Revista de História da Arte (n.º5 / 2008)

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Revista de História da Arte N.5 2008 Ficha Técnica instituto de história da arte faculdade de ciências sociais e humanas · universidade nova de lisboa

iss n 16 46 -17 6 2

revista académica de teoria e história da arte portuguesa e suas articulações internacionais, publicada pelo Instituto

à comunidade científica e académica, incluindo professores, investigadores

n.2 2006

de História da Arte.

e estudantes. Cada número da Revista

de História da Arte é dedicado a um tema específico, tratado em artigos originais. No entanto, cada número dispõe de secções abertas a outros domínios

n.3 2007

temáticos: Recensões, Varia e Notícias.

Costa Pinheiro, D. Sebastião, 1966. Colecção Manuel de Brito, Lisboa. Cortesia da Galeria 111 (autoria desconhecida).

Revista de História da Arte, o seu nº 5, recolhe a maioria das conferências que estruturaram o XI Curso Livre do Instituto de História da Arte, consagrado à temática do Retrato que decorreu, com assinalável sucesso, em 2007. Como também é marca distintiva dos nossos cursos livres, a temática do retrato foi tratada numa cronologia extensiva, da Antiguidade Romana em Portugal, passando pela Idade Média, percorrendo o Renascimento e o Barroco para terminar nos tempos mais próximos, do século XIX aos nossos dias. Cumprimos também outro dos traços da nossa actuação: tivemos conferências de docentes do Departamento de História da Arte e de alguns dos nossos discípulos, mas, sobretudo, de colegas que trabalham noutras Universidades ou Institutos Politécnicos (Universidade Aberta, Universidade de Coimbra, Universidade Católica, Instituto Politécnico de Tomar) e do Museu Nacional de Arte Antiga, com quem mantemos relacionamentos pessoais e institucionais que são um dos mais estimulantes sinais do excelente estado da história da arte em Portugal.

apo i o s

n.4 2007

© fotografia da capa e contracapa

e acordo com a linha programática da

de História da Arte, da Faculdade

N.5

2008

fac u l da d e d e c i ê n c i a s s o c i a i s e h u m a n a s – u n l

direcção (fcsh/unl)

Ramón Rodrigues Llera

M. Justino Maciel

(Universidade de Valladolid, Espanha)

Raquel Henriques da Silva

Thomas Noble Howe

conselho científico

(Southwestern University, EUA)

e editorial (fcsh/unl)

tradução

Carlos Moura

Michelle Nobre

José Custódio Vieira da Silva

secretariado

Manuel Justino Maciel

Ana Paula Louro

Maria Adelaide Miranda

edição

Rafael Moreira

Instituto de História da Arte

Raquel Henriques da Silva

concepção gráfica

conselho científico externo

e paginação

Etelvina Fernández González

Rita Palla

(Universidade de León, Espanha)

impressão e acabamentos

Fernando Acuna Castroviejo

Heragráfica, artes gráficas lda.

(Universidade de Santiago

tiragem

de Compostela, Espanha)

1 000 exemplares

Hellmut Wohl

depósito legal

(Universidade Boston, EUA)

227 341/05

Joaquin Yarza Luaces

issn

(Universidade Autónoma

1646-1762

de Barcelona, Espanha) Luís Moura Sobral (Universidade de Montreal, Canadá) Mário Henrique D’Agostino (Universidade de São Paulo, Brasil)

Preço de venda ao público 15,00 € (5% de IVA incluído) © Copyright 2008 Autores e Instituto de História da Arte

Agradecimentos

O Retrato

D

A Revista de História da Arte é uma

Destina-se predominantemente

Publicação Semestral do Instituto de Ciências Sociais e Humanas, UNL

n.1 2005

avenida de berna, 26 c 1069-061 lisboa tel. 217 908 300 · ext. 1540 e-mail iha@fcsh.unl.pt 09h00-12h30 · 13h30-18h00

O Retrato

N .5 2008

Câmara Municipal de Lisboa – Direcção Geral de Arquivos; Direcção-Geral do Livro e das Bibliotecas; Museu da Cidade – Divisão de Museus; Fundação da Casa de Bragança; Fundação para a Ciência e a Tecnologia; Instituto de Gestão do Património Arquitectónico e Arqueológico; Instituto dos Museus e da Conservação; Museu Nacional de Arqueologia; Palácio Nacional de Mafra; Relógio d’Água. A edição nº5 da Revista de História da Arte foi apoiada pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) e pela Direcção-Geral do Livros e das Bibliotecas (DGLB). A Revista de História da Arte encontra-se indexada no catálogo Internacional Latindex.


Revista de História da Arte N.5 2008 Ficha Técnica instituto de história da arte faculdade de ciências sociais e humanas · universidade nova de lisboa

iss n 16 46 -17 6 2

revista académica de teoria e história da arte portuguesa e suas articulações internacionais, publicada pelo Instituto

à comunidade científica e académica, incluindo professores, investigadores

n.2 2006

de História da Arte.

e estudantes. Cada número da Revista

de História da Arte é dedicado a um tema específico, tratado em artigos originais. No entanto, cada número dispõe de secções abertas a outros domínios

n.3 2007

temáticos: Recensões, Varia e Notícias.

Costa Pinheiro, D. Sebastião, 1966. Colecção Manuel de Brito, Lisboa. Cortesia da Galeria 111 (autoria desconhecida).

Revista de História da Arte, o seu nº 5, recolhe a maioria das conferências que estruturaram o XI Curso Livre do Instituto de História da Arte, consagrado à temática do Retrato que decorreu, com assinalável sucesso, em 2007. Como também é marca distintiva dos nossos cursos livres, a temática do retrato foi tratada numa cronologia extensiva, da Antiguidade Romana em Portugal, passando pela Idade Média, percorrendo o Renascimento e o Barroco para terminar nos tempos mais próximos, do século XIX aos nossos dias. Cumprimos também outro dos traços da nossa actuação: tivemos conferências de docentes do Departamento de História da Arte e de alguns dos nossos discípulos, mas, sobretudo, de colegas que trabalham noutras Universidades ou Institutos Politécnicos (Universidade Aberta, Universidade de Coimbra, Universidade Católica, Instituto Politécnico de Tomar) e do Museu Nacional de Arte Antiga, com quem mantemos relacionamentos pessoais e institucionais que são um dos mais estimulantes sinais do excelente estado da história da arte em Portugal.

apo i o s

n.4 2007

© fotografia da capa e contracapa

e acordo com a linha programática da

de História da Arte, da Faculdade

N.5

2008

fac u l da d e d e c i ê n c i a s s o c i a i s e h u m a n a s – u n l

direcção (fcsh/unl)

Ramón Rodrigues Llera

M. Justino Maciel

(Universidade de Valladolid, Espanha)

Raquel Henriques da Silva

Thomas Noble Howe

conselho científico

(Southwestern University, EUA)

e editorial (fcsh/unl)

tradução

Carlos Moura

Michelle Nobre

José Custódio Vieira da Silva

secretariado

Manuel Justino Maciel

Ana Paula Louro

Maria Adelaide Miranda

edição

Rafael Moreira

Instituto de História da Arte

Raquel Henriques da Silva

concepção gráfica

conselho científico externo

e paginação

Etelvina Fernández González

Rita Palla

(Universidade de León, Espanha)

impressão e acabamentos

Fernando Acuna Castroviejo

Heragráfica, artes gráficas lda.

(Universidade de Santiago

tiragem

de Compostela, Espanha)

1 000 exemplares

Hellmut Wohl

depósito legal

(Universidade Boston, EUA)

227 341/05

Joaquin Yarza Luaces

issn

(Universidade Autónoma

1646-1762

de Barcelona, Espanha) Luís Moura Sobral (Universidade de Montreal, Canadá) Mário Henrique D’Agostino (Universidade de São Paulo, Brasil)

Preço de venda ao público 15,00 € (5% de IVA incluído) © Copyright 2008 Autores e Instituto de História da Arte

Agradecimentos

O Retrato

D

A Revista de História da Arte é uma

Destina-se predominantemente

Publicação Semestral do Instituto de Ciências Sociais e Humanas, UNL

n.1 2005

avenida de berna, 26 c 1069-061 lisboa tel. 217 908 300 · ext. 1540 e-mail iha@fcsh.unl.pt 09h00-12h30 · 13h30-18h00

O Retrato

N .5 2008

Câmara Municipal de Lisboa – Direcção Geral de Arquivos; Direcção-Geral do Livro e das Bibliotecas; Museu da Cidade – Divisão de Museus; Fundação da Casa de Bragança; Fundação para a Ciência e a Tecnologia; Instituto de Gestão do Património Arquitectónico e Arqueológico; Instituto dos Museus e da Conservação; Museu Nacional de Arqueologia; Palácio Nacional de Mafra; Relógio d’Água. A edição nº5 da Revista de História da Arte foi apoiada pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) e pela Direcção-Geral do Livros e das Bibliotecas (DGLB). A Revista de História da Arte encontra-se indexada no catálogo Internacional Latindex.


O Retrato N.5 2008 Instituto de História da Arte Faculdade de Ciências Sociais e Humanas Universidade Nova de Lisboa

Edição Instituto de História da Arte


abreviaturas ANTT Arquivo Nacional Torre do Tombo CM L Câmara Municipal de Lisboa DG A RQ Direcção-Geral de Arquivos FC G Fundação

Calouste Gulbenkian F CS H/ U NL Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa FC T Fundação para a Ciência e a Tecnologia IA D E Instituto de Artes Visuais, Design e Marketing I M C / DDF Instituto dos Museus e da Conservação Divisão de Documentação Fotográfica IPPC Instituto Português do Património Cultural I P PA R Instituto Português do Património Arquitectónico M NA A Museu Nacional de Arte Antiga R E Q U I M T E – CQ FB Rede de Química e Tecnologia Centro de Química Fina e Biotecnologia S NBA Sociedade Nacional de Belas-Artes U C P Universidade Católica Portuguesa


6

Entrevista com José Gil

8

conduzida por Bruno Marques

O Retrato na Antiguidade Clássica – O Exemplo do Augusto de Mértola

18

M. Justino Maciel e J. M. Peixoto Cabral

Retratos ou Alegorias nos Mosaicos das Estações do Ano da Villa Romana do Rabaçal, Penela, Portugal?

38

Miguel Pessoa

O Retrato de D. João I

66

José Alberto Seabra Carvalho

O Retrato de D. João I no Mosteiro de Santa Maria da Vitória Um novo paradigma de representação

76

Joana Ramôa e José Custódio Vieira da Silva

Retrato de D. Manuel na Iluminura

96

Horácio Augusto Peixeiro

A Arte do Retrato em Portugal nos séculos XV e XVI Problemas, metodologia, linhas de investigação

114

Pedro Flor

Os Pintores de D. João V e a Invenção do Retrato de Corte

132

António Filipe Pimentel

O Grupo do Leão de Columbano Bordalo Pinheiro

152

Margarida Elias

Luminismo e “Tenebrismo” – Malhoa e o Retrato

168

Nuno Saldanha

O Retrato de Dom Sebastião: Costa Pinheiro ou a ‘desmitificação’ da retratística histórica oficial

188

Bruno Marques

O Fotográfico como Retrato e “Readymade” a propósito de Alfred Hitchcock

208

José António Leitão

Recensões Críticas

218

Varia

226

Notícias

288

Índice

Editorial


D

e acordo com a linha programática da Revista de História da Arte, o seu nº 5 recolhe a maioria das conferências que estruturaram o XI Curso Livre do Instituto de História da Arte, consagrado à temática do Retrato que decorreu, com assinalável sucesso, em 2007. Como também é marca distintiva dos nossos cursos livres, a temática do retrato foi tratada numa cronologia extensiva, da Antiguidade Romana em Portugal, passando pela Idade Média, percorrendo o Renascimento e o Barroco para terminar nos tempos mais próximos, do século XIX aos nossos dias. Cumprimos também outro dos traços da nossa actuação: tivemos conferências de docentes do Departamento de História da Arte e de alguns dos nossos discípulos, mas, sobretudo, de colegas que trabalham noutras Universidades ou Institutos Politécnicos (Universidade Aberta, Universidade de Coimbra, Universidade Católica, Instituto Politécnico de Tomar) e do Museu Nacional de Arte Antiga, com quem mantemos relacionamentos pessoais e institucionais que são um dos mais estimulantes sinais do excelente estado da história da arte em Portugal. Na Varia, divulga-se o notável projecto “A Cor da Iluminura” que, com financiamento da FCT e sob coordenação de Adelaide Miranda e de Maria João Melo, manifesta a positividade de um trabalho interdisciplinar que, na mesma Universidade Nova de Lisboa, reúne a História da Arte da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas e a Conservação e Restauro da Faculdade de Ciências e Tecnologia. Destaque também para mais um estudo de perspectiva das pinturas dos tectos de igrejas setecentistas, da autoria de Magno Mello, e um propositivo artigo de Lucília Verdelho da Costa que traz novidades para o entendimento da arte de oitocentos, profundamente influenciada pelos modelos franceses e espanhóis. Regressando ao tema da revista, há um claro predomínio dos retratos em pintura. No entanto, outros suportes plásticos estão presentes, sobretudo em relação à antiguidade, abordada na arte da escultura (Justino Maciel e João Peixoto Cabral) e nos belos mosaicos da villa romana de Rabaçal (Miguel Pessoa). Em relação ao tema do final da Idade Média, foi possível tratar o Retrato de D. João I em pintura (o célebre quadro do MNAA, analisado por José Alberto Seabra de Carvalho) e em escultura, na hierática jacente da Batalha, estudada por José Custódio Vieira da Silva. A transição entre os valores estéticos desse final da Idade Média e a emergência das poéticas renascentistas, permitiu tratar a iconografia do rei D. Manuel na iluminura (Horácio Peixeiro) e no contexto complexo das profundas alterações da pintura, segundo a reflexão de Pedro Flor. Não tendo sido possível dispor do texto da conferência de Carlos Moura, no âmbito do retrato seiscentista, passa-se ao retrato de corte de D. João V (António Pimentel) para cortar depois com as heranças académicas, através de dois dos mais poderosos retratistas da pintura do século XIX: Columbano (Margarida Rodrigues) e Malhoa (Nuno Saldanha). Quanto à multiplicidade das vias de transfiguração do retrato na contemporaneidade, elas surgem através de Costa Pinheiro (Bruno Marques) e das contaminações disciplinares em que a fotografia é determinante (José Leitão).

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Editorial

Feita a apresentação dos conteúdos, interessa salientar que este número da Revista de História da Arte manifesta um renovado empenho do IHA (através de duas das suas linhas de investigação: “Arquitectura e Artes Visuais” e “Estudos de Museus”) que, apesar de dispor de modestos recursos financeiros, decidiu renovar o design da Revista, com o objectivo de a tornar apelativa para públicos não universitários. Para o bom sucesso desta intenção, foi fundamental o trabalho conjunto com a Heragráfica artes gráficas, lda, através do seu director, José Ferreira, e da designer Rita Palla, cuja generosa disponibilidade aqui agradecemos. Como pilar e articulação fundamental de todos os interventores, temos de agradecer também à Ana Paula Louro, a dedicada secretária do IHA. Quanto a apoios, muito há que agradecer. Em primeiro lugar, à Direcção Geral do Livro e das Bibliotecas (DGLB) que subsidiou a edição dos dois números da Revista de 2008, através do Programa de Apoio a Revistas Culturais. Em segundo lugar, à Fundação para a Ciência e a Tecnologia que, através de apoios específicos, mas também do financiamento plurianual às referidas linhas de investigação do IHA, constitui um repto permanente para as nossas atitudes de risco. Em terceiro lugar a todas as instituições que nos cederam os direitos de publicação de obras de arte à sua guarda e que são devidamente mencionadas na lista dos agradecimentos. Finalmente aos membros do conselho internacional de referees que analisaram criteriosamente os artigos que lhes submetemos e articularam connosco algumas decisões finais. Os apoios que mencionámos têm importância financeira e científica da maior relevância. Além disso, abrem-nos estimulantes campos de comunicação. Basta pensar que o subsídio da DGLB tem, como exigência, o envio de 200 exemplares da Revista para as bibliotecas da Rede Nacional das Bibliotecas Públicas e que “pagamos”. Também o Instituto dos Museus e da Conservação, contra cedência gratuita das fotografias, recebe 100 exemplares da Revista para as bibliotecas dos museus tutelados por este serviço. Criou-se assim, um campo inédito de comunicação da História da Arte com uma diversidade crescente de eventuais leitores que, inquestionavelmente, constitui uma sementeira para o futuro da nossa área disciplinar, em dinâmica dimensão culturalista. Por isso, não podemos deixar de apelar a estes novos leitores, bem como, naturalmente, àqueles que há muito estão connosco: precisamos de críticas, de sugestões, de questionamentos que nos podem ser enviados através do e-mail do IHA. Precisamos também que todos ajudem a divulgar e vender a Revista que, feita na Universidade, está ao serviço de uma cidadania mais culta e mais amante dos nossos tesouros artísticos.

A Direcção do Instituto de História da Arte Manuel Justino Maciel Raquel Henriques da Silva

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e n t r e v i s ta c o m j o s é g i l

josé gil. fotografia de carlos césar, 2008 (cortesia: relógio d’água editores)

C

onsiderado pela revista francesa Le Nouvel Observateur (Jan. 2005) como um dos “25 grands penseurs du monde entier”, José Gil (1939) é incontestavelmente um dos filósofos e ensaístas mais proeminentes da actualidade, com trabalhos fundamentais sobre temáticas tão diversas como o Corpo, a Dança, a Filosofia Política, a Literatura ou a Estética, publicados principalmente nas línguas francesa e portuguesa. Entre a vasta panóplia de obras publicadas de José Gil podemos destacar: Métamorphoses du corps (1985), Fernando Pessoa ou a Metafísica das Sensações (1987), Corpo, Espaço e Poder (1988), O Espaço Interior (1994), A Imagem-Nua e as Pequenas Percepções (1996), Metamorfoses do Corpo (1998 - 2ª ed.), Movimento Total - O Corpo e a Dança (2001), Sem Título-escritos sobre Arte e Artistas (2005). Discípulo e amigo de Gilles Deleuze, depois de ter sido aluno do filósofo francês leccionou

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Filosofia no Liceu Misto de Pontoise (França) e exerceu funções de coordenador do departamento de Psicanálise e Filosofia da Universidade de Paris VIII. Actualmente lecciona na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, onde é professor catedrático. Exerceu docência também noutras universidades, como o Collège International de Philosophie (CIPh), em Paris, e a New School for Dance Development, em Amesterdão. Tem um vasto trabalho científico publicado em revistas especializadas e em enciclopédias, designadamente a Encyclopédie de la Vie Française , a Enciclopédia Einaudi , a Análise e os Cadernos de Subjectividade (S. Paulo, Brasil). Dirige, desde 1996, a Colecção de Filosofia da editora Relógio d´Água, e é membro de várias organizações, entre as quais o Gabinete de Filosofia do Conhecimento e o Cercle Culturel Senastianu Costa (França).

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josé gil

conduzida por bruno marques*

* Doutorando em História da Arte Contemporânea na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. Bolseiro da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT).

Entre a miríade de campos de pesquisa em que José Gil se vem debruçando nos últimos anos, o que aqui nos merece particular interesse prende-se com um conjunto de escritos consignados ao tema do “retrato”. O primeiro é o ensaio intitulado “A autorepresentação”, produzido para o catálogo da exposição O Rosto da Máscara (CCB, Maio 1994), no qual se discorre sobre problemáticas como a reflexividade especular da visão e a reversibilidade sensível do corpo, a latência permanente do olhar-corpo voyeurista-exibicionista, a representação/reabsorção do mundo como projecção do Eu, a relação do pintor com a pintura, a auto-representação como tema de si mesma e a relação pintura/campo transpictórico. Segue-se o título “A construção da presença”, publicado no catálogo da mostra O Impulso Alegórico - Retratos, paisagens, naturezas mortas (coord. Manuel Valente Alves, ed. Ordem dos Médicos, Nov. 1998), em que, a propósito do Retrato de uma Jovem de Ghirlandaio, se demonstra como se processam os mecanismos de construção do fascínio da presença da imagem pictural assim como do excesso da representação da presença. Exercício metafenomenológico1 de detecção de efeitos subtis, de sensações microscópicas, de percepções mínimas, mediante instrumentos de análise já anteriormente cunhados pelo autor, como são as pequenas percepções e as imagens-nuas2. Mais recentemente, surgido por ocasião da importante exposição A Arte do Retrato - Quotidiano e Circunstância (Museu Calouste Gulbenkian, Out. 1999-Jan. 2000), é de registar ainda o admirável ensaio “O retrato”. Contributo extraordinário que, dada a sua distinta abrangência erudita e poderosa desenvoltura teórica, merece ser considerado sem grandes riscos como um dos fundamentais textos jamais escritos sobre a temática. Talvez a sua pedra angular assente na definição mesma de “retrato” como construção de um “eterno” enquanto obsessão estético-metafísica em sobreviver

Entrevista

com

1. Cf. José Gil, A Imagem-Nua e as Pequenas Percepções. Estética e Metafenomenologia. - Lisboa: Relógio d´Água, 1996, pp. 18-19: Na definição do projecto que subjaz a este livro, esclarece o autor que “não se trata já de fenomenologia, mas de metafenomenologia: o estudo do vastíssimo campo de fenómenos de fronteira e de um invisível radical, não-inscrito, não-manifesto, mas que tem efeitos (por isso mesmo) no visível. Metafenómenos que se definem como feixes de forças.” 2. De modo algo abreviado, no texto que aqui nos ocupa, o autor define a noção de “pequenas percepções” enquanto unidades perceptíveis ínfimas, «imperceptíveis» ou «insensíveis», cujas associações ou conjuntos dão origem às macropercepções, e a noção de “imagens-nuas” como imagens que nada dizem mas apelam para, e organizam, um sentido. Para um entendimento mais preciso destes dois conceitos ver José Gil, Idem, pp. 19-22.

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realmente à morte, na justa medida em que este suspende o tempo, torna presente a ausência, “ressuscita” o modelo morto, porque o fixa numa imagem “viva”. Foi em particular esta formulação que motivou a presente entrevista que o Professor José Gil muito amavelmente nos concedeu3. Mas mais do que insistir na fixação de uma determinada noção, afirma-se aqui a necessidade de repensá-la, especialmente no quadro das profundas mutações preconizadas pela arte contemporânea no que ao retrato dizem respeito. Foram abordadas questões da máxima relevância relativamente ao actual debate sobre a temática, e que, de modo muito esquemático, perspectivam criticamente, por exemplo, os motivos da impossibilidade de, hoje, se poder retratar segundo os postulados do retrato clássico, os efeitos da queda da “velha metafísica do Eu, único e idêntico a si mesmo”; as desestruturações avançadas pelo pensamento em torno da Teoria do Género; a desmontagem moderna e contemporânea do retrato; e as vias que, por seu turno, apontam para a sua “reinvenção” na viragem do milénio.

1. O Instituto de História de Arte da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da UNL, publica um número da sua revista especificamente dedicado ao tema do Retrato. Tendo por base os ensaios que escreveu sobre esta temática, peço que nos dê uma definição (sucinta) de “retrato”. Uma definição sucinta do retrato? Com todas as dificuldades que põe a noção de “retrato moderno”, não é fácil. Do retrato em geral, ponhamos: é a captação, numa imagem, das forças de um rosto. Para uma definição do retrato clássico teria que se falar da “imagem mimética de uma face”, o mimetismo com o referente sendo assegurado pela representação (semelhança, identidade), ou pelo “título” que o designa.

2. No texto “A auto-representação”, invoca a situação em que Picasso, ao dar por terminado no fim da sua vida um célebre auto-retrato que se parece vagamente com uma caveira, sai do atelier dizendo: “Hoje, apanhei ali qualquer coisa”. No seu entender, o artista referia-se “a esse qualquer coisa de mais real que a vida e que toda a pintura procura.” No mesmo sentido, no ensaio “O retrato”, ao discorrer sobre o retrato Fayum, advoga que “a morte realiza a nossa verdade.” Porque é que a verdade do sujeito só encontra forma ou se torna captável pelo retrato, não na vida, mas justamente na morte, na não-presença, ou no fim – no ocaso – da existência física? Referia-me, com essa frase, ao retrato Fayum, e às crenças na imortalidade da alma dos antigos Egípcios. Por outro lado, ao escrever que “a morte realiza a nossa verdade”, não estava a negar que a “nossa verdade” possa “encontrar forma” na vida, noutros modos de expressão. O que é a nossa verdade? Depois dos ataques a que a noção de verdade foi submetida pelos filósofos – De Niezsche a Heidegger, a Foucault e Deleuze , - é melhor tomar certas precauções quando se a utiliza. Comparei

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3. Entrevista efectuada mediante o método de troca de e-mails entre entrevistador e entrevistado.


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a percepção real de um rosto (que esgueira o interior para apresentar signos sempre equívocos) com a sua imagem artística no retrato, que consegue abolir a equivocidade expressiva – tal como o “rosto da alma”, para além da vida, nos é dado pelo retrato Fayum. Mas é claro que a “nossa verdade” não é só realizada na morte, nas condições que descrevi. Um psicanalista francês, muito conhecido, costumava dizer: “São os nossos amores que revelam a nossa verdade”. Bela frase que significa, afinal, que os nossos amores põem a nu a nossa mentira, a falsidade da nossa relação, a ilusão da imagem que forjámos de nós mesmos. A verdade surge como o puro avesso do falso, não como qualquer coisa de positivo. Se o retrato dá a volta ao esgueire não seria então porque apresentaria uma verdade sem equívocos, mas porque levaria ao extremo um outro aspecto de que não falei no texto sobre “A arte do retrato”: é que os traços expressivos do rosto dizem as forças e os afectos como signos imanentes ao próprio expresso. Aquele sorriso não significa uma emoção separada, o escárnio, por exemplo, mas a emoção confunde-se com a forma de presença do seu signo, não é o escárnio em geral, mas aquele escárnio daquele sorriso. A expressão é imanente ao expresso – e isto no seio de uma relação geral de esgueire/ equívoco. É que o que se esgueira está aquém de todo o expresso, até porque compreende o inconsciente. O retrato não diz “a nossa verdade” sem véus, diz a singularidade desse buraco negro que é um rosto na paisagem. Ou melhor: a tensão, o intervalo, a diferença entre o buraco negro e a tendência contrária que tende a fazer proliferar os signos. Viria daí a força de um retrato: do que separa e une uma tendência para o sentido explícito e a tendência que tende a aboli-la. Poderíamos, no fundo, retomar as suas categorias: da tensão entre a presença e a infrapresença nasce a multiplicidade de forças que emanam de um retrato.

3. Se nos colocarmos, por exemplo, diante das Sombras Projectadas de pessoas/amigos que Lourdes Castro decalca (a partir de 1963/4) ou da iconografia de cartas de jogar que serve a Costa Pinheiro para compor a sua série de retratos de Reis de Portugal (1966), notamos que falha a ilusão, a aparência e a iminência da fala como critérios do “retrato vivo”. Estes “novos retratos” não entrarão em ruptura com o intento essencial que o Prof. José Gil prescreve - a construção de um «eterno» enquanto obsessão estético-metafísica em sobreviver realmente à morte -, na justa medida em que parecem definitivamente já não funcionar mais enquanto dispositivo que suspende o tempo, torna presente a ausência, “ressuscita” o modelo morto, porque o fixa numa imagem “viva”. Não creio que se possa chamar “retratos” às Sombras Projectadas de Lourdes Castro ou às figuras dos Reis de Costa Pinheiro. Aparentemente, Lourdes Castro repete o gesto da filha de Busides que desenha o contorno de um rosto de perfil, reiterando o movimento que funda a pintura segundo o mito contado por Plínio. Mas uma tal leitura é, de certo modo, irónica – se bem que cheia de implicações. O que faz re-

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almente Lourdes é transformar a sombra num produto, no estádio terminal de um processo, invertendo o sentido da “origem” segundo Plínio. Mas isso mesmo leva-a a reduzir a tensão da ausência/presença, ou da força/forma, ou do buraco negro/ signo a uma única oposição: entre a sombra como buraco negro que tende a abolir toda a forma e a singularidade do contorno, que restitui os signos ausentes, a presença do rosto que tende a fazer viver a sombra como o seu prolongamento. Lourdes rebate o retrato inteiro sobre o contorno e a sombra, criando um novo tipo de signo ambíguo. Quanto a Costa Pinheiro, os seus Reis também não são retratos. Os referentes são os reis e as rainhas das cartas de jogar, e só os títulos dos quadros nos indicam que por detrás deles (e da pintura, como representação da representação) se designam personagens reais. A triangulação entre estes três elementos, os títulos, as cartas representadas e que ao mesmo tempo são supostas representar, cria um efeito múltiplo, satírico, “desmistificador”, que perturba, tanto mais que o referente real é um mito, um tempo mítico, uma história mitificada. A ideia, nos Reis, é fazer com que esse referente possa tornar-se a expressão ou o signo de um outro referente, o jogo de cartas. A troca incessante entre o referente real (as personagens históricas) e o referente “cartas de jogar” dá todo o poder crítico aos Reis de Costa Pinheiro. Mas de modo nenhum a representação de Dona Leonor Teles pretende retratá-la – só se for por alusão irónica ou por humor, aproveitando o simples facto que um traço, uma cor, por mais abstractos que sejam, são expressivos, ou susceptíveis de o ser – por associação, contágio simbólico ou analogia formal. Não me parece, pois, que Lourdes ou Costa Pinheiro façam “retratos” ou queiram “retratar” – fixando, por exemplo, “numa imagem viva” D. Leonor Teles ou o referente de que se projectou ou recortou a sombra numa placa de matéria plástica.

4. Dissertando sobre o modelo do retrato, o Prof. José Gil aporta-se à “alma”, ao “’interior’” ou àquilo que mais trivialmente se costuma referir com a “personalidade do indivíduo”. (Refere que “O trabalho do artista consistirá em restituir numa imagem visível o modelo invisível.”). Como é que esta determinação reage quando confrontada, por exemplo, com o retrato da Pop Art. (Lembro-me da constelação de Marilyns de Andy Warhol, exaurida de qualquer espessura enquanto intensificação simbólica da estampagem que se desgasta, e que surge atestada no seguinte statement: “Já não há nada por detrás das minhas imagens, está tudo na superfície”.) Pensemos então no retrato da pop art enquanto metalinguagem: nele Warhol inscreve a lógica da mercadoria, do sujeito exibido pela publicidade que o aliena, desinvestido por ela da sua capacidade falante e desejante, acabando por pontuar uma denúncia dessa mesma conversão, do ser em alienação, para parecer anunciar já a passagem da imagem humanista ao ser qualquer teorizado por Agamben4. Subscreve este conjunto de nexos e articulações?

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4. Cf. Giorgio Agamben, A Comunidade que vem. - Lisboa: Ed. Presença, 1993 (ed. original 1991), 41-42: “qualquer é uma semelhança sem arquétipo, isto é, uma Ideia. Por isso [...] a beleza perfeitamente substituível do corpo tecnicizado não tem já nada a ver com o aparecimento de um unicum”, fenómeno que explica, seguindo o pensamento de Agamben, “o desaparecimento da figura humana das artes do nosso tempo e o declínio do retrato” (ainda que o pensador ressalve que “para apreender a «qualqueridade» é necessária a objectiva fotográfica.”).


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No fundo, o que está subentendido no meu texto é a dificuldade em fazer retratos, hoje. Como indica, as “posições críticas” contra o retrato multiplicam-se. Porquê? No meu entender, não é tanto pela insuficiência dos meios (pintura) como pela transformação da percepção do Outro (e de Si mesmo), em particular do rosto do Outro (e do seu próprio rosto). Porque o retrato clássico implicava dois factores essenciais evidentes: primeiro, a unidade, a identidade e a unicidade do retratado enquanto indivíduo deviam ser restituídos; segundo, esses atributos deviam ser focalizados na representação do rosto. Por isso o retrato exprimia a sua “alma” ou “personalidade”. Toda uma ontologia do ser singular suportava a legitimidade da representação (semelhança, analogia, identidade) no acto de retratar. Quando a cabeça, os ombros, o busto ou ainda o corpo inteiro (a cavalo, ou noutro contexto) pertenciam ao retrato eram ainda a cabeça e o rosto que constituíam uma “parte-total” como diriam Husserl e Merleau-Ponty, do indivíduo completo. A cabeça aparecia como metonímia do corpo inteiro. Ora estas duas condições que o retrato clássico pressupunha foram destruídas pela modernidade – não só pelo abstraccionismo e pela fotografia, mas pela própria maneira como todas as correntes modernistas e vanguardistas tratavam o corpo. Repare como Malévitch destruiu a imagem mimética: apagando, com o Quadrado Negro, o espaço do “ícone” – porque a cabeça era a metonímia do corpo e do mundo. Mais fundamentalmente, a arte moderna tirou a organicidade à representação do corpo, desmembrando-o, analisando-o e expondo as suas partes disjuntas. A crítica da representação focalizou-se, em muitos artistas, na imagem do corpo (do cubismo a Bacon). Se a representação orgânica do corpo explodiu, então a cabeça deixou de valer pelo indivíduo total (o que é muito claro em certos quadros de Magritte, por exemplo). Numa palavra, a identidade e a unicidade do sujeito foram estilhaçadas e, com elas, a sua expressão no retrato. Descobriu-se um sujeito múltiplo, virtual, com um corpo de órgãos virtuais, um corpo em devir (devires-animais e minerais em Max Ernst, devir-matéria em Beuys, etc). É certamente neste contexto que os “retratos” de Warhol devem ser vistos: são outras tantas manifestações da impossibilidade de representar uma identidade (onto-psicológica) una, um fundo ou um interior coeso e unificador (um Eu, uma “alma”). O fundo desapareceu, só há imagens à superfície porque só há multiplicidades e movimentos de figuras heterogéneas. Para o conseguir, Warhol multiplica as séries de rostos de personagens mediaticamente auráticas. Por isso ele joga tanto com a imagem publicitária. Para mostrar como hoje se tornou impossível retratar segundo os postulados do retrato clássico, bastaria, afinal, perguntar: como retratar miméticamente um esquizofrénico? Mas não só os esquizofrénicos perderam a identidade. Nós também, porque somos múltiplos, em devir, em desmoronamento e reconstrução de identidades construídas e sedimentadas, em júbilo de dissolução do eu, etc. Na desmontagem moderna e contemporânea do retrato, desponta sim, aqui e ali, a figura do ser qualquer de Agamben. Mas isso levar-nos-ia demasiado longe, nestas observações sobre as transformações do retrato.

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5. a-) Para este debate, importaria convocar uma quantidade considerável de posições críticas que apontam para o carácter “obsoleto” do retrato, defendendo-se, por conseguinte, a passagem para a noção de “rosto”. (Cito apenas dois momentos significativos desta história recente: o projecto À Visage Découvert da Fondation Cartier (1992)5 e a exposição About Face. Photography and the Death of the Portrait / Cara a Cara (2003)6. No seu entender, em que medida subscreve a operacionalidade da noção de “rosto” por oposição ao “retrato” (levando em conta as diferenças dos dois casos aqui supracitados), e se corrobora a ideia de que esta nova noção comprova efectivamente a obsolescência/letargia do primeiro. b-) Sem desenvolver muito a questão, a páginas tantas, advoga (1) que não é tão certo dizer-se que a fotografia matou o retrato pictórico, e (2) que a arte do retrato está (ainda) por reinventar. Quais são as coordenadas que nos poderão orientar na tarefa de destrinçar os modos pelos quais se pode processar essa “(re)invenção”? Considerando-se sobretudo o auto-retrato (em vez do retrato, da imagem do Outro) e a fotografia (em vez da pintura), fala-se da identidade pessoal já não como atributo dado a priori (fixada num ente estabilizado), mas como efeito, portanto, produzida ou gerada. Para esse auto-retrato enquanto desmantelador dos pressupostos da “essencialidade”, a série Film Stills de Cindy Sherman é um exemplo paradigmático ao demonstrar o novo carácter constitutivo do sujeito: o “fazer-se” através dos actos de representação. Como poderemos equacionar este entendimento no âmbito da problemática da transformação/reinvenção do “retrato”? c-) Gilbert Lascault, debruçando-se sobre o “retrato contemporâneo”, caracteriza uma situação em que “vale tudo”7. Ao nível da teoria e história dos “géneros”, passa-se da suprema distinção para a máxima indistinção, ou seja, quando “tudo é permitido”, não se cai inevitavelmente na situação-paradigma da indiferenciação? (Sendo que a indiferença ante as diferenças específicas de cada “género” cresce com a redução das fronteiras que os delimitavam.) Mais recentemente, Francisco Serraller dissertando sobre o papel do género na arte contemporânea promove a ideia de que este “ya nunca es nada en sí, ni por sí, sino precisamente en tanto que ‘fluido’, algo en permanente tránsito: nunca, por tanto, «género», sino propiamente ‘transgénero’ o constante transgresión de cualquier género.”8 A contracorrente, Derrida, ao abordar o estatuto e função da “Lei do género” em literatura, advoga que nenhuma obra existe sem referência àquela lei, e, no entanto, o seu próprio estatuto implica que ela se lhe não subordine mas que a desloque ao afirmá-la.9 Atendendo aos enunciados

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5. Para apropriar as próprias palavras de Jean Loisy (“Préface” in À Visage Découvert. - Paris, Fundation Cartier / Flamiron, 1992, pp. 11-12) que figuram na apresentação do projecto À Visage Découvert: «Le visage est approché par opposition au portrait. C’est-à-dire par opposition à la présentation d’un personnage saisi dans son contexte selon une conception mimétique de la ressemblance. Notre vision se construit selon un rapport au visible et à l’être plus proche de la phrase d’Emmanuel Levinas: ‘La relation avec le visage peut certes être dominée par la perception, mais ce qui est spécifiquement visage est ce qui ne s’y réduit pas.’ Levinas ajoute: ‘Le visage est signification et signification sans contexte’. Cette signification concerne chacun, bien au-delá du portrait d’un individu et en dehors de toute ressemblance ou similitude avec le modéle.» 6. Um número substancial de produtores contemporâneos de imagem - veja-se os trabalhos de fotógrafos como Thomas Ruff, Alison Jackson, David, Nancy Burson, van Lawick & Muller, Orlan, Gary Schneider, John Hilliard e etc. - são, em todos os aspectos, extremamente diversificados, mas unânimes no seu repúdio pelo retrato convencional, considerando-o esmagado sob o peso de velhas convenções e pressupostos já desacreditados. Advoga A. William Ewing, curador da exposição Cara a Cara (2003), que “Assumese e rejeita-se como mito a crença ainda fervorosa de que um retrato bem conseguido capta e revela a essência, o ser interior - a alma do sujeito retrato.” Cf. William Ewing, “De Caras! O retrato está morto! Viva a cara!” in Cara a Cara. (jornal da exp.) - Exposição de Fotografia, Galeria 1, Culturgeste/Musée de l’Elysée, 12 Out. - 28 Dez. 2003. (Publicado originalmente com o título “The Faces in the Mirror” in About Face. Photography and the Death of the Portrait. (cat. exp.) - Lausanne: Musée de l’Elysée, 2003.) 7. Cf. Gilbert Lascault, “Portraits” in “Du Visage”, Presses Universitaires de Lille, 1982 (reeditado in Le Portrait dans l’Art Contemporain 1945-1992. [cat. exp.] - Nice: Musée d’Art Moderne et d’Art Contemporain, 3 juillet - 27 septembre 1992, pp. 45-46.) Nota este autor que «Tout est permis avec les têtes; tout est permis avec le passé de l’art [...] Les blasphèmes pictu-


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raux s’effectuent d’ailleurs souvent à partir de portraits: ajouter une moustache à la Joconde, faire tourner la tête à Van Gogh.».

supracitados, como devemos pensar o “género” (a Teoria do Género) no contexto da arte contemporânea?

8. Francisco Calvo Serraller, Los Géneros La Pintura. - Madrid: Santillana Ediciones Generalesd, 2005, p. 365.

d-) Pegando nos casos de Lourdes Castro e de Costa Pinheiro que citei anteriormente, quando as categorias da identidade e da unidade apensas à Teoria do Género “clássica” – assente na ideia de tipologia de relação entre esquema e motivo para cumprir uma função específica - são exemplarmente atacadas, transgredidas, parece passar-se de um antigo paradigma fixado pela Academia para uma espécie de agente regulador ambíguo ou elástico, forma de concordância dupla ou indiferenciada. Como pensar o enfraquecimento da força reguladora do género na situação dos Anos 60: poderemos aqui invocar o mesmo esforço (de Deleuze) para pensar a diferença para além da negatividade, salientando a ineficácia do uso de uma identidade prévia, como determinação de superfície homogénea? Não devemos atender à ideia da “dissolução do género” (a sua suposta “indefinição”) como uma maneira mais ou menos “lúcida” de entender a falência dos últimos resíduos de uma velha “ordem” – falo aqui do laço estreito que unia a ordem Académica (neo-platónica) à Metafísica –; e que a arte dos anos 60 não consiste em romper absolutamente com essa ordem, mas ao expô-la em crise, não regista os seus pontos não só de derrube mas de ruptura, entrevendo assim as novas possibilidades que tal crise poderia abrir?

9. Cf. Jacques Derrida, “La loi du genre” in Parages. Paris: Galilée, 1986, pp. 249-287.

Quando se fala em “arte contemporânea” entra-se logo numa zona de incerteza e indeterminação. Não há periodicidade estabelecida, vivemos ainda num tempo de transição em que coexistem imagens do segundo modernismo, do pós-modernismo dos anos 80 e de qualquer coisa que está nascendo (desde há mais de dez anos para cá) e que se vai afirmando com características distintas das épocas recentes (anos 80 e 90). Mas por enquanto, nos ensaios sobre, como nas exposições de “arte contemporânea” põe-se tudo no mesmo saco. E ninguém sabe ao certo o que é a nossa arte contemporânea. Esta indefinição (ou “confusão”) radica, em parte, na sobreposição de camadas temporais que formam hoje o presente. Todos os presentes foram, ou melhor, constituíram épocas “contemporâneas” para os que neles viviam, e em todas elas coexistiram camadas diversas de passado, de presente e de futuro. Mas jamais, talvez, a densidade e a pluralidade dessas camadas foram tão grandes como agora. Isto tem a ver com a acumulação de imagens por um lado, e por outro com a velocidade cada vez maior da transformação da realidade em imagem (na nossa percepção e nos factos). Nunca o contemporâneo resultou tão fortemente da contracção dessas imagens num presente com uma realidade cada vez mais fugidia. Este factor – e outros – tornam difícil a caracterização da “arte contemporânea”. Para dizer que as observações de Gilbert Lascaux que refere são talvez prematuras. Porquê? Porque, paradoxalmente, o contemporâneo de hoje tarda a formar-se. (Repare que o con-

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temporâneo não é um tempo cronológico, empírico, como o presente, mas um tempo “transcendental”, condição de possibilidade de uma obra de arte, por exemplo, poder ser dita “não datada”, descobrindo possíveis e virtuais que constituem o “hoje” como abertura ao futuro novo. O contemporâneo é um tempo comum que abre, de direito, o actual ao futuro, é o futuro-actual ou futuro-do-presente que constitui presentemente o presente). Não creio, pois, que o “retrato contemporâneo” se caracterize por uma situação em que “vale tudo”, à maneira como Thierry de Duve descrevia o eclectismo da arte contemporânea. O “vale tudo” significa, provavelmente, que já nada vale da mesma maneira ou, implicitamente, que já nada vale nada (quer dizer, “universalmente”: repare-se no gosto pela blasfémia de muitas obras contemporâneas). Curiosamente, o “retrato contemporâneo” retoma, sob outros regimes da representação que não o do mimetismo, algumas das desmontagens que a arte moderna experimentou (Bacon, o 2º Malévitch, Giacometti, por exemplo). E nisso estou de acordo consigo e com Francisco Serraller: a estética da diferença (contra a da expressão de uma identidade una) contribuiu para a crítica da Teoria dos Géneros. Estes, hoje, tendem a dissolverse no movimento de passagem, no “entre-dois”, na “hibridação” que os sobrepõe, confunde, combina, transforma. Interessa mais a tensão do movimento diferenciante do que o ponto de chegada ou o ponto de partida. No que diz respeito ao retrato, uma característica da arte contemporânea (dessa que está nascendo) é a violação da oposição categorial interior/exterior (respeitada pela arte moderna, mesmo quando abolia simplesmente o interior). Pela primeira vez, talvez, na história da arte, o interior – como o interior dos corpos – é trazido sistematicamente à superfície do visível. Sondagens do corpo por raios X, endoscopias, Tacs, etc, tornaram-se meios comuns de formar imagens artísticas das vísceras ou do esqueleto; mas também do interior das coisas, das paredes e das plantas. Um crânio com óculos numa placa de raios X é um retrato? Claro que não, no sentido clássico. Nem pela “matéria de expressão” nem pela relação expresso (interior) / expressão (imagem) que mudou realmente. A sondagem contemporânea do interior inverte, em parte, a ordem de subordinação clássica do exterior ao interior, tornando este último o plano de expressão (e supostamente de verdade) de um sentido singular e humano que, anteriormente, líamos claramente na imagem exterior visível. A transformação do exterior expressivo (pela tatuagem, piercing, pela fotografia, pela mutilação, pela imagem do monstro, pela cirurgia estética - Orlan) e a apresentação de um interior esvaziado ou sem mistério, cria uma tensão nova, própria da arte contemporânea. As noções de singularidade e de individuação mudam: se alguma coisa se exprime ainda da unidade clássica nestas imagens a que já não se podem chamar “retratos”, é a “inquietante estranheza” do que nos era familiar e que deixou de o ser. O retrato vai desaparecer ou será “reinventado”? No fundo, não sei. Sei apenas que, se o rosto retomar importância, será de outra maneira, sob outros regimes de imagem e matéria, que surgirá na arte: em relação com forças naturais, impessoais, cósmicas, inconscientes e outras. Novas formas de subjectivação estão a aparecer – e muitas delas já tiveram tradução artística, como em Film Stills de Cindy Sherman, que cita. Mesmo as formas actuais, clássicas,

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de retoma do género retrato já se desviam dos cânones tradicionais. As fotografias de Thomas Ruff, em grande plano, parodiam o retrato-expressão. A inexpressividade do rosto é, aliás, em muitos artistas contemporâneos, uma constante, que surge como o avesso simétrico da sondagem do fundo dos corpos: um rosto é uma parede, opõe uma barragem à interpretação dos signos.(Neste aspecto lembremo-nos da célebre e impressionante Family Tree, de 2001, de Zhang Huan, em que a expressividade é substituída por caracteres chineses-tatuagens que progressivamente cobrem de negro o rosto). Mais uma vez, o que vem aí? Haverá rostos, sim, haverá corpos, haverá movimento e forças múltiplas. Mas “retratos”, sustentados por uma velha metafísica do Eu, único e idêntico a si mesmo, à volta do qual girava um Mundo estável, orgânico e finalizado … isso, parece-me que realmente acabou.

Muito obrigado.

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Resumo Na evolução do retrato teve uma influência decisiva a época áurea da civilização romana, circunstância em que se assistiu à criação e divulgação da imagem de Augusto, o primeiro dos imperadores, protagonista da Pax Romana. Como se construiu esta imagem, como se propagou até ao território hoje português um modelo que procurou na Grécia a sua fundamentação estética, estudando um busto augustano oriundo de Mértola, eis o objectivo desta reflexão, que será complementada e esclarecida com a apresentação de resultados de análise laboratorial do mármore em que esta obra de arte foi esculpida.

palavras-chave retrato antiguidade clássica augusto escultura mármore

Abstract The golden age of Roman civilization had a decisive influence on the evolution of the portrait, a circumstance that led to the creation and dissemination of the image of Augustus, the first of the emperors, the leading man of the Pax Romana. The object of this essay, which focuses on an Augustan bust originally from Mértola, is to understand how this image was built and how a model whose basic aesthetic foundation based on Greece spread to what is now known as Portugal. The study will be accompanied by a presentation of the results of a laboratorial analysis of the marble belonging to this piece.

key-words portrait classic antiquity augustus sculpture marble


o retrato na antiguidade clássica o exemplo do augusto de mértola

m. justino maciel

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O retrato na Antiguidade Clássica

Instituto de História da Arte / FCSH / UNL

j . m . p e i x oto c a b r a l Instituto Tecnológico e Nuclear

1. Este trabalho foi subsidiado pela FCT (Projecto PRAXIS/2/2.1/CSH/819/95). Os autores agradecem o apoio dispensado pelo Director do Museu Nacional de Arqueologia, Dr. Luís Raposo, ao estudo do busto de mármore do Augusto de Mértola. 2. Plínio, Naturalis Historia, 35, 2: In atriis haec erant, quae spectarentur; non signa externorum artificum nec aera aut marmora: expressi cera uultus singulis disponebantur armariis, ut essent imagines, quae comitarentur gentilicia funera, semperque defuncto aliquo totus aderat familiae eius qui unquam fuerat populus. Stemmata uero lineis discurrebant ad imagines pictas. Tradução do latim, segundo M. Justino Maciel, Da Festa Indo-europeia à Festa Transmontana: o Uso da Máscara na Comemoração do Solstício de Inverno, in Revista da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (Lisboa) 17 (2005) 183-208.

Podemos dizer que o retrato nasce na época helenística, quando o centro cultural e artístico do mundo mediterrânico deixa de ser Atenas e surgem Alexandria, Pérgamo, Rodes… Então, a Arte como que desce ao real, afasta-se do idealismo helénico, reproduz situações de desequilíbrio: a dor fisiológica, a angústia e as convulsões extremas do sofrimento físico e moral em personagens-tipo, incluindo bárbaros. Pela primeira vez surgem identificadas na arte essas personagens e cenas de quotidiano. Destaque para as estátuas de Gálatas mandadas esculpir no séc. III a. C., em Pérgamo, pelos reis Atálidas e, no séc. II. a. C., os baixos-relevos com gigantomaquias no Altar de Pérgamo, o mais imponente monumento artístico do mundo grego. E, datado já dos meados do séc. I a.C., o célebre Laocoonte, a obra clássica que melhor exprime e transmite a exteriorização do sofrimento corporal e psicológico. Os bustos de Alexandre Magno poderão também ser invocados como contribuindo para potenciar o aparecimento do retrato. Em grande parte influenciados pelos Gregos, os Etruscos desenvolveram uma arte escultórica em que a fidelidade ao real era uma preocupação, sobretudo nos contextos funerários. Eles mantinham nas suas casas os bustos dos antepassados, como garantia de memória genealógica. As chamadas imagines maiorum eram obtidas através das máscaras mortuárias moldadas em cera, como nos conta Plínio-o-Velho: Colocavam-se nos átrios (das casas), a fim de serem observadas, não estátuas de artistas estrangeiros, objectos de bronze ou mármores, mas máscaras moldadas em cera que se dispunham singularmente em estantes, a fim de que existissem retratos que acompanhassem as cerimónias fúnebres familiares; e sempre que alguém morria, todo o conjunto de parentes que um dia já vivera se encontrava presente. As genealogias encontravam-se assim por linhagens até estes retratos pintados2. Os Romanos tinham consciência de que a sua escultura tinha raízes quer no mundo etrusco, quer no mundo grego. Mas foi, sem dúvida, a escultura helénica que marcou os ideais da arte escultural romana. Para tal, o melhor exemplo que se poderá apresentar será o da estátua de Augusto de Primaporta, que copiará em mármore uma

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fig.1 augusto de primaporta. museu do vaticano. © j. maciel, 1987

original estátua de bronze3. Observando esta escultura a par com a do Doríforo ou Portador de Lança, de Policleto, damo-nos conta imediatamente do paralelismo que o artista, sem dúvida grego, quis fazer com o “Cânon”. Ao mesmo tempo, será possível, com esta comparação, dar conta das características que tem esta estátua de Augusto em confronto com o seu modelo clássico: o Doríforo é uma estátua idealizada, anónima, desnuda, apolítica, não direccionada e sem atributos, para além daqueles

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3. P. Zanker, Augusto y el poder de las imágenes, Madrid, 1992, p. 225.


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4. M.J. Maciel, A arte da época clássica (séculos II a.C – II d. C), in História da Arte Portuguesa (dir. Paulo Pereira), Lisboa, Círculo de Leitores, 1995, p. 97.

que o definem, in genere, como um atleta. A estátua do primeiro imperador é uma escultura de retrato, personificada, vestida, politizada, direccionada e direccionante, com Eros como atributo tornando presente a descendência mítica de Venus Genetrix. Esta criação artística passará a ser um referencial para o retrato imperial romano, na medida em que foi produzida, com uma dinâmica de estética grega, numa época em que ainda não estavam esquecidos os retratos etruscos e em que ainda as imagines maiorum, obtidas a partir das máscaras funerárias, tinham lugar de destaque nas alae das casas. É essa dinâmica que caracterizará a escultura de retrato na época julio-cláudia até que a original vertente popular, sempre latente, volte a emergir durante a dinastia flaviana. Será nesta dialéctica entre um idealismo e um verismo, mas sempre com o mesmo fio condutor que tem presente as duas tendências, que se expressará no correr do Império a escultura de retrato oficial: mais idealizante nos períodos julio-cláudio, adriânico e teodosiano, mais realista nas épocas flaviana, trajânica e constantiniana. Para esta dinâmica, Augusto foi o modelo no governo, no culto e na pose. Nesta, o lado formal tem muito de grego, porque o ideal de beleza, também para os Romanos, se encontrava na arte da antiga Grécia4. Este expressionismo da arte do retrato oficial manifesta-se também nos bustos privados, e ajuda a contextualizar a sua caracterização social e temporal. E assim se revelam importantes as leituras dos quadros iconográficos dos diferentes registos fisionómicos, seja pelas formas dos penteados, sobretudo nos bustos femininos, seja pelas tipologias das barbas, no caso dos masculinos. Outra questão essencial é a de escultura em baixo-relevo, na qual se expressa igualmente a dinâmica retratística romana, seja de personagens, seja de situações históricas concretas, políticas, sociais, ou religiosas. Também aqui a época augustana é referência, com uma realização que, pela sua novidade e tipologia decorativa, marcará não só a arte comemorativa como a do baixo-relevo: a Ara Pacis Augustae. A primeira, por documentar no mármore o ritual de uma acção de graças que teve lugar numa data concreta, 04 de Julho de 13 a.C., relativa à Pax Romana finalmente conseguida na Hispânia, ritual em que participa a família imperial e representantes das classes romanae. A segunda, pelo modo como ali foi conseguida a construção dos volumes e a ponderação dos planos, assim como pela dialéctica entre o realismo e a estilização dos elementos florais, numa técnica que fará escola na arte romana, designadamente na época adriânica. A Ara Pacis leva-nos também a fazer um contraponto com o mundo grego. Também na Grécia temos um exemplo de fixação em baixo-relevo de um ritual oficial na sua época áurea, o tempo de Péricles: a Procissão das Panateneias esculpida nos frisos do Pártenon. Se estes baixos-relevos têm em comum o facto de nos transmitirem rituais em que as forças vivas da sociedade nos aparecem representadas e de se inserirem no contexto do sagrado – o da Ara Pacis um altar, o das Panateneias um templo - , são evidentes as diferenças entre um e outro, ressaltando de imediato a identificação de personagens no primeiro e o anonimato no segundo. Neste não vemos Péricles, não vemos membros da sua família, não vemos tipologias de retrato, mesmo em personagens para nós hoje desconhecidas. Ao contrário, na Ara Pacis, surgem pessoas retratadas, em primeiro ou em segundo plano, que nós hoje não

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reconhecemos mas que os contemporâneos identificavam pelas marcas fisionómicas. E, depois, é para nós hoje possível identificar, no baixo-relevo do lado sul, Augusto, capite uelato, Agripa com o filho de sete anos, Caio César, que usa um torques à grega, Lívia, Tibério, com a sua toga de cônsul nesse ano 13 a. C., Druso e a esposa Antónia Minor com o pequeno Germânico. Identificamos os Pontífices, os Áugures com as suas coroas de louros e os Flâmines com o galerus e a laena sobre a toga. No baixo-relevo do lado norte, também é possível identificar os Septemuiri encarregados de preparar os banquetes sagrados, mais Áugures, os Quindecemuiri que guardavam os Livros Sibilinos e mais familiares de Augusto. Este friso comemorativo da Ara Pacis, em Roma, como que aglutina em si, através do dinamismo do culto imperial, todo o significado da escultura retratística oficial5. Os baixos-relevos da Ara Pacis surgem-nos, assim, juntamente com a citada estátua de Augusto de Primaporta, como pontos de referência fundamentais para a arte do retrato na época augustana. Octávio César Augusto surge aí como personagem central na política e na arte. Com outras representações de diferentes etapas da vida do Princeps, tornam-se modelo dos seus retratos oficiais em todas as capitais de ciuitas do império. Com efeito, é no seu tempo que o imperador passa a ser venerado como divindade nos templos municipais e as estátuas e bustos vão acusar sempre, de modo mais ou menos fiel, e com mais ou menos acabada técnica de cinzelagem, o modelo ou os modelos originais.

Retrato de Augusto Descrição do busto de Mértola Como era, de facto, Augusto? A melhor descrição que nos ficou do primeiro imperador foi-nos deixada por Suetónio: Augusto era muito bem parecido e conservou a sua beleza durante toda a vida. Não se preocupava demasiado com o seu cabelo, confiando-o mesmo a vários barbeiros ao mesmo tempo… O seu aspecto, quer falasse, quer estivesse calado, era sempre tranquilo e sereno… Teve olhos claros e brilhantes e gostava que pensassem existir neles algo de força divina, alegrando-se mesmo quando, fixando os olhos em alguém, essa pessoa baixava o rosto, como que ofuscada pelo fulgor do sol… O seu cabelo era levemente ondulado e um tanto alourado. Tinha as sobrancelhas juntas, orelhas de tamanho médio, nariz mais saliente do que achatado, a cor da pele entre o moreno e o branco. Era de pequena estatura, mas tal era a harmonia e a proporção dos seus membros que se não dava por isso, a não ser por comparação com outra pessoa de maior estatura que estivesse junto dele6. Não deixa de ser um desafio verificar até que ponto esta descrição se reconhece nos retratos que nos ficaram, nomeadamente no território da província romana da Lusitânia. Escolhemos o Augusto de Mértola para esse exercício. Estudámo-lo no Museu Nacional de Arqueologia, onde se encontra desde os finais do séc. XIX, registado

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5. Ibidem. 6. Suetónio, Diuus Augustus, 79: Oculos habuit claros ac nitidos, quibus etiam existimari uolebat inesse quiddam diuini uigoris, gaudebatque, si qui sibi acrius contuenti quasi ad fulgorem solis uultum summitteret; sed in senecta sinistro minus uidit; dentes raros et exiguos et scabros; capillum leuiter inflexum et subflauum; supercilia coniuncta; mediocres aures; nasum et asummo eminentiorem et ab imo deductiorem; colorem inter aquilum candidumque; staturam breuem – quam tamen Iulius Marathus libertus et a memoria eius quinque pedum et dodrantis fuisse tradit, – sed quae commoditate et aequitate membrorum occuleretur, ut non nisi ex comparatione astantis alicuius procerioris intellegi potest. Tradução do latim, segundo M. Justino Maciel, A Arte da Época Clássica (séculos II a. C. – II d. C.), in História da Arte Portuguesa (dir. Paulo Pereira), Lisboa, Círculo de Leitores, 1995, p. 98.


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fig.2 augusto de mértola. museu nacional de arqueologia. visão lateral. © museu nacional de arqueologia.

com o nº. 994.9.2, número antigo 21520. As suas medidas são, aproximadamente, de altura 50 cm, de espessura máxima em cima 30 cm e de espessura máxima em baixo 20 cm. Grande parte do lado esquerdo e a área baixa central da testa, o nariz, os lábios, excepto as suas comissuras, e o queixo chegaram aos nossos dias martelados ou destruídos.

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fig.3-5 augusto de mértola. museu nacional de arqueologia. visão frontal, visão a três quartos e visão posterior (© j. maciel, 2005).

Características do busto Trata-se de um busto preparado para entroncar numa estátua-pedestal de dimensões colossais. A adaptação era efectuada através de encaixe. Para tal, o busto apresenta uma base troncónica, tratada a escopro. A modelação inicia-se com a representação do nascimento dos ombros, mais pronunciada do lado direito do que do lado esquerdo do representado. A musculatura do pescoço encontra-se sugerida por cordas que se encontram obliquamente num V descentrado no cimo do peito, com marcação de ligeira cova, correspondendo a uma ligeira orientação do rosto e inclinação para a sua direita. A corda direita do músculo do pescoço vai-se esbatendo progressivamente à medida que sobe. A corda esquerda, mais pronunciada, apenas se esbate sob a orelha esquerda, na confluência entre a linha do maxilar e a dos caracóis da base da cabeça, também à esquerda. Uma maçã de Adão pronuncia-se em relevo suave e ligeiramente descentrada para a esquerda, entre duas rugas horizontais e paralelas que dela partem, em cima e em baixo, para o lado direito do pescoço, sensivelmente até à direcção da confluência da linha do maxilar com a dos caracóis da base direita da cabeça. A distância entre estas duas rugas paralelas é de 3 cm. Uma outra ruga, de muito menor extensão, desce obliquamente do queixo em direcção à ruga horizontal superior, sublinhando ligeiramente a pequena torção do queixo. Este, como dissemos, tem a sua modelação escalavrada ou martelada. Os lábios destruídos deixam ver, intocadas, as respectivas comissuras, marcadas a trépano. Do nariz restam apenas as linhas de contorno. As bochechas são bastante pronunciadas, ambas sendo marcadas por sulcos quase simétricos que, juntamente com os músculos laterais do queixo, definem uma volumetria acentuada e estranha. Maçãs do rosto também suficientemente destacadas, sobretudo a da direita, mais descaída. Olhos, maçãs do rosto, bochechas e maxilares desnivelados da horizontali-

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dade para a direita, o que indica descaimento da cabeça para esse lado e correspondência, na manutenção da frontalidade, com a descentralidade da musculatura do pescoço. Orelhas destruídas, mais a da esquerda do que a da direita, todavia ainda com vestígios suficientes para delinear o seu traço. Os olhos não apresentam marcação de íris e a sua modulação pronunciada para os cantos, sobretudo verificada no olho esquerdo, sugerem que o retratado olha ligeiramente para o alto. As pálpebras são delineadas como orlas. Testa aparentemente baixa, pois a sua parte superior é coberta pelas madeixas do cabelo. A destruição que a sua textura sofreu impede uma percepção clara da representação de músculos ou de rugas. No entanto, restam vestígios de volumetria que indicam que não era lisa, deixando o modelado sobrevivente constatar que a parte inferior da testa era mais cheia e enrugada que a parte superior. Madeixas delineadas em ondas através de largos e rebaixados listéis recurvos terminando em ponta com sulcos mais suaves. Nas têmporas, caem para baixo; no lado direito, em três pontas direccionadas para a face; no lado esquerdo, em quatro pontas mais volumosas enrolando para dentro quase em saca-rolhas. Nos lados anteriores do pescoço, as madeixas apresentam as pontas direccionadas obliquamente, paralelamente com as linhas dos maxilares, em cima, e com os contornos do recorte do busto, em baixo. É patente o tratamento cuidado do cabelo em madeixas, condizente com a informação, atrás citada, de que Augusto confiava o seu cabelo a vários barbeiros ao mesmo tempo, apesar de ser também dito que não se preocupava demasiado com ele. Também a informação de que tinha o cabelo ondulado se pode adequar ao presente retrato. Este ondeado de madeixas que progressivamente vão ganhando volume à medida que se aproximam da parte frontal adapta-se perfeitamente à necessidade de representar o cabelo apenas nos lados e frente da cabeça. No cocuruto, observa-se uma falha natural do mármore com profundo recorte em bisel, enviesado em relação à frontalidade da testa. Daí nasce o ondulado dos cabelos para a frente e para os lados. A parte de trás, desde esta falha até à base do busto, encontra-se apenas sumariamente desbastada a ponteiro, indício claro de que a estátua em que se integrava se encontrava adossada a uma parede, com certeza a da cella de um templo. O tratamento do cabelo é aqui, como em todos os retratos deste imperador, fundamental para a identificação da personagem. Penteado para a frente, seguindo a tradição dos austeros penteados republicanos, ostenta, no entanto, três madeixas mais pronunciadas bem características: duas articulando-se em cauda de andorinha quase no centro da parte alta da testa e outra, à direita, articulando-se em forma de garra voltada para a esquerda, sugerindo também, em conexão com a madeixa central, um bico de águia. De tal maneira estas madeixas são pronunciadas que quase pareceriam postiços, não fosse o caso de o penteado masculino da época augustana ainda não recorrer a essa moda. A textura do rosto e do pescoço revela um fino polimento. Nos lados do pescoço, até às madeixas laterais e, na zona mais baixa, até à parte traseira cervical sumariamente desbastada, observa-se o efeito de um leve tratamento com gradim. Além deste instrumento, é possível identificar também o uso do ponteiro, do cinzel, do escopro e do trépano, como referimos já.

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7. K. Fittschen-P. Zanker, Katalog der römischen Porträts in den Capitolinischen Museen und den anderen kommunalen Sammlungen der Stadt Rom, I, Mainz am Rhein, 1994, p. 5, n. 5. 8. L.de Matos, Inventário do Museu Nacional de Arqueologia, Colecção de Escultura Romana, Lisboa, 1995, p. 26, foto na p. 27. 9. R. M. Rosado Fernandes, André de Resende, As Antiguidades da Lusitânia, Introdução, Tradução e Comentário, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1996, p. 186 e fl. 179: Octo, vel decem statuas annis ab hinc aliquot terra effossas Myrtilenses homines inde tollere permiserunt affabre insculptas, sed sine capitibus. Arbitrantur capita fuisse aenaea, & insititia, atque adeo a corporibus in alium usum evulsa (cap. IV, fl. 179). Tradução de R. M. Rosado Fernandes.

fig.6 busto de augusto de mértola em estátua fogada. © museu nacional de arqueologia.

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10. A. Arrais, Diálogos de Dom Frey Amador Arraiz, Bispo de Portalegre: revistos, e acrescenrados pelo mesmo Autor na segunda impressão, Nova Edição, Lisboa, Na Typographia Rollandiana, 1846, p. 255. 11. G. Pereira, As Estátuas Romanas da Quinta da Amoreira da Torre proximo de Montemor-oNovo, in Revista Archeologica (Lisboa) 4 (1890) 169-171. Cita Faria e Sousa na p. 170. 12. Idem, p. 169. No Guia de Portugal, II, Estremadura, Alentejo, Algarve, Lisboa, 1927 (1ª edição), pp. 33-34, dizia ainda Raul Proença ao falar da Quinta da Amoreira, citando Gabriel Pereira: Em dois nichos de casa de entrada, duas notáveis estátuas romanas, que parecem ter vindo de Mértola no séc. XVII, e a que o povo, sob a sugestão da tragédia dos Távoras, deu o nome de marquês e marquesa degolados – de mármore e com mais de 2 m. de alt., sem cabeça nem mãos, homem e mulher, «as mais perfeitas, mais elegantes, da mais nobre arte que temos em Portugal, as roupagens finas, lindamente lançadas, de óptima execução» (Gabriel Pereira). 13. J. L. de Vasconcelos, Duas estátuas romanas (Dadiva ao Museu Etnológico Português), in O Archeologo Português (Lisboa) 7 (1902) 100101. Em publicação de 1956, estas informações sobre a arqueologia de Mértola são repetidas por Luís Alves, que também nada nos diz sobre o busto de que aqui nos ocupamos (L. F. D. Alves, Aspectos da Arqueologia em Myrtilis, in Arquivo de Beja, Boletim da Câmara Municipal (Beja) 13 (1956) 21-104, mais concretamente nas pp. 59-60). 14. J. L. de Vasconcelos, Religiões da Lusitânia, III, Lisboa, 1913, p. 333-334, refere também uma das estátuas togadas provenientes de Mértola, que interpreta como representando a deusa Cíbele. Não faz aí, porém, qualquer referência ao togado masculino.

O penteado diz-nos sem restarem dúvidas que a personagem representada é Augusto. Todavia, o aspecto geral do busto distancia-se bastante dos restantes retratos que conhecemos do primeiro imperador, apesar de, como veremos, se poderem fazer algumas aproximações. Parece haver uma certa desproporção entre o rosto e a cabeça propriamente dita. Aquele é proporcionalmente mais pequeno e esta mais volumosa na estrutura e no cabelo. A explicação para esta discrepância foi avançada por K. Fittschen e P. Zanker7, que integraram este retrato num conjunto de bustos do imperador Calígula que, após a morte violenta deste e subsequente damnatio memoriae, foram reesculpidos com o rosto de Augusto. Parece difícil de justificar uma modelação sobre o retrato de Calígula, uma vez que não restam quaisquer traços das feições deste, de acordo com os bustos e estátuas que dele nos restaram. A ter sido executada a transformação, ela terá sido total na parte frontal do busto. Seja como for, a sua realidade plástica, apesar dos tratos de polé a que foi submetido, deixa transparecer a imagem do poder e a relação com o espectador.

Leituras e interpretações Este busto imperial provirá de Mértola, uma vez que consta no Catálogo do Museu Nacional de Arqueologia como tendo pertencido à Colecção de Estácio da Veiga/ Museu Arqueológico do Algarve8. Desconhecem-se, todavia, as circunstâncias do seu achamento, como veremos. No séc. XVI, André de Resende disse que, havia alguns anos, os habitantes de Mértola permitiram que levassem dali oito ou dez estátuas, escavadas da terra, artisticamente esculpidas mas sem cabeça, admitindo-se que as cabeças fossem de bronze e inseridas nos corpos e que tivessem mesmo sido arrancadas para outro uso9. Pela mesma altura, diz-nos o bispo Frei Amador Arrais:10 Duram ainda em Mértola coluñas, estatuas, & mármores com letreiros romanos… Em meu tempo nos fundamentos da Misericordia desta Villa se acharão sinco, ou seis estatuas de mármore, que eu vi… Uma delas era de molher, & tam bem lavrada, & galharda, que representava à maravilha a nobreza & gentileza da pessoa…As informações destes dois autores não referem a existência de bustos ou cabeças masculinas, mas permitem documentar a existência de escultura oficial e comemorativa romana em Mértola desde há muito tempo. Infelizmente, não possuímos qualquer descrição ou mera referência às condições de achamento deste busto. Em 1890, Gabriel Pereira 11 informa-nos da transferência destas estátuas mirtilenses para a Quinta da Amoreira da Torre (Montemor-o-Novo) e cita a segunda edição, em 1678, da Europa Portugueza, de Manoel Faria y Sousa, no Tomo I, Parte 1ª, cap. XI, onde se lê que algumas destas estátuas foram nesta Quinta destruídas para fazer gesso. Gabriel Pereira viu duas que sobreviveram na casa da entrada do palácio, em dois nichos feitos a propósito, sem cabeça12. São estas estátuas que Leite de Vasconcelos também refere como provenientes de Mértola, oferecidas pelo Visconde de Amoreira da Torre ao Museu Etnológico por volta do ano de 1902 13. Leite de Vasconcelos também não refere a cabeça que agora estudamos14.

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Não encontramos publicada qualquer informação que nos diga com clareza de onde veio este busto. Procurámos em vão nas relações e inventários da Colecção de Estácio da Veiga uma referência a esta cabeça romana. Na sua Historia do Museu Etnologico Português, Leite de Vasconcelos refere apenas estátuas (decapitadas) e fragmentos de outras; bustos e cabeças de mármore existentes em 1915 no Museu que dirigia15. Refere que o Inventario ou livro de entrada começou a organizar-se em 190616. Foi este Inventário que procurámos e que se nos revelou como o documento mais antigo, não assinado, embora nos pareça já bastante posterior a 1906. Trata-se de uma ficha manuscrita, com o número 21.520, que transcrevemos17: Estátua marmórea, alvinitente, de romano, togado, mutilada (faltam-lhe as pernas, o braço direito e a mão esquerda e tem a cara esmurrada); «as roupagens estão bem conservadas, as arestas nítidas, de uma elegância, e de execução nada vulgares.» Foi encontrada em Mértola, no século XVI; mas estava na Quinta da Amoreira da Torre, ao pé de Montemor-o -Novo – servindo de ornato dentro de um nicho - de onde veio para o Museu, nos princípios deste século XX, oferecida pelo seu proprietário, o Sr. Visconde da Amoreira da Torre. Altura 2m,30 2m,05 plus minus 1,64 p.m. (sem cabeça) Revista Archeologica, IV, 169.171, est. VII-VIII Archeologo Português, VII, 10018. A primeira publicação a dar conta desta cabeça, embora identificando-a somente como Estátua proveniente de Mértola, é a História da Arte em Portugal de Aarão de Lacerda, publicada em 1942. Mas refere-a também no contexto de duas estátuas monumentais bem dignas de um templo, provenientes de Mértola e datando dos sécs. II e III D.C., expostas no Museu Etnológico, bastante mutiladas mas muito vistosas nos panejamentos que os dois personagens, homem e mulher, vestem com certa distinção e elegância19. Não fala da cabeça masculina, mas apenas dos panejamentos da estátua-pedestal a que, na altura, se pensava estar ligado este busto. Na foto que publica na Fig. 75 da pág. 86 já mostra, porém, a estátua com esta cabeça. Das fichas do Inventário e do texto e fotos publicados por Aarão de Lacerda se conclui que desde a entrada destas estátuas no Museu, no começo do século XX, nelas foram aplicadas as referidas cabeças. Mas a origem em Mértola destas cabeças não se apresenta totalmente certa, embora isso seja de uma grande probabilidade. Segundo o inventário antigo, as cabeças faziam um todo com as estátuas-pedestal e, por isso, estando elas em Montemor-o-Novo no século XIX, não poderiam ter pertencido à Colecção de Estácio da Veiga/Museu Arqueológico do Algarve. Segundo os textos publicados desde o séc. XVI, as estátuas estavam decapitadas, mas também nada impede que, sabendo que as estátuas, mesmo em Montemor, eram oriundas de Mértola, se considerasse legítimo completá-las com cabeças também originárias dessa localidade, recolhidas por Estácio da Veiga20. A primeira leitura objectiva desta peça só viria a ser efectuada com profundidade por A. Garcia y Bellido21. Considera-a como fazendo parte de um todo, uma estátua com a altura actual de 2,05 m e que, se não tivesse sofrido destruições, teria de altura 2,30

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15. J. L. de Vasconcelos, Historia do Museu Etnologico Português, Lisboa, 1915, p. 196. 16. Idem, p. 151. 17. Muito agradecemos à Drª. Ana Isabel Santos e à D. Luísa Guerreiro Jacinto a localização e a possibilidade de ter acesso a esta ficha do inventário antigo. 18. O Inventário número 21.521 documenta uma figura feminina que sempre acompanhou a figura togada masculina desde o século XVI. Trancrevemos também o seu texto, porque ele poderá ajudar a contextualizar esta problemática: Estátua marmórea, alvinitente, de pessoa do sexo feminino, vestida de stola e palla. Na cabeça tem corona muralis. Está mutilada (falta-lhe o antebraço e mão direitos; a mão esquerda e os pés; e tem a cara esmurrada). «As roupagens estão bem conservadas, as arestas nítidas, de uma elegância e de execução nada vulgares.». Foi encontrada em Mértola, no séc. XVI; mas estava na Quinta da Amoreira da Torre, ao pé de Montemor-o-Novo – servindo de ornato dentro de um nicho – de onde veio para o Museu nos princípios deste século XX, oferecida pelo seu proprietário, o Sr. Visconde da Amoreira da Torre. Altura 2m,46 plus minus 1,90 p.m. (sem cabeça). Revista Archeologica, IV, 169-171, est. VII e VIII Religiões da Lusitânia, III, pg. 333, fig. 148 (Cabeça de Cýbele) Archeologo Português, VII, 100. 19. A. de Lacerda, História da Arte em Portugal, I, Porto, Portucalense Editora, 1942, p. 87 e figª. 75 da p. 86. 20. J. L. M. de Matos, Subsídios para um catálogo da escultura luso-romana, Dissertação de Licenciatura apresentada à Faculdade de Letras de Lisboa, Lisboa, 1966, pp. 114-117, trata objectivamente esta problemática, numa altura em foi decidido, estando o Museu sob a direcção de D. Fernando de Almeida, retirar a cabeça de Augusto da estátua togada e a cabeça de Cíbele, também por outros então considerada da imperatriz Júlia, da estátua da figura feminina com túnica e stola. Diz, na pág. 115: Muito extranhamente, porém, ambas as esculturas se apresentam agora com cabeça. Não há dúvida que são cabeças impostas depois de as estátuas terem ido para


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o Museu. Àcerca da autenticidade deste arranjo levantam-se algumas dúvidas. O assunto está a ser estudado pelo Sr. Doutor Fernando de Almeida e não temos a possibilidade de resolver a questão nem queremos antecipar-nos às suas conclusões. 21. A. Garcia y Bellido, Retratos Romanos Imperiales de Portugal, in Arquivo de Beja, Boletim da Câmara Municipal (Beja) 23-24 (1966-67) 280291, fig. 1, na p. 286. 22. Idem, pp. 280-281.

fig.7 augusto de mérida, capite velato . museu nacional de arte romano. © j. maciel, 1989

m. Reconhece, todavia, que não parece suficientemente provada22 a hipótese de esta estátua ser uma das que foram encontradas decapitadas no séc. XVI. Mas acaba por identificar a escultura como a de um Augusto togado, em pé, de tamanho colossal, segundo um tipo mui similar ao da Via Labicana, mas com a cabeça descoberta. Diz ainda que a cabeça é peça à parte, mas pertencente à figura. Faltam-lhe, além da parte dos pés, do braço direito e da mão esquerda, todo o rosto. No entanto, o pouco que resta das feições e o penteado com o característico duplo madeixão em forma de bico de águia, indicam sem quaisquer dúvidas que se trata de uma estátua-imagem de Augusto. Temos de reconhecer, todavia, que o escultor fez um retrato duro e até

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fig.8 augusto da via labicana, capite velato . museo nazionale romano. fotografia publicada por r. bianchi bandinelli, roma centro del poder, madrid, 1970, p.201, fig.216.

torpe, dando à cabeça um excessivo volume e à face uma dimensão desmedida que está muito longe do fino rosto dos retratos augústeos ocidentais, mas que se costuma encontrar nos orientais. Isso me faz suspeitar de que o escultor desta estátua seria provavelmente um de tantos escultores gregos ou orientais que trabalhavam então nas províncias ocidentais do Império onde a criação de novas colónias e o desenvolvimento da vida oficial e particular os fazia necessários. Sabemos que por essa altura, em Emérita Augusta, alguns destes escultores se empregavam na decoração do teatro em cujas pedras deixaram a sua assinatura23. Sublinhando esta leitura do Augusto de Mértola, R.Etienne, G. Fabre, P. e M. Lévêque comparam-no com o de Conímbriga, considerando-o, em relação a este, com o festão das madeixas sobre a fronte com cauda de andorinha mais à esquerda, carne

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23. Idem, p. 281.


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24. R. Etienne, G. Fabre, P. e M. Lévêque, Fouilles de Conimbriga, II, Épigraphie et Sculpture, Paris, 1976, p. 238. 25. J. Alarcão, Portugal Romano, Lisboa, 4ª ed., 1987, p. 209. 26. V. de Souza, Corpus Signorum Imperii Romani, Portugal, Coimbra, 1990, p.13, fig. 10. 27. L.de Matos, Inventário do Museu Nacional de Arqueologia, Colecção de Escultura Romana, Lisboa, 1995, p. 26, foto na p. 27. 28. M. J. Maciel, op. cit., p. 98. 29. T. Nogales Basarrate e L. J. Gonçalves, Imagines Lusitanae: La plástica oficial de Augusta Emerita y su reflejo en algunas ciudades lusitanas, in Augusta Emerita. Territórios, Espacios, Imágenes y Gentes en Lusitania Romana (Ed. T. Nogales Basarrate), Monografias Emeritenses, 8, Mérida, 2004, pp. 285-337, fig. 10Aa, na p. 321.

mais mole, trabalho mais cuidado na modelação da pele. Sublinham também o facto de estes dois retratos se reportarem a um Augusto não jovem, mesmo póstumo, o que vai contra a tendência generalizada verificada na Península Ibérica. No caso do de Mértola, a dureza do rosto, como sugeriu Garcia y Bellido, poderá indiciar a mão de artistas orientais24. A mesma ideia é sublinhada por J. Alarcão, que afirma que esta cabeça de Augusto veio provavelmente de Mértola25. Citámos já a nota de K. Fittschen e P. Zanker, propondo uma adaptação de um retrato de Calígula a um busto de Augusto. Esta mesma opinião é seguida por Vasco de Souza, que sublinha a discrepância de proporções entre o rosto e a cabeça, denunciando uma transformação da escultura, que terá ocorrido em época do imperador Cláudio, a ter em conta a modelação da textura da pele e o tratamento das madeixas do cabelo. Os característicos caracóis formando garra permitem integrar esta escultura, segundo o mesmo autor, na tipologia de Primaporta26. Luís de Matos descreve este busto dando conta do contraste entre a rosto e a cabeça propriamente dita, sublinha a sua forma realista e integra-a no tipo de Primaporta. Aceita a ideia de adaptação de um retrato de Calígula e sublinha a importância do seu achamento em Mértola27. Em 1995, um de nós considerou este busto de Mértola, entre os retratos augustanos encontrados em Portugal, como o que apresentou uma mais acurada modelação de superfície e o que nos mostra uma personagem mais jovem28. Mais recentemente, T. Nogales e L. J. Gonçalves aceitam também a ideia de conversão, na época cláudia, de um retrato de Calígula, facto que explica o endurecimento das feições augústeas pela conservação dos sulcos faciais precedentes29.

Algumas reflexões Como se deduz das várias abordagens, as interpretações iconográficas são progressivamente satisfatórias à medida que se vai alargando o estudo comparativo com outras representações de Augusto em todo o Império, seja na sua parte ocidental, seja na sua parte oriental. Destacam-se as leituras de A. Garcia y Bellido e de K. Fittschen-P. Zanker. Do primeiro, porque identificou a personagem através do tipo de penteado, individualizando os traços representados como pouco comuns à iconografia ocidental do primeiro dos imperadores e atribuindo o trabalho de escultor a um artifex grego ou oriental. Dos segundos, pela proposta de um novo enquadramento iconográfico e cronológico. A hipótese por eles avançada da transformação de um retrato de Calígula, e que parece desde então aceite como válida, apresenta todavia dificuldades de interacção com os poucos retratos sobreviventes deste imperador. Com efeito, ou o retrato foi adaptado e alguns traços permaneceram, ou foi totalmente reesculpido e então esses traços desapareceram. É certo que se constata uma discrepância entre o rosto e a cabeça, mas o empolamento e a profundidade das madeixas frontais em garra ou bico de águia e em cauda de andorinha dificilmente se conjugam com uma reelaboração. A grande volumetria do busto teria obrigado, na transformação, a uma redução no referido empolamento das madeixas em relação ao rosto e não o contrário, que é o que se verifica.

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No nosso entender, o afastamento que se observa em relação aos típicos traços fisionómicos augústeos – o referido endurecimento da expressão do rosto – devese mais à cronologia tardia da sua feitura na época cláudia do que a uma possível transformação de outro retrato. Todavia, a leitura de Garcia y Bellido, fundamental para o enquadramento deste busto na iconografia augustana, parece-nos ter sido efectuada com base numa fotografia, dada a descrição sumária da cabeça, designadamente do rosto, que é considerado como praticamente destruído, quando conserva ainda traços fundamentais para a sua percepção, seja frontal, seja lateralmente. A leitura de Garcia y Bellido atende sobretudo à estátua-pedestal em que, na altura do seu estudo, o busto estava encaixado, circunstância que, no nosso entender, condicionou então a leitura deste busto augustano. Procuramos nos corpora de retratos imperiais possíveis aproximações que nos permitam interrogarmo-nos sobre o enquadramento iconográfico deste busto de Augusto proveniente de Mértola. Referimos no início o modelo fundamental de Primaporta, cujas características marcantes são os pronunciados madeixões em garra e em cauda de andorinha. A ele se reporta também este retrato de Mértola, assim como outros que lhe estão próximos geograficamente, como é o caso dos de Itálica, de Conímbriga e de Mérida30. De Itálica são provenientes duas cabeças augustanas, hoje no Museu Arqueológico Provincial de Sevilha31. A primeira, em mármore branco, também pertencente a uma estátua colossal, aproxima-se da de Mértola num idêntico tipo de madeixas laterais ao rosto, junto às têmporas. Apresenta um aspecto idealizado e sereno, mas voluntarioso. Todavia, o que mais aproxima esta cabeça da de Mértola é o muito semelhante tratamento da musculatura em V no pescoço, a mesma torção do rosto para a direita e a mesma marcação horizontal paralela das rugas sob o queixo. Há autores que a contextualizam na época Cláudia32. A segunda, igualmente em mármore branco, também se poderá comparar com a de Mértola pelos seus traços mais duros e, sobretudo, pela tipologia das madeixas em cauda de andorinha e em garra ou bico de águia33. Pensamos que, apesar das evidentes diferenças, são estas duas esculturas as que mais se aproximam iconograficamente da de Mértola, o que se justificará dada a maior proximidade geográfica. Comparável é também a do Augusto de Conímbriga, igualmente de uma estátua colossal. As maçãs do rosto pronunciadas, os sulcos junto ao nariz, o direccionamento para a direita, a musculatura do pescoço e a maçã de Adão, eis algumas das marcas comuns ao busto de Mértola. Mas é no tratamento das características madeixas frontais que é mais visível a aproximação. Quanto ao de Mérida, por ser representado em atitude ritual, capite uelato, e por isso aproximado ao Augusto da Via Labicana34, não deixam de ser também evidentes as semelhanças com o de Mértola. Para tal não deixou de ser importante a influência que a capital da Lusitânia teve em toda a província, designadamente no culto imperial e na iconografia que o acompanhou. A torsão à direita, visível também na musculatura do pescoço, a pronunciada maçã de Adão, a severa expressão35, o tra-

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30. Consideram-se genericamente três os tipos de retratos de Augusto: o tipo “Actium”, de criação anterior a 27 a.C.; o tipo “Primaporta”, coincidente com a atribuição do título de Augusto neste mesmo ano 27 a.C.; este e o anterior apresentam realizações póstumas; e o tipo “Forbes”, que se pensa ter sido proposto por altura dos Ludi Saeculares de 17 a.C. Segundo C. Rose, a principal marca que diferencia estes tipos tem a ver com a forma de disposição do cabelo (C. A. Rose, Dynastic commemoration and imperial portraiture in the Julio-Claudian period, Cambridge, 1997). 31. H. Drerup, Augustusköpfe in Spanien, in Madrider Mitteilungen (Heidelberg) 12 (1971) 138146, Raf. 32-33, 36-38. 32. A. Garcia y Bellido, Esculturas Romanas de España y Portugal, Madrid, 1949, 23. 33. Idem, pp. 20-21. 34. Garcia y Bellido, Arte Romano, Reimpresion de la segunda edición, Madrid, 1979, p. 196. 35. Idem, p. 21.


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36. V. Souza, op. cit., p. 54, fig. 150. 37. Cabral, J.M.P., Vieira, M.C.R., Carreira, P.M., Figueiredo, M.O., Pena, T.P. e Tavares, A. (1992). “Preliminary study on the isotopic and chemical characterization of marbles from Alto Alentejo (Portugal)”. In M. Waelkens, N. Herz and L. Moens (eds.), Ancient Stones: Quarrying, Trade and Provenance. Acta Archaeologica Lovaniensia, Monographiae 4, Leuven University Press, 191-8. 38. Os autores agradecem a Dina Nunes, do Instituto Tecnológico e Nuclear, o apoio dispensado na realização do ensaio de espectrometria de massa. 39. Cabral, J.M.P., Maciel, M.J., Lopes, L., Lopes, J.M.C., Marques, A.P.V., Mustra, C.O., e Carreira, P.M. (2001). “Petrographic and isotopic characterization of marble from the Estremoz Anticline: its application in identifying the sources of Roman works of art”, Journal of Iberian Archaeology, vol. 3, 121-8. 40. Moens, L., De Paepe, P. e Waelkens, M. (1992). “Multidisciplinary research and cooperation: keys to a successful provenance determination of white marbles”. In M. Waelkens, N. Herz and L. Moens (eds.), Ancient Stones: Quarrying, Trade and Provenance. Acta Archaeologica Lovaniensia, Monographiae 4, Leuven University Press, 247-52.

tamento das pálpebras e, sobretudo, do cabelo, eis as marcas também patentes na cabeça proveniente de Mértola. A partir daqui, poderíamos estender o leque de exemplos, dentro da tipologia de Primaporta, a que pertence, aliás, o outro exemplo de retrato de Augusto existente em Portugal, hoje no Claustro da Lavagem, em Tomar que, apesar da grande destruição a que foi sujeito, guarda ainda as inconfundíveis marcas do típico penteado36. Para ir mais além no estudo da cabeça de Augusto de Mértola, procedemos à determinação da proveniência do mármore.

Proveniência do mármore Para determinar a proveniência do mármore fez-se a análise isotópica de dois dos seus elementos constituintes – carbono e oxigénio – a partir de uma amostra extraída da base do busto. A amostra foi recolhida com uma broca de carboneto de tungsténio tendo o cuidado de, previamente, retirar as camadas superficiais alteradas na área onde se fez a colheita e de usar uma velocidade de brocagem reduzida de modo a não deixar subir demasiado a temperatura da broca. Na análise recorreu-se à espectrometria de massa utilizando o processo usado num estudo anterior37. O resultado obtido foi o seguinte38 : δ13C = 1,55 ‰; δ18O = -5,33 ‰. Este resultado foi depois representado num diagrama de δ13C em função de δ18O (Fig.9), onde se representaram também os campos característicos das composições isotópicas dos mármores do Anticlinal de Estremoz39 e de diversos mármores brancos de várias pedreiras situadas na Itália, Grécia e Turquia, exploradas durante a Antiguidade Clássica40. Como se pode ver na figura, o ponto AM representativo da amostra situa-se dentro do campo EA característico dos mármores do Anticlinal de Estremoz, o que permite inferir que o mármore do busto do Augusto de Mértola pode ter vindo de uma pedreira deste Anticlinal. Note-se porém que, em virtude de o campo EA se sobrepor parcialmente a alguns campos característicos de mármores brancos oriundos de certas pedreiras da Grécia e da Ásia Menor, aquele ponto situa-se também dentro do campo D característico dos mármores de Dokimeion (Turquia). É, pois, legítimo inferir ainda que o mármore do busto do Augusto de Mértola pode também ter vindo desta última pedreira. Note-se, além disso, que o ponto AM se situa fora do campo C característico dos mármores de Carrara, o que mostra claramente que o mármore do referido busto não é com certeza proveniente de Carrara. Assim, atendendo a que a pedreira de Dokimeion está localizada muitíssimo longe de Mértola, parece razoável concluir com base no presente resultado que o mármore do busto do Augusto de Mértola deve provir muito provavelmente de uma pedreira do Alto Alentejo.

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fig.9 projecções dos pontos representativos das amostras referidas no quadro 1, bem como dos campos característicos das composições isotópicas dos mármores do anticlinal de estremoz, ea, e de diversos mármores brancos das pedreiras mais importantes exploradas na antiguidade clássica: a - afrodisíade; c - carrara; d - dokimeion; n - naxos; pa-1 - paros stefani; pa-2 - paros chorodoki; pe - monte pentélico; pr - proconeso (mármara); t-1, t-2, t-3 - tasos; u - usak.

Conclusões Neste busto de Mértola, apesar das destruições e das marteladas sofridas, é a personagem do Princeps líder da chamada Pax Augustana que se destaca na sua realidade plástica. A sua colocação no foro, mais concretamente na cella do templo desta praça comercial, cívica e religiosa, terá sido, em princípio, uma realidade. Quando se procedia ao culto do imperador divinizado, abriam-se as portas do espaço sagrado, como diz Vitrúvio: o templo e a estátua que estiver colocada na cela devem estar voltados para a vespertina região do céu, de forma que os que se aproximam da ara para imolar ou fazer sacrifícios olhem para a parte do sol nascente e para a imagem que estiver no templo (De Arch. 4, 5, 1)41. O tratamento sumário da parte posterior da cabeça indicia o seu adossamento, bem como da estátua-pedestal em que se integrava, a uma parede. Que esta cabeça terá vindo de Mértola parece evidente, se bem que não haja uma documentação clara sobre o seu achamento. Por outro lado, a sua relação com uma estátua togada, apesar de o mármore parecer idêntico e a proporcionalidade aceitável, também pode ser discutida42. O resultado da análise de isótopos de oxigénio do mármore em que o busto foi esculpido aponta, como se disse, para que ele tenha sido muito provavelmente extraído de uma pedreira romana da região de Estremoz-Vila Viçosa e, portanto, numa oficina local, apesar de o ou os artistas poderem ser de origem grega ou oriental.

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41. M.J. Maciel, Vitrúvio, Tratado de Arquitectura, Tradução do latim, introdução e notas, Lisboa, IST Press, 2006, p. 153. 42. J. L. M. Matos, Subsídios…, op. cit., p. 115.


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43. M. J. Maciel, Arte romana e pedreiras de mármore na Lusitânia: novos caminhos de investigação, in Revista da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (Lisboa) 11 (1998) 233-245. J. M. Peixoto Cabral et alii, Petrographic and isotopic characterization of marble from the Estremoz anticline: its application in identifying the sources of roman works of art, Sep. de Journal of Iberian Archaeology, 3, Porto, 2001. M.J. Maciel, J. M.Peixoto Cabral e D. Nunes, Baixo-relevo em mármore com representação de um grifo, in Trabalhos de Antropologia e Etnologia (Porto) 42 / 1-2 (2002) 193-202. M.J. Maciel, J. M.Peixoto Cabral e D. Nunes, Os sarcófagos tardo-romanos do Museu Nacional de Arqueologia. Novos dados para a sua interpretação, in O Arqueólogo Português (Lisboa) IV Série - 20 (2002) 161-176. M.J. Maciel, J. M.Peixoto Cabral e D. Nunes, O sarcófago romano das Musas (Valado, Alfezeirão). Nova leitura iconográfica e análise do mármore, in Arqueologia e História, Revista da Associação dos Arqueólogos Portugueses (Lisboa) 55 (2003) 63-70. M.J. Maciel, J. M.Peixoto Cabral e D. Nunes, A estátua de Apolo na Villa do Álamo (Museu Nacional de Arqueologia), in O Arqueólogo Português, (Lisboa) IV Série - 24 (2006) 349-367. 44. P. Zanker, op. cit., p. 225. 45. C. Rose, op. cit., p. 60. 46. Idem, p. 66. 47. Idem, p. 45.

Mértola era, com efeito, um dos portos do Sul da Lusitânia mais concorridos nas relações com todo o Mediterrâneo e a presença ou trânsito de artistas orientais é perfeitamente admissível. A exploração de mármores locais na Lusitânia é incrementada com a chamada marmorização das cidades no tempo de Cláudio e de Nero, nomeadamente no melhoramento dos centros urbanos e seus monumentos. A escultura beneficiou também desta disponibilização de mármores locais, como o provam o resultado das análises feitas a este busto e a outras obras de arte43. Não há dúvida de que se trata de um retrato de Augusto, pelas razões aduzidas. Também se aceita que se integra dentro da tipologia de Primaporta, a mais representativa da imagem pública construída ou, pelo menos, oficializada pela própria família do imperador44, embora posta in actu em liturgias póstumas45, muito provavelmente na época claudiana. Não temos modo de provar se se trata ou não de reformulação de um retrato de Calígula, apesar de alguma estatuária deste imperador ter sido transformada, não só em imagens de Augusto como até de Cláudio46. O que é facto, é que este último imperador procurou sublinhar a sua descendência de Augusto, para legitimar a sua acção política. Em Volubilis, no actual Marrocos e, portanto, dentro de um relativamente próximo relacionamento geográfico de Mértola, na antiguidade romana, uma inscrição classifica Cláudio como diui f(ilius) (filho do divino Augusto), ou seja, este imperador considerava Augusto como seu pai47. Tal ideologia expressase também na arte do retrato e justifica a manutenção e o incremento das imagens de Augusto no tempo de Cláudio. Este facto, associado a outros já referidos, permitirá enquadrar a feitura de um retrato póstumo de Augusto em Mértola entre os anos 41 e 54 d.C., ou seja, nos meados do séc. I. O grande destaque, diríamos empolamento, das madeixas frontais poderá também indiciar o carácter tardio deste busto de Mértola. O artista sentiu necessidade de avolumar estes caracóis, características fundamentais da identificação formal de um imperador que já havia desaparecido há décadas. Muito mais se poderia equacionar e ponderar olhando para este rosto que deixa ainda ver algo do que o escultor tentou exprimir, rosto que, a julgar pelos valores texturais sobreviventes, se plasmava numa modelação de superfície de grande qualidade, a melhor conseguida entre os retratos augústeos até hoje conhecidos em Portugal. Através da dialéctica evidente entre o ideal da perfeição formal grega, ainda sentido na relação que hoje se estabelece com o espectador, e o concreto das marcas reais de uma personagem que imediatamente identificamos, damo-nos conta do poder da imagem para o cidadão romano nos múltiplos espaços do Império – neste caso na Myrtilis do séc. I da nossa era - e, ao mesmo tempo, da consciência que o retratado procura exprimir da sua função social e cívica. Esta escultura, que guarda em si as feridas da História, é um documento valioso para a percepção do quadro iconográfico augustano, nos diferentes níveis que assinalámos, valendo como imagem do poder romano no nosso território e como retrato de uma personagem que indelevelmente marcou o seu tempo até à actualidade.

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Resumo A localização, entre 1985 e 1987, de dois conjuntos de mosaicos exibindo o tema das Estações do Ano, na pars urbana da Villa romana do Rabaçal, datados da 2ª metade do séc. IV, suscitou desde logo a atenção, na medida em que trouxe ao nosso conhecimento uma maior variedade artística entre as representações da figura humana conhecidas até hoje nos mosaicos romanos de Portugal. Constituem, em nosso entender, um exemplo de prelúdio de arte bizantina, cuja chamada Idade de Ouro será alcançada no reinado de Justiniano (527-565). De facto, estas figuras são”embaixadoras” das suas congéneres ravenatico-bizantinas.

palavras-chave retrato alegoria mosaico romano villa rabaçal / penela / portugal

Abstract The two groups of mosaics with the Seasons of the Year, discovered between 1985 and 1987, in the pars urbana of the Roman Villa of Rabaçal, dating from the second half of the 4th century, is of great interest to us, as it has brought to our knowledge a wider artistic variety of human representations in Roman mosaics in Portugal. We believe that they constitute the beginning of Byzantine art, whose golden age culminated during the time of Justinian (527-565). In fact, these figures are considered “ambassadors” to the Byzantine and Ravennatic Art.

key-words portrait allegory roman mosaic villa rabaçal /penela /portugal


retratos ou alegorias

nos mosaicos das estações do ano da villa romana do rabaçal, penela, portugal? mig u el pe ssoa Arqueólogo / Museólogo. Villa Romana do Rabaçal, Município de Penela. Conímbriga, Instituto dos Museus e da Conservação.

Introdução A localização, entre 1985 e 1987, de dois conjuntos de mosaicos exibindo o tema das Estações do Ano, na pars urbana da Villa romana do Rabaçal, datados da 2ª metade do séc. IV, suscitou desde logo a atenção, na medida em que trouxe ao nosso conhecimento uma maior variedade artística entre as representações da figura humana conhecidas até hoje nos mosaicos romanos de Portugal. Constituem, em nosso entender, um exemplo de prelúdio de arte bizantina, cuja chamada Idade de Ouro, será alcançada no reinado de Justiniano (527-565). De facto, estas figuras são”embaixadoras” das suas congéneres ravenatico-bizantinas. Esta Villa está situada na Região Centro, Beira Litoral, distrito de Coimbra, concelho de Penela, freguesia do Rabaçal, lugar da Ordem e no território da antiga ciuitas de Conímbriga. Nela foram identificadas, para além da pars urbana ou palácio romano (de peristylum central octogonal, do qual irradiam o triclinium, decorado com baixorelevos, os cubicula e outros espaços, perfazendo um total de 25 compartimentos), o balneário, a pars rustica e as nascentes, em espaços apropriados, não se conhecendo, por enquanto, a extensão da propriedade ou fundus que lhe pertencia. Um dos conjuntos das Estações do Ano foi localizado no mosaico do corredor oeste do peristylum. Apresenta-se organizado sob a forma de quatro painéis, envolvendo um motivo central com o que resta da representação de uma quadriga vencedora. Num outro conjunto, localizado no mosaico do triclinium, as figuras (das quais se conserva parte de duas das quatro inicialmente existentes) aparecem-nos colocadas sobre os ângulos da cercadura do painel do meio da sala, cujo motivo central é o que resta de uma figura feminina sentada, vestida de túnica azul, envolta por uma palla espessa, segurando sobre o braço esquerdo um ramo de cereal. Representará Ceres, Tellus, a Fortuna ou a proprietária? Estaremos perante dois conjuntos de trabalhos com características de retratos ou perante alegorias? Qual a sua origem, desenvolvimento e significação?

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Desenvolvimento e diversidade de abordagens ao tema da figuração humana Sabemos que o desenvolvimento da figuração do ser humano na civilização ocidental tem um dos seus momentos chave na passagem do fim da época arcaica e o começo da época clássica, na Grécia, entre os séculos VI e V a. C. Da rigidez, geometrismo e frontalidade perfeita das figuras dá-se lugar a uma lenta e fértil conquista de formas corporais expressivas, próprias da realidade (PROST, 2006, p. 26), cujas causas histórico-sociais são motivo de crescentes estudos e debates (BODIOU, FRÈRE, MEHL, 2006). A mais recente explicação, e certamente não a última, destaca o facto de o avanço da medicina grega, naquela época, ter levado à observação minuciosa e precisa das articulações corporais, identificando a repartição das veias, os princípios da respiração e a organização assimétrica dos gestos (PROST, 2006, p. 27). Estas características inicialmente evidenciadas na escultura e na pintura estão igualmente retratadas nos mosaicos. Tomemos como exemplo a cena figurada de caça ao leão de Pella, no norte da Grécia, datadas do início do século III a.C.. O efeito pictural da representação é conseguido através da colocação das figuras claras sobre um fundo escuro e o recurso a finas lâminas de cerâmica bem visíveis nos cabelos e na juba da fera (LAVAGNE, BALANDA, ECHEVERRIA, 2000, fig. 41 - 42, p. 208). Estamos perante uma virtuosa decomposição pontilhista das formas e um conhecimento da anatomia humana e animal que só uma escola pode proporcionar. Um outro exemplo coevo é o do mosaico dos Erotes caçadores, de Alexandria, da mesma época, também executado na técnica de seixo rolado. O mosaico de Morgantina, na Sicília, com a cena de Zeus transformado em águia levando Ganimedes, datado de meados do século III a. C., e o mosaico com a cena da Batalha de Alexandre e Dario, cujos retratos são executados a partir de modelos, datável do século II / I a. C., encontrado na Casa de Fauno, em Pompeia, são, por outro lado, bons exemplos da técnica da tessela talhada à vontade. Neste segundo mosaico observamos, à esquerda, o retrato de Alexandre, com uma modelação pictórica do rosto e cabelo brilhantes, como que cobertos de suor, de cabeça descoberta no meio do inquieto exército macedónio; Dario, à direita, relança em vão os Persas destroçados (BERTELLI, 1993, p. 24 - 25). De facto, a representação de pessoas comuns desprende-se, conforme os exemplos apresentados, da lei da frontalidade e ganha no movimento uma poderosa afirmação de vida e de vontade. Paralelamente, assiste-se ao apuro técnico na produção artística, o que vai permitir o tratamento de temas diversificados, e, de acordo com o espírito prático dos romanos, uma orientação para o real e não para o imaginário. Os retratos esculpidos em Roma, no século I a. C. são, quase sempre, de um realismo impressionante, sendo esta influência tão grande que veio a reflectir-se na pintura, de que são exemplo os retratos de bustos de Fayoum, no Egipto, datados do século I

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fig.1 retrato de mulher jovem de pompeios de estilo romano-helenístico. mosaico pertencente à série dos emblemata , que se encontrava inserido num pavimento de opus sectile de mármore. século i d. c. museu de nápoles (in lavagne, balanda, echeverria, 2000, fig. 56).

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e II d. C., executados ao gosto pictural helenístico-romano. A atenção dada à cabeça, onde os traços sobressaem graças aos efeitos de luz, retratam fisionomias com um realismo intenso. As roupagens, pelo contrário, são representadas num estilo mais sóbrio. Os exemplos apresentados são seguramente obras executadas com o modelo à vista. Francisco Rodrigues, no seu Dicionário de Pintura, cita Plínio, o Antigo, e a sua obra História Natural, na qual é referido que o Pintor Apeles executava o retrato “com tal arte e semelhança que os astrólogos pela simples vista dos quadros tiravam o horóscopo das pessoas representadas” (RODRIGUES, 1875). Também, como nos refere José Gil, quando Plínio, na História Natural, trata do mito da invenção da pintura, identifica-a com o retrato, pois deve-se ao desejo de conservar a presença de um ser amado que vai partir, como se com o inesgotável afecto que nele se acumula se conseguisse uma fórmula mágica de sobrevivência (GIL, 1999, p. 11, 12, 13). De igual modo, segundo Guilhem Scherf, Diderot aconselhava a Pigale, ao retratar Voltaire em estatuária, a nudez heróica como meio de representar um homem ilustre, pois, referindo Plínio e a obra atrás citada, “o costume dos gregos é de nada taparem” – “Graeca res est nihil uelare” (SCHERF, 2007, p. 208). O conhecido retrato feminino de Pompeios, um quadrinho que é um eco da arte do mosaico de época helenística, representando uma jovem mulher sobriamente vestida de túnica e manto, simplesmente ornada com um colar e brincos de ouro nas orelhas, é uma das obras maiores do género que chegaram aos nossos dias (Fig.1). Como é por demais evidente nesta imagem, o mosaico obriga à decomposição pontilhista das linhas e das superfícies (como acontece hoje nas imagens pixelizadas), a fim de alcançar o figurado, atingindo a densidade de tesselas o número de centenas por dm2. É um trabalho individual de um “pintor”, sendo que o desenho base “desaparece” com a cor. Trata-se de um emblema, feito de pequenos cubos minúsculos, reproduzindo, na maior parte das vezes, temas tratados em pintura, fixados em grandes telhas planas. Estes mosaicos portativos, realizados em oficina, eram depois integrados no conjunto de pavimentos ou revestimentos parietais. Deve tratar-se do retrato de uma poetisa, princesa real ou da senhora da casa, fazendo lembrar certos rostos de Fayoum, Egipto. O colar e o manto rebordado de ouro indicam que esta matrona era de um alto nível social (LAVAGNE, BALANDA, ECHEVERRÍA, 2000, fig. 56, p. 210). Celebrizado é também o retrato de Virgílio, o poeta maior dos romanos, acompanhado pelas musas Clio, da História, segurando um manuscrito enrolado, e Melpómene, da Tragédia, segurando uma máscara, representados num mosaico proveniente de Adrumeto e hoje no Museu de Sousse, na Tunísia. Trata-se de um retrato de corpo inteiro com o poeta sentado, identificado pelo verso 8º da Eneida, escrito sobre o rolo que ele tem nos joelhos, e que retrata o vivo interesse pela cultura romana em meio africano no século III d. C. (BERTELLI, 1970, p. 236). Este mosaico, obra de síntese e composição perfeitas, à base do rectângulo e diagonais, reporta-se a uma filiação de retratos de homens de letras aparecidos no século III a. C. e contou com adeptos até ao fim da Antiguidade. Estes temas exprimiam a ligação da burguesia imperial à cultura clássica que aparecia como a base e frutificação da ordem romana (PICARD, 1978, p. 29).

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fig.2 retrato feminino. pedrosa de la veja, villa de la olmeda, palencia, espanha. fim do século iv d. c. in situ (in idem, fig. 52).

O “Busto de Atleta”, de Aquileia, do século I d. C., é importante por retratar uma pessoa comum, provavelmente de uma etnia oriental, de cabelo apertado para não embaraçar na luta, e de um tipo físico no qual o olhar intenso, a boca bem marcada, ombros musculados e peitorais desenvolvidos realçam ferocidade e são sinónimos de força, perante a perplexidade do desfecho do duelo obrigatório. Vejamos agora o mosaico de “Os Coristas”, de Cápua, datado dos séculos II / III d. C.. Dado o realismo dos rostos e os diferentes penteados, o artista pode ter-se inspirado num grupo real, numa composição na qual o sombreado dos pés e o facto de os corpos se taparem ligeiramente uns aos outros contribuem para a criação da perspectiva. Tratar-se-á dos célebres jovens cantores, retratados um a um, com subida honra, acompanhados pelo maestro, ao fundo, louvando Diana, referidos no poema 34 de Catulo? De realçar a impressão de vida intensa em toda esta cena, em resultado da gravidade da expressão individualizada de cada uma das personagens (LAVAGNE, et alii, 2001, p. 126 - 127). O mosaico da Villa de la Olmeda, de Pedrosa de la Veja, Palência, na Tarraconense, apresenta-nos a série mais completa de retratos femininos de família, de tipo realista, até hoje descoberta (LAVAGNE, BALANDA, ECHEVERRÍA, 2000, fig. 52, p. 210). Apresentamos um retrato feminino (Fig.2) entre os dezoito retratos masculinos e femininos, descobertos numa cercadura ornamental (emoldurando um sumptuoso

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quadro figurado que apresenta Aquiles a ser reconhecido por Ulisses em Scyros) (LANCHA, 2000, p. 128). Trata-se de um obra bem executada própria de um determinado atelier. São também conhecidos três retratos de busto, do tipo aristocrático, representando muito provavelmente a domina acompanhada de suas filhas, no mosaico da Villa romana de Olivar del Centeno, em Milhanes de la Mata, Cáceres (Idem, p.128).

Alegorias Vejamos agora alguns exemplos de um outro tipo de representação corporal - a alegoria, ou seja, a figuração simbólica de ideias e realidades abstractas por meio de imagens que as tornam compreensíveis. É celebre, neste género, a personificação da cidade de Alexandria, proveniente de Thmuis, no Egipto, datada de circa de 200 a. C. (Fig.3). Trata-se da idealização, a partir de um modelo real, da Senhora dos Mares, com um olhar de exaltação, pró-

fig.3 personificação de alexandria ou retrato da rainha berenice ii do egipto, que terá vivido entre 222 e 246 a. c. mosaico de thmuis, cópia de um original mais antigo. circa 200 a. c. museu greco-romano de alexandria. ( in ferguson, 1973, fig. 16)).

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fig.4 personificação de ambrósia. mosaico da villa romana del casale, de piazza armerina. sicília. finais do séc. iii d. c. in situ ( in capizzi, galati, s. d. fig. p. 68).

prio da actividade intelectual, com a qual aquela cidade cosmopolita se afirmava (DASZEWSKI, 2001, p. 266 - 281). Esta figura foi, entretanto, recentemente interpretada como sendo o retrato da Rainha Berenice II. Esta Thea synnaos personifica os diferentes pólos do poder dos Ptolomeus sobre o mar – na guerra e no comércio –, e sobre a terra, enquanto garante da prosperidade e do bem-estar (Idem, p. 267). Neste mosaico foram usadas tesselas de pedra, vidro e cerâmica. Observemos, ainda, mais alguns exemplos de mosaicos com personificações conhecidas no mundo romano. A “Província de Ásia”, de El Djem, século II / III, idealizada com base num modelo real, apresenta como atributo um arco e coroa torreada no cabelo, o que indica simbolicamente a sua riqueza em cidades (LAVAGNE, BALANDA, ECHEVERRÍA, 2000, fig. 49, p. 209). A dita “Dama de Cartago” é uma figura idealizada, de composição esquemática e simétrica, conferindo-lhe um ar majestático. É obra de um artista de menos recursos. Poderá representar a alegoria da Magnanimidade,

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fig.5 soteria . alegoria da salvação identificada com legenda. provém do frigidarium das termas de apolausis, de antioquia ( in berteli, 1993, fig. p. 33).

fig.6 mnemósine . villa romana de els munts (altafulla, tarragona). terceiro quarto do século ii d. c. museu nacional arqueológico de tarragona. espanha ( in lavagne et alii, 2001, fig. p. 171).

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da Renovação (ou outra personificação muito frequente na Antiguidade Tardia) ou a própria Imperatriz Teodora? O nimbo foi primeiro do Imperador antes de ser de Cristo e dos Santos. Podemo-nos interrogar se estamos perante um contexto político ou religioso. Os ricos brincos com pendentes suspensos das orelhas indicam-nos, em todo o caso, que estamos perante uma dama da corte que pertence certamente ao mundo bizantino (LAVAGNE, BALANDA, ECHEVERRÍA, 2000, fig. 50, p. 209). A cabeça de Oceano do Museu de Sousse, datada do século III, apresenta rosto tranquilo, majestoso, representado de frente, próprio de um deus. O acabamento pictórico da imagem, de um naturalismo impressionante, onde ressalta o brilho dos olhos e da cara molhada, foi realizado com tesselas extremamente finas (de 3 a 5 milímetros de lado), sendo um reflexo da excepcional mestria e refinamento da arte clássica (LAVAGNE, et alii, 2001, p. 160 - 161). A personificação de Ambrósia, num mosaico da Villa romana del Casale, de Piazza Armerina, Sicília, datada de antes do fim do séc. IV d. C., e in situ, apresenta-se-nos sob a forma de uma figura feminina idealizada, semi-nua, na qual sobressai o tratamento pictural da cabeça e da representação do peito (Fig.4). Por outro lado, a figura de Soteria, a Salvação, de Antioquia, na actual Turquia, datada do séc. IV d. C. (Fig.5), é um exemplo do carácter refinado da arte do mosaico nesta cidade e do grau de desenvolvimento da escola síria (BERTELLI, 1993, p. 15 - 16, 33). É apresentada como uma dama da corte, em dia de festa, adornada de colar de pérolas e bracelete, brincos e diadema de ouro e roseta cravejada de pedras preciosas, mostrando como a cabeleira era considerada como um elemento ao serviço da beleza, da sedução, da charis feminina (FICHEUX, 2006, p. 187). Esta representação é um sinal da exuberância barroca da arte do mosaico num importante pólo difusor do fim da Antiguidade. As características orientais tenderão para o apagamento do naturalismo helenístico. A renovação do uso das alegorias em época tardia poderá ter a ver com o facto deste tipo de representação não ofender nem o culto cristão nem os outros cultos existentes na sociedade romana. Entre os mosaicos portáteis, do tipo emblema, normalmente executados sobre tijoleira, são conhecidos, por exemplo, os bustos de Mnemósine (Fig.6), a personificação da Memória e mãe das musas, e de Euterpe, musa inspiradora da Música, datados do século II d. C., expostos no Museu Nacional de Arqueologia de Tarragona e provenientes da Villa romana de Els Munts, Altafulla (TARRATS, 2001, p. 170 - 173). Estamos perante um bom domínio da técnica e do modelado dentro de um esquema de representação artística que se repete. O mosaico parietal de Mnemósine é raro por conservar a tijoleira de suporte, apesar de ter estado sob o efeito de um incêndio. A figura exibe lúnula branca, sobre a farta cabeleira, que se estende sobre os ombros, atributo este caro a Afrodite (LAVAGNE, et alii, 2001, p. 170 - 171). O mosaico portativo de Euterpe conserva toda a policromia e exibe auloi e penacho de plumas azuis no alto da cabeleira (LAVAGNE, et alii, p. 172 - 173). De assinalar, ainda, a existência de um terceiro retrato com a representação da Musa Talia e um quarto emblema que, provavelmente, oferece o retrato do próprio proprietário, identificado como governador da Tarraconense (LANCHA, 2000, p. 127, nota 211).

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Estações do ano Vejamos agora o caso particular de algumas representações da figura humana, servindo de símbolos relacionados com a temática do tempo, em particular com as Estações do Ano. De facto, com a Paz de Augusto o prestígio e o poder imperial eram infindáveis e pareciam assegurar ao “mundo civilizado” uma paz duradoura. As figuras centrais de contextos iconográficos em mosaicos relacionados com a noção de tempo, tais como Fortuna Romanorum, Sol Innictus, Apolo, Auriga Vencedor e Orfeu, são evocadoras do bem-estar e do equilíbrio cósmico, em associação com as Estações do Ano, o ciclo zodiacal e os planetas. Ajudam, ainda, a transmitir a ideia da unidade e da ubiquidade do Corpus Imperii, pois são numerosos os textos que estabelecem íntimas relações entre a constituição do Império Romano e a noção de Cosmos. No século II d.C. foi acentuado o carisma sobrenatural do soberano, associado a Fortuna Romanorum, representada normalmente com uma cornucópia de abundância (QUET, 1980, p. 79). O elogio a Roma chega mesmo a transformar-se, então, em hino cosmológico. Ao evocar a regularidade dos ciclos cósmicos e a sucessão do tempo, evocam a Aeternitas que lhe é inerente. Na verdade, o rigor e o progresso da ciência matemática nos finais da República romana e no início do Império, coincidentes com os reinados de César e Augusto, permitiram calendarizar, através de uma rigorosa contagem dos ciclos lunar e solar, horas, dias, meses e anos normais e bissextos, sendo esse contributo civilizacional válido para todo o “mundo da pax romana”. O acerto ao mínimo pormenor só viria a ser conferido mais tarde pelo calendário gregoriano (GRENIER, 1969, p. 212 - 215). Estava, assim, anunciada e clarificada a ideia da recíproca dependência entre o homem e o universo e aumentava o interesse pela representação das noções abstractas do tempo em forma humana, ou seja, pelas alegorias (DUNBABIN, 1978, p. 161). As Estações do Ano, que assumiam para os Gregos um sentido espiritual e religioso, por evocarem o ciclo mitológico e cronológico do tempo, passam a ter, com os romanos, um sentido prático, apotropaico e evocativo de um ciclo vegetativo anual ininterrupto. O amor pelo Cosmos, suscitado pela ordem e beleza do universo, parece indissociável do amor por Roma e de Felicitas Temporum. As Estações do Ano são derivadas das Horae, divindades da natureza, porque presidem ao ciclo da vegetação, e divindades da ordem, dado assegurarem a estabilidade social, e das Gratiae (Cárites ou Graças) que espalham a alegria na natureza e no coração dos homens e até dos deuses (GRIMAL, 1991, p. 17, 235). A sua representação, quando assume a forma de busto, sobretudo feminino, leva, por vezes, apesar da técnica do mosaico apresentar grande dureza do traço, ao pormenor da figuração do ser humano observado simplesmente como tal. Observemos, como exemplo da variedade de recursos técnicos e artísticos, as Estações do Ano em alguns mosaicos tanto a ocidente como a oriente do mundo romano. A Primavera da Casa da Procissão Dionisíaca, do Séc. II d. C., do Museu de El Djem,

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aqui apresentada, é uma das Quatro Estações que figuram no triclinium (Fig.7). Trata-se da representação de um mulher jovem, exibindo grinaldas de rosas sobre o cabelo, que se prolongam em caracol sobre os ombros. Folhas verdes, provavelmente de loureiro, decoram o alto da cabeça (LAVAGNE, BALANDA, ECHEVERRÍA, 2000, fig. 47, p. 209). Trata-se de obra de um artista que domina o desenho ao natural. Como numa aguarela “apaga os contornos para dar leveza”. Vejamos, em contraponto outra representação da Primavera, da Casa do Sileno, datada de meados do séc. III, do Museu de El Djem, faz parte de um conjunto em que a figura central é Saturno (remetendo para o Génio do Ano), o que explica a presença das Estações do Ano à sua volta. Aqui o traço é duro, sendo os contornos marcados a negro. O tratamento dos olhos com pesadas olheiras e a simplificação do desenho são características do

fig.7 primavera. casa da procissão dionisíaca. século ii d. c. museu de el djem. tunísia ( in lavagne, balanda, echeverria, 2000, fig. 47).

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estilo da época dos Severos (LAVAGNE, BALANDA, ECHEVERRÍA, 2000, fig. 48, p. 209). Vejamos as Quatro Estações de um mosaico de Tripoli (Fig.8), sob a forma de quatro painéis figurativos em opus uermiculatum, alternando com outros tantos em opus sectile, de motivos geométricos, compostos de mármores africanos, datado do séc. III d. C., presente no Museu Arqueológico daquela cidade. O mimetismo da forma e expressão das quatro figuras aladas é contrastado com o tratamento pictural e pormenorizado da carnação, adornos, vestuário e atributos, o que lhes confere individualidade (BERTELLI, 1993, p. 37). Há aqui um estilo e uma solução de conjunto, apesar do esquematismo das imagens, da dureza do traço e do aspecto quase assustador de figuras aladas com asas de ave rapina. A Estação do Inverno do mosaico de Quintana del Marco, Léon, do séc. IV d. C., exposto no Museu Arqueológico Nacional de Madrid, é um emblema com busto de mulher ligeiramente inclinado para a direita, olhando para cima. Apresenta olhos muito expressivos que denotam alguma tristeza, acentuada por grandes olheiras e um ramo seco de caules dobrados, sobre o ombro esquerdo, símbolo da estação invernal. O fundo branco de escamas monocromáticas à esquerda é típico dos mosaicos do Baixo-Império (LAVAGNE, et alii, 2001, p. 62). Tem muito de convencional esta representação. São muito marcados os olhos, a boca, as olheiras e o atributo. De assinalar alguma desproporção entre o tronco e a cabeça. Nas Estações do Ano, na Casa dos Repuxos, em Conímbriga, datadas do último quartel do século II, primeiro quartel do século III, conservadas in situ, o Outono (Fig.9) é representado pela figura de um jovem coroado com cachos de uva branca e tinta e folhas de parra, de forma empastelada e pouco precisa, vestindo túnica amarela sem mangas, debruada a preto e com faixas a amarelo escuro, que é presa no ombro direito por uma fíbula circular. A quase ausência de atributos e o modo simples do tratamento das figuras não impedem, porém, que possam identificar-se as personificações uma vez que correspondem a fórmulas estereotipadas (OLEIRO, 1992, p. 118, 121). Neste mesmo conjunto, o Inverno (Fig.10) apresenta-se como uma mulher vestindo túnica negra com vivos vermelhos e orla branca. A pele é tratada com tesselas de cor rosa e os contornos do nariz, queixo, boca, olhos e sobrancelhas com linhas negras. Os olhos a branco, com a íris a amarelo e a pupila a preto, dão lugar à utilização de algumas tesselas de vidro. A expressão da figura é grave, triste e a cabeça coberta constitui-se como um dado atmosférico, com valor de atributo, próprio de uma estação fria (OLEIRO, 1992, p. 117, 121). Estas imagens de Conímbriga, apesar do seu esquematismo, são consideradas obras notáveis pela sua extrema simplicidade, modelação e brilho. Observemos de seguida, um género de representação mais liberto, devendo corresponder a uma festividade por altura das colheitas, no mosaico da Dança dos Génios das Estações, do Palacete bizantino da Via d’Azeglio, em Ravena, Itália, datado do séc. IV e conservado in situ. Trata-se de um grupo de dança em círculo, ao som de uma siringe, tocada por um músico, que se encontra em segundo plano. Em primeiro plano, de costas, mas com a cabeça de perfil, o Outono veste túnica branca ornada de bordados e exibe uma coroa de banquete. À esquerda, a Primavera apresenta-se de túnica rosa e coroa de flores na cabeça. À direita, vemos uma lacuna onde es-

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fig.8 estações do ano. quatro painéis figurativos de mosaico em opus vermicvlatvm alternando com outros tantos em opvs sectile , de motivos geométricos, compostos de mármores africanos. século iii d. c. museu arqueológico de tripoli ( in berteli, 1993, fig. p. 37).

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fig.9 outono. conímbriga. casa dos repuxos. último quartel do século ii, primeiro do século iii d. c. in situ . © fotografia de delfim ferreira. fig.10 inverno. conímbriga. casa dos repuxos. último quartel do século ii, primeiro do século iii d. c. in situ . © fotografia de delfim ferreira.


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tava a figura do Verão. Desta figura restam as mãos, as pernas e parte da coroa de espigas que tinha na cabeça. Em segundo plano, apresenta-se a figura do Inverno, completamente envolta num manto, com capuz verde-azul e coroa de canas. Todos os figurantes calçam sandálias, menos o Inverno que se apresenta de botas. O tocador apresenta-se, à semelhança do Outono, de túnica branca bordada. O instrumento que utiliza é a siringe (flauta de cana pluritubular) ou flauta de Pã, ainda hoje utilizada pelo capador e pelo amolador ambulante. O restauro evidenciou o número de tubos de que é composto. A cena passa-se num espaço fechado, como indicam os cordões de banquete na parte superior do painel. Esta cena, onde intervêm cinco figuras masculinas, é pouco tradicional e realista, sendo, presumivelmente, derivada de uma pintura de cavalete produzida na área de Constantinopla. O desenho é esquemático mas o efeito é luminoso, sendo que as sombras ajudam a dar movimento à dança. A técnica musivária é excelente, fazendo recurso, para além da pedra, à tessela de vidro e de ouro (no instrumento musical) e a vários artifícios dentro do claro-escuro (CALVANI, MAIOLI, 1995, p. 24 - 25).

Retratos ou alegorias nos mosaicos do Rabaçal ? Detenhamo-nos um pouco na análise dos dois conjuntos das Estações do Ano que chegaram até nós na Villa romana do Rabaçal (PESSOA, 1998, p. 29 – 36).

Estações do corredor oeste do Peristylum O conjunto que encontramos no corredor oeste do peristylum é constituído por quatro bustos femininos que se apresentam de frente, bem contrastados sobre fundo branco. Os seus atributos encontram-se de um lado e outro das figuras. As linhas e as sombras do desenho vão do preto ao amarelo, passando pelo cinzento, o vermelho, o castanho, o rosa, o verde e o azul. As figuras encontram-se dispostas duas a duas, para serem vistas no sentido da largura do corredor do peristilo, respectivamente a Primavera e o Inverno, a Norte, ao fundo do corredor, e o Outono e o Verão, a Sul, mais perto da entrada da habitação. A figura da Primavera apresenta uma lacuna ao nível do lado direito do pescoço, do ombro e do braço e lacunas menores ao nível da cabeça e na parte superior, do mesmo lado. A figura do Verão está quase intacta, excepto ao nível da face e do seu olho direito. A figura do Outono está completa e a do Inverno também. Os painéis das figuras são quadrados, medindo 55 cm de lado. Foram utilizadas uma média de 250 tesselas por dm2 na sua elaboração. O material utilizado, nos fundos e nas figuras, foi o calcário local. O vidro foi escolhido para representar as jóias.

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fig.11 e 12 primavera e verão. mosaico do corredor oeste do peristylvm da pars vrbana da villa romana do rabaçal, penela, portugal. segunda metade do século iv d. c. in sitv (in pessoa, 1998, p. 33 e 34. fotografias de delfim ferreira, 1991).

Primavera A Estação apresenta-se sob a forma de representação de busto, de frente, com a cabeça voltada ¾ para a sua esquerda e olhando na mesma direcção (Fig.11). Os cabelos são castanhos e estriados de cor-de-rosa, e terminam em ondulações ao nível das orelhas, colocando em evidência uma pequena madeixa dirigida à maçã do rosto, do lado direito. A cara é oval, cor-de-rosa pálido, e a expressão é séria; os olhos são redondos, grandes, abertos e em vermelho-escuro, com pequenas pupilas brancas, bem visíveis; as sombras estão distribuídas por todo o rosto, sendo que uma sombra mais escura acentua o queixo; o nariz é longo, direito e fino, mostrando pequenas narinas em cor de cinza esverdeado; o clauus é largo, de cor vermelho terracota, e decorado ao centro com um galão em vermelho-rosado e dois galões laterais em cinza-esverdeado. Os ombros são delicados e descaídos. A figura exibe, sobre a fronte, um diadema em forma de lua, o qual foi objecto de restauro na Antiguidade; pontos brancos sobre os cabelos sugerem o uso de alfinetes; dois brincos, constituídos por grandes pérolas brancas, adornam as orelhas; sobre o pescoço, um colar de pérolas brancas dá ao conjunto uma unidade estética. À sua esquerda, destacam-se duas rosas selvagens, de um tipo muito comum nesta região (cistus albidus ou roselha grande), sendo que a flor é composta por quatro pétalas e um centro amarelo. Por cima, três botões fechados terminam o ramo. À sua direita, vê-se uma fita de toucado, pronta a receber flores para embelezar o penteado.

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fig.13 e 14 outono e inverno. mosaico do corredor oeste do peristylvm da pars vrbana da villa romana do rabaçal, penela, portugal. segunda metade do século iv d. c. in sitv (in pessoa, 1998, p. 34 e 35. fotografias de delfim ferreira, 1991).

Verão Esta Estação apresenta-se sob a forma de representação de busto visto de frente, com a cabeça ligeiramente inclinada, voltada ¾ para a sua esquerda, sendo que o olhar segue na mesma direcção (Fig.12). Os cabelos castanhos-escuros, estriados de castanho mais claro e espessos, ligeiramente ondulados, estão penteados com risca ao meio. O rosto é redondo, de cor morena rosada. Os olhos são redondos, as sobrancelhas direitas e o nariz é triangular com narinas bem marcadas. A boca é acentuada por uma linha robusta e direita. O pescoço é largo, os ombros são arredondados e cobertos por uma túnica sem mangas, cinzenta esverdeada, drapeada em vários tons de cinza. Esta túnica apresenta ainda uma gola larga, adornada por uma fíbula redonda, sobre o seu ombro direito. O outro ombro está coberto com um manto de tecido vermelho, decorado por uma orla de quadrados amarelos. A cabeça está adornada com um diadema de pedras pretas incrustadas, rodeando a cabeça e ligado igualmente, a meio, por uma tira central. Das orelhas pendem brincos redondos, em metal amarelo, com pedras quadradas e pretas no centro, e outras mais pequenas, também pretas, em cada vértice do quadrado central. Sobre o pescoço vê-se um colar estreito de pedras, alternadamente pretas e castanhas; ao cimo do braço desnudado, vêem-se duas braceletes estreitas de metal amarelo. À sua esquerda é exibida uma cornucópia, sinal de abundância, de cor cinzenta esverdeada, dividida em cinco partes por linhas horizontais pretas, decoradas por pontos pretos

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ovais e adornadas por duas protuberâncias laterais, dispostas alternadamente de um lado e do outro da mesma. Uma larga abertura bordejada termina a parte superior, de onde saem dois frutos redondos de cor amarela, assemelhando-se a maçãs, figos ou pêras. Por cima, observa-se uma folha amarela, difícil de identificar, à qual estão ligadas duas espigas de trigo em posição horizontal. À direita, a superfície está decorada com duas flores amarelas, em forma de cálice tubular, e formas vegetais do tipo trepadeira, em cinzento-escuro, contornadas a preto. O preenchimento de todo o espaço disponível com motivos lembra o horror uacui.

Outono Apresenta-se, de frente, com a cabeça voltada ¾ para a sua esquerda, olhando na mesma direcção (Fig.13). Os cabelos castanhos-escuros estão apanhados em cima e atrás, por um grande laço amarelo ocre. Ao nível das orelhas o cabelo está entrançado e enrolado sobre si mesmo, para formar caracóis (madeixas enroladas em espiral) presos por ganchos. O rosto é oval com grandes olhos, que se apresentam meio fechados pelas pálpebras, de íris cinzentas e grandes pupilas pretas, e envolvidas por círculos de sombras por baixo de cada olho, e sobrancelhas castanhas, encurvadas e espessas. O nariz triangular com narinas bem marcadas e a boca direita esboçando um sorriso leve, transmitem uma imagem doce. As linhas do rosto são marcadas por um jogo de luz e sombra. Veste uma túnica cinzenta esverdeada, cuja gola aberta deixa visível o pescoço e a parte superior dos ombros, sendo contornada por um largo galão guarnecido de grandes pedras quadradas, pretas e castanhas, dispostas em linha sobre uma armadura de metal amarelo e pequenos pingentes, igualmente formados por pedras pretas, verdes, amarelas e brancas dentro de pequenos medalhões redondos de metal amarelo. Cobre-lhe os ombros um manto ou palla, de cor vermelho-bordéus, engalanado por uma orla mais clara. Sobre a cabeça usa um diadema em forma de cruz, decorado com pedras quadradas cinzentas e brancas. Ao meio do diadema, uma pedra quadrada preta e maior está engastada em metal amarelo e marca o centro do penteado. Os cabelos estão cuidadosamente apanhados, ao nível das orelhas, por ganchos decorados por grandes pedras quadradas pretas, engastadas em metal amarelo, e pérolas brancas em cada canto. Usa um colar justo, formado por grandes pérolas brancas, que se apresenta elegante e fino. Do seu lado esquerdo, ao nível do rosto, repousa um cesto de entrançado vegetal, com frutos e legumes amarelos e brancos, lembrando pêras. Por detrás do cesto surge-nos uma folha larga de acanto cinza-esverdeada, sendo o contorno do desenho da folha acentuado por nuance de cor mais escura. Do seu lado direito, apresenta-se-nos um cacho de uvas, de forma triangular, desenhado de modo muito geométrico, com bagos de cor clara cinza-esverdeada, pontuados pelo hilo, e ligados uns aos outros por traços amarelos, encimado por duas folhas de videira, uma vista de frente e a outra de perfil.

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Inverno Esta Estação do Ano está representada de frente com a cabeça voltada ¾ para a sua direita, olhando na mesma direcção (Fig.14). Os cabelos são curtos, penteados de forma irregular e de cor castanho-ruivo, virados para trás, divididos por um risco ao meio, sendo que uma pequena madeixa avança sobre a maçã do rosto, do lado esquerdo. O rosto é oval, cor-de-rosa pálido, a testa estreita e grandes olhos amendoados, contornados na parte inferior por sombras vermelhas. O nariz é longo, de forma triangular e com pequenas narinas bem marcadas, a boca é pequena e fechada, e o queixo é largo e redondo. O tronco apresenta-se-nos de ombros largos e está coberto por uma túnica cinzenta esverdeada, que termina com uma “gola aberta”, acentuada por uma linha branca. Quanto aos ombros, vêmo-los cobertos por duas faixas largas do clauus de cor vermelha-acastanhada, contornadas por galões decorados com pequenos triângulos amarelos. Sobre a cabeça, usa um largo diadema de pedras pretas quadradas embutidas em quadrados de metal amarelo, em baixo, e, por cima, vemos pontos brancos, semelhantes a alfinetes de pérola. Das orelhas pendem brincos de pérolas brancas e, à volta do pescoço estão dispostos três colares, sendo um justo ao pescoço, constituído por grandes pérolas brancas, e os outros dois por pedras azuis ou pretas, alternando com outras pedras acastanhadas ou vermelhas. Ao seu lado foi representado um cipreste (ou um pinheiro), sob a forma de um tronco estreito e ligeiramente encurvado, do qual saem pequenos rebentos. Tratar-se-á de uma variedade do cipreste Cupressus semper virens ou Cupressaceae, que tem ramagem de forma piramidal em direcção ao alto, ou do pinheiro de praia, Pinus pinaster maritima ou Pinaceae, que também pode apresentar uma forma piramidal? Foi ainda representada, do lado direito do busto, uma alcachofra do tipo Cynara scolymus ou Cynara cardunculus. Exibe folhas em rebentos de escamas, rebentos esses bem marcados a amarelo, cinza, verde e castanho. Este legume apresenta-se contornado a preto e exibe caule robusto e verde, ao qual se liga uma folha lateral vista de perfil, cortado obliquamente. A alcachofra está representada com grande realismo, como que pronta a ser consumida.

Análise e interpretação do conjunto A identidade das quatro figuras é-nos dada graças aos seus atributos. Três delas apresentam atributos mais recorrentes, passíveis de identificação sem qualquer dúvida: as flores, na Primavera, símbolos do dom da natureza; a espiga de trigo, no Verão, o cacho de uvas, no Outono, dois produtos próprios de grandes colheitas do ano. Alguns dos atributos são mais raros: para a Primavera, a faixa tecida com a qual se pode fazer uma grinalda de rosas, possível evocação da festa dos Rosalia; para o Verão, a cornucópia da abundância, vaso em forma de chifre, que se representa cheio de flores e frutos, símbolo da força criadora da natureza e da Fortuna Romanorum; para o Outono, o cesto cheio de frutos e para o Inverno, a alcachofra evoca os xenia com os quais o anfitrião presenteia os convidados. Por fim, temos o pinheiro ou a

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fig.15 primavera / verão e verão / outono, na cercadura do painel central de mosaico do triclinivm da pars vrbana da villa romana do rabaçal, penela, portugal. segunda metade do séc. iv d. c. in sitv ( in pessoa, 1998, p. 38, fotografia de delfim ferreira, 1991).

pinha do pinheiro, indicativa da estação invernal. As características dos atributos são ainda reforçados através do vestuário, o qual vai mudando de acordo com o ciclo do ambiente atmosférico, quente ou frio. Por outro lado, podem ainda observar-se diferenças subtis demonstrativas da evolução da idade, como sejam: a Primavera e o Verão apresentam um rosto mais claro enquanto o Outono e o Inverno, envolvidos em sombras pronunciadas, em particular em volta dos olhos, sugerem uma idade mais avançada. A Primavera apresenta-se fisicamente fina, delicada e de ombros gráceis. O Verão exibe o rosto e os braços cheios, em correspondência com o bem-estar e a alimentação abundante própria desta época do ano, enquanto o Outono mostra sombras no rosto, sinais de inquietação e de fadiga. Quanto ao Inverno, os seus ombros largos, as sombras escuras à volta dos olhos, contrastando com a palidez da pele, revelam ao mesmo tempo força e fadiga física. Antes de mais, o que sobressai nas Estações, aqui representadas, é o ambiente de riqueza e prosperidade que rodeia os actores que deram corpo a estas personagens, pertencendo a estratos sociais elevados, pois exibem jóias, penteados elaborados e roupas finas, também exuberantemente decoradas. Observemos que diferentes modelos foram utilizados pelos criadores dos mosaicos

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para a execução do conjunto das Quatro Estações. A Primavera e o Inverno mostram, contudo, semelhanças na representação do rosto, na postura e penteados, o mesmo acontecendo com o Outono e o Verão, que exibem um acentuado género feminino, sobretudo no desenho dos olhos. Comparando os quatro mosaicos constata-se, ao primeiro olhar, uma ampla paleta de cores, uma diversificação do tipo de jóias e uma exuberância de penteados e vestuário. Este facto confere uma grande unidade à obra, apesar da diversidade das imagens que serviram de base à sua realização. A posição dos atributos (flores, frutos, legumes, cereal, cestos, grinalda, árvore e cornucópia) sobre os espaços laterais sugerem que estes foram a última coisa a acrescentar à composição, sendo isto original no quadro da representação simbólica das Estações do Ano.

Estações do ano do centro do triclinium Do conjunto de imagens representadas no centro do triclinium (Fig.15), só uma parte chegou até nós, nomeadamente dois bustos representados de frente, sobre um fundo negro e cinza escuro. As estações apresentam, provavelmente, sobre a cabeça, atributos que encontramos repetidos nas cercaduras com enrolamentos de folhas de acanto: rosas, espigas e frutos não identificados (PESSOA, 1998, p. 39 – 41). As cores dominantes são o rosa, o beige-amarelado, o verde e o azul. As figuras encontram-se dispostas no sentido do movimento dos ponteiros do relógio. A maior parte dos motivos figurativos dos painéis não chegou ao momento da escavação, sobretudo a parte superior dos rostos e também a maioria da cercadura vegetal, sobre fundo negro. Conservam-se das Quatro Estações do Ano, apenas a parte superior da cabeça e o peito de uma figura, identificada como sendo a Primavera / Verão e a parte esquerda da cabeça (lado direito) da figura identificada como sendo o Verão / Outono. Sobre o lado esquerdo da composição, as duas outras estações, Outono / Inverno e Inverno / Primavera, desapareceram na totalidade.

Primavera / Verão Esta figura apresenta-se sob a forma de busto feminino, de frente, olhando para a sua direita (Fig. 15). A cabeça encontra-se coberta de cabelos cor-de-rosa penteados, descendo até parte da face e mesmo à maçã do rosto. O penteado é de risco ao meio, terminando o cabelo apanhado no alto da cabeça com uma espécie de laço, feito de uma fina fita cor-de-rosa, de onde sobressaem duas espigas de trigo amarelo, do lado direito da cabeça. A figura chegou até nós em mau estado de conservação. Resta-nos, do rosto, um olho cinzento e parte das sobrancelhas. Da túnica observamos, ainda, parte da orla do decote, decorado com uma linha de pontos brancos, lembrando pérolas. Por fora do enrolamento vegetal de folhas de acanto, que envolve a figura, são bem visíveis flores e botões de rosa, saindo um deles do cálice que decora o referido círculo vegetal.

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Verão / Outono A figura apresenta-se sob a forma de busto feminino, de frente, com a cabeça ligeiramente baixa e voltada ¾ para a sua esquerda, olhando nesta direcção. Os cabelos penteados com risco ao meio, cor-de-rosa, rodeiam o rosto e estão apanhados ao nível das orelhas, terminando sob a forma de uma trança em laço, no alto da cabeça. Vemos, ainda, sobre a fronte, uma faixa verde horizontal, à qual se prende uma pequena fileira de pontos brancos, podendo representar flores, uvas ou as pérolas de um diadema. Conserva-se do rosto, de cor rosa-amarelado, uma parte do seu lado direito, o olho, em forma de amêndoa, de cor cinzento azulado, a sobrancelha arredondada, o nariz e uma parte da boca, em jeito de sorrir. O rosto está modelado de luzes e sombras de forma pictural. Sobressaem do enrolamento vegetal que rodeia a figura, mais concretamente do seu lado direito, ornatos em forma de cornucópia, da qual extravasam espigas de cereal e gavinhas, de cor amarela.

Análise e interpretação do conjunto Identificamos este conjunto, ainda que nos faltem dois dos quatro bustos, como sendo o da sucessão das Estações (Fig.15). Os atributos visíveis são rosas e botões, anunciadores da metamorfose da natureza na Primavera, e as espigas de cereal, evocando o período de colheitas próprias do Verão, sendo que estas se encontram profusamente representadas junto dos enrolamentos de folhas de acanto, vistas de perfil. Antecederão os atributos, representados ao longo das cercaduras (rosas, na de cima, espigas de trigo, na do lado direito, uvas e fruto, na de baixo), a figura da Estação seguinte, ou estão dispostos após a mesma? A sucessão das Estações pode ser interpretada começando pela Primavera, daí a representação das rosas, decorando a cercadura de acantos enrolados, em cima, envolvendo no enrolamento do canto a figura da Primavera / Verão. Esta apresenta-se decorada, por fora, para além dos acantos e cálices, com flores e, por dentro, com pequenas espigas de cereal. A cercadura da direita é claramente evocativa da época das colheitas, dado que do enrolamento de folhas de acanto se soltam espigas de cereal maduro, repetindo-se este motivo até ao canto onde se encontra a figura que interpretamos como sendo Verão / Outono, à volta da qual, para além das referidas espigas maduras, parece estar representado um cacho de uvas e fruto carnudo. Parece-nos, assim, que os atributos (rosa, espiga de cereal e, porventura, cacho de uvas, fruto carnudo), ocupando cada ângulo, são repetidos ao longo da cercadura de enrolamentos de folhas de acanto, simbolizando a continuidade e a renovação perpétua das Estações. Interpretam-se, portanto, como sendo a expressão do movimento do tempo em forma de antevisão do futuro. O rosto da Primavera / Verão, muito danificado, é mais pequeno e mais jovem que o Verão / Outono, sendo comum evocarem-se as Estações através dos ciclos da idade. Este último apresenta largo sorriso, respirando bem-estar. Os penteados, ricamente

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ornados de efeitos e pérolas, revelam-nos a presença de damas elegantes e conferem um valor claramente social às imagens. Estas representações resultam do emprego de um modelo comum e constituem-se como uma unidade ao nível da forma, cor e execução.

Alegorias ou retratos ? O que nos é dado ver retratado nos mosaicos da Villa do Rabaçal são figuras mitológicas (Horae) ou personagens reais? Sem dúvida que estamos perante as alegorias das Estações do Ano, dada a presença inequívoca dos atributos que lhe são próprios. Mas o realismo do vestuário, das jóias e ornatos, bem como a expressão dos rostos destas figuras femininas, leva-nos a interrogar se estamos ou não perante o retrato de personagens reais que interagiram com a família e a vida da Villa. De notar que o uso do laticlavo (faixa ou banda larga de púrpura usada pelos patrícios sobre a toga, e mais estreita, o angusticlavo, usado pelos cavaleiros), pelas figuras da Primavera, Outono e Inverno, no mosaico do corredor oeste do peristilo da uilla do Rabaçal, poderá ser considerado como uma apropriação nobilitante dessa parcela de veste de cerimónia do mundo do poder temporal e espiritual. Trata-se do reforço da postura feminina que dignifica as retratadas e pode ser um sinal de valorização do estatuto social da mulher, próprio do Baixo Império. Sabe-se que nesta época, por exemplo, no direito romano os actos jurídicos passam a ser abertos à mulher, independentemente de qualquer autorização (VILLEY, 1973, p. 100).

Epílogo O que parece estar subjacente nas imagens das figuras dos mosaicos do Rabaçal e no “barroquismo” decorativo das molduras que as envolvem (Figs. 11-14) é o anúncio de um processo de mudança que atravessa a sociedade romana da 2ª metade do séc. IV d. C. No período imediatamente anterior a este, no qual Bizâncio se tornou Constantinopla, a partir de 330 d. C., os imperadores resplandecentes em ouro e jóias dominavam os cortesãos, cuja categoria era assinalada pela grandiosidade dos seus trajes (RACINET, 1994, p. 130). Estes elementos aqui presentes caracterizam um período de formação de uma corrente artística pré-bizantina, do séc. IV e V (que aqui será interrompida pelo domínio suévico nos séculos V e VI), cuja evolução ajuda a explicar o período da primeira idade de ouro da arte bizantina do séc. VI (CHICÓ, GUSMÃO, FRANÇA, 1962, p. 80). Esta apresenta-nos como exemplo paradigmático o mosaico da “Imperatriz Teodora e o seu séquito” (Fig.16), que se conserva na abside do altar-mor da basílica de S. Vital, em Ravena, Itália, datado de meados do século VI d. C. De notar, neste mosaico, que o peitoral de pendentes de uma das aias (a terceira da direita) é semelhante ao representado na figura do mosaico do Outono

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fig.16 imperatriz teodora e o seu séquito. mosaico da abside do altar-mor da basílica de s. vital, em ravena, itália. meados do século vi d. c. in sitv . © fotografia cedida pela scuola del mosaico di ravenna, 2007.

(Fig.13), no corredor oeste do peristylum da Villa romana do Rabaçal (BERTELLI, 1993, p. 80-81). De facto, no Rabaçal, já não estamos perante apenas as figuras magico-propiciatórias da preservação do equilíbrio cósmico e de renovação do ciclo anual da natureza terrafruto. É a corte reunida e o novo modelo de corpus imperii que aqui nos são evocados, aproveitando como suporte as figuras das Estações do Ano. O porte altivo, o traje cerimonial e a riqueza de jóias representadas constituem um importante meio de comunicação, reforçando o carácter áulico desta residência. Trata-se de um proprietário, provavelmente, com cargos, títulos, poderes e honras. Por esta altura, entre os costumes pagãos, o hábito da palestra dá lugar ao protocolo e à escolha de ambientes luxuosos, fechados, e o gosto da nudez sublime (que irá ser retomado na Renascença) dá lugar ao envolvimento do corpo por complicados vestuários e jóias magnificentes. Parece-nos, no entanto, que no Rabaçal o artista não está ainda separado do seu modelo. Estamos aqui, porventura, perante o retrato de familiares do encomendador. Voltemos ao mito da criação da pintura, segundo Plínio, que, como nos lembra José Gil, associa o poder de sobrevivência das imagens retratadas à sua carga afectiva (GIL, 1999, p. 13). Os “retratos” dos mosaicos da Villa romana do Rabaçal, descobertos em sucessivas campanhas de trabalhos arqueológicos com a participação de muitos voluntários, chegaram até nós graças ao abraço de afecto com que o tempo e a terra generosa os enlaçou.

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Resumo O Retrato de D. João I é um caso típico de obra indocumentada cujo destino português, como noutros casos, tem sido marcado por uma “fortuna crítica” tímida de perspicazes cometimentos analíticos face à peça mas plena de conjecturas e palpites gratuitos principalmente em termos autorais e cronológicos. O que proponho é uma breve revisão das contradições e subjectividades metodológicas desses exercícios historiográficos e uma abordagem da pintura segundo aquilo que nela efectivamente se vê, no verso e no reverso do painel. Para além disso, contribuir ainda para um aprofundamento do conhecimento do seu processo criativo através do que nela só se vê através de exames fotográficos à radiação infravermelha. Os novos dados e argumentos creio que hipotecam a possibilidade de a obra ser tão cronologicamente recuada como geralmente se tem dito e fragilizam também a sua usual consideração como pintura executada em Portugal.

palavras-chave retrato joão I aljubarrota cópia

Abstract The Portrait of D. João I is a typical case of an undocumented work whose Portuguese fate, like so many others, was determined by a timid “critical success” of clever analytical undertakings and yet was full of conjectures and free guesses, especially in terms of its author and date. I suggest a brief review of the contradictions and methodological subjectiveness of these historiographical exercises, as well as an approach to painting based on what is ultimately seen on the front and back of the panel. Furthermore, I propose to contribute to a better understanding of its creative process, by what is seen through photographic exams by infrared radiation. The new information and arguments, in my opinion, cast aside the possibility of the work dating so far back in time as is usually considered and the idea of it having been made in Portugal.

key-words portrait joão i aljubarrota copy


o retrato de d. joão i revisão crítica

j o s é a l b e rto se a b r a c a rva l h o Técnico do Museu Nacional de Arte Antiga, conservador da colecção de Pintura.

fig.1 retrato de d. joão i , 41 x 32 cm, mnaa, inv. 2006 pint. © imc/ddf. fotografia de josé pessoa.

Iconograficamente valioso, o Retrato de D. João I (Fig.1), só “descoberto” em 1877 por Joaquim de Vasconcelos num Museu de Viena e só incorporado na colecção do Museu Nacional de Arte Antiga em 1952, subsiste como um grande ponto de interrogação no quadro de problematização da pintura portuguesa do século XV,

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já de si fustigado pelo costume historiográfico local de que quanto menos se sabe mais se especula... O radical desconhecimento de informação histórica sobre a origem e percurso antigo da obra (o Kunsthistorischen Museum Wien nada sabia, ou nada disse, acerca do seu percurso anterior), conjugado com o rarefeito conjunto de dados que possuímos acerca da prática da pintura no longo reinado do Mestre de Avis (1385-1433), não a têm porém eximido a uma “fortuna crítica” de considerável extensão, demasiado assertiva e lamentavelmente delirante em múltiplos aspectos ­– ou melhor, e para ser mais exacto, em dois aspectos mais recorrentes: quem foi o autor da pintura e que datação é que se lhe deve atribuir. Confesso desde já, modestamente, não ter resposta cabal e esclarecedora para as duas questões. João Couto, museólogo prudente e sabedor, também a não tinha quando recebeu a peça no MNAA há já meio século, não deixando no entanto de frisar que não concordava com o seu antecessor, José de Figueiredo, numa atribuição do retrato a António Florentim (um dos dois documentados pintores italianos que estiveram ao serviço de D. João I). E que, acrescentava ele, se a pintura reflectia “algumas relações de parentesco com correntes picturais estrangeiras”, seria talvez para a “franco-flamenga” que se deveria dirigir a atenção dos estudiosos 1. Estes geralmente não seguiram a sugestão do antigo director do MNAA, antes se ocupando em palpites sobre qual dos mestres escassamente referenciados em torno do fundador da dinastia de Avis teria sido o autor do retrato, partindo geralmente do princípio de que este fora executado do natural, ou logo depois da morte do retratado, e em Portugal. Uns seguiram o partido do Florentim; outros do régio pintor Jácome, que já estava activo em Santarém por 13902 e fora colocado por Francisco de Holanda entre a plêiade das “águias” da pintura (como calhou a Nuno Gonçalves); outros ainda preferiram uma execução mais “nacional”, entregando a atribuição ao pintor Gonçalo Anes3; um outro historiador, por fim, creditando-o a um mestre de prosaico apelido chamado Diogo Gomes da Rosa, unicamente nomeado num discutido e anónimo documento dito “Do Rio de Janeiro”4. É esta última a tese mais curiosamente intrincada, pois que Diogo da Rosa seria afinal, por certas pretensas evoluções linguísticas, não outro senão o próprio… Jácome! – um mestre que deveria ser lombardo, isto é, uma espécie de italiano especial, dito mais permeável a influências pictóricas “franco-flamengas” (assim se integrando a sugestão de João Couto…). Em suma: a obra configurar-se-ia ao estilo “nórdico-francês”, de mão lombarda e executada em Portugal. Donde que, numa muito popular História da Arte em Portugal, editada nos anos 80, Mestre Jácome surja já aí classificado como um pintor “ecléctico”5 – classificação deveras extraordinária para um mestre de quem se não conhece, positivamente, obra alguma! Quanto ao problema da datação, creio que metodologicamente as abordagens não se apresentam mais perspicazes. Ora se adoptou o ingénuo processo do cálculo de idade do retratado fazendo coincidir a execução da obra com tal estimativa, ora se seguiu a hipótese de se tratar de um retrato póstumo conforme à inscrição latina que a moldura do painel apresenta referindo a condição defunta do rei (Haec est vera digne ac venerabilis memorie Domini Joannis defũcti quond(am) Portugalie no-

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1. João COUTO – “O retrato de D. João I no Museu Nacional de Arte Antiga”, Boletim do Museu Nacional de Arte Antiga, vol. II, fasc.4, Lisboa, 1953, pp. 3-6. 2. Para a actividade documentada de Mestre Jácome ver o recente artigo de Luís U. AFONSO – “Uma nota sobre Mestre Jácome, pintor régio de D. João I”, Artis, nº5, Lisboa, 2006, pp. 471-480. 3. É esta a original posição de Maria Julieta RUIVAL – “O ‘Retrato de Senhora’ do Museu Metropolitano de Nova York e as suas relações com o ‘Retrato de D. João I’ do Museu Nacional de Arte Antiga”, Belas Artes, 2ª série, nº 27, Lisboa, 1972, pp. 103-109. Cf. também na mesma publicação o artigo de Jorge SEGURADO – “O Retrato de D. João I existente no Museu Nacional de Arte Antiga”, pp. 5-14. 4. Cf. Dagoberto L. MARKL – “Mestre Jácome, pintor italiano, e o retrato de D. João I do Museu Nacional de Arte Antiga”, Poetas & Trovadores, Lisboa, 1983, pp. 3-4. 5. História da Arte em Portugal, vol. 6 (Dir. Dagoberto Markl), Edições Alpha, Lisboa, 1986 p. 140.


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6. Agradeço a observação ao parecer técnico de Miguel Garcia. 7. Cf. Saúl António GOMES – “A memória da Batalha Real de 1385”, Tempos e História, Colectânea de Autores, Comemoração dos 500 anos do Con celho e da Vila da Batalha, Leiria, CML e Magno Edições, 2000, pp. 37-75. Agradeço a Maria Antónia Amaral a indicação deste artigo.

bilissimi et illustrissimi regis ymago quippe qui dũ viveret de juberot victoria potitus est potentissima). A tradução da frase, num certo passo, não é porém unívoca. Lá estará dito, traduzindo, que “Esta é a vera imagem do defunto Dom João de digna e venerável memória outrora mui nobre e mui ilustre rei de Portugal que em sua vida obteve a muito poderosa vitória de Aljubarrota”; noutra versão, adoptada em certas abordagens da obra, a palavra “outrora” é substituída por “até há pouco”. A coisa faz a sua diferença, já que conduziu, neste último caso, a considerar o painel do reinado de D. Duarte (1433-1438)… Constituída, como o painel, por madeira de carvalho, a moldura pode bem ser contemporânea da pintura, revelando uma execução de muito boa qualidade, quer na perfeição dos encaixes, quer por apresentar arestas internas traseiras chanfradas 6. Porém, se a moldura pode ser original, a inscrição que corre ao longo de dois dos seus lados pode não partilhar esse estatuto. E não por razões de análise material, tecnológica ou de anacronismos de grafia, mas antes por uma invulgar opção pouco “artística”... Longa e descritiva, a inscrição latina da obra não é, com efeito, um elemento integrado na composição da pintura, um elemento organicamente equilibrado relativamente à imagem do retratado, como sucede em múltiplos retratos flamengos do século XV. Nestes casos (de Van Eyck a Memling), as inscrições originais pintadas nas molduras criam muitas vezes efeitos de trompe l’oeil e de mimesis epigráfica, são exercícios de realismo pictural bem calculados, dispondo-se sempre ou ao centro dos lados horizontais da moldura (em baixo, ou em cima), ou percorrendo a totalidade da moldura, adoptando uma centralidade clara e participando nas componentes de simetria da composição, conferindo à moldura um estatuto de campo de representação. Não é, de modo algum, o que se verifica no Retrato de D. João I. Aqui, a inscrição que identifica a personagem e faz o seu panegírico assume um carácter de “tabela” descritiva que desatende a estrutura compositiva da própria imagem, parecendo, na verdade, um acrescento à obra. Por outro lado, a nomeação, aí, da batalha de 14 de Agosto de 1385 como juberot victoria (“vitória de Aljubarrota”) é claro indício de que o teor da inscrição é bem mais tardio que tais acontecimentos e que a sua fonte não foi certamente portuguesa. De facto, como exemplarmente demonstrou Saúl António Gomes 7, o célebre embate entre castelhanos e portugueses foi sempre designado entre nós, desde a documentação das chancelarias às crónicas régias, desde o reinado do mestre de Avis até ao século XVII, como “Batalha Real” ou, simplesmente, a “Batalha”. As fontes espanholas também aludem à derrota militar sem mencionarem qualquer topónimo. Gomes atribui a génese da designação “Batalha de Aljubarrota” ao cronista francês Jean Froissart, que nas suas Crónicas se refere por vezes à “ville de Juberot” como local do confronto, demonstrando porém um conhecimento muito indirecto do assunto e carregando a descrição do acontecimento com muitos erros e inexactidões históricas e geográficas – depois ampliadas, por repetição, na produção historiográfica europeia. O baptismo da Batalha como “de juberot” ocorre assim fora das fronteiras portuguesas, em círculos exteriores e distantes — “Exteriores à micro-história do local e exteriores (…) às próprias realeza e aristocracias cortesãs portuguesas, quer

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fig.2 figura heráldica pintada no reverso do retrato de d. joão i . © mnaa. fotografia de teresa viana e susana campos.

de gerações que participaram corporalmente no evento, quer de algumas outras que lhe sucederam no decurso do século imediatamente seguinte”8. Incorporando a fórmula froissartiana, a génese da inscrição no retrato do MNAA assume também essa condição exterior e distante. Distante, provavelmente, também no tempo: a primeira edição das Crónicas de Froissart só ocorre c. de 1498, em Paris. Para recuar dessa data, o desconhecido mentor da inscrição teria de conhecer alguma das versões manuscritas que circularam durante o século XV. No centro do reverso do painel há também uma figuração interessante e que, dada a sua natureza heráldica, estranho nunca ter visto assinalada. Trata-se de um escudo de Portugal, pintado em proporções e cores fiéis à norma, e encimado por coroa real (Fig.2). Apresenta os escudetes laterais deitados e inclui na bordadura as quatro pontas da cruz flordelizada de Avis, por aqui se podendo qualificar como “espelho” heráldico da personagem representada na frente do painel. Mostra, todavia, uma disposição invulgar dos cinco besantes de cada escudete, que em vez de dispostos em aspa se distribuem em cruz grega, e uma forte incorrecção, inverosímil em âmbito português de realização, na forma e distribuição dos castelos, quais “peões de xadrez” surgindo deitados na parte horizontal da bordadura. Se o primeiro aspecto

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8. GOMES, ob. cit., p. 73.


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9. Muito agradeço a Susana Campos e Teresa Viana, técnicas de conservação e restauro do MNAA, a realização destas imagens.

não é absolutamente singular (os besantes no escudo do Anjo Custódio da Charola de Tomar, de c. 1510-1514, também adoptam a rara disposição crucífera), já o segundo configura uma incapacidade de entendimento “gráfico” da forma, uma interpretação distante e deformada do reportório canónico da heráldica portuguesa, um tanto à imagem do que sucede nas iluminuras de Jean de Wavrin, na Crónica de Inglaterra, reportadas a acontecimentos do reinado de D. João I, ou, para dar um exemplo actual, na bizarra interpretação dos castelos do escudo português, como uma espécie de pagodes, pelas fábricas chinesas de bandeiras durante o Euro 2004. Deste modo, creio poder concluir que, tal como a inscrição na moldura, o escudo real pintado no reverso do retrato deverá ser uma marca não só adicionada à obra como também de feitura “exterior”, estranha ao conhecimento corrente, dentro das fronteiras portuguesas, dos preceitos e costumes heráldicos aqui adoptados. Ambos funcionam como signos de mera identificação do retratado, não como elementos de “representação” do monarca, antes como “legendagem” da iconografia da peça. Se pode ter coisas “a mais”, a pintura também não está isenta de poder ter coisas “a menos”… A pose do retratado, em busto, a três quartos, de mãos postas em atitude religiosa de veneração, o olhar direccionado para o lado esquerdo do observador, orientam para esse lado, vazio, o potencial fulcro comunicativo do próprio modelo. Na verdade, se as tipologias do retrato de devoção quatrocentista aqui fossem aplicadas como critério, forçoso era então concluir-se que esta figuração do monarca português não seria, originalmente, uma obra isolada, devendo tratar-se do painel direito de um díptico onde, à esquerda, figuraria um imagem da divindade – uma representação de Cristo ou da Virgem Maria, como era de uso. Não me arrisco contudo, além desta alusão de possibilidade, por caminhos do que agora pitorescamente se chama de “cripto-história”. A peça não apresenta, na sua estrutura material, indícios dessa possibilidade – não há vestígios de dobradiças na moldura (os dípticos eram portáteis e um painel fechava sobre o outro) – e a taxonomia dos dípticos de devoção não é uma ciência exacta estabelecida por Panofsky… A sua tipologia corrente é conhecida, mas o pragmatismo formal e compositivo da produção pictórica nos séculos XV e XVI, em função das modas e dos mercados, é também proverbial. Porém, será ainda na dimensão material da obra que podemos recolher novos dados para a exploração interpretativa do seu processo criativo. Pela primeira vez, a pintura foi analisada através de uma série de fotografias de infravermelho9, dispositivo que geralmente permite observar, com mais ou menos nitidez, o desenho subjacente à(s) camada(s) cromática(s) e que foi executado sobre a preparação aplicada ao suporte para regularização da respectiva superfície. O tipo de desenho que tal exame veio desvendar é exclusivamente do género “poncif”, isto é, constituído por uma série de pontos dispostos segundo uma orientação linear que define o contorno de uma forma. Esse desenho é obtido pela aplicação de um desenho autónomo ou molde perfurado e ao qual se aplica um pigmento em pó quando disposto sobre a preparação. Trata-se de um antiquíssimo processo de copiar um motivo figurativo para outro suporte através de um desenho picotado. No Retrato de D. João I, esse processo é amplamente identificável em todos os pormenores essenciais constitutivos da fisio-

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fig.3-7 pormenores do retrato de d. joão i em fotografia de infravermelho. © mnaa. fotografia de teresa viana e susana campos.

nomia do personagem (desenho dos olhos, da orelha, do nariz, da boca, de grande parte do contorno do rosto), bem como na definição da forma e contorno dos dedos das suas mãos postas (Figs. 3 à 7). Para além disso, não há vestígios de outro tipo de desenho, mais espontâneo ou “à mão levantada”, usual para definir volumes ou valores de luz e sombra na composição e orientadores do processo criativo na fase de execução pictural.

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10. Cf. Luís KEIL – “Os retratos de personagens portuguesas da colecção do Arquiduque Fernando do Tirol”, Belas Artes, XV, Lisboa, 1946, pp. 18-22. 11. Henrique de Campos Ferreira LIMA – “Dois retratos de D. João 1º em Viena d’Austria. Breves notas iconográficas”, Arqueologia e História, vol. I, Lisboa, 1922, pp. 183-188.

Esta nova evidência significa que o retrato foi executado a partir de um modelo exterior, que a sua criação resulta de um processo de cópia do essencial da composição, da sua componente, por assim dizer, mais especificamente individualizada – a imagem do retratado. E indicia a forte probabilidade de esta pintura não ser uma composição original, de que se trata afinal de uma cópia. Essa circunstância vem naturalmente questionar e fragilizar, radicalmente, a ideia de poder tratar-se de um retrato do “natural” e coloca agora novas interrogações quanto à cronologia provável da obra (possivelmente bem mais tardia do que se tem dito). É conhecida uma outra versão deste retrato em Viena de Áustria, divulgada por Ferreira Lima em 1922 (Fig.8). Foi executada sobre papel ou pergaminho, tem dimensões mais reduzidas (13,5 x 10,5 cm) e pertencia, como parece ter também sucedido ao painel do MNAA, à colecção de Ambrás do arquiduque Fernando do Tirol. Esse pequeno retrato de D. João I integrava uma galeria de idênticas representações de vultos ilustres das casas europeias aparentados com os Habsburgo, e nela se incluíam outros protagonistas da história de Portugal entre os séculos XV e XVI10. Diz Ferreira Lima acerca dos dois retratos joaninos: “A tradicção de Vienna dá-os ambos como copiados no século XVI, de um original que, nesse tempo [de Maria de Borgonha] existiu no mosteiro da Batalha”11. A asserção é demasiado vaga e não merece, como

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fig.8 retrato de d. joão i , 2ª metade do século xvi (1575?), 13,5 x 10,5 cm, museu histórico de viena de áustria. © arquivo do mnaa

nunca mereceu, especial crédito. Mas não deixa de ser intrigante, à luz dos novos dados, a menção ao painel de Lisboa como uma cópia do século XVI – a contracorrente do que sempre foi a tendência historiográfica dominante de atribuir à obra uma datação recuada à primeira metade do século XV. O próprio estilo de execução, esquemático na rigidez da figuração e muito pobre de subtilezas pictóricas quanto ao modelado e à luz, creio que deve ter induzido a tal cronologia recuada, à consideração da obra como um “primitivo” dos mais antigos do património português.

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12. Comentário da ficha da peça no catálogo da XVII Exposição de Arte, Ciência e Cultura, Conselho da Europa, Lisboa, 1983, Núcleo da Casa dos Bicos.

Não se levou em conta que tais características podiam, em vez disso, indiciá-la como uma cópia algo mais tardia, onde outros supostos elementos de cronologia – a inscrição na moldura, o escudo no reverso, glosando as armas portuguesas ainda antes da sua reforma por D. João II – não são, como já acima ficou explicado, parâmetros validamente operativos nesse domínio. Recordo muitas vezes, quando tenho de me pronunciar sobre este obscuro Retrato de D. João I, o breve comentário de Vítor Pavão dos Santos acerca do essencial da representação: “A expressão do monarca é mais de apatia que de concentração”12. Sempre estive de acordo com esta incisiva observação, mas é agora, no desenho de decalque que quase irredutivelmente qualifica a pintura como uma cópia, que percebo melhor as razões da desinteressante apatia devota deste mestre de Avis.

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Resumo O bem conhecido programa, tanto arquitectónico quanto iconográfico, concebido por D. João I para o seu monumento sepulcral e de D. Filipa de Lencastre, indicia algumas originalidades que rompem decisivamente com as práticas seguidas em Portugal ao longo do século XIV. A construção de uma capela autónoma, destinada exclusivamente a panteão de uma linhagem régia, a representação dupla do casal sobre a tampa da arca, a ausência de qualquer sinal de sagrado e a figuração do rei como soldado, o miles chiristianus, são algumas das principais novidades concretizadas pela exemplo joanino, tornado assim paradigma no contexto tumular quatrocentista.

palavras-chave d. joão i tumulária retrato soldado arca conjugal batalha paradigma

Abstract The well known programme, both architectural and iconographic, requested by D. João I for his and D. Filipa de Lencastre’s sepulchral monument, emphasizes some of the novelties that definitively break through from the practices followed in Portugal in the 14th century. The building of an autonomous chapel, dedicated exclusively to a royal pantheon, the double representation of the couple on top of the sepulcher, the lack of any sacred sign and the representation of the king as a soldier, the miles christianus, are some of the main innovations displayed here, thus becoming a paradigm to 15th century sepulchral monuments.

key-words d. joão i sepulchral monument portrait soldier couple battle paradigm


o retrato de d. joão i no mosteiro de santa maria da vitória

um novo paradigma de representação*

j oa n a r a môa Bolseira da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (F.C.T.).

j o s é custó d i o v i e i r a da si lva Docente da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (Universidade Nova de Lisboa).

* Este artigo resulta da investigação decorrente do projecto Imago (POCTI/EAT/45922/2002), financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (F.C.T.), e em que os autores são participantes. 1. É o caso das capelas de Bartolomeu Joanes, na Sé de Lisboa (c. 1324); de João Gordo, na Sé do Porto (c. 1333) e de Domingos Joanes e Domingas Sabachais, em Oliveira do Hospital (1341), ou da Capela dos Mestres da Ordem de Santiago, em Alcácer do Sal (de 1333). Em relação ao clero, o caso mais notável (até porque mais facilmente os bispos se mandavam tumular no interior das respectivas sés, como sucede de forma exemplar em Coimbra) é, sem dúvida, o do arcebispo de Braga D. Gonçalo Pereira, que institui e manda construir, em 1334, na sua catedral, uma capela funerária, a Capela da Glória, para seu uso exclusivo.

O bem conhecido programa, tanto arquitectónico quanto iconográfico, concebido por D. João I para o seu monumento sepulcral, indicia algumas originalidades que rompem decisivamente com as práticas seguidas em Portugal ao longo de todo o séc. XIV. Aliás, o próprio modo escolhido para o revelar constitui também, desde logo, uma originalidade, se não no instrumento usado – o testamento – ao menos na invulgar forma, feita de grande minúcia e detalhe. De facto, no seu testamento, redigido no paço de Sintra a 4 de Outubro de 1426, D. João I, a par da explicitação, na forma costumeira, das suas derradeiras vontades, alonga-se também em minuciosas considerações relativas tanto ao Mosteiro de Santa Maria da Vitória quanto ao processo a seguir no seu enterramento e ainda aos usos e restrições a dar à capela funerária. A construção de raiz de uma capela autónoma, destinada exclusivamente a panteão de uma linhagem régia, é uma inovação relativamente ao costume até aí seguido pelos monarcas portugueses. Na verdade, e ao contrário de vários membros da nobreza que, ao longo do século XIV, se haviam antecipado na erecção de capelas, anexas a templos, com funções funerárias exclusivas1, os reis da primeira Dinastia tinham-se limitado a aproveitar espaços, tanto externos quanto internos, de igrejas pré-existentes: é o caso das galilés à entrada dos templos (a de Santa Cruz de Coimbra utilizada por D. Afonso Henriques e D. Sancho I, a de Alcobaça por D. Afonso II e D. Afonso III), de espaços interiores de igrejas – a nave central (de S. Dinis de

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2. Consulte-se, a este propósito, SILVA, José Custódio Vieira da, «Da Galilé à capela-mor: o percurso do espaço funerário na arquitectura gótica portuguesa», O Fascínio do Fim, Lisboa, Livros Horizonte, 1997, pp. 45-59; e, do mesmo autor, «Memória e Imagem. Reflexões sobre Escultura Tumular Portuguesa (Séculos XIII e XIV), Revista de História da Arte, 1, Instituto de História da Arte-Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, 2005, pp. 52-55.

fig.1 túmulo duplo com jacentes de d. joão i e d. filipa de lencastre. batalha. mosteiro de santa maria da vitória. capela do fundador. © projecto imago. fotografia de josé custódio vieira da silva.

Odivelas pelo rei D. Dinis, de Santa Clara-a-Velha de Coimbra, pela rainha D. Isabel), a capela-mor (da Sé de Lisboa, por D. Afonso IV), o transepto (de Alcobaça, por D. Pedro e Dona Inês de Castro) ou, finalmente, o coro monástico (de S. Francisco de Santarém, por D. Fernando)2. O rei D. João I, ao optar por construir uma capela destinada exclusivamente a panteão da sua linhagem, inovava em relação a todos os reis seus antecessores, circunstância que ganha maior amplitude pelo facto de, não estando prevista no projecto

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3. Do testamento de D. João I parece poder deduzir-se que é nesse preciso ano de 1426 que ele se decide pela construção de uma capela para se sepultar, quando afirma «…E esto seja na cappela moor, assy como ora ella [a rainha] jaaz, ou na outra que nos ora mandamos fazer, despois que for acabada». Testamento de D. João I, de 4 de Outubro de 1426. Publ. in GOMES, Saúl António, Fontes Históricas e Artísticas do Mosteiro e da Vila da Batalha (séculos XIV a XVII), Vol. I, Lisboa, IPPAR, 2002, p. 135. 4. «…nymguem se lamçe nem soterre demtro no jaziiguo que nos mandamos fazer em a nossa capella, em alto nem no chãao, salvo se for Rey destes rregnos. E mandamos que pellos jazyguos das paredes da capella todas em quadra, asy como sam feytas se posam lamçar filhos e netos de rreix e outros nom. (…) E doutra guisa se nom posa nehuum lamçar nos jaziiguos da dita nossa capella asy dos de cima que apropriamos para os rreix como dos outros darredor della que apropriamos aos filhos e netos dos rreix, salvo leixamdo aa dita capella o terço de todollos bens e cousas que asy quiserem leixar ao dito Moesteiro pella guisa suso dita.» (Testamento de D. João I, id., pp. 138-139). Apesar de tudo, as últimas palavras deste excerto testamentário parecem deixar em aberto a possibilidade de outras pessoas, que não reis ou filhos de reis, poderem usufruir da capela de D. João I como espaço de tumulação, desde que legando o terço de todos os bens ao Mosteiro da Batalha. 5. São eles, da direita para a esquerda, o infante D. Pedro (1392-1449) e sua mulher Dona Isabel de Aragão, o infante D. Henrique (1394-1460), o infante D. João (1400-1442) e sua mulher Dona Isabel, e o infante D. Fernando (1402-1443). As edículas da parede virada a nascente estavam ocupadas pelas capelas de cada um destes infantes, enquanto na virada a poente se dispunham armários para repositório das respectivas alfaias e paramentos litúrgicos. No final do século XIX e inícios do século XX, trasladaram-se para túmulos colocados nesta última parede e mandados então executar à semelhança dos originais quatrocentistas, os restos mortais dos reis D. Afonso V (1432-1481) e D. João II (1455-1495) e do príncipe D. Afonso (1475-1491).

inicial do Mosteiro da Batalha, denunciar de forma clara a intencionalidade consciente da sua edificação3. É o que se depreende também das palavras muito firmes e incisivas de D. João I, constantes uma vez mais do seu testamento, para se restringir o uso da capela apenas a outros reis de Portugal, os únicos autorizados a usufruir desse espaço para se sepultarem em alto ou no chão, e a filhos e netos de reis, nos jazigos das paredes4. A par desta originalidade, esse espaço (que ficou conhecido por Capela do Fundador) assumia-se também, no requinte da sua arquitectura concebida e executada pelo segundo arquitecto do Mosteiro da Batalha – mestre Huguet, como primícias do tardo-gótico que em vários países da Europa há mais tempo se vinha desenvolvendo. A sua planta quadrangular, evoluindo ao centro para um octógono, proporciona a elevação de uma abóbada estrelada em cuja chave central pontificam as armas de D. João I: assim disposta sobre o túmulo conjunto dos dois esposos régios, essa abóbada transforma-se em autêntico dossel glorificador das suas pessoas. Ainda hoje impressiona a atmosfera de luminosidade serena que ilumina o grupo escultórico do casal régio, à volta do qual, sob amplas janelas e respeitando a organização definida por D. João I, se dispõem, na parede virada a norte, as arcas tumulares de quatro dos seus filhos5.

fig.2 túmulo duplo com jacentes de d. joão i e d. filipa de lencastre. jacentes-pormenor. batalha. mosteiro de santa maria da vitória. capela do fundador. © projecto imago. fotografia de josé custódio vieira da silva.

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A arca tumular de Dom João I e de Dona Filipa de Lencastre O moimento ou monumento funerário mandado executar por D. João I para acolher, em arca única, os seus restos mortais e os de D. Filipa de Lencastre, sua esposa, constitui a segunda originalidade que importa desde logo assinalar. Trata-se de um sarcófago exento, de pedra calcária, constituído por uma grande arca paralelepipédica assente sobre oito leões, com os dois jacentes dos tumulados sobre a tampa única, extensos epitáfios laudatórios de cada uma das personagens nos dois faciais maiores e decoração heráldica e fitomórfica nos dois menores. As dimensões da arca, verdadeiramente excepcionais – 375cm (de comprimento) X 170cm (de largura) X 107cm (de altura), sem contar com os suportes, que lhe acrescentam com esta última medida 77cm –, ajustam-se convenientemente à realidade de nela se reunirem, mais até do que dois corpos, dois ataúdes distintos (no cumprimento de uma determinação expressa exarada em testamento pelo próprio rei D. João I6), separação que, contudo, dada a composição do monumento numa arca e tampa únicas, apenas transparece nos jacentes e nos baldaquinos individuais que os cobrem7.

fig.3 d. joão i. jacente-pormenor. batalha. mosteiro de santa maria da vitória. capela do fundador. © projecto imago. fotografia de josé custódio vieira da silva.

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6. “Item mandamos que noso corpo se lamçe no Moesteiro de Samta Maria da Vitoria, que nos mandamos fazer com a rrainha dona Felipa, mynha molher, a que Deus acreçente em sua glorya, em aquell moymento em que ella jaaz, nom com os seus ossos della, mas em huum ataude, asy e em tall guisa que ella jaça em seu ataude e nos em o noso, pero jaçamos ambos em huum moymento, asy como o nos mandamos fazer” (GOMES, Saúl António, ob. cit., pp. 134-135). 7. Esta deposição das ossadas em dois ataúdes distintos – em conjunto com a individualização dos dois baldaquinos e a grande altura da arca, que não permite visualizar do solo os dois jacentes – poderá ser a razão pela qual Frei Luís de Sousa se refere à presente arca tumular como sendo “dous moimentos tão juntos, que parecem hum só” (História de São Domingos, Porto, Lello e Irmãos, p. 637). Esta observação tem sido tomada à letra por alguns historiadores que, em continuidade, afirmam ser o actual sarcófago uma segunda versão do túmulo primitivo de D. João I e de D. Filipa de Lencastre: “Os túmulos reais seriam outros no passado”, afirma, sem margem para dúvidas, Maria Helena da Cruz Coelho (D. João I, Rio de Mouro, Círculo de Leitores, 2005, p. 290), na linha do que já anteriormente avançara Maria José Goulão: «duas arcas tumulares encostadas uma à outra, unidas por uma tampa comum e posteriormente refeitas num só bloco» (“Figuras do Além. A escultura e a tumulária”, História da Arte Portuguesa, vol. II, Lisboa, Círculo de Leitores, 1995, p. 171), por sua vez seguindo na esteira de Saúl António Gomes (“Percursos em torno do Panteão dinástico de Avis”, Biblos, vol. LXX, Coimbra, 1994). No entanto, nenhum destes historiadores avança com qualquer indicação cronológica para essa hipotética segunda versão do monumento ou para as razões da sua feitura, limitando-se a aceitar a observação de Frei Luís de Sousa. A clareza da ordem de Dom João I, deixada no seu testamento, relativamente à feitura de “huum moymento”, a trasladação dos seus restos mortais e da esposa em 1437, um ano após o passamento do rei (significando com probabilidade que a arca estava já pronta), a ausência aparente de quaisquer motivos para o incumprimento de


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tal determinação régia, a observação atenta (e fundamental) do próprio moimento, impedemnos de aceitar aquela opinião. De resto, se assim fosse, porque razão se aproximariam deste segundo modelo que hoje podemos observar, de arca e tampa únicas, e não desse outro primitivo, composto de duas arcas, todos os outros sarcófagos em que reconhecemos a influência mais ou menos directa do novo paradigma inaugurado na tumulária por D. João I? Note-se, de resto, que o corte visível entre os jacentes na tampa de um dos monumentos de mais exacta cópia do modelo joanino – o túmulo de D. Duarte e de D. Leonor de Aragão –, foi feito aquando da deslocação da arca para as Capelas Imperfeitas já no século XX, não relevando, por isso, de qualquer proposta inicial de individualização. 8. SOUSA, Frei Luís de, ob. cit., pp. 663-664 e 668-669. A extensão dos dois epitáfios, que Frei Luís de Sousa transcreve na totalidade (tanto na língua latina original quanto na correspondente tradução para a língua portuguesa), não permite, pela economia deste artigo, que aqui procedamos à sua transcrição. 9. Cfr. BARROCA, Mário Jorge, «Armamento medieval português. Notas sobre a evolução do equipamento militar das forças cristãs», Pera Guerrear. Armamento Medieval no Espaço Português, Palmela, Câmara Municipal de Palmela, 2000, p. 67-67. Apenas falta, compreensivelmente, na representação do arnês completo de D. João I, a manopla ou guante da mão direita, por receber com ela a mão de Dona Filipa de Lencastre, e a protecção da cabeça, por ostentar, em seu lugar, a coroa de rei. 10. LOPES, Fernão, Crónica de Dom João I, Barcelos, Livraria Civilização-Editora, 1983, vol. II, p. 2. 11. CORREIA, Vergílio, “A Arte do Século XV”, Obras, vol. II, Coimbra, Universidade de Coimbra, 1949, p. 126. 12. DIAS, Pedro, “O Gótico”, História da Arte em Portugal, vol. 4, Lisboa, Publicações Alfa, 1986, p. 131.

Apresentadas numa comunhão que se quer sublinhar e é reforçada pelo toque das respectivas mãos direitas, as estátuas jacentes dos monarcas fundadores da dinastia de Avis não deixam de marcar, na sua individualidade não menos óbvia de autênticas figuras retabulares – cada qual sob seu baldaquino e apoiada em mísula própria – as duas metades de um conjunto, harmonizado pela moldura contínua que, envolvendoas, define os limites da tampa e assim sublinha a sua unidade. O rebordo da tampa encontra-se decorado com motivos vegetalistas (como vegetalista é também o friso que o separa, na base, da arca propriamente dita) entre que se interpõem as divisas repetidas – por bem e y me plet – de D. João I e Dona Filipa de Lencastre, respectivamente, tornadas por este recurso simultaneamente singulares e indissociáveis, num jogo que é o que anima, de resto, todo o discurso iconográfico e ideológico corporizado neste túmulo. A decoração da arca tumular limita-se, sob o ponto de vista iconográfico, conforme já avançámos, aos temas heráldico e vegetalista, concretizando-se o primeiro nas armas da Ordem inglesa da Jarreteira, que ocupam o facial da cabeceira, e o segundo num desenho leve de caules entrançados de frondosa folhagem, inciso no facial dos pés. Os lados maiores da arca encontram-se, por sua vez, cobertos em toda a extensão por longos epitáfios laudatórios de cada um dos reis (em referência individual disposta no lado do monarca respectivo), mandados «entalhar n’ella por el-Rei dom Duarte seu filho», conforme adianta Frei Luís de Sousa, na referida História de S. Domingos8. Sobre a tampa, que os ampara como se de uma parede vertical se tratasse, encontram-se, em decúbito dorsal, os jacentes de D. João I e de Dona Filipa de Lencastre. O jacente masculino enverga armadura completa, o chamado arnês branco, situação que define uma nova originalidade protagonizada pelo túmulo de D. João I. É a primeira vez, com efeito, que um jacente se apresenta totalmente revestido de armadura, correspondendo à novidade da introdução no país do arnês integral, fenómeno verificável apenas no fim do século XIV, inícios do século XV9. Sobre a armadura, D. João I enverga um tabardo (também ele novidade na representação de jacentes) que lhe desce até aos joelhos, decorado, no peito e nas mangas, com as armas de Portugal (assim repetidas três vezes), formadas pela cruz flordelisada, os castelos e as quinas – representação que resulta da decisão de transformar a heráldica régia, levada a cabo por D. João I, de acordo com a informação de Fernão Lopes: «Este foy o Rey que enhadeo a cruz nas armas de Portuguual, porque a ordem de que elle era Mestre traz huũa cruz verde em campo branco por armas»10. A cabeça, coroada e sem cabelo visível, de orelhas pequenas e olhos abertos, repousa sobre duas almofadas idênticas no tamanho, sem decoração nem borlas. Reconhecível «pela massicez, a espessura da gorja, o volume do rosto, a nitidez da arquitectura facial», conforme a descrição que dela faz Vergílio Correia – afirmação sustentada pelo contraste que reconhece entre este jacente e o de D. Filipa de Lencastre –, a cabeça de D. João I resulta de uma opção realista do escultor, desejoso de «bem retratar os fundadores da dinastia de Aviz»11. Este entendimento de que se trata de um realismo assumido, continuando a ser sublinhado por Pedro Dias12, ganha contornos algo ambíguos na afirmação de Maria

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José Goulão, quando entende por tratamento realista a preocupação do escultor em fornecer um retrato dos monarcas13. É precisamente a necessidade de desfazer esta ambiguidade que leva Maria Helena da Cruz Coelho a afirmar que o rosto de D. João I é perfeitamente idealizado, não tendo nada de realista, na medida em que não reflecte de modo nenhum a doença e a idade avançada (76 anos) que fariam decerto a realidade da face do rei aquando da sua morte14. Neste ponto, importa dizer que, se se pode falar de um certo grau de idealização, no sentido de uma preferência dada ao tratamento da figura do monarca na plenitude da sua vida e das suas faculdades (mais do que da sua juventude, pois trata-se da representação de um homem maduro, de meia idade), sobretudo se compararmos este retrato com outros produzidos na mesma época, nomeadamente em França (onde se explora já o realismo da representação através da modelação da máscara funerária), não poderemos, por outro lado, deixar de referir a qualidade estética do rosto de D. João I, representado com detalhes que lhe imprimem um extraordinário sentido de vida, numa evolução clara relativamente ao tratamento estereotipado dos fácies dos jacentes do século XIV, mesmo dos de mais elevada qualidade15. É, portanto, uma expressão de grande serenidade, humanidade e maturidade de decisão, aquela que transparece neste rosto real, o rosto de um líder que «não era sanhudo nem cruell, mas mança e byninamente castiguava: asy que ambas as virtudes que no Rey deve daver, a saber, justiça e piedade, eraõ em elle compridamente»16. Esta é, em síntese, a imagem que Fernão Lopes, parco em palavras, constrói, literariamente, de D. João I; esta a imagem que o escultor eternizou porventura na mais expressiva memória material deixada do rei – o seu jacente, em seu túmulo. Estamos, de qualquer modo, perante uma das ambiguidades (ao menos em relação à forma como se entretecem hoje as nossas representações mentais) que caracterizam o mundo da representação medieval. O naturalismo que se pressente nos rostos de D. João I e D. Filipa de Lencastre não tem a ver com o sentido de fidelidade na reprodução dos fácies dos retratados, antes no realismo da imagem social, simbólica e ideológica destes personagens. O que está em causa não é a representação do indivíduo como hoje, em termos de retrato, a concebemos; o que está em causa é a sua caracterização social, dada através da imagem/retrato evocativa do poder e da memória que lhe corresponde e que assim é eternizada. Naturalismo e idealização, unidos em aparente paradoxo, são, pois, duas faces representativas de uma só e mesma realidade17. Esta dualidade de opostos parece aplicar-se também à representação do jacente propriamente dito. Com efeito, aquela vivacidade quase familiar do rosto de D. João I contrasta, em certa medida, com o formalismo da composição corporal. A pose do rei, se bem que propiciada pela dureza do arnês completo que enverga, é uma pose de estado, algo rígida. A mão esquerda segura um estoque colocado ao centro do corpo, com folha de secção quadrangular18 e punho decorado com as armas de Portugal e da Ordem de Avis, envoltas num encordoado; o braço direito estende-se para receber, na sua mão, a mão direita que D. Filipa de Lencastre lhe oferece. Enquanto

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13. «…os jacentes, apesar de terem um tratamento cuidado de espelharem a preocupação de retratar os monarcas...» (GOULÃO, Maria José, ob. cit., p. 170). Em continuidade, Maria José Goulão levanta o problema dos prováveis restauros sofridos pelos jacentes que, por essa razão, pouco terão a ver com o seu aspecto primitivo. De qualquer modo, e para além de alguma contradição com a afirmação anterior, não se adianta nenhum argumento ou prova concreta para esta última observação. 14. COELHO, Maria Helena da Cruz, ob. cit., p. 290. Esta observação estende-se também à representação de Dona Filipa de Lencastre, cujo rosto, segundo Maria Helena da Cruz Coelho, não possui ‘realismo’, uma vez que em nada condiz «com uma morte devido à peste». 15. É o caso, por exemplo, do belo jacente de Domingos Joanes, na Capela dos Ferreiros da igreja matriz de Oliveira do Hospital. 16. LOPES, Fernão, ob. cit., pp. 2-3. Importa sublinhar que Fernão Lopes, no retrato literário que traça de D. João I, nem por uma vez refere qualquer característica física, qualquer minudência ou sinal individualizador da aparência física do rei. 17. Conforme já escrevemos, «a figuração dos jacentes é realizada não através de um retrato (no sentido moderno do termo) mais ou menos conseguido, mas por meio de uma imagem que procura fornecer a idealização que cada uma dessas personagens entende ser, perante os olhos da sociedade, a mais adequada a si própria e ao grupo a que pertence» (SILVA, José Custódio Vieira da, «Memória e Imagem – Reflexões sobre Escultura Tumular Portuguesa (séculos XIII e XIV)», Revista de História da Arte, 1, Lisboa, Instituto de História da Arte-Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, 2005, pp. 56-57. 18. Não se trata de uma espada propriamente dita, como tem sido várias vezes escrito, muito menos de um ceptro, como escreve Mário Barroca (ob. cit., p.100). Pensamos que se trata de um estoque de cerimónia ou estoque real, insígnia que representava o poder e a justiça e que o Condestável levava ao alto e fora da bainha diante do rei, em cerimónias de maior aparato (cfr.


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Enciclopédia Universal Ilustrada, vol. 22, MadridBarcelona, Espasa Calpe, 1978; Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, vol. X, Lisboa-Rio de Janeiro, Editorial Enciclopédia). 19. CORREIA, Vergílio, ob. cit., p. 126. A propósito do baldaquino, convém dizer que ele não é (pelo menos no caso português) atributo de realeza, como por vezes vem referido em diversos historiadores. Os dois únicos jacentes de reis conservados do século XIV – o de D. Dinis, na igreja de Odivelas, o de D. Pedro, na igreja de Alcobaça – não possuem esse atributo, ao contrário exactamente de um número considerável de jacentes de damas e cavaleiros que, esses sim, o ostentam.

fig.4 d. filipa de lencastre. jacente-pormenor. batalha. mosteiro de santa maria da vitória. capela do fundador. © projecto imago. fotografia de josé custódio vieira da silva.

os pés assentam sobre uma mísula de formulação vegetalista tardo-gótica, a cabeça é protegida por um desenvolvido e elegante badaquino, cuja proposta de microarquitectura imita «interiormente, pelas nervuras das abóbadas, e exteriormente pela sobreposição de corpos fenestrados e contrafortados de botaréus e arcobotantes, uma construção ogival de quatrocentos, que sugere um modelo miniatural da própria Capela do Fundador, desprovida da agulha que primitivamente a dominava»19. Baldaquino e mísula contribuem, em conjunto, para claramente conter a imagem de D. João I num espaço bem delimitado da tampa da arca em que se expõe. Colocado à direita do rei, o jacente feminino de D. Filipa de Lencastre veste túnica sob manto, uma e outro decorados com um desenho levemente inciso de motivos vegetalistas, o segundo preso no peito por um pequeno firmal de composição também floral. A cabeça, coroada e sem véu (numa representação de grande novidade, senão mesmo inédita), que permite a visibilidade dos cabelos curtos da rainha, repousa sobre duas almofadas, maiores do que as de D. João I, mas, tal como estas últimas, totalmente despojadas em termos decorativos. A expressão de D. Filipa de Lencastre, de olhos abertos e lábios finamente lavrados, acompanha a do rei no sentido da serenidade e no naturalismo dos pormenores, aspectos que tornam ainda mais evidente a articulação do rosto com o tronco, ligados por um alto pes-

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coço que Vergílio Correia considera marca inequívoca da ascendência britânica da rainha20; no entanto, ele repete-se de forma mais ou menos pronunciada nas figuras femininas dos túmulos conjuntos derivados do dos primeiros reis de Avis, como um sinal modelar de elegância. É de novo um sentido de beleza ideal e de dignidade da função social aquele que transparece neste rosto, de qualidade muito próxima, na sua modelação, do de D. João I. De resto, o tratamento de toda a figura conforma-se a uma imagem convencional de grande formalismo, ou seja, como esposa devota e fiel (os dois grandes atributos de uma rainha cristã), D. Filipa de Lencastre segura, com a mão esquerda, um livro de orações – o atributo da devoção piedosa –, para com a direita tocar a mão do marido – o sinal da fidelidade conjugal. Contrariando até um certo naturalismo na disposição das vestes que fora conquistado já em alguns jacentes no século XIV, o sentido de verticalidade no tratamento plástico do jacente da rainha é absoluto, constituindo-se como manifestação, uma vez mais, desse jogo dúbio que constrói largamente o fascínio da escultura tumular medieval, entre a ambiguidade da representação horizontal do jacente e o hieratismo de alguém que é apresentado, ao alto, em atitude de vida. Por contraste, no caso de D. Filipa de Lencastre esta formulação ambígua é total, uma vez que não se verifica qualquer cedência à noção de uma posição horizontal do jacente.

20. «A cabeça da rainha, pequena e regular, enquadrada por massas de cabelo ondeado descidas até à nuca, emerge sobre um pescoço alto de britânica, a face simpática e uma serenidade amável, como que contendo um sorriso.» (CORREIA, Vergílio, ob. cit., p. 126).

fig.5 armas de d. joão i e d. filipa de lencastre. extradorso dos baldaquinos. batalha, mosteiro de santa maria da vitória. capela do fundador. © projecto imago. fotografia de josé custódio vieira da silva.

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21. LOPES, Fernão, ob. cit., vol. II, p. 3.

Sugerindo um enquadramento idêntico ao de D. João I, um desenvolvido baldaquino, de igual formulação arquitectónica e decorado também no extradorso com as armas da rainha, protege-lhe a cabeça, enquanto uma mísula, de base vegetalista, lhe suporta os pés, totalmente escondidos pela longa túnica. A perfeita união dos monarcas de que este monumento quer ser expressão inequívoca, ainda que contida nos limites de um formalismo conveniente à elevada condição daqueles personagens, dá, em larga medida, sentido, nos elementos em que se manifesta, ao novo paradigma que esta peça inaugura na escultura tumular medieval portuguesa. Com efeito, a apresentação dos reis num túmulo conjunto, por um lado, e o elemento de afirmação conjugal que as mãos dadas corporizam, por outro, constituem, no campo da referida produção escultórica, para além de uma novidade, um verdadeiro modelo de representação que inspirará a perpetuação da memória de outros casais, inclusivamente de casais nobres exteriores à realeza – como é o caso (talvez, entre todos, o mais exemplar) de D. Pedro de Meneses e D. Beatriz Coutinho, tumulados na Igreja da Graça, em Santarém, num monumento formal muito próximo daquele mandado executar por D. João I. De um modo geral, os historiadores têm reconhecido esta adopção de um modelo tumular conjugal, inusitado em Portugal, como o resultado de um escolha deliberada com finalidades propagandísticas – a afirmação do casal como exemplo de virtude marital e base sólida de uma nova dinastia, igualmente modelar e virtuosa, que os reis continuam a tutelar depois da morte, através da sua reunião na Capela do Fundador do Mosteiro de Santa Maria da Vitória. Significativo parece-nos, de qualquer modo, o facto de Fernão Lopes, hesitante no traçar do retrato do rei (o que faz sob um ponto de vista meramente psicológico, de pendor moralista e apoiando-se nas palavras de outros autores, mais próximos do monarca), reservar lugar considerável à caracterização da relação matrimonial que D. João I manteve com D. Filipa de Lencastre, acompanhando, nesta preocupação, o programa do próprio túmulo: «Não se pode dizer deste o que feamente se repremde em alguũs Reix que como asy seja quue nenhuũ homẽ adur he abastamte pera hũa molher, pero elles leixamdo as suas e naõ sendo de nenhuũaa, poes lhe huũa naõ avomda, emborulhamse com outras em gramde periguo de suas almas e escamdolo do povo; mas ho louvor deste em semelhante feito he muito de notar, porque tanto se austeve e castiguou de tall viçio, despoes que tomouu por parceira a [muy esplamdeçente per linhagem e costumes] Rainha dona Felipa, posto graõ casa de fremosa molheres trouvese quoanto livremẽte em semelhante feyto poderá cumprir seu desejo. Homrou muito e amou sua molher de onesto e saõ amor»21, conclui Fernão Lopes, em tom perfeitamente moralista. A inexistência de qualquer modelo anterior de tumulação conjugal (embora, como já dissemos, se possa reconhecer, em certa medida, como antecedentes a colocação conjunta de esposos em capela funerária própria, ao longo do século XIV), tem orientado os historiadores de arte na procura de um referente estrangeiro que, de modo mais directo, possa ter inspirado a opção seguida por D. João I. No quadro dessa investigação, e apesar da aproximação morfológica apontada por Vergílio Correia relativamente ao túmulo de Carlos o Nobre de Navarra e de Leonor de Castela,

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fig.6 túmulo com jacente de fernão gomes de góis. oliveira do conde. igreja matriz. fig.7 túmulo com jacente de fernão teles de meneses. coimbra. tentúgal. igreja do mosteiro de são marcos. © projecto imago. fotografias de josé custódio vieira da silva.

sua mulher, obra de Janin de Lome, de Tournai, existente na Catedral de Pamplona (e que, segundo explicita o autor, Dieulafoy supõe inspirado, por sua vez, no moimento de Felipe o Ousado)22, tem sido comum identificar aquele modelo com o país de origem da rainha D. Filipa de Lencastre, a Inglaterra, onde era vulgar este tipo de túmulo conjunto23. De qualquer modo, a verdade é que foi sob a influência do modelo inaugurado em Portugal pelo túmulo de D. João I e de D. Filipa de Lencastre que outros casais se tumularam, originando a constituição de um grupo específico e significativo da escultura funerária portuguesa quatrocentista. Representativos desta realidade são, para além do já referido monumento de D. Pedro de Meneses e D. Beatriz Coutinho (Santarém, século XV - meados), os túmulos do rei D. Duarte e da rainha D. Leonor de Aragão (Mosteiro da Batalha, século XV - primeira metade), de Pêro Esteves Cogominho e Isabel Pinheiro (Igreja da Oliveira, Guimarães, século XV - segundo quartel) e de D. Fernando de Meneses e D. Brites de Andrade (igreja de Santa Clara, Vila do Conde, século XV - segundo quartel). Uma outra importante novidade desta composição tumular dos reis fundadores da dinastia de Avis é o facto de nela se encontrar praticamente ausente, pelo menos numa referência imediata, qualquer sinal identificador do sagrado. Desapareceram, sobre a tampa, os anjos que, ao longo do século XIV, muitas vezes surgiam a acompanhar ou a amparar com delicadeza o tumulado; desapareceram, nas faces da arca, as iconografias do sagrado que, naquele mesmo período (e prolongando-se pelos séculos XV e XVI), quase sempre introduziam, total ou parcialmente, este referente do sagrado nos monumentos tumulares. No caso do túmulo conjunto de D. João I e de D. Filipa de Lencastre, a sacralidade apenas é sugerida, em pequeno aponta-

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22. CORREIA, Vergílio, ob. cit., p. 125. 23. «Como se sabe, D. Filipa de Lencastre era inglesa e o peso da cultura e dos costumes britânicos foi intenso na corte de Lisboa, devido à sua acção. Não é de estranhar que também na construção do túmulo, o que só aconteceu depois da morte da rainha, se tenha optado por um tipo muito divulgado na sua pátria» (DIAS, Pedro, ob. cit., p. 131).


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fig.8 e 9 túmulo com jacente de rui valente. faro. sé. © projecto imago. fotografias de josé custódio vieira da silva.

24. Os restauradores oitocentistas do Mosteiro da Batalha retiraram, de forma consciente, todos os elementos definidores da religiosidade do espaço da Capela do Fundador, a começar pelo altar que se situava aos pés do túmulo do casal régio, entre as colunas do octógono, e os restantes altares, situados nos arcossólios da parede esquerda da capela, dedicados aos infantes, de que resta somente um vestígio de pintura mural naquele outrora associado ao infante D. Pedro.

mento, pelo Livro de Horas fechado, que a rainha segura com a sua mão esquerda, e também pelos baldaquinos que, apesar de tudo, encerram alguma (mesmo que ambígua) noção de sagrado24. As novidades e a projecção do moimento dos primeiros reis de Avis não se esgotam, contudo, na inauguração de um novo paradigma de tumulação conjugal, nem a sua conformação se revela subsequente, em exclusivo, de uma importação estrangeira. Assim, note-se como a própria apresentação do monarca, revestido, como dissemos já, de arnês completo, configura uma nova imagem do rei: ele é agora, por excelência, o chefe militar, porque foi em campos de batalha, em particular no de Aljubarrota, que D. João I ganhou em definitivo a legitimidade de se sentar no trono de Portugal. Esta imagem de rei-soldado amplia-se e adquire uma maior profundidade quando expressão do miles christianus, actor excelso na luta em defesa da fé que, de modo expressivo, se concretiza, neste período específico da História portuguesa, nos confrontos mantidos com os muçulmanos no Norte de África, particularmente numerosos entre os anos de 1418 e 1419. É, portanto, este contexto novo, historicamente iniciado com a tomada de Ceuta, que dá sentido, complementarmente àquele de afirmação das virtudes maritais de que falávamos, ao novo modelo de representação proposto no túmulo de D. João I, cuja figura jacente se apresenta com armadura completa (e não já de túnica e manto, como no século anterior), com estoque de cerimónia (que, embora tipologicamente diferente da espada empunhada pela nobreza no século XIV, aprofunda esse sinal de poder e de justiça que os senhores reclamavam para si) – em suma, “armado asim como andaua na guerra dos mouros”, conforme se expressa, numa afirmação de

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enorme significado (até porque relativamente tardia), Rui Valente, no seu testamento, em 146425. Este é, assim, o modo de apresentação mais usual que vemos concretizarse nos jacentes masculinos da nobreza quatrocentista (apenas o estoque do jacente batalhino, por que atributo régio, é substituído pela espada), quer os de túmulos conjuntos, quer os tumulados em situação individual: no primeiro caso, estão D. Pedro de Meneses (Santarém, m. 1437) e o rei D. Duarte (Batalha, m. 1438); no segundo caso, estão Fernão Gomes de Góis (Oliveira da Conde, m. 1459), o infante D. Henrique (Batalha, m. 1460), Rui Valente (Faro, c. 1460), D. Duarte de Meneses (Santarém, m. 1464), Fernando Casal (Alhos Vedros, m. 1476), D. João de Albuquerque (Aveiro, m. 1485-1486) e Fernão Teles de Meneses (Tentúgal, finais do século XV). Analisando este fenómeno artístico, cujo alcance se projecta muito para lá da pura dinâmica das formas, deparamo-nos, afinal, com a demonstração porventura mais expressiva da abrangência e da eficácia, na sociedade portuguesa quatrocentista, de todo um ideal de cavalaria medieva tardiamente ressuscitado que, no século XV, entra em contradição (constituindo mesmo um autêntico paradoxo) com a modernidade que a abertura ao mundo desconhecido proporciona, para construir uma dimensão fundamental e absolutamente original da realidade portuguesa no dealbar da empresa dos Descobrimentos. Neste contexto de determinação das novidades expressas e enraizadas pelo túmulo dos primeiros reis da dinastia de Avis, não podemos deixar de insistir, ainda que em breve apontamento, sobre o inusitado da representação da cabeleira descoberta de D. Filipa de Lencastre, numa assumpção definitiva da proposta mais tímida do jacente de Domingas Sabachais (em Oliveira do Hospital), cujo véu não cobre a totalidade dos cabelos, bem como a valorização do livro como único atributo. Embora este último não represente por si só qualquer originalidade, uma vez que os jacentes femininos trecentistas (como os existentes na Sé de Lisboa) são representados, normalmente, com Livros de Horas abertos, a articulação do livro fechado com a pose do jacente de Dona Filipa de Lencastre apela directamente para a imagem da Rainha Santa Isabel, com túmulo na igreja de Santa Clara-a-Nova de Coimbra.

A arca tumular de D. Pedro de Meneses e de Dona Beatriz Coutinho Entre os túmulos que com maior fidelidade reproduzem o novo paradigma fundado pelo monumento funerário de D. João I e D. Filipa de Lencastre, conta-se, como dissemos, o de D. Pedro de Meneses e D. Beatriz Coutinho. Situado na Igreja da Graça, em Santarém, no braço direito do transepto, compõe-se de uma arca paralelepipédica, com decoração heráldica nos quatro faciais, assente sobre oito leões e com os dois jacentes sobre a tampa, única e de rebordo cuidadamente trabalhado com motivos heráldicos (o mote do tumulado), vegetalistas (entrançados de ramos de carvalho) e figurativos (de que são exemplo os anjos representados no lado da cabeceira).

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25. Com túmulo na Sé de Faro, o respectivo jacente faz jus ao seu desejo, já que se apresenta também de arnês completo, nos mesmos moldes do de D. João I. O monumento de Rui Valente, que constitui uma das descobertas mais recentes da arte medieval portuguesa, tem a originalidade de ser feito em gesso, situação que, até ao presente, é de um ineditismo total; ao mesmo tempo, coloca a região algarvia na rota dos monumentos medievais com jacente. Sobre este assunto consulte-se, na Revista Monumentos, 24, Lisboa, Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, 2006, os artigos de José Custódio Vieira da Silva (A Capela de São Domingos e o monumento funerário de Rui Valente da Sé de Faro, pp. 84-91) e de Fátima de Llera (A Capela de Rui Valente na Sé: estudo para a salvaguarda do monumento funerário, pp. 92-97).


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26. É Dionísio David quem propõe esta cronologia, citando Carlos da Silva Tarouca que se apoia, por sua vez, na leitura do testamento de D. Leonor: datado de 1452, nele se percebe que o túmulo não fora ainda sequer iniciado àquela data, facto que Dionísio David conjuga com a realidade de D. Fernando, marido de D. Leonor (portanto genro de D. Pedro de Meneses), ser referido nos epitáfios inscritos no túmulo como Conde de Arraiolos e Marquês de Vila Viçosa, título que apenas recebeu a 25 de Maio de 1455 (DAVID, Dionísio M. M., Escultura Funerária Portuguesa do Século XV, Dissertação de Mestrado (polic.), I Parte, Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, [1989], pp. 26-27). 27. TAROUCA, Carlos, «A Graça de Santarém», Brotéria, Vol. XXXV, 1942, pp. 409-10, cit. in Dionísio David, ob. cit., pp. 26-27. 28. Vários foram os autores a insistir na aproximação (evidente) entre os túmulos de D. Pedro de Meneses e de D. João I. Vergílio Correia (Três Túmulos, Lxa, Portugália, 1924, p. 44) e Afonso Dornelas (História e Genealogia, Lxa, Typographia da Livraria Ferin, 1913-24, vol. 4, p. 55) consideraram mesmo a existência de artistas comuns na realização das duas peças. Em 1995, Maria José Goulão continuou a atribuir a feitura daquele primeiro túmulo a um qualquer artista da Batalha, datando-o de cerca de 1437 (ob. cit., p. 173), apesar da tese, em nosso entender bem fundamentada e convincente, acerca da consumação do mesmo na década de 50, exposta por Dionísio David, em 1989 (vd. nota supra 27). O que é verdadeiramente surpreendente é este túmulo apresentar semelhanças tão profundas com o de D. João I, atendendo às (sensivelmente) duas décadas que os separam na sua execução. Certamente que não terá sido o mesmo artista, antes o modelo foi seguido muito de perto.

Foi este túmulo mandado executar por D. Leonor de Meneses, filha de D. Pedro de Meneses e de D. Margarida de Miranda, sua primeira esposa, tendo-se concretizado provavelmente entre os anos de 1455 e 146226. Falecida em 1452, Dona Leonor não terá acompanhado a execução do monumento mas teve o cuidado de deixar expressas as suas intenções e os moldes em que aquele devia ser composto, no testamento que mandou redigir poucos dias antes da sua morte: “...no mesmo lugar que eu ordeno, porão suas armas tôdas e letreiro de boa memoria e da muita merce que Deos lhe fez, em boas andanças que lhe deu, e como sempre venceu e nunca foy vencido, segundo tudo cumpridamente e melhor puder ser. E suas bandeiras e armas d’estandarte sobre o muimento estem pendurandas (...) o qual muimento seja de obra de suas batalhas e guerras dos mouros e seja da pelleja do terço d’Alemanha e desbarate que elle fez e grande fazanha”27. O verdadeiro programa iconográfico desejado por D. Leonor, explicitando a sua preocupação com a perpetuação das virtudes militares de D. Pedro, vemo-lo cumprir-se, afinal, quase só na imagem jacente do tumulado, numa apresentação de clara inspiração no túmulo joanino (e, de resto, sem qualquer dado específico de individualização ou qualquer inovação relativamente a este último), e na cabeça de negro representada entre as patas de um dos leões de suporte do túmulo, que alude directamente às suas funções militares desempenhadas no mundo africano onde o conde vivera muitas das suas «boas andanças» e consolidara, em grande parte, o seu prestígio como guerreiro e estratega28.

fig.10 túmulo com jacentes de d. pedro de meneses e d. beatriz coutinho. santarém. igreja da graça. © projecto imago. fotografia de josé custódio vieira da silva.

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29. Assim se compõe o brasão do tumulado: «cortado de um traço, partido de dois, o que faz seis quartéis: o I, III e IV [de oiro], dois lobos passantes sotopostos [de púrpura] (Vilalobos); o II, IV e VI [de oiro], quatro palas [de vermelho] (Lima); e sôbre o todo de [oiro] liso (Meneses). Timbre: cabeça de cervo esfolada, com sua pele, formando esta uma sorte de paquife. (...) A divisa repetida em várias partes do mausoléu era o famoso ALEO. (...) O novo brasão foi adoptado por êstes Meneses, evidentemente, para se distinguirem dos outros Meneses de Cantanhede». Quanto ao brasão de Dona Margarida «é um escudo em lisonja, partido, ao I as armas do Conde, ao II uma aspa acompanhada de quatro flores de lis (Miranda), e o de D. Beatriz, tambêm em lisonja, só difere do precedente em ter no II cinco estrêlas de cinco pontas (Coutinho)» (FREIRE, Anselmo Braamcamp, Brasões da Sala de Sintra, vol. I, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1966, pp. 122 e 127, respectivamente).

fig.11 túmulo com jacentes de d. pedro de menezes e d. beatriz coutinho. santarém. igreja da graça. © projecto imago. fotografia de josé custódio vieira da silva.

No que respeita à decoração da arca, podemos considerá-la circunscrita ao tema da heráldica, já que os entrançados vegetalistas que preenchem os espaços deixados vagos pela representação das armas integram, afinal, a repetição continuada do mote de D. Pedro, constituído pela palavra aleo e repetido pela arca num total de dez vezes. A decoração substantiva, embora em articulação com este motivo, é representada pelos brasões de D. Pedro de Meneses (nos faciais menores e no facial maior da direita)29, de D. Margarida de Miranda, primeira mulher de D. Pedro, e de D. Beatriz Coutinho, segunda mulher (no facial maior da esquerda), ambas tumuladas com o conde neste monumento. Sobre a tampa, dispõem-se as figuras jacentes de D. Pedro e de D. Beatriz, numa definição de verticalidade e com uma palpitação de vida muito próximas das que conformam as estátuas dos primeiros reis de Avis, de cuja qualidade não só igualmente se aproximam como até, porventura, suplantam. D. Pedro de Meneses, filho de D. João Afonso Telo de Meneses, Conde de Viana, e neto do Conde de Ourém, foi 1º Conde de Vila Real e 2º de Viana, títulos que, contudo, o rei só lhe reconheceria depois de algum tempo de regência bem sucedida em Ceuta, de que foi o primeiro capitão. Foi ainda Alferes do infante D. Duarte, futuro rei, «e sempre amado delle, e honrado, ante que fosse Capitão, e muito mais depois que o foi»30. O jacente de D. Pedro de Meneses, de corpo forte, pescoço curto e cabeça maciça, enverga armadura completa, com tabardo até aos joelhos, decorado com as suas ar-

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30. ZURARA, Gomes Eanes de, Crónica do Conde Dom Pedro de Menezes, Porto, 1988 [reprodução fac-similada do exemplar existente na Biblioteca Pública de Braga (cota H.G. 1065 P.)], p. 18.


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31. Idem, ob. cit., p. 16. 32. Idem, ob. cit., pp. 17-18. 33. Em relação à representação da face do mesmo, aparentemente idealizada e modelar, a avaliação mais correcta fica demasiado limitada pelo elevado grau de deterioração em que o calcário de que é feita se encontra.

mas pessoais, no peito e nas mangas, numa apresentação, como dissemos, não só concordante e muito próxima da de D. João I, como também – e curiosamente – fiel à descrição que de D. Pedro deixou Zurara, na crónica que lhe dedicou, onde o refere como «homem em que ouve meãa estatura, corpo largo, e fortes membros»31. Em continuidade, o cronista narra o papel activo que o conde desempenhou na defesa da presença portuguesa em África, de tal modo cheia de peripécias «que dezasseis annos trouxe huma cota vestida continuadamente, até que a rompeo per alguns lugares, como se fôra sayo de pano, porque muitas vezes se acertava pelejar duas vezes no dia, e assy porque rondava casy todallas noites a Cidade, e assy acabou em ella com grande honra»32. É, portanto, como imagem evocadora de todo este brilhante percurso militar e da correspondente ascensão social que podemos falar de realismo na composição do jacente de D. Pedro de Meneses33. A cabeça, de cabelo curto e orelhas pronunciadas, repousa sobre duas almofadas, isentas de qualquer decoração, sendo protegida por desenvolvido baldaquino de delicada composição micro-arquitectural, com o extradorso decorado com a divisa do tumulado. Os pés, por sua parte, assentam numa mísula cuja base, embora já muito desfeita, acolhe o que parecem ser três figuras antropomórficas masculinas que se entrelaçam numa combinação complexa com elementos vegetalistas. Finalmente, e rematando com coerência todo um discurso fiel à proposta do túmulo de D. João I e D. Filipa de Lencastre, refira-se o facto de D. Pedro de Meneses se apresentar em pose de grande dignidade, o braço esquerdo dobrado sobre a cintura, supondo o agarrar de qualquer objecto que se perdeu (uma espada, certamente), enquanto o direito se volta para D. Beatriz, cuja mão direita recebe na sua.

fig.12 túmulo de d. pedro de menezes e d. beatriz coutinho. santarém. igreja da graça. © projecto imago. fotografia de josé custódio vieira da silva.

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D. Beatriz Coutinho, segunda mulher de D. Pedro, apresenta-se em atitude idêntica à da rainha D. Filipa de Lencastre. Vestida com túnica sob manto, este último preso no peito por um firmal de composição floral, e ambos caindo em pregas volumosas sobre os pés, cobertos na totalidade e assentes sobre mísula idêntica à que suporta o jacente do marido (decorada com o que aparentam ser figuras femininas), segura, com a mão esquerda, um grosso Livro de Horas, fechado. A cabeça, assente sobre duas almofadas não decoradas e protegida por baldaquino de formulação idêntica ao de D. Pedro de Meneses, concretiza, nos cabelos totalmente cobertos por um véu, a única diferença que a separa da figuração similar da rainha D. Filipa de Lencastre – um dado que, longe de se esgotar em mero apontamento, e atendendo ainda à elaboração consideravelmente mais tardia do jacente, revela a recuperação de um tratamento mais tradicional. A face de D. Beatriz é serena, como a de D. Filipa de Lencastre, mas esculpida com traços marcados de uma seriedade e compenetração novos, que acompanham, no fundo, a maior austeridade que, no geral, se reconhece na representação da sua figura. Refira-se, finalmente, a novidade dos leões de suporte da arca, relativamente àqueles em que se apoia o túmulo de D. João I e D. Filipa de Lencastre: não só apresentam, cada um deles, detalhes individualistas de um naturalismo apelativo que acompanham o nível estético da peça, no geral mais exuberante e surpreendente até do que a dos primeiros monarcas da dinastia de Avis, mas também as suas funções simbólicas de guardiães e protectores dos corpos dos personagens inumados ganham um surpreendente realismo nas presas, inteiras ou despedaçadas, que seguram entre as patas dianteiras, entre as quais avulta, como já referimos, uma cabeça de negro. Neste caso, os valores simbólicos exprimem-se por imagens apelativas da vida heróica, passada em terras africanas, de D. Pedro de Meneses, cuja vitória definitiva sobre a morte – através da memória perpetuada no seu monumento – celebram. Detalhes deste realismo e, sobretudo, propostas iconográficas tão complexas, talvez só tenham equivalente nos suportes dos túmulos do rei D. Dinis e de D. Inês de Castro, executados nos inícios e nos anos sessenta do século XIV, respectivamente.

A arca tumular de Dom Duarte e Dona Leonor de Aragão O túmulo de D. Duarte e D. Leonor de Aragão ocupa um lugar secundário nesta nossa reflexão com centro no moimento de D. João I e D. Filipa de Lencastre, não só pela evidência da distância que o separa da qualidade e da projecção deste último, como também pela muitas dúvidas que a sua composição suscita. É preciso, no entanto, destacar desde logo a opção de D. Duarte em construir uma nova capela funerária, no Mosteiro da Batalha, para guardar a sua memória e da sua linhagem: com esta atitude, autonomiza-se do progenitor, o rei D. João I, que previra a Capela do Fundador como espaço destinado a outros reis e filhos de reis. Ao não

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aceitar essa solução, demarca-se com clareza de seus pais e irmãos, afirmando, de forma convincente, a sua identidade régia e a da sua progénie. A capela que mandou construir, e que teve como arquitecto Huguet, desenha uma planta octogonal, colocando-se as diferentes capelas funerárias (que assim ganham uma autonomia que na Capela do Fundador não existe) numa disposição radiante que torna mais dinâmico este espaço. Se Huguet tivesse logrado concluir esta obra (só as mortes quase simultâneas do rei D. Duarte e do próprio arquitecto, em 1438, impediram que tal se concretizasse), a abóbada que a cobriria deveria constituir um outro momento de grande arrojo e criatividade, atentas as dimensões do vão, ainda hoje impressionantes. Assim, essas capelas ficaram incompletas ou imperfeitas, nome que a história lhes consignou. O sarcófago em que repousa D. Duarte e sua esposa, colocado (apenas nos inícios do século XX) na capela axial, concretiza-se, tal como o de D. João I, numa peça exenta, composta de uma arca paralelepipédica sem decoração (exceptua-se, no facial dos pés, uma muita tardia composição a enquadrar a inscrição com os nomes dos reis aí sepultados), sem suportes e com dois jacentes sobre a tampa única, mais larga e

fig.13 túmulo com jacentes dos reis dom duarte e dona leonor de aragão. mosteiro da batalha. capelas imperfeitas. © projecto imago. fotografia de josé custódio vieira da silva.

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fig.14 túmulo com jacentes dos reis dom duarte e dona leonor de aragão. mosteiro da batalha. capelas imperfeitas. © projecto imago. fotografia de josé custódio vieira da silva.

comprida do que a arca propriamente dita. Deste conjunto, contudo, apenas fazem parte do túmulo original, segundo Pedro Dias34 e Maria José Goulão35 a tampa e os jacentes que sobre ela se dispõem e que Vergílio Correia atribui ao terceiro mestre de obras do Mosteiro da Batalha, Martim Vasques (activo entre 1438-1448), apenas por desempenhar esse cargo na altura da morte de D. Duarte. Partindo desta tese, que aceita, e considerando o período de permanência do artista no cargo, que relaciona com o ano de morte de D. Duarte (1438), Dionísio David propõe as datas de 1438 e 1442 (altura em que o escultor se encontrava já ocupado na execução dos sarcófagos dos Océm, destinados à Igreja de S. Domingos de Santarém) para balizamento cronológico da feitura do túmulo36. A filiação mais do que evidente dos jacentes de D. Duarte e de D. Leonor de Aragão numa escultura com antecedentes nas figuras de D. João I e de D. Filipa de Lencastre, não deixa, contudo de revelar muitas perplexidades. Com efeito, «imitação pouco feliz, réplica incaracterística que não depõe a favor da continuidade ou progresso artístico da escultura da Batalha»37, aqueles jacentes apresentam-se com uma rigidez e uma frieza que não escondem uma execução infeliz, que ainda mais se evidencia quando comparados com o modelo que supostamente os terá inspirado. O jacente de D. Duarte, deitado de costas, enverga armadura completa, com tabardo até aos joelhos, decorado com as armas de Portugal, no peito e nas mangas. A cabe-

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34. Ob. cit., p. 132. 35. Ob. cit., p. 171. 36. Ob. cit., p. 39. A aceitar-se esta teoria, a responsabilidade da realização do túmulo de D. Duarte, atendendo à sua morte prematura, poderá ser atribuída, com muita razoabilidade, a seu irmão o infante D. Pedro, quando regente do Reino. 37. CORREIA, Vergílio, ob. cit., p. 126.


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ça, coroada e de cabelo curto, repousa sobre duas almofadas do mesmo tamanho e sem qualquer decoração. A expressão é no geral bastante rígida e dominada por um nariz muito vincado, por contraste com uns lábios quase imperceptíveis, de reduzido volume. Supondo uma repetição do modelo de seu pai, é obtida numa execução mecânica desprovida de inspiração, sem qualidade nem naturalismo. A própria forma como repete os pormenores de envelhecimento dignificante que na figura de D. João I exalavam um sentido marcante de naturalismo, como se nota com evidência ao nível do tratamento do pescoço, é, na face da D. Duarte, de uma infelicidade surpreendente. A pose de D. Duarte segue igualmente a de D. João I: a mão esquerda segura um estoque (aparentemente todo refeito), com o punho decorado com as armas de Portugal e da Ordem da Jarreteira, a direita volta-se para receber a de Dona Leonor. Os pés assentam sobre uma mísula de base trapezoidal, desprovida de qualquer decoração. O jacente de D. Leonor veste túnica sob manto, este último preso no peito por um desenvolvido firmal, ambos sem decoração e desenrolando-se num pregueado relativamente rígido, que tende a naturalizar-se na direcção dos pés, que cobre na totalidade. A cabeça, coroada e sem véu, de longos cabelos lisos que se prolongam para trás das costas, repousa sobre duas almofadas lisas. O rictus facial está muito próximo do de D. Duarte, destacando-se pela acusada inexpressividade e por uma passiva frieza. A pose cumpre-se com o mesmo sentido da de D. Filipa de Lencastre: a mão direita sobre a direita do marido, a esquerda segurando um livro. Os pés assentam igualmente numa mísula de base trapezoidal, sem decoração. Analisados, por esta forma, os problemas colocados pela Capela do Fundador e pelo mausoléu de D. João I e de D. Filipa de Lencastre, ganharão sentido, assim pensamos, todas as novidades a que nos referíamos na abertura destas reflexões, sobressaindo, de modo particular, as que se relacionam tanto com o túmulo conjugal quanto com o jacente de D. João I no Mosteiro de Santa Maria da Vitória (e, por extensão, com os de outros nobres que mais se lhe aproximam). De facto, a invenção joanina, quer ao nível da arquitectura quer ao nível da escultura quer, sobretudo, ao nível das propostas iconográficas presentes no seu túmulo de fundador da dinastia de Avis, rompe abruptamente com as tradições perseguidas pela arte tumular portuguesa ao longo de todo o século XIV. O túmulo duplo, a relação cúmplice expressa pelos jacentes dos dois esposos, a ausência de qualquer sinal do sagrado, os extensíssimos panegíricos lavrados em latim nas faces maiores da arca, os cabelos visíveis de D. Filipa de Lencastre, o arnês branco que veste pela primeira vez o corpo régio de D. João I (e também, por imitação, os dos nobres seus vassalos), soldado/miles de uma idade nova, de um mundo em mutação acelerada, em cuja transformação participa de forma consciente – eis as propostas mais evidentes desta radicalidade profundamente inovadora. Perante este quadro, uma vez mais as palavras visionárias de Fernão Lopes, no capítulo CLXIII da Crónica de D. João I, parecem encontrar uma correspondência precisa: «…fazemos aqui a septima hidade; na quall se levamtou outro mundo novo, e nova geeraçom de gemtes».

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Resumo Damião de Góis, na Crónica do Felicíssimo Rei D. Manuel, retrata o rei com alguma minúcia mostrando-nos como era fisicamente mas também o que vestia, o que comia, quais os seus gostos e hábitos, a sua forma de agir e de se mostrar. Mas é escassa a iconografia manuelina e não deixa de ter algum significado que, uma boa parte das imagens identificadas com o rei Venturoso se encontrem em livros. Damião de Góis refere que “foi muito inclinado a letras, e letrados, e entendia bẽ ha lingoa Latina em q fora doctrinado sendo moço (…)”; e também que “era mui entendido nas historias, e sobretudo nas Chronicas dos Reis destes Regnos, nas quaes se deleitaua tãto, que perante sim as fazia ler aho Prinçipe dõ Ioam seu filho (…)”. A importância da sua livraria (Viterbo), atesta o seu amor pelos livros e o apreço que devotava à iluminura, gosto documentado desde o início do seu reinado e que faz parte duma política de fausto, dignificadora da imagem e da função real. Assim, vemo-lo representado nos livros das Crónicas, recebendo-as das mãos do cronista, na Leitura Nova, onde, acima de tudo, se revê nos seus símbolos, e em dois missais, o Missal Polifónico, datado de 1500, que assinala o seu segundo casamento com D. Maria, o mais longo e mais prolífero, que evidencia, também, o seu lado de melómano na escolha dos melhores compositores do século XV, e o Missal Rico de Santa Cruz, do final do seu reinado, onde é figurado como rei David. Ao fazer-se representar no livro litúrgico, juntamente com as suas armas, o rei introduz a sua imagem em ambiente densamente sacral, em estreita união com a palavra e a acção litúrgica, tornando-a objecto de culto e veneração.

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Abstract Damião de Góis, Crónica do Felicíssimo Rei D. Manuel, portrays the king with some detail, showing us how he physically would look like, as well as the garments that he wore, what he ate, his tastes and habits, his way of acting and of showing. However, Manueline iconography is rather rare and the fact that a good part of the images identified as belonging to the Venturous king are found in books surely has some significance. Damião de Góis mentions that he “was much inclined to letters, and literates, and understood well the Latin language in which he was educated when he was a young boy (…)”; and that he “was knowledgeable of stories, especially the Chronicles of the Kings of these Kingdoms, which he thoroughly enjoyed and would ask to read to him and the Prince (…)”. The importance of his bookstore (Viterbo) attests to the love he had of books and the appreciation towards illuminated manuscripts, a taste that was documented from the beginning of his kingdom, part of a policy of ostentation, which dignified his image and royal function. Thus, we see him portrayed in Crónicas, receiving the illuminated manuscripts from the hands of the chronicler, in Missal Polifónico, dating from 1500, which marks his second marriage to D. Maria, his longest and most prolific marriage, illustrating his love of music due to his choice of 15th century composers, and in Missal Rico of Santa Cruz, dating from the end of his reign, where he is represented as King David. By portraying himself in a liturgical book, together with his weapons, the king introduces his own image into a densely sacred environment, in a deep union between word and liturgical action, making it an object of cult and reverence.

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retrato de d. manuel na iluminura

h o ráci o au g u sto pe i x e i ro

Entrada – A Imagem

Instituto Politécnico de Tomar.

1. GÓIS, Damião de, Crónica do Felicíssimo rei D. Manuel. Coimbra, 1955, IV, p. 223. 2. GÓIS, Damião de, ob. cit., p. 230.

“Foi el Rei D. Emanuel homẽ de boa statura, de corpo mais delicado que grosso, a cabeça soblo redondo, hos cabelos castanhos, a testa aleuãtada, e bem descoberta delles, hos olhos alegres, entre verdes, e brãcos, aluo, risonho, bẽ assõbrado, os braços carnudos, e tã cõpridos q hos dedos das mãos lhe chegauã abaixo dos geolhos, tinha as pernas tão cõpridas, e tão bẽ feitas, segũdo a proporçã do corpo, q nenhũa cousa mais se lhes podia desejar. (…) Foi muim limpo de sua pessoa, galante, e bem vestido, do que se prezaua tanto que quasi todolos dias vestia alg ũa cousa noua (…)”1. Na porta principal da igreja do mosteiro dos Jerónimos que fundou, pela sua devoção a Nossa Senhora de Belém, para que fosse prestado auxílio espiritual aos marinheiros e para aí fazer a sua sepultura, da sua mulher e dos seus filhos, “mandou elRei (D. Manuel) poer ha sua imagẽ, de hũa parte, assentada em geolhos, em hũ setual, cuberto de vestidos roçagantes, e da outra banda, também em geolhos, em outro setual ha rainha donna Maria sua molher. Estas duas imagẽs são talhadas de vulto em pedra lioz, e os rostos ambos tirados assaz bem aho natural.”2 Damião de Góis, na Crónica do Felicíssimo Rei D. Manuel, retrata o rei com alguma minúcia mostrando-nos como era fisicamente mas também o que vestia, o que comia, quais os seus gostos e hábitos, a sua forma de agir e de se mostrar. O cronista, que faz esta descrição em 1567, quarenta e seis anos após a morte do rei, consegue ainda ver, na escultura que Nicolau de Chanterenne havia feito, muito tempo antes, para a porta principal da igreja dos Jerónimos, grandes semelhanças com as feições reais. Mas não é por acaso que utiliza a palavra imagem para indicar as representações do rei e da rainha. Anteriormente, na Idade Média, o retrato andava associado ao conceito de imago, que, por meio de elementos geralmente identificáveis, estabelece correspondência com a pessoa que se quer representar. Não era tanto a semelhança que se procurava mas o sentido que se pretendia evocar.

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“A função mais elementar da imagem é criar um substituto que representa uma determinada realidade na sua ausência, ainda que apenas o faça parcialmente”3. Quando se autonomizou o sentido em ambiente sacral de culto, gerou-se a idolatria. S. Tomás de Aquino afirma que a imagem é um signo fundado sobre a relação de similitude ordenada4. Isto quer dizer que se identifica mais pelos atributos convencionais que pelos artifícios do desenho e da cor. No entanto, destinada a ensinar, lembrar e sensibilizar5, transporta consigo uma intenção: transmitir uma mensagem que ultrapassa o mero conteúdo temático integrando outros sentidos que lhe advêm da cor, do brilho, da matéria e da forma, do enquadramento espacial, da profusão dos ornatos decorativos mostrando o fausto, a riqueza, o poder, do uso que se faz dela. Por exemplo, o uso da imagem do rei no livro litúrgico acrescenta-lhe significado e remete para funções inesperadas, como se verá. Ela participa mais ou menos estreitamente dum contexto e da função do objecto em que se integra. Não é de somenos importância perceber que a imagem no livro, num portal ou num retábulo é sempre uma imagem situada. Na empaginação do livro manuscrito, o ornato e a imagem intervêm ao lado da palavra, cuja clareza lhe advém não só da lógica do discurso, mas também da construção da página, em que a estrutura se torna num importante elemento facilitador da leitura. Contribuem, pois, para o contínuo aperfeiçoamento do discurso escrito como simulacro da palavra proferida. É assim que, “na iluminura medieval cada motivo figurativo tinha uma dupla função, como parte da organização ornamental da página e como elemento de representação”6, interferindo ambos no significado. Nesse sentido, a imagem fala, isto é, provoca um discurso, induz no leitor “graus de expansão de conhecimento”7. As imagens, segundo a concepção que o Renascimento desenvolverá, são imitações, servem para imitar. É na boa imitação que se encontra a significação clara, facilmente visível. A Idade Média, segundo Vasari, ao descurar o bom desenho e, portanto, a imitação, isto é, a imitação da natureza que confere a semelhança, a referência reconhecível, atribui à imagem um significado não natural, alegórico ou simbólico, permitindo todas as variações bizarras, o bestiário, a ausência de perspectiva. Portanto, a imagem no Renascimento devia narrar com clareza opondo-se à obscuridade da imagem medieval. Esta torna, contudo, evidente que a eficácia ultrapassa a função.8 Para compreender a imagem do rei no livro teremos, com certeza, que pensar nas suas funcionalidades diversas. Mas, como veremos, ela não é uma mera representação, um retrato, não tem apenas a função de ser cópia física do rei; mas torna-se eficaz naquilo que narra, que rememora, que provoca. É escassa a iconografia manuelina e não deixa de ter algum significado que uma parte das imagens identificadas com o rei Venturoso se encontre em livros. Damião de Góis refere que “foi muito inclinado a letras, e letrados, e entendia bẽ ha lingoa Latina em q fora doctrinado sendo moço (…)”; e também que “era mui entendido nas historias, e sobretudo nas Chronicas dos Reis destes Regnos, nas quaes se deleitaua tãto, que perante sim as fazia ler aho Prinçipe dõ Ioam seu filho (…)”9.

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3. NASCIMENTO, Aires do.. “Texto e imagem: autonomia e interdependência em processo de leitura”, in BRANCO, António (dir. de), Figura. Fac. de Ciências Humanas e Sociais – Univ. Algarve, Faro, 2001, p. 47. 4. Cf. WIRTH, Jean, “Structure et fonction de l’image chez Saint Thomas d’Aquin”, in BASCHET, Jérôme, e SCHMITT, Jean-Caude (dir. de), L’Image – Fonctions et usages des images dans l’Occident médiéval. Paris, Le léopard d’Or, 1996, p. 44 5. Estas são as três funcionalidades da imagem medieval que o pensamento escolástico desenvolveu. Ver S. Tomás de Aquino, In III Sententia, d. 9, q. 1, a. 2, qla. 2, cit. In WIRTH, J., ob. cit., p.51, nota 35. 6. PACHT, Otto, Buchmalerei des Mittelalters. Eine Einführung. Trad. ital. consultada: La miniature medievale – Una introduzione, Torino, Bollati Boringhieri editorie, 1987, p. 189. 7. NASCIMENTO, A. do, ob. cit., p. 14 8. Ver DIDI-HUBERMAN, Georges, “Imitation, représentation, fonction. Remarques sur un mythe épistémologique”. In BASCHET, J. e SCHMIDT, J.-C., L’image – fonctions et usages dans l’Occident médiéval. Paris, Le léopard d’Or, 1996, p. 65-68.


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9. GÓIS, D. de, ob. cit., p. 10. Ver VITERBO, Sousa, A Livraria Real especialmente no reinado de D. Manuel. Lisboa, Academia Real das Sciencias de Lisboa, 1901. 11. HOLANDA, Francisco de, Da Pintura Antiga. Lisboa, INCM, 1983, p. 201. 12. Cf. DESWARTE, Sylvie, Les Enluminures da la Leitura Nova . 1504-1552 – Études sur la culture artistique au Portugal au temps de l’Humanisme. Paris, F.C.Gulbenkian, 1977, p. 9-12. 13. Damião de Góis, nascido em 1504 ( ?), o mesmo ano do príncipe D. João, depois D. João III, foi pajem na corte desde os sete anos de idade. 14. Vejam-se, por exemplo, os vitrais da Igreja de Santa Maria da Vitória, na Batalha, onde o rei e a rainha são representados de joelhos, em atitude e aspecto semelhantes ao do portal. 15. “Eu sou a porta. Se alguém entrar por mim estará salvo”. Jo. 10, 9.

A importância da sua livraria 10 atesta, também, o seu amor pelos livros, que envia em grande quantidade, como valioso presente, ao Preste João. É sabido o apreço em que, no tempo de D. Manuel, se tinha a iluminura, equiparada à pintura, “celestial maneira de pintar em este mundo” 11. O reinado do Venturoso parece ter-se iniciado sob o signo desta arte de ornar os livros, ainda que a outra “arte de escrever artificialmente” tivesse sido já inventada há cerca de quarenta anos. O Livro das Sentenças e a Bíblia dos Jerónimos assinalam o seu primeiro casamento em 1497. Os Livros da Leitura Nova são empresa a que se abalança, logo desde o início, e que não chega a completar. É a era de ouro, o cume da iluminura em Portugal que, segundo S. Deswarte, resulta de novas condições criadas, entre as quais a riqueza da corte, a atracção de artistas estrangeiros e a opulência ostentada que rodeava as empresas do rei. A iluminura faz parte duma política de fausto, dignificadora da imagem e da função real12. Assim, vemo-lo representado nos livros das Crónicas, recebendo-as das mãos do cronista, na Leitura Nova, onde, acima de tudo, se revê nos seus símbolos, e em dois missais, o Missal Polifónico, que assinala o seu segundo casamento com D. Maria, em 1500, o mais longo e mais prolífero, que evidencia, também, o seu lado de melómano na escolha dos melhores compositores do século XV, e o Missal Rico de Santa Cruz, do final do seu reinado, onde é figurado como rei David. Vamos ver que, ao fazer-se representar no livro litúrgico, juntamente com as suas armas, o rei introduz a sua imagem em ambiente densamente sacral, em estreita união com a palavra e a acção litúrgica, tornando-a objecto de culto e veneração.

1. Ele é o Rei – a verdade da presença Regressemos ao portal dos Jerónimos, uma boa entrada para esta nossa reflexão. Dizíamos atrás que Damião de Góis, apesar do longo tempo de quarenta e seis anos decorridos entre a morte do rei e o momento em que descreve o seu retrato no portal da igreja de Belém, ainda vê nele a semelhança com a imagem que conservava na memória e que havia sido construída durante alguns anos de convívio na corte 13. É, pois, a referência fisionómica mais fiel, tirada ao natural, obra do francês Nicolau de Chanterenne, transformando-se em modelo utilizado em outras obras14 e para comparações fisionómicas com possíveis representações do rei. Se apontarmos para o ano de 1515, altura em que o escultor foi contratado, D. Manuel teria quarenta e seis anos de idade, em pleno vigor físico. As imagens do rei e da rainha estão inseridas num dispositivo espacial que nos aproxima, de forma precisa, da sua função. É a porta axial do templo, virada a poente, que, na simbólica cristã, é identificada com Cristo, que disse de si mesmo: “Eu sou a porta…”15; por isso aí O vemos muitas vezes em majestade, rodeado pelos santos, os apóstolos e toda a cúria celeste. O espaço da porta ocidental da igreja de Santa Maria de Belém é acanhado, já o tinha sentido Damião de Góis, por causa duma galeria que lhe servia de alpendre. Mesmo assim, aí coube um conjunto de imagens

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que se distribuem no espaço à semelhança de um retábulo: as relativas à dedicação da igreja – a Virgem da Anunciação, a Natividade, os Reis Magos; as imagens do rei e da rainha, ricamente vestidos, postos de joelhos e de perfil, um de cada lado, acompanhados pelos santos protectores – S. Jerónimo e S. João Baptista – funcionando como doadores que, curiosamente não aparecem na parte inferior da composição mas sensivelmente ao meio, postos em uma mísula com as respectivas insígnias, bem acima do comum dos mortais. A sua escala, idêntica à das imagens dos santos protectores, é muito superior à das outras figuras: da Virgem, dos anjos e dos santos16. Estão intencionalmente ali, daquela forma bem visível e clara, para garantir a sua protecção à instituição por eles fundada. Destacam-se, pois, pela posição, pela escala, pelo vestuário, pela atitude devota, afirmando a sua presença e, de certo modo, a propriedade, como uma imagem sigilar17, substituto do rei, função atribuída também às insígnias, manifestando a sua santidade de ungido, de escolhido por Deus como David. A imagem e as insígnias do rei atestam a verdade da sua presença, isto é, revelam o rei na sua verdade profunda de rei. Na mesma igreja, onde queria ter sepultura em campa rasa, sem imagem, ficará vivo e presente para sempre. É essa a função da imagem do rei e das pessoas ilustres, como escreveu Francisco de Holanda: “Digo que estimo somente os claros príncipes e reis ou imperadores merecerem ser pintados e ficarem suas imagens e figuras e sua boa memória aos futuros tempos e idades”18.

2. Eu sou o Rei – majestade e memória Conservar a memória foi uma preocupação de D. Manuel quando mandou registar e por em boa ordem a documentação que havia nos arquivos reais e organizar as crónicas dos reis de Portugal. (Fig.1-3) Aí o vemos representado no prólogo das crónicas de D. Duarte, D. Afonso V e de D. João II, da responsabilidade de Rui de Pina, em que se exalta o amor do rei aos livros e à história, espelho dos bons exemplos do passado de que os livros são os tesoureiros. O rei está sentado no trono, rodeado pelas suas insígnias, com a coroa e o ceptro na mão, tal como nas xilogravuras das Ordenações Manuelinas que mandou abrir e que começaram a ser impressas por Valentim Fernandes em 1512. Ricamente vestido, de joelhos, o cronista entrega nas mãos do rei o fruto do seu trabalho esperando a recompensa pela sua obra. O rei é, também, o mecenas que patrocina as artes e que fomenta a elaboração e a publicação de livros, gozando dalgumas regalias como a isenção de certas taxas, como pode ver-se numa carta de D. Manuel de 10 de Janeiro de 1511, em que declara “que hos liuros deforma que vierem de fora de estos Regnos se nom pague delles dizima nem sisa”19. Patrocinou também a edição de livros dentro e fora do reino, como o célebre livro de horas editado em Paris e com as suas armas impressas no final, de que existe um exemplar iluminado em velino na Torre do Tombo20.

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16. As imagens dispõem-se em registos sobrepostos, podendo ver-se, ainda, para lá dos referidos: em baixo, os quatro Evangelistas. S. Mateus e S. Lucas, à esquerda, S. João e S. Marcos, à direita; a seguir, flauqueando a porta, S. Pedro pela esquerda e S. Paulo, pela direita, ladeados, respectivamente, por S. Tomé e Santo André, S. Filipe (?) e S. Tiago Menor, aparecendo em destaque, nos extremos, S. Bartolomeu, à esquerda e S. Vicente à direita. 17. PASTOUREAU, Michel, “Les sceaux et la fonction sociale des images”, in BASCHET, Jérôme, e SCHMITT, Jean-Caude (dir. de), L’Image – Fonctions et usages des images dans l’Occident médiéval. Paris, Le léopard d’Or, 1996, p. 294. 18. HOLANDA, Francisco de, Do tirar polo natural (cap. I). Introd., notas e comentários de José Felicidade Alves. Lisboa, Livros Horizonte, 1984, p. 14 (edição com ortografia actualizada). 19. D. MANUEL I, Rei de Portugal. Carta, 1511, Jan. 10, determinando que os livros que vierem de fora do Reino não paguem sisa nem dízima. Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Chancelaria de D. Manuel, L 2 11, fls. 18. Cópia fac-similar. 20. ANTT, Casa Forte 136. Este Livro de Horas, provavelmente proveniente da Livraria do Mosteiro dos Jerónimos, foi impresso na oficina parisiense de German Hardouyn c. de 1510 (ver FRANCO, Anísio, Jerónimos – quatro séculos de pintura. Sec. Est. Da Cult., 1992, v. II, p. 30).


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fig.1-3 d. manuel no trono e cronista entregando o exemplar da crónica – prólogos das crónicas de: d. duarte. pt-tt-crn/16; d. afonso v. pt_tt-crn/17; d. joão. pt-tt-crn/19. © imagens cedidas pelo antt.

21. Sobre o tema da representação em posição frontal e de perfil, veja-se PASTOUREAU, M., Couleurs, images et symboles. Paris, Le Léopard d’Or, s. d., p. 160. O autor, depois de referir que os primeiros retratos do s. XIV não representam um progresso artístico em relação às “imagines” convencionais e às efígies da figuração medieval, chama a atenção para a natureza heráldica, emblemática do rosto de perfil, diferente da vista frontal que reenvia para o símbolo, representação duma ideia através da imagem sensível. 22. Los reyes bibliófilos, p.93. Outros nomes poderiam ser atribuídos – Cantoral, Livro coral… 23. SMEYERS, Maurits, Flemish illuminated manuscripts – 1475-1550. Gent, Ludion Press, 1996, p. 38. 24. Alguns desses compositores são: Jacobus Barbirianus (Obretch) , Jean Jaspart , Alexandre, Pierre de La Rue, Marbrianus de Orto, Josquin Desprez, Johannes Ghiselin (Verbonnet), Antoine Brumel.

A figura do autor entregando a obra ao monarca pode ver-se, também, em duas das xilogravuras que acompanham a edição das Ordenações. A majestade do rei, semelhante à Majestas Domini, é evidenciada pela entronização e posição frontal a que corresponde o texto do Prólogo, nas Crónicas, e o mote “Deo in coelo tibi autem in mundo”, nas Ordenações21.

3. El-Rei – música e aparato (Fig.4) Vamos agora demorar-nos um pouco mais em três obras em que a presença do rei se revela não apenas pelos seus símbolos, como é o mais frequente, mas também pela sua imagem. A primeira é o Liber Missarum de D. Manuel I, também designado Missal Polifónico22 e Graduale23. É um livro de canto litúrgico da missa que contém a parte do Ordinário cantada pelo coro: Kyrie , Gloria, Credo, Sanctus e Agnus Dei. O Códice 1783 – Viena, OsterreichischeNational Bibliotheck, Liber Missarum, de 255 fls – 395 x 275 mm – contém dezoito missas polifónicas completas e duas incompletas dos mais importantes compositores do séc. XV24. A construção da página tem em conta a distribuição das diferentes vozes (entre 3 e 9), tendo duas ou três vozes por página. Cada uma abre com iniciais, em geral cali-

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fig.4 d. manuel de joelhos – missa virgo parens christi – liber missarum – códice 1783 © viena, osterreichische national bibliotheck.

grafadas – litterae cadassae25 –, por vezes ornadas com motivos feitos à pena, como coroas, folhas e flores, grotescos e filactérias legendadas. O trabalho do copista que é, também, provavelmente, o anotador musical e o calígrafo das iniciais, precede a iluminação das seis páginas, como pode ver-se pela adaptação das cercaduras aos grafismos preexistentes26. Pelas irregularidades e as faltas parece que o processo de elaboração do códice seria assim: primeiramente eram traçadas as pautas de acordo com as vozes por página, depois as iniciais caligrafadas, (nem sempre), por fim o texto e a iluminura. O Gradual abre com a missa Virgo Parens Christi de Jacobus Barbirianus, missa de cantus firmus, a cinco vozes e que em divisi chega a nove. No fl. 1v. existem duas iniciais historiadas com cercadura, inscritas em cartelas recortadas. A primeira é o K do Kyrie eleison que emoldura uma cena representando a Virgem com o Menino, entronizada sob um dossel onde paira a pomba do Espírito Santo, acompanhada por anjos revestidos de dalmática, um tocando viola e outro sustentando um livro aberto. O espaço é delimitado por um muro alto, ameado, alusão à invocação litânica da

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25. São letras ornadas, cujos traços, feitos à pena, se entrecruzam como se fossem fitas. Ver SMEYERS, Maurice, La miniature. Turnhout, Brepols, 1974, p. 40. 26. Sendo um trabalho oficinal, como se verá, a presença de vários intervenientes na realização do códice é perfeitamente admissível. Esta primeira análise, baseada no microfilme integral do códice, a preto e branco, permite apenas formular algumas hipóteses, como, por exemplo, a relativa ao copista, de que à frente se dirá.


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27. “Daqui em diante, Burgos”. A fazer fé nesta pequena indicação, Martin Burgeois terá escrito o texto, anotado a música e desenhado as letras caligrafadas a partir do fl 83v, Kyrie da Missa Paschale de Allexander Agricola. A notícia do copista vem em SMEYERS, Maurits, Flemish illuminated manuscripts. 1475-1550, ob. cit., p. 120. 28. As informações são muito parcelares, baseadas em poucas e deficientes imagens disponíveis. 29. SMEYERS, Maurits , Flemish illuminated manuscripts. 1475-1550, ob. cit. , p. 120.

Virgem – Torre de marfim (Turris eburnea). Na inicial U, correspondente ao tema e que introduz o mote Uirgo Parens Christi, está inscrito o escudo do rei de Portugal, em fundo de duas cores com 10 castelos. O iluminador não recebeu informações correctas do ponto de vista da heráldica. A cercadura tem elementos da flora – cravos, miosótis, ervilhas-de-cheiro, boninas, dedaleiras (?), morangos – e um pavão, pintados em tromp-l’oeil, à maneira ganto-brugense. Na página seguinte temos a mesma tipologia de iniciais com as armas da rainha D. Maria, ladeadas por dois M maiúsculos – Manuel e Maria – e a esfera armilar com a legenda SPERA MUNDI. Ao alto, vemos a figura do rei ajoelhado num coxim em atitude orante, com um livro aberto, sob um dossel, tendo por trás de si uma esfera armilar com uma escala descomunal. No panejamento que recobre o genuflexório, está várias vezes desenhada a inicial M maiúsculo. O rei veste cota de armas e espada, com elmo à sua esquerda. Os escudos reais repetem-se no início das missas seguintes de Barbirianus – Faux Perverse – e de Jean Jaspart – Princesse d’amorette. Na quarta missa – Salve Sancta Parens, de compositor não identificado, a inicial S historia o presépio, estendendo-se na margem de cabeça e de goteira tarjas com elementos florais semelhantes aos da portada do Gradual. Não existem referências sustentadas para a identificação dos artistas produtores do livro. Sabemos que pertenceu ao rei D. Manuel, que o terá encomendado por ocasião do seu segundo casamento, celebrado em 30 de Outubro de 1500, com D. Maria, filha dos Reis Católicos. Assim o atestam as armas do rei e da rainha com as iniciais M maiúsculos. O mesmo rei o doou a sua filha, a imperatriz Isabel, mulher de Carlos V, tendo permanecido, desde então, na biblioteca imperial. Uma possível indicação da autoria do trabalho do copista poderá encontrar-se numa das litterae cadassae com a inscrição “hinc Burgos”, talvez Martin Bourgeois, que foi calígrafo, compositor e organista, sendo-lhe atribuído o Gradual, semelhante a este, de Filipe o Belo, arquiduque de Áustria, e Joana a Louca de Castela, executado em Bruges ou Gand cerca de 1504-0627. São várias as semelhanças dos dois Graduais 28: A escrita e a notação musical são provavelmente da mesma ou das mesmas mãos, dadas as parecenças formais até do registo musical. A composição da figura do rei Manuel e do arquiduque Filipe é idêntica: Vestem armadura, de cabeça descoberta, com o elmo, no chão, à sua esquerda; os genuflexórios têm as iniciais dos respectivos nomes, bem como os escudos de armas, o que permite supor que poderão ter sido feitos na mesma oficina. O mote do Arquiduque Filipe Qui Voudra e Moi tout seul e ainda dive Austria, aparece escrito em três iniciais caligrafadas na quinta missa, composta por Alexandre Agrícola – La messe de malheur me bat – do Gradual de D. Manuel, o que faz supor que o texto e a música e as iniciais caligrafadas foram copiadas do Gradual de Filipe, que serviu de modelo. Por essa razão, as datas dos dois códices deverão aproximar-se. Ora o códice da Biblioteca de Alberto I – ms. 9126 (o Gradual de Filipe e Joana a Louca) – foi datado com alguma precisão entre 1504 e 1506, altura em que o arquiduque se intitulou rei de Espanha, depois da morte de Isabel a Católica – o códice tem uma missa em honra desse facto – e a sua morte que ocorreu em 150629. Poderia, pois,

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o Gradual de D. Manuel ter sido encomendado por altura do seu casamento, vindo a estar pronto apenas mais tarde, numa data próxima daquela. A iluminura do Gradual de Filipe tem sido atribuída ao mestre de Jaime IV da Escócia, anónimo iluminador, activo em Gand e Bruges onde terá sofrido influências de Simão Bening30. Quanto ao Gradual de D. Manuel, a única informação de que dispomos, neste momento, sobre a sua autoria, é incorrecta: No catálogo da exposição Los Reyes Bibliófilos, organizada em Madrid, na Biblioteca Nacional, em 1986, em pequeno brevete, indica-se como autor Francisco de Holanda que, em 1500, ainda não tinha nascido. Nessa altura, seu pai António de Holanda teria, segundo Dagoberto Markl, cerca de 20 anos de idade. O mesmo autor pensa que, em 1500, poderia estar já em Portugal depois de fazer a sua aprendizagem na oficina dos Bening 31. Num outro catálogo, mais recente, de 1996, Flemish illuminated manuscripts, 1475 a 1550, da responsabilidade de Maurits Smeyers e Jan Van der Stock, refere-se este Gradual e a possível data da encomenda, mas nada é dito sobre a autoria32. As imagens da Virgem com o Menino e da Natividade, se bem que, com estas reproduções não seja fácil estabelecer comparações, lembram-nos a pintura de Gand e Bruges, nomeadamente Van der Goes ou Memmling, bem como a oficina dos Bening. Mas estas sugestões ficam a aguardar ocasião mais favorável para poderem ser devidamente aprofundadas. A realização desta pequena obra, quanto à iluminura e, eventualmente, os projectos do rei, poderão ter trazido para Portugal, mais cedo do que se pensava, o jovem António de Holanda, entre 1500 e 1506. Como outras, esta é uma obra de série. É um livro comemorativo em que a imagem do rei é, antes de mais, simbólica, necessitando de ser complementada pelos emblemas reais: a esfera armilar e as armas de D. Manuel e de Dona Maria, bem como as iniciais dos seus nomes. É uma obra de prestígio33. As grandes encomendas manuelinas, entre as quais se conta provavelmente o Breviário Mayer Van den Berg34, e o programa interno, atraindo artistas estrangeiros, é um gigantesco projecto sem paralelo ao tempo. É uma obra que evidencia, também, a faceta de melómano, descrita por Damião de Góis ao fazer o retrato psicológico do rei: “Foi muito musico de vontade, tanto que as mais das vezes que estava em despacho, e sempre pela sesta, e depois que se lançava na cama, era com ter musica, e assi pêra esta musica de câmara, quomo pêra sua capella tinha estremados cantores, e tangedores, que lhe vinham de todalas partes Deuropa (…) pelo que tinha hua das melhores capellas de quãntos reis e príncipes então viviam”35. Ao jantar e à ceia, nas festas e serões que organizava, na caça ou quando se passeava pela cidade, fazia-se acompanhar de música ruidosa de trombetas, cornetas, pandeiros, alaúdes, charamelas, harpas, rebecas, para lá de cantores e bailadores.

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30. Id. ibidem, p. 38. 31. MARKL, D.,, Lisboa, INCM, 1983, p. 32. 32. “An illuminated gradual containing polyphonic masses was purchased from Flandres in 1500 to mark the wedding of King Manuel I the Great (d. 1521) to Mary, the daughter of Ferdinando and Isabella (Vienna, Osterreichische Nationalbibliothek, Cod. 1783).” SMEYERS, Maurits, ob. cit., p. 38. 33. D. Manuel segue o gosto de monarcas europeus como o imperador Maximiliano, apreciador de livros iluminados, um dos quais foi oferecido, mais tarde (1528-1530), a D. João III. Ver SMEYERS, Maurits, ob. cit., pp. 126-127. 34. Idem, p. 56. MARKL, D., o.c., p. 24-26. 35. GÓIS, D., ob. cit., p. 224.


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36. S. Deswarte organiza os frontispícios em séries e sub-séries. Para tipificar uma série tem em conta “uma sequência homogénea, unificada pela presença de elementos comuns a todas as imagens” (DESWARTE, ob. cit., p. 72): para caracterizar a sub-série considera “a ocorrência do mesmo vocabulário decorativo, composições e tratamentos estilísticos semelhantes, em pelo menos duas imagens,” (DESWARTE, ob. cit., 75-76). 37. DESWARTE, ob. cit., p. 78. 38. Idem. p. 85. Os 43 frontispícios iluminados da Leitura Nova, “a mais honrada cousa de semelhante calidade que em parte alguma do mundo se possa ver”, (COSTA, Pereira da, Livro das Ilhas, 1987, p. 53) apresentam-nos, de diferentes modos, a imagem do rei. As suas intenções, expressas no Prólogo, de registar e conservar a memória do passado para ordenar melhor o presente, estão enquadradas por variados e profusos ornatos e pelos seus símbolos. Iluminados à parte, falta por vezes o texto do Prólogo, porém o nome do rei está sempre presente como o verdadeiro texto desta folha de rosto, escrito e iluminado desde o início. 39. J. Baltrusaitis encontra a origem destes motivos de tranças e entrelaços na arte e na escrita árabes, chegando ao Ocidente através dos manuscritos, dos tecidos e, entre nós, também, pelos estuques, as decorações cerâmicas e os esmaltes. Estes entrelaços cúficos passam mais tarde para as litterae cadassae, tornando-se frequentes no livro impresso. Ver J BALTRUSAITIS, La Edad Media Fantástica. Madrid, Cátedra, 1994, 3.ª ed., p. 86-96. Portanto, estuques decorados e ornatos de livros repetem motivos familiares e do gosto manuelino que tem também outras formas de manifestação na música e nos instrumentos musicais mouriscos. 40. Cancioneiro Geral. T. 2 (Coimbra, 1910), p. 58-75. A alegoria do paraíso está ligada, segundo Mário Martins, à espiritualidade franciscana que muito influenciou a vida espiritual portuguesa. A Crónica dos Frades Menores (T. I, p. 280-282), refere que “o céu é um campo cheio de flores e de árvores de fruto”. Cf. MARTINS, Mário, Alegorias, símbolos e exemplos morais da literatura medieval portuguesa. Lisboa, 1980, p. 300.

4. Rex Pacificus – aurea aetatis (Fig.5) O livro I de Além Douro, LN 1, mostra outra imagem do rei, que revela as suas aspirações messiânicas preditas nos sinais proféticos que acompanharam a sua escolha e que auguravam um movimento favorável da roda da fortuna. É um dos 43 frontispícios iluminados da Leitura Nova, classificado por Silvie Deswarte na II série36 que se caracteriza pela influência mista da Bíblia dos Jerónimos e do estilo ganto-brugense – margens compartimentadas por tondi e com elementos naturalistas (ramagens, figuras híbridas, candelabros)37. Ainda que o artista dominante nesta série seja Álvaro Pires, este e mais três frontispícios, de técnica menos elaborada, são atribuídos a artista menor38. O modelo mais próximo foi encontrado na Bíblia dos Jerónimos. A página é dividida em duas partes assimétricas, correspondendo sensivelmente ao rectângulo de progressão das diagonais. À cabeça, com 4 anjos portantes, dois no solo e dois esvoaçando, centram-se as armas reais com 8 castelos e a coroa com 7 jóias que podemos ver, também, no chapéu da figura do rei, no fundo da letra D, e que são semelhantes às iluminadas na Tabuada e no Prólogo de Nicolau de Lira da Bíblia dos Jerónimos, nas festas da Invenção da Santa Cruz – fl. 175r – e da Assunção de Nossa Senhora – fl. 206r - , no missal de Santa Cruz 28. Dois pares de putti sustentam esferas armilares em paisagem campestre, com rosas em primeiro plano. Ao alto, rompendo as nuvens, a figura de Deus Pai, com a tiara e o globo, abençoa, sugerindo o mote que nos aparece nas Ordenações Manuelinas – Deo in coelo, tibi autem in mundo. Na parte inferior, o texto do prólogo, com a inicial D de D. Manuel, fitomórfica, em forma de balaústres divididos sob fundo rosa, enquadrando a figura do rei em frente de reposteiro, sobre uma paisagem, de perfil, vestindo pelote com pelica nos ombros e nos punhos e barrete adornado com uma jóia. Segura na mão esquerda um rolo e aponta com a direita para o seu nome. Os diferentes espaços são bordejados com um filete construído com um motivo sugerindo um entrançado. No livro de LN 20, 4º da Estremadura, que nos mostra a Charola e o Convento de Tomar, pode ver-se este motivo, bem como na delimitação dos panos de muro lateral no interior da mesma Charola39. As margens laterais e de pé apresentam motivos variados: flores, frutos, ramagens, aves e putti em fundo de cor alternada, rosa e azul. Vemos, ainda, dois óculos com músico junto ao rei e, à direita, uma figura repetindo simetricamente o seu gesto de apontar, tendo na mão uma filactéria em que se escreve: Rex pacificus manificatus est. Duas mulheres, pássaros e putti caçando enquadram o medalhão com moldura de inspiração renascentista com a cruz e os símbolos da paixão e um escudete sustentado por dois anjos com as cinco chagas. Semelhante motivo pode ver-se no Missal Rico de Santa Cruz – fl.206r. Eis, pois, a figura do rei de perfil, deixando-se ver num ambiente paradisíaco que evoca também a Paixão de Cristo. Glosando o texto do Génesis, no Cancioneiro Geral descreve-se o Paraíso como um lugar verdejante onde não há sofrimento: «Da terra só nasciam ervas odoríferas e árvores de fruto»40. A cruz é esta árvore da salvação – Inter omnes arbor única – que S. Bernardo compara à videira mística que é Cristo

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fig.5 d. manuel e a sibila – frontispício de além douro i – ln 1 – antt (pormenor). (in a luz do mundo - oceanos, 26, abril-junho, 1996, p. 27)

– Vitis vera lignum vitae – que aqui vemos frondosa e carregada de uvas. Parece ecoar ainda o Libello de Aurea Aetate, de Egídio de Viterbo, que anuncia o advento de uma nova idade de ouro, a idade de Cristo, e o papel do rei Manuel – Emanuel. O Rei Pacífico ( rex pacificus ) por excelência é o Messias, o Emanuel, anunciado por Isaías. O mensageiro ou mensageira, se se interpretar como figura feminina, poderia ser a Sibila que vaticina, em fundo celeste, o advento do novo Messias – Rei Pacífico que deve ser engrandecido41. A associação da Paixão de Cristo, com a exuberante e refulgente Idade de Ouro, tem outras versões em duas obras manuelinas: no missal de Santa Cruz, fl. 217v., festa da Exaltação da Santa Cruz, em que a cercadura, que enquadra a página e soleniza a grande festividade crúzia, funciona como a deleitosa pradaria, prémio dos bem-aventurados, como se lê no Horto do Esposo42, lugar pacífico, simbolizado pela convivência de todos os animais, onde a dor, o sofrimento e a morte não têm lugar, visão idílica do paraíso primordial restaurado pela árvore da cruz,43 e na Charola do Convento de Tomar, que o rei mandou pintar toda de novo, refulgente de ouro,

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41. A Sibila prediz o futuro, a volta da Roda da Fortuna que exaltará o rei Manuel. A interpretação messiânica da IVª Bucólica de Virgílio, que prevê a vinda de um salvador, tem acolhimento em Gil Vicente, no Auto da Sibila Cassandra, e na iconografia Manuelina, nomeadamente, no portal Manuelino da Igreja do Convento de Tomar, onde a Sibila tem lugar ao lado dos profetas. 42. Veja-se PEIXEIRO, H. e DIAZ FERRERO, “o Horto do Esposo”, in LANCIANI, Júlia e TAVANI, Giuseppe (dir.), Dicionário da Literatura medieval galega e portuguesa. Lisboa, ed. Caminho. 1993, p. 315-317. 43. PEIXEIRO, H., “Um missal iluminado de Santa Cruz”, in A Luz do mundo - Oceanos , 26, AbrilJunho, 1996, p.64-68


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44. Paulo Pereira vê no conjunto ornamental da Charola de Tomar um programa cristocêntrico comum a todo o edifício. Ver PEREIRA, Paulo, De Aurea Aetate – O Coro do Convento de Cristo em Tomar e a Simbólica Manuelina. Lisboa, IPPAR, 2003. Pode, também, ver-se aí uma alegoria do claustro, lugar do apartamento do mundo, do combate em que o monge está empenhado e onde encontra Cristo na contemplação, antecipando a visão beatífica que o espera, ideal ascético de todo o cristão, comum à literatura espiritual contemporânea, como a Regra dos Monges, o Bosco Deleitoso, o Horto do Esposo, o Livro da Vida Solitária. A abreviatura grega do nome Cristo XPS (Christos), a coroar a abóbada da charola, rodeada alternadamente por esferas armilares e cruzes da Ordem de Cristo, reforça esta ideia e acentua o papel do rei nesta obra.

como se fosse uma obra nova, renascida, povoada com os seus símbolos, profusa decoração simbólica e os instrumentos da Paixão de Cristo44. Aí, curiosamente, existe uma pintura, atribuída a Jorge Afonso, que poderá ser contemporânea da imagem dos Jerónimos, cujo tema é a Ressurreição de Lázaro. Em recente restauro, esta pintura revela alterações significativas em dois pontos importantes: a figura de Lázaro, que foi revestida com rica indumentária e a substituição da figura feminina, situada imediatamente atrás dele, por uma masculina, mais alta, que coloca o braço direito sobre o ressuscitado e tapa o nariz com um lenço. A razão destas alterações poderá ser a vontade do rei de se ver associado ao acto, taumatúrgico da ressurreição de Lázaro e homenagear, naquele lugar, a rainha Maria, talvez já falecida, que aí se vê no papel de Maria Madalena, santa venerada entre os Templários, provavelmente por influência de S. Bernardo.

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fig.6 início do temporal – missal rico – bpmp – sta. cruz 28, fl. 1. (in a luz do mundo - oceanos , 26, abril-junho, 1996, p. 53)

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45. O estudo deste missal e a identificação do provável retrato de D. Manuel foi pela primeira vez publicado em Oceanos 26; ver nota 43.

5. O Ungido – david lusitanorum O missal rico de Santa Cruz45 Um dos códices do programa manuelino é, assim o cremos, o Missal iluminado de Santa Cruz de Coimbra (Sta. Cruz, 28/37), também denominado Missal Rico (Fig. 6 e 7). Possui 295 fls. agrupados em 37 cadernos, todos inicialmente quatérnios, com assinatura na margem de pé do primeiro fólio. A regularidade desta construção foi alterada pelas mutilações sofridas e pela introdução dum fólio no caderno 28, contendo uma iluminura do Calvário, não prevista no plano inicial pois aparece-nos no verso do fólio, quando a construção da página indicaria o recto, obra provavelmente devida a António de Holanda, pela semelhança com algumas páginas do Livro de Horas dito de D. Manuel. Pertenceu à Livraria de Santa Cruz e foi, com certeza, expressamente encomendado para o mosteiro de Coimbra, como se depreende do incipit, da iconografia e do Santoral. O explicit permite-nos formular a hipótese de ter sido escrito no scriptorium crúzio. Na verdade, a invocação a Santo Agostinho e a cruz floretada, em remate, são como que a assinatura do anónimo copista conimbricense. Este scriptorium está activo desde a fundação do mosteiro, como o prova a sua rica livraria, mas esta obra quinhentista evidencia uma qualidade e um apuro formal que, então, Santa Cruz já não possuía, como se poderá ver confrontando-a com o Colectário Sta. Cruz 618, que copia, com alguma fidelidade, ainda que de forma um tanto ingénua, algumas iniciais e cercaduras do Missal Rico. O códice apresenta-se organizado com rigor, na regularidade dos cadernos, na definição meticulosa da empaginação, com diferentes momentos identificáveis da sua construção, denotando uma oficina com tarefas diferenciadas e artistas especializados: o copista, o rubricador, o filigranador, o anotador musical, os iluminadores. Na iluminura das letras iniciais incompletas, podemos seguir o trabalho de vários artistas, à semelhança das grandes oficinas flamengas, provavelmente diferentes dos que executaram as páginas com cercaduras e o Calvário. Notamos, em primeiro lugar, que a nítida e organizada compartimentação do espaço, com o texto dividido em duas colunas e margens amplas, confere a este missal uma solenidade acrescida própria do acto litúrgico e da importância da encomenda; depois, que os motivos filigranados, ramagens, flores e aves, estendendo-se pelas margens, se assemelham aos utilizados no programa da Leitura Nova; que a iluminura deste missal parece ser obra dum conjunto de artistas externos, como pode depreender-se do extenso programa de iniciais filigranadas, fitomórficas, floreadas, historiadas, vinhetas e cercaduras, desenhos no interior de letras do texto e nas margens e, por fim, a iluminura do Calvário, de página inteira; que este programa ornamental, iniciado provavelmente em 1517, sendo o rei D. Manuel viúvo, se aproxima dos trabalhos de António de Holanda e Álvaro Pires. Se o primeiro trouxe à iluminura portuguesa o gosto ganto-brugense, foi Álvaro Pires que mais rapidamente assimilou a maneira italiana. O seu nome (Álvarus) aparece no Livro 11 da Estremadura, datado de 1527;

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contudo, o seu estilo pode ser referenciado na Leitura Nova a partir de 1510. O nome de Álvaro Pires “luminador” é referido também no caderno de despesas das obras de Belém, no ano de 1514, por “caligrafar e illuminar, juntamente com o escrivão João Rodrigues, os livros de Coro e de Missa.”46 Agentes importantes do programa régio, no que respeita à iluminura, Holanda e Álvaro Pires poderiam ter colaborado no Missal Rico de Sta. Cruz, onde são visíveis, por um lado, semelhanças de estilo e de motivos quer com o Livro de Horas dito de D. Manuel quer com o conjunto de códices da Leitura Nova atribuíveis a Álvaro Pires. Olhemos, então, para o frontispício – fl. 1r – em que se inicia a missa do primeiro domingo do Advento, cuja iluminura segue o programa ornamental, constando de uma cercadura e de uma inicial historiada, reservado para assinalar os momentos mais importantes do ano litúrgico, o cânone da missa, o início do Santoral e as três festividades do calendário crúzio – a Invenção e a Exaltação da Santa Cruz e a Assunção da Virgem. A inicial historiada do intróito – “ Ad te levavi animam meam…” – ocupa cinco UR e está inscrita num quadrado de fundo azul alinhado com a justificação. O corpo da letra fitomórfica (tronco, ramos, folhas de acanto secas) enquadra uma figura de meio corpo, posta de perfil, com barba, revestida com manto de brocado guarnecido com pelica e tendo na cabeça um chapéu de aba posterior levantada com uma coroa que é igual à que acompanha o escudo real na margem de pé. Destacando-se sobre um fundo azul celeste, os olhos levantados para o alto de onde raia uma luz divina, esta figura, tocando harpa, representa o rei David. O iluminador revela um bom domínio das técnicas de claro-escuro e um tratamento da figura de forma naturalista, como se fora um retrato. É vário o programa iconográfico do primeiro domingo do Advento. O mais frequente relaciona-se com o sentido literal do intróito: uma alma, em forma de figura nua, a desprender-se do corpo ou a ser elevada para Deus – anima clypeata –, tal como aparece no missal alcobacense do séc. XIV47. A ligação de David com o Advento tem a ver com o duplo sentido que este adquire. O primeiro designa, tal como o Natal e a Epifania, a vinda de Cristo na carne, inaugurando os tempos messiânicos, e o seu regresso glorioso no fim dos tempos, coroando a sua obra redentora; o segundo sentido, introduzido na liturgia romana no séc. VII, é o de tempo de espera que os textos proféticos de Isaías e os referidos a João Baptista alimentam. David, oitavo filho de Jessé, natural de Belém, pastor, foi escolhido por Deus para ser ungido rei. Fundador da dinastia de Israel, é o modelo de todos os reis. O Messias, segundo a profecia de Natan, havia de sair da sua descendência48; e Isaías profetiza que o Emanuel estabelecerá o seu império eterno sobre o trono de David49. Tal como João Baptista, preparou o advento do Messias que sairá como um rebento do tronco de Jessé50. É, então, adequada a presença do rei David no início do Advento, tocando o saltério, introduzindo o ano litúrgico. Esta figura sagrada no espaço e tempo sagrados, poderá ser a vera efígie do rei D. Manuel I. De facto, este missal faz parte, com toda a probabilidade, do programa deste monarca para Santa Cruz, que compreendia a construção

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46. Ver MOREIRA, Rafael, Jerónimos. Lisboa, Ed. Verbo, 1987, p. 20-21. 47. BNL, Alc. 26, fl. 5r. 48. I Sam., 16; II Sam., 2, 5 e 7; Sl. 88. 49. Is. 7, 13-14; 9,7 50. Is. 11, 1.


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51. Este modelo de mascarão, por vezes coroado, pode ver-se na decoração escultórica dos edifícios manuelinos, como no portal poente e pilares da igreja dos Jerónimos.

da igreja, a recolocação e reedificação dos túmulos reais, a pintura do retábulo do altar mor e, à semelhança de Belém e Tomar, a iluminura de livros litúrgicos, sendo, talvez, um daqueles códices de “cantoria” e “muitos outros”, encomendados por D. Manuel, a que Thomé Lopez se refere e que estavam incompletos ainda em 1526, cinco anos após a morte do rei. A cercadura contém elementos iconográficos que permitem estabelecer aquelas relações: na cabeceira, duas figurinhas aladas, de joelhos, sustentam a lança e a esponja, atributos da paixão, e um escudo recortado em forma de bucrâneo com o sinal da cruz, emblema dos cónegos regrantes conimbricenses; na margem de goteira desenvolve-se um motivo de grotescos renascentistas do tipo da coluna candelabro, iniciando-se num mascarão e rematando com cornucópia, símbolo da fortuna e um botão de rosa, que poderá ser equivalente à arvore que, nascendo na cabeça de Jessé51, é coroada pela rosa virginal a que se associam as virtudes e qualidades próprias do rei, completadas, na margem de pé, com as armas reais: o escudo, so-

fig.7 d. manuel como rei david – inicial do intróito do 1.º domingo do advento – missal rico – bpmp – sta. cruz 28, fl 1 (pormenor). (in a luz do mundo - oceanos , 26, abril-junho, 1996, p. 53)

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brepujado pela coroa e ladeado por duas esferas armilares com a legenda SPERA MUNDI. A simbologia manuelina está aqui claramente representada, caracterizando esta obra como uma empresa régia, acompanhada pela imagem do rei, que algumas vezes se fez representar como rei David e até com ele identificado, como no discurso de Egídio de Viterbo, proferido perante o Papa Júlio II, em que é apelidado de David Lusitanorum. A presença do rei na portada do missal, na entrada do ano litúrgico e no intróito da missa, prefigura, ainda, o ritual da entrada real, manifestando a legitimidade do monarca, de várias maneiras reafirmada, pela sua descendência mas especialmente pela sua santidade, atestada no acto da coroação e da unção real, sinais visíveis da escolha divina, recaindo no presente sobre D. Manuel, tal como no passado sobre o rei David. Assim, por meio deste retrato pintado, com semelhanças a D. Manuel, viúvo pela segunda vez, posto em ambiente sagrado, a imagem do rei oferece-se como objecto de culto e devoção tal como as insígnias reais que João de Barros achava dignas de serem “adoradas por amor e temor”52.

6. A porta Fica, assim, completo um percurso que iniciámos no portal de Santa Maria de Belém onde o régio casal, rodeado pelos seus santos protectores S. Jerónimo – o Padroeiro da Ordem Hieronimita – e S. João Baptista – o Precursor –, está presente, em imagens de rostos “assaz bem tirados ao natural”, para terminar na portada dum missal que, provavelmente, o rei não terá visto concluído, pois não será a ele que se refere no seu testamento onde se indica um “ livro de pergaminho enluminado douro, cuberto de veludo cremesym com hua imagem del rey Davit, sem brochas, e andava na recepta de Álvaro Costa por livro de rezar”. Não deixa de ter significado o facto de as imagens do rei, que estivemos a contemplar, aparecerem estruturalmente associadas ao portal, a prólogos, ao frontispício, ao intróito, ao começo por onde obrigatoriamente se tem de passar. É na qualidade de rei que D. Manuel se faz representar aí, qual porta de entrada na nova idade, imagem eficaz, cujo sentido se revela na intencionalidade da sua construção e das relações sugeridas, com o propósito, a um tempo, de tornar claro o significado e de mostrar que nela se realiza aquilo que anuncia. Nos livros, como na arquitectura, na pintura ou na escultura, o programa de D. Manuel revela coerência desde o início, ainda que, como bem nota Paulo Pereira, se torne evidente uma espécie de investidura messiânica a partir do discurso que envolve e interpreta a sua missão53 que vai para lá da ventura, das voltas da roda da fortuna. A imagem do rei adquire, daí em diante, novos significados.

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52. BARROS, João, Crónica do Imperador Clarimundo. 1953, vol. I, p. 102. 53. Sobre o messianismo manuelino ver também COSTA, João P.O., D. Manuel I, Lisboa, Círculo de Leitores, de 2005, p. 175-179.


fig.8 d. manuel e a sibila – frontispício de além douro i – ln 1 – antt. (in a luz do mundo - oceanos, 26, abril-junho, 1996, p. 27)

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Resumo Estudar a arte do retrato em Portugal, em particular a produzida entre o final da Idade Média e o Renascimento, constitui o objecto da actual reflexão. Ao longo do período considerado, vários espécimes de retrato foram executados sob os mais diversos formatos, materiais, tipos e qualidades. A identificação e a análise dos principais testemunhos da arte do Retrato entre nós e o estabelecimento de paradigmas e práticas de representação serão inquietações que nos acompanharão ao longo do nosso trabalho. A contextualização histórica e o estabelecimento de vocabulário específico sobre a retratística moderna nacional, bem como de uma tipologia flexível mas rigorosa, assumirão particular destaque durante o presente artigo.

palavras-chave retrato renascimento pintura nuno gonçalves francisco de holanda

Abstract The art of portraiture in Portugal, particularly that of the Middle Ages and the Renaissance, is the main object of this study. Various examples of portraits were made under the most diverse formats, materials and types. The identification and analysis of the main portraits produced and the establishment of practises of representation are concerns that will be focused in this work. The historical context and the setting up of specific vocabulary in the study of portraiture, as well as a flexible yet rigorous typology, are also key issues of this essay.

key-words portrait renaissance painting nuno gonçalves francisco de holanda


a arte do retrato em portugal nos séculos xv e xvi problemas, metodologia, linhas de investigação

p ed ro f lo r Universidade Aberta.

1. Este artigo resulta, em parte, da intervenção que realizámos a 2 de Maio de 2007 na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, no âmbito do XI Curso de História da Arte, dedicado em exclusivo ao Retrato. Agradecemos à Doutora Raquel Henriques da Silva o convite endereçado no sentido de participar nessa iniciativa. 2. Devemos neste contexto salientar os trabalhos de Annemarie Jordan-Gschwend, Joaquim de Oliveira Caetano, José-Augusto França e Vítor Serrão devidamente citados na bibliografia final. A nossa tese de Doutoramento, apresentada em Outubro de 2006 na Universidade Aberta, intitulada A Arte do Retrato em Portugal: entre o fim da Idade Média e o Renascimento, insere-se precisamente neste núcleo restrito de trabalhos, dedicados em exclusivo ao estudo da retratística nacional. 3. Devemos recordar neste âmbito a vasta literatura produzida em torno da “verdadeira” iconografia do Infante D. Henrique, do rei D. João II, de Vasco da Gama e de Luís de Camões, só para citarmos os casos mais flagrantes.

O presente trabalho centra as atenções na principal produção retratística portuguesa desenvolvida durante o período coincidente com o Gótico tardio e com o Renascimento pleno.1 Numa primeira parte, dedicar-nos-emos a aspectos gerais, à contextualização histórica e a questões de ordem teórica, como o estabelecimento de vocabulário específico sobre a matéria e de uma tipologia de retrato, flexível mas rigorosa. Numa segunda parte, procuraremos analisar alguns exemplos entre a realização dos apelidados “Painéis de São Vicente”, um dos primeiros conjuntos característicos da modernidade em território nacional, e a partida de Portugal, em 1553, do pintor flamengo Anthonis Mor (c. 1517-1577), após ter desenvolvido entre nós o Retrato de Corte, tão apreciado e sintomático do Renascimento europeu. Não desejamos efectuar análise pormenorizada sobre esta temática, campo científico de investigação demasiado vasto para ser abordado aqui exaustivamente. Importa sim traçar as principais linhas de força caracterizadoras da arte do retrato em Portugal, entre o fim da Idade Média e o Renascimento. O estudo da retratística nacional, produzida na época considerada, constitui tarefa urgente, ainda não merecedora de suficiente atenção por parte da comunidade científica.2 O desenvolvimento de pesquisas, baseadas na mera identificação do modelo representado, questão pouco válida na tarefa de abordar a retratística no tempo do Renascimento, não tem criado resultados satisfatórios, prendendo a historiografia da arte a um aspecto relevante mas de somenos importância.3 Se os estudos dedicados à arte do retrato se relacionassem apenas com tal tarefa, correríamos o sério risco de nunca avançar para um trabalho de natureza mais alargada, dado o carácter icónico, simbólico e generalista que, tantas vezes, as figuras apresentam. Para a elaboração do presente trabalho, tornou-se essencial conhecer a produção historiográfica internacional. Obrigados a proceder a criteriosa selecção, dada a vastidão de instrumentos bibliográficos e iconográficos existente, elegemos como

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directivas metodológicas as protagonizadas pelos contributos estrangeiros de Galienne e Pierre Francastel, Enrico Castelnuovo, John Pope-Hennessy e Lorne Campbell.4 Acima de tudo, tentámos produzir um discurso crítico coerente sobre a arte do Retrato em Portugal através da convergência de perspectivas de abordagem e da complementaridade de cada um destes modelos de análise. Como vimos, a baliza cronológica que criámos para o nosso trabalho contempla o sucedido no século XV, centúria coincidente com a estabilização dos cânones de representação da figura humana, através das primeiras tentativas de individualização do modelo, sobretudo por influência estrangeira. Com efeito, o panorama nacional parece debater-se nesta época com a escassez de mão-de-obra especializada na arte de retratar, tendo a Coroa de recorrer, com frequência, a executantes estrangeiros para satisfazer as suas encomendas. Por seu turno, o século XVI é período relativo ao triunfo da arte do Retrato e onde assistimos a menor idealização dos modelos e, por consequência, a maior naturalismo dos mesmos. A procura e o gosto pela arte de Retratar aumentam significativamente e, tal como no século XV, a mão-de-obra continua a ser estrangeira na sua maior parte. A metodologia a adoptar num estudo sobre a arte do Retrato em Portugal, no período considerado, deve basear-se, por um lado, na análise da obra de arte, nas suas variadas dimensões, material, plástica e iconográfica. Este tipo de abordagem permite, não só determinar com maior rigor a datação das peças, sobretudo quando complementado com exames de fotografia e de laboratório, como também apurar com maior rigor a proveniência artística da obra, caracterizando e, se possível, estabelecendo a autoria. Por outro lado, deve ter-se em conta a pesquisa cuidada de fontes manuscritas e impressas, com o firme propósito de atingir a tão ambicionada leitura iconológica do objecto artístico, não reduzindo a pesquisa sobre a peça a mera descrição física e formalista. O trabalho de arquivo, a releitura de documentação há muito publicada e o estudo da bibliografia específica permitirão, em conjunto, responder melhor às dúvidas suscitadas e, acima de tudo, conhecer o ambiente sociocultural que rodeou a criação da obra de arte. Infelizmente, o escasso número de obras chegado até nós, que constitui um corpus que não excede a centena, impede o estabelecimento de regras e práticas de produção de retratos, situação contrastante com a abundância de espécimes na Europa do tempo. Nem a abordagem cripto-histórica, a partir de testemunhos escritos e/ ou visuais de obras entretanto desaparecidas, consegue preencher tal lacuna. 5 Além disso, assiste-se a atraso considerável na implementação das novas metodologias e técnicas de abordagem à obra de arte, utilizando para tal os meios laboratoriais, aliado à insuficiência de bibliografia primária sobre a matéria, situações que provocam o atraso científico e a leitura menos profunda do objecto. Todavia, é possível hoje estudar a arte do retrato, entre o fim da Idade Média e o Renascimento, apoiados nos meios e na metodologia enunciada anteriormente, sendo obrigatória a determinação de uma tipologia estável e credível dos retratos a analisar. Com efeito, o termo ‘retrato’ pode torna-se vago e, por isso, insuficiente para caracterizar ou definir uma determinada obra. Por este motivo, procurámos reunir, em

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4. Cf. com referências completas na bibliografia final. 5. Sobre o conceito de cripto-história da arte, ver Vítor SERRÃO, A Cripto História da Arte, Lisboa, Livros Horizonte, 2001.


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6. Sobre os conceitos a aplicar no estudo da arte do retrato, ter por exemplo como referências essenciais os trabalhos de Lorne Campbell, Enrico Castelnuovo, Édouard Pommier e Pope-Hennessy citados na bibliografia final. 7. Se procedermos a tratamento estatístico da tipologia de retratos utilizada na arte portuguesa dos séculos XV e XVI, verificamos que mais de 50% é retrato integrado, contrastando com os 30% de retrato individual, e os 12% do sumatório dos restantes. Não foi possível até agora detectar com segurança nesta tipologia de retrato quatrocentista e quinhentista, nenhum retrato equestre, tão ao gosto do tempo.

torno de um conjunto de traços característicos, os vários tipos de retrato possíveis, tendo em conta o contexto espacial e temporal dos mesmos.6 Deste modo, devem considerar-se como categorias de retrato as seguintes designações: retrato individual, retrato integrado, retrato alegórico, retrato equestre, auto-retrato e, por último, o criptorretrato. O retrato individual diz respeito ao tipo retratístico mais usual e que figura o modelo individualmente sobre fundo variado e apresenta-o pelo busto ou pela cintura, consoante o gosto vigente. Este tipo de retrato foi muito utilizado quer na celebração de contratos matrimoniais, uma vez que a distância dos noivos era ultrapassada através do intercâmbio de imagens, quer nas colecções privadas, formato ideal para fazer apresentar e salientar alguém. O retrato individual esteve na origem, já no século XVI, do chamado retrato de corte ou de aparato que, não obstante tratar-se de um individual pelo seu aspecto, distancia-se deste pelo facto de representar um modelo em suporte de maiores dimensões e o apresente como ente de grande poderio político e social, bem como modelo de virtudes inspiradoras da conduta humana. O retrato integrado, geralmente a representação do comitente da obra, aparece quase sempre em contexto devocional e articulado, muitas vezes, com a presença de um Santo como patrono ou intercessor, diante figuras santificadas. Numa primeira etapa, os retratos integrados ocupavam os extremos das composições retabulares e, numa segunda etapa, tais imagens passaram a participar activamente no desenrolar dos episódios onde estavam inseridas. Ao assistirmos à complexificação dos mecanismos e usos das representações, é possível detectar novas variantes de retrato, nomeadamente o alegórico, em que o retratado perde a própria identidade, encarnando numa outra e chamando a si as virtudes e as qualidades morais dessa nova personagem. Tal como a própria designação indica, o retrato equestre, de raízes greco-romanas, mostra a figura montada a cavalo, num autêntico monumento de homenagem e de exaltação da personalidade. Já o auto-retrato, ligado à visão narcísica de contemplação da própria imagem, lembrada por Alberti, parece encontrar explicação no ascendente social que os artistas conheceram nos séculos XV e XVI, pela tomada de consciência da sua categoria estatutária. Refiram-se, por último, todas as representações que, apesar de possuírem características fisionómicas bem vincadas, não devem ser apreciadas como autênticos retratos, pois constituem imagens de inspiração em figuras da vida real e que serviram de modelo figurativo ao artista. São tão somente retratos de época e, portanto, não se trata de representações específicas desses indivíduos. Ainda assim, embora esta categoria seja deveras abrangente, não deveremos cair na tentação de designar todas as imagens presentes na arte como passíveis de ser apelidadas de criptorretratos.7 Além de uma categorização flexível dos vários tipos de retrato assinalados, impõe-se igualmente o estabelecimento de terminologia específica capaz de abarcar as variações que a arte do retrato pode assumir. Para tal, foi imprescindível a leitura atenta das fontes coevas, em particular do tratado de Francisco de Holanda Do Tirar polo Natural... [1549], para utilizarmos alguns dos vocábulos empregues no tempo e que exprimem com fidelidade as orientações possíveis de um retratado face ao observador.

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Ao descrever um retrato, em vez de empregar expressões como ‘retrato de frente’, ‘retrato de perfil’ e ‘retrato a três quartos’, preferimos as de Holanda, portanto, ‘retrato fronteiro’, ‘meio rosto’ e ‘retrato terçado’, esta última a preferida do teórico.8 O domínio destes conceitos e a correcta aplicação, bem como o conhecimento alargado das práticas de retrato do tempo, dos materiais utilizados e de determinadas tradições vernaculares proporcionam melhor descodificação das representações. Esta metodologia de abordagem ao estudo da arte do Retrato, também ela inerente à História da Arte, será de seguida ensaiada no caso nacional, tendo em conta o âmbito cronológico expresso. Os antecedentes do retrato quatrocentista em Portugal são, ainda hoje, difíceis de definir com precisão. Durante os tempos da primeira dinastia, não devemos sequer falar de ‘Retrato’, quando nos referimos às figurações de personagens de maior ou menor estatuto social, uma vez que estamos na presença de meras representações convencionalizadas, rígidas e até tipificadas. Mesmo as imagens presentes na escultura funerária, a partir do século XIII, apresentam graus diminutos de individualismo. Durante o século XIV, as representações humanas, devedoras da estética do Gótico, indiciam timidamente as primeiras tentativas claras de individualização de expressões e atitudes, sobretudo no contexto da arte funerária, sem esquecer também a arte da pintura.9 Lançavam-se assim algumas das bases iconográficas estruturantes para que a representação da figura humana tendesse, mais tarde, para a verdadeira autonomização. A possível existência de uma gelaria de retratos no Paço da Alcáçova em Lisboa, começada a reunir por D. Afonso III e continuada por D. Dinis parece indicar tal crescente interesse pela retratística. 10 Ainda a este propósito, refira-se que, de acordo com o testemunho Seiscentista de Frei Bernardo de Brito, terá existido também um retrato individual do monarca D. Fernando. Embora não seja certa a sua composição, talvez fosse comparável morfológica e plasticamente com o retrato de João II, o Bom, rei de França, do Museu do Louvre. Teremos, pois, de esperar pela centúria de Quatrocentos, para detectar a introdução da arte do Retrato de raiz moderna, já de acordo com as novas correntes estéticas em voga na Europa que derivavam sobretudo do pensamento de Petrarca e dos conselhos de Cennino Cennini.11 No decorrer da segunda dinastia, o panorama artístico nacional, ainda muito marcado na arquitectura, na escultura e nas outras artes pelo Gótico, recebe as primeiras influências do Renascimento, sobretudo por via flamenga, mercê do estreito contacto mantido com a região da Flandres ao longo de todo o século XV e grande parte do XVI.12 No que concerne a arte do Retrato, é precisamente logo nas primeiras décadas da segunda dinastia que as novidades plásticas de cariz flamengo parecem chegar a Portugal. A oferta de um retrato de João sem Medo, Duque da Borgonha, de autoria de Jean Malouel (act. 1397-1415), como modo de reconhecimento de um serviço militar prestado pela Coroa portuguesa; a estadia entre nós do pintor Jan Van Eyck (cª 1390-1441), a mando do Duque Filipe, o Bom, da Borgonha, com o propósito de retratar a futura esposa, a Infanta D. Isabel, filha de D. João I e de D. Filipa de Lencastre (Fig.1); e a chegada ao mosteiro de Santa Maria da Vitória de um retábulo de Van der Weyden oferecido pela então Duquesa

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8. Francisco de Holanda chega ainda a ponderar o ‘retrato recursado’ que, segundo ele, “uns são tendo o rosto erguido e o modo que olha para o céu, com os olhos altos e as feições vistas por baixo parecendo as ventas e a boca e toda a barba, e todo o pescoço; e este é muito dificultoso e nobre. E outro é olhando o rosto para baixo inclinado com os olhos no chão, e as feições vistas por cima, parecendo somente parte da cabeça e da testa e um pouco do nariz, e parecendo pouco da boca, e pouco da barba, e quase nada do pescoço...”. Do Tirar polo Natural [1549], introdução, notas e comentários por José da Felicidade ALVES, Lisboa, Livros Horizonte, 1984, p. 24. 9. O antigo retábulo da Capela dos Reis Magos na igreja do Mosteiro de São Domingos de Lisboa continha uma “imagem de nossa Senhora com o Menino nos braços; o rosto da Senhora foy tirado ao natural pelo da Rainha, Santa Izabel, & o do Menino se retratou natural tamem ao do Infante D. Affonso, seu filho”. Fr. Luís de SOUSA, História de São Domingos, Lisboa, Porto, Lello. 1977 (1623,1662,1678). p. 327 e ss. 10. Cf. José-Augusto FRANÇA, O retrato na Arte Portuguesa, Lisboa, Livros Horizonte, 1981, p. 13. 11. Cf. por exemplo Édouard POMMIER, Théories du Portrait. De la Renaissance aux Lumières, Paris, Gallimard, 1998. 12. Cf. por exemplo Jacques PAVIOT, Portugal et Bourgogne au XVe siècle, Paris, Centre Culturel Calouste Gulbenkian, 1995.


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13. Sobre o retrato de autoria de Malouel, nada se sabe a não ser que foi enviado à coroa portuguesa. Sobre o retrato de Van Eyck, e pesar de ainda não ter sido localizado o exemplar original, existe uma cópia Seiscentista aguarelada desse retrato, à guarda do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, e que nos revela um retrato de grande qualidade e de acordo com a iconografia mais actual do tempo. É possível que o rei D. João I tivesse mandado copiar este retrato para manter junto de si uma reprodução da sua filha que abandonava agora a corte de Lisboa para a Borgonha. Relativamente ao retábulo de Van der Weyden, conhecemo-lo apenas através de um desenho oitocentista de autoria de Domingos Sequeira, pertencente à colecção do Museu Nacional de Arte Antiga. 14. Cf. Artur da Motta ALVES, Os Painéis de São Vicente num códice da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Lisboa, Academia Nacional de BelasArtes, 1936 e Luís Urbano AFONSO, Convento de São Francisco de Leiria - estudo monográfico, Lisboa, Livros Horizonte, 2003.

fig.1 autor desconhecido - infanta d. isabel - reprodução aguarelada - séc. xvii - ian/tt.

da Borgonha, D. Isabel, onde se representavam três retratos integrados de doadores, são episódios de uma história do retrato que, em nosso entender, estão longe de ser apenas esporádicos.13 O antigo retábulo do altar-mor da primitiva igreja de Santo António de Lisboa, o retrato de D. Duarte existente na sacristia do mosteiro de São Domingos de Lisboa ou o mural da igreja de São Francisco de Leiria constituem exemplos bem elucidativos dessa história que pode bem ser enriquecida com novos episódios, através de novas descobertas no futuro.14 O intercâmbio cultural entre Portugal e os centros europeus mais avançados permitiu seguramente para que o horizonte nacional se moldasse, ainda que lentamente, à modernidade. Não deveremos esquecer neste contexto de permuta artística, a estadia entre nós de retratistas estrangeiros que terão introduzido novas práticas e modelos de execução. São conhecidos os casos de Van Eyck ou de Lluis Dalmau, ou ainda do enigmático Holfowander, que fora incumbido pela corte germânica de

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fig.2 autor desconhecido. infanta d. joana – cópia de original perdido museu de aveiro. © imc/ddf.

retratar a infanta D. Leonor, filha de D. Duarte, futura esposa do Imperador Frederico III. É bem provável que a infanta D. Joana (Fig.2), filha de D. Afonso V, tenha sido igualmente retratada por ocasião dos projectos de consórcio, ainda que frustrados, do casamento com Francisco II, Duque da Bretanha, ou com o príncipe Carlos, futuro Carlos VIII, filho do rei de França Luís XI. 15

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15. É bem provável que o retrato de D. Joana, hoje exposto no Museu de Aveiro e proveniente do Mosteiro dominicano de Jesus da mesma cidade, seja uma cópia desse original, entretanto perdido.


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16. Sobre a “Questão dos Painéis”, ver obrigatoriamente Paula FREITAS e Maria de Jesus GONÇALVES, Painéis de S. Vicente de Fora - Uma questão inútil ?, Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1987 e Albino LAPA, História dos Painéis de Nuno Gonçalves, Lisboa, 1935. 17. Sobre o estudo iconológico da obra ver os trabalhos recentes de Fernando António Baptista PEREIRA, Imagens e Histórias de Devoção - Espaço, Tempo e Narrativa na Pintura Portuguesa do Renascimento (1450-1550), tese de Doutoramento policopiada, Lisboa, Faculdade de BelasArtes da Universidade de Lisboa, 2001 e Pedro FLOR, A Arte do Retrato em Portugal - entre o fim da Idade Média e o Renascimento, tese de Doutoramento policopiada, Lisboa, Universidade Aberta, 2006. 18. Cf. Francisco Pereira PESTANA, Repartição Q. fés Frco. Perª Pestana Pª Se Cõquistar o Reyno de Fez, [cª 1531]. Sobre a tapeçaria da Conquista de Tunes, ver, por exemplo, Annemarie JORDAN, Portuguese Royal Collections (1505-1580), dissertação de Mestrado policopiada, Washington: George Washington University, 1985. A presença do Memorial da Batalha do Salado numa das capelas da Sé de Lisboa reforça o sentido simbólico deste templo no contexto da guerra contra os infiéis. 19. Cf. Ana Paula ABRANTES e Ignace VANDVIVERE, Nuno Gonçalves - Novos Documentos - Estudo da Pintura Portuguesa, Lisboa, IPM, 1994 20. Referimo-nos em concreto, no painel do Infante, à figura que se encontra ajoelhada em frente a São Vicente, ao homem do chapeirão e à figura de mulher mais idosa. No painel do Arcebispo, o próprio Arcebispo e o rosto de perfil que o ladeia. No painel da Relíquia, a figura que a exibe e a que se encontra por detrás dela, a folhear um livro.

Deixando de parte, por ora, outros exemplos efectuados durante o século XV, casos do conjunto fresquista da igreja de São Francisco do Porto (com modificações posteriores), do retábulo do Infante Santo do Museu Nacional de Arte Antiga, proveniente do Mosteiro da Batalha, ou do retrato de D. Nuno Álvares Pereira, outrora no Mosteiro do Carmo em Lisboa, importa salientar a singularidade do conjunto retabular, dedicado a São Vicente (Fig.3) e de autoria do pintor régio Nuno Gonçalves, dantes na capela-mor da Sé de Lisboa e hoje no Museu Nacional de Arte Antiga (cª 14601470). Este retábulo, integrado no altar das relíquias do Santo mártir, parece aglutinar as duas principais orientações, predominantes na arte do retrato em território nacional. Por um lado, o carácter informativo e propagandístico da situação social do representado, que se destaca dos demais membros da comunidade que observa a imagem. Por outro, a integração próxima do retratado com as personagens relativas à dimensão do sagrado. A apelidada “questão dos painéis” não tem cabimento no presente artigo e, por isso, deixamo-la de parte, remetendo o leitor para bibliografia especializada na matéria.16 Somos de opinião que este políptico, de que fazem parte as seis tábuas alusivas à série dos Milagres e da Veneração do Santo e a tábua e meia da série dos martírios, foi encomendado, durante o reinado de D. Afonso V, não só como enaltecimento das guerras travadas pelo rei no norte de África, como também em agradecimento a São Vicente pela protecção divina dispensada nessas campanhas gloriosas (Alcácer Ceguer 1458, Arzila e Tânger 1471).17 A importância simbólica e o peso político deste majestoso retábulo lisboeta foram de tal modo marcantes no tempo que, ainda no século XVI, em pleno reinado de D. João III, era costume rezar frente ao altar de São Vicente, antes de uma campanha militar. Assim se justifica também que a memória colectiva da cidade de Lisboa relacionasse o espaço catedralício, nomeadamente a capela-mor, com a comemoração dos feitos guerreiros na conquista de novos territórios e na evangelização além fronteiras, através da colocação da série de tapeçarias da Conquista de Tunes de autoria de Willem de Pannemaker, por ocasião da cerimónia de bênção da bandeira do exército na Sé em 1578, vésperas da campanha de Alcácer Quibir.18 Tem-se incorrido, entre outros erros, na tentativa de identificar todas as personagens representadas no conjunto pictórico de Nuno Gonçalves, esquecendo-se os autores que nem todas as figuras nele presentes são retratos, conforme ficou provado através da análise do desenho subjacente das seis tábuas da Veneração.19 Como se pode observar, apenas certas personagens, cujo desenho subjacente, obtido através do processo de decalque, denunciam a evidente vontade de representar um rosto exacto, num espaço reservado, e previamente estabelecido, na fase da execução pictural.20 As restantes figuras, que revelam marcações genéricas e pouco definidas (geralmente resumidas aos globos oculares e aos contornos das faces) não foram talvez colocadas neste retábulo com a intenção de se apresentarem como retratos concretos, mas apenas como figuras de expressão personalizada ou criptorretratos. Antes da execução pictural, e talvez na fase de projecto, Nuno Gonçalves esboçou a maior parte dos rostos, reservando para os retratos lugares bem definidos que, com certeza, obtiveram a anuência dos encomendantes.

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fig.3 nuno gonçalves - painéis de são vicente - cª 1460-1470 - mnaa. © imc/ddf.

Outro dos aspectos, que nos parece fulcral para promover uma leitura segura dos “Painéis”, é a figuração conjunta de personagens ainda vivas ao tempo da realização dos mesmo, em estreito convívio com outras, já falecidas há mais anos.21 A pintura do século XV europeu, e em Portugal não terá sido excepção, admitia a convivência entre defuntos e vivos, tendo em conta a estratégia utilizada pelo artista no processo de narração da obra. A data de óbito de qualquer personagem não deve constituir factor de exclusão para que possa figurar neste conjunto retabular.

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21. Cf. por exemplo com as já citadas obras de Lorne Campbell e John Pope-Hennessy indicadas na bibliografia final.


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Não sendo agora oportuno analisar em profundidade todo o programa artístico do antigo retábulo do altar vicentino na Sé de Lisboa, resta-nos sublinhar que, no derradeiro quartel do século XV, o fiel que se acercasse desse altar, poderia não só receber o ensinamento da vida do Santo e dos seus milagres, como também reconhecer os verdadeiros comitentes da obra, a saber, a Coroa, em conjunto com a Vereação da Câmara de Lisboa e o Cabido catedralício. Tal manifestação propagandística por parte de D. Afonso V, só foi possível através do recurso ao género artístico que, por

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fig.4 nicolau chanterene - d. manuel i e são jerónimo - 1517 ? - mosteiro de santa maria de belém (lisboa). © igespar. ip dida af. fotografia de luís pavão.

fig.5 mestre da lourinhã - príncipe d. joão e s. joão baptista. cª 1515 - mnaa. © imc/ddf.

excelência, comemora os vivos e os conduz à eternidade terrena e celeste. O forte pendor individualista do olhar de cada uma das figuras atinge mesmo o patamar do retrato psicológico, nem sempre conseguido pelos artistas do tempo, e que traduz as influências da corrente flamenga e da corrente catalã, de sabor transalpino, bem sintetizadas na arte de Nuno Gonçalves, uma verdadeira águia da pintura moderna, no dizer de Francisco de Holanda.22 Chegaram-nos escassos testemunhos elucidativos da arte do retrato em Portugal do período relativo ao reinado de D. João II. As notícias esporádicas, intimamente relacionadas com a retratística, pouco ajudam na tarefa de compreender o sucedido,

22. Cf. Francisco de HOLANDA, Da Pintura Antiga [1548], ed. Angel GONZÁLEZ GARCIA, Lisboa, INCM, 1983. p. 352.

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23. Cf. Artur da Motta ALVES, op. cit., p. 7. 24. Por exemplo, os casos presentes nas Ordenações Manuelinas (1512-1514), no 1º Livro de Além-Douro da Leitura Nova (1º quartel do século XVI) e ainda no Missal Rico do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra (cª 1517-1526). 25. Francisco Henriques, António de Holanda, Frei Carlos ou o Mestre da Lourinhã são faces evidentes dessa corrente flamenga na pintura e, de todos eles, temos registo de terem praticado a modalidade de retrato. No campo da escultura, refira-se o caso de Nicolau Chanterene que terá recebido, numa primeira fase, a sua formação artística nos ateliers borgonheses, como deixámos escrito em outro lugar. Cf. Pedro FLOR, O Túmulo de D. João de Noronha e de D. Isabel de Sousa na igreja de Santa Maria de Óbidos, Lisboa, Ed. Colibri, 2002.

embora indiciem mais a continuidade da época anterior do que a ruptura. A juntar a este cenário, devemos lembrar que o desconhecimento total da obra dos artistas activos no derradeiro quartel do século XV, como os pintores Afonso Gomes, Fernão Afonso, Fernão Cerveira e, possivelmente, Nuno Gonçalves, não nos permite tirar mais conclusões a respeito da arte do retrato da época. O episódio da troca de retratos entre as coroas de Portugal e de Castela, por ocasião do matrimónio entre o infante D. Afonso, filho de D. João II e D. Leonor, e a infanta D. Isabel, filha dos Reis Católicos, não é suficientemente esclarecedor sobre a matéria, indicando-nos apenas a prática corrente, a que já nos referimos acima. Na mesma sequência dos modelos executados na primeira metade da centúria, deriva o desaparecido retábulo que ornava a capela do altar de Jesus no mosteiro de São Domingos de Lisboa (cª 1480-1490 ?), onde se podia admirar a presença de retratos integrados de doador do casal régio, custodiados por São Jorge e São Domingos.23 A avaliar pela descrição e pelo que fica dito anteriormente, podemos afirmar que a arte do Retrato parece não sofrer grandes alterações morfológicas, quer no seu sentido iconológico, quer na sua vertente estilística de sabor flamengo. No início do século XVI, verificamos que a encomenda de retratos se mantém, quase sempre, ligada à elite cortesã. D. Manuel I e a entourage mais próxima afiguram-se como os principais comitentes de obras, onde surgem representados retratos. Comecemos por caracterizar o caso do monarca Venturoso. Dele chegaram-nos dois tipos de registo distintos: um de carácter simbólico e outro de carácter retratístico. O primeiro traduz-se em imagens plenas de idealismo, apresentando-se de modo simbólico e icónico.24 Por sua vez, o segundo tipo expressa-se em figuras bem caracterizadas e individualizadas. Neste último caso, que importa agora examinar, os exemplos presentes nos vitrais da capela-mor da igreja do Mosteiro da Batalha e na porta axial da igreja do Mosteiro dos Jerónimos em Lisboa (Fig.4) são bem elucidativos daquilo que constituiu a arte do retrato no período manuelino. A antiga série de retratos reais do convento de Nossa Senhora da Serra de Almeirim, de que resta apenas um D. João, futuro D. João III (Fig.5), e um seu irmão (D. Luís ?), mas onde sabemos existia um retrato de D. Manuel e da sua segunda esposa D. Maria; o Fons Vitae da Misericórdia do Porto, onde o casal régio se fez representar com a respectiva prole; o tríptico da Misericórdia do Funchal, obra presumivelmente de importação e, também, as esculturas do portal da igreja da Conceição Velha em Lisboa entre outros espelham bem as preocupações manifestadas pela coroa na acção propagandística de uma imagem de poder. Podemos afirmar que D. Manuel quis deliberadamente insistir na sua representação, e na de sua família, no sentido de demonstrar aos súbditos dois factos distintos: a legitimidade que teve em assumir o trono, após a morte de D. João II, e a inexistência de qualquer problema na respectiva sucessão. Salientem-se as influências do Norte da Europa nos exemplos referidos e que demonstram a tamanha aceitação recebida entre nós. Além de uma preferência acentuada pelos modelos flamengos, não nos podemos esquecer que a maior parte da mão-de-obra que executou as empreitadas artísticas, onde figuram retratos, tinha origem ou formação estética no mundo nórdico.25

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Apesar de conseguirmos detectar alguns exemplares de retrato em vários lugares, não nos foi possível detectar o registo de obras deste género artístico na colecção privada de D. Manuel. A documentação sugere-nos que a colecção deste monarca contava antes com a presença de objectos preciosos variados, fruto de aquisições ou de ofertas, tais como peças de ourivesaria, joalharia, tapeçarias, armaria, livros iluminados e objectos exóticos, provenientes de África e do Oriente.26 Embora tal não signifique que os retratos fossem inexistentes, uma vez que nem sempre os inventariadores os descreviam, é difícil entender qual o verdadeiro peso da retratística na colecção de D. Manuel que, em colecções similares na Europa, marcavam já presença, lado a lado com outras preciosidades reunidas. Os contactos comerciais e institucionais entre cortes, a banalização do gosto pelo Retrato, sem esquecer os vários consórcios matrimoniais negociados durante o reinado de D. Manuel poderão ser argumentos que desmentem a aparente falta de retratos nas colecções reais. A arte do retrato no tempo de D. Manuel não foi um exclusivo da corte. As classes sociais mais abastadas da sociedade portuguesa, sobretudo elementos afectos à nobreza e ao clero, socorreram-se com frequência de tal género artístico para a autopromoção e para ornamentar espaços religiosos. Apesar de existir entre nós artistas capazes de realizar retratos de qualidade, essencialmente junto aos centros urbanos de maior expressão, é preciso reconhecer que tal disponibilidade laboral nem sempre se verificava nas regiões periféricas.27 Os artistas locais, quase sempre detentores de menores recursos, eram os eleitos para satisfazer as exigências pretendidas. Por vezes, a importação de obras de arte procurou colmatar a falta de mão-de-obra especializada e a encomenda de retratos, sobretudo integrados, não foi excepção.28 Esta tipologia de retrato parece ter sido, de facto, a mais apetecida, reforçando o sentido da arte do Renascimento em Portugal que se mantém fiel à sua matriz religiosa, acumulada ao longe de vários séculos. Será durante o reinado de D. João III que assistiremos ao percurso da arte do retrato em direcção à progressiva laicização do seu significado intrínseco, sem contudo abandonar definitivamente o sentido devocional. Nos primeiros anos da governação joanina, as práticas representativas da figura humana mantêm a maior parte das características formais e plásticas assinaladas na época anterior, situação reveladora do sucesso atingido por esses esquemas de composição e pelas tonalidades cromáticas e brilhantes de cariz flamengo e perpetuada pelas gerações artísticas subsequentes, formadas nas oficinas mais destacadas do país, em especial a de Lisboa. Ainda assim, verificamos algumas modificações na introdução de retratos de doadores na disposição geral da obra, nomeadamente na diluição dentro do episódio representado em vez de uma presença destacada na ribalta. Tanto na Adoração dos Magos (Fig.6) do antigo retábulo da capela do Salvador na igreja do Mosteiro de São Francisco de Lisboa (cª 1520-1525), de autoria de Gregório Lopes e Jorge Leal, como na Deposição de Cristo no Túmulo do antigo conjunto retabular da igreja do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra (cª 1520-1530), de autoria de Cristóvão de Figueiredo, ambas no Museu Nacional de Arte Antiga, vislumbramos a presença de retratos, verosimilmente os encomendantes, em segundo plano. 29 Esses retratos,

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26. Cf. por exemplo Nuno Vassalo e SILVA, As Colecções de D. João IV no Paço da Ribeira, Lisboa, Livros Horizonte, 2003. 27. O desenvolvimento de oficinas de pintura em regiões como, por exemplo, Viana do Castelo, Guimarães, Aveiro e Coimbra reflecte essa procura crescente de obras de pintura, onde, quando necessário, se incluía um retrato do encomendante. 28. O retábulo da igreja de São Pedro de Miragaia no Porto, o tríptico da Descida da Cruz do Museu de Arte Sacra do Funchal, proveniente da igreja do Convento da Piedade de Santa Cruz (ilha da Madeira), ou ainda o retábulo dos Reis Magos da capela da mesma invocação na Calheta são exemplos demonstrativos desta situação. A realização de exames laboratoriais e fotográficos a estas pinturas poderá esclarecer-nos sobre o processo criativo destes retratos integrados. 29. Juntem-se a estes dois exemplos, os presentes na igreja de Santa Iria da Azóia (cª 1530), filiável na arte de Gregório Lopes, e na colecção Palmela, outrora na igreja de Santa Maria da Alcáçova de Montemor-o-Velho (cª 1525-1530), de autoria presumida de Garcia Fernandes.


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30. Se a comparação plástica entre os dois grupos de retratos não for suficiente para pressentirmos o mesmo pincel, a presença de Cristóvão de Figueiredo como testemunha no contrato de acrescentamento da marcenaria retabular parece autorizar a colaboração deste pintor na empreitada, nomeadamente ao nível da execução dos retratos. Uns anos mais tarde, tal como a leitura cuidada da documentação deixa antever, voltaremos a encontrar Figueiredo envolvido na realização de um retrato, desta vez de D. Pedro Gonçalves, Arcediago da Sé de Lamego, no retábulo para a igreja de Valdigem, onde colaborava também o pintor Bastião Afonso. Cf. Vergílio CORREIA, Pintores Portugueses dos séculos XV e XVI, Coimbra, 1928, p. 67-69. Sobre a possível intervenção do pintor Jorge Leal no conjunto de São Francisco de Lisboa, ainda não foi hoje possível determinar exactamente o seu contributo.

de fisionomia bem vincada e de soberba execução, capazes de captar a dimensão psicológica do modelos, são apontamentos retratísticos de elevada qualidade. Dadas as semelhanças plásticas e as coincidências documentais, podemos aceitar que Cristóvão de Figueiredo seja o responsável por tais momentos retratísticos, fazendo dele um pintor e debuxador de inegáveis recursos.30 Quando necessita de importar obras de pintura, o gosto nacional mantém a preferência pelo mercado flamengo e pelo modo como é apresentado o doador: rosto terçado, ajoelhado, de mãos postas, e com o Santo patrono bem por perto. 31 Esta receita, repetida por artistas nacionais, prolongou-se para lá do reinado de D. João III e parece ter conhecido adeptos, ainda no século XVII.

31. O retábulo da igreja do Porto da Luz (cª 1555-1560), atribuível a Diogo Contreiras, pode integrar-se neste gosto prolongado e, por que não tardio, do modo quatrocentista flamengo de representar os doadores. O conjunto de retratos reais, aproximáveis à arte de Lourenço de Salzedo na Madre de Deus em Lisboa, mais tarde inspirador do retrato seiscentista de D. Maria Francisca de Sabóia no convento lisboeta das Francesinhas (actualmente no Museu dos Coches) é testemunho dessa continuação de formas e soluções plásticas, reunindo-se num só retrato os pressupostos da retratística em contexto religioso com os do retrato de corte.

fig.6 gregório lopes e jorge leal ? - adoração dos magos - cª 1520-1525 - mnaa. © imc/ddf.

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Tanto na escultura, como na iluminura, os exemplos de retrato obedecem aos cânones definidos pela arte da pintura, repetindo quase sempre o mesmo formulário. A representação dos doadores das obras surge, quase sempre, como se de volantes se tratasse, sobretudo no primeiro caso.32 Por vezes, os doadores surgem apenas diante da figura sagrada (quase sempre uma Virgem com um Menino), sem a intercessão do Santo patrono, o que denota maior arrojo iconográfico e simbólico.33 No que diz respeito à retratística de corte, verificamos que é no reinado de D. João III que se assiste ao incremento acentuado de encomendas. A presença de um retratador com as capacidades de António de Holanda, muito louvadas por seu filho Francisco

fig.7 antoine trouveron ? - infanta d. maria - cª 1541-1543 ‑ museu condé (chantilly).

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32. O retábulo de Nicolau Chanterene na igreja do Mosteiro de São Marcos em Tentúgal (cª 1522) e o retábulo de João de Ruão, dedicado a São Marcos, na igreja do Salvador em Coimbra (cª 1545?) revelam bem a influência sofrida pelos trípticos de pintura que povoavam amiúde os interiores nacionais. 33. Destaquem-se, entre outros, o retábulo da igreja matriz da Ega (1543?) de Diogo Contreiras (?) ou o painel do Pentecostes (cª 1540-1550) de António Vaz (?), outrora na capela da Casa do Senado da Câmara de Guimarães e hoje no Museu de Alberto Sampaio, são exemplos desta morfologia de retrato.


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34. Cf. Pedro FLOR, A Arte do Retrato.... 2006. p. 545-566 em particular. Sobre este pintor francês, ver mais recentemente Annemarie Jordan-Gschwend, “Antoine Trouvéon, un portraitiste de Leonor d’Autriche récement découvert”, Revue de l’Art, nº159, 2008, pp. 11-19.

fig.8 anthonis mor - d. catarina de áustria. 1552 - museu do prado.

de Holanda, a vinda a Portugal na década de 40 do pintor francês Antoine Trouveron a mando da rainha de França D. Leonor de Áustria para retratar a filha, a Infanta D. Maria (Fig.7), e o gosto coleccionista e legitimador de poder, demonstrado por D. Catarina, mulher de D. João III, fizeram da corte portuguesa um local de confluência de experiências e de renovação estética que modificaram a paisagem retratística e que não cabe aqui desenvolver com pormenor.34 É, pois, neste contexto de novidade que devemos entender a criação de uma galeria de retratos no Paço da Ribeira, por parte de D. Catarina de Áustria, de acordo com uma tradição familiar, onde po-

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a a r t e d o r e t r ato e m p o r t u g a l n o s s é c u l o s x v e x v i

díamos admirar as imagens dos familiares mais próximos da rainha, como meio de afirmar o poder da casa de Habsburgo que conseguira, no meado do século, sentar um elemento da dinastia em cada trono europeu.35 Este acervo de retratos foi constituído progressivamente e, em 1557, contavam-se já vinte e nove retratos, alguns dos quais ainda existem, embora dispersos por núcleos museológicos estrangeiros. Tal como ficou comprovado, os quadros desta colecção eram originais ou réplicas devidas a mestres tão prestigiados como Jan Gossaert, Jan Vermeyen, Barend Van Orley, Hans Holbein, Ticiano, Alonso Sánchez Coello e Anthonis Mor.36 De resto, é a visita deste último pintor, acompanhado de alguns colaboradores e possivelmente do carpinteiro de marcenaria Martim de Bruges, que se assiste ao triunfo do retrato de corte em Portugal. A vinda deste pintor ao nosso país, durante o ano de 1552 e parte do de 1553, possibilitou à coroa portuguesa ocasião única para lhe encomendar vários retratos, além dos que tinham sido pedidos por Maria da Hungria, irmã de D. Catarina, e Regente dos Países Baixos, que enviara Mor a Portugal para retratar os familiares mais chegados (Fig.8). O retrato de estado, ou de aparato, sobretudo repetido no seio da corte imperial por pintores como Ticiano e Mor, visava apresentar um modelo, em suporte de maiores dimensões do que um mero retrato individual, como um ser de enorme poderio social e influência política. Assim, o retrato de corte deixa de fazer representar a pessoa enquanto indivíduo, apresentando-o antes como evocação de princípios de natureza abstracta de poder e de nobreza, que deverão reger a sua conduta e a de quem admirar o retrato. Tais valores traduzem-se não só no fundo negro de onde sobressai a imagem, como também no traje opulento, nos atributos ostentados, na pose retórica e até na expressão grave do rosto que assim impõe a sua imagem perante o observador. A galeria de retratos de D. Catarina de Áustria no Paço da Ribeira patenteia pois um discurso afirmativo da autoridade soberana da dinastia Avis/Beja, unida por laços profundos à toda-poderosa casa dos Habsburgo. Depois da estadia de Mor e seus colaboradores no nosso país, o horizonte da paisagem retratística jamais voltou a ser a mesma e os modelos do pintor flamengo perpetuaram-se na arte portuguesa ao longo de várias décadas.37

Bibliografia CAETANO, Joaquim de Oliveira, “O Retrato e a Paisagem”, in O Tempo de Vasco da Gama, CURTO, Diogo Ramada (dir.), Lisboa, Difel, 1998, pp. 99-111. CAMPBELL, Lorne, European Portrait-Painting in the 14th, 15th and 16th Centuries, New Haven-London, Yale University Press, 1990. CASTELNUOVO, Enrico, Portrait et Société dans la Peinture Italienne, Paris, Gérard Monfort, 1993.

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35. Cf. Annemarie JORDAN, O Retrato de Corte em Portugal - O legado de Anthonis Mor, Lisboa, Ed. Quetzal, 1994, p. 79-103. 36. Além destes pintores, existiram provavelmente obras de Francisco de Holanda, Cristóvão de Morais e Jooris Van der Straeten, artistas particularmente activos na corte portuguesa, sobretudo nos meados do século XVI. 37. Entre outros exemplos que poderíamos dar, escolhemos o do Retrato de Jovem Cavaleiro, do Museu Nacional de Arte Antiga, datável de 1557, e que representa o Condestável do reino D. Duarte, sobrinho de D. João III e filho de D. Duarte e de D. Isabel de Bragança. Independentemente da autoria a encontrar num futuro próximo, o modo de compor esta obra, bem como a paleta cromática utilizada, são fortes sintomas da influência exercida pelos modelos de Anthonis Mor.


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FLOR, Pedro, “Historiografia da arte do Retrato renascentista em Portugal”, in II Congresso Internacional de História da Arte 2001 – Actas, Coimbra, Almedina, 2004, pp. 205-216. IDEM, A Arte do Retrato em Portugal: entre o fim da Idade Média e o Renascimento, Lisboa, tese de Doutoramento apresentada à Universidade Aberta, 2006. FRANCASTEL, Galienne e Pierre, El Retrato, trad. espanhola, Madrid, Cátedra, 1998. FRANÇA, José Augusto, O Retrato na Arte Portuguesa, Lisboa, Livros Horizonte, 1981. HOLANDA, Da Pintura Antiga [1548], ed. Angel GONZÁLEZ GARCIA, Lisboa, INCM, 1983. IDEM, Do Tirar polo Natural [1549], introdução, notas e comentários por José da Felicidade ALVES, Lisboa, Livros Horizonte, 1984. JORDAN, Annemarie, O Retrato de Corte em Portugal: O legado de Anthonis Mor, Lisboa, Quetzal Editores, 1994. PEREIRA, João Castel-Branco e SILVA, Nuno Vassallo e (coord.), A Arte do Retrato. Quotidiano e Circunstância, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1999. POMMIER, Édouard, Théories du Portrait. De la Renaissance aux Lumières, Paris, Gallimard, 1998. POPE-HENNESSY, John, El Retrato en el Renacimiento, trad. espanhola, Madrid, Ed. Akal, 1985. SERRÃO, Vítor, “A imagem de Vasco da Gama e as representações do mar e da guerra – Sobre pintura & pintores do tempo da descoberta”, in O Centenário da Índia (1898) e a Memória da Viagem de Vasco da Gama, Lisboa, CNCDP, 1998, pp. 185-201. IDEM, História da Arte em Portugal - O Renascimento e o Maneirismo, Lisboa, Ed. Presença, 2002. IDEM e MOURA, Vasco Graça, Fernão Gomes e o Retrato de Camões, Lisboa, CNCDP / Fundação Oriente / INCM, 1989.

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Resumo A profunda renovação da imagem do poder levada a cabo por D. João V — por razões estratégicas de afirmação interna e externa do Reino e, por conseguinte, do monarca que o protagonizava — projectar-se-ia, necessariamente, numa renovação da imagem do Rei e da cenografia em que se move, que se pretendiam pautadas pelos critérios europeus, que o mesmo é dizer de matriz versalhesca. A sua afirmação, porém, como a sua difusão, impunham um investimento sistemático nas diversas áreas artísticas que poderiam codificá-la, fixá-la e projectá-la em círculos de maior ou menor amplitude. É neste contexto que — a par de outros géneros, como a gravura, a medalhística e a numismática ou o monumento (e com eles se inter-relacionando) — se afirma a importância estratégica do retrato de Corte. Neste artigo procura analisar-se esse processo, bem como a conjuntura em que se desenvolve.

palavras-chave d. joão v retrato barroco imagem do poder escultura

Abstract The profound renovation of the image of power led by D. João V – due to strategic reasons of internal and external affirmation of the kingdom and, consequently, of the monarch – would lie in renewing the King’s image and setting, marked by European criteria, which at the time would have come from Versailles. The affirmation, however, as well as the dissemination, imposed a systematic investment in the most diverse artistic areas which would create and establish a code, which in turn would be disseminated among circles of smaller or larger range. It is in this context that – along with other genres, like engraving, medals and numismatics or monuments (which would interrelate) – that the Court portrait gains strategic significance. This article proposes to analyze this process, as well as the conjuncture in which it develops.

key-words d. joão v portrait baroque image of power sculpture


os pintores de d. joão v e a invenção do retrato de corte

a ntó ni o f i l i pe pi m e n t e l Instituto de História da Arte da Universidade de Coimbra.

1. Cfr. PIMENTEL, António Filipe, Arquitectura e Poder: o Real Edifício de Mafra, Lisboa, Livros Horizonte, 2002, pp. 29-35. 2. Cfr. APOSTOLIDÈS, Jean-Marie, Le Roi-Machine, spectacle et politique au temps de Louis XIV, Paris, Minuit, 1981. 3. Cfr. PIMENTEL, A. F., ob. cit., pp. 75-100. 4. Cfr. em geral HESPANHA, António Manuel, “Para uma teoria da História institucional do Antigo Regime”, Poder e instituições na Europa do Antigo Regime, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1984.

“Não há poder sem imagem, mas o que leva mais tempo a perfazer é a imagem do poder.” José-Augusto França

A profunda renovação das estruturas do Estado e do País levada a cabo no reinado de D. João V e que teria na pessoa do monarca o seu protagonista central, assenta, como é sabido, em dois pilares fundamentais: o reforço do poder real e da visibilidade da Coroa, no plano interno e, no externo, a reivindicação de um lugar de primeira grandeza para o seu Reino, no concerto das nações1. Uma visibilidade que, em tempo de Barroco, passava necessariamente pela construção de uma imagem de poder, configurada a um modelo de apresentação também ele barroco e que, consabidamente codificado por Luís XIV, se difundira entretanto, mais ou menos uniformemente, pela chamada Europa das Cortes: essa, onde o Rei trabalhava por alcançar um lugar de primeiro plano. E, no centro dessa imagem (porque no centro do sistema) situavase, naturalmente, a imagem do Rei, por seu turno objecto, também ela, de uma codificação internacionalmente difundida2. O retrato de Corte (entendido como o retrato barroco de aparato) adquire, pois, em tal contexto, protagonismo especial, não somente enquanto objecto estético, mas como objecto político e importante instrumento de domínio. É, assim, neste plano que tem de situar-se a sua invenção no Portugal da primeira metade de Setecentos, num tempo e num contexto que assiste à invenção da própria Corte3. De facto, o Estado Absoluto gera-se num tempo de instabilidade e de conflitos, assente sobre uma sociedade complexa e rigidamente organizada, onde o seu domínio se dilui na trama obscura dos poderes periféricos4. Radica aí a dependência que fatalmente ostenta em relação a uma imagem que funciona como a ficção necessária de um poder, mais ambicionado e afectivo que verdadeiramente efectivo e real.

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A Monarquia joanina, em rota de aproximação cultural e política com o universo das suas congéneres europeias, entre as quais se procura afirmar, não poderia, naturalmente, distanciar-se do modelo geral e a grande novidade — em consistente construção, porém, desde os tempos de D. Pedro II (quando o ciclo da Restauração lentamente se fecha) — reside, justamente, na crescente abertura a um horizonte de ambições putativamente universal. É, pois, o mesmo arquétipo geral de mobilização totalitária, a partir da Corte (assumida como núcleo de visualidade central)5, do universo das disciplinas artísticas (das artes maiores ao artesanato de luxo, como já foi chamado) e, de um modo geral, dos dispositivos cerimoniais, que progressivamente se convoca, de molde a envolver, num

5. Cfr. ELIAS, Norbert, A sociedade de Corte, Lisboa, Editorial Estampa, 1987 e LE ROY LADURIE, Emmanuel, “Auprés du Roi, la Cour”, Annales, économies, societés, civilizations, 38e Année, nº 1, Paris, 1983.

fig.1 claude laprade, busto d. pedro ii (coimbra, gerais da universidade). © fotografia de antónio filipe pimentel.

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6. Cfr. PIMENTEL, A. F., ob. cit., pp. 83-100. 7. Cfr. STAROBINSKY, Jean, L’Invention de la Liberté, 1700-1789, Génève, Skira, 1964, p. 14. 8. Testamento Politico, Lisboa, 1820, p. 61. 9. Sobre a utilização dos agentes diplomáticos na aquisição do guarda-roupa real, numa actividade hoje surpreendente, que chegaria a incluir episódios de verdadeira espionagem, veja-se PIMENTEL, A. F., ob. cit., pp. 67-68. 10. Description de la ville de Lisbonne, oú l’on traite de la Cour, de Portugal…, Paris, 1730, pp. 66.

halo de magnificência e pompa, a pessoa do soberano e o cenário em que se move e onde leva a cabo a representação do Estado que personifica. O modelo luíscatorziano de grandeur funcionaria, assim, em Portugal como em toda a parte, como eixo estruturante de um discurso que, todavia, naturalmente se adapta ao recorte específico de uma situação original concreta (a nossa): essencialmente através das limitações espaciais impostas a uma visualização áulica de matriz estritamente laica, politicamente inviável no quadro sócio-cultural onde o Magnânino deve inscrever a sua acção — e que conduz a uma hipertrofia estratégica da vertente eclesiástica da Corte lusitana, consubstanciada na instituição da Patriarcal6. Apesar disso e em termos gerais (em Portugal como em toda a Europa do Barroco), é sempre a constatação do valor eminentemente simbólico e político da ostentação do luxo que se verifica, enquanto sinónimo da majestade de um poder que se materializa sob as espécies sensíveis, ao mesmo tempo que se revela capaz de renovar em permanência as suas manifestações7: convertendo-se, por isso, não somente em elemento imprescindível da sua exaltação, como, mesmo, no ingrediente central da própria imagem. De facto, emergindo, pouco a pouco, do declinar do século XVII, onde, no epílogo do Portugal Restaurado, brota e se movimenta, com crescente à-vontade, um círculo estrangeirado com importantes ligações internacionais e progressivamente consumidor de produtos europeus (entre o qual, evidentemente, o próprio Rei se educa e vai, pouco a pouco, desenhando o que virá a ser o seu projecto de poder), este conjunto de ideias projectar-se-á, desde logo, numa verdadeira metamorfose da aparência da própria pessoa do monarca (e, por sua influência, do círculo que o rodeia e onde se leva a cabo a sua exibição), sob o impacte daquilo a que D. Luís da Cunha chamaria “a primeira droga, que França nos manda, que he a moda” 8. Alteração radical, essa (com necessário impacte ao nível das práticas sociais e das próprias mentalidades da classe dirigente) que, mesmo que preparada desde o declinar da anterior centúria, atingirá o carácter de uma verdadeira revolução, justificando, por isso mesmo, não somente que o soberano assuma pessoalmente a sua direcção, mas que, em seu benefício, mobilize os instrumentos diplomáticos que o Estado coloca ao seu dispor9. E que, na verdade, não tardaria a projectar-se na visão que colhem os próprios forasteiros, eles mesmos, agora, veículos difusores de uma imagem régia plenamente integrada no padrão internacional: “Ce Prince (escreverá alguém) est d’une taille au dessus de la mediocre; & fort bien fait; il a le visage beau, quoiqu’un peu plombé, & l’air três majestueux; il est habillé à la Française, il fait venir de Paris ses habits qui sont superbes”10. Porém, esse efeito de uma magnificência sem limites, que se espera agora que o monarca irradie em seu redor — porquanto consubstancia, na sua pessoa, os atributos inerentes ao poder que personifica —, não pode, para ser eficaz, limitar-se ao pequeno círculo onde a régia personagem se desloca e se torna sensível pela presença física: a lógica do poder impõe-lhe, assim, que se propague de imediato, não apenas ao conjunto dos seus domínios, mas ao universo inteiro, onde se situa, de igual modo, uma parte significativa das suas ambições políticas. É nesse processo

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que intervém, desde logo, o mecanismo da lisonja, sob a modalidade literária do panegírico11, veiculando, no plano cultural, uma representação sublimada e centrípeta da realeza. Contudo, numa sociedade onde o poder apenas se pressente no momento em que se torna sensível, um espaço de particular relevo é confiado à sua representação visual: donde a importância central detida pelo retrato; donde, também, o carácter retórico que necessariamente reveste, porquanto, mais que a fixação da verdade física ou fisionómica do seu protagonista, lhe compete a transmissão, de modo transversal, das qualidades que é suposto deter — e por isso o retrato de aparato, mas igualmente o seu sucessivo desdobramento em múltiplas variantes, do retrato alegórico ao retrato-monumento: marcando a cidade por ruas e praças, circulando universalmente nos cunhos das moedas, assinalando a medalhística comemorativa, integrado entre os grandes da História nos thesauri de coleccionadores. Retrato-monumento, sempre, na sua explícita teatralidade, onde a retórica da representação consagra e eterniza a virtus do modelo. Retrato-propaganda, pois, em cuja divulgação a arte da gravura ocupará lugar central, de tanto maior impacte numa sociedade iconófila, que projecta na volúpia do consumo e organização de acervos de imagens o seu espírito enciclopedista. Essa a razão porque o retrato barroco se concebe como uma fachada: como um palco, onde é sempre implícita a presença do espectador, e em cujo interior, graças ao efeito mágico do cenário, se processa a transposição da personagem, do nível individual ao alegórico, movimentando-se com à-vontade num ambiente heróico, composto de panejamentos e arquitecturas monumentais e dos atributos que a distinguem e identificam e ajudam a representá-la, talvez não exactamente como é, mas como deveria ser ou, mesmo, como acredita ser 12. Não admira, por conseguinte, que o desenvolvimento de uma retratística de Corte eficaz acompanhe o investimento de D. João V na própria estrutura curial e, de um modo geral, na sua imagem de poder e que este não possa dissociar-se da expansão, de igual modo ressentida, pela disciplina paralela que, através da gravura, desenvolveria o tema do retrato alegórico, em íntima conexão com o panegírico, enquanto género literário e prática laudatória. O incremento do papel mecenático da Coroa, propiciaria, assim, a integração da imagética real entre os mecanismos da liturgia sacralizadora do poder, em géneros e suportes tão diversos quanto o permitiria o is lado meio artístico português (que o Rei herda e se esforça por romper): da pintura à gravura e à escultura e, desta, à medalhística e à numismática. Caberia, assim, ao retrato de Corte, nas suas múltiplas versões, a elaboração do paradigma oficial de representação individual do soberano — e, por extensão, da família real e do círculo áulico que o rodeia —, ao serviço do qual e na lógica dos desígnios que o alimentavam, se apropriam atitudes e fórmulas já consagradas no contexto internacional, com vista a enquadrar a régia efígie nos padrões europeus da representação cortesã: desígnio central que explica, desde logo, a utilização, em seu benefício, dos serviços de artistas estrangeiros, contratados adrede ou atraídos pela fama de generosidade do soberano português e, em qualquer caso, sempre familiarizados com os modelos que se visa adoptar.

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11. Cfr. FERRO, João Pedro, RÊGO, Manuela, “D. João V e a lisonja”, Congresso Internacional Portugal no Século XVIII. De D. João V à Revolução Francesa, Lisboa, Sociedade Portuguesa de Estudos do Século XVIII – Universitários Editora, 1991 e MOTA, Isabel Maria H. F. da, “A imagem do Rei na História Genealógica da Casa Real Portuguesa. Um estudo preliminar”, Revista de História das Ideias, vol. 11, Coimbra, 1989. 12. Cfr. ALEWYN, Richard, L’Univers du Baroque, Hambourg, Gonthier, 1959, pp. 51-55.


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fig.2 peter van den berg, alegoria ao casamento de d. joão v (lisboa, biblioteca nacional).

13. Cfr. SOBRAL, Luís de Moura, “Os retratos de D. João V e a tradição do retrato de Corte”, Claro-Escuro, nº 2-3, Lisboa, 1989, p. 31 e FRANÇA, José-Augusto, O retrato na arte portuguesa, Lisboa, Livros Horizonte, 1981, p. 39.

Objecto de uma progressiva atenção por parte da historiografia artística, não tem esta deixado, todavia, de sublinhar uma certa penúria deste género pictórico13: surpreendente se for tida em conta a importância de que se revestia, enquanto veículo privilegiado da retórica do poder. Contudo, mais talvez do que qualquer outro, ressentir-se-á este aspecto da politica artística do monarca, seguramente, pela fragilidade do material, das sequelas da grande catástrofe de 1755 que, ao quase destruir o Paço da Ribeira, subtrairia aos investigadores o núcleo central do espólio acumulado em quase meio século de activo mecenato: a que se acrescentariam as destruições causadas, já em finais da centúria, pelo incêndio da Real Barraca e a

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dispersão do património mobiliário da Coroa decorrente da transferência, em 1808, da Corte para o Brasil. Será, assim, um universo provavelmente pouco representativo, constituído por obras albergadas em edifícios periféricos, o que se oferece hoje à análise do investigador — desse modo, pois, sempre parcial. Apesar disso, não deixará de justificar que sobre ele se projecte um olhar crítico. Com efeito, remontarão ao declinar do reinado de D. Pedro II os primeiros esforços consistentes da adopção em Portugal de uma retratística áulica de aparato, susceptível de produzir uma imagem renovada e internacional da Corte portuguesa, em aberta ruptura com a tradição ibérica que, por longo tempo, a enformara: mesmo que tais esforços se ressintam, naturalmente, nas suas hesitações e timidez, dos próprios ritmos de consolidação do poder em função do qual se mobilizavam 14. Com esse desiderato se relacionará, decerto, a presença documentada, junto do monarca, do retratista francês Claude Le Bault (cuja obra se terá perdido) 15, bem como a renovação iconográfica que então se opera na retórica compositiva de obras gravadas de exaltação régia do seu tempo (incluindo já as primícias iconográficas do herdeiro D. João), essencialmente pela mão de gravadores flamengos, como os famosos Bouttats (Gaspar e Philibert16) e, por regra, com carácter ilustrativo de publicações mais ou menos directamente panegíricas, expoentes, também elas, da cultura literária do Barroco. Desígnio esse, porém, que se projectaria, na viragem do século e com eficácia quase inusitada, no busto do monarca, marcial e retórico, modelado, em 1701-02, na sobreporta do vestíbulo dos Gerais universitários de Coimbra, por Claude de Laprade: um francês (de Avignon), cuja chegada a Portugal, em condições ainda obscuras, marca também, no processo artístico, um ponto simbólico de retoma em relação a uma tradição de imigração artística que o longo século XVII havia interrompido. Nele se retoma (e se apropria), com efeito, o que de Luís XIV compusera Puget, seu putativo mestre (por esta via obtendo, em fim de contas, Laprade, uma indirecta confirmação oficinal), na esteira, por seu turno, do modelo que, para o mesmo monarca, em anos mais precoces concebera Bernini17. E com ele entrava na retratística real, sem transição e pela mão da escultura (até pelo seu carácter em certo modo monumental e público), uma linguagem nova que era também uma nova atitude cultural: configurando um azimute que, entre avanços e recuos, delinearia, nos anos que se seguem, o patamar onde a imagem do poder tentaria firmar-se — desenvolvendo, consequentemente, uma prática sistémica de recurso a mão-de-obra internacional, mesmo que, de início, sem contrato ad hoc e dentro da disponibilidade do mercado interno. O busto de D. Pedro II do palácio escolar coimbrão, estará, de resto, ao que tudo indica, na origem de outro, encomenda ao artista em apoteose ao novo Rei, ascendido ao trono em finais de 1706: uma vez mais em contexto arquitectónico, em medalhão de sobreporta, na nova sacristia do cenóbio real de S. Vicente de Fora de Lisboa18. Datável dos anos iniciais do seu reinado, ambicioso na sua exaltação de um poder imperial que se figura no imenso orbe que o soberano exibe ao termo de um braço inverosímil, patenteia, contudo, no exacerbado decorativismo onde se

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14. Cfr. PIMENTEL, A. F., ob. cit., pp. 77-83. 15. Cfr. VITERBO, Sousa, Noticia de alguns pintores portugueses e de outros que, sendo estrangeiros, exerceram a sua arte em Portugal, Lisboa, 1903, vol. I, p. 38. 16. Cfr. SOARES, Ernesto, História da Gravura Artística em Portugal. Os artistas e as suas obras, Lisboa, Livraria Samcarlos, 1971, vol. I, pp. 145-147. 17. Cfr. PIMENTEL, António Filipe, “Claude de Laprade”, PEREIRA, José Fernandes (dir. de), Dicionário da Arte Barroca em Portugal, Editorial Presença, Lisboa, 1989, pp. 253-257. 18. Cfr. FRANÇA, José-Augusto, ob. cit., pp. 38-39.


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19. Cfr. ARRUDA, Luísa d’Orey Capucho, “O retrato de D. João V na portaria de S. Vicente de Fora: um retrato barroco a azul e branco”, ClaroEscuro, nº 2-3, Lisboa, 1989, pp. 13-17. 20. Cfr. PIMENTEL, A. F., Arquitectura e Poder…, pp. 83-86 e 101-104. 21. Cfr. QUIETO, Pier Paolo, “Cópia de um retrato de D. João V”, SALDANHA, Nuno (coor. de), Joanni V Magnifico, Cat., Lisboa, IPPAR, 1994, p. 406. 22. CARVALHO, Ayres de, D. João V e a arte do seu tempo, Lisboa, 1962, vol. I, p. 309. 23. Cfr. SOARES, Ernesto, ob. cit., vol. I, pp. 125127 e TEIXEIRA, José Monterroso, Triunfo do Barroco, Cat., Lisboa, 1991, p. 161.

refugia, os limites de um artista a quem a sorte proporcionaria, em terras lusas, uma visibilidade improvável no local de origem. E dos limites do ambiente estético local fala também, ainda em S. Vicente, o retrato do monarca em azulejos, na nova portaria, em projecção agiornatta da sua representação gravada, como jovem Príncipe do Brasil, expandida no quadro de tímida abertura estética a que se assistira com o virar da centúria — mas mobilizando já os recursos cenográficos da retratística áulica internacional (arquitectura, mesa, panejamentos teatrais). Como fala dos limites do poder encomendante (do poder em função do qual se construía a imagem) a carga fortemente ideológica do programa em que se insere, em confronto com os seus antecessores D. Afonso Henriques, D. Sebastião, D. João IV e D. Pedro II19, destinado a afirmar (ainda) a bondade histórica da nova dinastia, em referência aos seus pilares genealógicos. E o todo decorativo do recinto, na sua síntese de azulejos e embrechados de mármores, sob tecto de quadratura pintado pelo Baccherelli, fala também dos limites culturais da encruzilhada donde, pouco a pouco, há-de emergir, uma vez firmado o seu poder, uma genuína ideologia estética da arte de Corte promovida por D. João V. Mas essa é outra e mais ampla questão: mesmo que nesta subjacente. De facto, são anos difíceis estes que se vivem — e onde um Rei adolescente busca firmar os seus primeiros passos —, no rescaldo das decisões políticas do reinado anterior, que se projectarão até à paz de Utreque. Mas que se não compadecem com as urgências propagandísticas da sua afirmação, tanto no plano interno como externo. Com a chegada da Rainha nova, em 1708, acelera-se e cimenta-se, na reforma da Corte como na do paço20, a consolidação visual desse poder e esse processo não deixará de reflectir-se, de igual modo, na imagética real: dois belos retratos do Palácio da Ajuda, de D. João V e D. Maria Ana de Áustria, recém-casados e tradicionalmente atribuídos a Pompeo Batoni, que os teria copiado de outros anteriores (de mão italiana, em todo o caso)21, produzem, na sua sobriedade, uma imagem decidida de alinhamento no padrão ambicionado. E a eles foi já (mesmo que sem confirmação documental), associado o nome de Baccherelli, tido também por retratista e activo em Lisboa até 171822, podendo, pois, por essa via, preencher interinamente as apetências representativas da Corte de Lisboa, antes que esta pudesse lançar-se em maior salto. A mesma situação protagonizará, de resto, pelos mesmos anos, outro duplo retrato dos soberanos, pelo buril de Peter Van den Berg, em faustosa alegoria das monarquias nacional e austríaca, entre as figurações heróicas da Religião, Vitória, Nobreza e Fama, a pretexto dos régios esponsais. Recurso flamengo de continuidade, porém, com as práticas da anterior centúria, a um obscure Dutch engraver, mais hábil no efeito genérico que rigoroso e feliz na arte do desenho (e responsável já, de facto, de anteriores encomendas lusitanas) 23, onde à figuração das régias personagens não parecem ser de todo estranhos os dois retratos já referidos (ou outros afins que a diplomacia lhe terá feito chegar). Como quer que fosse, a lenta viragem que, no declinar da anterior centúria, se levara a cabo em direcção a paradigmas estéticos ultra-pirenaicos – e que tivera especial projecção ao nível da escultura e de um relacionamento progressivamente intenso, por parte da elite ilustrada portuguesa,

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fig.3 domenico duprà, retrato do príncipe do brasil, d. josé de bragança (madrid, museu do prado).

fig.4 domenico duprà, retrato da infanta d. isabel luísa josefa de bragança (vila viçosa, paço ducal, sala dos tudescos). © fundação da casa de bragança.

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24. Cfr. VALE, Teresa Leonor Magalhães do, Escultura italiana em Portugal no século XVII, Lisboa, Caleidoscópio, 2004. 25. Cfr. PIMENTEL, A. F., ob. cit., pp. 95-100. 26. Cfr. VALE, Teresa Leonor M., “As estátuas de Santo Antão do Tojal. Contributo para um panorama de importação da escultura barroca genovesa para Portugal”, Artis – Revista do Instituto de História da Arte da Faculdade de Letras de Lisboa, nº 5, Lisboa, 2006, pp. 255-257.

com o mercado italiano da especialidade (em adesão crescente aos valores de um Barroco decorativo e teatral)24 –, favoreceria uma orientação também ela italiana dos instrumentos imagéticos da realeza lusitana, de tanto maior conveniência quanto a rápida assunção da importância estratégica do incremento litúrgico da Capela Real colocaria a Itália (e, com o tempo, essencialmente Roma) no próprio coração do investimento diplomático nacional25. Nesse contexto se enquadrará, pois, decerto, a encomenda, ainda pelos mesmos anos (1708-10?), de um busto pouco divulgado do monarca, em mármore branco de Carrara (exibido hoje e após vicissitudes várias, no Palácio da Ajuda), de armadura, manto e farta cabeleira, atribuído aos genoveses Domenico Parodi e Francesco Biggi e com provável origem (de novo) em aparato arquitectónico entretanto perdido 26: imagem coerente de fausto cortesão, elucidativa, na sua encomenda, da consciência desenvolvida pelo poder da inevitabilidade do recurso externo na consecução eficaz dos seus desígnios representativos. Consciência essa que, por finais da década de 1710 (talvez pela partida do florentino Baccherelli), uma vez resolvidos os problemas conjunturais herdados da anterior governação e consolidadas as grandes linhas de orientação do reinado novo, haveria de materializar-se no convite endereçado em Roma, em 1718, a Giorgio Domenico Duprà, pelo embaixador marquês de Fontes, para ocupar, de forma estável, as funções de pintor da Corte de Lisboa: estabilizando, por sua vez, a imagética real. Originário de Turim, mas formado em Roma, com Trevisani, que introduzira no retrato romano, iniciado por Carlo Maratta, uma poética nova, sem questionar o primado académico do desenho, privaria nessa oficina com Vieira Lusitano — a formar-se na cidade papal por encargo do monarca português —, rumando a Lisboa em 1719, depois de obtida a láurea na Academia de S. Lucas, na companhia de Filippo Juvara, de igual modo contratado pelo embaixador-marquês a fim de resolver outra questão central da imagem do poder: o novo complexo de Palácio Real e Basílica Patriarcal, que D. João V ambicionava construir. Nos quase doze anos que se seguiriam, até ao regresso a Roma, em 1730, Duprà seria responsável por numerosos retratos do soberano e da família régia, de que uma parte, somente, terá chegado aos nossos dias (sendo que alguma repetitividade de atitudes, nos que se conhecem, indicia a pressão das encomendas e que nenhum deles tem por origem o acervo do Paço da Ribeira, onde, por razões óbvias, deveria albergar-se o seu núcleo central). E neles alcançaria fixar (e afirmar) uma aliança feliz de dignidade e graça, permeável também à influência francesa de Rigaud e Nattier e que adopta como sistema representativo, em que se compraz, particularmente nos retratos femininos e infanto-juvenis. Respondendo a imperativos de índole diplomático-familiar, como os retratos dos quatro infantes portugueses, pintados logo em 1719, com destino à Imperatriz-viúva da Alemanha, sua avó e por localizar, ou, quase uma década mais tarde, os do casal régio e de seus filhos, D. Maria Bárbara e D. José a pretexto da troca das princesas, realizada em 29 (perdidos os primeiros e os últimos, respectivamente, no Museu do Prado e no Palácio Real de Madrid); celebrativa, como o de D. João V contra a batalha do Cabo Matapã (base politico-militar da instituição do Patriarcado de Lisboa),

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fig.6 pierre-antoine quillard, retrato do engenheiro-mor manuel de azevedo fortes (mafra, palácio-nacional). © imc. fotografia de henrique ruas.

fig.5 (à esquerda) domenico duprà e (ou) pierre-antoine quillard, retrato equestre do duque de cadaval, d. jaime (évora, palácio cadaval).

ainda por 1719 (também perdido, depois de figurar por anos na embaixada do Brasil em Haia); ou de exaltação do seu patrono e da régia estirpe (como o da Biblioteca da Universidade de Coimbra e a monumental série ducal, culminando em D. João V e sua prole, no tecto da Sala dos Tudescos do Palácio de Vila Viçosa: todos de cerca de 1725), Duprà consegue responder com eficácia ao quesito central que lhe fora pedido: a criação de um sistema representativo, coerente e homogéneo, para a Corte portuguesa, susceptível de ombrear com êxito entre a forte concorrência internacional. Na sua obra de retratista, com efeito (muito vasta, se houver conta às gravíssimas perdas que decerto sofreu), faria prova de qualidades seguras de composição e de desenho (bastaria, para demonstrá-lo, o belo estudo para um retrato da Infanta Maria Bárbara, de Vila Viçosa e, no mesmo paço, esse outro esboço para um retrato de D.

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João V: obra precoce, identificada por Ayres de Carvalho como referente ao retrato de D. José da Sala dos Tudescos27), sem negligenciar, de resto, o valor semântico da cor e mesmo um certo gosto por um intimismo, elegante e velado, herdado do seu mestre e das correntes francesas precedentes de Rigaud e Nattier, em derrota para uma tímida aproximação ao gosto Rococó: atributos bem visíveis, ainda em Vila Viçosa, nos retratos da Infanta Isabel Luísa Josefa, do Príncipe do Brasil, D. José ou de seus irmãos; em outro, que faz do mesmo príncipe, contemporâneo, em sóbrio traje de veludo negro, da colecção de D. Manuel II e exposto, em anos recentes, no mercado antiquário de Lisboa e mesmo no que, do Rei, elaboraria para a biblioteca coimbrã. Da eficácia ao êxito comercial seria um passo e não tardaria que Duprà fosse solicitado a fixar em retrato, de igual modo, os grandes da Corte: o cardeal-patriarca D. Tomás e os da Mota e Cunha, o marquês de Penalva, o conde de Tarouca, o de Vimioso, os duques de Cadaval, velho novo, e outros vários, que o tempo consumiu ou dispersou, beneficiariam da sua arte, obtendo, por seu intermédio, também eles, uma imagem de poder (ou, quando menos, de prestígio social), que denuncia, no seu consumo, a difusão no círculo régio dessa cultura imagética que o monarca se esforçava por implementar em seu redor, como metáfora de uma nova cultura e de uma nova mentalidade. Destes, merece obviamente destaque o esplêndido retrato equestre de D. Jaime, o duque novo, na posse particular dos descendentes, cuja singularidade na obra do pintor (dificilmente verosímil) informará sobre as perdas que sofreu, ao mesmo tempo que, a ser verdade a colaboração especulada de Quillard (outro pintor da real câmara entretanto aportado) na realização do fundo, mais cimentará a convicção sobre a sua extensão, pela necessidade de recrutar auxílio. E não será, decerto, irrelevante, na fortuna que o espera no seu regresso a Roma (onde continuará ao serviço do Rei de Portugal), primeiro como retratista dos exilados Stuart, depois da Corte de Turim, o palmarés obtido na Corte de Lisboa e o título honroso, que conservará, de Pintor de Retratos de S. M. Port.ª 28. Entretanto, porém, uma facto da maior monta ocorreria nesta matéria e haveria de repercutir-se poderosamente, seja na sedimentação, seja na difusão da nova imagem do poder: a fundação, em 1720, da Academia Real da História, dotada de imprensa e para cuja actividade editorial o monarca convocaria uma plêiade de gravadores franceses e flamengos, que iriam marcar os anos que se seguem. Por aí passam, com efeito, Pierre e Charles de Rochefort (pai e filho), Théodore Harrewyh e, muito especialmente, Michel Le Bouteux e Guilherme Debrie, além do português Vieira Lusitano, após o seu regresso definitivo em 1734. E, por seu intermédio — quer por via da ilustração das obras de iniciativa académica, quer em produções avulsas de carácter comemorativo ou alegórico (mal estudadas, ainda, no seu conjunto) —,­ a imagem régia alcançaria, finalmente, dotar-se de um eficaz instrumento de propagação, tanto ao nível da exaltação retórica (em complemento ao penegírico literário), como da difusão do retrato pintado, como, mesmo, da eternização de momentos especialmente simbólicos, onde a pessoa do Rei, directa ou indirectamente convocada, ocupa sempre o seu lugar central29: como em D. João V na cerimónia do lava-pés, gravada por Debrie em 1731 ou, de Quillard, O lançamento ao mar da

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27. Ob. cit., vol. I, pp. 220, 225-228. 28. Veja-se, em geral, idem, ibidem, vol. I, pp. 214-235; CALADO, Margarida, “Giorgio Domenico Duprà”, PEREIRA, J. F., Dicionário…, pp. 150-152; SALDANHA, Nuno, ROCCA, Sandra Vasco, “Giorgio Domenico Duprà”, Joanni V…, pp. 241-243 e verbetes respectivos. 29. Cfr. SOBRAL, L. M., “Os retratos de D. João V…”, p. 29.


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30. Cfr. Soares, E., ob. cit., vol. II, pp. 136-144, 205-238, 332-336, 492-506, 527-536 e 631650; CARVALHO, Ayres de, Artistas e gravadores franceses (séc. XVII-XVIII): de Callot a Quillard, Coimbra, Museu Nacional de Machado de Castro, 1984; CALADO, Margarida, “Gravura”, PEREIRA, J. F., Dicionário…, p. 211-212; idem, “Vieira Lusitano”, ibidem, pp. 525-526. 31. Cfr. CARVALHO, A. C., ob. cit., p. 32; CALADO, Margarida, “Pierre Antoine Quillard”, PEREIRA, J. F., Dicionário…, pp. 394-395; SALDANHA, Nuno, “Pierre-Antoine Quillard”, Joanni V…, pp. 261-265; idem, “Pierre-Antoine Quillard”, Jean Pillement e o paisagismo em Portugal no século XVIII, Lisboa, Fundação Ricardo Espírito Santo Silva, 1994, pp. 189-196. 32. Cfr. CARVALHO, A. de, D. João V…, vol. I, pp. 247-248; CALADO, Margarida, “Jean Ranc”, PEREIRA, J. F., Dicionário…, p. 396; MORALES Y MARÍN, José Luís, “Jean Ranc”, SALDANHA, N., Joanni V…, pp. 289-290.

nau Lampadosa, de 1727, ou as ilustrações dos fogos de artifício dos festejos da troca das princesas, de 1729 e do mesmo autor30. A importância deste último artista, todavia — Pierre-Antoine Quillard —, não se limitaria ao domínio da gravura, de algum modo periférico em relação ao seu múnus central de pintor. De origem francesa e génio precoce, seguidor de Watteau, arribado ao Reino, ao que tudo indica, em 1726 — por iniciativa própria, acolhendo-se à protecção de D. João V (e com bons apoios no meio politico e diplomático português) —, coabitaria com Duprà na Corte joanina, onde viria a falecer, subitamente, em 1733, dois anos após o regresso a Itália do pintor saboiano. E, nela, além das fêtes galantes que o celebrizaram e denunciam a rápida abertura da elite nacional aos valores emergentes do rocaille, não deixaria de cultivar a arte do retrato, a par da pintura religiosa (de encomenda régia ou particular) e de programas decorativos integrados nas ampliações paçãs promovidas então pelo arquitecto Ludovice. Naquele domínio, com efeito, retrataria a família real, em obras hoje perdidas, à excepção, talvez, de um retrato de D. João V com o Tejo em fundo (nas Necessidades) e do belo quadro que lhe tem sido atribuído, figurando o Príncipe do Brasil em corpo inteiro e sem pose de Estado (Palácio de Mafra). E, como Duprà, não tardaria a ser solicitado para fixar igualmente o círculo cortesão: actividade que documenta em especial o esplêndido retrato (gravado por Rochefort) do engenheiro-mor Azevedo Fortes (duas versões: Palácio de Mafra e colecção particular), tendo-lhe a oscilação pendular da opinião historiográfica (ante a escassez documental) atribuído já a magnífica tela, atrás referida, figurando o 2º Cadaval (seu mecenas também), em pose equestre, composição nervosa que, de facto, não parece conciliar-se facilmente com a serenidade habitual no pintor de Turim31. E serão os avatares politico-diplomáticos a aproximar da Corte de Lisboa outro retratista de origem gaulesa: Jean Ranc, discípulo de Rigaud e estabelecido em Espanha ao serviço de Filipe V. Deslocar-se-ia a Portugal uma vez somente, em 1729, com o fito concreto de retratar a família real lusitana por ocasião do duplo consórcio celebrado nesse ano. E após ter retratado a ... Princesa das Astúrias, Bárbara de Bragança, em Lisboa retrataria, além dos soberanos e do Príncipe do Brasl, os infantes-tios, D. António e D. Francisco: quadros conservados no Palácio Real de Madrid (os infantes) e no Museu do Prado (Bárbara e seus pais, expostos hoje na embaixada espanhola em Washington), à excepção do de D. José, perdido provavelmente em 34, no incêndio do velho alcazar de Madrid. E neles deixaria Ranc uma síntese feliz dos padrões criados para o retrato francês pela geração de Rigaud, De Troy e Larguilière, com que se formara, fixando os seus modelos numa visão de esplendor gracioso, apoiada numa paleta mais fresca e alegre que as usadas por Duprà ou Quillard: imagens eficazes mas sem complexidade, de evidente comprazimento nos efeitos voláteis da composição (vestes, adereços, fundos) 32. E que, curiosamente, experimentariam o mais feliz acolhimento junto dos seus circunstanciais protagonistas. De facto, passados (provavelmente todos) a gravura, dez anos mais tarde (são conhecidas as dos Reis, por Debrie e a de D. António, amputada nas assinaturas), seriam os dos monarcas (ao menos) objecto de reprodução literal (Museu dos Coches),

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sendo o do Magnânimo, em particular, nos anos que se seguem, convertido em vera efígie de uso oficial: seja em variantes de meio corpo (Torre do Tombo, Museu da Cidade de Lisboa, etc.), seja em adaptação de corpo inteiro, como o que incorpora a galeria régia da Sala dos Capelos da Universidade de Coimbra. Operação essa à qual, abalado Duprà em 1730 e morto Quillard em 33, não serão porventura estranhos, tanto a inexistência de alternativa eficaz local (que as sempre citadas palavras da nova Princesa do Brasil, D. Mariana Vitória, a sua mãe, desse ano, testemunham: ao responder, sobre o quesito de um pintor que fizesse o seu retrato, “não há ago-

fig.7 jean ranc (cópia), retrato de d. maria ana de áustria (lisboa, museu dos coches). © imc/ddf.

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fig.8 jean ranc, retrato do infante d. francisco de bragança (madrid, palácio real).

33. Pud FRANÇA, J.-A., ob. cit., pp. 41-42.

ra nenhum bom”33), como o próprio desejo do soberano de cristalizar no tempo a sua imagem áurea, face à decadência física que já se anunciava: e lhe dominaria a derradeira década. Mas é certo que, com Duprà, Ranc fora o mais eficaz construtor da imagem régia, nesse desígnio de grandeur que a alimentava e impunha a estratégia afirmativa de um poder real ainda fatalmente barroco na sua formulação ideológica e cultural. De facto e mesmo que a perda da generalidade do seu espólio imponha prudência numa avaliação, tudo indica que a vibratilidade e mesmo uma certa melancolia presentes na paleta de Quillard (onde o Rococó já se prenuncia), propiciariam menor adaptação a tal desígnio. Mas o retrato e, sobretudo, a propagação da imagem régia, conheceriam ainda, no Portugal joanino, mais episódios, que importa perscrutar.

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Efectivamente, o sistema barroco de poder impunha, pela sua própria lógica polar, uma projecção transversal da sua imagem no interior da comunidade social, como presença omnímoda e centrípeta. Deve, pois, derramar-se sobre o território, numa apropriação de valor semiótico, que metaforiza o próprio carácter da organização jurídica e social. Será esse o espaço da gravura, desde logo, difundindo o discurso laudatório da lisonja cortesã; mas também o de uma outra forma de retrato — o monumento público — cujo valor semântico, em associação a um poder absoluto, entendido como referência central do bem-comum, adquire, em tal contexto, incontroversa pertinência, ao mesmo tempo que a genealogia formal em que se apoia favorece o objectivo central de heroicização que alimenta a imagem do poder: e, com ela, o retorno ideal da retórica exaltante do retrato alegórico. Donde (na sua lógica de incorporação do paradigma representativo internacional) os testemunhos de projectos de monumentos públicos em louvor de D. João V que viram a luz no seu reinado: concretamente o que concebeu o escultor italiano, estabelecido em Portugal, João António Bellini, em 1737, de uma marmorea estatua do sempre Magnifico Rei, a erguer em Lisboa e jamais realizada34 (que se saiba), ou o que, dez anos mais tarde, idealizaria Carlos Mardel (igualmente sem sucesso), conhecido de desenhos, figurando o monarca, equestre, ao topo de uma fonte que derramaria as águas livres na cidade. Mas é certo que, em descrição anónima da urbe, de 1730, se regista uma enigmática estátua equestre do monarca, junto ao Arsenal (e portanto anterior)35, por controverso crédito que mereça tal afirmação, que nenhum outro testemunho corrobora. A esses anos, aliás — a década de 20 — pertencem outras representações reais do foro retratístico, de carácter igualmente monumentalizador e que não poderão silenciar-se em tal matéria: e dizem respeito às áreas da numismática e da medalhística. Na primeira, com efeito, destacar-se-ia o labor de António Mengin, ao serviço da casa da moeda, criando, com as ricas dobras portuguesas (de circulação internacional), ornadas da efígie do monarca, dignamente modelada, um dos mais universais, prestigiosos e eficazes meios de projecção, tanto interna como externa, da imagem do poder36. Na segunda, não poderá omitir-se (perdidas as medalhas que assinalaram a fundação de Mafra) o excelente retrato modelado por Vieira Lusitano, por 1722, para a medalha comemorativa da instituição da Academia Real da História37. E ainda, neste domínio de uma retratística miniatural (mas nos antípodas da retórica exaltante do poder), convirá incorporar outro exemplar, até pela manifesta raridade: a miniatura assinada Castriocto, conservada no Museu Nacional de Arte Antiga e que, por tradição, se aceita figurar o Rei, em ambiente informal, tomando chocolate no estúdio de um pintor 38: versão negativo do retrato de Corte, na sua ilustração negligée de uma pintura de género que o reinado (aparentemente) não legou, mas que documentará, por isso mesmo, o desígnio mais amplo de reforma cultural que o enquadrou. O retrato por antonomásia, todavia (e o retrato-monumento também), que assinala o epílogo do reinado — e que, de algum modo, consubstancia um testamento moral do Rei Magnânimo — será, porém, o que em 1747 esculpiu Alessandro Giusti,

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34. Cfr. PEREIRA, José Fernandes, “João António Bellini”, Dicionário…, p. 78: VALE, Teresa Leonor M., “João António Bellini de Pádua: a mobilidade de um escultor italiano em Portugal no século XVIII – parcerias artísticas e encomendadores”, Artistas e artífices e a sua mobilidade no mundo de expressão portuguesa, Actas, Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2005, pp. 505-518. 35. Cfr. D. João V e o abastecimento de água a Lisboa, Cat., Lisboa, Câmara Municipal de Lisboa, p. 113; TEIXEIRA, J. M., ob. cit., p. 181. 36. Cfr. TEIXEIRA, J. M., ob. cit., p. 131. 37. Cfr. idem, ibidem, p. 166. 38. Cfr. FRANÇA, J.-A., ob. cit., p. 46.


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39. Cfr. idem, ibidem, p. 39; PEREIRA, José Fernandes, “Alessandro Giusti”, Dicionário…, p. 203.

aportado a Portugal no quadro da instalação da régia e sumptuosa Capela de S. João Baptista em S. Roque, com destino à livraria das Necessidades e que haveria de dispor de versão tripla, em mármore, bronze e madeira dourada39: imagem poderosa, teatral, quase obsessiva, na sua ilustração voluntariosa do monarca absoluto, senhor de auctoritas e potestas. Mas que, simbolicamente, quis legar-se à posteridade no papel de protector das letras, artes e ciências, figuradas na panóplia que rodeia a base, em óbvia sintonia

fig.9 alessandro giusti, busto de d. joão v (mafra, palácio nacional). © imc/ddf.

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fig.10 fonte. monumento ao rei d. joão v. projecto de carlos mardel. planta e alçado. c. 1747. nº inv. mc.des.587 © cml – museu da cidade.

da retórica gravada das alegorias: assim hierarquizando, em fim de contas, deliberadamente, virtus e utilitas. Os nomes de Bellini, Mardel e Giusti, todavia, dominando a informação disponível sobre o historial da representação real ao longo dos anos 30 e 40 do reinado (as décadas finais) — e mesmo que ao serviço de projectos de controversa materialidade —, continuam, assim, a configurar a estratégia desde cedo delineada, tanto

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o s p i n to r e s d e d . j o ã o v e a i n v e n ç ã o d o r e t r ato d e c o r t e

40. MERVEILHEUX, Charles Fréderic de, “Memorias instrutivas sobre Portugal”, CHAVES, Castelo-Branco, O Portugal de D. João v visto por três forasteiros, Lisboa, Biblioteca Nacional, 1983, p. 219. Valerá a pena esclarecer que é com esta acepção de câmara do tesouro, constituída por uma ou mais dependências, que a palavra guarda-roupa surge na geografia dos espaços na arquitectura áulica da Época Moderna, em associação aos aposentos principais — e não com o sentido literal contemporâneo e que faria traduzir, de modo ingénuo, merchandises por vestuários.

por razões directas de eficácia, como indirectas, de projecção exterior: o recurso metódico e sistemático a artistas de formação internacional, por isso mesmo familiarizados com as formas e fórmulas da retórica representativa que se tinha em vista aqui reproduzir (claramente ilustrada pelo aproveitamento imediato dos serviços do último, à margem do patamar técnico contratual que lhe ditara a vinda). Entre eles, porém, parecem tornar inverosímil o hiato detectado entre as primeiras figurações escultóricas (Laprade, Parodi/Biggi) e os quase vinte anos que o monarca teria aparentemente demorado a beneficiar dos recursos de um escultor. Mais controverso é, certamente, o panorama da pintura, após a morte, súbita e precoce, de Quillard. Mas é certo que, como em tantos sectores do mecenato artístico joanino, será sempre desconhecida a verdadeira extensão da catástrofe de 55 e, com ela, dos tesouros que, por quarenta anos, obsessivamente acumulou — e que fariam Merveilleux dizer que “Sua Majestade deve ter mais mercadorias no seu guarda-roupa que todos os mercadores de Lisboa, juntos, nas suas lojas. Seguramente é o mais rico guardaroupa do universo”40. Em tal contexto, será sempre ferido de parcialidade qualquer juízo crítico que parta unicamente do espólio que o tempo nos legou. Apesar disso, parece certo poder afirmar-se que, dentro dos limites disponíveis a um país periférico — e dos limites reais de que dispunha (mais apertados do que o mito supõe) —, o esforço joanino de integração da imagem áulica portuguesa no paradigma de referência internacional alcançou consecução assinalável. E a prová-lo não estará só o salto imenso que promove em relação ao patamar donde partia (e é dado que não poderá depreciarse): mas, de igual modo, a distância a que haveria de quedar-se, por seu turno, a imagem cortesã no período posterior. E são estas, certamente, premissas em que há-de atentar o historiador.

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Resumo O Grupo do Leão foi pintado em 1885, na altura em que se fez uma remodelação da Cervejaria Leão de Ouro, onde se costumavam reunir os pintores e intelectuais que aí trocavam ideias e planeavam exposições. Estes eram os representantes do Naturalismo português, liderados por Silva Porto. Para a génese desta pintura é importante a comparação com os retratos do século XVII, levando-nos a pensar que Columbano pensou nos exemplos da história da arte para os retratos de grupo e modernizou-os. Noutro ponto de vista, o Grupo do Leão está associado a uma temática do século XIX que separa os artistas do resto da sociedade e, nesse sentido, este quadro é uma homenagem aos artistas do Naturalismo, figurando o Grupo com ironia, um pouco ao estilo de Eça de Queirós nas suas descrições da sociedade portuguesa de oitocentos.

palavras-chave grupo do leão naturalismo pintura século xvii retratos de grupo homenagem aos artistas

Abstract In 1885, as the brewery “Leão de Ouro”, a place where painters and intelligentsia would meet to exchange ideas and plan common exhibits, was being refurbished, the “Grupo do Leão” was painted. At the time, the men portrayed in this painting were the representatives of the Portuguese Naturalism, led by Silva Porto. We find the comparison between this painting and portraits of the 17th century rather relevant, leading us to believe that Columbano chose particular group portraits from the art history and modernized them. On another account, the “Grupo do Leão” is linked to a 19th century theme which separated artists from the rest of the society and, in that sense, the painting is a homage to Naturalist artists, where the Group’s members are shown with quite some irony; much to the style of Eça de Queirós’s descriptions of 19th century Portuguese society.

key-words grupo do leão naturalism 17th century painting group portraits artists homage


o grupo do leão de columbano bordalo pinheiro

ma rg a r i da e l i a s Instituto de História da Arte Universidade Nova de Lisboa Faculdade de Ciências Sociais e Humanas margaridaelias@sapo.pt

O Grupo do Leão (Fig.1), uma das obras mais significativas de Columbano Bordalo Pinheiro e aclamada por Eça de Queiroz como o melhor trabalho do artista, foi pintado em 1885, na altura em que se fez uma remodelação da Cervejaria Leão de Ouro, onde se costumavam reunir os pintores que formaram o Grupo do Leão ( Almeida 1885; Ramalho 1885 e Cristino 1923). Exposta no café, logo «á entrada da porta, lado esquerdo» (Almeida 1885), cedo esta pintura foi aclamada e, como prova disso, no Diário Popular alguém escreveu que «ha muito não vimos entre nós um trabalho de tão largo folego, tão amplamente concebido e executado». Fialho de Almeida (1857-1911) felicitava o artista dizendo que este era o seu mais «surpehendente trabalho» (Almeida 1885). Um dos retratados, Ribeiro Cristino (1858-1948) afirmou, quarenta anos depois, que este quadro era «uma magnífica e até histórica pintura». Tinha um enorme valor como documento, «pois ali figuram todos os artistas de aquele celebre grupo artístico, reproduzidos do natural, com extraordinária semelhança e aspecto dos retratados» (Cristino 1923, 27-38). Em 1924, no Guia de Portugal, podia ler-se que, dos quadros da Cervejaria, o «mais notável (...) é aquele em que Columbano representou o famoso Grupo do Leão» (Proença et al. 1979, 201). Varela Aldemira, antigo aluno do pintor, alvitrou que O Grupo do Leão era a perpetuação da Lisboa mundana do último quartel do século XIX, numa «tela invulgar» que fazia a crónica «cintilante de uma geração privilegiada» (Aldemira 1941, 35). O escultor Diogo de Macedo, que como Columbano foi director do Museu Nacional de Arte Contemporânea, entendia que ele era a proclamação de uma nova pintura (Macedo 1952, 50), um documento de génio de um dos maiores pintores portugueses (Macedo 1946, 9).

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fig.1 columbano bordalo pinheiro, o grupo do leão , 1885, óleo sobre tela, 201 x 376 cm, museu do chiado. © imc/ddf.

José-Augusto França escreveu bastante acerca desta obra. Para ele, tinha algo de comemorativo (França 1990, 269), era uma espécie de manifesto dos pintores da geração de 80 (França et al. 1988, 221). Representava a «melancólica boémia de cervejaria da Baixa» de «maneira assaz trocista» (França 1979, 30). Ainda segundo França, este quadro era «o grande retrato colectivo da pintura nacional» (França 1981, 73). Por seu lado, Margarida Acciaiuoli afirmou que o Grupo do Leão qualificava Columbano como um dos pintores mais conscientes da sua época (Acciaiuoli 1988, 66). Margarida Matias classificou-o como «o grande acontecimento da pintura de Columbano» (Matias 1986, 97). E, mais recentemente, Pedro Lapa, em dois textos publicados respectivamente em 1994 e 2007, considerava-o como a «obra de referência deste período» da carreira do artista (Lapa 2007, 132). Por fim, Raquel Henriques da Silva observou, nesta obra de Columbano, a manifestação de uma «tranquila postura de triunfo» e um «optimismo tingido de ironia». (Silva 2000, 427). Como referimos, o título do quadro remete para os pintores e intelectuais que se costumavam reunir na Cervejaria Leão de Ouro, trocando ideias e planeando exposições. Os membros iniciais foram, entre outros, os pintores Silva Porto (1850-1893),

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João Vaz (1859-1931), António Ramalho (1859-1916), Ribeiro Cristino, o caricaturista Rafael Bordalo Pinheiro (1846-1905), o entalhador Leandro Braga (18391897), o actor João Anastácio Rosa, os escritores e jornalistas Alberto de Oliveira (1861-1922), Mariano Pina (1860-1899), Monteiro Ramalho (1862-1949), Emídio de Brito, Fialho de Almeida, Abel Botelho (1854-1917) e o poeta romântico Bulhão Pato (1829-1912) (Cristino 1923, 30 e 31 e Ramalho 1897, 8-13). Columbano só se reuniu a eles quando voltou de Paris, em 1883, mas participou nas exposições desde 1882. A história relativa à encomenda do Grupo do Leão é conhecida e foi relatada pelos seus contemporâneos. De acordo com Ribeiro Cristino, na «primavera de 1885 numa noite das costumadas reuniões do «Grupo» (…) constou que a cervejaria ia acabar, porque se separavam os dois co-proprietários Monteiro-Varela». Sendo «chamado o estimado Manuel, que (…) era o criado que nos servia, explicou que um dos donos ficaria na mesma casa e outro abriria novo café ao lado (…). Perguntámos ao Manuel com qual dos dois ficaria, ele ainda o ignorava, mas assentou-se desde logo, (…) que nós (…) continuaríamos a reunir aonde ele continuasse a servir». «Pouco depois sabia-se que o Manuel passava para o novo estabelecimento, o qual iria entrar em obras, e alvitrou-se que seria interessante se déssemos á nova casa um aspecto ornamental». Ficou «resolvido, que cada um de nós pintasse um quadro de assumpto á escolha (…), mas todos eles de idênticas dimensões; trabalhos que se ofereceriam em homenagem ao Manuel, limitando-se o proprietário (…) a custear o material necessário» (Cristino 1923, 35). Sendo a abertura do café marcada para o Sábado de Aleluia, ficaram os artistas apenas com cerca de vinte dias para a obra. O novo espaço recebeu o nome de «Leão de Ouro», denominação que ainda hoje persiste. À data da inauguração, Monteiro Ramalho escreveu que tinham conseguido transformar uma «loja acachapada, de tosca estructura, n’ uma espécie de interessante museu livre» (Ramalho 1885, 98). Nessas actividades participaram José Malhoa (1855-1933), Ribeiro Cristino e Silva Porto com pinturas de paisagem, João Vaz com uma marinha, Rodrigues Vieira (1856-1898) com um quadro de flores e Moura Girão (1840-1916) com uma composição animalista. Maria Augusta Bordalo Pinheiro (1841-1915) – irmã de Columbano - foi autora de um bordado com um leão para o reposteiro e Leandro Braga entalhou um leão dourado. Rafael Bordalo Pinheiro realizou uma caricatura do grupo, sobre uma tela imitando azulejo. Columbano pintou um retrato do dono da casa, o senhor António Monteiro, mas a sua colaboração foi sobretudo marcada pelo importante retrato colectivo que compôs para a ocasião, onde ficaram representados os companheiros do grupo. Os pintores retratados foram os criadores do Naturalismo português, liderados por Silva Porto, chegado há seis anos de Paris. Ele trouxera um novo fôlego para a arte portuguesa, uma alteração na forma de pintar, desenvolvida, sobretudo, em contacto com a natureza. N’O Grupo do Leão as figuras dispõem-se em torno de uma mesa, ficando ao centro Silva Porto, rodeado pelos pintores António Ramalho, João Vaz, Henrique Pinto,

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fig.2 fferrotipo, 1883-1884; espólio de columbano, museu do chiado. © imc/ddf.

Ribeiro Cristino, Cipriano Martins (m. 1888), José Malhoa, Moura Girão, Rodrigues Vieira e o próprio Columbano. Aparecem ainda Rafael Bordalo Pinheiro, Alberto de Oliveira, o criado Manuel Fidalgo e um desconhecido, cuja identidade tem gerado certa polémica. Esta figura, pouco definida, era por certo um dos criados, provavelmente o criado Dias como foi descrito por Ribeiro Cristino (Cristino 1923, 37), pois, no Diário de Notícias de 16 de Abril de 1885 pode ler-se: «Columbano pintou-os a todos n’uma tela originalíssima com Alberto de Oliveira, e os criados que os servem». Não obstante Ribeiro Cristino dizer que, apesar de haver pouco tempo, cada um dos retratados foi «posar, por escala, ante o Columbano, para o seu grande quadro» (Cristino 1923, 35), é provável que Columbano se tivesse inspirado em fotografias para alguns dos retratos. Pelo menos, António Ramalho, Henrique Pinto e Cipriano Martins não deviam estar em Lisboa, e, talvez por isso, não participaram nas decorações da Cervejaria. Nesse sentido, concordamos com Pedro Lapa que refere que algumas poses podem ter sido tiradas de uma fotografia (ferrotipo) (Fig.2) que hoje se encontra no espólio de Columbano (Museu do Chiado), cuja data é atribuída a 1883-1884 (Lapa 2007, 133). Nela se podem ver, entre outros, António Ramalho e

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Alberto de Oliveira, em poses muito próximas daquelas em que figuram no Grupo do Leão. Surge também uma figura que talvez seja José Malhoa, mas que nos parece mais distante do retrato do Grupo, apesar de também estar sentado e de perfil. O quadro foi pintado na década de oitenta, um dos períodos mais profícuos da carreira de Columbano, em que este procurava experimentar caminhos modernos. A composição constrói-se em tonalidades de castanhos e dourados, com uma economia cromática que faz lembrar a estética fotográfica. O fundo é claro e abstracto, dando destaque aos retratados, cujas formas são reduzidas silhuetas, lembrando a pintura de Manet. Outro aspecto a considerar é a espontaneidade das pinceladas, sem dar demasiado detalhe aos pormenores. Ao observarmos esta obra, temos a impressão que Columbano procurou capturar um momento real, como se o pintor (ou pretenso fotógrafo) tivesse interrompido uma reunião habitual. Corroborando essa hipótese está o diferente comportamento de cada uma das personagens e o facto de Cipriano Martins parecer espreitar atrás de uma coluna. Contudo há enquadramento e as poses são estudadas. A composição divide os retratados em dois grupos (Fig.3). Essa divisão parte da bandeja trazida pelo criado, que se sobrepõe às cabeças de Silva Porto e António Ramalho. Cada um deles, junto do centro, tem atrás de si duas personagens em diagonal, formando um V, que são Alberto de Oliveira, do lado de Silva Porto e o criado, do lado de António Ramalho. Deste modo, prevalece uma estrutura simétrica através da correspondência de personagens, sendo a mesa o elemento estabilizador da composi-

fig.3 esquema

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ção. Contudo, há uma ligeira assimetria causada pela maior preponderância da coluna do lado esquerdo, contrabalançada pelas figuras, mais claras e de pé, do lado direito. Através dessa assimetria, Columbano pretendeu dar uma aparência de naturalidade, embora mantivesse uma base tradicional na estrutura da composição. Como numa cena teatral, um «espaço cénico» (Lapa 1994, 116), as figuras dispõemse de maneira a que os seus rostos sejam visíveis para o espectador. O balcão separa o observador dos retratados, mas a atitude de alguns deles parece convidar-nos para a sua reunião, nomeadamente a de Rodrigues Vieira, que se vira para o espectador enquanto ergue uma caneca em sinal de brinde. Porém, a aparente bonomia não está presente em todas as personagens e alguns parecem pensativos, como Silva Porto e Moura Girão. Aprofundando a análise, verifica-se que no Grupo do Leão há quatro retratados que estão juntos e interagindo entre si: Silva Porto, Alberto de Oliveira, João Vaz e António Ramalho. É possível que Columbano quisesse dar importância àquele que fora o conjunto iniciador da revolução naturalista da arte portuguesa (Ramalho 1882, 19), pois, como relata Ribeiro Cristino, fora numa das noitadas de concorrência intermédia que «se começou a projectar uma pequena exposição de quadros (…). A conjura tomou rapidamente folego; e, ao fim de mais algumas conversas sobre o caso, Silva Porto, António Ramalho, e Vaz resolveram definitivamente apresentar à cidade os seus trabalhos». Os outros logo se juntaram para a primeira exposição, que se deu em 1881. Foi Alberto de Oliveira quem tratou do catálogo (Ramalho 1897, 11-13) e de arranjar uma localização para o evento (Cristino 1923, 32-33). No quadro, Alberto de Oliveira está retratado de cartola e bengala, numa tipologia próxima do dandy (Lapa 2007, 133). Parece que acabou de chegar, sugerindo que afastara a caneca de Silva Porto, para lhe mostrar uma das revistas francesas que os tinha inspirado. Como referiu Pierre Grassou, estas reuniões animavam-se com a chegada dos números da Vie Moderne habitualmente trazidos por Oliveira (Grassou 1882, 6). Apesar de ter a revista à sua frente, Silva Porto parece ausente, enquanto olha tristemente o espectador (ou quem o retrata). A sua expressão coaduna-se com as palavras de Monteiro Ramalho, descrevendo-o como um «poeta ligeiramente melancólico» (Ramalho 1897, 40-41). A posição central no quadro deve-se ao facto de ter sido ele quem «guiou e animou os artistas, que por aí andavam desorientados e abatidos» (Ramalho 1897, 40-41). Contudo, parece contrariado pelo seu papel fulcral nesta homenagem. O lado esquerdo do quadro é o menos agitado, preenchido sobretudo por pintores de paisagem. João Vaz, que se afirmou como marinhista, mostra-se introspectivo. Malhoa, serenamente sentado à frente da mesa, tem algum destaque. Nesta altura, ele começava a ganhar importância no panorama artístico português, particularmente depois de ter executado o quadro O Viático do Termo. Junto de Malhoa ficou Manuel Henrique Pinto, que parece dormitar. Encostado à coluna e de pé, está Ribeiro Cristino, fitando o espectador. Este era filho e discípulo do pintor Cristino da Silva, que trinta anos antes pintara uma homenagem aos pintores do Romantismo, Cinco Artistas em Sintra.

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O lado direito do quadro é composto por artistas menos ligadas à paisagem. Ao lado de Silva Porto, que o apoiara na sua formação, está António Ramalho. Definiu-se sobretudo como retratista, realizando notáveis obras neste domínio (França 1990, 59). A sua cabeça vira-se para trás, para se dirigir a Alberto de Oliveira e o seu olhar liga-o ao grupo da esquerda. De pé, atrás de António Ramalho, está o criado Manuel Fidalgo, vestido de preto, de avental branco e compridas suíças negras, tal como era descrito na época (Ramalho 1897, 10 ou Almeida 1885). Aparenta ter chegado com comida para servir os convivas e a sua posição é também central, o que está de acordo com o facto de Ribeiro Cristino dizer que estes quadros seriam em sua homenagem. Rodrigues Vieira, que fora colega de escola de Columbano e que este já retratara em 1876, está sentado junto à coluna direita, mas virando a cabeça para o espectador (ou quem o retrata). Parece bem-disposto, o que se harmoniza com a descrição de Monteiro Ramalho que o caracterizou «com a sua gorducha cara alegrada pela sempiterna risada» (Ramalho 1885, 107). Vieira foi, além de escultor, um pintor que se dedicou à pintura de flores e à paisagem, representando a região de Leiria, de onde era natural. Moura Girão era o mais velho do grupo e afirmou-se como animalista, sobretudo de galináceos. Mostra uma atitude nada entusiasta e a sua posição próxima do centro, em frente da mesa, dá-lhe um certo destaque. Está melancolicamente sentado, mas o seu corpo sublinha a diagonal imposta por Alberto de Oliveira e quebra aquela que é proposta pelo criado Manuel Fidalgo, num jogo de forças que acaba por induzir agitação, a qual é ampliada pelos semblantes galhofeiros de António Ramalho e Rodrigues Vieira. A pose melancólica de Moura Girão traz à memória o São Jerónimo de Dürer (Fig.4), um quadro que, em 1880, «foi comprado à família dos Almadas, por intermédio de Alberto de Oliveira e iniciativa do conde de Almedina, passando a fazer parte da colecção de pintura que ficou instalada no antigo palácio Alvor, às Janelas Verdes», hoje Museu Nacional de Arte Antiga (Santos 1965, 70). Provavelmente Columbano inspirou-se nessa obra para a pose do pintor Girão, numa citação da arte do passado que denota alguma ironia – em vez de uma caveira, Girão segura uma bengala. Serenamente sentado, olhando para o espectador, está o caricaturista Rafael Bordalo, uma das figuras «mais admiraveis do quadro, e das mais fieis» (Almeida 1885). Ele enveredara pela arte cerâmica, estando a iniciar a montagem da fábrica de faianças nas Caldas da Rainha. Está de chapéu, quiçá indicando que estava um pouco à parte neste grupo. Columbano já o retratara, em 1884, numa pose semelhante à do Grupo do Leão, dignamente sentado, de luvas e bengala. De pé, atrás de Rafael Bordalo, está Columbano, que se figurou de cartola e bengala, «exactamente como elle passeava este inverno pelas ruas de Lisboa» (Almeida 1885). Escreveu José-Augusto França que ele se auto-representava, como quem vai sair ou não deseja sequer entrar (França 1979, 30), apontando, nesta atitude, a separação que existia entre ele e os restantes artistas da sua geração. Columbano não era o único que estava de pé, mas retratou-se próximo do lado direito do quadro, virado nessa

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fig.4 albrech dürer, são jerónimo , 1521, óleo sobre painel, 59,5 x 48,5 cm, museu nacional de arte antiga. © imc/ddf.

direcção, o que acentua a sensação de estar a sair. Porém, a sua saída foi travada por outros dois personagens, como se estivesse a a falar com eles. Em contrapartida, talvez por coincidência, colocou-se, juntamente com o irmão Rafael, na linha de ouro da composição, o que lhes dá algum realce entre os restantes retratados. Duas personagens estão mais à parte e de pé. Uma delas é o criado Dias, a outra é Cipriano Martins, que está quase escondido atrás de uma coluna. Este era um pintor de retrato, ligado ao ensino, que iria falecer pouco tempo depois, em 1888. Note-se ainda, sobre a mesa, a natureza-morta constituída por copos quase vazios, um jarro, um pequeno prato, a revista e uma toalha branca, tudo num aspecto de

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desalinho lembrando que a reunião já decorria e dando naturalidade ao momento. A qualidade das transparências e das texturas recordam que Columbano foi um exímio pintor de natureza-morta. O quadro traz à memória o jantar descrito por Eça de Queirós na Capital, quando é feita uma homenagem a um jovem escritor chegado a Lisboa, reunindo-se para isso escritores e outros artistas, em torno de uma mesa, aproveitando os alimentos e a bebida como pretextos para o convívio. Margarida Acciaiuoli afirmou que o Grupo do Leão reconstitui uma «realidade arquétipa de uma época que não se justifica senão em torno de uma mesa, como se da «Ceia» se tratasse» (Acciaiuoli 1988). A sugestão iconográfica vem de Fialho de Almeida, que comparou o quadro a uma «ceia chocarreira», de que o Cristo seria o tristonho Silva Porto (Almeida 1885). Também Juvenal Esteves encontrava aqui o cânone davinciano da Ceia do Senhor (Esteves 1987, 44). A lembrança é pertinente, particularmente se notarmos a atitude de Silva Porto rodeado pelos restantes artistas, quase como Cristo entre os apóstolos. A citação da Ceia cristã para uma reunião de amigos acrescenta alguma ironia a esta obra. Fialho de Almeida também comparou este trabalho aos Bêbedos de Velásquez, provavelmente devido ao «convivio galhofeiro» que se respira entre este grupo de amigos (Almeida 1885). Porém, para a génese da composição, é importante o paralelo com os retratos de grupo do século XVII. Na época, já Monteiro Ramalho dizia que o

fig.5 eustache le sueur, portrait de groupe dita réunions d’amis , ca. 1640/42, óleo sobre tela, 127 x 195 cm, museu du louvre - inv. 8063, copyright a. dequier - m. bard.

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Grupo do Leão trazia à memória os retratos de grupo de Frans Hals (ca. 1582-1666) ou de Rembrandt (1606-1669) (Ramalho, 1885). No Louvre, Columbano podia ter visto a Réunion d’ amis (1640/42) (Fig.5) de Eustache Le Sueur (1617-1655), cuja estrutura compositiva se assemelha à do Grupo do Leão. As pinturas seiscentistas tendiam a figurar estas reuniões no final do banquete, com os retratados na sua atitude pessoal e habitual (Abélès 1987, 21). No caso do Grupo do Leão, pouco se pode ver sobre a toalha. Esta reunião parece ser mais animada pelo vinho ou pela cerveja do que pelos alimentos, o que acentua o aspecto boémio do grupo. Tal como nos quadros de Frans Hals ou Rembrandt, comunica-se a naturalidade das atitudes, como se os retratados tivessem sido surpreendidos pelo pintor num dado momento da sua reunião. No Grupo do Leão parece que esse momento é o da chegada de Alberto de Oliveira, com uma revista, e do criado, com a comida. Por outro lado, o quadro está associado a uma temática do século XIX que reivindica, para os artistas, um estatuto específico. Há uma relação entre os actores, o local das suas acções e as consequências valorosas dos seus actos (Brilliant 1991, 96). O

fig.6 cristino da silva, cinco artistas em sintra , 1855, óleo sobre tela, 86,3 x 128,8 cm, museu do chiado. © imc/ddf.

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acontecimento era uma reunião dos artistas que haviam conseguido revolucionar a arte portuguesa e, de uma forma por certo heróica, organizado exposições que viriam a ser aplaudidas pelo público, pela crítica e pela própria família real. Mas pode ainda referir-se que a noção de consagração dos heróis num banquete tem reminiscências desde a Antiguidade, «na medida em que através dele se representam deuses, heróis ou mortais cuja Virtus se pretendia destacar» (Maciel 2000, 19). Tal como definiu Linda Nochlin, os heróis realistas podem definir-se como aqueles indivíduos que «parecem encarnar em maior grau os principais valores do seu tempo e da sua cultura: políticos e filósofos, artistas e escritores, cientistas e músicos» (Nochlin 1991, 155). Este foi o tipo de homens que Columbano retratou ao longo da sua vida, formando uma galeria que o tornou célebre. O quadro tem ligação, pelo tema escolhido, com outras obras, nomeadamente os Cinco Artistas em Sintra (1855) (Fig.6) de Cristino da Silva (1820-1877), retrato colectivo dos artistas do Romantismo, tendo como pano de fundo Sintra e a Pena, o seu espaço de eleição. O Grupo do Leão tem como cenário um interior, um balcão ladeado por colunas, que fecha ironicamente os artistas do ar livre. Margarida Acciaiuoli escreveu que o desprezo de Columbano pelo poder redentor dos pintores de ar livre se reflectia na escolha do espaço em que os representou, enclausurandoos no interior de uma cervejaria (Acciaiuoli 1988). Devemos, no entanto, lembrar que o destino do quadro era a Cervejaria onde se reuniam, que era também o seu espaço de eleição. Na pintura estrangeira contemporânea há algumas obras célebres que devem ser recordadas a propósito do Grupo do Leão, mas julgamos que Columbano dificilmente as conhecia. Entre essas pinturas sobressaem as homenagens a Delacroix (1864) e a Manet (Un atelier aux Batignolles, 1870) pintadas por Fantin-Latour (1836-1904). Estas obras representam as pessoas solenemente, em pose para o retrato (com maior naturalidade de atitudes no segundo caso), recriando um ambiente silencioso e introspectivo, característico dos retratos deste pintor francês. Apesar da semelhança do tema, a pose é mais descontraída no quadro português. As homenagens do pintor francês colocam os artistas num ambiente ligado à arte, enquanto que Columbano os arruma numa cervejaria. Essa seria a maneira como Fantin-Latour iria figurar os poetas em Coin de Table (1872) (Fig.7), mas ainda assim imperando uma solenidade introspectiva que difere da aparente bonomia dos artistas portugueses. Diogo de Macedo asseverou que, para este retrato de grupo, Columbano pensara nos quadros de Fantin-Latour (Macedo 1952, 50), ideia posteriormente secundada por Pedro Lapa (Lapa 1994, 116). Consideramos difícil que tal tenha acontecido, pois estes quadros devem ter estado em colecções particulares até ao século XX (Orsay 1998, 46, 47 e 57). Por seu lado, José-Augusto França afirmou que as semelhanças com as «homenagens» de Fantin não têm pertinência, pois o Grupo do Leão não tinha «comparação na pintura famosa do tempo» (França 1979, 30). Independentemente desta polémica, é nossa opinião que o quadro de Columbano pode considerar-se, tal como os de Fantin-Latour, um manifesto em favor de uma nova escola de pintura. Cremos que as semelhanças compositivas resultam sobre-

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fig.7 henri fantin-latour, coin de table , 1872, óleo sobre tela, 160 x 225 cm, museu d’orsay. copyright: agence photographique de la réunion des musées nationaux. référence de l’image: 94de61416/rf1959.

tudo de fontes históricas comuns. Fantin inspirou-se nos quadros de confrarias do século XVII, pintando os retratos de grupo em tamanho natural. O que é curioso é que a crítica francesa recebeu mal a ideia. Victor Cherbulliez, em Le Temps, chegou mesmo a afirmar que há uma contradição entre as dimensões ambiciosas da tela e o tema tratado, dizendo que nos quadros antigos as roupagens das personagens tinham uma majestade digna de um grande quadro. Um quadro como Coin de Table apenas deveria ornar um salão privado (Abélès 1987, 21). Ora, os quadros do século XVII destinavam-se a imortalizar as confrarias no exercício das suas funções e em traje de aparato. Fantin queria renovar esta tradição e, para conferir um valor histórico às reuniões que pintava, necessitou de empregar um grande formato (Abélès 1987, 21). De igual modo, Fantin e Columbano põem em prática a ideia promovida por Baudelaire, sobre o heroísmo da vida moderna: «o verdadeiro pintor, que saberá arrancar à vida actual o seu lado épico, e nos fazer compreender (...) o quanto nós somos grandes e poéticos com as nossas gravatas e as nossas botas envernizadas» (Baudelaire 1992-1999, 120-121). Jean Aicard, um dos figurantes do Coin de Table, afirmou que «a maneira de ser moral e intelectual de uma época implica um aspecto particular dos rostos, uma forma de usar a barba e de vestir a roupa: o espírito do século manifesta-se nos mínimos detalhes» (Abélès 1987, 21). Representando os artistas e os poetas nos seus fatos cerimoniosos contemporâneos os pintores davam-lhes dignidade, mas num contexto moderno. Ou, como afirmou

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Raquel Henriques da Silva, o Grupo do Leão empenhou-se em «celebrar o estatuto liberal da profissão de artista», sublinhado pela «informalidade (...) dos trajes» que enunciavam o seu «estatuto burguês» (Silva 2000, 426-427). Entretanto, a génese do Grupo do Leão, a nosso parecer, é a dos retratos holandeses do século XVII, pelas poses e enquadramento, mas figurando os membros do Grupo com alguma ironia, ao estilo de Eça de Queirós nas suas descrições da sociedade portuguesa. Columbano pegou nos exemplos da história da arte para os retratos de grupo e modernizou-os, enclausurando os pintores de paisagem numa Cervejaria. Da relação destes com a arte só fica a revista, quase esquecida. Porém, ao mesmo tempo que, sem solenidade, retrata os artistas, destaca Silva Porto e reverencia o Grupo do Leão e a pintura por este praticada. O Grupo do Leão esteve exposto na cervejaria até 1945 (Lapa 2007, 132), sendo leiloado pelos donos do estabelecimento e adquirido «pelo Estado a Ramos Costa, por verba extraordinária do Ministério das Finanças em 1953» (Lapa 1994, 116 e Soares, 2007). Sendo enviado para o Museu de Arte Contemporânea, foi retirado do espaço a que se destinava e auferiu um carácter museológico. Representando os principais artistas de Lisboa do final do século XIX, este quadro fixou para a posteridade um momento em que o grupo se estava a reunir, mantendoos unidos para os tempos vindouros, convidando-nos a conviver com eles.

Bibliografia Abélès, Luce, ed. lit. 1987. Fantin-Latour, coin de table, Verlaine, Rimbaud et les Vilains Bonshommes. Paris: Réunion des Musées Nationaux. Acciaiuoli, Margarida. 1988. Malhoa et Columbano. Paris: Fondation Calouste Gulbenkian. Aldemira, Luís Varela. 1941. Columbano, Ensaio Biográfico e Crítico. Lisboa: Livraria Portugal. Almeida, Fialho de. 1885. «Os Quadros do “Leão de Oiro”», Correio da Manhã, Supplemento Literário, 20 de Abril. 3-4. Baudelaire, Charles. 1992-1999. Écrits sur l’ Art. Paris: Librairie Générale Française. Brilliant, Richard. 1991. Portraiture. London: Reaktion Books. Costa, Lucília Verdelho et al. 2003. Amar o Outro Mar, A pintura de Malhoa. Lisboa: Ministério da Cultura. Cristino, Ribeiro. 1923. A Estética Citadina – Anotações sobre Aspectos Artísticos e Pitorêscos de Lisboa. Lisboa: Imprensa Libano da Silva.

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Resumo O Retrato foi uma das temáticas mais frequentes na obra de Malhoa, circunstância decorrente das necessidades crescentes do mercado, e da sua própria subsistência financeira. Ela desenvolve-se entre duas modalidades, oscilando entre o Luminismo e o “Tenebrismo”. E, talvez daí, resulte grande parte do seu sucesso, ao tornar-se mais susceptível do agrado generalizado, promovendo uma resposta eficaz às “oscilações do gosto”. Logo depois do Género, foi justamente no Retrato que obteve alguns dos seus maiores êxitos e galardões internacionais. Se, por um lado, se mostra devedor das influências dos mestres do passado, como Velásquez, Frans Hals, Rembrandt, ou Murillo, por outro, a própria obra não deixa de indiciar referências mais modernas, estilísticas ou técnicas. A corrente luminista da arte do retrato, atinge níveis excepcionais, constituindo assim a vertente mais moderna da sua obra.

palavras-chave malhoa retrato pintura séc. xix luminismo

Abstract The Portrait was one of the most common themes of Malhoa’s work, a result of the market’s growing needs and its own financial sufficiency. It evolves into two types, between Light and “Darkness”. This may be the cause for its success, by becoming more susceptible to general approval, promoting an efficient response to the variations of taste. Following the Genre, the Portrait was the most successful and received more international prizes. If, on the one hand, it is influenced by the masters of the past, on the other, the work itself shows more modern stylistic and technical references. The luminous tendency of the art of the portrait reaches outstanding levels, this being the work’s most modern aspect.

key-words malhoa portrait painting 19th century light


luminismo e “tenebrismo” malhoa e o retrato nu n o sa l da n h a Escola das Artes / U.C.P. Escola Superior de Design / IADE nunosaldanha@netcabo.pt

1. Perkinson, Stephen. Set. 2005. From curious to canonical: Jean Roy de France and the origins of the French School. The Art Bulletin, London.

O Retrato foi uma das temáticas mais presentes na obra de Malhoa, aliás, à semelhança do que sucedeu com a maioria dos seus colegas, circunstância decorrente das necessidades crescentes do mercado, assim como das razões inerentes à sua subsistência financeira. Na realidade, para muitos pintores, era uma possibilidade de ganhar a vida, mormente pelo crescente incremento deste tipo de pintura, dado que a nova burguesia aspirava a criar a ilusão de uma tradição dinástica. Efectivamente, o interesse que o Retrato suscitou foi bastante consensual, não apenas por parte da clientela, mas também pela crítica da época. Aquilo que durante séculos parecera servir apenas para perpetuar a memória de reis, governantes, alto clero, aristocracia e alta burguesia, tornava-se agora acessível a círculos sociais mais alargados. A partir de meados do século XIX, este género pictórico começa a emergir do anterior estatuto de “menoridade”, levando a um aumento significativo da sua importância e, tanto os críticos como os artistas, vão apontando novas vias de renovação1. Considerado um perfeito exemplo da expressão da individualidade humana, e o objectivo mais elevado a que um pintor deveria aspirar, segundo defendia Jules Castagnary no Salon de 1857, o Retrato alinhava modelarmente com a noção moderna de individualismo, capaz de representar, tanto o retratado, como o retratista. Mas o caminho para a reforma não parecia consensual. Entre o realismo e o idealismo, a técnica mais “fotográfica”, e a pincelada mais solta, entre a modernidade e a tradição, as possibilidades que se ofereciam, tanto a clientes como artistas, revestiam-se de grande diversidade, e mesmo de alguma ambiguidade. Paradoxalmente, uma das vias de renovação, levaria a um reavivar de interesses pelo passado, voltando-se para os grandes mestres da Pintura Antiga, como Velásquez, Franz Hals, Van Dyck, ou Rembrandt, recuperando assim os valores tonais da pintura seiscentista. Esta reabilitação do “Tenebrismo” barroco, obteve sucesso consensual entre retratados e artistas. De Léon Bonnat a Zuloaga, passando por Sargent, Whistler ou Eackins, depressa o género se vulgariza, atravessa fronteiras, tornando-se numa tendência internacional.

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No campo oposto, estavam os valores cromáticos e lumínicos, que a vanguarda Impressionista elegera como base da sua “revolução”. Para os menos “arrojados”, embora perfilhando interesses comuns, difunde-se uma corrente menos “radical”, mais ligeira, de Juste milieu. Era a vertente Luminista, tão característica do retratismo espanhol levantino, particularmente popularizada por Ignacio Pinazo ou Joaquín Sorolla. Foi precisamente entre estas modalidades do retratismo que se desenvolveu a pintura de Malhoa, oscilando invariavelmente entre o Luminismo e o “Tenebrismo”, entre tradição e modernidade. E talvez daí, resulte grande parte do seu sucesso, ao tornar-se mais susceptível do agrado generalizado, promovendo uma resposta eficaz às “oscilações do gosto” da época. Foi justamente no Retrato, a temática que se revelou de maior importância, logo depois do Género, que o pintor obteve alguns dos seus maiores êxitos e galardões internacionais.

1. O Retrato na obra de Malhoa Embora não tenha sido a sua temática de eleição, é um facto que Malhoa produziu um elevado número de retratos, tanto a óleo, como a pastel ou a carvão. Segundo referem alguns dos seus biógrafos, o artista teria produzido cerca de 800 a 900 retratos (Sousa Pinto 1928, 41). Trata-se naturalmente de um número empolado, mormente porque ali se incluíam, tanto obras que efectivamente pertencem à pintura de História, à pintura de Género, ou àquilo a que se designava de “retrato de prazer” ou “cabeças de expressão”. Segundo pudémos inventariar até à data, contam-se em 240, os retratos (óleo e pastel) realizados por Malhoa2, o que é já de facto um número significativo, para quem esta temática não foi uma prioridade, mormente se tivermos em conta que, um dos mais conceituados retratistas do seu tempo, John Singer Sargent, terá produzido cerca de 4003. Para enquadrarmos a produção retratista de Malhoa no conjunto da sua obra, sabemos que ela ocupou cerca de 28% do total, a par da Paisagem, e abaixo de Género (30%). Estes dados, mudam consideravelmente, se observarmos as percentagens relativas à obra exposta. De facto, ela não ultrapassa os 18% das presenças em certames nacionais (Grupo do Leão, Grémio Artístico, Sociedade Nacional de Belas Artes, etc.), embora, em termos internacionais, ela possa ascender aos 23% da sua representação. Portanto, muito abaixo da pintura de Género, que atinge os 70%. Números à parte, o certo é que Malhoa gozou de grande popularidade, como o comprovam as referências da época. Essa “galeria janota das fuças citadinas”, como a designava Emídio de Brito Monteiro, era resultante da grande quantidade de clientes que fazia bicha à porta do atelier de Lisboa, durante o Inverno, “à espera da solenidade mundana dum retrato de Mestre”, consoante ironizava Brás Burity (Burity 1928, 83-84). As razões do seu sucesso, derivam também em grande parte, tanto da flexibilidade de Malhoa, como do espírito marcadamente comercial subjacente à sua obra. Sintomático disto, são as oscilações técnicas e estilísticas da sua pintura, bem como as

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2. Saldanha, Nuno. 2006. José Vital Branco Malhoa (1855-1933). O pintor, o mestre e a obra. [texto policopiado] Dissertação de Doutoramento em História da Arte apresentada à Universidade Católica Portuguesa. Lisboa: Faculdade de Ciências Humanas / U.C.P. 3. Naturalmente que o número de obras produzidas por Malhoa está sujeito a constante actualização, dado que se trata de uma temática, frequentemente fruto de encomenda, e cujo resultado foi directamente para a posse dos clientes, sem ter passado pela sua apresentação pública, não deixando portanto qualquer registo da sua existência.


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fig.1 josé malhoa - almeida garrett , 1881 (conservatório nacional) © nuno saldanha

sucessivas alterações que introduzia nos quadros, a pedido dos retratados. O caso do retrato de Palmira Feijão é um bom exemplo disso. Consoante referia o próprio artista, depois dos ditos “aformoseamentos” o retrato estava tal e qual ela era... “quando tinha 18 anos!” (Saldanha 2006, 403-404). Esta atitude (em clara oposição à produção retratística de um Columbano, por exemplo), revela uma concepção do retrato pouco meditada, confiada ao acaso das circunstâncias, e de quem não pretendeu fazer dele uma especialização.

2. A experiência da História Os inícios da actividade de Malhoa como “retratista”, situam-se mais próximas da pintura de História, naquilo a que podemos designar como “retrato histórico”. Isto é, não se trata de retratos no verdadeiro sentido da palavra, dado que se representam personagens históricas, já falecidas, e não “tiradas do natural”. No entanto, este tipo de produção em muito contribuiu para o exercíco da pintura de figura, e no desenvolvimento de experiências na representação de fisionomias.

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fig.2 josé malhoa - júlia malhoa , 1883 (museu josé malhoa), © imc/ddf.

A sua primeira encomenda data de 1881, quando Malhoa é convidado, com Eugénio Cotrim, a decorar o tecto do Real Conservatório de Lisboa. Para além da deslavada alegoria que ocupa o medalhão central, figurando Euterpe, o pintor executa 4 medalhões circulares, “retratando” Almeida Garrett, (Fig.1) Domingos Bomtempo, Francisco Xavier Migoni, e Passos Manuel. Naturalmente fazendo recurso a gravuras que circulavam na época, quer na sua directa transposição ou servindo de modelo, estas pinturas pouco mais representam do que simples exercícios de academia. Dois anos depois, em 1893, a experiência repete-se, agora para o Supremo Tribunal de Justiça de Lisboa, numa obra de maior fôlego, que se concretiza na realização

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4. Sobre este assunto veja-se Vicente, António Pedro. 1984. Carlos Relvas fotógrafo 1838-1894: contribuição para a história da fotografia em Portugal no século XIX. Lisboa: Imprensa Nacional Casa-da-Moeda.

de 14 medalhões figurando os personagens mais importantes do Direito ou da Jurisprudência nacionais: Álvaro Velasco, António Gouveia, D. Dinis, Duarte Nunes de Leão, João das Regras, João Pedro Ribeiro, Jorge Cabedo, Marquês de Pombal, Mouzinho da Silveira, Rui Boto, Pascoal de Melo Freire e Rui Fernandes. Embora se note alguma evolução na capacidade técnica da execução, estamos ainda muito longe dos níveis de maturidade e qualidade que a sua obra viria posteriormente a revelar. Apenas 6 anos depois, seguem-se os 16 medalhões que decoram o salão nobre da Câmara Municipal de Lisboa, de factura desigual e, em muitos casos, de execução inferior. Seria precisamente em 1883, que Malhoa produz os seus primeiros retratos a óleo, no pleno sentido do termo - o de Manuel Augusto Brito Chaves, e o de sua mulher, Júlia Malhoa (Fig.2). O primeiro, fruto natural de encomenda, poderia figurar entre as dezenas de medalhões já produzidos, quer no formato, como no estilo. O segundo caso, revela-se mais original, tratando-se de uma obra nascida da sua inspiração, o que motivou Malhoa a apresentá-la no 3º certame do Grupo do Leão. Era o seu primeiro retrato exposto, embora os resultados tenham ficado bastante aquém do esperado. De facto, a reacção da crítica foi contundente. Emídio Brito Monteiro, questionava-se mesmo se “aquilo” poderia ser considerado arte: “...não passa de uma coisa colorida, bonita e vistosa, mas só isso... O que aquillo é, é tela pintada e nada mais. Mas agrada e foi isso que o artista quis conseguir. Agora querer que aquillo seja arte, isso não.” (Brito Monteiro, Fev. 1884). Apesar do desaire da estreia, Malhoa não desiste, continuando a trabalhar e a apresentar retratos, em número crescente, nas exposições seguintes. Em 1890, o artista verá coroados os seus esforços, ao ser seleccionado para retratar o rei D. Carlos. Trata-se da sua estreia, em termos de encomendas para a Casa Real, e o início de uma relação que se prolongará até ao fatídico ano de 1908. Durante este tempo, o pintor produziu 6 retratos de D. Carlos, 2 de Dona Amélia, 2 de D. Luís Filipe e outros 2 de D. Manuel II. A pintura mais interessante do rei é sem dúvida a executada em 1905, para a Escola Médica (actual Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa). Ali, diversamente do que sucede nos outros exemplos, o soberano é representado numa pose menos convencional, tendo como fundo as escadarias do Palácio Foz, sem estar rodeado do imaginário retórico dos símbolos de poder.

3. Malhoa e a Fotografia A partir de 1882, Malhoa inicia uma relação profissional com a família Relvas, que virá a ter inúmeras repercussões no desenvolvimento da sua carreira (Saldanha 2001; 2006). Ela inicia-se com Carlos Relvas, célebre cavaleiro tauromáquico, músico, e uma das figuras pioneiras no desenvolvimento da Fotografia em Portugal, com atelier próprio na Golegã, estabelecido desde 18714. Naquele ano, o artista pintou um pequeno registo de temática animalista, figurando Solero, cavalo favorito de Relvas, entretanto exposto no 12ª certame da Sociedade Promotora de Belas-Artes. Seguir-

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se-íam inúmeros retratos, da mulher, da filha, do filho, da nora, dos netos, etc. Para além das consequências que se farão sentir, mormente a partir do estreito relacionamento entre Malhoa e o seu filho, José Relvas, dos contactos com Carlos deve sobretudo destacar-se o início das suas experiências com a Fotografia, e o recurso recorrente a esta técnica, na elaboração dos seus retratos. Em 1887, entre os 7 retratos que o pintor apresenta no salão do Grupo do Leão, encontrava-se uma tela oval, representando Carlos Relvas toureando a cavalo, na praça de touros de Setúbal (que posteriormente seria baptizada com o nome daquele cavaleiro). Trata-se de uma obra de interesse especial, uma vez que é um “retrato equestre”, muito ao gosto das tipologias celebrizadas por Velásquez, único no seu género. Embora seja ainda um “retrato de pose”, é o seu primeiro retrato ao ar-livre, e onde se associa aquela temática à pintura de Género, num processo de “trans-tematização”, justamente uma característica que marcará o futuro da sua obra. Embora ainda não localizada até à data, trata-se indubitavelmente de uma pintura assente numa fotografia, como se pode perceber pelo desajustamento entre o cavaleiro e o cenário, nomeadamente no que diz respeito à projecção das sombras - a luz da praça vem do canto superior esquerdo da composição; a do cavaleiro e sua montada, do lado oposto, e de um ângulo menos acentuado. Nos posteriores exemplos de trabalhos executados para esta família, este recurso está perfeitamente documentado com o cliché original. De facto, são conhecidas as fotografias que serviram para a execução de Carlos Relvas montando o Rollito (1890); Luísa Relvas (1896); D. Eugénia, João e Carlos Relvas (1899) (Saldanha 2001; 2006). Para além destes exemplos, são também conhecidos, pela existência de fotografias, ou por referência explícita de Malhoa nas suas cartas, os de João Relvas em criança (1900), Conde de Alto Mearim (1901), Jerónimo Bravo (1903), ou Rafael Bordalo Pinheiro (1904)5.

4. Tradição e Modernidade O peso da tradição – o “Tenebrismo” Um ano após a apresentação do “retrato equestre” de Carlos Relvas, Malhoa expõe o célebre retrato de Laura Sauvinet, (Fig.3) filha de seu amigo Henrique Sauvinet, e que posteriormente se tornaria sua discípula. Mais tarde apelidada, por alguns dos seus biógrafos, como a Gioconda de Malhoa, a obra foi alvo de crítica variável, apesar do pintor a considerar como a sua “obra-prima”. Embora se trate efectivamente de uma pintura que revela algumas qualidades de execução, tanto na técnica, ao centrar-se mais nos rostos e descurar os elementos secundários (já patente em Franz Hals, ou Fragonnard), e no olhar penetrante voltado para o observador, o seu sucesso torna-se de facto efectivo já depois da morte do pintor, pelas leituras historiográficas que dela foram feitas, mormente a propósito de exposições comemorativas da obra de Malhoa.

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5. Este retrato revela-se particularmente interessante, e inédito, dado que o artista, embora recorrendo a um cliché fotográfico, pinta o próprio quadro como se fosse ele mesmo uma fotografia, em tons sépia.


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fig.3 josé malhoa - laura sauvinet , 1888 (museu josé malhoa), © imc/ddf.

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fig.4 josé malhoa - retrato de novais , 1901 (museu do chiado), © imc/ddf. fig.5 josé malhoa - d. teresa avelino pereira da costa , 1900 (museu do chiado), © imc/ddf.

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6. Veja-se, por exemplo o retrato de D. Luís I, executado por Lupi em 1864.

Por um lado, em termos de tratamento, ela revela as influências ainda fortes do estilo do seu mestre, Miguel Ângelo Lupi6, embora, ao mesmo tempo, em termos de composição e de pose, não deixe de transparecer modelos clássicos da pintura europeia, como o célebre Senhora vestida de vermelho, retrato executado por Pontormo em 1532. No entanto, as fontes de inspiração de Malhoa, tendem progressivamente a voltar-se para a pintura seiscentista, flamenga e espanhola, nomeadamente Franz Hals e Velásquez, de acordo com as tendências da pintura ocidental a que fizémos referência, cuja difusão internacional em muito se deve a Carolus Duran. Os mais importante retratos executados por Malhoa em 1904, Cavaleiro de Santiago e Retrato de Novais, (Fig.4) são dois bons exemplos da importância que aqueles mestres ainda exercem nos inícios de Novecentos. Um curioso exemplo deste interesse por modelos do passado da pintura europeia, e do peso da tradição, podemos encontrá-lo no Retrato do menino Artur Isaac Abecassis, de 1895, exposto no salão do Grémio Artístico onde obteve algum sucesso. A pintura denota um interesse múltiplo, dado que nele podemos presenciar uma curiosa junção dos vários géneros temáticos a que Malhoa se dedicou. Trata-se de um retrato, mas associado à pintura de Género, e à pintura de História, de tipo Casacón. Este tipo de obras que Malhoa também praticou, a chamada “pintura de gabinete”, designado em França por Tableautin, e em Espanha por Casacón, era uma versão mais comercial e burguesa da pintura histórica, que triunfou em Paris no final de Oitocentos, nomeadamente com Mariano Fortuny, ou Jean-Louis Ernest Meissonier. Caracterizava-se por quadros de pequena dimensão, com figuras vestidas à moda do século XVIII, executadas com efeitos retóricos e técnicos fáceis, muito ao gosto da burguesia da época, sobretudo iniciada no coleccionismo de arte. Muito popular em França, Itália e Alemanha, também em Portugal encontramos ecos deste género, desde Alfredo Keil, a Columbano, passando pelos vários aguarelistas, como Casanova, Roque Gameiro ou Alberto de Sousa. Embora pareça derivar directamente da pintura de História, o Tableautin acaba por se concretizar numa reacção a ela, tanto na dimensão como na função, espécie de síntese entre aquela temática e a pintura de género. Em vez de retratar os grandes temas heróicos da História, esta pintura resumia-se assim à representação de cenas elegantes e frívolas, de ambientes caseiros, e dos costumes do passado. Grande parte das obras deste género foi executada por Malhoa no século XIX, pelo menos desde 1895 (Um Compasso difícil / Lição de Violino), algumas delas acabando por se tornarem parte integrante de grandes composições decorativas alegóricas, mormente relacionadas com a Música. O triunfo deste tipo de pinturas de tendência “tenebrista”, culminará com o retrato de D. Teresa Avelino Pereira da Costa, (Fig.5) executado em 1900, que inaugura a presença de Malhoa nos certames expositivos europeus do século XX, bem como os mais recentes êxitos e prémios atribuídos por júris internacionais. Mais uma vez, não podemos deixar de constatar as afinidades com o estilo do seu antigo mestre Miguel Ângelo Lupi, embora levando os contrastes de claro-escuro

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ao limite, fazendo sobressair o essencial da figura – o rosto e as mãos. Concebendo uma silhueta de grande presença e profundidade interior, marcada por uma profundidade psicológica intensa, o que assinalaria grande parte da sua obra retratista novecentista. Entre Maio e Julho de 1901, o quadro foi apresentado na Exposição de Belas Artes de Madrid, sendo muito apreciado pela crítica espanhola, e obtendo o 2º prémio daquele certame. Rapidamente a imprensa portuguesa faria eco deste sucesso (também ampliado pela Menção Honrosa obtida no Salon de Paris), dando-lhe visibilidade ao longo do ano, o que em muito contribuiria para o crescente prestígio de Malhoa. Curiosamente, 10 anos depois, o retrato será novamente apresentado na Exposición de Bellas Artes da mesma cidade, renovando o sucesso anterior. Recebe novamente uma medalha de prata, fazendo dele o maior sucesso obtido por Malhoa com um retrato, mormente a nível internacional, constituindo-se assim na sua obra mais premiada até aquela data. O vincado “tenebrismo” de grande parte da sua arte retratista, que se arrasta pelo século XX, continuava a fazer sucesso, nomeadamente em terras de Espanha, cujas tradições seculares mantinham viva a sua aceitação. E Malhoa sabia-o. Daí os galardões recebidos, e a aposta do pintor, quando ali expõe, na selecção sistemática de obras deste género. (Saldanha 2006, 421) Apesar deste recurso à tradição, ele não deve ser entendido como conservadorismo. Trata-se de um novo entendimento do passado, e não de um revivalismo ou academismo. Como é sabido, Malhoa sempre se mostrou aberto a diversas experiências artísticas ao longo da sua carreira (Romantismo, Naturalismo, Realismo, Luminismo, Impressionismo) e, esta abertura, não deve ser entendida como um eclectismo (de que foi acusado por alguns críticos na época). Pelo contrário, estamos perante uma noção de modernidade, que incorpora tanto a tradição como a inovação. As largas centenas de pintores que se integram nesta vertente, ao contrário das vanguardas, eram historicistas, no sentido de que acreditam não ser possível haver modernidade sem consciência histórica. Eles visitam museus, estudam a história da arte e seus artistas, folheiam revistas e jornais ilustrados em busca de modelos visuais, como nunca o haviam feito antes. Em vez de romper com a tradição, hà uma procura da renovação através dela, e uma sede de estilo acompanhada por uma vontade estusiástica de aprender com a História. (Llorens 2006)

Modernidade e Luminismo Se, por um lado, Malhoa se mostra devedor das influências dos mestres do passado, como Velásquez, Frans Hals, Rembrandt, ou Murillo, a quem se refere recorrentemente na sua correspondência, por outro, a própria obra não deixa de indiciar referências mais modernas, tanto estilísticas como técnicas. Efectivamente, podemos encontrar afinidades pontuais com a obra de artistas contemporâneos como Guillaume Dubufé, Vitorio Corcos, Charles Chaplin, Carolus Duran, Richard Miller ou Joaquín Sorolla. Aquela que se constitui precisamente como a sua vertente mais moderna do retrato,

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fig.6 josé malhoa - roque gameiro , 1904 (museu josé malhoa), © imc/ddf.

é a do Luminismo, cujas origens remontam pelo menos a 1895, data do excelente retrato da sua discípula Zoé Wauthelet, aos 28 anos de idade. Estamos perante um retrato ao ar-livre, mais natural, que revela uma procura do instantâneo, onde os indivíduos aparecem como elementos dentro de outros elementos, num clima de instrospecção e melancolia. Embora só exposto em 1928, foi considerado por Brito Monteiro, como o melhor dos seus retratos. Destaque para o brilhante enquadramento da figura na paisagem

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fig.7 josé malhoa - retrato de minha mulher , 1914 (museu do chiado), © imc/ddf.

de fundo, só esboçada, quase Impressionista, a importância dada aos efeitos de luz, sobre as “ondas de cetim” (a que se referia Sousa Bandeira), e os contrastes de complementares. Cortês Pinto tece-lhe um longo elogio, chamando-lhe um “milagre de frescura de epiderme”, e dá-nos uma importante descrição do mesmo, mormente pelas indicações da técnica utilizada por Malhoa: “frescura tão sabiamente introduzida na carnação magnífica da retratada pela irradiação de esmeraldas dos coloridos vegetais, complementares daquela cor rosada, que o Artista distribui habilmente em manchas raspadas à espátula ao redor da saudável e juvenil figura!”. (Cortês Pinto, 1956: 56).

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7. Geralmente considerado como um retrato do pintor Ezequiel Pereira (1860-1943), é mais provável que se trate do seu amigo e colega Manuel Henrique Pinto (1852-1912), e sua filha Julieta Pinto (afilhada de Malhoa). 8. Veja-se, por exemplo, o quadro deste artista levantino Mi mujer y mis hijas de 1910, cujas semelhanças técnicas se tornam evidentes, nomeadamente na prioridade dada à luz e à cor.

O século XX traz novo fôlego à obra retratista do mestre, marcado por uma paleta mais rica e variada, mormente pelo recurso, cada vez mais frequente, à técnica do pastel. Por outro lado, os seus retratos continuam a misturar-se, cada vez mais, com a pintura de género, inserindo as personagens em ambientes naturalistas, com fundos de paisagens ao ar livre, em vez dos fundos escuros que dominaram as décadas anteriores. Malhoa começa então a substituir progressivamente as tendências “tenebristas” pelas luministas. A isto não será estranha a influência do pintor norte-americano Richard E. Miller, artista elogiado por Malhoa por ocasião do Salon de 1904. E talvez não seja simples coincidência que o seu primeiro retrato conhecido, dentro deste estilo (exceptuando naturalmente o de Zoé Wauthelet, acima referido), date precisamente desse ano, o do popular aguarelista Roque Gameiro. (Fig.6) Inserido num ambiente luminoso de beira-mar, o estilo será retomado por diversas vezes, nomeadamente no Retrato de Agostinho Fernandes, pastel de 1925. Impressionante, é o quadro Os colegas, pintado em 1905, misto de pintura de Género e Retrato, outro exímio exemplo desta vertente luminista, sem dúvida uma das suas melhores e mais modernas obras dentro desta temática7. A modernidade da sua pintura atinge novamente níveis excepcionais com o Retrato de minha mulher, (Fig.7) de 1914, que parece assumir algumas afinidades com o Impressionismo de Renoir ou Mary Cassat. No entanto, ele filia-se, uma vez mais, na vertente luminista, de Richard Miller, e sobretudo de Joaquín Sorolla8. Ele revela um novo modo de percepção do mundo exterior, onde a pose e a estabilidade são substituídas pelo movimento e pelo efémero, o instantâneo. A atenção não se fixa no recorte dos objectos, mas na sua percepção. Influênciado pela Fotografia, nomeadamente na capacidade de perceber o movimento, e sobretudo nos novos modos de compor e cortar a imagem. Esta obra está para o Retrato, como o célebre Outono de 1918 estará para a Paisagem.

5. O “retrato psicológico” Outro importante aspecto que podemos presenciar na obra retratista de Malhoa, é a tónica que, a partir de dado momento, recai sobre a representação da profundidade psicológica dos retratados. Esta tendência atravessa as tipologias enunciadas anteriormente, não sendo exclusivas das vertentes “tenebrista” ou luminista. No mesmo ano em que pinta o Retrato de minha mulher, Malhoa executa outra das suas obras-primas dentro desta temática, e que paraece retomar as tendências tenebristas anteriores. Referimo-nos ao retrato de Alberto Teles Utra Machado, exposto no salão da SNBA em 1915. Executado um ano depois de ter contactado, pela primeira vez, e directamente, com a pintura de Franz Hals, o artista parece ter-se deixado arrebatar novamente pela grandeza dos mestres do passado. No entanto, as suas referências são de artistas bastante mais recentes, mas que efectivamente se aproximaram dos antigos mestres. Entre eles, podemos mencionar Henri Fantin Latour (1836-1904), e o seu “realismo

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fig.8 josé malhoa - desalento , 1915 (casa museu fernando de castro, porto) . © imc/ddf.

psicológico”, ou Leon Bonnat (1833-1922), e a sua pintura de introspecção, de influência espanhola. Uma vez mais associado à pintura de género, Malhoa parece ter captado o momento preciso em que o poeta e bacharel açoriano interrompe a leitura, para se perder na profundidade dos seus pensamentos. Repare-se também como o pintor descentra a composição, atirando a figura para a direita do quadro, tal como havia feito em 1895, no Retrato da Condessa de Proença-a-Velha, ou no referido retrato de sua mulher. As pesquisas de Malhoa sobre o “realismo psicológico” adquirem aqui um

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fig.9 josé malhoa - o ventura , 1933 (museu josé malhoa), © imc/ddf.

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domínio perfeito, revelando plena maturidade, onde o estilo tende para o abandono progressivo dos fundos “tenebristas” e dos contrastes de claro-escuro. Em 1915, podemos encontrar outro belo exemplo deste “retrato psicológico”, quando o artsita executa a pastel o retrato de uma senhora desconhecida, a que deu o título de Desalento (Casa-Museu Fernando de Castro, no Porto). (Fig.8) Aqui se assiste novamente à junção de um retrato de esfera privada, à introspecção psicológica de uma figura da burguesia nortenha. O ambiente é novamente de interior, o que permite assim acentuar o aspecto melancólico da composição, numa corrente de introspecção urbana. O olhar penetrante e gelado da figura, aproxima-se às personagens decadentes dos inícios do século, e do clima moderno de introspecção melancólica que caracteriza alguns aspectos do Simbolismo. No final da sua vida, em 1933, Malhoa pinta O Ventura, (Fig.9) curiosa espécie de versão rural do Desalento. Mais que um simples retrato, ele revela-se como um retrato social, retrato-tipo de humilde camponês, espécie de reverso do espelho da obra anterior. De facto, as duas figuras poderiam estar frente-a-frente, pondo em confronto as atitudes e poses da sociedade burguesa urbana - orgulho e preconceito - e do campesinato rural - humildade e resignação. Este pastel constitui também uma excelente síntese da obra retratista de Malhoa do século XX. Nela podemos, efectivamente, observar a síntese temática, entre retrato, paisagem e género, o realismo da figura, assim como o “realismo psicológico” da sua expressão. Os retratos em pastel assinalarão, aliás, o trabalho de Malhoa dentro da temática retratista durante a década de 20, integrando as figuras ora em interiores, ora em ambientes paisagísticos, muitos dos quais facilmente identificáveis À medida que avança o século XX, Malhoa vai deixando de apresentar retratos nas diversas exposições em que participa, mormente a nível internacional, ao mesmo tempo que a crítica parece cada vez menos interessada naquela temática. No entanto, o artista não deixará de prosseguir a sua actividade neste campo, seja a óleo ou a pastel, embora já sem energia para quaisquer renovações. Um aspecto que por vezes tem sido referido a propósito da sua obra retratística, é a invulgar ausência de um auto-retrato, apenas esboçado por duas vezes em desenhos a carvão (1906, 1928). Se efectivamente Malhoa não se auto-retratou numa pintura a óleo, não podemos no entanto deixar de perceber que ele se insere no ideal do retratar-se, retratando, ou seja, o verdadeiro e mais completo auto-retrato de Malhoa, encontra-se na totalidade da sua obra.

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Resumo Na série dos Reis, Costa Pinheiro desvirtua uma amálgama de signos provenientes da estatuária, da heráldica e da iconografia das cartas de jogar, em função de um jogo poético que confunde ironicamente lenda, memória e história no mesmo horizonte de representação. Desígnio que antecipa a verve “anti-zarco” de João Cutileiro, ao exortar uma desmitificação dos estereótipos naturalizados pelos esquemas iconológicos que a estatuária oficial estadonovista veicula. Como alternativa à dissolução do género, corrompido na sua “lei” (efeito da arbitrariedade radical que liberta o significante neo-figurativo do lastro do sujeito/referente que o consubstanciava), supõe-se uma ideia de retrato expansivo e permeável, que se firma em permanente extravasamento. Estatuto que não o nega, antes o desloca ante as suas estipulações históricas mais ortodoxas.

palavras-chave costa pinheiro d. sebastião retrato neo-figuração pintura (anos 60 do século xx)

Abstract In the series of the Reis (Kings), Costa Pinheiro misconstrues a mixture of signs from sculpture, heraldry and playing cards iconography, so as to create a poetic game that ironically intertwines legend, memory and history in the same horizon of representation. A name that anticipates the “anti-Zarco” of João Cutileiro by prompting a demystification of stereotypes created by iconological schemes which official statues of the Estado Novo conveyed. As an alternative to the dissolution of the genre, corrupted by its own “law” (an effect of the radical arbitrariness that frees the subject / referrer), we find the portrait expansive and pervious, defining itself in constant expansion. A status it does not deny, but instead places it amongst its more orthodox historical stipulations.

key-words costa pinheiro d. sebastião portrait neo-figurative painting (1960 s )


o retrato de dom sebastião:

costa pinheiro ou a ‘desmitificação’ da retratística histórica oficial 1

bru no m a rq u e s Doutorando em História da Arte Contemporânea na FCSH/UNL. Bolseiro da FCT.

1. O presente ensaio actualiza e desenvolve uma investigação iniciada em Bruno Marques. 2004. Para o estudo da “crise” do retrato nos anos 60 em Portugal. (Dissertação de Mestrado em História de Arte Contemporânea, sob a orientação de Margarida Acciaiuoli). Lisboa: UNL / FCSH. 2. “Personagem lendária, personagem ideológica, no quadro da mentalidade portuguesa do romantismo e do tardo-romantismo da geração de 90, e ainda no nacionalismo dos anos 20 do nosso século, o rei de Alcácer-Quibir foi símbolo da fatalidade e de esperança, sucessivamente ou simultaneamente. A «bem nascida segurança» da coroa portuguesa de um Camões que, por causa dela, morreu com a Pátria, foi discutida, sempre, mais em termos de mito do que em termos de história, e por razões partidárias. [...] E o resultado desastroso do sonho havido e enterrado pesa gravemente na balança de uma história sempre aposteriorística...”. (FRANÇA, José-Augusto. 1973. “O ‘D. Sebastião’ de João Cutileiro”, in Colóquio-Artes. Lisboa, n.º 14, pp. 41-44). 3. Para uma sistematização a que poderíamos designar de Evolução do Sebastianismo, por não raras vezes ensaiada, citemos apenas nomes a este respeito incontornáveis, como António Bandarra, António Vieira, Teófilo Braga, Oliveira Martins, Teixeira de Pascoaes e Fernando Pessoa. 4. FRANÇA, José-Augusto. 1973. Op. cit., p. 43.

Diz a profecia: Insperate ab insperato redimeris. Que seria remido Portugal não esperadamente por um rei não esperado. Segue-se logo, evidentemente, que não podia el-rei D. Sebastião ser o libertador de Portugal, porque o libertador prometido havia de ser um rei não esperado: Insperato ab insperato; e el-rei D. Sebastião era tão esperado vulgarmente, como sabemos nós. Pe. António Vieira, Sermão dos Bons Anos

El-rei D. Sebastião consubstancia, em matéria de mito, o mais paradigmático exemplo do modo como um povo lida com a sua história.2 Arquétipo universal do Salvador escondido, do Herói imortal que sempre regressa e ressuscita. Exposto, diversamente percebido e encarnado, o mistério construído em redor da sua figura será por diversas vezes celebrado por teólogos, historiadores e poetas.3 Integrado na série dos Reis (1966) de Costa Pinheiro, esse topos sobejamente revisitado não só encontrou um outro registo como ainda mudou de sentido. De algum modo exterior e ao mesmo tempo interior à esfera do fascínio que converte a iconografia sebastiânica em lugar de eleição da própria aventura do nosso imaginário contemporâneo, o retrato de D. Sebastião de Costa Pinheiro resulta fulcral para o entendimento de uma série pictórica que se firmará como um dos mais notáveis e seguramente inventivos exemplos daquilo que, na esteira da pioneira obra de JoséAugusto França consignada à história do retrato em Portugal, se poderá designar como tratamento heterodoxo da retratística (França 1981, 93). “Como pode o actual tempo português entender um príncipe como D. Sebastião?” – pergunta J.-A. França para de imediato responder: Mais perto ainda, de nós, Costa Pinheiro meteu-o entre os seus reis e príncipes de um heráldico jogo de cartas e bonecos que a própria saudade da pátria lucidamente lhe fez pintar, numa série de retratos irónicos e sentimentais. D. Sebastião debruçase sobre uma vaga carta astrológica; pela janela vê-se um cavaleiro de brinquedo. Na mão que se espalma, desenha-se um coração como um às [sic.] de copas.4

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o r e t r ato d e d o m s e b a s t i ã o

Importa examinar com mais detalhe este retrato. Uma pequena figura no lado esquerdo da composição, de braço estendido e com “dedos-seta”, aponta obsessivamente na direcção de D. Sebastião (o “Desejado”). O coração inscrito na palma da mão deste (com o coração nas mãos) invoca a personalidade pouco calculista e racional do monarca. Em baixo, um campo horizontal circunscrito (“écran” neo-figurativo5) plasma uma sequência desdobrada a dois tempos, na qual se vê um “brinquedo” feito de bico-de-ave e com asas (chamemo-lhe “passarola”). Com rodas, arrasta consigo um fio que o une a uma pequena circunferência. E voando da direita para a esquerda, isto é, do futuro para o passado, este brinquedo parece premonitoriamente consumar um desvanecimento que se adivinha pelo dissipar das formas. Contrastando com a maioria dos restantes monarcas retratados na série que nos ocupa, aqui o símbolo das espadas encontra-se obliterado (empreendimento militar logrado – falhanço de “perfeito asno”). Cremos não arriscar muito se, depois de fazer confluir este esparso punhado de nexos e articulações, ensaiarmos a ideia de que nesta passarola-de-brincar ecoa distintamente o “sonho, no erguer da asa” – as palavras que Fernando Pessoa escreveu no poema “Quinto Império” da Mensagem6. Esta “passarola” parece assim voar, levando de arrasto consigo o sonho de alguém que saiu positivamente apelidado, num outro poema à sua pessoa erigido, de louco (“Louco, sim, louco, porque quis grandeza / Qual a sorte não dá”)7. Pois fora justamente essa Loucura que, na miríade das desagradadas vozes lançadas ao seu vulto, justificou o fim trágico, quiçá irresponsável, do rei D. Sebastião, tal como é usual ver no seu governo uma época de declínio do “Império”. A sua imagem ficou então irremediavelmente enlaçada a esta visão emotiva dos acontecimentos e alvo de críticas assaz contundentes, por vezes até cruéis, como estão exemplarmente plasmadas nas de António Sérgio, que o qualificou de “egoísta, bronco, torpe”, ou simplesmente de “ tonto” ou “pateta”.8 Mas o aspecto mais desconcertante acaba por provir do facto deste D. Sebastião encarnar literalmente os traços de um tosco “boneco”. Esta apropriação, vinda do grafismo algo moderno das cartas de jogar, quadra esteticamente não só à obra em questão como ainda se replica ao longo de todo este cortejo de reis, rainhas e infantes que compõem os Reis. Bonecos articulados também, numa criação de formas em anatomias imaginárias. No entanto, no caso do Desejado, a configuração imposta ao corpo contrasta com a planificação que estrutura os restantes quadros, construídos a partir da inscrição, no centro da composição, da Cruz de Cristo, símbolo da dinastia de Aviz. Dinastia essa cujo fim D. Sebastião precipita... Assim, bem fora do enquadramento heráldico que irmana os retratos, entrevê-se no seu treslido fitar, em fixos olhos rasos de ânsia, a situação de sujeito abstraído da sua realidade, para exortar um deslocamento norteado pela autoridade guerreira de um passado primordial. Legado consignado aos alvores da nacionalidade através da sinalização na janela da “figura-brinquedo”, também ela sobejamente mítica (codificada pelo advento da Reconquista), de um D. Afonso Henriques cavaleiro, de elmo e armadura medievais, vitoriosamente de braço estendido com espada em riste.9

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5. Sobre a correlação entre o recurso destes “écrans” e a adesão de Costa Pinheiro à linguagem neo-figurativista em inícios da década de 60, ver Almeida 2002, 165: “A sua pintura deste período, que se seguiu às experiências informalistas dos anos cinquenta, consistiu numa surpreendente exploração de um espacialismo poético, ainda hoje actual, em que os quadros eram frequentemente divididos em vários planos internos com acontecimentos diversos jogando entre si como se em ecrãs simultâneos.” 6. A Mensagem, o único livro de poemas em português que Fernando Pessoa publicou em vida (ver Pessoa 1985, 97-123), visa na sua essência a criação de um Portugal mítico, constituindo a obra-prima onde o poeta lapidarmente imprimiu o seu ideal patriótico, sebastianista e regenerador. É um poema nacional, uma versão moderna, espiritualista e profética dos Lusíadas. 7. Ver o poema D. Sebastião, Rei de Portugal (datado de 20-2-1933) que integra a Mensagem (Pessoa 1985, 106). Nestes versos Pessoa encontra na loucura que atribui ao rei D. Sebastião uma força positiva que provém de uma negatividade que contém em si a energia necessária para transcender a condição frágil e quotidiana da humanidade (“sem loucura que é o homem, mais que besta sabia, cadáver adiado que procria”). Que essa loucura trágica sofra aos olhos do poeta uma inversão de valores - é essencialmente essa energia “positiva” que promove uma transcendência - resulta no ponto de chegada que ressalta do final do poema: “por isso, onde o areal está, ficou o seu corpo que houve, não o que há”. Em suma, entrevê-se um Fernando Pessoa que, deleuzianamente, encontra na “loucura” uma “intensidade” ou “força” capaz de criar um corpo sem orgãos. Isto é, um corpo que é antes de mais a imagem do rei sublimado (Encoberto/ Desejado), e, em última instância, a do próprio país (como utopia que se encontra por cumprir). 8. De entre os vários ensejos, de que não vale a pena aqui enumerar exaustivamente, ver a título de exemplo o artigo originalmente publicado na Águia (Julho-Agosto de 1917), intitulado “Interpretação não romântica do Sebastianismo” (reeditado em Sérgio 1971, 239-251).


costa pinheiro, d. sebastião , 1966. óleo s/ tela, 150 x 110 cm. col. manuel brito, lisboa. © cortesia da galeria 111 (autoria desconhecida)

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9. Esta leitura reporta-nos para o poema “D. Afonso Henriques” que figura na Mensagem (Pessoa 1985, 116) - “Pai, foste cavaleiro. / Hoje a vigília é nossa. / Dá-nos o exemplo inteiro / E a tua inteira força! // Dá, contra a hora em que, errada, / Novos fiéis vençam, / A bênção como espada, / A espada como bênção!”. 10. “D. Sebastião fecha este cortejo trágico com o coração nas mãos. Os dois retratos mostram-no no seu trilho suicida, povoado de sombras que o assolam na sua imaginação desenfreada de reimenino, que confundida as armas com os brinquedos.” (Almeida 2005, 13). Podemo-nos alargar aferindo que D. Sebastião parece aqui algo alucinado em seu anseio desmedido próprio, como criança que se entretém com os seus brinquedos, mas sem capacidade de medir o que tem entre mãos. Leitura assaz devedora das palavras supracitadas de Bernardo Pinto de Almeida. 11. FRANÇA, José-Augusto. 1973. “O ‘D. Sebastião’ de João Cutileiro”, in Colóquio-Artes. Lisboa, n.º 14, p. 44.

joão cutileiro, maquete de d. sebastião – i , 1972 · mármore, 46 x 15 x 15 cm. colecção particular. © joão cutileiro jr.

O “Pai” da nação encontra-se de costas voltadas para o semblante incerto do “reimenino”. Aparato “cenográfico” não inócuo. Simbolizarão, em conjunto, um início e um fim10. Eis um retrato que antecede, na sua amplitude corrosiva, aquele que João Cutileiro nos presenteará sete anos mais tarde, e que o mesmo J.-A. França viria a descrever do seguinte modo: Assim foi possível imaginar, em 1973, o rei “desejado”. Inquieto e falso herói. A sua figura confessa-o assim, como um fantasma vindo do fundo do tempo, espantalho da História, caricatura do Mito. Boneco dado à nossa piedade e oferecido à nossa meditação...11

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12. Comentando a série Os Reis de Costa Pinheiro, J.-A. França (França 1989, s/p) discorre: “Identificamos nós, por observação ou palpite, as figuras anunciadas, seria empenho vão: se uma ou outra tem traços conhecidos (o bacinete e a cota de malha nas pernas de D. Afonso Henriques, o chapelão na cabeça do infante D. Henrique), já nelas o restante da indumentária e dos símbolos que a ornamentam parece aleatória. Porquê este escudo ou esta cruz ou esta mão ou este pássaro, porquê este naipe - e não outro, para outro nome? [...] O jogo dos símbolos inventados, pela liberdade de humor que tem, rodeia qualquer código (com fintas de cigano alentejano - direi?..) e torna-se inteiramente absurdo, ou faz do absurdo a sua razão de ser pintura. Daí que estas cartas, de reis, damas, rainha e valetes ou príncipes, possam ser deitadas como nos apetecer, para traçarem dédalos de destino, ou fazerem vazas, por aleatória decisão.” 13. Nas palavras do próprio pintor (Pinheiro et al 1989, s/p): “Era minha intenção alcançar um certo humor, uma certa ironia, e talvez por isso a temática das cartas de jogar. Esta veio a ser desenvolvida a partir de quadros que pintei em 1964, os assim chamados ‘quadros históricos’. Num desses quadros, a batalha de Alcácer-Quibir utilizei, pela primeira vez, o motivo das cartas. Para mim tratava-se de não apresentar os reis dentro do aspecto formal do retrato ou de os enquadrar num ambiente convencional. [...] As cartas de jogar são uma coisa simbólica. Vendo bem, elas representam possibilidades lúdicas. Podem surgir no quadro sob formas muito diferentes.”

Costa Pinheiro, mesmo antes de Cutileiro, já nos tinha dado então um Sebastião como enigma intrínseco tanto à ordem do mito como à da história, fazendo do Encoberto, a sua figura, a sua mitologia, um objecto de criação em toda a esfera do simbólico. Aquele para o qual a aparência corporal é um enigma ou uma cifra de outro tipo de existência, anterior e mais alta, merecia este duplo investimento do imaginário pictural. Costa Pinheiro, para quem a realidade de D. Sebastião se converteu em interpelação segundo um modo muito próprio de apreender o universo da pintura, fê-lo em função do carácter da estranheza do objecto, da sua vacilação enquanto verdade histórica, de mito. Tanto a sua imediata banalidade como o seu mundo misterioso e extravagante, foram apreendidos na sua evidência insólita e em última análise como objecto já originalmente imaginário.

Nos antípodas da estatuária oficial ou do academismo monumentalista Não pretendi pintar retratos num sentido tradicional. As figuras centrais têm a rigidez da estatuária, mas há pormenores movimentados, uma compartimentação do espaço e um diálogo das cores que lhes imprime um outro carácter plástico. Se quisermos chamar retratos a essas figuras, não nos esqueçamos que são imaginárias e não precisaram de nenhuma documentação histórica. Isto é um privilégio do artista, cuja liberdade de imaginação coincide por vezes com a imaginação popular. Costa Pinheiro, em entrevista, 1966

Com a série dos Reis Costa Pinheiro toma uma situação histórica e retradu-la em múltiplas leituras sobrepostas de condições passadas e presentes. Nos seus “signos-oscilantes”, híbridos, é possível identificar uma série de símbolos nacionais e históricos de um modo ironicamente anti-categórico.12 Estes estereótipos, colhidos na grandiloquente estatuária, na severa heráldica e na prosaica iconografia das cartas de jogar13, são tratados através de uma paródia de si mesmos, perturbando uma cultura que depende de lugares-comuns estritos e linhas de estabilidade. Amálgama de cânones repisados numa homogeneidade inabalável feita de hábitos, de repetições e de clichés. Como acto algo espontâneo e inocente, estes “retratos” poderão ser vistos como um desapego aos afivelados códigos que a estatuária oficial veicula. Não nos mostra os reis como estaríamos habituados: encimando um plinto, de semblante dignificante, bafejados pela eloquência do pathos heróico, revestidos por um aparato iconológico devidamente identificado… Presenteia-nos antes meros Reis, Valetes e Damas, numa iconografia de cartas de jogar, em gosto infantil de as repetir, de as usar à vista de todos, de as proclamar ironicamente como esquema invulgarmente eleito para retratar os nossos símbolos nacionais.

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14. Ver FRANÇA, José-Augusto. 1973. op. cit, p. 41. “D. Sebastião elevou Lagos a cidade em 1573 e de lá partiu, cinco anos depois, a sua expedição que as areias de Alcácer Quibir haviam de absorver. Um facto festivo e outro bem triste justificam a estátua que a Câmara Municipal agora inaugurou na praça principal da cidade. Já defronte das suas muralhas já se perfilavam duas estátuas, de Diogo Cão (Canto da Maia) e do Infante D. Henrique (Leopoldo de Almeida), obra de série a primeira, obra de concurso para um dos gorados monumentos ao Infante, em Sagres, a segunda - ambas integradas no grande movimento de estatuária pública iniciado em 1928 com o Zarco de Francisco Franco, para o Funchal, e depois multiplicado por cidades e vilas do país em comemorações várias de estilo comum, numa pretendida ‘idade de ouro’ da escultura nacional. O ‘D. Sebastião’ de João Cutileiro situa-se fora de tal movimento; a bem dizer, é o primeiro monumento que ousa fazê-lo, dentro dos limites da figuração iconográfica.” (O negrito é nosso.)

costa pinheiro, d. afonso henriques , 1966. óleo sobre tela, 150 x 110 cm. colecção manuel brito, lisboa.

O retrato de personalidades históricas não é obviamente novo. O que muda em relação à produção oficial academizante sua contemporânea de meados de 60, fixada sob a alçada de um poder político ancorado num nacionalismo serôdio fora da hora internacional, não foi nem a sociedade nem os mitos. O que muda sim é o modo de ler esses mesmos mitos. E, aqui, no universo das imagens que enformam as representações que detemos da História, Costa Pinheiro auspicia uma via que irá ser ulteriormente abalizada pela verve “anti-zarco” de João Cutileiro (que o seu emblemático monumento erigido a D. Sebastião, na cidade de Lagos, em 1973, inaugura14).

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15. Ver Barthes 1973, 83. “[...] qualquer linguagem se torna antiga a partir do momento em que é repetida. Ora a linguagem encrática (aquela que se produz e se difunde sob a protecção do poder) é por estatuto uma linguagem de repetição; todas as instituições oficiais de linguagem são máquinas repisadoras: a escola, o desporto, a publicidade, a obra de massa, a canção, a informação, redizem sempre a mesma estrutura, o mesmo sentido, muitas vezes as mesmas palavras - o estereótipo é um facto político, a figura maior da ideologia.” Sobre o caso específico dos Reis de Costa Pinheiro, ver Almeida 2005, 10: “Os Reis de Costa Pinheiro foram [...] o anti-retrato mítico da situação efectiva, real, que o país vivia, amesquinhado e sem grandeza nem projecto. Ou seja, o avesso de uma representação oficial, que se esboroava a pouco e pouco, sem que alguém se lembrasse de lhe dar uma nova espessura ou consciência, uma dignidade, em que os portugueses se reconhecessem diversos.” 16. À pergunta “Qual o motivo que te levou a pintar os reis?”, Costa Pinheiro responde: “Bem, um deles foi o interesse muito pessoal em realçar algumas personagens históricas e contar sobre elas coisas boas e coisas más.” (Pinheiro 1966, s/d).


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17. Segundo Catherine Millet (Millet 1987, 71), para além do desígnio ideológico desta pintura “engajada”, onde algo do Maio de 68 já se fermenta, percebe-se que a Nova Figuração provém também, em larga medida, de um Abstraccionismo que no pós-guerra se vinha dando conta cada vez mais de uma espécie de crise semântica dos seus signos. A utilização da expressão “Nouvelle figuration” para designar os pintores do Cobra, ou a eles próximos, permite destrinçar uma ligação genealógica indirecta mas esclarecedora com o Surrealismo, enquanto as duas exposições organizadas sucessivamente em 1961 por JeanLouis Ferrier e em 1962 por Michel Ragon na Galeria Mathias Fels faziam a apologia do termo. Rui Mário Gonçalves advoga que o neo-figurativismo implica uma abordagem plástica das formas que, numa situação extrema, as realiza enquanto figuras puras, não identificáveis com objectos concretos. Para este crítico é a utilização impulsiva dos materiais que condiciona o seu aparecimento, numa relação inversa à pintura figurativa tradicional, mas que não exclui a possibilidade do surgimento de figuras reconhecíveis. Liberta-se, portanto, de uma subordinação estreita ao real: “O Neo-figurativismo corresponde a um novo interesse plástico pelo elemento figura e pelo objecto que a figura pressupõe. No caso da figura pura, esse objecto não existe na consciência do pintor antes da elaboração do quadro [...] A diferença entre esta pintura e a pintura figurativa tradicional, é que [...] o objecto aparece à consciência da utilização livre dos materiais pictóricos - surge com a figura, ou seja, a figura e o objecto são-se” (GONÇALVES, Rui Mário. 1963. “Lourdes Castro e René Bertholo in Colóquio, nº 31, Dez., p. 39). A respeito da entrada do termo e da proposta da “Neo-figuração” em Portugal ver também Gonçalves 1986, 90 e Pernes 1990, s/p.

costa pinheiro, d. pedro i , 1966. óleo sobre tela, 150 x 110 cm. colecção kurt egger, mannheim, r.f.a.

Nessa empresa está subjacente uma imagem alternativa à retórica grandiloquente dos monumentos aos heróis nacionais, difundida por fórmulas ritualizadas, expressões fossilizadas, estereótipos bolorentos15, com que se pretendia “en-formar” uma realidade e erguer respeitáveis fachadas em torno da dignidade das figuras da nossa história. (Neste ponto, o pintor pretende também aludir ao lado negro dos monarcas, às histórias e estórias suprimidas por baixo das comemorações oficiais.16). Contemporâneo dos ventos estruturalistas provenientes dos territórios da semiologia (enquanto “ciência geral dos signos”) e integrado na designada Neo-figuração17 (que

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18. Afiança Roland Barthes que “[...] não há clareza sem uma concepção clássica do signo, o significante de um lado, o referente do outro, o primeiro ao serviço do segundo.” (cit. p. Coelho 1974,16). 19. Se partirmos das considerações aqui já citadas de J-A. França (França 1989, s/p), não arriscamos muito se alegarmos que a série dos Reis de Costa Pinheiro é povoada de significantes órfãos, que se autonomizam, porque menos dependentes de um significado agora insubstanciado (mutilado) na sua suposta integridade originária. No fundo, Costa Pinheiro demonstra que o referente é, logo à partida, impuro, permeabilizado, pilhado na sua unidade de fachada.

costa pinheiro, dona leonor teles , 1966. óleo sobre tela, 170 x 135 cm. colecção kurt egger, mannheim. r.f.a.

podemos interpretar em traços largos como triunfo do significante perante o significado na pintura moderna por contrariar veemente a concepção clássica do signo18), Costa Pinheiro não pretende pois deter-se somente na análise do signo, mas no ponto da sua vacilação.19 A respeito deste fenómeno, paradigmático e conjuntural, Roland Barthes (cit. p. Coelho 1974 , 16) adverte que: Não são os mitos que é preciso denunciar (a doxa encarrega-se disso), é o próprio signo em si que é preciso abalar: não revelar o sentido (latente) de um enunciado, de um traço, de uma narrativa, mas estilhaçar a própria representação do sentido; não mudar ou purificar os símbolos, mas contestar a própria “simbólica”.

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20. Mediante um tão inédito como “poderoso levantamento mitográfico-simbólico da história ancestral do País” (Almeida 2003, 167), que inclui as inevitáveis ressonâncias de longa duração que se vêm perpetuando no imaginário popular, Costa Pinheiro apresenta uma amálgama propositadamente difusa de estereótipos permanentemente edificados/repisados, para serem agora ironicamente recriados em nome de um imaginativo jogo poético que, de modo tão ingénuo como mordaz, confunde lenda, memória e história no mesmo horizonte de representação. Insubordinando-se contra a homogeneidade inabalável da estatuária académica estadonovista, Costa Pinheiro converte assim a figura histórica do monarca em território de devaneio hermenêutico, tomado como enigma dirigido ao espectador, onde os nexos e articulações referenciais aparecem invariavelmente subvertidos ao tornarem-se cifras pessoais que dão largas à reinvenção libertária dos signos. 21. Ver Coelho 1974, 20. “[...] não há discurso político que não seja repetitivo, que não se alimente de estereótipos.” 22. Alega Roland Barthes que “A deriva acontece sempre que eu não respeito o todo [...] Há deriva sempre que a linguagem social, o sociolecto me falha.” (cit. por Eduardo Prado Coelho 1974: 28). 23. José-Augusto França (FRANÇA, José-Augusto. 1972. “(A Série dos Reis)”, in Colóquio-Artes, Lisboa, n.º 10, p. 9) nota que “as figuras de Costa Pinheiro são menos figuras do que figurações de um mundo inventado – documentos não de uma memória histórica mas de uma imaginação poética.”. No mesmo sentido, Rui Mário Gonçalves (Gonçalves 1986, 168) assevera que a série de retratos de reis de Portugal surgem “não como resultado de alguma investigação científica, mas segundo uma recriação, lírica ou irónica, das lendas populares.”

Tomando de empréstimo esta programática demanda, talvez esteja subjacente na proposta de Costa Pinheiro o seguinte enunciado: A nós portugueses, compete um uso libertário de toda a linguagem mitográfica/mitológica que durante longos anos nos esmagou.20 E, assim, ao inaugurar uma irónica afronta ao academicamente estabelecido, Costa Pinheiro exorta a passagem dos atávicos códigos e imagens estereotipadas21 que tipificam a produção pública oficial, presa às exigências e prescrições propagandistas, para a transbordância e humor do imaginário popular. Dessa forma, o pintor promove que o retrato surja sempre como linguagem viva e movida pela imaginação livre daqueles que a falam, e que nela se dissolvam os mitos que fomos construindo. Abolindo o fetichismo da unidade do sujeito-referente, o seu/nosso prazer pode muito bem tomar a forma de uma deriva.22 E neste auspicioso ponto, a lógica do prazer barthiana (formulação já pós-estruturalista) serve-nos aqui operatoriamente para explanar a proposta de Costa Pinheiro enquanto discurso dissidente; nomeadamente no que concerne ao modo como ela escapa às regras que tipificam a representação (as prerrogativas do Retrato), às leis da exposição (os cânones apensos à estatuária oficial e os mecanismos de significação na pintura figurativa), aos critérios da verdade (do documento histórico23). Verifica-se um arrebatamento desvairado que pode chegar à destruição do discurso submetido à repetição em que predomina o estereótipo e a mais inquietante seriedade. Linguagem que afasta a fruição, recalca o inconsciente, recusa a textualidade. Partindo desta base enunciativa, Costa Pinheiro propõe uma fórmula alternativa, mesmo marginal, de representação e interpretação dos mitos nacionais. Apresentanos ironicamente formas estáticas, estatualizadas, em virtude de serem castradoras para a mobilidade imaginativa da colectividade e da fantasia pessoal de quem se propõe a meditar sobre as mesmas.

O discurso mítico para desmitificar o mito ou a criação de um mito artificial. Desejo ser um criador de mitos, que é o mistério mais alto que pode obrar alguém da humanidade. Fernando Pessoa, num texto solto, c. 1930

Combato certas ideias que continuam vivas entre nós. Eu queria fazer um estudo anatómico desta realidade: no fundo não é realidade nenhuma, mas uma espécie de mitologia que se foi instalando na imaginação popular. Talvez também por isso me tenha surgido a ideia de pintar estas figures mortes... Costa Pinheiro, “Reis como ‘Figures Mortes’”, 1966

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No espaço político que assim se desenha, o texto surge no pólo oposto do mito, definindo duas zonas: ao mito corresponde a zona da linguagem estereotipada, repisada, repetida, fossilizada nas suas fórmulas e referências; ao texto corresponde a zona utópica que se perfila onde quer que a linguagem assume a sua vocação significante, conquista o seu amor da liberdade, e se projecta “numa região aérea, leve, espaçada, aberta, descentrada, nobre e livre.” Eduardo Prado Coelho, “Aplicar Barthes” (prefácio de O Prazer do Texto), 1974.

Digamos que se entende o desafio de Costa Pinheiro, ou seja, a sua vontade, que é também o prazer do pintor, de renovar a figuração e o retrato encurralados no mito, pelo único meio que lhe é possível: a tentativa de o re-figurar, de o representar de outro modo. No seu sebastiânico retrato, Costa Pinheiro mostra que a pintura pode aproveitar-se da contextura volúvel de uma dada figura, para traduzir nela, no seio da sua antiga unidade geral, as hesitações e as variações inerentes às peripécias de um drama contínuo que, no seu caso particular, se tornou concomitante a um povo e à condição de artista auto-exilado24. Inquirido com a questão “Em que medida é necessário conhecer as várias personalidades históricas para os interpretar?”, ressalva Costa Pinheiro que: A meu ver não se deve esperar encontrar nestes quadros todo um mundo ambiente (como em El Greco). Estes retratos, se assim lhes quisermos chamar, são muito imaginários, não são a representação dessas figuras como corpos e contornos. Eles não correspondem, por assim dizer, a um modelo histórico linear; aliás isto não é um privilégio do artista: também entre o povo (e não só entre o português) se transformam através da memória, as lendas, ideias ou imagens de reis, por exemplo. (AA.VV. 1989, s/p.).

Tratar-se-á então menos de uma desmontagem do mito do que recriação do mesmo. Mas ao recriar não está Costa Pinheiro justamente a “desmitificar”? Se considerarmos a decisiva tese de Roland Barthes, de que “o mito é uma fala [...] é um sistema de comunicação, uma mensagem [...], não pode ser de modo nenhum um objecto, um conceito ou uma ideia; é um modo de significação, uma forma” (Barthes 1984, 203), então, nos retratos de Costa Pinheiro, o objecto jamais será a pessoa do Rei. Ao tornar objecto do retrato o mito (a despeito do sujeito do monarca), Costa Pinheiro propõe uma crítica ao discurso da arte académica e oficial enquanto metalinguagem de uma linguagem-objecto que é já em si por excelência mitificadora. Se aceitarmos esta abordagem, poderemos asseverar então que Os Reis de Costa Pinheiro procedem a uma mitificação do mito, e por isso são - usando a formulação estruturalista do pensador francês - um mito artificial. Essa premissa pressupõe que o sujeito histórico, a sua pessoa, seja duplamente deformado.25 Ou seja, Costa Pinheiro caricatura a deformação que a mitificação da figura do rei fez ao sujeito histórico ao logo do tempo, levando-a ao limite.

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24. Ver Almeida 2002, 165: “António Costa Pinheiro vivia então numa espécie de exílio. A Alemanha desses anos, ainda na época laboriosa da sua reconstrução, acolhia favoravelmente a arte, a sua indisciplina. E esse país culturalmente distante do nosso, queria entender o trabalho de Costa Pinheiro e aceitá-lo, vitoriá-lo até com os seus mecenas, galerias, críticos que jamais Portugal poderia ter conhecido na mesma época. Os Reis foram, na obra de Costa Pinheiro, não apenas um momento decisivo de medição com essa outra realidade cultural como, também, um modo de ajustar as contas com a memória do seu próprio país.” 25. “A relação que une o conceito do mito ao sentido é essencialmente uma relação de deformação.” (Roland Barthes 1984, 192). “A deformação é evidentemente inerente às línguas de conotação: é porque a forma do mito é constituída por um sentido que o mito pode deformar.” (Louis-Jean Calvet 1996, 56). Na esteira destas determinações, podemos ensaiar o seguinte exercício: no caso em análise, o significante prévio (imagem de D. Sebastião) fora desviado do seu sentido (heróico). O que equivaleria a dizer que é na passagem da denotação (pessoa de D. Sebastião) para a conotação (Salvador) que assenta a deformação (a distorção ideológica) que gera o mito. Ora, e para simplificar, Costa Pinheiro ao apropriar o mito, imprime uma deformação segunda que tem como efeito desvelar a distorção primeira, sancionada pela ideologia estadonovista.


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26. “[...] o mito é constituído pela perda da qualidade histórica das coisas: as coisas perdem nele a memória da sua fabricação” (Barthes 1984, 209210). Louis-Jean Calvet (Calvet 1996, 56-57) comentando esta passagem de Barthes, refere que “O mito, no sentido clássico do termo, é eterno. O mito do semiólogo pretende a esta eternidade, quer dizer, evacua o aspecto histórico do sistema primeiro sobre o qual se constrói [...]. Na falsa oposição entre Natureza e Cultura (não será própria natureza cultural?), o mito pretende ao natural, isto é, aparenta deshistorizar-se, despolitizar-se. É isso o que se dá como evidente de que falava Barthes no seu prefácio, a fuga funcional da História. Formalmente parasita, semanticamente ambíguo, o mito assume portanto, uma função deformante: distorce a história para melhor a poder negar, vai buscar ao cultural para pretender ao natural. Será assim o lugar privilegiado da ideologia que, cultural por definição, não pode sobreviver senão fingindo ser natural. É uma tendência característica do discurso oficial por exemplo que, sendo evidentemente histórico e contigente, procede por afirmações gerais e definitivas, por especificações exclusivas e policiais (isto é isto) para se apresentar como uma marca de eternidade. O mito constrói-se em primeiro lugar sobre a ideia de que é definitivo: não histórico. É essa a sua função primeira, que procede da sua forma, como vimos, mas também das suas utilizações.” (o negrito é meu). 27. Exemplo paradigmático são as palavras de Teixeira de Pascoaes no capítulo dedicado ao “Espírito Messiânico”, quando discorre sobre a dimensão “transcendente” que enforma a “personalidade lusitana”, e que segundo o autor de A Arte de Ser Português, se encontra explanado através de uma messianismo onde se encontram espiritualizados os “caracteres religiosos da Raça, nos quais o amor familial e o pátrio amor se divinizam” (Pascoaes 1917, 90-91).

costa pinheiro, infante dom henrique , 1966. óleo sobre tela, 150 x 110 cm. colecção particular, munique, r.f.a.

Por aqui compreendemos como um país, um determinado imaginário pátrio vigente (ou dominante), encabeçado por poetas, intelectuais e agentes do Estado, esconde o aspecto histórico das produções ideológicas que, assim filtradas, se apresentam como naturais26, confundindo histórico (e contingência) com essência, para deificar uma personalidade lusitana ingénita firmada à imagem do sebastianismo mediante critérios idealizantes e transcendentalistas.27

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28. Para invocar a corrente do anti-humanismo teórico que anuncia o fim de todas as filosofias tradicionais (antropocêntricas) da linguagem e da interpretação, há uma eloquente passagem de Michel Foucault frequentemente citada, em As Palavras e as Coisas (Foucault 1998, 422), que descreve o “homem” - ou o imaginado sujeito autónomo do discurso humanista - como uma figura traçada na areia na margem do oceano, que prontamente será apagada pela maré. No campo mais estrito da produção artística internacional, a historiografia actual americana (Foster et al. 2004, 671) advoga que a “des-psicolização” levada a cabo pelas neo-vanguardas - preconizada por Cage, Rauscehnberg, Johns e os Minimalistas - é paralela ao “anti-subjectivismo” estruturalista dos anos 60. Efeito da “aversão para com o ego privado” que, por sua vez, reage à prática artística da década de 50 (fundamentalmente ao Expressionsimo Abstracto, ao Cobra e ao informalismo europeu).

costa pinheiro, dom manuel i , 1965/6. (estudo). óleo sobre tela, 81 x 65 cm. colecção do artista

Ora, aquilo que Costa Pinheiro toma como referência não é outra coisa senão o mito. Não é a extensão psicológica, ou o desfolhamento da verdade do ser que cativa o pintor - Costa Pinheiro mostra cinicamente que a sua origem em carne e osso é anónima, pois a representação oficial apagou o real -, mas antes o folheado da significancia. Neste ponto teremos que considerar que, como instituição, no exacto paradigma dos Anos 60, o “sujeito morreu”: a sua pessoa civil, passional, biográfica, desapareceu.28 Desapossado, já não exerce sobre o (seu) retrato a formidável paternidade/referencialidade que a história da arte, o ensino, a opinião tinham por função estabelecer e renovar. É por esta via que devemos relevar o alcance que a proposta

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29. Sobre o termo “figura pura” - e atendendo ao já referido na nota 17 - Rui Mário Gonçalves (Gonçalves 1986: 90-91) lança alguma luz: “O conceito de figura pura teria interessado aos surrealistas, para além da inicial proposta de ‘modo interior’, feita por Breton. As pinturas de Kandinsky, Klee e Miró abrigaram novas possibilidades, transformando a figura em signo, ou seja, um automatismo psíquico puro cumprido no próprio momento de execução pictural. / A concentração na figura pura e no signo conviria em especial ao surrealismo, tal como a forma pura tinha sido essencial para o cubismo e para a abstracção geométrica e tal como a cor pura caracterizava o fauvismo em certos aspectos da abstracção geométrica.” No entanto, a respeito da noção de “figura pura” aplicada à pesquisa neo-figurativa em Costa Pinheiro, ver Margarida Acciaiuoli (Acciaiuoli 2001, 448). “Remetendo para si próprios, não se parecendo com nada e não sendo representação de coisa nenhuma, esses elementos que apareciam primeiro nos seus desenhos passam a habitar as suas telas como abertos a tudo, por um movimento de apagamento criador que se trata e que, por conseguinte, deixa circular a imaginação que lhes dá a vida. Neste sentido, estas figuras não são imagens de outras. Elas são, pelo contrário, a sua manifestação.” 30. Sobre a dissolução neo-dadaísta do signo ocorrida nas décadas de cinquenta e sessenta ver Hal Foster (Foster 1996, 78). “Mas justamente quando a autonomia semiótica parecia estar assegurada de uma vez por todas, a arbitrariedade semiótica foi por seu turno reafirmada, primeiro com figuras neo-dadaístas como John Cage e logo, o âmbito na pintura, por figuras como Robert Rauschenberg e Jasper Johns. De facto, ambos artistas levaram a arbitrariedade do signo ao ponto da dissolução sublinhada por Jameson, ou seja, ao ponto em que os significantes (letras, números, etc.) se tornaram literais, ‘libertos do lastro dos seus significados’.” (A tradução do inglês é minha).

neo-figurativa de Costa Pinheiro detém quando entendida à luz de um movimento geral de disrupção/dissolução do significado, de arbitrariedade e justaposição dialéctica dos fragmentos, de desvinculação entre significante e significado. O que interessa a Costa Pinheiro neste desígnio é verificar como um modo de representar se cristaliza, se torna espesso, se sobrecarrega de estereótipos, se fossiliza pela repetição até adquirir a consistência das coisas evidentes (“naturalizadas”). Com isto, o pintor abstrai os significados específicos de cada significante deixando-os como que leves, soltos, libertos para se dissolverem, para se tornarem quase “figuras puras”29, des-simbolizando tudo o que remete para a uma cultura agarrada a insígnias e marcos de referência supostamente seguros (instâncias aqui sinalizadas de modo lapidar pela alusão jocosa à severidade da heráldica). Em suma, contra a apropriação fascista de símbolos nacionais, Costa Pinheiro contrapõe o que Barthes propôs à lógica capitalista: uma contra-apropriação. Lembremo-nos da revolucionária asserção do pensador francês: “A falar verdade, a melhor arma contra o mito é talvez a de, por sua vez, o mitificar, é produzir um mito artificial: e este mito reconstituído será uma verdadeira mitologia. Já que o mito rouba a linguagem, porque não roubar o mito?” (Barthes 1984, 203). Partir em pedaços o signo mítico, inscrevê-lo numa montagem crítica e depois fazer circular este mito artificial sob a etiqueta de “retrato de um monarca”, é direccioná-lo para uma interpretação pelo menos algo neo-dada, tanto pela via da arbitrariedade do signo como pela via do absurdo poético. Esta foi, grosso modo, uma das estratégias da arte apropriacionista que floresceu em finais dos anos 50 e inícios de 60.30

O retrato como avesso de si ou a violação do género como efeito da “extensão” do mesmo Ao contrário de toda a tradição que via o retrato a partir do retratado, Os Reis de Costa Pinheiro parecem sustentar que a imagem conduz à figura em vez de partir dela. Verdadeiros ícones em irónico modelo de cartas de jogar, estas “figuras mortas” como lhes chamou o pintor, emanam de uma outra vida para quase exigirem a vida de quem as olha. Margarida Acciaiuoli, D. Dinis (ficha de obra), 2001, p. 451

Esta série de retratos nada tem a ver com os cânones tradicionais de conservação da memória (enquanto luta contra a voracidade do tempo), de monumentalização (de cariz heróico, áulico ou propagandístico), de afirmação de classe (emblema/ ostentação de estatuto social), muito menos de revelação da subjectividade. Para estas almas despossuídas, a (des)mitificação do mito parece ser uma força devora-

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dora. O rompimento do corpo, o “não-olhar” do esquema impessoal que devora o sujeito, faz com que este se converta em espaço de deriva; nada mais nada menos que devaneio lírico irresoluto dirigido ao espectador. Desse modo, não vemos senão uma “re-aparição na pintura de um espectro”, uma “cara da História” (Acciaiuoli 2001, 449), que se iconificou segundo os traços de marca identificadores promulgados pela interpretação pessoal que o pintor faz do imaginário popular. E na condição de ícone (Acciaiuoli 2001, 451) - apropriado sobretudo dos modelos da iconografia das cartas de jogar -, imiscuiu-se qualquer sentido de presença (a “cena”), o sentido fisico-contextual (“o espaço-tempo”). Costa Pinheiro não poderia, com efeito, ter copiado literalmente, “traço por traço” - seguindo a definição ritrarre do século XVI - a figura do monarca. Logo, não se trata da “figura tirada do natural” de Filipo Baldinucci, formalizada no século XVII (cf. Pommier 1998, 16 e 17). Com isto inviabiliza-se a certificação da verdade do processo (legitimação e autentificação), pela via que garantia a fidelidade para com o modelo visível (mimetismo do rosto empírico) ou invisível (captação do espírito/ personalidade), que por sua vez pressupunha conhecê-lo previamente em pessoa. Talvez o mais importante a referir seja mesmo o facto destes reis não pretenderem simular vida alguma. Por isso foram propositadamente investidos com o evacuado olhar, não propriamente da morte, mas do defunto. A efígie que lhes advém da ressonância longínqua do perfil hierático egípcio serve-lhes de máscara mortuária, o que lhes faz merecer o nome com que o pintor os baptizou nos bastidores: “figures mortes”. E se partirmos deste pressuposto (pelo pintor assumido), também por aqui se entra em contradição com as prerrogativas do género. Tal como Jean-Luc Nancy assevera (Nancy 2000, 54), quando nos aproximamos da máscara mortuária - que apresenta o morto - afastamo-nos irremediavelmente do retrato propriamente dito - que representa a morte em pessoa, ou que “imortaliza a pessoa na morte”, por esta aparentar continuar “viva” para lá da sua existência.31 Esta condição - de figura morta - confere-lhe uma presença sem hipótese de esquiva (ou de esgueire32). O silêncio mudo da petrificação que os perpassa é disso signo: dali desapareceram os sinais substitutivos, os traços de uma expressividade que esconde (Gil 1999, 16), aplacando a ilusão, a aparência, a iminência da fala, como critérios do retrato vivo (Gil 1999, 14). O decesso aqui é (simbolicamente) declarado, facto que contraria a obsessão estético-metafísica em sobreviver realmente à morte, que, para José Gil (Gil 1999, 14), define a essência do retrato enquanto dispositivo particular de fabricação de um tempo real eterno dentro do tempo. Depois de somar todas as subtracções supramencionadas (incluindo as que partem directamente do enunciado subversor de Acciaiuoli - agora a imagem conduz à figura em vez de partir dela...), desembocamos numa espécie de avesso do Retrato. Conjecturamos uma nova ideia degenerativa do mesmo por demover o género das suas determinações históricas, quando este já não se pretende fiel, com base na semelhança, ao modelo (à sua fisionomia), nem comprometido com a essência (espírito do sujeito), que o define idealmente. O que está em jogo nos Reis é, pois, a inflexão da própria natureza do referente. Não se trata do sujeito empírico (centrado

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31. Também José Gil (Gil 1999, 13), num fascinante texto dedicado ao retrato, vai ao encontro desta determinação, quando afiança que: “De uma maneira geral, os textos sobre a função do retrato insistem sobre a virtude que ele possui de prolongar a imagem dos vivos para além da morte. [...] Um laço misterioso une a imagem do rosto à morte. O adjectivo talvez mais usado, na literatura sobre o retrato, para elogiar a obra feita, é ‘vivo’. O retrato suspende o tempo, torna presente a ausência, ‘ressuscita’ o modelo morto, porque o fixa numa imagem ‘viva’. ‘É tão semelhante que parece vivo. Só lhe falta falar.’” 32. José Gil, tratando do rosto no âmbito do tema do retrato, fala de um esgueire por parte do interior, o que faz com que o exterior o exprima necessariamente em equívoco, mesmo quando a expressão é parcialmente fiel ao expresso. Para o filósofo português, aquilo que se exprime no ou pelo rosto mostra-se dissimulando-se, porque não é directamente visível: “O sorriso terno que vemos naqueles lábios é sempre mais ou menos, e outra coisa ainda, diferente da emoção interior que o fez nascer. / Então o rosto manifesta, de modo eminente, o esgueire, a esquiva do interior à expressão directa” (Gil 1999, 15).


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33. Daí Margarida Acciaiuoli (Acciaiuoli 2001, 451) também asseverar tratar-se de “retrato”, mas aqui de um retrato com um sentido e função muito peculiar: desígnio para um “exercício plástico sobre a compreensão de um monarca como mitologia de uma situação histórica”. 34. “Num primeiro momento [o da linguística estrutural da tardo-modernidade], a reificação ‘libertou’ o signo do seu referente, mas esta não é uma força que se possa libertar sem impunidade. Agora, num segundo momento [da semiótica e da pós-modernidade pós-estruturalistas], continua o seu trabalho de dissolução, penetrando no interior do mesmo signo e libertando o significante do significado, ou do significado propriamente dito. Este jogo já não é o do âmbito dos signos mas antes dos significantes puros ou literalmente libertos do lastro dos seus significados, dos seus significados anteriores, gerando agora um novo tipo de textualidade em todas as artes.” Cit. de Hal Foster (Foster 1996, 77) a Jameson, “Periodizing the 60s”, in The 60s Without Apology, ed. Sohnya Sayres et al., Mineápolis, University of Minnesota Press, 1984, p. 200. (A tradução do inglês é minha).

no reconhecimento do rosto), nem de uma ideia a si associada (de beleza, de virtude, de majestade...). Trata-se já de uma outra coisa: o imaginário popular filtrado pelo crivo mneumónico e poetizado do pintor33. Posto isto, parece que os retratos que Costa Pinheiro concebe destroem até ao fim, até à contradição, a sua própria categoria discursiva, a sua referência sociolinguística, o seu “género”. Ele é o retrato que não retrata, tal como um cómico que não faz rir cai no fracasso. Trata-se de fazer aparecer, por transmutação - e já não por transformação ou inovação -, um novo estado filosofal da matéria do retrato enquanto linguagem, fora da origem e fora da comunicação: quebrou-se a unidade genérica do “género” que a sociedade exige a qualquer produto humano. Com Costa Pinheiro a teoria moderna do retrato, que Pierre Francastel define ainda como fidelidade ao modelo (Francastel 1978, 228), é resolutamente posta entre parêntesis. Ou seja, do referente em suspenso desaguamos irremediavelmente na designada ruptura pós-moderna do signo que Jameson formaliza34. E, assim, diante da corrosiva imagem que Costa Pinheiro a todos nós, portugueses, presenteia, restanos contemplar, de maneira indiferente ou cúmplice, o modo como a desvalorização do mundo enquanto entidade referencial primeira participa na desvalorização da “imagem” desse mesmo mundo tal como foi construído e apresentado.

Uma mudança de paradigma: heterodoxia do retrato (transgressão, diferença e deslocamento) Na ausência de adequada inovação teórica corre-se o risco de analisar a permanência do retrato na situação dos Anos 60 pela negativa, por aquilo que ele não tem quando comparado com as noções tradicionais. Tal negatividade é precipitada porque cega a um diferimento que uma série de mutações estruturais de fundo consubstanciam, e por isso campo fértil para análises redutoras, como os sentenciosos atestados de “crise” ou de “morte” (ver Francastel 1969, 228), em larga medida efeitos da inadequação/desactualização dos instrumentos analíticos. A incursão teórica que se ensaia visa captar a especificidade de novas propostas artísticas que lidam com a imagem do homem enquanto sujeito desembaraçando-se dos ditames rigorosos do retrato académico, de molde a convertê-las em potencialidades, num período histórico (Anos 60) militantemente votado ao ataque geral à univocidade, ao advento da multiplicidade de modos de ser, à expansão da identidade ou à ausência de fixidez (cf. Celant 1999: 183-191). Nesta linha de pensamento devemos propor uma revisão acerca do modo como a mutilação de algumas das estipulações essenciais do retrato nos coloca numa espécie de impasse “ontológico”.

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35. Sobre a articulação entre a passagem de uma lógica da contradição (que pressupõe a postulação da identidade prévia) para uma lógica da diferença, e das consequência teóricas que advêm da “morte de Deus” no âmbito do pensamento que se instaura nos anos 60, ver Michel Foucault (“Préface à la transgression” in Crítique n.º 195196, Agosto-Setembro 1963). Apropriando o resumo de Eduardo Prado Coelho ao supracitado ensaio do filósofo francês, “Para o pensamento dialéctico, havia a experiência da contradição. Para o pensamento actual, há a experiência da transgressão [...] A transgressão não tem a ver com a força do negativo. Ela não se opõe a coisa nenhuma: não é nem violência (no plano ético), nem qualquer modo de se afirmar a relação aos limites que anula (o que corresponde à marca revolucionária do pensamento dialéctico). A transgressão nada tem de negativo. Mas também nada tem de positivo (se tivesse um conteúdo, negava-se a si própria, porque ela é a passagem para além de todos os conteúdos). A transgressão não pressupõe um corte: aqui o limitado, para além do ilimitado. Ela pressupõe um ser de diferença.” (Coelho 1999, 65).

costa pinheiro, dom manuel i , 1966. óleo sobre tela, 150 x 110 cm. colecção dr. g. zundel, salzburg, áustria

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36. Referimo-nos aqui, essencialmente, às lógicas da diferença pós-estruturalista (de Deleuze, Foucault e Derrida) enquanto processo de des-dialectização que visa a superação da contradição. A possibilidade aberta pelo pensamento deleuziano (ver Deleuze [1968] 2000) que assenta na ideia de que a diferença está em primeiro lugar relativamente à identidade (e à negação) encontra-se amplamente explanada na obra axial Diferença e Repetição. É entroncando nessa exacta genealogia de pensamento que Germano Celant (Celant 1999, 183), caracterizando o paradigma da arte que gravita em torno do Maio de 68, se refere a um “Exaltar-se com a expansão da própria identidade que a partir de então se apresenta sem limites.” Dito de outro modo, logo que a proibição da violação do código inerente a cada género deixa de ser pensada enquanto escândalo – as trans e interdisciplinidades dos Anos 60 e 70 do século XX fizeram de tal exercício num lugar comum – deixamos de operar no plano dos conceitos tradicionais e accionamos uma zona que escapa a tais conceitos, nomeadamente no que concerne ao


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que forma sistema com a lógica da oposição e da identidade do e pelo Mesmo. Trata-se de multiplicar o entendimento no interior do seu campo, patenteando, agora, mais radicalmente, em toda a sua heterogeneidade, uma visão estilhaçada e polimorfa do seu conceito. 37. Em suma, subscreve-se aqui uma noção de género imutavelmente estruturado e no entanto infinitamente renovável e extensivo. A esse propósito ver o capítulo “La loi du genre” de Jacques Derrida (Derrida 1986, 249-287), para quem o género vive em permanente extravasamento. Abordando o estatuto e função da “Lei do género” em literatura, o filosofo francês advoga que nenhuma obra literária existe sem referência àquela lei, e, no entanto, o seu próprio estatuto implica que ela se lhe não subordine mas que a desloque ao afirmá-la. “Ainsi dès que du genre s’annonce, il faut respecter une norme, il ne faut pas franchir une ligne limitrophe [sic.], il ne faut pas risquer l’impureté, l’anomalie ou la monstruosité [...] Et s’il leur arrive de se mêler, par accident ou par transgression, par erreur ou par faute, alors cela doit confirmer, puisqu’on parle alors de ‘mélange’, la pureté essentielle de leur identité.» (p. 253) ; «C’est précisément un principe de contamination, une loi d’impureté, une économie du parasite. Dans le code de la théorie des ensembles, si je m’y transportais au moins par figure, je parlerai d’une sorte de participation sans appartenance. Le trait qui marque l’appartenance s’y divise immanquablement, la bordure de l’ensemble vient à former par invagination une poche interne plus grande que le tout, les conséquences de cette division et de ce débordement restant aussi singulières qu’illimitables.» (p. 256).

Num primeiro momento, trespassados por um misto sentimento de nostalgia e resignação, somos assolados pela dissolução do género, quando este aparece putativamente violado/corrompido na sua “lei”. Prostrada sequela proveniente tanto da morte do homem estruturalista (que assinou friamente e sem pudor o desvanecimento da pessoa civil, passional, biográfica), como da extravagância do significante pictórico neo-figurativo (por este surgir liberto do lastro de um sujeito/referente que classicamente o consubstanciava). Num segundo momento, depois de entrever a energia que esta mesma “crise” despoleta, desenha-se subitamente no horizonte a via que a nova dimensão conferida à transgressão auspicia na exacta situação dos Anos 6035. Autorizando que o letárgico sistema dialéctico de oposições, regulador estruturante das “velhas” formas de pensar, ceda lugar a um tratamento mais livre e heterogéneo do retrato. Posto isto, a célebre categoria disciplinar que em tempos abrilhantava os ínvios corredores das Academias de Belas-Artes, acaba por se demitir do ortodoxo sistema binário e exclusivista da identidade/negação, para se inscrever num regime outro, consignado já à irremediável dilatação/diluição instaurada pelas chamadas lógicas da diferença.36 Trata-se, em suma, de supor uma ideia-outra de retrato, simultaneamente expansiva e permeável, que aglutina no seu espaço específico de nomeação as próprias investidas que perturbam uma definição outrora austeramente fixada pelos rigores da Academia, mas que, no momento em que se desdobra o paradigma entretanto tecido, se firma em permanente extravasamento. Estatuto que não o nega, antes o desloca.37

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Resumo Sempre que se fotografa alguém faz-se retrato. Retrato, precisamente segundo os critérios tradicionais da análise formal: representa-se alguém concreto com fidelidade ao visível. Se a fotografia faz, sempre, mesmo que secundariamente, retrato, isso acontece pela “natureza” do fotográfico: a fotografia é “retrato” do mundo - seu duplo mimético exacto. Não é a Verónica que faz do ícone retrato e, portanto, “verdadeiro” (verum Eikôn)? Não é a fotografia, numa das suas mais antigas e perduráveis ficções, verdadeiramente fundadora, uma verónica da Natureza? Este Mandilion, esta cópia automática do mundo, não é, também, readymade? Apropriação, ficcionalmente sem outra intervenção senão a da escolha.

palavras-chave fotografia pintura readymade retrato hitchcock

Abstract Each time a photograph of someone is taken a portrait is made. Portrait, according to traditional criteria of formal analysis: a person is portrayed with acute likeness to what is seen. If the photograph is always, if only in a secondary manner, a portrait, this is due to the photograph’s “nature”: a photograph is a “portrait” of the world – its own exact double mimicry. Is it not Veronica who makes the portrait an icon and, therefore, “true” (verum Eikôn)? Is not the photograph, in one of its oldest and lasting fictions, truly founding, a verónica of Nature? Is this Mandilion, this automatic copy of the world, not also a readymade? Appropriation, fictionally with no other intervention than that of choice.

key-words photography painting readymade portrait hitchcock


o fotográfico como retrato e “readymade” a propósito de alfred hitchcock

j o s é a n tó n i o l e i tão Departamento de História e Teoria da Arte, Ar.Co - Centro de Arte e Comunicação Visual

1. Cf. Francis Ames-Lewis, The Intellectual Life of the Early Renaissance Artist, New Haven-Londres, Yale University Press, 2000 e Simon Schama, Rembrandt’s Eyes, Londres, The Penguin Press, 1999. 2. Maurice Yacowar, “As Aparições de Hitchcock” in AA.VV., In Alfred Hitchcock’s, s.l, Cinemateca Portuguesa-FCG, s.d., pág. 132. Catálogo do ciclo dedicado a Hitchcock (Lisboa, Fevereiro-Abril de 1982). 3. Maurice Yacowar, op. cit., pág. 141.

O genérico inicial de North by Northwest (1959) termina com um figurante a perder o autocarro: a anónima e insignificante personagem é desempenhada por Alfred Hitchcock, numa das frequentes, fugazes e características participações nos filmes que dirige. Retrato. Auto-retrato – comprometido pela ficção? E por ela confirmado: será necessário lembrar o Giorgione que se apresenta a si mesmo como “David” (1509-10) – ou Rembrandt representando-se, em companhia da mulher Saskia, como o “filho pródigo na taberna” (c. 1635) 1? O outro, exterior, pode revelar a intimidade do próprio: o senhor gordo que perde o autocarro corre imediatamente atrás da legenda que atribui a “direcção” a “ALFRED HITCHCOCK”. Insignificante personagem? “O modo e o lugar em que aparece são cuidadosamente estudados e a natureza dessa aparição fornece, muitas vezes, uma pista crucial para o sentido do filme no seu conjunto”2. Crucial, por vezes, para a própria definição de uma identidade, pelo menos na sua dimensão pública. Em Topaz (1969), Hitchcock atravessa o campo visual numa cadeira de rodas: “É a imagem do velho acabado e indefeso, que os críticos dão da sua pessoa. E, então, levanta-se alegremente e vai-se embora pelos seus próprios meios…”3. Em Family Plot (1976) é uma silhueta atrás de uma porta de vidro: a silhueta emblemática do Hitchcock ícone “pop”. Claramente auto-referencial. No seu último filme, essa silhueta não pode deixar de ser sombra: a sombra do manipulador de medos, orquestrados pelas sombras que constroem a fotografia animada, para um público na sombra – a sombra do maestro das sombras que escorrega para a última das sombras. O outro revela-nos. E ao contexto em que nos inserimos: Cindy Sherman, ao encenar-se, mais ou menos equivocamente, em poses e situações familiares, de origem cinematográfica ou pictórica nem sempre identificável, revela, através de um outro, os contextos sociais que nos constroem a todos – e que fazem o fazedor de imagens, este (esta, porque o género sexual é, aqui, relevante) fazedor de imagens e pré-formatam estas imagens. Seguindo a

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tradição do instantâneo, Nan Goldin utiliza a(s) sua(s) própria(s) história(s), até uma confessionalidade brutal que se faz perto da morte, marginalidade última. É ela mesma, as suas histórias, os seus amigos e aqueles que com ela partilham uma cultura marginal. Operação mais verdadeira? Logo, mais retratística? Mas não há nenhuma verdade em contarmo-nos como um “David”? Contarmo-nos como um “David” é menos verdadeiro do que contarmo-nos como um “viciado em sexo” ou em drogas? “The photographs that Nan Goldin has been taking of drag and glamour queens on their own territory since the 1970s (…) do not seek to unmask the real person behind the glamour. On the contrary, they confirm that identity is formed only through role-playing, by figures that are at one with their made-up faces”4. As imagens de grande intimidade do casal Koons (Made in Heaven, 1990-91), materializadas em fotografia, pintura e objectos “kitsch”, falam-nos mais de Jeff, de Ilona e da relação que encenam como filme porno, ou da cultura de massas que definiu aquele tipo de imagens – e de objectos? Toda a tradição retratística se estende, em tensão, entre verdades e mentiras, em frequentes trocas de papéis: visível-invisível, superfície-profundidade, interior-exterior, material-imaterial, duradouro-passageiro, ficção-realidade. Em troca de papéis porque a autenticidade do retrato se desloca entre os termos – e não só de um para o outro, mas, literalmente, no meio deles, em territórios contaminados por ambos, por vários, por todos. Julia Margaret Cameron frequentemente fotografou amigos e familiares, dando-lhes a forma de imagens do passado – veiculadas pela pintura. A pintura legitima a representação fotográfica como artística e profunda. E fá-lo, exactamente, enquanto representação: representação como mediação e como encenação. De ambos os modos, como mediação e como encenação, procura garantir um estatuto artístico à imagem. A encenação fá-lo pela presença evidente de uma criação e de uma tradição de pose e de composição que elevam as personagens à alta cultura. A mediação garante a intervenção de um sujeito criador, por oposição a um mero apropriador. Em Sherman, esta “representação da representação” põe em causa a ligação entre a imagem e o seu referente como uma “conexão estável e definitiva”5. Em Hitchcock, inúmeras vezes as imagens veiculadas pela pintura, as suas histórias e personagens, revelam: a nova Mrs. de Winter, sem nome próprio6, é levada a imitar, sem o saber, um vestido que a defunta Rebecca usara num baile de máscaras anterior, ao aceitar para modelo o retrato de corpo inteiro de Lady Caroline de Winter, que habitava as imponentes escadarias de Manderley (Rebecca, 1940). Segundo modelo pictórico, retratístico, torna-se Rebecca, como Madeleine (uma falsa Madeleine, na realidade Judy Barton) fingirá tornar-se Carlotta, não só segundo modelo pictórico, mas segundo identificação pictórica, já que é o quadro que alerta (não pelo rosto, mas pelo penteado do cabelo – e pelos adereços) Scottie e os espectadores para essa adopção de identidade – de um outro (Vertigo, 1958). Rebecca e Carlotta são trazidas, pelo retrato, do lado da morte. Marion é conduzida à morte pelas pulsões inconscientes de Norman, reveladas, ao espectador, pelos quadros de mulheres nuas, violadas pelo olhar, o toque e o desejo de homens (Psycho, 1960). Em The Trouble

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4. Beate Söntgen, “Inner Visions”, Tateetc., nº 10, Summer 2007, http://www.tate.org.uk/tateetc/issue10/ 5. Fulya Ertem, “The Pose in Eearly Portrait Photography: Questioning Attempts to Appropriate the Past”, Image [&] Narrative, July 2006, http://www.imageandnarrative.be/painting/ fulya.htm 6. “Anónima segunda mulher de Max”, na formulação de J. Bénard da Costa em “Da Vida e Obra de Alfred Hitchcock” in AA.VV., In Alfred Hitchcock’s, s.l, Cinemateca Portuguesa-FCG, s.d., pág. 56.


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7. R. Barthes, A Câmara Clara, Lisboa, edições 70, s.d, pág. 135. 8. Em The Wrong Man (1957), Hitchcock surge no início do filme para apresentar a história como tendo uma origem verídica. 9. José Gil, “O Retrato” in José Gil, Sem Título, s.l., Relógio d’Água, s.d., pág. 23. 10. José Gil, op. cit., pág. 26. 11. G. Deleuze, F. Guattari, Mille Plateaux, Paris, Les Éditions de Minuit, s.d. 12. G. Deleuze, F. Guattari, op. cit., pág. 216.

With Harry (Hitchcock, 1956), só o desenho mostra a face do morto em posição “normal”: como se só o desenho-pintura pudesse dar conta do retrato, da verdade – e da morte. As fotografias de Julia Cameron fazem o que toda a fotografia, todo o retrato, faz: resgatam ao tempo. E fazem-no sublinhando esse resgate ao suspenderem o tempo através da própria presença da representação: fora do tempo no tempo das lendas, ao fazer representar (por exemplo) Lancelote e Elaine (1874) – e sempre no presente, porque essas histórias e essas personagens são actualizadas por cada representação. Resgate equívoco, às escondidas com a morte, resgatando ao tempo, entregando à morte, na formulação de Barthes: “há sempre nela [na ‘fotografia histórica’] um esmagamento do tempo; isto está morto e isto vai morrer”7. As participações de Hitchcock nos seus filmes são (quase8) sempre mudas. Mudez que José Gil aproxima da morte9 e da infância10, num texto, precisamente, sobre o retrato. Os “cameo” de Hitchcock são (auto-)retratos mais do corpo do que do rosto, frequentemente a corpo inteiro. É a silhueta (em busto) de homem gordo, de perfil, que caminha até se encaixar no desenho que a caricatura e precede no genérico da série televisiva Alfred Hitchcock Presents (1955-62). Sombra bidimensional, corpo desmaterializado, ocupando um lugar pré-definido pelo desenho – mas, também, sombra que revela a presença de um corpo que convive com o desenho (o ícone “pop”), em ambígua legitimação, e, depois, o substitui. Não é tanto o rosto que constrói a imagem pública de Hitchcock, aquela que o identifica perante as audiências, como o seu corpo. Mas um corpo que, utilizando ferramentas de Deleuze e Guattari11, podemos pensar como dando a ver a sua codificação pelo rosto: corpo bidimensionalizado, escura sombra contra a superfície clara. Em Orlan, sob a face pulsa um corpo, pulsa precisamente através da matéria carnal – e esse rosto feito de carne é também feito na carne, na medida em que à carne, àquela carne particular que constitui aquele indivíduo, se impõe um modelo exterior, um outro, uma vez mais social. “Le visage n’est pas un universel. Ce n’est même pas celui de l’homme blanc, c’est l’Homme blanc lui-même, avec ses larges joues blanches et le trou noir des yeux. Le visage, c’est le Christ. Le visage, c’est l’Européen type”12. Orlan representará, performativa e fotograficamente (e um no outro “medium”), personagens de Ingres ou de Manet, mas, em 1990, conterá, na sua própria carne, o queixo da nascente Vénus de Botticelli ou a testa da Mona Lisa de Leonardo. Carne sem personagens, corpo sem cabeça, cabeça sem face, na obra pictórica e fotográfica de Jenny Saville, onde a (eventual) dimensão (auto-)retratística se aproxima da irrelevância, numa interrogação do corpo enquanto carne, sexualidade, estrutura mutante, ser histórico. O eu (Self, 1991) de Marc Quinn enforma, por congelamento, o seu sangue (4,5 litros) na semelhança do seu rosto-cabeça. Impressão directa do(s) corpo(s) no suporte, nas Anthropométries que Yves Klein realiza a partir de 1960. Uma curta-metragem de Ângelo de Sousa (A Mão, 1972) mostra uma mão em muito grande plano, entre a luz e a sombra, o focado e o desfocado, o reconhecimento e o desconhecimento; toda corpo: eriçada de pêlos, enrugada, tridimensional, táctil – enrugada, tridimensional, táctil, a pálpebra de Buster Keaton, prolongando-se na tactilidade material da parede, no Film (1965) de Beckett: olho-corpo de um homem que, obsessivamente, esconde o seu rosto – num filme mudo.

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A identidade procura-a o retrato entre o individual e o colectivo, o privado e o público, o interior e o exterior, o eu e o outro, o singular e o plural, o construído e o apropriado, o rosto e o corpo. A identificação do Bilhete de Identidade faz-se, visualmente, pela fotografia do rosto e pela marca do dedo indicador direito: rosto e corpo, corpo bidimensionalizado, rostificado. Kiki de Montparnasse retratada, por Man Ray, de costas e como um objecto – um violino, “de Ingres” (1924). Ocultada e revelada pela História da Arte, pelo violino e pelo trocadilho: mas toda corpo – com o rosto a caminho da invisibilidade (entre a ocultação e a revelação). O rosto todo corpo de Le Viol (1934), de Magritte, transpondo para o visível o que as roupas habitualmente escondem, tornando desconhecido o rosto que habitualmente identifica. Roupas que revelam e constroem, ou ficcionam, identidades – que fazem, ou fazem que fazem, o monge. Mrs. de Winter e as roupas que Rebecca copiara de um retrato (Rebecca, 1940), Norman vestido de Mãe para assassinar Marion (Psycho, 1960) – Kaplan existindo apenas pelos seus adereços e pelo nome que faltava a Mrs. de Winter. Roupas que recusam a Roger O. Thornhill a identidade de Kaplan (como lha recusa o apelido judeu): são pequenas demais (North by Northwest, 1959). O chapéu de Joseph Beuys é-lhe tão próprio como o de Buster Keaton ou o coco e a bengala de Charlot. Os rendeiros de Let Us Now Praise Famous Men (1936-41), fotografados por Walker Evans, estão tão retratados nas suas casas e objectos (e roupas) como nos seus rostos e corpos em pose. Os rostos enormes, sobre tela mas de origem fotográfica, de Chuck Close, são pessoas ou objectos? Os objectos das naturezas-mortas de Manet interpelam e seduzem o espectador: seduzem-no, como os objectos expostos nas montras da nova Paris oitocentista, a Paris das “passages”, seduziam os transeuntes 13. Objectos do capitalismo consumista em formação. O corpo humano torna-se objecto consumível na pintura de Tom Wesselmann: corpos sobre a mesa de café, seios e laranjas - tudo brilhante e colorido, só superfície, como no “packaging” e na publicidade. Um brioche de Manet (1870), sobre panejamento branco, expõe-se tão feminino, sedutor e interrogador como o retrato de Victorine Meurent representando uma prostituta (“Olympia”, como a rapariga-autómato do conto de Hoffmann14) para revelar a verdade social escondida sob as olímpicas Vénus nuas do Renascimento (1863). Picasso escondeu, numa natureza-morta de 1925-26, um retrato de Marie-Thérèse, nua e reclinada15. Mortas ou vivas, estas naturezas? “Tão viva que se esforçam por a conceber (…), a foto é (…) a figuração do rosto imóvel e pintado sob o qual vemos os mortos”16. Carlota, como Rebecca, é um fantasma. Presença sem outra figura senão o seu retrato. Sem outra matéria senão os seus adereços. As roupas da mãe de Norman – e o seu corpo ausente marcado na sua cama. Fantasmas. O invisível da fotografia também os procurou: correu atrás das “almas” dos mortos como correu atrás da “psicologia” dos vivos. Os mortos povoam as fotografias com os seus corpos: os seus corpos ainda vivos, convocados em fotografia (tornada natureza-morta) para o interior de outras fotografias de vivos (hoje mortos) – e os seus corpos já mortos, encenando a vida ou aceitando a morte. Mas os mortos povoam as fotografias até sem os seus corpos: plasmas, hesitando entre o visível e um invisível que se podia

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13. Cf. W. Benjamin, The Arcades Project, Cambridge (MA)-Londres, Belknap-Harvard University Press, 1999 e T. J. Clark, The Painting of Modern Life: Paris in the Art of Manet and His Followers, New York, Knopf, 1985. 14. E.T.A. Hoffmann, “Der Sandmann”, publicado, em 1816, no primeiro volume de Nachtstücke. 15. Pierre Daix, “On a Hidden Portrait of MarieThérèse”, Art in America, nº 8, September 1983, pp. 124-129. 16. R. Barthes, op.cit., pág. 53.


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17. José Gil, op. cit., pág. 22 18. Johann Caspar Lavater cit. por R. Brilliant, “The Metonymous Face”, Social Research Journal, vol. 67, nº 1, Spring 2000. “Online” em http://findarticles.com/p/articles/mi_m2267/ is_1_67/ai_62402549/print 19. Cf. a nota anterior. 20. Helmut Gernsheim, Julia Margaret Cameron: Her Life and Photographic Work, Londres, Gordon Fraser, 1975, pág. 159 21. J. H. Pais da Silva, Margarida Calado, Dicionário de Termos de Arte e Arquitectura, s.l., Presença, s.d., pág. 320. 22. Man Ray citado em L’Art Surréaliste, um dos “Dossiers Pédagogiques” do Centre Pompidou, http://www.centrepompidou.fr/education/ ressources/ENS-surrealisme/ENS-surrealisme. htm#image03

acreditar acessível à fotografia. Em Skull & Milky Way (1966), a radiografia do seu próprio crânio não revela a Lucas Samaras nada mais senão o seu próprio corpo, mantendo o maravilhoso pela conjugação com um pontilhado luminoso que a legenda interpreta como a “via láctea” – e inserindo-se na tradição da “vanitas” pela imagem (e palavra) do crânio. Se, no seu corpo, Norman Bates luta com a Mãe morta que o habita, numa das suas Photo-Transformation(s), dos anos de 1970, Samaras luta com ele mesmo numa Polaroid manipulada (“September 9, 1976”): um eu múltiplo, em tensão. O retrato procura um interior invisível, múltiplo, complexo, fugidio – que se “esquiva” 17 no rosto. “Each perfect portrait is an important painting, since it displays the human mind with the peculiarities of personal character. In such we contemplate a being in which understanding, inclinations, sensations, passions, good and bad qualities of mind and heart, are mingled in a manner peculiar to itself. Here we see them better, frequently than in nature herself; since in nature nothing is fixed, all is swift, all transient”18. O transitório, o complexo, o peculiar, o invisível, podem conduzir o retrato para lá da imagem mimética. Uma espiral figura James Joyce (1929) e volumes curvos retratam Nancy Cunard (1925-27), nas interpretações geométricas de Brancusi. El Lissitzky interpreta-se a ele mesmo como “construtor” (1924), já não como artista burguês, fotograficamente sobrepondo ao seu olho direito a palma da mão direita que contém o olho no centro e segura um compasso aberto. Atracção da imagem para fora das aparências para melhor retratar. Interior invisível, complexo, múltiplo. Multiplicidade com correspondência exterior. Se Orlan inscreve modelos históricos vários na sua face corporalizada, Francis Galton procurou identificar o colectivo no indivíduo, construindo indivíduos múltiplos, plausíveis monstros de Frankenstein fotográficos, acreditando revelar, na assemblage de retalhos particulares, aspectos universais de crimes, de patologias ou de grupos sociais – em Galton, a “mistura peculiar” do fisionomista Lavater19, já não revela o individual fugidio, como na tradição do retrato, mas identifica permanências colectivas. “Julia Margaret Cameron, Lancelot and Elaine, William Warder and May Prinsep, 1874”20: o título, em itálico, informa sobre o tema da imagem fotográfica e os nomes masculino e feminino identificam os “actores” – os retratados. Se os “cameo” de Hitchcock são retratos isso não decorre, apenas, das estratégias do realizador: é que o fotográfico é fatalmente retratístico. “Retrato – Imagem de uma personagem viva (…), em que o artista procura reproduzir as feições, atitude e expressão do modelo”21. De outra maneira e em redução ao mínimo: representa-se alguém concreto com fidelidade ao visível. Fatalidade fotográfica: “un photographe n’enregistrait que la réalité”, na objecção de Kiki que obstaculizava a pose para Man Ray22. A fotografia, como o “perfeito retrato” de Lavater, fixa o fugaz – mas não, necessariamente (como bem o sabe a fotogenia), no momento certo. O “registo da realidade” terá podido parecer, por vezes, a alguma fotografia modernista, um património desfavorável – mas, esteve, certamente, entre os desejos originários do retrato: “Butades, a potter of Sicyon, was the first who invented, at Corinth, the art of modelling portraits in the earth which he used in his trade. It was through his daughter that he made the

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discovery; who, being deeply in love with a young man about to depart on a long journey, traced the profile of his face, as thrown upon the wall by the light of the lamp. Upon seeing this, her father filled in the outline, by compressing clay upon the surface, and so made a face in relief, which he then hardened by fire along with other articles of pottery”23. A história está na origem do retrato, mas também da pintura, e assim foi entendida pela cultura humanista. Em grande voga a partir dos anos de 176024, foi representada por Jean-Baptiste Regnault no “grand cabinet” da rainha, em Versailles (1785). Ainda antes de nos narrar a invenção de Butades, asseverava Plínio: “We have no certain knowledge as to the commencement of the art of painting (…); but they all agree that it originated in tracing lines round the human shadow”25. Que tipo de imagem consegue a filha de Butades, originando, simultaneamente, a pintura (como desenho) e o retrato? Em primeiro lugar, uma representação directa, isenta de interpretação subjectiva. Através dela agarra a imagem do amado: o que significa apropriar e parar. Parar a fuga, constante, dessa presença que lhe fará falta durante a longa ausência, mas que fora, sempre, fugidia – deslocando-se no espaço tridimensional do quotidiano e no espaço emocional. Ultrapassa as ausências, as mudanças, a esquiva: o transitório, o fugaz. Finta o tempo e pára a relocalização constante da presença, relocalização geradora de ausências. Imobiliza a presença e, como o oleiro logo compreendeu (e disso é ele o inventor), permite multiplicá-la. Finalmente, a operação da jovem enamorada legitima, pela sombra que a luz, na sua ausência, projecta na parede, a autenticidade da imagem, porque fiel a essa presença fugidia daquele que ela ama – e, podemos supor, daquilo que a rapariga no amante amava. A técnica que utiliza não necessita de aprendizagem: era seu pai, e não ela, o artesão experimentado e sapiente – e a técnica acabara de ser inventada. Consiste numa individuação profunda: fixa o indivíduo concreto, “a personagem viva” de Pais da Silva26, e fá-lo circunscrevendo pela linha – delimitando, separando, individualizando. A representação torna-se presença, a imagem não é meramente um substituto, mas, legitimada pela linha que capturou a sombra, uma emanação27, imobilizada, do ausente. Agarrar o outro pela sua marca luminosa, com uma intervenção mínima do sujeito que “captura” e segundo uma técnica tão simples que parece automática – e que possibilita a reprodução. Falamos de fotografia? “Desejo possuir a recordação de todos os seres do mundo que me são queridos. Não é só a semelhança que é preciosa em tais casos, mas a associação e a sensação de proximidade (…), o facto de a própria sombra da pessoa estar ali fixada para sempre!”28. Physaute ou autophuse, hesitava Niépce, no baptismo da nova técnica de produção de imagens: a natureza, ela mesma, ou uma cópia29 ? Acabaria por decidir por “fotografia” – desenho-escrita com luz. A mediação está, neste sistema cultural (nesta ficção constitutiva do fotográfico na nossa cultura), reduzida ao mínimo: “Fotografar é apropriarmo-nos da coisa fotografada. (…) Embora, num certo sentido, a câmara, não só interprete, mas capte de facto a realidade, as fotografias são tanto uma interpretação do mundo como as pinturas e os desenhos”30.

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23. Plínio, o Velho, História Natural, L. XXXV, cap. 43, na tradução de J. Bostock, H. T. Riley, The Natural History of Pliny, Londres, Henry G. Bohn, 1857, vol. VI, pág. 283. “Online” em http://books.google.com/books?id=IEoMAAAA IAAJ&printsec=frontcover 24. Web Gallery of Art, http://www.wga.hu/frames-e.html?/html/r/regnault/1dibutad.html 25. Plínio, o Velho, op. cit., L. XXXV, cap. 5, pág. 228. 26. J. H. Pais da Silva, Margarida Calado, op. cit., pág. 320. 27. “A foto é literalmente uma emanação do referente” (R. Barthes, op. cit., pág. 114). 28. Elizabeth Barrett em carta, de 1843, a Mary Russell Milford, citada em Susan Sontag, Ensaios Sobre Fotografia, Lisboa, Dom Quixote, 1986, pág. 159. 29. Geoffrey Batchen, Burning With Desire - The Conception of Photography, Cambridge (MA)Londres, The MIT Press, 1999, pág. 177. 30. Susan Sontag, Ensaios Sobre Fotografia, Lisboa, Dom Quixote, 1986, pág. 14. e pág. 16.


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31. Ovídio, Metamorfoses, Livro X.243. “Online” em http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/ptext ?doc=Perseus%3Atext%3A1999.02.0028;query= card%3D%2399;layout=;loc=10.220 32. Man Ray citado em L’Art Surréaliste, http:// www.centrepompidou.fr/education/ressources/ ENS-surrealisme/ENS-surrealisme.htm#image03 33. “As fotografias parecem provas. Qualquer coisa de que se ouve falar mas de que se duvida, parece ficar provado graças a uma fotografia” (S. Sontag, op. cit., p. 15). 34. Louise Norton, “Buddha of the Bathroom”, The Blind Man, nº2, Nova Iorque, Maio de 1917, pp. 5-6. “Online” em http://sdrc.lib.uiowa.edu/ dada/blindman/2/index.htm

Também aqui, nesta tensão entre “captura” e “interpretação”, o paralelo é antigo – e interior à tradição pictórica: se Regnault oferecia a história de Butades como origem da Pintura, era numa das metamorfoses narradas por Ovídio que encontrava a da Escultura, que representaria no quarto de dormir da rainha em Versailles (1785). Pigmaleão, ao ver as Propétides obrigadas a prostituírem-se pelo insaciável apetite sexual com que foram castigadas por terem negado a divindade de Vénus, revoltouse contra os muitos defeitos impostos pela natureza às mulheres e decidiu viver uma vida celibatária. Acabará por esculpir a estátua de uma jovem belíssima, em marfim, pela qual se apaixona e que, por graça de Vénus, irá ganhar vida31. Galateia, como lhe chamarão autores posteriores, é a criação de Pigmaleão, filha do seu talento de escultor e da qualidade do material esculpido, criada, pela vontade do seu criador, para corrigir (e substituir) a natureza. Onde a filha de Butades agarra uma presença, Pigmaleão cria, a partir do nada, o até aí ausente. A tradição cristã deu continuidade à tensão entre “captura” e “interpretação” em dois modelos de retrato sagrado: se Cristo nos deixa a imagem do seu rosto (e do seu corpo, no Santo Sudário – e o seu próprio corpo, na hóstia, segundo o dogma católico) por impressão directa no pano que lhe estende Verónica, a Virgem, sua Mãe, lega-nos a imagem do seu busto por intermédio pictórico de S. Lucas. O ícone sagrado torna-se retrato: só possível na religião centrada não na palavra de profetas, mediadores da verdade divina, mas num Deus incarnado – feito Homem, feito carne. Todas as imagens de Cristo descendem dessa imagem impressa directamente na tela, imagem que só podia ser verdadeira: “verum Eikôn”. A fotografia é a verónica da natureza, impressa, pela luz, no suporte – “physaute”. À objecção de Kiki, respondia Man Ray: “Pas moi… je photographiais comme je peignais, transformant le sujet comme le ferait un peintre. Comme lui, j’idéalisais ou déformais mon sujet”32. O que ganha, a fotografia, em autenticidade33 arrisca-se ela a perder em “Arte”. Para mais, a fotografia separa a imagem do seu suporte, torna-a reprodutível, logo múltipla, logo inserida numa série, logo próxima do objecto industrial, objecto sem valor em si, universalmente intercambiável, descartável. A imagem fotográfica ganha uma dimensão de ausência, ao não pertencer a nenhum lugar-objecto – cabendo, virtualmente, em todos e ao mesmo tempo. Em 1980, Sherrie Levine fotografou seis fotografias de nus do consagrado Edward Weston – retratos do seu filho Neil. Apropriou-se de algo que já estava feito: readymade. A cultura novecentista desmontou e desvalorizou a autoria e deixou de reconhecer o artístico como uma qualidade inerente: se a Fountain (1917), de Marcel Duchamp, puder ser uma obra de arte não é, certamente, por poder ser “bela”, um “Buda” da casa de banho34, não é, certamente, por ter sido fotografada por Alfred Stieglitz sobre um pedestal ou, sequer, por ter sido proposta por um “artista” – é, apenas, por poder ser apresentada como “arte”: porque se lhe pode colar esse rótulo. O artístico passa a ser um rótulo, capaz de, virtualmente, servir a todos os objectos e de servir a todos ao mesmo tempo. Uma proposta – recusável. Através do readymade, tudo pode ser, virtualmente, arte: assim como tudo é, virtualmente, uma fotografia por fazer – por “tirar”. As fotografias de Levine são apropriações perversas: tomam imagens de imagens já famosas, já “artísticas”, e tomam-nas enquanto objectos (já

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que ela fotografa fotografias, não imprime negativos), mas objectos que só lhe interessam enquanto imagem – e se levantam dúvidas quanto ao estatuto “artístico” é, precisamente, porque já o tinham. Levine apropriou-se de apropriações: porque a captura faz parte do imaginário fotográfico – a fotografia já é uma apropriação. Como o readymade, que muda de função, de contexto e de estatuto mantendo traços do estado anterior, a imagem fotográfica é, sempre, reconhecível enquanto tal – mesmo transformada em pintura. A fotografia pulsa, óbvia, sob as Marylin, as Jackie ou as Mona Lisa de Warhol. Os retratos de Chuck Close, apesar do suporte em tela, da imagem a acrílico ou óleo e das grandes dimensões, “monumentais”, não escondem a origem fotográfica. Não conseguiriam escondê-la: parecem, até, retratos de “Photomaton” – retratos automáticos, mecânicos, sem nenhum desejo de “Arte”. O paradigma do retrato contemporâneo é a fotografia. E é a fotografia o garante da autenticidade do retrato. O retrato do B.I é esse retrato sem mediação subjectiva e formalmente neutro: objectivo, igual aos outros, comparável. Se Julia Margaret Cameron legitimava as suas imagens fotográficas pela pintura, Chuck Close confronta as suas pinturas com a imagem fotográfica. Pensar o retrato contemporâneo é pensar a fotografia – ou a partir dela, ou passando por ela. Se é a pintura que traz de volta Rebecca ou Carlotta, é porque Hitchcock desconfia de uma fotografia demasiado próxima do jornalismo, da publicidade, da propaganda – das aparências e da mentira. Em Lifeboat (1944), o seu “cameo” é fotográfico: Hitchcock surge em duas fotografias de um jornal – antes e depois, gordo e magro. A sua identidade “pop” desmente a afirmação “pop”. O “verum Eikôn” de Harry só podia ser feito por um pintor – neste caso, abstracto (The Trouble With Harry, 1956). “O extremo ensinamento da imagem fotográfica é poder dizer: ‘Aqui está a superfície. Agora pensem, ou antes, sintam, intuam o que está por detrás, como deve ser a realidade se esta é a sua aparência’. As fotografias, que por si só nada podem explicar, são inesgotáveis convites à dedução, especulação e fantasia.”35. A fotografia não necessitou do “digital” para oscilar entre a verdade e a mentira – assim como a imagem não precisou da fotografia para entre esses termos escorregar. Colagens, fotomontagens, múltiplas exposições – antes, muito antes dos “píxeis”. Lucas Samaras lutava com ele mesmo numa Polaroid de 1976. No livro de 1972 10 Portraits Photographiques de Christian Boltanski 1946-1964, Boltansky identificase erroneamente: aquelas crianças não são (não foram) ele, não tinha aquela idade na única imagem que o retrata. Como mentem estas fotografias? Através da palavra – das legendas36. Joan Fontcuberta encena-se em personagens múltiplas, em tom documental. Yasumasa Morimura torna-se Mona Lisa, Cindy Sherman ou Sylvia Kristel: imagens de mulheres “brancas” no seu rosto de homem japonês, pela pose, maquilhagem, roupas – e pela manipulação digital, óbvia em imagens como as da Mona Lisa nua e grávida (1998), uma delas segundo modelo anatómico, em corte que exibe um desenvolvido feto. Em Morimura, toda a imagem apropria – e é apropriada por imagens que se lhe impõem e a invadem: como Norman, habitando as roupas da Mãe e por ela habitado. O “digital” reintroduz a mediação de um sujeito, mas numa técnica acessível a todos, sem virtuosismo – o que garantia o estatuto

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35. Susan Sontag, op. cit., pp. 31-32. 36. Katarzyna Ruchel-Stockmans, “Impossible Self-representation”, Image [&] Narrative, July 2006, http://www.imageandnarrative.be/painting/kasia_ruchel.htm


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“artístico” era a ligação a um referente: tratava-se de uma relação não só fiel (e verdadeira) mas hierárquica, numa hierarquia em ascensão do quotidiano contingente para a imagem-símbolo, até ao mistério escondido. O digital manipula, reintroduz a mediação e o sujeito, mas não restaura essa hierarquia. Não recupera o “artístico” e perde a autenticidade. Paradoxalmente, o digital é, no presente, prefigurandose como futuro, o principal meio de captar, preservar, identificar, catalogar e fazer circular as imagens – como “informação”. A fotografia prolonga, ambiguamente, a tradição do retrato e da pintura humanistas, entre a imagem fiel e o anti-humanismo do readymade. A fotografia não só é retratística no mais profundo do seu imaginário, como é o paradigma do retrato no século XX. É um retrato para as massas: reprodutível, acessível a todos (enquanto retratados e retratistas), colectivo (para todos e incapaz de manter fora os contextos em que se insere), legível por todos e identificado com a própria identificação (o B.I.) e com o próprio retrato (“tirar o retrato” refere-se ao retrato fotográfico – como se na fotografia se esgotasse o retrato).

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Recensões Breves pensamentos em torno dos Mirabilia Aqvarvm Maria Teresa Caetano

Alexandra Barradas: Ourém e Porto de Mós. A Obra mecenática de D. Afonso, 4º Conde de Ourém. Joana Ramôa


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breves pensamentos em torno dos mirabilia aqvarvm

1

De todos os cantos do mundo Amo com um amor mais forte e mais profundo Aquela praia extasiada e nua, Onde me uni ao mar, ao vento e à lua. Cheiro a terra as árvores e o vento Que a Primavera enche de perfumes Mas neles só quero e só procuro A selvagem exalação das ondas Subindo para os astros como um grito puro 2. A Arte, independentemente da época em que foi criada é – e será sempre – contemporânea, desde que, mesmo desprovida da razão primeva que conduziu ao acto gerador, o objecto artístico desperte sentimento ou emoção no observador. Por isso, a História da Arte, enquanto disciplina fruto da razão e da análise concreta (ainda que, por vezes, tal objectividade permaneça encoberta pelo diáfano manto do tempo), está permanentemente em (re)construção. Nesta perspectiva, a substância imbuída do fundamento poderá – ou melhor, deverá – ser entendida e registada sob múltiplos pontos de vista. Métodos que não só contribuirão para a preservação do objecto sensorial, mas, sobretudo, porque os distintos raciocínios possíveis de efectuar, como as devidas correlações com outras áreas do saber, dinamizam a História da Arte e potenciam o seu crescimento como ciência operativa. Por conseguinte, ao historiador da arte compete ler a obra artística, interpretá-la e devolver-lhe (na medida do possível) o sentido original, não só do ponto de vista estético e funcional, mas também do seu enquadramento histórico, tal-qualmente afirma a autora de Mirabilia Aquarum, pois encontra, também nos opera musiua, em: «conjunto com a língua latina e outras expressões artísticas (…) um dos principais veículos de propaganda do Império Romano, funcionando como espelho do requinte da sua civilização»3. Talvez por isso, decerto entre outras razões, a História da Arte tem vindo a enveredar na procura de novos caminhos, de forma cada vez menos casuística e mais segura de si própria. Por isso, enveredou também, para além do recurso às novas tecnologias, pela releitura das fontes secundárias, procurando, assim, encontrar uma reaproximação à obra de arte. Terá sido neste contexto que Cátia Mourão, ao ter tido a percepção de

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capa do livro mirabilia aqvarvm – – motivos aquáticos em mosaicos da antiguidade no território português .

1. Mourão, Cátia (2008) – MIRABILIA AQVARVM. Motivos aquáticos em mosaicos da Antiguidade no território Português. Lisboa: EPAL – Empresa Portuguesa das Águas Livres, S.A. 2. Andresen, Sophia de Melo Breyner (1991) – «Mar» in Obra Poética, vol. I. Lisboa: Editorial Caminho, 18. 3. Mourão 2008, 23.


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4. Mourão 2008, 8-9. Vide ainda as notas 1, 2 e 3. 5. Maciel, Justino (1996) – Antiguidade Tardia e Paleocristianismo em Portugal. Lisboa: Edições Colibri, 82. 6. Vide, por exemplo, Blázquez, José Maria (2002) – «Cultos e devoções de cariz aquático no Ocidente em contextos paleohispânicos», in Religiões da Lusitânia: Loquuntur Saxa (catálogo). Lisboa: Museu Nacional de Arqueologia, 21-24; Fernandes, Luís da Silva (2002) – «As Virtutes. Seu culto e representação no âmbito da Província da Lusitânia», in Religiões da Lusitânia: Loquuntur Saxa (catálogo). Lisboa: Museu Nacional de Arqueologia, 165-174. 7. Vide os exemplos de Maciel, M. Justino (1993-94) – «A propósito das chamadas “Conservas de Água da Rua da Prata”», in Conimbriga, vol. XXXII-XXXIII. Coimbra: Universidade de Coimbra, 145-156; Idem (1994), «Lisboa romana», in Olisipo (Número especial Comunicações ao Simpósio Lisboa em Discussão), II série, n.º 1. Lisboa: Boletim do Grupo “Amigos de Lisboa”, 33-42; Ribeiro, José, (1982-83) – «Estudos histórico-epigráficos em torno da figura de L. Iulius Maelo Caudicus» in Sintria, I-II (1). Sintra: Gabinete de Estudos de Arqueologia, Arte e Etnografia, 151-476; Étienne, Robert (1974) – Le Culte Imperial dans la Péninsule Ibérique d’Auguste a Dioclétien. Paris: Editions E. de Boccard; Idem (2002) – «Novidades sobre o Culto Imperial na Lusitânia», in Religiões da Lusitânia: Loquuntur Saxa (catálogo). Lisboa: Museu Nacional de Arqueologia, 97-104. 8. Mourão 2008, 21.

quão importantes são as novas didácticas, as adianta como basilares no entendimento do objecto artístico, como, aliás bem expressa no prefácio da obra em apreço: «A sensibilidade e consciência de historiadores de arte como Adriano de Gusmão, Luís Moura Sobral e, especialmente Vítor Serrão, contemplaram pontualmente, no caso dos dois primeiros, ou deram particular atenção, no caso do último, à problemática em causa, lançando novas pistas para a construção de uma Cripto-História da Arte que se pode revelar de grande utilidade numa tentativa de preenchimento de lacunas provocadas pela ausência de peças, das quais dificilmente poderemos vir a saber qual a importância que teriam assumido na altura da sua produção ou da chave que poderiam fornecer para o entendimento cultural da época. Porém, casos como o do fragmento de mosaico de Quintos alertam-nos para a necessária prudência ao lidar com fontes de carácter secundário (registos como o desenho deixado por Leite de Vasconcelos), que por vezes transmitem informações imprecisas ou mesmo incorrectas sobre as obras a que se referem»4. Ao contemplar-se nesta perspectiva global, à qual se deverá aduzir o facto de a autora de Mirabilia Aquarum não ter olvidado no seu catálogo a obra de arte fragmentária (desde que a sua inclusão traga uma mais-valia que o justifique), designadamente na perspectiva da Micro-História da Arte – de molde a atingir-se o nível de síntese desejado –, contribui para o aprofundamento do universo estético que caracterizou a ars antiga e que evolucionou e se renovou ao sabor das circunstâncias conjunturais e/ou estruturais. Nesta perspectiva, Cátia Mourão, discorre acerca da importância da água no quotidiano do Mundo Antigo, desde a gorgolejante fonte que sacia a sede, passando pelas águas que alimentam os balnea e sustentam a poderosa indústria do garum, até às nascentes de águas lustrais, pois, como Justino Maciel bem referiu, «os mirabilia aquarum eram um tema caro aos romanos, sobretudo no contexto da cidade e, nessa medida, seria impensável imaginar-se, sequer, a planificação de uma cidade, onde a água não jorrasse abundantemente»5. Foi pena que, no capítulo dedicado à água como pilar civilizacional do Império Romano, a autora tivesse optado por se espraiar somente por concepções de génese filosófica, sem intentar uma aproximação factológica às especificidades históricas do território que se propôs estudar. E que, por isso, tivesse olvidado, não só as devoções aquáticas paleohispânicas no ocidente peninsular6, mas também a relação primordial que terá existido entre a água e o culto imperial7, valorizando através da análise desses fenómenos o seu estudo. Todavia, parece ter plena consciência destes limites, decerto auto-impostos, porquanto, no final deste capítulo, deixa claramente, em aberto, a possibilidade de se explorarem outros trilhos: «O imaginário romano sobre a água, comprometido entre a mitologia e a pré-ciência, corporalizou-se, foi divulgado e galvanizado por todo o Império através da poesia, da literatura épica, da numismática, da cerâmica gravada ou pintada, da arquitectura, da escultura, da pintura e do mosaico»8. Adepta de uma História da Arte “musculada”, Cátia Mourão embrenhou-se profunda e meticulosamente na análise dos vinte e um mosaicos de temática marítima e/ou

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fluvial que constituem o catálogo «Motivos aquáticos em mosaicos da Antiguidade no território português». Elenco que a autora divide em Mosaicos Romanos do Alto Império e Mosaicos Romanos do Baixo-Império, abrangendo, por isso, parte das antigas províncias romanas da Lusitania e da Gallecia. Apresenta, não só pormenorizado estudo acerca dos pavimentos e/ou revestimentos parietais, estes sobretudo em tanques ou piscinas, contemplando vários itens, os quais, para além da descrição minuciosa sob o ponto de vista da iconografia (atendendo, com minúcia, ao desenho subjacente e à paleta cromática), procuram ser exaustivas na interpretatio dos motivos figurados, mesmo daqueles que se apresentam incompletos ou de morfologia duvidosa. Para além do já referido detalhe descritivo, a autora completa o seu catálogo com uma vasta série de outras cláusulas que complementam de modo eficaz o presente estudo. Estas afiguram-se, aliás, fundamentais para quem se interessa por estas “coisas da Antiguidade”, como sejam, a Datação, Localização, Dimensões, Materiais, Cromatismo, Esquema compositivo, Descrição e Análise do conjunto, Referentes, Estado de conservação e Bibliografia. Como a própria autora refere algures, este não é, de modo algum, um trabalho acabado, mas, tão-somente o início de uma ordenação metódica de tal matéria. Aqui aportados, relembramos, uma vez mais, que o edifício teórico da História da Arte está em permanente renovação – e, por isso, decerto, enfermará de algumas lacunas por se tratar de um trabalho pioneiro. Estas falhas apenas poderão ser colmatadas com a continuação do estudo e aprofundamento desta matéria. Mas, por outro lado, ser-lhe-á inegável o carácter pioneiro e, nesse sentido, por mais que se renovem as leituras e se acrescentem outros elementos, há, porém, uma certeza: o carácter primevo deste corpus, pelo qual será sempre uma referência incontornável, no âmbito da História da Arte da Antiguidade e da Antiguidade Tardia. Por tudo isso, Mirabilia Aquarum é, sem dúvida, um livro fascinante, pois revela-nos muito acerca do conhecimento que na Antiguidade existia acerca da morfologia dos habitantes e dos pseudo-habitantes das águas – e aqui chegados não podemos omitir, decerto entre outros estudos, a História dos Animais, de Aristóteles9, ou o De Re Coquinaria, de Apício ou, ainda, os desenhos de animais marinhos que se conservam no papiro de Artemidoro10 –, seja em rios, seja no mare nostrum ou, para além das colunas de Hércules, num oceano imenso que corria ao longo da fachada ocidental do Império, a finisterra do Mundo Antigo. Para finalizar, não podemos olvidar dois aspectos: primeiro, a apresentação gráfica irrepreensível do livro, contemporânea e arejada, texto profusa e qualitativamente ilustrado; segundo, o exemplo do mecenato da EPAL – Empresa Portuguesa das Águas Livres, S.A., pelo interesse e empenho que demonstrou na publicação de uma obra de inequívoco cariz científico, demonstrando, assim, uma notável apetência para a divulgação cultural.

Maria Teresa Caetano Doutoranda em História da Arte da Antiguidade

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9. Infelizmente, neste trabalho, ressalta a ausência do laborioso trabalho aristotélico, na sua monumental obra: a História dos Animais [(2006) tradução de Maria de Fátima Sousa e Silva, 2 vols. Edição CFUL/IN-CM: Lisboa], em cuja «Introdução», nota 3, se refere a razão pelo qual este tratado de zoologia ficou conhecido: «Importa, a este propósito, salientar que o título original – Ton peri ta zoa historion – melhor equivaleria a uma tradução de Investigação sobre os Animais do que àquele que o consagrou de História dos Animais, que disfarça a referência fundamental a um processo de pesquisa que lhe está subjacente» (Carlos Almaça). Obra que – acreditamos – apesar do seu cariz pré-científico, decerto poderia esclarecer alguns aspectos menos claros que, por vezes, pontuam no presente corpus. 10. Em relação a este papiro – recentemente dado à estampa – parece-nos oportuna que se efectue uma leitura do mesmo, na qual perpasse uma atenta observação dos animais marinhos ali desenhados [Almoguera Sánchez, José Manuel (2008) – «Documentación Catastral en Roma», in Arte Arqueología e Historia. Cordoba: Asociación “Arte, Arqueologia e Historia”,”n.º 15, 207-220)], mais não seja, como um complemento visual ao corpus que analisámos, ainda que sumariamente.


recensões · alexandra barradas - ourém e porto de mós

alexandra barradas: Ourém e Porto de Mós A obra mecenática de D. Afonso, 4º conde de Ourém – Lisboa: Edições Colibri, 2006

capa do livro “ourém e porto de mós – – a obra mecenática de d. afonso, 4º conde de ourém”.

1. Alexandra Barradas, Ourém e Porto de Mós. A obra mecenática de D. Afonso, 4º Conde de Ourém – Lisboa: Edições Colibri, 2006, p. 313.

“A acção mecenática do 4º Conde de Ourém e Marquês de Valença é no século XV a excepção à regra – enquanto a nobreza portuguesa continuava a construir as suas torres ou modestos paços sobradados, D. Afonso nos seus domínios ergueu dois edifícios de feição e sentido gótico erudito que se afirmavam na paisagem e se impunham no local, repletos de novos elementos, curiosas novidades que o seu cosmopolitismo e cultura permitiu apreciar e a sua fortuna adquirir. A grandiosidade e simbolismo que assumiram poderão ser entendidos à luz da caracterização que António José Saraiva faz do Condestável e que pensamos não andará muito longe da personalidade do neto, D. Afonso: ‘Nunca lhe passou pela cabeça ser rei, mas não queria ser dependente nem do rei. (…) Graças a circunstâncias excepcionais, Nun’Álvares conquistou uma posição que qualquer homem dotado de espírito senhorial invejaria: não era rei, mas o rei devia-lhe a coroa; não herdara grandes bens, mas o que tinha por doação eram-lhe devidos, porque ele era o principal conquistador da terra do Reino. Só Deus mandava nele, só perante Deus respondia’”1. É com estas palavras, seguidas de poucas mais, que Alexandra Barradas encerra as reflexões que dedica a uma figura marcante do panorama político e artístico (conforme procura justificar a cada passo, em cada capítulo) do Portugal de Quatrocentos, e que expõe na recente obra Ourém e Porto de Mós. A obra mecenática de D. Afonso, 4º Conde de Ourém, resultante da Dissertação de Mestrado, discutida em 2005 na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e orientada pelo Professor Doutor José Custódio Vieira da Silva – trabalho cuja seriedade e aprofundamento dá cumprimento de forma notável a um interesse pela arte e, em particular, pela arquitectura, sempre presente e crescente no percurso da arquitecta e professora. Publicado em Dezembro de 2006, pelas Edições Colibri, este é o segundo volume da colecção ESTUDOS, promovida pelo Instituto de História da Arte da referida faculdade, a quem se deve a publicação desta mesma revista. D. Afonso (1403?-1460) foi o filho varão do também D. Afonso, Conde de Barcelos e 1º Duque de Bragança (1370?-1460), e de D. Brites Pereira (1378?-1408/9 ou 1414?). Tratando-se o Duque do filho mais velho do rei D. João I, ainda que ilegítimo porque nascido anteriormente ao casamento do monarca com D. Filipa de Lencastre,

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recensões · alexandra barradas - ourém e porto de mós

de uma relação do ainda jovem D. João com Inês Pires (filha, por usa vez, de Pêro Esteves da Fonte Boa e de Maria Anes), D. Afonso era, pelo lado paterno, neto do próprio fundador da dinastia de Avis e, pelo materno, de D. Nuno Álvares Pereira, cuja importância e singular posição social no Portugal do início do século XV foram brilhantemente resumidas nas palavras de António José Saraiva com que, parafraseando a autora, abrimos o discurso. As suas competências diplomáticas, aliadas à ligação particular que a ascendência lhe dava à casa real – pelo sangue paterno e pela responsabilidade do avô materno na sua própria fundação –, valeram, assim, a D. Afonso, para além de bens e uma influência apenas equiparáveis aos membros da Casa de Avis, os títulos de 4º Conde de Ourém e, posteriormente, de 1º Marquês de Valença. O cargo de Condestável do Reino, por um lado, e o Ducado de Bragança, por outro, nunca os logrou assumir: o primeiro por decisão do infante D. Pedro que, ao tempo da sua regência, o fez pertença do seu filho mais velho; o segundo por ter falecido posteriormente a D. Afonso, seu pai, que gozou da excepcionalidade de uma vida de 90 anos. De qualquer modo, cerca dos 20 anos de idade, D. Afonso vê, por iniciativa do avô materno, D. Nuno Álvares Pereira, que decide repartir os seus bens pelos netos antes de se retirar para o Convento do Carmo, ser-lhe colocado à disposição um património considerável (que viria continuamente a engrandecer) e um prestigiante título, que lhe permitiu fundar casa própria e tornar-se independente. Este e os demais privilégios fizeram de D. Afonso, 4º Conde de Ourém, uma personalidade de excepção e, segundo Alexandra Barradas, um verdadeiro infante entre os infantes (como, em última instância, o parece denunciar a novidade que constituía, à época, a construção de uma cripta destinada a receber o seu túmulo, como a que mandou edificar na colegiada de Ourém): apesar de hierárquica e oficialmente não o ser, D. Afonso era afinal o neto mais velho do rei e descendente directo daquele a quem o monarca devia a governação, para além de avultar como “referência erudita, sendo-o em cultura, cosmopolitismo e acção mecenática, num patamar que julgamos só equiparável ao do Infante D. Pedro, com quem curiosamente D. Afonso, a partir de determinada altura, se incompatibilizou”2. É fundamentalmente esta ideia que Alexandra Barradas parece perseguir, com empenho, na análise exaustiva que faz da ascendência e da acção política e diplomática de D. Afonso (que servem de base à compreensão da sua actividade mecenática), com vista à justa consideração desta personagem, longe das exageradas depreciações de que foi alvo tendencial, mas próxima de uma fascinação vibrante a que o seguimento próximo, que a autora levou a cabo, das viagens do Conde (acompanhada de uma procura exaustiva de modelos para as obras do seu mecenato) e o envolvimento tornado assim pessoal nas deambulações e iniciativas de D. Afonso não terão sido alheios. Da leitura da presente obra ressalta, assim, a visão de um quase príncipe que nunca o quis ser (como dizia António José Saraiva relativamente ao Condestável) nem se limitou à preponderância que lhe davam naturalmente o sangue, os bens e os títulos de que cedo se tornou possuidor, mas que, em parte por circunstâncias que lhe são alheias3, em parte por iniciativa própria, acresceu a essa superioridade uma erudição acima do comum, valendo-lhe as viagens uma cultura visual inusitada que

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2. Idem, p. 308. 3. As missões diplomáticas levaram D. Afonso, entre outros lugares, à Flandres e a vários estados da península itálica, que no século XV se afirmavam como as regiões mais importantes do mundo. Aí terá contactado com alguns dos modelos que, num ou outro aspecto, o inspiraram na orientação da construção dos paços.


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4. Alexandra Barradas segue na linha de Rafael Moreira que considera D. Afonso, 4º Conde de Ourém e 1º Marquês de Valença, como o introdutor das primeiras formas “à romana” em Portugal, nomeadamente por via da contratação de um artífice italiano (scalpellino ou marmoraro) que as terá aplicado no paço de Ourém.

se plasma nas novidades (ainda que sempre intimidadas pelo poder da tradição) que apresentam as duas obras maiores de que foi encomendante, e que constituem o principal objecto artístico de análise da autora – os paços de Ourém e de Porto de Mós4. O primeiro no interior, o segundo pelo exterior, denunciam, contudo, um apego notório ao tardo-gótico, que se harmoniza com as referidas propostas modernizantes, trazidas nomeadamente da península itálica e da Catalunha, para construir a imagem pura de uma época animada pelos desconcertos próprios da transição. De resto, tratando-se do iniciador de uma casa senhorial, num momento de reafirmações e redefinições entre a nobreza, e, de certo modo, de um dos principais herdeiros da Batalha de Aljubarrota (com todas as necessidades de refundação daí decorrentes), D. Afonso jamais poderia ter negligenciado os antigos sinais de poder e a imagem tradicional que dava ainda ao Portugal do século XV a certeza do estatuto do senhor – os principais caracteres, quanto a nós, por que lutou verdadeiramente para se consolidar como possuidor. A sensibilidade própria de quem projecta traduz-se, nesta investigação, numa preocupação evidente com a envolvente das obras em estudo (o que leva a autora a analisar com minúcia a história dos lugares e as suas características geológicas e naturais), que, aliada a um investimento notável na figura agora menos enigmática do 4º Conde de Ourém e 1º Marquês de Valença, dotam a presente obra de uma completude irrepreensível e a colocam num meio caminho satisfatório entre o campo da História e o da História da Arte. Esta publicação impõe-se, assim, como exemplo de como partindo da obra deixada é possível aproximar do investigador uma individualidade pouco documentada e de como, pelo estímulo da arte, se enriquece o discurso histórico.

Joana Ramôa Bolseira da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (F.C.T.)

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Varia A Cor na Iluminura Portuguesa uma abordagem interdisciplinar Adelaide Miranda, Ana Lemos, Ana Claro, Catarina Miguel e Maria João Melo

O Tecto da Igreja do Menino-Deus: um “processo operativo” na construção do espaço perspéctico Magno Mello

Jóias, retratos e a iconografia das elites portuguesas de oitocentos Gonçalo de Vasconcelos e Sousa

Modernidade e Academismo França, Espanha e Portugal: diálogos cruzados Luísa Verdelho da Costa

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Mosaico da “Casa da Medusa” Alter do Chão Jorge António e Maria Teresa Caetano


va r i a · a co r n a i lu m i n u r a p o rt u g u e sa

a cor na iluminura portuguesa uma abordagem interdisciplinar

Homenagem ao investigador e amigo Fernando Galván Freire (Universidade de León)

Preâmbulo A cor na iluminura medieval portuguesa: uma abordagem interdisciplinar, foi o nome dado ao projecto que começou pelo estudo de dois manuscritos datados, do fundo do Mosteiro de São Mamede do Lorvão, os designados, Livro das Aves e o Apocalipse do Lorvão: apesar da diversidade do fundo a identificação destes dois manuscritos com cólofons1, em que surge referência à datação e ao local de produção, torna-os especialmente importantes. Foi em torno deles que se juntaram duas equipas de investigação, a de História de Arte2 e a de Conservação e Restauro3. Para os historiadores de arte, apesar destes manuscritos terem sido objecto de vários estudos, permaneciam dúvidas quanto à sua genealogia, à existência de um scriptorium com capacidade para os produzir, à constituição e qualidade da paleta de cores e às opções estéticas dos iluminadores. À partida estávamos conscientes da originalidade que estes manuscritos apresentavam no contexto da iluminura do românico. Contudo, era necessário um estudo rigoroso que só uma caracterização material podia dar resposta; um estudo dos materiais pictóricos e técnicas que permitisse obter o máximo de informação, no estado actual dos conhecimentos, nomeadamente quanto à composição das tintas4 e construção da cor5. Assim nasceu o grupo interdisciplinar que partindo destes dois manuscritos estendeu a sua pesquisa aos restantes do fundo do Lorvão, conservados na DGARQ / Torre do Tombo, pertencentes ou atribuídos ao século XII – 1º quartel do século XIII. Com base no período cronológico estabelecido foram seleccionados nove manuscritos6, representativos de uma grande riqueza artística e de uma diversificada paleta de cores, a partir dos quais foram elaborados estudos codicológicos bem como uma análise dos dados estilísticos e iconográficos. Esta análise será ulteriormente aprofundada no âmbito do projecto “A cor da iluminura medieval portuguesa no contexto Europeu: partilha e singularidade”.

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1. Cólofon do Livro das Aves “Ad honorem dei et sancti Mametis in monasterio laurbanense est scribtus [sic] liberiste IN Dlebus Iohanis abbatis FINITO LIBRO DONA DENT~ LARGIORA m a g i s tro (data entre as letras de m,a,g,i,s, de magistro)” (ANNE DE EGRY, O Apocalipse do Lorvão e a sua relação com as ilustrações medievais do Apocalipse. Lisboa, F.C.G., 1972, p.32) ; cólofon do Comentário ao Apocalipse do Lorvão “Iam liber est scriptus / qui scripsit sit benedictus / qua … … / ERA MCCXIIa [1189] / Ego egeas qui hunc librum scribsi si in aliquibus / a recto tramite exivi, delinquenti indulgeat / karitas que omnia superant.” (HORÁCIO AUGUSTO PEIXEIRO, Um olhar sobre a iluminura do Apocalipse de Lorvão. Tomar, Instituto Politécnico de Tomar, Escola Superior de Tecnologia, Departamento de Tecnologia e Artes Gráficas, 1998. Dissertação de provas públicas para professor coordenador, p.71). 2. Tendo como coordenadora Maria Adelaide Miranda (FCSH-UNL) e como bolseira investigadora da Fundação para a Ciência e Tecnologia, Ana Lemos. 3. Tendo como coordenadora do projecto Maria João Melo (FCT-UNL), membros da equipa na FCT-UNL: Ana Claro e Fernando Pina; e como bolseira investigadora da Fundação para a Ciência e Tecnologia, Catarina Miguel. 4. Uma tinta é constituída essencialmente por uma cola e um colorante. A cola, o ligante, serve para fixar a cor e habitualmente quer-se transparente quando seca; o colorante pode ser um mineral, um composto inorgânico sintético ou um corante natural. Outros compostos, os aditivos, podem ser adicionados para melhorar a cor, certas características como a adesão, a fluidez na aplicação e a resistências mecânica, ou ainda a estabilidade e tempo de vida. 5. A abordagem das teorias da cor é obviamente complexa, tentar quantificar e racionalizar algo que produz emoções e interpela os nossos sentidos de forma tão directa será sempre um desvendar de enigmas. [J. Seixas de Melo, M.J. Melo, Ana Claro, “As moléculas da cor na Arte e na Natureza” in Boletim da sociedade Portuguesa de Química, nº100, 2006, pp. 33-44] No entanto, poderemos escrever que a


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cor resulta da interacção da luz com a matéria; consequência desta interacção, são fotões que incidem nos nossos olhos e activam um sinal, posteriormente processado pelo sistema nervoso e traduzido numa cor. Quando uma tinta é aplicada numa superfície a cor final depende de um número considerável de variáveis; ainda que o colorante (pigmento ou corante) seja o componente principal, o ligante e os aditivos como as cargas, desempenham um papel importante. Igualmente relevante é a forma como a cor é construída, se por mistura se por aplicação de camadas. Por exemplo, um verde pode ser obtido por um só pigmento, pela mistura de um pigmento azul com um amarelo ou ainda por aplicação de uma tinta amarela e transparente sobre um azul opaco. Os verdes mais “puros”, com mais croma e luminosidade, são os obtidos a partir de pigmento puro ou por camadas. A mistura “rouba” sempre cor. 6. Sendo cinco atribuídos ou pertencentes ao século XII e quatro atribuídos ao século XIII. 7. “A primeira referência à presença das monjas data de 1206; no entanto, só em 1211, após interferência do próprio Inocêncio III, terminou o litígio que opunha D. Teresa e o mosteiro e, de direito, a rainha e quarenta religiosas se instalaram no Lorvão segundo o estatuto da ordem de Cister.” Dir. BERNARDO DE VASCONCELOS E SOUSA, Ordens religiosas em Portugal: das origens a Trento. Guia histórico, Lisboa, Livros Horizonte, 2005, p.117. 8. NELSON CORREIA BORGES, Arte Monástica em Lorvão. Sombras e realidade. Das origens a 1737. F.C.G., 2002. 9. DGARQ – Torre do Tombo, Lorvão 5 (C.F. 90). 10. DGARQ – Torre do Tombo, Lorvão 43 (C.F. 160). 11. A tese de NELSON CORREIA BORGES (Ob. cit.) relevou-se essencial para a compreensão deste período da história do mosteiro através dos documentos analisados por este historiador. 12. Consultor do projecto “A cor na iluminura Portuguesa: uma abordagem interdisciplinar”. 13. Ob. cit., p.91.

O Mosteiro do Lorvão e o seu scriptorium A forma como se procedeu, no início do século XIII, ao afastamento dos monges do Lorvão conduzido pelo próprio bispo de Coimbra, D. Pedro Soares, cujo desfecho levará à expulsão destes e à entrada, em 12067, das primeiras monjas cistercienses, transformando-se num mosteiro feminino, pertencente à ordem cisterciense8, colocanos várias interrogações, nomeadamente quanto à possibilidade dos monges terem levado consigo alguns dos manuscritos existentes e também quanto aos motivos inerentes ao facto de terem deixado no mosteiro alguns dos livros essenciais à leitura, entre os quais o De avibus de Hugo de Folieto9 e o Comentário ao Apocalipse de Beato de Liebana10. A fundação do Mosteiro11 remonta, muito provavelmente, ao século IX, altura em que se dá a reconquista de Coimbra (878) e a partir do século XI, até aos inícios do séulo XIII, os monges aí existentes terão seguido a litúrgia hispânica, resistindo à introdução da regra beneditina. Apesar de alguns autores apresentarem documentação que prova a sua ligação à regra beneditina, Aires A. do Nascimento12 põe em causa esta tese, segundo um trabalho de investigação em curso. Durante o século XII, o mosteiro receberá várias doações que acentuam a sua importância no contexto da estratégia política da reconquista que passava pela criação de mosteiros para colonização, sob domínio cristão, do território recém-conquistado aos muçulmanos, assumindo uma função de manutenção da paz e de articulação da ordem social. Em 1106, o próprio D. Henrique e D. Teresa fazem uma importante doação ao Lorvão. Uma notícia de 1138 dá-nos conta de um pagamento anual a efectuar por um denominado Nuno Mendes, consistindo numa “pele de cordeiro”, material essencial ao funcionamento de um scriptorium. O primeiro rei de Portugal, D. Afonso Henriques, conceder-lhe-à inúmeras benesses que atestam da sua crescente importância no decorrer do século XII. É durante o governo do abade João (1162-1192), considerado um período de “desafogo financeiro” e de actividade “do scriptorium laurbanense” segundo Nelson Correia Borges13, que serão executados 3 dos manuscritos cujo colofão nos dá a sua datação e/ou identidade: as Enarrationes in Psalmos de Santo Agostinho (1183), De avibus de Hugo de Folieto (1183/1184) e o Comentário ao Apocalipse (1189). Em 1199, numa data posterior à da execução dos manuscritos supra citados e numa época em que este é ainda não é cistercienge, temos notícia duma importante doação por parte da rainha D. Teresa, filha de D. Sancho I e neta de D. Afonso Henriques.

Manuscritos objectos de estudo Do conjunto de manuscritos seleccionados que abrangem o período entre os séculos XII e XIII do mosteiro e que se estende ao período cisterciense, chegaram até nós dois Leccionários (um Temporal e um Santoral), um Passionário, um Saltério, as Enarrationes in Psalmos de Santo Agostinho (1183), um Gradual, o códice que contém o Livro das Calendas e a Regra de São Bento e os dois manuscritos sobre os quais incidiu a

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investigação no âmbito deste projecto, o Livro das Aves (1183/84) e o Apocalipse do Lorvão (1189). Deste fundo foi elaborada uma análise na sua relação com a cor14. Como já foi referido, este estudo encontra-se em curso, no âmbito do projecto “A cor da iluminura medieval portuguesa no contexto Europeu: partilha e singularidade”, e permitirá testar, numa abordagem interdisciplinar, a hipótese da existência de uma evolução dos sistemas da cor para a iluminura medieval portuguesa. A diversidade cromática que constatamos verifica-se na genealogia dos manuscritos e nas ligações artísticas que pudemos estabelecer. Neste sentido, podemos confirmar algumas conclusões interessantes e de grande relevância para a História da Iluminura em Portugal: os manuscritos Lorvão 12, 13, 15 e 17, que terão sido produzidos quando o scriptorium era já cisterciense, apresentam uma relação muito próxima com os manuscritos do fundo alcobacense, lançando mesmo, nós, a hipótese de terem sido produzidos neste mosteiro15; o Passionário Lorvão 16 apresenta semelhanças consideráveis com o manuscrito Homiliário Santa Cruz 4 (datado de 1139), estando incluído numa tradição artística que nos leva à iluminura ibérica peninsular e aos manuscritos dos scriptoria de Moissac e de Limoges (sécs XI-XII) 16. Um aspecto importante neste conjunto é a tendência clara para privilegiar o desenho face à pintura, esta utilizada sobretudo nos fundos. A biblioteca do Lorvão apresenta claramente, nesta sua característica, uma ligação aos manuscritos ibéricos. A partir de 1206, período a que aderiu à ordem cisterciense, as relações com Alcobaça são bem visíveis. Como já foi referido, estas hipóteses serão ulteriormente testadas, tendo também em consideração a caracterização dos materiais e técnicas utilizados na construção da cor.

Apocalipse do Lorvão Este manuscrito foi já objecto de estudo de numerosos historiadores de arte17 destacando-se os trabalhos de Yarza Luaces, Horácio Augusto Peixeiro e Peter Klein bem como a contribuição de Aires Augusto de Nascimento e de Maria Adelaide Miranda. O Apocalipse do Lorvão faz parte de um vasto grupo de manuscritos denominados Beatus, nome derivado de Beato de Liébana, monge que viveu na transição do século VIII para o século IX, em Liébana e que redigiu um comentário ao Apocalipse de São João, num ambiente de crença de Fim do Mundo, acentuado pelo aproximar do fim do milénio. O Livro do Apocalipse é o último livro da Bíblia, cuja leitura era obrigatória entre a Páscoa e o Pentecostes. A sua iluminura transmitia ao religioso a mensagem visual dos acontecimentos que se desenrolam desde a Revelação de Cristo, através da entrega do Livro a João, até ao momento da reconstrução da Nova Jerusalém. No século XII, razões de ordem histórica ligadas ao avanço Almóada na Península Ibérica, a par de um renascer do espírito apocalíptico, dão origem a um novo surto de comentários historiados ao Apocalipse no qual o nosso manuscrito se insere, sendo a única cópia desta época que se encontra datada. Pertence ao Ramo I18, que copia a tradição mais antiga dos Beatos. O mundo monástico reage mais uma vez ao confronto de religiões e culturas através de uma obra em que imagens fortes e abstractas exorcizam as forças demoníacas e prometem a salvação aos eleitos. Está escrito em >>

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14. Século XII: Lorvão 50 (Enarrationes in Psalmos de Santo Agostinho, 1183) – utilização de 6 cores (amarelo ocre, azul, laranja, rosa salmão, verde e aplicação de folha de ouro); Lorvão 5 (Livro das Aves, 1183/1184) – utilização de 9 cores (amarelo ocre, azul, branco, castanho, grená, verde, vermelho, preto e aplicação de folha de ouro); Lorvão 43 (Apocalipse do Lorvão, 1189) – utilização de 5 cores (amarelo, castanho, laranja, preto, vermelho); Lorvão 3 (Saltério, atribuído ao séc. XII) – utilização de 5 cores (azul, castanho, amarelo ocre, verde, vermelho); Lorvão 16 (Passionário, 1176-1200) – utilização de 7 cores (azul, castanho, laranja, amarelo ocre, rosa, verde, vermelho); Século XIII: Lorvão 12 (Leccionário Santoral, atribuído ao séc. XIII) – utilização de 5 cores (grená, amarelo ocre, rosa, verde, vermelho); Lorvão 13 (Leccionário Temporal, atribuído ao séc. XIII) – utilização de 7 cores (azul, branco, grená, amarelo ocre, rosa, verde, vermelho); Lorvão 15 (Gradual, 1201-1250) – utilização de 9 cores (azul, castanho, grená, laranja, amarelo ocre, preto, rosa, verde, vermelho); Lorvão 17 (Livro das Calendas, atribuído ao séc. XIII) – utilização de 6 cores (azul, castanho, grená, rosa, verde, vermelho); Os manuscritos deste conjunto com uma paleta de cores mais alargada são o Lorvão 5 e o Lorvão 15 com a aplicação de 9 cores. Verifica-se uma predominância de manuscritos com uma paleta reduzida a 5 cores: o Lorvão 43 e o Lorvão3, ambos do séc. XII e o Lorvão 12, já do século XIII. Dos restantes, dois manuscritos possuem uma paleta com 6 cores (Lorvão 50 e Lorvão 17) e dois com 7 (Lorvão 16 e Lorvão 13). Deste levantamento constatámos que o verde só não se encontra presente no Apocalipse do Lorvão; o amarelo ocre e o azul não foram aplicados no Apocalipse do Lorvão (1189) e no Lorvão 17 (atribuído ao século XIII); o rosa, cor aplicada no conjunto dos manuscritos atribuídos ao século XIII surge, no contexto dos manuscritos do século XII, apenas numa inicial do Lorvão 16 e no Lorvão 50 (rosa salmão); o vermelho não é aplicado em apenas dois dos manuscritos: o Lorvão 50 (1183) e o Lorvão 12 (atribuído ao século XIII); o castanho não surge em apenas um dos manuscritos do século XII, o Lorvão 50, tendo sido aplicado apenas em dois dos manuscritos do século XIII,

o Lorvão 15 e o 17; o laranja surge em cinco dos manuscritos: três pertencentes ao século XII (Lorvão 50, 43 e 16) e dois ao século XIII (Lorvão 13 e 15); o preto e o branco foram aplicados em apenas três dos manuscritos: dois pertencentes ao século XII (preto: Lorvão 5 e 43; branco: Lorvão 5 e 50) e um ao século XIII (Lorvão 15); a folha de ouro foi aplicada unicamente nos dois manuscritos mais antigos: Lorvão 50 (1183) e Lorvão 5 (1183/1184); destacamos o pigmento amarelo (ouropigmento) aplicado unicamente no Lorvão 43 (Apocalipse). Salientamos, no entanto, que este resultado, embora confirmando uma grande heterogeneidade na paleta de cores do scriptorium do Lorvão, não é por si um dado conclusivo dado o número reduzido de manuscritos representativos, que chegaram até nós. 15. FERNANDO GALVÁN FREIRE refere acerca da origem alcobacense do Antifonário de Las Huelgas Reales de Burgos a importância deste mosteiro português, na produção de manuscritos “de tal menara que las fórmulas del centro y norte de Europa no habrían llegado de manera directa a la corte castellana, sino via Portugal, donde se estaba desarrollando uma importantísima actividad de copia e ilustración de manuscritos en cenóbios cistercienses” (El Monacato en los reinos de Léon y Castilla (siglos VII-XIII). El processo de Internacionalización de la miniatura en torno al año 1200 en la Península Ibérica: el Antifonario y el martirologio de las Huelgas Reales de Burgos. Fundación Sánchez-Albornoz, Universidad de Léon, s.d., pp.448-450). Esta mesma relação havia sido já estabelecida por MANUEL PEDRO FERREIRA (“Early Cistercien Polyphony: A New-Discovered Source”, Lusitania Sacra, 2ª série, XII-XIV, 2001-2002). 16. Hipótese estudada por MARIA ADELAIDE MIRANDA in O Mosteiro de Arouca: pergaminhos. Arouca: Irmandade da Rainha Santa Mafalda, Museu de Arte Sacra, 1995, pp.8-9. 17. Autores que dedicaram uma monografia ao Apocalipse do Lorvão: ANNE DE EGRY, Ob. cit., 1972; HORÁCIO AUGUSTO PEIXEIRO, Ob. cit., 1998; PETER KLEIN, Beato de Liébana: La ilustración de los manuscritos de Beato y el apocalípsis de Lorvão, Valência, Património ediciones,

2004. Acerca do tema dos Beatus consultar a obra de dois eminentes investigadores, Yarza Luaces e John Williams, que se têm debruçado sobre o estudo do conjunto destes manuscritos, com um capítulo dedicado ao Apocalipse do Lorvão (JOAQUÍN YARZA LUACES, Beato de Liébana: Manuscritos iluminados, M. Moleiro Editor, S.A., 2005; JOHN WILLIAMS, The Illustrated Beatus : a corpus of the illustrations of the commentary on the apocalypse. London, Harvey Miller Publishers, 2003. Volume V). No domínio da análise iconográfica não podemos esquecer os trabalhos levados a cabo por MARIA ADELAIDE MIRANDA sobre a iluminura românica em Portugal com referências ao Apocalipse do Lorvão (“A iluminura românica em Portugal”, in A iluminura em Portugal: identidade e influências. Lisboa, B.N., 1999). Por último não podemos deixar de referir a contribuição do Prof. Doutor Aires Augusto do Nascimento, nomeadamente na leitura que este faz da iluminura do fl.153v do Apocalipse do Lorvão, no qual o dragão, símbolo do diabo, invade a esfera do celeste, salientando que “neste mundo ordenado de criaturas, não existe apenas o “alto”, isto é , o valor, o céu, mas também o “baixo”, a privação de valor, a terra, os infernos. A invasão da esfera superior é símbolo da subversão dos valores, de desregramento, próprio do demónio” (AIRES AUGUSTO DO NASCIMENTO, “O sufrágio: o trinitário gregoriano”, in A Imagem do tempo: livros manuscritos ocidentais, Catálogo da exposição, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2000, pp.432-434). 18. O conjunto dos Beatus encontra-se dividido em dois Ramos principais, o Ramo I e o Ramo II, que por sua vez se subdividem em diversas ramificações. Este stemma, proposto por Peter Klein (Joaquín Yarza LUACES - Beato de Liébana: Manuscritos iluminados, M. Moleiro Editor, S.A., 2005, p.45) com base num preexistente elaborado por Wilhelm Neuss, resulta da análise dos Beatus existentes e das relações intrínsecas estabelecidas entre eles. O Apocalipse do Lorvão, único manuscrito português do conjunto dos Beatus, para além de ser o único do século XII que se encontra datado (1189), pertence ao Ramo I, considerado o mais próximo do protótipo.

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latim, em letra gótica-primitiva e assume as dimensões (345x245mm) de um manuscrito executado para ser exposto em determinadas alturas do ano, inserindo-se na média dos Beatus dos séculos IX a XI. Constatamos que no contexto dos Beatus do século XII19, apenas o do Lorvão e o de Navarra seguem a média das dimensões daqueles manuscritos pré-românicos, porventura respeitando as dimensões do modelo. O cólofon20, aposto no fl.219v, dá-nos o nome do escriba bem como a data da sua execução. Neste caso supomos que o escriba Egeas não será o iluminador, já que um programa narrativo desta envergadura pressupunha uma especialização artística que, na maior parte dos casos, não era própria do copista. As especificidades do nosso manuscrito no contexto da iluminura românica em Portugal, para além da paleta de cores utilizada que será de seguida apresentada, devemse também ao facto de ser o único manuscrito (dos que chegaram até nós) com um programa iconográfico desenvolvido e coerente. O carácter simbólico e escatológico do texto e da imagem, na tradição literária do comentário ao Apocalipse, e a necessidade de divulgar uma mensagem no contexto político-religioso da expansão cristã peninsular, terão levado o artista do Apocalipse do Lorvão a criar um programa iconográfico que se traduz em 8821 imagens, optando pela utilização de cores contrastantes e luminosas nos fundos22 e corpos transparentes que parecem exaltar a espiritualidade presente no texto. As cores da luz foram aplicadas com uma tinta proteica, possivelmente cola de pergaminho misturada com clara de ovo23. Os pigmentos que estão na base das tintas utilizadas no Apocalipse são o ouropigmento (As2S3), o vermelhão (HgS) e o mínio (Pb3O4), sendo o primeiro um mineral e os outros dois obtidos por síntese (al)química (ver Anexo). Tanto as cores vermelha como laranja são tintas complexas, obtidas por mistura de pigmentos e aditivos, como as cargas. O vermelho utilizado nas imagens foi construído com vermelhão em mistura com mínio e giz; os dados obtidos por microespectrometria de fluorescência de raios X dispersiva de energias (microEDXRF, ver Anexo) permitiram calcular que a percentagem de mínio na mistura, mínio+vermelhão, fosse de cerca de 25%; o giz, carbonato de cálcio, é utilizado como uma carga, que não alterando o tom da cor, acentua-a, tornando-a mais opaca, e melhorando ainda a sua resistência mecânica. A cor laranja, baseada no mínio, apresenta alguma degradação visível na transformação do laranja forte num acastanhado. Nesta cor foi também detectado o uso de cargas, mas raras vezes se detectou a presença de vermelhão, pigmento mais dispendioso. Os poucos castanhos24 do Apocalipse do Lorvão são uma mistura de vermelhão com mínio e um terceiro componente rico em ferro (ainda não caracterizado). Tendo como base a caracterização dos materiais e técnicas podemos afirmar que, com excepção da alteração acima descrita para o laranja, as tintas encontram-se em bom estado de conservação. Para além disso, a aparente simplicidade plástica escolhida para a paleta do Apocalipse do Lorvão terá sido uma opção estética, não condicionada pelo know-how tecnológico ou recursos materiais. Assim, este estudo permitiu constatar que, nesta época, o uso de apenas 3 cores predominantes (amarelo, laranja e vermelho) não se deveu a uma pobreza do scriptorium, na medida em que o Lorvão 16

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19. Nesta análise não foram tidos em conta os fragmentos de Beatus. 20. Ver nota 1. 21. Nesta contagem estão incluídas as tábuas, esquemas e marginália. 22. As imagens que circulam na bibliografia disponível não abonam a favor destas características cromáticas. 23. Investigação em curso para caracterizar com maior precisão o ligante. 24. Fls. 177, 178v e 179. 25. Também presentes nos restantes manuscritos. 26. Um pigmento trazido do actual Afeganistão, e que foi uma das cores mais apreciadas e preciosas da Idade Média. O azul representa, por excelência, o transcendente e espiritual da natureza divina. O lápis-lazúli será o azul do manto da Virgem, sempre que o artista e o seu cliente podiam adquirir o pigmento, nem sempre disponível quer pelo seu elevado preço, quer pela sua relativa raridade. 27. Ver nota 13. 28. Segundo Yarza Luaces (Beato de Liébana: Manuscritos iluminados, M. Moleiro Editor, S.A., 2005, p.269), “El Beato de Lorvão pertenece al grupo de manuscritos apocalípticos donde el dibujo es el protagonista principal (…)”. 29. Constatamos igualmente, tal como noutros manuscritos que compõem o fundo do Lorvão, a articulação entre fundos policromos e figuras apenas desenhadas em que a cor adquire carácter simbólico ao determinar os espaços em que a cena se desenrola (exemplo marcante é a cena do fl.54 Mensagem a Esmirna em que a cor funciona como elemento de interligação entre registos diferentes, destacando o desenho, essência da mensagem veiculada). 30. PETER KLEIN, Beato de Liébana: La ilustración de los manuscritos de Beato y el apocalípsis de Lorvão, Valência, Património ediciones, 2004. 31. Sobre esta problemática ver ANA LEMOS, Dez. 2004 “Peter K. Klein – Beato de Liébana: La ilustración de los manuscritos de Beato y el


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Apocalipsis de Lorvão, Valência, Património ediciones, 2004. Recensão crítica” in Revista de História da Arte, nº 4, 2007, Lisboa, Instituto de História da Arte da FCSH-UNL, pp. 323-328. 32. Já salientada, nomeadamente por ANNE DE EGRY in Ob.Cit. 33. (Ap 6, 1-8) “Seguia mirando cuando el Cordero abrió el primero de los siete sellos. Oí al primeiro de los cuatro vivientes que decía com voz como de trueno: vem y mira. Y había un caballo blanco; el que lo montaba tenía un arco; se le dio una corona y salió como vencedor para seguir venciendo. Cuando abrió el segundo sello, oí al segundo viviente que decía: vem y mira. Entonces salió outro caballo, rojo; al que lo montaba se le concedió quitar de la tierra la paz para que se degollaran unos a otros; se le dio una espada grande. Cuando abrió el tercer sello, oí al tercer viviente que decía: vem y ve. Y había un caballo negro; el que lo montaba tenía en la mano una balanza. Y oí como una voz en medio de los cuatro vivientes que decía: un litro de trigo por un denario, tres litros de cebada por un denario. Pêro no causes daño al aceite y al vino. Cuando abrió el cuarto sello, oí una voz que decía: vem y mira. Y había un caballo pálido; el que lo montaba se llamaba muerte y el infierno le seguia. Se les dio poder sobre la cuarta parte de la tierra, para matar com la espada, com el hambre, com la muerte y com las bestias de la tierra. (JOAQUIN GONZALEZ ECHEGARAY, ALBERTO DEL CAMPO, LESLIE G. FREEMAN, Obras completas de beato de Liebana. Madrid, Estudio teologico de Santo Ildefonso, Biblioteca de los autores cristianos, 1995, pp.346-351).

com uma datação alargada de 1176-1200 (período de 24 anos durante o qual foram executados três dos manuscritos que se encontram datados através de cólofon: o Lorvão 50, o 43 e o 5) utiliza todos os pigmentos disponíveis na época25, nomeadamente o muito precioso lápis-lazúli26. De salientar ainda o uso do pigmento ouropigmento, As2S3, que no conjunto dos manuscritos do fundo do Lorvão dos séculos XII-XIII, como já referimos na análise da paleta utilizada27, surge apenas neste manuscrito. Simbolicamente, as cores predominantemente aplicadas (amarelo, laranja e vermelho) poderão sim, relacionar-se com a persistência de uma paleta que privilegiava o amarelo e o vermelho, e por uma opção do iluminador que utilizou as cores que mais se adequavam a uma estética da luz que desperta no Ocidente a partir de meados do séc. XII. Constatamos, no Apocalipse do Lorvão, a primazia do desenho28 sobre a cor que surge em determinados espaços com uma intencionalidade muito precisa revelando um carácter simbólico mas também fundamental para definir a composição e determinar os espaços em que a cena se desenrola29. A aplicação desta paleta de cores não constitui um caso isolado, embora seja uma particularidade do Apocalipse do Lorvão no contexto dos Beatus Ibéricos. Num manuscrito existente na Biblioteca Nacional de Madrid (Ms 5780, CASSIANUS, ABBAS MAXILIENSIS: De Incarnatione libri septem-S-) do séc. XII verificamos, igualmente, a utilização duma reduzida paleta de cores cingida ao laranja e amarelo. Estas cores presentes no nosso Comentário ao Apocalipse estão presentes igualmente em Göreme (Capadócia), centro religioso dos cristãos no início da Idade Média, onde o laranja e o amarelo foram aplicados nos frescos das igrejas datadas do séc. XI (Igreja Yusuf Koc, de meados do séc. XI; a Igreja das Sandálias, do séc. XI). O estudo destas iluminuras demonstra-nos que nem sempre o iluminador seguiu o texto, na disposição espacial das figuras bem como ao ajustar elementos com a sua própria criatividade o que, por vezes, levanta problemas de interpretação ao historiador do século XXI, e que serão seguidamente abordados com mais pormenor. Parece-nos ser o caso de investigadores tal como Peter Klein30 que considera todo o desvio iconográfico como um erro do iluminador, ao mesmo tempo que atribui a um outro artista a capacidade de introduzir novos elementos iconográficos31. Nos comentários ao Apocalipse iluminados românicos torna-se mais difícil estabelecer com rigor uma genealogia, já que estamos num período de internacionalização onde se cruzam múltiplas influências. Contudo, as tradições artísticas e o contexto histórico marcam a iluminura deste manuscrito destacando-se o episódio dos Quatro Cavaleiros do Apocalipse, a representação do Cordeiro 32 e a representação da figura de Cristo imberbe. (Fig.1) Nos Quatro Cavaleiros do Apocalipse33 (fl.108v) as diferenças iconográficas presentes no nosso manuscrito, assinaladas por alguns autores como erros iconográficos, poderão ser explicadas se tivermos em conta o contexto histórico e a importância da afirmação do cavaleiro cristão face ao islâmico no processo da reconquista com os seus símbolos mais poderosos: a espada e a cruz. Deste modo se justifica a substituição da balança pela espada como significado de justiça e da espada do quarto cavaleiro pela cruz, acentuando assim a ideia de salvação que está associada ao cavaleiro da expansão cristã.

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fig.1 e 2 apocalipse do lorvão, torre do tombo, lorvão 43 (c.f.160), fl.108v e fl.115. © imagens cedidas pelo antt.

(Fig.2) Da mesma forma podemos associar a imagem do primeiro cavaleiro à do fl.11534, identificado como o Anticristo, representativa de uma homologia negativa perturbadora da sua leitura, já que este cavaleiro, prefigurando o mal, apenas se distingue do anterior pelos seus cabelos frisados. Numerosos autores têm lançado hipóteses sobre a interpretação desta imagem como foi referido por Ana Lemos35. O impacto visual é dado através da representação rigorosa do equipamento militar de um cavaleiro do século XII bem como a sua forma de montar, demonstrando igualmente uma grande capacidade artística. (Fig.3) O Cordeiro que suporta a cruz (o Cordeiro apocalíptico) assume na arte portuguesa características específicas e um lugar de destaque que leva a que esteja presente num número considerável de tímpanos de igrejas românicas36. No Comentário ao Apocalipse do Lorvão o iluminador representa-o como um Cordeiro adulto com os chifres recurvados (por exemplo, fl.90 Visão do Cordeiro e dos quatro seres). (Fig.4) A representação de Cristo imberbe, mais uma vez, integra este manuscrito em ambiente laurbanense, podendo ser associado ao Cristo que surge no interior do

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34. Associação esta já estabelecida por PETER KLEIN (Ob. Cit., p.79). 35. Ob. Cit. 36. PATRÍCIA RAQUEL FERREIRA LOPES, Tímpanos Românicos Portugueses. Temas e problemas. Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa, 2006. Dissertação de Mestrado, pp. 52-57.


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37. A representação da Cidade de Jerusalém na forma de um rectângulo surge igualmente no fl. 253v do Vitrina 14-2, também pertencente ao Ramo II. No entanto, deste último manuscrito, não foram estabelecidas outras analogias comparativas das iluminuras com as do Beato do Lorvão.

cedro do Livro das Aves, assumindo assim uma genealogia que remonta ao período paleocristão e que, possivelmente, estaria presente na representação iconográfica, em manuscritos deste fundo. (Fig.5) No contexto ibérico apresenta afinidades com alguns dos Beatus (facto esse já realçado pelos investigadores que abordaram esta temática), nomeadamente o Beato de Osma; do ponto de vista iconográfico, foram estabelecidas relações inovadoras com o Beato de Seu de Urgell pertencente ao Ramo II e anterior ao Apocalipse do Lorvão, e que permitiu a percepção da utilização de certos elementos, embora não a sua justificação. Um exemplo marcante é a representação da Jerusalém Celeste na forma de um rectângulo37 (Beato de Seu d’Urgell, fl.198v) e não de um quadrado como é visível nos restantes Beatus. Para além dos aspectos referidos que permitem integrar o Apocalipse do Lorvão num contexto histórico e ideológico preciso, algumas particularidades iconográficas justificam a diversidade de fontes para além da sua integração na família I.

Livro das Aves De bestiis et aliis rebus é um texto escrito por Hugo de Folieto, prior agostinho, entre 1130-1140, dedicado a Rainerus, irmão converso. Baseia-se nos antigos Fisiólogos tardo-romanos ilustrados. De edificação espiritual usa as aves em alegorias morais para servirem de exemplo a monges e a cónegos, assumindo uma função de carácter moralizante. A Bíblia é a fonte principal da primeira parte, onde aparece frequen-

fig.3 e 4 apocalipse do lorvão, torre do tombo, lorvão 43 (c.f.160), fl.90 e fl.217. © imagens cedidas pelo antt.

fig.5 livro das aves, torre do tombo, lorvão 5 (c.f. 90), fl.25. © imagens cedidas pelo antt.

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fig.6 a paleta utilizada na iluminura medieval portuguesa, a partir de fotografias de pormenor de iluminuras de manuscritos medievais do fundo do mosteiro do lorvão; com excepção dos pormenores para a azurite e malaquite, retirados do foral manuelino de vila flor (1512). na primeira linha, fotografias de microscópio com ampliações entre 63 e 80 vezes; na segunda linha, ampliação entre 7 e 32 vezes; na terceira linha nome comum dos pigmentos e na última linha a cor obtida.

temente mencionada. Na segunda, o autor utiliza como modelos, particularmente o bestiário presente nas Etimologias de Santo Isidoro e A Natureza das Coisas de Rábano Mauro. Desse texto existem várias cópias espalhadas pela Europa, três das quais se encontram em Portugal. Apesar dos três manuscritos do Livro das Aves existentes em Portugal (Lorvão 5, DGARQ – Torre do Tombo; ALC.238, Biblioteca Nacional de Portugal; Ms.34, Santa Cruz, Biblioteca Pública Municipal do Porto) terem sido incluídos, por Willene B. Clark38, no grupo que tem como protótipo o manuscrito da abadia de Heiligenkreuz, ms 226, datado também ele de finais do séc. XII, o Livro das Aves do Lorvão e o de Santa Cruz apresentam especificidades entre si pelo facto das aves se encontrarem na totalidade inseridas em círculos39 e pelas afinidades plásticas do desenho. Na generalidade, apenas o manuscrito do fundo do Lorvão e o de Santa Cruz aplicam o círculo a todas as aves (no ms 177, Troyes, fl.141, uma das aves encontrase inserida num círculo, enquanto as restantes surgem representadas no espaço do fólio deixado livre para o efeito), elemento geométrico que se encontra igualmente presente, de forma dominante, no Apocalipse do Lorvão40. O De avibus pertencente ao fundo do Lorvão possui dois cólofons que nos indicam que foi produzido no referido mosteiro, fornecendo duas datas diferentes, respectivamente 1183/1184. No Livro das Aves encontramos aquela que poderemos descrever como uma paleta medieval completa, (Fig.6). Para além dos já descritos vermelhão e mínio, encontramse presentes o azul de lápis lazúli, o verde (pigmento sintético de cobre), o grená de goma laca, o branco de chumbo (2PbCO3.Pb(OH)2) e o negro de carvão. O lápis-lazúli foi o pigmento mais cobiçado na Idade Média, sendo o seu preço superior ao do ouro e a sua procura muito superior à oferta. É profusamente utilizado no Livro das Aves, tanto puro como em mistura com o branco de chumbo, na obtenção de tons de azul mais claro. O verde utilizado no Livro das Aves é aplicado nos fólios 20v (Palmeira) e 95v (A Criação). No primeiro, na Palmeira, o tom verde não é o habitual da paleta do Lorvão. O tom “verde garrafa” é encontrado no manto de Cristo, e obtido com verde de cobre sintético. O grená encontrado é obtido com um corante, o grená da goma

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38. WILLENE B. CLARK, The Medieval Book of Birds Hugh of Fouilloy’s Aviarium, Medieval & Renaissance Texts & Studies, Binghamton, New York, 1992. 39. Exceptuando as aves representadas no prólogo. 40. Por exemplo, “A coroa da vida”, fl.54; a composição em círculos da “Visão do Cordeiro e dos Quatro Seres”, fl.90; a representação do “Silêncio no céu”, fl.134; a representação do inferno na cena “O quinto anjo toca a trombeta e abre o abismo com a chave”, fl.140v; na “Descrição das cores das pedras preciosas”, fls. 208v-209; na “Nova Jerusalém”, fl.209v; e ainda nos fls. 112, 115, 118, 139, 142, 153v, 169, 172v, 180v, 196v, 199, 202v, 207, 210, 217).


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41. Constable, O. R., 2003, Trade and traders in Muslim Spain, Cambridge University Press, Cambridge. 42. Prólogo do Livro das Aves, fl.5. 43. The Medieval Book of Birds Hugh of Fouilloy’s Aviarium, Medieval & Renaissance Texts & Studies, Binghamton, New York, 1992. 44. Fl.17. 45. AIRES AUGUSTO DE NASCIMENTO, Texto e imagem: autonomia e interdependência em processo de leitura. In Figura. Coord. António Branco, Faro: Departamento de Letras Clássicas e Modernas, FCHS-UA, 2001, pp.26-27. 46. Livro das Aves: Pelicano (fl.30v), Noitibó (fl.32), Corvo (fl.33), Galo (fl.36v), Avestruz (fl.40), Abutre (fl.46v), Grou (fl.48), Milhafre (fl.49v), Andorinha (fl.50v), Cegonha (fl.52v), Melro (fl.54), Gralha (fl.56v), Ganso (fl.58v), Garça (fl.59v), Carádrio (fl.60v), Fénix (fl.61), Perdiz (fl.62v), Codorniz (fl.63v), Poupa (fl.64v), Cisne (fl.65v), Pavão (fl.66v), Águia (fl.69). O mocho, presente no manuscrito de Santa Cruz (fl.104v), encontra-se ausente no do Lorvão, apesar de ter um texto que lhe é dedicado. 47. Quatro outras aves surgem com o corpo pintado na sua totalidade: o corvo (fl.33), pintado a preto, a andorinha (fl.50v), pintada a preto e vermelho com realces a branco, o melro (fl.54), pintado a preto com o bico vermelho, e o cisne (fl.65v), com o corpo pintado de branco e as patas e o bico a vermelho. Destas aves apenas a andorinha tem uma conotação positiva no texto de Hugo de Folieto. Ela é “a alma penitente, que sempre anseia pelo início da Primavera, porque em tudo mantém a medida da discrição e da temperança. Eis como uma simples ave ensina os que a Divina Providência faz prudentes desde o início” (MARIA ISABEL REBELO GONÇALVES, Livro das Aves, Lisboa, Edições Colibri, 1999, p.133). 48. Cf. Michel Pastoureau (Bleu. Histoire d’une couleur. Éditions du Seuil, 2002, p.43) “Bien au contraire [le Bleu] devient rapidement [à partir du XIIè siècle] une couleur à la mode, une couleur aristocratique, et même déjà la plus belle des couleurs selon certains auteurs”.

laca, proveniente da Índia e introduzida, à época, na Península Ibérica pela civilização muçulmana41. Os pretos são normalmente tintas à base de carvão. O ligante utilizado em todas as cores do Livro das Aves foi, tal como no Apocalipse, uma cola proteica. O programa iconográfico que acompanha o texto começa no prólogo com a pomba e o falcão, enquadrados por uma arquitectura em arco ultrapassado e que pode, muito bem, estar relacionado com a arquitectura da Coimbra contemporânea, elemento igualmente visível no Comentário ao Apocalipse do Lorvão e ausente nos restantes De avibus. Seguidamente, no fl.5v, o iluminador representa dois arqueiros com bestas de caça, muito provavelmente uma alusão “às pessoas da nobreza”42, tal como podemos ver no Ms.226 onde aparece o cavaleiro com o falcão (Fig.7). Observamos que no Ms. 226 (Heiligenkreuz), na base do stemma proposto por Willene Clark43, onde se encontram inseridos os De avibus pertencentes a mosteiros portugueses, bem como no Ms. 253 (Abadia de Zwettl), ambos atribuídos a finais do século XII, o prólogo tem início com a representação da pomba e do falcão sob arcadas e do clericus e do miles colocados sob a ave que os representa. Interessante é a representação do cavaleiro com um falcão pousado na sua mão esquerda que se encontra protegida por uma luva bem como a figura do cão segura pelo seu outro braço, elementos iconográficos alusivos à actividade da caça. Ao representar apenas a pomba e o falcão, símbolos do clérigo e do cavaleiro, no prólogo do Livro das Aves do Lorvão, o iluminador vai realçar a importância deste grupo social através da representação dos arqueiros no fl. 5v bem como do preenchimento com lápis-lazúli do corpo do falcão, nos fls. 5 e 16, ave que simboliza a nobreza. (Fig.8) O iluminador continua o programa com a representação da pomba assumida agora no seu sentido místico (fl.6, diagrama) e moral (fls.7v-8). O falcão volta a ser representado (fl.16), batendo as asas que, segundo o texto, representa uma mudança de penas associada simbolicamente ao cavaleiro militar que deixa a vivência antiga para ingressar na vida clerical tornando “a um voo tanto mais leve quanto mais novo”44. A palmeira (fl.20v), bem como a rola (fl.21v) representam uma reflexão, em que, na primeira o justo é associado à palmeira que, por sua vez, representa o próprio Cristo e cujos frutos são o resultado da conversão através da fé. A rola surge como sendo o penitente. A anteceder a representação das várias aves, nos De avibus, o iluminador dá um destaque especial ao cedro do Líbano (fl.25), árvore que segundo o Cântico dos Cânticos, representa o próprio Cristo e os pássaros que nela se encontram são consideradas as almas dos pregadores. O iluminador do Lorvão, tal como o de Santa Cruz, terá representado uma iconografia mais próxima do texto na qual Cristo surge no centro da árvore dispondo-se em torno d’Ele sete aves que podem ser interpretadas como os sete dons do Espírito Santo45. As restantes 22 aves46 são indicadas por Hugo de Folieto ao monge, como exemplo moral, através das virtudes e vícios que, elas próprias, simbolizam. Constatamos que o artista, através da utilização da cor, nomeadamente no falcão (fl.5, prólogo e fl.1647), transmite uma das ideias-chave do texto de que o miles quando entra no mosteiro deve despojar-se de todos os bens terrenos, ou seja, mudar de pelagem. Assim se justifica também, tal como já referimos, que o falcão, símbolo da nobreza, surja pintado na totalidade com lápis-lazúli48.

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fig.7, 8 e 9 livro das aves, torre do tombo, lorvão 5 (c.f. 90), fl.5v, fl.16 e fl.36v. © imagens cedidas pelo antt.

O iluminador individualiza as aves do ponto de vista morfológico, através de um bom desenho, inserindo-as em duplos círculos com inscrição a vermelho49. É possível, na maior parte delas, identificá-las na sua relação com o mundo natural, sendo neste exemplar de destacar igualmente o carácter decorativo que estas assumem, bem como a força do gesto associando a sua representação ao texto que as acompanha (é o exemplo do galo, fl.36v). (Fig.9)

Conclusões O trabalho de investigação levado a cabo pela equipa interdisciplinar acima mencionada permitiu esclarecer, quer as dúvidas levantadas no que diz respeito ao lugar de produção material quer as opções estéticas e simbólicas dos iluminadores. As correlações estabelecidas entre o Apocalipse do Lorvão e o denominado Livro das Aves de Hugo de Folieto ao nível do desenho – estruturas arquitectónicas, utilização sistemática do círculo como enquadramento das aves e das figuras humanas, figura de Cristo jovem seguindo uma via de representação paleocristã – e os dados fornecidos pelo próprio manuscrito permitiram confirmar a produção deste no mesmo scriptorium. Da análise destes dados materiais, podemos concluir que, com excepção do lápis-

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49. Encontra-se em fase de preparação um artigo de um estudo monográfico dos três De avibus onde as questões técnicas ligadas à execução do desenho serão postas em relevo.


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50. The Medieval Book of Birds Hugh of Fouilloy’s Aviarium, Medieval & Renaissance Texts & Studies, Binghamton, New York, 1992.

lazúli e do ouropigmento, os restantes pigmentos utilizados nestas duas obras foram obtidos por síntese. Ainda que não se tenha discutido a construção da cor nos restantes manuscritos do fundo do Lorvão, podemos adiantar que, de uma forma geral, observa-se uma profusa utilização da cor grená, encontrando-se aplicada directamente sobre o pergaminho, como no Diagrama da Pomba, ou sobre o mínio, para o escurecer, criando um efeito de relevo (incidire); ou ainda misturada com branco de chumbo para matizar e construir a escala do escuro ao claro, fígura 6. Este vermelho orgânico, goma laca no Livro das Aves, poderá ser característico da Iluminura medieval portuguesa. Também característico é o uso do branco de chumbo para a cor branca, já no século XII, ao contrário do encontrado na iluminura anglo-saxónica, que utiliza o carbonato de cálcio (giz). Comum à produção europeia, é o uso do lápis lazúli na criação de azuis, do vermelhão como base para o vermelho e a existência de mínio na paleta, este tanto utilizado puro, para a cor laranja, como sombreado com uma laca vermelha. A análise formal e iconográfica dos De avibus permitiu-nos abrir novas perspectivas que suscitam algumas interrogações quanto ao stemma proposto por Willene Clark50 pensando nós que o exemplar de Santa Cruz de Coimbra terá uma relação directa com um exemplar veiculado através dos agostinhos e que o do Lorvão seguirá este modelo adaptando a iluminura ao estilo do próprio mosteiro. São conhecidas as relações dos cónegos regrantes portugueses com o mosteiro de São Rufo de Avinhão, centro agostinho de importância relevante no sul de França de onde provém igualmente um De avibus deste mesmo período. Neste caso, a via de transmissão terá sido através dos agostinhos e não dos cistercienses, uma vez que o Livro das Aves do Mosteiro de Alcobaça tem uma relação privilegiada com Claraval. Relativamente ao Apocalipse do Lorvão foram estabelecidas relações iconográficas com o Ramo II, nomeadamente com o Beato d’Urgell. Ao mesmo tempo, foi no contexto cultural e político português que se encontraram respostas para uma representação iconográfica específica ao nosso manuscrito.

Adelaide Mirandaa, b, Ana Lemosa, Ana Claroa,c, Catarina Miguelc e Maria João Meloc a

Instituto de Estudos Medievais, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa. b Departamento de História da Arte, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa. c REQUIMTE-CQFB e Departamento de Conservação e Restauro, Faculdade de Ciências e Tecnologia – UNL, 2829-516.

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Anexo A informação sobre os materiais pictóricos é obtida a partir da caracterização científica dos materiais51, tendo como ponto de partida a informação presente em fontes históricas, tratados técnicos, receituários, etc. A análise da informação destas fontes permite a construção de reproduções históricas das várias cores. Estas reproduções são, por sua vez, analisadas e caracterizadas com os mesmos métodos de análise utilizados no estudo da iluminura medieval. A análise crítica desta informação permite não só obter mais e melhor informação aquando da análise da obra, contribuindo para uma melhor caracterização do estado tecnológico da época.

1. Tratados e fontes da época utilizados De forma a optimizar a análise destes dois manuscritos, o Livro das Aves e o Apocalipse, o trabalho realizado iniciou-se com uma pesquisa bibliográfica de fontes, nomeadamente tratados, receituários e registos do comércio que se praticava no século XII-XIII, entre Portugal e o resto do mundo. Os receituários e tratados que chegaram até aos dias de hoje datam, principalmente, de datas posteriores ao século XIII. No entanto, podem ser referidos alguns anteriores a essa data como Historia Naturalis (século I) de Plínio, o De Coloribus et Mixtionibus, o Mappae Clavícula e o De Diversis Artibus (sec. XII), todos eles descrevem a produção de pigmentos, mas não da sua aplicação em iluminura. Posteriormente ao século XIII, surgem outros tratados e receituários, principalmente dedicados à pintura, mas com referências à técnica de iluminura como O Libro dell’arte de Ceninno Ceninni (séc. XV) e o De Coloribus (séc. XIII-XIV). Dedicados só à iluminura existem pelo menos dois tratados com edição critica, um do século XIV: De arte illuminandi, provavelmente escrito por um monge italiano52 e outro datado do século XV, um tratado português, O livro de como se fazem as cores, escrito em antigos caracteres hebraicos, editado em 1928 por Blondheim53. Estes dois tratados são fontes importantes, pois foram escritos por praticantes, de uma forma clara, simples e detalhando minuciosamente os principais passos dos processos descritos, de forma a que qualquer um pode aprender a criar as suas próprias cores e a usá-las na arte da iluminura. Os pigmentos e os corantes descritos nestes dois tratados são quase idênticos, com algumas excepções, por exemplo nos azuis inorgânicos: no De Arte Illuminandi o lápis lazúli é considerado “o melhor dos azuis”, referindo também a azurite e o verdigris; n’O Livro de como se fazem as cores, só a azurite e o verdigris são citados. No tratado italiano é rara a descrição de receitas de pigmentos inorgânicos sintéticos, com excepção do ouro musivo, sendo apenas mencionados os materiais necessários para a sua produção, por exemplo enxofre e mercúrio para vermelhão; é ainda referido que vermelhão, vermelho e branco de chumbo se encontram tão facilmente que “não se demora no seu modo de preparação”. Por outro lado, no tratado português as descrições destes pigmentos são muito pormenorizadas, principalmente para o vermelhão, mas o branco de chumbo não é referido. Em ambos os tratados, os ligante recomendados são proteicos, no entanto o modo de a fazer é mais detalhado no De arte illuminandi. O douramento é também relatado em ambos os tratados.

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51. Com o conhecimento do século XXI é possível aprender mais sobre materiais e técnicas analisando o objecto, do que lendo os tratados técnicos medievais 52. BRUNELLO, F., (Ed) – De Arte Illuminandi e altri trattati sulla miniatura medievale. Vicenza: Neri Pozza Editore, 1992. 53. BLONDHEIM, S. – An Old Portuguese Work on Manuscript Illumination. JQR, 19 (1928) p. 97-135.


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54. Moura, Laura, Melo, Maria João, Casanova, Conceição, Claro, Ana, “A Study on Portuguese Manuscript Illumination: The Charter of Vila Flor (Flower Town), 1512”, Journal of Cultural Heritage, 8(2007), pp 299-306. 55. Lupa acoplada a uma câmara digital Leica Degilux 1, com fibra óptica Leica KL 1500 LCD.

2. Métodos de análise utilizados Os métodos de análise escolhidos tiveram como objectivo o estudo da construção da cor e da composição das tintas. Uma cor é construída com uma ou várias tintas; por sobreposição de camadas ou mistura (efeitos sobreposição/gradiente/matiz/incidir). Por sua vez uma tinta, é pelo menos, constituída por uma cola e um colorante. A cola, designa-se como ligante, serve para fixar a cor, e habitualmente quer-se transparente quando seca; o colorante pode ser um mineral, um composto inorgânico sintético ou um corante natural, extraído de certas plantas ou de insectos parasitas.

Composição das tintas / construção da cor: os materiais da cor e sua quantificação Foram escolhidas três técnicas de análise não invasivas ou de micro-amostragem no estudo da composição e construção da cor: uma técnica elementar, micro-EDXRF (microfluorescência de raios-X de energias dispersiva); e duas técnicas moleculares: micro-Raman (micro-espectroscopia de Raman) e micro-FTIR (micro-espectroscopia de Infra-Vermelho com Transformada de Fourrier)54. A análise molecular permite uma identificação rápida do composto, ao passo que a análise elementar dá uma informação dos elementos presentes nos compostos, não sendo por isso tão conclusiva. No entanto, o microRaman não permite uma análise quantitativa e assim, a micro-EDXRF foi fundamental para determinar quantitativamente a percentagem dos diferentes pigmentos presentes em cada cor. A complementaridade das informações fornecidas por estas técnicas de análise foi optimizada seguindo uma estratégia de análise que começou pela observação do manuscrito, fazendo uma selecção das iluminuras mais representativas da paleta de cores. Após esta selecção, observou-se minuciosamente cada iluminura ao microscópio55, apurando quais as áreas mais representativas para analisar com as restantes técnicas. Seguiu-se a análise por micro-EDXRF, in situ, que permitiu um primeiro rastreio da composição das tintas/ cores, indicando ainda algumas das áreas de análise para o microRaman. O micro-Raman é também uma técnica in situ, que permite analisar áreas de 4µm (com a objectiva 50x). Baseia-se na incidência de um laser monocromático (no presente estudo, 633nm) sobre a área de análise, obtendo-se um conjunto de raios difusos a diferentes comprimentos de onda – espectro de Raman. É especialmente eficaz na análise de pigmentos inorgânicos, porque cada composto permite a obtenção de um espectro/imagem característicos – a impressão digital do pigmento. A identificação do composto pode então ser feita por comparação com espectros de referência, aliada à interpretação do próprio espectro. Uma vez que as técnicas anteriormente referidas não permitem a análise de materiais orgânicos, como lacas e ligantes, foi necessário proceder à micro-amostragem sob observação ao microscópio e micro-ferramentas de amostragem, com posterior análise por micro-FTIR. Esta técnica permite identificar ligantes, corantes e cargas com base nas respectivas impressões digitais resultantes das vibrações inter-atómicas causadas pela absorção da radiação infravermelha. Para além disso, permite obter informação crucial sobre a composição das tintas, sendo a única das técnicas utilizadas que calcula as razões relativas entre pigmentos, cargas, ligante e ainda corantes.

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3. Fólios analisados No Livro das Aves foram analisados por microEDXRF56 17 fólios, num total de 205 pontos (três pontos por cada área de análise), que permitiram caracterizar a paleta utilizada neste manuscrito. Esta caracterização foi complementada pelas análises feitas com o microRaman57. A micro-amostragem, de 46 amostras, realizada in situ, de 14 fólios seleccionados permitiu caracterizar, através do microFTIR58, os componentes das tintas, como o ligante, a laca utilizada, as cargas utilizadas, os azuis e os verdes. No Apocalipse do Lorvão, foram estudados 24 fólios por microEDXRF, num total de 271 pontos (5 pontos/área de análise) para caracterização da paleta de cores. Por microRaman foram estudados 10 fólios. Procedeu-se ainda à recolha de 35 micro-amostras em sete dos fólios.

Glossário Os materiais pictóricos do Livro das Aves e do Apocalipse do Lorvão59 Azurite (2CuCO3.Cu(OH)2) Até ao século XVII a maior jazida europeia encontrava-se na Hungria60. Este mineral apresenta-se na Natureza, quase sempre, associado à malaquite (carbonato de cobre básico, mais abundante na Natureza do que a azurite). Na idade média torna-se um dos pigmentos mais utilizados, sendo a rota mediterrânica, nomeadamente Veneza, um ponto fundamental no abastecimento deste mineral na Península Ibérica.61 Apresenta a particularidade de não poder ser demasiado moído, sob pena de perder o croma azul que lhe é tão característico. Lápis lazúli (Na8[Al6Si6O24]Sn) Existem registos da sua utilização desde a Antiguidade, apesar de não existirem evidências da sua utilização nem por egípcios, nem por gregos ou romanos.57 Com um valor equiparado ao do ouro na Idade Média, o lápis lazúli era considerado, à época, o mais prestigiado dos pigmentos. Importado do norte do Afeganistão, adopta no início do século XIV o nome de azul ultramarino, para se distinguir da azurite62. Branco de Chumbo (2PbCO3.Pb(OH)2) Conhecido desde a Antiguidade, foi o pigmento branco mais importante e descrito como ideal para iluminura, por ter uma óptima consistência. Tanto Plínio como Vitrúvio descreveram como era preparado, colocando o chumbo em contacto com vapores de vinagre, num ambiente aquecido, o chumbo desintegrava-se dando lugar a um pó branco 57 - o branco de chumbo. Clara de ovo A clara de ovo é utilizada como ligante proteico desde a Antiguidade, tendo como período auge de utilização a Idade Média, não só pela sua transparência, mas também pelo brilho que conferia à camada pictórica. Contudo, a ausência de lípidos leva a que o filme se torne frágil e quebradiço com o tempo. Assim, era muitas vezes adicionada à clara de ovo um plastificante (como a cera), para aumentar a resistência mecânica do filme. O ligante utilizado é o soro obtido após repouso da clara “batida em castelo” .

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56. Espectrometro ArtTAX de Intax GmbH, com um ânodo de molibdénio (Mo), detector Xflash refrigerado por efeito Peltier, com resolução especial de 70 mm. Os parâmetros usados foram 40kV de voltagem, intensidade 300 mA, 100 segundos, com hélio. 57. espectrómetro Horiba Jobin Yvon, Labram (Laser He-Ne 632.817 nm, 17 mW) acoplado a um microscópio confocal com câmara de vídeo e fibra óptica integradas. Ampliação de 50x, potencia de feixe incidente 1.7 mW , tempo de exposição (5-20 segundos) e número de ciclos de acumulação (5-20 ciclos) variável com os pigmentos em análise. 58. Espectrómetro Continuµm e Nexus, com 128 varrimentos e uma resolução de 4 cm-1. 59. Para um glossário completo da iluminura medieval consultar glossário do “À descoberta da Iluminura medieval com o Apocalipse do Lorvão e o Livro das Aves”, acessível em formato pdf em http://www.dcr.fct.unl.pt/upload/department/Cadernos%20em%20Anexo.pdf 60. ROY, Ashok, (Ed) – Artist’s pigments, a handbook of their history and characteristics. Washington:National Gallery of Art, 1993. vol. 2 61. GLICK, Thomas, LIVESEY, Steven J., WALLIS, Faith, (Ed) – Medieval Science, Technology, and Medicine – an encyclopedia. Nova Iorque: Routledge, 2005. 62. MERRIFIELD, Mary – Medieval and Renaissance Treatises on the arts of Painting. New York: Dover Publications, Inc., 1999.


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63. EASTAUGH, Nicholas, WALSH, Valentine, CHAPLIN, Tracey, SIDDALL, Ruth – Pigment compendium – A dictionary of Historycal pigments. Oxford: Elsevier Butterworth-Heinemann, 2004. 64. BAT-YEMOUNDA, Monique Zerdoun, Les encres noires au Moyen Age (jusqu’á 1600), Centre National de la Recherche Scientifique, Paris, 1983. 65. NICHOLSON, Paul T., SHAW, Ian, (Ed) – Ancient Egyptian Materials and Technology. United Kingdom: Cambridge University Press, 2000.

Cola de Pergaminho A cola de pergaminho foi um ligante muito utilizado na Idade Média pela sua transparência pela fácil produção, já que é obtida por fervura de aparas de pergaminho em água. O colagénio extraído forma um gel razoavelmente rígido, que ao secar adquire propriedades adesivas. Grená de goma laca Começou por ser usada como corante, na Índia, por volta do século XVI a.C., existindo registos segundos os quais deverá ter começado a ser exportada para a Europa no início do século XIII57. O material corante encontra-se na excreção de insectos fitoparasitas que crescem na Índia e no Sudoeste Asiático. Desta excreção pode ser separada uma resina, uma cera e a matéria corante. Ligante Vulgarmente designados por “colas” ou “adesivos”, os ligantes são os materiais utilizados para fixar a cor a um suporte. Para além de colar os pigmentos ao suporte, o ligante deve permitir a obtenção de um revestimento coeso, homogéneo, de espessura fina e duradouro, ao qual se dá o nome de filme, película ou camada pictórica. Estes filmes obtêm-se por aplicação de uma tinta mais ou menos líquida. Após evaporação do solvente (processo físico), ou por reacção química, obtém-se uma matriz composta pelo ligante e por grãos de pigmento, dispersos o mais homogeneamente possível, coesos entre si e aderindo ao suporte. Os ligantes são, normalmente, longas cadeias moleculares, que designamos de polímeros, podendo ser de origem animal: proteínas, ou vegetal: polissacarídeos (gomas vegetais) ou triglicéridos (óleos). Mínio (Pb3O4) O mínio, ou vermelho de chumbo, é conhecido desde a Antiguidade. Segundo Vitrúvio, foi um produto obtido acidentalmente por aquecimento do branco de chumbo. Tal como o vermelhão, foi muito utilizado na elaboração de manuscritos desde o século VIII. Negro de carvão (C) Utilizado desde a pré-história nas pinturas rupestres, podia ser produzido a partir da combustão de matéria vegetal (carvão vegetal) ou de pó de osso, chifres ou dentes queimados (carvão animal), com posterior moagem do carvão formado. Tanto Plínio como Vitrúvio classificaram-no como negros artificiais63. Usado frequentemente como tinta para escrever quando misturado com um aglutinante, foi sendo substituído pela tinta ferrogálica, ainda que nos países orientais ainda seja correntemente usado. No entanto o seu uso como tinta para pintar não caiu em desuso.64 Ouropigmento (As2S3) Utilizado já na civilização egípcia como pigmento artístico na pintura mural e na decoração de sarcófagos65, foi especialmente utilizado na iluminura, em grande parte, graças à sua luminosidade como pigmento. A sua toxicidade foi aproveitada no período medieval como insecticida para tratar e proteger o pergaminho. A sua tendência para reagir com pigmentos à base de chumbo e cobre, aliada à elevada toxicidade, acabou por limitar o seu uso. Verdes sintéticos Um exemplo bem conhecido é o verdete (Cu(CH3COO)2[Cu(OH)2].2H2O), também designado por verdigris. Estes pigmentos sintéticos, baseados em acetato de cobre, podem apresentar diferentes tonalidades, dependendo da sua estrutura química ou do ligante utilizado; estas

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cores variam desde o verde, verde garrafa, verde-azulado até ao azul-esverdeado. Foram utilizados na Antiguidade não só como pigmentos (Plínio), mas também como cosméticos e medicamentos66. Na Idade Média e no Renascimento continuaram a ser muito usados, sendo produzidos, p.e., por exposição de placas de cobre a vapores de ácido acético (vinagre)57, o que origina o acetato de cobre básico, no entanto se este for dissolvido em ácido acético transforma-se em acetato de cobre neutro, verdigris. Muitas vezes substituiam a malaquite, já que não apresentavam problemas de alteração ou perda de cor64. Apresentam, contudo, um efeito corrosivo quando aplicados em pergaminho ou papel.

Vermelhão (HgS) Considerado o vermelho por excelência, começou por ser utilizado como pigmento na Antiguidade por moagem do mineral (cinábrio)64, estando sua principal fonte europeia localizada em Almadén, Espanha67. A partir do séc. IX começou a ser produzido por síntese a partir dos elementos que o constituem (mercúrio e enxofre). Por se tratar de um semicondutor, quanto mais moído for, mais bonita a cor que apresenta.

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o tecto da igreja do menino-deus: um “processo operativo” na construção do espaço perspéctico

La pittura è una arte mostruosa, ma accuratissima per l’imitazione delle cose naturali, la quale è composta di descrizzione, di lineamenti e di debita accomodazione di colori. Questa fu anticamente in tanta stima, ch’ella teneva il primo grado della arti liberali. Ella è però non meno libera che la poesia, come be disse Orazio (...) In Paola Barocchi, Scritti D’ Arte Del Cinquecento, tomo I, p. 751

Ainda não se conhece a data precisa de nascimento do pintor-decorador João Nunes de Abreu. No entanto, é provável que tenha nascido entre a década de oitenta e noventa do século XVII. De um modo geral a historiografia não acrescenta muito sobre a vida pessoal deste pintor e apenas Cirilo comenta alguns aspectos sem muitas informações, ao contrário de José da Cunha Taborda que nem o cita. Apelidado de Abreu do Castelo ou somente do Castelo, por residir dentro das muralhas do Castelo de São Jorge,1 entraria para a Irmandade de São Lucas em 22 de Outubro de 1719, e é constantemente citado entre 18 de Outubro de 1726 e 30 de Outubro de 1735. Nesta confraria teria feito os pagamentos até Dezembro de 1737, interrompidos no ano de sua morte em 1738.2 Poderíamos pensar que esta ocorreu de modo inesperado, pois os pagamentos aconteciam sistematicamente e de modo linear. Pouco se sabe da sua aprendizagem. Calcula-se que a sua formação como pintor ou como decorador tenha sido iniciada ainda nas últimas décadas do século XVII e amadurecida no começo do século seguinte através do contacto com a nova linguagem decorativa, além do relacionamento com os seus colegas. Segundo Cirilo, era quase pintor universal, mas o seu forte era a perspectiva e ornatos (...) pintou bem figuras e floresceu no princípio do século XVIII; segundo Francisco Xavier Lobo, morreu de muito estudar.3

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1. Cirilo Volkmar Machado, Colecção de Memórias (...), Lisboa, 1922, p. 145 e F. A. Garcez Teixeira, A Irmandade de São Lucas, Lisboa, 1931, p. 88. 2. F. A. Garcez Teixeira, op. cit. pp. 92, 93 e 95 e Cirilo Volkmar Machado, op. cit. p. 146. 3. Cirilo Volkmar Machão, op. cit. p. 146: esta última observação vem referida por Cirilo que deve ter consultado o manuscrito deste pintordecorador e filho do lendário António Lobo. Segundo informações deixadas por Reis Santos este importante manuscrito pertenceu à Biblioteca da Academia de Ciências de Lisboa, mas actualmente encontra-se desaparecido.


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fig.1 joão nunes de abreu, tecto da igreja do menino deus, lisboa, c. 1738. © cml/dmcru. fotografia de henrique ruas.

O contacto com a gramática decorativa de Vincenzo Bacherelli na primeira década do século XVIII foi crucial para a sua formação e desenvolvimento da decoração dos seus tectos pintados do tipo arquitecturas fingidas, tornando-se um dos melhores discípulos do mestre florentino. No circuito português, conviveu e participou em trabalhos conjuntos quer com quadraturistas quer com figuristas de grande peso durante as primeiras décadas de Setecentos. Ao longo da sua actividade teria travado conhecimento e parceria com muitos pintores, dos quais se destacam Vitorino Manuel da Serra, Jerónimo da Silva e André Gonçalves. João Nunes de Abreu é referido como o responsável pelos ornatos e figuras do tecto da portaria da Igreja da Graça (desaparecido), junto com Jerónimo da Silva e Vitorino

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4. Cirilo Volkmar Machado, op. cit. p. 145; Francisco Liberato Telles de Castro da Silva, Pintura Simples, Lisboa, 1898, p. 161; Fernando Pamplona, Dicionário de Pintores e Escultores, Lisboa, Livraria Civilização Editora, 2000, pp. 14-15 e Margarida Calado, “Abreu, João Nunes (Lisboa - 1738)”, in Dicionário Da Arte Barroca em Portugal, Lisboa, Editorial Presença, 1989, p. 13. 5. Francisco Liberato Telles de Castro da Silva, op. cit. p. 161. 6. Nuno Saldanha, “Jerónimo da Silva (act. C. 1700-1753)”, in A Pintura em Portugal Ao Tempo de D. João V – 1706-1750, Lisboa, IPPAR, 1994, p. 138.

fig.2 joão nunes de abreu, parte lateral do tecto da igreja do menino deus, lisboa, c. 1738. © cml/dmcru. fotografia de henrique ruas.

7. Ayres de Carvalho, D. João V e a Arte do seu Tempo, vol. II, 1962, p. 265 e Margarida Calado, “Abreu, João Nunes (Lisboa? – 1738)”, in Dicionário da Arte Barroca em Portugal, Lisboa, Editorial Presença, 1989, p. 13. 8. Citado por Margarida Calado, op. cit. p. 13.

Manuel da Serra.4 Ainda no mesmo templo, o historiador Francisco Liberato Telles viu no século XIX outras figuras (provavelmente painéis) da mão deste artista.5 Não se conhece a data destas intervenções na igreja da Graça, mas deve ter sido uma das primeiras obras já dentro da gramática baquereliana, provavelmente como ajudante de Vitorino Manuel da Serra (apesar de Cirilo afirmar que este teria feito somente as flores), artista mais experiente e um exímio preparador de cenas perspectivadas, que aqui poderiam ter sido executadas por João Nunes de Abreu e complementadas com figuras de Jerónimo da Silva. Outro trabalho realizado com Jerónimo da Silva e com outro figurista, André Gonçalves, vem referido em duas encomendas do ano de 1729. Trata-se em primeiro lugar de pinturas para os Arcos das Entradas Régias e depois, no mês de Maio deste mesmo ano, de outros doze painéis com cenas da Vida da Virgem para o corpo da Igreja de Nossa Senhora da Pena em Lisboa.6 Ayres de Carvalho, com base em documentos indicados pelo Dr. Manuel Rodrigues Simões, afirma que João Nunes de Abreu e outro lisboeta, Manuel Cerqueira Mendes, teriam dourado o retábulo da capela-mor da Igreja do Mosteiro de Arouca, em 1733.7 O Conde Raczyski lança a hipótese de um certo João Nunes de Abreu Gorjão, ser o autor de um desenho datado de 1734, que se encontra nas “Memórias de Malta.”8 A obra de maior destaque atribuída a este artista e que envolveu outros bons pintores do reino, foi a decoração do tecto da nave da Igreja do Menino-Deus (Fig.1 e 2), em Lisboa. Não se sabe a data precisa do início das obras de preparação da pintura e nem quanto tempo teria gasto para a sua total realização; todavia, pensamos que até o ano da morte de João Nunes de Abreu, toda a decoração deveria estar con-

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9. Honório Manuel Pereira Bonifácio, “MeninoDeus, Igreja de”, in Dicionário da Arte Barroca em Portugal, Lisboa, Editorial Presença, 1989, p. 269. 10. Filipe Blanch Diniz, “A Igreja do Menino Deus. Algumas especulações à volta do seu modelo geométrico”, in Vértice, .......pp. 41-45. 11. idem, ibidem, p. 41. 12. José Alberto Gomes Machado, André Gonçalves – Pintura do Barroco Português, Lisboa, Editorial Estampa, 1995, p. 192. 13. José da Cunha Taborda, Regras da Arte da Pintura, Coimbra, 1922, p. 247-248 e Cirilo Volkmar Machado, Colecção de Memórias (...), Coimbra, 1922, pp. 70-73. Veja ainda José Alberto Gomes Machado, André Gonçalves – Pintura do Barroco Português, Lisboa, Editorial Estampa, 1995, pp. 191-198, com uma leitura iconográfica. Sobre este o artista ver também Nuno Saldanha, Artistas, Imagens e ideias na Pintura do Século XVIII, Lisboa, Livros Horizontes, 1995, pp. 15-37. 14. Cirilo Volkmar Machado, Colecção de Memórias (...), Coimbra, 1922, p. 75 e José da Cunha Taborda, Regras da Arte da Pintura, Coimbra, 1922, p. 249-250.

cluída para a inauguração em 1737,9 faltando apenas complementar o frontão e as torres da fachada. Situada no Largo do Menino-Deus junto ao Castelo de São Jorge, na freguesia de Santiago, a Igreja do Menino-Deus foi mandada construir pelo rei D. João V e a primeira pedra posta em 4 de Julho de 1711, antes da fundação do Convento de Mafra. Esta Igreja é também conhecida por Recolhimento da Ordem Terceira de São Francisco de Xabregas, tendo o nome Menino-Deus origem a partir do momento que a escultura de um Menino Jesus foi oferecida ao templo por uma religiosa do Mosteiro da Madre de Deus. A catástrofe de 1755 respeitou este edifício e permitiu abrigar os cónegos da Sé. O projecto arquitectónico é atribuído ao mestre-pedreiro João Antunes (1645-1712), aluno na Aula do Paço fundada em 1647. É polémica a sua efectiva participação nas obras desta Igreja um ano antes de falecer, pois não teria muito tempo para acompanhar os trabalhos de execução, podendo apenas ser referido como provável autor do risco. A fachada principal está virada para Nascente junto ao edifício do recolhimento, considerada mais vigorosa no seu traçado e mais próxima dos formulários italianos de sabor romano. Não só a pintura do tecto deste templo apresenta um elaborado sentido geométrico, mas todo o seu projecto assenta-se num modelo espacial profundamente coerente sob o ponto de vista da idealização e sistematização do espaço interno, pois a planta desenvolve-se a partir de um quadrado regular, cujos lados delimitam a nave e a profundidade das capelas inscritas e de outro quadrado, com dimensões idênticas, com o mesmo centro rodado a 45º.10 Naturalmente, e para uma imediata visão do seu interior, apresenta uma planta cortada nos cantos transformando-se num octógono alongado: um rectângulo com ângulos cortados, que viria a ser moda.11 Além de toda esta estrutura externa acima mencionada e a coerência espacial do seu projecto, a riqueza do templo complementa-se não só pela decoração do tecto, numa das pinturas mais significativas do reinado de D. João V, mas também em toda a decoração pictórica que dá força monumental ao interior. A sua decoração interna iniciou-se a partir de 1730 e teve como responsável o artista lisboeta Vieira Lusitano, contando ainda com a participação do sevilhano André Rubira, em Lisboa desde 1733.12 As pinturas com os temas A Educação da Virgem (St.ª Ana), São Miguel, As Beatas Teresa, Sancha e Mafalda, A Estigmação de São Francisco e o Milagre das Rosas (Rainha Santa Isabel), são todas de André Gonçalves.13 Segundo Cirilo e Taborda, o painel de São Francisco recebendo as chagas é obra de Inácio de Oliveira Bernardes, completando o ciclo à Ordem Terceira franciscana.14 A iluminação de todo o interior da nave conta com oito pequenas janelas transformadas em espécie de tribunas por uma pequena balaustrada. Constitui-se num segundo andar decorativo antes da sanca que delimita o espaço da cobertura. A entrada de luz faz-se não só por estas janelas, mas também pelo óculo que se encontra acima do coro alto, tornando o lado da capela-mor mais claro e, portanto, alterando todo o sentido cromático deste lado em relação ao seu oposto. (Fig.3) Neste segundo andar, logo a seguir à primeira sanca na linha acima das capelas en-

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contram-se espécies de pilares ou colunas entre cada uma das janelas, que não têm a função de dar sustentação à parede, mas somente criar mais um efeito decorativo. Trata-se apenas de uma saliência em forma de voluta em sentido oposto, num detalhe decorativo que terá a sua continuidade reflectida em alguns momentos na decoração pictórica do intradorso da abóbada. A construção da cobertura deste templo apresenta-se de modo muito complexo, não se caracterizando por uma abóbada cilíndrica. Trata-se de uma abóbada pouco arqueada, rebaixada e que por isso teria dificultado muito o trabalho do preparador da cena perspéctica. Não se deve esquecer que as dificuldades estariam também relacionadas com a grossa moldura da parte central do tecto, talvez impedindo uma progressão maior a toda a cena, sempre no que diz respeito à visualidade a partir do ponto de vista do espectador. Contudo, numa descrição mais detalhada podemos dizer que todo o tecto (...) está como que suspenso numa intrincada mas belíssima rede de madeira de eucalipto que forma a grande altura várias “estrelas” entrecruzadas (...) a parte plana é formada por uma caixa-de-ar, ou seja, uma estrutura dupla de madeira, com tábuas corridas formando soalho, separada por frequentes e grossas traves ou barrotes de madeira das tábuas inferiores onde está colada a tela e executada a pintura. Estas últimas

fig.3 joão nunes de abreu, interior da igreja do menino deus, lisboa, c. 1738. © cml/dmcru. fotografia de henrique ruas.

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15. Ângelo Costa Silveira, Carmem Olazabal Almada e Luís Tovar Figueira, “Igreja do Menino Deus”, in Monumentos, n.º 10, Lisboa, 1999, pp. 77-85. 16. Magno Moraes Mello, A Pintura de Tectos em Perspectiva no Portugal de D. João V, Estampa Editorial, 1998. 17. idem, ibidem, pp. 183-192.

têm uma largura de 42 cm. e uma espessura de 3 cm., em madeira de castanho.15 A aplicação de uma tela colada no suporte de madeira foi um sistema frequentemente utilizado em igrejas de Lisboa.16 Ainda não se conhece a razão pela qual alguns artistas optaram por este sistema de tela aplicada à cobertura de madeira. Devido à sua grande dimensão, a tela era subdividida em tiras de pano (não necessariamente iguais) e depois aplicada ao suporte. Assim, era impossível antecipar a preparação do esboço da cena pretendida sobre a tela, antes da sua fixação no tecto, de modo a evitar algumas dificuldades na execução do trabalho em áreas pouco cómodas, como, por exemplo, nos quatro ângulos onde a deformação anamórfica era mais evidente. As questões relativas ao suporte são cruciais para o estudo da decoração dos tectos pintados em qualquer cultura artística. Através da sua análise é possível determinar a técnica, o modo de projecção das falsas arquitecturas, como ainda identificar o mecanismo de distribuição nas diversas etapas do trabalho.17 Estas questões esclarecem o grau de conhecimento específico para a realização desta forma decorativa e permitem avaliar a capacidade operativa dos artistas numa determinada época. A decoração perspectivada era um trabalho essencialmente executado por pelo menos cinco artistas, desde o quadraturista até o figurista, sem esquecer os respectivos auxiliares. No caso deste tecto da nave da igreja do Menino-Deus, este foi o esquema seguido. Ora, se a simples elaboração de um painel retabular exigia uma atenção especial por parte do pintor, além da presença de alunos ou discípulos, a preparação e execução de um tecto necessitaria da participação não só de um ou dois artistas, mas de um grupo de especialistas com tarefas bem definidas. No ordenamento das actividades impõem-se novas prioridades numa inédita subdivisão e participação para o bom andamento da obra. A presença do carpinteiro para a construção do andaime e a escolha do seu modelo era um factor indispensável e estabeleceria a fase inicial, pois era nesta estrutura que os artistas determinariam as dimensões das figuras e o seu escorço, além de construir uma estrutura que lhes permitisse controlar a evolução dos trabalhos não só no próprio local mas também a partir do pavimento. Daí seguem-se os trabalhos do preparador das cenas perspectivadas, os douradores, alguns mestres artesanais e aprendizes, e, por fim, a intervenção do figurista. Não obrigatoriamente nesta sequência, acreditamos que no tecto do Menino-Deus não só existiu tal especialização dos trabalhos, como também deve ter seguido uma linha muito próxima da que acima referimos. Dentre os diversos investigadores que se ocuparam em esclarecer alguns aspectos sobre a decoração do tecto do Menino-Deus, nota-se uma maior preocupação em relação à autoria e à cronologia. O cuidado em procurar entender o funcionamento destas especialidades que se formavam no seio da pintura decorativa; o sentido de imaginação que fundamenta e materializa um modelo específico; o conceito de uma nova espacialidade onde a perspectiva tornava-se o instrumento da pintura convertendo em realidade a imitação ou, neste caso em especial, transformando arquitectura em efeito pictórico e em espaço cenográfico, são questões que ficam em segundo plano ou mesmo esquecidas.

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Além destes dois itens acima sublinhados, a crítica de arte de um modo geral, e em detrimento de alguns dos tópicos enumerados por nós, acentua essencialmente apenas uma interpretação iconográfica. Ora, sabe-se que para além da interpretação temática e do seu estudo, o conhecimento das formas e sua função ou mesmo entender a ideia de espaço construído, é também conhecer parte do fenómeno cultural. Não se deve esquecer que a perspectiva como representação do mundo sensível tem a capacidade única de deixar no espectador um estigma. Este tipo de pintura está associado a um espaço homogéneo e contínuo, ou seja, um espaço físico mensurável. Sabe-se que a Igreja do Menino-Deus foi consagrada em 1737, mas que ainda não estaria completamente pronta. Acreditamos que nesta altura toda a decoração do tecto estava terminada, pois a morte de João Nunes de Abreu vem referida um ano mais tarde, e como principal responsável é bem provável que tenha terminado a decoração antes mesmo da sua morte. Todas as fontes consultadas apontam este lisboeta como principal responsável pela realização dos trabalhos decorativos. Entretanto, o risco teria sido realizado pelo preparador de cena, Vitorino Manuel da Serra. As fontes ainda referem Jerónimo da Silva como figurista responsável não só pelo painel central com o tema da Alegoria da Ordem Franciscana, mas também na elaboração das quatro virtudes cardinais: Temperança, Justiça, Força e Prudência.18 Em relação a estas figuras não parece haver dúvida sobre a presença de mãos diferentes, pois após o restauro chegou-se a conclusão que a pintura de falsa arquitectura apresenta uma cor quente e a pintura do quadro recolocado cores suaves e uniformes sobre ocres e castanhos.19 Quando Cirilo fala das obras de Vitorino Manuel da Serra, afirma ser sua a pintura deste tecto, juntamente com a da Igreja do Rato. Contudo, vimos que o panegirista Jerónimo de Andrade afirmava que este artista teria feito apenas o esboço para posterior execução da pintura, acrescentando que nunca dirigiu nenhuma obra, apesar de ter participado em todas aquelas de maior significado. Cirilo ainda nos diz que Pedro Alexandrino e José António Narciso, artistas de grande expressão na segunda metade do século XVIII, afirmavam que a decoração do Menino-Deus foi obra do quadraturista João Nunes de Abreu e que o tecto do Rato teria a assinatura de José António Narciso, conhecido na época pela alcunha de Bochecha.20 Desta confusão de autorias e diante do que em epígrafe se disse, acreditamos que Vitorino Manuel da Serra teria feito o esquiço e ajudado a preparar as projecções da falsa arquitectura, especialidade que o fez célebre nesta primeira metade do século. A presença de Jerónimo da Silva é bem determinada como figurista mais importante do reino nesta época, e, portanto, teria realmente feito ou dirigido a maior parte dos trabalhos de figuras neste tecto. Tal subdivisão dos trabalhos vem confirmar o facto de que nesta primeira metade do século XVIII a pintura decorativa em Portugal evoluiu em dois sentidos. Primeiro, passa por um processo de transformação formal e segundo, por uma especialização das tarefas junto à obra. Surgem o quadraturista e o figurista com funções diversificadas, mas interligadas entre si, como também os demais ajudantes e membros duma verdadeira equipa de trabalho.

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18. Cirilo Volkmar Machado, op. cit. pp. 145147. Muito importante é notar que as Virtudes teologais apresentam-se muito pequenas em relação à arquitectura pintada. O artista, neste caso, não soube dar a real dimensão geométrica para uma visão a partir de baixo. De modo pouco técnico tencionava criar “espaciosidade” entre o espectador e o mundo pictórico para mostrar que as figuras estavam localizadas distantes do observador. Repare-se que os balcões angulares praticamente absorvem todas as figuras que ali se localizam e em certa medida sente-se que o verdadeiro tecto se prolonga verticalmente num sentido ascendente. 19. Ângelo Costa Silveira, Carmem Olazabal Almada e Luís Tovar Figueira, “Igreja do Menino Deus”, in Monumentos, n.º 10, 1999, p. 81. 20. Cirilo Volkmar Machado, op. cit. p. 147.


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21. idem, ibidem, p. 145. 22. idem, ibidem, p. 155. 23. Inácio Vieira, Tratado de Perspectiva, Linha 3.ª, ponto 1º, modo pratico de delinear e o que nelle se deve acautelar, parágrafo 596: (...) para este uzo se por em praxe não requer no OPERANTE mais que boa inteligencia, boa vista e mão firme e constante; e nesta praxe que o instrumento mudo ensine a qual quer erudito mestre pintor e o estilo escritor não consinta que a mão de quem não sabe, nem entende as letras se desvie de formar muito bem os carateres supostos.

Não se pode deixar de lembrar que, enquanto Vitorino Manuel da Serra é sempre referido como homem que nunca dirigiu obra, João Nunes de Abreu é mencionado não só como pintor de perspectiva e ornatos,21 mas como mestre do pintor-decorador Feliciano Narciso (c.1710-1777), artista da segunda geração, mas com grande capacidade na produção de falsas arquitecturas, ocupando-se também de preparações cenográficas.22 Assim, é importante ver o desenvolvimento da arquitectura do engano em Portugal como um processo operativo23 muito mais que aplicativo em relação a regras pré-concebidas. A pura aplica de tais disposições (teóricas) regulares não encontra em Portugal uma estrutura linear. Esta operatividade está sedimentada no desenvolvimento cultural do panorama da pintura portuguesa entre os séculos XVI e XVIII. É este o conceito de espaço que temos que compreender e perceber junto ao processo inventivo dos preparadores de cenas perspécticas. Procurar um sistema pronto e vê-lo aplicado em pinturas setecentistas portuguesas é um engano. É neste sentido que, antes de confirmar a autoria a João Nunes de Abreu, é importante reforçar o papel de todo o grupo de pintores e decoradores que participaram activamente nesta empreitada. Quadraturistas, figuristas, ornamentadores e responsáveis pela direcção dos trabalhos, formam a estrutura necessária para a elaboração e finalização desta quadratura. Assim, devemos considerá-la a mais importante obra da primeira metade do século XVIII, sobrevivente da catástrofe de 1755. A pintura que se estrutura no intradorso da cobertura desta igreja organiza-se num apurado sistema de construção perspectivada dos elementos arquitectónicos. Num espaço octogonal, a quadratura é operada a partir da cornija em sentido verticalista, como se fosse romper o centro da abóbada numa abertura de grande porte. O espaço que seria dedicado ao arrombamento atmosférico transforma-se numa potente visão planimétrica como um nítido quadro recolocado. E este é envolvido por uma elaborada e real moldura de madeira com grande espessura, ocupando toda a parte do centro do tecto. O tipo de arquitectura escolhida distingue-se de algumas produções que a partir de 1740 se apresentam no panorama da pintura decorativa e que aqui, devido à escolha do modelo baquereliano, manifesta uma função bem mais delineada: ampliar o espaço interno e prolongar a espacialidade religiosa coroada no quadro recolocado, que substitui bem o arrombamento perspéctico. A composição escolhida pelos artistas para preencher a imensa tela que foi colada no suporte de madeira apresenta certas individualidades típicas da época, concernente aos elementos reais da arquitectura. Não se encontra, aqui os tradicionais fustes com capitéis compósitos, responsáveis pela pseudo ascensão da membrana arquitectónica, nem as corriqueiras soluções angulares copiadas do tecto da portaria de São Vicente de Fora (Fig.4) ou em duas salas do MNAA: a sala dos Alabastros e a da pintura Flamenga, esta última coberta e não visível. João Nunes de Abreu preferiu reutilizar os mesmos elementos que foram usados pelo arquitecto nas soluções aplicadas nas paredes laterais e também nos ângulos. Assim, a continuidade entre espaço real e fictício tornava-se evidente. As mísulas, o entablamento, os balcões no eixo longitudinal, os quatro arcos abatidos, os quatro balcões semicirculares nos ângulos chanfrados e as pilastras rectas ornadas em

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fig. 4 vincenzo bacherelli, pormenor da cartela e arco do tecto da portaria do mosteiro de s. vicente de fora, lisboa, 1710. © cml/dmcru. fotografia de henrique ruas.

grotesco, são os elementos que constituem a opção deliberada de João Nunes de Abreu, sem dúvida influenciado pelos desenhos e esquiços apresentados por Vitorino Manuel da Serra, artista que dominava perfeitamente o risco perspéctico. Todos estes elementos antecipam o que poderíamos chamar de plano superior em forma de terraço: este elemento aqui usado não aparece nos outros tectos que encontramos em Lisboa após a primeira metade do século XVIII. São formas que podem ter certa lembrança dos relevos da Antiguidade Clássica, reaproveitados no período renascentista e pós-renascentista por quadraturistas italianos, como por exemplo, o genovês Giovanni Andrea Carlone, que antes de 1630 usa estes mesmos elementos na decoração do Palácio Rosso, em Génova. Vamos reencontrar estas mesmas formas de preenchimento dos espaços na decoração do tecto da Capela dos Reitores, em Coimbra, obra de António Simões Ribeiro entre 1723 e 1725. A função deste elemento, se é que o podemos chamar assim, é apenas a de ocupar espaço e fazer sobressair o centro atmosférico, que aqui está isolado pela pesada moldura. Não tencionamos relacionar a obra de Carlone com a decoração dos tectos em Lisboa: fica apenas um ponto de referência O que pretendemos afirmar é que estes modelos ou fragmentos decorativos circulavam por toda a Europa e Portugal não ficou à margem. As mesmas estilizações podem ser vistas no desenho preparatório para um tecto no Palácio do Buen Retiro,24 executado em c. 1658 por Angelo Michele Colonna e Agostino Mitelli, desenho este conservado no Museu do Prado em Madrid. Estes elementos são novamente visíveis

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24. Martin Kemp, La Scienza Dell’Arte – Prospettiva e Percezione Visiva da Brunelleschi a Seurat, Firenze, Giunti, 1994, p. 121. 25. Alfonso E. Pérez Sánchez, Pintura barroca en España – 1600-1750, Cátedra, 1996, p.342. Este pintor morre em 1683 e foi o mais hábil pintor de fresco da corte espanhola. No entanto, não há nenhuma obra actualmente que possa ser seguramente comprovada como sua.


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25. Alfonso E. Pérez Sánchez, Pintura barroca en España – 1600-1750, Cátedra, 1996, p.342. Este pintor morre em 1683 e foi o mais hábil pintor de fresco da corte espanhola. No entanto, não há nenhuma obra actualmente que possa ser seguramente comprovada como sua. 26. Magno Moraes Mello, op. cit., pp.128 e 194

na decoração da escadaria do Convento das Descalças Reais em Madrid, obra do pintor régio Dionisio Mantuano executada em 1668.25 Retomando o discurso específico em torno da análise da decoração da nave da Igreja do Menino-Deus, nota-se que logo a seguir à sanca projecta-se para o espaço do espectador uma forte e pictórica balaustrada, que circunda toda a cobertura. Mais elaborado nos vértices do que no corte transversal, o fragmento da balaustrada acima da capela-mor apresenta uma tonalidade mais escura e nitidamente sombreada, pois encontra-se do lado oposto ao do óculo. Desprovida de iluminação directa, este lado foi intencionalmente banhado pela sombra, salientando a sensibilidade de observação por parte dos executores para compensar a dimensão interior e o real equilíbrio cromático de toda a cena. Individualizam-se, neste caso, dois planos: o circundante da balaustrada, povoada por putti e figuras alegóricas e a projecção em alçado por trás dela a criar verticalidade ao cenário. A invenção desta quadratura reflecte os ideais formais e estéticos presentes na obra de Vincenzo Bacherelli e que foram promotores de duas gerações de pintores-decoradores. Repare-se como o arco abatido no eixo transversal, formado por duas volutas ladeadas por dois putti, ornado com grinaldas e vasos de flores, assemelha-se muito ao modelo usado em São Vicente de Fora. Desviando a atenção dos elementos de estrutura formal e voltando o nosso olhar ao tema figurativo do quadro recolocado, assistimos à manifestação de Cristo a Santo António. Esta aparição acontece num aglomerado de nuvens, figuras de monjas, anjos e putti rodeados por uma luz celestial, mais luminosa e atmosférica próxima de Cristo. Todo o resto do painel desenvolve-se num cromatismo de maior contraste, menos luminoso, mas caracterizando-se por efeitos de vibração de todo o conjunto das formas. Uma dualidade entre o mundo divino e o dourado da luz celestial (espaço místico) em relação ao plano terreno com uma luz natural e mundana (espaço físico). Todo este grupo figurativo está condicionado a uma visualidade frontal e plana, onde nem mesmo o efeito de tridimensionalidade ou os efeitos de distanciamento são vistos ou acentuados.26 Como já salientámos, a moldura que separa a quadratura do quadro recolocado não é pictórica e nem estucada, mas real. O jogo de visualidade encerrase simplesmente no facto do espectador ver a moldura como pintura e a pintura de falsa arquitectura como real prolongamento do interior do edifício. O sentido da planimetria era inevitável, pois com uma moldura nestas dimensões seria (quase) impossível dar sentido de verticalidade e arrombamento atmosférico com figuras escorçadas num sentido de transgressão espacial. Todas as figuras apresentam-se do mesmo tamanho e, portanto, sem nenhum conceito ou aplicação de grande afastamento. No caso da pintura de tectos com representação de elementos arquitectónicos falsamente construídos, é importante observar três modos. Um em que a figura mantém uma integração com a falsa arquitectura, muitas vezes inserida nos próprios elementos arquitectónicos outro em que estes elementos flutuam em diversas direcções e não se inscrevem directamente na quadratura. Não necessariamente um modo ou uma tipologia, é a presença das figurações expostas no quadro central, que algumas vezes aparecem numa disposição oblíqua ou frontal e, neste

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último caso, organizados num eixo perpendicular ao olho do espectador no centro do espaço e com visão zenital. Nesta última situação muitas vezes as figuras só aparecem no quadro central, onde a quadratura apresenta-se como pesada moldura ou uma espécie de separador entre duas realidades. É o caso da decoração do tecto da Igreja do Menino-Deus, em que a força figurativa acontece somente no centro do suporte, apesar de nos quatro ângulos apresentar representações de figuras alegóricas. Ora, quando observamos este tecto como um todo, o que chama a atenção em primeiro lugar não são estas figuras situadas nos balcões semi-circulares, mas a força expressiva da dinâmica do centro figurativo. É que para uma correcta análise destes elementos compositivos temos que ter em mente a diferença entre visão frontal e visão escorçada. Aqui, a quadratura está rigorosamente escorçada e as figuras do centro figurativo estão rigorosamente em visão frontal, não indo nem mesmo a variação entre as figuras que estão num plano mais afastado e outras que se apresentam num plano mais próximo do espectador. A falsa arquitectura está em escorço, mas as figurações no centro do painel são apresentadas ao espectador de modo frontal. Numa tentativa de entender a construção perspéctica desta pintura, deixando de lado os elementos figurativos que foram agora vistos, este tecto organiza-se numa composição com quatro pontos de fuga. Uma escolha deliberada, sem o rigor da tratadística e da geometria, mas de acordo com a organização do espaço interno do ambiente. Era a necessidade de mostrar toda a cena não apenas para um único espectador. Na verdade, a intenção dos artistas era a de permitir que um número maior de fruidores integrassem uma ilusória participação no plano divino, mesmo que isso significasse uma visão menos correcta geometricamente: não se pode esquecer que o centro figurativo optou por uma visão frontal e sem o compromisso com figuras escorçados. Esta sistemática de pontos de fuga era uma preocupação constante por parte dos mais prestigiados quadraturistas, e aparece na tratadística especializada desde os séculos XVI e XVII. Apenas como título de lembrança, as obras de Tommaso Laureti (1530-1602), considerado um dos grandes pintores de perspectiva do fim do século XVI e autor de um instrumento para a demonstração do princípio perspéctico, ilustrado na publicação do Due Regole de Vignola-Danti em 1585, pode ser considerado o mais significativo estudo e que mais influenciaria uma enorme gama de perspécticos ao longo dos tempos. Na sucessão dos grandes quadraturistas pode-se citar o nome de Girolamo Curti (1570-1632), che incorporava motivi architecttonici barocchi entro schemi ostinatamente impostati su único punto di fuga, como gli era stato insegnato, invece di adottare i sisteme più sciolti di Annibale Carracci e Pietro da Cortona.27 Segundo Martin Kemp, posterior a esta primeira fase dirigida por Girolamo Curti, il compito di fondere la tradizione bolognese com le nuove idee romane fu lasciato ai suoi sucessori, Angelo Michele Colonna e Agostino Mitelli.28 O ponto de fuga central era na pintura de falsa arquitectura do século XVI e XVII confundido com um sinal de rigor geométrico, além de uma nítida proximidade com a tratadística coeva. Girolamo Curti formou-se nos tratados de Vignola e de Sebastia-

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27. Martin Kemp, La Scienza Dell’Arte – Prospettiva e Percezione Visiva da Brunelleschi a Seurat, Firenze, Giunti, 1994, pp. 93, 121. 28. dem, ibidem, p. 155.


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fig.5 antonio palomino, el museo pictórico y escala óptica , lamina 1.ª, tomo ii, figura iv.

29. Francesco Negri Arnoldi, “Prospettici e Quadraturisti”, Enciclopedia Universale dell’Arte, Vol. XI, p. 107.

no Serlio, transmitindo aos seus sucessores um modelo arquitectónico teoricamente aplicável.29 No entanto, quando não era possível condicionar a superfície pintada a uma coerência unificada, subordinando todas as formas a um correcto ponto de fuga, ou seja, sempre que o espaço a representar fosse demasiado largo ou longo criando a obrigatoriedade desta centralidade única das linhas de fuga, Colonna usava sistemas menos rígidos para atenuar o escorço arquitectónico e figurativo. Para tal, usava elementos arquitectónicos curvos, para evitar a leitura mais definida de todo o espaço representativo. Este sistema pode ser usado em qualquer tecto que incor-

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pore as mesmas características materiais acima mencionadas. Assim, a sua intenção era a de criar volume e certa plasticidade onde os elementos perspectivados do lado longo não ficassem escorçados para o ponto de fuga central, mas reencaminhados para dois pontos de fugas laterais. Este esquema parece reaparecer em algumas das obras portuguesas, como é o caso da pintura do tecto da Igreja do Menino Deus, onde pretende recriar a simulação proposta pelos artistas: uma quadratura aplicada a partir da sanca real que cria uma abertura rectangular no cimo do suporte, com certos preciosismos para desfrute de observadores cultos. Deve notar-se que a construção do espaço perspéctico com quatro pontos de fuga foi exemplificada muito bem pelo tratadista espanhol Antonio Palomino, na obra El Museo Pictórico y Escala Óptica, publicado em 1724 (Fig.5). Na lámina 1º, tomo II da figura IV, do capítulo IV, o tratadista espanhol trata especificamente da perspectiva dos tectos. Neste ponto Palomino justifica o uso de quatro pontos de fuga organizados no eixo longitudinal e transversal. É possível pensar que este texto tenha circulado em Portugal entre a década de trinta e quarenta e que João Nunes de Abreu poderia ter usado o mesmo sistema criando um processo operativo mais próximo da cultura portuguesa daquela primeira metade do século XVIII. Esse perspéctico português conheceu bem este princípio de construção arquitectónica e o exemplo da pintura do intradorso da igreja do Menino Deus é um dos mais significativos espécimes da apropriação do modelo baquereliano em Lisboa.

Magno Mello Instituto de Estudos Medievais, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa.

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jóias, retratos e a iconografia das elites portuguesas de oitocentos

Introdução 1. *Professor Auxiliar com agregação da Escola das Artes da Universidade Católica Portuguesa. Vd. o nosso SOUSA, Gonçalo de Vasconcelos e – A colecção de retratos de malteses do Paço de Gominhães. Filermo. Porto: Assembleia dos Cavaleiros Portugueses da Ordem Soberana Militar de Malta. 2 (1993), pp. 51-84. 2. Em algumas famílias, nomeadamente da província, foram mandadas fazer galerias de antepassado, por iniciativa de algum dos seus membros (sécs. XVIII/XIX). Um destes exemplos pode ser encontrado nos Melo Pereira de Sampaio, do Paço de Pombeiro de Riba Vizela, em Felgueiras, e da Casa de Sabadão, em Ponte de Lima, tendo sido realizado um conjunto de mais de duas dezenas de pinturas de sucessivas gerações de membros masculinos desta família, provavelmente na primeira metade do século XIX. Esta colecção foi depois levada para a Casa de Sezim, em Guimarães, onde permanece em parte, encontrando-se a restante parte em distintos membros da família Pinto de Mesquita. Poderiam ser igualmente referenciados casos distintos de uma verdadeira mitificação dos antepassados, fruto de uma mitomania nobiliárquica vigente em algumas famílias ou personagens, mas por uma questão de reserva não nos alargaremos na abordagem desta interessante matéria.

O significado atribuído pelas elites aos diversos objectos de que se rodeavam vem merecendo um crescente interesse por parte de alguns sectores da comunidade científica. Às pratas, às jóias e aos tecidos vêm também juntar-se os retratos dos próprios ou as galerias dos seus antepassados 1, em figuração real ou imaginada 2. De facto, a encomenda de retratos esteve reservada às elites mais elevadas, especialmente até ao final do século XVIII, tendo-se assistido a uma abertura do perfil social dos retratados a partir do século XIX3. Tomar a percepção da importância da joalharia figurada nos espécimes oitocentistas 4 femininos e masculinos é o propósito deste artigo, objectivando-se a relevância de determinados espécimes de joalharia nesta ou naquela fase e de que modo funcionam como expressão de classe social. A vontade explícita de deixar para a posteridade a imagem da pessoa retratada, associada ao prestígio em vida que o retrato – ou até uma série de retratos5 – evidenciava, constitui um dos meios mais curiosos de apurar o potencial simbólico desta expressão artística. Estas representações de homens, mulheres ou crianças, sozinhas ou em grupos mais ou menos numerosos, eram também passíveis de ser contempladas pelos seus contemporâneos, que com eles conviviam. Noutros casos, tratar-se-ia de objecto de memória junto dos filhos6 que se ausentavam de casa, funcionando como uma recordação dos pais7, sobretudo na época em que a fotografia ainda não existia. São muitos e diferenciados os objectivos que norteariam a execução de um retrato por uma personagem das elites. Para além da pujança das jóias que nele podem figurar, o retrato é naturalmente revelador da personalidade daquele que nele se encontra representado – ou da intencionalidade de alguém por ele(a) –, dos seus gostos e convicções, para além, naturalmente, das suas próprias características físicas. Dois exemplos do século anterior ao que este estudo versa podem ser referenciados como casos paradigmáticas. Neles estão presentes duas senhoras coevas, mas cuja figuração revela, contudo, posturas muito diferenciadas:

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3. Vd., a título exemplificativo, a dissertação de MORAIS, Maria Antonieta Lopes Vilão Vaz de – Pintura dos séculos XVIII e XIX na galeria de retratos dos benfeitores da Santa Casa da Misericórdia do Porto. Porto: [s.n.], 2001. Dissertação de Mestrado em História da Arte apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto. 3 vols; ou MAGALHÃES, João de Noronha e Távora – A colecção de retratos de benfeitores da Ordem Terceira do Carmo [Porto]. Porto: [s.n.], 1998. Trabalho apresentado à disciplina de «Metodologia de Investigação II», da Licenciatura em Arte da Universidade Católica Portuguesa. 4. Uma parte deste artigo toma por base a investigação sistematizada in SOUSA, Gonçalo Mesquita da Silveira de Vasconcelos e – A joalharia em Portugal no século XIX. Porto: [s.n.], 2006. Plano de aula apresentado no âmbito das provas de habilitação ao título de agregado, na especialidade de História da Arte, pelo Departamento de Ciências e Técnicas do Património da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. 5. Veja-se o caso do negociante de grosso trato da cidade do Porto Constantino António do Vale Pereira Cabral, de que se conhecessem, pelo menos, quatro retratos, sendo dois deles miniaturas. Cfr. FERREIRA, Damião Vellozo; SOUSA, Gonçalo de Vasconcelos e – Os fundadores do Club Portuense e a sua descendência. Porto: [s.n.], 1997, vol. 3, extratexto entre pp. 42-43 e pp. 48-49.

fig.1 retrato de senhora da família dos marqueses de alorna, apresentando jóias em pérolas e pedraria e com um medalhão oval preso ao vestido, finais do séc. xviii (vendido na leileoira palácio do correio-velho, em dezembro de 1996).

Retrato da Marquesa de Pombal, D. Leonor Ernenstina Wolfanga Daun (17211789), que, na pujança do seu estatuto de quase primeira senhora do Reino, se fez apresentar pejada de jóias, espalhadas por várias zonas do corpo e também, como hábito na época, cosidas ao vestido8. Retrato da Marquesa de Ponte de Lima, D. Eugénia de Bragança (1725-1795), de uma família puritana, facto evidenciado na simplicidade do traje, mesmo daquela que seria, pelas funções de seu marido e pelo seu nascimento, uma das mulheres mais

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6. Os retratos dos 1.ºs marqueses de Ponte de Lima hoje presentes no acervo de D. Maria João de Lancastre e Távora (Abrantes) podem ter a sua origem no casamento celebrado em 1780 entre o 5.º Marquês de Abrantes, D. Pedro, e a sua mulher, D. Maria Joana Xavier de Lima. Vd. a sua publicação in SOUSA, Gonçalo de Vasconcelos e – A joalharia em Portugal: 1750-1825. Porto: Livraria Civilização, 1999, pp. 68 e 159. 7. Outro caso existia na Casa de Sezim (hoje dispersos entre os descendentes), com elementos da família da casa da Fábrica, no Porto, nomeadamente os retratos do Doutor Domingos Luís da Silva Souto e Freitas (colecção de D. Margarida Cabral de Moncada) e de sua mulher D. Ana da Natividade e Faria (vd., por exemplo, SOUSA,


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Gonçalo de Vasconcelos e – A joalharia no Porto nos finais do século XVIII: Aspectos socioartísticos. Porto: [s.n.], 1996. Dissertação de Mestrado em História da Arte apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Vol. 1, figs. 151-152, da colecção de D. Maria José Pinto de Mesquita). A sua presença deriva da circunstância do casamento de José de Freitas do Amaral (1748-1813) com D. Antónia Genoveva da Silva Souto e Freitas († 1802). Os retratos deste casal possuem inclusivamente molduras idênticas aos que ficaram na Casa da Fábrica e que ainda hoje perduram na posse dos descendentes desta casa portuense (Ferrão de Tavares e Távora e, também, na casa da Boa-Viagem, na Areosa, Viana do Castelo). 8. Retrato publicado inicialmente em GALVÃOTELLES, João Bernardo; SEIXAS, Miguel Metelo de – Sebastião José de Carvalho e Melo 1.º Conde de Oeiras e 1.º Marquês de Pombal: Memória genealógica e heráldica nos trezentos anos do seu nascimento (13 de Maio de 1699-13 de Maio de 1999). Oeiras: Universidade Lusíada; Câmara Municipal de Oeiras, 1999, pp. 26 e 92; posteriormente, em SOUSA, Gonçalo de Vasconcelos e – A joalharia em Portugal: 1750-1825. Porto: Livraria Civilização, 1999, pp. 170-171.

fig.3 retrato a óleo sobre tela representando a viscondessa de menezes, d. carlota emília de mac-mahon pereira guimarães, pintado em 1859 por seu filho, o pintor visconde de meneses. a titular apresenta o retrato de seu marido, o 1.º visconde, ao peito (antiga colecção do dr. ricardo do espírito santo silva, vendido na leiloeira palácio do correio-velho, em 6 de dezembro, s/ind. ano).

importantes da Corte; possui apenas algumas flores no cabelo e diadema simples. Na generalidade dos retratos femininos do século XVIII, as jóias desempenharam um papel muito relevante, seja pela sua presença – por vezes em excesso –, seja pelo significado da sua ausência. Torna-se perceptível pela observação de numerosos retratos de personagens femininas de famílias da província do século XVIII e de transição

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para o século XIX, que a figuração com vasta quantidade de jóias funcionava como factor de dignificação social, o que não sucedia tão amiudadamente nas famílias da Corte. Os retratos de D. Ana Cândida Veloso de Azevedo Ferreira (Colecção da Santa Casa da Misericórdia do Porto9) e de D. Joana Quitéria Pereira de Barros, como a extraordinária quantidade de jóias com que se fizeram retratar, fazem eco de uma vontade provinciana de expressar a sua preponderância social – ou vontade de a possuir – através de uma vasta quantidade de peças de joalharia, ao jeito de uma quase montra de ourivesaria. Mas como interpretar, neste contexto, a atitude referida supra da segunda mulher de Pombal; pretender-se-ia expressar como uma Rainha? É que, de facto, as personagens da Família Real eram retratadas com múltiplas jóias. Se tal é visível em Setecentos em diversas representações de membros da Família Real, podemos continuar a percepcioná-lo em alguns casos na centúria de Oitocentos, com especial destaque para, no início da centúria, da figura de D. Carlota Joaquina, e, já nos últimos reinados dos Bragança, de das rainhas D. Maria Pia e D. Amélia.

9. Publicada em SOUSA, Gonçalo de Vasconcelos e – A ourivesaria no Porto nos séculos XVIII e XIX: I – As jóias (séc. XVIII). O Tripeiro. Porto: Associação Comercial do Porto. 7.ª s., 14 (1-2) (Ag. 1995), p. 24; posteriormente analisada em SOUSA, Gonçalo de Vasconcelos e – A joalharia no Porto nos finais do século XVIII: Aspectos socioartísticos. Porto: [s.n.], 1996. Dissertação de Mestrado em História da Arte apresentada à Faculdade de Letras da Univ. do Porto. Vol. 1, fig.147.

Os retratos de personagens femininas

11. Vd. diversas representações de D. Carlota Joaquina, apresentando em figuração uma miniatura de seu marido, D. João, in SOUSA, Gonçalo de Vasconcelos e – A joalharia no Porto nos finais do século XVIII: Aspectos socioartísticos. Porto: [s.n.], 1996. Dissertação de Mestrado em História da Arte apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Vol. 1, fig. 62; ou, noutro exemplar, IDEM, A joalharia em Portugal: 17501825. Porto: Livraria Civilização, 1999, p. 114.

Nos retratos femininos, há que diferenciar os exemplares de influência neoclássica e Império, dos puramente românticos. Nos primeiros, é ainda clara uma ideia de simplicidade, como se pode observar no retrato de uma senhora da família Alorna 10 (vd. Fig.1), em que, para além das pérolas, não só nos brincos como igualmente no colar, se salienta uma jóia representando provavelmente seu marido, e que pende do peito da retratada. De facto, nos retratos de finais de Setecentos – como sucede neste e num de D. Carlota Joaquina11, em que figura seu marido, o príncipe D. João – e no dos primeiros tempos de oitocentos, são visíveis jóias com figurações dos maridos, tanto em pendentes ovais, como rectangulares. Do primeiro quartel do século XIX, a miniatura da indomável marquesa de Chaves, D. Francisca Xavier Teles da Silva, permite perscrutar a figura de seu marido, Manuel da Silveira Pinto da Fonseca, 1.º marquês de Chaves e 2.º conde de Amarante. O general absolutista encontra-se presente numa miniatura rectangular, rodeada de pedraria, pendendo do vestido ainda de sabor Império envergado pela titular. Por entre uma rica jóia de cabeça, ao jeito de diadema e decorado com motivos florais, e um colar de rosetas florais, muito provavelmente em diamantes, esta peça figurativa enquadra-se na produção da joalharia portuguesa do primeiro terço de Oitocentos. Esta tradição da representar a imagem do ser amado em alfinete ou pendente não se extingue no primeiro terço de Oitocentos, havendo exemplos posteriores observáveis em retratos pertencentes a diversas colecções particulares e datáveis de um período que se prolonga até ao último quartel da centúria, inclusive. É deste facto evidência o retrato da Viscondessa de Meneses, D. Carlota Emília de Mac-Mahon Pereira Guimarães, pintado em 1859 por seu filho, o pintor Visconde de Meneses (vd. Fig.3). A persistência deste hábito justifica-se plenamente à luz da mentalidade da época,

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10. No catálogo do leilão do Palácio de CorreioVelho de Dezembro de 1996, em que figura com o n.º 361, surge referenciada como a 2.ª Marquesa D. Isabel de Lorena, mas as datas do quadro não coincidem com os dados desta titular, já que este exemplar é claramente neoclássico e, portanto, dos finais da centúria de Setecentos. Poderse-á tratar de um retrato de natureza evocativa?


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12. Publicado in SOUSA, Gonçalo de Vasconcelos e – A joalharia feminina e o seu significado social e económico em Portugal. Museu. Porto: Círculo Dr. José de Figueiredo, 4.ª s., 13 (2004), p. 28.

fig.4 retrato da condessa de alpendurada, com adereço formado por jóias seguindo o modelo em pampilles (colecção da casa da companhia, paço de sousa).

pois se nas primeiras manifestações deste género o que estava em causa era uma expressão de um pré-romantismo, nos exemplares dos finais do século XIX a matriz revelava-se já de um romantismo maturado e assumido. Estas jóias podem ter sido oferecidas em ocasiões especiais, transmitindo uma ideia de sentimento, fenómeno muitas vezes imperceptível no próprio objecto, pelo que se perdeu na memória do tempo. Outras vezes, o sentimento amoroso aparece referenciado na própria peça, através de uma legenda. Tal é visível no medalhão em ouro baixo com o retrato miniatura de D. Ana Margarida de Freitas do Amaral e Melo, através da legenda «SENTIR-SE, OH! DEI, MORIR; É NON POTER MAI DIR = MORIR MI SENTO!», e na objecto precioso figura igualmente o monograma de seu marido, João de Melo Pereira de Sampaio12.

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13. Vd. a sua reprodução parcial in SOUSA, Gonçalo de Vasconcelos e - Da joalharia setecentista aos eclectismos do século XX em Portugal. In MARQUES, Maria da Luz Paula, coord. – Colecção de jóias: Marta Ortigão Sampaio. [Porto]: Câmara Municipal do Porto; Casa Museu Marta Ortigão Sampaio, [1997], p. 44. 14. Vd. a sua reprodução in RIBERA, José António Moya; MAGALHÃES, Artur Monteiro de – A descendência do 1.º barão e 1.º visconde de Alpendurada. Lisboa: Dislivro Histórica, 2004, p. 34.

fig.5 miniatura da viscondessa da regaleira, d. ermelinda allen monteiro de almeida (1768-?), com diversas jóias em diamantes (colecção da casa de vilar d’allen, porto).

Dentro das jóias das elites, alguns retratos apresentam as personagens com vasta quantidade de jóias de dimensão aparatosa. É disso exemplo claro a pintura de corpo inteiro, presente na Casa de Infías, em Braga, e em que se encontra figurada a Condessa de Vila Pouca, D. Maria Antónia Leite Pereira de Melo. Saída do pincel do pintor retratista António Augusto da Silva Cardoso, será posterior a 187013. A velha nobreza também pretende passar à posteridade adornada de peças valiosas, mas, no que se nos tem sido dado verificar, esses casos começavam, nesta época, a ser cada vez mais raros. Tal não é, no entanto, de estranhar, em algumas figuras de pergaminhos de fresca data. Nos titulares recentes e de origem marcadamente burguesa, mas de expressão possidente, podemos observar a presença de imponentes adereços de diamantes. Vejam-se os casos do retrato daquela que surge identificada como a segunda mulher do 1.º Visconde de Alpendurada, D. Maria das Neves Correia Leal14, com um imponente alfinete de pampilles, muito ao gosto do 3.º quartel do século XIX.

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15. Vd. a sua reprodução in SOUSA, Gonçalo de Vasconcelos e – A joalharia em Portugal nos séculos XVIII a XX: análise socioartística. In SOUSA, Gonçalo de Vasconcelos e, dir. – Reais jóias no Norte Portugal. Porto: [s. n.], 1995, p. 31 (parcial); RIBERA, José António Moya; MAGALHÃES, Artur Monteiro de – A descendência do 1.º barão e 1.º visconde de Alpendurada. Lisboa: Dislivro Histórica, 2004, p. 181 (total). 16. Publicada no nosso SOUSA, Gonçalo de Vasconcelos e – A joalharia em Portugal nos séculos XVIII a XX: análise socioartística. In SOUSA, Gonçalo de Vasconcelos e, dir. – Reais jóias no Norte Portugal. Porto: [s. n.], 1995, p. 31.

Da década de 1860, a pintura matriarcal da condessa de Alpendurada, D. Josefina Augusta Vieira de Magalhães15 (vd. Fig.4), acentua o que havíamos observado naquela sua familiar, o que se percepciona através do grandioso adereço de diamantes formado por alfinete de peito (será o mesmo da anteriormente referida viscondessa de Alpendurada?), colar com centro em pingentes e brincos semelhantes. A titular apresenta ainda duas pulseiras de dimensão considerável. Havíamos já constatado esta explosão diamantífera numa miniatura da primeira metade da centúria de Oitocentos, representando a Viscondessa da Regaleira, D. Ermelinda Allen Monteiro de Almeida16 (vd. Fig.5). Rica, com grossos cabedais, a titular fez-se retratar repleta de peças de joalharia executadas com essa gema.

fig.8 pormenor do retrato de d. lucrécia júlia doroteia teixeira de figueiredo, pintada por almeida santos, em 1848 (colecção da casa do casal de s. nicolau, em cabeceiras de basto).

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Outra pedra com figuração habitual nos retratos oitocentista é a ametista, presente em algumas jóias de porte assinalável. A partir da primeira metade do século XIX, esta gema começa a ser utilizada em larga escala17, sendo especialmente visível em peças actualmente em colecções do Norte de Portugal, e mesmo até na cidade do Porto. Exemplo disso surge no retrato da condessa de Camarido, pertencente à Casa de Santo Antonino, em Alvite, Cabeceiras de Basto18. A pintura apresenta um adereço formado por colar de pedras de grandes quilates, brincos e alfinete oval, e, conquanto a pintura não se afirme de grande minúcia pictórica, permite evidenciar a importância das gemas. Na representação iconográfica da baronesa de Mogofores, D. Ana Felícia de Seabra e Sousa (1791-c.1872), irmã do 1.º visconde de Seabra19, abundam estas mesmas pedras, sendo o colar formado por gemas ovais, com pendente central em coração. Uma ametista encontra-se ainda como pedra central da pulseira – neste período era habitual as pulseiras formarem um par. Ao peito, um alfinete rectangular com orla rendilhada em ouro e motivo central formado por ramo possivelmente de diamantes, já ao jeito romântico e típico da década de 1840. Na cintura, a titular enverga uma fivela de cinto lavrada e, nas orelhas, um par de brincos de ouro lavrados, em fuso, tudo peças coevas. De facto, o uso de peças antigas é apenas uma tradição na fotografia e no retrato a partir dos inícios do século XX, em função de um espírito romântico mais avançado. São muito provavelmente também ametistas as gemas que se podem perscrutar no quadro de D. Ana Correia Leite e Almada, dos vimaranenses Condes da Azenha, e saído das mãos de Auguste Roquemont20. Na figuração oitocentista, surgem igualmente representadas personagens femininas adornadas com jóias em esmalte. Um dos casos mais paradigmáticos pode ser observado no retrato de D. Lucrécia Júlia Doroteia Teixeira de Figueiredo (vd.Fig. 8), da Casa de Urros, perto de Vila Real, pintado por Almeida Santos, em 1848, e pertencente actualmente ao acervo da Casa do Casal de S. Nicolau, em Cabeceiras de Basto. O meio-adereço com que se encontra adornada esta senhora insere-se dentro de uma produção tipicamente nortenha, em que a filigrana se conjuga com os esmaltes. Tipologicamente, o colar apresenta um laço central com pendente em forma de borboleta, o que permite aferir a ligação entre as técnicas tradicionais e os motivos zoomórficos, em voga em termos internacionais21. A partir da segunda metade do século XIX, encontramos a figuração de camefeus em alguns retratos, nomeadamente na pintura de D. Teresa Andresa Pereira da Silva Lopo, que mais tarde seria Condessa de Moser, e existente na Casa da Caneira, na Murtosa. Nestas jóias, constituídas por um alfinete de peito e por uma escrava22 de dimensões consideráveis, exalta-se o gosto pelos camafeus, um dos mais significativos motivos das peças preciosas oitocentistas. Os retratos de casais não são em grande número, no que se refere a exemplares publicados. Da autoria possivelmente do pintor Auguste Roquemont, o quadro de um casal desconhecido (vd. Fig.9), de assinaláveis dimensões, apresenta a figura feminina sentada, nela se destacando o alfinete rectangular de ouro com esmalte e pedraria, desenhando uma ramagem, comum, como vimos, na produção portuguesa da década de 1840 e demonstrativo do início da produção romântica portuguesa.

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17. Vd. os exemplares publicado in SOUSA, Gonçalo de Vasconcelos e – A ourivesaria no Porto nos séculos XVIII e XIX: III – As jóias (séc. XIX). O Tripeiro. Porto: Associação Comercial do Porto. 7.ª s., 14 (8) (Ag. 1995), p. 231; MARQUES, Maria da Luz Paula, coord. – Colecção de jóias: Marta Ortigão Sampaio. [Porto]: Câmara Municipal do Porto; Casa Museu Marta Ortigão Sampaio, [1997], pp. 96-97. 18. Vd. SOUSA, Gonçalo de Vasconcelos e – Da joalharia setecentista aos eclectismos do século XX em Portugal. In MARQUES, Maria da Luz Paula, coord. – Colecção de jóias: Marta Ortigão Sampaio. [Porto]: Câmara Municipal do Porto; Casa Museu Marta Ortigão Sampaio, [1997], p. 34. 19. Publicado in REIS, José Manuel de Seabra da Costa; CALHEIROS, Gonçalo Ferreira Bandeira – A Família Seabra de Mogofores. Porto: Ed. de Olga Costa Reis, 1998, p. 303. 20. Vd. a sua reprodução in BRANDÃO, Júlio – O pintor Roquemont. Porto: Livraria Morais, 1929, entratexto entre pp. 20-21. 21. Vd. SOUSA, Gonçalo de Vasconcelos e - Da joalharia setecentista aos eclectismos do século XX em Portugal. In MARQUES, Maria da Luz Paula, coord. – Colecção de jóias: Marta Ortigão Sampaio. [Porto]: Câmara Municipal do Porto; Casa Museu Marta Ortigão Sampaio, [1997], p. 39. 22. Vd. SOUSA, Gonçalo de Vasconcelos e – Da joalharia setecentista aos eclectismos do século XX em Portugal. In MARQUES, Maria da Luz Paula, coord. – Colecção de jóias: Marta Ortigão Sampaio. [Porto]: Câmara Municipal do Porto; Casa Museu Marta Ortigão Sampaio, [1997], p. 233.


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23. Vd. SOUSA, Gonçalo de Vasconcelos e – Livros de desenhos de jóias do séc. XIX. In FERNANDES, Maria Luísa Garcia; RODRIGUES, José Carlos Meneses; TEDIM, José Manuel, coord. – II Congresso Internacional de História da Arte: actas. Coimbra: Almedina, 2004, p. 423. 24. Publicada no nosso SOUSA, Gonçalo de Vasconcelos e – A ourivesaria no Porto nos séculos XVIII e XIX: III – As jóias (séc. XIX). O Tripeiro. Porto: Associação Comercial do Porto. 7.ª s., 14 (8) (Ag. 1995), p. 233.

fig.9 retrato de casal desconhecido atribuído a roquemont, década de 1840 (colecção particular).

Cremos que este tipo de peças foi muito apreciado no Norte de Portugal, podendo ter sido executada em oficinas portuenses23. Acresce a esta jóia uma corrente de relógio, encontrando-se este preso ao vestido. No marido, de pé, ressalta a elegância de um alfinete de gravata em forma de flor, vislumbrando-se a habitual corrente, que deixa adivinhar um relógio no bolso do colete. Em relação aos retratos de grupo, mencione-se o exemplar de 1850 e pintado por João Almeida Santos, da família de D. Clotilde Faria Fernandes24 (vd. fig. 10), presente no centro do quadro ainda menina, e pertencente à colecção da Santa Casa da Misericórdia do Porto. Na representação do senhor, à esquerda, exalta-se o botão

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fig.10 retrato da família de d. maria clotilde de faria fernandes, pintado por almeida santos, em 1850 (colecção da santa casa da misericórdia do porto).

da camisa e a corrente presa ao colete, muito provavelmente do relógio. Na senhora, as peças de joalharia são simples: brincos de flor, alfinete também com motivos vegetalistas e um par de pulseiras com fechos de pedraria e várias fiadas de aljofres; nas mãos, usa diversos anéis, aparentemente coevos do quadro. Um par de pulseiras muito semelhante encontra-se representado no retrato da Visconde de Guiães, D. Maria Antónia D. Maria Antónia Adelaide Taveira de Sousa de Lira e Meneses de Sousa e Alvim (1821-1907), pintada por João de Almeida Santos, em 184425, o mesmo pintor daquele quadro de família. A menina, a referida D. Clotilde, possui um alfinete triangular ao peito, com pingentes, um colar de três fieiras de pequenas pérolas e um par de pulseiras de contas de ouro. No fundo, são jóias típicas da produção portuguesa da primeira metade do século XIX, salientando-se a singeleza das envergadas pela criança. Outro exemplar pouco conhecido e de paradeiro por determinar26, é o da família do visconde do Pinheiro, General D. Miguel Ximenes de Sandoval e Castro, e da viscondessa, D. Maria José de Azevedo e Silva. Nessa pintura, os membros femininos envergam jóias de um quotidiano requintado, nela se salientando, à semelhança do retrato de D. Clotilde Faria Fernandes referido supra, as peças de adorno precioso usadas pelas crianças, visto que as filhas do casal eram ainda novas27.

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25. Publicado in SOUSA, Gonçalo de Vasconcelos e – A joalharia feminina e o seu significado social e económico em Portugal. Museu. Porto: Círculo Dr. José de Figueiredo, 4.ª s., 13 (2004), p. 27. 26. Tivemos a ele acesso pela cedência de um exemplar de reprodução antiga que nos foi cedido pelo Arq. Jorge de Brito e Abreu, a quem agradecemos. Encontra-se reproduzido no desdobrável e no cartaz da 1.ª Pós-graduação em História da Família, que organizámos na Universidade Moderna do Porto. 27. Na pousada de Santa Marinha da Costa, em Guimarães, encontram-se dois retratos de crianças com cordões de ouro e outras pequenas jóias. Seria interessante desenvolver um estudo sobre as pinturas de crianças, essencialmente a partir dos finais do século XVIII, e de que forma nelas se articulam o traje com as peças de adorno de joalharia.


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28. Publicada no nosso SOUSA, Gonçalo de Vasconcelos e – A ourivesaria no Porto nos séculos XVIII e XIX: III – As jóias (séc. XIX). O Tripeiro. Porto: Associação Comercial do Porto. 7.ª s., 14 (8) (Ag. 1995), p. 227. 29. Vd. FERREIRA, Damião Vellozo; SOUSA, Gonçalo de Vasconcelos e – Os fundadores do Club Portuense e a sua descendência. Porto: [s.n.], 1997, vol. 2, extratexto entre pp. 6263; SOUSA, Gonçalo de Vasconcelos e – Pratas e Jóias dos 1.ºs barões de Ancede. O Tripeiro. Porto: Associação Comercial do Porto. 7.ª s., 23 (1) (Jan. 2004), p. 10. 30. Vd. MORAES, Maria Adelaide Pereira de – Velhas casas de Guimarães. Porto: Centro de Estudos de Genealogia, Heráldica e História da Família da Universidade Moderna do Porto, 2001, p. 785. 31. Vd. A ARTE em família: Os Almeida Furtados. [S.l.]: Ministério da Cultura; Instituto Português de Museus,; Museu de Grão Vasco, 1998, p. 70. 32. Da colecção do Eng.º Bernardo de Azevedo Coutinho de Vasconcelos e Sousa, Lisboa. 33. Vd. a sua reprodução in FRANÇA, José-Augusto – O retrato na arte portuguesa. Lisboa: Livros Horizonte, cop. 1981, fig. 52.

Retratos masculinos Nos retratos masculinos, há a notar a presença de diversas tipologias de jóias, apesar de, em muitos deles, nenhuma peça de joalharia poder ser encontrada. Mas não se pense que a ausência de jóias era a regra. Alfinetes de gravata, botões de camisa, correntes de relógio mais ou menos elaboradas revelavam-se as peças mais simples passíveis de visualizar neste tipo de pinturas oitocentistas. A estas vinham-se juntar um rol de insígnias mais ou menos vasto, com especial destaque para a de Ordem de Cristo e de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa. Vamos deixar aqui alguns casos, sem a preocupação de que constituam referências últimas, mas tão só paradigmáticas do que acabámos de mencionar. Nos exemplares da primeira metade da centúria, salientam-se os alfinetes de gravata, essencialmente de natureza fitomórfica. Em geral tratava-se de uma flor em esmalte ou em pedraria, que os cavalheiros usavam na sua gravata, quebrando a monotonia do branco. Era quase uma expressão de dandismo. Um destes espécimes preciosos pode ser observado no quadro de Manuel de Freitas do Amaral (1797-1856)28, senhor da Casa de Sezim, em Guimarães, em que a figura do fidalgo vimaranense, usando elegante colete amarelo, deixa ver uma flor presa à sua camisa, provavelmente de diamantes. Maria Adelaide Pereira de Morais, na história que escreveu29 sobre esta bonita casa de papéis pintados, descreve-o «A julgar pelo seu bonito roupão de seda, ainda hoje existente em Sezim, foi alto, muito alto e magro Manuel Freitas do Amaral, o novo senhor da Casa. Tinha olhos esverdeados, sonhadores e um nada repuxados, as mãos finas, delicada. E um ar romântico, triste, no seu fato negro, camisa de folhos»30. Outro alfinete de gravata com motivo floral é ostentado pelo 1.º barão de Ancede, num quadro em que se destacam igualmente insígnias de Cristo e de Nossa Senhora da Conceição, com que foi agraciado aquele que ocupou a Presidência da Direcção da Associação Comercial do Porto entre 1841-1844. No entanto, as peças mais habitualmente representadas nos retratos masculinos revelam-se as correntes do relógio e, no início do século XIX, a châtelaine, como nos anuncia a pintura do filho de Francisco Assis Marinho, passado à posteridade pelo pincel de José de Almeida e datável do 1.º terço de Oitocentos31. Quanto às correntes de relógio, mais ou menos elaboradas, vejam-se dois dos retratos de Constantino António do Vale Pereira Cabral, o primeiro por Roquemont e o segundo, já mais velho (vd. Fig.13), apresentando a corrente que ostenta um pendente com uma gema de bom quilate. De facto, as correntes são muito comuns na pintura masculina e também na fotografia, sobretudo na segunda metade do século XIX, em que se tornaram uma constante nos usos dos cavalheiros portugueses. No que diz respeito aos militares ou altos dignitários, podemos fazer menção, logo em 1822, do retrato de corpo inteiro de Francisco da Silveira Pinto da Fonseca32, saído das mãos do pintor João Baptista Ribeiro. O herói das guerras de resistência contra os franceses surge representado com a expressão vitoriosa, salientada pelas suas numerosas condecorações33, nomeadamente o hábito de Cristo de lançar ao pescoço. O retrato de João Baptista Felgueiras, secretário das Constituintes de 1820, faz também apelo às insígnias, se bem que em número mais modesto, neste caso da Ordem de Nos-

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fig.13 retrato de constantino antónio do vale pereira cabral, mais velho, por joão antónio correia, 1876, com corrente e pendente com pedraria (colecção particular). fig.17 retrato do conde da estrela, joaquim manuel monteiro, com diversas insígnias e corrente, com pendente (paradeiro desconhecido).

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34. Nesta colecção existe um retrato de sua mulher, D. Maria Teresa Frederica de Sousa Holstein (1786-1841)., com um alfinete de peito oval, com ametista. 35. Vd. a sua reprodução in SILVEIRA, Maria de Aires; TAVARES, Cristina Azevedo – Miguel Ângelo Lupi: 1826-1883. Lisboa: Museu do Chiado; Instituto Português de Museus, 2002, p. 111.

sa Senhora da Conceição de Vila Viçosa, nomeadamente do hábito de lançar ao pescoço e do placar, que jogam notavelmente com a riqueza dos dourados da sua farda. Novo retrato. Desta vez trata-se do 1.º Conde de Vila Real, D. José Luís de Sousa Botelho Mourão e Vasconcelos (1785-1855), pertencente à colecção das herdeiras de seu descendente, D. José de Saldanha Oliveira e Sousa (Rio Maior)34. A grande experiência deste diplomata traduz-se na pujança e quantidade de condecorações pintadas no quadro. Às três bandas de grã-cruz, às cinco placas e a outras condecorações vem juntar-se a cruz de Cristo, em que figura o Coração de Jesus, pendente do pescoço. Igual atitude, mas pelo brilhantismo da sua carreira política, ostenta a pintura de Miguel Ângelo Lupi35, invocando a representação do político, a meio corpo e trajando com um sem fim de condecorações. Duas últimas obras da pintura de retrato oitocentistas merecem referência. A primeira, do barão de Ermida, presente na galeria da Santa Casa da Misericórdia do Porto, em que o titular surge com um hábito de Cristo de lançar ao pescoço, pendente de vistosa fita vermelha. Complementam o cromatismo da pintura os placares das Ordens de Nossa Senhora da Conceição e de Cristo, que o titular traz ao peito. No segundo retrato, do conde da Estrela, Joaquim Manuel Monteiro (vd. Fig.17), ressaltam as insígnias de Cristo (placa e cruz de lançar ao pescoço), de Nossa Senhora da Conceição (placar) e da Torre e Espada (colar e placar). Muito interessante e numa representação plena de pormenor, dispõe-se uma corrente com pendente em sinete.

Conclusão A pintura de retrato funciona como forma de perenização da memória iconográfica das personagens que, em diferentes épocas, posaram para a tela do pintor. A percepção da personalidade retratada constitui um repositório de atitudes perante diversas realidades e contextualizações mentais da sociedade em que inserem. Nos caso dos retratos analisados neste estudo, representam um testemunho privilegiado da imagem das elites do Portugal de Oitocentos, seja no espectro da capital, do Porto ou das terras de província, e anunciam-nos, para além do gosto trajar, o modo como lidavam ou se faziam representar com as peças de joalharia. Parece-nos importante tomar a percepção, para o retrato feminino, das distintas tipologias de jóias utilizadas pelas senhoras portuguesas do século XIX e da variedade de peças observadas nas diversas fases da centúria. Tal constitui uma forma privilegiada de perceber de que modo as elites portuguesas fizeram incidir no retrato a adesão às correntes internacionais que nortearam a produção de jóias oitocentistas. No maior recato – ou não – do retrato masculino, vamos perscrutar idênticas atitudes, se bem que, em termos de variedade de peças representadas, aí se verifique um número muito menos acentuado. O brilho cabe agora às expressões públicas de reconhecimento que o Estado emana, de que as insígnias dão claro e generoso testemunho.

Gonçalo de Vasconcelos e Sousa

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modernidade e academismo França, Espanha e Portugal: diálogos cruzados

A difusão da pintura flamenga e italiana em França, e a viragem que trouxeram à evolução do gosto e das correntes artísticas, foi uma consequência lógica das invasões napoleónicas e dos ideais que espalharam sobre as nações ocupadas: única nação livre, era em França que deviam permanecer as obras-primas do génio europeu, então ofuscadas pela servidão dos povos. Tal foi o fundamento ideológico que permitiu à França reunir, no espaço de poucos anos, os tesouros artísticos da actual Bélgica, da Alemanha, da Itália, do Egipto e de Espanha. O Louvre, que desde o tempo de Luís XVI começava a ser organizado como Museu, passara a denominar-se Museu Central das Artes e, à sua frente, encontravase, entre outros, o pintor David. A partir de 1803, Dominique Vivant Denon foi nomeado director e começou a sistematizar as colecções por países e por escolas. Das nações pilhadas por Napoleão, a Itália ocupou, naturalmente, um lugar àparte. Em 1797, partiram de Roma com destino a Paris muitas obras-primas da Antiguidade, e ainda de Rafael e de Caravaggio, que pertenciam ao Vaticano. O movimento neoclássico, elegendo simultaneamente a beleza ideal e a veracidade naturalista como o cânone do Belo absoluto, levara a idolatrar Rafael como o modelo a seguir na Pintura. David, e, sobretudo, Ingres, viram no pintor o exemplo máximo do equilíbrio e da harmonia, a conciliação do ideal e do natural, da verdade e da poesia. Dividida entre o neoclassicismo e o Romantismo nascente, com o seu culto dos valores heróicos, a sociedade do Consulado e da Restauração teria mais dificuldades em apreciar a pintura espanhola. Na época das invasões napoleónicas, existiam apenas, no Louvre, algumas obras de Murillo e o Retrato da Infanta Margarida, do atelier de Velázquez, que pertencera à colecção real. Velásquez tinha, no entanto, dois importantes cultores: o coleccionador Pierre-Jean Mariette, que, em 1817 e em 1818, se instalara em Viena, onde existia uma boa colecção de retratos do mestre espanhol, e o marchand Jean-Baptiste-Pierre Lebrun, marido da pintora Elisabeth Vigée-Lebrun, que organizara uma venda de quadros de pintura espanhola em Paris, em 1810. Os únicos pintores espanhóis relativamente conhecidos em França eram Murillo e Ribera. Este último, que se havia instalado em Nápoles e fora um fervente seguidor de Caravaggio, era sobretudo apreciado pelos artistas franceses que viajavam a Roma e que acabavam por prolongar a sua estadia em Nápoles. Porém, muitos dos quadros atribuídos a Ribera eram, na realidade, de outros pintores, nomeadamente italianos, como Luca Giordano.

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A pintura espanhola era, assim, quase ignorada em França. E, todavia, muitos dos embaixadores franceses em Madrid eram homens de gosto e estetas, como Ferdinand Gillemardet que, nomeado embaixador em 1792, se fez retratar por Goya e levara consigo para Paris, em 1800, um exemplar dos Caprichos que teria um grande impacto na carreira de Delacroix. Lucien Bonaparte, que lhe sucedera no cargo, em 1801, levou para França 90 obras de pintores espanhóis. Mas Lucien Bonaparte partiu de imediato para Roma, onde ficou até 1814, sendo a sua colecção dispersada em Londres, dois anos mais tarde. Foi o adido da embaixada, Alexandre Louis Joseph de Laborde, na obra Voyage pitoresque et historique de l’Espagne (1806-1820), o primeiro a chamar a atenção para a excelência da pintura espanhola do século XVII, definindo-a como uma síntese da escola italiana e flamenga. Mais naturalista que a primeira e mais nobre do que a segunda, a pintura espanhola distinguia-se, segundo Laborde, pela sua sensualidade, o seu colorido e o seu misticismo. Em 1816, o marchand Frédéric Quilliet, que se havia instalado em Madrid, viria a editar uma espécie de manual, o Dictionnaire des peintres espagnols, tendo como principal referência o Diccionario de Ceán Bermúdez, publicado em Madrid em 1800. Em 1807, depois de ter consolidado a sua posição a leste da Europa e de ter celebrado o tratado de paz com a Rússia, Napoleão pretendeu isolar definitivamente a Inglaterra e invadiu o aliado luso. Conhecemos a sequência dos acontecimentos: Junot chegou a Portugal, mas a família real exilara-se no Brasil. No ano seguinte, foi a Espanha que foi invadida devido às hesitações de Carlos IV, dividido entre a colaboração com Napoleão e a entrada em guerra. Carlos IV abdicou em favor do filho, Fernando VII, que, por sua vez, abdicou em seguida, e Napoleão tomou finalmente posse do reino espanhol. À sua frente, foi José Bonaparte, o irmão mais velho, que o imperador colocou no trono, depois de uma resistência renhida do povo madrileno, e da violenta repressão que se lhe seguiu e que Goya imortalizou nos quadros das revoltas do Dois e Três de Maio de 1808, do Museu do Prado. Este último quadro em particular, executado, como o Dois de Maio de 1808, em 1814, terá uma importância determinante na obra de Edouard Manet. De acordo com as ordens do imperador, Vivant Denon deslocou-se a Espanha para escolher uma cinquentena de quadros, mas José Bonaparte não se mostrou muito cooperativo. Rodeando-se de conselheiros, entre os quais Goya, José Napoleão criou, em 1809, um Museu de Pintura em Madrid com os quadros confiscados às ordens religiosas e à nobreza. Entretanto, Soult, em Sevilha, reuniu uma verdadeira colecção de arte espanhola, que levou para Paris. Foram, no total, 180 quadros, entre os quais a Imaculada Conceição de Murillo, adquirida após a dispersão da colecção do Marechal, em 1852, para o Museu do Louvre. Delacroix estudou de perto esta obra no palacete de Soult, situado na rua de l’Université em Paris. Depois de negociações diplomáticas, após a guerra civil de Espanha, o quadro passou a integrar a colecção do Prado. Quando José Napoleão deixou a Espanha, em 1813, levava consigo um espólio de cerca de 165 quadros, que Hugo Wellesley, Duque de Wellington, confiscou na bata-

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fig.1 velásquez, as meninas , 1656 - 1657.

lha de Vitória e que, em seguida, Fernando VII lhe ofereceu. Entre eles, encontrava-se o célebre Vendedor de água de Sevilha de Velásquez, que faz parte da colecção do seu antigo palácio em Londres, actualmente museu (Wellington Museum). Quanto aos quadros requisicionados por Napoleão para o Museu do Louvre, foram uma decepção para Vivant Denon, que os considerou sem mérito artístico de maior. E, no entanto, expostas em 1816, num museu Napoleão rebaptizado Museu Real, estas obras causaram uma viva impressão, como foi o caso da Mulher com barba, de Ribera, bem como outras, que Soult havia doado ao Louvre, e entre as quais se destacavam a Apoteose de S. Tomás de Aquino e as decorações de Murillo para a igreja de Santa Maria de la Blanca, de Sevilha. Após esta exposição, o Estado francês restituiu parte dos quadros trazidos para Vivant Denon, bem como alguns dos da colecção Soult. Mas, antes de ganharem novamente a Espanha, estas obras foram estudadas pela nova geração de artistas. Géricault, por exemplo, copiara a Mater Dolorosa de Ribera, Gérard a Santa Teresa de Zurbáran. A influência de Zurbáran manifesta-se na obra de Delacroix, entre 1824 - 1827,

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como na cópia de uma Santa Catarina, que pertence ao Museu de Belas-Artes de Béziers, e do quadro Jesus no jardim das oliveiras, da igreja de S. Paulo e S. Luís, em Paris; Ribera inspirara, dois anos antes, o Cristo na Cruz de Pierre-Paul Proudhon, que pertence ao Museu do Louvre. E o próprio David encontrara, em 1800, num dos numerosos quadros equestres de Velásquez, o modelo para o célebre Napoleão atravessando os Alpes, do Museu de Rueil-Malmaison. Ao seu regresso a Madrid, os quadros que não pertenciam às instituições religiosas foram depositados numa ala do palácio do Bom Retiro. Ficou, assim, constituído o primeiro núcleo do Real Museo de Pintura y Escultura, que abriu as suas portas em 1819, e que, cinquenta anos mais tarde, seria denominado Museu do Prado. Ironia do destino, o novo museu vinha dar corpo ao projecto de José Bonaparte, que pretendera reunir um núcleo de pintura espanhola tendo por centro as obras da colecção real, segundo a herança do Renascimento e, em particular, de Ticiano. A abertura do Real Museu de Pintura teve consequências importantíssimas para a evolução artística do século XIX: a partir dos anos 30 e 40, uma nova geração de pintores podia estudar directamente as obras de Murillo, de Ribera, de Zurbáran, e, sobretudo, de Velázquez, de cujo atelier o Louvre guardaria apenas o pequeno retrato da Infanta Margarida. Em 1831, Prosper Mérimée, que ficara perplexo com a quantidade de obras-primas do museu espanhol, afirmava que As Meninas, de Velázquez (Fig. 1), eram a obra-prima do artista. Vinte anos mais tarde, Velázquez, ignorado ao princípio do século, era já considerado como o primeiro pintor europeu, depois de Ticiano – e já não de Rafael. Este sucesso encorajou Luís-Filipe de Orleães, casado com uma prima de Fernando VII, Marie-Amélie de Bourbon-Sicile, a adquirir uma colecção de arte espanhola. Em 1837, com a ajuda do barão Taylor, que havia publicado um guia de viagem pitoresco de Espanha e de Portugal, adquiriu 400 quadros, aos quais vieram juntar-se, em 1842, um legado inglês, de mais 120, que passaram a ser expostos em permanência no museu do Louvre. A grande novidade da colecção, além dos 80 Zurbáran de qualidade excepcional, consistiu na revelação do pintor El Greco, com cerca de oito telas. Uma dessas obras, que pertence ainda ao museu do Louvre, é o Cristo na Cruz com o retrato de dois doadores, de cerca de 1585 - 1590. Outra novidade foram os quadros de Goya, de uma qualidade excepcional, como a Forja, da Frick Collection de Nova Yorque, ou ainda As Velhas ou o Tempo (1808 -1812), do Museu de Lille. Mas, após a queda da monarquia de Julho, a colecção, que a jovem República doou aos Orleães, foi vendida em hasta pública, em Londres, em 1853. Com esta venda, a arte espanhola foi enriquecer as colecções de Londres, de Viena, de Berlim, de Dresde, de Munique, de S. Petersburgo, de Budapeste e da América do Norte. Um dos quadros que pertencera à colecção de Luís-Filipe é o Retrato de dom Andrès de Andrade y la Cal, de Murillo, do Metropolitan Museum de Nova Yorque. Outro, atribuído a El Greco, é a Mulher com casaco de peles, da Pollock House de Glásgua, que influenciou consideravelmente a arte do retrato. Com a galeria de Luís-Filipe, a escola espanhola conquistara definitivamente os seus títulos de nobreza, a par da flamenga, da italiana e da francesa. Mas o mais importante é que, depois de ter influenciado a geração romântica, a “maneira” espanhola,

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com o seu modelado e o seu colorido, ia provocar uma importante viragem estética e marcar definitivamente a geração realista. Jean-François Millet foi o primeiro a assumir esta filiação, ao pintar santas com uma religiosidade doce e austera, como uma Santa Bárbara de 1841, do Museu de Angers. Na mesma década, Corot imitou o estilo dos frades de Zurbáran e os retratos da galeria espanhola de Luís - Filipe. Chassériau, a Vélazquez, Zurbáran, El Greco ou Ribera, preferiu, pelo contrário, a maneira de Pacheco e de Luís de Morales. A escola espanhola foi uma fonte de anticlassicismo que veio responder às aspirações da jovem pintura, que rejeitava o Belo ideal herdado de Rafael e a dramaturgia, o colorido e o dinamismo das composições românticas. A Espanha abria, assim, as portas a uma nova maneira de captar a realidade, com o seu gosto pela veracidade e a sua abertura às emoções humanas. Ao mesmo tempo, a pintura espanhola prestava-se, do ponto de vista da execução, a uma grande economia de meios e o seu colorido escondia, subjacente, um gosto sensual pela matéria pictural. Courbet foi o primeiro a assumir a ruptura, ao introduzir, a par do naturalismo da representação, a técnica da pintura de Velázquez. O célebre quadro-manifesto do Atelier de pintura, de 1854 -1855, que pertence ao Museu de Orsay, é, antes de tudo, uma reflexão sobre a representação do espaço, em emulação com As Meninas de Velázquez. Encorajado pelo pintor Léon Bonnat, Edgar Degas começou a interessar-se pela escola espanhola nos meados dos anos 50. Em 1857-1858, encontrando-se em Roma, Degas executou uma Variação sobre As Meninas de Velázquez ou Homenagem a Velásquez. Este pequeno quadro a óleo de Degas, que se encontra na Bayerische Staatsgemäldesammlungen de Munique, reflecte o seu interesse pela pintura espanhola na pátria de Rafael, onde existia apenas, como obra original de Velázquez, o Retrato de Inocêncio X, da galeria Doria-Pamfili. Em 1861, Manet estreia-se no Salon, isto é, no local onde se divulga e oficializa a cultura artística, com o quadro o Cantor espanhol (Fig. 2), que executara no ano anterior. Esta obra, que pertenceu ao barítono Jean-Baptiste Faure, foi adquirida, em 1906, pelo galerista Durand-Ruel – que já a tinha vendido a Faure –, e que de imediato a vendeu a William Church Osborn, membro influente do Trustee do Metropolitain Museum de Nova Yorque, ao qual legou o quadro, em 1949. O Cantor espanhol, que foi premiado com uma menção honrosa, chamou a atenção, não tanto pelo assunto, mas pela maneira, inovadora, da pintura. Em 1862, Manet travou conhecimento com Degas, na galeria do Louvre: os dois artistas encontraram-se a copiar o Retrato da Infanta Margarida. Decididamente, a Espanha andava na moda. O teatro, a música, a pintura e, mesmo, a imperatriz, Eugénia de Montijo, vinham de Espanha. O conde James-Alexandre de Pourtalès e o duque de Morny eram grandes coleccionadores de pintura espanhola. Ao duque de Morny pertencia o Retrato da Infanta Maria Teresa, de Juan Bautista del Mazo, que pertence actualmente ao Metropolitain Museum de Nova Yorque. Mas Manet não necessitara de visitar as colecções particulares, pois a colecção de Luís Filipe só deixou a França nos finais dos anos 40, quando o pintor, que nascera em 1832, já havia iniciado a sua aprendizagem artística.

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fig.2 manet, o cantor espanhol , 1860. 1. Manet, Velasquez, La manière espagnole au XIXe siècle. Catálogo, Paris, Réunion des Musées Nationaux, 2002, p. 70.

O quadro de Manet trouxe-lhe uma certa popularidade nos círculos artísticos pois, ainda em 1868, um crítico, referindo-se ao Cantor espanhol, sustentava que o gosto pelos tons negros se tinha agravado no artista. Degas foi, sem dúvida, um dos seus maiores admiradores de tal modo que passaria a década de 60 a confrontar-se com Manet na técnica de assimilar a pintura espanhola. O Retrato de Lorenzo Pagans e Auguste De Gas, de 1871 - 1872, do Museu de Orsay, pode considerar-se como uma meditação, dez anos depois, do Cantor espanhol de Manet. Na sua viagem a Espanha, em 1865, Manet diria, numa carta a Fantin-Latour, que Velázquez era o “peintre des peintres” 1. As Meninas, mas também os retratos de Alonzo Cano e do bufão Pablo de Valladolid, de 1636 -1637, do Museu do Prado,

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com o seu fundo uniforme, onde o ar circula, foram as obras de Velásquez que mais admiração lhe causaram. Elas inspiraram-lhe, entre outros, o Retrato do actor Rouvère da National Gallery de Washington, que executou ainda em 1865 - 1866. Mas não foram só os pintores “modernos” que contribuíram para ditar a moda de um realismo revisto à luz dos valores picturais e cromáticos espanhóis. Esta visão da pintura do século XIX, que considera o impressionismo como uma vanguarda isolada, em ruptura com a arte académica, necessita de ser revista. Numerosos foram os artistas ditos oficiais, ou académicos, que adoptaram o exemplo dos modelos espanhóis redescobertos em meados do século XIX. Entre eles, destaca-se o pintor Léon Bonnat, que habitara em Madrid de 1846 a 1856, e frequentara a Academia de Belas-Artes de S. Fernando. Bonnat, que contou como discípulos a maior parte dos pintores portugueses que foram estudar para Paris, foi um fervente admirador dos mestres espanhóis. À sua cidade natal, Bayonne, deixou não só uma importante colecção de obras de Goya, de El Greco e de Ribera, mas ainda cópias do Retrato de Inocêncio X de Velázquez e de um S. Paulo eremita de Ribera, de cerca de 1652. Este último, entre outros, serviu-lhe de modelo para o quadro de pintura histórica Job, também do Museu de Bayonne, que expôs no Salon de 1863, no mesmo período em que Degas e Manet se lançavam mutuamente no desafio da maneira espanhola. Degas viajará em Espanha apenas em 1889 e, nessa altura, dar-se-à conta da extraordinária fluidez da pintura de Velásquez, ao mesmo tempo que descobre a obra de El Greco, já então admirado quanto o mestre espanhol. O Retrato de Thèrése De Gaz do Museu de Orsay, executado por Degas em 1863, e construído habilmente entre várias verticais sobre um fundo de paisagem realizado em pinceladas fluídas, documenta a mesma obsessão do tratamento do negro e uma pesquisa sobre o retrato em movimento que Manet não cessara de estudar na obra de Velásquez, na qual vira também uma solução para a modelação dos volumes sem recurso ao claro - escuro. Por outro lado, a influência da pintura espanhola verificou-se igualmente na composição das obras, com um tipo de enquadramento inovador dos temas e dos motivos, privilegiando a ilusão de instantâneo, à semelhança da fotografia, o movimento e as situações do quotidiano. Quadros célebres como Le balcon (1868 - 1869), de Manet (Museu de Orsay), não podem compreender-se sem uma comparação com as Majas à varanda (1808 - 1812), de Goya ou de um próximo de Goya (Metropolitain Museum de Nova Yorque). Renoir, James Whistler e Sargent renovaram a arte do retrato graças, em parte, à confrontação directa com a pintura espanhola, ou à sua audaz interpretação por Manet. Se Renoir, no Retrato de Mademoiselle Romaine Lacaux, de 1864, do Cleveland Museum of Art, se inspira ainda directamente no Retrato da Infanta Margarida do Louvre, já James Whistler, no Retrato de Mademoiselle Cicely Alexander, de 18721874, da Tate Gallery, Londres, trabalhou os modelos espanhóis à luz de Manet. Outro pintor americano, William Merritt Chase, preferiu, pelo contrário, a confrontação directa com os mestres espanhõis. O quadro Hall at Shinnecock, de 1892, da Terra Foundation for the Art, Chicago, é uma reinterpretação das Meninas de Vélásquez.

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O tema do retrato colectivo, posto em perspectiva no espaço que rodeia as figuras, fora já tratado por John Singer Sargent. Filho de um médico americano que emigrara para a Itália, e tendo feito a sua primeira educação artística em Roma e em Florença, Sargent estudara em Paris com Carolus-Duran, o qual, por sua vez, foi um grande admirador do mestre espanhol. A influência das Meninas na obra de Sargent é patente no Retrato das Filhas de Edward Derley Boit, de 1882, do Museu de Belas-Artes de Boston, e influenciará, por sua vez, Joaquín Sorolla no Retrato da Família de Rafael Errázuriz, de 1905, da colecção Masaveu (Fig. 3). Mas voltemos a Carolus-Duran: mestre de Sargent, admirador de Velásquez, a sua obra marcou igualmente a de um outro pintor, português, Columbano Bordalo Pinheiro, cujo colorido se compara, por contraste, à do seu contemporaneo Malhoa, como o sol e as sombras da arte portuguesa de finais do século XIX. Na realidade, a reflexão sobre a influência da maneira espanhola na pintura da segunda metade do século XIX, permitir-nos-à analisar que tipo de modernidade pôde veicular através destes dois artistas: Columbano e Malhoa. Sobre a admiração de Carolus-Duran por Espanha, ela deve-se, em parte, à sua amizade com Manet. Se este último visitou o Prado em 1865, Carolus-Duran empreendeu a viagem a Madrid logo no ano seguinte (e fá-lo-á novamente dez anos depois), copiando numerosos quadros de Velázquez. A sua influência na obra de CarolusDuran reflecte-se quer na técnica pictural – paleta reduzida, pincelada fluída, gama de cinzentos -, quer no modo como dispõe e enquadra os modelos. O Retrato de Hector Brane, de 1871 (colecção particular), inspira-se claramente no Retrato do Príncipe Baltasar Carlos em traje de caça de Velásquez, de 1635. Do mesmo modo,

fig.3 joaquín sorolla, retrato da família de rafael errázuriz , 1905.

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fig.4 carolus-duran, estudo para lilia , 1887.

os numerosos retratos femininos que executou nas décadas seguintes poderiam ser o de princesas espanholas em trajes modernos. Todavia, a arte de Carolus-Duran assimila não só a lição de Velásquez no tratamento dos negros sobre um fundo uniforme, como também uma certa elegância mundana proposta por Manet, mas que Carolus-Duran transforma em postura aristocrática, como no magnífico Retrato de Senhora com luva, de 1869, do Museu de Orsay. Columbano estreou-se na Sociedade Promotora de Belas-Artes com um Bódegon, em 1872. Não sabemos onde se encontra o quadro, mas a designação de Bódegon, ou natureza-morta em espanhol, são sem equívoco relativamente à sua fonte de inspiração. Durante os anos 70, Columbano continuou a pintar cenas de género, que já os seus contemporaneos declararam influenciadas por pintores espanhóis co-

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2. Ver O Ocidente, n.° 53, 1/3/1880, p. 38.

evos, nomeadamente Eduardo Zamacóis e Zabala (1842-1871), e Vicente Palmaroli y Gonzalez (1834-1896)2. O quadro que destinara à Exposição Universal de Paris em 1878, e que foi recusado pelo júri, o D. Quixote y Sancho Pança depois do jantar em casa do fidalgo que se encontra no Palácio da Pena, mostra-nos uma cena de interior onde as personagens, reunidas em torno de uma mesa, fariam mais pensar na pintura holandesa, se não fosse a pincelada fluída e a natureza-morta sobre a mesa. Mas foi, certamente, a ida de Columbano para Paris, em 1881, que veio a afirmar a maneira espanhola do pintor. Diz-se que Columbano preferiu, ao ensino artístico de Carolus-Duran, visitar museus e estudar em liberdade. Ora, mesmo se a tendência de Columbano se manifestava para a pintura de interiores, à maneira espanhola ou holandesa, cremos que foi o estudo de Velásquez através do mestre Carolus-Duran que lhe permitiu avançar para a sua maturidade artística. Com efeito, em 1882, Columbano estreou-se no Salon como discípulo de Carolus-Duran. A obra aí apresentada foi a Soirée chez lui, do Museu do Chiado. Se Columbano já tratara vagamente o tema em Convite à valsa, quadro exposto em Lisboa em Novembro de 1880, e que faz parte do acervo da Casa-Museu Anastácio Gonçalves, na Soirée chez lui a influência de Carolus-Duran é flagrante. De facto, como não pensar no Retrato de Madame Georges Petit do Museu de Lille, executado por Carolus-Duran em 1879, como modelo do retrato feminino da Soirée chez lui de Columbano?... A influência de Carolus-Duran perdurará na obra de Columbano, já que o seu estilo se formou e se consolidou nos anos 80. A cabeça, notável, de Carolus-Duran intitulada Estudo para Lilia, de 1887, que pertence à National Gallery de Washington (Fig. 4), revela afinidades estilísticas evidentes com a célebre Chávena de chá de Columbano de 1898, do Museu do Chiado. Em 1889, Columbano, de visita à Exposição Universal de Paris, pôde apreciar, pela primeira vez, os pintores espanhóis do Museu do Prado. O mais curioso é que data também deste ano o famoso Retrato de Antero de Quental do Museu do Chiado, no qual se pode entrever uma maior liberdade de factura, e a quase diluição da figura no fundo sobre uma paleta de tons quase monocromáticos. Porém, na mesma ocasião em que Columbano se encontrava em Paris, o pintor norueguês Frits Thaulow, que se deslocara igualmente à capital francesa para a Exposição Universal, posou para Carolus-Duran, que realizou então um notável retrato do artista que se encontra no Museu de Oslo. As afinidades entre o Retrato de Antero de Quental de Columbano e o Retrato do pintor Fritz Thaulow, de Carolus-Duran, não deixam de ser interessantes. Em 1899, Columbano voltou a repensar a pintura de Velásquez num quadro espanholizante, uma Cabeça de cavaleiro do Museu Nacional Soares dos Reis, que mais nos parece um curioso Auto-retrato. Se, neste tipo de obras, Columbano revela uma maior ligação aos modelos do século de oiro, a sua passagem pelo atelier de Carolus-Duran, cuja pintura admirava, permitiu-lhe adquirir uma emancipação dos modelos académicos, rejeitando definitivamente a pintura com aspecto de “acabado”, o “fini” que aumenta a ilusão da realidade, ou seja, o efeito tridimensional que é o objectivo da pintura académica. A pincelada fluída, a negação do modelado pelo claro-escuro, a primazia do psicológico em relação à convenção, e a vontade afirmada de captar,

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com a expressão e a cor – mesmo se a sua paleta é sombria –, a sociedade que o rodeava, permitiram a Columbano afirmar uma modernidade inspirada, directa ou indirectamente, na pintura espanhola. Quanto a Malhoa, ele vai prestar, em duas obras emblemáticas, Os Bêbedos (1907) e O Fado (1910), uma brilhante homenagem a Velásquez. No entanto, neste último, onde também se pode apreciar a influência indirecta de Velásquez através de Manet, o seu eclectismo, a meio caminho entre tradição e modernidade, dá provas dos seus limites no entendimento da ruptura com o academismo que Manet, e os impressionistas, provocaram meio século atrás, e a sua vontade de elevar uma cena trivial ao nível de uma pintura de História – ou seja, de assumir deliberadamente uma postura naturalista e académica. Malhoa veraneou em Toledo em 1884 e visitou, cremos que pela primeira vez, Madrid, e, sobretudo, o Museu do Prado, como era a tradição. Data, sem dúvida, desta estadia, a sua descoberta da pintura espanhola, e provavelmente de Velásquez, que sabemos que era o pintor que mais admirava, como confessou numa carta de 1913, possivelmente endereçada ao amigo Cruz Magalhães3. Foi, também, depois desta visita que Malhoa começou a pintar cenas de género, nomeadamente o quadro que o lançou, o Viático ao termo, que apresentou, no final do ano, na 4.a Exposição do Grupo do Leão. Todavia, a influência da pintura espanhola, sem dúvida colhida através de gravuras, havia-se já revelado no Retrato de Carlos Relvas montando Salero, da Casa-Museu dos Patudos, Alpiarça, de 1881, inspirado nos numerosos quadros equestres de Velásquez. Malhoa não perdeu o contacto com a Espanha, onde se demorou, novamente, em 1901. Desta estadia, podemos colher ecos no Retrato do Fotógrafo Novais, do mesmo ano, exposto no Museu José Malhoa de Caldas da Rainha, e, sobretudo, do Retrato do Barão do Alvito, António Lobo da Silveira, sob o título de Cavaleiro de Santiago, de 1904, que lhe trouxe um grande sucesso no Salon e que acabou por vender para o Chile, em 1911. Sem falar ainda do Retrato de Júlia Malhoa, com leque e traje de espanhola, executado possívelmente já nos anos 10, e onde é palpável a influência de Velásquez através da obra de Manet. Mas é em 1907 que a pintura espanhola lhe fornece o modelo para uma das suas obras mais famosas, o quadro Festejando o S. Martinho ou Os Bêbedos, em exposição no Museu de Caldas da Rainha. A filiação d’Os Bêbedos nos acólitos de Dionísio do quadro Bacchus, do Museu do Prado, executado por Velásquez em 1628 - 1629, é incontestável. Em vez de uma cena de ar livre, num Olimpo edénico, Malhoa inseriu os protagonistas no interior de uma adega, o grupo reunindo-se em torno de uma mesa, que marca as diagonais sobre as quais se constrói o quadro, num processo análogo ao que utilizará n’O Fado, três anos mais tarde. Dionísio, ou Baco, desaparece, para só ficarem os bêbedos, executados com um grande realismo, numa espécie de natureza-morta à maneira holandesa, mas cuja técnica pictural, em massas fluídas, e com uma grande sobriedade de meios, imita a de Velásquez. Outra homenagem ao pintor espanhol, e que parece menos evidente, é a que resulta de uma análise mais aprofundada d’O Fado, de 1910. Ao mesmo tempo, este quadro de Malhoa apresenta estranhas afinidades com O Cantor espanhol de Manet, do

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3. Cf. VERDELHO DA COSTA, Lucília da, Amar o outro mar. A pintura de Malhoa, Lisboa / Rio de Janeiro, Ministério da Cultura / GRCI, 2003.


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4. SALDANHA, Nuno, José Vital Branco Malhoa (1855-1933). O pintor, o mestre e a obra, Tese de Doutoramento apresentada na Universidade Católica, Faculdade de Ciências Humanas, Dezembro de 2006. 5. DURET, Théodore, Histoire de Edouard Manet et de son oeuvre avec douze illustrations, Paris, Librairie Charpentier et Pasquelle, 1902. 6. MOREAU-NÉLATON, Etienne, Manet Graveur et Lithographe, Paris, Éditions du PeintreGraveur Illustré, Chez Loys Delteil, 1906. 7. BAZIRE, Edmond, Manet, Paris, A. Quantin, 1884. Obra ilustrada, com um apêndice de 8 folhas com estampas.

Metropolitain Museum de Nova Yorque, reunindo assim, directa e indirectamente, duas influências espanholizantes. Não me restam dúvidas de que Malhoa, que descobriu a obra de Manet numa época tardia da sua carreira, conhecia o Cantor espanhol, o problema principal consistindo no como e no quando Malhoa teria visto uma reprodução do quadro. Graças à correspondência de Malhoa com José Relvas dada à luz por Nuno Saldanha 4, pôde apurar-se que José Relvas, que em parte influenciou a sua cultura artística, lhe emprestara dois livros, um sobre Manet, outro sobre Courbet, em 1907. Ora, a obra mais interessante publicada sobre Manet nesta época é a de Théodore Duret, editada pela primeira vez em 1902, e novamente num pequeno formato em 1906, e intitulada Histoire de Edouard Manet et de son oeuvre avec douze illustrations5. Neste livro, extremamente bem documentado, mas no qual não vem reproduzido o quadro O Cantor espanhol, Théodore Duret relata o início da carreira artística de Manet e a sua decisão de romper com a tradição académica e de pintar a vida moderna, como preconizava o seu amigo Baudelaire, bem como os combates aguerridos que tal ruptura iria suscitar. Este olhar privilegiado de Théodore Duret sobre a obra de Manet explica-se pela amizade que os uniu a ambos. Quando, em 1865, Manet partiu para Espanha, travou conhecimento, num restaurante madrileno, com este grande viajante, negociante de conhaque, e grande amador de arte e escritor. Manet e Théodore Duret não só acabaram por descobrir Madrid juntos, mas também Toledo, onde se deslocaram propositadamente para apreciar a pintura de El Greco. Três anos mais tarde, Manet executaria o Retrato de Théodore Duret, que pertence à colecção do Museu do Petit Palais em Paris, e onde surge em pé, sobre um fundo uniforme. O quadro acusa a influência dos retratos de bufões de Velázquez, ou ainda do Esopo do Museu do Prado, mas uma das suas inovações é também a natureza-morta, com um colorido de tons ácidos, executada sobre o pequeno banco junto do retratado. Quanto ao quadro O Cantor espanhol, ele era bem conhecido dos meios artísticos, já que, tendo obtido uma medalha no Salon de 1861, foi largamente divulgado através da gravura da obra executada por Manet em 1861-1862 – e editada várias vezes em vida do artista e, ainda, em 1905, pelo editor Strölin. Ora, em 1906, Etienne MoreauNélaton publicou um livro sobre a obra gravada de Manet6, na qual é reproduzida uma primeira prova da gravura do Cantor espanhol da colecção de Degas, não assinada por Manet, e ainda uma terceira prova da mesma gravura, com a indicação de que o quadro fora exposto no Salon sob o título Espanhol tocando guitarra. Esta última gravura pertencia ao editor Loys Delteil. Todavia, Manet não só não copia servilmente o seu próprio quadro, como também não procura inverter a posição do cantor para que, uma vez impressa, a estampa retome a composição original. Outra obra sobre Manet, dada à estampa em 1884, foi a de Edmond Bazire, sob o título Manet 7, e na qual apresenta um calque do Cantor espanhol a partir da gravura de Manet, bem como o célebre comentário à obra de Théophile Gautier publicado no Moniteur Universel de 1861 em que refere que o Cantor espanhol é uma invenção de atelier, bem como o são os diversos elementos heterogéneos que serviram para

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caracterizar o guitarrista – a jaqueta, o lenço e o chapéu, e ainda o banco, o jarro e as cebolas –, guitarrista que não era mais do que um parisiense de Montmartre8. Quanto à verdade da cor, o quadro havia sido pintado na gama de cinzentos e de negros de Velásquez e que viria a ser a paleta dominante de Manet, mas ainda sem a virtuosidade técnica que adquiriria mais tarde. No entanto, tanto Carolus-Duran, como Fantin-Latour, como ainda outros jovens artistas, compreenderam o quanto era estranha a nova maneira de pintar, o próprio Manet contando com orgulho que tinha executado a cabeça com uma rapidez extraordinária, em duas horas, sem mais um único retoque. Os jovens teriam então resolvido ir ao atelier de Manet para o questionar. Mais tarde, teriam trazido um poeta (Baudelaire). Nascera, assim, a pintura moderna e Manet como seu chefe-de-fila9. Baudelaire saudou o génio espanhol que finalmente encontrara refúgio em França10. O quadro tinha o seu quê de provocador, pois o guitarrista toca, com a mão esquerda, uma guitarra feita para tocar com a outra mão. E, uma vez observada esta incongruência, o seu vago lado romântico, associado à tradição dos músicos na pintura, desaparece completamente. O tema já havia sido tratado por Courbet e por Couture, que fora mestre de Manet. A título de curiosidade, Gauguin irá também pintar Um guitarrista, em 1894 (colecção particular, Suíça), mas, nessa época, já o modernismo de Manet havia sido ultrapassado pelo sintetismo cromático dos nabis, em substituição do desenho e da tradição académica. Mas voltemos a Malhoa e ao Cantor espanhol. Em nossa opinião, Malhoa teve nas mãos, em 1907, um exemplar da obra de Bazire sobre Manet, e, durante a sua estadia em Paris no ano seguinte, teria tido curiosidade em observar as suas obras. Na realidade, n’O Fado, encontramos ecos da técnica dos negros de Manet, em particular no tratamento dos adereços da saia, dos chinelos e das meias da figura feminina, bem como da indumentária do fadista. Malhoa, porém, não pôde, ou não quis, captar o que fez a modernidade de Manet e que foi o seu declarado anti-academismo. Na realidade, n’O Cantor espanhol, Manet renuncia à teatralidade clássica da pintura, fundada sobre a perspectiva e o assunto literário. É o que os anglo-saxões denominam de facingness, ou face-à-face. O quadro deixa de ser algo que se olha para se transformar em algo que nos olha, ou, dito de outra maneira, não é o espectador que observa o quadro, é o quadro que se transforma em espectador, revolucionando, assim, os mecanismos da percepção da pintura. N’O Fado, Malhoa acaba, assim, por cruzar duas correntes da pintura completamente opostas, uma, moderna, através de Manet e da interpretação deste da pintura espanhola, outra, académica, através do olhar de Malhoa sobre a obra-prima de Velásquez. O quadro As Meninas (1656-1659), que o rei guardou no seu gabinete de Verão até 1736, foi considerado por Luca Giordano, em 1692, como a “Teologia da Pintura”. Mas, até 1843, o mesmo chamava-se El cuadro de la Familla, só a partir desta data se intitulou As Meninas11. Palomino, o biógrafo de Velásquez, afirmou que esta obra é um “capricho”. Ora, o que parece ser um “capricho” é a representação de um retrato do rei e da rainha reflectidos no espelho, pois este retrato nunca existiu – a prática consagrada neste

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8. BAZIRE, Edmond, Manet, op. cit., p. 22. 9. Ver Manet. 1832 -1883 (Catálogo), Paris, Ministère de la Culture, Éditions de la Réunion des Musées Nationaux, 1983, pp. 63 - 67. Ver também The Metropolitain Museum of Art New York. Chefs-d’oeuvre de la peinture européenne (Catalogue), Martigny, Fondation Pierre Gianadda, 2006, n.° 43. 10. Cf. ADLER, Kathleen, Manet, Phaidon, Oxford, 1986, p. 33. 11. Ver ARASSE, Daniel, On y voit rien. Descriptions, folioessais, Editions Denoël, 2000, p. 177 e segs.


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género pictural consistindo na execução de dois retratos separados, en pendant. No quadro de Velásquez, a imagem reflectida no espelho não representa o ponto de fuga da perspectiva, como no retrato dos esposos Arnolfini de Van Eyck, que o pintor conhecia bem porque pertencia à colecção real. O ponto de fuga d’As Meninas é, na realidade, a porta aberta atrás do personagem em pé, ao fundo do quadro. Porém, o facto de Filipe IV se encontrar reflectido no espelho confere ao rei um estatuto de omnividência. Mas o que verdadeiramente dá força a esta estrutura imaginária é o hiato, o espaço, que separa o ponto de fuga da mera organização geométrica, e o espelho. O olhar omnividente e omnipresente do rei é essa linha horizontal, invisível mas extremamente presente, que vai do espelho ao ponto de fuga da porta. Deste modo, só o rei se encontra no horizonte do quadro. Ao desviar a atenção do objecto representado – teoricamente, o rei e a rainha –, para as condições da sua representação, o espaço ou a sala onde o pintor se encontra, pintando, hipoteticamente, um retrato do rei e da rainha, acção que é perturbada pela presença da Infanta e das damas de companhia, Velásquez torna incerto o objecto do quadro. A presença objectiva dos reis não pode, portanto, ser certificada. O pintor elimina, deste modo, o assunto, ou os assuntos do quadro. Ele representa as condições da representação. Ora, no quadro O Fado (1910), do Museu da Cidade (Fig. 5), Malhoa utiliza o mesmo artifício na representação do espelho e do cortinado que separa a alcova do espaço onde se situa a meretriz e o fadista. O quadro constrói-se numa pirámide cujo vértice

fig.5 josé malhoa, o fado , 1910

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corresponde à linha do horizonte, ou seja, o que se não vê – a cama –, ou o que se vê reflectido no espelho, a janela, como traço de união entre o exterior e o interior, e a cadeira vazia da meretriz, que espera o cliente ou o fadista. O que é interessante é que Malhoa, contrariamente ao seu projecto inicial, colou, no mesmo quadro, dois tipos de linguagens: uma, moderna, que inverte o papel tradicional do espectador e na qual é o fadista que nos olha em face, o facingness de Manet. Ao mesmo tempo, destruindo completamente este efeito de modernidade, introduziu uma personagem que observa o fadista, sendo obrigado, por isso, a criar a ilusão de um espaço geométrico, solidamente construído, em linhas diagonais, em torno da mesa, do banco e da cadeira. Aproveito para chamar a atenção para a disparidade total das peças de mobiliário, o banco, do mesmo tipo do do Cantor espanhol de Manet, não apresentando nenhuma afinidade com a mesa e a cadeira, e parecendo ter sido executado inteiramente sem modelo. De resto, a diferença da pincelada, do banco e do resto do mobiliário, é flagrante. Outra novidade são os elementos da parede, o leque, uma gravura de um fadista e uma imagem, com uma cruz, bem como as bandarilhas e um ex-voto, tratados como elementos de japonesismo, como no fundo do célebre Retrato de Emile Zola de Manet, de 1868. Quanto ao espelho da cómoda, desafio qualquer pessoa a encontrar a lógica do reflexo dos cortinados e da cadeira. Se a cadeira e o cortinado estivessem defronte ao espelho, impossível vê-los, dada a construção geométrica que o levou a colocar a personagem feminina sobre uma diagonal, dando uma ilusão de perspectiva no cruzamento com a mesa e o banco, na linha da qual se situaria o espectador. E evidentemente, nem sequer falo da hipótese de o cortinado e a cadeira se encontrarem na parede contígua, pois aí o cortinado ver-se-ia de lado e não de frente. O que é invisível, segundo as leis da perspectiva, torna-se, assim, visível, através do espelho da cómoda, do mesmo modo que n’As Meninas o que escapa ao nosso olhar porque fora do espaço da perspectiva, é-nos revelado graças ao espelho. Devo também salientar que, àparte a esquadria rigorosa com que são representados os elementos do mobiliário e em cuja grelha se integram as personagens, não existe um único ponto de fuga no quadro à parte o do espelho – mas este ponto de fuga é, como vimos, absolutamente arbitrário, é pura ilusão. Como no quadro de Velásquez, Malhoa representou um “capricho”, mas esta representação – com a perspectiva da cadeira em diagonal – diagonal que se reflecte no “bisauté” do espelho –, é mais subtil, porque tem como objectivo a ilusão naturalista, ou, o que o mesmo é dizer, os códigos da representação da tradição académica. O espelho é, por isso, um quadro no quadro que nos envia para a sua construção, como uma espécie de perspectiva que vem reforçar a falsa perspectiva, ou a ausência de perspectiva, do primeiro plano. Na realidade, Malhoa nega a modernidade da pintura de Manet, na qual se inspirara, para introduzir a ilusão de um efeito cénico de perspectiva clássico. Como afirmou Foucault a propósito da imagem do espelho d’As Meninas, “la fonction de ce reflet est d’attirer à l’intérieur du tableau ce qui lui est intimement étranger: le

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12. FOUCAULT, Michel, Les mots et les choses. L’archéologie des sciences humaines, Paris, Éditions Gallimard, 1966, p. 30.

regard qui l’a organisé et celui pour lequel il se déploie”12. Do mesmo modo, o espelho d’O Fado não mostra, não pode mostrar, o visível; ele não reflecte nada do que se encontra no espaço em que se encontra representado. A sua função não é o visível mas o objecto, intencional, mas elipsado, da representação. Como n’As Meninas, só o olhar do pintor, que organiza o nosso olhar sobre o mundo, pode aferir da sua veracidade. Como Velásquez, Malhoa dá-nos uma imagem das condições da representação. Encontrando-se na nossa linha do horizonte, o espelho d’O Fado afirma, assim, a sua omnipresença, em relação ao que mostra e ao que induz, através da força do olhar, que nos dirige em direcção ao centro, à cortina aberta sobre o vazio – ou seja, à melancolia do Fado, à fatalidade, como um inquietante enigma. A janela, como eco da solidão sobre o mundo, ou no mundo, a cadeira e a cama acabam, deste modo, por ter mais força do que a cena do primeiro plano, como uma imagem da nostalgia e do Desejo. É lá que o Fado exerce a sua força secreta e que se afirma o estatuto do pintor omnividente e organizador da nossa relação ao mundo – a concepção renascentista da Pintura tal como a definiu Alberti: a Pintura é outra coisa senão a arte de assim abraçar a superfície de uma fonte? Substituamos as palavras fonte, por espelho, e aí encontraremos a chave da arte de Malhoa: uma arte académica que não soube desembaraçar-se das tentações de Narciso.

Lucília Verdelho da Costa Doutorada em História da Arte, Universidade Nova de Lisboa

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notícia

mosaico da casa da medusa com representação de uma cena do canto xii da eneida de vírgilio. alter do chão. fotografia de jorge antónio. 2009.

Mosaico da “Casa da Medusa” Alter do Chão Em 1954, os trabalhos de construção do campo de futebol municipal da Vila de Alter do Chão colocaram parcialmente a descoberto as ruínas do povoado romano de Abelterium, referido no Itinerário de Antonino Pio numa das vias que ligavam Olisipo à capital da província romana da Lusitânia, Emerita Augusta. Bairrão Oleiro efectuou, entre em 1956 e 1957, duas campanhas de escavações, contando com a colaboração de Jorge Alarcão. Cinquenta anos depois da sua descoberta, foi iniciado um projecto de recuperação e valorização, durante o qual foram identificadas umas termas, uma habitação e uma necrópole datada da

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Antiguidade Tardia (séculos VI/VII). A intervenção arqueológica efectuada na “Casa da Medusa”, uma habitação de grandes dimensões, revelou, entre outros mosaicos, o pavimento do triclinium (com 53 m2), onde se destaca um medalhão apresentando, no centro de um escudo, a cabeça da Górgona. Em volta, uma cena do Canto XII da Eneida, com a qual Virgílio concluiu o seu poema épico e que se assemelha ao episódio da Ilíada, de Homero (Canto XXI), em que Aquiles vence Licáon. A figura principal será Eneias, portador do escudo em que está representada a Medusa. O penacho característico do seu capacete encontra-se quebrado pela lança de Turno que, derrotado, implora ao herói pela sua vida. Por detrás de Eneias estão três soldados troianos com barretes frígios, armados de lanças e escudos


va r i a · n ot í c i a

pormenores do mosaico da casa da medusa . alter do chão. fotografia de jorge antónio. 2009.

e, no lado oposto, três combatentes rútulos, igualmente armados com lanças e escudos, que assistem, cabisbaixos, à cena dramática que se desenrola à sua frente. Na base estarão representados, possivelmente, o génio do rio Tibre e o deus Vulcano, que fabricara as armas de

Eneias – a pedido de Vénus, sua mãe. A cronologia proposta para o mosaico circunscreve-se ao século IV d. C., mas a sua importância primordial advém do facto de surgir como um exemplar raro em todo o território que outrora constituiu o Império Romano.

Jorge António Gabinete de Arqueologia da Câmara Municipal de Alter do Chão

Maria Teresa Caetano Instituto de História da Arte/FCSH/UNL

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normas de redacção

regulations in the writing

Normas de redacção de artigos /recensões

Regulations in the writing of articles /critiques

01. objectivos

01. aims

A diversidade de autores, que colaboram com os seus trabalhos, na preparação desta publicação, exige o cumprimento de regras de normalização que têm como objectivo homogeneizar os conteúdos produzidos. Desta forma, torna-se premente o cumprimento destas normas aplicadas aos documentos produzidos, contribuindo para a qualidade da informação e documentação.

Due to the sheer diversity of authors that contribute with their articles to the magazine, we find that it is necessary to have rules and regulations to maintain a sort of consistency of the contents of each publication. Thus it is imperative that these regulations are followed in regards to the documents produced so as to contribute to the quality of the information and documentation.

02. publicação de artigos

02. publishing of articles

02.1 formatação aplicação : Microsoft Office Word tipo de letra : Times New Roman; tamanho 12 pt. numeração das páginas : Sequencial notas de rodapé: Numeração automática parágrafos: Alinhamento à esquerda com duplo espaçamento, não indentados.

02.1 format application: Microsoft Office Word font : Times New Roman; font size 12 pt. page numbering: Sequential footnotes: Automatic numbering paragraph: Left side alignment with double spacing, no indentation.

02.2 tamanho

02.2 size

Não deve exceder as 5000 palavras, ou cerca de 30 000 caracteres (com espaços).

Should not exceed 5000 words or about 30 000 characters (with spaces).

02.3 língua

02.3 language

Aceitam-se artigos em Português, Espanhol, Francês ou Inglês.

We accept articles in Portuguese, Spanish, French and English.

02.4 título

02.4 title

Claro e sintético em maiúsculas.

Clear and concise in capital letters.

02.5 subtítulo

02.5 subtitle

Opcional.

Optional.

02.6 resumo

02.6 abstract

Os resumos dos artigos não devem exceder o máximo de 1200 palavras, ou cerca de 7500 caracteres (com espaços), em português e, sempre que possível, em inglês.

Abstracts to the articles should not exceed 1 200 words, or around 7 500 characters (including spaces), in Portuguese and, if possible, in English.

02.7 palavras chave

02.7 keywords

Para cada artigo deverão ser indicadas até 5 palavras chave.

For each article a maximum of 5 keywords should be selected.

02.8 nota biográfica sobre o autor

02.8 small biography of the author(s)

• Assinatura a acompanhar o artigo • Afiliação Institucional • Contacto de email (opcional)

• A signature to go with the article • Institutional affiliation • Email contact (optional)

02.9 citações

02.9 quotes

Devem ser apresentadas entre aspas e acompanhadas por: (apelido do autor, data de edição da obra citada, nº da página).

Should be presented between quotation marks and accompanied by: (Author’s last name, date of edition of the quoted text, page number).

02.10 sistema abreviado autor-data

02.10 abbreviated system author-date

As referências no texto seguirão o sistema abreviado Chicago (autor data, página). Por exemplo (Grimal 1988, 65) ou (Hauschildt e Arbeiter 1993, 47). No caso de mais de dois autores, utiliza-se et al. (Laumann et al. 1994, 262). Artigos de imprensa, entrevistas e comunicações pessoais devem ser citados como notas finais, e não como referências bibliográficas abreviadas.

The references in the text will follow the Chicago abbreviated system (author date, page). For example (Grimal 1988, 65) or (Hauschildt e Arbeiter 1993,47). In case of two or more authors the use of et al is applicable. (Laumann et al. 1994, 262). News articles, interviews and personal communications must appear in footnotes, rather than in abbreviated bibliographical references.

02.11 bibliografia

02.11 bibliography

Toda a bibliografia segue as seguintes normas: exemplos (Monografias): • Silva, J.C.Vieira. 2003. O Fascínio do Fim. Lisboa: Livros Horizonte. Artigos de publicação em série. • Moreira, Rafael. 1983. A Acção Mecenática de Dom Miguel da Silva. O Mundo da Arte, Iª série: 111-123. Para esclarecer os casos não considerados nestes exemplos, os autores deverão consultar as normas de publicação no site: www.chicagomanualofstyle.org

All bibliography should abide by the following rules: examples (Monographs): • Silva, J.C.Vieira. 2003. O Fascínio do Fim. Lisboa: Livros Horizonte. Articles published in series. • Moreira, Rafael. 1983. A Acção Mecenática de Dom Miguel da Silva. O Mundo da Arte, Iª série: 111-123. In cases not considered by these examples, the authors should consult the rules of publication at the site: www.chicagomanualofstyle.org

02.12 ilustrações

02.12 images

• • • • •

Fotografias, desenhos, quadros, gráficos, mapas, devem ser fornecidas em papel ou digitalizadas a 300 dpi’s, em formato jpg ou tif, com o máximo de 28x22 cm; Cada imagem digital deverá ser gravada num ficheiro; Todas as ilustrações não digitalizadas, deverão ser entregues em papel, numeradas sequencialmente, e acompanhadas da respectiva legenda; No texto deverá ser mencionado o local exacto onde cada ilustração deve entrar, do seguinte modo: fig.1; fig.2; etc.; Deverá ser entregue um ficheiro independente com a relação de todas as imagens, legendas, e respectivos ficheiros que contêm essas mesmas imagens. exemplo: Fig. 1 > Amadeo de Sousa Cardoso – Pintura, 1913 (CAM-FCG) > Foto001.jpg

• Photos, drawings, tables, graphs and maps should be give either in paper format or digitalised in 300 dpi’s, in jpg or tif format, with a maximum of 28x22 cm; • Each digital image should be saved in a different file; • All non-digitalised images should be handed in on paper, sequentially numbered and accompanied by an inscription; • The text should mention the exact location where the image is to be inserted in the following manner: fig.1; fig.2; etc.; • A distinct file should be handed in with the relations between all the images, the respective inscriptions and files that contain the images. exemple: Fig. 1 > Amadeo de Sousa Cardoso – Pintura, 1913 (CAM-FCG) > Foto001.jpg

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02.13 créditos das ilustrações • •

No caso de os autores incluírem qualquer material que envolva a autorização de terceiros, é da responsabilidade destes obter a autorização escrita e assumir os seus eventuais encargos. No entanto, excepcionalmente, e a analisar caso a caso, o IHA pode intervir no pedido de autorização assumindo os custos. Os créditos devem ser fornecidos para cada uma das ilustrações do seguinte modo: autor, data, copyright.

03. publicação de recensões 03.1 obra recenseada

• •

If the authors include any material which involves the authorization of others, it is their responsibility to obtain a writing authorization and to take on the costs that it may imply. However, in certain situations to be analysed case-by-case, the IHA may intervene in the authorization by taking on the costs. Credit should be given for each image by this order: author, date, copyright.

03. publishing critiques 03.1 reviewed work

• Deverá ser identificada com: autor, data de edição, título, local de edição e editora. • A citação de outras obras para além da recenseada será feita somente no texto.

• Should be identified in the following way: Author, date of publication, title, place of publication and publisher. • Quotations from other works, besides the one reviewed, should be done in the text.

03.2 tamanho

03.2 size

As recensões não devem exceder as 1000 palavras (aprox. 6500 carac. com espaços).

All critiques should not exceed 1000 words (around 6 500 characters with spaces).

03.3 outras regras

03.3 other rules

As recensões deverão seguir as restantes normas dos artigos, designadamente: 02.1, 02.3, 02.7, 02.8.

The critiques should follow the aforementioned regulations, namely: 02.1, 02.3, 02.7, 02.8.

04. direitos de autor

04. author’s rights

No caso de os autores incluírem nos seus artigos qualquer material que envolva a autorização de terceiros, é da responsabilidade do próprio obter a respectiva autorização por escrito e assumir os eventuais encargos associados a essa autorização. No entanto, em casos excepcionais, e a analisar caso a caso, o IHA pode associar-se ao pedido de autorização com a assunção de encargos.

In case the authors include any material involving a third party, it is entirely his or her own responsibility to acquire its authorization in writing and to assume any costs. However, in exceptional situations to be analysed case-by-case, the Institute of History of Art may intervene in the authorization by taking on the costs.

05. revisões de provas

05. proofreading

O autor receberá provas do seu artigo, de forma a garantir que a versão final a publicar coincida com a submetida a apreciação, não sendo possível alterações substantivas. A revisão final das provas é da responsabilidade do Conselho Editorial, que garante a reprodução fidedigna dos textos.

The author will receive proofs of his or her article to guarantee that the final draft to be published coincides with the article submitted, as substantial alterations are not permitted. The final proofreading is entirely the responsibility of the Publishing Committee, who will guarantee that the reproduction of the texts is faithful to the original.

06. envio dos trabalhos

06. delivery of articles

06.1 material em formato digital

06.1 material in digital format

Todo o material digital deverá ser enviado para: iha@fcsh.unl.pt

All digital material should be sent to the following email: iha@fcsh.unl.pt

06.2 material em formato não digital

06.2 material in non-digital format

Todo o material não digital deverá ser assinado, e enviado para: Instituto de História da Arte – Revista de História da Arte Faculdade de Ciências Sociais e Humanas Av. de Berna, 26 C · 1069-061 Lisboa · Portugal

All non-digital material should be signed and sent to: Instituto de História da Arte –Revista de História da Arte Faculdade de Ciências Sociais e Humanas Av. de Berna, 26 C · 1069-061 Lisboa · Portugal

07. selecção e publicação de artigos/recensões

07. selection and publication of articles/critiques

07.1 Todos os artigos/recensões propostos para publicação na Revista de História da Arte serão submetidos à apreciação do Conselho Editorial, cujo parecer fundamentará a decisão de publicação. Este poderá, caso entenda necessário, recorrer ao seu conselho de referees, solicitando parecer científico. Em qualquer dos casos, é obrigatoriamente preenchida a “Ficha de Avaliação” (ver Anexo 1).

07.1 All articles/critiques applied for publication in Revista de História da Arte

07.2 Na avaliação, o Conselho Editorial privilegia dos artigos propostos para publicação, a sua originalidade científica.

07.2 During evaluation the Publishing Committee will always favour articles for their scientific uniqueness.

07.3 O Conselho Editorial e a Direcção da Revista de História da Arte reservam-se

07.3 The Publishing Committee and Board of the Revista de História da Arte are

o direito de proceder à uniformização das referências bibliográficas, bibliografia e a alterações formais, consideradas indispensáveis, sempre que estas não alterem o sentido do texto.

entitled to proceed with the uniformity of bibliographical references, bibliography and formal alterations, considered essential, as long as they do not change the meaning of the text.

07.4 O Conselho Editorial e a Direcção da Revista de História da Arte reservam-se o direito de proceder à: • reprodução, qualquer que seja o suporte • colocação à disposição do público universitário ou outros • divulgação, nas suas várias modalidades: redes digitais, sites... • distribuição e venda de exemplares da obra

07.4 The Publishing Committee and the Board of the Revista de História da Arte are entitled to: • reproduce the work, regardless of format • place the work at the disposal of the academic community and others • disseminate the work, in various ways: digital networks, sites... • distribute and sell copies of the work

07.5 Os autores serão informados no prazo de 3 meses, qual a data da publicação.

07.5 Authors will be informed of the date of publication in the space of 3 months.

07.6 Após a publicação, cada autor receberá um exemplar da revista.

07.6 After publication, each author will receive a copy of the magazine. Authors of articles will receive 30 addendums of their article. •

Para os autores de artigos receberão ainda 30 separatas dos mesmos. •

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02.13 credit for the images

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will undergo an appreciation of the Publishing Committee, upon whose judgement the decision of publication will be based. If necessary, it may resort to its referees committee, which will provide a scientific analysis. In any case, an evaluation sheet (see Appendix 1) must always be filled out.


anexo 1

appendix 1

Ficha de Avaliação das proposta de artigos a ser preenchida pelos membros do Conselho Editorial e/ou do Conselho de Referees internacional, em face das respectivas especialidades.

Evaluation sheet for any proposal of articles to be filled out by the members of the Publishing Committee and/or the International Referees Committee, in regards to their respective specialities.

título do artigo

title of article

recepção do original envio ao referee código de referee

reception of the original sent to referee referee code

01. O artigo cabe no âmbito de um número da revista Revista de História da Arte centrado nas questões metodológicas? Sim Não

01. Does the article fall under a number of the Revista de História da Arte, focusing on the methodological questions? Sim Não

02. O artigo parece-lhe: Publicável na forma actual Publicável com ligeiras modificações Publicável se for refeito Não publicável 03. O artigo é: Demasiado longo (indicar onde deve ser encurtado) Demasiado curto (indicar onde deve ser desenvolvido) Apropriado 04. Apresentação do artigo: Estrutura Bibliografia

02. Does the article seem: Publishable in its current form Publishable with some minor modifications Publishable if it is rewritten Not publishable 03. The article is: Too long (indicate where it can be shortened) Too short (indicate where it should be more elaborated) Appropriate 04. Article’s presentation Structure Bibliography

05. Conteúdo do artigo (utilizar uma folha anexa, inserindo sugestões ao(s) autor(es), recorrendo, se necessário, a alguns dos tópicos seguintes): • Tema, novidade, pertinência • Revisão do estado da questão • Teoria (domínio pelo(s) autor(es), confronto teórico, problematização, profundidade, etc.) • Metodologia (formulação do problema, delimitação do objecto, modelos, hipóteses, estratégias de investigação, procedimentos, definição de conceitos, tratamento de dados,desenvolvimento da análise, fundamentação das conclusões, etc.) • Dados empíricos (sustentação da análise, fontes, informação seleccionada) • Exposição (planos, equilíbrio, sequências, concisão) • Sugestões pontuais (feitas a lápis no texto original) 06. Comentários (não assinados)

05. Article’s content (use a sheet as attachment and insert suggestions to the author(s), by using some of the following topics if necessary): • Theme, novelty, relevance • Review of the state of the theme • Theory (the author’s grasp of the subject, theoretical confrontation, questioning, depth, etc.) • Methodology (problem formulation, object delimitation, models, hypothesis, investigative strategies, procedures,

definition of concepts, treatment of data, development of the analysis, validity of the conclusions, etc.) • Empirical data (analysis support, sources, selective information) • Exposition (plans, balance, sequences, conciseness) • Suggestions (written in pencil on the original text) 06. Remarks (not signed) •

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Ourivesaria e Joalharia IV Curso Monográfico OUTUBRO 2008 a MARÇO 2009 Museu Nacional de Arte Antiga Auditório Coordenação Científica Luísa Penalva


ficha de assinatura revista de história da arte Assinatura 1 ano (2 números) = 25 €

Para receber em casa as duas próximas edições da Revista de História da Arte, preencha este formulário com os seus dados e junte um cheque* no valor total de 25 € **.

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Instituto de Hist贸ria da Arte Faculdade de Ci锚ncias Sociais e Humanas Universidade Nova de Lisboa


Revista de História da Arte N.5 2008 Ficha Técnica instituto de história da arte faculdade de ciências sociais e humanas · universidade nova de lisboa

iss n 16 46 -17 6 2

revista académica de teoria e história da arte portuguesa e suas articulações internacionais, publicada pelo Instituto

à comunidade científica e académica, incluindo professores, investigadores

n.2 2006

de História da Arte.

e estudantes. Cada número da Revista

de História da Arte é dedicado a um tema específico, tratado em artigos originais. No entanto, cada número dispõe de secções abertas a outros domínios

n.3 2007

temáticos: Recensões, Varia e Notícias.

Costa Pinheiro, D. Sebastião, 1966. Colecção Manuel de Brito, Lisboa. Cortesia da Galeria 111 (autoria desconhecida).

Revista de História da Arte, o seu nº 5, recolhe a maioria das conferências que estruturaram o XI Curso Livre do Instituto de História da Arte, consagrado à temática do Retrato que decorreu, com assinalável sucesso, em 2007. Como também é marca distintiva dos nossos cursos livres, a temática do retrato foi tratada numa cronologia extensiva, da Antiguidade Romana em Portugal, passando pela Idade Média, percorrendo o Renascimento e o Barroco para terminar nos tempos mais próximos, do século XIX aos nossos dias. Cumprimos também outro dos traços da nossa actuação: tivemos conferências de docentes do Departamento de História da Arte e de alguns dos nossos discípulos, mas, sobretudo, de colegas que trabalham noutras Universidades ou Institutos Politécnicos (Universidade Aberta, Universidade de Coimbra, Universidade Católica, Instituto Politécnico de Tomar) e do Museu Nacional de Arte Antiga, com quem mantemos relacionamentos pessoais e institucionais que são um dos mais estimulantes sinais do excelente estado da história da arte em Portugal.

apo i o s

n.4 2007

© fotografia da capa e contracapa

e acordo com a linha programática da

de História da Arte, da Faculdade

N.5

2008

fac u l da d e d e c i ê n c i a s s o c i a i s e h u m a n a s – u n l

direcção (fcsh/unl)

Ramón Rodrigues Llera

M. Justino Maciel

(Universidade de Valladolid, Espanha)

Raquel Henriques da Silva

Thomas Noble Howe

conselho científico

(Southwestern University, EUA)

e editorial (fcsh/unl)

tradução

Carlos Moura

Michelle Nobre

José Custódio Vieira da Silva

secretariado

Manuel Justino Maciel

Ana Paula Louro

Maria Adelaide Miranda

edição

Rafael Moreira

Instituto de História da Arte

Raquel Henriques da Silva

concepção gráfica

conselho científico externo

e paginação

Etelvina Fernández González

Rita Palla

(Universidade de León, Espanha)

impressão e acabamentos

Fernando Acuna Castroviejo

Heragráfica, artes gráficas lda.

(Universidade de Santiago

tiragem

de Compostela, Espanha)

1 000 exemplares

Hellmut Wohl

depósito legal

(Universidade Boston, EUA)

227 341/05

Joaquin Yarza Luaces

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(Universidade Autónoma

1646-1762

de Barcelona, Espanha) Luís Moura Sobral (Universidade de Montreal, Canadá) Mário Henrique D’Agostino (Universidade de São Paulo, Brasil)

Preço de venda ao público 15,00 € (5% de IVA incluído) © Copyright 2008 Autores e Instituto de História da Arte

Agradecimentos

O Retrato

D

A Revista de História da Arte é uma

Destina-se predominantemente

Publicação Semestral do Instituto de Ciências Sociais e Humanas, UNL

n.1 2005

avenida de berna, 26 c 1069-061 lisboa tel. 217 908 300 · ext. 1540 e-mail iha@fcsh.unl.pt 09h00-12h30 · 13h30-18h00

O Retrato

N .5 2008

Câmara Municipal de Lisboa – Direcção Geral de Arquivos; Direcção-Geral do Livro e das Bibliotecas; Museu da Cidade – Divisão de Museus; Fundação da Casa de Bragança; Fundação para a Ciência e a Tecnologia; Instituto de Gestão do Património Arquitectónico e Arqueológico; Instituto dos Museus e da Conservação; Museu Nacional de Arqueologia; Palácio Nacional de Mafra; Relógio d’Água. A edição nº5 da Revista de História da Arte foi apoiada pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) e pela Direcção-Geral do Livros e das Bibliotecas (DGLB). A Revista de História da Arte encontra-se indexada no catálogo Internacional Latindex.


Revista de História da Arte N.5 2008 Ficha Técnica instituto de história da arte faculdade de ciências sociais e humanas · universidade nova de lisboa

iss n 16 46 -17 6 2

revista académica de teoria e história da arte portuguesa e suas articulações internacionais, publicada pelo Instituto

à comunidade científica e académica, incluindo professores, investigadores

n.2 2006

de História da Arte.

e estudantes. Cada número da Revista

de História da Arte é dedicado a um tema específico, tratado em artigos originais. No entanto, cada número dispõe de secções abertas a outros domínios

n.3 2007

temáticos: Recensões, Varia e Notícias.

Costa Pinheiro, D. Sebastião, 1966. Colecção Manuel de Brito, Lisboa. Cortesia da Galeria 111 (autoria desconhecida).

Revista de História da Arte, o seu nº 5, recolhe a maioria das conferências que estruturaram o XI Curso Livre do Instituto de História da Arte, consagrado à temática do Retrato que decorreu, com assinalável sucesso, em 2007. Como também é marca distintiva dos nossos cursos livres, a temática do retrato foi tratada numa cronologia extensiva, da Antiguidade Romana em Portugal, passando pela Idade Média, percorrendo o Renascimento e o Barroco para terminar nos tempos mais próximos, do século XIX aos nossos dias. Cumprimos também outro dos traços da nossa actuação: tivemos conferências de docentes do Departamento de História da Arte e de alguns dos nossos discípulos, mas, sobretudo, de colegas que trabalham noutras Universidades ou Institutos Politécnicos (Universidade Aberta, Universidade de Coimbra, Universidade Católica, Instituto Politécnico de Tomar) e do Museu Nacional de Arte Antiga, com quem mantemos relacionamentos pessoais e institucionais que são um dos mais estimulantes sinais do excelente estado da história da arte em Portugal.

apo i o s

n.4 2007

© fotografia da capa e contracapa

e acordo com a linha programática da

de História da Arte, da Faculdade

N.5

2008

fac u l da d e d e c i ê n c i a s s o c i a i s e h u m a n a s – u n l

direcção (fcsh/unl)

Ramón Rodrigues Llera

M. Justino Maciel

(Universidade de Valladolid, Espanha)

Raquel Henriques da Silva

Thomas Noble Howe

conselho científico

(Southwestern University, EUA)

e editorial (fcsh/unl)

tradução

Carlos Moura

Michelle Nobre

José Custódio Vieira da Silva

secretariado

Manuel Justino Maciel

Ana Paula Louro

Maria Adelaide Miranda

edição

Rafael Moreira

Instituto de História da Arte

Raquel Henriques da Silva

concepção gráfica

conselho científico externo

e paginação

Etelvina Fernández González

Rita Palla

(Universidade de León, Espanha)

impressão e acabamentos

Fernando Acuna Castroviejo

Heragráfica, artes gráficas lda.

(Universidade de Santiago

tiragem

de Compostela, Espanha)

1 000 exemplares

Hellmut Wohl

depósito legal

(Universidade Boston, EUA)

227 341/05

Joaquin Yarza Luaces

issn

(Universidade Autónoma

1646-1762

de Barcelona, Espanha) Luís Moura Sobral (Universidade de Montreal, Canadá) Mário Henrique D’Agostino (Universidade de São Paulo, Brasil)

Preço de venda ao público 15,00 € (5% de IVA incluído) © Copyright 2008 Autores e Instituto de História da Arte

Agradecimentos

O Retrato

D

A Revista de História da Arte é uma

Destina-se predominantemente

Publicação Semestral do Instituto de Ciências Sociais e Humanas, UNL

n.1 2005

avenida de berna, 26 c 1069-061 lisboa tel. 217 908 300 · ext. 1540 e-mail iha@fcsh.unl.pt 09h00-12h30 · 13h30-18h00

O Retrato

N .5 2008

Câmara Municipal de Lisboa – Direcção Geral de Arquivos; Direcção-Geral do Livro e das Bibliotecas; Museu da Cidade – Divisão de Museus; Fundação da Casa de Bragança; Fundação para a Ciência e a Tecnologia; Instituto de Gestão do Património Arquitectónico e Arqueológico; Instituto dos Museus e da Conservação; Museu Nacional de Arqueologia; Palácio Nacional de Mafra; Relógio d’Água. A edição nº5 da Revista de História da Arte foi apoiada pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) e pela Direcção-Geral do Livros e das Bibliotecas (DGLB). A Revista de História da Arte encontra-se indexada no catálogo Internacional Latindex.


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