma das maneiras de enfrentar dificuldades práticas, corr10 a falta de creches , asilos ou escolas. Pode ser ritual, divertimento e ação política ao mesmo tempo. Ela reaviva as velhas tradições, reforça laços de origem, mas também incorpora novos elementos e anseios. Como fato social total que é, a festa engloba as esferas de sentido , transcendência , política, lazer, estética , tradição, trabalho etc. Em alguns casos pode ser também uma forma de resistência sob a aparência de alienação. Nosso sistemático festejar, longe de ser um problema, pode ser uma solução.

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) Referências bibliográficas

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O CRU E O C O Z I D O


COMIDA DE SANTO, COMIDA DE HOMEM paulamiragliae paulapintoesilva*

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Preparem o Vatapá de Ogun, o Peixe de Oxossi, Sarapatel para Naná, Acarajé para lansã, Manjar do céu para lemanjá. É dia de festa, ofereçamos comidas aos Orixás. Saravá!!! Foi pelos mares do Brasil que a gente africana trouxe os segredos do ebó, das comidas apimentadas, do uso do óleo da palma. Com o intenso tráfego de negros de diversas etnias, a miscigenação se refletiu na culinária e no misticismo que alimenta a alma. Durante mais de três séculos, três grandes nações africanas vieram para o Brasil. Suas comidas, cosmologias e tradições fizeram com que fosse criado um mundo dentro do mundo que se formava brasileiro. Ao fundar aqui os primeiros terreiros, a população negra continuou a cultuar seus deuses e ancestrais e, para eles, fazer as comidas e as bebidas santas. As crendices relacionadas com a mesa, a refeição, os alimentos, os participantes, com as cozinheiras e os utensílios de cozinha também atravessaram tempos e viajaram de muito longe. Assim, deve a cozinha de santo ter panelas de barro, pedras de ralar, fogão a lenha, colheres de pau e alguidar; na despensa, azeite-de-dendê e de oliva, arroz quebradinho, canjica, cebola, farinha de mandioca, de-pau e de-guerra, feijão branco e vermelho, milho, pimenta, mel e velas. E as labás, vestidas com saias de renda e chitão, blusão branco, lenço na cabeça e as guias de seus orixás no pescoço, são as responsáveis por este ritual tão importante nas rodas de candomblé. Com seus balangandãs, fazem deliciosas iguarias, para santo e para homem. Ponto fundamental de qualquer terreiro, a cozinha é também um local secreto. Dali sairão os quitutes feitos em segredo e guardado a sete chaves, passadas as receitas de mãe para filha. Os elementos do "outro mundo" esperam ansiosos ser alimentados; os deste, esforçam-se para agradálos, numa tentativa de aproximação que resulta na comida de santo, ligação entre os do céu e os da terra. E para cada comida, um Orixá, uma cor, um dia, uma festa. E como todo dia é dia de festa, damos agora a vocês leitores, algumas receitas de comidas de santo, que podem (e devem) ser saboreadas por homens. Axé! 117


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VATAPÁ DE ÜGUN

ACAR.A .. PA A lAr. ,A

2 cocos da Bahia 2 cebolas 1h kg de camarão seco 1 1/2 kg de camarão fresco lfz kg de garoupa, namorado, abadejo ou dourado 250 g de amendoim torrado ou castanha de caju 12 pães amanhecidos

1 kg de feijão-fradinho cebola camarão seco azeite-de-dendê

1. Deixe os pães em água para amolecer. 2. Lave os cocos, tire-os da casca, rale a "carne" e aqueça-a em banho-maria. Depois de aquecido, coloque o coco ralado em uma guardanapo de linho branco e esprema o leite puro em uma vasilha. Coloque dois copos de água quente no bagaço e esprema novamente, em outra vasilha. Repita o procedimento e teremos três tipos de leite. 3. Em uma máquina de moer carne, passe o camarão seco e o pão amolecido. Reserve. 4. Tempere o peixe e o camarão fresco com limão. Deixe que o suco de limão aja sobre eles, cozinhando-os. 5. Refogue o amendoim ou a castanha com a cebola, o camarão seco, o pão amanhecido e o segundo leite de coco. Vá acrescentandp, aos poucos, o terceiro leite, até que a massa fique mais consistente. Não pare de mexer para não empelotar. 6. Acrescente o leite de coco puro, o peixe cortado em lascas e o camarão fresco. 7. Coloque então uma quantidade suficiente de dendê, até perceber que a massa pode ser comida com um garfo. Está pronto o Vatapá.

1. Deixe o feijão de molho em água de um dia para o outro. 2. Retire a película que cobre o feijão, descascando-o . 3. Leve o feijão a uma máquina de moer e transforme-o em uma massa fina. 4. Moa os temperos com um pouco de dendê e acrescente à massa . Bata bem. 5. Leve ao fogo uma frigideira cheia de dendê, deixe ferver e comece a fritar a massa em forma de bolinhos. Faça-os com a ajuda de uma colher de pau. 6. Os bolinhos corados são o Acarajé e devem ser servidos a lansã frios, enfeitando o prato com folhas de louro verde. 7. Para os mortais, recomenda-se servir bem quente, com bastante pimenta, acompanhado por uma pinga de Santo Amaro.

' " O camarão seco na comida baiana é tempero. Depois de catado, sem os olh os e as barbas, é col ocado, sem lavar, num saquinho ou pano e sovado até fi ca r em pó" (Ribeiro, s./d.:18).

BIBLIOGRAFIA

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1991.


MANJAR DO CÉU PARA ÍEMANJÁ

1 coco 4 xícaras de leite de v a c a 5 colheres de sopa de maisena açúcar a gosto

1. Rale o coco e retire seu leite. Reserve o leite. 2. Ao bagaço, acrescente duas xícaras de água fervente e retire o restante do leite. 3. Junte a este leite o leite de vaca, a maisena, o açúcar e uma pitada de sal. 4. Leve ao fogo e mexa sempre, até que se consiga ver, nitidamente, o fundo da panela. 5. Junte o leite de coco grosso, extraído ao ralar. 6. Misture bem misturado e despeje em uma forma. Deixe esfriar. Sirva em prato metálico, com champanhe em toalha de mesa branca, à Rainha do Mar.

NUMA FESTA DE OXUM

Agradecimentos a Mãe Vanda, Pai G i l b e r t o , F e l í c i a O . Abimbola e todo o pessoal do T e r r e i r o lie lya Mi O s u n Muiywa. Também a Carlos Eugênio Marcondes de Moura, Reginaldo Prandi e Janja.

Paula Miraglia e Paula Pinto e Silva são membros do corpo editorial da Sexta Feira. Fotos de Kiko Ferrite.

Terreiro do lie lya Mi Osun Muiywa, Casa Verde, São Paulo. Acompanhamos uma festa em homenagem a Oxum, primeiro domingo de dezembro de 1997. Divindade ligada às águas doces, mulher de Xangô, O x u m , por conta de sua vaidade e elegância, dança graciosamente e distribui perfumes aos convidados. Enquanto a orixá era reverenciada no salão, Dona Dita e sua extrema simpatia nos abriam as portas da cozinha. Todo o processo de preparação das comidas está permeado por regras ligadas à religião e ao Orixá festejado, a começar pela escolha do cardápio, que jamais é aleatória. Os pratos são elaborados de acordo com a preferência dos santos, por uma pessoa especial, uma labá, filha de santo que reúne a capacidade de cozinhar para um grande número de pessoas à experiência e ao conhecimento das restrições e tabus alimentares ligados a cada O r i x á . Naquele dia de O x u m o cardápio tinha como atrativo o famoso Bobó de camarão, que foi cuidadosamente preparado ao longo de toda a festa. Oxum distribuiu seus passes, dando bênçãos à casa, às pessoas e à comida. Ao final do ritual, cessaram os atabaques, os cantos, acabaram as danças e os santos recebidos pelos homens na terra voltaram para o céu. A festa, no entanto, continuou. Como num potlatch, os anfitriões passaram a servir fartamente seus convidados. Esse foi o momento em que a intensidade vivida até então deu lugar à descontração e ao descanso, ocasião para o encontro entre as pessoas e principalmente para celebrar o sucesso do ritual. Mais do que saborear pratos deliciosos, a comida preparada no terreiro deve agradar ao corpo e ao espírito e, acima de tudo, receber a benção de O x u m .


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umacomunicação comunicação Embriagada uma apontamentos sobre uma festa tipicamente ameríndia Renato Sztutman Renato Sztutman· 1

o m m e vous Mais Ma is dans dans l'ivresse l' ivresse ilil yy aa de de l'hyper-sublime, l' hyper-sublime, ccomme vous allez allez voir voir1 Charles Charl es Baudelaire, Baudelaire, Les Les Paradis Paradis Artificiels Artificiels

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A - II11 faut A máxima máxima de de Charles Charles Baudelaire Baudelaire contida contida em em seu seu Spleen Spleen de de Paris Parisfaut être être toujours toujours ivre ivrfil ("É ("É necessário necessário estar estar sempre sempre bêbedo") bêbedo") -- reaparece, reaparece, não não com com menos menos júbilo, júbilo, entre entre grande grande parte parte dos dos povos povos indígenas indígenas da da Amazônia, Amazônia, em em especial especial entre entre os os povos povos Tupi-Guarani Tupi-Guarani que que habitam habitam aa região região norte-amazônica. norte-amazônica. Estes, Estes, partidários partidários da da festa festa como como transgressão transgressão do do cotidiano, cotidiano, guardam, guardam, particularmente, particularmente, um um grande grande afeto afeto por - ingrediente - , preparada por um um tipo tipo de de cerveja cerveja de de mandioca mandiocaingrediente básico básico da da dieta dieta da da região região-, preparada minuciosamenminuciosamente te pelas pelas mulheres mulheres ee servida servida em em abundância abundância em em ocasiões ocasiões rituais. rituais. Chicha, Chicha. caxiri. caxiri. cauim, cauim, kurai kurai são são alguns alguns dos dos codinomes codinomes atribuídos atribuídos pelas pelas populações populações amazônicas amazônicas aa este este fermentado fermentado de de mandioca mandioca (que (que em em muitos muitos lugares lugares pode pode ser ser obtido obtido de de outros outros alimentos, alimentos, como, como, por por exemexemplo, plo, oo milho). milho). Nas Nas comemorações, comemorações, sejam sejam elas elas dadas dadas em em cenários cenários mais mais íntimos íntimos (intragrupo (intragrupo local) local ) ou ou mais mais amplos amplos (intergrupcs (intergrupcs locias), locias), aa falta falta desta desta cerveja cerveja seria seria interpretada interpretada como como incesto incesto social. social. EÉ como como se se as as pessoas não falassem falasst~m em em outra outra coisa: coisa: aa tal tal bebedeira bebedeira éé esperada esperada ansiosamente. ansiosamente. Todos Todos ficam ficam de de olho olho na na pessoas não grande - central grande canoa canoa que que contém contém aa bebida, bebida, brindam brindam e, e, enfim, enfim, bebem, bebem, deixando deixando transparecer transparecer aa apologia apologiacentral

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'1 ""M a s na Mas na embriaguez emb ri aguez hâ há algo hipersublime, como como algo de de hipersublime, vereis" vereis" (trad. (trad. minha). minha). 2 // 11 faut faut être être toujours toujours ivre. ivre. Tout Tout est question. est là /à c'est c'est l'unique /'unique question. Pour l'horrible Pour ne ne pas pas sentir sentir /'horrib/e fardeau brise fardeau du du Temps Temps qui qui brise vos épaules et vous penche vos épaules et vous penche vers vous vers la la terre, terre, ili/ faut faut va us enivrer enivrer sans sans trêve. trêve. (Charles (Charles Baudelaire, vous). Baudelaire, Enivrez Enivrez vaus). 2


em suas culturas - ao estado ébrio. Vislumbra-se assim, na Amazônia, a grande profusão de culturas da embriaguez. Os cronistas quinhentistas e seiscentistas que visitaram os Tupinambá reconheciam a bebida pela denominação de cauim. Era de causar espanto o tamanho apreço que os "selvagens" tinham para com esta poção. Hans Staden, que, como se sabe, permaneceu entre os Tupinambá como cativo, escapando, por pouco, de ser comido por eles, já faz referência ao cauim e à festa que constitui seu palco, então em um contexto antropofágico:

O chefe, que queria possuir-me, tomou a palavra e disse que deviam conduzir-me vivo para a casa, a fim de que as mulheres também me vissem com vida e tivessem o divertimento que lhes cabia à minha custa. Nesta ocasião, haveriam de matar-me a "cauim pepica", isto é, preparariam bebidas, organizariam uma festa e devorar-me-iam conjuntamente. Assim, convieram e ataram-me quatro cordas no pescoço (Staden apud Fernandes, 1970:81 ). Relatos como esses possibilitaram Florestan Fernades, em sua monografia clássica A função da guerra entre os Tupinambá (1970), identificar o cauim como um elemento fundamental dentro do ritual de aprisionar:nento dos inimigos, procedimento que perpassa a dinâmica da sociedade Tupinambá. Mostra o autor considerado "fundador" da tupinologia (e, em certa medida, de grande parte dos estudos brasileiros em etnologia indígena), que não existe antropofagia sem festa, tampouco festa sem cauim. O cauim, figura ambígua e onipresente, é sobretudo o fator motivador da festa, tornando coeso o grupo e

salientando a relação- de vingança- entre o guerreiro Tupinambá e o inimigo sobrepujado. A cauinagem que antecede o assassínio do cativo é pois apresentada como uma celebração da sociedade como um todo frente a seus inimigos. Malvista pelos cronistas, perplexos com a selvageria, a inconstância e o comportamento anárquico e pecaminoso dos nativos das terras brasileiras, a cauinagem pode ser contemplada como simples bebedeira jogada ao acaso somente se subtraída sua substância primordial. Tratase, como anuncia Françoise Grenand, tupinóloga moderna, de uma bebedeira programada e desejada, logo dotada de uma lógica própria. " O fenômeno deve ser visto mais como uma euforia socialmente compartilhada que como uma profunda embriaguez. (. .. ) Se é que há embriaguez, esta é alegre, animada e comunicativa, e não solitária, triste ou mesquinha" (Grenand, 1996:342, trad. minha). No mais, a cauinagem revela-se um momento por excelência de efervescência social. Ao contrário do que dizia Baudelaire (idem) sobre o vinho- "meio de multiplicação da individualidade" - , tal bebedeira não busca a ascensão do indivíduo, mas antes a faculdade de comunicação entre pessoas, planos cósmicos e entidades étnicas . Anuncia-se, por isso, uma bebedeira ontologicamente comunicativa. A tópica tupinambá da cauinagem como momento-ápice da celebração coletiva reincide sobre os povos norte-amazônicos- dentre eles Wayana, Aparai , e Waiwai , falantes de línguas carib; e Waiãpi, falantes de uma língua tupi-guarani-, atu121


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almente os maiores produtores e consumidores da bebida. Entre eles, costuma-se chamar a cerveja de caxiri, casili ou caxixi, termos de origem a rawa k difundidos por toda a região. Outros povos TupiGuarani, tais como os Juruna e os Araweté, situado s no Alto Xingu e no estado do Pará respectivamente, são igualmente produtores e co nsumidores de "mãos cheias". As guerras, qu e preenchiam a vida social tupinambá, acabaram, assim como a prática antropofágica. No entanto, filosoficamente, permanecem alguns temas que fazem pensar sobre a rela ção destas sociedades com o mundo exterior, representado ora pe la presença de outros índios ou mesmo grupos de " branco s", ora pela conce itualização de um mundo propriamente sobrenatural. É então que pod e mos encontrar subjacente a essa "paixão" pelo cauim ou caxiri e suas festas-chave para adentrar as concepções que estas sociedades têm sobre o mundo que habitam a diferença e a convivência em sociedade. O cauim

A manufatura da cerveja é trabalho exclusivo das mulheres, responsáveis pela agricultura e seus produtos4. Os Waiãpi, por exemplo, adoram repetir que

3 Para evitar a confusão de termos, empregarei neste artigo o termo cauim como alternativa às diversas nominações deste fermentado de mandioca. 4 O ca uim é fei to a partir da mandi oca ama rga, tubérculo verd adeiramente nutriti vo e que co nstitui a dieta básica das soc iedades amazônicas. Com a mandi oca, além de cervej as de diferentes tipos, pode-se obter, entre outra s co isas, o pão cotidia no, o mingau matinal (a goma do tacacá, servido com peixe), o tucupi e diferentes mo lh os de acornpan harnento.

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. mostra Tânia Lima (1995) mostra queoocauim cauimrequer requercuidados cu idados que rituais(do (docontrário contráriopode podesigsigrituais nificar um um perigo): perigo):assegurar assegurar nificar umaboa boafermentação, fermentação, impeimpeuma dirque queele eleaplique aplique sua suaforça força dir sobre oo coração coração dos dos consuco nsusobre osfilhos filhosda da midores, proteger protegeros midores, produtora, caracterizando ca racterizand o aa produtora, relação entre entre ela ela ee oo cauim relação cauim como maternal. maternal. como 5

suas plantas p ntas possuem possuem oo corpo corpo de mulheres. mu eres.-AsAssuas sim, contam contam os os seus seus mitos mitos (Grenand, (Grenand, 1982) 1982) que que aa sim, primeira cerveja cerveja foi foi aquela aquela proveniente proveniente do do pus pus saísaíprimeira do do do furúnculo furúnculo da da mãe mãe da da esposa esposa de de um um indivíduo. indivíduo. do carne feminina feminina éé pois pois metamorfoseada metamorfoseada em em carne carne AA carne tubérculo, e, e, tal tal como como oo pus, pus, éé venenosa, venenosa, necesnecesde tubérculo, de sitandopois poisser serpurificada purificadaantes antesda dasua sua ingestão. ingestão. DesDessitando ta forma, forma, oo tratamento tratamento dado dado aa esta esta ""carne" deve ta c a r n e " deve apropriar-se de de um um procedimento procedimento cultural, cultural, que que éérereapropriar-se presentado presentado pela pela técnica técnica de de fermentação, fermentação, desenvoldesenvolvida vida pelo pelo savoir savoir faire faire feminino. feminino. ÉÉportanto portanto aa saliva saliva advinda advindada da mastigação mastigaçãodas das mulheres mulheresooelemento elemento que que permite permite esta esta transformação. transformação. 5 5

de se se situar situar aa produção produção ee oo consumo consumo do do HHá á de cauim dentro dentro da da lógica lógica culinária culinária das das sociedades sociedades cauim em questão. questão. Lévi-Strauss Lévi-Strauss já já apontava apontava nas nas Mitológiem Mitológicas (1991) (1991) que que aa fronteira fronteira entre entre natureza natureza ee cultura cultura cas passa pelas pelas três três categorias categorias culinárias culinárias elementares elementarespassa cru, cozido cozido ee podre. podre. Interessante Interessante notar notar que, que, ao ao rerecru, ferir-se aos ac;>s Tupi, Tupi, oo autor autor aponta aponta como como oposição oposição ferir-se básica (derivada (derivada do do par par natureza/cultura) natureza/cultura) não não oo par par básica cru/cozido, mas mas oo par par cru/podre. cru/podre. Tendo Tendo oo cauim cru/cozido, cauim como uma uma figura figura eminentemente eminentemente Tupi, Tupi , difundida difundida como para os os "vizinhos" "vizinhos" amazônicos amazônicos Carib Carib ee Arawak, Arawak, é, é, para pois, possível possível traçar traçar um um paralelo. paralelo. pois, cauim, dentro dentro deste deste arcabouço arcabouço lógico, lógico, está está sisiOO cauim, tuado aa meio meio caminho caminho entre entre aafermentação fermentação eeaa putreputretuado

fação. Sua Sua preparação preparação consiste consiste não não por por menos menos em em fação. três estágios, estágios, durante durante três três longos longos dias dias de de fabricação: fabricação: três fermentação, amadurecimento amadurecimento (ou (ou amolecimento) amolecimento) ee fermentação, azedamento (ou (ou apodrecimento). apodrecimento). Tal Tal procedimento procedimento azedamente corresponde (e (e representa) representa) àà transformação transformação da da natunatucorresponde re:m em em cultura, cultura, do do ser ser individual individual em em ser ser social, social, da da reza infância em em vida vida adulta. adulta. Não Não por poracaso, acaso, todos todosos os riturituinfância ais coletivos, coletivos, momentos momentos em em que que se se preza preza aa "passa"passaais gem" de de uma uma ordem ordem àà outra, outra, não não podem podem prescindir prescindir gem" da presença presença do do cauim. cauim. OO exemplo exemplo mais mais claro claro para para da esta constatação constatação são são os os ritos ritos de de puberdade: puberdade: assim assim esta passa por por um um processo processo de de como aa bebida, bebida, oo jovem jovem passa como "fermentação" eesó só aa partir partir daí daí pode pode ser ser reconhecido reconhecido "fermentação" como pessoa pessoa social social propriamente propriamente dita. dita. como Ainda dentro dentro da da lógica lógica culinária culinária (tomando (tomando de de Ainda Lévi-Strauss aa cozinha cozinha como como metáfora) metáfora) destas destas sosoLévi-Strauss ciedades, oo cauim cauim pode pode remeter remeter aa um um horizonte horizonte ciedades, de aquisição aquisição de de imortalidade. imortalidade. Retratado Retratado nos nos mimide tos, ele ele aparece aparece como como aquele aquele capaz capaz de de conferir conferir tos, vida longa longa em em face face da dadura dura realidade realidade da da "vida "v ida brebrevida tópica igualmente igualmente recorrente recorrente entre entre os os povos povos vve", e " , tópica indígenas sul-americanos. sul-americanos. CComo exemplo, podepodeindígenas o m o exemplo, ria apontar, apontar, nas nasMitológicas Mitológicasde deClaude Claude Lévi-Strauss, Lévi-Strauss, ria um mitotukuna mito tukuna (também (tambémtupi) tupi) associando associando oo cauim cauim um bebida da da imortalidade: imortalidade: àà bebida Uma festa festa de depuberdade puberdadeestava estava chegando chegandoao ao fim, fim, Uma mas oo tio tio da da jovem jovem virgem virgem estava estava tão tão bêbedo bêbedo que que mas não podia podia mais mais conduzir conduzir as as cerimônias. cerimônias. Um Um deus deus não forma de de um um tapir. tapir. Levou Levou aa imortal apareceu apareceu sob sob aa forma imortal jovem ee casou-se casou-se com com ela. ela. jovem Muito tempo tempo depois, depois, ela ela voltou voltou àà aldeia aldeia com com Muito seubebê bebêeepediu pediuaos aosparentes parentesque quepreparassem preparassem uma uma seu cerveja especialmente especialmente forte fortepara para aadepilação depilação de de seu seu cerveja irmão mais mais novo. novo. Ela Ela assistiu assistiu àà cerimônia cerimônia em em comirmão companhia do do marido. marido. Ele Ele havia havia trazido trazido um um pouco pouco de de panhia bebida dos dos Imortais Imortais ee deu deu um um gole gole aa cada cada participarticibebida com pante. Quando Quando todos todos ficaram ficaram ébrios, ébrios, partiram partiram com pante. jovem casal casalpara para se se instalarem instalarem na na aldeia aldeia dos dos deudeuoojovem (Nimuendaju apud apud Lévi-Strauss, Lévi-Strauss, 1991). 1991 ). ses (Nimuendaju ses associação do do cauim cauim aa uma uma bebida bebida que que ofere ofere AA associação 123 123


ce imortalidade é recuperada pelos Waiãpi, que se referem ao mel, produto colhido já em estado de fermentação, como o "verdadeiro caxiri", aquele degustado pelos espíritos que povoam a floresta (Grenand, 1996). Mortais como são, os Waiãpi carecem de mediações para efetuar a passagem da natureza à cultura. Devem, neste sentido, produzir sua própria bebida de modo a se distanciar da realidade cotidiana que habitam em direção a um estado mais próximo do mundo sobrenatural da imortalidade. É a atividade ritual -a festa- a instância capaz de colocar em prática este processo de transformação, essa incessante necessidade de transpor o plano das relações empíricas à comunicação com outros planos. Entre os Waiãpi, subsiste a crença de que a preparação da bebida fora, em tempos muito remotos, ensinada por lane-jar ("nosso dono"), herói cultural, sendo esta concebida como legado cultural de uma primeira humanidade. Dominique Gallois (1988) qualifica como momentos rituais aqueles em que se dá a partilha do cosmos entre homens, plantas, animais e seus respectivos "donos" (habitantes do universo); são estes portanto instâncias de comunicação entre universos cósmicos distintos. Segundo suas configurações, os rituais pod.em ser divididos em dois pólos: um mais coletivo, que parte da indiferenciação, e outro mais individualizado, baseado no princípio de diferenciação do mundo humatlo em relação ao sobre-humano. Nos primeiros, predominam as cauinagens; nos últimos, os cantos xamanísticos: enquanto estes assumem uma posição de reserva e de divisão, aqueles são mar-

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cados pelo excesso e pelo aspecto de congregação, tendo como fim o entretenimento. Gallois afirma que as cauinagens (ou festas de caxin) constituem o ponto de partida para a descrição da vida cerimonial dos Waiãpi. Sua relevância remete, segundo a autora, ao significado profundo dos rituais coletivos, que só existem e são concebidos "dentro" do cauim/caxiri: "assim, não há canto sem bebida, nem há dança sem uma prévia absorção de quantidade razoável de mandioca fermentada" (idem: 152). O exemplo dos juruna, outro povo Tupi-Guarani, estudado por Tânia Lima (1995), é também revelador. Para a autora, a cauinagem consiste "na ocasião ideal para perceber o modo singular como a sociedade se relaciona consigo mesma, como que se transformando num laboratório de experiências sociais e políticas que desencadeiam tanto os processos da vida individual e coletiva quanto a emoção estética. Encontra-se aí um mecanismo que liga o presente, por um lado, com um futuro próximo, e, por outro, com o passado, do qual se pretende tirar sentido para as coisas e a vida" (Lima, 1995:408). A

cauinagem

Quando perguntamos aos índios sobre o "sentido" das cauinagens, a resposta parece fugir. A mais recorrente, e a mais minimalista, é também a mais óbvia. "A festa existe é para a gente se divertir", disse-me um Waiãpi. As festas são vistas sobretudo como momento de "euforia": é a própria apologia do estado "ébrio",


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6 " ••• e uma das traduções desta palavra [mana] é: autoridade e riqueza " (Mauss, 1974:102).

o momento dionisíaco das sociedades amazônicas, perfazendo um movimento crescente que, aos poucos, transpõe o cotidiano ao fantástico. As cuias trocadas exprimem "uma regra de rec iprocidade que então se instala entre os bebedores: quem dá cauim a alguém ouve uma exclamação de surpresa, seguida de um Sim! e recebe de volta não a cuia vazia, mas uma transbordando" (Lima, 1995:375). Esta reciprocidade não é pensada somente como generosidade, mas também como bravura; ela é uma modalidade de "vingança", diante da qual se reage também com uma exclamação. Deste modo, "o serviço do cauim consiste em deixar-se embriagar por outrem e embriagar os outros" (Lima, 1995:376-377). Trata-se ao mesmo tempo de um presente e de um veneno: quem não aceitar o cauim corre sérios "riscos". Entre os Waiãpi, por exemplo, a palavra "obrigado" não existe. Esta fala é substituída por um gesto, aquele de oferecer uma grande cuia de cauim. A razão da festa é simplesmente beber o cauim que repousa sob as folhas de bananeira que tampam as canoas. Jamais é permitido dizer "não" a um convite, salvo devido a luto ou doença. Tampouco se nega uma cuia cheia. Conta-se, entre os Waiãpi, que um ancestral fora devoradq por um jaguar por ter ido à caça em vez de ter ido à festa (Grenand, 1996). É neste sentido que Tânia Lima, ao se referir aos Juruna, identifica o cauim a uma "prestação tipo" em termos maussianos, isto é, só existe na medida em que pode ser oferecido para um "outro" . Imediatamente, a autora retoma à idéia de Mareei Mauss de "sistemas de prestações totais" para designar a

festa como espaço da circulação de diferentes signos, podendo ser estes de natureza material ou imaterial. Enquanto tais , as cauinagens são permeadas pelo canto e dança coletivos, pelas fofocas e especulações acerca do comportamento dos membros de outras aldeias, pelas intrigas políticas e geracionais e pelas possibilidades de arranjos matrimoniais. Todos portam adornos, se perfumam e se pintam com urucum e jenipapo. Eclodem ali as questões comunitárias, debatem sobre a distribuição da caça, discutem os projetos de casamento, contam histórias sobre as aventuras dos caçadores, rememoram a vida dos ancestrais, abrem álbuns de fotografias etc. Além disso, são abordados os problemas diplomáticos com os brancos e são produzidos artigos de artesanato para comercializar com os mesmos. O sistema se revela, doravante, um mercado por excelência simbólico fixado sobre um contrato de natureza universal, que, segundo Mauss, define o imperativo da troca- a obrigação de dar e receber, em que a propriedade expressa é concebida como vínculo espiritual, sendo tudo matéria de transmissão e retribuição. A teoria do valor esboçada por Mauss consiste no reconhecimento de que, mediante à festa, as coisas não podem ser tomadas per si, mas dotadas de uma "força", uma certa animação. Por sua vez, o cauim, mise-en-fête, se encontra constituído de um mana, simbolizando " não somente a força mágica de cada ser, mas também a sua honra" 6 (Mauss, 1974:102). Desta forma, na troca, "o doador dá-se ao dar" (idem:129), o que o possibilita "sair de si, dar livre e obrigatoriamente" 125


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(idem, ibidem). A cauinagem integra esta lógica na medida em que reúne pessoas sob o motivo de uma experiência transformadora capaz de produzir como efeito o sentimento de um profundo compartilhar. Trata-se, no mais, de um exercício de "êxtase", semanticamente e etimologicamente, um "ex-sistir" (do latim existire), projetar-se para fora de si mesmo. Durante a cauinagem, o existir, tomado em seu sentido mais pleno, é estar em êxtase: sair do mundo empírico para atingir a plenitude desejada. A cauinagem define-se assim em um campo de reciprocidade, alternando entre as figuras dos convidados e dos anfitriões. Aquele que oferece a casa é referido como o "dono" da bebida (ver Viveiros de Castro, 1986, e Gallois, 1988). É este mesmo "dono" quem convida um cantador e um pajé para que possa efetivar o "serviço" da bebida, que, muitas vezes, marca a volta de uma caçada coletiva ou do final de uma etapa de trabalhos agrícolas. Aí se estabelece uma relação de reciprocidade básica: um oferece a bebida (caxiri-jar, o dono do caxiri), o outro, o canto (moraita-jar, o dono do cantoV. Na maioria dos grupos, o anfitrião e sua esposa não se pintam, nem se enfeitam, são apenas servidores dos convidados, devem sempre servir a cuiá cheia; ao fim da festa, uma porção de carne lhes é dada pelos seus convidados como retribuição. Segundo Viveiros de Castro (1986), a bebida condensa evocações simbólicas: o "dono" do cauim recebe uma posição feminina, não caça, não bebe, não dança - associa-se a fermentação à gestação; sendo o cauim equiparado ao sêmen feminino. 126

A dança e o canto neutralizam as diferenças entre os anfitriões e os "estrangeiros", que provisoriamente deixam de sê-los para participar de uma coletividade única, ou seja, a humanidade na sua troca com as esferas mais distantes do cosmos. Entre os Waiãpi, as orquestras de Turé (flautas) 8 , bastante recorrentes nas cauinagens, caracterizam-se pela indiferenciação de todos os dançarinos, concretizando-se como veículo de comunicação entre lane-jar, "nosso dono", e o mundo humano. O sentido ritual destas orquestras é o de promover a separação entre as categorias de vivos e mortos, mantendo a distância necessária entre terra e céu, dado que o último pode estar prestes a desabar. Uma vez, para os Waiãpi, o universo concebido como fragmentado, cabe a estes rituais a conjunção das dimensões separadas e a recuperação do estado coletivo 9 • Manter os espaços afastados, delimitando o terreno da humanidade, é um exercício de recuperação da comunicação entre os homens. "É preciso fazer barulho para ser ouvido, é preciso ainda apagar as diferenças entre todos os participantes do ritual nesse sentido, a dança com os fios de algodão envolvendo a todos os participantes é a mais clara representação da indiferenciação da sociedade dos vivos" (Gallois, 1988:164). A dança ritual dá lugar à celebração das diferenças, transpostas em termos de afinidade efetiva ou virtual. Em outras palavras, o paradigma que impera é o da aliança; mesmo que improvável, é assumido como valor. "Os homens, assim, preservam um pequeno núcleo de relações de consangüinidade e afinidade e transformam o conjunto mais abrangente

7 Em minha experiência de campo, pude presenciar este tipo de reciprocidade. Na aldeia do Yawapa (Tro is Sauts, alto O iapoque, Guiana Francesa), o cac ique, dono do cauim, convidou os parentes do Amapari (Amapá, Brasil) para dançar e cantar em troca de uma enorme canoa contendo a bebida. Desta divisão de propriedades, da bebida e do canto, pôde desenrolar a festa. 8 Outros in strumentos também recorrentes nessas festas são os choca Ihos (maracá), as tornozeleiras-chocalho e as buzinas de embaúba.


O significado da embriaguez

9 O Tu ré, ao contrário do canto solitário, emanação da pessoa q_ ue representa a divisão entre domínios sociais e cósmicos, consiste em " uma manifestação da human idade representada em sua totalidade" (Gallois, 1988:152).

em posições de alteridade, onde tudo se passa como se um fosse índio para o outro, índio-amigo" (Lima, 1995:391 ). Tudo se converte em motivos de brincadeira, a própria noção de "afinidade virtual" resulta desta postura de tomar as relações em seu sentido metafórico. Por alguns instantes, é como se o mundo estivesse todo em contato. A noite festiva culmina em uma sobreexcitação generalizada, uma exaltação comunicativa compartilhada, exprimindo "a alegria de estarmos lá todos juntos" (Grenand, 1996:342). "Tudo isso faz da festa de caxiri uma afirmação do triunfo do estado de cultura ao estado de natureza, triunfo muito conscientemente vivido como tal: é assim que os Waiãpi querem dizer" (idem:343).

Semelhantemente, Viveiros de Castro (1992) define o cauim (denominação araweté) como " uma bebida carregada de significados" e sua festa, a cauinagem, um veículo poderoso de símbolos. " Sêmem estéril, veneno suave, leite azedo, o cauim é uma bebida ambígua e sobredeterminada. Ele é um 'antialimento' em termos lévi-strau ssianos : em vez de nutrir dá fome, ingerido, deve ser vomitado" (Viveiros de Castro, 1986:346). Diz a cosmogonia araweté que foi durante uma cauinagem que, mediante xamanismo, os homens foram transformados em animais. Assim, eviden 127


caçada cerimonial- análoga à guerra-, tendo que o "cantador do cauim" é também o líder da caçada -análogo à figura do guerreiro-matador. O fato de o cativo, entre os antigos Tupinambá, ser devorado após uma cauinagem sugere, assim, um "horizonte canibal guerreiro" para o cauim alcóolico Araweté. Remontando as referências dos Tupinambá, o autor identifica a cauinagem à comemoração pela morte de um guerreiro inimigo. Não por acaso, a caçada cerimonial que prenuncia toda cauinagem entre os Araweté atuais ocupa o lugar da expedição guerreira Tupinambá. Para levar adiante este paralelo, o autor aponta o fato de que os Araweté possuem um mesmo termo (ka'i nãhi) para " inimigo" e "tempero do cauim", fazendo-nos crer que a ingestão desta bebida recupera, de certa forma, a prática antropofágica. De forma similar, a cauinagem juruna é apresentada por Tânia Lima como uma antropofagia em termos de "comer a posição do inimigo" (Viveiros de Castro apud Lima, 1995:358). Desta forma, o cauim é entendido, entre os Juruna assim como entre os Araweté, como "pessoa", cuja devoração é posta como fundamento da sociabilidade. A cauinagem revela-se, de tal modo, palco para uma disputa entre "matadores" em um sentido figurado, servindo como resgate de uma antropofagia "perdida". Viveiros de Castro demonstra, em um outro trabalho (1992), como a cauinagem mantém relações estreitas com o motivo do canibalismo.


Para ele, ele,assim assimcomo como oocanibalismo, canibalismo, aacauinagem cauinagem Para comandada por por um um princípio principio atenuado atenuadode devinvinéé comandada gança -- àa rede rede de de dívidas dívidas rituais rituais -- ee tem tem igualigualgança m e n t e como c o m o horizonte h o r i z o n t e aa produção p r o d u ç ã o de d e uma urna mente memoria (bebe-se (bebe-separa para não não esquecer), esquecer),memória memoria memória q u e j i ã o se se confunde confunde com c o m oo passado, passado, mas mas que que que..:_nãó produz um um futuro futuro por por meio meio da dapromessa promessade dereal realiproduz ização de denovas novasvinganças vingançaseenovas novasfestas festascapazes capazes zação de (re)articular (re)articular aarelação relaçãoentre entreanfitriões anfitriões eeestranestrande geiros, r~(ação relaçãoque que reenvia reenviaaaoutra outra mais mais elemenelemengeiros; tar, que que ééaquela aquela entre entre oo matador-guerreiro matador-guerreiro eeseu seu tar,· "&np^>,oo inimigo-cativo. ¡nimigo-cativo. ' \ /.-/ \:;' } A\auinagem figura-se figura-se então entãocomo como oo lugar lugar pripri-;c /'/~~/ _., A_'fauinagem e x e c u ç ã o , ritual ritualmente falando, de de J / vivilegiado leg dQ._9da a execução, mente falando, princípios fundantes do do pensamento pensamento das dassociedasocieda, prin pias fundantes des/amazônicas, em especial, especial,aquelas aquelas de de língua língua , mazônicas, em / tupi-guaraní. Emprimeiro primeiro lugar, lugar,ao aopropor propor um ummomouarani. Em y ímento m e n t o de de aproximação aproximação fusional fusionai eede de introjeção introjeção • das diferenças, diferenças, aa festa festa torna torna evidente evidente oo processo processo das i n c e s s a n t e de d e troca troca entre entre interior interior ee exterior. exterior, incessahte ,.,..,_..,~::a.!!lõoo.b í s t a,.,r: m -õ;c:·s·~rliante d i a n t e de desociedades sociedadesque que se serealizam realizam sosomente·fia. narelação relaçãocom com oo outro, outro, isso isso implica implica novanovamente aa·ênfase ênfase na na "saída "saída de d e si", s i " , no no "êxtase" "êxtase" mente antropofágico. Droga Droga da da insconstância, insconstância, oo cauim cauim anti-opofágico. existe ·ppara reafirmar aa incompletude incompletude ontológica ontológica existe ara: reafirmar experimentada na na vida vida terrena, terrena, apontando apontando os oscaca· experimentada minhosda datransformação transformação aaque quetodos todosos osseus seus"con"conminhos sumidores" estão estão subordinados. subordinados. sumidor{_;s" O caúim cauim apresenta-se apresenta-seentão então como c o m o porta porta para para ~ o. adentrar uma uma filosofia filosofia que que difere difere fundamentalfundamental. . aden~r

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mente da da nossa: nossa: longe longe de de afirmar afirmar uma uma identidaidentidamente de bem bem definida definida ee constante, constante, cultiva-se cultiva-se como como de ideal aa transformação transformação contínua contínua do do sisi mesmo mesmo aa ideal partir do do outro. outro. AA passagem passagemda da natureza natureza ààcultucultupartir que oo cauim cauim enuncia enuncia éé fugaz, fugaz, por por isso isso este este rara que está mais mais próximo próximo da da categoria categoria do do "podre" " p o d r e " que que está da de de ""cozido". c o z i d o " . Não N ã ocorresponde corresponde aa uma uma categocategoda ria estável, estável, mas mas sim sim aa uma uma cambiante cambiante ee inconsinconsria tante - - que que incorpora incorpora ao ao invés invés de de opor opor -, - , não não tante chegando aa concluir concluir suas suas operações, operações, permanepermanechegando cendo então então aberto aberto para para captação captaçãode de novos novoseleelecendo mentos do do mundo mundo exterior. exterior. mentos cauinagem coloca coloca em em campo campo este este ideal ideal de de AA cauinagem tecendoodes odesààembriaguez, embriaguez,essa essaarte arte incompletude,tecendo incompletude, da inconstância. inconstância. Ao A o contrário contrário dos dos versos versosde de Walt Walt da Withman - - celebro celebro aa mim mim mesmo/e mesmo/e canto canto aa mim mim Withman mesmo - , não nãoééaasisimesmo mesmoaaque quese sedestina destinaoocancanmesmo-, to; pelo pelo contrário, contrário, oo que que está estáem em jogo jogo éé aa própria própria to; comunicação,oosair sairde desisipara paracelebrar celebraraaalteridade. alteridade. comunicação, Como conclui conclui Tânia TâniaLima, Lima,""a cauinagem não nãoééum um Como a cauinagem ritual da da negação negaçãoda da sociedade sociedadepor por ela ela mesma. mesma. É É ritual um ritual ritual que que produz produz ee celebra celebra aa forma forma mais mais dedeum senvolvidada dasociabilidadesociabilidade - aaAlegria-, Alegria - , uma umaforforsenvolvida ma de de relação relação que que somente somente os os Outros Outros (por (por sua sua ma diferença, sua suadistância distância relativa) relativa) permitem permitem desfrudesfrudiferença, tar com c o m plenitude" plenitude" (1995:421 (1995:421). Nestesentido, sentido, aos aos tar ). Neste olhosOcidentais, Ocidentais,esta estafestafesta-tipicamente ameríndia olhos tipicamente ameríndia pletora de de dessemelhanças, dessemelhanças,permanecerá permanecerá junto junto -,- , pletora ao tema tema do do excesso excesso de de afeto afeto ee da da superação superação das das ao mesmices da da vida vida social. social. mesmices

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Receita de um caxirí doméstico: palakasi ãtã (Waiãpi. Guiana Francesa)** Eliminação do veneno 1. Descasque, lave e rale uma cesta de tubérculos de mandioca amarga (em torno de 40 kg). 2 . Lave uma parte desta massa em águas claras e passea em uma peneira de malha bem apertada {ulupe anã) a fim de extrair a goma (tepVo). Reserve esta última para um outro uso (sopa matinal, por exemplo). 3 . Torça cuidadosamente a massa ralada de forma a fazer um filão grosso de mandioca (tepisi). Coloque em fôrma apropriada. Espere de quinze a vinte minutos até que escoe toda a água. ' • 4 . Tire o filão da forma cuidadosamente. Ele deve estar com a aparência de um pão de farinha seca e c o m p r i m i d a . C o l o q u e - o d e l i c a d a m e n t e em u m a cesta (panãku). U m a das qualidades reconhecidas para merecer o título de excelente ménagère waiãpi consiste justamente em saber tirar da fôrma o seu pão de farinha sem quebrá-lo, o que pressupõe gestos de uma ternura quase maternal.

Cozimento da massa 5 . Pré-aqueça a platina (yãpe) com fogo médio. Outrora confeccionada em cotombin e cozida em "fogo perdido"*** como todas as outras cerâmicas, este tipo de assadeira, mesmo com um diâmetro reduzido a 50 em, era muito frágil. Ela foi, quase em todas as aldeias, substituída por uma placa de ferro fundido de mais de um metro de diâmetro, aumentando a quantidade de massa a ser cozida. 6 . Durante este tempo, quebre o pão de farinha (piíatí) com a mão e esfarele-o em uma peneira frouxa (ulupe alakaka). Ficará como uma farinha. Coloque-a em uma cesta {panakalíj ou bacia. 7. Verifique o grau de aquecimento da platina derramanI do, de uma só vez, um punhado de farinha. Ela deve se aglomerar sem queimar. Repita duas ou três vezes a operação. Reserve estes crepes finos para o fermento. 8 . Deposite, com as mãos em fonte, a farinha sobre a platina. Espalhe-a com a palma da mão, fazendo grandes gestos circulares até obter um círculo perfeito, deixando uma camada espessa de dois ou três centímetros. 130 130

Submeta a borda a batidas leves. Deixe cozer sem grelhar. Notaremos que o cozimento se faz sem a adição de sal ou de água. 9 . Durante este tempo, mastigue longamente as pequenas porções de cassava (os pequenos crepes). Estas porções devem ser cuspidas em uma canoa específica (kwi). Não cuspa a massa em uma canoa antes que esteja bem embebida de saliva e já contenha um sabor adocicado. 10. Descole a massa da platina, mudando o lado do cozimento. 11. Deixe cozer a segunda face. Separe os gravetos para baixar o fogo. Conte dez minutos de cozimento para a primeira face, um pouco menos para a segunda. Ao final, faça escorregar a massa sobre uma esteira (mitu) prevista para este uso sobre o solo da casa de cozinha.

Fermentação

•••••

12. Ainda quente, despedace a massa em grandes pedaços e coloque em uma bacia com água até a metade. 13. Prepare o fermento: às bolotas de cassava mastigada acrescente duas batatas doces (yeti) raladas cruas e não d e s c a s c a d a s . Misture. Deposite na b a c i a e soque longamente com ajuda de uma grande espátula de madeira. Cubra e deixe de molho por uma noite. 14. Na manhã seguinte, com ajuda de uma canoa, escoe o cozido espesso através de uma peneira de malha serrada, colocando o conteúdo em uma outra bacia. Pressione fortemente até sair o suco. Acrescente água de maneira a substituir o volume do suco extraído, que será jogado no rio. Cubra e deixe fermentar até o fim da tarde. A cerveja obtida, em torno de trinta litros, deve ser límpida, de cor bege claro e de uma amargura bastante discreta. . 15. À noite, espere que os homens da casa voltem de suas ocupações, que depositem seu pequeno banco na sombra, avançando sobre a soleira e que comecem a conversar. Ofereça então algumas cuias de cerveja a cada um. Eventualmente, ofereça uma ou duas às pessoas da casa vizinha. Jamais deixe sobrar cerveja para o dia seguinte.

** Adaptado de Crenand, Françoise, 1996. *** O fogo perdido é constituído de um amontoado de cascas e de pequenos pedaços de madeira em torno de cerâmicas cruas, às quais se coloca o fogo. O material é destruído pela combustão.


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'Renato Sztutman é membro do corpo editorial da Sexta Feira. Ilustração de Domênico Lancelotti e ZoyAnastassakis?


Oficina de festa: o evoé de Zé Celso bem-aventurado, é feliz quem por uma sorte do destino inicia-se nos mistérios divinos, a ávida vira santa, a alma vira corpo, bacando nos morros; epratica

Sentados no tapete vermelho do Teatro Oficina, temos à frente a cabeleira branca em contraluz, a voz serena dos sábios em meio aos gestos ansiosos e imprecisos dos meninos. José Celso Martinez Corrêa acende antigas fogueiras e evoca deuses, divas, dádivas de suas palavras, bacando no canto...


rJradas ações, noite e dia, e celebra a orgia, à grande mãe Cacilda e a Dionisius se entrega, coroa a cabeça de Hera. Um tiço levando na mão: "bachara" bacant~

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Eurípedes transcreveu uma espécie de evangelho de Dionisius. A Grécia estava decadente, entrando numa fase mais positivista, digamos assim, abandonando seus deuses, a sua mistura de tudo com tudo. Restavam alguns terreiros (eu digo terreiros, deve ter outro nome...), lugares onde se praticava o rito de origem. Ele era vizinho de um terreiro de bacantes velhas, que já estavam decadentes. O evangelho de Dionisius tem 25 cantos, e o estraçalhamento de Penteu, Dionisius se vestindo de mulher, seduzindo Penteu, enrabando Penteu, como uma árvore, uma árvore imensa e, através disso, as bacantes percebendo Penteu, estraçalhando, comendo a carne dele, esse é o mito da origem do teatro. O teatro de agora, diluído nos séculos, continuou sendo sempre o teste por que passa o ator, é quase um teste de estraçalhamento mesmo, de descabaçamento. Para fazer bem uma peça, o ator precisa passar por uma morte iniciática, para atingir a ressurreição, esmagada como a uva, fermentada, apodrecida. A essência do mito, e do rito, e do teatro, está nas bacantes. Hoje, o teatro é uma coisa extremamente apagada, é uma arte que não teve sua epifania muito clara, principalmente agora, nessa sociedade neoliberal. O teatro brasileiro, há vinte, trinta anos, foi. esmagado por um ato militar porque ele começou a ficar muito poderoso ... Roda viva, em 68, era uma festa dionisíaca; o coro era extremamente importante e também estraçalhava seu ídolo e comia o seu fígado, já prenunciando As bacantes [montagem de 1997]. Essa peça provocou um tumulto, uma afluência de multidões ao teatro e, nesse momento, ele mudou de lado. O maior orgulho que eu tenho com As bacantes é que, mesmo com suas milhares de imperfeições, nós conseguimos recriar o rito. Mas não conseguimos cortar a cabeça de Penteu - a gente não tem uma festa bancada, como era pelos Penteus na Grécia, pelos poderosos, que bancavam as orgias, as festas. É um rito público, é um rito de multidões, por isso ele funcionou demais em Salvador, pois é uma cidade entendida em ritos. O Rio de Janeiro também é entendido de ritos, de carnaval. Pode-se dizer que o Rio é Dionisius, a cidade mais dionisíaca do mundo. O primeiro Carnaval que apareceu, o primeiro recamava/, foi no Rio. O evoé era o grito carnavalesco do Rio, no começo desse século. E aí você tinha o teatro brasileiro inexplicavelmente fora desse ritual. 133


Roda viva é muito importante porque o teatro começou a se aproximar das festas orgiásticas, 'do futebol, do Carnaval, de toda essa coisa em que o Brasil é muito rico: da dança, do passe, do toque, do passe de centro espírita, do contato físico com o público, que se transforma em participante da festa. O contato físico do ator com o público é o que mais escandaliza hoje, e essa barreira foi vencida em Roda viva. No mundo inteiro, havia ur:na descoberta mu rto grande do corpo, da festa orgiástica, tanto que a revolução de 68 em Paris, ou mesmo a Revolução Vermelha na China - com todas as injustiças que ela possa ter trazido -, foram grandes festas, a redescoberta de um lugar totalmente desterritorializado, onde se tiram as máscaras e as divisões, e se festeja o presente. Mas não era só Roda viva, havia outras manifestações, as assembléias da classe teatral, em que a Cacilda Becker era o grande totem .. . Tanto que a gente diz nas Bacantes "o ritual da grande mãe Cacilda", como se ela fosse a Semélis. A Cacilda é a origem do rito do teatro brasileiro contemporâneo, Semélis é a mortal que trepa com Zeus e que tem um filho que é o deus do teatro: é a Nossa Senhora que pari realmente. Não existe teatro se não tem a mulher, mãe e amante. A Vera Fischer, por exemplo, é evidentemente uma pré-deusa do teatro, mas aprisionada numa engrenagem. Na verdade, a cura da Vera Fischer seria sua entrega total à personagem que desse passagem a toda carga de libido de mãe e amante do teatro. A Cacilda é uma deusa que deve ser replantada, deve ser comida.


O Brasil é a devoração do bispo Sardinha, e isso é fundamental para entender a festa no Brasil. As festas no teatro começaram principalmente com Oswald de Andrade e a Antropofagia; com o Rei da vela, sem dúvida alguma. A grande antena, assim, festeira mesmo, na minha consciência, na minha experiência, foi Oswald. Ele entendeu o Carnaval como religião da raça e que pede o teatro de estádio, a emoção do povo, como na Grécia, que se vê no rito dos índios, na Antropofagia, uma sinalização absolutamente avançada e requintada. Foi Oswald quem me liberou a festa, me liberou a Rádio Nacional, o pop, o índio, o negro. Eu deixei de ser paulista e passei a ser Paulicéia Desvairada! Os baianos se orgulham tanto de ser baianos, os pernambucanos se orgulham tanto, e eu não me orgulho de ser paulista, eu detesto paulista! Aí um poeta de Pernambuco disse: "mas é a Paulicéia Desvairada, você é da Paulicéia, não é paulista!". Eu acho que paulista é o agente da globalização, do imperialismo, que se estende pelo Brasil todo, é o bandeirante, o predador, o antifesteiro, o corta-barato. No Natal, no Ano Novo, vai todo mundo embora; quando tem Carnaval, vai todo mundo embora, a cidade não se entrega à festa. Mas foi em São Paulo que nasceu o modernismo. E tem o futebol, com aquelas ondas orgiásticas que existem na cidade: "Ah, eu tô maluco!". Este lugar, o Teatro Oficina, foi incendiado e reconstruído para fazer O rei da vela, que pediu todo o espaço, pede mais ainda: que seja derrubada essa parede que dá para o estádio do Sílvio Santos, para essa ser uma rua de passagem, para se fazer festas de multidão.

Eu fiquei supercontente quando li o Caetano, achei o livro maravilhoso. Acho que os paulistas estão fazendo uma patrulha barra em cima do livro, não conseguem compreender a generosidade do que o Caetano está fazendo. O paulista é edipiano. Oswald de Andrade foi quem mais me influenciou, e, não tenho nenhum conflito de ser comido inteiramente por ele e comê-lo inteiramente, como ícone. Isso é muito difícil de um paulista entender, ele não admite que se possa entrar inteiramente no transe e que o transe seja inteligente, tem terror ao transe. Ele é o Penteu, paulista é o Penteu! O livro do Caetano é uma tentativa de leitura do mundo, aliás, uma verdade. Existe uma palavra chamada verdade e ela pode até ser uma mentira, não importa, mas existe. Dizem por exemplo que o tropicalismo está no poder, que nada! Você vê que o Caetano é um baiano de Santo Amaro, de pele mais escura, um brasileiro que varou por uma disciplina maravilhosa, tem um talento extraordinário e alcançou uma posição de poder. Quando os paulistas o combatem, você vê que é uma cabeça branca, colonizada, que não consegue compreender essa coisa que vem comendo, comendo, comendo, comendo, comendo e chega a essa posição de poder.


'·~

j ,..., , ' Olha, a pior coisa proibida pelo jânio Quadros foi o lança-perfume. Vocês não sabem o êxtase que era as pessoas no Carnaval espirrando umas nas outras, para namorar... às vezes por maldade jogavam nos olhos, nas bocetas das meninas, e o cheiro que aquilo deixava no ar, no lenço, os bailes todos ... Artaud tem uma peça dizendo assim: "quando vocês tiverem desfeito um corpo sem órgãos, vocês vão ter livrado o homem de todos os seus automatismos, e terão lhe devolvido a verdadeira e imortal liberdade, aí vão poder lhe reensinar a dançar pelo avesso como na loucura dos bailes de rua, e esse avesso é o seu verdadeiro eu". Ele também via a· verdade do eu no avesso, na energia que tem o baile de rua. No Recife tem uma dança nova em que se faz uma roda superacelerada, e uma pessoa vai e atira o corpo sobre a outra e puxa a outra para dançar, violento mesmo, e você não pode parar de dançar e aquilo vai indo numa velocidade e vai criando uma dinâmica que você vira do avesso mesmo! Cria um sentido de liberdade, de corpo sem órgãos, acaba ego, acaba tudo e vem uma força que você não sabe de onde. É preciso festejar, aniversário, Natal, Ano Novo, festa que você goste, que você não goste, tudo tem que ser pretexto; cada dia você tem que inventar um jeito para celebrar e entrar em contato com o corpo sem órgãos.


Entrevista realizada pe la Editoria. Fntr\or~ti ~< de Carlos Vianna.

A rejeição a Oswald de Andrade na USP é um problema gravíssimo. Ele tem duas teses maravilhosas: A crise da filosofia messiânica e A marcha das utopias... A filosofia brasileira, para mim, taí. E ele não é estudado, não é levado a sério, foi reprovado na USP. Acho que deveria haver um reestudo da obra do Oswald porque, não só nas teses como nos poemas, há uma sabedoria que eu acho que é fundamental numa Universidade. O paulista consegue que na sua Universidade não se estude Oswald de Andrade. É como se na Inglaterra você não estudasse Shakespeare! As peças do Oswald são fantásticas, ele consegue fazer a festa, faz dançar tudo. Oswald é muito parecido com o Chico Science. Hoje ele estaria comendo a Internet, a tecnologia toda, estaria tocando festa em tudo, porque falava muito do bárbaro tecnizado. Ele achava importantíssimo acentuar o que tivesse de bárbaro nos povos, de apaixonado, como a sua sabedoria- isso que o paulista recusa. A Folha de S. Paulo, por exemplo, é um jornal respeitado, mas não é um jornal apaixonante, e poderia ser. Existe o terror da paixão. E o Oswald quer as grandes paixões, essas paixões tecnizadas, para fazer tudo festejar. A cultura do tropicalismo leva a esse caminho, esse é o caminho, o caminho da festa, sei lá, é um comunismo festei ro, uma festa comunista positiva, bárbara, que é a utopia necessária, única e possível de sobrevivência do mundo hoje. Não vejo como uma coisa distante, remota. Eu acho que praticamente a maior parte das pessoas sobrevive porque consegue festejar um pouquinho. 137


FESTA NO SÍTIO ·lpe de sexta feira equ d "d I encontra o elo per I o . desenho paro colorir

por Guio Lacaz

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FESTA NO SÍTIO equipe de sexta fei.ra I encontra o elo perd•do. modelo

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P l e t o r a ( ó ) . [Do gr. P l e t h ó r a , q u a n t i d a d e ' . ] S.f. 1. Patol.

'grande

Congestão

generalizada; aumento do volume sangüíneo, que provoca distensão anormal dos vasos. 2. Fig. Indisposição ou mal-estar de quem tem excesso

de

vida,

de

atividade.

3.

Superabundância qualquer, que produz efeito nocivo. 4. Fig. Superabundância, exuberância.



Entre o arca1co e o pós-moderno heronços barrocos e o cultura do festo no construção do identidade brasileiro Maria Lúcia Montes' 142


Ainda na década de 20, fascinado pelo modo como uma categoria estética como o barroco pode desdobrar- se numa infinidade de projeções , inclusive para além do mundo das artes, escrevia um ensaísta espanhol:

Sempre que encontramos reunidas num só gesto várias intenções contraditórias, o resultado estilístico pertence à categoria do Barroco. O espírito barroco, para dizê-lo vulgarmente e de uma vez por todas, não sabe o que quer. Quer, ao mesmo tempo, o pró e o contra. Quer - e eis aqui estas colunas cuja estrutura é um paradoxo patético- gravitar e voar. Quer - recordo-me de certo anjito numa certa grade de uma certa capela de certa igreja de Salamanca - levantar o braço e baixar a mão. Afasta-se e acerca-se em espiral. Ri-se das exigências do princípio de não contradição (O'Ors, s/d :25) E, em outro ensaio, como a precisar o significado de definição tão ampla, acrescentaria: . . . Oported haereses esse. A exceção, a aventura, a evasão, são indispensáveis com a plenitude de suas possibilidades, com a sua ri-

queza . Convém que, assim como Anteu no

contacto com a do em quando vivas e turvas história (D'Ors,

terra, a Cultura venha de quanrefrescar-se nas águas vivas do barroco Carnaval, férias da s/d:113).

Ao reunir sob a mesma designação do barroco o mundo mais erudito da arte sacra e a mais profana e orgiástica celebração popular do Carnaval, Eugenio D' Ors nos oferece uma importante chave de leitura para se entender porque, quando se enfrenta o desafio de mergulhar fundo nas matrizes da cultura brasileira, seja necessário retornar ainda uma vez ao tema clássico de nossas heranças barrocas para explorar a riqueza e a multiplicidade dos seus significados, que, ao longo da história, se sedimentaram na construção do que somos, definindo os múltiplos e ambíguos contornos da construção de nossa identidade. Na verdade, para quem, longe do olhar do crítico ou do historiador da arte, se acerca do fenômeno artístico no interior da História da cultura no Brasil, mais do que como um estilo de arte, o barroco se impõe como um fato de civilização . Para além das periodizações canônicas que o confinam em limites temporais razoavelmente determinados, ao mesmo tempo em que insistem 143


sobre suas variantes de época, locais e sociais distinguindo assim as nuanças maneiristas ou rococós daquelas herdadas de um certo naturalismo clássico, uma arte fundada no realismo político daquela que retoma o espírito da cavalaria romântica, um barroco das cortes católicas daquele da burguesia protestante (Hauser, 1954) -, o que a designação de barroco assinala talvez seja, antes de tudo, uma forma de sensibilidade e uma visão de mundo que, no caso brasileiro, conformam, na longa duração da História, o ethos de uma cultura desde os primórdios da nossa formação. Para um antropólogo ou historiador das mentalidades, a revelação desta extraordinária continuidade viria com a descoberta de que uma verdadeira cultura da festa, barroca em suas matrizes, impregna em profundidade o fazer e o sentir brasileiro, visível ainda, longe dos cânones eruditos da arte contemporânea dos museus, nas formas da chamada cultura popular. Lugar de con144

fluência da vida social, ou, no dizer de Burckhardt,

"momento solene da existência de um povo, onde um ideal moral, religioso e poético ganha forma visível", a festa, "transição da vida comum para a arte" (Burckhardt, 1958), torna-se assim índice privilegiado de mentalidade e estilo de vida, permitindo-nos explorar o significado da marca barroca que, como herança ela carrega e a que ela permite ainda manifestar-se, forma viva de cultura e não simples sobrevivência, no mundo contemporâneo. Ao lado destas, há que lembrar ainda os ciclos de festas sazonais que se desdobram em variações regionais aparentemente infinitas, como nas festas do ciclo junino - o indefectível mastro dos três padroeiros, foguetório e fogueira, o quentão, a pipoca, a batata e o milho verde assado em toda parte, mas também o Bumba-rrieu-boi que exibe a riqueza dos seus sotaques em São Luís do Maranhão e se transubstancia em puro imaginário


amazon1co nos Bumbás de Parintins (Pellegrini, 1997), para migrar subitamente de tempo e feitio convertido no Boi-de-mamão catarinense e nos bois de Maceió, reapropriados pelas crianças na esteira dos mestres mais velhos, como folguedos típicos do Carnaval. Isto para não falar justamente nesta celebração que quase arquetipicamente representa o modelo da festa como rito de inversão e no Brasil ganha foros de marca de identidade nacional (DaMatta, 1990), o próprio Carnaval, que, apesar da hegemonia que a mass-media propiciou ao modelo das escolas U m a verdadeira cul­ de Janeiro (Montes, 1997), ganha extura da festa, barroca traordinária variedade de formas, fundindo-se a expressões do sagrado, na em suas matrizes, i m ­ versão do Olodum baiano ou dos p r e g n a e m p r o f u n d i ­ Maracatus de Olinda e Recife, assim dade o fazer e o sentir como à modernidade protestatória inbrasileiro nas formas ternacional do reggae e outros ritmos da c h a m a d a cultura afro ou caribenhos em Salvador. popular. ainda as infindáveis celebrações pelas quais se definem rito e devoção nos terreiros de candomblé e umbanda por todo o Brasil, fazendo do povode-santo um povo de festa (Amaral, 1992), como resultado.da iniciativa da própria comunidade dos devotos, para opô-las às festas que ganham foro institucional, por iniciativa de governos, instituições ou patrocinadores locais, como aquelas que são apresentadas nos festivais de folclore, em Olímpia como em Parintins e em outras partes do país. E por fim haveria ainda que lembrar as comemorações cívicas- o 21 de abril ou a Semana

da Pátria- que se propõem como festas, mas constituem apenas hiatos festivos, na escola onde as crianças são obrigadas a aprendê-las, ou para o público espectador, nunca participante ativo ou ator principal nos desfiles do 7 de setembro- para opô-las a outras celebrações que, de significado universal e sem se proporem como festas, acabam por sua própria dinâmica por adquirir um caráter festivo. Disto é exemplo, entre outros (Meyer & Montes, 1986), o paradoxal azáfama que toma conta das ruas em torno dos principais cemitérios da capital num dia de Finados, fazendo a festa da criançada mas também de muitos adultos, que, sem esquecer o luto, não perderam o senso de oportunidade de poder adquirir com facilidade esses gadgets da modernidade, tudo proporcionado pelos trabalhadores da festa, esses ambulantes que vendem de tudo- de cachorro-quente, pipoca, doce, churro e refrigerante a balões de gás, bichinhos de pelúcia e artigos utilitários como canetas, sacolas e pochetes, de brinquedos e eletrônicos importados a bolsas e malhas boi ivianas ou do Peru - que ai i se encontram presentes tal como no circuito das outras festas em torno do qual se organiza seu modo de vida ... Qual o significado dessas formas de cultura características do mundo popular que parecem indicar que, qualquer que seja o motivo ou pretexto, no Brasil tudo tende a acabar em festa? Uma primeira e evidente questão naturalmente se coloca diante desse universo: confrontados com a multiplicidade e heterogeneidade dessas manifestações, como falar ainda, no singular, de festa 145


e cultura popular? Ao enumerá-las nesse rápido inventário, foram mencionadas manifestações culturais comumente designadas como folclore- uma Congada ol.l uma Folia de Reis, por exemplo - ao lado de outras que são pura criação da moderna sociedade urbana industrial de massas - o reggae e o axé music da Bahia; festas que manifestam a autonomia de um grupo ou de uma comunidadeum Batuque ou uma dança de São Gonçalo - ao lado de outras que não subsistem sem o apoio institucional externo, como os Festivais de Folclore; celebrações de devoção, como o são a maioria das festas populares tradicionais, e outras quase escabrosamente profanas, como o Carnaval; comemorações de âmbito nacional -ainda o Carnaval ou as celebrações das grandes datas do catolicismo - e outras de características puramente regionais- como o Boi-bumbá de Parintins - ou locais - a festa de Santa Cruz no antigo aldeamento indígena de Carapicuíba - e assim por diante. Diante de tal diversidade, o bom senso e o rigor científico recomendariam antes que se renunciasse a falar do popular e da festa no singular, para apreender em sua infinita diversidade as festas do povo, já que, não obstante todas as suas diferenças, o que essas _distintas manifestações têm de comum, apesar de tudo, é o fato de serem predominantemente produzidas e consumidas pela gente simples deste país, das cidades e do campo, permitindo-nos englobá-las nessa designação descritiva genérica, mas suficientemente explorada para que se possa falar, grosso modo, de universo das classes populares,

em que poderia afirmar que uma cultura da festa aparece como marca característica neste país, do Oiapoque ao Chuí. Por outro lado, diante desse quadro, tomar a via da História se tornaria quase recurso obrigatório, na tentativa de buscar alguma unidade no universo desconcertantemente diverso das manifestações desta cu Itu ra popular, lugar talvez de uma origem comum, que desde sempre foi a tentação dos folcloristas, na obsessão da origem como marca de autenticidade que impregna o vago difusionismo cultural do século passado ainda presente na maioria dos seus estudos1. Talvez em outra vertente se devesse então buscar esse lastro histórico. Ocorre, porém, que, na historiografia brasileira, a extraordinária abundância e riqueza de fontes sobre as festas e celebrações no período colonia l só recentemente passou a ser explorada de modo sistemático (Araujo, 1993; Reis, 1993; Dei Priore, 1994; Mello e Souza, 1994; Kantor, 1996); o suficiente, porém, para evidenciar que a matriz barroca, para além do domínio específico da arte, se impõe como importante fulcro de pesquisa sobre a cultura no Brasil, dada a realidade colonial em que, por importação, a festa se (re)produz como forma de sociabilidade e pedagogia de valores, ao mesmo tempo em que se organiza a vida da futura nação, no cadinho em que se fundem raças, etnias e culturas afroameríndias e européias, sob o império do poder colonial português que se estende no rastro da expansão mercantilista européia do século XVI. Entretanto, da perspectiva dessa historiografia

'I sto, natural mente, apesar da qualidade etnográfica da obra de um Câmara Cascudo (1954) ou um Mári o de Andrade (1987), por exemplo.


recente - tal como também muitas vezes no próprio campo da estética ou da história social da arte, com relação ao barroco em seu sentido mais estrito, referido ao domínio das produções eruditas - , o eixo do poder parece ser tomado como evidência, por si só capaz, como fio condutor da análise, de dar conta do fenômeno festivo. Saídas de um mundo dominado pelo espírito autoritário da centralização política do Estado moderno e da defensiva espiritual da Contra-Reforma, tal como a grande arte barroca, as festas devem pois poder ser vistas como suscetíveis de uma multiplicidade de leituras, todas elas, porém, centradas na ótica do poder. Seriam as festas, no território americano sob o domínio colonial português, um instrumento de integração obrigatória dos diferentes estoques étnicos e socioculturais que aqui convivem lado a lado por força de uma autoridade exterior, que os dizima enquanto selvagens, os domina como escravos, e a todos desqualifica enquanto inferiores? Seria ela, por esse mesmo viés, um poderoso instrumento de controle social dessas massas de subalternos, que, pela própria miséria a que os condena sua condição de vida, estariam sempre à beira de uma rebelião, não fosse a força apaziguadora, integradora e, quando necessário, abertamente repressiva do poder colonial - do Estado colonial português - que promove a festa e, ao mesmo tempo, a regula minuciosamente, para melhor controlá-la? Ou seria a festa, ao contrário, pela sua natureza mesma, de quebra e hiato na rotina, quando não pelas suas características 147


simbólicas de ritual de inversão, uma poderosa arma de resistência desses oprimidos, fornecendo-lhes a ocasião de explicitar e exercitar sua própria identidade e cultura, ou o que delas foi possível manter, sob as condições de existência da sociedade colonial? A festa promoveria assim a solidariedade intra e intergrupos sociais ou, ao contrário, a dificultaria, afirmando a hierarquia e o controle no seu interior e entre eles? Ou, desrespeitosa do princípio de não-contradição, seria a festa, por fim, responsável por todos esses efeitos a um só tempo? Esta é uma tese que não é difícil de demonstrar (Del Priori,1994), analisando-se cuidadosamente os níveis da cultura, as diferentes vivências históricas que a festa suscita para os diferentes atores, grupos, estamentos e classes que nela tomam parte, bem como a própria circularidade desses níveis de cultura e a transitividade que graças a ela se produz entre os cânones, os conteúdos e os valores de suas formas eruditas e a reapropriação destas no pólo dominado da sociedade, em que se sobrepõem ao mesmo tempo distintas visões de mundo, derivadas da origem européia dos senhores e das culturas dos diferentes grupos étnicos que formam o estoque afroameríndio da nova cultura brasileira em . gestação. A partir daí se acumulariam portanto as tensões que o Estado português, promotor e gestor da festa, deveria gerenciar, ou suprimir quando necessário, para manter o caráter pedagógico da festa como lugar de definição de posições sociais e dos deveres e franquias a elas inerentes, que caberia a todos reciprocamente respeitar, em ter-

mos de uma escala hierárquica de riqueza, prestígio e poder, que a festa explícita e ao mesmo tempo ajuda a consolidar. Em que pese a inegável correção desta análise, é preciso lembrar, contudo, que nas fontes, mais que a vertente social do poder, o que emerge com força - ou talvez seja apenas um foco de interesse diferencial que leva a percebê-lo - é antes a vertente por assim dizer espiritual , metafísica quase, mas sobretudo cognitivo-afetiva, vale dizer, estética, que vem desaguar na festa. Em outras palavras, parece possível dizer que, se a festa colonial funde num mesmo todo a força de Estado e Igreja para dá-la a ver pela performance graças à Se a festa colonial funde n u m qual a celebração tem existên- mesmo todo a força de Estado e cia como espetáculo do poder, Igreja para dá-la a ver pela seu caráter barroco confere, no performance graças à qual a celeentanto, uma conotação peculiar à linguagem pela qual essa bração tem existência como espetáculo do poder, seu caráter fusão se evidencia. O que sign ifica, deste ponto barroco confere, no entanto, uma de vista, o barroco? Significa a conotação · peculiar à linguagem tradução de uma experiência de pela qual essa fusão se evidencia. mundo marcada pela contradição que cinde sem separar totalmente e integra de modo precário duas metades indissociáveis de uma vivência ao mesmo tempo moderna e arcaica: de um lado, o sentimento moderno do poder criador do ind ivíduo, livre das amarras teológicas e sociais que em outras eras restringiam sua capacidade infinita de experimentação e expressão; de outro, o sentimento arcaico da sua limita-


2 É deste modo que, na esteira de Clifford Geertz (1 978), Robert Darnton (1 989) analisa uma festa de Corpus Christi na França do

Ancien Régime.

ção radical, em face a um mundo que, material e espiritualmente, escapa ao seu controle. Filho da Contra-Reforma, o barroco é obrigado a restaurar a idéia de uma ordem em que a natureza, a vida social e o poder político se suspendem a uma esfera sobrenatural já desde sempre predeterminada, ao mesmo tempo em que não quer de todo abrir mão da descoberta do poder criador do homem. Disso resultaria não só uma estética, mas uma visão de mundo, tensionadas ao extremo uma estética e uma visão de mundo que oscilam entre extremos, precipitando-se da vertigem da liberdade ao abismo da impotência, diante do que desde todo sempre é imutável. Daí o mote todo es ensueiio da poesia de Góngora e Quevedo, que Affonso Ávila tão minuciosamente glosa ao explorar o lúdico e as projeções do mundo barroco na literatura setecentista mineira (Ávila,1994). Ora, esta literatura é precisamente a que descreve as grandes festas do período, como o Triunfo Eucharistico, de Simão Ferreira Machado, datado de 1734, narrando as festividades que no ano anterior assinalaram a inauguração da nova matriz de N. S. do Pilar, mandada construir em

Vila Rica pelos moradores do bairro de Ouro Preto, e a solene trasladação para esse templo da Eucaristia, provisoriamente depositada na Igreja de N. S. do Rosário dos Pretos. Ou, ainda, a celebração de cunho ao mesmo tempo religioso e profano que assinalou, em 1748, a posse de Dom Frei Manoel da Cruz, bispo cuja investidura marca a instalação da diocese em Mariana: obra de autor anônimo, a narrativa foi editada em Lisboa

no ano seguinte pelo cônego Francisco Ribeiro da Silva, do cabido da Nova Sé, seguido o relato de uma coletânea de peças literárias alusivas ao acontecimento e dando-se ao todo o título de Aureo Trono Episcopal (Kantor, 1996). No mesmo veio se poderia analisar a Relação das faustíssimas

festas que celebrou a Câmara da Vila de Nossa Senhora da Purificação e Santo Amaro da Comarca da Bahia pelos augustíssimos desponsórios da Sereníssima Senhora O. Maria, Princesa do Brasil com o Sereníssimo Senhor O. Pedro, Infante de Portugal, em 1762 (Calmon, [1762] 1982); dos "obsequiosos festejos" da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro pela notícia do nascimento do "sereníssimo senhor príncipe da Beira, o Senhor O. José/' em 1763; bem como todo o conjunto de outras "relações" de "festas públicas" que, em 1770, fez celebrar o governador e capitão general na cidade de São Paulo em louvor a

Sant'Ana, por ocasião de se colocar sua imagem no altar novo da Igreja do Colégio; ou das numerosas outras e mais antigas "entradas" de excelentíssimos e reverendíssimos senhores bispos e arcebispos, quer se trate de ilustre dignatário e fiel servidor de Deus no Rio de Janeiro (a exemplo do que ocorre em 1747), quer, antes dele, do Arcebispo Primaz de todas as Espanhas, em junhode1741. Na análise desse vasto universo festivo, o que se chama de lúdico, aqui, na esteira de Affonso Ávila, é o sentido do jogo como força de invenção e experimentação a serviço da criação, que recombina incessantemente elementos antigos e o 149


já conhecido em novas formas, para assim literalmente (re)criar e m termos n o v o s o a r c a i c o e (re)inventar a tradição. O gosto da profusão, do ornamento excessivo, o horror do vazio são, nas artes plásticas - na arquitetura, na escultura e na pintura das igrejas, por exemplo - a contrapartida concreta, tornada visível, desse sentido do jogo que, na literatura, trabalha com a meO q u e se c h a m a d e lúdico, a q u i , n a es- táfora, a ordem indireta do discurso, a lint e i r a d e Afffonso Á v i l a , é o s e n t i d o d o jogo g u a g e m p r e c i o s a , v o l u t a s v e r b a i s q u e c o m o f o r ç a d e i n v e n ç ã o e e x p e r i m e n t a ç ã o respondem às formas arquitetônicas que se a s e r v i ç o da criação, q u e r e c o m b i n a inces- enrolam sobre si mesmas e à perspectiva s a n t e m e n t e e l e m e n t o s a n t i g o s e o já co- que, da coluna ao teto pintado, abre para a n h e c i d o e m n o v a s f o r m a s , p a r a a s s i m ilusão do infinito, através do trompe 1'oeiL l i t e r a l m e n t e ( r e ) c r i a r e m t e r m o s n o v o s o Se é certo que, da ótica do poder que une o arcaico e ( r e ) i n v e n t a r a t r a d i ç ã o . Estado absolutista à Igreja c a t ó l i c a na Contra-Reforma, esta arte da ilusão está a serviço da causa conservadora do convencimento dos indivíduos e dos grupos que potencialmente representam o perigo da dissenção, com o fito de enquadrá-los em face de uma ordem fixa de poder temporal e espiritual, no rastro da contenção da rebelião do protestantismo, deve-se dizer, no e n tanto, que isto não esgota o sentido dessa arte, que também pode ser vista como tributo à glória do efêmero, na tensão existencial que o dilaceramento da visão de mundo barroca produz. Esta descoberta essencial pode ser feita por qualquer um que estude não a grande arte barroca brasileira, mas a celebração do Carnaval, refletindo sobre o significado dos meios que este cortejo põe em ação para narrar uma história em linguagem multimídia - os carros, as alas, as fan-

3

Cf. o n ú m e r o d a R e v i s t a

Bigott ( n

e

1 5 , a n o 8, 1989),

produzida e m C a r a c a s pela Fundação de mesmo nome, d e d i c a d o à festa d e

Corpus

Christi. Fartamente ilustrados por fotos belíssimas, os três artigos q u e c o m p õ e m o n ú m e r o da revista tratam, resp e c t i v a m e n t e , d a festa n a P e n í n s u l a Ibérica - e m particular na E s p a n h a -

outro

da festa na V e n e z u e l a e u m terceiro da p r e s e n ç a , na festa, das danzas de diablos,

tra-

balhando todos eles c o m d o c u m e n t a ç ã o relativa a S a n Francisco de Yare, estado Miranda; Orituco,

San Rafael

de

estado G u á r i c o ;

Maracay, Chuao, Ocumare d e Ia C o s t a , C u y a g u a , C a t a , Turiamo, estado Aragua; P a t a m e n o , C a n o a b o , estado C a r a b o b o ; Tunaquillo, estado Cojedes; e Naiguatá, Distrito Federal - todos a o norte do país. É sobretudo o i m p a c to das imagens q u e registram os v á r i o s aspectos da c e l e b r a ç ã o o q u e se enfatiza aqui e se c o m e n t a a seguir.


tasias, o som dos instrumentos de percussão, o canto, a dança, as cores da escola ou a evolução dos passistas, do mestre-sala e da porta-bandeira em torno do estandarte da sua agremiação. Esta é uma narrativa que, retomando o cortejo que se inscreve nas matrizes barrocas da festa, redescobre para além delas, ainda mais longe, o mundo renascentista, que aprendemos a compreender graças, entre outros, a Burckhardt (1958) e Pierre Francastel (1967). O que nele se vislumbra, já nesse tempo, é o gosto de artistas inventores em criar máquinas e autômatos com a mais virtuosa técnica para, por meio deles, traduzir pela alegoria - entre os triunfos romanos e a recriação dos mistérios medievais da Igreja - a invenção de uma Antigüidade clássica sui generis, apresentada nos grandes carros alegóricos, cuja forma canônica arcaica, nas Saturnais, o carrus navalis, se associaria em definitivo ao Carnaval. Assim se entende, nesses cortejos, que as Sete Virtudes, representadas por máscaras que encimam essas grandes estruturas móveis puxadas por cavalos invisíveis, convivam com divindades da mitologia greco-romana, com os continentes, os quatro pontos cardeais e os quatro ventos, ou que a corte de anjos que voluteiam em torno de uma placa giratória se postem ao lado de tritões e ninfas, sem falar nos bandos de Turcos montados em camelos, simbolizando o perigo mouro, que desfilam ao lado dos cavaleiros mascarados vestidos em finos trajes e cavalgando montarias ricamente ajaezadas, como representação indiscutível do Bem.

Assim, o que em tais cortejos se entende da festa barroca é o modo de ação de um imaginário que, num estoque de figuras simbólicas canônicas, coloca suas escolhas a serviço da celebração do dia, seja ela a da vida ou martírio de um santo, seja o cortejo triunfal de um príncipe ou dignitário da Igreja em visita à cidade. Por esta razão, ao retomar essas matrizes barrocas da festa, o Carnaval - mas, na verdade, toda festa, no Brasil - mostra sua natureza de bricolage material e intelectual - para falar com Lévi-Strauss (1962) tentativa de construção de uma ordem inteligível do mundo a partir de sua expressão sensível. Ao mesmo tempo, ela também se revela como fato social total- di r-se-ia, usando o conceito de Mauss (1974) - acontecimento que expõe uma ordem moral e social evidenciada pelos lugares que cada um ocupa no cortejo, permitindo, deste modo, explicitar a forma de organização, bem como a hierarquia de riqueza, prestígio e poder que a sustentam 2 • Assim, como um texto a ser interpretado, ao se decifrar a escrita que ela inscreve no espaço e no tempo, a festa nos permite ler, por meio dela, o que a sociedade diz sobre si mesma (Geertz, 1978), mas na linguagem que lhe é própria, a linguagem das formas sensíveis de que é feita a arte. Na verdade, nos documentos sobre as festas coloniais, o que talvez mais chame a atenção é o caráter minucioso de sua descrição quase etnagráfica dos elementos materiais, visuais e sonoros, pelos quais a festa compõe sua narrativa arquitetura cênica, materiais, cores, trajes, máscaras, adornos, a evolução das danças, os


mentos musicais e os ritmos com que cada grupo faz acompanhar sua evolução. Assim se evidencia que esta narrativa é, antes de mais nada, destinada a nos impregnar pelos cinco sentidos, remetendo-nos ao mesmo tempo a um acontecimento do presente e a estruturas arcaicas de um imaginário próprio da longa duração da História, quer seja a festa sagrada ou profana, promovida por um mecenas local, uma corporação de ofício, uma confraria ou irmandade religiosa, quer, ao contrário, seja ela propiciada pelo poder de Estado ou da Igreja, na celebração compulsória dos grandes da Terra e dos dignatários a serviço de Deus. Daí se compreende que esta festa barroca possa, como matriz simbólica, penetrar em profundidade as formas da cultura, nelas conservando seus elementos constitutivos, às vezes quase intactos, apesar da forma fragmentária, mas na maior parte das vezes submetidos a um processo de ressignificação em função de um contexto específico - o que também faz parte da própria lógica da festa, entendida como o bricolage material e simbólico em que ela de fato se constitui. Pois não é apenas na festa do Carnaval que essas matrizes tornam visível a presença de uma mesma herança barroca. Também outras festas

nesse vasto universo da cultura popular revelam, às vezes num arranjo totalmente insólito de um todo desconhecido, a permanência de elementos familiares que se podem encontrar, fragmentados, numa pluralidade de outras celebrações. Há que se prestar atenção aos detalhes, e a lista das evidências se estende quase indefinidamente, revelando as continuidades que essas matrizes são capazes de demonstrar ao longo do tempo e pelo espaço e de que é exemplo a celebração ibérica Corpus ChristP. Os pequenos altares ainda hoje montados nas janelas, com cruzes, quadros e imagens de santos, rodeados de flores e velas acesas e dispostos sobre uma rica toalha ornamentada, à passagem da procissão, em San Francisco de Yare assim como em Santana do Parnaíba, o pálio sob o qual se carrega a custódia, a descrição do velho costume de espalhar ervas aromáticas sobre a rota do cortejo, sem dúvida origem remota dos adornos de flores, serragem, pó de café, giz, cascas de ovos e outros materiais domésticos com os quais se compõem os tapetes que ainda hoje no Brasil enfeitam as ruas no dia da festa. Os arcos trançados de palmas e flores, os mesmos que, aqui, enquadram às vezes um altar humilde num fundo de quintal, outras vezes a trajetória de


Cf. também Atualidade e permanência do barroco in: Ávila 4

(1994).

uma Folia de Reis, de uma estrada de chão batido até o interior das casas devotas. As figuras de cara coberta ou mascaradas, vestidas de tecido estampado vistoso, esta chita que adorna o palhaço, bastião ou mateus das Folias, assim como alguns membros de um grupo de baianas alagoano, assinalando a figura dos donos do brinquedo. As máscaras, muitas com características zoomorfas, as mesmas que também cobrem a cara de Mestres Cazumbás de um Bumba-meu-boi maranhense ou de cavaleiros mouros nas Cavalhadas de Pirenópolis, enquanto outras, pelo adorno que as encima e do qual pendem fitas, somado ao manto multicolorido cobrindo os ombros dos danzantes, lembram irresistivelmente guerreiros das Alagoas. E há ainda a pequena viola e os tambores caixas, tamboretas, pandeiros e tamboris -, indispensáveis acompanhamentos de danças desde o Renascimento e que só muito mais tarde a Igreja iria banir oficialmente das celebrações litúrgicas, mas que aqui teimosamente permanecem, nas celebrações do Corpus Christi venezuelano, assim como nas festas de devoção dos Congos ou acompanhando as Folias do Divino e dos Santos Reis. E se os bastões ornamentados carregados pelos danzantes na festa ibérica do Corpo de Deus são

os mesmos encontrados nos ternos de Moçambique, os sinos e guisos que levam amarrados à cintura são também os dos lanceiros do Maracatu rural de Pernambuco , mas que os dançadores de Moçambique mineiros ou do Rio Grande do Sul trazem amarrados às pernas, instrumentos suplementares de música que acionam no próprio movimento da dança. De reis e rainhas dos ternos de Congo são no entanto os estandartes que os danzantes de San Francisco de Vare levam às mãos, e quanto à dança de fita, que também tem lugar durante a festa, é ainda a mesma que pode ser encontrada de norte a sul do país. Na festa ibérica, a presença de máscaras sobredimensionadas, tais como os cabeções do Carnaval de OI inda ou da pequena Santana do Parnaíba, e que são encontradas também numa festa do Divino de São Luís do Paraitinga: representação de figuras monstruosas, dragões , diabos e caveiras encobrindo a cabeça de figuras inteiramente vestidas de negro ou vermelho, tantas vezes encontradas na iconografia do Carnaval brasileiro do século XIX. Por vezes, o extraordinário geometrismo indígena ou africano dos desenhos, e os materiais que exibem a mesma riqueza de invenção e criação, nas máscaras ou num maracá enfeitado de fitas das 153


danças "indfgenas" brasileiras, como os caboclinhos do Nordeste. A postura corporal dos guerreiros de lança e de pena do Maracatu rural, a mesma encontrada nos danzantes da celebração ibérica, ao se renderem, deitados no chão, ante o altar do Corpo de Deus, tanto quanto num terreiro de candomblé - ressaltando-se assim a identidade entre o gesto de humildade diante do Cristo e a postura do iniciado ao saudar um orixá ou alguém mais velho na linhagem de sua casa de santo. Qual teria sido a matriz dessa linguagem corporal? O que teria precedência, a devoção cristã ou a memória ancestral das divindades de terras distantes, irremediavelmente deixadas para trás? Qual seria a experiência primeira - católica? africana? - que, ressignificada, teria contaminado a outra? São imagens como estas que projetam uma nova luz sobre os velhos documentos coloniais, revelando como que num alumbramento o sentido profundo das descrições das faustfssimas festas de Santo Amaro da Purificação, ao referir-se ao Reinado de Congos que saiu na festa, rei e rainha negros coroados durante a celebração, exibindo-se com os "sobas e máscaras de sua guarda" que os rodeavam e que, depois de os saudarem, "safram a dançar as talheiras e quicumbis, ao som dos instrumentos próprios de seu uso e rito", como escreve o narrador. Assim também as imagens de um Candombe dançado em' comunidades negras no interior do Brasil (Moura, 1997) começavam lentamente a se juntar à música de mesmo nome que ouvira e vira dançar certa vez em Caracas, sem suspeitar de 154

que algo tão semelhante poderia estar tão próximo, em meu próprio pafs. E seria possfvel continuar indefinidamente a esmiuçar essas imagens, nessas aproximações que se estendem em escala continental, atestando semelhanças, coincidências e continuidades entre essas formas de cultura popular, num e noutro lado da antiga linha de Tordesilhas, sem que parassem por af os paralelos: pois não há também as diabladas do Peru e da Bolfvia, o Carnaval cubano, a festa dos mortos no México? Na realidade, o que assim se atestam são semelhanças, cot 1z s barrocas A o retomar essas matrizes incidências e continuidades en- mas, na verdad a festa, oo C a r n a v a l — tre essas formas populares de de, toda festa n o Brasil11 — m o s t r a s u a cultura e sua remota n a t u r e z a de bricolagerí\a\ex\a\ e inteancestralidade barroca, reatan- lectual,1, t e n t a t i v a d e c o n s t r u ç ã o de do assim seus laços com as for- u m ad o r d e m i n t e l i g í v e l d o m u n d o àa mas de uma cultura e uma arte partir r de ssu u a expressãoo sensível. eruditas às quais com exclusividade se costuma reservar esta filiação e permitindo sugerir que, nos dois lados da América, espanhola e lusitana, uma mesma matriz ibérica da festa barroca enquadra essas formas de cultura, que se assemelham e se recriam, se redobram, se desdobram e se recombinam, de modo às vezes insólito. Uma história comum de dominação sobre populações indfgenas e escravos africanos explicaria então os processos de ressignificação por que acabaram por passar seus elementos constitutivos, dando conta de suas variações locais e regionais. No entanto, estas só podem ocorrer a partir de estruturas simbólicas a que


a festa dá uma existência material, corpórea, visual e sonora, devido às figuras que exprimem seus significados e que assim são esteticamente representadas. É deste modo que se põem em cena fragmentos de uma outra visão de mundo, em que, para além do id~ário cristão que lhes dá origem, também outras !.c ulturas podem se reconhecer, e assim, incorpo-rando-a, se tornar capazes de transfigurar a :festa, conferindo-lhe novos usos e sentidos. Articulada em torno d~ uma cosmologia arcaica que suspende ao sobrenatural a ordem da natureza e da vida social, a festa barroca, em suas remotas origens cristãs medievais e depois renascentistas, graças ao processo de bricolage que caracteriza sua produção, incorpora e ressignifica poderosos elementos simbólicos pré-cristãos e de valor transcultural. Por isso mesmo, estes podem, por sua vez, ser novamente ressignificados, para traduzir outros conteúdos simbólicos pelos quais diferentes culturas procuram conferir significado ao Bem e ao Mal, à abundância e à carência, à fertilidade da terra e das mulheres, bem como à penúria da fome e à inexorabilidade do fim dos seres vivos- ou, numa palavra, ao nascer e ao morrer, com as alegrias e angústias que no viver se inscrevem, entre esses dois pontos de um intervalo. Daí os dragões, os diabos, os gigantes e anões, figuras da liminaridade e da anomalia e, pÓrtanto, do Mal símbolos transculturais -, mas também o fato de que, por eles, se representam males presentes, como a idolatria pagã, moura ou afro-ameríndia

nas Américas. É a eles que se contrapõem o Cristo e os santos, ao lado dos quais, no entanto, se postam também anjos e Virtudes etéreas, facilmente assimiláveis, num outro registro, a espíritos tutelares dos lugares e das gentes, capazes de lhes assegurar o bem da vida e da abundância. E, dir-se-á mais: esses símbolos e seus significados transientes, que incorporam a um tempo estruturas de longa duração do imaginário e História événementielle, só podem ser decifrados por meio de formas visuais, materiais, sensfveis, com que são representados e literalmente incorporados nas linguagens corporais e nas estruturas sonoras que lhes dão forma como experiência subjetiva, diferenciadas em distintos contextos. É assim que a festa revela o verdadeiro sentido da transição que opera entre a vida comum e a arte, colocando-se como signo de mentalidade. O que se conquista por meio deste tipo de enfoque é a possibilidade de entender a permanência e a continuidade de um mesmo ethos barroco na cultura brasileira - e mesmo latino-americana - numa história de longa duração, a partir da matriz ibérica comum da festa e, ao mesmo tempo, as rupturas, as transformações e a produção de novos significados, em função das variações de história local e regional, contexto sociopolítico, composição étnica dos grupos em presença etc. Isto tudo é o que, em conjunto, faz ver a extensão e a profundidade do legado barroco que a cultura da festa carrega consigo. Por isso, em nossa cultura, o domínio do barroco não pode resumir-se ao mundo do que se 155


convencionou chamar de obras de arte. No universo dessa arte essencialmente voltada para o sagrado, uma igreja é mais que um projeto arquitetônico e um conjunto de ornamentações, escultóricas ou pictóricas. É até mesmo mais que um mero local de devoção. Constitui, antes, um espaço em torno do qual se ordena toda uma experiência de vida, do nascimento à morte, do batismo ao cemitério plantado no fundo do jardim mesmo de uma humilde capela de irmandade. É um espaço de representação sensível do sagrado e, ao mesmo tempo, a via para o seu acesso, que a festa encena e comemora. É, mais ainda, o centro em torno do qual se ordena, física e simbolicamente, o espaço público, onde a vida social desenrola sua ordem, permitindo a cada um decifrar nela seu lugar. Não há, pois, verdadeira ruptura entre o sagrado e o profano, quando um mesmo ethos preside à sua percepção. O que é notável no Brasil é o quanto, para além das periodizações canônicas da História da Arte, o barroco se desdobra nesses resfduos seiscentistas que, como assinala com razão Affonso Ávila (1967) 4 , se espraiam como fenômeno de civilização, nos centros urbanos que, por irradiação do fausto das Minas, ·irão se expandir mesmo em zonas mais afastadas, no interior da província assim como ao longo do extenso litoral do país. É um fenômeno de civilização porqÚe constrói ao mesmo tempo uma mentalidade e um estilo de vida, híbridos na colônia como híbrida é sua formação. E, na sociedade de espírito aristocratizante, a mão mestiça, mameluca,

mulata, afro-brasileira, mão de trabalho e de criação, deixará, indelével, sua marca nas formas barrocas de nossa arte (Araujo, 1988). Mais ainda, é preciso lembrar que este ethos se estende até mesmo para além do século XVIII, já que só no início do XIX irão desaparecer os grandes mestres da nossa arte barroca, Aleijadinho e Mestre Valentim, apenas. alguns anos antes que se instalasse no Rio de Janeiro, após a vinda da FaPelo con.çtutor aparentemente frívolo mília Real, a célebre de uma anáhse da <:ultura c;Ja festa, a Missão Artística France~a. reavahaÇão de su.u raízes banocás à<: aba O próprio Grandjean de pot no.s remeter a um ful<ro conshtuhvo esMontigny apenas retomaria ~enoal de nossa cultura, e de fato 'iiportta uma obra já antes iniciada não para uma questão onosa, mas para um por Mestre Valentim, com a desaho da ma1s afta stgmhcação par.a o prereforma do Passeio Público, sente e o futuro brastleno e das sooedades abertura de um espaço de fattno-amert<:anas. convívio civilizatório que tem antes a característica de lugar público de exibição da ordem social que a racionalidade grandiloqüente do espaço ordenado para a vida em comum que o neoclássico procurará instaurar. Por isso mesmo, esta vertente do classicismo terá entre nós, no século XIX, apenas o efeito de um fenômeno de superfície, maquiagem de uma ordem espacial que se pretende revolucionar, sem que a vida social encontre correspondência em um análogo processo de transformação. A influência dos grandes mestres do nosso barroco mestiço, europeu e afro-ameríndio, só muito mais tarde começaria a se desgastar, quando por fim a

ho


Academia viesse a impor os novos cânones de uma arte que exige o reconhecimento individual do artista, abalando os fundamentos de uma arte corporativa que, ainda no século XVIII, construía o esplendor do barroco e dava um espaço de projeção social até mesmo aos escravos e aos negros libertos, no coração da ordem escravocrata (Araujo, 1995). Para que tudo isso se desagregasse, teria sido necessária uma mudança radical de mentalidade. Ela se processa, é fato, mas à flor da vida social, apenas no interior das elites, deixando praticamente intocados os estratos mais baixos da sociedade. Daí que nossas heranças barrocas sejam visíveis, hoje, mais no mundo popular da cultura do que na esfera erudita das artes. Pode-se assim verificar que, forma hegemônica no período colonial até o fim do século XVIII e mesmo além, essa cultura ibérica barroca da Contra-Reforma no continente americano era capaz de soldar num mesmo todo o alto e o baixo, as elites e a grossa massa do povo, tendo por mediação fundamental esta forma por excelência sensível, sensual, essencialmente estética, de transmissão de um ethos e de uma visão de mundo representada pela festa. Só aos poucos essas matrizes iriam se desagregar, juntamente com a forma material da festa que lhes dava expressão e unia numa mesma totalidade de sentido de pertencimento o colonizador e o colonizado, o europeu, o indígena e o africano, o senhor e o escravo. Os ventos da modernidade que sopram ao longo do processo de independência e de constituição

dos Estados nacionais no continente latino-americano desarticularão como forma hegemônica global esta barroca cultura da festa que não separa o sagrado e o profano. Assim, à exceção do Carnaval e de algumas poucas celebrações religiosas, aos poucos, ignorada ou desprezada pelas elites, ela irá permanecer como memória ou forma viva apenas entre os segmentos populares -os mesmos dominados do sistema colonial, que passam agora a viver sob o poder das novas elites locais, após a independência - mas perdendo aí o direito à designação de cultura, para ver-se reduzida à mera condição de folclore. Entretanto, por uma estranha reviravolta das coisas, é o caráter arcaico dessas manifestações em que se fazem ouvir os ecos da cultura da festa o que nos permite, de forma no mínimo surpreendente, entrever o lugar que essas matrizes do popular podem vir a ser chamadas a ocupar, no diálogo inevitável que a cultura brasileira é convocada a travar com a cultura mundial no mundo contemporâneo, em resposta a alguns dos desafios que se colocam ao homem na sua experiência de vida, o que nos deve obrigar a passar em revista os parâmetros pelos quais pensamos nossa própria identidade.

*

Pelo reconhecimento da permanência das características e do espírito dessa cultura da festa, hoje confinados ao mundo das manifestações e formas de criação vistas como essencialmente populares, no Brasil como em quase todo o continente 157


instrulatino-americano, talvez fosse menos difícil entender algumas das características das sociedades e das culturas nacionais que dele fazem parte. Forma cultural arcaica, a festa ensinava a hierarquia social e o lugar de cada um, mas também uma forma de igualdade radical de todos em face ao reino de Deus, instituindo assim uma ética da reciprocidade, que impunha a solidariedade entre os iguais, bem como obrigações de retribuição, ainda que assimétricas, entre os desiguais. Assim viria a consolidar-se um sistema de referência tríplice, que Roberto DaMatta designou como a casa, a rua e o outro mundo (DaMatta, 1991 ), para explicar a ambigüidade das fronteiras entre a esfera privada e a vida pública, e o dilema de sociedades incapazes de se decidir de uma vez por todas entre a ética do interesse dos indivíduos e a ética da reciprocidade das pessoas, entre a igualdade e a hierarquia. Oscilação, portanto, tipicamente barroca, de um espírito que nunca sabe o que quer, sobretudo porque, tal como o filósofo e a criança, no dizer de Platão, sempr~ quer os dois, as formas que voam que são sua característica própria, sem poder de todo abrir mão das formas que pesam (D'Ors, s/d:90): a vertigem da transcendência e o convencimento dos sentidos, a infinitude do cosmos e a glória do efêmero,

a eternidade e o esplendor fugaz da vida. Talvez por isso, nesse universo marcado por uma sensibilidade e uma visão de mundo de feições arcaicas, o ideal tipicamente moderno da construção de uma Como <heg.n{Amo~ a ~et sociedade que se quer democráti- rnoderrlCh sem den1armos de ca, fundada no primado da lei mas quere-r $-er, também, eternos? tendo como contrapartida o isolamento do indivíduo, pareça algo tão difícil de alcançar, não só no Brasil como em todo o continente latino-americano. Nosso passado histórico comum em grande parte explica esses dilemas e dificuldades, mas só uma compreensão profunda do seu significado no plano da cultura pode ajudar a superá-los. Assim, pelo fio condutor aparentemente frívolo de uma análise da cultura da festa, a reavaliação de suas raízes barrocas acaba por nos remeter a um fulcro constitutivo essencial de nossa cultura, e de fato aponta não para uma questão ociosa, mas para um desafio da mais alta significação para o presente e o futuro brasileiro e das sociedades latino-americanas: como chegaremos a ser modernos sem deixarmos de querer ser, também, eternos. Como tudo o mais que parece impossível e contraditório, isto também é uma parte de nós. Barrocas heranças.


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legenda de o Tosto da festa (da esquerda para direita) Mulher, marido e filho , " caiapós" de Poço Fundo, Minas Gerais. Mascarado com flores na Festa do Divino, em Pirenópolis, Goiás. Guerreiros Mouros das Cavalhadas de Catuçaba, na Festa do Divino em São Luís doParaitinga, São Paulo . Menino "caiapó" de Poço Fundo, Minas Gerais. Mulher e homem " caiapós" de Poço Fundo, Minas Gerais. Menina com Bandeira do Divino Espírito Santo na Festa do Divino em São Luís do Paraitinga , São Paulo . Menino "caiapó" de Poço Fundo, Minas Gerais. Mulher pintada de "caiapó", em Poço Fundo, Minas Gerias. Homem participante da Procissão do Divino Espírito Santo em São Luís do Paraitinga, São Paulo. Mulher de terno de Congos em Machado, Minas Gerais. Promesseiro de Dança de São Gonçalo, em Biltatuba, São Paulo .


Sexta Feira

p

a

r

a

Paulinha

Calcanhares pontudos caminham pelo andar de cima. Calcam angústia vontade de mudar de nome endereço de vida nessa ilha de paredes brancas Robinson urbano diante da fatalidade irremediavelmente só. 06 junho 1997

Heitor Ferraz Resumo

é jornalista e poeta, autor de do dia (1 996) e A mesma noite (1 997).


mas(ulino

feminino

entre os Enawene-Nawe Márcio Silva·

Com o avanço das pesquisas etnográficas na Amazônia e no Brasil Central nos últimos trinta anos, emergiram duas versões distintas e aparentemente irredutíveis das relações de gênero nas terras baixas da América ~o Sul, aqui rotuladas "domínio masculino" e "igualdade sexual"'- A primeira, centrada na distinção estrutural-funcionalista entre "público e privado", privilegiou a esfera pública das sociedades ameríndias, sublinhando fenômenos como a organização dualista, a política econômica de controle da reprodução, as relações interlocais etc. Neste quadro, "masculino" e "feminino" foram respectivamente associados à esfera política (englobante) e doméstica (englobada) dessas formações sociais. Outra vertente, tributária da crítica cultural feminista da distinção público/privado, procurou demonstrar- com base no caráter íntimo das economias nativas, nas relações internas ao grupo local e na mutualidade - o perfeito equilíbrio entre masculino e feminino nessas sociedades. Em resumo, a oposição de gênero vem se definindo como hierárquica ("domínio masculino") ou simétrica ("igualdade sexual"), segundo o ponto de vista do observador, correspondendo a posições em princí-

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pio irredutíveis nos debates. Há, no entanto, uma alternativa para a superação desse impasse: a interpretação das relações de gênero no contexto mais amplo do que se poderia chamar de relação de "espécie" (consangüinidade/ afinidade); em outras palavras, uma reflexão sobre a sexualidade sensível à sociabilidade ameríndia. A relação entre essas duas ordens é imediata, correspondendo à própria intuição subjacente à teoria estruturalista do parentesco. Recordemos: se a Se a regulamen ação da vida sexual regulamentação da vida secorresponde a u a intromissão da sociexual corresponde a uma indade na natu i o instinto sexual, por tromissão da sociedade na outro lado, é o ú I Í C O instinto natural que natureza, o instinto sexual, por outro lado, é o único inssupõe a alterid para se definir. tinto natural que supõe a alteridade para se definir. Além disso, no modelo lévi-straussiano, as relações de gênero não têm como suporte uma oposição entre "masculino" e "feminino" tomados como termos absolutos e substantivos, simétrica ou hierarquicamente relacionados, mas sim um feixe de oposições complexas de relações entre indivíduos


do mesmo sexo e indivíduos do sexo oposto. Precisamente neste sentido, em sua réplica às críticas feministas ao modelo da aliança matrimonial em que homens trocam mulheres, Lévi-Strauss sublinhou que as estruturas da aliança, que fundam e organizam a sociabilidade, funcionam da mesma maneira com mulheres trocando homens. Isto porque a aliança de casamento, como sublinhou Viveiros de Castro (1990), corresponde não a uma mera fórmula de circulação de indivíduos, mas de "propriedades simbólicas, direitos, signos, valores, por meio de pessoas" (o grifo é meu). A consideração de um caso etnográfico exemplar permitirá entrever a possibilidade de uma terceira via analítica no debate atual "domínio masculino" versus "igualdade sexual" nas sociedades ameríndias. Observemos como os Enawene-Nawe, povo aruak da Amazônia meridional, definem as relações de gênero em seu universo social. 1

Os rótulos "domínio m a s c u ünoTigualdade sexual" devem ser entendidos como artifícios retóricos. Evidentemente, nan <e t M í f l He um debate entre adeptos de um indelével machismo selvagem e defensores de uma s u p ô s ta "Égalité" paleolítka. Impor* ta sublinhar aqui unicamente a distinção entre perspectivas que definem» nas sociedades ameríndias, as relações de gênero como hierárquicas ou simétricas. 1

Para uma visão da relação entre esses ritos e as categorias de idade enaweneI nawe, ver o texto de Cleactr , Alencar Sá (1996), A etnografia [aqui apresentada sobre os 'ritos da sexualidade é em muito tributária desta pesquisa sob minha orientação.

* Entre os Enawene-Nawe, a passagem à vida adulta é socialmente marcada por emblemas da sexualidade e da capacidade reprodutiva de ambos os sexos: o estojo peniano e as tatuagens no ventre e nos seios, adornos de imenso valor na economia simbólica enawene-nawe, adquiridos através do que podemos denominar "ritos da sexualidade" 2 • Na puberdade, os meninos devem esperar o crescimento dos pêlos pubianos para ter acesso à vida sexual. Essa transformação física do corpo é condição necessária, mas não suficiente, para o exercício. da sexualidade: precisam, além disso, portar um adorno peniano. Esse adorno consiste em uma tira de palha de buriti, de cerca de trinta centímetros de comprimento por um centímetro de largura, que é amarrada no prepúcio, com um nó semelhante ao de gravata, com o pênis embutido na região pélvica. Um dia antes da colocação desse adorno, a mãe corta os cabelos do menino e

substitui os seus adornos corporais infantis. Auxiliàda por suas filhas, a mãe prepara uma certa quantidade de beiju, a ser oferecida para os cunhados de seu filho (maridos de suas irmãs ou irmãos de sua futura esposa), que serão os oficiantes do ritual. Durante a madrugada que antecede à colocação do adorno, os cunhados oficiantes realizam na casa dos clãs, templo localizado no centro da aldeia onde são guardadas as flautas sagradas, os últimos preparativos da cerimônia: a confecção de um conjunto de itens que serão utilizados pelo menino em vias de iniciação, como flechas, pedaços da palha para a fabricação do adorno peniano, urucum, esteira, palha de palmeira e parte da indumentária do yakwa (ritual que celebra o sistema clãnico). Enquanto isso, na casa de seus pais, o menino, deitado em sua rede, é pintado com uma leve camada de urucum por todo o corpo e vestido com apenas uma parte da indumentária cerimonial; a parte complementar será ofertada por seus cunhados. Em um dado momento, um de seus cunhados (preferencialmente o marido de uma irmã) irá buscálo em sua casa e, em seguida, o conduzirá para o centro da aldeia. A partir de então, os seus consangüíneos próximos (pais e irmãos) se separam do menino e permanecem em casa, reunindo um dote que será ofertado aos afins oficiantes, logo após a colocação do adorno peniano. Na entrada da casa dos clãs, é depositada uma esteira onde o menino permanece deitado até a colocação do adorno, ocasião em que recebe a outra parte da indumentária cerimonial. Um dos cunhados mais velhos seguralhe as mãos, enquanto os demais passam a surrálo levemente. Passados alguns minutos, os cunhados oferecem ao menino arcos e flechas, além de um suprimento extra de palhas de buriti para a confecção de novos adornos, uma vez que, de tempos em tempos, deterioram-se e precisam ser substituídos. Dois ou três cunhados então levam solenemente o


menino de volta ao compartimento residencial de seus parentes consangüíneos próximos, pais e irmãos biológicos, que o aguardam deitados em suas redes. Assim que recebem o menino de volta, seus pais pagam aos cunhados os dotes que haviam reservado com antecedência. E, com isso, o menino passa a ter potencialmente o acesso sexual às irmãs dos "outros". Em resumo, se os parentes consangüíneos (pai e mãe especialmente) são responsáveis pela fabricação da persona física de seu filho (seu corpo), desde a sua concepção até a puberdade, são os "outros", isto é, os seus afins reais ou virtuais, os responsáveis pela fabricação de sua persona social, que é imediatamente dotada de sexualidade. Algum tempo depois, um concunhado o convida para seguir com ele até algum ponto no mato que circunda a aldeia - portanto na direção oposta a que foi levado por seus cunhados quando da iniciação - onde troca o adorno especialmente vistoso por um outro mais discreto, de uso cotidiano. Ao contrário dos cunhados do jovem, seu concunhado nada recebe por esse serviço: só há troca entre afins; não há troca entre consangüíneos ou entre afins de afins como os concunhados. Em seguida, o menino retorna à sua rede, na companhia de seu concunhado, onde uma jovem recém-iniciada lhe oferece, em duas cuias grandes, uma bebida preparada pela mãe do jovem. O menino toma esse preparado até vomitar os restos de comida ingeridos anteriormente. Depois disso, as primeiras refeições do menino deverão ser feitas em utensnios novos, até que um benzedor sopre todos os utensílios usados e os alimentos aí produzidos. Aí começa uma vida nova para o menino, marcada pela sexualidade, pelas responsabilidades nas atividades produtivas - agrícolas, pesqueiras e coletoras - e pela participação obrigatória na vida cerimonial. Com as mulheres, as coisas se passam de maneira diferente, mas também de modo muito

ritualizado . As meninas usam, desde criança, uma minissaia de algodão tingido de vermelho. Após a primeira menstruação, uma mulher é considerada apta para a atividade sexual, o que, no entanto, só passa a ocorrer depois da segunda menstruação. As tatuagens são feitas exatamente nesse intervalo de uma lua. Os sinais socialmente visíveis (e abertamente comentados) da eminência da passagem da vida infantil à vida adulta de uma Se os parentes consangüíneos (pai e mãe esmulher são o crescimenpecialmente) são responsáveis pela fabricato dos seios e o escurecimento dos mação da persona física de seu filho (seu corpo), milos. Esses sinais predesde a sua concepção até a puberdade, são nunciam, como os pêlos os "outros", isto é, os seus afins reais ou virpubianos dos meninos, tuais, os responsáveis pela fabricação de sua as demais transformapersona social, que é imediatamente dotada ções em seu corpo. No primeiro dia de sua primeira menstruação, a menina permanece em sua rede. Informada do acontecimento, sua mãe solicita que seu marido (o pai de sua filha) construa uma nova repartição na casa, onde a menina permanecerá reclusa por uma lua. Como primeira providência, sua família aciona imediatamente um benzedor, encarregado de soprar o fogo da cozinha do grupo doméstico ao qual pertence a jovem, bem como a sua rede . Paralelamente, são providenciados cuias, pilão e panela novos para a menina. No dia seguinte, o pai da moça coleta um determinado cipó, com o qual a mãe prepara uma infusão a ser oferecida à moça por um jovem recém-iniciado, portador do adorno peniano. Essa infusão tem fortes propriedades eméticas, o que faz a jovem vomitar "todas as comidas antigas" que permanecem em seu organismo. Posteriormente, o benzedor sopra a cabeça da jovem para prevenir dores de cabeça. Sua atuação junto à jovem se estende até a madrugada do terceiro dia, quando parte em direção às demais


casas da aldeia para soprá-las também. Assim, o início do período fértil de uma mulher não diz respeito apenas à jovem, mas a todo o universo social. Terminado o fluxo menstrual, uma tatuadora, preferencialmente uma irmã da mãe ou a mãe da mãe, arranha no ventre e nos seios da jovem um conjunto de linhas verticais pintadas com tintura de jenipapo. Uma vez tatuada, os seus cabelos são cortados e todos os seus adornos de criança (colares, cintos, brincos, braçadeiras etc.) são substituídos por peças novas. Em seguida, o benzedor sopra a casa onde mora a jovem, bem como os seus locais de banho, os reservados às suas necessidades fisiológicas e posteriormente a casa dos clãs e algumas árvores próximas ao perímetro da aldeia. No início da segunda menstruação, a jovem volta à reclusão e às proibições alimentares. Mais uma vez, o benzedor volta a soprá-la, assim como sua casa e as demais casas da aldeia. Ao contrário do adorno peniano, as tatuagens não são pagas: não se paga o serviço dos consangüíneos. O estojo peniano e as tatuagens no ventre e nos seios não são apenas símO início do períobolos da sexualidade, mas do fértil de uma partes da pessoa, adquiridas em caráter perpétuo e mulher não diz portadoras também de um respeito apenas sentido profundamente cósà jovem, mas a mico. Quando da sua mortodo o universo te, no caminho do eno (céu social. empíreo, localizado atrás do céu astronômico), para onde se destina um de seus princípios vitais, os EnaweneNawe devem transpor rios caudalosos, onde moram aranhas gigantescas. Esses rios são atravessados por pontes, que são, na verdade, grandes serpentes inofensivas. O fenômeno meteorológico do arco-íris corresponde ao


modo como os vivos enxergam essas pontes. Apenas as pessoas portadoras desses adornos, marcadores da diferença sexual, cruzam o caminho da terra ao céu com segurança. Homens sem adorno peniano, assim como mulheres sem tatuagens no ventre e nos seios, são sumariamente devorados por tais aranhas gigantes quando tentam atravessar as pontes-serpentes. Por último, convém assinalar que o embutimento do pênis acrescenta um considerável volume à região do saco escrota!, /ocus da fertilidade masculina, o que o torna evidentemente mais visível. Da mesma forma, se a vulva é sempre ocultada pela minissaia ou mesmo por folhas presas por um ou vários cintos de contas de tucum durante o banho, as tatuagens sublinham plasticamente a potência da concepção, da gestação e da lactação. Esse breve relato dos ritos de produção da sexualidade de um homem e uma mulher demonstra que, em ambos os casos, tais eventos nunca dizem respeito unicamente aos indivíduos que a eles se submetem. Ao contrário, a fabricação de homens e mulheres é matéria que concerne fundamentalmente aos "outros" e, no limite, corresponde a eventos dos quais participam todo o grupo social. Não se trata aqui portanto de opor "homem" e "mulher" com base nas categorias público e privado ou "centro" e "periferia". Embora as meninas sejam tatuadas no interior da repartição familiar, enquanto os meninos recebem os adornos penianos na casa dos clãs, o benzedor não sopra apenas a menina e sua rede durante a iniciação, mas todas as casas da aldeia e até mesmo a casa dos .clãs. Além disso, não convém esquecer que o menino recebe os paramentos rituais não só na casa dos clãs, mas também em sua repartição doméstica. A oposição público e privado parece nublar, neste caso etnográfico específico, uma outra que me parece sociocosmologicamente mais básica: a relação de espécie, consangüinidade e afinidade. t66


A sexualidade se define como um verdadeiro princípio de ordem social. As vias de acesso à vida adulta para um homem e uma mulher são, no entanto, definidas em sentidos opostos. Entre os Enawene-Nawe, a articulação entre as relações de gênero e as relações de espécie aproxima as categorias de masculinidade e feminilidade às de afinidade e consangüinidade, respectivamente. As tatuagens são produzidas por parentes consangüíneos, "outros-da-mesma-espécie" (mãe, tia materna, avó etc.), sob a égide da mutualidade; o adorno peniado é concedido a um homem por parentes afins- por "outros-de-espécie-diferente" (cunhados) - segundo uma fórmula de reciprocidade. A oposição consangüinidade e afinidade corresponde a um princípio ordenador das esferas pública, doméstica e cósmica da vida social, sempre se manifestando como uma relação entre relações, não uma mera relação entre dois termos: em suma, um sistema de signos no sentido saussuriano da expressão. A oposição de gênero, aqui entendida como aquela derivada da relação entre indivíduos de mesmo sexo e indivíduos de sexo oposto, corresponde a um princípio de mesmo tipo. Os rituais de construção da oposição e complementariedade dos gêneros tornam explícito o caráter imediatamente social da sexualidade. Na iniciação masculina, a relação entre indivíduos de mesmo gênero e mesma espécie se manifesta entre o menino e seu pai; entre indivíduos de mesmo gênero e espécie diferente, entre o menino e seu cunhado; entre indivíduos de mesma espécie e gênero diferente, entre o menino e sua mãe; e entre indivíduos de gênero e espécie diferentes, entre o menino e a jovem recém-iniciada que lhe oferece remédio para que vomite toda a comida presente em seu organismo, ingerida em seus tempos de criança. Na iniciação feminina, por sua vez, são tematizadas as relações entre indivíduos de mesmo gênero e mesma espécie, entre a menina

·e sua tatuadora; entre indivíduos de mesma espécie e gênero diferente, entre a menina e seu pai; e entre indivíduos de gênero e espécie diferentes, entre a menina e o jovem recém-iniciado que lhe fornece a substância emética. Observe-se, nesse sentido, que, a despeito de suas diferenças, ambos os ritos de iniciação reservam papéis idênticos às relações entre indivíduos de gênero e espécie distintos: homem e mulher potencialmente cônjuges, o que evoca imediatamente a noção de simetria e complementaridade entre os sexos. A aquisição do adorno peniano e das tatuagens nos seios e no ventre marca o início de uma fase da vida sexual especialmente intensa, em alguns casos com várias parcerias não apenas entre pessoas da mesma faixa etária, mas também com indivíduos bem mais velhos. Estas aventuras sexuais anteriores ou paralelas ao casamento são marcadas por uma dinâmica diferente da que caracteriza a vida sexual de um homem e uma mulher casados. São ocasiões em que as mulheres adquirem bens manufaturados pelos homens e bastante cobiçados, como cintos, colares, pulseiras, peixe etc., literalmente "trocados por vagina". O uso ostentatório desses adornos, assim como sua profusão, correspondem a sinais visíveis da atividade sexual de uma mulher. Com a aproximação do casamento, homens e mulheres tendem a estabilizar a sua vida sexual com o futuro cônjuge, embora, em algumas circunstâncias, voltem a ter outras parcerias eventuais. São necessárias muitas relações sexuais para que uma mulher fique grávida. A gravidez é entendida como um processo decorrente da combinação, no calor do útero, de uma razoável quantidade de sêmen com sangue menstrual, que se volta para dentro durante a gestação. Os embriões desenvolvem em primeiro lugar o tronco, os braços e a pulsação cardíaca; depois as pernas e, finalmente, a cabeça. Se a mulher tiver relações sexuais


com mais de um homem durante esse período, este também, junto com o pai, estará colaborando na fabricação biológica da criança. O esperma, pouco a pouco, se desloca para os seios, para formar o leite. Enquanto a vagina estiver seca, as mulheres continuam mantendo relações sexuais. Quando, afirmam as mulheres, a vagina enraivecida ficar molhada, a criança estará pronta para nascer.

* Segundo o esquema cosmológico nativo, os Enawene-Nawe habitam o patamar intermediário do universo, entre o patamar dos espíritos celestes e o dos espíritos subterrâneos. Os espíritos celestes são belos, claros, generosos, brincalhões, bondosos e saudáveis, vivendo num mundo de plenitude sexual, repleção alimentar e perfeição sociológica. Os Enawene-Nawe se referem a esses espíritos como seus "avós", e a eles tributam um poder praticamente absoluto de prevenção e cura das enfermidades. Os espíritos celestes são ainda os donos do mel e de alguns insetos voadores, e acompanham os Enawene-Nawe quando estes partem em expedições de pesca ou coleta, protegendo-os dos perigos do mundo exterior à aldeia. A perfeição sociológica do mundo celeste se traduz na absoluta perfeição arquitetônica da aldeia dos "avós", assim como na pródiga natureza circundante, fonte inesgotável de todos os prazeres gastronômicos. Enquanto isso, os espíritos subterrâneos são feios, implacáveis, sovinas, perversos, insaciáveis e promotores da doença e da morte. São os donos da quase totalidade dos recursos ençontrados na natureza, como o peixe, a madeira, os frutos e os principais produtos cultivados. Enquanto os espíritos celestes guardam entre si uma razoável homogeneidade física, os espíritos subterrâneos podem assumir formas extremamente variadas, todas elas dantescas. Além disso, são extremamente preguiçosos. Uma vez que esses espíritos são 168

donos dos recursos naturais, os Enawene-Nawe deles dependem para a produção de comida e, conseqüentemente, para a reprodução da vida social. Assim, enquanto o mundo celeste se define fundamentalmente como um mundo do "entre-si", o mundo dos humanos -seu espectro imperfeito corresponde a um mundo do "entre-outros", uma vez que depende do mundo subterrâneo (o mundo da alteridade) para se reproduzir. No cosmos enawene-nawe, o mundo celeste e o subterrâneo correspondem, respectivamente, a arquétipos da consangüinidade e da afinidade em estado puro. O mundo dos humanos, ao contrário, corresponde a uma arena onde se combinam esses dois princípios. Assim é que a estrutura social define suas unidades constitutivas (família nuclear, família extensa, grupo residencial e clã) com base precisamente na articulação desses parâmetros com os parâmetros do gênero.

* A esfera cerimonial enawene-nawe é notavelmente complexa. Em linhas gerais, podemos observar que o calendário nativo distingue duas "estações" rituais muito bem marcadas: uma que diz respeito às relações com os espíritos celestes, coincidindo com o período de enchente dos rios, e outra, muito mais extensa, voltada para os espíritos subterrâneos, realizada durante os períodos de cheia, vazante e seca. Se ambas as estações são fundamentais, a primeira é marcada por um grau de formalidade bem menor que a segunda. Tanto é que, ao contrário das cerimônias dirigidas aos espíritos subterrâneos, as primeiras podem ser notadamente abreviadas por razões de ordem prática. O complexo ritual dedicado aos espíritos subterrâneos se caracteriza, em linhas gerais, pela seguinte dinâmica: Os "anfitriões", todas as mulheres e os homens de um ou dois clãs, permanecem na aldeia, enquanto os "outros", homens dos


demais clãs, organizam grandes expedições de pésca. Enquanto os homens que saem se encarregam de acumular peixes, os que permanecem na aldeia, junto com algumas de suas irmãs, as "anfitriãs", processam uma grande quantidade de mandioca e de sal vegetal. Construída simbolicamente a separação radical entre os que saem e os que ficam, os pescadores retornam à aldeia paramentados como espíritos subterrâneos ameaçadores, e lá são recebidos pelos "anfitriões", que não utilizam nenhum tipo de adorno além dos em blemas da sexualidade. Os "anfitriões"- oferecedores de mingau de mandioca e de sal - se concebem como humanos e ali representam metonimicamente o todo social. Enquanto isso, os homens que chegam das expedições representam metaforicamente os espíritos subterrâneos que invadem agressivamente a aldeia. Pouco a pouco, o grupo dos "anfitriões" domestica o dos espíritos, fazendo com que estes se abaixem e comam sal em suas mãos. O encontro desses dois grupos é marcado por uma sucessão de cerimônias que incluem falas ritualizadas, danças, execução de peças cantadas e instrumentais, sob a responsabilidade exclusiva dos pescadores, representantes da alteridade. Os "anfitriões", isto é, os representantes dos humanos, limitam-se a ficar sentados em torno dos círculos de dança, a manter acesas as fogueiras que iluminam e aquecem o pátio, e a servir comida e bebida aos espíritos cantores - dançarinos representados pelos pescadores. Os "anfitriões" se definem como uma comunidade cimentada pela consangüinidade, perante os pescadores, espíritos afins entre si. Sobre esse ponto cumpre assinalar que os anfitriões são tecnicamente membros de ambos os sexos de um clã exogâmico ou de dois clãs que não estabelecem relações de troca matrimonial (sendo, portanto, "consangüíneos funcionais"). Enquanto isso, os pescadores constituem um contingente composto


por indivíduos de mesmo gênero, mas de espécies diferentes - afins entre si -, representantes de todos os demais clãs. Os homens que permanecem na aldeia representam o papel de mulheres diante dos homens que vieram do exterior (representantes dos espíritos), uma vez que, no cotidiano, são as mulheres que oferecem mingau aos homens, e os homens, peixe às mulheres. Além dos parâmetros do formalismo e da rigidez, outras diferenças notáveis entre as cerimônias relacionadas às legiões subterrâneas e celestes devem ser assinaladas. Ao contrário do que acabamos de observar na relação entre os EnaweneNawe e os espíritos subterrâneos, os ritos que focalizam os espíritos celestes nunca são marcados por climas de tensão e simulação de hostilidades. Além disso, os cânticos congregam a totalidade dos homens ou das mulheres no centro da aldeia, não se verificando qualquer dispositivo de diferenciação além dos de gênero. São abolidos os adornos e as pinturas: são apenas humanos. Durante este período do calendário enawene-nawe, todos os homens vão juntos coletar mel e pescar, enquanto todas as mulheres se empenham na preparação de mingau. Com a volta dos homens à aldeia, tematizam-se a complementaridade e o equilíbrio sexual. Nessas ocasiões, os homens trocam mel, "muco vaginal masculino" - produzido pelos homens para as mulheres, - por mingau, "sêmen feminino" - produzido pelas mulheres para os homens3. Os homens, nessas ocasiões, correm atrás das mulheres a fim de cobrir seus corpos de mel. Segundo os Enawene-Nawe, o mel tem cheiro de vagina. Por outro lado, a analogia entre o mingau e o esperma é igualmente evidente, sustentada pela cor e consistência dessas duas substâncias. ,Resumindo, durante a estação ritual que focaliza a relação entre os Enawene-Nawe e os espíritos subterrâneos, os "outros-diferentes", tematiza-se a relação de espécie, através de uma 170

inversão da opos1çao de gênero. Enquanto isso, durante a outra estação, que 'focaliza a relação entre os Enawene-Nawe e os espíritos celestes, os "outros-idênticos", te matiza-se a relação de gênero, com a neutralização da oposição de espécie. Os parâmetros do gênero e da espécie recortam não apenas a esfera doméstica do parentesco, mas correspondem propriamente a "categorias", princípios organizadores do universo social e do cosmos. Voltemos agora ao ponto de partida. Com base na Com base na etnografia enawene-nawe, etnografia enawene-nawe, poderíamos formular duas hipóteses sopoderíamos formular duas hipóteses sobre as relações bre as relações de gênero, uma de gênero, uma enfatizando enfatizando a hierarquia entre os seus a hierarquia entre os seus termos, outra, o seu caráter simétrico. termos, outra, o seu caráter simétrico. A hipótese do "domínio masculino" poderia repousar por exemplo na noção de "controle da ordem social", apoiada no universo da afinidade e, portanto, da masculinidade. Por seu turno, a hipótese da "igualdade sexual" poderia estar ancorada na produção e na dinâmica da vida social nesse sistema, em que "masculino" e "feminino" correspondem a papéis complementares em rigoroso equilíbrio. Ambas as hipóteses podem ser sustentadas pela etnografia enawene-nawe, com a condição de entendermos uma como cara, outra como coroa. O que dizer sobre a moeda? Observamos aqui que os ritos de produção da sexualidade associam feminilidade e masculinidade à consangüinidade e à afinidade, respectivamente. Observamos em seguida como a consangüinidade e o feminino se articulam à interioridade, à identidade e à relação de gênero, enquanto a afinidade e o masculino se articulam 3 A simbólica do mel e do mingau, definindo-os respec· à exterioridade, à diferença e à relação de espétivamente "muco vaginal cie. Observamos finalmente que gênero e espémasculino" e "sêmen femini· cie correspondem a princípios sociológicos de no" nos remete diretamente organização não apenas entre os vivos, mas tamao clássico exemplo araweté.


bém de organização do universo. O caso enawenenawe opera de tal maneira que a oposição de gênero é mais visível no mundo do "entre-si", quando é tematizada a relação entre os EnaweneNawe e seus "outros-idênticos" (os humanos e os espíritos celestes), enquanto a oposição de espécie parece ser o que importa no mundo da diferença, do "entre-outros" (entre os humanos e os espíritos subterrâneos).

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Os Javaé da Ilha do Bananal, subgrupo Karajá estudado por Patrícia Mendonça, fornecem um contraponto extremamente interessante ao caso enawene-nawe. Segundo os ]avaé, o tempo pode ser dividido em dois períodos: um tempo anterior, marcado pela ausência de relações sexuais, e um tempo atual, caracterizado pelo sexo e pela procriação. A cosmologia javaé é centrada na oposição entre dois seres, os aruanã e os aõni. Os primeiros são humanos originais que não conseguiram escapar do mundo aquático primitivo. Vivem entre si, sob o império da consangüinidade, em um O pensamento ameríndio parece acenar com dimundo caracferentes possibilidades de combinação dos sigterizado pela nos do gênero e da espécie, o que equivale dizer ausência de envelhecique não se sustenta qualquer generalização mento e de etnográfica que tenha como resultado o congelamorte e pela mento dessa combinação, isto é a associação a plenitude alipriori entre um gênero e uma espécie. mentar. Embora sejam sexuados e belos, não há vida sexual entre eles, porque são todos irmãos e irmãs entre si. Nos rituais, seus movimentos são controlados e contidos, enquanto cantam melodias bonitas e ritmicamente bem marcadas. Por outro lado, os aõni vivem em uma dimen-

são terrestre invisível e são estranhos uns aos outros. Embora a diferença sexual não se verifique entre eles, são seres altamente sexualizados e insaciáveis. Emitem grunhidos ininteligíveis e são feios, agitados, impulsivos e profundamente sovinas. Segundo os ]avaé, a sovinice alimentar e o incesto fazem os humanos se transformarem nesses seres. Os humanos situam-se em um ponto intermediário entre a consangüinidade absoluta dos aruanã e a afinidade absoluta dos aõni. A vida cerimonial javaé tem como tema o controle dos aõni pelos aruanã. Nesse contexto, as letras das canções dos aruanã tematizam o desmesurado apetite sexual dos aõni diante de seu desinteresse sexual. Os aõni são as "mulheres" dos aruanã, dizem os ]avaé. Acima das diferenças etnográficas entre as cosmologias javaé e enawene-nawe, a aproximação entre os seus espíritos e os nossos é bastante tentadora. A comparação dos casos javaé e enawene-nawe permite afirmar, de imediato, que as categorias do gênero e da espécie são, em ambos os casos, indissociáveis. Uma pressupõe imediatamente a outra. Por outro lado, a associação entre as duas ordens não se dá da mesma maneira nesses dois povos: enquanto os Enawene-Nawe aproximam a afinidade ao masculino e a consangüinidade ao feminino, o contrário se passa entre os Javaé. Para este povo, a afinidade é feminina e a consangüinidade, masculina. Em resumo, o pensamento ameríndio parece acenar com diferentes possibilidades de combinação dos signos do gênero e da espécie, o que equivale dizer que não se sustenta qualquer generalização etnográfica que tenha como resultado o congelamento dessa combinação, isto é, a associação a priori entre um gênero e uma espécie.

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Os parâmetros do gênero e da espécie recortam não apenas a esfera doméstica do parentesco, mas

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correspondem propriamente a categorias, princípios organizadores do universo social e do cosmos. A perspectiva defendida aqui para a análise das relações de gênero permite, além disso, entender os conceitos nativos sobre a questão. A língua falada pelos Enawene·Nawe dispõe de categorias que expressam o dimorfismo sexual: ena ("homem", "mas· culino", "macho") e wiro ("mulher", "feminino", "fêmea"), que podem ser empregadas para os humanos, os animais e os espíritos. Os vocábulos nativos para os órgãos genitais são akositi e talasiti, "vagina" e "pênis", respectivamente. Além disso, a língua dispõe dos sufixos de gênero -re/-lo (como por exemplo em yaya·re/yaya-lo, "vergonha masculina"/"feminina"). Com a associação dos sufixos de gênero aos vocábulos que designam os órgãos genitais, os Enawene·Nawe produzem um novo par de conceitos no universo das relações de gênero, akositare e talasitalo, para designar os homem e as mulheres sexualmente ativos, respectivamente. Uma análise morfológica desses vocábulos corresponde às seguintes traduções literais:

akosita-re = vagina+ "sufixo do gênero masculino" talasita-lo = pênis + "sufixo do gênero feminintl' A classificação nativa parece assim corroborar precisamente a perspectiva da sexualidade como um sistema de signos (de relações), e não como uma mera oposição entre atributos substantivos. Além disso, as categorias do gênero definem um sistema que articula duas oposições assimétricas (termo e relação) e inversas (segundo a perspectiva sexual), em que o termo ena ("homem") está para a relação talasita-lo ("mulher-para-o-homem"), assim como o termo wiro ("mulher") está para a relação akosita-re ("homem·para-a·mulher"). Em síntese, o órgão genital de um gênero é o órgão sexual do outro. 172


Referência bibiográfica

• Márcio Silva é professor de Antropologia da USP e vicepresidente da Associação Brasileira de Antropologia (ABA). Fotos de Plácido Costa.

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poemas vagner gonçalves da silva*

Versão crua: A onça que nos traz o fogo é o amor nosso de cada dia Versão cozida: Se os alimentos são bons para pensar enquanto como penso que te amar e ter bons modos à mesa são os únicos ritos de civilidade possíveis


bosque sagrado ndembu boi nuer jardim de coral trobriandes arco e cesta guaiaquis casa dogon quintal krahó e acima destes pensamentos domésticos o universo todo se expande intercalando buracos negros, revoluções neolíticas e uma fina garoa que não passa

vistos de cima sentimentos são búfalos selvagens porém o vapor das pálpebras embaça trechos janela, elevador, área de serviço *Vagner Gonçalves da Silva é professor e doutorando pelo Depto. de Antropologia Social da FFLCH-USP.

vistos de baixo sem altitude, mordo o anzol dorso céu e caio num canto morno do quintal


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O que teria levado Rousseau, no Emílio, para nossa surpresa, a afirmar que o primeiro livro de leitura do seu aluno imaginário deveria ser As Aventuras de Robinson Crusoe, de Daniel Defoe? O que está em jogo no tratado de Rousseau é a educação doméstica, natural, isto é, a educação do homem, já que, na atualidade, segundo ele, não existe mais pátria nem cidadão, pelo menos no sentido forte dessas expressões, que indicam participação ativa nos negócios públicos, interesse pela causa coletiva e liberdade de atuação política sem passar por tantas mediações representativas. Não faz sentido, portanto, um processo educativo promovido pela cidade, com o objetivo de forjar o cidadão. Tal empreendimento, dado o atual estágio de degeneração em que se encontra a sociedade, só serviria para acelerar ainda mais o processo de deterioração. E por que destacar Robinson Crusoe - e não Sexta-feira, já que todas as referências que o educador considera importantes dizem respeito ao personagem narrador da aventura - como o modelo para o jovem aprendiz? Se tomássemos como referência o Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, o elogio do "bom selvagem" poderia induzir-nos a pensar que aquele indígena poderia muito bem ser objeto de uma atenção maior de Rousseau,

ÉMILE-ROBINSON OU ÉMILE -VENDREDI? Milton Meira do Nascimento* quando estivesse em causa a definição de um personagem que se aproximasse mais do homem natural. Mas não é o que ocorre. Robinson Crusoe, na sua ilha, sozinho, desprovido da assistência de seus semelhantes e dos instrumentos de todas as artes, provendo contudo a sua subsistência, a sua conservação, e alcançando até uma espécie de bem-estar, eis um objeto interessante para qualquer idade e que temos mil meios de tornar interessante às crianças. Eis como realizamos a ilha deserta que me servia a princípio de comparação. Essa situação, convenho, não é a do homem social; com toda verossimilhança não deve ser a de Emílio; mas é segundo essa situação que deve apreciar todas as outras. O meio mais seguro de elevar-se acima dos preconceitos e de ordenar seus julgamentos sobre as verdadeiras relações das coisas está em colocar-se no lugar de um homem isolado e tudo julgar como esse homem deve julgar ele próprio, em razão de sua utilidade (Rousseau, 1973:198). A condição de Robinson em sua ilha é, pois, uma espécie de paradigma para Emílio, ou seja, é o lugar a partir do qual deve julgar todas as outras situações. Há um dever-ser da educação natural, pois esse aluno imaginário, segundo 177


Rousseau, será um selvagem, não para viver na selva, mas na cidade, ou melhor, na selva da cidade moderna. Como é possível viver na companhia de outros homens, quando as relações de sociabilidade se encontram deterioradas? A solidão de uma ilha seria o caminho inverso, seria a fuga da sociedade. Não é isso o que Rousseau pretende para seu Emílio e, além do mais, no estágio atual em que nos encontramos, não há para onde fugir. No entanto, só nos resta a educação doméstica, a do homem e não a do cidadão, exatamente para que tenhamos todas as condições de enfrentar a lei da necessidade. Emílio, em qualquer lugar, saberá o que fazer, estará preparado para superar todas as adversidades. Sexta-feira, por sua vez, é proveniente de uma comunidade, segundo Robinson, primitiva, selvagem, e traz consigo até esse hábito terrível de comer os inimigos num ritual. Se fôssemos recuar no tempo, esse personagem estaria muito mais perto do homem natural do que Robinson. Por que não seria Sexta-Feira o modelo para Emílio? No Discurso sobre a desigualdade, Rousseau constrói uma história hipotética da humanidade. Sua investigação pretende chegar a um esboço do homem natural, sem história, comparável à estátua de um escultor no momento da criação. O que seria o homem ao sair das mãos da natureza? Samuel von

o possível contato com o outro é sempre uma ameaça ao lmpério do solitário. Mas a civilização é insinuante como as correntes do mar que vêm do continente. Pufendorf, no seu texto mais importante, Le droit de la nature et des gens, que Rousseau havia lido atentamente, afirma que se pudéssemos imaginar o homem em seu estado natural puro, deveríamos supô-lo como se tivesse "caído das nuvens" (Pufendorf, 1732:149). Robinson Crusoe, salvo do naufrágio, parece ter "caído das nuvens", sozinho no mundo, sem saber onde está. No entanto, como carrega a bagagem da civilização européia, sua tarefa é retomar, sozinho, a construção ou a expansão dos seus domínios. Sexta-feira, na história hipotética de Rousseau, estaria bem menos desfigurado do que Robinson. Resta saber por que não pode servir de modelo para Emílio. Pierre Burgelin, ao comentar essa passagem do Emílio, usa uma expressão muito significativa, "Émile-Robinson", para denotar o quanto é importante essa aproximação no texto de Rousseau (1969:1465). Não seria possível, em hipótese alguma, algo como "Émile-Vendredi", exatamente porque Sexta-feira significa a ruptura da solidão, o marco zero da civilização.


O medo que acompanha Robmson ao tentar por todos os meios um local seguro para esconder-se de possíveis ataques de canibais e de animais selvagens, os esforços para criar o seu rebanho de cabras ou para plantar o necessário para sua subsistência, sempre tomando cuidado para não facilitar um possível ataque de outros que pudessem pilhá-lo, assinalam muito bem sua decisão e sua resolução, ou até mesmo sua resignação de estar só e de assim viver para o resto da vida. O possível contato com o outro é sempre uma ameaça ao império do solitário. Mas a civilização é insinuante como as correntes do mar que vêm do continente. Os canibais chegam como ondas. Uma ou duas canoas, depois três e finalmente dez. Numa dessas ondas chega Sexta-feira. Fim da solidão e início do processo civilizatório, desta vez com a presença de uma figura ímpar. O selvagem, tão temido por Robinson, agora está ali a agradecer àquele que o salvou das mãos dos inimigos e a oferecer-se como escravo. Ao que Robinson imediatamente concorda, pois era exatamente isso que sempre desejara, alguém que pudesse ajudá-lo em seu trabalho civilizatório.

os canibais chegam como ondas. uma ou duas canoas, depois três e finalmente dez. Numa dessas ondas chega sexta-feira. Fim da solidão e início do processo civilizatório, desta vez com a presença de uma figura ímpar. A partir desse momento, as vagas civilizatórias se precipitam. Robinson agora tem um ajudante para interferir na prática ritual dos canibais, para salvar suas vítimas. Logo a seguir, conseguem salvar o pai de Sexta-feira juntamente com um espanhol. Mas, numa outra vaga de chegada de possíveis selvagens- a ponto de Sexta-feira pensar que homens brancos estivessem se preparando para devorar outros brancos, tal como sempre estivera habituado a ver entre tribos rivais-, marinheiros amotinados decidem abandonar o capitão e seus imediatos na ilha como sinal de triunfo do ato rebelde de depor o capitão e assumir o comando do navio. A primeira impressão de Sexta-feira, uma espécie de ilusão, é, na verdade, um julgamento que aprendera com Robinson, de que comer carne humana é uma prática detestável, própria de um estado de barbárie, e que agora estaria acontecendo também entre os brancos. A barbárie e a decadência não seriam exclusivas dos canibais. Enfim, todos, sem exceção, precisam de um corretivo civilizatório. Mas não é qualquer um que está em condições de fazer esse julgamento, visando a uma espécie de transformação da natureza humana corrompida.É

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Robinson, agora ajudado por Sexta-feira, que já havia sido transformado, a ponto de imaginar que pudesse ensinar a seus irmãos a não mais comerem seus inimigos. Mas Robinson só conseguiu mudar o comportamento de Sexta-feira depois de ele ter sido transformado, num longo processo de aprendizagem árdua, na solidão, tendo apenas um papagaio com quem falar, um cão de estimação, a casa e todos os instrumentos para construir, animais para domesticar e um campo para cultivar. Certamente não será Robinson Crusoe, um inglês civilizado, quem poderá fazer um julgamento severo daqueles canibais, apenas pelo fato de ser europeu. Devido à sua nova condição, seu novo lugar no mundo- a ilha-, suas idéias se transformam. Na solidão, depois de sofrer um longo processo corretivo imposto pela natureza, vivendo segundo a lei da necessidade, consegue ponderar que aqueles selvagens não eram piores do que os espanhóis, cuja fama de atrocidades cometidas contra os povos das Américas era conhecida em toda a Europa. As práticas dos caribes também não eram piores do que as dos tribunais da Inquisição. Além disso, "que autoridade ou direito tinha eu para pretender ser juiz e algoz daqueles homens a quem os Céus haviam permitido viver impunes por tanto tempo e, por assim dizer, justiçando-se uns aos outros? ... É certo que essa gente não pratica isso como um crime; tampouco é reprovada por suas próprias consciências, ou recebe qualquer tipo de censura ... Acreditam que matar um prisioneiro de guerra ou comer a carne é fato tão criminoso como o é para nós matar um boi ou comer carne de carneiro ... Essas pessoas não eram mais assassinas, no sentido em que anteriormente eu as havia condenado em meus pensamentos do que aqueles cristãos que freqüentemente condenam à morte prisioneiros capturados em batalha; ou que, em determinadas ocasiões, passam tropas inteiras ao fio da espada, sem lhes dar perdão, apesar de já haverem entregue as armas" (Defoe, 1977:189-190). Tais reflexões, que Robinson ainda fazia quando se encontrava sozinho, levaram-no a abandonar seus planos de abrir fogo contra aqueles povos primitivos e de assim nivelar-se aos espanhóis. Seus propósitos, que foram se confirmando rapidamente desde o sucesso da investida que tornou possível a fuga de Sexta-feira, eram libertar prisioneiros e dar início ao processo de construção de um novo mundo com o material humano que dispusesse. A terceira onda, que traz os marinheiros amotinados, cÓmpletará a epopéia da fundação e, ao mesmo tempo, tornará possível a volta de Robinson para sua terra. Se a solidão havia ajudado Robinson em seu processo forçado de auto-educação, como se tivesse "caído das nuvens", transmitir a outros suas descobertas de solitário, sua maneira de olhar os outros homens, com seus costumes estranhos e suas religiões, seria o próximo passo. Seu primeiro discípulo será Sexta-feira, que aprende a falar a língua do amo e tantas outras coisas com uma rapidez e

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inteligência espantosas. Mas, para isso, era necessário, "por assim dizer", para repetir uma expressão de Rousseau, mudar a natureza daquele homem acostumado a comer carne humana, até chegar ao ponto máximo de que é possível o processo de transformação. "Nessa grata atmosfera passava todo o meu tempo livre, e as conversas com Sexta-feira tornaram aqueles três anos que vivemos juntos na ilha absolutamente felizes, se é que pode haver felicidade completa no plano sublunar. O selvagem já era um bom cristão e sem dúvida melhor do que eu; tenho razão para crer e esperar, e agradeço a Deus por isso, que ambos estávamos arrependidos e que o conforto de Deus já nos havia alcançado"(Defoe,

1997:241). Compreende-se, agora, por que Rousseau dera tanta importância à epopéia de Robinson antes da chegada de Sexta-feira. Aquele fora o momento da educação de Robinson como homem. Para tanto, era necessário recuar mais no tempo e reencontrar a estátua menos desfigurada. Isto é, o Robinson da ilha não é o mesmo que abandonara tudo e se pusera a viajar pelos mares, para fugir do tédio de uma vida bem-regrada e honesta com a qual pudesse enriquecer, casar-se, ter

se Rousseau tivesse tomado sexta-feira como modelo para o Emílio, seria preciso mudar a história daquele personagem. filhos e viver feliz. Ele queria mais, queria superar desafios, afrontar o desconhecido. Sozinho em sua ilha, iria aprender a verdadeira dimensão da humanidade antes do aparecimento do Estado. Desse lugar privilegiado, agora podia lançar seu olhar ao longe, estudar a sociedade, compreender o outro, a diferença, e, quem sabe, retomar o projeto de construção da vida política segundo novas bases, ou então poder viver em qualquer situação, porque, depois daquela experiência, o que mais poderia assustá-lo? Sexta-feira, ao iniciar sua fase de convivência com Robinson, também irá recuar um pouco mais no tempo, até encontrar-se em condições análogas a de seu senhor. Esse recuo simultâneo, pela necessidade de cooperação visando à superação da lei da necessidade, fará com que cheguem àquele ponto acima referido, da maior felicidade de que é possível desfrutar neste mundo sublunar. A chegada de Sexta-feira dera início a uma nova sociedade, que teve sua idade de ouro naqueles três anos de alegria. A partir desse instante, com as novas ondas de visitantes, a história começa a correr numa velocidade espantosa. É hora de abandonar a ilha e voltar para casa.

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Do ponto de vista antropológico, a visada de Defoe - em que pese a sua inclinação pelos avanços tecnológicos do homem "civilizado" europeu, em detrimento das condições inferiores do "selvagem" do caribe -, interpretada por Rousseau, ganha uma nova dimensão, sobretudo porque o lugar de onde fala Robinson não é exatamente o do homem europeu "civilizado". O herói náufrago, se tivesse conhecimentos mínimos de agricultura e de outras artes úteis, certamente não teria tido tanta dificuldade para sobreviver, o que só viria confirmar aquela preferência de Defoe. Mas não podemos deixar de enfatizar que o olhar do outro, Sexta-feira, principalmente com suas objeções em relação às questões teológicas, conseguem balançar algumas certezas de Crusoe. Não foi muito difícil explicar àquele aluno atento os fundamentos do Cristianismo, como a existência de um Deus benfeitor, a queda do homem no Paraíso e a vinda de um redentor. Mas quando lhe foi apresentada a figura do diabo, nosso herói ficou sem resposta. Afinal, Sexta-feira não conseguia entender por que Deus, sendo todo-poderoso, não acabava de uma vez com aquela criaturinha tão desprezível e fonte de todos os males. O "selvagem" tinha objeções bem-fundamentadas. Não nos esqueçamos de que tudo isso deveria servir de lição para o Emílio, que, diga-se de passagem, em matéria de religião, causaria horror aos pastores calvinistas de Genebra e aos bispos católicos de Paris. A religião do Emílio é a do coração, sem cultos e sem a instituição hierárquica dos chefes da Igreja. Se, portanto, o personagem Robinson é o modelo para o Emílio, as lições de destreza, habilidade e argúcia intelectual demonstradas por Sexta-feira não passarão despercebidas. Muito menos seu senso de justiça e seu desejo de ser útil à comunidade de onde partira. Se Rousseau tivesse tomado Sexta-feira como modelo para o Emílio, seria preciso mudar a história daquele personagem, como, por exemplo, imaginá-lo sozinho na ilha, tendo escapado dos seus inimigos, trabalhado arduamente para sobreviver e só muito mais tarde, vinte e três anos depois, ter se encontrado com Robinson. Esta seria uma ficção bem diferente da versão moderna de Michel Tournier (1972), que prima pela beleza da narrativa, que destaca a figura do coadjuvante das Aventuras de Defoe e o estilo daquele grande escritor, mas não pretende apresentar-se como uma contribuição para a Antropologia moderna (embora os antropólogos assim possam interpretá-la, mesmo correndo o risco de anacronismo, quando comparada ao clássico que lhe deu inspiração). A dupla Robinson-Sexta-feira, nos seus três anos de felicidade, teria experimentado então o prazer de ter vivido na época de ouro da humanidade, descrita por· Rousseau no Discurso sobre a origem da desigualdade. Eles poderiam ser também o paradigma para o início bem-sucedido do processo de socialização do homem e, neste caso, serviriam como referência para o Estado bem-constituído do Contrato Social.

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• Milton Meira do Nascimento é professor de ética e filosofia política no Departamento de Filosofia da USP, fundador e editor do Jornal de Resenhas da Folha de S. Paulo. Ilustrações: Felipe Süssekind e Rafa Campos.


A ARQUITETURA DECISIVA DE UM PAÍS PROVISÓRIO D a f n e de S o u z a S a m p a i o *

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Figura 1 Os telhados, os postos de gasolina, os escritóri os são quase os mesmos; as pessoas vão e vêm, ficam paradas, riem ou se olham. Os Estados Unidos da América, mais que um país, um território cheio de implicações simbólicas, revelam-se nas obras de Edward Hopper e Henri Cartier-Bresson com uma triste clareza poucas vezes alcançada. Planície. No meio do nada, trilhos; um trem passa a todo vapor, um, dois, três, vários vagões, fumaça. Em primeiro, plano a carcaça de um carro já antigo e mais pedaços de outros carros também destruídos, um ferro velho no meio da planície do Arizona. Esse país é assim , o ano é 1947, e a mo-

dernidade vai passando, bela e eficiente mesmo que um pouco suja, sem se dar conta das carcaças, do passado. Não aparece nenhuma figura humana nesta foto e seu autor é Henri Cartier-Bresson (1991:95, figura 1). Trilhos novamente, agora em primeiro plano, e um pouco atrás uma casa- uma casa junto à ferrovia. É impossível saber sua localização geográfica exata, mas é uma casa enorme de madeira, com dois andares, uma torre e um alpendre. Parece manhã, algumas janelas abertas, outras fechadas, tudo puxa para o azul, é manhã. Este quadro é pura descrição objetiva e também não possui nenhuma figura humana. O ano é 1925 e o pintor é Edward Hopper (1992:30, figura 2). A solidão é o que está mais presente tanto na foto quanto na pintura. Mesmo sem aparecer ninguém, ou exatamente por isso, é a solidão que corta essas paisagens, e não poderia ser diferente, já que em um país tão grande como os Estados Unidos, tanto espaço, é esse desamparo o que mais comove. Os EUA, país com grande carga simbólica, onde sempre foi fácil criar lendas e forjar ícones desde sua independência, e até antes, conseguiu atrair diversos povos em troca de um admirável mundo novo com trabalho e dinheiro, promessas. Essas esperanças e as conseqüentes desilusões são o motor principal de todo o imaginário americano. Hopper é americano e mesmo que não quisesse reproduziria, como afinal de contas reproduz, o ideário de seu país. A tradição realista e objetiva que ele herda é forte demais, e o impacto desse olhar espontâneo invariavelmente ignora a pobreza por detrás de construções tão rígidas. Cartier-Bresson é francês; então, quando chega aos EUA, tudo é novo, todas as coisas que o olhar local deixa passar pelo costume, ele apreende, e todos os séculos de fantasias criadas e documentadas o fascinam, mesmo quando não existem mais, se é que existiram algum dia.

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figura

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Como cada um desses artistas viu a América, quais temas os tocaram, como o imaginário americano chegou a cada um e como eles o utilizaram. As perguntas se acumulam, e mais ainda: como Hopper, um belo e discreto retratista da cena americana, influenciou Cartier-Bresson, e como este se afastou dessa influência, forjando seu próprio olhar. O olhar local e o estrangeiro sobre os EUA - ou sobre seu alter ego mítico que é a América - se completam e se chocam, mas antes ... Pequenas b1ograf1as

Edward Hopper nasceu no ano de 1882 em Nyack, Estado de Nova York. Estudou, na Escola de Arte de Nova York, ilustração publicitária e depois pintura. Foi lá, nas aulas de Robert Henri, que encontrou seu es~ilo e seus temas. Robert Henri liderava um grupo de pintores que ficou conhecido como a Escola do Caixote do Lixo ou Escola do Entulho (Ash Can School ), que retratava o pulsar da cidade, o cotidiano, comprometido com o realismo objetivo. Hopper foi muito 186

influenciado pelo seu professor, mas a partir das viagens que fez a Paris entre 1906 e 1910 e do trabalho como ilustrador publicitário que durou até 1924, muitas outras preocupações e temas foram incorporadas ao seu universo do entulho, da cidade: paisagens campestres, o mar, a costa (como Cape Cod, onde costumava passar os verões de 1933 em diante). Suas pinturas e seu estilo ficaram sendo emblemáticos da realidade dos EUA e influenciaram muito outros artistas: pintores, fotógrafos e diretores de filmes. Ele pintou a "arquitetura vernácula das cidades americanas" com silêncio e solidão Oanson, 1986:718). O período mais importante de sua obra vai da década de 20 até 1965, quando pintou seu último quadro. Edward Hopper morreu em 1967. Henri Cartier-Bresson nasceu em 1908, francês e filho de um industrial do ramo de fiação . Teve acesso à elite intelectual parisiense e pelo fim da década de 20 teve aulas com um desconhecido pintor cubista. Decidiu-se finalmente, no começo da década de 30, pela fotografia, mais especificamente pelo fotojornalismo, porém, mesmo com essa preocupação documental, suas fotos têm evidentes características surrealistas na composição, influência essa que sempre confirmou. Três artistas o influenciaram: Man Ray, fotógrafo e artista plástico, um dos "cabeças" do movimento surrealista; Eugene Atget, veterano retratista de Paris, sua Paris deserta do final do século XIX, e André Kertesz, fotógrafo húngaro radicado na França, que também retratava imagens do cotidiano urbano. Viajou por todo o mundo trabalhando pela agência Magnun, fazendo livros de fotojornalismo, que ficaram muito famosos (como os das viagens pela Índia, Rússia e América). Nós sofremos de contágio, passamos a olhar e lembrar com as mesmas imagens que ele tirou. Cartier-Bresson continua vivo, mas parou de fotografar há algum tempo; atualmente só desenha.


Es a os: a c1dade, fora e dentro

A cidade pode ser grande ou pequena, escura ou clara, mas nunca vai deixar de surpreender a quem a olha. Cartier-Bresson é atraído por essa decadência: o ferro fundido, as grandes construções com paredes escuras, os becos, os elevados. Uma de suas fotos americanas mais famosas é "New York, 1947" (1991:115, figura 3); nela, um homem está sentado na guia, observando e sendo observado por um gato que está a sua frente, no cruzamento de um beco com uma rua pequena no meio da Grande Maçã, e parece pequeno, apertado entre dois prédios que cobrem quase toda a foto. É o homem sozinho, oprimido pela grandiosidade indiferente dos enormes prédios escuros concretos e isso o fotógrafo faz questão de frisar. ' Outro motivo bastante urbano é o trabalho. Os bancos e escritórios no centro da cidade são os lugares onde grande parte das pessoas vivem durante

Figura 3

o dia e também aparecem, como não poderia deixar de ser, nas fotos e pinturas. No quadro de Hopper, "Office at Night" (1992:49, figura 4), o chefe e a secretária estão fazendo hora extra, mas não existe comunicação entre eles, só estão próximos porque a sala é pequena e todo o quadro exala esta monotonia de uma relação absolutamente impessoal. O jogo de iluminações, misturando luz artificial com natural deixa em suspenso esta pequena quebra de rotin~ que a secretária coloca ao esperar alguma ordem, qualquer ordem, de seu chefe. Na foto de CartierBresson, "Bank Officer and his Secretary, 1960" (1991:37, figura s). o escritório já possui o estilo modulado que surgiu na década de 6o. O chefe olha para a secretária, mas ela não está ali, eles estão trabalhando, ela é só uma perna, quem sabe também braços, só isso, uma coisa. Novamente é a secretária quem se movimenta e tenta, provavelmente sem sucesso, romper com o isolamento que a relação impessoal de trabalho no banco ou no escritório impõe a quem está a sua volta. Hopper pinta então "Nighthawks" (1992:78-79, figura 7), e nele também não existe a mínima comunicação entre as pessoas, mesmo o casal não chega a se tocar, olham para a frente, quem sabe para o atendente ou através dele. Fora da lanchonete está tudo escuro, as paredes são de um vermelho bem forte e na rua não há uma alma sequer. Esses gaviões noturnos não caem em cima de nenhuma presa, as únicas vítimas são eles mesmos, oprimidos pelo chão e pelo teto - esmagados por essa faixa horizontal semelhante à faixa vertical que oprime o homem de "New York, 1947". Os dois chegam a conclusões semelhantes sobre a cidade, nenhuma delas é positiva. É um local esmagador, triste, escuro, e as pessoas não falam umas com as outras. A cidade grande é como se fosse um sonho ruim de nossas cabeças, e pintar, fotografar, fazer arte pode ser até denúncia, mas as pessoas estão sozinhas para um, pobres e oprimidas para o


figura 4

umas com as outras. A cidade grande é como se fosse um sonho ruim de nossas cabeças, e pintar, fotografar, fazer arte pode ser até denúncia, mas as pessoas estão sozinhas para um, pobres e oprimidas para o outro, pode também ser impotência. Inte ri úd 10: desle 1tu ras/a ng úst1a/ 1nfl u ênc1a

Uma das mais claras influências sobre CartierBresson esclarece acerca de sua relação com Hopper. Eugene Atget (figura) também retrata a cidade, mas de um modo diferente, mesmo assim existem algumas afinidades entre o pintor e os fotógrafos que já podem ser notadas por algumas leituras muito particulares de suas obras. Benjamin discorre sobre as fotos de Paris feitas por Atget da seguinte forma: "esses lugares não são solitários, e sim privados de toda atmosfera; nessas imagens, a cidade foi esvaziada, como uma casa que ainda não encontrou mbradores" (1994:102). O silêncio e a solidão das fotos de Atget encontram explicações muito mais sofisticadas em Be,njamin do que as que Janson dá para as pinturas de Hopper, mas existem muitas semelhanças em ambas. Janson diz que Hopper "consegue destilar um sentimento opressivo de solidão dos elementos mais vulgares duma rua qualquer. A sua tranqüilit88

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da de é temporária; há vida escondida .atrás daquelas fachadas" (1986:718). Os seus olhares estão centrados na cidade, em seu presente, na memória encravada nas pedras e em suas mudanças. CartierBresson fecha esse pequeno círculo de influências, e, sobre ele, Sontag, em O Heroísmo da Visão, diz que possui uma atração "pela pitoresca desolação e deterioração da vida urbana" com "o olhar minucioso que descobre ordem em toda a parte" (1986:95). Por essas interpretações, e pelas fotos e pinturas, já é possível perceber as semelhanças e desleituras que permeiam esses três artistas.

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Figura 7

Atget retrata a cidade esvaziada de pessoas. Somente chafarizes, pedras mudas e o fotógrafo poderiam ser testemunhas desta história. Em Hopper já aparecem pessoas, e mesmo quando não aparecem estão presentes, pois a tranqüilidade de seus quadros urbanos não esconde a silenciosa solidão dessas novas personagens. Nas fotos de CartierBresson, as pessoas são mais que testemunhas, são atores, interagem na foto e com o fotógrafo; existe uma dinâmica tanto relacionada a preocupações estéticas (o uso do espaço para criar relações sugestivas entre os elementos) quanto sociais (o papel do fotojornalismo). O artista lê a obra de seu precursor e a complementa, preservando seus termos, mas alterando o significado, como se o precursor não tivesse ido longe o bastante, e é isso que Harold Bloom chama de tessera, umas das seis razões revisionárias que usa "para explicar as relações de influência entre os poetas (1991). É uma desapropriação poética, também uma desleitura, e essas revisões acontecem em toda produção artística. No campo das imagens é quase regra e o século XX, imagético por excelência, possui um número incontável de visões que alimentam o imaginário e influenciam por todos os lados. Da fotografia à pintura, depois voltando à

fotografia, o cinema e as artes plásticas e assim por diante, um sem-fim. Atget estabelece o espaço urbano para Hopper e o documental para Cartier-Bresson. Hopper preenche o espaço urbano com ausências e presenças humanas, tudo banhado pela solidão e uma certa indiferença perante a arquitetura que tudo rodeiaessas pessoas, que estão em quartos de hotel, lanchonetes, escritórios, parecem sempre ausentes; olham para longe ou olham para o pintor, paradas. Hopper mostra a arquitetura da cidade e as linhas do campo para Cartier-Bresson, que logo preenche com movimentos, deterioração e vida. Olhando melhor, não é um círculo de influências, e sim uma linha ramificada, como galhos, que vão para um lado e depois para o outro, e crescem. Espaços: o 1nter1or, o campo

Nenhuma foto de Cartier-Bresson é gratuita, existe uma preocupação social evidente em suas fotos e que, acrescida de uma composição forte, torna o conjunto particularmente estranho. Qualquer discussão sobre a não-intervenção do fotógrafo é redundante, já que felizmente ele não possuía nenhuma estéril dúvida pós-moderna e somente se ocupava, o que é mais que o bastante, com o ajus189


te dos elementos na composição, para que no momento decisivo o significado se feche, e se abra na foto pronta. Podem olhar o fotógrafo, isso não tem importância, já que ele não é invisível nem quer ser. Ele interage e também observa, diferente do pintor, que, nos moldes clássicos ainda presentes, cria, contemplando tanto o exterior quanto seu interior. Hopper contempla. O documental atinge em cheio a foto "Mississipi, 1961" (1991:75, figura 8), que se liga ao quadro de Hopper, "Gas" (1992:26-27, figura 9). Ficam claras as preocupações estéticas e sociais de cada um nestas obras. No quadro de Hopper, um frentista se prepara para fechar as bombas de gasolina do posto em que trabalha, está anoitecendo, as luzes da casa onde mora já estão acesas e tudo a sua volta é natureza, o céu ainda está azul claro e o expediente está encerrado. Na foto de CartierBresson, o local é também um posto de gasolina, mas não aparecem as bombas, o único vestígio de sua existência é um pedaço de mangueira. Os frentistas não estão atrás das bombas, atrás de seu trabalho; estão sentados, mas não é só isso. A difícil relação entre negros e brancos no sul dos EUA está toda nessa foto. Dois negros, provavelmente os frentistas, estão sentados juntos e espremidos em um pequeno banco, enquanto um branco, o patrão, está confortavelmente estirado sozinho no grande banco bem ao lado. O posto de gasolina está caindo aos pedaços, o chão, sujo. A preocupação de Hopper é com o cotidiano e como as pessoas o trabalham. Cartier-Bresson apropria-se do cotidiano e vai mais longe, estabelecendo profundidade e agredindo toda a composição pela absoluta passividade do meio que utiliza para se expressar, a fotografia. As pessoas não estão contemplando alguma paisagem ou posando para o pintor; elas foram pegas vivendo, olhando para o fotógrafo sem programar pose alguma, e é isso que causa mais espanto.

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figura 8

O interior americano é o local das grandes extensões. Hopper o vê mais de perto, está acostumado com este espaço e, portanto, o trata mais intimamente. Para Cartier-Bresson tudo é novo, e o interior americano o fascina exatamente pela sua perspectiva: o Arizona se estende para além do trem que passa. O perto de Hopper e o longe de Cartier-Bresson se complementam no interior deste país. Conclui, cai o pano e fecha

Hopper é o retratista por excelência da cena americana, tanto no interior quanto na cidade, e seu discreto e contemplativo olhar capta uma América pouco conhecida. A terra de bravos está repleta de pessoas solitárias, esmagadas pela incomunicabilidade e oprimidas pela indiferença da cidade grande. Apesar disso, não existe nenhuma crítica social em seus quadros, nenhum uso político é feito. Ainda assim, houve uma grande mudança a partir de Hopper. Algo foi desmistificado, certas ilusões caíram. Isso aconteceu a partir da experiência traumática dos EUA com a Segunda Grande Guerra, que deixou um desamparo sem limites por todo o país, já que todos duvidavam de todos (os japoneses, alemães, italianos, irlandeses, mesmo judeus, comunistas ameaçando, tudo era desconfiança). A


década de 40 tirou a máscara para depois a de so voltar a colocá-la, ainda mais produzida -era necessário alimentar o sonho americano contra a "ameaça vermelha". O inimigo voltou a ter um rosto só, sem dúvida alguma. O olhar estrangeiro sempre alimentou os EUA, e Cartier-Bresson sabia disso. Logo viu que o país das promessas escondia muitas coisas e saiu desbravando-o com sua Leica, tirando fotos que continuam a nos dizer coisas e nos espantar pela revelação de uma realidade problemática: racismo, sujeira, pobreza, deterioração, mortes e muita solidão. A série de fotos que fez em 1946 e 47 mostram exatamente essa crise de valores do pós-guerra. As fotos dos anos 6o contêm uma América ainda mais mudada; novos atores surgindo: negros e mulheres que entram em cena lutando por seus direitos, lutando por igualdade. A partir desta década, a imagem americana foi constantemente arranhada pela sua própria megalomania- o Vietnã. Agora a Estátua da Liberdade é um chaveiro, e os imigrantes que ainda chegam têm mais compromissos com a economia livre capitalista do país do que com o seu imaginário. As diferenças aumentaram e é praticamente impossível captar toda essa diversidade étnica sem enlouquecer diante dos conflitos culturais entre as

mil'lorias. O país não é mais um só, uma águia, uma bandeira, um hino, uma língua, são vários ao mesmo tempo explodindo, respeitando as diferenças na força. Cartier-Bresson já sabia disso, o Mississipi o tinha avisado. Hopper não sabia, mas não é certo culpá-lo, pois afinal de contas era um homem de outra época, com outras imagens. Uma coisa é certa: os dois foram mestres na "iluminação dos pormenores", como disse Benjamin sobre Atget (1994:103), e esquadrinharam com clareza os EUA em uma época em que até as contradições pareciam menos sombreadas.

Referências Bibliográficas ATGET, Eugene. "Rue de Ursins" in: Masters of Photography. London, Macdonald, 1985. BENJAMIN, Walter. "Pequena História da Fotografia" in: Obras Escolhidas, vol. 1. São Paulo, Brasiliense, 1994BLOOM, Harold. Angústia da Influência- Uma Teoria da Poesia. Rio de Janeiro, Imago, 1991. JANSON, H. W. História da Arte. São Paulo, Martins Fontes, 1994. RENNER, Rolf G. Edward Hopper (1882-1967)- Transformações do Real. Taschen, 1992. SONTAG, Susan. Ensaios sobre Fotografia. Lisboa, Publicações Don Quixote, 1986.

figura 9

*Dafne de Souza Sampaio é aluno de graduação do curso de Ciências Sociais da FFLCH, na Universidade de São Paulo, e editor da revista A nível d. Este artigo é resultado da pesquisa elaborada no cu rso "Antropologia Visual~, ministrado pela Profa. Dra. Sylvia Caiuby Novaes, pelo Depto. de Antropologia da FFLCH·USP, 1996.


Uma estrada para o impenetrável Rose Satiko Gitirana Hikiji

A vida parecía digna de ser v i v i d a , apenas na medida em que a soleira a separar dormir de acordar era destruida como por passos de ¡numeras Imagens a flutuarem desordenadamente, em que a linguagem parecia autônoma, na qual s o m e imagem, imagem e s o m se ligavam com exatidão automática d e maneira tão perfeita que não restava lugar algum para o "sentido*'. Walter Benjamin


' Filmografia. Eraserhead (1976), O homem elefante (The elephant man, 1980), Duna (Dune, 1984), Veludo azul (Biue velvet, 1986), Coração selvagem (Wild at heart, 1990), Twin Peaks (piloto da série de TV, 1989), Twin Peaks - Os últimos dias de Laura Palmer (Twin Peaks: Fire walk with me, 1992), A estrada perdida (Lost Highway, 1997). ' Nas palavras do co· roteirista Barry Gifford, entrevistado por Ron Wells: "Nós entramos e saímos da realidade para um tipo de irrealidade. Quando você entra em um cinema, você está entrando em um estado de sonho (dream state). Você se entrega e se afoga." (trad. minha). 3 É importante notar que, embora remeta ao principal processo do fazer cinematográfico a montagem de ângulos, planos, cenas e seqüências, a concepção de montagem de Taussig restringe e especifica o sentido do termo. Montagem é, em Taussig, uma estratégia narrativa, que tem como finalidade a apresentação de diversas facetas do objeto em observação, privilegiando a pluralidade de vozes que o descrevem(expe rimentam/ sentem. 4 Entre os mais de 30 artigos de revistas estrangeiras sobre o filme A estrada perdida que encontrei em sites da Internet, dois comentam com mais detalhes a importância de Lynch no cenário dos cineastas "independentes" norte· americanos. David Foster

Benjamin fala do surrealismo. Tomo suas palavras para introduzir o leitor no universo de um filme: A estrada perdida (Lost highway), de David Lynch. A apropriação não é arbitrária. O diretor de O homem elefante e Veludo azul, entre outros', estabelece, na sua mais recente produção, um duplo diálogo com o movimento artístico que nasceu no início deste século. Por um lado, trabalha com uma narrativa onírica, que explora a força do encontro de imagens e sons, em que desordem e ausência de sentido são atributos da perfeição. Por outro, toca - como em toda sua obra - o tema tão caro aos surrealistas: a promiscuidade entre cotidiano e extraordinário.O resultado imediato do encontro do universo do sonho com o estranhamento do cotidiano é o incômodo, o mal-estar. Os espaços visuais e sonoros criados por Lynch advertem: a violência e o terror estão mais próximos do que imaginamos. "Conseguimos penetrar no mistério apenas no grau em que o reencontramos no cotidiano, graças a uma ótica dialética, que reconhece ser impenetrável o cotidiano, e cotidiano o impenetrável", diz Benjamin (1983:83). Lynch nos guia nesta estrada para o impenetrável.

do proposto por este autor para escrever o livro Xamanismo, colonia/ismo e o homem selvagem. Em busca de uma "narrativa eficaz contra o terror", Taussig recorre à montagem, estratégia textual que permite a justaposição de fragmentos do pensamento, como um relato jornalístico e um verso brechtiano. A montagem é também "o modo pelo qual ocorre a interrupção; a súbita mudança de cena, que rompe com qualquer tentativa de ordenamento narrativo e que impede o sensacionalismo" (Taussig, 1993:411). O princípio da montagem empregado por Taussig3 cabe aqui de duas maneiras. É com ele que construo este texto. Fragmentos de cenas, imagens, sons, impressões, depoimentos, textos fazem da narrativa algo interrupto e revelam o próprio processo de pensamento. A montagem parece ser também o princípio utilizado por Lynch em sua construção narrativa, principalmente no que diz respeito ao anti-sensacionalismo obtido pela ruptura da ordem.

Manual para a viagEm Para trilhar a Estrada de Lynch é preciso perder-

DEsordam

se. Alain Virmaux (Betton, 1987:93) afirma a semelhança entre filme e sonho, dada pelas próprias condições da representação: "obscuridade, feixe luminoso, fundo musical". Para o autor, o espectador encontra-se "a meio caminho entre a consciência e a inconsciência". Lynch solicita do espectador um passo rumo à segunda metade deste caminho. Ele, de fato, conduz o espectador nesta direção•. Aproveite o escuro da sala. Deixe-se hipnotizar pelas faixas amarelas da estrada, que iluminadas pelos faróis de.um carro em movimento, tremulam sob os créditos iniciais do filme. A música "l'm Deranged", de David Bowie e Brian Eno, embala o sono da razão e aguça a audição - sentido ao qual o filme apela em sua sedução. Escuro, câmera, ação.

MontagEm O antropólogo Michael Taussig, com quem redescobri Walter Benjamin, inspira-se em um méto-

Lynch é descrito pela mídia especializada como o "anti-Hollywood", o "off-beat" (não-convencional, não-usual) do cinema norte-americano contemporâneo. Também lhe é atribuída a paternidade ou, pelo menos, grande influência sobre o chamado jovem cinema independente dos EUA, cenário no qual atuam Quentin Tarantino, os irmãos Coen, Jim Jarmush e Tim Burton, entre outros 4 • O que conta para o status que lhe é atribuído é sua exploração experimental da linguagem cinematográfica. Em A estrada perdida este experimentalismo é radicalizado. Lynch inicia o roteiro deste filme com a seguinte descrição: "Um filme de horror noirdo século XXI. Uma investigação gráfica sobre a crise de identidade paralela. Um mundo onde o tempo está perigosamente fora de controle. Um aterrorizante passeio pela Estrada perdida". Sua primeira frase denuncia uma opção narrativa: a mistura de gêneros.

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Mas a estratégia foge do universo racionalizante das citações e referências. No filme, causa terror, surpresa; incomoda. O fundo escuro, no qual o rosto de Fred (Bill Pullman) é revelado lentamente pela luz da cinza ardente do cigarro, é noír. A trama de detetives que vai se construindo é típica do filme policial. No entanto, a introdução do fantástico, ou sobrenatural, através da figura do "Mistery Man" (Robert Blake), muda o registro do gênero: aqui o terroré quem dá as cartas. E essa mudança nos "tira o chão". Que tipo de filme estamos vendo? Perdemos a segurança. Da mesma forma, é incômoda e irracional a cena da prisão. Ela destrói a lógica narrativa do filme polícia/e caminha para o fantástico. No entanto, a história não persiste no registro deste gênero e retoma ao "normal", em outro lugar, com outras personagens. Porém, quando nos encontramos imersos, de novo, na lógica da aventura romântica, o elemento não-convencional do fantásticoretorna, e o final proposto deixa-nos com a impressão de circularidade. Para a efetivação da imersão, que nos permite transitar entre os gêneros, perder-se mesmo, há um elemento fundamental: a música e os efeitos sonoros do filme. Lynch é o desígnerde som de A estrada perdida. "Som é pelo menos so% do filme", diz. "Som e imagem trabalhando juntos é o que os filmes são. (...) Um quarto mede, digamos, nove por doze (pés), mas quando você está introduzindo som nele, você pode criar um espaço que é gigante, ouvindo coisas fora do quarto ou sentindo algumas coisas através de uma fresta, e então há sons abstratos que são como música, eles dão emoções e estabelecem diferentes estados de espírito. Então a música vem. Transições de efeitos sonoros para música, ou todas as coisas vindo ao me.smo tempo, é deixar o filme falar com você.'' 5 E essa conversa pode ser assustadora. Lúcia Nagib (1997) comenta a "atmosfera de terror" do filme: "As palavras são pronunciadas com espaços inverossímeis

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entre si, ouve-se a respiração dos personagens, entrecortada de tremulações nervosas e, mais baixo, mas decisivo para a composição da cena, soa um uivo de vento mesclado a ruídos eletrônicos. Esses sons, unidos à penumbra quebrada apenas pela luz do abajur (...), compõem uma atmosfera de terror, sem que nada de objetivo o indique". Terror subjetivo. Sugerido no tecido sonoro que envolve cada cena. Experiência sensível. Entendo agora, a posteríorí- porque fiquei aterrorizada na primeira vez em que assisti ao filme. (Cheguei a fechar os olhos em algumas cenas). Era esta trama de notas, acordes, ruídos, sons que me "pegava" desde o início de A estrada perdida. Nagib chama de "não-realista" o som de Lynch. No entanto, o "realismo" sonoro a que a autora se refere foi forjado pelo cinema clássico, que nos educou a perceber como "reais" os sons criados pelos engenheiros da sonoplastia. Basta lembrar que o ruído de um tiro de revólver não corresponde ao som espetacular que acompanha os disparos fílmicos. Lynch, ao negar este "realismo", recria a subjetividade sonora que está presente na nossa existência cotidiana: a mordida no bombom, quase imperceptível ao vizinho de poltrona, faz do diálogo do filme algo distante e parece chamar a atenção de toda a sala, tal o estrondo que produz no ouvido de quem morde. No filme, Lynch exterioriza a percepção sonora de Fred. Com ele, ouvimos ressoar os passos do detetive sobre o telhado, o som desesperado do saxofone, o telefone tocando estridentemente no vazio. Ao optar pelo ponto de escuta de Fredum homem perturbado -, Lynch enche de pânico quem, como o saxofonista, tem "ouvido musical". Como também notou Nagib, é justamente essa sensibilidade sonora que une os dois protagonistas, Fred e Pete (Balthazar Getty). O primeiro é músico e o segundo é "o homem com o melhor ouvido da cidade", um excelente "afinador" de motores, nas palavras de Mr. Eddie/Dick Laurent (Robert Loggia). Ainda: é a falta

Wallace (1996) e Mikal Gilmore (1997) atribuem a lynch a preparação de um terreno em que se tornou possível a experimentação temática e estética de outros diretores que também trabalham longe dos grandes estúdios. A revista Cahiers du cinéma (n. 509), que elege A estrada perdida como um dos "filmes do mês", ressalta como característica de lynch o fato de ser "o un 1co cineasta independente americano de sua geração que nunca trabalhou para um grande estúdio"(trad. minha).


' Depoimento de Lynch para Steve Biodrowski (1997). (trad. minha). 6 Na entrevista citada realizada por Ron Wells. 1 Trecho de depoimento da atriz na página de Mike Hartman, na Internet (trad. minha) 8 Ao assistir ao filme, tive a impressão de que a relação fora interrompida. No entanto, o roteiro indica que foi consumada, apesar da indiferença de Renee. A interpretação de outros espectadores que entrevistei vai ao encontro da sugerida no roteiro. Cabe notar que em ambas as situações o "efeito" seria o mesmo: o clima de tensão causado por uma relação na qual o envolvimento dos dois participantes não é o mesmo e a raiva diante do "consolo" ao final do ato. 9 Na página de Mike Hartmann na Internet (trad. minha).

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desta sensibilidade ("l'm tone deaf') que afastará o detetive da solução do crime. E completo: afastará também o espectador do envolvimento que o filme propõe. Entre os elementos de desordem narrativa, a opção pelo desfecho aparentemente circular é, talvez, o principal. A cena final remete-nos à inicial sob outro ponto de vista, confundindo e desorganizando o raciocínio. O co-roteirista BarryGifford 6 sugere como metáfora da estrutura do filme, em vez da imagem do círculo, a da "fita de Moebius". Esta pode ser visualizada como uma longa tira cujas pontas serão unidas após uma delas ter sido torcida. Desta forma, a fita tem a característica peculiar de possuir apenas um lado (se você escolhe um ponto qualquer da fita e começa a pintar em uma das direções, você passará "por baixo" do ponto inicial e voltará a encontrá-lo tendo pintado toda a tira sem tirar o pincel de sua superfície em nenhum momento). Como a "tira", no filme "a história volta-se por baixo de si mesma e continua", explica Gifford. Lynch prefere a metáfora musical à geométrica. Conforme declarou em entrevistas, a doença psíquica chamada "fuga psicogênica" o teria inspirado na criação da história. Segundo Lynch, "a pessoa que sofre desta doença cria em sua mente uma identidade completamente nova, novos amigos, nova casa, tudo ela esquece sua identidade passada". Mas o diretor diz que o termo clínico o atraiu porque também é musical: "a fuga começa em uma direção, toma outra e depois volta à original, então ela relaciona-se com a forma do filme." De fato, as metáforas dos realizadores não respondem à confortável pergunta pelo sentido. Militante da interpretação, Lynch prefere fugir à explicação. Seria o filme uma história de fantasmas?- pergunta o entrevistador da Filmmaker (Swezey, 1997). "Na hora de explicar as coisas, eu paro. Com muitos filmes, não há problema em entendê-los, não há espaço para sonhar ou para achar sua própria interpretação. Eu não

quero que minha interpretação fique no caminho da idéi'a de ninguém." E isso vale inclusive para seus atores, conforme podemos observar na leitura tão particular de Patricia Arquette, que interpreta Renne e Alice: "Acho que (o filme) é sobre um homem tentando recriar uma relação com uma mulher que ele ama, para que ela termine melhor. Fred recria-se como Pete, mas o elemento de desconfiança nele é tão forte que mesmo sua fantasia transforma-se em um pesadelo" 7 •

"Para cada filme há tantas interpretações quanto espectadores" (Betton, 1987). "Descrever um filme, contá-lo, já é interpretálo" (Vanoye & Goliot-Lété, 1994). A estrada perdida é, sem dúvida, um filme que convida à decifração. Apresenta-se como enigma. Sugere a existência de soluções. Opto por "penetrar no mistério" do filme, montando fragmentosque explicitem sua "ótica dialética".

..0 cotidiano lmpen•trllv•l'' Fred está em seu quarto. É noite. Está escuro. Não o suficiente para impedir-nos de vê-lo ao entrar pelo corredor. Este, sim, é muito escuro. Conforme Fred caminha neste espaço, sua imagem vai desaparecendo na escuridão. Por alguns segundos, tudo o que vemos é o vazio negro no qual ele se perdeu. A escuridão que tomou conta da cena, esvaziando a tela de qualquer luz, nos joga no vazio. Sem imagem, a tela desaparece no escuro da sala: rompe-se seu limite. Entramos em cena. Vazio. Segundos infinitos, depois a imagem retorna. Fred encontrou no fim do vazio sua imagem refletida em um espelho. Fred está na cama esperando por Renee. Ela está vestida com um robe de seda, que tira antes de deitar-se. Fred aproxima-se de Renee, põe a mão em seu seio, beija-a. Durante a relação sexual, a câmera de Lynch privilegia as expressões faciais dos atores,

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o movimento dos corpos e dos seios de Renee. Ela parece não envolver-se na relação. Seu rosto é quase impassível e isso parece incomodar Fred, que, no entanto, continua até o fim 8 • A câmera focaliza então em primeiro plano e em slowa mão de Renee, com suas unhas muito escuras, batendo levemente nas costas de Fred, como que consolando-o ao repetir "lt's ok, it's ok". A música é aterrorizante. A expressão facial de Fred também. Humilhação, raiva e horror são condensados em segundos a um primeiro plano em seu rosto. O ato cotidiano é revestido de terror. A (não)relação sexual vira prenúncio de assassinato. Pete está sentado em sua cama. Sons distintos e amplificados incomodam (a ele/a nós). A câmera mostra, com grande aproximação, insetos debatendo-se dentro do lustre. Uma aranha sobe pela parede. Pete está confuso.

"O I plin tr v I cotidiano" Uma personagem central do filme é o "Mistery Man". Sem sobrancelhas, com o rosto extremamente branco e a expressão enigmática, surpreende a cada aparição na tela. A primeira é assustadora. Ao olhar para Renee, Fred vê o rosto dele, em uma imagem sobreposta ao rosto da própria esposa. A música colabora para o terror da cena. Nas suas demais participações, este homem misterioso, incorporação do próprio extraordinário, traz sempre consigo um aparelho de comunicação: um celular, uma câmera de vídeo, um pequeno monitor de TV. Em suas mãos- que alguns críticos comparam às mãos do próprio Lynch - estes aparelhos comunicam apenas o terror. . O ator Robert Blake conta em uma entrevista 9 como foi a criação de seu personagem. "Eu sabia com o que o diabo parecia. Eu sabia com o que o Destino parecia. Eu costumava ter essa imagem de mim mesmo que vinha a mim algumas vezes. Eu iria ao deserto e me envolveria com alguma coisa estranha, isolada, e de repente eu me perce-

bia como essa criatura branca, fantasmagórica. Eu disse 'Sim, essa é minha consciência falando comi go'. Então, eu cortei meu cabelo e dividi ao meio (...). E o pessoal da maquiagem disse: 'você está louco, cara! Ninguém nesse filme tem essa aparência; todos parecem normais!'. Eu disse, 'Não me amolem; apenas me dêem essa droga'. Eu pus esse conjunto preto, fui até David, e ele disse: 'Maravilhoso!', e virou-se e foi embora". Blake continua descrevendo como Lynch preparou o elenco e a equipe para receberem o "Mistery Man" devidamente caracterizado. "Ele fez todos comportarem-se como se eu parecesse normal. (...) Bill Pullman não disse: 'Ei, você parece louco'. Ele apenas virou-se e disse: 'Oi, como está?'. (...) Ninguém estava surpreso ou repugnado. (...) Eu nunca perguntei a ele (Lynch) porque ele fez isso, mas provavelmente eu não o faria se estivesse dirigindo. Eu teria feito o pessoal 'comportar-se' na maquiagem, mas ele não fez isso". Fim de filme. Tentativas de montar o quebracabeças. Ao contrário da montagem de Benjamin, que retira do contexto e ressignifica, esta que se esboça é totalizante, quer encontrar "a resposta". Cilada de Lynch: algumas pedras não tem encaixe. Totalização inviável. A perturbação mental e o incômodo são inevitáveis. Saída: recordar a lógica onírica e seu tempo não-linear, seus espaços solúveis, a possibilidade do vôo.

• Rose Satlko G.Hikiji é membro do corpo editorial da Sexta Feira.


REFERêNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BENJAMIN, Walter. "O Surrealismo" in: Os pensadores. São

Elenco: Bill Pullman, Patricia Arquette, Robert Blake, Balthazar Getty, Gary Busey, Natasha G•egson Wagner, Richard Pryor, Robert Loggia ficha técnica Direção: David Lynch Roteiro: David Lynch e Barry Gifford Produção: Deepak Nayar, To'Tl Stf•'lberg e Mary Sweeney Fotografia: Peter Deming Deslgner de produção: Pat•icia No•ris

Montagem: Ma·y Sweeney Música (composição e regência): Angelo Badalamenti Música adicional: Barry Adamson Design de som: David Lynch

Edição de som: Frank Gaeta Edição de música: Marc Vanocur Castlng: Johanna Ray e Elaine J Huzzar

Duração: 135 minutos

Paulo, Abril Cultural, 1983. BETTON, Gérard. Estética do cinema. São Paulo, Martins Fontes, 1987. BIODROWSKI, Steve. "Lost Highway: The Solution" in: Cínefantastique, vol. 28, n.1o, abril de 1997. Encontrado em julho de 1997 na World Wide Web:http://omnibus.unifreiburg.de/-mhartman/.html Cahiers du Cinéma, n. 509, 1997. "Lynch aux trousses". DUNN, Mike. Site encontrado em julho de 1997 na World Wide Web sobre David Lynch, com artigos, filmografia, bibliografia, fotografias etc.: http://www.mikedunn.com/lynch/. e-mail: mikedunn@mikedunn.com GILMORE, Mikal. "The Lost Boys" in: Rolling Stones, 6/03/ 1997. Encontrado em julho de 1997 na World Wide Web: http://www.mikedunn.com/lynch/lrs1.html HARTMAN, Mike. Site encontrado em julho de 1997 na World Wide Web com depoimentos de atores e equipe técnica do filme, artigos publicados em revistas e entrevistas: http:// omn i bus. un i-freibu rg.de/- mhartman/lh in d.htm I. e-m ai 1: mhartman@mail.uni·freiburg.de LYNCH, David & GIFFORD, Barry. Lost Highway. Faber & Faber, 1997. NAGIB, Lúcia. "A droga perfeita que vem do som". Folha de SP, 27/04/1997, caderno Mais!, pág. 9· SWEZEY, Stuart. "911: David Lynch Phone Home" in: Filmmaker, vol. s. n. 2, Inverno de 1997. Encontrado em julho de 1997 na World Wide Web: http://www.mikedunn.com/ lynch/lhfrn.html TAUSSIG, Michael. Xamanismo, colonialismo e o homem selvagem. São Paulo, Paz e Terra, 1993. The Late Show. Letterman entrevista Bill Pulman em 28 de fevereiro de 1997. Encontrada em julho de 1997 na World Wide Web: http://www.mikedunn.com/lynch/lhlates.html Tonight Show. Entrevista com Patricia Arquette. Em 28 de fevereiro de 1997. Encontrada em julho de 1997 na World Wide Web: http://www.mikedunn.com/lynch/lhpaleno.html VANOYE, F. & GOLIOT-LÉTÉ, A. Ensaio Sobre a Análise Fílmica. Campinas, Papirus, 1994. WALLACE, David F. "David Lynch Keeps his Head". Premiêre, set./1996. Encontrado em julho de 1997 na World Wide Web: http://www.mikedunn.com/lynch/lhpremiere.html WELLS, Ron. "Lost Highway Screenwriter Barry Gifford" in: Film Threat. Encontrado em julho de 1997 na World Wide Web: http://www.mikedunn.com/lynch/lhgifford.html

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Um

céu

de

1

estrelas

ou sobre o inferno terrestre Edgar Teodoro da C u n h a *

U m e s p í r i t o p u r o n ã o p o d e começar n e m terminar e nunca se transforma. A q u e d a dos anjos é, p o r t a n t o , i n s e n s a t a . Q u e r o dizer que isso não tem sentido na m e d i d a e m q u e e v o c a o s filmes rodados ao revés. O diab o r e p r e s e n t a e m certa m e d i d a os defeitos de Deus. S e m o diabo, Deus seria inumano. J e a n C o c t e a u , Ópio


• Baseado em romance homô· nimo de Fernando Bonassi, Um céu de estrelas ê o pri· meiro longa-metragem de Tata Amaral que tem em seu currículo quatro curtas: Cida· de (1986), Queremos as on· das do ar! (1986), História familiar (1988), Viver a vida (1991). • Mesmo assim, ê difícil não lembrarmos de outras perso· nagens femininas, igualmente marcantes, relacionadas a con· textos urbanos periféricos, como aquelas presentes em fil· mes como Anjos do Anabalde, de Carlos Reichenbach, e A Hora da Estrela, de Suzana Amaral, só para citar alguns exemplos. ' Em material de divulgação do filme. • Música de lívio Tragtenberg e Wilson Sukorski, com a par· ticipaç-ão especial da escola de samba Tom Maior.

Na busca pela consolidação da produção recente do cinema nacional - caracterizada até agora por uma ênfase na utilização de uma linguagem televisiva -, o filme Um céu de estrelas, de Tata Amaral, preenche uma necessidade de ousadia e experimentação, tônica à qual podemos associar outros dois filmes lançados na mesma época: Baile perfumado, de Paulo Caldas e Lírio Ferreira, épico sobre o cinema e o cangaço, e O sertão das memórias, de José Araújo, no qual se destacam o imaginário do sertão e a religiosidade popular. Fugindo à narrativa do cinema industrial ou de entretenimento, Tata Amaral nos propõe um drama urbano, cuja narrativa é marcada por sexo, violência, desencontros e incompreensões. O foco principal de Um céu de estrelas é a relação entre Dalva, uma jovem cabeleireira, e seu exnoivo, Vítor. Ambos passam a quase totalidade do tempo confinados no interior da casa onde Dalva mora com sua mãe. Porém, mais do que a relação entre os personagens, temos uma descrição crua das relações entre homem e mulher, sem psicologismos, com uma estrutura dramática em que não há causalidades movendo a ação dos personagens. Diferentemente do livro de Bonassi, centrado na ótica do personagem masculino, aqui a narrativa do filme é fundada na perspectiva feminina. Ao espectador é permitido compartilhar o ponto de vista de Dalva, quase como um olhar "participante", devido às estratégias de câmera que acompanham a personagem a todo momento, quase ombro a ombro com Oalva, como um terceiro olho dentro da casa. No entanto, a opção, como afirma Tata Amaral, não é por uma "visão feminista", mas dramatúrgica•. O filme também remete a questões externas ao universo fílmico, que são os processos de readequação do papel feminino na sociedade atual e as incompreensões daí decorrentes entre este universo e o masculino, fatos que muitas vezes

redundam em conflitos e violência. A diretora afirma3 que durante a elaboração do roteiro foi realizada uma pesquisa de personagens, constatando que "(...) A Mooca é um bairro muito tradicional. Há pessoas que nascem, crescem e morrem sem ter saído de lá. Conversei com várias mulheres do bairro e descobri que muitas delas querem romper com esta tradição e com este isolamento". Neste ponto, passemos à narrativa do filme, como forma de recuperação de outros elementos.

O extErior: '"Mooca, 1996" O filme inicia-se com a apresentação do contexto: a Mooca, típico bairro industrial paulista. No entanto, pela forma como foi caracterizado no prólogo em vídeo, poderíamos estendê-lo a qualquer periferia de uma grande metrópole. Vemos imagens de imigrantes, fábricas, chaminés, trens. A câmera vai circulando pelo bairro e mostrando suas características essenciais, seu passado industrial e seu presente decadente. Semáforos desligados, fachadas de prédios e residências deterioradas, pichações, e as pessoas circulando. Olhares secos, não vemos nem o esboço de um sorriso; pelo contrário, alguns mostram uma face transtornada pelo sofrimento, pelo desespero. Toda essa seqüência desenrola-se sob um som ritmado e seco 4 , ruídos de fundo, as imagens em vídeo com pouca definição, sem profundidade, chapadas, em preto e branco, mostrando uma Mooca -espaço urbano, decadente, industrial, cinza- com pessoas cinzas, olhares desesperados. A imagem chega a doer na retina; ela é opressiva, como deveria ser aquele espaço da cidade. A música torna ainda mais terrível essa impressão, potencializando o peso e a opressão.

O IntErior Num corte abrupto, passamos ao interior de uma casa. A imagem colorida, com sua luz suave, surge como um alívio. É como se tirássemos um peso do olhar. 199


Dalva olha-se no espelho fazendo seus planos de viagem, uma esperança de mudar de vida, de sair daquele inferno. Passaporte pronto, malas quase, passagem para Miami. Com a transição do mundo exterior, cujos preto e branco retratam bem as impossibilidades dadas, para o espaço doméstico, podemos compartilhar, mesmo que brevemente, das esperanças de Dalva quanto ao seu destino, que aos poucos vai se revelando uma ilusão. A viagem, prêmio ganho num concurso de penteados, era uma possibilidade de mudar de vida, de sair daquele contexto. Com a chegada de Vítor, seu ex-noivo, vamos lentamente percebendo que o sonho de Dalva é impossível. Sob o pretexto de devolver algumas coisas, Vítor entra na casa, e então passa a agir de modo agressivo, conforme percebe as intenções de Dalva. Nessa tensão de vontades, a violência toma lugar à medida que se manifestam as reações ao mesmo tempo imprevisíveis e incontroláveis de Dalva e Vítor. Aos poucos, portanto, vamos percebendo que aquele cenário opressivo, inicialmente exterior ao contexto doméstico, também é marcante nas relações dos indivíduos, nos interiores das casas, no dia-a-dia das pessoas.

A amblgOidadE No fluxo da narrativa, não nos é permitido mergulhar no universo psicológico dos personagens, em um mundo de afetos e de memórias que referenciassem a ação, como flashbacks ou descontinuidades temporais. Temos apenas a ação crua e ambígua em tempo quase real e linear, em uma unidade de tempo/espaço que se traduz no fato de toda a narrativa se desenrolar no espaço de um dia e acontecer no interior da casa, acentuada ainda por essa ausência de referências. A ação ganha um peso dramático que beira o insuportável. As ambigüidades - o desejo e a repulsa, a sexualidade e a violência, as escolhas e o destino - incomodam, pois não podemos ficar na

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confortável posição de espectadores sem participação, com um olhar exterior à ação, apenas fruindo do fluxo de imagens. Essa posição passiva não é permitida ao espectador em nenhum momento. O ponto de vista da câmera, muito próximo dos personagens, aliado à narrativa das ações e reações sem um corte psicológico, obriga o espectador a participar do filme, na medida em que ele próprio é solicitado a preencher as lacunas de sentido nas ações dos personagens.

o mraquadro

O exterior aparece em poucos momentos no filme: na seqüência inicial em vídeo, em alguns momentos de dentro para fora da casa, e na parte final mediada pela TV. Dalva em frente do espelho, preparando sua viagem. Ouvimos em off uma música que acompanha boa parte da cena. O olhar através da janela: dois velhos jogam na varanda da casa vizinha, uma mulher dentro da casa ouve música pelo rádio. O extraquadro criado pelo som presentifica personagens ausentes ou ações que se desenrolam. Assim funciona quando a mãe de Dalva está presa no banheiro, rezando, enquanto a ação envolvendo o casal acontece. O tiro através da porta, dado por Vítor, que silencia a reza da mãe, antecipa a imagem da morte, que somente depois de um certo tempo nos é permitido ver, como espectadores, e a Dalva. A voz do policial antecipa todo o desenvolvimento subseqüente da ação, e a voz da TV acrescenta ainda mais elementos do espaço off. Dalva olha pela janela, o vidro está abaixado e compartilhamos o seu ponto de vista: os vidros distorcem a imagem do exterior, vemos apenas um esboço. Através da janela novamente vemos as luzes e holofotes dos carros da polícia. A voz off do delegado já havia entrado antes, nos dando uma idéia do contexto da cena. A imagem da TV também nos fornece elementos desse exterior, porém em uma

*Edgar Teodoro da Cunha é bacharel em Ciências Sociais, mestrando pelo Depto. de An· tropologia Social da FFLCH-USP e pesquisador do GRAVI - Gru· pode Antropologia Visuai/USP


perspectiva distorcida, própria ao veículo. A questão, no entanto, não está na forma crítica como a mídia televisiva é apresentada no filme, mas como o exterior penetra no espaço privado misturando o fora e o dentro, deslocando os espaços dados inicialmente. Afinal, o caos, a ambigüidade e a violência do exterior estão também nas relações entre as pessoas, no espaço da casa, no cotidiano.

Um unlv r o sem safda? Rememorando as imagens do filme, depois de terminada a exibição, temos a forte sensação de fatalidade, os sujeitos estão presos a uma rede de relações e de formas de agir das quais não podem fugir. Quando Vítor, depois de muito insistir, entra na sala, temos a impressão de que daquele ponto em diante o destino dos personagens está selado. Até mesmo a opção narrativa de pouca caracterização psicológica dos personagens enfatiza esse efeito, essa sensação, em que as pessoas estão presas a redes de ação e reação. A tragédia nos sugere a inexorabilidade do tempo e da ação humana, a vontade submetida ao destino, ou a uma trama narrativa que se sobrepõe aos sujeitos. Teria sido muito mais cômodo para o espectador se o filme indicasse uma saída dentro do universo apresentado, mas não há concessões. A opção é pela inquietação, não pela determinação dos sujeitos, pois não temos acesso a essa perspectiva, mas apenas ao desconforto, ao ambíguo que incomoda. O surpreendente final nos é revelado pela câmera de TV, que sai de sua posição de extraquadro para então assumir â posição de imagem principal. A câmera fixa-se em Dalva, enquanto ela ainda está imóvel diante do acontecido. Depois, Dalva voltase para a câmera e aí fixa seu olhar. É um olhar interminável, fora do tempo da TV, que mistura completamente o que no início do filme era distinto: exterior e espaço doméstico. Naquele olhar de morte temos um espelho dos impasses, incompreensões e conflitos que fogem ao âmbito da sala escura.

Ficha técnica Direção: Tata Amaral Argumento: adaptação liv•e do romance Um céu de estrelas, de Fernando Bonassi

Roteiro: Jean-Claude Bernardet e Roberto Moreira Atores: Alleyona Cavalli e Paulo Vespúdo Garcia, com a participação especial de Ligia Cortez, Néa Simões, Norival Rizzo e Rosa Petrim Direção de fotografia: Hugo Kovensky Direção de arte: Ana Mara Abreu Direção de produção: Celeste Casella e Márc1a Vinci Montagem: ldê Lacreta Edição de som: Eduardo Santos Mendes e João Godoy Música: Lívio Tragtenberg e Wilson SuKorski Seqüência de abertura: Francisco César Filho Figurino: Miko Hashimoto Som direto: João Godoy Câmera: Jacob Solitrenick Produção executiva: Renato Bulcão e Maria lonescu Distribuição: Riofilme 201


Crede no baile de memórias a produção cinematográfica nacional recente Ana Lúcia Ferraz*

A p r o d u ç ã o cinematográfica nacional contemporânea tem chamado aateçãoda crítica pelo que tem sido capazdemos trar: inovação, criatividade, maestriaemforma e c o n t e ú d o na r e p r e s e n t a ç ã o d e histórias q u e revelam a particularidade de olhares locais. Três filmes merecem destaque neste t e x t o : Crede mi, de Bia Lessa e Dani Roland, O baile perfumado, de, Paulo Caldas e Lírio Ferreira, e Sertão memórias, de José Araújo.


Chegando ao público brasileiro em 1997, os três filmes realizam a tendência de representar cinematograficamente narrativas populares. Resolvendo esta proposta de formas distintas, todos são capazes de revelar muito acerca da vida das personas que nos são apresentadas. Sertão de memórias propõe-se a narrar ao espectador contos populares do interior do Ceará. Cearense, o autor estréia no longa-metragem, retratando histórias que ouve desde a sua infância. Seus pais e conhecidos são os atores do filme. O padre da cidade é quem interpreta o seu próprio personagem, assim também fazem o prefeito e as senhoras que oram. O autor nos traz o ponto de vista do nativo, que é, ele mesmo, o produtor, diretor e roteirista do filme. A religiosidade popular aparece representada com toda a riqueza da criação de personagens míticos e de alegorias da realidade vivida pelo povo. A política, a questão agrária, o catolicismo local se apresentam desafiando a lógica do espectador urbano, que se defronta com dragões e cordeiros e se vê forçado a criar um sentido para aquilo que vê. Crede mi é uma experiência de adaptação para o teatro de Os eleitos, um texto de Thomas Mann. O filme é também rodado no interior do Ceará. Originalmente produzido em vídeo Hi-8, ele nos revela o resultado de uma oficina de interpretação de atores, que são os próprios moradores da região. Relatos, crenças e imagens nos são apresentados e a experiência vivida aparece. Experiência interessante consiste em fazer um filme em que a interpretação para a câmera atualiza os mitos mais universais no sertão, algo particular do cinema brasileiro. Os sertanejos que vemos no filme nos contam suas próprias histórias e falam de temas universais. A morte, o incesto e as origens são interpretados para a câmera por atores que vivem seus próprios papéis na vida social.

O baile perfumado nos conta a história de um cineasta libanês no interior de Pernambuco, que pretendia produzir um filme a respeito da vida do bando de Virgulino Ferreira, o Lampião. Articulando momentos em que se apresentam os personagens locais com momentos de introspecção do cineasta, acompanhamos os bastidores do filme, que não chega a ser concluído por seu idealizador. As negociações com os personagens, a discussão em torno do que vai ser representado é o eixo do desenvolvimento da narrativa fílmica. A história da vida de Lampião aparece na trajetória do cineasta estrangeiro. Os momentos de introspecção deste autor-personagem explicitam os percursos da produção do filme na construção das narrativas em diálogo com os atores sociais filmados. O filme discute a forma como o retrato que se mostra de si depende da relação com a imagem que se acredita ser a idealizada pelo seus outros. Lampião não interpreta a cena de batalha que o cineasta pede, ele é o produtor de sua própria representação e parte dos estereótipos feitos a seu respeito para interpretar o seu personagem para a câmera do estrangeiro. Molda, constrói o seu próprio papel. Na ficção sabemos que o filme a que assistimos não foi o idealizado pelo seu autor, mas o produto da negociação com as personas que as interpretam: Lampião, os coronéis e os políticos. O que os três filmes têm em comum é o interesse em confundir as fronteiras entre o filme documentário e o ficcional no registro da narrativa mítica regional. E fazem isso ao propor a representação da história aos personagens, aproximandose das experiências vividas pelos que são filmados. Na ficção de O baile perfumado, os atores mudam seus papéis, produzindo a sua imagem que vai circular no cinema. Em Crede mi, a adaptação de uma obra literária encontra os modos de ver e a tradição oral dos sertanejos. Em Sertão de memórias, os mitos populares são tão reais quanto ficcionais.

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Todos os autores aproximam-se da vida local na construção dos argumentos dos filmes. Os atores são as pessoas dos vilarejos que cantam suas músicas, rezam suas rezas, encenam. Os diretores dos três filmes têm diferentes relações com os que são filmados, mas, em todos, ela é bem próxima. Reais são as pessoas que encenam no momento da filmagem. Alegorias da situação social vivida pelos nativos, estes filmes combinam diferentemente religiosidade popular, poderes locais e história. Em todos os casos, a expressão da vida local parece ter sido representada com o intuito de estabelecer uma nova linguagem na comunicação com ambos, o filmado e o espectador. Evidenciando os bastidores da produção do filme na narrativa ficcional (em O baile perfumado), reforçando uma interpretação teatral que rompe com os padrões clássicos da representação cinematográfica (em Crede mt) ou compartilhando as narrativas com os filmados (em Sertão de memórias), todos inovam com êxito a produção cinematográfica brasileira. Detalhe importante é exibir o filme depois de pronto aos que o interpretaram; o filmado também é espectador. Ao espectador que tem acesso ao circuito em que os filmes são exibidos, os cinemas e cineclubes nas grandes cidades, fica o papel de compreender algo do modo de ver e de viver essas histórias.

Fichas técnicas Crede ml Direção: Bia Lessa e Dani Roland Roteiro: Bia Lessa e Dan. Roland Produção: Bia Lessa fotografia e câmera: Bia Lessa Montagem: Sérgio Mekler Som: Dan. Roland Elenco: moradores dos vilarejos

O baile perfumado Direção: Paulo Caldas e Lírio Ferreira Argumento/pesquisa/roteiro: Hilton Lacerda, Paulo Caldas e Lírio Ferreira Produção: Germano Coelho Filho, Marcelo Pinheiro, Aramis Trindade, Lírio Ferreira e Paulo Caldas Direção de fotografia: Paulo Jacinto dos Reis Montagem: Vânia Debbs Direção de som: Renato Calaça e Valéria Ferro Direção de produção: Cláudio Assis Direção musical: Chico Sc1ence, Fred 04, Sérgio Veloso e Lúcio Direção de arte: Adão Pinheiro Consultoria histórica: Frederico Pernambuco de Mello Elenco: Duda Mambert1, Luiz Carlos Vasconcelos, Aramis Trindade, Chico Dias, Jofre Soares, Cláudio Mamberti, Giovana Gold e Germano Haiut.

Sertio de mem6rlas

·Ana Lúcia Ferraz, bacharel em Ciências Sociais (USP), é mestranda do Programa de Pós-Graduação em Antropologia So· cial da FFLCH-USP e pesquisadora do GRAVI -Grupo de Antropologia Visual da USP.

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Direção e roteiro: José Araújo Produção: José Araújo e Michelle Valladares fotografia: Antônio Luiz Mendes Montagem: Ismael Saavedra Música: Naná Vasconcelos Som: Anton Herbert e Márcio Câmara Elenco: Antero Marques Araújo, Maria Emilce Pinto, Ednardo Braga, Father Juvemar Matos, Walter filho e Francisco Neto

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O Brasil Brasil

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cinema etnográfico Patrícia Monte-Mór*

Há quatro anos vimos buscando estabelecer um diálogo mais formal entre Cinema e Antropologia no Brasil, através da Mostra Internacional do Filme Etnográfico. Este projeto surgiu não como uma experiência isolada, mas como parte de um conjunto de esforços, especialmente tio âmbito das Ciências Sociais, nos últimos anos, em relação às reflexões sobre o uso da imagem na pesquisa. Vários fatores contribuíram para a |ertinência deste everito e a sua continuidade. Do ponto dl vista cinematográfico, o documentário ganhava novo Hito de interesse, no cenário internacional, a partir 3os anos 90, com a abertura de canais de televisão a cabo, o investimento em co-produções e a continuidade das séries televisivas de caráter etnográfico. As discussões sobre globalização da cultura, com certeza, abriam como contraponto ym, enorme espaço às questões localizadas e singulares da vida social. Crescia o interesse pelo registro da diversidade da cultura plural, focalizada pelos diversos cantos do planeta. Um projeto que visava recolocar o documentário na "telá grande", denominado Documentaire sur te grand écran, na França, abria o debate sobre o novo


espaço para o cinema documentário e novas perspectivas de produção, incluindo aí a programação de títulos clássicos e recentes que faziam a história desse gênero. Alguns festivais dedicados ao cinema documentário ganhavam também novos estímulos, como O Bílan du film ethnographíque, dirigido por Jean Rouch, o Margaret Mead film and vídeo festival e o Natíve amerícan fi/m festival. Na filmografia brasileira, o cinema documentário ocupa lugar de destaque. É considerado a escola de muitos de nossos mais renomados cineastas, e a sua produção conheceu momentos de intensa atividade, especialmente entre os anos 6o e 70. Em alguns momentos dessa trajetória, teve uma importante função político-cultural, mapeando o país de norte a sul, através da realização de uma vasta produção de filmes de curta e médiametragem, incentivada pelas leis do audiovisual existentes. Este processo foi paralisado, no início dos anos 90, com o desmantelamento políticoeconômico e cultural do Estado. A partir dos anos 8o, novas tecnologias do audiovisual permitiram a introdução definitiva do vídeo no panorama de produção. Incentivados especialmente pelas ONGs, como uma das maneiras de melhor fazer a ponte com a sociedade civil, vários grupos surgiram, dedicados à produção não só de material de registro e de militância, como também de programas de caráter autoral. Com a facilidade no manuseio desses novos equipamentos, desenvolveram-se também os projetos de TV comunitária e de mídia indígena, que vão se disseminar na década seguinte. · Do ponto de vista das Ciências Sociais, algumas iniciativas se esboçavam, nos últimos anos, que apontavam para a necessidade crescente de um fórum de discussões sobre o uso da imagem e sobre a produção de imagem como forma de conhecimento sociológico. Não parece mais novidade apontar para a importância da iconografia, da fotografia, dos filmes

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e vídeos no contexto das pesquisas antropológicas, sociológicas ou históricas, pois vários textos já têm marcado este tema. Mas o fato é que, no Brasil, embora este interesse já venha de longa data 1 , a preocupação com uma maior sistematização nas relações especialmente do ponto de vista da Antropologia com o Cinema, o Vídeo, a Fotografia, surgia recentemente, e com grande ênfase. Muitos pesquisadores não mais se satisfaziam com o uso acessório de imagens em seu trabalho, mas sim como parte constitutiva da pesquisa 2 , o que lhes exigia conhecimento de técnicas, de acervos e de literatura. Vários foram os núcleos, laboratórios e centros criados nos últimos anos, nos departamentos de Antropologia e/ou Ciências Sociais, dedicados ao assunto. Floresceram, também, nos encontros de pesquisadores, mesas e grupos de trabalho, buscando refletir sobre o uso da imagem e suas diversas possibilidades na disciplina. A Mostra Internacional do Filme Etnográfico foi um projeto que se lançou com o objetivo de exibir ao público momentos significativos da história das relações entre Cinema e Antropologia. Em 1993. a t a Mostra surgia como uma oportunidade única de exibição de filmes considerados clássicos, ao lado da produção recente, que timidamente voltava às telas. Quem de nós conhece esses filmes? Como encontrá-los? Como fazer circular o que se produz hoje? Quais são os acervos disponíveis? Como constituir acervos específicos para a universidade? A Mostra trazia já estas várias questões, e portanto organizamos um conjunto de debates, que se pretendia abrir espaço para o confronto de idéias. Em 1997, realizamos a 4a Mostra Internacional do Filme Etnográfico. A continuidade desse projeto devese, especialmente, à parceria com a Funarte, através do Centro Técnico Audiovisual e do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular e Museu de Folclore Edison Carneiro, este último, local de sua realização. Uma produtora independente, a Interior Produções,

' Já há alguma literatura especiattzada no Brasil que aponta para esta história, especialmente a que vem sendo publicada nos Cadernos de Antropologia e Imagem, da UERJ, como em MoNTE·MúR, P.: "Descrevendo culturas: etnografoa e cinema no Brasil". NAI/PPCIS/UERJ, n. 1, 1995· Ver os textos de Bela Feldman Bianco em Monte-Mó r & Parente (org).: Cinema e Antropologia: horizontes e caminhos da antropologia visual, Interior Produções, 1994 e na revista Horizontes Antropológicos, Navisual/ UFRGS, n. 2, 1995.


foi criada em 1987 para institucionalizar os projetos culturais criados por nós, pelo cineasta José lnacio Parente e por mim, antropóloga. Pela Interior Produções, desenvolvemos o projeto da Mostra, com muitos colaboradores.

Novos cam n os na 4" Mostra A inesquecível presença do antropólogo-cineasta Jean Rouch, na 3ll. Mostra, e a exibição de seus filmes nos propiciaram rememorar, em companhia de importantes cineastas, histórias do Cinema Novo e do documentário brasileiro. Paulo César Saraceni, Gustavo Dahl e Geraldo Sarno partilharam suas histórias com o consagrado diretor. Rouch é admirado também pelas gerações mais novas. Vincent Carelli e Guel Arraes, alguns desses representantes entre nós, se especializaram, de maneiras diferenciadas, no trabalho com o vídeo instrumento freqüentemente abominado por este grande "mestre louco".

Se Rouch foi inspiração para nossa produção cinemanovista, podemos também constatar a atualidade de suas idéias e dos seus projetos cinematográficos ainda hoje. A idéia de uma antropologia partilhada, em que o diretor divide com os sujeitos a própria história, está na gênese de seu trabalho, e nos parece, ainda hoje, uma novidade! Se nas primeiras mostras a idéia de buscar títulos raros, diretores consagrados e a referência a antropólogos clássicos norteava nossa escolha na seleção dos filmes, a 4ll. Mostra tomou novos rumos. Nós permitimos fazer escolhas mais definidas, eleger temas e pensar especificamente nas tendências da produção. Nessa 4a Mostra consagramos duas linhas gerais para a escolha dos filmes: Memória do documentário e Produção recente. Em Memória, privilegiamos o tema sertão. No ano do centenário da Guerra de Canudos e do nascimento de Lampião, focalizamos alguns filmes que falam desse pedaço de Brasil que foi por demais apropriado e recriado pelas inúmeras lentes do cinema. Assim, Memória do cangaço, de Paulo Gil Soares, de 1965, abriu a Mostra, desfiando uma série de outros títulos, do mesmo Paulo Gil, hoje um importante diretor de televisão, realizados no contexto da famosa Caravana Farkas. Filmes do ciclo do boi, que inclui ainda Frei Damião: trombeta dos aflitos, martelo dos hereges. Também produzidos por Thomaz Farkas, Sérgio Muniz e Geraldo Sarno tiveram alguns de seus filmes apresentados, como O Rastejador e Vitalino, Lampião, respectivamente. Humberto Mauro foi homenageado em seu centenário. Exibimos Argila, um filme de ficção, considerado um dos mais etnográficos de sua obra. Também outros mais, da série Brasilianas. Exibimos também algumas jóias raras, como Rokamekra, vulgo canela, um programa de 1975, da série Globo Repórter, dirigido por Walter Lima Júnior, nos seis anos em que se dedicou ao programa, e Bispo do Rosário, de Hugo Denizart (1982), sobre o artista

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brasileiro que viveu a maior parte de sua vida como interno crônico em colônia psiquiátrica no Rio de Janeiro. Em Memória do documentário internacional, o americano Peter Adair, recentemente falecido, teve dois de seus filmes exibidos: o já clássico Holy ghost people (1967), sobre uma seita fundamentalista em West Virginia, e Absolutely positive (1992), em que aparece como diretor e objeto do filme, que retrata a vida de muitos americanos que são HIV positivos. Filmes do antropólogo Jerome Mintz, realizados na Andaluzia, Espanha e um programa da série Yanomami, de Thimothy Asch, fecharam a programação. No que se refere à Produção recente brasileira, é visível o crescimento efetivo, nos últimos tempos, da produção cinematográfica, especialmente do documentário. A televisão por assinatura, a reedição dos debates sobre a lei do curta-metragem e os efeitos da globalização são também fatores importantes. Veteranos diretores, cineastas jovens produzem uma série de títulos, não intencionalmente etnográficos, mas que acabam por resgatar aspectos da cultura e da identidade brasileira tão caros aos diversos empreendimentos de pesquisa, como é o caso de Tempo rei, um programa da Conspiração Filmes, sobre o cantor e compositor Gilberto Gil. Nesse processo que desponta, é notável a presença do antropólogo em funções que estão entre o roteiro e a pesquisa, um novo campo que se abre de forma mais institucionalizada e que tem no antropólogo Hermano Vianna um representante de peso. Nesse conjunto de filmes destacam-se os últimos lançamentos como Nelson Sargento, de Estevão Pantoja, O capeta Carybé, de Agnaldo Siri, ou Recife de dentro prá fora, de Katia Mesel. Também a produção do Centro de Trabalho lndigenista, ONG paulista que vem há alguns anos desenvolvendo o projeto Vídeo nas Aldeias como um diálogo intercultural. Tem que ser curioso, um vídeo de Caimi

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Waiasse, é um depoimento do próprio diretor sobre sua descoberta do vídeo e sua trajetória como videasta na própria aldeia. A Produção recente internacional aponta para alguns debates que estão na ordem do dia: o cinema na primeira pessoa, os limites entre documentário e ficção, os balanços e retrospectivas. Me and my matchmaker, de Mark Wexler (1996), é um exemplo de uma forte tendência por resgatar, na tela, histórias de vida e tramas em que o próprio diretor é parte constitutiva do enredo. Também Sweet Sorghum, dos renomados antropólogos Jean Lydall e Ivo Strecker (1995), com o relato de sua filha, criada junto aos Hamar, na África. Bantoc eulogy,


• Artigo origiPalmente publicado na revista Filme e Cultura, Embrafilme, 1978 e republicado em Comunicações do !SER n.10, outubro de 1984, rúmero organizado por Patrícia Monte·Mór.

de Marlon Fuentes (1995), vai mais além. Tendo como matéria-prima as supostas memórias sobre sua genealogia, concebe uma história feita de retalhos, de pedaços de filmes, fotos, imagens, que compõem uma nova história, como sendo a sua. Margaret Mead: an observer observed é um fascinante retrato da famosa antropóloga. Utilizase de imagens de arquivo nunca vistas, entrevistas e recriação ficcional. Les Mclaren nos apresenta um balanço da produção de cineastas australianos sobre PapuaNova Guiné. As imagens de Taking pictures nos mostram, entre outros, B. Connolly, R. Anderson, O'Rourke, G. Kildea e I. Dunlop, nomes fundamentais do cinema etnográfico. Alguns debates já clássicos, sobre a invasão de territórios indígenas pela "civilização", também estão presentes, como nos trabalhos Xingu: /e corps eles esprits, de Ma ri Corrêa (1996), que mostra o confronto entre medicina ocidental e indígena; e Trinkets and beads, de Chris Walker (1996), quando companhias petrolíferas invadem as terras dos Huaorani, no Equador. Zapatista women, de Guadalupe Miranda e Maria Inês Roqué (1995), é um raro olhar sobre a vida na guerrilha entre mulheres zapatistas, no México, e The flickering flame, um registro feito pelo famoso cineasta Ken Loach (1996) sobre uma greve de estivadores, do Porto de Liverpool, que durou mais de um ano. lnagina, /'ultime maison du fer é o primeiro filme do antropólogo Eric Huysecom, que vem trabalhando há muitos anos com pesquisas no Mali. A metalurgia de ferro é praticada na África há mais de 3000 anos, e este filme é um registro etnográfico brilhante das técnicas tradicionais. De todo e/ universo entero, de Claudio Mercado (1996), e Los ramos, de Ana Maria Zanotti (1996), são algumas das produções mais recentes do Chile e da Argentina, respectivamente, de diretores que estão investindo no documentário como expressão da cultura e da identidade de seus países.

novo ocu

E OEO Há vinte anos, o cineasta Sérgio Santeiro, hoje diretor da Escola de Cinema da UFF, formulava o conceito de "dramaturgia natural", no contexto de um debate sobre Cinema e Ciências SociaisJ. Achamos pertinente retomar algumas de suas idéias, quando as questões sobre as fronteiras entre a realidade e a ficção entram na ordem do dia no debate sobre o gênero documentário. Para Santeiro, "dramaturgia natural" é a possibilidade de "superação relativa da subjetividade no documentário cinematográfico". O autor identifica no documentário algo que se aproxima do drama ou da ficção."A encenação que, no drama, organiza a expressão do comportamento dos atores diante da câmera, como forma de veiculação da narrativa, é adotada pelo documentário com a diferença de que neste a encenação não se coloca em referência a um modelo estético, e sim a um modelo social mais amplo que é diretamente plasmado pelas condições sociais de vida dos depoentes."


Assim, alguns filmes exibidos na Mostra apontam para estas questões, como o polêmico Crede mi, de Bia Lessa, ou Segredos da mata, de Vincent Carelli e Dominique Gallois. O primeiro, uma "narração expressionista, essencialmente espontânea, do texto clássico O eleito, de Thomas Mann, por habitantes do interior do Ceará". O segundo, fábulas de monstros canibais do repertório dos Waiãpi narradas e interpretadas pelos próprios índios. É interessante mencionar que este debate teve continuidade no 2P' Margaret Mead film and vídeo festival, realizado em novembro de 1997, em Nova Iorque, em que o documentário brasileiro foi um dos focos, exibindo uma dezena de filmes de produção nacional, selecionados a partir da Mostra internacional do filme etnográfico. As questões sobre o novo documentário parecem que vão se manter em cena por algum tempo. Mais uma vez Cinema e Antropologia se aproximam no debate em busca de seus modelos. A Mostra internacional do filme etnográfico entra no circuito internacional, fazendo de nosso país parada obrigatória para a produção que circula pelos diversos fóruns especializados e levando nossas imagens para também fazer parte deste panorama global.

*Patrícia Monte·Mór é antropóloga (UERJ) e curadora da Mostra internacional do filme etnográfico.

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Berlim vê o Brasil: antropólogoserealizadoresemfoco Paula Morgado*

A importância da contribuição alemã para a Antropologia no Brasil é incontestável Nasce com as primeiras missões empreendidas pelos viajantes no século XVI, prossegue com os exploradores do século XIX , lançando as bases da etnologia brasileira que irá se consolidar na década de 30, em grande medida, graças a jovens cientistas alemães recém-chegados ao Brasil, a muitos dos quais devemos valiosas monografias sobre as populações indígenas. A presença alemã no Brasil continuará a marcar de forma importante todo o século XX, porém não mais por intermédio de grandes missões antropológicas, muitas das quais com o apoio governamental, mas, desta vez, a partir de iniciativas individuais. Fotógrafos, artistas plásticos, cineastas, médicos e outros profissionais se destacarão no registro da realidade brasileira, vindo a enriquecer muitos dos estudos antropológicos. Brasil na Alemanha, alemães no Brasil, um espírito que atravessa os séculos desde o período colonial brasileiro. Que confluências e distâncias se colocam? Quais aspectos vêm chamando a atenção de antropólogos e realizadores de cinema e vídeo? Que imagens brasileiras são construídas? É possível falarmos de uma Antropologia do olhar, independente das culturas de origem daqueles que a produzem, independente dos espaços de convivência profissional?


Entre os dias 15 e 25 de janeiro, realizou-se no Museum für Vo/kerkunde (Museu de Antropologia) de Berlim a Mostra de filmes e vídeos Fi/m - Land: Brasilien ( Filme -Terra: Brasil), uma iniciativa do Laboratório de Imagem e Som em Antropologia (LISA) do Departamento de Antropologia da USP, em parceria com o Instituto Cultural Brasileiro (ICBRA) de Berlim. Este evento ao mesmo tempo que resulta desta antiga tradição de intercâmbio cultural entre Brasil/Alemanha, inaugura uma discussão no campo da antropologia/cinema/vídeo. Pela primeira vez exibiu-se na Alemanha o que antropólogos brasileiros vêm refletindo com o auxílio de câmeras de vídeo: de que modo alguns documentaristas se aproximam da Antropologia e como olhares alemães e brasileiros se cruzam nesta intersecção. O foco foi a cultura brasileira: antropólogos, videomakers e cineastas desvelando um Brasil plural, em que temas emblemáticos como futebol, candomblé, índios, negros, menores de rua, imigrantes, pobres apontam para a discussão de temas sociais e culturais, tais como identidade, marginalidade, desvio etc. Foram selecionados 25 documentários, grande parte em vídeo, e 5 filmes de ficção - estes últimos exibidos na sala de cinema Filmbühne am Steinplatz. Film- Land: Brasilien integrou um grande evento cultural, Schauplatz Museum 1998, que reuniu 160 espaços culturais de Berlim, entre galerias, museus, palácios e instituições culturais. Durante um mês, de 16 de janeiro a 15 de fevereiro, filmes, peças de teatro, concertos, seminários, discussões e exposições compuseram uma programação densa e invejável para quem passava pela cidade, contrastando com a aridez do maior canteiro de obras que Berlim se transformou após a reunificação alemã. Quando um museu renomado de Antropologia, como o Volkerkunde Museum em Dalhlen, abre suas portas para a exibição de filmes brasileiros num evento como este, e a imprensa berlinense participa de forma atuante na sua cobertura, não há como 212

negar o interesse que continua a se perpetuar pela produção cultural de nosso país. Mas a mostra significou bem mais do que provocar este tipo de interesse e revelar o que de contemporâneo se faz no cinema brasileiro. Ao colocarmos, lado a lado, vídeos antropológicos e documentários feitos por cineastas consagrados, pretendeu-se suscitar, fora do Brasil, uma reflexão sobre as possibilidades do alargamento do "filme etnográfico": Quais são os limites dos filmes chamados etnográficos e os demais intitulados documentários? Ou que tensão existe entre a disciplina da Antropologia e as demais formas de registro de uma realidade cultural? O que significa documentar o mundo contemporâneo com o auxílio de imagens? Ao se tratar de diferentes formas de representação do real, quais são as fronteiras entre ficção e realidade? Temas antigos e caros às ciências humanas que hoje a "antropologia visual" ou "antropologia da imagem" reclama uma maior definição. Film- Land: Brasi/ien veio confirmar que a busca pela interdisciplinaridade, nas artes e nas ciências não é mais uma meta a ser perseguida, mas uma realidade. Progressivamente, os profissionais engajados nesta tarefa percebem que estão diante de um poderoso veículo de expressão e de entendimento do mundo. Como resultado, cresce o número de antropólogos-cineastas, antropólogos-fotógrafos, e vice-versa. Ao assistirmos hoje aos chamados filmes etnográficos, seja em pequenos fóruns de debate, salas de aula, seminários, telas de TVs, mostras ou festivais, estamos assistindo ao vivo esta relação dialógica que se estabelece entre o visual e o escrito, a arte e a ciência, pares que não se opõem, mas ao contrário se complementam. Quando o antropólogo experimenta esta simbiose e aprende a dominá-la, temos grande chance de estar diante de um bom filme e achando que vale a pena continuar a falar, escrever e organizar mostras que discutam a relação entre Antropologia e imagem.

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po'ltil pa• c~ta h1<tOria, espec a rrente a que vem erdo pubo~caci" nos Cadernos de Afltropofvgla e Imagem, da vER, co 10 err ..,., )I E MóR, p "D€screv !'Ido CJituras· c•nogrc.'ia cinerra no Brasil". "--AI/PPC, /UERJ, n. 1, 199'). Ve vs tf'xtos de Bela ~E d"lla'l Bia1co €'11 'vlonte'vló & Parente org). Cinerr.a E AntrtJpvlogld: horizontes e cammhos dél antropologia VISual roten11r Produções, "994. e 'la •cv1sta Horizontes Antropologtcos, Nav s Jal/ !_fRGS, r '• 1995. Artigo or1gi'la Merte publ'~ado 'la revista filme e Cvltura, E·nl:;•a lme, 1978, e rep<Jb cada err Comumcações do ISERn.w, outubro de 1984, n.:i'lle•o o r ar izac;o por Patrícia Morte 'vlór.


Documentários Explorando a temática indígena, foram exibidos os trabalhos dos antropólogos Regina Muller (Safara~ Virgínia Valadao (Yakwa, O banquete dos espírito~. Monica Frota (Taking Aim), Dominique Gallois- com co-direção de Vincent Carelli (Placa não Fala e O Espírito da 111. Barbara Keifenheim e Patrick Dehayes (Nawa Huni), os documentários Brasil grande e os índios gigantes, de Aurelio Michiles, Tsa' amri, de Eike Schmidt, Xingu, corpo e alma, de Mari Corrêa, além do vídeo jane Moraita, realizado pelo índio Wãiapi Karisipina. No campo afro-brasileiro, exibiu-se dois trabalhos bem distintos dos antropólogos Andreas Hofbauer (Somos Filhos de Orixá~ e de Carmem Opipari e Sylvie Timbert (Barbara e seus amigo~ . Mergulhados em questões urbanas, estiveram presentes os trabalhos dos antropólogos Henri Gervaseau (Tem que ser Baiano), Claudia Turri e Nu no Godolphin (Habitantes de Rua), Kiko Goifman (Tereza e Clones, Bárbaros e Replicante~. Evelyn Schuller - com co-direção de Iracema Bastos e Julio Wainer (Pedras no meio do Caminho). Dialogando com a Antropologia das sociedades complexas exibiu-se os documentários Boca de lixo, de Eduardo Coutinho, Amores de Rua, de Eunice Gutman, O Beijoqueiro, de Carlos Nader, Funk Rio, de Sergio Goldemberg, Periferia (Stadtrand), de Klaus Vetter, Chapeleiros, de Adrian Cooper, e Terra da lua, das videomakers Claudia Mesquita, Anna Karina e Tania Caliani.

Filmes de ficção Como nascem os anjos, Murilo Sales, 97 min. Ed Mort, Alain Fresnot, 1996, 100 min. Enigma de um dia, Joel Pizzini, 1996, 21 min. Fica Comigo, Tizuka Yamasaki, 1996, 100 min. Um céu de estrelas, Tata Amaral, 1996, 70 min.

*Paula Morgado é antropóloga, mestre pelo Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e com DEA em Etnologia pela Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, trabalha no ,e_ Laboratório de Imagem e Som em Antropologia, do deg:, ~ partamento de Antropologia da USP, e foi curadora da o Mostra Fílm - Land: Brasílien. 213


Robinson

A minha ilha, Sexta-Feira, estou vendo de novo a minha ilha! Apesar das mudan ças, posso reconhecer tudo! Aliás, mudança é o que não falta nela. Sexta-Feira

É verdade, meu amo, que mudou, mudou (risinho) . Também reconheço a ilha onde o senhor me ensinou a ser um bom escravo. Estou vendo o lugar onde era a minha cabana. Robinson

Meu Deus! Lá existe agora um arranha-céu de vinte e quatro ... não, espera aí, de trinta e dois andares! Maravilhoso, Sexta-Feira! Sexta-Feira

Maravilhoso! meu amo (risinho). Robinson Queres me dizer por que ficas rindo cada vez que falas comigo? Antes isso não acontecia, até porque eu não permitiria tal coisa; mas de um tempo desses para cá ... Posso saber o que há de engraçado em eu ser teu amo, eu, o homem que te salvou de um destino terrível, e te ensinou a viver como uma pessoa civilizada?

• • • Robinson

Porque ao chegar aqui pude ver que as coisas são diferentes. Quando você observa que eu fiz do canibal Sexta - Feira um cser humano, ou seja, um cristão, ou seja, um homem civilizado, penso que de uma semana para cá passei a admirar em Sexta - Feira principalmente o que nele ainda resta de canibal ... Bom, não se assuste ; digamos de canibal mental, de selvagem interior.

• • • Sexta-Feira (afetuoso)

Pois é, Robinson. E você só veio descobrir isso no final da vida, quando pisou de novo o chão de sua própria ilha. Agora, você já sabe que perdeu a faculdade de ligarse, comunicar-se com Juan Fernández, com John Smith, com João da Silva ...


Fragmentos de "Adeus, Robinson" in: CORTÁZAR, Julio. Adeus. Robinson e outras peças curtas. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1997. Colagem textual de Florencia Ferrari e Kiko Ferrite, do corpo editorial. Foto-montagem de Kiko Ferrite.


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13 março a 24 maio 98 O Itaú Cultural tem o prazer de convidar para o evento multidisciplinar Viagens. Expedições, Salas Expositivas, Espetáculos Musicais, Lançamento de Filmes, Ciclo de Cinema, Ciclo de Palestras e Oficinas compõem esse primeiro evento do eixo curatorial do instituto para o ano de 1998.


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LEI D E INCENTIVO À CULTURA

MINIST~RIO

DA CULTURA


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C A S A um

projeto

brasileiro

Local de encontro entre a traaição e o novo. Mescla de linguagens. Fotografia, literatura, dança. pintura, escultura. teatro. mídias. Na música, experiências: oficinas de mestres eruditos e populares. Redescobertas, atualizações. Questões emergentes. A identidade brasileira. Iniciativas ambientais. Evocação de paisagens. costumes e hábitos. gostos. daquilo que às vezes, mesmo sendo brasileiro, nos é estrangeiro. Eis mapa deste encontro, A Casa se abre em convite. Sejam todos para sempre bem-vindos.


A CASA

Rua Coronel Irlandino S i a n d o v a l , 425 CEP 01457 0 1 0 . São Paulo/ SP Brasil Tel|fax (011)814 9711

A CASA Cbmeçou a $Ua programação em setembro de 1997,

oficinas de dança e música e culinária típica. Um Ano da oficinas de dança e música e culinária típica. Um Ano da gravadora e produtora Núcleo Contemporâneo, com a gravadora e produtora Núcleo Contemporâneo, com a realização de vários concertos.

e desdé então ter'n apresentado projetos como:

Cont,rtos na A mú r!Ja em u ~ esRaço inédito .. Já apre~entou nomes tais com cfP"a)S Gl 1 ~ arco Pere1ra, Tonmho Carrasqueira, Ná Ozzetti, Mônica Salmaso, entre outros.

auiQe{jl 'j"ªi ~ a,

Uma uma oficina de fotografia onde os trabalhos viram uma exposição, um encontro com as danças típicas do Maranhão, um workshop orgânico de percussão com o mestre Naná Vasconcelos. As atividades que formam o projeto Oficinas, aproximam as linguagens e buscam a integração entre as artes.

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Idéias diferentes em para a elaboração de eventos muito especiais. A celebração do Solstício de Verão com uma Folia de Reis, filmada e transmitida pela Internet, colocou em contato uma tradição secular e uma tecnologia moderna. O resultado dessa junção será analizado em uma tese de doutorado. Uma semana dedicada à cultura do Maranhão, com exposição de fotos, de figurinos,

Casa

Ruaprojeto Coronelapresenta Irlandino Suma i a n d oprogramação v a l , 425 Este variada para CEP 01457 0 1 0 . São Paulo/ SP Brasil crianças de todas as idades. São atividades selecionadas Tel|fax (011)814 9711 com a intenção de apresentar às crianças um pouco da beleza e da riqueza que existe escondida na natureza humana. De uma maneira geral, estas atividades estão também envolvidas em revelar o encanto da cultura popular brasileira. As atividades se desenvolvem em espaço receptivo, bonito, calmo e fora do comum. Música, teatro, contadores de histórias, sarau de crianças instrumentistas ou cantoras, espetáculo ou oficina de dança, de circo, de teatro de bonecos, de fabricação de papel artesanal, de jardinagem ou atividades de percepção da natureza integrada a atividades plásticas. Em 1998 o projeto A Criança nA Casa cresceu, e está oferecendo também um curso livre de teatro, com professores jovens e experientes, com longa formação no Teatro Vento Forte. O roteiro O roteiro infantil dA CASA ficou assim, todos os sábados: 14h30 à s l 6 h 3 0 - curso de teatro

Criança nA

A cidade de São Pau fJ várias regiões do Brasil e das várias tradições que aqui aportaram. A idéia do projeto O Mundo nA Casa é apresen tar diferentes mundos com presença importante nesta cidade, e que já têm deixado sua marca na nossa identi dade. Música , dança, culinária e artesanato aparecem pintando o cenário dos povos e seus costumes.

realização de vários concertos.

Casa

17h00 às18h30- apresentações ou ofici

1 7h00 à s l 8h30 - apresentações ou oficinas

Teatro l~ªstfr

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Buscando uma aproximação cada vez nte Buscando uma aproximação cada vez maior das diferentes formas de expressão, em 1998 A CASA se abre ao teatl1o, formas de expressão, em 1 998 A CASA se abre ao teatro, apresentando o espetáculo : Ladrões de metáforas, de apresentando o espetáculo: Ladrões de metáforas, de Gustavo Kur Kurlat. Gustavo t.


Evelyn Schuler é estudante de Antropologia, Filosofia e Teoria Literária na Universidade de Basel/Suíça e pesquisadora do NHII (Núcleo de História Indígena e do Indigenismo/ USP). Florencia Ferrari é cientista social

(USP>.

Kiko Ferrite é fotógrafo da revista Exame (Editora Abril> e estudante de Ciências Sociais na USP. Paula Miraglia é mestranda em Antropologia Social pela USP, bolsista do CNPq e pesquisadora do GRAVI. Paula Pinto e Silva é mestranda em Antropologia Social pela USP e bolsista da FAPESP. Renato Sztutman é jornalista (PUC/SP), mestrando em Antropologia Social pela USP, bolsista da Fapesp e pesquisador do GRAVi (Grupo de Antropologia Visual/USP> e do NHII. Rose Satiko G· Hikiji é jornalista (IMS), mestranda em Antropologia Social pela USP, bolsista da Fapesp e pesquisadora do GRAVi. O corpo editorial Silvana Nascimento é jornalista (PUC/SP), mestranda em Antropologia Social pela USP, bolsista da Fapesp e pesquisadora do NAU (Núcleo de Antropologia Urbana/USP>· St~lio Marras é mestrando em Antropologia Social pela USP e bolsista da Fapesp. Yal~ria Macedo é graduada em Cinema (fAAP> e mestranda em Antropologia Social pela USP, bolsista da Fapesp e pesquisadora do GRAVi.

capa imagem original

da

Família Miraglia.


corpo

editorial

Evelyn Schuler, Florencia Ferrari, Kiko Ferrite, Paula Miraglia, Paula Pinto e Silva, Renato Sztutman, Rose Satiko Hikiji, Silvana Nascimento, Stélio Marras, Valéria Macedo

projeto

grAfico

do ateliª querosene: Amália Giacomini, Ana Claudia Veiga de Castro, Caio de Carvalho, Elísio Yamada, Joana Mello de Carvalho e Silva

revisl!lo Daniela Puccini

colaboradores Ana Lúcia Ferraz, Andréa de Valentim, Carlos Rodrigues Brandão, Carlos Vianna, Carmen Novo, Claudio Diaféria, Claudio Edinger, Dafne Sampaio, Domenico Lancelotti, DominiqueTilkinGallois, Edgar Teodoro da Cunha, Eduardo Delfim, Elizabeth Slamek, Felipe SUssekind, GutoLacaz, Heitor Ferraz, Hélio Campos Mello, José Miguel Wisnik, Marcelo Manzatti, Márcio Silva, Maria Lúcia Montes, Milton Meira do Nascimento, Patrícia Gouvªia, Patrícia MonteMór, Paula Morgado, Rafa Campos, Renato Cymbalista, Rita de Cássia Amaral, Roberto DaMatta, Tatiana Ferraz, Vagner Gonçalves da Silva, Vincent Carelli, Wilson Jorge Filho, Zoy Anastassakis

fotolitos Andreotti

impressl!lo Gráfica Círculo

distribuic;l!lo Editora 34 Ltda, Pletora Ltda

agradecimentos

especiais

Revistas Azougue, Cadernos de Campo, Cult, Clarice Peixoto, Efraim H. Sztulman, Joana Alves, Marcia Ferrite, Yacoff Sarkovas, Patrícia Monte-Mór, Renata Ursaia, Sahra Sztulman, Sylvia Caiuby Novaes, Wilson Jorge Filho

agradecimentos ABA, Aline, Aracy Amaral, Arnaldo Spindel, Caio Ceppo, Calé, Carolina Felipozzi, Celeste DaMatta & netos, Celso, Claudio Diaféria, Ednaldo, Eduardo Neves, EDUSP, Eliane Koseki, Evaldo Mocarsel, Ivanete, Cesar Paes e Marie Clemence, José Guilherme Cantor Magnani, Juliana Fiorini, Júnia CBHl, Klaus Miteldorf, Guilherme Sztutman, Heitor Ferraz, Hermano Vianna, Inªs de Castro, Lino de Macedo, Marco Aurélio, Maria José, Mariana Vanzolini, Marisa Correia, Mazu Marrom, Melvina Araújo, Nani Ferrari, Nubia, Osmano, Patrícia Rousseaux, Paula Santoro, Raquel Shein, Raquel Nascimento, Renata Motta, Ricardo Guimarães, Riofilme, Rose, Rubens Caixeta, Tata Amaral, Valéria Cano Bravi, Wilma Pompeu de Camargo

apoio

cultural

A Casa, Departamento de Antropologia da USP, Laboratório de Imagem e Som em Antropologia CLISA/USPl, Restaurante Pitanga

patrocínio Lei de Incentivo à Cultura CLINCl Secretaria Estadual de Cultura do Estado de São Paulo Andreotti, Instituto Cultural Itaú

ficha

Ucnica


A Sexta Feira recebe artigos, resenhas de livros, filmes e exposições, entrevistas, ilustrações e ensaios fotográficos. Todo material enviado será submetido a uma avaliação prévia dos editores, que decidirão o seu enquadramento dentro da linha editorial da revista e sua possível publicação. Os artigos devem ser apresentados em três vias impressas, acompanhadas de um disquete de preferência no formato Rich Fermat Text, ou em processadores de texto compatíveis com Windows. O texto deverá ser entregue no tipo Times New Roman, corpo 12, espaço simples, alinhado à esquerda. O limite do número de páginas é de 25 laudas (20 linhas por página).

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Instruções para colaboradores

As referências bibliográficas serão apresentadas ao final do texto, em ordem alfabética, obedecendo ao seguinte esquema: Livro: sobrenome em caixa-alta, nome em caixa-baixa, título em itálico, local da publicação, editora, data. Artigo:sobrenome em caixa alta, nome em caixa baixa, título entre aspas, in + título do periódico em itálico, local da publicação, editora, data. As fotografias poderão ser enviadas em colorido ou preto-e-branco e, se possível, scanneadas e apresentadas em disquete. O mesmo poderá ser feito com ilustrações e outras imagens. O autor deverá apresentar, ao final do texto e/ou imagem, sua profissão <estudante de graduação, mestrado, doutorado, outros> e outras informações importantes para o leitor.

O mat.erial deve ser enviado para: Rua Dona Maria Dulce Nogueira Garcez, 59 Silo Paulo SP cep []5424-[]7[] a/c pletora 1 tda. fax []11 211 b25[] e-ma i 1 pletoraiJuol. com. br fone p/ contato 8b4 5371 ( Val~ria)

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Festas. nĂşmero 2 ano 2 abril de 1998

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