Revista de História da Arte (n.º7 / 2009)

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Imagem, memória e poder Visualidade e Representaçã0 (séc. xii-xv) N.º 7 2009 Instituto de História da Arte Faculdade de Ciências Sociais e Humanas Universidade Nova de Lisboa

Edição Instituto de História da Arte


abreviaturas A N T T Arquivo Nacional da Torre do Tombo B G U C Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra B N F Biblioteca Nacional de França B N P Biblioteca Nacional de Portugal C N R S Centre national de la recherche scientifique D G A R Q -T T Direcção-Geral de Arquivos

– Torre do Tombo I E M Instituto de Estudos Medievais I P PA R Instituto Português do Património Arquitectónico E H E S S École des Hautes Études, Sorbonne F C T Fundação para a Ciência e a Tecnologia F C S H - U N L Faculdade de Ciências Sociais e Humanas – Universidade Nova de Lisboa F L- U L Faculdade de Letras – Universidade de Lisboa G A H O M Grupo de Antropologia Histórica sobre o Ocidente Medieval


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Entrevista com José Mattoso

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conduzida por José Custódio Vieira da Silva, Maria Adelaide Miranda e Bernardo Vasconcelos e Sousa

O poder da imagem: encantos, ambiguidades e valorizações

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Aires A. Nascimento

Representação dos judeus nas bíblias historiadas

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Adelaide Miranda, Luís Correia de Sousa

Owner portraits and heraldry in the Lamoignon Hours

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Ragnhild Marthine Bø

O Livro de Horas de D. Duarte e o ms. Lat. 10538 (BNF, Paris): as ligações com o ateliê do Mestre de Mazarine

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Ana Lemos

«Sculpto immagine episcopali» jacentes episcopais em Portugal (séc. XIII-XIV)

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José Custódio Vieira da Silva, Joana Ramôa

Des histoires de famille La dévotion aux Trois Maries en France du XIVe au XVe siècle

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Claudia Rabel

Les Très Riches Heures et les Heures Bedford

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Patricia Stirnemann

Imagem e Tempo Representações do poder na Crónica Geral de Espanha

153

Horácio A. Peixeiro

Imagens de santos na Sé de Coimbra no episcopado de Miguel Salomão (séc. XII)

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Mário de Gouveia

Recensões

193

Varia

213

Notícias

282

Índice

Editorial


O

número 7 da Revista de História da Arte, que ora se apresenta ao público, é integralmente dedicado à Arte Medieval. Dá-se, desta forma, continuidade à opção por números dedicados às épocas históricas consagradas na cronologia da Arte Ocidental, decidida pela Direcção e Comissão Científica da Revista de História da Arte, e que foi iniciada com o número anterior, dedicado ao mundo romano – mais especificamente, ao Mosaico na Antiguidade Tardia. Esta continuidade cronológica/epocal que se verifica no presente número, apesar de não ter sido conscientemente procurada – resultou, antes, de meros acasos e de circunstâncias fortuitas – não deixa, no entanto, de se oferecer como mais valia da percepção e fundamentação da evolução artística, sem que tal signifique a adesão a quaisquer historicismos serôdios e ultrapassados. A temática que dá consistência ao presente número, e que constitui o cerne dos principais artigos de investigação, diz respeito à Imagem, entendida, para além de outros considerandos, sobretudo como discurso de afirmação do Poder e como forma privilegiada de manutenção da Memória, entre os séculos XII e XV. A razão primeira que justifica o porquê desta temática, prende-se com o desenvolvimento de um projecto de investigação – o Projecto Imago, aprovado e financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), destinado à criação de uma base de dados de iconografia medieval portuguesa. Os pormenores relativos a esse projecto, que se desenvolveu entre os anos de 2005 e 2008, poderá o leitor encontrá-los em notícia alargada na parte final deste número da Revista de História da Arte, assinada pelos seus principais responsáveis. O que neste intróito da Revista importa sublinhar é que esse Projecto reuniu, de forma absolutamente original, dois campos artísticos e iconográficos bem diferenciados: a iluminura e a escultura tumular. A união destes dois mundos da representação medieval numa única base de dados, permitindo a sua interligação e potenciando de forma inesperada os resultados das pesquisas, revelou-se, desta forma, como a maior originalidade do Projecto Imago não só no contexto português como também no contexto europeu. Assim, investigadores e simples interessados passaram a ter, entre mãos, uma útil e acessível ferramenta que em muito lhes facilitará a prossecução e o aprofundamento dos trabalhos nesta área específica da arte medieval. O Projecto Imago não se resumia, naturalmente, apenas à criação de uma base de dados. Entre outros itens, fazia parte do seu programa de intenções a realização de um Seminário internacional que permitisse, por um lado, a troca directa de experiências com outros investigadores envolvidos em projectos semelhantes (particularmente com Patrícia Stirnemann, investigadora do CNRS (Paris) e responsável pela base de dados Enluminures, cuja gentil disponibilidade para seguir e aconselhar o projecto português nos deixa devedores de um profundo agradecimento) e que servisse, por outro lado, de motivo para a apresentação pública do Projecto e do estado da investigação sobre uma temática de grande actualidade, tendo em vista, inclusivamente,

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Editorial

o seu impacto no mundo actual: a função, a importância, o alcance da Imagem, avaliada seja pelo seu poder intrínseco seja pela sua apropriação pelo Poder. Problemas, afinal, de visualidade e de representação, assumidos a uma escala europeia (embora com maior incidência em Portugal) entre os séculos XII e XV: da importância destes temas dá conta também José Mattoso, figura tutelar da medievalidade portuguesa, em entrevista de enorme significado na abertura deste número da Revista de História da Arte. Foi, pois, desse Seminário, organizado pelos Instituto de Estudos Medievais (IEM-UNL) e Instituto de História da Arte (IHA-UNL) e realizado na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas-UNL, que resultaram os artigos principais que dão consistência, como dissemos, à temática desta Revista de História da Arte. Investigadores com créditos já firmados apresentam reflexões de síntese, de grande densidade intelectual, como é o caso do artigo subscrito por Aires do Nascimento, ou análises de incidência mais restrita, com igual profundidade e originalidade, como é o caso do artigo de Patrícia Stirnemann, que propõe um novo olhar sobre o Livro de Horas dito de Bedford. Falta, neste contexto, a reflexão de Fernando Galván sobre La imagen del poder: iconografía del soberano en el reino de León (1126-1230). Especialista reputado em iconografia hispânica medieval e consultor do Projecto Imago, a sua morte inesperada impediu a escrita final do seu artigo que assim não pôde, como desejaríamos, dar mais consistência a este número da Revista. Fica a homenagem singela e amiga dos que com ele conviveram. Os responsáveis principais do Projecto Imago – José Custódio Vieira da Silva e Maria Adelaide Miranda – assinam com dois jovens investigadores, Joana Ramôa e Luís Sousa, respectivamente, artigos que sintetizam, de alguma forma, as linhas de investigação fundamentais inerentes a esse projecto, propondo, a partir de inovadoras análises iconográficas possibilitadas quer pelos jacentes medievais quer pela iluminura, novas reflexões sobre a sociedade e as mentalidades dessa época. Ao mesmo tempo, dão o mote para os outros artigos que compõem o corpo da Revista, seja nos temas abordados seja no espaço dado a jovens investigadores, em que se incluem também os responsáveis pelos artigos originais da secção Varia. É de salientar, neste contexto, a presença assinalável de vários investigadores estrangeiros, situação que nos deixa particularmente satisfeitos pelo que representa de adesão a um projecto editorial pensado e concretizado no espaço abrangente do Instituto de História da Arte da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas-UNL. A abertura das páginas da Revista de História da Arte a jovens investigadores, tanto nacionais como estrangeiros, com provas já dadas de capacidade de investigação e de reflexão, tem que ser entendida como um sinal positivo e muito promissor de que o futuro da História da Arte (e, neste caso mais específico, da Arte Medieval) se encontra assegurado.

José Custódio Vieira da Silva (IHA/FCSH/UNL) Maria Adelaide Miranda (IEM/FCSH/UNL)

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josé mattoso

J

osé João da Conceição Gonçalves Mattoso (Leiria, 1933), Professor Catedrático Aposentado da Universidade Nova de Lisboa, foi também docente na Faculdade de Letras (U.L.) (1971-1978); regeu diversos cursos na Un. Coimbra, no Inst. Sup. Técnico e na Un. Cat. Portuguesa; leccionou e orientou seminários nas Un. de Paris (Sorbonne), Bordéus, Poitiers, Santander, Santiago de Compostela, Sevilha, Oviedo, Roma e Díli, entre outras. Integra o Instituto de Estudos Medievais (UNL), de cuja revista – Medievalista OnLine - é director. Foi membro da Comissão Instaladora da FCSH (UNL) (1977-1982), a cujo Conselho Científico presidiu (1984); Director da FCSH (1986-1987); Vice-Reitor da UNL (1991-1995); Coordenador da Comissão para a Reforma e Reestruturação do A.N. T. Tombo (1986-1988); Presidente do Inst. Port. Arquivos (19881990); Director do Inst. Arq. Nac. / T.

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Tombo (1996-1998); Vice-Presidente do Cons. Sup. de Arquivos (1999); vogal do Cons. Ed. da Impr. Nac. – Casa da Moeda (1986-1999). A História de Portugal (Círculo de Leitores, 1992-1993) que dirigiu e da qual escreveu partes substanciais do 1.º e do 2.º vol.s, constitui uma referência entre a recente historiografia portuguesa: para além da história social, política e cultural, é o processo de construção da identidade nacional que analisa e interpreta. Em Ricos-Homens, Infanções e Cavaleiros (1.ª ed., Guimarães Ed., 1982) e Identificação de um País (1ª ed., Ed. Estampa, 1985), estuda os factores que diferenciam Portugal dos reinos cristãos peninsulares da época, bem como as razões que viabilizaram e “compuseram” um país marcado por fortes contrastes regionais, históricos e culturais. A inovação e a originalidade da sua extensa obra, explorando campos iné-

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ditos, bem como as suas sugestivas interpretações, resultam duma abertura interdisciplinar e não apenas duma abordagem ensaística. Por trás das sínteses está um minucioso e paciente trabalho de altíssima erudição, de que é exemplo a edição crítica de fontes históricas, como os livros de linhagens medievais portugueses (Nova Série dos Portugaliae Monumenta Historica, Acad. das Ciências de Lisboa, 1980). Recebeu, entre outros, o “Prémio Augusto Botelho da Costa Veiga”, Acad. Port. História (1982); “Prémio de História Medieval Alfredo Pimenta”, Fund. Cal. Gulbenkian (1985); “Prémio de Ensaio do Pen Clube” (1986); “Prémio Pessoa”, Expresso/Unisys (1987); “Prix Böhus-Szögyény”, Conféd. Internat. de Généalogie et d’Héraldique (1991); “Troféu Latino”, União Latina (2007); doutoramento Honoris Causa da Univ. Lisboa (1998).


Entrevista

com

jos e´ mattoso conduzida por J O S É C U S T Ó D I O V I E I R A D A S I LVA B E R N A R D O VA S CO N C E LO S E S O U S A MARIA ADELAIDE MIRANDA

1. Uma das suas obras maiores, que constitui um marco insuspeito no entendimento do nascimento, formação e consolidação de Portugal, é A Identificação de um País. Aí se encontram exemplificados todos os dotes excepcionais do investigador e pensador que é José Mattoso, sobretudo os que têm a ver com a elevadíssima capacidade de intuir e demonstrar, de forma nova, factos e documentos tantos vezes já conhecidos mas que assumem, de repente, uma novidade absoluta e sedutora. – Como se foi construindo esta obra? Quando redigi a minha tese de doutoramento acerca dos mosteiros beneditinos da diocese do Porto, verifiquei que, apesar de serem várias dezenas, se situavam todos numa área muito reduzida do Entre Douro e Minho e no vale do Douro. Algum tempo depois, quando dirigi na Faculdade de Letras de Lisboa, um seminário sobre direitos senhoriais a partir dos forais dos séculos XII e XIII, verifiquei, por outro lado, que os chamados concelhos «urbanos» ou «perfeitos» se situavam numa área diferente, isto é, no Centro e Sul do país e em Trás-os-Montes, mas não apareciam no Entre Douro e Minho e na região do Vouga. Parecia haver uma verdadeira incompatibilidade entre a vida monástica e a organização municipal. A Identificação de um país constitui uma interpretação daquele fenómeno histórico que consiste na implantação de estruturas sócio-económicas diferenciadas em áreas geográficas específicas. Ao

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tentar compreender o comportamento histórico de cada uma dessas regiões, verifiquei que coincidiam aproximadamente com áreas diferenciadas em termos de geografia humana, de linguística, de estruturas de parentesco, de tecnologia agrícola, de opções políticas, de estrutura social e económica, etc. Ao processo histórico do qual resulta este fenómeno chamou alguns anos depois García de Cortázar, numa fórmula feliz, «construção social do espaço».

2. É verdade que pesou, na hora de escolher um título, a influência do filme Identificação de uma mulher, de Michelangelo Antonioni? Sim, é verdade. Ao tentar compreender esse objecto de observação exterior a mim próprio, a que os historiadores, os geógrafos, os políticos, os sociólogos chamam «Portugal», percebi que a definição da diversidade estrutural do seu espaço representava um começo de resposta. Assim como no filme de Antonioni, o personagem masculino procura compreender a mulher que ama e vai observando alguns dos traços que pensa caracterizarem-na, sem todavia conseguir atingir plenamente o mistério que afinal a define, assim também me pareceu que a diversidade dos espaços do nosso país constituía um dado essencial para a compreensão do seu comportamento histórico. Mas percebi também, ao mesmo tempo, que seria demasiado pretensioso julgar assim ter descoberto o segredo completo da sua identidade. Tinha dado apenas um passo nesse sentido. Nem sequer podia estar seguro de a minha descoberta ter atingido o essencial. De resto, o título do filme sugeria também que o conhecimento do «outro» nunca é definitivo. Tem de se recomeçar indefinidamente porque o «outro» se vai também transformando, como a própria vida.

3. Esta última questão tem a ver, além do mais, com a aproximação de José Mattoso ao mundo da História da Arte, a que dedicou, aliás, uma das suas primeiras reflexões: – Pode-se dizer que a História da Arte foi uma sua primeira paixão? Porque não enveredou totalmente por ela? Nunca tinha pensado que a escolha de uma metáfora inspirada pelo título de um filme tivesse que ver com o meu interesse pela História da Arte. Talvez haja de facto uma certa relação. Aqui no caso, pretendia mais exprimir a sempre inacabada compreensão, tanto racional como intuitiva, da realidade, do que o meu apreço (que também me marcou) pela obra artística de Antonioni. Mas a relação com a História da Arte não deixa de estar presente, como atenção às manifestações artísticas da vida humana, pelo facto de que só a sensibilidade a elas pode abrir a porta à compreensão de uma grande quantidade de fenómenos históricos – sem dúvida essenciais. Por outro lado, não me ocupei expressamente da Arte na Identificação de um país. É verdade que os meus primeiros trabalhos escritos tiveram como objecto as igrejas românicas dos mosteiros beneditinos. Nessa altura o que me interessava era a história monástica. Pretendia saber se se podia falar num «românico beneditino»

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com características próprias, diferentes das de outros templos românicos diocesanos ou pertencentes a outras ordens religiosas. Foi um pequeno conjunto de artigos de principiante. Tinha nessa altura 18 anos. A História da Arte é efectivamente uma via insubstituível da compreensão do passado porque se ocupa de aspectos da vida humana que a racionalidade e aproximação discursiva não podem atingir.

4. Como entende a dimensão avassaladora que a imagem tem hoje em quase todas as chamadas Ciências Sociais? É, de facto, uma das manifestações mais significativas e mais profundas da cultura actual. O fenómeno pode-se estudar do ponto de vista teórico, em termos filosóficos e sócio-culturais. Não tenho nenhuma competência nesses termos. Mas também não é preciso nenhuma formação especial para perceber a imensa virtualidade da imagem como expressão da multiplicidade de sentidos decorrentes da percepção intuitiva da realidade e que a percepção racional e discursiva não alcança. Trata-se, até certo ponto, de uma forma de representação da realidade pouco cultivada pelo iluminismo, o positivismo e o idealismo. Também está presente mas, de certa forma oculta, na época moderna pela representação realista. Mas na época medieval é mais do que evidente. Foi recuperada, de forma cada vez mais variada e complexa, desde o começo do século XX. Lembro-me, por exemplo, que os primeiros compêndios de História não tinham gravuras. A edição original de Alexandre Herculano, e os textos clássicos de Rebelo da Silva, Costa Lobo ou Gama Barros, também não. As gravuras de Pinheiro Chagas e da História de Barcelos eram puras ilustrações ou elementos decorativos das suas Histórias de Portugal; não propriamente documentação gráfica. Hoje a documentação gráfica faz parte essencial de qualquer obra histórica e constitui um complemento indispensável do texto, ou um recurso que o texto não pode dispensar, quer como síntese de indicadores históricos (como na cartografia ou nos gráficos) quer como representação sintética e concreta de códigos mentais da época em que foi produzida. Ao observar uma imagem de um cavaleiro do século XIII ou de um cortesão do século XVIII, compreendem-se aspectos da sociedade que nenhuma descrição, mesmo pormenorizada, pode substituir. Noutro sentido, a presença de elementos decorativos, como as iluminuras, traduz, só por si, aspectos da mentalidade medieval que a explicação discursiva também não consegue atingir.

5. A sociedade actual é muitas vezes apresentada como a sociedade do triunfo da imagem. Mas não seria a sociedade do Ocidente medieval também uma sociedade da imagem, talvez até de um modo mais flagrante do que a actual? Sim, mas num sentido diferente, acho eu. Diria – não sei se com suficiente rigor –, que a imagem medieval adopta um processo de expressão simbólica global, ao passo que a imagem triunfante na actualidade disseca, selecciona, analisa, acentua pormenores considerados especialmente expressivos. Até certo ponto, diria que a imagem

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moderna (fotografia, pintura, desenho, retrato, etc,) tende a interpretar aspectos parciais da realidade mas não a totalidade. Ou então, como no impressionismo, no expressionismo e até no cubismo, a imagem traduz a apreensão subjectiva e transitória, mais do que uma concepção do mundo ou da existência; não exprime as coisas, mas o efeito que têm sobre o sujeito. A imagem torna-se, portanto, fragmentária, transitória, parcial. Deste ponto de vista, é o inverso da imagem medieval, que em vez de dividir, une. É o que acontece com todo o processo simbólico, que reduz o múltiplo, o contraditório e o passageiro, ao único e ao permanente. O rei é sempre representado com uma coroa; o cavaleiro sempre com o cavalo e a espada; o bispo, sempre com uma mitra. Representa-se, portanto, o modelo, como concretização do ideal, e não a sua incarnação concreta.

6. Além das imagens patentes na pintura, na escultura, na iluminura, nos vitrais e em outros variados suportes e modalidades de expressão das artes visuais, a cultura letrada medieval era também pródiga em imagens literárias (descrições realistas ou efabuladas, recurso a metáforas e alegorias, utilização recorrente de hipérboles...). Significa isso que mesmo o pensamento erudito (e não só a “cultura popular”) na Idade Média assenta e se estrutura mais numa base imagética do que conceptual, ou, se preferir, com o imaginário a pesar mais do que a experiência sensível? Exactamente. Esse processo que consiste em conceber a existência como um caminho para a perfeição, supõe que o valor da história, da existência humana no tempo e no espaço, é tanto maior quanto mais perto se chega desse ideal. É o que certos tratados designam como «espelhos»: deste ponto de vista, os «espelhos dos príncipes» são o género de obras mais típico; mas há também os «espelhos da boa morte». As referências a figuras reais ou imaginárias de carácter exemplar, como Carlos Magno, modelo do imperador, Rolando e Galaaz como modelos do cavaleiro, S. Martinho de Tours como modelo do bispo, e assim sucessivamente, têm uma função análoga. A força simbólica destes modelos retarda ou condiciona as manifestações progressivamente mais frequentes e mais variadas, mas ainda ambíguas até ao fim do século XV, das representações da individualidade ou da autonomia do sujeito face à instituição e à sociedade.

7. A sociedade actual constrói e divulga representações fortes das sociedades medievais. As mais impressivas são do âmbito do senso comum: a maioritária, muito vulgar no discurso político e no seu subproduto, o discurso jornalístico, é a de uma Idade Média retrógrada e obscura, uma Idade Média de “feios, porcos e maus”; uma outra imagem actual sobre a medievalidade é a imagem tributária do romantismo, de uma época medieval de serenidade e harmonia (da espécie humana com a natureza, da espécie humana consigo própria,

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da espécie humana com a divindade...). Por que razão são estas representações, tão redutoras, as que triunfaram, em termos gerais, no nosso tempo, sobre a Idade Média? Penso que as representações redutoras, sumárias e, ao mesmo tempo, mais acessíveis ao grande público do que a representação autenticamente simbólica, resultam, em última análise, do «complexo de superioridade» renascentista para com a Idade Média. Os humanistas contrapunham a escultura grega e romana, com os seus corpos divinamente jovens, à escultura medieval, que tanto representava o triunfo escatológico de Cristo pantocrator, nos tímpanos das igrejas, como os demónios e obscenidades, nas gárgulas das mesmas igrejas. A Idade Média não esquecia nem ocultava a fealdade do mundo concreto, pelo facto de a contrapor ao ideal que propunha como meta da existência, ao passo que o humanismo renascentista a considerava como indigna de representação. A esta exclusão do «feio», juntava-se desde meados do século XIV, a representação obsessiva da morte e do macabro, que o humanismo abandonava em favor da representação da vida, da juventude e da força. A esta oposição renascentista que identifica a Idade Média como «tempo das trevas», sucedeu, na época romântica, a concepção da Idade Média como tempo dos mistérios, da magia, do espírito nacional e dos heroísmos sentimentais, que era, afinal, uma interpretação distorcida dos aspectos menos racionais da medievalidade. A representação da Idade Média como tempo de «feios, porcos e maus», como a que prevalece, por exemplo, na versão cinematográfica de «O nome da rosa», tem alguma coisa que ver, creio eu, com a corrente cinematográfica americana que procura uma reconstituição exacta, documentada, arqueológica, do passado como a que preside ao «Quo vadis» ou à «Cleópatra». Pretende-se uma representação realista, que, ao fim e ao cabo, desmascara, por assim dizer, a representação medieval prevalentemente idealista. Mas esta opção é, afinal, um logro, porque o sentido simbólico da representação medieval do mundo não pretende retratar o que existia – a não ser enquanto campo de luta entre o bem e o mal, ou conflito dos vícios e das virtudes – mas o sentido que atribuía a essa mesma luta.

8. Uma das questões fundamentais que se coloca nos estudos na área da História é o da autonomia da História da Arte. O facto da imagem conter a historicidade comum a todo o documento mas também possuir uma tradição visual e mistério inerente a toda a arte que não se esgota na sua leitura, justifica, para si, essa autonomia? A este respeito queria fazer uma distinção. De um ponto de vista metodológico, a autonomia de História da Arte como disciplina por si mesma, permite alargar e aprofundar conhecimentos específicos. Deve-se, portanto, valorizar sem qualquer problema. Este valor não depende do seu uso como «serva» da História em geral, mas do aprofundamento de todos os aspectos que permitem compreender a arte como expressão do autor na sua relação com o mundo, tal como a linguística,

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a antropologia ou a sociologia – o que supõe a consideração de conceitos teóricos e a reflexão sobre a linguagem artística a partir de observações de tipo comparativo (quer das artes plásticas entre si, quer destas com a música ou a literatura). Mas esta autonomia não deve excluir, antes pelo contrário, o uso da História da Arte como via de aproximação de tipo documental para melhor conhecimento e compreensão de uma época ou de uma sociedade. O que disse mais acima acerca do carácter ideal da representação medieval vai neste segundo sentido. Sem a história da arte a história tout court fica muito pobre; mas a história da arte sem a história fica, creio eu, incompreensível.

9. Os historiadores, muitas vezes, utilizam a imagem apenas como ilustração do texto histórico. Esta atitude, que José Mattoso tem sempre evitado, identificando e comentando, nas suas obras, as imagens, não será empobrecedora para a própria História, que desta forma se priva de um testemunho que foi tão valorizado, sobretudo a partir da “Nova História”, e que poderá estabelecer um diálogo enriquecedor entre o homem medieval e o contemporâneo? Para além daquilo a que já me referi sobre a obra de arte como documento histórico, queria acrescentar que esse diálogo entre o homem medieval e o homem contemporâneo se entende por vezes como uma espécie de suplemento de sentido que o homem contemporâneo deveria ir buscar à arte medieval. Assim aconteceu na época romântica e nos movimentos restauracionistas em geral. As reacções deste género parecem-me resultar de uma certa recusa do mundo actual. Recusa inútil, é claro, porque a nossa época é completamente diferente da medieval. Assim, por exemplo, do ponto de vista da prevalência do pensamento e da doutrina religiosa sobre a vida social, típica da Idade Média, as diferenças com a nossa época são demasiado evidentes para se poderem esquecer ou ignorar. Se, por «diálogo», se entende, por exemplo, a busca de uma sensibilidade maior à dimensão simbólica da representação artística, aí estou cem por cento de acordo. Neste caso, porém, o diálogo só pode ser frutuoso se não se contentar com «formas» e «conteúdos» e procurar sobretudo «sentidos». Por representação simbólica entendo, neste caso, a linguagem poética na sua acepção mais vasta e mais profunda. Diria que se trata de, no velho debate entre filosofia e poesia, que Platão e Aristóteles resolviam em favor da filosofia, tomar o partido da poesia. Foi por isso que, em tempos, tentei dizer o que entendia acerca da História como contemplação.

10. A iconografia é o lugar privilegiado para a construção da interdisciplinaridade, sobretudo para um período como o medieval, em que os seus autores, frequentemente, afirmam a relação entre o texto e a imagem. A preocupação da historiografia actual de retorno critico às fontes escritas, com um sentido de reescrever a História, não tornará o recurso à imagem indispensável?

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Sem dúvida alguma. Mas há um problema prático. Na Idade Média e em muitas obras da Época Moderna, o recurso ao texto como complemento da imagem requer uma preparação especializada que se tornou rara entre nós. São cada vez mais raros os alunos de História que sabem quem era e o que representava Abraão ou Melquisedec, ou porque razão se pintava o Espírito Santo sob a forma de uma pomba; e mais raros ainda os que conseguem identificar uma citação de Santo Agostinho, ou que conhecem a diferença entre um hino, um responsório e uma antífona. Mas é evidente que estes conhecimentos são de uma enorme utilidade quando se estuda a iconografia medieval. A observação recente de uma arbor consanguinitatis alcobacense que é ao mesmo tempo uma representação régia; ou de uma «árvore de Jessé» com quatro reis intermediários entre o antecessor de David e a Virgem Maria, são dois exemplos muito concretos da fecundidade do recurso ao texto para a interpretação da iluminura.

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Resumo 1. O estatuto da imagem na cultura ocidental não é uniforme em todos os tempos: é útil regressar a interpretações antigas, revê-las em novas aquisições de significação, integrá-las no seu contexto (que os textos revelam ou escondem), não ceder perante a relutância de algumas em se dar a conhecer, reconhecer as variantes que se formam num percurso largo e diferenciado. 2. A tradição da imagem na cultura ocidental, ao menos em momentos mais marcantes, soube valorizá-la como recurso didáctico e pedagógico, em tensão que potencia leituras e dando-lhe dimensão de significado. A mecanização moderna põe em risco o valor da imagem como expressão humana. À exploração de efeitos secundários que insinuam e nada dizem, que projectam fantasmas e negam, na prática, a sua capacidade de representar o “Invisível” como dimensão real do Homem e como relação com o Transcendente (pessoal ou utópico) há que opor atitude diferente. 3. Novidades de literatura que abre sobre os efeitos icónicos do texto desafi am hoje a redescobrir as potencialidades da imagem e as suas funções, reabrindo a sua relação com o texto e levando a uma nova valorização da leitura – contra um intelectualismo abstracto.

palavras-chave imagem impregnação de sentido relação entre imagem e texto

Abstract 1. The status of images in Western culture has not remained the same throughout time. It is useful, therefore, to revisit older interpretations and consider new meanings they have acquired, integrating them in their context (which texts reveal or conceal), without giving up on those that resist disclosing their sense, and recognising the variants that result from a long and complex journey. 2. Western visual culture, at least in its more momentous periods, has understood the value of images as a didactic or pedagogical resource, taking advantage of the tensions that enhance their meaning, fully realizing their sense. Modern mechanization jeopardises the value of images as a means of human expression. A new attitude is now called for in order to counter the exploitation of secondary effects that insinuate meaning without actually saying anything, projecting ghosts but denying, in fact, the capacity of an image to represent the “Invisible” as a real dimension of man, and as a link with the Transcendent (personal or utopian). 3. Today, literature’s new insights into the iconic effects of text challenge us to rediscover the power and function of images, re-opening their relationship with the text and adding new value to reading, against abstract intellectualism.

Agradecimentos por ajuda na configuração do texto e sugestões de Ana Catarina Sousa, Pedro Fialho de Sousa, Justino Maciel, Felix Teichner e Heidi.

key-words image meaningfulness relationship between image and text


o poder da imagem: encantos, ambiguidades e valorizações a ires a . n a sc i m e n to CEC FL-UL

1. Sejam, para exemplificação: “A Imagem no texto: esplendor do livro e marcação de leitura no manuscrito medieval”, in Arte, História e Arqueologia: Pretérito (sempre) presente – Homenagem a J. Pais da Silva, coord. Pedro Gomes Barbosa, Lisboa, Ésquilo, 2006, pp. 79-113; “«Pictura tacitum poema»: Texto e imagem no livro medieval”, in Maurilio Pérez González (ed.), Actas del III Congreso Hispánico de Latín Medieval (León, 26-29 de Septiembre de 2001), León, Universidad, 2002, vol. I, pp. 31-52. 2. Beneficiando para tanto de diálogo privilegiado (de aprendizagem e intercâmbio) com personalidades cimeiras no estudo da iluminura medieval, o projecto de descrição da colecção, com reorganização dos códices atingidos pelas inundações de 1967, tem contado com a colaboração de um conjunto de especialistas internacionais, que temos o privilégio de coordenar juntamente com François Avril.

1. Por várias vezes nos ocupámos da imagem na sua relação com o texto no enquadramento da medievalidade ocidental1. Razões não haveria para voltar a esse tema, se não precisássemos de reflectir mais longamente naquilo que se nos apresentou nos manuscritos de uma colecção particularmente marcada pelos recursos icónicos, como é a dos manuscritos da Colecção Gulbenkian2. Ao procurarmos descrever e reinterpretar os dados, não foram poucas as vezes em que tivemos de afugentar fantasmas que se nos haviam colado na retina, para atendermos às variantes de algumas iluminuras menos habituais; em outros momentos, tivemos necessidade de indagar (em textos menos acessíveis ou nunca desvendados) a base de uma história representada e assim entender a sucessão de imagens – mesmo sem atinar com todas as escolhas feitas em caso de uma “história”; por outras vezes, foi-nos dado perceber a pertinência de certos traços para identificar elementos que resistiam à interpretação dos melhores exegetas. Apenas para exemplificação: a tradição da “cruz de Santo André” revelou-se na sua idiossincrasia variável (não teve sempre a forma de aspa, crux decussata, como é corrente dizer e alguma hagiografia fez admitir)3; uma figura em ascensão ao céu teve de ser reportada a outro que não a Virgem Maria (no caso, era S. Pancrácio – identificado pelos elementos litúrgicos, mas também pela integração iconográfica); num Livro de Horas, bastas vezes objecto de análise (e depois de porfiadas buscas nossas e de outros), julgamos ter identifica-

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do finalmente a “história de Teodeberta” que está entre os milagres de Nossa Senhora de Soissons, cantados por Gautier de Coincy, por exemplo; admitimos também ter recuperado a “reine de la fève” que, noutro elenco, ficara esquecida nos rituais do início do ano; a figura de Zaqueu impôs-se-nos contra outras interpretações anteriores no contexto indiscutível de liturgia da dedicação de igrejas; a cena principal de um fólio iluminado deixava a claro a sequência dos cenas complementares: assim, a cena da Visitação prolonga-se nos quadros da vida de João Baptista – do nascimento ao baptismo de Cristo. Enfim, apreendemos legendas iconográficas menos habituais (como a da infanda mulher do ferreiro que preparou os cravos para pregar Cristo na cruz); familiarizámo-nos com ciclos bíblicos; mergulhámos no mundo do imaginário feito de burlescos, de monstros e híbridos e tivemos que nos interrogar sobre as dimensões específicas de uma piedade que fazia conviver o satírico com o religioso, que retirava da morte lições para a vida, que ultrapassava o que via no imediato e descrevia o que não estava ao alcance do olhar. Tivemos também que interpretar iconografias menos tradicionais, a fim de não lhes perdermos o sentido da figura proposta no livro4. Algumas vezes tivemos que saber situar o processo artístico, porque, de facto, os livros têm agentes e têm destinatários... Ficámos deslumbrados nalguns casos, perplexos noutros, obrigados a reflectir, muitas vezes. Houve que alargar horizontes a espaços e a tempos habitados por pessoas diferentes de nós, mas com problemas similares aos nossos – alguns deles, comanditários directos de um exemplar bem planeado; outros, compradores de produtos em que a repetição deixou marcas de mercado. Recuperámos, num ou noutro caso, as indicações de programas de base (postos à vista pela degradação de algumas imagens); pelo menos uma vez tivemos de nos deter a considerar a programação de espaços aferidos pelos cálculos perfeitos das proporções tradicionais5. Precisaríamos de tempo para aprender o modo de narrar por imagens6. Foram pequenos ganhos, mas tudo isso diz bem da distância a que muitas vezes nos ficam imagens que encontramos no percurso concreto da cultura ocidental7. Por uma razão ou por outra, nestas circunstâncias, foi aumentando a nossa biblioteca em recursos bibliográficos que nunca pensáramos manusear directamente ou adquirir. Fizemo-lo por exigência de análise, mas também motivados pela urgência em nos inserir culturalmente no nosso momento histórico, intensamente marcado pela presença da imagem e necessitado de voltar à clarificação de percursos anteriores – para não soçobrar perante a invasão massiva do visual que os novos meios virtuais tornaram hoje inevitável e a rondar o apocalíptico.

3. Charlotte Denoël, Saint André: culte et iconographie en France, V-XVe siècles, Paris, École des Chartes, 2004.

2. Somos efectivamente levados a interrogar-nos sobre o estatuto da imagem. A sua presença intensificou-se de tal modo que quase se torna penosa por razões óbvias: perda de sentido por acumulação excessiva, fastio de superabundância, criação de dependências estéreis... É urgente devolver à imagem o sortilégio de antes, entender a sua função de abrir espaços e de criar interioridade – como a poesia que liberta pelo que sugere, que prende pelo que fascina, que atrai pela plenitude do dizer.

6. O LA 143, com a tradução francesa do De claris mulieribus de G. Boccaccio, pediria esse exercício, para o qual não faltavam incentivos em Vittore Bianca (coord.), Boccaccio visualizzato: Narrare per parole e per immagini fra Medioevo e Rinascimento, Turim, Einaudi, 1999.

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4. Uma delas é a das “Quatro Mulheres” junto ao sepulcro vazio na manhã da Ressurreição; segundo o Evangelho de Marcos, as mulheres são: Maria Madalena, Maria, mãe de Tiago, e [Maria] Salomé (Mc. 16, 1); para Lucas as mulheres são: Maria Madalena, Joana e Maria, mãe de Tiago (Luc. 24, 9); em Mateus, apenas duas são mencionadas: Maria Madalena e outra Maria (admitindo-se que seja a mãe de Tiago). Quatro Mulheres são as que João menciona como sendo as que acompanham Jesus na Cruz: Maria, mãe de Jesus, Maria Salomé (casada com Zebedeu, mãe de Tiago e João), Maria de Cléofas, e Maria Madalena. Salvo melhor opinião, na iconografia do manuscrito da Gulbenkian, LA 141, fl. 217v, julgamos que haverá transposição da cena da Crucifixão para a da Visita ao Sepulcro, na manhã da Ressurreição: Maria, mãe de Jesus, não ostenta frasco de perfume para a unção e Cristo, embora com o lábaro de ressuscitado, mantém os traços do Ecce Homo. Note-se que, no contexto da Ressurreição, nunca é mencionada Maria, mãe de Jesus – pela boa razão de que os parentes não podiam testemunhar em favor de alguém e os Evangelhos têm essa perspectiva em vista. Não sabemos, porém, em que momento possa ter sido associada Maria a esse episódio de forma a entrar na iconografia. Sob outra perspectiva há que colocar a Histoire des trois Maries, poema de ca. 40.000 versos onde se relatam episódios da vida de Maria Mãe de Deus, Maria de Tiago, e Maria de Salomé, por Jean Fillon de Venette (também conhecido por Jean Drouin); falta no elenco Maria Madalena. (Cf. estudo de Claudia Rabel nesta mesma Revista). 5. Aires A. Nascimento, “Manuscrito quatrocentista de Petrarca na colecção Calouste Gulbenkian, em Lisboa: Canzoniere e Trionfi”, Cultura Neolatina, 64, 2004, fasc. 3-4, 325-410.


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7. A seu tempo, será publicado o catálogo em que os resultados da análise ficarão a manifesto (ainda que, por razões compreensíveis, não sejam declarados todos os passos do percurso). 8. Cf. Monique Sicard, «Les paradoxes de l’image», in Sciences et Médias. Cognition, Communication, Politique. Hermes 21, Paris, CNRS éditions, 1997, p. 48. 9. Claude Collard, Isabelle Giannattasio, Michel Mellot, Les images dans les bibliothèques, Éditions du cercle, coll. Bibliothèque, Paris. 1995, p. 12. 10. Apoio-me, sem subordinação, em Elizabeth Gardère, «L’espace visuel dans l’énonciation éditoriale: les sciences en images»:http://laseldi. univ-fcomte.fr/archives/colloque/sciences_ecriture/documents/preactes/Gardere.pdf 11. Em depoimento recente, Stanislas Dehane, autor de estudo atento à actividade de leitura, Les Neurones de la lecture, Paris, Odile Jacob, 2007, demonstra as razões do incitamento à leitura, das vantagens de ler textos poéticos; critica Platão por considerar que a escrita era nociva, pois “a leitura dopava as capacidades mentais”. 12. Cf. “Iluminura, um traço distintivo”, in A Torre do Tombo na viragem do século – Catálogo de Exposição, Lisboa, ANTT, 2000, pp. 29-33.

Monique Sicard sugere seis características da imagem que são outras tantas hipóteses para compreender a imagem: 1) a percepção da imagem é global, imediata e irredutível na sua identidade; 2) a imagem é mutável na longa duração; 3) a imagem não produz enunciado por si mesma, mas força a que ele se construa, ao exigir que seja compreendida com coerência e consistência na equivalência simbólica; 4) uma mesma imagem pode ser recebida de modo contraditório, porque é plurivalente; 5) por isso a imagem tem múltiplas legitimações; 6) por isso também cada imagem tem uma parte (sempre indeterminada) de inesperado e de casual8. Nesta pluralidade de leitura se revela a diferença da imagem relativamente ao texto narrativo. Já a seu tempo, o filósofo alemão Lessing, no ensaio a que deu sintomaticamente o título de Lacoonte (1766), opunha literatura narrativa a pintura descritiva: o texto, uma vez estabelecida a codificação num quadro de arbitrariedade, não pode ser alterado, sob pena de ser destruído; a imagem, pelo contrário, não sendo consubstancial ao respectivo suporte, não é codificada e pode ser acolhida em formas diferentes9. Os textos têm uma morfologia e uma sintaxe interna que não podem ser alteradas; as imagens criam uma sintaxe que lhes permite funcionar como linguagem e põem em cena dispositivos de comparação, de condensação, de emergência e imergência do visível e do invisível, do real e do imaginário, do eidético e do ficcional10. Colocando a imagem em relação com o texto, há quem opine que ele leva vantagem: o exercício de exploração do texto é mais estimulante; julga-se saber hoje que, até do ponto de vista fisiológico (por recurso à ressonância magnética), é possível distinguir o cérebro de um letrado por confronto com o de um iletrado, pois a aprendizagem da leitura acarreta transformações cerebrais indeléveis; por outra parte, não se conhece vector de transmissão mais eficaz que a escrita11. Quanto à imagem, importa-nos apurar se ela distrai ou concentra; se a pausa que eventualmente propõe é fuga em dissipação ou se é tempo de aprofundamento de sentido. Tomando-a à parte melhor, haveríamos de dizer que tão estreita foi, ao longo dos tempos, a sua associação com o texto que há boas razões para admitir (baseando-nos nesse convívio) que a imagem assume funções dirigidas a secundar e potenciar virtualidades que o exercício de leitura pressupõe. Já em tempos assinalámos que, relativamente ao texto, a imagem aduz um traço distintivo, marca uma situação (de texto e, por alargamento, do leitor), distende o horizonte de referência, sugere e integra um mundo de significação. Como tal, a associação aparenta ser motivada e por isso impregnada de valor significativo12.

* No livro, a imagem tem certamente um estatuto de complementaridade, mas há que reconhecer-lhe também estatuto de autonomia, embora sem emancipação: mantendo autonomia, vive da associação com o texto; estando associada, não se esgota na subordinação ao texto, pois não é tautológica relativamente a ele; mesmo não tendo vida inteiramente à parte, ganha funcionalidades que não são directamente previ-

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síveis e por isso têm de ser explicitadas, sem perder de vista o enquadramento que lhe é dado; tendo, por si, uma identidade específica, não se reduz ao seu valor na representação facial; tendo autonomia, deve ser entendida na continuidade de uma linguagem em que a sintagmática é tão importante como a paradigmática e esta é clarificada em grande parte pela tradição que assegura o sentido mais adequado e contraria a deriva ou se impõe ao arbitrário. A ilustração de um Livro de Horas é porventura um dos casos mais sintomáticos da autonomia da imagem na sua relação com o texto: marca um género de livros, mas apenas em reduzida escala se subordina ao texto13. Nem por isso, todavia, ela revela de imediato a sua funcionalidade integrada – há que deduzi-la da devotio e não da relação com os textos maioritariamente bíblicos que convivem com a imagem. De facto, há uma dinâmica própria da imagem que se declara no sentido da sua inclusão no todo de que faz parte, que integra a “relação dialéctica entre representação e apresentação” e tem por base uma reconfiguração especular no interior de um enunciado complexo em que o leitor é parte do efeito e fica obrigado a remontar à tradição sem deixar de atender à linguagem a que é convocado – num movimento de acção e reacção em que o centro, que é o leitor, se desloca para a imagem e esta, por tal intervenção, se converte em universo de nova compreensão14. Ao abrir o comentário ao Apocalipse de Beato de Liébana, dou-me conta que, na figuração do exemplar da Torre do Tombo, o tetramorfo da Adoração do Cordeiro não segue a ordem dada pelo texto de base: “No meio do trono e ao redor do trono, quatro Viventes (...); o primeiro tem a figura de leão, o segundo a de touro, o terceiro tem o rosto de homem, e o quarto tem a figura de águia a esvoaçar”. A imagem organiza os elementos de modo diferente: em cima, a águia; em baixo, a figura humana; à esquerda o leão; à direita o touro; no centro, o Cordeiro. Significa isso que o iluminador não se subordinou à letra, mas sobrepôs-lhe uma organização, em que o espiritual (águia) se opõe e associa ao racional (homem), mas um e outro integram o animal (leão e touro – a representarem o selvagem e o doméstico) num mesmo acto de adoração ao Cordeiro imolado e ressuscitado. A categoria de “image abymée” é porventura uma forma de resolver essa dialéctica da presença-ausência, por reflexo do que se vê e por prolongamento do que se tornou pessoal. Em retórica clássica, é conhecida a figura da metalepse, palavra grega que etimologicamente quer dizer “transposição”. Gérard Genette dedicou-lhe um livro inteiro e explica que se trata de passagem de um plano narrativo para outro, de uma imbricação do leitor na narrativa por reflexibilidade do processo de leitura: “Podemos considerar por metaléptico qualquer enunciado sobre si, e portanto qualquer discurso, e por inclusão qualquer relato, primeiro ou segundo, real ou ficcional, que comporte ou desenvolva um tal tipo de enunciado”15. Quando num romance o leitor interrompe a leitura para advertir no efeito criado em si pela narrativa está a participar nela; opera-se a transposição do narratário (do leitor, se quisermos) para dentro da cena representada na narrativa e para junto do narrador que é o suposto autor. Genette passa do campo literário para o campo das diversas artes «representativas», como a pintura, o teatro, o cinema, a televisão ; explica como as figuras de

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13. Cf. Christopher de Hamel, “Books of Hours: ‘imaging’ the word”, in The Bible as Book – The Manuscript Tradition, ed. John L. Sharpe III & Kimberly von Kampen, Londres, British Library, 1998, pp. 137-143. 14. Cf. Christine Dubois, “L’image abymée”, Images Re-vues, n.° 2, 2006, http://imagesrevues. org/Article_Archive.php?id_article= n.°14. Retenho daí que foi André Gide (Journal de 1889-1938, Paris, Gallimard, 1948) o primeiro a utilizar literariamente, em 1893, a expressão “mise en abyme” que em heráldica serve para exprimir que o centro do escudo é considerado uma espécie de miniatura do conjunto do brasão. Não encontramos expressão que em português tenha correspondente, embora os dicionários nos digam que “en abîme” significa ver de “alto a baixo”. Implica o elemento no conjunto e dá-lhe uma reflexibilidade de inclusão do efeito de leitura que está para além da mera transposição especular. 15. Gérard Genette, Métalepse: De la figure à la fiction, Paris, Seuil, 2004, p. 110.


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16. Na História do cerco de Lisboa de José Saramago, Lisboa, Caminho, 1989, p. 119, por uma mudança hábil de plano narrativo, o autor pode ser o corrector Raimundo Benvindo Soares.

um escudo homérico podem animar-se e tomar a palavra, como uma personagem pode sair da cena ou como um romancista entra em animação com as suas figuras ou alguém que interfere na marcha do seu livro entra no processo de criação16.

17. Encontramos esta frase em www.legalbiznext.com/droit/IMG/pdf/th h se Zaina AZZABI. pdf, onde se colocam problemas do máximo interesse para definir questões jurídicas relativas a “imagem e direito de mercado”, mas circula em outros textos. Cf. L. Gervereau, Voir, comprendre et analyser les images, Paris, Guides Repères, La Découverte, 4.e éd, 2004; M. Joly, Introduction à l’analyse de l’image, Paris, Armand Colin, 2005.

3. A imagem torna-se assim elemento reflexivo de leitura, mesmo que o texto continue a ser elemento de partida. Essa possibilidade assume hoje tanta maior importância quanto a imagem se soltou e, mais liberta que noutros tempos, se tornou invasiva; pela insistência tornou-se molesta (como o ruído ambiente), pela banalização deixou de ter efeito marcado e assumido. André Breton prognosticara: “um dia virá em que as imagens substituirão o homem e este não terá já necessidade de olhar; não seremos já seres que vivem mas que vêem”17. Para o “papa do surrealismo”, tratava-se de superar um estado anterior da cultura a fim de “descobrir aquele ponto do espírito em que a vida e a morte, o real e o imaginário, o passado e o futuro, o comunicável e o incomunicável, o alto e o baixo deixam de ser percebidos contraditoriamente”18. Para quem gosta de guardar distâncias e manter lucidez para perceber como o racional pode ser conciliado com o estético e o afectivo, tais palavras são um alerta. Queremos entrar no processo da construção da imagem para apreciá-la na sua novidade criativa, mesmo que tenhamos de corrigir erros de formação e que davam por suposto que a fotografia é um espelho e não um modo de trazer a realidade ao nosso convívio19. Certamente o progresso da fotografia e as capacidades técnicas de a transpor para o texto impresso ou para o cinema e para a televisão deram à imagem novas oportunidades e trouxeram-na a pé de igualdade com o texto, a tal ponto que se atribui a Picasso a afirmação de que dessa maneira o pintor ficou livre da condenação que pesava sobre ele de ter de viver do retrato20. Todavia, por ter invadido domínios reservados ao sagrado (e por tê-lo feito descomedidamente e irreverentemente, sem respeitar as distâncias do numinoso) a imagem provocou nos nossos dias reacções que obrigam a examinar como ela arrasta afectos que os “adoradores de espírito e de verdade” sabem entender e dosear (como risco de tocar o sagrado e o infinito), mas outros procuram manipular21. Vindo a terrenos mais chegados, para servidores dos textos que somos (filólogos por profissão), havemos de confessar que nos impressiona o facto de a tensão gerada entre iconografia e escrita nem sempre se ter resolvido por integração activa dos dois elementos, apesar de conviverem. Provavelmente, porque também relativamente ao texto se aceitou uma atitude passiva que levou a colher nele apenas aquilo que fazia falta ao leitor, em vez de conduzir este a entender apenas aquilo que lhe faltava para tornar autónomo e criativo o próprio leitor (à maneira socrática) – privilegiando a memória do texto não se assumia a leitura como indutora de expressão pessoal; por incúria e por incapacidade de ensinar a ler a imagem deixámos que fosse apenas recurso menor ou tolerado. Em acto crítico, teremos de convir em que, apesar de todos os favores e da sua multiplicação, a imagem foi, ao longo dos tempos, na cultura ocidental, conside-

18. Philippe Hamon et Denis Roger-Vasselin (dir.), «Le Robert des grands écrivains de langue française», Paris, Les Dictionnaires Le Robert, 2000. 19. A relação com o real e com a criatividade obrigam a examinar como a fotografia operou uma revolução estética. Não obstante os limites da obra coordenada por André Gunthert e Michel Poivert, ed., L’art de la photographie des origines à nos jours, Paris, Citadelles & Mazenod, 2007, os problemas são de colocar quanto à integração de fotografia como captação e proposta da imagem captada sobre o real. 20. É óbvio que os recursos técnicos condicionaram o uso da imagem na imprensa, não obstante a qualidade artística excepcional de alguns resultados. Cf. Ernesto Soares, A ilustração do livro (séculos XV a XIX), Lisboa, Edições Excelsior, [s.d.]. 21. Cf. François Bœplug, Caricaturer Dieu? – Pouvoirs et dangers de l’image, Paris, Bayard, 2006 ; Michel Feuillet, Représenter Dieu, Paris, Desclée de Brouwer, 2007.

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rada como recurso menor ou inferior numa sociedade que, em boa parte, via a escrita como processo de formação objectivamente marcada pelo exercício do poder e olhava para a imagem como adorno que, em certas circunstâncias, era a imagem desse mesmo poder. Talvez tenhamos de nos aperceber que só por regresso ao processo construtivo nos damos conta de como a imagem foi ganhando lugar próprio em paralelo com a racionalização do discurso e com o registo da escrita. Remontando às origens de uma cultura que é matriz (porque não houve rupturas significativas ou, se alguma vez aconteceram, não saíram da memória operativa os dados de continuidade e houve recuperações), momento houve em que objectos quotidianos passaram a ser marcados por representações de significado permanente e reversível e integrados por isso noutro plano de significação – de conteúdo estético, talvez, mas fundamentalmente associados a um mundo de representação adicional. A representação iconográfica fixa um conteúdo mais do que uma figura. A par de um discurso verbal constrói-se um mundo de representação que vive da imagem e transporta consigo um universo simbólico. São disso exemplo os elementos mitológicos que figuram nos vasos da antiguidade grega22. Quando o pintor Clítias representa Ájax a carregar o corpo de Aquiles (Vaso François: cratera de volutas com figuras negras – 570 a.C.) não está a servir-se de um texto (pelo menos nosso conhecido), mas certamente emula uma cena de refiguração do herói, conhecida de tradição oral; o herói humaniza-se: não traz o escudo no braço nem está sob protecção manifesta de Atena nem tem tão pouco o acompanhamento de Hermes – como o pintou Antímenes, c. 510 – mas os traços retêm um guerreiro que não tem tempo de retirar o elmo e estuga o passo com o corpo inanimado de Aquiles que carrega ao ombro. Poderia parecer que o tempo corre em favor da figuração do mito. Não, de forma exclusiva. O quotidiano impôs-se na figuração do pintor Exékias (c. 530 a.C.), quando representa Ájax e Aquiles entretidos a jogarem os dados (cena não tida em conta nos poemas heróicos). Num e noutro caso, há uma história de base, mas há opções e traços que marcam – são eles resultado de integração num meio específico em que a cultura se alarga a posturas não uniformes; há que entender que a narrativa homérica fixada nos tempos de Pisístrato não esgota a fábula troiana. Não seria difícil transpor este exercício para outros modos literários; a acção dramática que os trágicos nos apresentam é obviamente menos deîctica que agonística, num enquadramento de personagens que valem pelo conflito que sustentam do que pela fábula que servem ou trazem à boca da cena teatral. Por muito que a imagem pareça servir a fábula, há traços que lhe restituem identidade própria e exprimem novas leituras. A iconografia da Eneida no “Vergilius Vaticanus” não se limita a transpor o texto, mas apresenta conformidade com os comentários dos gramáticos e revela leituras aprendidas (Suicídio de Dido, Vergilius Vaticanus: Vaticano, BA, Vat. Lat. 3225. fl.41)23. Não é aqui momento para entrar pelo tema do aproveitamento da imagem como estratégia do poder político, de interacções que gera de comunicação tal como

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22. Na época arcaica, os motivos são formados de desenhos geométricos ; na época clássica, a pintura acode aos motivos mitológicos ou quotidianos: os mais antigos servem-se do verniz negro sobre fundo de terracota, mas, por 525, aparece em Atenas uma nova técnica de pintura e os dados invertem-se – a figura sobressai em recorte de fundo a negro. O requinte do desenho ia a par de domínio da técnica de tratar as várias fases do trabalho. 23. Cf. Paolo Fedeli, “L’immagine come interpretazione nei manoscritti latini”, Euphrosyne, 30, 2002, 297-316.


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24. Paul Zanker, Augusto y el poder de las imágenes, Madrid, Alianza, 1987 ; François Queyrel, L’autel de Pergame: images et pouvoir en Grèce d’Asie, Paris, Picard, 2005. Françoise-Hélène Massa-Pairault, Iconologia e politica nell’Italia antica: Roma, Lazio, Etruria dal VII al I secolo A.C., Milão, Longanesi, 1992; Françoise-Hélène Massa-Pairault, L’image antique et son interprétation, École française de Rome, 2006. 25. As pinturas nas casas romanas são por vezes interpretadas como modo de alargar horizontes para espaços reduzidos ou como formas de criar elementos apotropaicos de afastar forças negativas. 26. Cf. Yolanta Za uska, «L’enluminure cistercienne au XII.e siècle», in Bernard de Clairvaux: histoire, mentalités, spiritualité, Paris, Cerf, 1992 (Colloque de Lyon-Cîteaux-Dijon), pp. 271-285. No final do seu texto, a investigadora sublinha que no final do séc. XII (escrito XX), quer-se a imagem a todo o preço, uma imagem que fira a imaginação, tanto mais quanto ela se torna um factor importante da vida socio-económica e política do mundo; os próprios cistercienses preferem os monstros a combater e os híbridos, abandonam a austeridade iconoclasta do estilo bernardino que tendia para a união com Deus por ascese que evita qualquer satisfação sensível e se esconde nos matizes monocolores que se lançam sobre o pergaminho.

estão manifestas num tempo tão emblemático como foi o Saeculum Augustum; com extrema pertinência já foi demonstrado que nele a imagem serviu para apoiar um sistema ou processo cultural (nunca houve um programa identificado como tal) que favorecia e glorificava um poder unipessoal, criava a ilusão da grandeza do Estado (publica magnificentia) e interagia pelo modo como se apresentava sob enunciados de reintegração do antigo e do novo pelo regresso à tradição (pietas et mores)24. Da análise que Paul Zanker dedicou ao século de Augusto retenhamos que a imagem (que vinha ganhando estatuto de afirmação por parte dos aristocratas em finais da república) exprime, por si, o estado de uma sociedade e os seus valores, tanto nos momentos de crise como de euforia e solicita pela interacção que desencadeia ou pelos efeitos que se alargam até conduzir a conformações de identificação e a transformações definitivas. A imagem não serve apenas para ilustrar; acompanha e exprime uma realidade a que se associa, mas de que não apresenta modo directo de leitura. Menos explícita que o texto, sintetiza uma mensagem e “satura” com ela o contexto em que é projecção e reflexo potenciador, de tal modo que contribui para acelerar a mudança: delimita uma mensagem e insinua-a como linguagem, amplificando-a. Desempenha, efectivamente, funções integradoras, como meio de marcar situações e ambientes, ritualizar momentos, promover leituras, dilatar espaços e tempos25. 4. No enquadramento do livro, queremos pressupor que há uma tensão entre texto e imagem e que essa tensão não pendeu maioritariamente em favor da imagem. Hesitamos por vezes em classificar a sua presença, mas os próprios contemporâneos nos esclarecem que, para eles próprios, o juízo nem sempre era unânime – o que diz bem tanto da ambiguidade de significação como da necessidade de proceder a uma iniciação que permita induzir a sua função, mas deixa prever que a explicitação do seu contributo para a linguagem cultural obriga a conjugar factores de vária ordem. Houve quem ousasse propor-lhe limitações. Entre os adversários é colocado Bernardo de Claraval; em atitude indagativa, apetece perguntar se as reacções do doctor melifluus à imagem eram devidas a resquícios de intelectualismo ou resultado de um ascetismo que, sendo moderado, ponderava os efeitos do seu uso e procurava, apesar de tudo, reagir contra excessos, por racionalização de meios, atenção aos efeitos, compensação entre a vida contemplativa e vida de trabalho (como era a dos cistercienses)26.

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A questão posta por Bernardo relativamente à pertinência de gastar tempo e despender dinheiro em colorir manuscritos ou em colocar monstros nos claustros continua a ser problemática. Casualmente dou com uma explicação coerente: alguém visitava um antigo mosteiro em Saint-Vulfrain d’Abbeville e interrogava-se sobre a razão da existência de monstros nas fachadas das igrejas e nas mísulas dos arcos: “a explicação mais corrente é que se trata de espantalhos para fazer fugir os demónios que vêm ao encontro dos devotos que se reúnem no interior do edifício; mas um canteiro que talhava a pedra acabou por dar uma outra resposta que teve o efeito de uma revelação, tão evidente ela era: as gárgulas e outros monstros são uma materialização na pedra dos demónios que se aprestam a fugir da igreja, afugentados pelas orações que ali se fazem”27. Bernardo, que contestava os exageros de algumas formas de culto e de arte de monges de Cluni, não estava disposto a fazer tais concessões... Abertura à imagem está bem patente no prólogo do Livro das Aves, atribuído a Hugo de Folieto, e que havemos de situar na procura da natureza como imagem de um mundo superior. Recorde-se que, dirigindo-se ao converso Ranério, diz-lhe o autor: “Desejando dar satisfação aos teus insistentes pedidos e desejos, decidi pintar uma pomba com asas prateadas e tons de ouro na cauda, para assim, através da pintura, edificar a mente de gente simples, por tal modo que a quanto o espírito dessa gente simples mal pode apreender pelo olhar da inteligência o possa perceber pelo olhar do corpo e por tal modo também que àquilo que o ouvido mal pode entender o consiga perceber o olhar”.

Vista e ouvido completam-se na ordem de conhecimento, mas supõem esclarecimento e fazem parte de uma pedagogia de iniciação aos mistérios escondidos (ao tempo designada por moralidade), iniciação essa dada em forma escrita – para beneficiar da estruturação que produz o aprofundamento do sentido das coisas: “não quis apenas figurar e pintar uma pomba, mas também descrever o que nela entendo, a fi m de que, por escrito, deixe perceber o que pinto e assim mesmo aquele a quem não agradar a simpleza da pintura fique, ao menos, agradado com a lição moral do que escrevo”.

A explicitação do elemento icónico apresenta-o como instrumento de revelação do homem a si mesmo, na leitura que faz da natureza: “A ti foram-te dadas asas de pomba e afastaste-te para longe a fim de ficares a residir na solidão e aí repousar; porque aí não procuras adiamentos, como propõe a voz do corvo que crocita cras, cras (amanhã, amanhã), mas a contrição nos gemidos da pomba, para ti pintarei aqui não apenas uma pomba, mas também um falcão”.

Mais do que oposição entre letrado e iletrado, está em causa a complementaridade na diferença representada por dois símbolos (um de vida contemplativa e outro de vida activa), que se prolongam na complementaridade entre mundo físico e mundo intelectivo numa compenetração de valores de significação: a partir de uma imagem, que é assumida em contemplação, pode o monge ver-se recreado na sua meditação, como elemento simétrico que é de uma acção.

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27. Encontro esse episódio no Blogue de Ariane: givernews.com/images/photo2/culdelampe.jpg


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5. Não foi fácil admitir a imagem como recurso didáctico e pedagógico nem reconhecer-lhe capacidade instrumental; muito menos para exprimir o espiritual e o transcendente. Porém, antes mesmo da questão iconoclasta chegar ao Ocidente, a legitimidade do seu uso estava sancionada por autoridade. Disso dão testemunho duas cartas, bastas vezes comentadas, dirigidas pelo papa Gregório Magno, em 599 e 600, ao bispo Sereno de Marselha. Havia este mandado apagar as figuras que tinham sido pintadas nas paredes dos lugares de culto, por temer que o povo mais humilde fosse tentado a prestar-lhes veneração e voltar à idolatria. Gregório contrapõe que “as imagens devem ser colocadas nas igrejas para que todos aqueles que não conhecem as letras consigam aprender olhando para elas e retendo o que não conseguem ler nos livros”. Se interpretamos bem, a imagem tem nisso um estatuto paralelo ao da escrita; mas não se emancipa dela, pois continua dependente do texto e a ele devia reverter: especificamente, no caso de Gregório, está em causa o texto bíblico, relativamente ao qual se espera que a pintura reproduza, em modo visual, a sua historia. Na realidade, a imagem “é inteiramente pensada como modo de leitura de um texto escrito”28 e deveria ser lida como se fosse um texto, sem que os elementos formais interessassem directamente por eles próprios. Tal foi também a interpretação feita do uso da imagem por bons historiadores da arte medieval, como Émile Mâle, que nas fachadas das catedrais e noutras representações procuraram a transposição de textos mais do que criações autónomas. Dificuldade em ler o texto? Quem não a tinha para ler as imagens? A lição não é uniforme neste aspecto. Valafrido Estrabão diz, em forma lapidar, que a pintura é uma espécie de texto para o analfabeto: Pictura est quaedam litteratura illiterato. Embora a prioridade vá para o texto, como depõe Jean-Claude Schmidt, havemos de advertir que o enunciado do monge carolino pressupõe que a imagem não limita a sua função à ilustração de um texto ou de uma “história”, pois, tanto como servir à representação de uma “história” (fosse ela bíblica ou não), ela era um mecanismo que interpretava e dava a conhecer formas de vivências que situam a própria “história”. Colocada frente ao texto, a relação, mesmo que fosse especular, não teria que ser necessariamente tautológica. Há certamente na imagem uma “redundância”29, mas ela não é vazia de sentido nem resulta de exercício inútil, pelo que não é excrescência a eliminar. É fundamentalmente lugar de praesentia numinis symbolica, na terminologia de E. Cassirer, e complementa o texto, sendo persuasivo o seu efeito último de um universo de representações que ajuda a configurar. Há sobretudo situações mais marcadas, em que a imagem é reconhecidamente tabernáculo, através do qual se abre a porta de significação. Nesse reconhecimento ela considera-se habitada e converte-se em objecto de relação pessoal. É ícone, mas, mais que detentor de uma representação de “semelhança” (que apenas remetesse para o objecto que reflecte), torna-o presente e dá acesso a ele, como porta que se abre30. Ganha consistência não tanto pelos traços de estrutura formal (figura) quanto pela adesão que provoca e pelos afectos

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28. Jean-Claude Schmitt, Le corps des images. Essais sur la culture visuelle au Moyen Âge, Paris, Gallimard, Collection «Le temps des images», 2002. 29. Categoria que Levi-Strauss admitia para o sermo mythicus em contraste com o sermo dialecticus fundado sobre o binarismo do sim / não (em que necessariamente se verifica um tertium exclusum). 30. A obra de Gilbert Dragon, Décrire et peindre sur le portrait iconique, Paris, Gallimard, 2007, salienta a sublimidade do ícone: designa o que figura, é porta de entrada para a sua contemplação; é proposta para chegar a ele e não imitação de uma realidade. Como assinala, o ícone deve ser “plano, repetitivo, sem sombra nem profundidade, a um tempo relacional e substancial ao seu modelo, abstracto como um nome e concreto como uma relíquia, condenado ao sublime”. Comenta Patrick Boucheron, “L’icône, forcément sublime”, L’Histoire, 326, 2007 (Dezembro), 78: “Esta imaginação criativa que recusa ao pintor o ícone confia-o ao espectador; este, ao olhar para ele, deve aprender a reconhecer o santo que lhe aparecerá em sonhos ou o próprio Cristo que voltará no momento da segunda parúsia (vinda gloriosa)”. O ícone fixa alguns traços somáticos, mas desafia o devoto a perscrutar a realidade escondida – para a qual os enunciados teológicos servem apenas de orientação.


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31. Cf. J. M. Díaz de Bustamante, “Imago, figura, idea: evolución del concepto de mundo y universo hasta el Renacimiento”, in A imagem do Mundo na Idade Média, ed. Helder Godinho, Lisboa, 1992, pp. 113-122. 32. A formulação aparece na Rhetorica ad Herennium, 4, 28, 39, e remonta a Simónides de Ceos, segundo revelou Plutarco, glor. Ath. 3. Cf. Cornifício, Rhetorica ad Herennium, cur. G. Calboli, Bolonha, 1969, p. 367, n. 168. Interpretamos como equivalência aquilo que é dado em paralelo proposto por Horácio, Ars poet. 361-365: «Vt pictura poesis: erit quae, si propius stes, / te capiat magis, et quaedam, si longius abstes; / haec amat obscurum, uolet haec sub luce uideri, / iudicis argutum quae non formidat acumen: / haec placuit semel, haec repetita placebit», ou seja, em tradução: «Como a pintura assim é a poesia: haverá uma que se estiveres mais perto te cativa mais, e outra que o faz se estiveres mais longe; uma gosta da obscuridade, outra quererá ser vista a toda claridade, por não recear o olhar arguto do crítico, a esta bastaria olhá-la uma vez, àquela será grato fazê-lo vezes repetidas». A formulação da Rhetorica ad Herennium, 4, 28, 39, apoia-se em Simónides, segundo revelou Plutarco, glor. Ath. 3. Cf. Cornifício, Rhetorica ad Herennium, cur. G. Calboli, Bolonha, 1969, p. 367, n. 168. 33. Cf. Plínio, NH, 25, 4.

que gera; alimenta a contemplação e fixa ou relança o desejo; representando o invisível, ganha adesão pela visibilidade que provoca do invisível e desencadeia emoções – ainda que não aumente o conhecimento, goza do efeito do impacto luminoso que antecipa o objecto distante e desencadeia o afecto (de aceitação ou rejeição) por ele. Reencontro-me assim com os contemplativos da Devotio moderna que se atêm à imagem para viverem a profundidade do afecto que consagram à humanidade de Cristo e aos santos, com quem comungam atitudes teológicas de adoração a Deus. À primeira vista, o valor de imago pode parecer estático ou inerte; no entanto, se tivermos em conta que na origem está um radical *im- (o mesmo que se encontra em imitatio), associado a um segundo elemento -ago (determinável em palavras como uirago, termo que no texto bíblico latino serve para caracterizar a primeira mulher – companheira do primeiro homem / uir, e como ele o protótipo feminino por excelência), teremos de reconhecer que o sentido de base é dinâmico. Por isso há razão para estabelecer contraste com figura: enquanto esta não é mais que uma esquematização de uma realidade, a imago mantém uma relação directa com esse original por similitudo, de tal forma que assegura ao signo a forma eidética e as qualidades do que é imitado. O enunciado bíblico da criação que associa imago a similitudo diz bem deste conteúdo positivo: o homem é feito à imagem e semelhança de Deus (Gen. 1, 26)31. Não é dado este valor naturalmente (physei, segundo a terminologia grega); é-lhe concedido por funcionalidade (nomoi, segundo a mesma terminologia). Na singularidade da sua autonomia, a imagem apenas se torna “falante” para quantos sejam iniciados e capazes de reconhecer as suas referências e integrá-la num mundo de significado. Com razão, Simónides de Ceos, no longínquo séc. V a.C., postulou para a imagem um estatuto similar ao do texto: poema loquens pictura, pictura tacitum poema debet esse – “um poema deve ser uma pintura que fala, a pintura um poema sem palavras”32. Por esse tempo, a proclamação do valor da imagem fazia paralelo com a discussão da palavra como representação da realidade segundo os parâmetros da physis ou do nomos, em interpretações mais ou menos antitéticas. A divergência vinha dos próprios pintores e assentava nos padrões invocados para apreciar a mimesis. É conhecida a historieta dos dois pintores gregos Zêuxis e Parrásio (na evocação de Plínio, o Velho)33: num concurso de pintura, Zêuxis, conhecido pelo tratamento dado às cores e ao contraste de luz e sombra, teria pintado um cacho de uvas com tal realismo que as próprias aves teriam descido a debicar os bagos; por sua vez, Parrásio teria pintado um véu com tal perfeição que Zêuxis teria pedido que o seu rival retirasse a cortina para apreciar a pintura; advertindo que afinal a pintura era o próprio véu, Zêuxis saudou o seu rival pela vitória, pois ele tinha enganado só as aves, mas o outro tinha-o enganado a ele. Prémio para a capacidade de criar maior ilusão? Seria frustrante que tal acontecesse. A ficção desafia e vence a própria realidade. Ou, por outra parte, a imagem aduz o que a realidade não contém. Tal como o discurso das palavras propõe juízos e induz novidades (e estas são tanto maiores quanto mais se aproximam da pintura), também a imagem vale tanto mais quanto a ela se vinculam significações novas.

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Em seminário de 1964, Jacques Lacan interpretou a fábula dos pintores gregos como reveladora de um aspecto significativo do conhecimento humano: enquanto os animais (as aves da anedota) se atêm apenas às aparências e chocam contra a tela, há humanos que entendem o que está escondido no interior e por isso se mede a sua inteligência (não era o caso, para voltar à mesma tradição, de Apeles que deprecia o modo como é apertada a fivela da sandália, mas, ao passar a outros pormenores, é repreendido pelo pintor, que se escondera, e aconselhado a deter-se na sua limitação – da chinela que era a sua especialidade34). Alguém (que discutia o trabalho dos repórteres fotográficos das Agências de hoje e sensível às superações com que tentam escapar ao simples mecanismo da imagem) escrevia recentemente que, se em 1808, Goya tivesse nas mãos uma máquina fotográfica, certamente não existiria sequer o esboço do quadro dos Fuzilamentos de 3 de Maio. Em contrapartida, havemos de concordar que nada pode substituir a emoção de colocar a realidade onde se sente que deve estar para exprimir não o que se vê, mas justamente o que se sobrepõe ao que se vê. A sermos cordatos, o verdadeiro pintor sente-se mais livre para inventar a realidade desde que a máquina fotográfi ca apareceu como possibilidade de retratar; no entanto, qualquer bom

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34. Cf. Plínio, o Velho, XXXV, 10, 36.


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35. Conhecida é a fórmula de Agostinho da Dácia, discípulo de Tomás de Aquino, no seu Rotulus pugilaris: “Littera gesta docet, quid credas allegoria, / Moralitas quid agas, quo tendas anagogia”. O quadro é mais ou menos largo segundo os autores: Alain de Lille, no prólogo do Anticlaudianus explora três modalidades de leitura: sentido literal para os principiantes; sentido moral para os espíritos formados; sentido alegórico para espíritos intelectualmente bem dotados. 36. O nome foi-lhes dado pela escola alemã, por 1930, baseando-se no pressuposto de que eram destinados a iletrados; não é essa a posição da crítica: as Bíblias com tal configuração eram demasiado caras para serem acessíveis ao povo simples; o esquema de compreensão implicava uma cultura demasiado complexa para ser entendida por analfabetos. Cf. M. Camille, “Visual Signs of the Sacred Page: Books in the «Bible moralisée»”, Word & image, 1989, vol. 5, n.o 1, pp. 111-130. Dada a oposição entre Antigo e Novo Testamento é tentador ver nas representações um assomo de anti-semitismo; assim o faz Sara Lipton, Images of Intolerance: The Representation of Jews and Judaism in the Bible moralisée, Berkeley, 1999; seria diminuir o próprio esquema (que é de base tipológica e assenta no efeito especular – por isso invertido – das imagens). 37. Cf. André Grabar, Les voies de la création en iconographie chrétienne, Paris, Flammarion, 1979, pp. 117-132.

fotógrafo não se contenta com transpor o que todos vêem, pois procura fixar o que só ele pode descobrir e fixar. Não foi por lhe faltarem imagens captadas pela máquina que Picasso se lançou a criar Guernica... O homem medieval explora a imagem não pelo valor facial (pelo que aparenta), mas pelo que a habita ou a faz habitar (pela significação de que está investida ou a que dá acesso). Dionísio, o Areopagita (quem quer que ele seja), no início do séc. VI, no tratado da Hierarquia celestial, propõe um percurso gradativo que dá às imagens sensíveis, atravessadas pela luz, uma função mediadora que leva a objectivar o divino e torná-lo presente. O seu texto, oferecido pelo imperador Miguel de Constantinopla, no tempo de Luís, o Pio, em 827, é traduzido, para latim, por João Escoto Eriúgena, em 862, marca um tempo – da aceitação das imagens e sua defesa contra os iconoclastas – situa-se na mesma plataforma. Para Dionísio, as imagens materiais “fazem-nos passar do corpo ao espírito e dos símbolos piedosos à sublimidade das essências puras”. Séculos mais tarde, Bernardo distancia-se do uso da decoração carregada para não impedir a pureza da luz divina enviada ao homem; prefere a interioridade que depois se dilata em palavras, embora apercebendo-se que, perante o inefável, nada mais pode haver que gemidos de coração. Outros, como Suger, abade de S. Denis, apostam nessa mesma decoração para tornar mais evidente a manifestação de Deus, que é luz, e exprimir, complementarmente, o que a linguagem não permite enunciar. Os símbolos são plurivalentes... Quanto ao uso do texto, sabemos que o homem medieval preferiu uma leitura intensiva a uma leitura extensiva; o seu acto de leitura era lento e como que fisiológico – não tinha pejo em designá-lo expressivamente por ruminatio; é no claustro escolar (e não no claustro monástico) que se desenvolve o esquema intelectual da exposição marcada secundum causas; o contemplativo não terá outras regras de associação que não seja a de uma acumulação de vivências interiores, mas os pregadores, como António de Lisboa / Pádua, valem-se da célebre quadriga que os ajuda a percorrer os vários sentidos: transportados da historia / letra para a anagogia / realidade celestial, através da moralitas, percebida pela allegoria (o antigo prefigura o novo, o natural reenvia para o sobrenatural35). A tipologia do livro bíblico percorre toda essa escala: a Biblia Historialis apresenta o texto com explicações, como as de Pedro Comestor; a Biblia moralizata (também conhecida como Biblia allegorizata ou Emblemata biblica), composta no séc. XIII, é formada por passos específicos tomados da Bíblia e interpretados segundo o sentido moral e alegórico, sendo este basicamente de concordância entre o Antigo e o Novo Testamento, para o que se constitui um aparato de elementos iconográfico. Por seu lado, as Bibliae Pauperum desenvolvem o paralelismo tipológico entre o Antigo e o Novo Testamento36. Atendendo ao mecanismo é patente que desde muito cedo a pedagogia cristã se serve de uma linguagem imagística em que se articulam representações por justaposição – associando temas vetero e neo-testamentárias: serve para provar a unidade da história sagrada que se desenrola num único movimento; o tempo antigo é a imagem do tempo novo, a profecia é o anúncio do que se concretiza num tempo novo37.

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Ressurreição de Cristo (anunciada pelas “auctoritates”: David, Sofonias, Jacob, Oseias); à esquerda, figura de Sansão que rebenta as portas de Gaza, e, à direita, figura de Jonas que é expelido do ventre da baleia onde tinha ficado encerrado durante três dias. Biblia Pauperum. Holanda, início do séc. XV, Kings 5, fl. 20; cf. Janet Backhouse, The Illuminated Manuscript, Oxford, Phaidon, 1979, pl. 50.

Página da Anunciação numa Bíblia Pauperum já em livro impresso. A cena da visita do Anjo a Maria ocupa o centro: os filactérios registam as palavras que o texto evangélico lhes atribui; ao lado esquerdo está a tentação de Eva; ao lado direito, a escolha de Gedeão para tomar o comando das operações na libertação do domínio estrangeiro e a demonstração pedida por ele de que seria bem sucedido: a lã de uma pele de ovelha colocada ao relento só ela ficaria orvalhada quando tudo o mais ficaria enxuta e, inversamente, na noite seguinte, o fenómeno seria o inverso. Em jogo está o sentido tropológico da interpretação bíblica desenvolvida na pregação. A imagem fixa o que a doutrina expressa discursivamente propõe. A completar a representação os profetas Isaías, David, Ezequiel, Jeremias. Os textos que acompanham a imagem interpretam a imagem.

6. A superabundância de imagens nos nossos dias representa uma alteração significativa no convívio com elas e sua integração como modo de expressão. A invasão, tumultuosa e agressiva, suscita problemas de ordem antropológica, pedagógica e social, de selecção e de integração, a tal ponto que não podemos ignorar que ela se ergue como marca de cultura e de civilização. Colocando o problema da imagem como dado permanente, ainda que não uniforme, de uma cultura, que é a nossa, e como elemento estruturante de uma relação com o mundo e com os outros, teremos de aprofundar o seu estatuto no interior dessa

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cultura que, desde as origens, incidiu de forma mais directa na análise da palavra e do discurso, mas nunca recusou a imagem como recurso de representação e de complementaridade relativamente à palavra, embora esta fosse o modo mais imediatamente disponível para comunicar já que a imagem necessitava de um intermediário para o fazer. Há banalização dela no nosso quotidiano – é evidente. No entanto, não é pouco salutar advertir que, tanto ou mais do que o texto, a imagem recorta um mundo próprio que se coloca à parte e resiste à interferência de profanos, pois exige uma iniciação e que esta nem a todos é concedida – pelo menos exige esforço (ascese). Para ler um texto poderá parecer (por ilusão ou perversão) que basta juntar as letras..., sem buscar o sentido da expressão. Para olhar uma imagem não basta ter olhos... Por boas razões, sempre a imagem da divindade ficava antigamente colocada no “templo”, espaço destacado do quotidiano e ela própria era considerada como habitada por aquilo que representava; mesmo dos incrédulos, exigia-se distância e respeito, pois os adoradores mantinham-se a distância. Nos espaços públicos ou privados, a imagem tinha motivações e encantos ou reenviava para uma presença. Por muito que se confundissem por vezes garatujas com imagens, ao ícone (pelo menos a este, e em razão da identidade que pressupunha) reconhecia-se um carácter reservado e, de facto, nos materiais ou nas cores, na contenção do desenho e no afecto que nele se lançava, tudo predispunha para evitar qualquer profanação.

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38. Philippe Meirieu declara peremptoriamente que «toute image se construit comme une image pieuse; c’est, dans l’histoire, un exercice d’édification spirituelle, puis morale»: http://savoirscdi.cndp.fr/rencontrelyon/meirieu/meirieu. htm (consulta: 2007-11-06).

Não sei se coincido na delimitação dessa sacralidade com outros, mas sou levado a reconhecer na imagem um recorte de espaço que é também o de significação que obriga à busca da sua identidade. Um dia com Albert D’Haenens, em Lovaina, fui levado a perceber que o ritual da escrita pressupõe que o texto é um mundo à parte e que o instrumento que o copista habitualmente sustenta juntamente com o cálamo tem metaforicamente uma função quase sacrifical. Nunca tive oportunidade de abordar com A. D’Haenens a transferência dessa perspectiva para a imagem, mas encontrei-a casualmente em Philippe Meirieu quando insiste em que toda a imagem (mesmo que profana) se constrói como “imagem piedosa”, pois subjacente tem um exercício de edificação espiritual que pode evoluir para edificação moral38; chegará porventura até à sacralização, já que a imagem tende a ser interpretada como “presentificação” ou símbolo com uma relação de presença e contacto. Não terá sido por acaso que, no decurso da história da cultura ocidental, se desenrolou a questão iconoclasta em que opunham duas teologias distintas: uma que tendia a reabilitar a teoria das ideias como matriz de conhecimento (e apostava na ausência), outra que, por força de um facto de índole teológica, entendia convictamente que haviam de ser tiradas as consequências de o Logos / a Palavra ter tomado corpo para que o Indizível fosse dito e, concomitantemente, o Invísivel se tornar não só presente, mas visível e tangível – pelo que o somático ganhava paridade com o pneumático.

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O vidente do Apocalipse é o mesmo que escreve o Evangelho de João? Não tenho argumentos que possam contradizer a tradição e apraz-nos assumir que o contemplativo do Logos seja o mesmo que se compraz em recordar que as suas reflexões saíram da possibilidade que teve em tocar materialmente no Verbo da Vida (veja-se o início da 1 Ioan. 1, 1-3). Hildegarda de Bingen precisa do secretário para transmitir as suas visões, mas algumas vezes se entregou à composição das imagens que, por serem tomadas sob o efeito da visão, são mais directas. Na ordem do conhecimento, a abstracção ganha com apoiar-se na materialização, mas o significante toma legitimação de significado quando abrange a diversidade humana. 7. A multiplicação de imagens corre o risco da banalização. Problemática se tornou ela desde que ficou à mercê de um mecanismo multiplicador, como foi a máquina fotográfica, a câmara cinematográfica, a câmara de televisão ou outros processos técnicos. Não valerá a pena chamar de novo Platão a juízo para termos de nos convencer de que a realidade subsistente e substantiva não é acessível senão por imagem e de que esta não é possível senão de costas voltadas para a luz que dimana dessa realidade. Afinal, não é a luz que provoca a imagem? A mensagem está no livro X da República platónica. Fatalidade da condição humana ver de costas? Talvez possamos inverter a questão para assinalar que, afinal, o homem é o inventor do seu próprio mundo e não fica eternamente dependente da revelação dos deuses ou na expectativa que ela há-de chegar na Parúsia (sendo de Apocalipse, não tem necessariamente de ser final). Porventura houve momentos em que predominou a ilusão de pensar que havia adequação entre a imagem e o mundo por ela representado: Magritte ironizou quando representou um cachimbo e escreveu “ceci n’est pas une pipe”; as imagens, mesmo as mais realistas, são resultado de uma abstracção; as mais abstractas, como as da geometria, são fruto de um exercício intelectual, mas vivem das projecções exteriores, sendo as mais emotivas as que não dispensam sinestesias que falam ao homem todo através da palavra. Vale a pena voltar a ler o Ménon de Platão, mas não esquecer também que a plurivalência da linguagem é um incentivo à vigilância intelectual. Prevalecendo-se do filósofo da Academia ou assustando-se com as restrições, alguns esqueceram o carácter instrumental da imagem; porventura se insistiu demasiado no esvaziamento dela ou se deu de somenos definir o seu estatuto, embora sabendo que não há ideias sem imagens, que o conhecimento se inicia pela sensação tornada imagem ou que não há linguagem verbal sem um processo de transferência e identificação entre uma imagem acústica e uma imagem psíquica. Há pelo menos duas correntes que caminham em paralelo e só por vezes se cruzam. No início do terceiro livro da República, Cícero assenta a sociabilidade humana em dois recursos que são a palavra e o número. Agostinho, ao reflectir sobre os sinais, no De doctrina christiana, não chega a desenvolver qualquer teoria da imagem, mas há elementos nas Confissões (X, 8, §14) que a deixam pressupor. No comentário

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39. Aug., In Ioh. Evang. tract., 24, 2 (PL 35, 1593): “Nec tamen sufficit haec intueri in miraculis Christi. Interrogemus ipsa miracula, quid nobis loquantur de Christo: habent enim si intellegantur, linguam suam. Nam quia ipse Christus Verbum Dei est, etiam factum Verbi, verbum nobis est. Hoc ergo miraculum, sicut audivimus quam magnum sit, quaeramus etiam quam profundum sit: non tantum eius superficie delectemur, sed etiam altitudinem perscrutemur. Habet enim aliquid intus, hoc quod miramur foris. Vidimus, spectavimus magnum quiddam, praeclarum quiddam, et omnino divinum, quod fieri nisi a Deo non possit: laudavimus de facto factorem. Sed quemadmodum si litteras pulchras alicubi inspiceremus, non nobis sufficeret laudare scriptoris articulum, quoniam eas pariles, aequales decorasque fecit, nisi etiam legeremus quid nobis per illas indicaverit: ita factum hoc qui tantum inspicit, delectatur pulchritudine facti ut admiretur artificem; qui autem intellegit, quasi legit. Aliter enim videtur pictura, aliter videntur litterae. Picturam cum videris, hoc est totum vidisse, laudasse: litteras cum videris, non hoc est totum; quoniam commoneris et legere. Etenim dicis, cum videris litteras, si forte non eas nosti legere: Quid putamus esse quod hic scriptum est? Interrogas quid sit, cum iam videas aliquid. Aliud tibi demonstraturus est, a quo quaeris agnoscere quod vidisti. Alios ille oculos habet, alios tu. Nonne similiter apices videtis? Sed non similiter signa cognoscitis. Tu ergo vides et laudas: ille videt, laudat, legit et intellegit. Quia ergo vidimus, quia laudavimus, legamus et intellegamus.” 40. Cf. Goulven Madec, “Savoir c’est voir: Les trois sortes des «vues» selon Augustin”, em Voir les dieux voir Dieu, ed. Françoise Dunand e François Bœsplug, Estrasburgo, 2002, pp. 123-139. 41. Loc. cit.

ao Evangelho de S. João, há um passo que merece atenção pelo que implica de atenção aos milagres entendidos como signum de uma realidade que deve merecer leitura; o paralelismo é pictura e littera: reconhecendo que há entre elas diferenças (aliter uidetur pictura, aliter uidentur litterae), sublinha que a imagem fornece um conhecimento global (picturam cum uideris, hoc est totum uidisse), mas pressupõe uma indagação que a torna útil e operativa 39. Há que ultrapassar a superfície e penetrar na profundeza do acontecimento (se é este é da classe do milagre, chama a atenção; todavia, de pouco serve ficar admirado se a admiração é inconsequente e não percebe a dinâmica que ele desencadeia, ou seja, se não se atina com o seu significado vivencial)40; tudo isso leva a supor que o conhecimento não existe se houver uma percepção exterior: importa não ficar de fora, mas entrar (“tem algo no interior aquilo que vemos do exterior”). O milagre tem uma linguagem específica – o Verbo de Deus é palavra para o homem. Para ler um texto não basta simplesmente olhar para as letras que formam as palavras ou identificar a materialidade destas, comenta Agostinho; nem basta identificar a gramática sem atinar com as estruturas significantes. Também para perceber uma imagem não chega ver-lhe o desenho, há que procurar-lhe o seu sentido no interior. 8. Tem a imagem reflexibilidade criativa? Obviamente que sim, para que nela se “abra uma janela sobre o mundo” e ela seja uma “superfície reflexiva” – para me servir de expressões que encontro em Christine Dubois, quando comenta a expressão “image abymée” e apresenta o auto-retrato do pintor no interior do quadro que lhe pertence (como o de Las Meninas de Velásquez)41. Valho-me de um caso muito concreto que, por ser recente e por me ser de pessoa de família me faculta uma resposta. Dou-a em primeira pessoa, sem lhe introduzir qualquer elemento estranho ao que ela me transmitiu e me permite utilizar. Chama-se Sara. Foi-lhe proposto que integrasse “uma imagem de um pintor num fundo recriado”. Assim fez. Foi-lhe, depois, solicitado que constituísse uma memória descritiva / relatório do trabalho. Passo-lhe a palavra, sem alterar seja o que for. “A imagem que escolhi para integrar num fundo recriado faz parte da pintura «A Família» de Paula Rego que usou acrílico sobre papel montado em tela e cuja obra data de 1998. Quando escolhi esta imagem pensei em fazer um projecto diferente, elaborando a continuidade da pintura a partir da janela aberta que se encontra atrás da criança, ilustrando o significado do Natal no ponto de vista das crianças. No entanto, como esse projecto não correspondeu muito bem ao que pretendia realmente ilustrar, imaginei um novo projecto que deu origem ao trabalho final. Neste último projecto interpretei a imagem como uma fotografia, a partir da qual quis representar a saudade tal como a vejo. Para isso, elaborei uma lista de palavras / sentimentos, objectos e cores que, na minha opinião, simbolizam, de certo modo, a saudade. No início da execução deste segundo projecto, representei vários objectos que podem simbolizar a saudade. Mas num terceiro projecto melhorei a representação de ideias

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Saudade. Sara Saraiva. 2007. (trabalho – integração de uma imagem de um pintor num fundo recriado)

em relação ao projecto anterior e decidi fazer algumas modificações. Considerei a tesoura como o objecto marcante da ilustração e pretendi que tivesse um tamanho suficientemente grande para que chamasse à atenção. A tesoura surge como uma adaptação da sua função real à representação daquilo que considero ser o significado fundamental da saudade: a separação. Deste modo, a tesoura simboliza o elemento da separação, estabelecendo o corte entre a ligação espacial e temporal que acontece entre os que partem e os que ficam e vêem partir. Porém, apesar de ser um objecto que corta completamente e separa irreversivelmente duas partes, não representa de todo a separação emocional. É então por isso que a fotografia acaba por se sobrepor à tesoura, mostrando que apesar da rotura entre espaços físicos, continuam a existir laços de afecto, os quais desencadeiam a saudade, precisamente por serem mais fortes que a própria distância. A saudade é sempre um sentimento que proporciona vários estados de espírito próprios de quem se sente vazio, tal como a solidão, o abandono e a perda. Ilustrei estes estados de espírito através do vazio, da melancolia e do abandono bem visíveis num canto duma casa, talvez mais concretamente no quarto de quem ficou e viu partir: cartas e envelopes que exprimem recordação em vez de esquecimento e pressupõem distância; um cigarro apagado num cinzeiro, mas cuja chama ainda deixara fumo, o que quer dizer que embora tenha sofrido uma dura separação, ainda existe uma relação a preservar; um copo transparente, vazio e caído, traduzindo abandono e o sentimento genuíno que é a própria saudade; o parapeito sóbrio e desocupado e a

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42. A palavra vem do latim seducere, onde o prefixo se é marca de afastamento, separação e privação e o verbo duco pressupõe comando; por si, o termo deixa entender que pela sedução alguém é afastado daquilo que é ele próprio.

janela que mostra um céu muito azul, demonstrando não só o vazio e a melancolia (o parapeito), mas também uma certa esperança no fim da separação e naquilo que nos espera lá fora, no exterior, para lá daquela dimensão física (a janela); e finalmente o elemento central da pintura, a moldura que enquadra a fotografia e que constitui a recordação / memória dos momentos que antecederam a separação, bem como a esperança num regresso breve. Ao escolher as cores, procurei igualmente caracterizar a saudade, preferindo cores escuras e sóbrias. Pretendi que esta pintura representasse separação e solidão (preto), melancolia (cinzento), abandono (castanho) e quietação / paz (azul e branco), mas também amor / ternura (cor-de-rosa) e alguma esperança (verde e azul). Portanto, no seu conjunto, esta pintura não é muito colorida, antes pelo contrário, tem falta de cores fortes e alegres / vivas, propositadamente. E a pintura foi executada com guaches pouco diluídos, na maioria das cores. Concluindo, esta ilustração mostra o meu olhar debruçado na saudade e, consequentemente, a transformação da sua realidade naquilo que considero a verdadeira representação da saudade. Não pretendi ilustrar a realidade tal e qual como é, embora tenha utilizado símbolos concretos, mas sim conferir-lhe um carácter diferente e único, invocando à reflexão acerca do tema que ilustrei e proporcionando interpretações diferenciadas por parte de quem vê esta ilustração.” 9. Talvez porque me era muito chegada a autora deste trabalho senti nela a emoção primária de quem está por dentro “en abyme” e assim é capaz de construir o seu mundo, fazendo coincidir “representação e apresentação” e também formar os contrastes pela justaposição do que está dentro e o que está fora. A construção é um mundo novo porque é de quem o construiu e o vê como seu. Senti-me compensado de tanta repetição e monotonia do já visto e do enfado que pesa na multiplicidade do que nada tem de novo para oferecer. Compensado me senti sobretudo das contradições que envolvem a usura das palavras e das imagens. Atribui-se à imagem o poder de seduzir, mas teme-se esse poder, porque incontrolável – na verdade, “seduzir” é levar para fora do âmbito conhecido e habitual do exercício da actividade própria42. Tecem-se louvores ao encanto da imagem, mas ficamos receosos de que o encanto degenere em encantamento paralisante – que o mesmo é dizer em “enfeitiçamento” que deixe inactivas as faculdades analíticas. Admite-se que a imagem pode conter em si uma plenitude de significação (ou até potenciá-la, como está bem patente na abundância de figuras no texto literário), mas coloca-se em dúvida a sua capacidade de gerar conhecimentos que colocamos do lado de um discurso analítico que confiamos à palavra. Apesar de todas as reservas, alargou-se tanto o seu domínio que quase não há texto que não procure a imagem como ilustração: houve tempos, não muito distantes, em que os jornais mais graves evitavam recorrer a fotografias para não distrair os seus leitores, ou por considerarem que mais que dados importava julgar de uma realidade transposta para a imagem sem um enunciado de ponderação; afectados pela concorrência da televisão, não conseguiram resistir ao sortilégio da imagem e tiveram

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que demarcar-se para acentuarem quanto ela era tomada como complementar e não como básica. Facto é que, por ironia, depois de terem aberto as suas páginas à imagem, eles próprios acabaram por ser vítimas de manipulações internas – como aconteceu com o circunspecto Le Monde, em data recente43. À imagem são apontados malefícios. É útil reflectir sobre a dependência criada (por crianças, adolescentes e adultos) relativamente à televisão. Muitos se têm ocupado do tema e têm chamado a atenção para o esmorecimento da capacidade crítica e a redução do discurso sobre o qual se constrói a relação humana que assume e integra a experiência quotidiana... Não tenho competência particular para me pronunciar sobre tal questão, pois me seria necessário perceber e desmontar o mecanismo da informação que se tornou preponderantemente imagem. Assustam-me, porém, as reflexões que colho num texto de Ignacio Ramonet (director de Le Monde diplomatique e professor de teoria da comunicação na universidade de Denis-Diderot, Paris-VII)44. Sem pretender resumi-las, mas, fazendo-me eco delas, terei de me perguntar se não é tempo de exorcizar esses poderes que andam à solta. Facto é que, numa sociedade dirigida pela guerra de audiências, a visualização tornou-se um expediente de mercantilismo, a informação foi considerada mercadoria e perdeu a sua missão fundamental de antes que era a de fornecer dados para reflectir sobre a vida em sociedade e enriquecer o debate democrático; a derrocada consumou-se desde que os órgãos de comunicação social se deram conta de que o fenómeno emotivo desencadeia adesões e tanto mais marcadas quanto a informação é torrencial e a visualização pode criar a ilusão de se assistir ao desenrolar dos acontecimentos (ao transmitirem a queda do Muro de Berlim, em 1989, os comentadores declararam nada mais nada menos que se estava a assistir “ao fazer da História”; a partir da Guerra do Golfo, em 1991, a notícia tornou-se espectáculo directo – manobrado pela parte que comandava as imagens). Tomou-se como critério orientador a hiperemoção e apagaram-se todos os outros que hierarquizavam a importância dos acontecimentos e sugeriam formas de lhes fazer frente; o débito torrencial das imagens tornou-se recurso comum, gerou-se um mimetismo em que as variantes são apenas de ângulo de objectiva e não de leituras que integram os acontecimentos. Mais grave ainda, ao que referem os analistas: enquanto a imprensa escrita predominou, a TV operava a partir dos enquadramentos criados por aquela; desde que se verificou o predomínio da imagem, a entidade reguladora passou a ser a TV a ditar o ritmo e a hierarquização dos temas noticiosos e a subordinar a ela os modos de referência. Assim, a imagem tornou-se invasiva, o conhecimento disponibilizado deixou de ter estrutura e, no caos assim criado, soltaram-se demónios omnipresentes com efeitos perigosos, pois as consequências nada auguram de bom: saturação (todos falam no mesmo tom e das mesmas coisas), intoxicação (os produtos são todos iguais), de deformação (todos vêem o mesmo, sem contraditório), de alienação (projectando as atenções sobre acontecimentos distantes, defrauda-se a vida colectiva), de histerismo colectivo (provocado pela emoção generalizada). Será possível reverter o processo, sem ser vítima dele?

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43. Serge Tisseron, autor de L’intimité surexposée, Paris, Ramsay 2002, em entrevista mais recente observou a alteração de comportamentos relativamente à aceitação da imagem: durante algum tempo pensou-se que bastaria reduzir-lhe o número de ocorrências ou cercear-lhes o acesso; alguém terá dito que não compraria um aparelho de televisão, outro terá opinado que haveria que excluir as imagens dos manuais escolares; jornalistas de Le Monde declaravam-se contra as imagens porque elas eram manipulação emocional; o problema hoje é gerir o universo de imagens que não cessam de aumentar e fazer com que crianças e adultos olhem para as imagens de maneira diferente, o que se deveria fazer através de imagens que lhes ensinassem a ler as imagens. 44. http://www.unesco.org/webworld/points_ of_views/fr_200202_ramonet.shtml Consulta: 2007-11-04.


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45. Serge Tisseron, Enfants sous influence, Paris, 10/18 – Fait et Cause, 2003. 46. Entrevista de S. Tisseron a Janique Laudouar, Parler de l’image, in http://innovalo.scola.acparis.fr/Innovatio/innovatio4/parler.htm Consulta em 2007-11-04. 47. Remeto para dois livros de Régis Debray, Vie et mort de l’image, une histoire du regard en Occident, Paris, Gallimard, 1992; Un mythe contemporain: le dialogue des civilisations, Paris, CNRS, 2007.

Não vale a pena chorarmos sobre o inevitável, pois a marcha da história é irreversível e o retrocesso só poderia ser devido a uma catástrofe. A educação para a imagem, que deveria corresponder a uma sensibilização crítica aos seus embustes, será certamente uma solução. Só que, como lembra Serge Tisseron, “o problema aparece logo que perguntamos às pessoas que é que entendem por educação para a imagem; se todos estão acordo em que se torna necessária uma educação para os media, mas apenas raramente alguém a define; percebe-se que há muitas maneiras diferentes de a encarar: uma delas que eu proporia é a de procurar conhecer melhor as estratégias espontâneas que as crianças e os adolescentes utilizam para gerir o impacto emocional das imagens sobre eles”. O mesmo psicólogo, remetendo para uma obra sua45, em que se ocupa de problemas de violência juvenil, explica que há uma tríplice estratégia: “algumas crianças sentem-se à vontade para falar do que vêem, outras precisam de passar pelas imagens, e felizmente há educadores que tomam isso em conta – estas crianças conseguem discorrer sobre imagens desde que possam tocar-lhes, recortá-las, manipulá-las, desconstruí-las e reconstruí-las materialmente, com tesouras ou mediante um programa de tratamento de imagens; depois, há crianças que são os grandes esquecidos: têm necessidade de passar pelo corpo, pela sensorimotricidade – são crianças que não se dominam quando lhes mostram as imagens e para as quais haveria que prever actividades de jogos em grupo para lhes permitir começarem a gerir desse modo o impacto emocional das imagens sobre eles, a fim de lhes permitir posteriormente que falem delas. As crianças devem realizar tudo isto nas melhores condições possíveis, isto é, acompanhadas por um adulto porque entre eles, inevitavelmente algum deles vai ter tendência a perturbar a dinâmica de grupo e a presença do adulto é indispensável para gerir esta dinâmica”46. Sugere-se assim uma terapêutica. Por outra parte adianta S. Tisseron que há situações favoráveis para ela: “Com o desenvolvimento da internet, com o acesso ao portátil, a reivindicação da intimidade [como argumento para recusar a imagem] opera mudanças: não se trata já de se fazer reconhecer por um pequeno número de pessoas, mas de ter o reconhecimento de um número largo e eventualmente de desconhecidos; como a nova geração cresceu muitas vezes no meio de filmagens que os pais fi zeram, ela cresceu de ambos os lados da barreira; para os jovens, a televisão prolonga, naturalmente, a sua intimidade; eles querem expor-se: mais ainda, para se “tornar célebre”, há que dar-se a conhecer no que podem ter de mais específico; não se trata de imitar alguém para ser célebre, mas trata-se de se tornar célebre pela sua originalidade, sem renunciar a si próprio; é o que se pode chamar desejo de «extimidade»” (deixo a palavra no seu barbarismo, mas que se entende na contraposição a “intimidade”). 10. Lidar com a imagem tem, todavia, outras incidências. Mais recentemente estalou um caso típico das aporias sentidas relativamente à integração da imagem e aos efeitos que ela provoca. Em causa estão aspectos imanentes a culturas diversas e os avatares do “diálogo das civilizações”, com o embate do sentido primário das representações47.

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A publicação de caricaturas de Maomé num jornal dinamarquês, não obstante a sua ingenuidade e pobreza estética, desencadeou reacções inesperadas48. Fomos obrigados a dar-nos conta de que não temos esquemas e categorias amadurecidas para desatendermos daquilo que é menor, para percebermos a função maior da imagem. No caso concreto, a conceder-se importância ao acontecimento, deveríamos concentrar-nos em recuperar em proveito próprio a purificação de atitudes que de há muito andavam à solta: o descrédito recaiu sobre a verdadeira imagem religiosa. É que, uma das questões reais de qualquer religião (e particularmente do Cristianismo, pelo que tem de iconofilia) é lutar contra as “caricaturas” que continuamente vamos construindo de uma divindade (por natureza, transcendente, inefável e irrepresentável), sabendo, por outra parte, que, mesmo nas religiões “proféticas”, particularmente nas que são “crísticas”, a imagem não é mais do que instrumental na aproximação dessa divindade que se dá a conhecer ao homem e com ele convive na fronteira do humano. No Antigo Testamento, está proibida a representação da divindade? É catequético o Deuteronómio: “Uma vez que nenhuma forma vistes no dia em que Iahweh vos falou no Horeb, do meio do fogo, não vos façais de insensatos para irdes fazer uma imagem esculpida em forma de ídolo – figura de homem ou de mulher, figura de algum animal terrestre, de pássaro que esvoaça pelo céu, de réptil que rasteja pelo solo, ou de peixe que se move nas águas abaixo da terra” (Deut. 4, 13-18); mais sintético é outro enunciado do mesmo livro bíblico, quando se proclama a aliança do Povo com Deus: “Maldito seja o homem que faz um ídolo na pedra ou no metal” (Deut. 27, 15); não é menos incisivo outro passo do Levítico: “Não fareis ídolos, não levantareis imagem ou estela e não colocareis na vossa terra pedras esculpidas com o objectivo de vos inclinardes diante delas, pois eu sou Iahweh vosso Deus” (Lev. 26,1). Entenda-se, porém, o que está em causa: reivindicação de transcendência divina e preservação do monoteísmo. A razão invocada pressupõe que o ídolo é a configuração de outra divindade. O monoteísmo exige exclusivismo. Se estes são os preceitos, é compreensível a revolta de Moisés quando desce da Montanha sagrada (onde recebera das mãos de Deus as Tábuas da Lei) e encontra o Povo dançando em torno do bezerro de ouro. Esta sacralização da imagem é tanto mais marcada e surpreendente quanto fora fabricada com o ouro que as mulheres haviam trazido do Egipto e significava por isso servidão ... Para quem pretendia ser livre, o gesto era de hipocrisia e por isso entendemos que sob uma iluminura medieval se tenha escrito: “comment hypocrite[s] adurent le veel”. Pode, todavia, a imagem ser eliminada na relação do homem com o transcendente? Algumas confissões cristãs foram radicais em eliminar a imagem. Afinal a que correspondem essas imagens? Se atendermos à revelação, será útil reconhecer que Cristo, segundo registo do evangelho de São João, declarou que a Deus ninguém jamais O viu, mas o Filho de Deus revelou-O por palavras e acentuou também (a Filipe) que quem o viu a Ele viu o Pai (Ioan. 1,18; 14, 9)... Há dois aspectos a considerar: Deus é invisível; porém, em Cristo, ele tornou-se visível: a Pessoa de Cristo é Deus e Homem; a divindade habita a humanidade; o invisível torna-se visível. De facto,

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48. Reflexão lúcida e serena pode ver-se em François Bœplug, Caricaturer Dieu? – Pouvoirs et dangers de l’image, Paris, Bayard, 2006.


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49. Karl Rahner / Herbert Vorgrimler, Petit dictionnaire de théologie catholique, Paris, Seuil, 1970, s. u. «Image».

como é possível representar a Deus sem O ver? Ou será que, justamente, por nunca O termos visto, precisamos de O “ver” nas imagens que d’Ele construímos, para não nos esquecermos de que Ele é? Os místicos consideraram-se incapazes de ter certezas a respeito de Deus e até a Madre Teresa de Calcutá declarou sofrer pela ausência d’Ele, admitindo que só o podia ver na imagem reflectida nos pobres a quem servia. Em plano de revelação cristã, há que reconhecer o paradoxo que é a manifestação em Jesus Cristo da “imagem do Invisível” (Col. 1, 15) e o facto do não-reconhecimento dessa situação por parte dos que com Ele conviveram para apenas se tornar perceptível a partir do momento em que a Ressurreição o tornava presente na sua realidade divina (aos olhos de Madalena, das Santas Mulheres, dos Discípulos: Noli me tangere – Duccio de Buoninsegna). Os teólogos admitem que “através da mediação pela imagem (pelos sentidos), o homem (em paralelo com a meditação centrada sobre a palavra) pode tentar contemplar a verdade para além das formulações conceptuais”, advertindo que “a forma e os limites dessa representação «visual» dependem tanto da imagem que representa como da faculdade imaginativa de cada um”49. Este processo que assumimos culturalmente só nos envergonha se não entendermos quanto põe em causa a imagem de nós mesmos – na sobranceria de reduzirmos o Transcendente ao imanente e na incultura de não advertirmos que cada momento da história tem de assegurar a continuidade do convívio que implica com as imagens acumuladas. Importa saber que formamos continuamente imagens mentais que precedem qualquer forma de conhecimento e sua expressão: o processo linguístico baseia-se nesse suporte, pois não há relação directa de som e palavra; em termos saussurianos, a forma linguística (sequência de signos fonéticos antes de ser de signos gráficos) resulta da associação entre uma imagem acústica e uma imagem do real, de tal modo que dessa associação nasce um significante cujo valor provém de saber distinguir a diversidade dos géneros de imagens, para não confundir o que pode ser graça brejeira e o que é imagem respeitosa – habitada por afecto, na cumulação de presença. Que se pretende com a sublimação da imagem e que efeito negativo nela existe que dê razão aos seus detractores? Será que o brilho da cor e o fulgor da luminosidade confundem em vez de esclarecerem? Por outro lado, o sincretismo da imagem não deveria permitir uma presença que se prolongasse em análise? O dinamismo que ela desencadeia não parecia destinado a descobrir a novidade que ela apresenta? O encanto que globalmente provoca não seria de esperar que fosse estímulo para uma adesão das diversas faculdades de conhecimento? Afinal, porque é que há medo da imagem? Talvez porque sugere, mas não informa analiticamente. Mas não será essa a sua grande vantagem? Ou será que é a sua decomposição que conduz ao conhecimento? Nessa possibilidade, aproxima-se da imagem a poesia. Foi recentemente apontado o caso da poesia chinesa que François Cheng (nascido na China, mas naturalizado francês em 1977 e membro da Academia Francesa desde 2002) tem procurado trazer ao conhecimento do mundo ocidental. Tomando um dos poemas de Bo Ju-yi que

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aquele académico inclui em antologia recentemente traduzida para castelhano, mas publicada em França em 197750, Chantal Maillard51 comentava, com algum enlevo, mas com demasiada ligeireza e escassez de conhecimentos que “em nenhum lugar como na China e no Japão têm andado tão relacionadas a pintura e a poesia” e em tom retórico perguntava: “Se Aristóteles entendia que a palavra poética «pinta» devido à utilização que faz da metáfora, que não teria ele dito se tivesse visto algumas representações significativas estilizadas em papel ou em seda?” Traduzo o poema que é sugestivo: “(...) / Noite passada cidade em cima / um pé neve / Alba conduz ir carvão carrinho / rodar gelado carril / (...)”. Explicava a comentarista que a língua chinesa permite exprimir-se só com palavras plenas (substantivos e verbos), sem recurso a palavras gramaticais (pretensamente vazias) e pretendeu dar-lhe um equivalente explicitando as correlações, transpondo para uma outra forma discursiva: “Esta noite nevou na cidade / e desde a alba vai com o seu carrinho pelo caminho gelado”. Revertendo o processo, lamento o empobrecimento provocado, ainda que a comentarista pretendesse garantir que a primitiva função do poema era espicaçar / activar a imaginação do leitor para a intuição de um significado muito mais complexo. Esqueceu também essa mesma comentarista que a doutrina que pretende fazer passar como mérito de Aristóteles pertence a Simónides de Ceos e foi transmitida ao Ocidente por nomes tão ilustres como Cícero e Horácio... Apelando para um mundo distante, quis ela chamar a atenção para o efeito da imagem sugerida por palavras plenas e seus referentes, sem que lhes seja imposta uma sintaxe que condicione uma semântica. Não precisava de ir tão longe. Porventura desconhecia a comentarista pérolas como a que constitui o poema de Safo recentemente descoberto na “coulage” da múmia que foi parar a Colónia e tem encantado os leitores. Impossível resistir à sucessão de imagens que enlevam só de as ouvir enunciadas52. Há o perigo de ficar fascinado pela ilusão e por isso Platão considerou necessário reportar-se ao mundo das ideias e considerar que a imagem mais não era que pálido reflexo do real, em nível inferior de conhecimento (“sombra de uma sombra”). O que o filósofo rejeita é a imitação anémica... Entre o grego eîdos e o seu correlato eidôlon vai, de facto, um abismo, já que o primeiro termo remete para um mundo autêntico (o “mundo das ideias”) e o segundo apenas deixa entrever um vislumbre – que tanto é desvirtuamento como pode ser aproveitado para disfarce e desvios de fixação indevida (a idolatria – na sua expressão etimológica). Quando o empirismo aristotélico inverte o processo para reconhecer que o percurso do conhecimento vai da sensação ao conceito e por este se chega ao conhecimento, reconhece-se o poder da mimese que arrasta pelo que contém de verdade. O místico vale-se das representações para atingir a união com o Transcendente que desce até ele. Todos se deixam atrair pela novidade que a imagem, mais que a escrita, é capaz de criar. Normalmente reconhecemos o futuro virados para o passado, como Marco Pólo que Ítalo Calvino figurou no seu pequeno / grande livro Le città invisibili. As palavras guardam imagens e estas retêm mistérios. No prólogo ao comentário do

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50. L’Écriture poétique chinoise, Paris, Seuil, 1977 e 1996. 51. O comentário apresentado em El País, Sábado, 20 de Outubro de 2007 (Suplemento “Babélia”), traz o título “Pintar el poema”. 52. Demo-lo em tradução portuguesa em “A construção do feminino: olhares cruzados (com leitura de novo poema de Safo”, Euphrosyne, 34, 2006, 9-17: “Vós, companheiras das Musas de colo violeta, belas oferendas, donzelas, sede aplicadas e canto amigo de som claro à lira! Quanto a mim, o corpo, que antes delicado fora, já a velhice dele tomou conta e brancos se tornaram os cabelos de negros que eram. Pesado o coração descaiu, os joelhos soçobram, eles que noutro tempo foram ágeis para dançar como gazelas. Tudo isto choro em delongada; mas que fazer afinal? se esta é a inevitável condição humana, nada mais fica para fazer. É facto que outrora a Titono, dizem, Aurora de róseos braços por Amor embevecida em marcha até aos confins da terra o levou. Era ele belo e jovem, mas no seu momento a ele o atingiu o tempo da velhice encanecida, a ele que estava de posse de esposa imortal.”


o p o d e r da i m ag e m : e n c a n to s , a m b i g u i da d e s e va lo r i z aç õ e s

53. Hier., Ep. 53 (Ad Paulinum). 54. Claude Collard, op. cit., p. 18.

Apocalipse de S. João, Jerónimo escreveu que nele há tantos mistérios quantas as palavras e que em cada palavra estão escondidas muitas significações: “tot habet sacramenta quot uerba [...]; in verbis singulis multiplices latent intelligentiae”53. Se a imagem fosse um produto natural, não haveria senão que descrevê-la e dizer onde se coloca. Como construção que é, deve analisar-se para reconhecer nela um significado – que não é abstracto, mas configura uma presença e uma linguagem de autor. Na sua singularidade de expressão que revela um narrador que a propõe, deixa o encanto que a torna única – como o texto poético. “Os fenomenólogos dizem que a imagem é, antes de mais, uma intenção e não um estado de facto entre dois objectos. Ou seja, a imagem é criada pela vontade de atingir um objecto através de um outro que se lhe assemelha e o pode representar, graças a esta semelhança. Não há imagem sem objecto: toda a imagem é imagem de alguma coisa e é a intenção que cria a imagem. Ela não é redutível à cópia ou à reprodução: é, antes, uma relação entre o modelo e o objecto que ocupa o lugar dele. (...) Há que dar à imagem um sentido largo, definido pela sua projecção, um ecrã sobre o qual tudo se pode produzir, como prolongamento do real ou como surgimento de uma segunda realidade”54. Ao longo da história do livro, houve um convívio permanente de texto e imagem; o próprio Renascimento que privilegiou o predomínio do texto não esqueceu que, por vezes, ele não diz mais que a imagem, pois, se um condensa, a outra sugere: os emblemas de Alciato procuram um convívio em que nem um é explicação do outro nem o outro é pressuposto para o primeiro nem são postos em concorrência, mas em articulação, que, postulando o princípio da harmonia, vivem da complementaridade. Um não é metafórico porque o outro é figurado.

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Resumo Este estudo teve como base um corpus de imagens provenientes de bíblias historiadas do séc. XIII, existentes em Portugal. Centrados na concepção dos programas iconográficos, teólogos e iluminadores, provavelmente seculares, criaram mecanismos de construção de memória, de modo a veicularem, através das iniciais historiadas, mensagens que actualizavam o tempo primordial bíblico e, ao mesmo tempo, revelam intenções moralizadoras do seu próprio tempo, nas quais as relações entre cristãos e judeus estiveram presentes. O estudo passa por uma abordagem iconográfica mas, como historiadores de arte, essa aproximação leva-nos a formular questões e a estabelecer pressupostos epistemológicos à História da Arte Medieval que ultrapassam aquele método. A historiografia de arte não se detém apenas no estudo das formas, da decifração dos conteúdos e funções; consideramos que a história da arte, especialmente a arte cristã medieval, se institui num momento de abertura onde se intuem e interpretam os sintomas e se penetram os mistérios. O tema escolhido levou-nos exactamente para uma reflexão sobre o modo como se exerceu o poder dos cristãos sobre os judeus, num século em que o cristianismo se impõe no Ocidente através de uma nova atitude teológica, apoiada pelo poder real, papal e ordens mendicantes. Do ponto de vista do historiador a questão é complexa e está longe de ser unânime. Foi nosso propósito indagar como transmitiram os iluminadores os códigos, em diálogo com os teólogos, através de uma expressão artística que cumpre uma função religiosa e propagandística.

palavras-chave idade média bíblias universitárias judeus iconografia

Abstract This study is based on a corpus of images taken from 13th Century historiated bibles extant in Portugal. In the design of iconographic programmes, theologians and illuminators, probably secular, created memory-building mechanisms within historiated initials. These acted as a vehicle for messages that updated the primordial biblical time, simultaneously revealing the moralising intentions of their time, including the part played by the relationship between Christians and Jews. While the study follows an iconographic approach, as art historians we must go beyond this method, asking questions and establishing epistemological premises that are relevant to Medieval Art History. Art historiography does not stop at the study of form and the deciphering of contents and function. The study of art, and in particular of Christian Medieval art, goes through a period of openness in which symptoms must be sensed and interpreted, and mysteries penetrated. Thus, the subject chosen for this analysis takes us to reflect on the way Christian power was exercised over Jews at a time in which Christianity gained hold of the West by means of a new theological attitude, backed by royal and papal power, with the support of the Mendicant Orders. From the point of view of historians this is a complex issue with no unanimous interpretation. Our purpose, therefore, has been to explore the way in which illuminators, in conjunction theologians, transmitted codes a means of artistic Agradecimentoswith por ajuda na configuração do texto these e sugestões de through Ana Catarina Sousa, Pedro Fialho expression with religious and propagandistic intentions. de Sousa, Justino Maciel, Felix Teichner e Heidi.

key-words middle ages university bibles jews iconography


representação dos judeus nas bíblias historiadas 1

a d el a id e m i r a n da lu ís co rrei a d e sou sa Instituto de Estudos Medievais FCSH-UNL

“Antes da obra de arte visível, houve a exigência de uma “abertura” do mundo visível, que não mostrava apenas as formas, mas também os furores visuais, realizados, escritos ou também cantados; não somente chaves iconográficas, mas também os sintomas ou os traços de um mistério.” Georges Didi-Huberman

fig.1 drolerie. inicial “s” do prólogo do livro do profeta amós, lisboa, bnp, alc. 458, fl. 261v

Judeus e Cristãos da Europa Medieval

1. O presente estudo teve na sua origem a investigação efectuada para a preparação de uma comunicação realizada no Seminário Internacional Imagem, memória e poder – Visualidade e representação (sécs. XII-XV), organizado no âmbito do projecto Imago (POCTI /EAT/45922/2002), do Instituto de Estudos Medievais, da FCSH – UNL, nos dias 15 e 16 de Novembro de 2007.

O tema do seminário: Imagem, memória e poder, assim como o desenvolvimento dos estudos iconográficos, motivaram-nos para a reflexão sobre as relações entre judeus e cristãos e a consequente expressão na iluminura medieval, nomeadamente nas bíblias universitárias franceses. É nosso propósito contribuir para o conhecimento e divulgação dos programas iconográficos destes manuscritos e repensar as posições e atitudes assumidas relativamente à cultura judaica no seio da medievalidade cristã europeia. A questão da alteridade tem vindo a merecer cada vez mais atenção por parte dos historiadores, por vezes revisitando temas já abordados, a fim de incluir esta variável, considerada imprescindível na historiografia actual. Desde o início da era cristã, que a problemática das relações entre cristãos e judeus se tem colocado e muito se tem escrito sobre ela. Ainda assim, não nos

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pareceu inoportuno fazer a sua abordagem, partindo das representações figuradas que revelaram sintomas ausentes na documentação escrita. Não só na sociedade actual o sentimento de poder se procura perpetuar e projectar para as gerações futuras. Mecanismos de construção de memória, tanto na esfera privada como no domínio da esfera pública, foram sendo construídos e legados com os mais diversos propósitos, constituindo-se como indícios de primordial valia para o conhecimento e abordagem ao pensamento de determinada época, comunidade ou indivíduo. Diversas podem ser também as fontes que veiculam essa memória do poder, partindo da literatura oral à legislação, passando pelas marcas físicas, através do legado de objectos ou obras de arte. Sem dúvida que um dos indicadores de maior relevo nesta problemática é o lugar na hierarquia social que pode ser explicitado através da indicação dos cargos que ocupam, por mera demarcação de origem familiar ou através de sinais exteriores utilizados de forma deliberada. Esta temática leva-nos a uma reflexão sobre as relações de poder entre os cristãos dominantes e as minorias judaicas nos séculos XII e XIII. Estas desenvolveram, em torno da sua cultura, fortemente imbuída de religiosidade, preceitos e formas de comportamento social próprios, embora as suas actividades económicas e sociais as levassem, também, até finais do século XII (Dahan 2007, 22), a viver um grau apreciável de convivialidade com as outras comunidades. Apesar do poder económico que detinham e dos altos cargos conferidos pelos monarcas, a ausência de um território específico e autónomo levou-os, como povo, a uma situação deficitária de poder. Relativamente à presença de judeus na Europa, ela é confi rmada, em Roma, na segunda metade do século I a.C (Faü 2005, 7). No território ibérico, em particular, assinala-se a presença dos judeus antes da cristianização do “Velho Continente”, mas certamente um pouco mais tarde que na península itálica. Como assinala Peter Klein, a destruição do segundo templo de Jerusalém, em 70 d.C. por Tito Flávio, futuro imperador de Roma, e as convulsões que levaram àquele desfecho, terão provocado um acentuado êxodo do povo judaico, sendo a península ibérica um dos destinos (Klein 2007, 341). No território que viria a ser Portugal, as fontes disponíveis atestam a presença de judeus a partir do século V. Antes da fundação da nacionalidade, verificaram-se momentos de maior ou menor tensão entre estas duas culturas no seio dos reinos peninsulares, sendo que, em traços largos, a convivência foi consideravelmente pacífica. Aquando do tratado de Zamora (5 de Outubro de 1143), entre Afonso Henriques e Afonso VII de Castela e Leão, que reconhece este território como um reino autónomo, os judeus encontravam-se já bastante disseminados por diferentes localidades, onde se organizavam em comunidades com assinalável importância como Coimbra, Santarém, Lisboa ou Évora (Ferro 1979, 10). No quadro da Reconquista, os judeus foram utilizados pelos monarcas na sua política de povoamento, tendo sido uma oportunidade para que as suas comunidades se estendessem a zonas rurais, em pequenos centros urbanos. No reinado de D. Dinis, são identificadas comunidades judaicas em Bragança, Chaves, Mogadouro, Rio Livre, Castelo Rodrigo, Monforte, Guarda, para além das anteriormente referidas. Na se-

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gunda metade do século XIV, existiam cerca de trinta comunidades que se distribuíam praticamente por todo o território, indo até ao limite sul, sendo referenciados em Silves, Loulé e Tavira (Tavares 1992, 15-16). A documentação mais antiga que confere direitos aos judeus corresponde às Cartas de Privilégio do reinado de D. Pedro I (1320-1367). Mas atendendo à disseminação das comunidades por todo o reino e ao papel que tiveram no povoamento, certamente que teria existido legislação nesse domínio já desde Afonso Henriques. As cartas de confirmação, que foram sendo renovadas de reinado em reinado, são indício suficiente para se poder concluir que, apesar de serem consideradas estrangeiras (senão não se justificaria a referida legislação) estas comunidades encontraram aqui as condições sociais que lhe permitiram instalar-se e viver de acordo com os seus princípios, religião e leis próprias (Tavares 1992, 17-18). Apesar de alguns tratamentos discriminatórios, como a segregação física e espacial, em determinados momentos, a situação ter-se-á mantido regular até 1496, aquando da decisão de D. Manuel I de expulsar os judeus do reino, tomada de posição a que não foi alheia, certamente, a iniciativa anterior dos Reis Católicos, em 1492, e que provocou um significativo aumento na população judia em Portugal. Como se verificará, até final do século XV, os judeus portugueses viveram em condições de excepção, se comparadas com as comunidades congéneres dos restantes reinos peninsulares, em França e noutras regiões da Europa. As relações entre judeus e cristãos conhecem, pois, na Idade Média, uma longa evolução, ainda longe de estar totalmente clarificada, revelando situações muito diferenciadas segundo as regiões que lhe servem de palco. Questões teológicas de fundo separam estes dois povos cujas religiões se baseiam no Livro e na palavra revelada. Com uma raiz comum no Antigo Testamento, cristãos e judeus separam-se face ao dogma da Encarnação, central a toda a religiosidade medieval e que informa toda a originalidade do cristianismo. A partir do momento em que este aceita a origem divina de Cristo, abre-se uma ruptura fundamental entre a nova religião e o judaísmo. Nos períodos da História em que se verificaram maiores tensões, as relações entre judeus e cristãos são ainda abaladas pelo facto de o mundo cristão aceitar a versão bíblica de que foram aqueles os responsáveis pela morte de Cristo, tema que assume especial relevância em determinados momentos na Idade Média. Durante praticamente todo o primeiro milénio da nossa era, foi possível que estas culturas convivessem e, se não podemos dizer que se aceitavam mutuamente, pelo menos toleravam-se. Embora com vários episódios de violência, humilhação e exclusão, verificaram-se longos períodos de convivência pacífica. Esta situação vai sofrer alterações significativas no quadro, se assim o podemos dizer, das repercussões da primeira e segunda cruzadas (1095 e 1147-49). Apesar de um dos motivos comummente invocados ser a libertação dos lugares santos do domínio muçulmano, a problemática ou discussão acerca da responsabilidade judaica pela morte de Cristo volta a colocar-se, advindo daí consequências nefastas para algumas comunidades que foram hostilizadas. Esta reacção é ainda mais clara no decurso da segunda cruzada (1147-1149) e, após esta, no ano de 1182, em que ocorreu a expulsão dos judeus,

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e confiscação dos seus bens por Filipe Augusto (Cambres 2007, 14-15). Também o reinado de S. Luís (1226-1270) marcou uma época, relativamente às hostilidades sobre os hebreus. A atitude de cruzada, assumida por Luís IX, invocando a libertação de Jerusalém, alcança um sentido mais lato na luta contra o hereticus. A Disputatio sobre o Talmud, que teve lugar em Paris, em 1240, pretendendo ser um novo método de debate e reflexão, promovido no âmbito do designado movimento escolástico, transformou-se mais num tribunal sobre a aceitação ou recusa do Talmud, terminando com numerosos exemplares a serem destruídos pelo fogo. Verifica-se assim que, após os referidos movimentos de cruzada, a situação dos judeus na Europa se vai deteriorando, tendo conhecido um dos momentos mais difíceis na sua expulsão de Espanha, em 1492. A questão não se limitou ao confronto entre cristãos e judeus no domínio da discussão bíblica, mas estendeu-se à polémica anti-herética, por via de obras como Liber concordiae, de Joaquim de Fiore (1135-1202), ou o Liber antihaeresis, de Evrard de Béthune († c. 1212) que juntaram hereges, nomeadamente cátaros e valdenses, com judeus, lançando sobre eles a desconfiança e o anátema, (Miranda Garcia 1994, 263-265). Apesar do quadro apresentado, no Ocidente os judeus viram nos reis, até ao século XII, os seus principais protectores. Esta atitude, certamente ao sabor de interesses económicos, surge através de decretos, cartas e ordenanças, sendo este povo considerado como um bem próprio do monarca. Eram designados por “os meus judeus”, pelos reis portugueses. Também a atitude do poder eclesiástico oscilou entre a protecção e a condenação, expressa através de legislação e obras doutrinárias. Verificam-se, portanto, distintas posturas, conforme se trata do vulgo ou das elites sociais, dependendo também do momento social e político. No que concerne às relações com o papado, estas parecem ter sido bastante ambíguas. Se, por um lado, a violência contra os judeus e os baptismos forçados foram rejeitados por Roma, pelo menos desde 1120, por outro, verificou-se um assinalável número de decisões, emanadas de vários concílios, em que claramente se discriminavam pela negativa, sendo de salientar a mais conhecida, saída do IV Concílio de Latrão, de 1215, que lhes impunha o uso de uma rodela de tecido no vestuário, como sinal de identificação (Cambres 2007, 16). Gregório Magno (c. 540-604), considerado um dos fundadores do Ocidente, nas suas obras mostra que adere totalmente às doutrinas que vêem o Judaísmo como uma religião caduca com o aparecimento de Cristo, mas reconhece o seu papel na doutrina da salvação. Alexandre II (papa de 1061-1073) também defende os judeus através de documentação escrita e felicita os bispos de Espanha pela sua defesa. Calisto II, por meio da bula pontifical Sicut Judaeis (c. de 1120), concretizava a nova situação dos judeus após a primeira cruzada. A acção dos papas neste domínio traduziu-se pela intenção de proteger pessoas e bens, pela interdição dos baptismos forçados e proibição de perturbar o culto religioso. Alexandre III (papa de 1159 a 1181) acrescenta a interdição de forçar os judeus a participar nos jogos públicos. Neste assunto, não poderemos deixar de fazer referência ainda às decisões tomadas no IV Concílio de Latrão, convocado pelo Papa Inocêncio III (papa entre 1198 e

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2. Talmud (em hebreu ‫“ תלמוד‬estudo”). Trata-se de uma compilação de textos bastante diversificados, que incluem o Direito Civil e Religioso judaico, baseado nos comentários e interpretações da Torah. Existem duas versões: o Talmud de Jerusalém ou da Palestina e o Talmud da Babilónia.

1216) em Abril de 1213, através da bula Vineam Domini Sabaoth, e iniciado no ano seguinte, no primeiro dia de Novembro. Desta reunião magna da Igreja, concretamente do seu canon 68, saiu a primeira prescrição legal relativamente à obrigação dos Judeus ostentarem sinais distintivos. Anteriormente a esta data, esta prática já se verificava em alguns locais, embora não se possa confirmar se por imposição ou por vontade própria dos mesmos. Este facto não é surpreendente, uma vez que parece haver uma clara vontade de se auto afirmarem e se distinguirem dos cristãos, adoptando, por exemplo, o uso da característica barba e pe’ot (papilotes), de acordo com o texto do Livro do Levítico (Lv. 19, 27). Esta atitude de marcar a diferença verificou-se desde o século XI, depois da recepção do Talmud2, no Ocidente, e com a difusão da Cabala (Blumenkranz 1966, 20). A sua firme vontade de manter a sua cultura própria, impede que se diluam na sociedade cristã. Os diferentes aspectos do seu quotidiano, sempre ligado aos preceitos da religião, são o motivo das diferenças relativamente à maioria da população. O facto de possuírem leis e tribunais próprios, de terem rituais associados ao fabrico do pão ou à preparação das carnes para consumo, conferia-lhes uma certa autonomia no seio da própria sociedade, motivando, certamente, algumas desconfianças. Foram prescritos alguns sinais identificadores, assim como foi proibido o uso de algum vestuário para que se não confundissem com outros elementos da sociedade. No Concílio de Albi, a título de exemplo, realizado em 1254, foi interdito o uso da chape (um manto redondo), pois poderia confundir-se com as vestes do clero (Metzger 1982, 141). No entanto, a imposição de sinais discriminatórios como a rouelle (rodela), um pequeno círculo de tecido, geralmente amarelo, que deveria ser colocado nas vestes, parece ter sido a medida de maior afronta e a que gerou mais controvérsia sendo, talvez, a mais humilhante, em nosso entender. Esta iniciativa terá surgido em França em inícios do século XIII, antes mesmo das decisões do Concílio de Latrão e seguido posteriormente na maior parte dos outros reinos. Deveria ser usada por todos, homens, mulheres e mesmo crianças a partir de determinada idade (Metzger 1982, 148). A ideia parece retomar uma iniciativa muçulmana implementada pelo califa de Bagdad, Muttawakkil, por volta do ano de 850, que ordenou a todos os não crentes (neste caso cristãos, judeus e outros), que deveriam usar uma insígnia que os distinguisse dos crentes de Alá (Miranda Garcia 1994, 258). Na iconografia dos judeus, este sinal é, todavia, muito raramente representado. A colocação da rodela de tecido no vestuário pretendia assinalar a presença de outrem que não é bem aceite. A cor amarela não é escolhida por acaso; sabemos que o amarelo é uma cor que atrai o olhar, é visível ao longe e, assim, adverte o perigo. A forma deste distintivo, e provavelmente também a cor, tinha um significado preciso: deveria lembrar as moedas recebidas por Judas por ter atraiçoado Jesus. Em Portugal, em virtude de envergarem o referido distintivo, eram designados por Judeus de sinal. A aplicação de tal medida não obteve o efeito esperado, pelo que a deliberação é proferida cerca de uma vintena de vezes, só em França, entre concílios e ordenações régias, até meados do século seguinte (Miranda Garcia 1994, 260).

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O Concílio de Viena de 1267, volta a tratar do assunto da identificação pública dos judeus e, em vez da já conhecida rodela colorida fixada no vestuário, impõe que estes deverão usar um chapéu pontiagudo, com o formato do referido funil invertido, ou um penteado com a mesma configuração. A determinação parece não ter sido muito contestada pelos judeus, já que o seu uso era habitual. Este é, de facto, o mais frequente sinal identificativo, sendo o mais representado na iconografia medieval. Em muitas representações, mesmo em manuscritos hebraicos, é o chapéu pontiagudo, semelhante a um funil invertido, o único sinal distintivo que encontramos. Esta distinção teve especial impacto na Alemanha, onde a rodela teve uma menor aplicação até ao século XV. Mas, ao contrário da rodela, que procuraram recusar, parece que o chapéu foi acolhido e transformado numa das suas marcas de identidade. Na arte cristã, o uso de chapéus ou barretes de diferentes formas, mas quase sempre pontiagudos, associados à figura dos judeus, é atestado pelas várias representações, desde o século XII (Metzger 1982, 148). Importa frisar que durante o período românico, a figura do judeu estava já presente em variados temas da arte cristã, em cenas do Antigo e do Novo Testamento, sem assumir qualquer traço pejorativo ou anti-semita, sendo identificado na maioria das vezes, precisamente, pelo chapéu pontiagudo.

A imagem do judeu nas bíblias universitárias historiadas Como vimos, o assunto é assaz complexo e importa desde já tornar claro que as relações com aquela cultura minoritária, no seio do Ocidente cristão, foram bastante diferenciadas, conforme o momento histórico, político e social. Este é um ponto de crucial importância na abordagem da questão e que importa reter. Restringimos as observações a fontes existentes no nosso país, embora algumas provenientes de outros centros europeus, como Paris, e que integravam as bibliotecas monásticas portuguesas, o que não deixa de constituir um indicador de gosto e preferência por estes manuscritos, nomeadamente dos seus programas iconográficos. Temos assim dois universos distintos: o local de produção e o de recepção dos mesmos. As acesas disputas e debates entre judeus e cristãos que se iniciam em Paris no início do século XIII, assim como as variadas decisões políticas e consequentes implicações sociais, não deixaram de ter reflexos nas formas artísticas, nomeadamente nas iluminuras dos manuscritos que se produziam nos ateliers parisienses ou da sua influência, aos quais as nossas Bíblias pertencem. O presente estudo teve como base um corpus de imagens provenientes de Bíblias universitárias historiadas do século XIII existentes em Portugal, cujo trabalho de catalogação se efectuou no âmbito do projecto Imago. Foi o levantamento fotográfico e a elaboração do thesaurus para a descrição das imagens que nos chamaram a aten-

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3. As Bíblias aqui referidas, Alc. 455 e Alc. 458, actualmente na Biblioteca Nacional de Portugal.

ção para a representação de judeus em algumas das iluminuras constantes nos referidos manuscritos. Os atributos que os identificavam, as cenas onde eram representados, a sua expressão, mas sobretudo a relação de poder que se estabelece, ou não, na representação entre estes e os cristãos, levou-nos a abordar o tema. Centrámo-nos, particularmente, sobre duas Bíblias provenientes do fundo de Alcobaça – manuscritos Alc. 455 e Alc. 4583, que tomamos como um indicador das preferências dos “monges brancos” e confrontamo-los com outros manuscritos do mesmo período, produzidas em contextos semelhantes; referimo-nos aos manuscritos bíblicos Lisboa, BNP, IL 34, IL 51, IL 63 e IL 93, provenientes de colecções particulares e integrados mais tardiamente no fundo da Biblioteca Nacional e a Bíblia, BGUC, cofre 5, de Coimbra. Centrados na concepção dos programas iconográficos destes manuscritos, teólogos e iluminadores criaram mecanismos de construção de memória, de modo a veicularem, através das iniciais historiadas, mensagens que actualizassem o tempo primordial bíblico e, ao mesmo tempo, revelassem as intenções moralizadoras ou ideológicas do seu próprio tempo, nas quais as relações entre cristãos e judeus estiveram presentes. O tema escolhido levou-nos exactamente para uma reflexão no âmago desta questão: como se exerceu, através da imagem, o poder dos cristãos sobre os judeus neste século XIII em que o cristianismo procura impor-se no Ocidente através de uma nova atitude teológica do poder real e papal e das novas ordens religiosas – franciscanos e dominicanos? Se do ponto de vista do historiador esta questão é complexa e está longe de ser unânime, como vão os iluminadores, sem dúvida em diálogo com os teólogos, transmitir os códigos através de uma expressão artística que cumpre uma função religiosa? Estes artistas provavelmente seculares, na maior parte no contexto da produção universitária parisiense, utilizaram um vocabulário gótico, conheceram os textos, estiveram porventura em diálogo com as comunidades judaicas, mas que sensibilidades nos transmitiram? A diversidade de situações que vamos encontrar, apesar de ser um dos momentos aparentemente mais repetitivos de modelos da história dos manuscritos iluminados, é notável. Cada oficina/artista escolhe uma determinada cena para transmitir a mensagem de um livro bíblico. Estamos perante um espaço de abertura. Os que escolhem a mesma cena expressam-na de diferentes formas, as personagens transmitem expressões, gestos, ritmos, organizam-se nas iniciais de modo diverso e manifestam perante o mesmo texto bíblico que lhes serviu de base, a diversidade de abordagens. Ter-se-ão assumido os artistas como servidores dos poderes instituídos ou tiveram liberdade de tratar o tema em pequenas imagens que oscilam entre 10 e 300 milímetros? Estas imagens, para além de uma função de orientação e clarificação no texto, constituíram-se como furores visuais, no dizer de Didi-Huberman, abrindo o códice a uma dimensão estética. O lugar que elas ocupam é, pois, estrutural ao texto já que fazem parte de algo que é inerente à história da arte ocidental “Contar através de imagens as narrativas históricas, adornar a palavra e sobretudo ritualizar, tornar presente uma realidade ausente, exprimindo emoção” (Gregório Magno em carta a Serenus, Bispo de Marselha). Aqui se abre um vasto campo de interrogações. Consideramos, com Didi Hubermann (1990, 64) que a História da Arte, especialmente a arte cristã medieval, se institui num momento

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de abertura onde se intuem e interpretam os sintomas e se penetram os mistérios. Este autor coloca uma questão fundamental na abordagem à arte cristã medieval: o da tirania do visível que age sobre as imagens do passado como um ecrã, que leva a construção do iconotecas ou laboratórios ou hipermercados de imagens. Não é por acaso que, mesmo em manuscritos de tão pequenas dimensões, os clérigos estiveram conscientes do poder destas imagens. Os cistercienses de Alcobaça, ao incluírem estes manuscritos na sua biblioteca, mostraram não ser alheios a este movimento artístico e intelectual do Ocidente cristão, aceitando as novas propostas estéticas. Se o nosso projecto de estudo dos manuscritos iluminados passa por uma abordagem iconográfica, como historiadores de arte essa abordagem leva-nos a formular questões e a estabelecer pressupostos epistemológicos à História da Arte Medieval que ultrapassam este método. Como resolveram os iluminadores das Bíblias universitárias historiadas do séc. XIII, a contradição entre a representação de um povo eleito, cuja acção no Antigo Testamento é fundamento do cristianismo e o anuncia, e a reprovação e descriminação crescente das comunidades judaicas, minoritárias? O cristianismo, ao criar os mecanismos para o controle da ortodoxia, vai servir-se da imagem que, de forma mais clara que o texto, exprime as contradições da própria sociedade e, no caso presente, das relações entre cristãos e judeus. Debra Strickland (2003, 96) defende que o “retrato” que os cristãos apresentam dos judeus é um retrato mítico, uma imagem mental elaborada a partir do desconhecimento dos seus costumes, lançando sobre eles o anátema da rejeição. Daí que alguns autores defendam que o seu lugar de eleição sejam as margens. Contudo, verifica-se que, sobretudo a partir do século XII, a representação dos judeus não tem um lugar próprio, podendo assumir conotações positivas ou negativas, central ou marginal, dependendo dos contextos de representação. O corpus utilizado para este estudo, como referido anteriormente, constituiu-se partindo do levantamento das Bíblias historiadas do século XIII, existentes no fundo da Biblioteca Nacional de Portugal. Fomos especialmente sensíveis às Bíblias que fizeram parte do fundo primitivo do Mosteiro de Alcobaça (Alc.455 e Alc.458), de onde retirámos o maior número de imagens. Se as Bíblias historiadas do século XIII foram o ponto de partida para o estudo, imediatamente surgiu a curiosidade e a necessidade de pesquisar esta mesma temática nos manuscritos produzidos em Portugal. Contudo, a sua ausência levou-nos a apresentar como exemplo, apenas, o Apocalipse do Lorvão, manuscrito datado de 1189, anterior, portanto, aos manuscritos que abordaremos. Apesar do Beato de Liébana, na introdução aos Livros I e II, desenvolver uma teoria acerca da Igreja e da Sinagoga, em que esta última aparece como metáfora de todos os males do mundo (heresias, falsos profetas, anticristo), está ausente qualquer referência concreta a práticas ou rituais judaicos (Beato de Liébana 2004, 145). No comentário ao Apocalipse do Lorvão, a heresia parece ter encontrado na representação dos judeus um meio de figurar o mal, ligado intimamente à figura da Besta, na sua dupla fi guração: besta do mar e da terra. Nesta representação (fig. 2), estabelece-se uma estreita relação entre o animal apocalíptico (a serpente)

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e os judeus que o veneram. A aproximação parece ser sublinhada pela utilização da cor vermelha, que aparece nos chapéus dos judeus (pileum cornutum) e no corpo da serpente marinha, símbolo do mal. O manuscrito, produzido no mosteiro do Lorvão pelo monge Egeias, surge ligado à resposta do mundo monástico laurbanense face ao avanço dos almorávidas e como afirmação de uma ideologia moçárabe. Estes, considerados os infiéis que adoram as forças do mal, todavia, eram representados não como muçulmanos mas como judeus, mostrando assim, de certo modo, uma atitude antijudaica.

Imagens dos judeus e exegese bíblica «Lieu de débats, la bible est aussi lieu par excelence de l’encontre entre Chrétiens et Juifs aux XII-XIVème siècle, plus encore, sans doute qu’à l’époque patristique ou dans le Haut Moyen Age» (Dahan, 2007: 271) fig.2 a vitória do cordeiro. apocalipse do lorvão, lisboa, antt, lorvão 43, cf160, fl.191

Voltando aos manuscritos do século XIII, as imagens de personagens judaicas revelam formas de sociabilidade, de hostilidade ou de humor entre as duas realidades culturais. Cada imagem pode ser vista como um ponto de partida, como elemento motivador, para a elaboração de um discurso sobre o texto bíblico. Em regra, o programa iconográfico está limitado a iniciais historiadas que abrem cada um dos livros, geralmente apenas uma cena ou referência a um episódio por cada letra. São poucas as excepções em que tal não se verifica. Uma delas, a mais comum, é a letra I (In principio), que abre o Livro do Génesis que, com frequência, apresenta um conjunto de cenas ou episódios relacionados com o texto da Criação. A identificação dos elementos iconográficos normalmente não levanta problemas, uma vez que, em regra, estão relacionados com o próprio texto. Ainda assim, não podemos ler as imagens como simples cenas narrativas; há um outro sentido para cada uma delas, carregam em si uma mensagem, mais ou menos velada, que ultrapassa a leitura mais imediata, por vezes conduzindo a uma nova reflexão.

A figura do Judeu no Antigo Testamento Num primeiro olhar, nestes programas iconográficos verifica-se uma dualidade de atitudes face aos judeus. Referidos como o povo eleito inauguram, podemos dizer, a História da Salvação. Figuras como Moisés, Abraão, Jonas, David, ou Jessé são repre-sentados na generalidade das Bíblias, não se reconhecendo, como era de esperar, qualquer marca de hostilização na sua figuração. Na maioria das vezes, surgem sem qualquer atributo que os identifique como hebreus. Neste caso, é de salientar Moisés, figura reverenciada por cristãos e judeus, frequentemente representado nas iniciais historiadas nos livros do Êxodo, Números e Deuteronómio, nunca apresentando

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qualquer sinal que o discrimine. A sua imagem está sempre, tal como S. Jerónimo a definiu, “Videbant faciem Moysi esse cornutam” (Duchet-Suchaux e Pastoureau 1994 250-251) e ocupa o primeiro lugar na hierarquia das personagens bíblicas do Antigo Testamento (fig. 3 e 4). Nos manuscritos bíblicos estudados, os levitas (sacerdotes responsáveis pelos serviços no Templo) são figurados frequentemente com chapéu cónico que os identifica como hebreus, não assumindo, no nosso entender, qualquer sentido pejorativo. A iconografia remete para a Antiga Lei em que a prática sacrificial era vulgar e um dos preceitos do rito judaico. O tema é recorrente nos programas iconográficos das Bíblias da época, nesta mesma localização, a abrir o Livro do Levítico. Registámo-lo nos manuscritos: Alc. 455, fl.31; IL 51, fl.25v e IL 93, fl.41v. Na inicial V do Livro do Levítico, Alc. 455, fl.31 (fig. 6), dois sacerdotes, um deles ajoelhado solenemente, oferecem dois animais para o sacrifício, de acordo com a tradição judaica. Apresentam a cabeça coberta pelo pileum cornutum, atributo que os identifica, não tendo, como referimos, qualquer conotação negativa. A mesma

fig.3 moisés recebe de deus as tábuas da lei. inicial “h” do livro do êxodo, bíblia (1220-30), lisboa, bnp, alc. 455, fl.18v fig.4 deus e moisés: “o senhor falou a moisés no deserto do sinai”. inicial “l” do livro dos números, bíblia, lisboa, bnp, alc. 458, fl.37v

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cena está presente no IL 51, fl.25v e remete para rituais que se realizavam em tempos passados, numa alusão ao Antigo Testamento, sendo o povo judeu reconhecido como precursor do Cristianismo. Esta atitude é confirmada pela existência de alfabeto hebraico no Livro das Lamentações, Alc. 248, entre os fólios, 230v à 232. No manuscrito Alc. 455, o episódio do roubo da Arca da Aliança pelos filisteus (1.º Sam. 4), é sintetizado numa representação em que figuram dois soldados filisteus e um judeu, um dos filhos de Heli, identificado pelo pileum cornutum (fig. 5). Esta personagem, representando o Povo Hebreu, surge aqui, naturalmente, como vítima, assim como no IL 93 (fl.104v). O iluminador recorre novamente àquele atributo para identicar Esdras no acto de purificação do altar (fig. 7). No entanto, na Bíblia IL 63 (fl.213v), o mesmo sacerdote é figurado sem este elemento identificador. Entre os profetas menores, muitos são representados, naturalmente, com atributos judaicos, veja-se por exemplo o pileum cornutum nas iluminuras do Livro de Sofonias nos Ms. IL 51, fl.275v, Alc. 458, fl. 264; Livro do profeta Amós, nos manuscritos

fig.5 o roubo da arca da aliança aos judeus. livro dos reis. lisboa, bnp, alc.455, fl.81v

fig.6 sacrifício. inicial “v” do livro do levítico, bíblia (1220-30), lisboa, bnp, alc. 455, fl.31

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4. Sto Agostinho, Sermo contra Judeos e Altercatione Ecclesiae et Sinagogae, in Migne, Patrol. Lat., XVII, 1181.

IL 34, fl.273v, Alc. 458, fl. 262; Livro de Joel IL 34, fl.272v ou Malaquias, Alc. 458, fl.267v. O facto não pode ser considerado como um propósito discriminatório, mas como a identificação de figuras do Antigo Testamento. Estas personagens são, em regra, apresentadas com muita dignidade como este exemplo do profeta Amós com chapéu pontiagudo, face a face ao próprio Deus (fig. 8). Curioso que a auréola de Cristo tal como o barrete de Amós é verde, sendo igualmente utilizadas as mesmas cores no vestuário, embora de forma alternada. Ambos estão descalços e apresentam as mesmas dimensões, o que confere ao profeta maior dignidade.

A figura do judeu no Novo Testamento Se nas polémicas Adversus Judaeos, numa atitude que remonta a Santo Agostinho4, os judeus são considerados como os responsáveis pela morte de Cristo, nas representações bíblicas em análise, aquele povo é representado numa atitude de polémica intelectual, de encontro com os cristãos ou numa referência ao Antigo Testamento.

fig.7 aspersão do altar. inicial “e” do livro ii de esdras, lisboa, bnp, alc.455, fl.152 fig.8 deus e amós. inicial “v” do livro de amós, bíblia, lisboa, bnp, alc.458, fl.262

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No manuscrito Alc.458, fl.284v (fig. 9), Jessé é representado adormecido, com chapéu pontiagudo vermelho; do seu corpo sai um tronco de árvore que se ramifica, definindo e delimitando superfícies onde são representados David, Salomão, a Virgem e Cristo. Este tema iconográfico, denominado Árvore de Jessé, é vulgarmente representado no início do Evangelho de S. Mateus, onde o texto refere a genealogia de Cristo (Mt. 1, 1-18). Jessé surge aqui como figura histórica que inicia uma linhagem e há-de assegurar a descendência até ao nascimento do Salvador. Aqui se juntam os dois Testamentos, numa abordagem judaico-cristã em que prevalece a atitude histórica de construção das imagens. Em termos iconográficos, na Bíblia IL 51 (fl.268), Jessé surge de cabeça coberta com o pileum cornutum, atributo que o identifica como personagem do Antigo Testamento, não tendo qualquer significado negativo, ideia que é reforçada pela presença de duas lâmpadas acesas, sinal de uma especial dignificação da personagem, uma vez que a associa ao simbolismo da luz (fig.10). Importa referir que, na tradição judaica, junto da Arca da Aliança (a Lei), deveriam estar em permanência lâmpadas acesas (ner tamid) simbolizando a perpétua luz divina dispensada pela Lei (Metzger 1982, 68). Já no manuscrito IL 63 (fl. 446v) a representação de Jessé e das restantes figuras bíblicas surgem sem qualquer atributo que remeta para a ascendência judaica do cristianismo. Todas as figuras se apresentam de longas túnicas, cabeças descobertas e sem auréola. Neste

fig.9 árvore de jessé. inicial “l” do evangelho segundo s. mateus, bíblia, lisboa, bnp, alc. 458, fl. 284v

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fig.10 árvore de jessé. inicial “l” do evangelho de s. mateus, bíblia, lisboa, bnp, il 51, fl.268

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manuscrito há uma única imagem, a inicial A do Livro de Paralipómenos, em que os judeus e curiosamente o próprio Moisés recebem o chapéu que os identifica como tal (IL 63 fl.170).

Os judeus na acção evangelizadora de S. Paulo Alguma da controvérsia entre a Nova e a Antiga Lei está bem patente no livro dos Actos dos Apóstolos (Act. 15), atribuído a S. Lucas, nomeadamente as dúvidas e insegurança dos primeiros cristãos sobre a necessidade de observância da lei mosaica. Nas cartas de S. Paulo, esse debate persiste e assume, na iconografia das iniciais, um verdadeiro lugar de confronto ideológico, como se pode observar nas iniciais P da Carta de S. Paulo aos Romanos, Alc. 455 fl. 361, da Carta de S. Paulo aos Hebreus, fl. 380 e Alc. 458 fl 342, da Carta de S. Paulo aos Colossenses fl.365 e da Carta aos Coríntios fl. 331v deste mesmo manuscrito. Nas iniciais que abrem as Carta aos Romanos (fig. 11) e aos Colossenses, S. Paulo, indubitavelmente uma personagem maior do Novo Testamento, ergue significativamente a cruz, símbolo cristológico por

fig.11 s. paulo e dois judeus. inicial “p” da carta de s. paulo aos romanos, bíblia, lisboa, bnp, alc.455, fl.361

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excelência face a dois judeus; o iluminador identifica-os através do pileum cornutum mas não lhe confere qualquer sinal pejorativo. O que se encontra em primeiro plano levanta a mão, virada para a frente, num gesto que indicia uma atitude de oposição, de dúvida ou de contraponto à nova mensagem. Esta iconografia repete-se no IL 34 fl.336 e no IL 51, fl.334v (fig. 13). Na carta aos Romanos, S. Paulo dirige-se aos cristãos de Roma referindo que a salvação está ao alcance de todos e, frisa, em primeiro lugar dos judeus (Rom, 2, 16); parece transparecer a ideia de criticar o formalismo da lei mosaica que, embora lhe reconheça a sua importância e validade, é algo de árido e sem sentido se não implicar mudança interior. Na inicial historiada do início da Carta aos Filipenses Alc. 455 fl 374 (fig. 12), a interacção parece menos cordata. A cena representada mostra uma atitude de violência sobre um judeu que se encontra com um joelho por terra, dominado por outra figura que, segurando um bastão, exerce sobre ele violência física; tratar-se-á, de acordo com as ambiguidades do texto, de uma atitude de conforto, por parte de S. Paulo,

fig.12 s. paulo junto a indivíduo com bastão e um judeu. inicial “p” da carta de s. paulo aos filipenses, bíblia, lisboa, bnp, alc.455, fl.374 fig.13 s. paulo e dois judeus. inicial “p” da carta de s. paulo aos romanos, bíblia, lisboa, bnp, il 51, fl.334v

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face ao sofrimento infligido àqueles que, seguindo Cristo, seriam violentados ou, pelo contrário, uma atitude de violência sobre os não cristãos, que se traduz por um castigo que lhes será infligido. A Epístola aos Hebreus, cuja autoria é atribuída a S. Paulo, pela tradição das Igrejas Orientais, terá sido dirigida a uma comunidade de cristãos que não é explicitada. A inicial que abre esta carta nos manuscritos Alc.455, Alc.458 e no IL 34, apresenta sempre a mesma iconografia: S. Paulo dialogando com judeus (fig. 14 e 15). A sua

fig.14 s. paulo e dois judeus. inicial “m” da carta aos hebreus, bíblia, lisboa, bnp, alc.455, fl.380 fig.15 cristo, s. paulo e um judeu. inicial “m” da carta de s. paulo aos hebreus, bíblia, lisboa, bnp, alc. 458, fl. 342

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identificação é, em todos os casos, conferida pelo barrete pontiagudo, mas que, também aqui não é representado como sinal de inferioridade. A postura que aquelas personagens assumem é de absoluta dignidade, apresentando dimensões semelhantes às de S. Paulo. Relativamente ao vestuário, não existe diferenciação significativa que caracterize os judeus, além do já referido pileum cornutum. No programa iconográfico associado às cartas de S. Paulo, parece ficar claro que os judeus, porque associados à história do Antigo Testamento, constituíam o alvo principal da acção evangelizadora do apóstolo. Em termos iconográficos, o “outro” é mais uma vez representado como judeu sem, contudo, haver qualquer indício de tratamento humilhante para com aquele povo.

Igreja vs Sinagoga Não podemos deixar de referir o tema da Igreja/Sinagoga, uma das iconografias mais frequentes no Gótico sobre a oposição entre cristianismo e judaísmo. No entanto, do nosso ponto de vista, ela põe em relevo o confronto entre duas religiões e não entre dois povos. A questão é bastante distinta daquela em que temos reflectido até agora. Aqui, na dialéctica do poder, é clara a procura de afirmação de domínio do cristianismo sobre o judaísmo. Esta atitude traduz-se visualmente através de alegorias tais como a figuração da Igreja ou a Nova Aliança, em contraponto com a Sinagoga. Neste domínio, assumem particular importância textos como Altercatio Ecclesiae contra Synagogam, de autor anónimo do século X ou Altercatio Synagogae et Ecclesie atribuído a Conrad de Hirsau, autor do século XII, que veicula a polémica entre “Igreja” e “Sinagoga” (Faü 2005, 30). A origem desta temática remonta a S. Agostinho e vai tornar-se, como referimos, a fonte de inspiração dos artistas góticos que a exprimem visualmente nos vitrais de Chartres ou na escultura do portal sul da catedral de Estrasburgo. A atitude repressiva que se fez sentir a partir da primeira cruzada e reafirmada no IV Concílio de Latrão, é visualizada, de algum modo, através de representações do tema acima referido. Estas imagens, embora frequentes e utilizadas anteriormente pelos artistas, são particularmente depreciativas para a representação da Sinagoga, nas Bíblias Moralizadas, manuscritos de aparato que tinham os monarcas como destinatários e a partir dos quais se construiu um discurso anti-judaico. Escritos em vernáculo, este tipo de manuscritos tinha uma função pedagógica e moralizante, articulando um texto facilmente perceptível com um programa iconográfico muito eloquente. Estas imagens e este discurso não tiveram o mesmo eco nas bíblias historiadas universitárias em que a iconografia da Igreja/Sinagoga aparece apenas como imagem alegórica, com um carácter doutrinário e teológico. Nestes manuscritos, a representação é geralmente inserida na inicial I (In principio), que abre o Livro do Génesis, nos manuscritos em que o estabelecimento da relação entre o Antigo e o Novo Testamento se traduz pela imagem do Calvário a terminar os Sete dias da Criação. Embora este tema não esteja representado nos manuscritos acima referen-

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5. Neste manuscrito as imagens são apresentadas duas a duas, lidas de cima para baixo e da esquerda para a direita; são acompanhadas de dois pequenos textos, o primeiro retirado da Bíblia, o segundo explicitando o sentido moralizante.

ciados para este estudo, encontramo-lo num manuscrito de Coimbra, BGUC, cofre 5, fl. 4 (fig. 16). A Igreja é representada por uma figura feminina, coroada, portadora de uma lança com estandarte e cálice; a Sinagoga, também figura feminina, segura igualmente uma lança, mas quebrada, e volta as costas a Cristo, num significativo gesto de recusa; a seus pés, lançadas no chão, estão as Tábuas da Lei. O tema procura demonstrar a cegueira do judaísmo em não ver concretizado no Novo Testamento as profecias reveladas no Antigo. Por isso, em frequentes representações, a Sinagoga surge com os olhos vendados. É interessante comparar esta imagem (fig. 16) com a da bíblia moralizada de Viena, Osterreichische Nationalbibliothek, Cod. Vindobonensis, 2554, fl. 31v e 36v (fig. 17 e 18). Neste manuscrito, partindo de uma passagem do Livro I de Samuel (I Sam. 6, 10-12), a Igreja surge triunfante, coroada, aureolada e transportada em carro conduzido por dois dignitários da Igreja, circundada pelos símbolos dos evangelistas, erguendo o estandarte e elevando o cálice (fig. 18). Há, pois, a intenção de condenar o judaísmo, do ponto de vista teológico. Entre os dois manuscritos, produzidos num período próximo, verifica-se uma forma diversa de abordar o tema da Sinagoga: o manuscrito universitário, embora nele a “Sinagoga” vire as costas a Cristo crucificado, não o reconhecendo como divindade, aproxima-se das representações do tema, tal como este aparece tratado na época carolíngia, em que aquela surge sem qualquer sinal de inferioridade; na bíblia moralizada5 transmite-se uma mensagem de vitória de Cristo/Igreja sobre a Sinagoga, em que esta é representada derrotada e humilhada.

fig.16 calvário com representação da igreja e sinagoga, coimbra, bguc, cofre 5, fl. 4

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Neste exemplo (fig. 17 – medalhões da esquerda), é claro o conteúdo antijudaico na interpretação de uma passagem do Livro dos Números6. O iluminador recorre à imagem alegórica da Sinagoga vs Maria, imagem tipificada na iconografia da época, reforçando o sentido do texto moralizador que se encontra ao lado. Ambos os discursos concorrem no sentido de inferiorizar o judaísmo, sublinhando a superioridade da Igreja de Cristo que o deita por terra. A Sinagoga aparece representada curvada, com os olhos vendados, a lança quebrada e a filactera caída. No par de imagens que se segue (fig. 17 – imagens da direita), partindo do texto do mesmo Livro7, o discurso iconográfico repete visualmente o sentido do texto moralizador, reforçando a mensagem contra os judeus, na medida em que os representa, identificando-os com o pileum cornutum, num momento de humilhação, ao serem expulsos pelo Papa. Num outro fólio (fig. 18 – medalhões da esquerda), tendo como base passagens do Livro I de Samuel, de novo se alinha um discurso imagético de confronto entre o

6. “A cólera do Senhor manifestou-se assim contra eles e retirou-Se. E desaparecendo a nuvem de cima da tenda, Maria encontrou-se coberta de uma lepra branca como a neve” (Nm. 12, 9-10) A moralização diz-nos que: “Deus ao castigar Maria e torná-la leprosa significa que Jesus Cristo castigou a Sinagoga e a derrubou”. 7. “Maria foi excluída do acampamento, durante sete dias, e o povo não partiu enquanto Maria não entrou novamente ali” (Nm. 12, 15) A moralização refere: “A expulsão de Maria do acampamento, significa o papa que expulsa da Igreja os Judeus e os infames”

fig.17 igreja de cristo e a sinagoga e a expulsão dos judeus do tabernáculo, bíblia moralizada, viena, österreichische nationalbibliothek, codex vindobonensis 2554, fl. 31v

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cristianismo e o judaísmo. A imagem que se contrapõe ao grupo de judeus transportando a Arca (Judaísmo) é a de uma figura feminina, personificação da Igreja, numa atitude vitoriosa. Se o texto bíblico refere que “Tomaram duas vacas que aleitavam os seus vitelos e atrelaram-nas ao carro, pondo os seus bezerros no curral. Puseram sobre o carro a arca do Senhor (...) ora as vacas tomaram directamente o caminho que vai para Bet-Semes e seguiram sempre o mesmo caminho sem se desviarem nem para a esquerda nem para a direita” (I Sam. 6, 10-12). A moralização explicita que: “o carro que transporta a arca significa que os quatro Evangelistas carregam a Igreja. As vacas que puxam o carro significam os bons prelados que têm a função e o esforço de puxar a Igreja.” Não há assim, no texto, referência clara à Igreja triunfante representada pelo iluminador. No último exemplo que seleccionámos (fig. 18 – medalhões da direita), de acordo com o sentido do texto, os Judeus simbolizam os ímpios e os que põem em causa a Igreja, sendo lançados no inferno, aqui figurado na boca de um animal mons-

fig.18 igreja triunfante e condenação dos ímpios, sendo abocanhados por leviathan, bíblia moralizada, viena, österreichische nationalbibliothek, codex vindobonensis 2554, fl. 36v

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truoso. A referência textual aos sarracenos é substituída pela figura do judeu. É mais uma passagem do Livro I de Samuel que refere: “O Senhor feriu os habitantes de Bet-Semes porque tinham olhado para a sua arca, e feriu setenta homens” (I Sam. 6, 13-19). O sentido moralizante explicita que: “Os sarracenos querendo apoderar-se da arca foram punidos e mortos por Deus, significa que os povos ímpios que são maus e ignorantes, que não têm bom senso e sentido da descrição em si, que discutem acerca da guarda da Santa Igreja, provocam a ira de Deus e serão lançados ao inferno”.

À guisa de conclusão Tendo em conta que o nosso universo de estudo é muito restrito, sendo os temas iconográficos limitados ao texto bíblico, as reflexões têm forçosamente também que se limitar a este domínio. Através da análise das imagens e guiados por uma bibliografia temática, chegamos a reflexões que nos remetem para os pressupostos iniciais. Na maioria dos casos de referência a judeus não encontramos atitudes de hostilidade evidente, nem um discurso visual único; pelo contrário, os iluminadores revelaram pertencer a grupos de opinião diversificados, reflectindo as contradições existentes no seio dos poderes instituídos. No entanto, não raro, encontramos a representação deste povo associada a textos cujo conteúdo não os menciona o que, quanto a nós, é um sinal de determinado tipo de relacionamento em que o judeu encarna “o outro”. Estas contradições, ou formas de expressão diversas, porque destinadas a públicos diferentes, levou-nos a estruturar o nosso discurso tendo como elemento de comparação as Bíblias moralizadas, nomeadamente as de Viena, Österreichische Nationalbibliothek, Codex Vindobonensis 2554 e Österreichische Nationalbibliothek, Cod.1179. Destinados a um público aristocrático muito restrito, estes manuscritos evidenciam, nas suas imagens e textos, um discurso de poder enquanto as bíblias historiadas de produção universitária, produzidas sobretudo para os intelectuais, visam uma atitude de reflexão e disputa intelectual. A riqueza das ilustrações das bíblias moralizadas assim como o seu reduzidíssimo número, leva-nos a afirmar que os mesmos se destinariam a uma elite culta muito restrita; talvez alguns prelados ou para uso privado no seio das famílias reais. Através da leitura comentada do texto bíblico, acompanhada por um eloquente discurso iconográfico, não deixariam de ter influência na formação das mentalidades das classes dirigentes, aspecto que assume singular relevância para o tema que estamos a abordar, na medida em que, nestes manuscritos, a imagem que se procura incutir sobre os judeus está, em regra, associada aos inimigos de Cristo, portanto da Igreja. Neles são incluídas representações que sublinham aspectos negativos e a oposição face ao cristianismo. Ali parece impor-se a conjugação entre o poder real e o poder eclesiástico numa clara atitude antijudaica, indício visível de uma mentalidade e contexto social que se viveu na Europa de 1200. É um momento privilegiado para uma aproximação à mentalidade

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8. Confrontar Bíblia, Troyes, Ms. 101, fls. 47, 79, 384v, 450, 464.

da época, pelo menos neste domínio, e que, neste estudo em particular, lança claramente uma luz sobre o modo como os judeus eram vistos pelos cristãos, pelo menos em alguns meios intelectuais ligados à Universidade e/ou ordens religiosas, como os dominicanos, ou junto da elite social que ocupava a cúpula do poder político. Não deixamos de assinalar que, sendo o século XIII o momento-charneira nesta problemática, será mais no seu final e durante os séculos seguintes que se verificarão os maiores momentos de tensão, nomeadamente com as expulsões de judeus de alguns territórios (Inglaterra, em 1290, Norte de França, em 1306, região de Saxe, 1342, Áustria, em 1420 e Espanha em 1492), sendo os manuscritos aqui abordados datados de períodos anteriores. Se a diferenciação iconográfica, sobretudo relativa ao vestuário, existia já desde o século V, para identificação de determinadas personagens, a partir do século XIII surgem alguns atributos com um intuito assumidamente discriminatório para com os judeus (Faü 2005,14). Embora respeitando esta ideia, o conjunto de imagens aqui analisadas, provenientes dos manuscritos da Biblioteca Nacional, não confirmam aquela conclusão. Tal facto não deixa de ser interessante no sentido em que demonstra, precisamente, a não existência de um discurso único. A identificação de determinadas personagens com os judeus, procura situar o episódio no Antigo Testamento e não afrontar o judaísmo. Assinale-se a representação de profetas menores ou a dos povos a quem a evangelização se dirige, conforme S. Paulo refere nas suas Epístolas. Na inicial antropo-zoomórfica que abre o texto do profeta Amós (fig. 1), o iluminador representou excepcionalmente o judeu numa atitude transgressora. Identificado pelo pileum cornutum, o judeu surge sob a forma de um ser híbrido o que, sem dúvida, nos remete para um universo do fantástico8. Estamos, como já referimos, perante um momento de abertura a vários significados – o rosto humano do judeu num corpo de réptil (?), leva-nos a múltiplas interpretações inviabilizando uma única leitura iconográfica, remetendo-nos para o nível dos “sintomas ou os traços de um mistério”, em que o poder se exerce, não de uma forma directa mas de um modo subtil, igualmente opressor.

Bibliografia Bible moralisée. Codex Vindobonenesis 2554. Vienna. Österreichische Nationalbibliothek. 1995. Comentários e tradução de Gerald B., Guest. London: Harvey Miller Publishers. BEATO DE LIÉBANA. 2004. Obras Completas y Complementarias I, Comentario al Apocalipsis Himno «O Dei Verbum Apologético». Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos.

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r e p r e s e n ta ç ã o d o s j u d e u s n a s b í b l i a s h i s to r i a d a s

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r e p r e s e n ta ç ã o d o s j u d e u s n a s b í b l i a s h i s to r i a d a s

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Abstract Because of the distance in time and the lack of testifying documents, one should be extremely careful when labelling portraits in medieval books of hours as donor portraits or owner portraits. There are, however, manuscripts that reveal their first owner within their decorative programme, and the Lamoignon Hours (Lisbon, Gulbenkian, ms LA 237) is one of these. This article aims to discuss the iconography of the three portraits found on f.165v, f.202v and f.286v, as well as the relevance of portraiture and heraldic insignia in books of hours and the significance of such content to the original owner and to those who possessed the book afterwards.

key-words french art fifteenth century illumination books of hours heraldry

Resumo A distância no tempo e a ausência de documentação testemunhal obrigam a agir com cautela quando se pretende confirmar a representação dos donos ou dos doadores nos retratos dos Livros de Horas medievais. Existem, porém, alguns manuscritos que revelam no seu programa decorativo a identidade do seu primeiro proprietário, como acontece nas Horas de Lamoignon (Lisboa, Museu da Fundação Calouste Gulbenkian, ms LA 237). O presente artigo explora a iconografia dos três retratos que aparecem em f.165v, f.202v e f.286v, e analisa a relevância do retrato e dos emblemas heráldicos nos Livros de Horas, bem como a importância deste tipo de conteúdo para o dono original e para os possuidores posteriores do livro.

Agradecimentos por ajuda na configuração do texto e sugestões de Ana Catarina Sousa, Pedro Fialho de Sousa, Justino Maciel, Felix Teichner e Heidi.

palavras-chave arte francesa século xv iluminura livro de horas heráldica


owner portraits and heraldry in the lamoignon hours rag nh il d m a rt hi n e b ø Instituto de Estudos Medievais UNL-FCSH

The Lamoignon Hours was illuminated by the Bedford Master and his assistants in Paris sometime around 1415. The manuscript is also known as the Book of Hours of Isabelle of Brittany, and it is now kept as ms LA 237 in the Gulbenkian Collection in Lisbon. The name Lamoignon comes from an 18th century owner. The manuscript is richly decorated, and it includes 32 full page miniatures. In style and iconography it is strongly connected to two other books of hours from the same master, namely the Bedford Hours (London, British Library, ms Add 18850) and the Vienna Hours (Vienna, Österreichische Nationalbiblitohek, ms 1855). Three of the full page miniatures can be classified as portraits, and there are three folios with coats of arms. The aim of this paper is to discuss the iconography of the portraits, the relevance of portraiture and heraldic insignia in books of hours, and the significance of such content to the original owner and to those who possessed the book afterwards. I have entitled this paper “Owner Portraits and Heraldry in the Lamoignon Hours”, well aware of the traps connected both to the word ‘owner’ and ‘portrait’ used in discussions on medieval manuscripts. For the Lamoignon Hours, however, it is possible to talk about the manuscript’s owner because the portraits are enriched with coats of arms. Still, I would not use the term ‘donor portrait’, as I follow an advice given by Madeline Caviness: “We would do well to refrain from using the standard term donor figure, let alone donor portrait, for owners until we are sure that they controlled the means of production” (Caviness 1996, 113). Only further research can tell who controlled the means of production when the Lamoignon Hours was

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owner portraits and heraldry in the lamoignon hours

fig.1 celebration of the mass, bedford master, lamoignon hours, lisbon, gulbenkian, ms la 237, f. 165v

being commissioned. Portraits in illuminated manuscripts are often idealised portraits without a person’s actual features. That said, Eberhard König has noted that the Bedford Master distinguished clearly between the concepts of an image of an owner in prayer and an actual portrait, taking the age and facial features of the persons depicted in the Master’s Grand Heures of the Duc de Berry as the most prominent example (König 2007, 78). The three portraits in the Lamoignon Hours appear on f. 165v, in front of text extracts from the Mass (fig. 1), on 202v, facing the Marian prayer ‘O Intemerata’ (fig. 2) – here we see the Bedford Master differing between a owner at prayer and an actual portrait – , and on 286v, facing the ‘Athanasian Creed’ (fig. 3). In the two latter, the portraits are accompanied by heraldry as well, embroidered on cloths covering the altars in front of the praying owner: the coat of arms of Brittany, i.e. Ermine, and Guy de Laval, i.e. Gold, five escallops Argent on a cross Gules between sixteen eaglets Azure on its antependium. The co-existence of the Brittany and Laval coat of arms and the lady at prayer has led art historians to believe that the book of

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owner portraits and heraldry in the lamoignon hours

fig.2 jeanne of france at prayer – o intemerata, bedford master, lamoignon hours. lisbon, gulbenkian, ms la 237, f. 202v

hours was made for Isabelle of Brittany (1411-1442), daughter of Jeanne of France and John IV of Brittany. She married Guy XIV, count of Laval in October 1430, and the book was for a long time thought of having been made as a present for that occasion. That is why the manuscript is referred to as the Book of Hours of Isabelle of Brittany in many publications. There is a discrepancy, however, between the dress worn by the protagonist and the coat arms: the blue dress with ermine wore by the lady in the miniature suggest she is a member of the royal family – which Isabelle was not. And a close examination of the miniatures demonstrates that the coat of arms has been repainted, as François Avril noted in an entry on the manuscript written in 2004, suggesting the Lamoignon Hours was commissioned for Isabelle’s mother, Jeanne of France (1391-1433), the only daughter of the French King Charles VI and Queen Isabeau of Bavaria to survive childhood (Avril 2004, 354). Avril is probably aware of, although it is not mentioned in this entry, that the coats of arms on the pall which is included in the miniature that is facing the Monday Hours of the Dead on f. 216v, is covered with the arms of

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Brittany impaling those of France, i.e. the coat of arms of Jeanne of France (fig. 4). This miniature must be considered the key to the identification of the first owner of the manuscript, Jeanne of France, apart from being a very early example of a miniature where the owner’s coats of arms are present on a pall. The first portrait appears on f.165v (fig. 1), at the opening of text extracts from the Mass. These extracts are accompanied by pedagogical guidelines written in French, beginning ‘Quant tu te coucheras tu diras se qui sensuit’, i.e. the antiphon from Sunday Compline1. The following text gives instructions for what to say when leaving home, passing by the cemetery, and what to say throughout the celebration of the Mass. The main scene is a Celebration of the Mass, set within a church: a priest, wearing a blue gown, reads from the Bible, while two clergymen, also in blue gowns, hold a candle and a torch, respectively. Four adjutants are singing, gathered around an open book placed on a stall. Eight persons populate the floor in front of the altar; Jeanne of France, wearing a red dress with ermine, folds her hands; three ladies in waiting, two are reading, seated, one is praying; four men, dressed in cloths for the nobility, three of them fold their hands, the last one carry an open book in his hands. The latter might be Jeanne’s husband, the others the husband’s attendants. In the surrounding roundels, the same princess is depicted in her daily routines: being dressed by her attendants, going to church, at confession, at her private devotions, when receiving communion, and when retiring. Portraits in manuscripts are most frequently found at the Matins of the Hours of the Virgin, or prefacing the ‘Obsecro te’ or the ‘O Intemerata’. The donor or the owner, then, is seen at prayer in front of or next to an Annunciation (Matins), a Virgin and Child (‘Obsecro te’) or a Pietà (‘O Intemerata’). The Lamoignon Hours has a portrait prefacing the ‘O Intemerata’ on f.202v (Fig. 2). Jeanne of France is shown at prayer, standing in front of an altar, upon which there is an open book. She is dressed in a blue dress with a white collar, and her hair is nicely ornamented with flowers. She is accompanied by two reading women; one is dressed in a green dress and with the hair ornamented like Jeanne – a daughter? – The other wears a pink dress of a more modest look and her hair is covered by a white headgear – a lady in waiting? The surrounding architecture is that of a church or a (private) chapel, limited by an arcade and a drapery to the left of the women, and an ambulatorium to the right. There are five border medallions spread among the flower garlands and birds in the margins, all of them with scenes from story XVIII of the Miracles de Notre Dame, written by Jean le Conte at the end of the XIV century, entitled De l’enfant juif que son pere mist en une fornaise, que la Virge Marie saulva2. In the medallion in the upper right corner of the folio, three children are kneeling around a communion table inside a church, and a priest is about to celebrate the communion with them. In the medallion below, a Jewish (indicated as such because of his headgear) man – the father – puts one of the children from the scene above – the one dressed in red – in an oven. To the left in the bas-de-page, in the third medallion, three adults save the child from the fire. To the right, the father is being caught by the Christians, and in the upper left corner of the page, in the last medallion, the Jewish father is put inside the oven.

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1. Salva nos Domine vigilantes, custodi nos dormientes ut vigilemus cum Christo, et requiescamus in pace. 2. Cf. http://www.ottawa.ca/academic/arts/lfa/ activites/textes/leconte/lec20htm.htm (accessed 23.01.2007). The text is preserved in ms Français 1806, Bibliothèque nationale, Paris.


owner portraits and heraldry in the lamoignon hours

fig.3 jeanne of france at prayer – quicumque vult, bedford master, lamoignon hours, lisbon, gulbenkian, ms la 237, f. 286v

3. Be, at every hour and every moment of my life, inside and outside me, my steadfast guardians and pious intercessors before God.

The reading and possession of books, probably Books of Hours, among the three women on f. 202v testify to a wish among the nobility to be associated with a certain knowledge of the written word, and as such also with the word incarnate, the divine. Jeanne is the only one who gazes upwards, to a representation of the Virgin and Child, surrounded by St Paul and St Peter and other male saints on their right side and St Catherine and other female saints on their left, and can be understood as a visualization of the intercessors of the prayer(s) Jeanne is about to say. This owner portrait visualizes both the practice of devout prayer and its goal: direct communication with the divine (Smith 2006, 91). The story of the Jewish boy, with its opposites between ‘good’ (the child, the Christians) and ‘bad’ (the Jewish father), surely opens up for anti-Jewish sentiments. Prefacing the Marian prayer ’O Intemerata’ (O, Immaculate Virgin), a prayer that is addressing the Virgin – and St John the Evangelist – directly in especially urgent tones 3, it could also be understood as a celebration of the Virgin’s omnipresence that so miraculously saved this child from being burned alive. As the story of the Jewish

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fig.4 office of the dead, bedford master, lamoignon hours, lisbon, gulbenkian, ms la 237, f. 286v

boy is, to the best of my knowledge, not included in any other book of hours, I allow me to compare the roundels with two altar frontals depicting the scene, namely the so called Årdal II-frontal (Oslo, Historisk Museum) and the frontal from Vallbona de los Monges (Barcelona, Museu national d’art de Catalunya). In the Årdal II-frontal, the story has been interpreted as a Marian miracle, and Mary saving the boy has been seen as a parallel to the way Christ is saving the souls in Limbo (Wickström 2000, 46). In the Spanish frontal, the story is interpreted as an expression of the antiJewish sentiments found in region around in the middle of the fourteenth century (Carbonell and Sureda 1997, 389-392). However the interpretation, the inclusion of the story together with an owner portrait is rather unique, since, as Roger Wieck has noted, “the main theme of the ‘O Intemerata’ is the faithfulness of the Virgin and John the Evangelist at the Crucifixion, a Lamentation often illustrates this prayer” (Wieck 2001, 498). Being a miracle invoking the Virgin Mary, it is strange that the Virgin herself is not represented in any of the roundels. Even more so since the story is included in a book of hours and that they are placed in front of a Marian prayer.

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owner portraits and heraldry in the lamoignon hours

4. Cf. the line “Fides autem catholica haec est: ut Deum in Trinitate, et Trinitatem in unitate veneremur”. 5. For further discussions of images/ coats of arms revealing the identity of the patron, see Nash 1999, 73ff. and Sandgren 2002, 101-103.

The last full page miniature in the manuscript, is found on f.286v, in front of the Athanasian Creed, also known as Quicumque vult, one of the four authoritative creeds of the Catholic Church, recited at the office of Prime on Sundays (fig. 3). Two women are seen praying; Jeanne, dressed in a red dress with ermine, is kneeling on a prie dieu with an open book before an altar, directing her prayers to the Trinity, depicted above her. In this miniature, however, her hair is covered with a white veil, not arranged with flowers. To the left, a seated lady in waiting, dressed in green, is reading, to the right, a white dog. Female figures are representing the four Cardinal Virtues, Prudence, Temperance, Justice and Fortitude, and the Theological Virtues Hope, Charity and Faith, thus comprising a complete pantheon of the virtues essential for all aspects of secular and religious life. Depicting the owner of the manuscript praying to the Trinity is - as in the O Intemerata – a direct visual translation of the creed.4 Because Books of hours were private artefacts, made for silent or low speaking recitation of prayers in privacy, the existence of owner portraits might be surprising. The lack of public display made them somewhat redundant. On the other hand, having a prescribed content, the adding of owner portraits, coats of arms and certain iconographical programmes in books of hours seem to have been the best way to personalise them5. In her book Art, Identity and Devotion in Fourteenth Century England. Three Women and their Books of Hours, Kathryn A. Smith analysed three books of hours made for women discovering that Through the inclusion of donor and owner portraits, and carefully chosen or edited narrative or devotional imagery, sacred history could be reconstituted to reflect the book owner’s point of view. In their unique pictorial and textual programmes the three books give evidence of the capacity of the illustrated devotional book to personalize sacred time for its user, by integrating family history and notions of individual and familial identity into the Christian salvation history that unfolded on its pages (Smith 2003, 57-58). Margaret Manion has also carried out research on books of hours and women. In her essay Women, Art and Devotion, Three French Fourteenth Century Royal Prayer Books, she found that the iconography of these three horae “indicate that the women for whom they were made were trained in a number of different kinds of prayer; and were expected to devote considerable time to its practice” (Manion 1998, 39). She linked the iconography to the three principles for a successful vocal prayer put forward by Durand de Champagne in his Speculum dominarum, written at the end of the XIII century, i.e. to pay attention to the words so that they are recited correctly, to pay attention to the sense of what one is saying, and to think on the object of one’s prayer. The latter is simultaneously the easiest and the most meritorious of these principles, and present in the three horae in their “frequent depiction of the donors shown consistently attentive before the objects of their devotion” (Manion 1998, 40).

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Although the research of Manion and Smith is carried out on 14th century books of hours, their findings are still valid for books of hours made a century later, as the Lamoignon Hours. The three portraits of Jeanne of France/ Isabelle of Brittany praying are not ‘frequent’ – there are manuscripts, like the Savoy Hours made in the 1330’s for Blanche of Burgundy, which may have had as many as eighty owner portraits – but they are depicted ‘consistently attentive before the objects of their devotion’. Besides, they are all accompanied by border programmes that are quite insisting in guiding the female reader to lead a righteous life: the faithful woman who submits herself to God throughout the day, a miracle of the best female model of them all, the Virgin Mary, and personifi cations of the seven cardinal virtues. Besides, in all the portraits, the princess is accompanied by a small dog, a Fido, symbol of faithfulness. Being portrayed without her husband, the coats of arms add a commemoration of the female owner’s family all the same, since a coat of arms of a married woman always points outside the woman herself. Unless she was an heiress, the married medieval woman would not have any proper coat of arms, but quartering the ones from her father and her husband, e.g. the Duke John IV of Brittany and Count Guy XIV Laval. We can only guess what happened to the manuscript when Isabelle died in 1444. Did she want it to pass to one of her own daughters? She had three: Yolande, Jeanne and Louise6. But then, why would not the new owner modify the coat of arms? If her oldest daughter Yolande was the one who inherited the book, the question can be answered by heraldry custom. Yolande is not recorded to have married, and as an unmarried woman she would normally bear upon a lozenge the paternal arms – or here, her maternal arms. But why were the coats of arms not altered again? Was the manuscript hidden for some time? Or forgotten? Or did it simply go out of fashion? Unfortunately, the manuscripts itself does not give any answers or clues apart from Lamoignon’s L on f.3. It should be added as an important final note that the three portraits discussed here are not an extraordinary feature of the Lamoignon Hours. Similar pictures of women at prayer are frequently shown in books of hours. In the oeuvre of the Bedford Master, they appear both in the Sobieski Hours and the Bedford Hours, although not in the Vienna Hours. In the Lamoignon Hours they personalize the manuscript together with the adding of coat of arms and the curious inclusion of the miracle in Bourges. Documentary evidence of most medieval women’s lives is scarce. This fact has led Kathryn Smith to observe that books of hours “do more than supplement and enrich the sparse information available of their [female] owners: they are the most tangible and substantial evidence of their owners’ very existence” (Smith 2003, 11). Whoever the future owners of the manuscript were, they would, as we, practically never have any notion of neither Jeanne of France nor Isabelle of Brittany, where it not for the portraits in their book of hours, and for the fact that the coat of arms was only altered once.

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6. The five children of Isabelle of Brittany and Guy of Laval: Yolande (1431-1487), Jeanne (1433-1498), François (1435-1500), Jean de Laval (1437-1476) and Louise (1441-1480).


owner portraits and heraldry in the lamoignon hours

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Resumo A constituição de bibliotecas privadas a partir de D. João I irá, depois, relacionar-se com a importância da corte da Borgonha, como centro artístico de Filipe o Bom e de Isabel de Portugal. Neste contexto, assume alguma relevância o caso de dois manuscritos, que, embora atribuídos a ateliês diferentes, possuem relações intrínsecas entre si: o Livro de Horas de D. Duarte (DGARQ/Torre do Tombo, C.F.140), atribuído ao ateliê do Mestre aux rinceaux d’or, a operar na região de Bruges e datado de inícios do século XV e o Livro de Horas dito de “Joseph Bonaparte” (BNF, Paris, manuscrito lat. 10538), atribuído por Gabrielle Bartz ao ateliê do Mestre de Mazarine, situado na região de Paris e datado de ca. de 1415. A sua procedência é confirmada, designadamente, pelos calendários neles contidos. No entanto, a análise de certas imagens, entre as quais as do Ofício dos Mortos e de Pentecostes, revestiu-se de uma importância decisiva, pois permitiu-nos evidenciar este conjunto, assim definido pelas semelhanças que apresentam, constituindo o seu estudo o cerne deste artigo.

palavras-chave arte francesa século xv iluminura livros de horas

Abstract The creation of private libraries from the time of King João I of Portugal would be later related to the importance of the Burgundy court as an artistic centre of Philippe le Bon and Isabel of Portugal. In the referred context it would seem essential to discuss the particular case of two manuscripts which, despite their attribution to different workshops, are intrinsically linked: the Book of Hours of King Duarte I of Portugal (DGARQ/Torre do Tombo, C.F.140), dated between 1401 and 1433 and attributed to the workshop of the Maître aux rinceaux d’or, active in the Bruges area, and the so-called “Joseph Bonaparte” Book of Hours (BnF Paris, manuscript lat. 10538), attributed by Gabrielle Bartz to the Maître de Mazarine workshop, in the Paris region, and dated c. 1415. While the different origins of these manuscripts are confirmed by their respective calendars, the study of their Office for the Dead and Pentecost illuminations is of particular interest as it reveals a connection between them by bringing to light the similarities which constitute the basis of this article.

A autora agradece ao Arquivo Nacional da Torre do Tombo, nas pessoas do Director-Geral, Dr. Silvestre Lacerda, e das Dr.as Catarina Teixeira de Figueiredo e Maria Teresa Araújo, bem como à Biblioteca Nacional de França todo o apoio no estudo destes manuscritos. Agradecimentos que são extensíveis aos professores da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, Doutores Adelaide Miranda, José Custódio Vieira da Silva e Carlos Moura, e às especialistas do estudo da iluminura, as investigadoras Patricia Stirnemann e Claudia Rabel do Institut de Recherche et d’Histoire des Textes / Centre National de la Recherche Scientifique e Marie-Thérèse Gousset da Biblioteca Nacional de França. E ainda à FCT-MCTES pela bolsa de doutoramento (SFRH/BD/63965/2009), graças à qual tem sido possível o desenvolvimento da sua investigação.

key-words french art fifteenth century illumination books of hours


o livro de horas de d. duarte e o ms. lat. 10538 (bnf, paris) as ligações com o ateliê do mestre de mazarine a na l emo s Instituto de Estudos Medievais FCSH-UNL

1. No que respeita à atribuição da autoria do Livro de Horas de D. Duarte ao ateliê do Mestre aux rinceaux d’or, detectámos recentemente novos elementos comprovativos das ligações entre este manuscrito e os do referido ateliê. São relevantes, a tal propósito, as verificadas com um manuscrito da Biblioteca da Universidade de Aberdeen (cota: AUL MS 25) e com o Harley 2846, da British Library (Londres). Relativamente às semelhanças existentes entre algumas iluminuras do Livro de Horas de D. Duarte e as composições atribuídas ao Mestre de Boucicaut, o trabalho levado a cabo por Gabrielle Bartz na identificação do Mestre de Mazarine, bem como os novos dados que tivemos oportunidade de reunir, permitem lançar um novo olhar sobre aquele Livro de Horas. Os resultados desse estudo foram apresentados na nossa tese de Mestrado defendida na FCSH-UNL em 2009, trabalho que tencionamos publicar muito em breve. 2. Sobre as circunstâncias que a envolveram, existe uma controvérsia historiográfica, de al-

Tendo em conta as ligações até agora averiguadas pela historiografia artística sobre o Livro de Horas de D. Duarte (Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Lisboa, Portugal, C.F. 140) e o ms. lat. 10538 (Biblioteca Nacional de França, Paris), impunha-se proceder ao seu estudo na tentativa de fixar as vias de circulação dos modelos inerentes aos dois livros de horas tratados neste artigo. Isto, tendo em conta as novidades resultantes da investigação que temos vindo a desenvolver sobre a matéria1. Num trabalho publicado há já bastantes anos sobre o ms. lat. 10538, dito das Horas de José Bonaparte ou, mais adequadamente, das Horas do Duque da Borgonha, Filipe o Bom, dizia Paul Durrieu (1914, 42) ter o mesmo pertencido a este príncipe, o mais tardar no 1.º quartel do séc. XV. Atestam-no as suas armas, como ainda um complemento de orações e algumas iluminuras. Todos os autores subsequentes são unânimes quanto à presença do manuscrito na biblioteca de Filipe o Bom, em 1419, à sua passagem por Espanha e ao regres so a França, no séc. XIX, por intervenção de José Bonaparte, irmão do imperador e rei daquele país entre 1808 e 1813. Quanto à encomenda 2, é considerada por alguns da iniciativa do próprio Filipe o Bom enquanto que, para outros, ele foi apenas o proprietário da obra. O mesmo Filipe que, em 1419, nela mandara colocar o seu emblema e acrescentar doze iluminuras, no estilo do

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grupo aux rinceaux d’or3, ilustrando, depois, cerca de 1430-40, os sufrágios e a narrativa da Criação (fl.221v, 234v-3034) com as suas armas nas margens. Já em finais do séc. XV, o manuscrito viria a ser completado por uma Missa de São Gregório (fl.304)5. No tocante às iluminuras, Victor Leroquais admite revelarem as da parte mais antiga (do fl.3 ao 231v6) um certo parentesco com as das horas do marechal Boucicaut e as do manuscrito latino 1141. Parentesco, segundo o autor, denunciado por certos pormenores típicos do ateliê, como os fundos de céus semeados de estrelas, mais do que propriamente do conjunto das composições, acentuando, assim, o facto de as poucas semelhanças entre os dois manuscritos não permitirem inferir uma origem comum; quando muito, as pinturas seriam originárias do mesmo ateliê (Leroquais 1927, tomo I, 338-342). Maurits Smeyers (1998, 236), para quem as iluminuras da parte original do manuscrito exerceram uma grande influência sobre a iluminura flamenga, atribui igualmente a execução a um artista do ateliê do Mestre de Boucicaut7, datando-a de inícios de 1415. Posteriormente, Gabrielle Bartz, na continuação da sua excelente análise, iria individualizar duas personalidades neste ateliê com base no estudo do ms. 469 (Biblioteca Mazarine, Paris), retirando parte do corpus de manuscritos atribuídos a este artista e organizando um novo corpus, relativo a outra autoria, a do agora denominado Mestre de Mazarine8. Christine Geisler Andrews9 dá-nos a saber que G. Bartz sugeriu que este mestre poderia inicialmente ter trabalhado com Boucicaut, desenvolvendo depois a sua própria forma de expressão. Mais do que procurar definir os aspectos estilísticos que o distinguem, considera a mesma C. Andrews haver maior utilidade na análise do resultado dos seus esforços de colaboração, uma vez que as evidências apontam para que tenham trabalhado juntos. Em sentido oposto, François Avril realça o facto de praticamente nunca se verificar, num mesmo manuscrito, a intervenção simultânea dos dois artistas, Boucicaut e Mazarine; ou de membros dos respectivos ateliês e, destes, inclusive, raramente recorrerem aos mesmos colaboradores, apontando para a existência de dois ateliês distintos um do outro, não obstante as relações de estilo e composição constatadas entre ambos (F. Avril 1996, 316). Chamando ainda a atenção para a clientela dos dois artistas, conclui ter sido a do ateliê do Mestre de Mazarine predominantemente borgonhesa, dando como exemplo desse laço privilegiado as iluminuras do Livre des Merveilles (BNF, Paris, ms. franc. 2810), reconhecidas como do estilo do Mestre de Boucicaut mas onde considera prevalecente a corrente Mazarine (F. AVRIL 1996, 316). Por outro lado, Millard Meiss10 havia já estabelecido uma ligação entre o ms. lat. 10538 e um Livro de Horas, conservado na Galeria Walters, em Baltimore (ms.260)11, que faz parte da lista de manuscritos (G. Bartz 1999, 119-123) actualmente atribuídos ao Mestre de Mazarine. Com o catálogo da Exposição “Paris.1400. Les arts sous Charles VI”12 acrescentaram-se, depois, algumas informações adicionais13 sobre as Horas ditas de José Bonaparte, datadas de 141514, mencionando as construções complexas desenvolvidas pelo Mestre Mazarine, mesmo nas cenas de escala mais reduzida e a adopção, por parte deste, de um elemento estrutural da moldura que delimita a composição, onde deparamos

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gumas décadas, que se estendeu até aos nossos dias. O estado actual da questão e as informações sobre ela obtidas podem ser recapituladas do modo seguinte: em 1927, Victor Leroquais (Leroquais 1927, tomo I, 338) ao elaborar a ficha do ms. lat. 10538 aludia indiferentemente às duas denominações – “Heures de Philippe le Bon” ou “dites Heures de Joseph Bonaparte”, relativas ao primeiro e último proprietário conhecidos. Sistematizando a cronologia dos seus detentores, sabemos que, em 1419, o manuscrito fazia parte da biblioteca do duque de Borgonha, Filipe o Bom, tendo, mais tarde, passado para as colecções da coroa espanhola, por via desconhecida (Sterling 1987, vol. I, 395). A marca de posse de Filipe V encontra-se, depois, nas armas gravadas na encadernação. Segundo uma nota do fl.3, o volume teria ainda sido inteiramente revisto por um representante do Santo Ofício, antes de se transferir para as mãos de uma proprietária cujo nome se perdeu (Leroquais, ob. cit., 340). Até que, finalmente, no início do séc. XIX, José Bonaparte o leva consigo, para França. De acordo, ainda, com o mesmo Leroquais, o manuscrito foi executado, na totalidade, ou pelo menos concluído, para Filipe o Bom (ob. cit, 340). A presença do emblema ducal, o denominado “briquet de Bourgogne”, parecia confirmar tal asserção, segundo os dados do catálogo da exposição de Bruxelas de 1959 (Le siècle d’or de la miniature flamande, Le mécénat de Philippe le Bon. Bruxelas 1959, 29). Millard Meiss acrescenta, por seu turno, que ele estava na posse do duque de Borgonha ou, antes de 1419, quando João Sem Medo ainda vivia, ou logo a seguir, quando o seu filho, Filipe o Bom, tomou o poder, data em que, muito provavelmente, as armas da Borgonha ali teriam sido colocadas (Meiss 1968, 127-128). Em 1977, Sterling recorda o facto do duque apreciar os artistas formados no ateliê de Boucicaut, a quem encomendara o Livre des Merveilles du Monde (BNF, Paris, ms. franc. 2810) e muito possivelmente as Horas ditas de José Bonaparte (Sterling 1977, 426). No entanto, em 1987 o mesmo autor regressa ao assunto afirmando desconhecer o destinatário do manuscrito, o que invalidaria a denominação de “Heures de Philippe le Bon”, já que o duque de Borgonha acedera ao poder em 1419 (ob. cit., 1987,


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vol.I, 395). François Avril, Marie-Thérèse Gousset e outros (1996, 316), referem que as Horas de Bonaparte passaram para as mãos de Filipe o Bom desde muito cedo, provavelmente por herança. Em 2004, a ficha no catálogo da exposição de Paris informa que a encomenda era sem dúvida borgonhesa, embora a leitura do fl.200, com uma bannière ostentando as armas de França, venha sugerir a ligação entre o destinatário do manuscrito e Carlos VI. Reconhecendo, embora, a impossibilidade da confirmação do facto, interroga-se, o respectivo autor, se o rei seria o ministre para o qual o texto apela à misericórdia divina (fl.134-135v) ou se nele teremos de ver, sobretudo, um eclesiástico (Paris.1400. Les arts sous Charles VI. Paris. 2004, 286). 3. Ponto aceite por praticamente todos os historiadores que se debruçaram sobre o estudo deste manuscrito. À excepção de M. Meiss (ob. cit, 127), para quem as iluminuras mais tardias foram executadas por um artista flamengo, trabalhando para Filipe o Bom, sem nos propor qualquer nome. 4. Leroquais (1927, tomo I, 342), considera que as iluminuras dos fólios, mandados acrescentar para Filipe o Bom, são de qualidade inferior, tal como Sterling (ob. cit., 1987, vol.I, 395), que também as avalia como de qualidade medíocre. Isto em oposição ao catálogo de 1959, onde se defende serem elas as mais requintadas de todas as que se conservaram, não obstante as suas modestas dimensões (ob. cit., 29). Dominique Vanwijnsberghe (2007, 97, n.363) esclarece ainda que o programa iconográfico do manuscrito foi completado por um iluminador flamengo do grupo aux rinceaux d’or, a pedido de Filipe o Bom, ca. de 1420-1430. 5. Paris.1400. Les arts sous Charles VI. Paris, Museu do Louvre, Fayard, 2004, 286. 6. M. Meiss (ob. cit., 128) indica igualmente o fl.231v como sendo o último do manuscrito original, ao qual foram acrescentados outros fólios no tempo de Filipe o Bom “sometimes, especially in the borders, imitating the earlier designs”. Durrieu (ob. cit., 42) havia já mencionado a existência de iluminuras mandadas juntar pelo duque de Borgonha sem, no entanto, especificar concretamente os fólios que constituíam o manuscrito

com um esquema análogo à serliana (fls. 110v, 137v e 186). Dado relevante, que muito nos interessa, na análise estilística comparativa com o Livro de Horas de D. Duarte, como veremos adiante15. A questão da circulação e disseminação dos modelos, abordada por F. Avril (226, 127-139), revela-se fundamental na importância do papel atribuído ao ms. lat. 1053816. Segundo o autor, o livro terá viajado muito cedo de Paris para a Flandres, tendo servido como modelo nos Países-Baixos meridionais onde “um grande número de iluminuras deste manuscrito foram visivelmente transpostas por meio de um traço profundo, executado a ponta seca, ao longo do contorno das personagens bem como de outros elementos das iluminuras” (F. Avril 2006, 128). Na análise de uma das suas composições, a de São Lucas (fl.17)17, chama a atenção para a cópia que considera ser a mais fiel, ou seja, a atribuída ao Mestre de Guillebert de Metz18, a única que respeita a forma arquitectónica do modelo e mantém o formato quadrado da iluminura, delimitada por uma moldura interrompida por um arco, no seu lado superior. Para F. Avril, esta forma específica de enquadramento era bastante apreciada pelo Mestre de Mazarine que terá, muito provavelmente, contribuído para a sua disseminação na região parisiense, nos anos de 1410 (F. Avril 2006, 128). No manuscrito de D. Duarte, embora o formato de todas as iluminuras seja rectangular, a moldura que delimita a composição é, igualmente, interrompida por um arco, no seu lado superior, elemento este que não se repete nos outros exemplos de cópias de composições do ms. lat. 10538, apontados pelo autor19. No entanto, o tipo de enquadramento das iluminuras do nosso manuscrito assemelha-se mais, quanto ao formato, ao de algumas iluminuras atribuídas ao grupo aux rinceaux d’or. O percurso de uma composição de um livro de horas pode, assim, efectuar-se por contacto directo entre dois manuscritos, como é o caso, apontado por F. Avril, entre as Horas Beck e o ms. lat. 10538, em que o artista do primeiro copiou literalmente algumas das composições do segundo, mas também resultar de contacto indirecto, por via de uma compilação reunida pelo Mestre de Mazarine ou de um livro de modelos derivado dessa mesma compilação (F. Avril 2006, 128). Dominique Vanwijnsberghe (2007, 244) avança que o conhecimento das composições do ms. lat. 10538, retomadas nas Horas de Beck, poder ter ocorrido através da corte da Borgonha que, ocasionalmente, empregava elementos do grupo de Metz. Novas ligações estilísticas e iconográficas entre algumas iluminuras do ms. lat. 10538 e do Livro de Horas de D. Duarte podem agora ser consideradas, como de seguida trataremos. A análise das iluminuras que representam o Pentecostes (Livro de Horas de D. Duarte, fl.77v; ms. lat. 10538, fl.110v) e as do Ofício dos Defuntos (Livro de Horas de D. Duarte, fl.323v; ms. lat. 10538, fl.137v) é, neste caso, especialmente importante ao destacar as semelhanças presentes nos dois manuscritos. Designadamente no que respeita aos calendários, colocando-os, no entanto, em duas regiões diferentes: o de D. Duarte com um calendário da região da Flandres e o ms. lat. 10538 com um calendário parisiense. Como, ainda, o facto das iluminuras do ms. lat. 10538 se encontrarem inseridas no espaço do fólio sobre um texto de quatro ou cinco linhas, contrariamente às do manuscrito de D. Duarte, executadas no verso de um fólio deixado em branco, com

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emolduramento de página inteira. Interrompidos, superiormente, por um arco que abarca parte da área figurativa, ampliando o respectivo campo, desenham estes emolduramentos o conhecido esquema, mais tarde denominado motivo serliano, um elemento associado ao Mestre de Mazarine (Paris 1400, 286). Boucicaut havia sido considerado, por E. Panofsky, como o autor das longas perspectivas oblíquas, aprofundadas com a multiplicação dos tramos, embora o exemplo da aplicação do novo processo, como é sugerido pelo mesmo Panofsky, seja a representação do Ofício dos Defuntos do ms. lat. 10538, agora atribuído ao Mestre de Mazarine. Ora, D. Vanwijnsberghe (2007, 35) considera ser extremamente raro encontrar uma cópia exacta de uma mesma composição, ainda que em artistas trabalhando em cadeia como o grupo aux rinceaux d’or, sendo mais comum a representação de motivos individualizados. No entanto, o ms. lat. 10538, recorde-se, é apontado como um livro de modelos, indiciando as mencionadas iluminuras do Pentecostes e Ofício dos Defuntos ter havido um contacto directo do iluminador do Livro de Horas de D. Duarte com o próprio manuscrito. A similitude entre as duas cenas é flagrante, desde a concepção espacial da composição à arquitectura e à forma como os iluminadores vão dispor as respectivas figuras, embora subsistam pequenas variantes. Algumas delas são, no entanto, decorrentes da área geométrica em que cada uma das composições se desenvolve: no manuscrito de D. Duarte, de formato rectangular e no ms. lat. 10538 de formato quadrangular, sendo o arco que interrompe a moldura superior, neste último, mais largo. Na representação do Pentecostes (fig. 1 e 2), o iluminador desenha a mesma estrutura arquitectónica mas, enquanto no manuscrito de D. Duarte um espaço

primitivo. Este autor limita-se, apenas, a referir que o calendário é iluminado por 24 pequenas imagens ao estilo do Mestre de Boucicaut e que, entre as restantes iluminuras do livro de horas, “45 sont de notre maître, dont 24 pour les Suffrages des saints”. 7. A atribuição a Boucicaut resulta de uma notícia dando conta de pesquisas em curso, realizadas por Gabrielle Bartz (François Avril, Nicole Reynaud 1993, 18), que tendem a distinguir duas personalidades diferentes no ateliê deste Mestre. O que implicou retirar do corpus de manuscritos que lhe são atribuídos as Horas da Biblioteca de Mazarine (ms. 469) e, por conseguinte, um conjunto de outros manuscritos pertencentes ao mesmo grupo, entre os quais as Horas da colecção Corsini (Florença) e as Horas «dites de Jérôme Bonaparte» (BNF, Paris, ms. lat. 10538) que põem em causa a atribuição ao Mestre de Boucicaut. 8. Bartz 1999, 119-123. O Mestre de Mazarine, assim designado por ter iluminado as Horas de Mazarine (ms. 469), inclui-se na nova geração de artistas que em Paris, em princípios do século XV, contribuiu para um período de mudanças, visível na concepção das obras produzidas. 9. «The Boucicaut Masters». In Gesta, vol.41, n.º1, s.l. (2002), 29. 10. Este autor atribuiu a um assistente do Mestre de Boucicaut “most of the original illumination” do ms. Lat. 10538 (ob. cit., 127). O catálogo de 1959 (Le siècle d’or de la miniature flamande, Le mécénat de Philippe le Bon. Buxelas, Palácio de Belas Artes, 1959, 29) havia já referido que as iluminuras da parte primitiva do manuscrito são de estilo parisiense, segundo a maneira do Mestre de Boucicaut. Em 1953, Erwin Panofsky, no seu livro sobre a pintura nos Países Baixos (2003, 118) ao analisar uma das iluminuras do ms. Lat. 10538, mais precisamente a composição do Ofício dos Defuntos (fl.137v), atribui também a sua execução ao Mestre de Boucicaut; como, ainda, Sterling (1987, vol.I, 395) que considera ter este artista contribuído com a maior parte das composições, datando o manuscrito de 1417-18.

fig.1 pentecostes, paris, biblioteca nacional de frança, ms. lat. 10538, fl.110v.

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fig.2 pentecostes, lisboa, dgarq – torre do tombo, c.f.140, fl.77v

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11. M. Meiss (ob. cit., 127-128) informa ter sido Dorothy Miner a primeira a vislumbrar, em 1949,


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as relações do ms. lat. 10538 com o livro de Horas (ms. 260) da Galeria Walters, em Baltimore. Para Meiss, o ms. lat. 10538 data de ca. de 1416. 12. Paris, Museu do Louvre, Fayard, 2004, 286. 13. São identificados dois artistas, trabalhando em parceria, na qual um deles se distingue pelas suas carnações verdes, figuras delgadas e paisagens pobres (Paris.1400. ob. cit. 286). 14. Data que M. Smeyers havia já apontado (ob. cit., 236). 15. Fl.77v (Pentecostes) e fl.323v (O Ofício dos Defuntos). 16. O autor (ob. cit., 2006, 127) estabelece a distinção entre a simples utilização ocasional de modelos no interior de um ateliê, ou no seio de um determinado meio artístico, e a circulação prolongada de modelos, cujas cópias testemunham o sucesso prolongado de determinada composição, tanto no espaço como no tempo, neste último caso, menos frequente. 17. F. Avril 2006, 127-128. O autor considera o São Lucas (ms. lat. 10538, fl 17), uma das iluminuras que terá servido de modelo a uma série de cópias, visíveis em diversos livros de horas executados em regiões diferentes e alguns de datas mais tardias. 18. Antiga colecção privada Helmut Beck (Avril 2006, 127, nota 4); manuscrito actualmente denominado Heures Beck, Tournai, ca. de 14251435, Olim Londres, Sotheby’s, venda de 16 de Junho de 1997, lote 23 (sobre o manuscrito ver Vanwijnsberghe, ob. cit., 240-245 e 267-269). Avril afirma que o ms. lat. 10538 serviu directamente de modelo a um grande número de composições do livro de horas da antiga colecção Helmut Beck, dele literalmente copiadas (Ibidem, 128). 19. Bruges, ms. Rasn. O.v I, n.º 6, fl.7, datado de ca. de 1430-1440 (São Petersburgo, Biblioteca Nacional da Rússia, São Marcos no seu estúdio); Angers, círculo de Jouvenel, ms.155 (1007bis), fl.17, datado de ca. de 1450 (Grenoble, Biblioteca Municipal, São Marcos no seu estúdio). Ambas as iluminuras são delimitadas por uma moldura rematada superiormente em arco.

verdejante separa a moldura da arquitectura, o iluminador do ms. lat. 10538 coloca as bases das colunas junto à moldura inferior, criando um acesso directo ao interior do edifício. Também neste último manuscrito o iluminador alarga o campo visual elevando os três arcos e abrindo o espaço entre os arcos laterais, ocupado por um muro baixo, no de D. Duarte. Aqui, o arco central encontra-se à mesma altura do telhado, rasgado por águas-furtadas em diagonal nos dois manuscritos; e, sob o arco que interrompe a moldura superior, um céu azul com o sol no topo, de onde partem raios, transportando a Pomba, na direcção da Virgem. O Mestre de Mazarine vai representar a cobertura dos arcos laterais, bem como o arco central, sobreelevado, no espaço do arco que interrompe a moldura superior; sobre o céu destaca-se igualmente o sol, mas os raios, que partem em todas as direcções, fazem lembrar as paisagens dos irmãos Limbourg e do Mestre de Boucicaut. O formato quadrangular da cena do Pentecostes no ms. lat. 10538 possibilitou também ao artista mostrar o apoio exterior dos arcos, com colunas adossadas ao pano de muro ainda visível, o que deixou de ser viável no de D. Duarte, em resultado do traçado rectangular da moldura. Tanto a cobertura interior do edifício, como as janelas que rasgam os muros laterais e a abertura em arco, no eixo central da composição, é muito semelhante nos dois fólios. Entre os principais intervenientes da história sagrada, a Virgem ocupa, naturalmente, uma posição de destaque. Vemo-la, assim, sentada em ambas as composições, sobre o eixo central, de túnica e manto azuis, cruzando as mãos sobre o peito. Com a particularidade de, no manuscrito de D. Duarte, virar as palmas das mãos para o espectador, o que não deixa de constituir um gesto relativamente pouco frequente. Já os Apóstolos se encontram dispostos lateralmente, seis de cada lado. Os do primeiro plano, sentados em faldistórios, de formato e cor idênticos, assumem uma postura muito semelhante, de mãos postas e cabeça erguida, embora as cores dos panejamentos sejam diferentes. Enquanto o da esquerda apresenta algumas semelhanças no tratamento da barba e do cabelo e o da direita no perfil aquilino do nariz, ficam por aqui as afinidades entre estas figuras, uma vez que cada artista vai desenhar o rosto dos Apóstolos de forma particular. No manuscrito de D. Duarte, as figuras dispõem-se em planos escalonados, o que permitiu ao iluminador individualizar o rosto de cada um deles pelo traçado e a cor do cabelo e da barba. Pelo contrário, o Mestre de Mazarine, ao colocar as figuras praticamente ao mesmo nível, desenha apenas o rosto de sete dos Apóstolos (três à esquerda e quatro à direita), sendo a presença dos restantes visível pela auréola e parte da testa ou do cabelo. O artista do manuscrito de D. Duarte demonstra maior apuro nos rostos, tanto dos Apóstolos como da Virgem, assim como nas mãos, com dedos mais longos e finos, bem como na forma dos panejamentos, com um toque pessoal no desenho das jóias que prendem alguns dos mantos. Note-se igualmente o esforço do iluminador deste manuscrito para individualizar e caracterizar a Pomba, ao esmiuçar as penas das asas e traçar o olho, o bico e as patas.

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De salientar, no entanto, a diferença da paleta de cores de cada um dos artistas, visível igualmente nas restantes iluminuras analisadas, com excepção de uma, como diremos. Enquanto no Livro de Horas de D. Duarte as estruturas arquitectónicas destas duas iluminuras são pintadas a rosa, uma das cores predominantes no manuscrito, no do Mestre de Mazarine apenas a do Ofício dos Defuntos é pintada com essa cor, sendo a outra a verde. A estreita relação entre os dois manuscritos é, ainda, acentuada pela representação do Ofício dos Defuntos (fig. 3 e 4). Novamente o iluminador do manuscrito de D. Duarte cria um espaço entre a moldura e a abertura para a cena, preenchido aqui por um pavimento de pequenos mosaicos. Nos dois manuscritos, as colunas onde os arcos se apoiam assentam nos muros laterais mas, mais uma vez, o formato quadrangular da moldura do ms. lat. 10538 vai possibilitar ao artista uma composição mais alargada, desenhando por inteiro as aberturas laterais em arco, bem como parte do muro. O formato da moldura condiciona, por outro lado, o traçado do cadeiral do coro, mais largo e mais baixo no ms. lat. 10538, sendo visíveis os capitéis e o segmento da coluna onde repousam as nervuras da abóbada. Na composição do de D. Duarte, é mais estreito e de espaldar mais elevado, até à altura dos capitéis, reduzindo, consequentemente, a visibilidade das colunas aos tramos mais distantes. O desenho da cobertura abobadada difere igualmente, resultado do espaço onde as duas composições se desenvolvem. Douradas no manuscrito de D. Duarte, as nervuras demarcam-se com clareza, no ms. lat. 10538, de moldura saliente, embora com o mesmo tom de rosa no fragmento observável da cobertura; composto apenas por uma chave e, no segundo, por parte de outra. Ao invés, no nosso manuscrito, o iluminador

fig.3 ofício dos defuntos, paris, biblioteca nacional de frança, ms. lat. 10538, fl.137v

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fig.4 ofício dos defuntos, lisboa, dgarq – torre do tombo, c.f.140, fl.323v

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20. Não identificados. 21. Livro de Horas de Corsini, Florença (Bartz, ob. cit., 150, n.º 30); ms. 469, Biblioteca Mazarine, fl.150.

tem campo suficiente para desenhar três das chaves, mostrando uma porção mais ampla da abóbada. As aberturas em arco são protegidas por vitrais em ambas as composições, do mesmo tipo dos patentes no Pentecostes do manuscrito de D. Duarte. Em ambos os manuscritos, o catafalco, a preto, colocado obliquamente no eixo central da composição, é encimado por círios acesos, acompanhados de brasões no ms. lat. 10538. Neste último, o féretro encontra-se ainda coberto por um tecido azul com duas faixas a vermelho, uma vertical e outra horizontal. No de D. Duarte ele surge a preto, com motivos ornamentais20 a vermelho no topo. Em número de quatro, os candelabros dispõem-se com as velas acesas, no primeiro plano das duas composições embora, no do Mestre de Mazarine, apenas três se mostrem alinhados e o quarto recuado relativamente aos primeiros. Um pormenor interessante é o facto de, nestes dois manuscritos, o altar se deslocar para a direita, ocupando nos atribuídos ao Mestre de Mazarine21 o eixo central da composição, lugar privilegiado da convergência visual. A disposição das figuras é muito semelhante, ainda que em menor número no manuscrito da Biblioteca Nacional de França. As personagens enlutadas, vestidas de negro e encapuzadas, distribuem-se em ambos os manuscritos à direita e à esquerda, no primeiro plano da composição; igualmente à esquerda, face a um atril com um livro aberto, temos um grupo de monges cantores, tonsurados. Subsistem, no entanto, diferenças notórias, distinguindo-se o artista do de D. Duarte pela expressividade das formas e o dinamismo das atitudes das suas figuras, nomeadamente os monges, que o desenho da boca capta no momento do canto, enquanto o iluminador do ms. lat. 10538 se alheia da individualização dos rostos dos participantes do Ofício dos Defuntos. Neste manuscrito, é extremamente curiosa a figura do monge tonsurado diante do atril, de rosto liso sem marcação dos olhos e da boca, igual à do de D. Duarte, inacabado, talvez, neste último, tendo em conta a qualidade do desenho dos rostos das restantes figuras. A semelhança entre composições do ms. lat. 10538 e o livro de Horas de D. Duarte não é, de modo algum, circunstancial. Duas outras, em posição invertida, levam-nos a crer na utilização de um modelo a partir do qual o artista liberta a sua criatividade: São Tiago (Livro de Horas de D. Duarte, fl.22v; ms. lat. 10538, fl.206v) e São Jorge (Livro de Horas de D. Duarte, fl.36v; ms. lat. 10538, fl.299). Virada para a esquerda no ms. lat. 10538 (fig. 6) e na direcção oposta no de D. Duarte (fig. 5), a figura de São Tiago encontra-se ladeada de rochedos e árvores, com uma minúscula folhagem amarela. O fundo sobre o qual se recorta encaminha-nos para a identificação do ateliê a que cada manuscrito é atribuído: o de D. Duarte, ornado de finos rinceaux d’or, para o do grupo com o mesmo nome; o do ms. lat. 10538, com os enrolamentos de folhagens a dourado, para o ateliê de Mazarine, onde estes motivos estão também presentes. No topo da iluminura, sobre um céu azul, vemos um Deus Pai, de olhar dirigido para baixo, figura também invertida, com a auréola cruciforme e as mãos erguidas, rodeado de serafins, mais numerosos que no manuscrito do Mestre de Mazarine. Nesta última versão, o artista omite os raios dourados, incluídos no de D. Duarte.

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fig.7 são jorge, lisboa, dgarq – torre do tombo, c.f.140, fl.36v

22. Ms.2, Livro de Horas do Marechal de Boucicaut, fl.18v (Museu Jacquemart-André, Paris).

fig.5 são tiago, lisboa, dgarq – torre do tombo, c.f.140, fl.22v

fig.6 são tiago, paris, biblioteca nacional de frança, ms. lat. 10538, fl.206v

A figura do santo, sempre na condição de peregrino nos dois manuscritos, lendo um livro, com o manto, o chapéu, o bordão e a sacola, apresenta algumas diferenças, em particular na paleta de cores. Note-se que algumas dessas diferenças relacionam ambas as figuras com uma outra, também de São Tiago, de um livro de horas atribuído ao Mestre de Boucicaut22. No manuscrito de D. Duarte, o santo segura o livro aberto com as mãos, apoiando-se no bordão de peregrino, enquanto no ms. lat. 10538 o livro está na mão esquerda e o bastão na direita. O bastão do São Tiago do nosso manuscrito assemelha-se mais ao do Mestre de Boucicaut, embora com mais anéis. Saliente-se igualmente, na composição deste último, a existência de dois pormenores iconográficos que nos sugerem a possibilidade de o iluminador do Livro de Horas de D. Duarte ter estado em contacto com modelos deste ateliê: a presença de oliveiras23, bem como um pequeno coelho, repetido também na representação de São Francisco do nosso manuscrito (fl.26v) 24. Ao contrário, porém, do São Tiago do manuscrito de D. Duarte, o do ms. lat. 10538 está descalço (como o do ms.2), apesar de colocar o pé direito numa posição muito semelhante, havendo, independentemente disso, um pormenor curioso a aproximá-los: o acessório que pende por baixo do manto do santo no ms.2 e que surge na continuidade da barba no do Mestre de Mazarine. A representação de São Jorge (fig. 7 e 8) insinua novamente o recurso a um modelo, o que nos obriga a considerar também a relação com o mesmo santo do manuscrito de Aberdeen25. No caso do ms. lat. 10538, Leroquais identifi ca este fólio como sendo de uma outra mão, inserindo-o num conjunto de seis iluminuras26. Curiosamente, cinco dessas iluminuras (dois santos e três santas), colocam-se

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23. A representação de oliveiras, tais como as que podemos observar na iluminura alusiva a São João Baptista, no manuscrito de D. Duarte, revela-se um motivo iconográfico raro, na medida em que não encontramos mais nenhum exemplo no conjunto de iluminuras a que tivemos acesso. No entanto, temos ramos de oliveira no bico da pomba que anuncia a Noé o fim do Dilúvio e na Entrada triunfal de Cristo em Jerusalém; e a árvore, na representação do Jardim do Horto e na Ascensão de Cristo, que teve lugar no Monte das Oliveiras. Mencionada em diversas passagens do Antigo e do Novo Testamento, o iluminador poderá ter querido reforçar a ligação entre os dois Testamentos transmitida pela cena em questão. Na iluminura representando São Tiago, no livro de horas do Marechal de Boucicaut (Museu Jacquemart-André, Paris, Ms.2, fl.18) podemos observar a representação de duas árvores a ladear a figura do santo, muito semelhantes às que surgem no nosso manuscrito, embora apresentem uma folhagem mais densa. 24. Na representação do santo (fl.26v) o iluminador coloca, à direita, um coelho a sair da toca. 25. Aberdeen, Biblioteca da Universidade, Burnet Psalter, AUL MS 25. 26. Ob. cit., 1927, tomo I, 338. V. Leroquais considera como sendo de uma outra mão os seguintes fólios: São Jorge (fl.299), São Sebastião (fl.300), Santa Bárbara (fl.301), Santa Apolónia (fl.302), Santa Avia (fl.303) e a Missa de São Gregório (fl.304). Nas diligências que efectuámos na Biblioteca Nacional de França tivemos a oportunidade de consultar o original, constatando que o fl.304, o último do manuscrito, representa uma Deposição de Cristo no túmulo, iluminura de feitura mais tardia, já renascentista, delimitada por uma moldura rectangular, de página inteira, ocupando toda a largura do fólio e com as margens superior e inferior deixadas em branco. Não encontramos explicação para a ocorrência.


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fig.8 são jorge, paris, biblioteca nacional de frança, ms. lat. 10538, fl.299

sequencialmente entre os fólios 299 e 303, inseridas em molduras coroadas por arco abatido e, à excepção da que representa São Jorge, os restantes aparecem sobre um fundo vermelho ornado a rinceaux d’or, bastante análogo ao do Livro de Horas de D. Duarte. Para M. Meiss (1968, 128) o manuscrito original termina no fl.231v, pertencendo os restantes, nomeadamente o do São Jorge, ao período de Filipe o Bom27.

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27. Não podemos esquecer que o ms. lat. 10538 se encontrava, em 1419, na posse do duque.


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28. No manuscrito de Aberdeen, o conjunto das dezasseis iluminuras a que tivemos acesso apenas em consulta on-line (http://www.abdn.ac.uk/ diss/heritage/collects/bps/), inserem-se, sem excepção, no texto, podendo surgir representadas tanto no verso como no recto do fólio. No de D. Duarte, no ms. lat. 10538 e no Harley 2846 (British Library), as iluminuras são de página inteira.

Nas duas composições a paisagem é estilizada, havendo as mesmas folhagens a amarelo pontuando os espaços verdejantes e as árvores. O santo, de armadura completa (com um turbante no lugar do elmo no ms. lat. 10538; montado a cavalo, sem escudo, no de D. Duarte) empunha a lança com que trespassa a garganta do dragão; o cavalo, apoiado nas patas traseiras empina as dianteiras, numa posição de ataque. Cavaleiro e cavalo adoptam pois, nos dois fólios, uma atitude muito semelhante, distinta da verificada no manuscrito de Aberdeen, onde o iluminador coloca o animal em posição de passo e focinho virado para o lado contrário ao do dragão. O artista do manuscrito de D. Duarte, mais uma vez, denota grande qualidade artística na execução do quadrúpede, de anatomia excelente, onde sobressai o realismo dos cascos, mais intenso do que os do cavalo do ms. lat. 10538. Os dois cavaleiros, sobre a sela de arção elevado e pés apoiados nos estribos, têm as mãos livres para firmar a lança e carregar sobre o dragão, não obstante a dificuldade do iluminador do manuscrito do Mestre de Mazarine em desenhar a inserção do pé no estribo, reproduzindo-a numa posição anatomicamente impossível. Problema habilmente resolvido pelo de D. Duarte, mais convincente graças à implantação das esporas de estrelas. Já a figura do dragão difere de modo substancial, em resultado da inventiva de cada um dos iluminadores. No de D. Duarte ele é de maior porte e o olho demarcado a vermelho transmite uma certa ferocidade. No entanto, não tem as asas que lhe são características nas mitologias e lendas, como o do ms. lat. 10538. Por seu turno, a princesa assemelha-se bastante nos três manuscritos mencionados, vestida como ditava a moda da época, deslocada para a esquerda nos de D. Duarte e de Aberdeen, e para a direita no do Mestre de Mazarine, sobre a colina, levando um pequeno cão pela trela. Os seus gestos diferem em cada um deles, mas os iluminadores do manuscrito de Aberdeen e do ms. lat. 10538 recorreram à mesma paleta de cores para o seu vestuário: túnica verde e sobreveste vermelha, presa por um cinto abaixo do peito, com mangas partidas, forradas a arminho. Mais uma vez constatamos a qualidade do desenho no manuscrito de D. Duarte, no tratamento do rosto, das mãos e na própria silhueta em “S”, da princesa, sendo notória a diferença em relação ao ms. lat. 10538, onde deparamos com uma cabeça bastante alongada, de proporções exageradas relativamente ao tronco. Destas três composições apenas a do Livro de Horas de D. Duarte e a do Mestre de Mazarine incluem o castelo com as figuras do rei e da rainha, pois o iluminador do manuscrito de Aberdeen, tendo em conta o campo figurativo das representações, não tem possibilidade de desenvolver os planos mais recuados28. A construção do castelo reveste algumas particularidades: no de D. Duarte, o iluminador desenha as ameias com um merlão bem recortado nos ângulos, enquanto no ms. lat. 10538 o parapeito das muralhas é corrido e o merlão substituído por uma pequena saliência. Neste último, os muros são perfurados por duas aberturas rectas, a do primeiro nível em capialço e uma água-furtada rasgando a cobertura da torre. Também as figuras do rei e da rainha, indiferentes, na composição deste manuscrito, mostram-se, no de D. Duarte, ostensivamente debruçados sobre as ameias, atentos aos acontecimentos. Outro elemento a atestar a qualidade da nossa composição é o céu atmosférico, pin-

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tado em gradações sucessivas pelo iluminador do manuscrito de D. Duarte. Num tom mais claro junto à linha do horizonte, em sucessão de nuvens e neblinas, escurecendo progressivamente para o alto; o que se distingue da uniformidade cromática, em tom azul, praticada pelos iluminadores do ms. lat. 10530 e do de Aberdeen. Não menos significativa, é a harmonia da paleta de cores utilizada pelos iluminadores do Livro de Horas de D. Duarte e do ms. lat. 10538. Desde as manchas vermelhas aplicadas no vestido da princesa e no elemento esvoaçante do lambrequin, ao vermelho da língua e do sangue jorrando do dragão, como ainda na cruz da túnica do santo e no escudo (do ms. lat. 10538). O rosa (Livro de Horas de D. Duarte) e o violeta (ms. lat. 10538) são aplicados na sela e, no manuscrito de Mazarine, também na manta que cobre parte do dorso do cavalo, enquanto os tons de castanho servem no dragão e na lança. O azul, para além do céu, encontra-se na armadura do São Jorge, reservando-se o branco para o cãozinho que a princesa conduz pela trela e a túnica sobre a armadura do santo. O castelo apresenta o mesmo tom cinza violetado, convertido em negro na cobertura (com excepção de uma das coberturas no manuscrito de D. Duarte, que usa o dourado), sendo os equipamentos do cavalo e cavaleiro púrpura e dourado no manuscrito de D. Duarte e violeta e dourado no ms. lat. 10538. Aplicando, por último, o iluminador do nosso manuscrito um tom cinzento no cavalo, em lugar do branco escolhido pelo do ms. lat. 10538. Outro aspecto a considerar é o recurso a determinados pormenores, bem concretos, muito semelhantes nos dois manuscritos, em que se incluem a coroa da Virgem no Livro de Horas de D. Duarte29 e no ms. lat. 1053830, rematada por folha trilobada, e a representação de uma figura feminina, o corpo em “S”, figurando a Virgem Grávida no nosso manuscrito31 (fig. 10) e Santa Maria Madalena no da Biblioteca Nacional de França32 (fig. 9). Ambas erguendo a ponta do manto na mão esquerda, mas enquanto a Virgem transporta o livro aberto, Maria Madalena segura o frasco dos unguentos; um cinto cinge por igual o ventre das duas mulheres e, não fora os atributos iconográficos de cada uma delas e a identificação pelo texto que acompanham, poderiam muito facilmente substituir-se uma à outra. Conclui-se, de tudo isto, em balanço necessariamente breve, como as ligações do nosso manuscrito – o Livro de Horas de D. Duarte, com a iluminura do primeiro quartel do século XV revestiram um carácter complexo, que a análise das obras, mais do que qualquer outra coisa, permite entender. O que vai, por conseguinte, ao encontro do conhecimento mais aprofundado da sua ligação com estes três ateliês, reconhecidamente dos maiores existentes na época: Boucicaut, Mazarine e rinceaux d’or.

29. Fls. 32v e 43v. 30. Fls. 22v e 27. 31. Fl.144v. 32. Fl.227v.

fig.9 santa maria madalena, paris, biblioteca nacional de frança, ms. lat. 10538, fl.227v

fig.10 a virgem grávida, lisboa, dgarq – torre do tombo, c.f.140, fl.144v

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Resumo Na Idade Média portuguesa, a preocupação pela salvaguarda da memória individual e da imagem social, manifestada através dos jacentes, dispostos sobre as arcas tumulares, teve nos bispos os primeiros cultores. São ainda do século XIII as primeiras representações de prelados que constituem, no conjunto, um grupo muito homogéneo, denotando uma clarividência exemplar nas propostas iconográficas. Destacam-se, pelo número de exemplares conservados, dois núcleos, o de Coimbra e o de Évora, significando de algum modo a importância das respectivas dioceses nesta época. Ao nível artístico, propriamente dito, a obra fundamental é a do monumento encomendado pelo arcebispo de Braga, Dom Gonçalo Pereira: única obra de que se conhece o contrato de encomenda e os escultores seleccionados – Mestres Pêro e Telo Garcia –, é reveladora também de originalidades iconográficas e possuidora de uma qualidade de execução que a colocam como um marco das virtualidades que a escultura do século XIV vinha conhecendo em Portugal. No século XV, a representação de jacentes episcopais desaparece quase por completo, marcando, de forma significativa e algo desconcertante, o fim de um ciclo iconográfico fundamental no contexto da tumulária medieval portuguesa e do papel activo (e pioneiro) que aquela classe social havia desempenhado no referido campo artístico.

palavras-chave escultura tumular bispo jacente séculos xiii-xiv retrato

Abstract In the Portuguese Middle Ages, the concern for the preservation of individual memory and social image, expressed in the placing of effigies over tomb chests, had its first followers among bishops. The earliest representations of prelates, dating as far back as the 13th century, form a very homogeneous group which manifests an exemplary clarity of purpose from an iconographic point of view. Two main centres of production, Coimbra and Evora, stand out because of the number of existing specimens, reflecting to a certain extent the importance of their respective dioceses at the time. From a purely artistic viewpoint, the most important work is the monument commissioned by the archbishop of Braga, Dom Gonçalo Pereira. Aside from being the only case for which there is a known commission contract - detailing the chosen sculptors, Masters Pêro and Telo Garcia - this tomb also reveals iconographic originalities while presenting a high quality of execution which places it as a reference point of the level of proficiency that sculpture was achieving in 14th century Portugal. The virtual disappearance of episcopal effigies in the 15th century signals a significant and somewhat puzzling end to a fundamental iconographic cycle of medieval funerary monuments in Portugal, as well as to the active (and pioneering) role that this social group had played in the referred artistic domain.

Agradecimentos por ajuda na configuração do texto e sugestões de Ana Catarina Sousa, Pedro Fialho de Sousa, Justino Maciel, Felix Teichner e Heidi.

key-words funerary sculpture bishop effigy 13th to 14th centuries portrait


“ sculpto immagine episcopali ” jacentes episcopais em portugal (séc. xiii-xiv) j o s é cu stó d i o v i e i r a da si lva j oa na ra môa Instituto de História da Arte FCSH-UNL

1. Sobre os objectivos, realização e alcance do Projecto Imago (POCTI/EAT/45922/2002), financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia, veja-se Ramôa 2007, 324-326.

O tema da representação episcopal em jacentes medievais dos séculos XIII e XIV, em Portugal, por nós apresentado no decurso da 1.ª sessão do Seminário Internacional Imagem, Memória e Poder – Visualidade e Representação (sécs. XII-XV), organizado pelo Projecto Imago nos dias 15 e 16 de Novembro de 2007, foi escolhido tendo em conta duas razões principais. A primeira razão, que poderemos considerar de fundo, justifica-se com uma das duas áreas temáticas em que está estruturado o referido Projecto Imago1, ou seja, aquela que se ocupa do levantamento, análise e catalogação, que se pretendem sistemáticas, da escultura tumular medieval com jacentes, existente em Portugal. Neste contexto, as representações de bispos, tanto pelo número quanto pela sua precocidade e exemplaridade iconográficas – constituindo-se, inclusivamente, como um dos grupos mais significativos e importantes daquela manifestação artística de assumida importância estética e maior relevo social –, ofereciam-se como um tema de eleição, autêntico caso de estudo de toda uma problemática de mais vasto alcance. Pode-se afirmar que, até ao momento, a maior parte dos estudos e investigações realizados, no domínio da História da Arte, em torno da escultura tumular medieval portuguesa, tem privilegiado a análise estético-formal. Através dela têm-se estruturado, com maior ou menor profundidade, linhagens e derivações diversas, assentes quer na cronologia dos exemplares conservados, quando conhecida (o que sucede na maioria dos casos), quer nas aproximações formais (particularmente quando as referências cronológicas são incertas), por similitude de recursos técnicos e de identidades estéticas.

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s c u l p to i m m ag i n e e p i s co pa l i

A outro nível, pode-se também afirmar que o discurso mais vezes utilizado para servir de fundo a essas análises, se tem restringido quase só ao da caracterização do fenómeno da morte na Idade Média, tratado com uma abrangência, porventura demasiado generalista nas suas vertentes antropológica e de história das mentalidades, circunstância que, temos de convir, é naturalmente potenciada e plenamente justificada pelo facto desse discurso se desenvolver, objectivamente, em torno de monumentos funerários. Não pondo em questão a oportunidade e, em muitos casos, a qualidade destas últimas análises e os próprios resultados obtidos, pensamos, no entanto, que terão ficado por abordar várias outras interpretações e por questionar outros significados que, tanto a um nível social quanto mental, o aparecimento dos jacentes medievais trouxe consigo, uma vez que este fenómeno se constitui indiscutivelmente como uma das manifestações de maior complexidade e dinamismo do mundo da arte gótica2. Por consequência, a necessidade de ultrapassar esta espécie de nó górdio da investigação passava, em nosso entender, por (entre outros aspectos metodológicos) organizar as diversas representações segundo o grupo social e o género respectivos, de forma a acentuar ou fazer ressaltar, a par dos aspectos estético-formais propriamente ditos, as implicações sociais e culturais profundas inerentes à representação do jacente medieval, concretização por excelência do retrato escultórico no mundo gótico. Assim, e atendo-nos ainda aos objectivos inerentes ao referido Projecto Imago, organizámos, em refl exão conjunta, um primeiro estudo dos jacentes medievais portugueses3 por grupo e por género, compondo, para tal, uma trilogia de análise: – o grupo da nobreza, no género masculino, nele se incluindo, naturalmente, as (poucas) representações de reis4; – o grupo da nobreza, no género feminino, em que se incluem também representações de rainhas e princesas5; – o grupo do clero, restringido aos bispos. Dentro desta trilogia assim formulada, é este terceiro grupo que nos propomos agora analisar. As razões para esta análise ficar restrita ao modelo episcopal, deixando de lado outras representações de clérigos (sobretudo abades), são devidas tanto a uma estratégia científica quanto a problemas de limitação temporal. A segunda razão desta escolha temática que suporta e justifi ca o discurso que agora desenvolvemos, embora de carácter mais circunstancial, tem ainda a ver com o Projecto Imago: comportando o enunciado dos seus objectivos a organização de um Seminário Internacional onde fosse possível aprofundar a reflexão sobre estas temáticas em vários países (aproveitando-se para se fazer, em simultâneo, o ponto da situação na evolução do Projecto), pareceu-nos que o conjunto português de jacentes episcopais, pela sua homogeneidade e individualidade, se revelava o mais adequado para ser trazido à reflexão no referido Seminário. É possível, com efeito, identificar, desde logo, dois grupos bem definidos de jacentes episcopais, pertencentes, o primeiro e mais antigo, à Sé de Coimbra, o segundo à Sé de Évora, cada um deles reunindo quatro exemplares. A par destes dois grupos, assim geo-

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2. Algumas propostas de entendimento mais abrangente desta problemática foram já ensaiadas por José Custódio Vieira da Silva (Silva 2005, 47-81). 3. Convém mais uma vez realçar o facto de o principal objecto desta nossa reflexão ser constituído pela análise dos jacentes de bispos e não pela totalidade dos respectivos monumentos funerários. Por isso, só muito esporadicamente – quando tal se revele adequado à compreensão de algum aspecto mais particular – nos deteremos sobre algum aspecto da iconografia das arcas tumulares. 4. O grupo da nobreza, no género masculino, foi já objecto de uma comunicação intitulada A construção de uma imagem. Jacentes de nobres portugueses do século XIV, apresentada por José Custódio Vieira da Silva num Simpósio Internacional, organizado pela Universidade de León, de 27 a 29 de Setembro de 2007 (Silva 2009, 407-429). 5. Este grupo, sem dúvida o menos estudado de todos, constitui o tema da tese de Doutoramento de Joana Ramôa, a apresentar na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e que se desenvolve sob o título O género feminino. A representação da mulher na escultura medieval de Portugal e dos reinos peninsulares de Leão, Castela e Aragão (séculos XII-XV). O relacionamento do mundo português com o mundo castelhano-leonês, entre outros reinos peninsulares, irá permitir alargar extraordinariamente o alcance desta reflexão doutoral, sendo previsível o aparecimento de novidades consistentes que exponham, sob nova luz, o contributo fundamental do mundo feminino analisado sob este prisma específico da manutenção da memória individual e da imagem social.


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6. O bispo de Viseu a que nos referimos é Dom João Vicente, que governou a sua diocese entre 1444-1463. Trata-se do único jacente episcopal do século XV, pelo que não o integramos na análise que vimos fazendo. De qualquer modo, não deixa de ser assinalável o desaparecimento praticamente total de jacentes episcopais no século XV, sem que aparentemente se possam descortinar quaisquer razões justificativas desse fenómeno. Fica, como dissemos, a excepção protagonizada pelo bispo de Viseu, a quem se deve também a construção da respectiva capela funerária, de grande originalidade arquitectónica. 7. Anterior aos jacentes episcopais de Coimbra apenas se conhece, no contexto geral da tumularia medieval portuguesa e se tivermos em conta que a arca com jacente que se guarda no panteão régio do Mosteiro de Alcobaça pertence a Dona Beatriz (e não a Dona Urraca), o jacente de D. Rodrigo Sanches (†1245), filho bastardo de Dom Sancho I e de Maria Pais Ribeira, conhecida por Ribeirinha, cujo túmulo se guarda no claustro da igreja do antigo mosteiro de Grijó, próximo da cidade do Porto. Neste contexto, o jacente do bispo Dom Tibúrcio será mesmo o segundo em Portugal.

graficamente definidos, existem outros exemplares de monumentos funerários isolados – nas Sés de Braga, de Lisboa e do Porto, na igreja de Balsemão (Lamego) e na Sé de Viseu6 – circunstância que, no entanto, não é impeditiva de, em alguns casos, o respectivo formulário estético os permitir incluir num daqueles dois grupos mais consistentes. Se o grupo de Coimbra, como se acaba de afirmar, é decididamente aquele que conserva as representações mais antigas de jacentes episcopais em Portugal (o primeiro, o do bispo Dom Tibúrcio, é de c. 1253)7, todos eles modelados em calcário brando e gozando a sua proposta iconográfica de uma grande similitude, o grupo de Évora, apesar de mais tardio (o primeiro jacente, correspondente ao do bispo D. Durando, será de 1283), não deixa, no entanto, de apresentar também as suas especificidades, seja pelo material utilizado – o mármore branco alentejano –, seja pelo contraste acentuado que os dois primeiros jacentes apresentam em relação aos segundos. De qualquer modo, também não deixa de ser uma coincidência assinalável o facto de ser idêntico o número de jacentes episcopais conservados nos dois grupos, demonstrativo, em última análise, da importância que a diocese de Évora mantinha, a par da de Coimbra, no contexto da organização diocesana portuguesa. No que respeita ao grupo escultórico de Coimbra, temos como primeiro jacente, porque mais antigo, aquele que encima a arca de Dom Tibúrcio, bispo daquela diocese entre 1234 e 1248, diplomata e apoiante do Conde de Bolonha, futuro Dom Afonso III, na luta sucessória que este travou contra o irmão, Dom Sancho II. Tal apoio valeu mesmo a Dom Tibúrcio a proibição de entrar na cidade do Mondego, ainda activa aquando da morte do prelado (1248), mas que Dom Afonso III trataria de subverter, impondo o regresso dos restos mortais de Dom Tibúrcio à sede do seu governo episcopal. Por isso, é na Sé Velha de Coimbra que encontramos, ainda hoje,

fig.1 túmulo com jacente do bispo dom tibúrcio. coimbra. sé velha. © projecto imago. fotografia de josé custódio vieira da silva

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o monumento funerário deste 11.º bispo de Coimbra, concretamente num arcossólio sito na nave lateral direita, para onde foi deslocado da capela-mor no século XIX – monumento cuja realização, em virtude das vicissitudes sumariamente citadas, acrescidas do facto de, no único facial decorado, se representar o escudo de Portugal já com a bordadura de castelos, não deverá ser anterior a 12538. Esta ligação profunda de Dom Tibúrcio a Dom Afonso III encontra, assim, reflexos nalguns dos aspectos definidores da existência deste monumento funerário: desde logo, na localização primitiva do túmulo no espaço da capela-mor, numa época em que o enterramento no interior das igrejas, reservado a figuras da mais alta hierarquia social, se concretizava ainda em lugares menos nobres do edifício (Silva 1997, 45-59; Silva 2003, 15-27) – privilégio que poderá estar relacionado com uma vontade do rei de homenagear aquele que tinha sido um dos seus grandes apoiantes; depois, na representação do escudo régio, a par da heráldica do bispo, no facial disponível da arca9, marcando o que poderá ter sido uma intervenção directa do monarca na encomenda deste monumento; finalmente, na própria inclusão de uma figura jacente no conjunto funerário, cuja notória precocidade no contexto da tumulária nacional Francisco Pato de Macedo associou, de certa forma, igualmente a este carácter simbólico que em larga medida o túmulo de Dom Tibúrcio parece assumir no quadro de afirmação do quinto rei de Portugal (Macedo 1995, 435-437). Quanto a nós, parece-nos sobretudo fundamental o facto deste pioneirismo da composição de um jacente, tal como concretizado pelo túmulo de Dom Tibúrcio, não se ter esgotado num programa determinado por condições eventualmente excepcionais e de grande carga simbólica, mas ter dado o mote a um conjunto de jacentes episcopais, de enorme significado no domínio da tumulária medieval portuguesa, que marca o grupo social do clero com o cunho de uma precocidade admirável. Desta forma, o jacente de Dom Tibúrcio deve ser entendido como protagonista de um papel verdadeiramente fundador, papel que desempenha inclusivamente de um ponto de vista estético e formal, na medida em que, olhando para a representação deste primeiro jacente de Coimbra, observamos um conjunto de características formais que dá corpo a um verdadeiro modelo iconográfico, repetido em todo o grupo da Sé Velha a que aqui nos referimos. Deitado de costas, o jacente de Dom Tibúrcio enverga as vestes episcopais, representadas sem pormenores de decoração, mas caindo (a casula) em dobras bem modeladas que, embora um pouco rígidas, tendem a ganhar a forma própria de um tecido denso e nobre, como convém a uma figura desta posição no quadro hierárquico social. A estola e a própria alba, de tratamento sumário e movimento vertical bem definido, contrastam, de certo modo, com aquela agitação da casula que o prelado segura com os braços e que condiciona largamente, com as suas pregas bem vincadas, a leitura do corpo da figura jacente. A mitra, na cabeça, e o anel, na mão direita, completam o retrato social da condição episcopal, a que falta somente o báculo, que certamente se colocaria sob o braço esquerdo do jacente mas que entretanto se perdeu, no corte substancial que a imagem sofreu, provavelmente aquando da referida deslocação a que foi sujeita no interior da igreja coimbrã.

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8. Segundo os heraldistas, esta iconografia do brasão régio com bordadura de castelos é posterior ao casamento de Dom Afonso III com Dona Beatriz de Castela, ocorrido em 1253. A razão principal tem a ver com o facto de D. Afonso III – que substituiu seu irmão, o rei D. Sancho II, no trono – não ser o primogénito e, como tal, deverem as suas armas trazer uma diferença, que foi dada com a bordadura formada à custa das armas maternas, as de Castela (Langhans 1966, 22-23). 9. Uma vez que se encontra inserida num arcossólio, a arca tumular do bispo Dom Tibúrcio tem apenas um facial disponível para a decoração (neste caso, o facial maior da direita), que se encontra preenchido com três brasões, o escudo régio de Portugal, ao centro, e a ladeá-lo, dois brasões representativos da linhagem do inumado.

fig.2 túmulo com jacente do bispo dom tibúrcio. jacente-pormenor. coimbra. sé velha. © projecto imago. fotografia de josé custódio vieira da silva


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fig.3 túmulo com jacente do bispo dom tibúrcio. jacente-pormenor. coimbra. sé velha. © projecto imago. fotografia de josé custódio vieira da silva

Nesta escultura representativa de Dom Tibúrcio, a cabeça revela ser, no que respeita àquela acção fundadora que o jacente desempenha do ponto de vista estético e iconográfico, uma das partes mais significativas, concretizando caracteres tornados, a partir deste, identificadores dos jacentes episcopais de Coimbra: a almofada única (sem borlas nem decoração), o rosto oblíquo, a barba de uma ondulação cerrada, a boca inexpressiva, o cabelo curto, acompanhando os limites da mitra, e, sobretudo, os olhos fechados, formam, em grande medida, a homogeneidade deste grupo coimbrão, ao mesmo tempo que o distinguem com bastante clareza dos restantes jacentes medievais portugueses, mesmo no seio mais restrito da ordem social do clero. Da mesma forma, o gesto cumprido pelas mãos, cruzadas sobre o peito, aparece como uma marca comum, embora não exclusiva, neste grupo dos bispos de Coimbra, reforçando a sua condição de adormecidos na morte, que o fechamento dos olhos parece sugerir. Dom Tibúrcio assenta os pés sobre uma figura de animal, provavelmente um leão, que se deita sobre as quatro patas e mostra os dentes numa intenção ameaçadora, que a desconcertante ingenuidade geral da figura não deixa, contudo, cumprir-se em plenitude. No que respeita especificamente ao suporte dos pés, os quatro jacentes de Coimbra apresentam, de resto, soluções variadas, embora a intenção geral que subjaz às respectivas escolhas iconográficas aparente ser muito semelhante. A Dom Tibúrcio sucedeu, na cátedra conimbricense, o bispo Dom Egas Fafes de Lanhoso, que governou a diocese entre os anos de 1248 e 1267. As qualidades governativas do prelado ter-lhe-ão valido a transferência para Santiago de Compostela, onde contudo não chegou a entrar, por ter falecido em Montpellier, no regresso da viagem a Roma onde havia tido conhecimento da dita nomeação. À época, no

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entanto, já dispunha de uma capela, erguida, por sua expressa vontade, na Sé de Coimbra, para onde foi levado, permanecendo aí tumulado num monumento funerário que se dota de uma figura jacente muito próxima da do túmulo do bispo seu antecessor, ainda que concretizadora de alguns sinais de evolução. Encimando uma arca hoje sem decoração e inserida num arcossólio aberto no braço esquerdo do transepto, o jacente de Dom Egas Fafes de Lanhoso afirma-se, desde logo, pelo enorme volume do tronco – por contraste até com uma cabeça bastante bem proporcionada. O bispo veste o hábito pontifical, tratado com grande simplicidade e de que se destaca, no quadro de uma evidente contenção decorativa, a estola, com o ondulado das franjas de uma das pontas a marcar a composição no lado esquerdo do jacente – e servindo como único elemento de subversão de uma absoluta simetria que parece orientar a elaboração desta figura. As mãos cruzam--se sobre o peito e, sob o braço esquerdo, está colocado o báculo que, apesar de muito danificado na parte final, parece ser composto seguindo o mesmo princípio de simplicidade que serve à composição geral do jacente. A cabeça, mitrada, de barba curta e olhos rasgados10, repousa sobre uma grande almofada, única e sem decoração. Os pés, a descoberto, assentam sobre dois animais híbridos, com garras de leão e bicos de ave, colocados de costas voltadas um para o outro, mas interagindo por meio de algo que ambos parecem segurar com os bicos e sobre o que o bispo faz assentar o báculo.

10. O grau de destruição em que o rosto desta figura jacente se encontra impede-nos de afirmar com segurança se os olhos se encontram fechados (à semelhança do que parece acontecer na representação do túmulo de Dom Tibúrcio) ou simplesmente semicerrados.

fig.4 túmulo com jacente do bispo dom egas fafes de lanhoso. jacente-pormenor. coimbra. sé velha. © projecto imago. fotografia de josé custódio vieira da silva

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11. Esta é a data conhecida da morte do prelado, logo também a data aproximada de que dispomos para a feitura do respectivo túmulo.

Neste conjunto de caracteres assim definidos, observamos que, se a composição deste jacente de bispo se revela, no domínio iconográfico, em tudo semelhante à proposta (que já considerámos modelar) da figura de Dom Tibúrcio – o decúbito dorsal, as vestes pontificais sem decoração, a mitra na cabeça, o anel prelatício na mão direita, o báculo (que no jacente de Dom Tibúrcio se perdeu) sob o braço esquerdo, as mãos cruzadas sobre o peito, a almofada única –, no que respeita aos aspectos propriamente ditos da modelação podemos falar de uma evolução subtil, nomeadamente na maior flexibilidade com que as pregas da casula se desprendem, jogando-se aqui, de forma mais evidente, com os movimentos contrastantes gerados pela horizontalidade de uns pregueados e a verticalidade de outros. O mesmo jogo de pregas anima as vestes pontificais de que se dota o jacente de Dom Pedro Martins, bispo de Coimbra entre 1296 e 130111, com túmulo num arcossólio aberto no braço direito do transepto da mesma Sé e que constitui o terceiro momento deste grupo que agora analisamos. Do monumento original resta apenas o jacente, que cumpre, no geral, com os mesmos caracteres iconográficos dos dois anteriormente descritos. Assim, observamos uma figura colocada em decúbito dorsal e envergando as vestes pontificais (sem decoração), com que se articula exactamente do mesmo modo que os anteriores jacentes. A figura do túmulo de Dom Pedro Martins cruza igualmente as mãos sobre o peito, à semelhança do que vimos nos bis-

fig.5 túmulo com jacente do bispo dom pedro martins. coimbra. sé velha. © projecto imago. fotografia de josé custódio vieira da silva

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pos anteriores, dispondo, sobre o braço esquerdo, de um manípulo cujas pontas se desenham com nitidez. Se as dobras da casula e da alba parecem dar sinais de uma muito subtil evolução relativamente ao tratamento das vestes nos jacentes de Dom Tibúrcio e de Dom Egas Fafes de Lanhoso – estas de pregas mais rígidas e geometrizantes –, o geral da composição revela-se um tanto desolador, no achatamento e na desproporção que, apesar de tudo, ainda dominam a figura. Dos elementos distintivos, por excelência, da condição episcopal, Dom Pedro Martins apresenta apenas a mitra, colocada na cabeça, e parte do báculo, de que restam somente vestígios, no que seria a parte inferior do mesmo. De entre os caracteres discordantes nesta figura em relação aos dois bispos anteriores – o que poderá estar relacionado com o hiato (ainda que de poucos anos) que separa o túmulo de Dom Egas Fafes de Lanhoso do de Dom Pedro Martins12 – destacam-se o rosto, que apesar de muito danificado parece denunciar a ausência de barba e um cabelo mais comprido na nuca, e o suporte dos pés que, como já referimos, corresponde ao elemento mais variável neste grupo episcopal da Sé de Coimbra. No caso concreto de Dom Pedro Martins, a sua figura jacente tem os pés, calçados, assentes sobre uma base paralelepipédica, enquanto o báculo, colocado, em conformidade com a norma, do lado esquerdo, se apoia sobre o que parece tratar-se de uma máscara antropomórfica. Depois de uma governação de apenas um ano do bispo Dom Fernando na cátedra episcopal de Coimbra (1302-1303), Dom Estêvão Anes Brochado logrou permanecer nela durante 14 anos, entre 1304 e 1318. É deste bispo o último túmulo desta série de monumentos com jacentes episcopais da Sé Velha de Coimbra que temos vindo a observar. Quer na sua colocação original na capela-mor, de onde foi deslocado no século XIX, quer na actual localização

12. Dois bispos medeiam as governações de Dom Egas Fafes de Lanhoso e de Dom Pedro Martins na cátedra de Coimbra: Dom Mateus (12681275) e Dom Américo Ebrard (1279-1295). Não dispomos, na Sé de Coimbra, de túmulos respeitantes a qualquer um desses dois prelados.

fig.6 túmulo com jacente do bispo dom estêvão anes brochado. coimbra. sé velha. © projecto imago. fotografia de josé custódio vieira da silva

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fig.7 túmulo com jacente do bispo dom estêvão anes brochado. jacente-pormenor. coimbra. sé velha. © projecto imago. fotografia de josé custódio vieira da silva

num arcossólio da nave lateral direita da igreja, este monumento aproxima-se, desde logo, largamente do primeiro, o de Dom Tibúrcio. Mesmo em termos iconográficos, o jacente de Dom Estêvão Anes Brochado não só prolonga os dados fundamentais que vimos repetirem-se em todos os anteriores, como recupera os caracteres de que o de Dom Pedro Martins se parecia começar a afastar, para concretizar o melhor exemplar do modelo fundado pela figura jacente de Dom Tibúrcio. Vemos, assim, sobre uma arca de feitura posterior, um jacente deitado de costas, ostentando as vestes episcopais, também isentas de decoração (como as dos anteriores jacentes, o que permite a suposição de que seriam pintadas), mas de pregas bem definidas, marcando com clareza os limites de cada uma das suas componentes – da casula, presa pelos braços, e da alba, caindo na vertical – e o início de um tratamento mais naturalista, que, por fim, equilibra satisfatoriamente o movimento das vestes e os volumes dos pregueados. Neste contexto de predomínio dos ondulados, evidencia-se a lisura do manípulo, colocado sobre o braço esquerdo, e da estola, cujas franjas se sobrepõem às pregas da alba, junto aos pés do prelado. O báculo, agora inteiro, dispõe-se ao longo do corpo, passando por debaixo do braço esquerdo e apresentando uma terminação bem conservada, com decoração fitomórfica. A cabeça, mitrada e assente sobre uma única almofada, ostenta o mesmo tipo de cabelo geometrizante e de barba cerrada dos dois primeiros jacentes desta série de Coimbra, que formam, no entanto, parte de um rosto dotado de um naturalismo e de uma qualidade apreciáveis para a época – naturalismo e qualidade igualmente patenteadas no tratamento das luvas que lhe cobrem as mãos, também cruzadas sobre o peito. Sobre a luva da mão direita está colocado, no dedo anelar, o anel episcopal. Os pés, calçados, assentam sobre um dragão, numa proposta muito original no quadro da tumulária medieval portuguesa, mas que, de qualquer modo, parece prolongar o tal sentido que considerámos próprio e comum às escolhas iconográficas dos suportes destes jacentes episcopais da Sé Velha de Coimbra. Representado agora, como dissemos, sob a forma de um dragão – o animal considerado o guardião por excelência dos lugares infernais –, parece ser novamente um sentido apotropaico e de luta contra as forças do Mal aquele que aqui se enforma no suporte inferior deste jacente e que o prelado, por nelas assentar (os pés e o báculo), domina. Aos sinais visíveis do elevado poder episcopal (a mitra, o báculo, o anel), acrescenta-se, deste modo, a ostentação daquela que é afinal a vocação maior do bispo enquanto representante de Deus na terra e do seu papel na difusão, consolidação e vigília prudente da fé cristã. Com efeito, se o leão que serve de apoio à figura do túmulo de Dom Tibúrcio se conforma, mais facilmente, ao modelo iconográfico dominante nestes suportes tumulares (normalmente assumindo a forma de leões, de cães ou de simples mísulas), os restantes três casos deste grupo de bispos de Coimbra (os animais híbridos do jacente de Dom Egas Fafes de Lanhoso, a máscara antropomórfi ca do de Dom Pedro Martins e, fi nalmente, o dragão do de Dom Estêvão Anes Brochado) parecem apontar para uma lógica interpretativa própria que reconhece estas bases de apoio, mais do que como protagonistas de um papel de suporte, de acompanhamento ou de protecção, como o lugar privilegiado de

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expressão desse mundo obscuro (do pecado e da heresia) que compete às forças da Igreja controlar – num prolongamento de modelos iconográficos conhecidos da figuração da dinâmica entre vencedores – as Virtudes –, e vencidos – os Vícios. Finalmente, o fechamento evidente dos olhos do jacente de Dom Estêvão Anes Brochado completa o modelo iconográfico tal como parece sugerido pelo primeiro jacente deste grupo coimbrão, e serve de nota final a um entendimento deste jacente como representante de um prelado de meritória governação e feliz na sua condição clara de justo (perceptível no leve sorrido que os seus lábios esboçam) e defensor da fé em Deus. O segundo grupo de jacentes episcopais de que nos vimos ocupando, o de Évora, é, como já afirmámos, cronologicamente mais tardio do que o grupo de Coimbra13, dado que o jacente mais antigo, de entre os que se conservaram, deverá ser o do bispo Dom Durando Pais, falecido em 1283. Iniciador da obra da grande catedral gótica, fez-se sepultar na respectiva capela-mor, nisso imitando (talvez com legitimidade acrescida, por dele ser a responsabilidade da construção da nova Sé) o bispo Dom Tibúrcio, de Coimbra. Em 1718, aquando da remoção para o claustro do monumento de D. Durando Pais (por motivo da reconstrução da capela-mor da catedral eborense), perdeu-se infelizmente a arca, tendo restado apenas a tampa com o respectivo jacente, identificado por uma inscrição que o individualiza14.

13. Com excepção do monumento funerário do bispo D. Pedro II, que se conserva no local original (a sua capela funerária, sita no claustro da Sé de Évora, ambos os espaços mandados por ele construir), os outros três jacentes foram deslocados para o Museu Regional de Évora, onde se mantêm em exposição. 14. A inscrição é a seguinte: HIC=QUIESCIT=BONE=MEMORIE=DOmNus=D URAnDus=EPiscoPus=ELBOReNsis=Q(U)I=DEDI T=INICIUm=HUIC=OPerI=Cuius=AnImA=REQ(u) IESCAT=IN=PACE=AMen=. (Barroca 2000, 1030).

fig.8 túmulo com jacente do bispo dom durando pais. évora. museu regional. © projecto imago. fotografia de josé custódio vieira da silva fig.9 túmulo com jacente do bispo dom durando pais. jacente-pormenor. évora. museu regional. © projecto imago. fotografia de josé custódio vieira da silva

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15. Pedro Dias adianta que deve tratar-se do mesmo artista, atribuição que nos parece um pouco mais difícil de sustentar (Dias 1980, 121-122).

Dom Durando Pais segue, a nível iconográfico, o modelo proposto pelos bispos de Coimbra: vestido com os paramentos episcopais e ostentando os correspondentes símbolos de poder – mitra na cabeça, anel prelatício no dedo anelar e báculo sujeito sob o braço esquerdo –, apresenta-se com as mãos cruzadas sobre o ventre (no que representa uma ligeira variante em relação ao modelo conimbricense) e os olhos cerrados, enquanto os pés, colocados verticalmente na continuidade do próprio corpo, repousam sobre um bloco de pedra que ostenta, no lado virado ao observador, a cabeça e as asas de um anjo. Apesar de uma cuidada e claramente ostentosa decoração – na casula, bifurcada na ponta e ornada com uma bordadura de flores de lis, na estola e no manípulo com rosetas e estrelas de oito pontas, na mitra e no lado esquerdo das duas almofadas com elementos geometrizantes –, a escultura é de difícil execução, revelando artífice local, sem contactos com centros mais evoluídos na produção escultórica: o modelado é grosseiro e muito rígido, os volumes difíceis, o rosto inexpressivo. Ressalva-se, de qualquer modo, a relativa originalidade de uma proposta iconográfica que, como vimos dizendo, só tem paralelo na que os bispos de Coimbra primeiro idealizaram. A estátua jacente de Dom Durando Pais tem uma réplica quase perfeita na representação de um outro bispo eborense, não identificado. Pensamos que, ao contrário de uma certa interpretação que o dá como sendo Dom Soeiro II (1206-1229), deverá ser, como refere Virgílio Correia (Correia 1953, 30), a estátua de um bispo posterior ao próprio Dom Durando Pais. As semelhanças são tão evidentes que, para além de se deverem eventualmente a artista da mesma oficina15, permitem avançar a hipótese de se tratar do jacente de Dom Martinho Pires (1237/1246-1266), antecessor de D. Durando Pais, ou de D. Domingos Anes Jardo (1284-1289), seu sucessor na cátedra episcopal de Évora (Jorge 2000). Esteticamente, a estátua de Dom Martinho Pires/Dom Domingos Anes Jardo (?) apresenta algumas contradições na comparação com a de Dom Durando Pais: se, no cômputo geral, apresenta maior rudeza no tratamento do rosto, das mãos, das vestes episcopais e num certo non finito – visível na almofada onde repousa a cabeça e em todo o lado esquerdo (certamente por estar, originalmente, encostado ao muro, por esse lado), consegue, no entanto, apresentar um tratamento volumétrico do corpo mais conseguido. De assinalar que aos pés, em lugar do anjo do jacente de Dom Durando Pais, representa-se o que parece ser um dragão. De resto, hieratismo e rigidez muito acentuados serão as características que melhor poderão caracterizar estas duas primeiras representações eborenses, tão próximas estética e cronologicamente uma da outra. O terceiro jacente de Évora, o do bispo Dom Fernando Martins (1297-1313/14), apresenta, em relação aos dos dois bispos anteriormente considerados, diferenças absolutamente notáveis, tão mais salientes quanto o espaço de tempo de realização que os separa não ultrapassa as duas décadas. Este é também, desde logo, um outro aspecto que, para além dos já analisados nas duas primeiras representações de bispos eborenses, contribui para autonomizar este conjunto em relação ao de Coimbra, atendendo à maior unidade que, apesar de uma visível evolução, os exemplares conservados na Sé Velha desta última cidade apresentam.

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fig.10 túmulo com jacente do bispo dom fernando martins. évora. museu regional. © projecto imago. fotografia de josé custódio vieira da silva

Tal como o seu antecessor Dom Durando Pais, também Dom Fernando Martins se fez sepultar em arcossólio disposto na cabeceira da sua catedral, que ele consagrou, em 130816. O tratamento plástico do seu jacente, no entanto, revela um salto qualitativo notável. Em lugar da rigidez de atitude e de composição das vestes que Dom Durando Pais e Dom Martinho Pires/Dom Domingos Anes Jardo (?) exibem, o jacente de D. Fernando Martins alcança uma modelação muito mais fluida e quase naturalista, particularmente visível na ampla casula, disposta em drapeados e enrolamentos laterais sabiamente esculpidos e de uma delicadeza quase táctil, que lhe chega até aos pés e oculta, inclusivamente, tanto o manípulo quanto a estola, e ainda no modo como a alba, mais fina, lhe recobre parte dos sapatos e descansa harmoniosamente sobre o suporte pétreo, de que está ausente qualquer representação iconográfica. Do mesmo modo, «o requinte do lavor dos cabelos e dos ornatos do amito e da mitra revelam um excelente domínio da matéria pétrea» (Carvalho 2000, 237). A par da evolução plástica, há outra originalidade neste retrato de Dom Fernando Martins que importa ressaltar: é o primeiro que, em vez de se apresentar com as mãos cruzadas uma sobre a outra, como acontece nas outras representações episcopais – seja nas de Coimbra, em que as mãos se cruzam sobre o peito, seja nas de Évora, cruzadas sobre o ventre –, tem as mãos, sem luvas, afastadas, a esquerda sobre o peito, a direita, com o respectivo anel pontifical, sobre o ventre. Juntamente com o naturalismo das vestes, esta é, segundo pensamos, manifestação de uma pressentida tentativa de individualização da personagem, mesmo que, paradoxalmente, o seu rosto continue a revelar um certo estereótipo apelativo de uma intemporalidade solene (Carvalho 2000, 237).

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16. É interessante anotar uma outra aproximação que relaciona entre si estes dois bispos, ou seja, se D. Durando Pais foi o iniciador da obra magnífica da catedral eborense, coube a D. Fernando Martins o privilégio de a consagrar.


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fig.11 túmulo com jacente do bispo dom fernando martins. jacente-pormenor. évora. museu regional. © projecto imago. fotografia de josé custódio vieira da silva

17. Esta deverá ter sido a razão principal por que se conservou todo o monumento funerário do bispo D. Pedro II.

A par desta originalidade, o jacente de D. Fernando Martins apresenta uma ‘anomalia’ iconográfica, ou seja, o báculo, em lugar de estar seguro, como é usual, sob o braço esquerdo, encontra-se disposto sob o braço direito. A justificação para tal tem a ver, certamente, com a disposição do túmulo no lado esquerdo da cabeceira, ficando o báculo encostado à parede, de modo a não perturbar a visibilidade do rosto do bispo. Não deixa, no entanto, de constituir um exemplo da falta de rigidez dos modelos iconográficos que, sempre que necessário, se adaptam (nem que seja de forma mínima e em elementos relativamente secundários) às condições concretas do lugar para onde são pensados. A evolução detectada no jacente de Dom Fernando Martins confirma-se no quarto monumento subsistente dos bispos de Évora, o mais evoluído de todos tanto a nível estético quanto iconográfico e também, por coincidência, o único de que se conservou a totalidade da arca funerária. Trata-se do bispo Dom Pedro II (1322-1340), a quem se devem obras de significativo engrandecimento da sua catedral, como é o caso, quer da colocação do Apostolado na porta principal (naquilo que representa a primeira tentativa de adopção de um programa iconográfico de grande envergadura no contexto da arquitectura gótica portuguesa), quer da construção do claustro, com a capela funerária onde se fez sepultar17. A par do Apostolado, este claustro é também, pela sua qualidade objectiva, uma obra arquitectónica de grande significado na arquitectura portuguesa do século XIV, podendo mesmo afirmar-se que a sua realização última, em termos de um programa de afirmação pessoal, se cumpre, sem reservas, tanto na capela quanto no monumento funerário de Dom Pedro II. Com efeito, a arca tumular deste bispo eborense, assente em dois imponentes leões

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fig.12 túmulo com jacente do bispo dom pedro ii. évora. jacente. sé-claustro. © projecto imago. fotografia de josé custódio vieira da silva

e decorada com um programa iconográfico de carácter sagrado – nas faces menores, o Calvário e Cristo em Majestade; nas faces maiores o Apostolado, com seis Apóstolos de cada lado –, ganha a sua completa realização no jacente, com as feições do rosto indiciando, de forma perceptível, alguma preocupação de individualismo e o corpo amparado, à altura dos ombros, por dois anjos18, cujo virtuosismo plástico acentua a qualidade já enunciada na estátua do seu predecessor, Dom Fernando Martins. Aliás, Dom Pedro II também apresenta, como este, as mãos colocadas uma sobre o peito, a outra sobre o ventre, embora em posição inversa (ou seja, a direita sobre o peito e a esquerda sobre o ventre), dado que Dom Pedro II segura o báculo sob o braço esquerdo, respeitando-se assim o cânone iconográfico episcopal. Os pés assentam directamente sobre um suporte liso, de forma prismática, ornado, no reverso, com o brasão de armas do bispo. A delicadeza no tratamento dos panejamentos, o naturalismo das dobras da casula, a visibilidade do manípulo, a faixa decorada com desenho delicadamente inciso que forma uma cruz na casula, o amaneiramento dos dois anjos, encontra paralelo na modelação, em relevo pouco pronunciado, das personagens sagradas que se dispõem nos quatro lados da arca funerária, ganhando particular destaque o doce humanismo

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18. Os anjos assim colocados à cabeceira do jacente de Dom Pedro II, são os segundos a aparecer nestes monumentos funerários, depois dos que amparam o jacente do arcebispo de Braga, Dom Gonçalo Pereira.


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fig.13 túmulo com jacente do bispo dom pedro ii. évora. sé-claustro. © projecto imago. fotografia de josé custódio vieira da silva fig.14 túmulo com jacente do bispo dom pedro ii. facial da cabeceira. évora. sé-claustro. © projecto imago. fotografia de josé custódio vieira da silva

19. A capela, com a designação de Senhora da Glória, foi instituída a 27 de Abril de 1334, de acordo com documento guardado no Arquivo Distrital de Braga (Col. Cronol., cx 12) e publicado por Maria Helena da Cruz Coelho (Coelho 1990, 445-461).

da figura de Cristo na cruz ou ainda a identificação individualizada (pouco usual) de quase todos os Apóstolos pelos respectivos atributos. A mesma representação de Cristo na cruz, ladeado pela Virgem e por São João, e a mesma iconografia do Apostolado, preenchem o facial da cabeceira e o facial maior da esquerda, respectivamente, da arca tumular de Dom Gonçalo Pereira, um dos mais eloquentes (senão o mais eloquente de todos) exemplares da estatuária jacente episcopal da Idade Média portuguesa. Esta coincidência iconográfica serve-nos de pretexto para, depois de analisados os dois grupos episcopais de Coimbra e de Évora, passarmos à análise e caracterização dos monumentos funerários isolados, começando precisamente pelo do arcebispo bracarense, anterior de cerca de 6 anos ao do bispo de Évora Dom Pedro II. Décimo-sexto arcebispo da diocese de Braga (1326-1348), embaixador de Dom Dinis em Avinhão, auxiliar da rainha Dona Isabel na procura de uma solução de paz entre o rei e o filho desavindos, Dom Gonçalo Pereira foi bispo de Lisboa, em 1322, antes de ocupar a sede bracarense, em 1326. O seu túmulo, encomendado em 1334, foi colocado em capela anexa à Sé primaz. Fundada ainda em vida pelo prelado, começou a ser construída em Março de 1332, tendo as obras ficado concluídas dois anos depois19.

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fig.16 túmulo com jacente do arcebispo dom gonçalo pereira. facial da esquerda-pormenor. braga. sé-capela da glória. © projecto imago. fotografia de josé custódio vieira da silva fig.15 túmulo com jacente do arcebispo dom gonçalo pereira. braga. sé-capela da glória. © projecto imago. fotografia de josé custódio vieira da silva

Não deixa de ser, de alguma forma, surpreendente que apenas um monumento funerário com jacente dos arcebispos de Braga tenha chegado até nós. A importância da sede metropolita bracarense, o alcance social e simbólico da erecção destas arcas tumulares, impositivas da memória dos que nelas repousavam, permitiria supor que, a exemplo das Sés de Coimbra e de Évora, também a de Braga conservasse um conjunto significativo de jacentes episcopais. Tal, porém, não acontece. E, no entanto, o sarcófago do arcebispo Dom Gonçalo Pereira constitui-se em verdadeira excepção, tão mais surpreendente quanto representa um momento verdadeiramente único – pelo conhecimento do documento de erecção da correspondente capela funerária, pelo conhecimento do contrato estabelecido com os escultores, pela qualidade estética global e pela iconografia original – da escultura portuguesa do século XIV. O sarcófago onde foram depositados os restos mortais de Dom Gonçalo Pereira, exento, esculpido em pedra calcária de Ançã e seguindo a composição tradicional dos mais ricos túmulos medievais portugueses – arca paralelepipédica decorada nos quatro faciais, assente sobre seis leões e com jacente sobre a tampa –, resultou, inclusivamente do ponto de vista das opções iconográficas que o decoram, de um programa bem definido pelo próprio arcebispo, expresso no documento de registo oficial da encomenda que celebrou em Lisboa, a 11 de Junho de 1334, com os dois mestres das imagens, mestre Pêro, morador em Coimbra, e mestre Telo Garcia, habitante da cidade de Lisboa20 – interferência que terá reforçado a exclusividade dada neste túmulo às temáticas de ordem religiosa, sem nenhuma cedência ao profano (como acontece noutros casos, nomeadamente com a inclusão ou mesmo a dedicação exclusiva da arca à decoração heráldica)21.

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20. Para consulta deste contrato, tão mais original quanto é o único que até agora se conhece sobre uma encomenda deste tipo, vejam-se Manuel Monteiro (Monteiro 1980, 304). Carla Varela Fernandes (Fernandes 1997, doc. I) e José Custódio Vieira da Silva (Silva 2005, 74-75). 21. Para além do Calvário e do Apostolado, de que já falámos, a arca tumular de Dom Gonçalo Pereira, decora-se ainda com um originalíssimo coral de clérigos, que lhe ocupa o frontal da direita, e com o tema da Virgem com o Menino, representado no facial dos pés, para além dos animais apocalípticos, o Boi, o Leão, a Águia e o Anjo tetramorfos, que acompanham, aos pares, as figurações centrais (já identificadas) dos lados menores da arca.


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22. Este gesto dos pulsos cruzados com as mãos em suspenso concretiza um sinal da impotência, da incapacidade e da passividade de uma personagem totalmente isenta já de forças (Pasquinelli 2005) – gesto que parece acentuar a verdadeira condição de cadáver que este jacente de Dom Gonçalo Pereira corporiza, no que se distancia de forma subtil dos bispos de Coimbra e do seu tranquilo adormecimento eterno.

A qualidade revelada nestas representações da arca, nalguns momentos manifestamente superior – nomeadamente no Apostolado – às das figurações do túmulo da rainha Santa Isabel que se supõe ter-lhe servido de modelo, enforma de igual modo um jacente de grande dignidade, que, como já afi rmámos, é, indubitavelmente, o ponto culminante da modelação de jacentes episcopais na tumulária medieval portuguesa. O jacente de Dom Gonçalo Pereira, em decúbito dorsal, enverga vestes pontificais de grande aparato, inerentes à correspondente categoria arquiepiscopal, completadas por um báculo finamente lavrado, colocado sob o braço esquerdo. As mãos enluvadas do jacente, ostentando enormes jóias e anéis de pedrarias, cruzam-se pelos pulsos sobre o ventre, num gesto que, em comunhão com o fechamento dos olhos, corresponde a uma verdadeira representação de defunto22. A mitra, ricamente decorada com pedras preciosas (algumas formando composições semelhantes às dos anéis), orna a cabeça do arcebispo a qual, sem cabelo visível e apoiada sobre duas grandes almofadas com borlas nos cantos, é amparada delicadamente pelas mãos de dois anjos que, deitados sobre o ventre e com o olhar voltado para o alto, se alongam, com notória elegância, sobre a tampa, dos dois lados da almofada (onde pousam a mão disponível). No lado oposto, os pés do arcebispo descansam sobre as costas de um outro anjo, representado a meio corpo e de asas abertas, voltado para o exterior.

fig.17 túmulo com jacente do arcebispo dom gonçalo pereira. jacente. braga. sé-capela da glória. © projecto imago. fotografia de josé custódio vieira da silva

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fig.18 túmulo com jacente do arcebispo dom gonçalo pereira. jacente-pormenor. braga. sé-capela da glória. © projecto imago. fotografia de josé custódio vieira da silva

A qualidade deste jacente, quer ao nível da definição do rosto, ostensivamente marcado por vincos profundos próprios da meia idade, quer no que respeita ao naturalismo (quase verismo) com que se desdobram as pregas das vestes, nos dois sentidos, vertical e horizontal, é manifestamente superior à do bispo de Évora Dom Pedro II, a que já havíamos reconhecido um apurado nível técnico e estético. Esta afirmada diferença é ainda mais notória quando comparados os anjos que se dispõem à cabeceira de ambos os jacentes: os de Dom Gonçalo Pereira são, na verdade, dotados de um rosto notável, embora os de Dom Pedro II, pela posição e pelo olhar que adoptam, tomem, na sua condição actual, parte mais activa na leitura global da tampa. Em Lisboa, cuja diocese Dom Gonçalo Pereira, antes da sua nomeação para a arquidiocese bracarense, governou entre 1322 e 1326, também se conserva, na respectiva Sé, apenas um monumento funerário com jacente de um seu bispo. Embora hierarquicamente a diocese de Lisboa ocupasse um lugar inferior às de Braga, Évora e Coimbra, a afirmação da importância da cidade, ao longo do século XIV, faria pressupor um interesse maior dos seus bispos na execução de monumentos funerários

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23. Afirmação de A. Vieira da Silva, citado in Sousa 1951, 8.

fig.19 túmulo com jacente de bispo. lisboa. sé-casa do capítulo. © projecto imago. fotografia de josé custódio vieira da silva

adequados à importância do seu papel social e religioso. Prova da importância que Lisboa havia adquirido ao longo do século XIV é o facto de o rei Dom Afonso IV (1291-1357) ter mandado colocar o seu monumento funerário e o de sua esposa, de arcas decoradas e com jacente nas tampas, na capela-mor da Sé catedral de Lisboa, de que ordenara a reconstrução. Maior realce adquire, por isso, a não existência de monumentos funerários de outros bispos lisboetas, mesmo tendo em atenção a magnitude da destruição causada pelo sismo de 1755 na cidade e também na catedral. A arca do bispo de Lisboa guarda-se hoje na casa do capítulo do claustro da Sé, tendo sido para aí deslocada da capela de Santa Ana ou de Santo Amaro, situada no topo do braço norte do transepto23. De dimensões relativamente reduzidas, não apresenta qualquer decoração em nenhum dos quatro faciais. Assim, a importância do respectivo jacente, cuja escultura preenche todo o campo disponível da tampa, ganha ainda maior projecção. A identidade deste bispo continua desconhecida. O primeiro a propor uma identificação terá sido A. Vieira da Silva que, baseado na lápide encontrada sobre a arca aquando das escavações do altar de Santa Ana ou Santo Amaro, entendeu tratar-se do bispo Dom Soeiro II (1211-1233) (Sousa 1951, 8-9). No entanto, bastará a simples observação do jacente para de imediato se perceber que, dada a relevância da sua proposta estética, nunca poderá ser obra da primeira metade do século XIII. A escultura deste bispo ignoto é, além do mais, completamente original no panorama dos jacentes homónimos que temos vindo a analisar: desde logo pelo seu enquadramento arquitectónico – a cabeça protegida por um arco trilobado, cuja moldura define o espaço da inserção da estátua até ao supedâneo semicircular em que os pés se apoiam – que o integra na linhagem das esculturas das fachadas ou gigantes de uma qualquer catedral de inspiração francesa, de onde parece ter sido arrancada. Original é também a modelação das vestes episcopais: não só os pregueados são muito mais complexos, acentuados pelo contraste da mancha lisa das duas faixas do manípulo, como também o ondeado das vestes litúrgicas, sob a casula, goza de uma movimentação notável que se não verifica em nenhum dos jacentes congéneres até agora analisados. A maneira como as vestes caem, a forma como as dobras se desenvolvem e contrastam entre si, produz um efeito naturalístico de grande impacto. Este naturalismo ganha dimensões definitivas nos dois outros elementos que contribuem para esta originalidade de que vimos falando: a posição das mãos e o talhe do rosto. Em relação às mãos, enluvadas e, para além do anel episcopal, ornadas com grandes jóias de formato circular, como sucede com o bispo de Braga Dom Gonçalo Pereira, surgem-nos pela primeira vez numa posição activa: a mão direita, encostada ao peito, erguida em gesto de bênção; a esquerda, a meio do corpo, segurando com firmeza o báculo. O rosto largo mas de proporções condizentes com o corpo, apresenta, no seu talhe sóbrio, um naturalismo convincente, realçado de modo particular pelos dois traços enérgicos que, descendo do nariz, acentuam os lábios modelados num sorriso sereno. Os olhos, que se apresentam fechados, ganham, neste contexto, uma ambiguidade total, atendendo a que este é o primeiro jacente que, pela posição das suas mãos, adopta, como já dissemos, uma posição activa: o gesto de bênção da

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fig.20 túmulo com jacente de bispo. lisboa. jacente-pormenor. sé-casa do capítulo. © projecto imago. fotografia de josé custódio vieira da silva

mão direita, o báculo seguro pela mão esquerda contrariam a sua imagem de adormecido na morte – ambiguidades e contradições aparentes, já que o naturalismo da representação medieval não passava, nesta altura, por uma adequação total ao verismo de atitudes ou representações, antes pela adequação à imagem/mensagem que se pretendia transmitir. Trata-se, afinal, de mais uma das razões que contribuem para a grande originalidade deste jacente. Todas estas características apontam para uma cronologia de meados do século XIV, altura em que a cátedra lisboeta foi ocupada por três bispos de origem francesa: Dom Estêvão de La Garde (1344-1348), Dom Teobaldo de Castillon (1348-1356) e Dom Reginaldo de Maubernard (1356-1358). O segundo destes pontífices, Dom Teobaldo de Castillon, legou em testamento quantias valiosas para a realização de obras na catedral, após o terramoto de Agosto de 135624, circunstância que, em nosso entender, parece perfeitamente plausível (ou ao menos suficiente) para que se lhe possa atribuir este sarcófago guardado na casa do capítulo do claustro da Sé de Lisboa. Na verdade, o aspecto geral do seu jacente, conforme se depreende da

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24. Esta importante informação é avançada por Carla Varela Fernandes (Fernandes 2001, 95). No entanto, esta investigadora não levou até ao fim a identificação provável do bispo como sendo Dom Teobaldo de Castillon.


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fig.21 túmulo com jacente do bispo dom afonso pires. balsemão. igreja de são pedro. © projecto imago. fotografia de joana ramôa

análise que dele fizemos, não se integra propriamente nos modelos iconográficos que, desde o bispo Dom Tibúrcio de Coimbra, caracterizam este grupo social. Pensamos, pelo contrário, que as suas características formais o integram numa corrente internacional, possivelmente francesa, como parece comprovar a terminação, em elegante cabeça de dragão, da crossa do seu báculo, imitando formas semelhantes difundidas pela ourivesaria esmaltada de Limoges. A última representação de um jacente episcopal português dos séculos XIII e XIV pertence ao túmulo de Dom Afonso Pires, vigésimo bispo do Porto (1359-1372). A exemplo dos seus congéneres de Braga e de Lisboa, é também a única arca tumular decorada e com jacente de bispos da diocese do Porto que chegou até nós. Encontra-se Dom Afonso Pires tumulado na Igreja de São Pedro de Balsemão (Lamego), num sarcófago exento, de granito, composto de uma arca paralelepipédica, decorada em três faciais (um deles apenas num terço da sua superfície), assente sobre cinco leões e com figura jacente sobre a tampa. Na arca, as representações restringem-se à temática religiosa, corporizada na iconografia da Última Ceia, que ocupa todo o facial maior da direita; na do Calvário, restringida a um terço da superfície do facial maior da esquerda, e na da Coroação da Virgem, no facial da cabeceira. Para lá da considerável excepcionalidade da representação da Última Ceia (apenas repetida, no contexto funerário medieval português, no túmulo de João Gordo, na Sé do Porto e, integrada no ciclo da Paixão, no de Dona Inês de Castro, na igreja do Mosteiro de Alcobaça), é aqui a iconografia do Calvário aquela que maior originalidade revela, assumindo um lugar singular no quadro da tumulária nacional. Desde logo, pela deslocação da mesma de um dos faciais menores da arca (onde aparecera até então) para um dos faciais maiores,

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de que ocupa apenas parte, nele se inscrevendo como um selo. Depois, e este é o aspecto mais significativo, pelo modo como, na multiplicação do número de figuras presentes na cena da Crucifixão (acrescentando, às três tradicionais – Cristo, a Virgem e São João –, a figuração dos dois ladrões que com Cristo foram crucificados e, a coroar a composição, a do sol e da lua), o Calvário do túmulo do bispo Dom Afonso Pires se afasta do modelo iconográfico até então repetido, sem excepção, nos túmulos que o incorporam, anunciando, de certa forma, aquela que é a figuração culminante do século XIV no que aos Calvários diz respeito, a do túmulo da já citada Inês de Castro25. O jacente, em decúbito dorsal, enverga as vestes pontificais, sem qualquer decoração incisa, dotando-se, assim, de uma simplicidade, ao nível do trabalho da pedra, que lembra os bispos de Coimbra – embora nunca possamos esquecer o contributo final que era, em muitos casos, dado pela pintura. A casula cai em largas pregas horizontais que jogam, junto aos pés, com a verticalidade da alba que lhe está por debaixo e que nesta zona se revela. A cabeça, com mitra decorada com pedrarias, de onde sobressaem as orelhas muito desenvolvidas e um fácies bem definido a que o rasgamento dos olhos, bem abertos, confere um certo sentido orientalizante, repousa sobre duas almofadas, sem decoração nem borlas – uma de grande dimensão, na base, e outra mais pequena e em forma de losango, acompanhando, num pormenor de grande originalidade, o vértice da mitra. A mão esquerda do jacente agarra o báculo (bastante destruído), a direita (muito danificada) cumpriria o gesto da bênção. Assim, se por um lado este jacente de Dom Afonso Pires revela mãos pouco ágeis na modelação e dificuldades acrescidas pelo material escolhido – um granito de grão muito grosseiro a que só a cor (de que restam nítidos vestígios na cena da Coroação da Virgem) poderia dar, com outra clareza, a leitura dos temas enunciados –, por outro apresenta claramente uma atitude mais dinâmica do que a maioria dos restantes jacentes que temos vindo a analisar. Com efeito, à semelhança do que observámos no jacente de Lisboa, de que, por esse modo, se aproxima, o bispo do Porto faz-se representar verdadeiramente no exercício das suas funções e, nesta pose, sublinha ainda mais a passividade de todos os outros jacentes, particularmente dos de Coimbra e de Braga. De cada lado do jacente de Dom Afonso Pires, ao nível dos seus antebraços, encontra-se, como vimos nos jacentes de Dom Pedro II de Évora e de Dom Gonçalo Pereira de Braga, um anjo. Aqui, no túmulo de Balsemão, apresentam-se também em número de dois e sentam-se sobre a tampa, de costas voltadas para o exterior, numa posição surpreendente, com uma perna disposta para cada lado. Um pouco à maneira dos anjos do bispo eborense, de que relembramos o tom desafiante, estes que acompanham Dom Afonso Pires dirigem igualmente o olhar para o alto (estabelecendo, uma vez mais, a ligação entre o mundo terreno e o mundo sagrado) e colocam as mãos de modo a amparar, uma o ombro, a outra as vestes. Os rostos angélicos são de difícil leitura, dado o estado de deterioração da pedra e a dificuldade gerada naturalmente pela já referida grossura do grão do granito em que o túmulo se encontra esculpido. De qualquer modo, e apesar da certa desproporção que os define e do trabalho no geral limitado do ponto de vista técnico que revelam, estes

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25. Este estudo dirigido à iconografia do Calvário na tumulária medieval portuguesa foi já realizado por Joana Ramôa, em dissertação de Mestrado – A Iconografia do Calvário na Escultura Tumular Medieval Portuguesa. (Ramôa 2008).


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fig.22 túmulo com jacente do bispo dom afonso pires. jacente-pormenor balsemão. igreja de são pedro. © projecto imago. fotografia de joana ramôa

26. Neste contexto, este é mais um argumento a considerar em relação ao problema da identificação da arca tumular da rainha Dona Beatriz, conservada no Mosteiro de Alcobaça, e que, como já referimos, tem vindo a ser ultimamente identificada como sendo da rainha Dona Urraca (†1220), hipótese com a qual não concordamos. A precocidade das representações episcopais portuguesas não deixa grande margem de manobra (pese embora a possibilidade de haver sempre casos de excepção) para o aparecimento, nos princípios do século XIII, de uma arca com a monumentalidade, as representações iconográficas e um jacente de rainha como aquele de Alcobaça. Este é, de qualquer modo, um dos temas a ser desenvolvido por Joana Ramôa na investigação que se encontra a realizar no âmbito do Doutoramento. 27. Acrescenta este autor que em França só na primeira metade do século XIV os jacentes começam a ser representados com os olhos fechados, ao contrário de outras regiões como as já citadas de Inglaterra e Itália.

anjos não deixam de surpreender, por um lado, pela originalidade (já sublinhada) da posição que assumem e que lhes confere um tratamento interessante das costas, por outro, pela relativa delicadeza de que, apesar de tudo, parecem dotar-se os rostos no quadro geral de um trabalho bastante tosco. Num afastamento iconográfico relativamente aos dois jacentes episcopais que atrás referimos, o bispo assenta os pés, calçados e visíveis por entre as vestes, sobre dois cães pequenos, com coleira e sentados nas patas traseiras, de costas voltadas um para o outro – elemento igualmente de grande originalidade, quer porque, como pudemos observar, enforma uma situação singular no contexto da tumulária episcopal (sendo que nenhum outro bispo se faz acompanhar de cães, mais representativos do mundo senhorial laico), quer porque, concretamente estes animais que encimam a arca do bispo do Porto, se dotam das formas próprias dos cães que, no geral, acompanham os jacentes femininos, mais do que os masculinos, que tendem a rodear-se de canídeos de maior dimensão. A análise que acabámos de realizar dos onze jacentes episcopais dos séculos XIII e XIV existentes em Portugal, permite-nos, para concluir, alinhar algumas considerações. A primeira é a precocidade destas representações. Na verdade, e como já referimos, depois da arca tumular de Dom Rodrigo Sanches (†1245) – a primeira, em termos cronológicos, que se conserva no nosso país –, a segunda é a do bispo Dom Tibúrcio de Coimbra (c. 1253) e, logo após, as outras desta mesma catedral e também as de Évora. Confirma-se, assim, o sentido pioneiro que os membros do episcopado revelam no assumir da sua representação em arcas funerárias dotadas de jacente, nisto se aproximando do que acontecia, por norma, um pouco por toda a Europa26. A segunda consideração diz respeito à homogeneidade que, no essencial, todos estes jacentes revelam na sua representação, oferecendo-se como um verdadeiro modelo iconográfico. É verdade que há algumas variações, sobretudo nos gestos, mas esta circunstância, segundo pensamos, só acrescenta valor à densidade do sentido social que impregna todas estas representações episcopais. Aliás, é interessante fazer notar que as diferenças maiores dizem respeito aos jacentes isolados dos bispos de Braga, Lisboa e Porto, ganhando assim maior destaque a sua não inclusão num grupo como os que definem os bispos de Coimbra e de Évora. Procurou-se, conscientemente ou não, uma individualização que culmina na proposta, entre todas a mais original, do bispo do Porto Dom Afonso Pires, um exemplo interessante de como a novidade e originalidade iconográficas não andam necessariamente de mãos com a qualidade escultórica e estética. Pode-se, deste modo (e será a terceira consideração), falar de uma consciência assumida de pertença a um grupo. Todos estes jacentes (à excepção, uma vez mais, de Dom Afonso Pires) têm os olhos fechados, acompanhando, neste pormenor, o que sucedia em Inglaterra e em Itália (Recht 1999, 347-348)27. Trata-se, por conseguinte, do assumir da representação da morte cristã, proposta como exemplo aos cristãos, como se fora um último ensinamento catequético daquilo que é apanágio da função episcopal. Este pormenor ganha ainda maior consistência se pensarmos que os jacen-

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tes da nobreza em Portugal, tanto masculinos como femininos, se apresentam, por norma, de olhos abertos. Assim, os bispos assumem a representação do momento da morte, da passagem para o Além, como a imagem por excelência a deixar na memória dos vivos, numa verdadeira catequese da bem aventurança cristã que será dada em recompensa aos justos. O sorriso sereno que parece colorir o rosto de todos eles é o indício dessa felicidade eterna que, como bons pastores, deixam em exemplo aos seus fiéis. O dragão e o leão ou os anjos sobre que os seus pés repousam (e que não se repetem em jacentes de leigos), acentuam e esclarecem esta via de doutrinação – é a vitória do Bem sobre o Mal, o triunfo da virtude sobre o pecado. No Livro das Kalendas da Sé de Coimbra resume-se, de forma feliz e inédita, o sentido último destas representações escultóricas. Ao referir-se a capela de Santa Clara, mandada construir por Dom Egas Fafes de Lanhoso (†1268) na sua catedral para aí se sepultar, diz-se expressamente que este bispo «iacet honorifice intus in capella sancte Clare quam construi fecit in próprio monumento sculpto immagine episcopali»28. A representação, já aqui analisada, de Dom Egas Fafes, cuja imagem, esculpida no seu monumento, o representa nas suas funções episcopais, desvela a proposta fundamental contida nesta iconografia. O que se procura é o retrato social e não ainda individual; o que se esculpe, em monumentos de cada vez maior grandiosidade, é a imagem do estatuto gozado em vida e definível pelos respectivos atributos: no caso dos bispos, e para além dos paramentos pontificais, o anel, a mitra, o báculo, como estando no exercício das suas funções. A par, naturalmente, dos merecimentos estéticos e artísticos que estes monumentos atingem, é esta, talvez, a mensagem mais profunda destes corpos que, ambiguamente, jazem deitados mas se representam como de pé – uma, apenas, das muitas ambiguidades com que a imagem medieval se coloca perante os nossos olhos, num desafio constante à sua interpretação e compreensão.

Bibliografia BARROCA, Mário. 2000. Epigrafia Medieval Portuguesa (862-1422). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian/FCT. CARVALHO, Maria João Vilhena de. 2000. Jacente de D. Fernando Martins, bispo de Évora. O Sentido das Imagens. Escultura e Arte em Portugal [1300-1500]. Lisboa: Ministério da Cultura/Instituto Português de Museus/Museu Nacional de Arte Antiga. COELHO, Maria Helena da Cruz. 1990. O Arcebispo D. Gonçalo Pereira: um querer, um agir. Actas do Congresso Internacional da Dedicação da Sé de Braga. Vol. I, Braga. CORREIA, Virgílio. 1953. A escultura gótica em Portugal no século XIII. Obras. Vol. III. Coimbra: Universidade de Coimbra.

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28. LK, I, 138, p. 24. Cit. in Ventura 1998 151, nota 46. Cfr. também Silva 2005, 56-57.

fig.23 túmulo com jacente do bispo dom egas fafes de lanhoso. coimbra. sé velha. © projecto imago. fotografia de josé custódio vieira da silva


s c u l p to i m m ag i n e e p i s co pa l i

DIAS, Pedro. 1980. O Gótico. História da Arte em Portugal. Vol. 4. Lisboa: Publ. Alfa. Fernandes, Carla Varela. 1997. Imaginária Coimbrã dos Anos do Gótico. Dissertação de Mestrado. Lisboa: Faculdade de Letras. FERNANDES, Carla Varela. 2001. Memórias de Pedra. Escultura Tumular Medieval da Sé de Lisboa. Lisboa: IPPAR. JORGE, Ana Maria C M. 2000. Episcopológio (Catálogo dos bispos católicos portugueses). Dicionário de História Religiosa de Portugal. Lisboa: Círculo de Leitores. LANGHANS, F. P. de Almeida. 1966. Heráldica. Ciência de Temas Vivos. Vol. II. Lisboa: FNAT. LEONTINA, Ventura. 1998. Testamentária Nobiliárquica. Revista de História das Ideias. Coimbra. MACEDO, Francisco Pato de. 1995. O Descanso Eterno. A Tumulária. História da Arte Portuguesa (dir. Paulo Pereira). Lisboa: Círculo de Leitores. MONTEIRO, Manuel. 1980. Dispersos. Braga: Assembleia Distrital de Braga/ASPA. PASQUINELLI, Barbara. Il gesto e l’espressione. Collana I Dizionari dell’Arte. Milão: Electa, 2005. RAMÔA, Joana. Christus Patiens. Representações do Calvário na Escultura Tumular Medieval Portuguesa (século XIV). Lisboa, Instituto de História da Arte – Faculdade de Ciências Sociais e Humanas-UNL. RECHT, Roland. 1999. Le croire et le voire. L’art des cathédrales (XIIème-XVème siècle). Paris: Gallimard. SILVA, José Custódio Vieira da. 1997. Da Galilé à Capela-mor: o percurso do espaço funerário na arquitectura gótica portuguesa. O Fascínio do Fim. Viagens pelo Final da Idade Média. Lisboa: Livros Horizonte. SILVA, José Custódio Vieira da. 2003. O Panteão Régio do Mosteiro de Alcobaça. Lisboa: IPPAR. SILVA, José Custódio Vieira da. 2005. Memória e Imagem. Reflexões sobre Escultura Tumular Portuguesa (séculos XIII e XIV). Revista de História da Arte. 1. Lisboa: Instituto de História da Arte – Faculdade de Ciências Sociais e Humanas-UNL. SILVA, José Custódio Vieira da. 2009. A construção de uma imagem. Jacentes de nobres portugueses do século XIV. El Intercambio Artístico entre los Reinos Hispanos y las Cortes Europeas en la Baja Edad Media. León: Universidad de León. SOUSA, J. M. Cordeiro de. 1951. Os ‘Jacentes’ da Sé de Lisboa e a sua indumentária. Revista Municipal. Lisboa.

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Resumée La légende des Trois Maries, les demi-sœurs nées du trinubium de sainte Anne, fut largement diffusée à partir du XIIIe siècle par la Légende dorée de Jacques de Voragine. L’émergence précoce du culte et de l’iconographie des Trois Maries à Paris, à partir du milieux du XIVe siècle, a été favorisée par la rencontre entre un miracle de guérison, en ordre religieux: les Carmes, en quête de légitimation et une reine de France: Jeanne d’Evreux, dont la descendance fut exclue de la succession au trône. L’iconographie des Trois Maries, dont Jean Venette, auteur carme, raconta l’histoire dans un long récit versifié, est attestée dans les manuscrits et sur d’autres supports.

mots-clés iconographie de marie xivème et xvème siècle trois maries ordre des carmes joana de évreux

Resumo A lenda das Três Marias, as meias-irmãs nascidas do trinubium de Santa Ana, foi amplamente difundida a partir do século XIII pela Legenda Áurea de Jacques de Voragine. O surgimento precoce do culto e da iconografia das Três Marias em Paris, a partir de meados do século XIV, foi favorecido pela confluência de um milagre de cura, uma ordem religiosa à procura de legitimação – a Ordem do Carmo – e uma rainha de França – Joana de Évreux – cuja descendência fora excluída da sucessão ao trono. A iconografia das Três Marias, cuja história é narrada por Jean Venette, autor carmelita, num longo relato em verso, aparece em manuscritos e em outros suportes.

Agradecimentos por ajuda na configuração do texto e sugestões de Ana Catarina Sousa, Pedro Fialho de Sousa, Justino Maciel, Felix Teichner e Heidi.

palavras-chave iconografia mariana séculos xiv e xv três marias ordem do carmo joana de évreux


des histories de famille la dévotion aux trois maries en france du xiv e au xv e siècle textes et images

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cl au dia ra b e l Institut de recherche et d’histoire des textes (CNRS) Paris – Orléans

1. Cette recherche a été une première fois présentée le 12 juillet 2007 au International Medieval Congress à Leeds. Elle prolonge l’enquête, dont elle reprend des éléments, menée avec Hélène Millet: «Dévotion carme et premiers jubilés: la Vierge de miséricorde du Puy-en-Velay (début du XVe siècle)», actes du colloque Jubilé, jubilés, Le Puy-en-Velay, 2005, sous presse. 2. Matthieu 12, 46 et 13, 55; Marc 3, 31-32; Jean 7, 3 et 5. 3. La légende est déjà attestée au IXe siècle dans les Historiae sacrae epitome autrefois attribuées à Haymon de Halberstadt (PL 118, 824). Jacques de Voragine la rappelle à l’occasion de la fête de la Nativité de la Vierge (chap. 127). Beda KLEINSCHMIDT, Die heilige Anna. Ihre Verehrung in Geschichte, Kunst und Volkstum, Düsseldorf, Schwann, 1930, en particulier p. 252-262 (légende du trinubium).

Jésus avait des frères: les évangélistes le disent à plusieurs reprises2. Pour expliquer ces témoignages de l’Ecriture sainte, inconciliables avec la virginité de Marie, la légende s’en empara et créa autour du Christ une famille charnelle élargie avec des cousins, à partir du trinubium de sainte Anne, la mère apocryphe de la Vierge. Après la mort de Joachim, Anne aurait eu deux autres filles, elles aussi appelées Marie, nées de ses unions avec Cléophas puis Salomé (voir tableau 1). La tradition de ses trois mariages fut largement diffusée à partir du XIIIe siècle par la Légende dorée de Jacques de Voragine3. De ce fait, le Christ apparaît à la fin du Moyen âge issu d’un lignage matrilinéaire. Sur le modèle de l’ancien arbre de Jessé, dominé par les hommes, les artistes créent l’arbre de la parenté de sainte Anne, qui souligne le rôle des femmes dans l’histoire du salut4. A cette époque, la crise démographique contribue à revaloriser le mariage et la maternité; c’est dans ce contexte que se développe l’iconographie bien connue de la Sainte Parenté élargie, qui se déploie, surtout à partir de la fin du XVe siècle, dans des tableaux aux personnages toujours plus nombreux5. On sait beaucoup moins que le culte des Trois Maries, filles de sainte Anne, se développa dès avant le milieu du XIVe siècle à Paris, favorisé par la rencontre entre un miracle de guérison, un ordre religieux en quête de légitimation et une reine de France dont la descendance fut exclue de la succession au trône.

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4. Un des premiers exemples est peint dans un manuscrit allemand de 1417: Heidelberg, Universitätsbibliothek, Cod. Pal. Lat. 411, f. 36v (Amberg ou Heidelberg?), Bibliotheca Palatina, cat. exp. éd. Elmar MITTLER, Heidelberg, Braus, 1986, vol. 1, p. 190-191 (n.° E 1.2), vol.2, p.139 (fig. coul.). 5. Sur la Sainte Parenté: Martin LECHNER, «Sippe, Heilige», dans Lexikon der christlichen Ikonographie, dir. Engelbert KIRSCHBAUM et Wolfgang BRAUNFELS, vol. 4, Rome, Fribourg, Bâle, Vienne, Herder, 1972, col. 163-168; pour une mise au point récente: Pamela SHEINGORN, «Appropriating the Holy Kinship. Gender and Family History», dans Interpreting Cultural Symbols. Saint Anne in Late Medieval Society, éd. Kathleen ASHLEY et Pamela SHEINGORN, Athens, Londres, The University of Georgia Press, 1990, p. 169-198. 6. Stockholm, Musée national, B 1211, f. 207v, livre d’heures sans doute enluminé à Paris; Carl NORDENFALK, Bokmålningar fran medeltid och renässans i Nationalmusei samlingar, Stockholm, Rabén & Sjögren, n.° 29 p. 108-109 et pl. XIII. Le culte des Trois Maries est introduit à Chartres à la fin du XIVe siècle à la suite de la fondation de Charles V, cf. infra. 7. Marie, mère de Jacques le Mineur (Marc 15, 40) est traditionnellement identifiée à Marie Cléophas, sœur de la Vierge selon Jean 19, 25. Des sept enfants, seul Joseph le Juste ne fait pas partie des apôtres. 8. Seul Marc 16,1 nomme explicitement les trois saintes Femmes qui se rendent au Tombeau du Christ: «Maria Magdalene et Maria Iacobi et [Maria] Salome». 9. Victor LEROQUAIS, Les bréviaires manuscrits des bibliothèques publiques de France, Paris, s. n., 1934, vol. 1, p. CXI.

fig.1 les trois maries et leurs enfants. heures à l’usage de chartres, paris (?), 3 e quart xv e s, stockholm, musée national, b 1211, f. 207v

La naissance du culte des Trois Maries à Paris La miniature des Trois Maries avec leurs sept fils, dans un livre d’heures du troisième quart du XVe siècle à l’usage de Chartres, rappelle l’origine de ce culte6 (fig. 1). La Vierge à l’Enfant trône entourée de ses demi-sœurs avec leurs fils: Marie Salomé avec Jean l’évangéliste et Jacques le Majeur, et Marie Jacobé avec Jacques le Mineur, Joseph le Juste, Jude Thaddée et Simon7. La miniature précède la prière O nobile collegium sanctarum sororum trium, composée par Pierre Bernard, dit de Nantes. De 1328 à 1335 au plus tard celui-ci fut évêque de Saint-Pol-de-Léon en Bretagne. Très malade, il s’était retiré au Sud de Paris, à Chailly (aujourd’hui Chilly-Mazarin) près de Longjumeau où il y avait un prieuré des chanoines du Val-des-Ecoliers. Par cette prière il s’adressa aux saintes Marie Jacobé et Marie Salomé, sans doute après avoir appris les récents miracles opérés sur leur tombeau en Provence, aux Saintes-Maries-de-la-Mer près d’Arles. Les saintes lui apparaissent en son sommeil, le soignent d’onguents et lui promettent la guérison. La miniature du livre d’heures les montre comme des mères d’apôtres et des sœurs de la Vierge, mais les figure simultanément comme deux des Saintes Femmes qui, le dimanche de Pâques, s’étaient rendues en compagnie de Marie-Madeleine au tombeau vide du Christ8. Elles sont munies ici de véritables pots de médecine qui rappellent leur pouvoir thaumaturge, tout comme leurs habits blancs semblent rappeler l’événement pascal de la Résurrection, lorsqu’elles furent accueillies par l’ange (ou deux anges) d’un blanc éblouissant. A son réveil, Pierre de Nantes est guéri et accomplit le pèlerinage promis sur leur tombeau. Il compose également un office et fonde trois autels en l’honneur des Trois Maries, dans la cathédrale de Nantes, sa ville d’origine, à Longjumeau, et à Paris au couvent des carmes. Il est possible que sa guérison eût lieu vers 1342, date à laquelle la fête des Trois Maries, le 25 mai, devient fête double dans l’ordre des carmes9. En effet, nous connaissons l’histoire de Pierre de Nantes uniquement par Jean Fillons dit de Venette, frère carme au couvent de Paris. Il la raconte à la fin de son Histoire des Trois Maries, un long récit en vers achevé en 1357 et écrit à l’instigation d’un ami qui est peut-être Pierre de Nantes lui-même10. Cette promotion précoce du culte des Trois Maries s’insère dans la légende de fondation de l’ordre carme, élaborée à Paris à partir des années 128011. Il fut fondé comme ordre érémitique vers le milieu du XIIe siècle au Mont Carmel en Terre sainte, avant d’être assimilé en Occident aux ordres mendiants, à partir de 127412. Souffrant de l’absence d’un illustre fondateur historique, à l’instar des franciscains et des dominicains, les carmes faisaient remonter leurs origines beaucoup plus loin, jusqu’au prophète Elie de l’Ancien Testament. L’ordre, en la personne de saints ermites vivant au Mont Carmel, y aurait existé sans interruption depuis l’époque du prophète. Bien avant la naissance du Christ, ces ermites auraient voué un culte à la Vierge qui allait enfanter le Fils de Dieu. Leur vie au Mont Carmel est enrichie de détails pittoresques, rapportant entre autres que sainte Anne leur rendait visite avec ses filles et ses petits-fils. Les

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carmes, qui devaient régulièrement défendre leur droit de s’appeler «Frères de Notre Dame du Mont Carmel», pouvaient donc revendiquer une familiarité toute particulière avec les trois saintes Maries et avec la compagnie des frères apôtres, leurs enfants. Il est possible que la guérison de son ami Pierre de Nantes ait donné l’idée à Jean de Venette de «récupérer» les Trois Maries au profit de son ordre et de son enracinement légendaire en Terre sainte. Pour ce faire, il lui fallut opérer un subtil glissement. En Provence, Marie Jacobé et Marie Salomé étaient liées à Marie-Madeleine, formant avec elle le groupe des Saintes Femmes qui s’étaient rendues au tombeau du Christ. Selon la légende locale, pas antérieure à la fin du XIIe siècle, elles seraient venues de Terre sainte et auraient débarqué en Camargue en accompagnant l’illustre pécheresse repentie, sa sœur Marthe, son frère Lazare et Maximin13. De figures secondaires, Jean de Venette fait les protagonistes vedettes, auprès desquelles il remplace Marie-Madeleine par la Vierge, leur demi-sœur: ainsi, les deux Maries au pouvoir thaumaturge pouvaient être associées à la mère du Christ, patronne de l’ordre des carmes, et la nouvelle triade être promue et vénérée comme les filles de sainte Anne. Afin de valoriser les deux sœurs, il affirme pour l’arrivée de leurs corps en Camargue une légende indépendante de celle de Marie-Madeleine, en contradiction avec la tradition provençale. L’auteur de l’Histoire des Trois Maries leur crée une histoire propre, d’autant plus prestigieuse qu’elle passe par le siège de saint Pierre. A la recherche de son fils Jean l’évangéliste, Marie Salomé accompagnée de Marie Jacobé, quitte en effet la Terre sainte pour Rome. Ne l’y ayant pas trouvé, elles continuent leur voyage vers le Sud, puis meurent l’une après l’autre à Veroli où elles sont rapidement vénérées comme saintes14. Leurs reliques sont cédées à un chevalier provençal qui avait sauvé la ville attaquée par des Sarrasins. Il les translate en Camargue et les enterre solennellement dans la crypte de l’église qui deviendra celle des Saintes-Maries-de-la-Mer. L’auteur carme insiste sur le pouvoir des deux sœurs, qui se révèle plus grand que la volonté du prince: Robert d’Anjou, roi de Sicile et comte de Provence, ne put séparer les deux corps miraculeusement fusionnés et dut renoncer à translater l’un d’eux à Marseille. La promotion des Trois Maries, filles de sainte Anne, réussit car, aux dires de Jean de Venette, Pierre de Nantes leur fonda un bel autel, orné d’un tableau peint, dans la sacristie de l’église parisienne des carmes: Un bel autel aussi fonda A Paris, ou revestiaire Des Carmelistres le fist faire Et de ses mains le dedya Ou nom des suers ou se fya ; Belle painture et delittable Mist sur l’autel en une table15. La réputation des saintes dut vite se répandre car en 1347, leur fête est solennisée dans le diocèse de Paris et gratifi ée d’indulgences, accordées à tous ceux

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10. L’Histoire des Trois Maries est un long récit de 35 à 40 000 octosyllabes, divisé en deux livres; l’affirmation de l’auteur de l’avoir traduite du latin relève sans doute, au moins en partie, du topos littéraire. Le premier livre raconte l’histoire biblique et apocryphe jusqu’à la mort de la Vierge; le second relate la vie ultérieure de ses deux sœurs jusqu’à leur mort en Italie du Sud, la translation de leurs reliques en Provence, le miracle de Pierre de Nantes et le mécénat de Jeanne d’Evreux. L’œuvre est inédite, mais les passages se référant à l’histoire récente ont été publiés par plusieurs auteurs: Etienne-Michel FAILLON, Monuments inédits sur l’apostolat de sainte MarieMadeleine en Provence, Petit-Montrouge, Aux ateliers catholiques, 1848, t. I, col. 1316 et t. II, col. 945-950; Jean BONNARD, Les traductions de la Bible en vers français au Moyen Âge, Paris, Imprimerie nationale, 1884, p. 196-206; Alfred COVILLE, «Jean de Venette, auteur de L’Histoire des Trois Maries», dans Histoire littéraire de la France, t. 38, Suite du XIVe siècle, Paris, Imprimerie nationale, 1949, p. 355-404. La mise en prose par Jean Drouyn, datée de 1505 et plusieurs fois éditée au XVIe siècle, peut être consultée sur le site Gallica de la Bibliothèque nationale de France (http://gallica.bnf.fr/). Il est difficile de suivre les spécialistes selon lesquels l’auteur de l’Histoire des Trois Maries aurait eu un homonyme contemporain, carme à Paris et originaire de Venette près de Compiègne comme lui, auquel il faudrait attribuer la chronique latine de 1340 à 1368 (cf. Dictionnaire des lettres françaises. Le Moyen Âge, nouv. éd. dir. Geneviève HASENOHR et Michel ZINK, Paris, Fayard, 1992, p. 290-291 et 1452-1453). Coville, p. 358 identifie l’auteur des Trois Maries au Jean de Venette qui fut prieur du couvent de Paris, dès 1339 provincial de France puis provincial de Provence. 11. Rudolf HENDRIKS, «La succession héréditaire (1280-1451)», dans Elie le prophète, II, Au Carmel, dans le judaïsme et l’Islam, Paris, Desclée de Brouwer, 1956 (Etudes carmélitaines, t. 35, 2), p. 34-81. 12. Melchior de SAINTE-MARIE, «Carmel (Ordre de Notre-Dame du Mont-Carmel)», dans Dictionnaire d’histoire et de géographie ecclésiastique, t. 11, Paris, Letouzey et Ané, 1949, col. 1070-1104.


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13. Henri LECLERCQ, «Maries-de-la-Mer (Les Saintes-)», dans Dictionnaire d’histoire et de géographie ecclésiastique, t. 10, Paris, Letouzey et Ané, 1931, col. 2119-2128. 14. Jean de Venette se sert ici, à partir de sources qu’il reste à déterminer, de la légende de Marie Salomé, vénérée à Veroli depuis la découverte de ses reliques en 1209; A. COVILLE (cité n. 10), p. 392-395. 15. Paris, Bibl. nat. de France, fr. 1531, f. 221. 16. Paris, Bibl. nat. de France, fr. 1531, f. 222v223; E.-M. FAILLON (cité n. 10), t. II, n.° 148 col. 949-952. 17. Voir l’étude, non exempte d’erreurs, de Marie-Laure LEMONNIER, «Jeanne d’Evreux, reine de France (1310-1371), bienfaitrice des carmes», dans Connaissances de l’Eure, n.° 127, janvier 2003, p. 13-30; n.° 128-129, avril et juillet 2003, p. 65-75. 18. Il en fut de même pour les autres prétendants au trône, petits-fils de rois capétiens par leur mère: Edouard III d’Angleterre et Charles II de Navarre dit le Mauvais; cette décision fut à l’origine de la guerre de Cent ans et du conflit des Valois avec les Evreux-Navarre. 19. Françoise AUTRAND, Jean de Berry. L’art et le pouvoir, Paris, Fayard, 2000, p. 69-72. 20. Comme le montre un bois gravé des Heures à l’usage carme imprimées à Lyon (?) en 1516: Angers, Bibl. de l’Université catholique, imprimé non coté; bois utilisé plusieurs fois dès le f. 1. Les anciens historiens de Paris ont tous relevé les faveurs accordées par la maison royale au couvent des carmes depuis sa fondation; voir notamment Michel FELIBIEN, Histoire de la ville de Paris... Justifiée par des preuves authentiques..., éd. Guy-Alexis LOBINEAU, Paris, Desprez et Desessartz, 1725, t. I, p. 353-358 et t. II, p. 215-228 (preuves). 21. M. FELIBIEN (cité n. 20), t. II, p. 223 : charte de 1361 confirmant les dons faits lors de la dédicace de l’église des carmes en 1354; parmi eux figurait une statue d’argent de la Vierge à l’Enfant, contenant des reliques de son lait et des cheveux du Christ, qui dut ressembler à celle que

qui «festeront, o l’istoire d’elles prescheront, liront ou escouteront attentilment et devotement16».

Le rôle de Jeanne d’Evreux Cette nouvelle promotion des saintes est peut-être directement liée à l’entrée en scène de la reine Jeanne d’Evreux qui va devenir la véritable bienfaitrice des carmes parisiens17. De même, ce n’est sans doute pas un hasard si l’essor de la sainte parenté d’Anne eut lieu en France, au moment même où les descendants par les femmes étaient exclus de la succession au trône. En 1325, en effet, Jeanne d’Evreux, arrière-petite-fille de saint Louis, devint la troisième femme de Charles IV qui espérait enfin obtenir d’elle un fils héritier (voir tableau 2). Mais comme sainte Anne, la reine n’eut que trois filles. A la mort de Charles IV en 1328, Jeanne étant enceinte, le cousin du roi, fils de son oncle paternel, est nommé régent. Lorsqu’elle accouche d’une fille –Blanche, la future duchesse d’Orléans – il monte sur le trône et devient Philippe VI, premier roi Valois. Contrairement à la grand-mère du Christ et des apôtres, le lignage royal féminin fut donc refusé à Jeanne d’Evreux18. Mais pendant plus de quarante ans, jusqu’à sa mort en 1371, la dernière reine capétienne sera la doyenne, estimée et respectée, de toutes les femmes de caractère qui gravitent à la cour de France au XIVe siècle, artisane de la paix dans le conflit entre les Valois et les Evreux-Navarre. Ces reines et princesses, souvent devenues veuves jeunes, sont citées en exemple de bon gouvernement aux princes qui se querellent et se combattent19. Dans ce contexte, Jean de Venette ne dut guère avoir de mal à gagner le soutien de Jeanne d’Evreux pour promouvoir le culte des Trois Maries, «sœurs de noble lignage», modèle de conduite pour des vies exemplaires d’épouses, de mères ou de veuves, et modèle de piété, de sagesse et de bonne entente. Par son engagement auprès des carmes, Jeanne suit l’exemple de son arrière-grand-père saint Louis et perpétue ainsi la mémoire de la lignée des Capétiens. Car leur couvent parisien peut se vanter d’avoir été fondé par le saint roi lui-même qui, en 1254, rentra de Terre sainte avec six frères du Mont Carmel20. Depuis cette époque, le couvent fut comblé de dons et de faveurs par les rois, reines et princesses. Grâce à Philippe V, les carmes s’installent en 1318 place Maubert, sur la rive gauche près de l’université. Après une première chapelle, une église plus vaste est construite à partir de 1345 environ, largement financée par le don de joyaux et d’argent fait en 1349 par Jeanne d’Evreux. En 1354, elle se rend place Maubert pour assister à la dédicace de la nouvelle église, en compagnie de trois autres reines, ses nièces Blanche de Navarre, veuve de Philippe VI, Jeanne de Boulogne, femme de Jean II le Bon, et Jeanne, reine de Navarre21. Ce cortège de femmes n’est pas sans évoquer les visites que sainte Anne et ses filles auraient rendues aux frères ermites du Mont Carmel, telle qu’on le voit sur un des panneaux du grand retable des carmes de Francfort, peint par un maître flamand en 149322.

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L’autel des Trois Maries fondé par Pierre de Nantes se trouvait dans la sacristie détruite lors de la construction de la nouvelle église. Jean de Venette nous apprend que Jeanne d’Evreux le fit transférer à un endroit plus prestigieux, derrière le maître-autel dans le chœur des religieux. Il cite même le nom de l’artiste du nouveau tableau d’autel, un certain Maître Thierry, malheureusement inconnu par ailleurs, auteur de belles peintures des Trois Maries, représentées avec leurs fils et leurs époux: Dedens le cuer sont leur auteulz. Vous ne verrez jamaiz auteulz Telz ymages ne telz figures, Qu’i sont toutes les pourtraitures. N’y a celle ne gette un ris: Telles les fist maistre Thierris. Et ce fist faire la royne Jehenne d’Evreux qui tant fu fine […] Derrier le grant autel querez Au long du cuer la trouvez L’autel moult bel et les paintures Des Maries et les figures De leur maris et de leurs filx Tout y est mis, je vous affis Ne verrez maiz plus biaux ymages Si bien pourtraiz ne telz visages. Tout ce fist faire une grant dame23.

L’iconographie des Trois Maries Bien que le récit de Jean de Venette ne lui fût pas explicitement dédié, Jeanne d’Evreux dut certainement en recevoir un exemplaire. Mais parmi les manuscrits conservés, les plus anciens datent seulement des années 1380-1395. Ce sont trois copies parisiennes conservées à la Bibliothèque nationale de France qui permettent toutefois d’imaginer un luxueux manuscrit de dédicace, car ils possèdent tous l’espace réservé pour des miniatures non exécutées en tête de très nombreux chapitres. L’unique illustration du français 12468 présente les Trois Maries seules, debout côte à côte (f. 1); en transcrivant les rubriques, le copiste a conservé la mention des «ymages» ou «hystoires» de son modèle24. Dans les manuscrits français 1531 et 1532, l’iconographie de la miniature frontispice diffère elle aussi de la description de l’autel fondé par Jeanne d’Evreux (fig. 2 et 3). La Sainte Parenté s’y organise autour de la figure matriarcale, fondatrice de la lignée; Anne porte sur ses genoux la Vierge avec l’Enfant, ce qui ajoute le thème de sainte Anne trinitaire25. Ces deux

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Jeanne offrit en 1339 à Saint-Denis et qui est aujourd’hui conservée au Louvre. 22. Retable de la chapelle Sainte-Anne, aujourd’hui conservé au Musée historique de Francfort sur le Main; reproduit dans K. ASHLEY et P. SHEINGORN (cité n. 5), «Introduction», fig. 9-24. 23. Paris, Bibl. nat. de France, fr. 1531, ff. 115115v et 221. 24. Eva Lindquist SANDGREN, The Book of Hours of Johannete Ravenelle and the Parisian Book Illumination, Uppsala, Uppsala University Library, 2002, p. 86-87 et fig. 66. 25. Les manuscrits possèdent, en plus de l’illustration frontispice au f. 1, des miniatures de la Crucifixion et de la Dormition de la Vierge (fr. 1531, ff. 73 et 131v ; fr. 1532, ff. 79 et 144).


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fig.2 la sainte parenté, portrait d’auteur et destinatrice. jean de venette, histoire des trois maries, paris, fin du xiv e s. paris, bibl. nat. de france, ms. fr. 1531, f. 1

26. Les deux manuscrits appartenaient à Jacques d’Armagnac, duc de Nemours ; après la confiscation de ses biens ils passèrent dans la bibliothèque des Bourbons où leurs armoiries d’origine furent surpeintes. La fondation de la confrérie des Trois Maries au couvent parisien des carmes est mentionnée par Jacques DU BREUL, Le théâtre des Antiquitez de Paris, Paris, 1639, p. 431.

fig.3 la sainte parenté, portrait d’auteur et destinataires. jean de venette, histoire des trois maries, paris, fin du xiv e s. paris, bibl. nat. de france, ms. fr. 1532, f. 1

exemplaires jumeaux apparaissent étroitement liés au couvent parisien des carmes: par l’inclusion, à la fin, des indulgences déjà mentionnées, avec la précision que leur copie scellée s’y trouve, et par l’ajout d’un portrait d’auteur en tête du livre. Ils se ressemblent encore par la figuration des destinataires, une femme (fr. 1531) et un couple (fr. 1532), en marge du premier feuillet: faisaient-ils partie des laïcs dévots des Trois Maries qui, en 1401, obtiendront de Charles VI l’autorisation de fonder en l’église des carmes une confrérie en l’honneur des saintes sœurs26? L’intérêt porté aux Trois Maries par plusieurs membres de la famille royale est attesté dans la seconde moitié du XIVe et au début du XVe siècle. La manifestation la plus éclatante en revient à Charles V. La dévotion du roi a pu être stimulée par celle qu’il voua à la Trinité et dont les saintes sœurs forment, en quelque sorte, un pendant féminin, «auréolées» par leurs fils dont le nombre sept, hautement symbolique, évoque la perfection. En 1367 Charles V se rendit avec la reine Jeanne de Bourbon à

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fig.4 clercs chantant l’office devant l’autel des trois maries. guillaume durand, rational des divins offices (trad. jean golein), paris, 1374. paris, bibl. nat. de france, fr. 437, f. 180

Chartres, pour prier la Vierge de leur accorder la naissance d’un fils. A cette occasion, il fonda dans la cathédrale une chapelle dédiée aux Trois Maries, située sous le jubé, à gauche de l’entrée du chœur. Son autel était orné d’un groupe sculpté des saintes sœurs, et on y transféra la précieuse relique de leur mère, le chef de sainte Anne. Le missel destiné à cette chapelle rappelle la fondation royale et précise qu’un an après, en 1368, le premier fils du roi, le futur Charles VI, est né grâce à l’intercession des Trois Maries27. L’idée de cet acte de dévotion royal pouvait seulement provenir du milieu des carmes parisiens, dont les bons conseils auraient alors été à l’origine de la naissance du dauphin...! Un des intermédiaires a sans doute été Jean Golein, prieur du couvent parisien, confesseur de la reine et, surtout, un des plus prolifiques traducteurs au service de Charles V. En 1372 Golein acheva pour le roi la traduction française du Rationale divinorum officiorum de Guillaume Durand. Son influence expliquerait l’image insolite qui illustre le livre 5 dans l’exemplaire de dédicace de cette encyclopédie liturgique (fig. 4). Le livre 5 étant consacré à l’office, la miniature

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27. Chartres, Bibl. mun., ms. 591, f. 84v (ms. détruit); Yves DELAPORTE, «Une fondation du roi Charles V. Notes sur le culte de sainte Anne et des Trois-Maries», La voix de Notre-Dame de Chartres, 1914, p. 124-129.


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28. Paris, Bibl. nat. de France, fr. 437, f. 180 (Paris, 1374). Claudia RABEL, «L’illustration du Rational des divins offices de Guillaume Durand», Guillaume Durand, évêque de Mende (v. 12301296), canoniste, liturgiste et homme politique, actes de la Table ronde, Mende, 24-26 mai 1990, éd. Pierre-Marie GY, Paris, CNRS, 1992 (p. 171181), p. 178. 29. Paris, Bibl. nat. de France, fr. 2813, f. 446v (Paris, vers 1375-1377). 30. Une fondation de messes de 1431 (n.st.) le qualifie de «grant autel des trois Maries»; AubinLouis MILLIN, Antiquités nationales ou Recueil de monumens, t. IV, Paris, Drouhin, 1792, p. 24. 31. 1,46 m de haut sur 1,93 m de large. Sur cette œuvre, voir l’étude d’H. MILLET et C. RABEL citée n. 1 et dans l’ouvrage toujours fondamental de Paul PERDRIZET, La Vierge de miséricorde. Étude d’un thème iconographique, Paris, 1908 (Bibliothèque des Écoles françaises d’Athènes et de Rome, 101), p. 154-158 et 175-178 n.° 67, pl. XXI, fig. 2. 32. Nos conclusions vont ainsi à l’encontre de celles de Roger GOUNOT, «Observations et hypothèses concernant la Vierge protectrice du Musée du Puy (nov.-déc. 1417 ?) célébrant la fin du grand schisme», dans Gazette des BeauxArts, 83, février 1974, p. 75-88.

montre des clercs chantant devant un autel. Or cet autel est orné du groupe sculpté des Trois Maries avec leurs enfants, qui évoque certainement «l’autel du roi Charles» fondé dans la cathédrale de Chartres. La Vierge y allaite son Fils, peut-être par allusion à la maternité royale désirée28. Dans son manuscrit des Grandes Chroniques de France, Charles V a tenu à inclure, parmi les événements de son règne, une miniature de la procession de baptême de son fils29. L’enfant est porté par sa marraine, Jeanne d’Evreux. Ce choix et cette mise en scène ont été interprétés comme la volonté de souligner la continuité dynastique entre Capétiens et Valois. Ils révèlent peut-être aussi le rôle influent joué par la reine veuve, mécène des carmes et plaidant aux côtés de Golein pour la dévotion envers les filles de sainte Anne. Dans l’église des carmes de Paris, le «grant autel des trois Maries»30 fondé par Jeanne d’Evreux et décrit par Jean de Venette, devait être inaccessible aux membres de la confrérie fondée en 1401, car il se situait dans le chœur des religieux. Pour les célébrations en l’honneur des saintes sœurs, les confrères devaient donc disposer d’un autre autel dans l’église. Nous en ignorons tout, à l’exception de quelques témoignages artistiques indirects.

La Vierge au manteau du Puy-en-Velay Le premier de ces témoignages est une grande toile peinte, peut-être la plus ancienne en France, que possède le Musée Crozatier du Puy-en-Velay, en Auvergne31 (fig. 5). Il s’agit d’une Vierge de miséricorde du type Mater omnium, qui protège sous son manteau la chrétienté entière : le clergé à sa droite, du pape à la moniale, et les laïcs à sa gauche, de l’empereur à la femme du peuple. Cette Vierge au manteau, représentée ici avec son Enfant, est l’unique exemple connu où ce thème est associé à celui des Trois Maries: ce sont Marie Salomé et Marie Jacobé qui tiennent ouvert son manteau derrière lequel apparaissent leurs enfants, exceptionnellement représentés comme adultes. L’iconographie complexe de cette œuvre s’inscrit dans l’histoire religieuse et politique contemporaine. A l’époque du Grand Schisme, de la guerre de Cent Ans et des rivalités grandissantes entre les princes de la maison de France, cette Vierge de miséricorde propose une vision irénique de l’Eglise et invite la famille humaine à suivre l’exemple d’harmonie fraternelle de la famille de Jésus selon la chair. Le vaste manteau inscrit un trait d’union rassurant entre l’Eglise triomphante, la cour céleste des saintes sœurs avec leurs fils, et l’Eglise militante des vivants, priant aux pieds de Marie. Des éléments historiques, iconographiques et stylistiques indiquent que cette toile était destinée à l’église des carmes du Puy-en-Velay, haut lieu de pèlerinage marial; mais qu’elle a été peinte, dans la première décennie du XVe siècle, sans doute par un des nombreux artistes actifs à Paris dans la sphère des princes «des fleurs de lis»32. Le lien entre Paris et Le Puy a pu être établi par Nicolas Coq. Ce frère carme avait fait ses études de théologie à Paris et devint vers 1406 le prieur du couvent du Puy. C’était

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fig.5 vierge au manteau, paris, vers 1400-1410, le puy-en-velay, musée crozatier

un intellectuel qui avait le profil pour passer commande d’une œuvre aussi réfléchie. Pour la financer, il s’est sans doute adressé au puissant seigneur local, le vicomte de Polignac, Randon-Armand X. A ce bienfaiteur des carmes du Puy il manquait un héritier. Est-ce que Nicolas Coq lui avait raconté comment le roi Charles V eut un fils grâce aux Trois Maries? Le vicomte de Polignac fut-il incité par cet exemple à faire un acte de dévotion semblable envers les saintes sœurs? Cette hypothèse ainsi que des détails vestimentaires permettent de reconnaître le prieur Nicolas Coq et le vicomte de Polignac dans le frère carme et le seigneur en blanc, placés en bonne position et exactement en vis-à-vis sous le manteau de la Vierge33.

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33. Le seigneur en blanc, singularisé par sa représentation de profil, porte une élégante houppelande ornée de découpures alternativement blanches et rouges qui reprennent les couleurs des armoiries des Polignac, fascé: d’argent et de gueules.


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34. Londres, Brit. Lib., ms. Add. 18850, f. 150v; reprod. dans Eberhard KÖNIG, The Bedford Hours. The Making of a Medieval Masterpiece, Londres, The British Library, 2007, p. 108. Lisbonne, Musée Calouste-Gulbenkian, ms. LA 237, f. 258v (dit aussi Heures d’Isabelle de Bretagne, fille de Jeanne de France pour laquelle le manuscrit a été adapté ; Paris 1400. Les arts sous Charles VI, cat. exp. Paris, dir. Elisabeth TABURET-DELAHAYE, Paris, Réunion des musées nationaux, Fayard, 2004, p. 353-354 n.° 220 où le ms. est cité sous la fausse cote de LA 143). Vienne, Österreichische Nationalbibliothek, Cod. 1855, f. 145v ; reprod. dans Hermann J. HERMANN, Die westeuropäischen Handschriften und Inkunabeln der Gotik und der Renaissance mit Ausnahme der niederländischen Handschriften, 3. Französische und iberische Handschriften der ersten Hälfte des XV. Jahrhunderts, Leipzig, Hiersemann, 1938 (Beschreibendes Verzeichnis der illuminierten Handschriften in Österreich, VIII. Band : Die illuminierten Handschriften und Inkunabeln der Nationalbibliothek in Wien, Teil 3), p. 173-174, pl. LI. Je cite les manuscrits dans l’ordre chronologique proposé par Patricia STIRNEMANN (avec la collaboration de C. RABEL), « The ‘Très Riches Heures’ and two artists associated with the Bedford workshop », dans The Burlington Magazine, 147, 2005 (August), p. 534-538, en particulier p. 538. Les trois livres d’heures sont sortis de l’atelier du Maître de Bedford qu’on propose d’identifier au peintre Haincelin de Haguenau, attesté au service de Louis de Guyenne (voir en dernier lieu, E. König, op. cit., 2007).

La Vierge au manteau dans des livres d’heures royaux Non seulement les Trois Maries établissent un lien entre la Vierge du Puy, Paris et la famille royale, mais le thème de la Vierge de miséricorde en constitue un autre. En effet, trois livres d’heures parisiens étroitement apparentés, sans doute tous destinés à la famille royale et confectionnés à une date très proche, contiennent une miniature de la Vierge de miséricorde, sujet pourtant rare dans ce type de livres. Il s’agit des célèbres Heures du duc de Bedford à Londres, dont Patricia Stirnemann a montré qu’il faut y reconnaître un manuscrit commencé vers 1414-1415 pour un membre de la famille royale, très probablement le dauphin Louis de Guyenne (fig. 6); des Heures Lamoignon de Lisbonne, sans doute enluminées pour Jeanne de France, fille de Charles VI, et d’un manuscrit aujourd’hui à Vienne supposé avoir appartenu à Charles VII34.

fig.6 vierge au manteau, heures de bedford, paris, vers 1414-1415. londres, brit. lib., ms. add. 18850, f. 150v

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A cause du format allongé des miniatures, le clergé à gauche et les laïcs à droite se blottissent davantage en profondeur sous le manteau marial que sur la toile peinte. La Vierge, couronnée et sans voile comme au Puy, porte sur son bras droit l’Enfant nu drapé dans un linge, le globe qu’il tient le désigne comme roi céleste. Dans ces trois livres d’heures, elle est tout d’abord la protectrice des laïcs vers lesquels elle se penche en soulevant délicatement un pan de son manteau. Contrairement à la Vierge au manteau du Puy, une référence explicite à la maison royale française existe dans les Heures de Bedford. Il est tentant d’identifier au premier plan le roi vêtu du manteau fleurdelisé des souverains de France, à Charles VI; l’empereur à ses côtés est à la fois archétypal et historique: son manteau héraldique parti d’Empire et de France permet de reconnaître Charlemagne, ancêtre homonyme prestigieux du roi régnant. Derrière celui-ci s’aligneraient alors la reine Isabeau, leurs trois fils Louis (au col d’hermine), Jean et Charles, suivis de deux princesses. La miniature atteste à une date très précoce la superposition de la Vierge de miséricorde à la Vierge au croissant de lune, sur lequel elle se tient ici debout. Ce dernier thème, à connotation immaculiste, est né de l’identification avec Marie de la Femme de l’Apocalypse, enveloppée du soleil et couronnée d’étoiles35, la lune sous ses pieds, qui est sauvée du Dragon après avoir enfanté un fi ls. La famille royale se confi e ici à la protection d’une Vierge, reine céleste victorieuse qui triomphe de l’Ennemi: une image d’une puissante signification à un moment particulièrement noir de l’histoire du royaume de France. Malgré toutes leurs différences, la Vierge au manteau des Heures de Bedford partage avec celle du Puy un air de famille certain. Cette «parenté d’esprit» repose surtout sur un détail troublant: comme sur la toile peinte, l’enlumineur a brisé la symétrie que le sujet impose pour adopter un point de vue décalé qui favorise le «portrait de groupe» des laïcs, davantage montrés de face que le clergé. On peut même se demander si le mouvement ascendant des deux groupes dans la peinture du Puy, qui s’oppose à l’horizontalité stricte du manteau, ne traduit pas un modèle où la Vierge se tenait sur un croissant de lune comme dans les Heures de Bedford. Ne pourrait-on imaginer l’existence d’un modèle commun, aujourd’hui perdu? La confrérie des Trois Maries établie à partir de 1401 dans l’église des carmes à Paris n’aurait-elle pas commandé une œuvre qui aurait pu servir de modèle à la toile du Puy et inspirer, un peu plus tard, l’iconographie des livres d’heures royaux? L’écho lointain en est peut-être perceptible dans le seul témoignage matériel conservé de cette confrérie. Il s’agit d’une «paix» de cuivre doré qu’un certain «Jehan le Barbier orfèvre» offrit en 1468; sur la face antérieure, à l’intérieur d’un cadre orfévré, les saintes sœurs avec leurs enfants se détachent en bas-relief sur un fond bleu émaillé36 (fig. 7). La Vierge Marie porte l’Enfant vêtu d’une tunique assis sur son bras gauche, comme sur la toile du Puy; elle est debout sur un croissant de lune comme dans les Heures de Bedford. Comme les saintes sœurs assistant la Vierge de miséricorde, Marie Salomé est voilée d’un tissu léger dont l’extrémité plissée retombe sur son épaule gauche; ce dernier détail, ainsi que la figuration des deux groupes d’enfants – avec Jacques le Majeur en pèlerin – rapprochent le baiser de paix de la miniature des Trois Maries dans le manuscrit français 1532.

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35. Seulement dans les Heures Lamoignon de Lisbonne. 36. Paris, Musée national du Moyen Âge – Thermes de Cluny, Cl. 9188 (14 cm de haut sur 12 cm de large). Adrien de LONGPERIER, dans Journal des savants, 1874 (septembre), p. 599-600 transcrit la mention figurant au dos de l’objet: «L’an mil CCCC LX VIII donna ceste / paix Iehan le Barbier orfevre a la / confrarie des trois Maries dont / sa fille tenoit le baston / en ceste esglise des carmes de Paris». Thomas RICHTER, Paxtafeln und Pacificalia. Studien zu Form, Ikonographie und liturgischem Gebrauch, Weimar, VDG, 2003, p. 41 et n. 87 ignorait qu’il était toujours conservé; sa figure 19 reproduit une autre «paix» qui peut en être rapprochée stylistiquement.


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fig.7 les trois maries et leurs enfants. «paix» de la confrérie des trois maries dans l’église des carmes de paris, 1468. paris, musée national du moyen âge, thermes de cluny

La parenté de sainte Anne dans les Heures de Bedford Les Heures de Bedford tiennent leur nom du couple de possesseurs qui l’acquit au plus tôt en 1423. En cette année, Jean, duc de Bedford, régent du royaume de France et d’Angleterre, épouse Anne, fille du duc de Bourgogne Jean sans Peur. Parmi les remaniements du manuscrit, il y eut l’addition de leurs portraits. La miniature qui montre Anne de Bourgogne est une composition particulièrement élaborée, où l’ico-

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fig.8 anne de bourgogne en prière devant sainte anne trinitaire. heures de bedford, paris, vers 1423, londres, brit. lib., ms. add. 18850, f. 257v

nographie de sa sainte patronne a été élargie à celle de toute sa parenté (fig. 8). La duchesse est agenouillée en prière devant une sainte Anne trinitaire, dont les maris sont assis dans des cabinets d’étude superposés qui bordent la miniature à gauche: Joachim, Cléophas et Salomé. On peut suivre l’interprétation de Paul Payan qui identifie l’homme relégué derrière le fauteuil de la duchesse à saint Joseph. L’auteur montre qu’en insistant ainsi sur la lignée maternelle du Christ, l’iconographie affirme la légitimité d’un héritage par les femmes, ce qui justifiait les prétentions anglaises sur le trône du royaume de France37. En bas de page, deux couples encadrent les armoiries et les emblèmes de la duchesse, Marie Jacobé avec Alphée et Marie Salomé avec Zébédée. Leurs enfants occupent les médaillons marginaux des deux pages suivantes où se lit la prière à sainte Anne, aïeule d’une famille nombreuse. Mais malgré ses prières, la jeune épouse du duc de Bedford ne saura suivre son exemple puisqu’elle mourra en 1432 sans descendance, après avoir offert à Noël 1430 son livre d’heures à son neveu, le jeune roi Henri VI.

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37. Londres, Brit. Lib., ms. Add. 18850, f. 257v; reprod. dans E. KÖNIG (n. 34), p. 6. Paul PAYAN, Joseph. Une image de la paternité dans l’Occident médiéval, Paris, Aubier, 2006, p. 201-203.


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38. Les vitraux de Haute-Normandie, Paris, CNRS Editions, Monum, Éditions du patrimoine, 2001 (Corpus vitrearum. Recensement des vitraux anciens de la France, 6), Maria CALLIAS BEY, Véronique CHAUSSE, Françoise GATOUILLAT et Michel HEROLD, p. 36, 144; chapelle axiale, verrières des Deux Maries (baie 3) et de la Vierge au manteau (baie 4): p. 147 et 148 fig. 94; «verrière historique» (baie 213): p. 158-159, fig. 103. Un siècle après le mécénat de Jeanne d’Evreux, au couvent parisien des carmes, était-on encore conscient de son rôle dans la promotion du culte des Trois Maries dans la ville normande dont le nom est associé au sien?

Anthroponymie et iconographie témoignent de l’essor du culte de sainte Anne depuis le milieu du XIVe siècle. Encore absente du tableau d’autel des Trois Maries offert par Jeanne d’Evreux, elle est représentée dans les miniatures frontispices de l’Histoire des Trois Maries à la fin du XIVe siècle. Née en 1404, Anne de Bourgogne est la première des nombreuses princesses françaises du XVe siècle que leurs parents baptiseront du nom de la mère de la Vierge. Etait-ce une manière d’anticiper l’éventuelle absence d’héritier mâle et de pouvoir, dans ce cas, revendiquer la succession au profit de leur fille, en rappelant l’histoire de son homonyme illustre, la mère de la Vierge?

Les verrières de la cathédrale d’Evreux Après Charles V et Charles VI, leurs successeurs continuent à être associés à la dévotion aux Trois Maries, protectrices des rois Valois, cette fois-ci publiquement, dans des verrières de la cathédrale d’Evreux en Normandie38. L’ambiguïté de l’identité des Trois Maries: filles de sainte Anne ou Saintes Femmes des Evangiles, est résolue dans les quatre lancettes de la «verrière historique», qui se situe du côté nord dans la travée reliant le transept au chœur de la cathédrale (fig. 9). Elle a été offerte par les

fig. 9 les quatre maries. «verrière historique», cathédrale d’evreux, 1450

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vainqueurs de la bataille de Formigny en 1450, Pierre de Brèze et Robert de Floques. La verrière commémorait cette victoire, qui marqua la fin de la guerre de Cent Ans, et honorait l’entrée au trésor de la cathédrale des reliques des saintes Marie Jacobé et Marie Salomé. Ces reliques avaient été données en 1449 à l’évêque d’Evreux, Guillaume de Floques, par René Ier duc d’Anjou. Ce prince également comte de Provence vénérait les deux Maries, dont il venait de retrouver les corps, comme il vénérait aussi leur compagne Marie-Madeleine et sainte Marthe, dans le cadre de sa politique menée dans le Midi de la France39. A l’arrivée de leurs reliques à Evreux, les deux Maries sont de nouveau réinterprétées comme demi-sœurs de la Vierge et mères des apôtres. En même temps, les donateurs de la verrière préservent leur identification aux Saintes Femmes au Tombeau, en choisissant Madeleine pour la première des quatre lancettes40. En dessous des saintes, les places d’honneur aux pieds de la Vierge et de Marie Salomé, reviennent au pape Nicolas V41 et au roi de France Charles VII, alors que le dauphin et les deux donateurs sont agenouillés derrière le pontife. Comme un siècle plus tôt après la guérison miraculeuse de Pierre de Nantes, les saintes Maries provençales sont désinvesties de leur rôle de premiers témoins de la Résurrection du Christ, trop proches du mystère insaisissable de Pâques. Suivant une évolution générale de la piété à la fin du Moyen âge, elles sont «descendues sur terre», pour devenir des saintes plus proches des fidèles. Ces derniers invoquaient en elles des mères à la tête de familles modèles, bénies de nombreux fils illustres. Tout laïc en désirait, le roi de France en tête comme les deux donateurs, dont les familles se déploient dans le registre inférieur de la verrière. Il en allait de même pour le fils et successeur de Charles VII. Devenu roi, Louis XI voua une dévotion particulière à Notre-Dame d’Evreux. Peu après 1465 il fit magnifiquement rebâtir la chapelle axiale dédiée à la Vierge et la fit orner d’un ensemble de verrières réalisées vers 1467-1469. Parmi elles, nous retrouvons encore une fois les Trois Maries, mais disposées sur deux verrières qui se font face. Au Nord, au sein du vitrail consacré à l’histoire de sainte Anne, une lancette est occupée par ses deuxième et troisième filles accompagnées de leurs fils. L’insistance sur sainte Anne et sa descendance s’explique à un moment où Louis XI, avant la naissance de son fils Charles en 1470, se souciait de sa succession et avait cherché en vain à l’assurer à sa fille aînée Anne. En face, côté Sud, dans une des lancettes du vitrail du «Triomphe de la Vierge», une Mater omnium protège sous son manteau un petit groupe d’hommes où Louis XI est «empereur en son royaume», agenouillé directement face au pape Paul II suivi du cardinal Jean Balue, évêque d’Evreux42. Ici encore, iconographie et politique, démographie et parenté se trouvent étroitement liées.

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39. Christian de MERINDOL, Le roi René et la seconde maison d’Anjou. Emblématique, art et histoire, Paris, Le Léopard d’or, 1987, p. 99, 131, 202, 207. 40. La même solution a été adoptée dans un livre d’heures parisien enluminé dans l’entourage du Maître de Bedford, où l’ange de la Résurrection apparaît au tombeau vide du Christ à quatre Saintes Femmes: Lisbonne, Musée Calouste-Gulbenkian, LA 141, f. 217v. 41. L’identification du pape à Eugène IV, avancée par le Les vitraux de Haute-Normandie (n. 38), semble impossible, ce pape étant mort en 1447, avant les événements conduisant à la réalisation de la verrière. 42. Gary BLUMENSHINE, «Le vitrail du triomphe de la Vierge d’Evreux et Louis XI. Le patronage artistique des Valois dans la Normandie du XVe siècle», dans Annales de Normandie, 40, nos 3-4, 1990, p. 177-214.


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Tableau 1: Généalogie des Trois Maries

Tableau 2: Généalogie simplifiée des Capétiens et Valois En gras : principaux personnages mentionnés dans l’histoire du culte des Trois Maries Rois de France et de Navarre : date de début de règne soulignée

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Abstract The article presents new stylistic material in support of the discovery (in 2005) that the Bedford Hours were designed in the years 1414-1415, at the same time as the Très Riches Heures du duc de Berry. The Bedford Hours would appear to have been made for the dauphin, Louis de Guyenne, in light of the occurrence of several of his emblems under the principle miniatures, as well as the calendar programme, which is inspired by Ovid’s Fasti. The identification of the heraldry in the miniature of the history of the fleur de lis (f. 288v) by Michel Pastoureau demonstrates that the miniature also represents the coronation of Henry V in 1429 in the presence of Philippe le Bon, Anne de Bourgogne and John de Mowbray, duke of Norfolk and earl marshall.

key-words bedford hours louis de guyenne (emblems) prague ovid’s fasti john de mowbray (arms)

Resumo Este artigo apresenta novos indícios estilísticos que confirmam a descoberta (em 2005) de que as Horas de Bedford foram produzidas nos anos 1414-1515, ao mesmo tempo que as Très Riches Heures do Duque de Berry. As Horas de Bedford parecem ter sido realizadas para o delfim, Luís de Guyenne, como evidencia a presença de vários dos seus emblemas nas principais iluminuras, bem como o programa do calendário, inspirado nos Fasti de Ovídio. A identificação da heráldica na iluminura da história da flor de lis (f. 288v), por parte de Michel Pastoreau, demonstra que esta representa igualmente a coroação de Henrique V em 1429 na presença de Filipe o Bom, Ana de Borgonha e John Mowbray, duque de Norfolk e earl marshall.

Agradecimentos por ajuda na configuração do texto e sugestões de Ana Catarina Sousa, Pedro Fialho de Sousa, Justino Maciel, Felix Teichner e Heidi.

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les très riches heures et les heures bedford patricia sti r n e m a n n Institut de recherche et d’histoire des textes (CNRS) Paris – Orléans

1. Afin d’alléger le texte, les principaux personnages et manuscrits mentionnés au cours de l’article sont cité ensemble dans cette note. Les personnes Le dauphin, Louis de Guyenne, meurt le 18 décembre 1415 Jean duc de Berry meurt en le 15 juin 1416 Les trois frères Limbourg meurent l’un après l’autre en 1416, avant le duc de Berry Jean de Lancaster, duc de Bedford, épouse Anne de Bourgogne en 1423 Jean de Mowbray (1392-1432), second duc de Norfolk, earl marshall (1412-1432) Les manuscrits Les Très Riches Heures (Chantilly, Musée Condé, ms. 65) Les Heures Bedford (Londres, British Library, Additional 18550) Les Heures Lamoignon (Lisbonne, Musée Gulbenkian, ms. LA 237) Les Heures de Vienne (Vienna, ÖNB, cod. 1855) Le missel de Louis de Guyenne (Paris, Bibl. Mazarine, ms. 406 ; laissé inachevé en 1415) Le bréviaire de Louis de Guyenne (Châteauroux, BM, ms. 2 ; achevé vers 1413) New York, Pierpont Morgan Library, M453 (1415-1418 ?)

En 2005 Claudia Rabel et moi-même avons publié un article dans le Burlington Magazine où nous identifiions la main du Maître de Bedford dans les Très Riches Heures1. Nous avions placé ses interventions dans le manuscrit avant la mort du duc de Berry, soit avant 1416. Simultanément avec Catherine Reynolds, nous avions noté que le Maître de Bedford avait réutilisé dans les Heures Bedford plusieurs compositions provenant des Très Riches Heures. Pour des raisons stylistiques et emblématiques, nous avions argumenté que le destinataire d’origine des Heures Bedford était le dauphin Louis de Guyenne, qui mourut en décembre 1415. Or, la datation et le destinataire des Heures Bedford ont toujours posé problème. Plusieurs historiens avaient déjà noté que les portraits et armoiries de Jean et Anne de Bedford étaient des ajouts et que les légendes sous chaque feuillet semblaient avoir ajoutés lors du don du manuscrit au roi Henri IV d’Angleterre en 1430, par Anne de Bedford. On a donc proposé une datation autour de 1420-1423 pour le manuscrit; on a situé l’ajout des portraits Bedford autour de la date de leur mariage le 17 avril 1423; et enfin, on a considéré que l’ajout des images de l’Arche de Noé et de la Tour de Babel a eu lieu autour de 1430. Notre proposition de remonter la datation de tout le manuscrit en 1415 – sauf pour les parties spécifiquement en rapport au couple Bedford ou au jeune roi Henry IV – ne passait pas sans controverse, voire même quelques réactions violentes. Dans son commentaire pour le fac-similé des Heures Bedford et dans son livre grand public, Eberhard Koenig a cherché à démonter l’argument à plusieurs reprises. En juillet de cette année, à Londres, lors d’une journée d’études sur les Heures Bedford, nous avons formulé une réponse, appuyé par les arguments supplémentaires.

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Cet article a deux objectifs: présenter aussi clairement que possible le chemin de nos découvertes et expliquer la logique visuelle et contextuelle de nos arguments. Tout a commencé en 2003. J’étais en train de lire un nouveau livre sur le Bréviaire de Châteauroux par Inès Villela-Petit, un manuscrit commandé par le dauphin Louis de Guyenne, lorsque je me suis arrêtée sur une image de comparaison, un dessin inachevé dans un missel (Paris, Bibl. Mazarine, ms. 406). Ce missel était également destiné au dauphin, comme entémoigne le dessin des armoiries. François Avril avait attribué le feuillet au Maître de Bedford. On a alors conclu que le maître avait laissé le livre inachevé à la mort du dauphin, en décembre 1415, ce qui permettait de dater le feuillet vers 1415. Je me suis arrêtée sur l’image parce que je reconnaissais ce dessin comme l’image en miroir d’une miniature de la Messe de Noël (f. 158), dans les Très Riches Heures, que les frères Limbourg avaient laissé inachevée, à l’état de dessin, à la mort du duc de Berry, en juin 1416 (la peinture du dessin a été achevé par Jean Colombe vers 1485). Les deux images représentent la Sainte-Chapelle, comme le prouve le reliquaire géant flanqué d’escaliers dans les deux images. Celle des Très Riches Heures représente le duc de Berry assistant à l’apparition miraculeuse des anges apportant les sacrements lors de la messe de Noël dans la Sainte-Chapelle; celle du missel représente le dauphin assistant à une messe dans la Sainte-Chapelle. À ce stade se sont posés deux problèmes: qui a dessiné la miniature dans les Très Riches Heures, et lequel des deux dessins est le premier? Qui copie qui? Qui a eu l’idée? Le début d’une réponse se retrouvait non pas dans les miniatures mais dans quatre bordures ajoutées aux images des frères Limbourg (f. 86v, Raymond Diocrès; 152v, Crucifixion; f. 158, Messe de Noël; f. 182, Résurrection). C’est l’œil qui cherche qui voit. J’ai regardé attentivement la seule bordure peinte, celle qui entoure la miniature de l’histoire de Raymond Diocrès (f. 86v). Elle est, en fait, peinte par deux artistes: un artiste du début du XVe siècle s’est occupé des tiges, de la flore et des oiseaux; et Jean Colombe à la fin du siècle a peint les scènes. Spontanément j’ai eu l’intuition de comparer cette bordure avec celles des Heures Bedford reproduites dans le livre de Janet Backhouse. Deux oiseaux dans la bordure entourant la miniature de Raymond Diocrès, un paon et un faisan, se retrouvent successivement dans la bordure de la Trinité et de la Crucifixion des Heures Bedford. J’avais la preuve que c’était le Maître de Bedford lui-même qui avait dessiné quatre bordures dans les Très Riches Heures, et avait partiellement peint celle de Raymond Diocrès. Notre trouvaille a été présentée le 8 juin 2004 au colloque organisé par Eberhard König, à Berlin, en l’honneur de François Avril. Lors de ce même colloque, Catherine Reynolds a démontré que le Maître de Bedford avait emprunté quatre compositions des Très Riches Heures pour ses miniatures des Heures de Bedford, et pour ma part, j’en ai trouvé encore une. Mais les deux questions subsistaient: qui a dessiné la Sainte-Chapelle dans les Très Riches Heures, et lequel des deux dessins – celui des Très Riches Heures ou celui du missel de la Mazarine – est le premier?

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2. Les petits dragons, placés près des arcs en haut de la miniature, sont une signature des frères Limbourg.

Après le colloque en 2004, une longue joute logique s’ensuivait entre Claudia et moi ainsi que Catherine Reynolds et Nicole Reynaud. Nicole a bien remarqué que nulle part ailleurs à Paris au début du XVe siècle il existait une conception aussi large, aussi novatrice. On a brisé l’axe de la Sainte-Chapelle au milieu afin de montrer les deux extrémités en même temps. Millard Meiss avait déjà repéré les petites copies de la Messe de Noël, adaptées pour illustrer l’office des morts, dans toute une suite de manuscrits peintes vers 1420 par le Maître du Hannibal de Harvard, un artiste dans l’entourage du Maître de Bedford. Là, déjà, se trouvait, indirectement, la réponse, mais je ne l’avait pas encore compris: les copies “secondaires” de ce petit maître reprenaient toujours les détails de la version des Limbourg (orientation, toit au-dessus de la sculpture, clercs en train de chanter dont un observe les anges), jamais ceux du Maître de Bedford. Comme je m’en apercevrai plus tard, la conception spatiale novatrice appartenait bien aux Limbourg2. Bedford avait dû faire une copie fidèle, tracée ligne par ligne, qu’il avait gardé dans son atelier. Dans sa version de la Mazarine, il a eu le génie de renverser la scène, pour adapter l’image à un feuillet recto, mais cette version n’a eu aucune postérité. Lorsque Bedford peint une image de la Sainte-Chapelle, durant les années 1420 pour les Bedford dans un pontifical, il la présente de manière frontale. Le manuscrit, qui périt dans une incendie au XIXe siècle, est connu par un

1. pontifical bedford (fac-similé du xix e s.). paris, vers 1430

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fac-similé. On voit que le banc énigmatique dans les Très Riches Heures s’y trouve de nouveau, comme une sorte de coffre à livres devant le lutrin. Le Maître de Hannibal l’a converti en cercueil.

La relation entre les Très Riches Heures et les Heures Bedford Comme je l’ai déjà dit, Catherine Reynolds avait identifié quatre compositions dans les Heures Bedford empruntées aux Très Riches Heures, reprises avec une grande exactitude; tous ces emprunts provenaient des quatre cahiers où le Maître de Bedford avait dessiné les bordures. La précision des emprunts militait pour une copie directe sur les Très Riches Heures, bien que les reprises ultérieures dans d’autres manuscrits indiquaient que le maître avait effectivement enrichi son carnet avec au moins une douzaine de dessins. Le paon dans la bordure de Raymond Diocrès a la particularité d’engager son cou dans le feuillage. Selon mes recherches actuelles, ce paon, pris au cou, ne se trouve que dans les Très Riches Heures et les Heures Bedford. C’est un motif avec une très courte vie et illustre de nouveau la proximité entre l’intervention du Maître de Bedford dans les Très Riches Heures et la réalisation des Heures Bedford. Or, la question se posait: quand le Maître de Bedford a-t-il eu les cahiers inachevés des Très Riches Heures entre ses mains? Avant la mort du duc de Berry ou longtemps après, vers 1420 par exemple? Pour répondre à cette question, je voulais savoir si on pouvait déterminer plus précisément l’ordre des interventions artistiques dans les Très Riches Heures. Utilisant le CD-rom des Très Riches Heures et les travaux de Millard Meiss, j’ai fait une étude globale de tous les artistes qui ont participé à l’élaboration de l’enluminure, depuis les miniatures jusqu’aux bouts-de-ligne. J’ai distingué trois campagnes successives pendant le premier quart du XVe siècle et, dans chaque campagne, j’ai remarqué que les artistes des initiales travaillaient en équipe avec les enlumineurs qui exécutaient les bouts-de-ligne. Dans l’équipe du Maître de Bedford se trouve un enlumineur qui a réalisé les bouts-de-ligne et un autre qui a peint les initiales. Ce dernier a également peint plusieurs bordures dans les Heures Bedford. Or dans les initiales peintes par cet artiste dans les Très Riches Heures, on observe trois fois les armoiries et emblèmes du duc de Berry (ff. 168v, 182v, 189). Ceci est une preuve irréfutable que l’équipe du Maître de Bedford a bien participé à la réalisation des Très Riches Heures du le vivant du duc. Si le duc était déjà décédé, le peintre aurait simplement rempli l’initiale avec des fleurs ou de l’ornement, à l’instar de Jean Colombe à la fin du siècle. Mon raisonnement est donc le suivant: vu la proximité des motifs des paons et celle des emprunts iconographiques entre les Très Riches Heures et les Heures Bedford, ainsi que la présence dans les Très Riches Heures des armoiries et des emblèmes du

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3. C’est la date proposée par F. Avril dans le catalogue Paris 1400, p.353, n.° 220. 4. Voir Paris 1400, cat. n.° 182, pour une reproduction de la Crucifixion au f. 213A verso. 5. Hermann Julius Hermann, Die westeuropäischen Handschriften..., 1938, p. 172. 6. S. Nash a déjà proposé une datation aux environs de 1415-1420 pour les Heures Lamoignon en raison du traitement des marges (S. Nash, L’histoire du Livre d’heures de Jacques II de Chastillon, Art de l’enluminure, 2, 2002, n. 21, p. 104. Je remercie François Avril pour cette référence.

2. livre d’heures. prague, fin xiv e s. prague, musée narodni, knm v h 36, f. 2

duc de Berry peintes par l’équipe du Maître de Bedford, les Heures dites Bedford ont été, en réalité, enluminées non pas en 1420 à 1424 mais dans les années 1414-1415. Reculer une datation de six à dix ans n’est pas normalement une affaire d’état. Mais dans le cas des Heures Bedford, une telle proposition remet en question la chronologie de plusieurs autres manuscrits, notamment les Heures Lamoignon et les Heures de Vienne qu’on a toujours considérées comme des œuvres réalisées vers 14203, antérieures aux Heures Bedford, et préparatoires aux solutions des années 1420. Cela remet également en question la datation des œuvres de toute la suite de l’atelier Bedford, notamment l’artiste de Morgan 453. Si nous replaçons les Heures Bedford aux années 1414-1415, elles doivent refléter en plusieurs points ce moment fort dans l’histoire de l’enluminure française. Je souhaiterais ajouter trois arguments supplémentaires pour étayer une re-datation des Heures Bedford et de toute la chaîne qui s’ensuit. Notons, tout d’abord, qu’il existe de très fortes similitudes entre les Heures Bedford et l’œuvre du Maître de Bedford, lui-même, autour de 1413-1414, ce qui est, à mon sens, le point le plus probant. La parenté de style du Maître de Bedford dans les Heures Bedford avec d’autres œuvres qu’il a peintes vers 1414-1415 s’illustre pleinement par une comparaison avec la Crucifixion du Missel de Saint-Magloire (Paris, Bibl. de l’Arsenal, ms. 623, datable peu après 1412)4. Cette même observation a déjà été faite en 1938 par Hermann, au sujet des Heures de Vienne5, et s’applique également aux Heures Lamoignon. Le style et l’iconographie des trois livres d’heures sont très proches et tous les trois ont été certainement mis en chantier à la même époque6. Un second argument est d’ordre vestimentaire. Le début du XVe siècle a connu un faste extraordinaire et ses excès de mode notoires me semblent très présents dans plusieurs miniatures des Heures Bedford. Celle au feuillet 96, représentant la femme adultère

3. bréviaire de châteauroux, f. 48v paris, vers 1413

4a et b. très riches heures, f. 60 et 36. paris et bourges, 1411-1416

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5. heures bedford, f. 221v. paris, 1414-1415

Bethsabée, rentrant rapidement chez elle, pieds nus, son corsage défait, jouant avec ses doigts pour éviter le regard de son mari, me semble emblématique. Le collier à pendants, par exemple, et le chapeau rouge extravagant que portent Uri sont les attributs des quinze premières années du siècle et ne trouvent pas d’équivalent dans les années 1420. Des parallèles très proches se trouvent dans le calendrier des Très Riches Heures. Un troisième argument concerne les initiales ornées. Les initiales elles-mêmes sont assez banales, au feuillage stéréotypé en bleu, blanc et rouge sur fond doré. Mais lorsque la terminaison d’une lettre se prolonge vers la gauche, le Maître de Bedford a ajouté une terminaison florale qui naît d’une petite corolle. Or, ce genre de prolongement floral est inconnu à Paris avant 1410. On le trouve pour la première fois dans le Bréviaire de Louis de Guyenne à Châteauroux (sans la corolle) et dans les Très Riches Heures, où ces extensions contemporaines sont toujours ajoutées après-coup, après que l’initiale ait été peinte, comme on le voit dans les Très Riches Heures lorsque l’initiale est arrondie à gauche et l’extension flotte dans la marge. L’inspiration de ces extensions provient très vraisemblablement d’un artiste pragois ou des manuscrits enluminés à Prague qui se trouvaient à Paris vers 1411 ou 14127. Par la suite, ces extensions semblent avoir été favorisées par un petit cercle d’artistes, le cercle du Maître de Bedford. Le quatrième argument concerne à nouveau Prague, et indirectement l’Italie. A la fin du XIVe siècle dans quelques manuscrits des régions de Padoue et de Venise, les artistes s’amusent à faire métamorphoser les feuilles d’acanthe en dragon. Presque aussitôt, on trouve des acanthes transformées en dragon dans les manuscrits pragois. Et sous l’une des miniatures les plus anciennes des Très Riches Heures, exécutée sans doute aux alentours de 1412, une feuille d’acanthe se change en un dragon doré attrapant un serpent. La même astuce se retrouve dans les Heures Bedford. Un dernier motif pragois adopté uniquement par le Maître de Bedford est un oiseau à long cou hérissé qu’on trouve dans les manuscrits pragois de la première décennie du XVe siècle. Il se retrouve dans le Bréviaire de Châteauroux, dans les Heures Lamoignon et à maintes reprises dans les Heures Bedford, où, à terme, le Maître combine les motifs, qui avaient auparavant un aspect héraldique, dans une sorte de commentaire sur la violente mutation de la trahison dans l’image de l’Arrestation: la tige végétale se transforme en dragon, puis en cou hérissé et tête d’animal. L’oiseau au cou hérissé est un motif à nouveau confiné au cercle de Bedford, notamment dans Morgan 453.

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6. giovanni di andrea, padoue, 1396. padova, b.c., ms. a.5

7. Citons à titre d’exemple l’artiste pragois qui a peint à Paris un manuscrit des Grandes Chroniques de France pour Charles VI, Paris, BNF, fr. 2608 (Paris 1400, cat. n.° 168) ou celui qui a peint la Vie et l’office de saint Eligius, Paris, Bibliothèque historique de la Ville de Paris, ms. réserve 104 (Prague, p. 79, fig. 6.6). Réciproquement, pendant la première décennie du XVe siècle, quelques enlumineurs à Prague démontrent une connaissance directe des styles parisiens.


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8. très riches heures, f. 38v. paris et bourges, 1411-1416

7. martyrologe de girona, prague, vers 1410. musée diocésan de girona, md 273, f. 36v

10. bible de konrad de vechta, prague, 1402-1403. anvers, musée plantin-moretus, cod. ms. 15-1, f. 1

9. heures bedford, f. 249v. paris, 1414-1415

11. bellifortis, avec devises de wenceslas iv, prague, 1405. göttingen, u.l., 2.° cod. ms. philos. 63 cim., f. 85

12. heures bedford, f. 199v paris, 1414-1415

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Il existe donc un milieu très restreint à Paris où, pendant quelques mois, un petit nombre d’artistes a eu accès à des manuscrits provenant de Prague. À part le Maître de Morgan 453, l’intérêt de ces artistes pour les nouveautés pragoises n’a pas été très long et définit un point précis dans le temps, entre 1412 et 1415.

Les emblèmes Les bordures de la plupart des feuillets dans les Heures Bedford comportent des médaillons historiés accompagnés d’un abondant assortiment de fleurs, d’animaux et d’oiseaux. Certains de ces motifs apparemment ornementaux nous semblent imbus d’une valeur emblématique ou symbolique, soit en raison de leur nombre répété, soit en raison de leur placement sur le feuillet au centre, sous la miniature. L’usage des emblèmes ou devises par les membres des familles royales en Europe commence en Angleterre aux environs de 1330. En France la pratique atteint son apogée sous le règne de Charles VI. Certaines devises sont bien connues, comme l’ours et le cygne navré de Jean de Berry, le rabot de Jean sans Peur, le cerf blanc de Charles VI. D’autres restent à deviner ou à dévoiler grâce à la répétition d’un motif sur les objets ou dans les livres, où grâce à leur mention dans les comptes ou les inventaires. L’exposition Paris 1400 en 2004 a stimulé un renouveau d’intérêt pour les devises royales et c’est ainsi que nous avons suggéré dans l’article de 2005 que certains motifs dans les bordures des Heures Bedford pouvaient être identifiés aux emblèmes de la famille royale de France, et plus particulièrement aux devises du dauphin Louis de Guyenne. Par la suite, nous avons consulté la thèse de Laurent Hablot, soutenu en 2001 à l’université de Poitiers: La devise, mise en signe du prince, mise en scène du pouvoir. Les devises et l’emblématique des Princes en France et en Europe à la fin du Moyen Age. Hablot a trouvé comme devises de Louis les figures suivantes: le genêt, le paon, l’épervier, l’églantine et l’aubépine, branches de mai, un soleil rayonnant. Son mot était: de bien en mieux, son chiffre la lettre L ou les lettres LM (Louis et Marguerite) et ses couleurs étaient vert et blanc ou rouge noir et blanc. L’EPERVIER – Louis est le seul membre de la famille royale à avoir comme devise l’épervier, qu’il adopte en 1409. Cet oiseau revient dans les bordures des Heures Bedford vingt-quatre fois, bien plus fréquemment que tout autre oiseau. Il est toujours petit, de la taille des autres oiseaux, mais il est partout. C’est son nombre qui frappe, ainsi que sa place privilégiée sur certains feuillets. On retrouve l’épervier dans le bréviaire de Louis à Châteauroux, dans son livre de Térence, dans le missel à la Mazarine, et enfin dans un manuscrit de Gaston Phébus (Paris, BNF, fr. 616) qu’aurait pu lui appartenir, comme l’a noté F. Avril récemment8. LE PAON – Le paon ne revient que cinq fois, mais toujours dans un lieu fort. Un mâle et une femelle imitent les poses de saint Jean et la Vierge dans le médaillon de la Crucifixion au f. 19 et un magnifique paon accompagne les éperviers et le coq à la Visitation au f. 54v. LE GENET – Le genêt est l’emblème de l’ordre du Genêt, fondé d’après la légende en 1234 par saint Louis. La devise est employée par plusieurs membres de la famille

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8. F. Avril et W. Voelkle, Gaston Phoebus: Le Livre de Chasse, MS M. 1044, The Pierpont Morgan Library, New York, Commentaire du fac-similé, vol. 2, Lucerne, 2006, p. 156-157. 9. I. Villela-Petit a attiré l’attention sur le coq et l’écrit de Christine dans son livre sur le bréviaire de Châteauroux.

royale au début du XVe siècle. Charles VI a remit le collier de l’ordre à son fils Louis en 1399 lorsque l’enfant n’avait que deux ans. On trouve la devise à la Nativité (f. 65) et à la Fuite en Egypte (f. 83). Le motif ne revient pas dans les autres manuscrits du Maître de Bedford et n’est pas un motif stéréotypé de son répertoire. LE COQ – Le coq s’observe deux fois dans les lieux prestigieux, sous la Visitation et la Vierge de miséricorde (f. 150). Le coq n’est pas un oiseau hors du commun dans le grand assortiment de volatiles qui peuplent les bordures au début du XVe siècle, mais en 1413 Christine de Pizan a écrit pour le dauphin un ouvrage politique, aujourd’hui perdu, intitulé l’Avision du coq9. Le coq revient trois fois dans les marges du missel de Louis de Guyenne et dans son bréviaire. L’ IRIS – L’iris est une fleur du répertoire du Maître de Bedford, mais elle se trouve deux fois dans un lieu significatif. Un grand pied d’iris s’épanouit sous la miniature des vêpres de l’Office des morts au f. 120. L’iris est l’équivalent héraldique du lys et ici elle fait écho aux fleurs de lys sur le catafalque du cercueil. La seconde occurrence est plus ludique. Sous la miniature de la Pentecôte (f. 132) dans les heures du Saint Esprit, deux putti chevauchent les balais et joutent autour d’un arbre de mai d’où est suspendu un écu avec une branche de mai. Les iris qui environ nent leurs têtes ressemblent à des ailes. Nous avons ici très probablement une allusion ludique à l’éducation des jeunes princes de la fleur-de-lis. La fleur de lis a été glosé depuis le XIII e siècle, et selon Guillaume de Nangis et

13. heures bedford, f. 132, paris, 1414-1415.

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l’auteur anonyme de la Vie de saint Denis, les trois pétales du lys signifient foi, sapience et chevalerie (fides, sapientia, militia). Deux éperviers s’envolent au-dessus. L’occurrence des emblèmes associés avec Louis de Guyenne est particulièrement bien organisée dans les Heures de la Vierge: L’heure de Matines n’a pas de bordure, et ainsi aucune devise. A Laudes, reviennent l’épervier, le paon, le coq et l’églantine. A Prime, le genêt et l’épervier. A Tierce, se trouve de genettes, probablement un jeu de mots avec genêt. A Sexte, deux ailes bleues épousant un vase sont environnées de perroquets. Les ailes sont un rébus pour la lettre L, un jeu d’héraldique parlant, comme le soulignent les perroquets qui ont le don de la parole. A None, la violette peut faire référence à l’emblème de sa belle mère, Marguerite de Bavière, mais le motif est trop répandu dans le répertoire du peintre pour en être certain. A Vêpres, reviennent le genêt et l’épervier. A Complies, on trouve l’épervier seul.

L’iconographie D’autres observations encore renforcent l’attribution du manuscrit au dauphin. Au feuillet 238, le médaillon dans la marge à droite représente saint Jean et l’ange de l’Apocalypse. L’ange explique le sens des têtes et des cornes de la bête, selon le titre au bas du feuillet: Comment l’angle [ange] desclaire a saint jehan la vision et ly dist la beste qu (i tu) as veue est malice qui monte de l’abisme sept testes sont vii montaignes. Le rouleau de l’ange fournit l’explication suivante: La beste qui tu as veue est malice/vii testes sont vii montaignez, x cornesz ce sont x roys. Dans la marge inférieure, le médaillon représente un noble et cinq rois, dont un tient une bannière. Le titre en dessous explique: Ce signifie la puissance de lanticrist qui a en les armes paintes la femme avec la beste et x roys qui le servent. Les armoiries sur la bannière sont celles de Flandre ancienne, une allusion très claire à Jean sans Peur, duc de Bourgogne, celui qui fit assassiné le prince Louis d’Orléans en 1407 et qui en 1413 était très certainement considéré comme le servant de l’Antichrist par Louis de Guyenne. L’allusion devait rester peu visible, presque voilée, car la femme de Louis de Guyenne, Marguerite, était la fille aînée de Jean. C’est sous la forme d’un lion (lion de Flandre) que Jean sans Peur apparaît dans le frontispice hautement politisé des exemplaires de la “Justification de Jean Petit” (par exemple, Chantilly, musée Condé, ms. 878, f. 2), un sermon long de quatre heures dans lequel Jean Petit justifie l’assassinat de Louis d’Orléans, symbolisé par le loup10. Il est donc intéressant d’observer le rôle joué par les lions dans les Heures Bedford. Lors de la Cène (f. 138), moment où le Christ présage la trahison de Judas, un lévrier s’attaque à un lion peureux. À la Pentecôte (f. 132), un putto – disons un jeune homme – force la gueule d’un lion, alors que deux iris couronne la composition. À nouveau les allusions sont voilées, vu les relations familiales.

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10. Pour l’exemplaire de Chantilly, voir Les Très Riches Heures du duc de Berry et l’enluminure en France au début du XVe siècle, exposition: Chantilly, Musée Condé, 2004, p. 18-20. Voir aussi l’exemplaire à Vienne, ÖNB, cod. 2657 dans L’Art à la cour de Bourgogne, le mécénat de Philippe le Hardi et de Jean sans Peur, 1364-1419, les prince des fleurs de lys, exposition: Dijon, Musée des Beaux Arts, 2004, n.° 7, p. 39-40.


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La représentation de la Vierge de miséricorde dans les heures de la Semaine introduit la dévotion à la Vierge le samedi, au f. 150v. Cette image présente un des arguments les plus puissants pour l’attribution à la famille royale de France, et plus précisément à Louis de Guyenne, en raison notamment de la représentation de Charlemagne à côté du roi de France, que nous identifions avec Charles VI, son “prêt-nom”, et de la présence du coq dans la marge inférieure au-dessus l’empereur et du roi anonyme, “futur”. La miniature de la sainte famille avec la duchesse de Bedford (f. 257v), Anne de Bourgogne, contient encore un emprunt aux Très Riches Heures. Il s’agit de la petite architecture qui couronne la scène. Elle appartient à un cahier qui ne contient que deux bi-feuillets. Au XVIIIe siècle le cahier fut relié au début du manuscrit. Je crois que primitivement Louis de Guyenne se trouvait, ou devait se trouver, agenouillé devant sainte Anne, et que ce sont ses armoiries qui furent destinées à remplir l’espace sous l’image. Si l’on compare l’image de sainte Anne et celle figurant le duc de Bedford et saint Georges, dans le même cahier, on observe que le traitement de l’architecture est beaucoup moins sophistiqué dans ce dernier. En effet, dans les manuscrits de la main de Bedford datable dans les années 1423-1430 – tel le pontifical de Bedford ou même le bréviaire de Salisbury – les espaces architecturaux sont simplifiés ou figés par rapport aux échappées, moulures et balustrades ouvragées qu’on trouve dans les manuscrits autour de 1410-1415. Il me semble que l’image de sainte Anne, qui devait sans doute se trouver en tête du manuscrit, a été mise de côté à la mort du dauphin et reprise plus tard. Pourquoi sainte Anne serait-elle une sainte patronne de Louis? Anne est la sainte patronne de l’éducation des enfants. Dans la miniature elle est en train de lire un livre à la Vierge et l’Enfant. Louis était entouré d’intellectuels de haut rang. Son précepteur, Jean d’Arsonval, était un maître estimé, et cet éminent humaniste a procuré à Louis les livres de Jean de Montaigu après que ce dernier fut exécuté par Jean sans Peur en 1409. Le grand savant Jean Gerson a composé pour Louis une liste de lectures essentielles et l’a conseillé sur la formation d’une bibliothèque car, selon ses mots, “celle-ci puisse être portative, comme une nouvelle arche du Testament”. Par ailleurs, dans les litanies des Heures Bedford, saint Nicolas figure en tête des confesseurs. Nicolas protégeait les marchands et marins, mais aussi les étudiants, et un autel dans la grande salle du Palais de Justice protégeait les enfants, écoliers et étudiants. Le programme du calendrier s’oriente dans le même sens. Aux travaux des mois et signes du zodiaque est associé un programme de médaillons très érudit, truffé d’allusions antiques qui s’inspirent des Fasti d’Ovide. Dans ce long poème inachevé, Ovide raconte, pour les six premiers mois de l’année, les origines du nom des mois et les rites célébrés chaque jour. C’est une sorte de miroir antique du calendrier chrétien, un précurseur qui recèle une foule de renseignements historiques et mythologiques. Le poème était un des textes de base de l’enseignement médiéval; plus de 200 copies manuscrites sont parvenues jusqu’à nous. L’espace ici ne permet pas une présentation détaillé des rapports entre le calendrier des Heures Bedford et les Fasti. Prenons, toutefois, comme exemple le mois de mai. Le médaillon au recto illustre Maya et les Pléiades. Le texte, en bas du feuillet, raconte: Comment le moys

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de may fut nommé dune des plyades apelee maye mere de mercure; pour ce que le dit mercure est dit dieu de eloquence et seigneur et maistre de rethorique et de marchandise. Au verso, les médaillons illustrent, d’une part, le mariage d’Honneur et Révérence et, d’autre part, la gouvernance des vieux et les jeunes qui portent les armes pour défendre le pays: Comment honneur fust marie a reverence; et leur fist len deux temples; Comment les nobles anciens gouernoient le peuple, et les ioynes se armorent. Or, dans les vers ovidiens qui introduit le mois de Mai, trois muses offre trois origines différentes pour le nom du mois. D’abord, Polymnie explique que le nom est tiré du nom de la fille d’Honneur et Révérence, Majesté. Ensuite Uranie montre qu’il dérive de «maiores», c’est à dire des vieux nobles qui gouvernent alors que les jeunes prennent les armes; par conséquent, le mois de juin tire son nom de ces derniers, les «iuvenes». Enfin, selon Calliope, le mois tient son nom de celui de Maia, la plus belle des Pléiades et mère de Mercure. Il est très probable que l’auteur de ce programme soit le précepteur du prince, Jean d’Arsonval.

Le mythe de la fleur de lis et les Bedford La dernière image dans le manuscrit, au feuillet 288, présente la translation céleste de la fleur de lis comme emblème du royaume de France lors de la conversion de Clovis en 493. Dans la version de l’histoire présenté dans les Heures Bedford, c’est par l’intermédiaire d’un ermite que le drap fleurdelisé est transmis à Clothilde, princesse bourguignonne et femme de Clovis. Clothilde présente l’écu à son mari dans le palais lors de son sacre. Mais la scène a un double sens qui peut désormais être déchiffré grâce aux observations de Michel Pastoureau. Le manuscrit, rappelons-le, a été présenté au jeune roi Henri V d’Angleterre en 1430, l’année après son couronnement, par sa tante Anne de Bourgogne. Ainsi, la princesse Clothilde doit certainement évoquer au jeune roi sa tante, qui était également princesse bourguignonne, le roi «Clovis» doit évoquer le jeune roi d’Angleterre qui, en raison de la Traité de Troyes, devient roi de France. L’homme qui soutient l’écu par une corde rouge porte les couleurs vert-blanc-noir sur son chapeau; ce sont les couleurs de Bourgogne, celles de Philippe le Bon et de la maison qui soutient la réclamation anglaise pour la couronne française. Enfin, au premier plan s’agenouille un homme portant un surcot armorié. Son identification a jusqu’ici résisté à tout déchiffrement. Il s’agit sans doute de Jean de Mowbray, duc de Norfolk et earl marshall, dont la charge était de mettre les éperons du roi lors du sacre. Les armoiries qu’il porte ne sont pas les siennes mais celles de sa fonction d’earl marshall. Il n’existe aucun témoin avec les couleurs, les émaux; notre seul autre témoin est un sceau abîmé qui reprend les meubles: une fasce à trois éperons rangées une en chef et deux en abîme. La superposition d’un meuble au-dessus de deux est inhabituelle et signale peut-être qu’il s’agit des armoiries de fonction. Les Heures Bedford nous fournissent ainsi un témoin unique et hautement politisé, car la scène «mythique» de Clovis décrit en réalité les événements et personnages présents lors du couronnement en 1429.

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La bibliographie H. J. Hermann. 1938. Die westeuropäischen Handschriften und Inkunabeln der Gotik und der Renaissance: 3:französische und iberiscøhe Handschriften der ersten Hälfte des XV Jahrhundert [Die illuminierten Handschriften und Inkunabeln der Nationalbibliothek in Wien, VII (3)]. Leipzig: Hiersemann, 142-185. M. Meiss. 1974. French Painting in the Time of Jean de Berry: The Limbourgs and their contemporaries. New York. J. Backhouse. 1991. The Bedford Hours. London. L. Hablot. 2001. La devise, mise en signe du prince, mise en scène du pouvoir. Les devises et l’emblématique des rinces en France et en Europe à la fin du Moyen Age. Thèse de l’université de Poitiers. I. Villela-Petit. 2001. Le Bréviaire de Châteauroux, Paris 2003; «Devises de Charles VI dans les Heures Mazarine...» Scriptorium, 55, n.° 1, 80-92. Paris 1400: Les arts sous Charles VI, sous la dir. d’E. Taburet-Delahaye; exposition. 2004. Paris: Musée du Louvre. C. Reynolds. 2005. The Très Riches Heures, the Bedford Workshop and Barthélemy d’Eyck. The Burlington Magazine. Vol. 147, 526-533. P. Stirnemann et C. Rabel. 2005. The Très Riches Heures and two artists associated with the Bedford Workshop. The Burlington Magazine. Vol. 147, 534-538. Prague. The Crown of Bohemia 1347-1437, sous la dir. de B. Boehm et Ji_í Fajt; exposition. 2005. New York: Metropolitan Museum of Art. P. Stirnemann. 2006. Combien de copistes et d’artistes ont contribué aux Très Riches Heures du duc de Berry, dans E. Taburet-Delahaye (dir.), La création artistique en France autour de 1400 (actes du colloque 2004 – XIXe Rencontres de l’Ecole du Louvre. Paris, 365-380. E. Koenig. 2007. The Bedford Hours, a medieval masterpiece. London.

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Resumo A Crónica Geral de Espanha, códice pertencente à Academia das Ciências de Lisboa, desde 1879, é uma cópia quatrocentista da Crónica de 1344 de D. Pedro Afonso, conde de Barcelos. A sua abundante iluminura é vestígio maior duma produção laica ligada à corte de Avis, em que o cultivo das letras, a par da constituição de livrarias, desde D. João I, mostram um apreço pelo livro que irá continuar no período manuelino. Este interesse revela-nos uma imagem da realeza que se encontra bem exemplificada nas representações deste códice; é nela que esta reflexão se vai centrar. Partiremos duma breve e possível análise material do códice, da sua construção, para tentarmos perceber como a imagem do rei se integra no discurso cronístico, gerando um discurso com intenções diversas daquelas que presidiram à elaboração do texto. Ter-se-á em conta que a imagem participa mais ou menos estreitamente dum contexto e da função do objecto, o livro, em que se integra. Aí intervém não apenas como marcador narrativo do texto, mas como potenciador e gerador de sentido a que não são alheios o brilho, a cor, a forma, o enquadramento espacial, a profusão dos ornatos.

palavras-chave imagem poder crónica cor d. duarte

Abstract The General Chronicle of Spain, a codex belonging to the Academia das Ciências de Lisboa since 1879, is a 15th century copy of the 1344 Chronicle of D. Pedro Afonso, count of Barcelos. Its abundant illumination is significant evidence of the secular production linked to the Avis court, a court in which the cultivation of the arts and letters, as well as the creation of libraries from the time of King D. João I, show an appreciation for the arts of the book that will continue in the manueline period. This interest in books reveals an image of royalty clearly exemplified in this codex’s miniatures, an image that will form the basis for discussion in this article. Building on a brief material analysis of the codex and its construction, the aim of the author is to understand the way in which the king’s image is incorporated into the chronistic discourse giving rise to a new message with different intentions from those that underpinned the writing of the text. The article will consider the greater or lesser interaction of the image with the context and purpose of the object, in this case the book, of which it forms an integral part. Far from limiting themselves to the function of narrative markers for the text, images act by enhancing and generating meanings and, to this end, they make full use of shine, colour, form, special framing devices and profuse ornamentation.

Agradecimentos por ajuda na configuração do texto e sugestões de Ana Catarina Sousa, Pedro Fialho de Sousa, Justino Maciel, Felix Teichner e Heidi.

key-words image power chronicle colour d. duarte


imagem e tempo representações do poder na crónica geral de espanha h o rácio aug u sto pe i x e i ro Instituto Politécnico de Tomar

1. Para entender a imagem, é fundamental partir da análise material do códice em que se integra. Na verdade, a arquitectura da página define não apenas uma estrutura facilitadora da leitura mas gera, também, um conjunto de relações significativas, uma razão gráfica, interferindo no sentido, induzindo uma lógica no discurso. “Na iluminura medieval cada motivo figurativo tinha uma dupla função, como parte da organização ornamental da página e como elemento de representação”, – PACHT, Otto, Buchmalerei des Mittelalters. Eine Einführung. (Trad. ital. consultada: La miniature medievale – Una introduzione, Torino, Bollati Boringhieri editorie, 1987, p. 189.) – interferindo ambos no significado. Nesse sentido, a imagem fala, isto é, provoca um discurso, induz no leitor “graus de expansão de conhecimento” – NASCIMENTO, A. do, “Texto e imagem: autonomia e interdependência em processo de leitura”, in BRANCO, António (dir. de), Figura. Fac. de Ciências Humanas e Sociais – Univ. Algarve, Faro, 2001, p. 14. 2. A Crónica Geral de Espanha, um dos mais importantes códices iluminados portugueses do

1. Os dados materiais1 O códice da Academia das Ciências de Lisboa, M.S.A. 1, Crónica Geral de Espanha, é uma cópia quatrocentista da Crónica de 1344 de D. Pedro Afonso, conde de Barcelos. Pelo que se pode adivinhar da observação indirecta,2 apresenta um projecto com alguma regularidade no que toca à construção da página. Lindley Cintra anota a mesma regularidade na sequência e na constituição dos cadernos, apenas com duas excepções, que não pude conferir, e na empaginação de 42 ou 43 linhas. Do ponto de vista do texto, faltam poucos títulos dos capítulos e é escrito com letra regular anotando a grande semelhança com o ms. único do Leal Conselheiro e do Livro da Ensinança de Bem Cavalgar, (B. N. Paris, ms. portugais 5), semelhanças que identifica, também, na construção da página e na iluminura das iniciais, que mais à frente designarei de segundo estilo. Está dividido em capítulos, separados por títulos e iniciados por letras ornadas, que, por vezes, evidenciam uma certa hierarquia, mais quanto às unidades de regramento ocupadas que quanto à tipologia do ornato. Assim, as iniciais de nove ou dez U.R. dizem respeito ao início dos reinados; as restantes, ocupam, em regra, quatro U.R.. O ornato, que se estende, por vezes, pelas margens e o intercolúnio, apresenta uma tipologia muito variada. Numa primeira observação, verificamos que existem sequências alternadas de famílias de motivos ao longo do códice cuja separação coincide, por regra, com o final de caderno. Simplifi-

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cando, parece que poderão ser identificados pelo menos dois estilos, com variantes, podendo estas, numa mais atenta observação, configurar estilos autónomos. O primeiro estilo caracteriza-se pelas arquitecturas fingidas, as molduras arquitecturais e as flores em grinaldas, principalmente no intercolúnio. A variante é o sub-estilo das filactérias, fitas enroladas que servem para construir iniciais e para a decoração marginal; podem aparecer em sequências homogéneas ou integrando outros motivos. As variações notam-se, também, ao nível da intensidade decorativa, da simplificação dos motivos ou da qualidade plástica do seu tratamento. É dentro deste estilo que existe figuração quer nas iniciais – historiadas, antropomórficas, zoomórficas – quer nas zonas perimetrais, organizada em cenas ou como elementos decorativos. O segundo estilo caracteriza-se pelas folhagens e ramagens. Mais simples e contido, este programa privilegia as iniciais, por vezes com extensões pelas margens, excluindo qualquer tipo de figuração. É este modelo que nos aparece, também, noutros códices saídos da mesma oficina régia. A filigrana, o ornato geralmente mais utilizado nos manuscritos do final da Idade Média, porque oferece soluções mais simples para hierarquizar a página, mais rápido, mais económico, está ausente deste códice. Parece-nos, pois, que, embora haja uma unidade quanto à definição da construção da página, não há um programa decorativo unitário o que poderá subentender a intervenção de mais do que um artista e a utilização de mais do que um modelo decorativo. Este facto leva-nos a por a hipótese de a iluminura ter sido feita após a escrita, em tempo mais ou menos afastado e em momentos descontínuos, distribuindo-se os diferentes cadernos por vários artistas, o que não é um processo comum. A sobreposição do ornato a letras do texto corrobora a hipótese de momentos diferentes para a escrita e para a iluminura. A descontinuidade do programa pode envolver, também, a cópia ou, o que é o mesmo, a organização do volume, já que existem, pelo menos, duas ou três pausas, zonas em branco, em fim de caderno, que não estão cabalmente explicadas. A utilização das margens é uma estratégia decorativa e narrativa especialmente no primeiro estilo. A ornamentação marginal, iniciada no séc. XIII, desenvolveu-se, sobretudo, a partir do século XV, começando pelas iniciais, estendendo-se pelas margens, adquirindo, depois, um carácter mais complexo de acordo com uma hierarquização dos textos e a importância da página. Começaram por ser apenas decoradas com tarjas, simples filetes dourados, grinaldas guarnecidas de ouro, vinhetas, transformando-se, depois, em suporte de iconografia, umas vezes fruto da fantasia do artista, outras vezes ligadas ao texto ou ao significado do assunto tratado, e ainda ramagens estilizadas em campos floridos, paisagens, animais, aves, insectos, etc. Por vezes transmitem indicações sobre o possuidor do manuscrito pela inclusão de referências heráldicas, como acontece na Crónica de Espanha da Biblioteca Nacional de Paris, outras vezes funcionam como o desdobramento da imagem principal e uma espécie de comentário ao texto, como se evidencia na iluminura da Crónica da Academia das Ciências. Se, até ao período gótico, a inicial tinha sido o lugar privilegiado para o ornato, agora esse papel vai caber à cercadura. No manuscrito da Crónica é

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século XV, tem estado inacessível há já algum tempo. A conservação em geral e, particularmente de espécies como esta, pressupõe atitudes e práticas variadas e complexas, que deverão incluir, também, o seu estudo. Os meios indirectos, como sabemos, não nos fornecem todos os dados, nomeadamente os que se referem ao estudo do objecto, á sua construção, ao processo do seu fabrico, etc. Esta reflexão padece, também, deste facto, sendo necessariamente muito incompleta, e ainda mais provisória do que deveria ser.


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3. Ver PACHT, O., o.c. p.62. 4. Esta estratégia de tratamento da letra, como objecto autónomo passível de estudo, vai adquirir um relevo maior no Renascimento, onde calígrafos, geómetras e artistas desenvolvem uma tratadística que visa primeiramente a sua beleza formal, sujeita às leis da proporção e do equilíbrio, e depois uma boa impressão tendo em conta a legibilidade e a adequada atintagem no prelo. Caso curioso, bem observado por Odete Almeida, em dissertação de Mestrado a apresentar à Universidade Nova de Lisboa, é a utilização do ms. da Crónica da Academia, cerca de cem anos depois, como modelo das iniciais da Crónica de D. João I de Madrid, o que vem por em causa a posse do exemplar, como Cintra conjectura, até meados do século XVI (CINTRA, L. F. Lindley, Crónoca Geral de Espanha de 1344 – Edição crítica do texto em português. Lisboa, Academia Portuguesa de História, 1951, vol. I, p. CDXCIX). 5. CINTRA, L. F. Lindley, Crónoca..., vol. I, p. CDXCCIV-CDXCVIII. 6. Vida de Júlio César – 1446-85, Ordinários do Ofício divino – Alc. 62 (1475) e 63 (1483), Missal Cisterciense – alc. 459, Livro da Virtuosa Benfeitoria – cód. 9, Real Ac. de Hist. de Madrid – pertenceu ao filho de D. Pedro, o condestável – ca. 1430, Vida de Cristo de Ludolfo de Saxónia – Alc. 451-453. No Alc. 451 vê-se no fl. 56v. “Ata aqui fez o scripvam del Rey” e no fl. 57r a indicação de que acabou de escrevê-lo e o encadernou Fr. Bernardo de Alcobaça, 1445-1446. Ver fl.7r. 7. CEPEDA, I. V., “Manuscritos iluminados da Corte portuguesa no século XV”. In NASCIMENTO, Aires [et al.]; coord. MIRANDA, M. Adelaide, A Iluminura em Portugal – Identidade e influências. Lisboa, Biblioteca Nacional, 1999, p. 356.

ainda o espaço desordenado, sem o rigor construtivo que vemos surgir no final do século XV; mas é, também, desordenado no sentido de não haver uma lógica evidente de hierarquização das páginas povoadas por decoração marginal. Se exceptuarmos o caso da página de abertura que, como veremos, assume características de portada, a valorização decorativa parece sujeitar-se a uma vontade que não tem a ver com a lógica da empaginação. Quanto à letra inicial, em particular no primeiro estilo, assume formas que reeditam a inicial figurativa fantasista românica, tornando-se “um objecto artístico, fim em si mesmo,”3 pretexto para fantasias, objecto privilegiado de estudo por parte de calígrafos, artistas, tratadistas e até matemáticos, prática que o século XV instaurou, primeiro olhando mais à fantasia e depois mais à regra. No códice da Academia das Ciências, podemos observar autênticos alfabetos figurativos, utilizando figuração humana ou animal, mas também elementos arquitectónicos e geométricos, com tratamento tridimensional, autonomizando-se da leitura.4 Quanto à origem, Cintra situa este códice no ambiente da corte de Avis, próximo de D. Duarte, enquanto príncipe e rei. Ao argumento formal da escrita, acrescenta a riqueza ornamental, a provável referência a este códice na lista de livros de D. Duarte, que poderia ter sido copiado aquando da separação da Crónica de Portugal, que ele ordenou. E conclui que o códice foi copiado “pelos escribas da câmara de D. Duarte e decorado pelos seus iluminadores, nas primeiras décadas do século XV.” 5 De facto parece haver um grupo que continua – chamemos-lhe “os escribas da câmara do rei”, – visível no ar de família dos trabalhos executados pela oficina régia mesmo em períodos posteriores6. Mas já não poderemos dizer o mesmo para a iluminura, se atendermos aos diferentes programas referenciáveis na Crónica e à sua excepcional variedade e riqueza. O estilo das letras fitomórficas e das ramagens de hastes com folhas de acanto e lanceoladas, prolongando-se nas zonas perimetrais, que identificamos como um estilo ou programa coerente, vai ser possível referenciá-lo várias vezes ao longo do século XV. Os iluminadores de D. Duarte, como lhe chama Cintra, poderiam ter o contributo de artista estrangeiro, que transportasse consigo um programa, hipotéticos modelos e um corpo de imagens que iriam, depois, fornecer abundante material iconográfico ao desenho da iluminura da Crónica, pois demonstra habilidades que não parecem derivar de imitações ocasionais. A influência italiana, algumas vezes pressentida7, poderá ter acontecido de forma indirecta através de modelos iconográficos que circulavam, principalmente por via aragonesa. Lembremos, a propósito, que D. Duarte casou com Leonor de Aragão (1428), que seu irmão, o infante D. Pedro se uniu em matrimónio com D. Isabel, filha do conde de Urgel (1429) e que o filho destes, o Condestável D. Pedro, autor ou promotor da recompilação e da cópia do manuscrito da Biblioteca Nacional de Paris, (Portugais 9), seria, mais tarde, rei de Aragão (1464). A proximidade da letra da escrita, dos motivos decorativos e até da empaginação que L. Cintra encontra entre o manuscrito da Crónica e o Leal Conselheiro de D. Duarte, faz com que se instaure a dúvida sobre a execução da obra nas primeiras duas décadas do século XV, como conclui. A sua argumentação não parece assim tão decisiva.

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A Crónica que andava em cadernos na livraria de D. Duarte pode ser muito bem o exemplar da Academia de Lisboa, que não foi executado no sistema da pécia. Seria mais lógica a aproximação no tempo dos dois códices, já que tanto se aparentam no aspecto. O programa ornamental parece apontar para isso. Um dado interessante a ter em conta, é o regramento da Crónica, feito a tinta azul violeta, talvez resultante duma receita de turnesol, que vemos utilizada em Portugal em período mais próximo de meados do século. Uma mera hipótese.

2. Imagem e memória Antes de olharmos para algumas imagens da Crónica, permito-me lembrar algumas ideias que nos ajudam a entendê-las melhor. Sabemos que a Idade Média descobriu o sentido político do tempo, que se discutem os fundamentos do poder, que a História é utilizada como sua propaganda. Por isso o rei deve preservar o passado, ao mesmo tempo que lhe compete prevenir o futuro. Desde cedo que existe a consciência de que “os actos régios devem ser escritos, para servirem de exemplo a todos e não se apagarem da memória dos homens”8. A imagem, como ouvimos ontem de forma brilhante ao professor Fernando Galván, tem, também, essa função que é atribuída ao relato escrito9. Lembro, a propósito, a legenda do retrato póstumo de D. João I, do Museu Nacional de Arte Antiga, identificando-o como a sua verdadeira imagem destinada a conservar a sua memória10. Uma das fórmulas utilizadas para iniciar os capítulos, “ANDADOS...”, que aparece já nas crónicas a partir de Afonso X11, antecedendo uma lista de referências cronológicas, evidencia a necessidade de assinalar, com rigor, os factos e de relacioná-los com a marcha da História. Este particular início faz com que se repita muitas vezes a inicial A, tornando evidente e solenizando esse momento através das variadíssimas formas de tratar essa letra, o que acentua a importância da imagem no relato cronístico, escrito para ouvintes12. Esta linguagem das imagens, incorporadas na Crónica em tempo diferente do da escrita, como se viu, introduz um discurso novo, em que o rei se torna presente e dominante, desempenhando o papel principal. Nele assenta a legitimidade, procurando inverter, desta forma, o pendor senhorial subjacente ao texto da Crónica. No final do século XV, D. Manuel ainda se esforçará por afirmar essa legitimidade de variadíssimas formas, como sabemos, entre as quais o uso propagandístico dos seus signos e da sua imagem e a promoção da memória do passado da monarquia. Já aqui se falou do carácter civil da imagem do rei que também transparece nas representações da Crónica. De facto, é escassa a temática religiosa: dois funerais e um milagre, o do bispo de Santiago e o touro. Não há santos, mistérios, imagens de pendor moralizante, atitudes devocionais ou simbólica marcadamente religiosa. É a figura do rei e do seu poder, a vida, a morte, o amor, os jogos e divertimentos, a música, motivos naturais ou fantásticos, que estão presentes, acentuando a memória profana que a Crónica nos transmite.

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8. MATTOSO, José, Identificação de um país – Ensaio sobre as origens de Portugal – 1096 -1325. Lisboa, Ed. Estampa, 1985, vol. II, p. 85. 9. Todo o poder tende a encontrar “um reportório de signos que tenham como função dar a conhecer ao menos a identidade, e, por vezes, até mesmo a natureza, as aspirações ou as justificações do ou dos poderes que o Estado representa. Estes signos são geralmente imagens.” PASTOUREAU, M., Figures et couleurs – Études sur la symbolique et la sensibilité médiévales. Paris, Le léopard d’Or, p. 61. 10. «Haec est vera dignae ac venerabilis memoriae Domini Ioannis defuncti quondam Portugaliae nobilissimi et ilustrissimi regis imago...». Esta ideia vai ser desenvolvida no século seguinte, como escreve Francisco de Holanda: “Digo que estimo somente os claros príncipes e reis ou imperadores merecerem ser pintados e ficarem suas imagens e figuras e sua boa memória aos futuros tempos e idades” HOLANDA, Francisco, Do tirar polo natural. (Santarém, 1549) Intr. e notas de J. F. ALVES. Lisboa, Livros Horizonte, 1984, p.14. 11. Ver REPRESA RODRÍGUEZ, Armando (coord.), Las Edades del Hombre – Libros y documentos den la Iglesia d Castilla y Leon. Burgos, 1990, p. 108. 12. O autor dirige-se frequentemente a ouvintes e não a leitores com expressões como esta: “Já ouvistes como a rainha...” (Fl. 294r.).


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A imagem do rei é enquadrada por elementos distintivos e prestigiantes: arquitecturas, baldaquinos, músicos, simbologia régia do poder, da força, das virtudes que o rei deverá possuir ou dos vícios que são atribuídos ao mau soberano. Vamos, então, observar algumas dessas imagens segundo um percurso que se inicia na portada, que nos mostra a imagem fundadora ligada ao passado mítico (Hércules), e continua depois, evidenciando um discurso original, pela figuração da construção do poder em contraposição aos outros poderes, da simbólica régia, em que o retrato assume um papel maior, enquanto imagem da majestade, da entronização como momento inaugural e legitimador do poder, passando por temáticas relativas às vivências, como a festa, o amor e a morte. Mas, a ausência duma razão gráfica evidente na distribuição destas imagens ao longo do texto, necessita duma interpretação que considere e valorize o conjunto.

3. As imagens 3.1 A imagem do mito fundador – Hércules

fig.1 hércules no frontispício, crónica geral de espanha, lisboa, academia das ciências, ms. série azul 1, fl. 1r

A Crónica abre com uma espécie de frontispício, a única página cujas margens se dispõem em forma de cercadura ordenada. Os elementos da composição são a inicial inscrita num quadrado, ao alto, alinhada com a coluna de texto da esquerda, e a cercadura que preenche totalmente as margens e o intercolúnio. A inicial está inscrita num duplo quadrado, de moldura vermelha, com quatro círculos nos ângulos. A letra capitular O é construída por quatro figuras nuas acorrentadas pelos pés, a serem estranguladas pela cauda de dois dragões enlaçados que preenchem o interior, primitivamente dourado sobre um bólus vermelho. Com as cabeças muito desgastadas só é possível reconhecer, numa delas, um homem de barba, um pouco calvo. As figuras alternam nas cores rosa claro e esverdeado, tal como os dragões. Num dos círculos podem, ainda, distinguir-se vestígios de desenho e o furo do compasso. No interior do quadrado vemos seis pequenos círculos. As margens regulares, muito danificadas pela água e pela guilhotina do encadernador, que aparou cerca de dois centímetros na cabeça, na goteira e no pé, são de difícil leitura a olho nu e à luz normal. Pelo que se pode observar, aí e no intercolúnio desenvolve-se uma composição unitária que parte da margem de pé, onde se vê um edifício acastelado, rodeado de casario, uma igreja, à esquerda, três figuras, à direita, sobre uma paisagem que continua pela margem de goteira, onde se adivinha, mais ao alto, uma cena onde intervêm alguns cavaleiros, peões e cães ou outros animais no meio do arvoredo. Na margem de festo, dois ramos entrançados, com folhas e flores, e na margem de cabeça, quatro aves afrontadas, sobre a continuação da mesma paisagem. Na zona inferior do intercolúnio, sobre um monte onde se situa um castelo ou cidade fortificada labiríntica, sobressai uma figura seminua, um homem, de pé, com

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13. L. Cintra diz o seguinte: “Segundo o autor do Catálogo dos preciosos Manuscritos da Bibliotheca da Casa dos Marquezes de Castello Melhor, pág. 4, esta iluminura seria ilustração ao texto do cap. VI (fl,4). Não creio. Seria o único caso em que a ilustração apareceria três fólios antes do trecho a que se refere. O desenho – um homem de pé sobre um castelo, ladeado de edifícios e figuras humanas – não se liga ao mencionado capítulo com a evidência que seria necessária para, apesar das circunstâncias, nos fazer estabelecer a relação”. Ver L. CINTRA, Crónica...v. I, p. CDXCVIII, nota 21.

fig.2 hércules no frontispício, crónica geral de espanha, lisboa, academia das ciências, ms. série azul 1, fl. 1r

um manto e uma clava, dele nascendo um motivo vegetal que se alonga para cima. Esta figura pode ser a imagem de Héracles ou Hércules, munido com a sua clava e envolto na pele do leão de Nemeia. L. Cintra encontrou uma vaga referência a esta identificação mas, “apesar das circunstâncias”, não concordou com ela13. Não diz o autor essas circunstâncias, mas podemos imaginar que se queira referir ao texto dos fls. 4-6, em que é contada a história de Hércules e os seus feitos em Espanha. O texto da Crónica abre praticamente com esta história, depois do prólogo, que enuncia a tarefa de preservar a memória dos feitos “dos mui nobre barões e de

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14. MARTINS, Mário, Alegorias, símbolos e exemplos morais da literatura medieval portuguesa. Lisboa, Ed. Brotéria, 1980, p. 250.

grande entendimento”, entre os quais inclui o “grande Hércules de Grécia” (fl.2 r.), e depois de fazer a ligação da história hispânica aos tempos bíblicos. Hércules é o “bathalhador honrado e acabado em força e em lide”, o modelo de todo o nobre guerreiro. Estende-se a sua história por cinco capítulos, onde para lá do enunciado dos seus trabalhos, se descreve “como entrou em Espanha e das obras que em ella fez” (f. 4v.). Construiu torres, a primeira, “mui grande e pos encima hua imagem de cobre” (fl. 4v), levantou-a em Cádis; depois, ergueu outra imagem em Sevilha; em seguida esteve em Lisboa, “povoada depois que Tróia foi destruída a segunda vez” (fl. 5v); e daí foi à Galiza combater Gedeon, que venceu “e mandou logo em aquele lugar fazer uma grande torre” pondo nos alicerces a cabeça do inimigo, na cidade de Corunha, que nos aparece no mapa-mundi do beato do Burgo de Osma, como a torre de Hércules – o farol romano. Depois foi até ao rio Guadiana – “Augua de Diana” – terra para caçar, criar gado e muito fértil e aprazível, a Lusitânia – jogos de Diana – (fl. 6v.). Na Crónica, Hércules é o herói construtor de torres, fundador das cidades hispânicas, mas também da linhagem dos seus reis e senhores que, assim, encontra uma justificação no tempo imemorial, mítico, como a história bíblica e a dos heróis lendários; isto é, o seu início é garantia de que se perpetuará na imortalidade como o herói fundador, modelo a seguir: “Hércules era da linhagem dos gigantes e mui forte, pêro non era cruel nem de mau senhorio; ante era mui piedoso aos bons e forte aos maus” (6v). Funciona, pois, como um emblema, uma imagem heráldica que não se encontra expressamente na Crónica, a não ser, numa inicial figurada, as cinco quinas sem qualquer uma das formas convencionais (fl. 26r.). A imagem de Hércules a introduzir a Crónica, segue o texto, inserindo a história peninsular num contexto universal. A leitura da restante iluminura é muito dificultada pelo estado de conservação, como se disse. Parece, contudo, que, mais que a alusão aos doze trabalhos, talvez se possa imaginar aqui a epopeia de Hércules pela Espanha, como é descrita na Crónica: a cidade ou castelo pode significar uma das torres que ergueu, ou a cidade de Lisboa cuja equivalência a Tróia o cronista anotou; a paisagem verdejante e aprazível, propícia para a caçada, pode ser a Lusitânia nas margens do Guadiana, o jardim das Hespérides guardado por um dragão, cujos pomos dourados podem estar simbolizados nos bezantes inscritos na inicial; mas o herói fundador, que venceu todos os perigos e todos os seus inimigos e, através do fogo purificador, a própria morte, sobrepujando a torre ou a elevação, funciona como o farol que ilumina a história peninsular. Ao longo do códice, especialmente nas letras fi guradas, há motivos que podem ser, também, identificados com Hércules ou os seus trabalhos, como, por exemplo, um dragão vomitando fogo contra uma figura nua armada de bastão (fl.190r.); um homem lutando com um leão; outro dominando um porco (232 r.) (fl.201r), o caranguejo; etc. Mas uma das figuras equivalentes a Hércules é a do herói por excelência, o Cid, guerreiro feroz e destemido, também ele invencível e com uma história repleta de trabalhos e sofrimentos. A adaptabilidade dos mitos antigos à cultura medieval foi bem vista por Mário Martins em relação à General História de Afonso X, ideias absorvidas pela a Crónica de 1344 14.

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3.2 O tempo da festa – A lenda do bispo e touro O fl. 155r é o início do reinado de Vermudo II (ou Bermudo) (982-999). Abre com a inicial C, que faz parte do conjunto que ocupa 9 UR, inscrita num quadrado, em fundo de ouro picotado aplicado sobre bólus vermelho. A letra, isolada da restante decoração, é figurada com dois homens nus azuis e recobertos de pelos, dispostos simetricamente e atados por uma corda. Nas margens e no intercolúnio desenvolve-se a cena, descrita no texto, relativa ao milagre do chamado arcebispo de Santiago

fig.3 milagre do bispo e do touro, crónica geral de espanha, lisboa, academia das ciências, ms. série azul 1, fl. 155r

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15. Uma rasura corrige a data do início do reinado para 962. Mesmo assim, o bispo Atalfo ou Adulfo, a que se refere a narrativa, seria bispo de Iria entre 847 e 855 (Adulfo I) ou 855 e 877 (Adulfo II). No reinado de Bermudo II foram bispos de Iria-Santiago D. Pellaio Rodriguez (977-985) e S. Pedro de Mezonzo (985-1003). O primeiro arcebispo metropolita de Santiago foi Diego Gelmirez (1120-1140). 16. Ver CINTRA, v. III, p. 178, nota 4.

Atalfo ou Adulfo. Na margem de pé, em fundo de ouro picotado e enxaquetado, no centro duma praça em frente dum edifício, de que vemos apenas a torre depois do aparo do encadernador, está a figura do arcebispo, revestido com as vestes litúrgicas – a casula, a mitra e o pálio – segurando os chifres dum touro que levanta a cabeça. Atrás de si, à esquerda, três peões lançam farpas, outro afia a sua com um canivete e outro ainda faz soar o holifante. À direita, num palanque, dois espectadores nobres lançam, também, uma chuva de dardos sobre o animal, o mesmo fazendo um peão mais abaixo. Um terceiro personagem, vestido de vermelho e cabelos compridos ruivos e encaracolados, olha para o rei e gesticula. Mais acima, numa varanda do edifício, coroado e com um bastão na mão direita (ceptro?), o rei tem uma expressão de espanto, enquanto o bobo olha para ele sorrindo e apontando para o touro. O edifício, de que só percebemos a torre, tem uma arquitectura classicizante, rematando com coruchéus góticos. A margem de goteira completa-se com duas pequenas “ilhas”, uma com roseira de rosas floridas e a outra com uma árvore, um veado, um cão e papoilas. Na margem de festo desenvolve-se, em contínuo, um conjunto de cenas campestres. No intercolúnio, três floreiras e uma árvore com frutos vermelhos (macieira?). Bermudo II foi o rei da Galiza e de Leão no final do milénio, um ambiente conturbado. A Reconquista não só não avançava como estava em retrocesso, com arremetidas contínuas dos muçulmanos: Almançor arrasou Santiago (997) levando consigo os sinos da catedral para a mesquita de Córdova. A Crónica legitima a sua sucessão ao trono de Leão, mas, de facto, foi considerado usurpador pela nobreza que tem de enfrentar várias vezes. As lutas externas e internas são, pois, uma constante para a afirmação do seu poder. É neste contexto que se enquadra o episódio do milagre que apresenta algumas discrepâncias de cronologia e relativas à identificação do bispo que não corresponde ao reinado de Bermudo II15. Chama arcebispo a Atalfo e a imagem respeita essa identificação, – o pálio sobre a casula –, ainda que o primeiro arcebispo metropolita de Santiago fosse Diego Gelmirez mais de cem anos depois (1120-1140). A Crónica começa por apresentar o rei de forma positiva, “entendido e bõo”. Porém o seu perfil moral e até de guerreiro não é o mais adequado porque: – “ouve os prazenteiros e maldizentes” que difamaram o arcebispo, e tenta matá-lo traiçoeiramente, sendo amaldiçoado; – foi derrotado por Almançor, derrota permitida por Deus por causa dos seus pecados, ao abandonar a sua esposa D. Vellasquida, embora aqui se justifique este acto “ca se nõ avya della entregue”, e no ms. de Paris diz-se que foi “por nõ se contentar della”16; – prendeu o bispo de Oviedo, enviando Deus uma grande seca como castigo. O rei arrepender-se-á “de todollos malles e tortos que fezera contra Deus” empreendendo a reconstrução da igreja de Santiago e de outros lugares devastados por Almançor, dando esmolas e fazendo “obras de piedade”, obtendo, assim, o perdão dos seus pecados antes de morrer. O episódio da crónica descreve pormenorizadamente o episódio do bispo. O rei convoca-o para Oviedo, mas, antes de ir à presença do soberano, numa sexta-feira

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santa, passa pela igreja de S. Salvador porque, diz ele aos que o apressam, “ante e primeiramente queria hyir veer o rei dos reis que era S. Salvador que salvava os reis e os outros homeens, que aquelle seu senhor”. Depois da missa, revestido ainda dos paramentos, caminhou ao encontro do rei que, entretanto, havia mandado trazer um touro bravo das montanhas, “e foysse muy sem medo pêra o paaço del’rey onde já estava o touro muy bem prestes ante os paaços del’rei e quantos ricos homeens avya nas Esturias, que veheram aas cortes”. A festa estava montada. A imagem selecciona o momento em que o arcebispo enfrenta o touro: o rei manda assanhar o animal, o que fazem os presentes lançando farpas; mas, ao contrário do esperado, a fera não investe mas levanta a cabeça deixando os chifres nas mãos do arcebispo. Entretanto, a assistência, “gentes néscias, riiansse e escarneciam do arcebispo” por vir vestido daquele jeito. A imagem não conta o que aconteceu aos que se riam, mortos muitos deles pelo touro antes de seguir o seu caminho, mas mostra-nos o espanto do rei, ao ver o milagre. Acabada a festa, tentou desculpar-se, sem êxito, junto do arcebispo. A iluminura segue, pois, de perto, o relato evidenciando o aspecto festivo do acontecimento, que a decoração marginal ajuda a compor, contrastando com as intenções do rei. O rei e a aristocracia dedicam-se frequentemente a diversões de cariz militar que servem de exercitação guerreira e constituem a afirmação das virtudes do cavaleiro, de carácter moral mas marcadas pela violência: os torneios (um deles é descrito e representado no fl 189r.), as caçadas e outros jogos com animais, entre os quais as touradas que nos aparecem desde a Antiguidade17. O touro bravo, nas Cantigas de Santa Maria de Afonso X18, aparece ligado às Maias, às festas da Primavera, mas é também o disfarce do demónio perseguindo um monge meio bêbado que a Virgem Maria salva in extremis. O mesmo auxílio recebe, também, um seu devoto. A intervenção milagrosa da Virgem fez com que um touro enraivecido caísse de joelhos e ficasse amansado para sempre. Na iluminura que acompanha esta cantiga, os espectadores da festa brava, ao longo da rua, lançam sobre o touro uma espécie de bandarilhas. O touro investe de cabeça baixa “com os cornos merjudos bem como o touro faz”; depois de amansado, levanta a cabeça, deixando-se tocar, como na iluminura da Crónica. O touro é a força bruta, é também o símbolo da força indomável e dos instintos primitivos simbolizados no motivo do homem silvestre, que figura na inicial, e que aparece várias vezes ao longo da Crónica, nas iniciais e nas margens. O tema da festa anda associado à violência. A violência má, a instintiva, simbolizada no touro e no homem silvestre, tem como contrapartida a guerra conduzida pelo rei e pelos senhores, e os jogos de cariz militar. É na luta que se defende a honra que é a superioridade da figura do rei e da sua família, uma espécie de virtus materializada nos símbolos familiares transmissíveis19. Na literatura do tempo, em especial nos escritos de carácter moralizante e ascético, a ideia de combate, com figuras alegóricas tiradas da vida guerreira e militar, está sempre presente: cavaleiros, soldados, batalhas, escudos, espadas, fortalezas, couraças. Mas os feitos e as desventuras militares, abundantemente presentes no relato cronístico, não têm equivalência nas imagens do códice da Academia das Ciências de Lisboa. A imagem do combate aparece sobretudo nas iniciais e na figuração marginal. Pode estabelecer-se a relação entre esta particu-

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17. Por ex., nos frescos minóicos do palácio de Cnossos. 18. MARTINS, M. “Os touros nas cantigas de Sta. Maria de Afonso X”. Estudos de Cultura Medieval. Lisboa, Ed. Brotéria, v. III, p. 22 e sg., (Cantigas 47 e 144). 19. MATTOSO, J., o.c., p. 129.


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20. MATTOSO, J., o.c., p. 130-132.

lar ausência e a observação do Prof. José Mattoso de que não é enquanto guerreiro que o senhor peninsular se define, mas enquanto detentor do poder. “A sociedade não considera a força das armas como a verdadeira ou a mais importante origem do poder”. Isto antes do séc. XIII. O poder anda associado à posse e administração de bens e riquezas. O senhor é o proprietário e cabeça de linhagem20. Mas o poder do rei afirma-se, também, submetendo os outros poderes não militares. O arcebispo simboliza o poder eclesiástico, várias vezes afrontado por Bermudo. Este é o rei que umas vezes é bom, outras vezes tem condutas indignas da sua função; um rei desprovido de força militar para vencer o inimigo, um rei sem honra, que se deixa conduzir pelos seus instintos, mas que, no fim da vida, recupera a sua dignidade, redimindo-se dos seus pecados. Por isso o vemos aqui, com todos os seus símbolos: a coroa real, o ceptro, o palácio, ainda que encostado a um dos ângulos da página, no extremo da diagonal da imagem do selvagem.

3.3 A imagem do rei Mas olhemos outras imagens do rei que a Crónica nos apresenta: uma série de três reis de Aragão e Afonso X de Castela. Penso que elas nos mostram os principais elementos que compõem a imagem que o rei projecta de si. Nela se centram as representações do códice da Academia das Ciências, onde a imagem do senhor, quando aparece, se encontra associada ao rei ou à rainha.

Rei sentado no trono e músicos

fig.4 pedro iii de aragão no trono e músico, crónica geral de espanha, lisboa, academia das ciências, ms. série azul 1, fl. 183r

A página é o início do reinado de Pedro III de Aragão (1276-1285). A inicial historiada O, está inscrita num quadrado de fundo de ouro sobre bólus vermelho. A letra enquadra uma cena, compartimentada por motivos arquitectónicos, representando, ao centro, o rei sentado no trono, vestido com armadura, de espada na mão, ladeado por dois músicos, um homem e uma mulher tocando alaúde e harpa. Outros dois, acompanhando duas bailadeiras, surgem na margem de pé, numa cena de ar livre, por esse motivo tocando instrumentos de maior sonoridade: a charamela e a flauta e tambor. Estes últimos são tocados por um só executante – a flauta de três furos, com a mão direita, e o tambor, sustentado no pescoço, com a esquerda – sendo a solução mais frequente para acompanhar danças nos séculos XV e XVI. O espaço das margens e do intercolúnio é preenchido por videiras carregadas de cachos de uvas estando penduradas nas gavinhas das margens de pé e de goteira oito gaiolas com pássaros. O reinado de Pedro III de Aragão não foi pacífico, tendo de enfrentar revoltas dos nobres da Catalunha, por cercear os seus privilégios, e o rei francês por ser um obstáculo à sua expansão no Mediterrâneo. Os episódios relatados na Crónica mostram que a superioridade se evidencia especialmente graças à sua astúcia. Se a armadura com que é representado evoca as suas virtudes militares, a música, a dança e a videira com uvas e as gaiolas, provavelmente alusão à teoria dos oito modos ou

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fig.5 pedro iii de aragão no trono e músicos, crónica geral de espanha, lisboa, academia das ciências, ms. série azul 1, fl. 183r

regras relativos ao ritmo e à consonância, mostram-nos o lado festivo de protector das artes e das letras, nomeadamente da poesia trovadoresca de que foi cultor. Será por isso que Dante, na Divina Comédia, coloca Pedro e o seu rival Carlos I de França a cantar em coro, às portas do Purgatório. Os músicos eram presença constante na corte, mas também os príncipes eram iniciados na arte da música e aprendiam a tocar algum instrumento. A tradição da cultura musical na corte de Aragão podemos conferi-la, mais tarde, pelo facto de Dona Leonor de Aragão, mulher de D. Duarte, tocar clavicórdio.

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Retrato do rei A esta imagem podemos associar a do seu sucessor, Afonso III de Aragão (1285-1291). O rei está de pé, a coroa real na cabeça e o ceptro na mão direita, no centro da cidadela que desenha a inicial d. Teve um curto reinado, sem grande história. Apesar de débil e de ceder perante a nobreza, é elogiado na Crónica: “foi homem mui mesurado e justiçoso e muito franco e de grande coração”. O castelo, dentro do qual parece refugiar-se, é motivo repetido mais seis vezes nesta página, sendo o da margem de pé constituído por quatro bastiões e a torre de menagem. A imagem do castelo, fortaleza bem edificada e inexpugnável onde vive o rei, que repetidamente nos aparece na iluminura da Crónica desde a primeira página, é símbolo heráldico do poder. Na cópia alcobacense (Alc. 199) do “Castelo Perigoso”, obra de carácter moral e ascético, aparece-nos um desenho simples cujas torres se assemelham às que aqui vemos. Aí, como em outros textos do género, o castelo é, entre outras, alegoria das virtudes morais. Portanto, símbolo do poder mas, também, das virtudes que devem compor a imagem do rei.

fig.6 reis de aragão, afonso iii e jaime i, crónica geral de espanha, lisboa, academia das ciências, ms. série azul 1, fl. 185v

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No mesmo fólio, outra imagem representa o rei Jaime II de Aragão (1291-1329), irmão do Afonso III e seu sucessor. A figura, um busto, está inscrita na inicial D, de 10 U.R., construída com motivos arquitectónicos, em fundo de ouro picotado. O rei, em posição frontal, tem cabelo curto, moda mais frequente na figuração da Crónica21, barbas compridas, encaracoladas e bipartidas; veste de vermelho e tem rica coroa na cabeça. O texto da Crónica diz que “foi mui bom rei e mui entendido, mas foi escaso”, deixa, porém, entender que consolidou o reino de Aragão, submetendo a nobreza, enfrentando Castela e a França, e alargando o seu poderio no Mediterrâneo. A política de casamentos ajudou a fazer a paz: casa primeiro com a filha do rei Castelhano “mas não albergou com ella”, remetendo-a para casa da sua mãe, depois da morte do rei, para casar com a filha de Carlos de França. A paz com Castela, diz-se na Crónica, foi intermediada por D. Dinis, a instâncias da sua mulher, Isabel de Aragão, a rainha santa, irmã de Jaime II. A imagem do rei, com a força do retrato, é a mais elaborada figura da Crónica, o que releva da importância que a iconografia dos reis de Aragão tem neste códice. Bem proporcionada e de aspecto solene, evoca a alegoria da “Corte Imperial” (S. XIV), livro existente na livraria de D. Duarte, em que se descreve a figura do imperador, que é Cristo, “rosto venerável, incutindo amor e temor”, a barba abundante dividindo-se, no queixo, em duas partes iguais, olhos formosos, simples e claros, cingindo-lhe a cabeça uma coroa de pedras preciosas. Via-se, na verdade, que ele era o mais perfeito dos homens22. O particular tratamento da cabeça do rei, a parte mais nobre do corpo, mostra que o rei é a cabeça do reino tal como Cristo o é da Igreja23. Estas imagens revelam-nos alguns dos atributos fundamentais da imagem do rei. Desde logo, a sua majestade, semelhante à Majestas Domini, evidenciada pela entronização e pela posição frontal24. Depois a presença de elementos simbólicos das funções à volta das quais essa imagem é construída – a coroa, o ceptro, a espada, a armadura, o vestuário e o seu colorido, a música, o castelo ou o palácio: a manutenção da paz e da justiça através da boa ordem social, o dever de fazer a guerra contra o infiel e de manter íntegro o território25. Por isso, o rei, pelo seu especial carisma – uma espécie de dualidade, à semelhança de Cristo, conferida pela graça divina26 – traz consigo um conjunto de virtudes especiais que tem obrigação de cultivar”27. Deve ser forte, poderoso nas armas, sábio, prudente, devoto e defensor da fé, dotado de engenho e até de semblante agradável28. Zurara, na Crónica de D. João I, conta que, antes de falecer, D. João I repara que tem a barba crescida e manda que lha fizessem pois não era decoroso o rei depois de morto ser “espantoso e disforme”29. É importante que o rei pareça rei pelos seus atributos mas também pelo seu aspecto. O Poder nasce do rei e da sua proximidade, visível na dignidade do lugar, no fausto e na beleza da sua corte, na música, no cultivo das letras, na preocupação em preservar a memória. É esta a imagem moderna do poder do rei que as representações da Crónica pretendem apresentar, que é, também, a da dinastia que D. João I inicia, um rei aclamado, escolhido, que afirma uma nova legitimidade face aos outros poderes. D. Duarte mostra que a superioridade moral e intelectual do monarca se evidencia quando disserta sobre a moral, os bons costumes e até sobre teologia. Ele

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21. A moda do cabelo curto, rapado na nuca e sobre as orelhas, caindo em franja na fronte, parece que se iniciou em França à roda de 1420. Ver QUICHERAT, J., Histoire du costume en France depuis les temps les plus reculés jusqu’a la fin du XVIIIe siècle. 1875-77, p. 256. É interessante observar que várias figuras dos painéis da Veneração de S. Vicente têm o cabelo cortado deste modo, nomeadamente aquela que tradicionalmente é identificada com o Infante D. Henrique, mas que, provavelmente, é o seu irmão, o rei D. Duarte. A moda do vestuário também tem elementos comuns. 22. Ver texto de MARTINS, Mário, “A corte Imperial”. Alegorias e símbolos..., p. 208. 23. Na Idade Média, o retrato andava associado ao conceito de imago, que, por meio de elementos geralmente identificáveis, estabelece correspondência com a pessoa que se quer representar. Não era tanto a semelhança que se procurava mas o sentido que se pretendia evocar. “A função mais elementar da imagem é criar um substituto que representa uma determinada realidade na sua ausência, ainda que apenas o faça parcialmente”. Ver, NASCIMENTO, Aires do. “Texto e imagem: autonomia e interdependência em processo de leitura”, in BRANCO, António (dir. de), Figura. Fac. de Ciências Humanas e Sociais – Univ. Algarve, Faro, 2001, p. 47. 24. Sobre o tema da representação em posição frontal e de perfil, veja-se PASTOUREAU, M., Couleurs, images et symboles. Paris, Le Léopard d’Or, s. d., p. 160. O autor, depois de referir que os primeiros retratos do s. XIV não representam um progresso artístico em relação às “imagines” convencionais e às efígies da figuração medieval, chama a atenção para a natureza heráldica, emblemática do rosto de perfil, diferente da vista frontal que reenvia para o símbolo, representação duma ideia através da imagem sensível. 25. MATTOSO, J., Identificação... II, p. 81. No fl. 118r. da Crónica, o conde de Castela, Fernão Gonçalves, faz a seguinte oração: “Senhor, dador de toda a graça, peçote por mercee que esta terra que me deste a mandar, que me dês graça que eu sempre taaes obras em ella faça que sejam a teu serviço. Em honra do senhorio de Castella e


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dos seus naturaaes e destroimento dos enmiigos da tua sancta fe catholica.” 26. WIRTH, Jean, L’image médievale. Naissance et développements (Vie- XVe siècle). Paris, Meridiens Klincksieck, 1989, p. 211. 27. MATTOSO, J., Idententificação...II, 81-82. 28. Ibidem, p.82. 29. ZURARA, Gomes E. de, Crónica de D. João I, Lisboa, 1902, t. 2 129-130. Cit. em Mário Martins – O Tempo e a Morte, vol. I, p. 53 e sg. 30. D. DUARTE, Livro da Ensinança de bem cavalgar toda a sela. Prólogo.

entende que o poder nasce, também, do saber, construído na leitura e na escrita e no enriquecimento dos seus conhecimentos, ouvindo “pessoas de estados e saberes desvairados”30. A Corte de Avis é uma corte culta, letrada, amante dos livros e da história. Daí, também, o destaque dado ao rei Afonso X, o sábio.

O rei no trono e músicos – Afonso X, o Sábio A cena está inscrita na inicial M construída com motivos arquitectónicos, com um desenho menos elaborado que as anteriores. Começa a parte correspondente à Crónica de Afonso X, colocada no final do códice. Não existem extensões marginais e o facto duma parte do desenho ter sido abandonado ou deixado inacabado, pode sugerir alguma imperfeição. O rei está sentado no trono, ao centro, tendo a trás de si a rainha que apoia a mão sobre o seu ombro. O corpo do rei roda e coloca o rosto de perfil, parecendo que olha e gesticula na direcção dos músicos que ladeiam o baldaquino, dois tocando charamela e um cantando e marcando o ritmo com as mãos ou com castanholas. Não tem outro distintivo a não ser o trono real e a música: mas a Crónica descreve, entre as suas obras, a compilação das leis, que acabou o “livro das partidas”, que “mandou tornar en linguagem todalas historias da Bibria e os livros das artes, das naturezas e das astronomias e muitos outros livros de desvairadas sciencias e saberes” (fl. 321v.). É por isso, penso, que o avô del-rei D. Dinis tem este tratamento especial.

fig.7 afonso x, o sábio, com a rainha e músicos, crónica geral de espanha, lisboa, academia das ciências, ms. série azul 1, fl. 318r

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31. Falta no exemplar da Academia a palavra (D)epois.

fig.8 afonso x, o sábio, com a rainha e músicos, crónica geral de espanha, lisboa, academia das ciências, ms. série azul 1, fl. 318r

A aclamação do rei A inicial historiada D 31, desenhada com motivos arquitectónicos, tem inscrita, adaptada à forma da letra, a cena relatada no texto: “Alçaron por rey dom Anrique”, que tinha apenas doze anos de idade. O rei menino, Henrique I de Castela, que teria um casamento falhado com a fermosa Mafalda, filha de D. Sancho I, vestindo túnica azul, de ceptro na mão e vestígios

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de coroa na cabeça, está de pé diante dum reposteiro, sobre um estrado elevado recoberto por tecido vermelho e é aclamado pela corte, como se vê pela acção de ser levantado com ambas as mão por alguns personagens, olhando um deles para a rainha, sua mãe, sob cujo poder ficou o rei durante a sua menoridade, e que está sentada à parte, em trono com dossel, vestindo um manto de cor verde que lhe cobre a cabeça, alusão ao seu estado de viuvez. Os nobres olham para ela que levanta a mão direita, gesto que pode significar que o poder está no rei ou ainda os conselhos e as recomendações que lhe fez, e que o texto regista. A imagem mostra-nos uma cerimónia em ambiente civil, o interior do palácio, sem qualquer simbologia religiosa; porém, a aclamação podia realizar-se em qualquer lugar, como aconteceu com D. Fernando, filho de Dona Beringuella ou Berengária e do rei de Leão, que foi aclamado rei de Castela no sítio onde se encontrava: “Tomaram logo voz com o infante e alçaromno por rei sob u olmo”. Sobre a polémica da existência ou não duma cerimónia religiosa de coroação ou sagração dos reis portugueses e peninsulares, José Mattoso defende que o acto civil da aclamação, o que aparece geralmente descrito nas fontes narrativas, não exclui a possibilidade da realização do acto litúrgico, atestado pelo “Ordo benedicendi regis” existente em Rituais de Braga e de Santa Cruz de Coimbra. A coroação litúrgica era uma espécie de sancionamento da aclamação, cujo termo “alçar”, de origem guerreira, se refere à função militar da realeza, o que pode explicar o

fig.9 aclamação do rei henrique i de castela, crónica geral de espanha, lisboa, academia das ciências, ms. série azul 1, fl. 285r

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32. MATTOSO, J., Fragmentos duma composição medieval. Lisboa, E. Estampa, 1987, p. 221-223. 33. Ver CINTRA, vol. IV, p. 544, parte relativa à Crónica dos reis de Portugal.

fig.10 aclamação do rei henrique i de castela, crónica geral de espanha, lisboa, academia das ciências, ms. série azul 1, fl. 285r

carácter civilista da aclamação.32 Mas nem a espada nem o escudo estão presentes nesta representação da primeira metade do século XV, mas tão só o ceptro e a coroa real, o que poderá configurar a prática seguida na dinastia de Avis. Na verdade, a construção desta imagem, a presença dum rei menino e da rainha viúva, sua mãe, permite pensar noutra cena semelhante, contemporânea deste exemplar da Crónica, que poderia muito bem ter inspirado o iluminador: a aclamação de D. Afonso V, ainda menino, também, feita pelo regente D. Pedro desta forma simples: “com grande lealdade e virtude tomouo ele com suas mãaos e assentouo na cadeyra e alevãtouo por rey” 33.

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34. Quem sabe se não terá sido o protótipo da moderna imagem do rei espanhol que ontem o Prof. Fernando Galván nos mostrou.

3.4 O tempo do amor Permitam-me que nos alonguemos um pouco mais a olhar para duas outras facetas da imagem do rei que a Crónica nos desenha, mostrando-o acima de qualquer humano, no tempo do amor e no tempo de morrer. O casamento resulta dum contrato. Tem objectivos políticos, num quadro de alianças e de interesses, e de perpetuação do poder através da geração de prole numerosa. A rainha deve dar muitos filhos e, quando isso não acontece, o rei pode encontrar nova consorte. Parece até natural que o rei multiplique a sua descendência com outras damas, aparecendo os filhos na linhagem régia designados por filhos de outras mulheres. Eis alguns problemas mais frequentes, relativos ao casamento, que transparecem na Crónica. O parentesco – Os impedimentos canónicos aparecem com alguma frequência. O episódio de D. Mafalda, filha de D.Sancho I, cujo casamento com Henrique I de Castela foi declarado nulo pelo papa, é um exemplo. A infertilidade – Afonso X, por não ter filhos, cuja culpa é atribuída à rainha, decide arranjar nova esposa, uma princesa norueguesa. Mas quando a menina casadoura chegou, a sua mulher estava grávida. A solução foi casá-la com seu irmão, o infante D. Filipe, que, para o efeito, teve de abandonar a vida eclesiástica. A rainha D. Violante de Aragão acabaria por ter nove filhos. Apesar da intenção do rei em repudiar a sua legítima esposa, atitude de que se viria a envergonhar, e da numerosa prole extraconjugal, a imagem, atrás descrita, que a Crónica nos apresenta do casal, evidencia manifestação de afecto, com alguma solenidade mas com um evidente sentido familiar (fl. 318r)34. O amor desregrado – O rei, quando se apaixona perdidamente pela sua amante, é por artes mágicas da mulher, como no caso do rei Afonso VIII de Castela que, sendo casado com a filha do rei Ricardo de Inglaterra, caiu de amores, em Toledo, com uma jovem judia e “pegousse tanto della que leixou a rainha sua mulher” esquecendo-se de si e do reino. “E este tam grande amor que elle avia a esta judia que non era senon por feitiço que lhe ella sabya fazer” (fl. 272v). Os nobres, para defender o reino, não encontraram melhor solução senão degolá-la. O rei pesaroso, só deixa de pensar na “maldita” judia por intervenção divina que lhe envia um mensageiro a anunciar-lhe o castigo do seu pecado: “não ficará de ti filho que reine”. O casamento forçado – A donzela deve sujeitar-se à vontade política, com excepções, como é o caso do casamento da irmã de D. Afonso com o rei de Toledo – fl. 160 r. A Crónica descreve o rei Afonso como prudente, seguindo os conselhos dos sabedores. Nota, porém, que no início não era assim porque “deu com pouco ssiso sua irmãa por molher a Aabella rey de Tolledo” a fim de estalecer aliança com ele contra Córdova. O rei mouro, aliás, “fazia semelhança que era cristão pero encubertamenre” (fl 160). O casamento não foi, contudo, do “aprazimento de dona Tereyia” e “lhe pesou muyto por que se fezera”. A cena representada serve para construir a letra A de forma muito elegante. A rainha, de longo vestido azul, inclinada, aponta com a mão direita para o alto onde está o seu anjo protector empunhando uma espada.

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fig.11 o rei mouro de toledo aabela e d. teresa, crónica geral de espanha, lisboa, academia das ciências, ms. série azul 1, fl. 160r

O rei, com ambas as mãos, de coroa na cabeça, manto vermelho e túnica branca bordada, arrasta-a para si, puxando-lhe o braço esquerdo. A alcova está representada por um reposteiro dourado com decoração em picotado, e um chão de ladrilhos enxaquetados. A imagem e o texto estão de acordo: descreve-se a recusa da mulher em consumar o matrimónio por ser cristã: “digote que me nõ tangas ca eu quero aver tal ajuntamento com homem doutra ley”; a ameaça que ela faz ao rei de que se lhe tocar o seu anjo o matará; a violentação do rei, não se importando com as ameaças, “travou della per força e jouve com ella”. O texto diz-nos o final da história: ferido, mas não morto, envia-a para casa de seu pai. As razões do amor devem respeitar as razões sociais – Os amores de D. Urraca e D. Pedro de Lara. A cena passa-se num espaço fechado, o jardim verdejante do amor onde todos os galanteios são possíveis. Os conceitos de vergel ou virgel, horto, boosco referem-se a estes recantos da vida íntima destinados ao deleite, que, tal como o jardim do Éden, ou o hortus conclusus do Cântico dos Cânticos, é um lugar protegido, rodeado por alto muro. No centro, trocando recatados afectos, o conde D. Pedro de Lara e a rainha Dona Urraca. Conta a Crónica que D. Urraca “dera o seu amor” ao conde D. Gomez de Castela de quem teve um filho. Mas também o conde

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fig.12 dona urraca e d. pedro de lara, crónica geral de espanha, lisboa, academia das ciências, ms. série azul 1, fl. 266r

D. Pedro de Lara “ouve o amor della, en tal guisa que fez della o que lhe aprouge”. Os barões de Castela vendo o que o conde fazia à sua senhora, que ficava desonrada por querer casar com um seu vassalo, “foron todos contra elle e nõn quiseron consentir que se fizesse tal casamento”. A rainha não fica bem na história, mas a sua desonra deriva não tanto da má fama mas das pretensões dum súbdito a poder mandar por rei, que acaba morrendo na batalha, mas repentinamente, como um réprobo. O amor cortês nem sempre é puro. Os amores de D. Urraca e o Cid. Quando se fala nesta rainha o relato da Crónica parece deixar transparecer que o amor anda no ar. No início da História do Cid vemo-lo educado na corte do rei D. Fernando, em Zamora, onde foi muito bem recebido. O amor intenso que dedicava a D. Urraca era a forma de corresponder a tantos desvelos. O cronista apressa-se a esclarecer que não é o que as pessoas pensam: “E dona Orraca... lhe fazia muyta honra. E esta foy razõ por que a elle amou mais que nem huum dos seus irmaãos. E non entendades que este amor que lhe assy avya fosse por algua vylania”. No cerco de Zamora, estando do lado contrário ao da princesa, manda-o el-rei D. Sancho negociar com a irmã. E aí voltamos a pressentir a intensidade da relação, no contentamento do reencontro, na conversa a sós, nas lágrimas, no tempo que demora a

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35. Uma das invocações das Litaniae é precisamente: A subitanea et improvisa morte, libera nos Domine.

fig.13 encontro amoroso de dona urraca e o cid, crónica geral de espanha, lisboa, academia das ciências, ms. série azul 1, fl. 205r

negociar. Tudo negociações e pactos por encomenda do irmão, segundo o cronista. O texto mostra-nos um amor sem mácula; porém, o iluminador decidiu ir mais longe nesta intensa relação humana, para lá do simples assentar-se “ambos a fallar em seu estrado”, construindo, uma letra inicial antropomórfica, onde se revela a sua fértil fantasia precisamente na cena em que se relata o encontro. Ela, pudicamente coberta apenas com o véu sobre a cabeça, envolve-se num terno amplexo com um cavaleiro fogoso. Ela reconhece-se, também, pelos belos lábios vermelhos; ele, pelos bem proporcionados atributos. Mais uma vez a imagem reinterpreta o texto, introduzindo-lhe novos sentidos.

3.5 A morte do rei – Afonso VI A morte do rei, não é uma morte qualquer; é sempre anunciada. Só os maus têm uma morte súbita; o bom cristão pede a Deus, nas Ladainhas, que o livre da morte repentina e imprevista35. Há sempre um tempo, há sempre a possibilidade de arrepender-se in articulo mortis, de regularizar as suas contas com os inimigos com quem se contendeu, nem sempre com justiça, de fazer os últimos benefícios, de ditar as últimas vontades, de receber o perdão sacramental da Igreja que, por vezes, lançou anátemas sobre a conduta rebelde – como a do rei de Aragão D. Jaime que foi excomungado pelo papa – mesmo quando se é ferido em combate, ou se morre em viagem, debaixo duma azinheira. O rei Sancho, no cerco de Zamora, cercando dona Urraca, é ferido

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fig.14 a morte de afonso vi, crónica geral de espanha, lisboa, academia das ciências, ms. série azul 1, fl. 269r

de morte, por um traidor, quando, apeado do seu cavalo, faz aquilo que os homens não podem deixar de fazer, como se diz eufemisticamente na Crónica. Mas isso não é representável. O rei deve ser visto sempre envolto na dignidade e na majestade. A imagem segue o relato. A cena parte da inicial, em que se representa a morte do rei, continuando pelas margens com o funeral. O rei morto, sob uma azinheira, com todos os seus atributos, que lhe conferem a dignidade de rei mesmo na morte, rodeado pelos seus dois filhos, lembra-nos um jacente tumular. Na margem de pé, vemos os funerais, onde a imagem do pranto pelo rei não se faz por intermédio das carpideiras, proibidas em Lisboa nos finais do século XIV, mas pelo silêncio dos panos negros que envolvem o féretro e os acompanhantes.

4. Nota final com breve observação sobre a cor do rei As imagens da Crónica, desenhadas e coloridas, como se disse, no séc. XV, revelam-nos um dado interessante relativamente às cores utilizadas nas representações do rei. Em primeiro lugar, o ouro está presente, como fundo, em todas as páginas. Este facto é tanto mais significativo se nos recordarmos que na iluminura portuguesa da época, em que pre-

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valece a económica filigrana, é rara a sua utilização. Esta é, verdadeiramente, uma obra de aparato em que a filigrana desapareceu por completo. Depois, ao contrário daquilo que acontece na Europa, a cor dominante das vestes reais é o vermelho36, com duas excepções em que prevalece o azul: o rei morto Afonso VI e o rei menino Henrique de Castela. No fl. 15r. vem uma interessante nota, quando fala do termo do chão de Bellotas, sobre o pigmento utilizado para fazer o vermelhão, o mais frequente na iluminura portuguesa, desde os manuscritos mais antigos – como o Apocalipse de Lorvão –: “E em seu termho he o monte que há o vyeiro de que sacam o azougue e dally o levam para todallas partes d’Espanha e dally sacam muyto vermelhon e muy bõo que nõ sabem outro tã bõo se nõ aquelle que tragem da terra d’ultramar”. A existência de matéria-prima tão boa e abundante, pode ser uma justificação para que o vermelho continue a ser, nas Espanhas, a cor principal, não acompanhando o triunfo do azul na Europa medieval, a partir dos inícios do século XIII37. Este códice é justamente considerado o expoente da iluminura em Portugal, pela abundância e riqueza dos seus ornatos. A presença do ouro, cuidadosamente brunido e picotado, criando brilho e textura, utilizado com evidente liberalidade, mas também da cor variada na paleta e nos matizes, a que se deve juntar o desenho executado com mestria, em especial no primeiro estilo, tornam este livro um objecto faustoso, uma obra própria de reis. A sua escrita e as suas imagens já não constituem, como no passado, uma grafia dirigida aos olhos do espírito, mas à sensibilidade, ao prazer dos sentidos, pelo brilho, pela cor, pela forma e pela volumetria que a aproxima do real. É nesse sentido, que as imagens da Crónica, herdeiras da tradição medieval, anunciam já um tempo novo, não apenas pela sua utilização enquanto promotoras da figura e do poder do rei, mas, também, na forma de abordar a cor e as técnicas da sua aplicação, distantes dos velhos receituários, e no tratamento da figuração, participando das inovações da pintura, então arte maior. Habituado a bons e belos livros, como o seu Livro de Horas, que veio de Flandres, D. Duarte, o possuidor inicial deste livro da Crónica, poderia ser, também, o encomendador da sua iluminura. As semelhanças decorativas com a cópia do Leal Conselheiro poderão ir um pouco mais longe e deverão ser aprofundadas noutras direcções: a moda, o vestuário e até o retrato. O facto de alguma figuração evidenciar características físicas particulares, leva-nos a não descartar a suspeita de que o iluminador retratista possa ter utilizado intencionalmente, como modelos, as personagens que o rodeavam. A galeria de retratos, iniciada com o de D. João I, teve continuidade na pintura – nos Painéis da Veneração de S. Vicente –, mas também na iluminura, na Crónica da Guiné – onde se vê representado D. Duarte ou como, tradicionalmente se diz, D. Henrique – e, provavelmente, também na cópia da Crónica da Academia das Ciências. Estou convencido que há algumas semelhanças que podem ser mais um indício a colocar esta obra na rota da corte de D. Duarte e no tempo da regência do Infante D. Pedro38.

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36. Ex.s – fl.155r. – (cena do touro) rei com manto vermelho; fl. 160r – o rei mouro de Toledo com manto vermelho; fl. 182 r – o rei Pedro III de Aragão com manto escarlate e verde; fl.185v. Afonso III de Aragão, veste de vermelho e azul; Jaime II de Aragão, veste de vermelho; fl. 266r – A rainha veste de vermelho e o conde de Lara, o amante, de escarlate; fl 287 v, fundo de medalhão vermelho; fl.318r. Afonso X, de escarlate. 37. Ver PASTOUREAU, M., Figures et couleur..., p. 16. 38. O desenvolvimento deste estudo será feito na dissertação de doutoramento sobre a iluminura em Portugal nos séculos XIV e XV a apresentar na UNL – FCSH.


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Resumo O presente artigo constitui uma abordagem às manifestações da cultura visual na Sé de Coimbra, em contexto litúrgico, durante o episcopado de Miguel Salomão (1162-1176). A problemática em epígrafe é analisada numa perspectiva de caso, relacionada com um diploma conservado, sob a forma de cópia, no Livro preto, em que se procede à notificação da existência de bens pertencentes à catedral, extraviados ou indevidamente alienados, a pedido do prelado coimbrão, especificando-se as etapas de construção do templo, tal como as características do altar principal, na sua relação com imagens de santos.

palavras-chave sé de coimbra livro preto liturgia iconografia santos

Abstract This article focuses on the manifestations of visual culture in the Coimbra Cathedral, within a liturgical context, during the episcopacy of Miguel Salomão (1162-1176). The subject matter of the title is analysed from the perspective of a specific case, that of a copy of a diploma kept in the Livro preto (Black Book). Upon a request by the coimbran prelate, this document reports the existence of assets belonging to the cathedral that had been misappropriated or unduly alienated. It also specifies the construction phases of the temple, as well as the characteristics of the high altar with regard to the images of saints.

key-words coimbra cathedral livro preto (black book) liturgy iconography saints


imagens de santos na sé de coimbra no episcopado de miguel salomão (séc. xii) má rio d e g o u v e i a Instituto de Estudos Medievais FCSH-UNL

1. LP 3 (s.d.). O diploma foi também parcialmente transcrito e comentado em Pierre David, A Sé Velha de Coimbra das origens ao século XV, Porto, Portucalense Editora, 1943, pp. 106-107; e Armando Alberto Martins, «Dois bispos portugueses da segunda metade do século XII», in Carlos Alberto Ferreira de Almeida. In memoriam (Coordenador: Mário Jorge Barroca), vol. II, Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 1999, pp. 34-35 (apêndice A). 2. Para uma sumária descrição do códice diplomático, leia-se Armando Alberto Martins, O mosteiro de Santa Cruz de Coimbra na Idade Média, Lisboa, Centro de História da Universidade de Lisboa, 2003, pp. 67-68, no mais alargado contexto da afirmação de Coimbra como núcleo de atracção e produção de códices analisado em Avelino de Jesus da Costa, «Coimbra – centro de atracção e de irradiação de códices e de documentos, dentro da Península, nos sécs. XI e XII», in Actas das II jornadas luso-espanholas de história medieval, vol. IV, Porto, Instituto Nacional de Investigação Científica, 1990, pp. 1309-1334. Tenha-se ain-

O objectivo desta comunicação é estudar o conjunto das imagens de santos presentes no mobiliário litúrgico da Sé de Coimbra durante o episcopado de Miguel Salomão. A análise da problemática aqui proposta decorre da leitura de um diploma em particular1, conservado sob forma de cópia não-datada no cartulário diocesano conhecido pela designação de Livro preto, produzido, como memória de arquivo, com o objectivo de recolher os instrumentos jurídicos probatórios dos direitos, garantias e privilégios que a Sé de Coimbra e a canónica de St.ª Maria terão adquirido ao longo dos anos, em particular a partir dos finais do século IX2. O diploma ocupa três fólios do cartulário (fl. 2 v.º-4 v.º), sendo a sua pouco comum extensão, por comparação à de outras cartas igualmente copiadas e reunidas nesta colectânea documental, resultado do facto de nele se proceder ao inventário dos bens que configuram o património do cabido catedralício na segunda metade do século XII. A reflexão que aqui propomos corresponde, portanto, a uma análise de caso. O seu objecto é a relação do património da Sé Velha elaborada a pedido do bispo Miguel Salomão (1162-1176), com o objectivo de se proceder à notificação, numa apologia de provas a contrario visando refutar as acusações de que o prelado se sentia vítima, sobretudo depois da concessão da polémica Carta libertatis ao mosteiro de cónegos regrantes de St.ª Cruz, em 1162, da existência de bens pertencentes à igreja catedralícia extraviados ou indevidamente alienados, complementada

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da em conta, tal como refere o primeiro autor, que «a leitura dos seus diplomas deve fazer-se de forma cautelosa e crítica pois, como os já citados historiadores Gérard Pradalié e Pierre David apuraram, vários dos documentos foram, em épocas de animosidade e disputa de poderes, intencionalmente falsificados.» (p. 68, referindo-se aos trabalhos de Pierre David, «Regula sancti Augustini. A propos d’une fausse charte de fondation du chapitre de Coimbre», Revista portuguesa de história, t. III, 1947, pp. 27-39; e Gérard Pradalié, «Les faux de la cathédrale et la crise à Coïmbre au début du XIIe siècle», Mélanges de la Casa de Velázquez, 10, 1974, pp. 77-98). 3. Para uma análise do contexto histórico de pontificado de Miguel Salomão, veja-se, em particular, José Mattoso, D. Afonso Henriques, Lisboa, Círculo de Leitores, 2006; com o complemento de Leontina Ventura, «Coimbra medieval», in Economia, sociedade e poderes. Estudos em homenagem a Salvador Dias Arnaut, Coimbra, Editora Ausência, 2004, pp. 23-40.

fig.1 coimbra. sé velha. fachada ocidental © fotografia de josé custódio vieira da silva

por uma análise sobre os gestos de benemerência episcopal a favor das igrejas de St.ª Maria, S. João e St.ª Cruz3. O laconismo do diploma – característica que é transversal a grande parte da documentação da época4 – não nos permite tecer considerações pormenorizadas sobre as imagens presentes na catedral à luz de leituras iconológicas, talvez efectuadas pelos membros da hierarquia eclesiástica ou pelos fiéis que acorriam à igreja em cumprimento das suas práticas de religiosidade pessoal5. É, pelo contrário, possível analisá-las numa perspectiva atenta ao carácter das representações iconográficas sobre suporte existentes no interior do templo, enquanto expressão de um contexto religioso em que a narratividade do sagrado se exprime também ao nível da cultura visual6. A análise passível de ser feita com base neste diploma centra-se no espaço interior da

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4. Analise-se, desde logo, o instrumento à luz do que escreveu Maria do Rosário Barbosa Morujão, «A Sé de Coimbra, centro de produção documental no tempo de D. Afonso Henriques», in Maria Helena da Cruz Coelho, Maria José Azevedo Santos, Saul António Gomes e Maria do Rosário Morujão, Estudos de diplomática portuguesa, Lisboa, Edições Colibri – Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2001, pp. 141-166. Da mesma autora, A Sé de Coimbra. A instituição e a chancelaria (1080-1318), Coimbra, 2005 (Edição policopiada da Tese de Doutoramento apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra). 5. Trata-se de uma problemática relativamente à qual as fontes disponíveis nos dão apenas escassos testemunhos, conforme se depreende da leitura de Mary Charles Murray, «Preaching, Scripture and visual imagery in Antiquity», Cristianesimo nella storia. Ricerche storiche, esegetiche, teologiche, vol. XIV/3, Outubro de 1993, pp. 481-503. Tal como nos apontou Giles Constable, «The language of preaching in the twelfth century», Viator. Medieval and Renaissance studies, vol. 25, 1994, pp. 131-152, esta questão não pode deixar de ser analisada à luz dos instrumentos de pregação ao serviço dos clérigos, uma vez que é neles que encontramos os modelos narrativos, na maioria dos casos identificados com episódios das Sagradas Escrituras, e, em particular,


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do Novo Testamento, transpostos para os registos pictórico e escultórico nas igrejas medievais. 6. As características gerais dos processos de representação pictórica em que se atesta a dimensão narrativa do sagrado foram analisadas por Barbara Abou-El-Haj, The medieval cult of saints. Formations and transformations, Cambridge, Cambridge University Press, 1997, pp. 33-60. 7. Numerosos testemunhos documentais permitem-nos afirmar que as relíquias conservadas na Sé de Coimbra nos finais do século XI se identificam ainda com as que supostamente terão existido na igreja desde as suas primeiras referências diplomáticas. Nos finais do século IX, e, mais concretamente, durante o episcopado de Nausto, entre 867 e 912 – personagem que inaugura a sucessão de prelados coeva da presúria da cidade por Hermenegildo Guterres, em 878 –, surgem já referências à titularidade celeste de St.ª Maria, que se afirma desde o primeiro momento como orago primário da sede diocesana, então designada como ecclesia, sedis, canonica sedis, episcopalis sedis ou pontificalis sedis. Por ordem cronológica de referência documental, cf., para St.ª Maria: LP 360 ([867-912]); LP 456 (1083.08.08); LP 312 (1083.12.17); LP 101 (1086.03.25, falso); LP 16 (1086.04.13, falso ou interpolado); LP 170 (1086.04.19); LP 87 (1086.07.12); LP 20 (1086.11.24); LP 558 ([1086-1091]); LP 349 (1087.01); LP 19 e 78 (1087.03.15); LP 373 (1087.03.29); LP 251 (1087.04.26, falso ou interpolado); LP 578 (1087.05, falso); LP 256 (1087.12.22); LP 398 (1088.01.03); LP 286 (1088.01.16); LP 21 (1088.03.01, falso); LP 275 (1088.04.14); LP 390 e 552 (1088.09, falso ou interpolado); LP 384 (1089.02.19); LP 447 (1089.10); LP 388 (1090.05.26); LP 452 (1091.06.08); LP 343 (1091.07.26); LP 423 (ant. [1092]); DC 775 (1092.04.13); DC 791 (1092); LP 272 e 323 ([1092-1098]); LP 394 ([1092-1098]); LP 415 ([1092-1098]); LP 32 e 173 (1094.02.24); LP 175 (1094.03.23); LP 385 (1094.04.30); LP 280 (1094.08.01); LP 82 (1094.11.13); LP 302 (1095.02.26); LP 418 (1095.07.18); LP 49 (1095.12.24); LP 45 (1096.02.15); LP 246 (1096.04.18); LP 420 (1096.10.03); LP 290 (1097.04.29); LP 289 (1097.04.30); DC 869 (1098.01.10); LP 427 (1098.12.03); LP 317 (1099.01.04); LP 47 (1099.03.19); LP 48 (1099.03.20); LP 43 (1100.12.19); EMP, vol. II, t. 1, n.º 42 ([finais do séc. XI]); para S. Pedro: LP 170 (1086.04.19); para S. Martinho: LP 170 (1086.04.19); LP 390 e

igreja, e pode, por esse motivo, relacionar-se com um conjunto de práticas litúrgicas e paralitúrgicas associadas à existência de relíquias, aí conservadas pelo menos desde a restauração da diocese, em 1080, na sequência do provimento de Paterno, então bispo de Tortosa, na cátedra episcopal, poucos anos depois da conquista definitiva de Coimbra pelos cristãos, ocorrida no reinado de Fernando I de Leão, em 10647. O conteúdo do diploma é bastante variado, pelo que dele podem extrair-se informações que nos permitem caracterizar vários aspectos da vida dos clérigos coimbrãos na segunda metade do século XII, ou seja, num período crucial da afirmação de Coimbra como capital do reino de Portugal, pouco depois da fundação do mosteiro de St.ª Cruz por iniciativa de Afonso I, em 11318. Não se trata de um registo de inventário semelhante aos que foram até então produzidos por várias comunidades monásticas do território de fronteira9, geralmente com o objectivo de salvaguardar os respectivos direitos em acções de litígio movidas por terceiros ou, inclusive, no quadro de instabilidade política provocado pelo avanço das hostes de Fernando I no sector ocidental do reino, entre 1057 e 1064, mas de um diploma que procura especificar a natureza dos bens reivindicados pela sede diocesana, na sua maioria parcelas de terra dispersas em ambas as margens do rio Mondego, com os respectivos prédios rústicos, para além do respectivo regime jurídico de posse e propriedade, ou inclusive a sua função no quadro das actividades económicas próprias de um contexto rural medieval. O primeiro elemento a ter-se em conta nesta análise é, naturalmente, a tipologia do registo. A expressão que nos permite integrá-lo na categoria de inventário – «Minnotatjo testamentorum siue hereditatum sedis sanctæ Marie colimbiensis . quæ distractæ fuerunt . et dilapidatæ . et uenditæ . et a sede alienatæ . per quosdã *antecessores* presumptores eiusdem sedis episcopos» – identifica-o como uma relação das propriedades da igreja de St.ª Maria da Sé de Coimbra alienadas do domínio eclesiástico pelos próprios representantes da hierarquia diocesana, sem o consentimento dos membros da canónica, embora recuperadas e restituídas à igreja, «magno labore et sudore», pelo bispo Miguel Salomão, tendo como seu coadjuvante o monarca Afonso I. Esta ideia serve-nos para sublinhar, desde já, um aspecto: não estamos a falar apenas de uma relação de bens subtraídos à catedral, mas de um instrumento jurídico que traduz uma política de benemerência concertada entre o bispo e o rei a favor da diocese, ou que, pelo menos, procura dar uma imagem de proximidade entre as duas instituições susceptível, dadas as circunstâncias em que o diploma foi elaborado, de enaltecer a figura do prelado coimbrão e a natureza privilegiada dos círculos de relacionamento da hierarquia diocesana pelos finais do século XII. O diploma prossegue com a enumeração dos nomes de todos aqueles que, «cõtra ius . et contra rectum», devem ser apontados como responsáveis pelo extravio dos bens eclesiásticos. Os predecessores de Miguel na cátedra episcopal são vistos, «per__curiã et negligentjã», como parte implicada no procedimento de alienação de bens. A lista, contudo, não se esgota nestes casos: os visados são sobretudo os leigos, detentores das propriedades cujos direitos de posse e usufruto deveriam pertencer à sede catedralícia. A condenação do autor material do diploma – cujo nome

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nunca chega sequer a ser mencionado, facto relativamente comum na Alta Idade Média quando se trata de títulos jurídicos com o carácter de inventários patrimoniais – recai sobre quem, por inerência de funções, deveria proteger e salvaguardar o património eclesiástico de alienações indevidas. Mas faz sentir-se também sobre os fiéis que retinham para si esses direitos, expoliando a igreja dos bens que haviam sido legitimamente adquiridos ao longo dos anos, e fazendo a sua própria alma precipitar-se sobre o «abismo da danação», para recuperar a expressão consignada no texto. Trata-se, em termos gerais, de nomes de cristãos e de judeus estabelecidos no vale do rio Mondego, em referências isoladas, ou, por vezes, associadas entre si de forma a sublinhar a existência de vínculos de consanguinidade e parentesco, por vezes identificados também com base nos locais onde eram proprietários. Se grande parte dos nomes identifica personagens obscuras, cujo percurso biográfico é hoje difícil de se reconstituir com precisão, não pode deixar de apontar-se, entre os nomes citados, o de um alcaide, um besteiro e um pescador. Estão, portanto, representados indivíduos de condições sociais diversas, na sua maioria pequenos ou médios proprietários de bens situados em meio rural e urbano, chegando o número de leigos mencionados nesta perícope – a expressão «et alij quamplures» indica-nos que não se trata de uma lista completa – a ascender a quarenta indivíduos. Os lugares contemplados – S. Martinho do Bispo, Marrondos, Areias, Fontoura, Antanhol e Mouriscas – são identificados de forma muito sumária, mas, no seu conjunto, permitem-nos obter uma primeira imagem da cartografia do património alienado: as margens do rio Mondego. Segue-se no diploma a caracterização dos bens propriamente ditos. O documento adopta aqui uma dupla estratégia: enumera primeiro os bens situados em meio rural, e só depois passa para os bens implantados em meio urbano. Num caso como noutro, a tipologia das propriedades é muito variada. Estamos perante uma relação de propriedades constituída por parcelas de terra situadas em ambas as margens do rio Mondego, cujos limites e confrontações são definidos no texto e caracterizados com base nos seus elementos constituintes – unidades de exploração agrícola de tipo vila ou casal, alegadamente compradas por quantias variáveis de moeda ou doadas aos cónegos, dotadas de infra-estruturas rústicas, como moinhos, para além de algumas mais escassas igrejas10 – e inclusive nos direitos que também outros colectivos religiosos, como os cónegos de S. Jorge, St.ª Justa e St.ª Cruz de Coimbra, ou ainda os monges de St.ª Maria de Alcobaça, auferiam, legítima ou ilegitimamente, da posse destas parcelas de terra. Com base neste diploma, a canónica afirma-se como detentora de um significativo número de casas, igualmente compradas ou doadas pelos seus proprietários, ou até em trânsito de litígio com outros indivíduos e instituições, situadas tanto no interior como no exterior do perímetro de muralhas da cidade. Ao enumerar as propriedades situadas em meio urbano, o inventário volta a referir como o bispo se terá dedicado pessoalmente, com o auxílio de Deus e de St.ª Maria, à tarefa de reconstituição do património perdido, contando para isso com o apoio do monarca. Neste passo, coloca a tónica sobre o percurso biográfico do prelado11, referindo como, na sequência de

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552 (1088.09, falso ou interpolado); para a St.ª Cruz ou St.º Lenho: LP 19 e 78 (1087.03.15); LP 47 (1099.03.19); LP 48 (1099.03.20); para S. Salvador: LP 390 e 552 (1088.09, falso ou interpolado); e, para os Doze Apóstolos: LP 390 e 552 (1088.09, falso ou interpolado). Numerosos outros diplomas, com diacronia entre [906] (LP 354, de [906.01.11]; cf. LP 355 e LP 356) e 1099 (DC 916, de 1099.09.03), omitem os respectivos oragos. 8. Sobre o assunto, vejam-se Armando Alberto Martins, O mosteiro…, pp. 28-71 e 73-347 (sobretudo as pp. 199-202); e Saul António Gomes, In limine conscriptionis. Documentos, chancelaria e cultura no mosteiro de Santa Cruz de Coimbra (séculos XII a XIV), Viseu, Centro de História da Sociedade e da Cultura – Palimage Editores, 2007, pp. 105-178, em especial, as pp. 153-158 e 601-615, com informações sobre o impulso dado pelo monarca português à fundação do mosteiro, na sua relação com o desenvolvimento da chancelaria coimbrã. Ainda José Mattoso, D. Afonso…, pp. 112-124. 9. A lista é relativamente extensa, pelo que nos limitamos a citar os documentos elaborados na segunda metade do século XI: DC 378 (1050), DC 420 (1059), LP 73 (1064), DC 450 (1065), DC 459 (1067), DC 549 (1077) e DC 952 (s.d.). 10. A título geral, leiam-se Robert Durand, Les campagnes portugaises entre Douro et Tage aux XIIe et XIIIe siècles, Paris, Fundação Calouste Gulbenkian/Centro Cultural Português, 1982; Deniz de Ramos, Subsídios para a história da vinha na Bairrada (séculos X ao XII), Anadia, Associação de Jornalistas e Escritores da Bairrada, 1991 (compare-se com Robert Durand, «La vigne et le vin dans le bassin du Mondego au Moyen Âge (XIIe-XIIIe siècles), Arquivos do Centro Cultural Português, 5, 1972, pp. 13-37); e Jorge de Alarcão, In territorio Colimbrie: lugares velhos (e alguns deles, deslembrados) do Mondego, Lisboa, Instituto Português de Arqueologia, 2004. 11. Leia-se Armando Alberto Martins, O mosteiro…, pp. 284-292, com ampla bibliografia sobre Miguel Salomão e o desempenho do seu munus episcopal, na relação com a Sé e o mosteiro de St.ª Cruz de Coimbra; e, do mesmo autor, «Dois bispos…», pp. 28-30.


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fig.2 coimbra. sé velha. cabeceira © fotografia de josé custódio vieira da silva

uma grave enfermidade, Miguel, que desempenhara as funções de prior da Sé, teria sido acolhido pelos cónegos de St.ª Cruz, não sem antes deixar à comunidade de St.ª Maria grandes quantidades de consumíveis que garantiriam a subsistência dos membros da canónica, entre moios de trigo, cevada e milho, quarteiros de chícharo e outras leguminosas, quinais de vinho e óleo, e ainda gado vário, como cento e sessenta vacas, cem ovelhas, duas éguas e dois burros.

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fig.3 coimbra. sé velha. nave central. tribuna © fotografia de josé custódio vieira da silva

12. Vejam-se, de António Garcia Ribeiro de Vasconcelos (Dr.), Sé-velha de Coimbra (apontamentos para a sua história), Coimbra, Imprensa da Universidade, MDCCCCXXX-MDCCCCXXXV; e «A catedral de Santa Maria colimbriense ao principiar o século XI. – Mozarabismo desta região em tempos posteriores», Revista portuguesa de história, t. I, 1940, pp. 113-140; e António Nogueira Gonçalves, A Sé-Velha conimbricense e as inconsistentes afirmações histórico-arqueológicas de M. Pierre David, Porto, MCMXLII. A título complementar, leiam-se A. C. Borges de Figueiredo, Coimbra antiga e moderna, Lisboa, Livraria Ferreira, MDCCCLXXXVI, pp. 123-144; Vergílio Correia, «A arquitectura em Coimbra», in Obras, vol. I: Coimbra, Coimbra, Por Ordem da Universidade, 1946, pp. 58-64; Carlos Alberto Ferreira de Almeida, «Influências francesas na arte românica portuguesa», in Histoire du Portugal. Histoire européenne. Actes du colloque (Paris, 22-23 mai 1986), Paris, Fondation Calouste Gulbenkian/ Centre Culturel Portugais, 1987, pp. 28-32; e História da arte em Portugal, 1: Carlos Alberto Ferreira de Almeida, O românico, Lisboa, Editorial Presença, 2001, pp. 68 e 130-134.

fig.4 coimbra. sé velha. claustro © fotografia de josé custódio vieira da silva

A partir daqui, descreve-se com algum detalhe o contributo dado por Miguel às obras de construção da Sé Velha12, sublinhando-se não só os comportamentos de benemerência por parte do prelado, mas também os que, diligenciados por outros fi éis, tornaram possível a dotação da catedral. Em honra de Deus e de St.ª Maria, e procurando a Sua intercessão junto do St.mo Salvador no dia do Juízo Final, o prelado terá retirado das suas próprias riquezas quinhentos morabitinos para subven-

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fig.5 coimbra. sé velha. nave central © fotografia de josé custódio vieira da silva


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13. LK, t. I, pp. 70, 112, 205 e 305; e t. II, p. 122. Isaías da Rosa Pereira, «Livros de Direito na Idade Média», Lusitania sacra. Revista do Centro de Estudos de História Eclesiástica, t. VII, 19641966, pp. 22-23, anexo, doc. n.º 9, alíneas e e h; Avelino de Jesus da Costa (P.e), A biblioteca…, pp. 58-60, apênd. I, n.os 2-3, 8, 12 e 14. 14. LK, t. I, p. 275. Avelino de Jesus da Costa (P.e), A biblioteca…, p. 59, apênd. I, n.º 7. 15. LK, t. II, pp. 229 e 293. Avelino de Jesus da Costa (P.e), A biblioteca…, p. 60, apênd. I, n.os 9 e 15. 16. LK, t. I, p. 319. Avelino de Jesus da Costa (P.e), A biblioteca…, p. 58, apênd. I, n.º 1. 17. LK, t. I, pp. 73, 79, 83, 125 e 215; e t. II, pp. 132, 172, 217, 242, 249-250 e 288. Avelino de Jesus da Costa (P.e), A biblioteca…, pp. 59-61, apênd. I, n.os 4-6, 10-11, 13 e 16-20. 18. Armando Alberto Martins, O mosteiro..., p. 286. Segundo testemunho de Miguel Ribeiro de Vasconcelos, «notam-se quatro épocas na vida deste bispo: a primeira, quando foi prior da Sé; a segunda, quando largou o priorado para passar ao mosteiro de Santa Cruz; a terceira, quando foi bispo; a quarta, quando renunciou ao bispado e voltou para Santa Cruz» (apud Armando Alberto Martins, O mosteiro…, p. 286).

cionar a edificação do templo, e dado aos cónegos outros cinquenta, para além de um jugo de bois, no valor de doze morabitinos, a ser usado nos trabalhos de construção. A dotação da igreja, sobretudo no que respeita à composição do seu mobiliário, parece ter sido também largamente tributária da acção do bispo. Convém, neste passo, sublinhar mais uma vez que se trata de um instrumento elaborado a pedido do prelado, pelo que também daqui decorre a centralidade da figura episcopal enquanto agente interveniente no processo de edificação e dotação do templo. Contudo, os seus gestos correspondem a práticas paralelas às de vários outros leigos e religiosos que também contactaram com as autoridades diocesanas, mesmo antes da ascensão de Miguel à cátedra episcopal. O obituário diocesano é prolixo em informações deste género, até para os séculos XI e XII. Nele se encontram, entre os nomes dos benfeitores da canónica de St.ª Maria, os dos bispos Paterno, Crescónio, Gonçalo, Bernardo e João, que terão doado a esta instituição vários livros litúrgicos, canónicos e patrísticos, para além de paramentos de seda e de linho, como estolas, manípulos e sandálias, báculos de marfim, alfaias de prata, entre cálices, urcéolos, colheres, turíbulos e candelabros, anéis de ouro, um dos quais com uma safira incrustrada, e inclusive uma âmbula de bálsamo13; o do prior Martinho Simões, associado a um cálice de prata e um livro14; os das rainhas Teresa e Mafalda, a indumentárias de seda e de linho, como capas e mantéis, e novas alfaias litúrgicas, entre acéteres e píxides de marfim15; o de João Gondesendes, cavaleiro de Coimbra, a uma cruz, também de prata, transportada habitualmente em procissões16; ou ainda o de vários outros leigos e religiosos, na maioria dos casos acompanhados de livros com os mesmos conteúdos temáticos e alfaias destinadas às celebrações do culto litúrgico17. Se estas figuras desempenham um papel fundamental no crescimento do património diocesano, sobretudo a partir da conquista da cidade, num momento em que os velhos mosteiros rurais ligados à nobreza condal, como Lorvão e Vacariça, passam para segundo plano no quadro das práticas de benemerência dos pequenos e médios proprietários rurais do Entre-Douro-e-Mondego, o mesmo deve dizer-se a respeito de Miguel, de origem moçárabe, prior da Sé Velha e cónego do mosteiro de St.ª Cruz, que, entre 1162 e 1176, desempenhou funções de bispo de Coimbra após a destituição de João Anaia. Tendo recebido a sua formação cultural e intelectual no meio catedralício, foi primeiramente diácono, desempenhando, nessa qualidade, funções como notário ao serviço do cabido, e, posteriormente, cónego regrante no mosteiro de fundação régia, onde se encontrava quando foi eleito bispo, após um longo período de sede vacante, depois da forçada demissão de João, pontífice entre 1147 e 1155, e para o qual voltou. Como sétimo prelado da diocese restaurada de Coimbra, exerceu o seu munus episcopal durante cerca de catorze anos, até à altura em que, após resignação das funções episcopais, voltou a recolher-se ao mosteiro de origem, onde veio a morrer a 5 de Agosto de 1180. Ao longo do seu pontificado – que, no dizer de Armando Alberto Martins, «tinha como plano unir no mesmo espírito de fraternidade e colaboração as duas instituições canonicais da cidade»18 –, desenvolveu uma intensa actividade no sentido de favorecer a consolidação da autoridade episcopal numa das mais importantes cidades de um reino ainda em alargamento de

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fronteiras. É disso exemplo a elaboração do Livro preto, enquanto repositório dos direitos jurisdicionais e dominiais da diocese, e, naturalmente, enquanto suporte material do diploma que temos vindo a mencionar. Da sua actuação como prelado restam hoje, para além de alguns documentos avulsos ou integrados na colecção diplomática, duas importantes notícias: a memória funerária do obituário da catedral, hoje conhecido pela designação de Livro das calendas19, que nos permite falar de Miguel como um dos principais benfeitores da canónica de St.ª Maria, e o supracitado instrumento de inventário20. No seu conjunto, estes dois registos dão-nos testemunho das obras de construção da Sé Velha, aí se encontrando alguns elementos que nos remetem para os momentos de sufragação da catedral coimbrã na segunda metade do século XII, tal como para os agentes implicados nos trabalhos de construção ou inclusive as quantias dispendidas pelas autoridades da diocese como forma de pagamento pela presença de mestres e serviçais. Parecem-nos especialmente relevantes, até pelo pormenor com que são descritos nos registos, os dados que nos permitem reconstituir parcialmente o interior da estrutura eclesiástica. Há elementos que nos permitem caracterizar o mobiliário aí presente por doação do bispo, e que por isso também sustentam um melhor entendimento da natureza das representações visuais dominantes neste contexto litúrgico e paralitúrgico adaptado aos cânones da reforma romano-cluniacense. A análise que se pode fazer, a partir do inventário, de alguns dos bens móveis e imóveis legados à catedral por Miguel, que, pelo facto de conterem representações pictóricas, nos permitem falar da presença de determinados episódios escriturísticos, associados a modelos específicos de santidade cristã, como parte integrante do programa visual concebido pelas autoridades diocesanas, é disso um claro exemplo. Estas imagens surgem descritas no inventário, ainda que muito sumariamente, em ementas isoladas, onde cada objecto surge na sua individualidade própria. Atendendo a que estas descrições não são apenas simples enumerações de bens, daqui decorre a possibilidade de se efectuar uma leitura mais pormenorizada das respectivas características técnicas e estéticas, e, consequentemente, do âmbito temático das imagens presentes no interior do templo. Contudo, pelo facto de pertencerem a um programa iconográfico concebido e desenvolvido numa mesma etapa de sufragação da Sé Velha, é também necessário integrá-las numa perspectiva de análise de conjunto, para que possamos compreendê-las como elementos simbolicamente relacionados entre si num mesmo contexto litúrgico e paralitúrgico. Ao mestre Bernardo, que se terá dedicado às obras de construção da igreja durante cerca de dez anos, Miguel doa cento e vinte e quatro morabitinos, para além de lhe conceder alimentação e vestuário; ao seu sucessor, Soeiro, destina uma veste, um moio de pão e um quinal de vinho; e ao mestre Roberto, que se terá deslocado de Lisboa a Coimbra pelo menos em quatro ocasiões, entre 1162 e 117621, com o objectivo de inspeccionar o andamento das obras e contribuir para a melhoria da porta principal da igreja, concede, de cada vez, sete morabitinos, e sustenta as respectivas despesas de alimentação à base de pão, carne e vinho, tanto para si, como para os seus quatro serviçais e quatro burros22. Apesar de se encontrar implícito nesta passagem do

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19. LK, t. II, pp. 73-74 (ementa de 5 de Agosto). Sobre a morte de Miguel, veja-se ainda EMP, vol. II, t. 1, n.º 165 (1180.08.05). 20. LP 3 (s.d.). 21. Segundo Carlos Alberto Ferreira de Almeida (História…, pp. 133-135), «sabe-se que o Mestre Roberto, arquitecto da Sé de Lisboa, veio quatro vezes a Coimbra, entre 1162 e 1176, para resolver problemas da sua construção, mormente os da fachada. A este arquitecto, seguramente estrangeiro, se deve atribuir o projecto da obra. Não admira pois que esta catedral tenha bastantes coisas em comum com a de Lisboa, mormente no uso de galerias de circulação que tanto animam os seus muros e a caracterizam. Trabalharam ainda na Sé conimbricense os mestres arquitectos Bernardo e depois Soeiro. A datação da Sé Velha de Coimbra não tem grandes problemas. Pensada a partir dos meados do século XII, as suas obras foram impulsionadas pelo bispo D. Miguel Salomão a partir de 1162. Na década de 80 abre-se ao culto, embora as obras de ultimação e da torre cruzeira continuem e cheguem aos inícios do XIII» (p. 133). 22. Veja-se, sobre estas duas figuras, António Garcia Ribeiro de Vasconcelos (Dr.), Sé-velha…, vol. II, pp. 67-93. A construção da Sé de Lisboa foi iniciada pouco depois da conquista da cidade por Afonso I de Portugal, em 1147, tendo o primeiro bispo da recém-restaurada diocese sido Gilberto de Hastings, provável fundador das paróquias de S. Vicente de Fora, N.ª Sr.ª dos Mártires e St.ª Justa, morto em 1164. Em 1149, o monarca português concede ao bispo trinta e duas mesquitas, com as respectivas herdades e rendimentos, para as obras de construção da catedral. À construção da igreja ter-se-ão seguido a definição dos respectivos limites jurisdicionais, a instalação do cabido e a fundação de uma escola catedralícia, destinada a garantir as práticas de administração da diocese e instrução do clero. Sobre as circunstâncias que terão envolvido a sagração do primitivo edifício afonsino e a sua evolução institucional na época medieval, leia-se Carlos Guardado da Silva, Lisboa medieval. A organização e a estruturação do espaço urbano, Lisboa, Edições Colibri, 2008, pp. 203 e 216-229 (com breve ref.ª à acção de Roberto nas pp. 216-217).


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23. Leia-se António Garcia Ribeiro de Vasconcelos (Dr.), Sé-velha…., vol. II, pp. 9-66. O autor propõe a identificação do altar mencionado no instrumento com um altar encontrado no cemitério de St.º António dos Olivais (freg. de St.º António dos Olivais, conc. de Coimbra, dist. de Coimbra), em 1931, reintegrado na capela-mor da Sé, em 1932, juntamente com duas colunas românicas vindas do acervo do Museu Nacional Machado de Castro. Trata-se, segundo António de Vasconcelos, de um testemunho arquitectónico do acto de sagração da igreja e sua abertura ao culto em Novembro ou Dezembro de 1184, no episcopado de Martim Gonçalves (1183-1191) (identificação e proposta de datação aceite por Vergílio Correia, António Nogueira Gonçalves e José Maria Cordeiro de Sousa, mas contestada por Pierre David, Costa Pimpão e Manuel Luís Real, conforme se depreende do comentário de Mário Jorge Barroca à extensa bibliografia produzida sobre o tema em EMP, vol. II, t. 1, n.º 150, de [1174.11.12-1175.06.23]). O altar, fabricado em calcário, teria sido assente a meio da abside da igreja, apresentando uma epígrafe comemorativa da sagração gravada na secção lateral superior do respectivo pé, publicada mais recentemente, com análise das respectivas variantes de leitura e proposta de fixação do texto epigráfico, por Mário Jorge Barroca, que, na peugada de Pierre David, o atribui a uma data crítica situada entre [12 de Novembro de 1174] e [23 de Junho de 1175]. A sua reconstituição, sem abreviaturas, é feita pelo epigrafista nos seguintes termos: «Consacrato Fuit In Era M CC XX II Per Manus Domnus Michael Episcopus Colimbriensis Regnante Domno Alfonso Anno Regni sui X’VI ET ETATIS FILII EIUS REGIS SANTII XXI». O paralelo português mais próximo do altar coimbrão é, ainda segundo Mário Jorge Barroca, o pé-de-altar da igreja de Vestiaria, em Alcobaça, hoje reaproveitado como pia de água benta (sobre o significado simbólico do altar como núcleo da celebração eucarística na diplomática conimbricense, veja-se ainda Mário de Gouveia, «As mãos na cultura letrada das sociedades de fronteira da Alta Idade Média hispânica. Expressões diplomáticas de funcionalidade e ritualidade», in O corpo e o gesto na civilização medieval [Actas do encontro, 11-13 de Novembro de 2003; coordenação de Ana Isabel Buescu, João Silva de Sousa e Maria Adelaide Miranda], Lisboa, Edições Colibri – Núcleo Científico de Estudos Medievais/Instituto de Estudos Medievais da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 2006, pp. 150-152).

diploma um especial cuidado com o acesso principal ao templo, nada nos é avançado quanto à natureza das representações iconográficas dominantes na porta da igreja. As imagens que de alguma forma se relacionam com memórias sagradas, e que são alvo da nossa mais cuidada atenção, restringem-se ao interior do templo, e tendem, naturalmente, a distribuir-se à volta do centro simbólico da estrutura eclesiástica: o altar principal23. É aí que vamos encontrar o mobiliário litúrgico, algum do qual com representações iconográficas, a que várias das últimas ementas do inventário se referem. Quanto a esta questão, o primeiro elemento a destacar-se tem a ver com o facto de Miguel ter doado quarenta morabitinos para as obras de construção e decoração da mesa e das colunas do altar da Beatíssima Mãe de Deus, tal como de pavimentação das absides da igreja com pedra quadrada de boa qualidade. Em honra de St.ª Maria e da St.ma Trindade, doou ao templo, para remissão de seus pecados e remédio de sua alma, sob intercessão de Deus Misericordioso, uma cruz de ouro puro no valor de setecentos morabitinos, destinada a permanecer «in perpetuum» no altar da Virgem, no interior da qual ordenou fossem guardadas relíquias várias. Embora sem particularizar a natureza das relíquias – a ementa remete-nos genericamente para a existência de «de sepulco dñi pars una maior, et aliae particulae *minores*» –, a sua associação à Cruz de Cristo permite-nos pensar na hipótese de se tratar de relíquias do St.º Lenho, que, na verdade, existem na Sé de Coimbra pelo menos desde 1099, data em que são aí mencionadas pela primeira vez24. A estas juntam-se ainda duas outras relíquias que o inventário descreve, com algum pormenor, como fazendo parte da morfologia do próprio objecto: duas pedras provenientes do Monte Calvário, uma das quais ostentando, ao centro, a imagem esculpida do Senhor do Crucifixo, trazendo junto aos Seus pés as relíquias da St.ª Cruz. Na representação do crucifixo encontrava-se, de um lado, a imagem de St.ª Maria, e, do outro, a de S. João. A outra pedra, extraída igualmente do Monte Calvário, permanecia fixa na base da cruz áurea, presa ao suporte metálico, e ostentava, no seu interior, relíquias do St.º Lenho dispostas de forma a reproduzir a imagem do instrumento de suplício de Cristo, o Salvador dos homens e Redentor do mundo. Para além deste importante testemunho, que nos remete para o fenómeno de circulação de relíquias da Terra Santa e a sua deposição na Sé Velha de Coimbra nos finais do século XII, num contexto associado a obras de construção da igreja, e, por conseguinte, de sagração de um novo templo na cidade25 – recorde-se que o bispo Gonçalo Pais trouxera de Jerusalém relíquias do St.º Lenho e de St.ª Maria; de Constantinopla, relíquias de mártires e apóstolos; e de Roma, relíquias de S. Pedro e S. Paulo, para além de vários paramentos eclesiásticos de seda, entre estolas, manípulos e sandálias, uma tábua de marfim insculturada com a representação do Senhor do Crucifixo e diversas alfaias litúrgicas de prata26; e que, ainda antes dele, o cônsul Sesnando Davides solicitara ao prior Martinho Simões a trasladação de parte das relíquias do St.º Lenho conservadas na catedral, para que pudesse proceder-se à sagração da igreja de S. Miguel, por si fundada na cidade num contexto de revitalização dos antigos espaços de culto cristão no quadro do estabelecimento das autoridades leonesas na fronteira do Mondego, por volta de 108727 –, outras ementas

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24. LP 47 (1099.03.19) e LP 48 (1099.03.20). 25. As ligações entre Portugal e a Terra Santa encontram-se atestadas desde épocas remotas, ajudando-nos, desta maneira, a explicar a presença na Sé de Coimbra, durante o século XII, de elementos próprios da cultura religiosa com origem oriental, entre relíquias, alfaias e paramentos litúrgicos. Estes testemunhos prendem-se, fundamentalmente, com o desenvolvimento das primeiras acções de Cruzada da Cristandade ocidental, sob impulso das monarquias europeias e da cúria pontifícia romana, a partir do século XI (Armando de Sousa Pereira, Representações da guerra no Portugal da Reconquista (séculos XI-XIII), Lisboa, Comissão Portuguesa de História Militar, 2003, pp. 143-169), tal como do incremento das práticas de peregrinação aos lugares santos (José Mattoso, D. Afonso…, pp. 88-90). Apesar de bastante datados, vejam-se, em particular, José Barbosa Canaes de Figueiredo Castello, «Apontamentos sobre as relações de Portugal com a Syria no seculo 12.º», in Memorias da Academia Real das Sciencias de Lisboa. Classe de Sciencias Moraes, Politicas e Bellas Lettras, 2.ª série, t. I, parte I, Lisboa, Typographia da Academia, 1854, pp. 49-97; e Luís G. de Azevedo, «Idade Média. Notas de história e de crítica», Brotéria, vol. I, fasc. VIII, Julho de 1925, pp. 317-327.

fig.6 coimbra. sé velha. representações zoomórficas © fotografia de josé custódio vieira da silva

do inventário permitem-nos reconstituir o espaço interior da estrutura com base no seu mobiliário litúrgico. À frente do altar principal, uma tábua prateada, sem função clara no registo, até por se tratar de uma referência simples, sem mais pormenores, mas suficientemente valorosa – sessenta e oito morabitinos – a ponto de figurar no inventário de bens; no mesmo local da igreja, uma outra tábua, desta vez dourada, mandada elaborar ao mestre Ptolomeu, que se terá dedicado à tarefa durante cerca de um ano, valendo cento e cinquenta morabitinos; sobre o altar, uma terceira tábua, provavelmente de madeira dourada e de pequenas dimensões, contendo a representação da Anunciação, valendo dez morabitinos. Para uso nas diversas acções de culto, dois cantarinhos destinados à infusão do vinho e da água, no valor de nove morabitinos; um gomil com a sua bacia, também de serviço do altar, elaborados pelo ourives Félix em troca de sete morabitinos; e um cálice de ouro puro, mandado fazer pelo prelado, sob determinação de Afonso I, com base na fortuna entesourada da cátedra. Salientando outros pormenores relativos à indumentária dos sacerdotes oficiantes, o diploma termina com uma passagem alusiva à doação episcopal de quatrocentos morabitinos para as obras de construção da igreja de S. João, à qual

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26. LK, t. I, p. 205. Avelino de Jesus da Costa (P.e), A biblioteca…, pp. 36 e 59, apênd. I, n.º 8. 27. LP 19 e 78 (1087.03.15). Os contornos da acção política de Sesnando Davides como cônsul de Coimbra foram estudados por Emilio García Gómez e R. Menéndez Pidal, «El conde mozárabe Sisnando Davídiz y la política de Alfonso VI con los taifas», Al-Andalus. Revista de las escuelas de estudios árabes de Madrid y Granada, vol. XII, fasc. 1, 1947, pp. 27-41; Maria Helena da Cruz Coelho, «Nos alvores da história de Coimbra. D. Sesnando e a Sé Velha», in Sé Velha de Coimbra. Culto e cultura, Coimbra, Catedral de Santa Maria de Coimbra, 2005, pp. 11-39; e Leontina Ventura, «As cortes ou a instalação em Coimbra dos fideles de D. Sesnando», in Estudos de homenagem ao Professor Doutor José Marques (Organização: Departamento de Ciências e Técnicas do Património – Departamento de História), vol. III, Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2006, pp. 37-52.


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28. Mafalda morre a 3 de Dezembro de 1157 (José Mattoso, D. Afonso…, pp. 223-226). 29. A semântica da locução verbal patente na oração «Jbi etiam fecit dari unã crucem argenteã, VIIJº . marcas appendentem . pro anima illustrissimae Reginae domnae . Mahaldae», parece remeter-nos para o cumprimento de uma deliberação de interposta pessoa, até por se omitir aí a comum indicação de posse dada pela utilização de pronomes pessoais ou de outras expressões alusivas à propriedade jurídica sobre determinado bem móvel ou imóvel, como «de meo proprio» ou «de suo proprio», patentes ao longo do documento. Não é de excluir-se a hipótese de a cruz ter pertencido a Mafalda e, por sua morte, sido doada a S. João de Almedina por Miguel. Contudo, importa ter em conta que a passagem surge transcrita nas ementas diplomáticas dedicadas à enumeração dos bens do prelado que foram doados às duas igrejas coimbrãs. 30. Leia-se Mário de Gouveia, «S. Miguel na religiosidade moçárabe (Portugal, séc. IX-XI)», in Culto e santuari di san Michele nell’Europa medievale/Culte et sanctuaires de saint Michel dans l’Europe médiévale (Atti del congresso internazionale di studi [Bari – Monte Sant’Angelo, 5-8 aprile 2006]; a cura di Pierre Bouet, Giorgio Otranto, André Vauchez), Bari, Casa Editrice Edipuglia, 2007, pp. 81-112, em especial as pp. 87-88. 31. LP 390 e 552 (1088.09, falso ou interpolado). 32. LP 19 e 78 (1087.03.15), LP 47 (1099.03.19) e LP 48 (1099.03.20). 33. LP 170 (1086.04.19). 34. LP 170 (1086.04.19) e LP 390 e 552 (1088.09, falso ou interpolado). 35. Veja-se Pierre David, «Regula…», pp. 27-39. 36. Veja-se Gérard Pradalié, «Les faux…», pp. 77-98. 37. LP 73 (1064). Para outras referências à igreja, LP 372 (1086.08.11), LP 41 (1093.02.27), LP 175 (1094.03.23) e LP 174 (1095.03.03). 38. DC 129 (980.11.12). Para outras referências à igreja, LP 558 ([1086-1091]), DC 683 (1087.04.25), DC 791 (1092), DC 800 (1093.12.20) e DC 838 (1096.11.01).

o prelado teria também feito chegar uma cruz de prata, pesando oito marcos, por alma da rainha Mafalda, entretanto falecida28. Dada a falta de clareza da passagem, não nos é fácil compreender se a cruz terá resultado de um gesto de benemerência do prelado ou se, pelo contrário, este se terá limitado a doar à igreja, em cumprimento de eventuais disposições testamentárias da primeira, uma cruz anteriormente na posse da rainha29. Chegados a este ponto, o que nos parece interessante destacar é a possibilidade de estas imagens serem analisadas também à luz das relíquias, reais ou representativas, que se conservariam no interior do templo desde a restauração da diocese nos finais do século XI. Ao contrário do que acontece com a Sé de Braga, em cujo colégio de santos padroeiros se integram as figuras de S. Salvador, St.ª Maria, S. Pedro, S. Paulo, S. João Baptista e S. Miguel30 – facto que nos permite falar desta igreja como um espaço colocado sob a protecção de diversas entidades celestes –, as relíquias guardadas na Sé de Coimbra apontam para um conjunto muito mais restrito de santos padroeiros, em que se destaca apenas a figura de St.ª Maria, documentada desde [867-912] como tutelar da igreja. Alguns outros testemunhos permitem-nos, talvez, alargar a S. Salvador31 – paralelamente à St.ª Cruz ou ao St.º Lenho32 –, tal como a S. Pedro33 e S. Martinho34, o quadro de memórias sagradas afectas ao templo coimbrão. Contudo, as informações disponíveis são não só menos abundantes para estas últimas instâncias – um a três registos para cada santo –, como parecem estar associadas a actos da prática reputados falsos ou interpolados pela crítica, na sequência dos trabalhos desenvolvidos por autores como Pierre David35 e Gérard Pradalié36. Devem, portanto, ser analisados com cautela. Pese embora o facto de se tratar de documentos falsos, podem, todavia, esconder um fundo de verdade destinado a sublinhar a suposta veracidade das afirmações históricas neles contidas. A imagem que prevalece quando analisamos as memórias fundadoras do sagrado catedralício coimbrão, das presúrias de Afonso III das Astúrias à reforma implementada no quadro do concílio de Burgos, é a de uma igreja dedicada, por excelência, à Mãe de Deus e de Nosso Senhor Jesus Cristo. É, pelo menos, sob este título celeste que a igreja é comummente citada até ao surgimento dos primeiros indícios documentais que nos apontam para a recepção dos cânones da reforma litúrgica romano-cluniacense na fronteira ocidental do reino de Leão. Entre os fi nais do século IX e os fi nais do século XI, adopta-se na sede diocesana o orago que se encontra representado num maior número de igrejas do território de Entre-Douro-e-Mondego. Esta disseminação do culto mariano pelas pequenas e médias igrejas da região, para a maioria das quais a documentação é muito pobre em pormenores históricos, pode, talvez, reflectir a implementação de um culto “oficial” da diocese tendo como modelo a memória litúrgica associada à igreja catedralícia. Se a sede diocesana é dedicada a St.ª Maria, as restantes igrejas situadas no interior do perímetro de muralhas da cidade colocam-se sob invocação de santos evangélicos e apostólicos: são os casos de S. Salvador e S. Miguel, tal como de S. Pedro e S. João, duas das quais – S. Salvador e S. Pedro – integrando, respectivamente, o padroado dos mosteiros de Vacariça e Lorvão pelo menos desde 106437 e 98038. Por sua vez, os

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templos situados no exterior das muralhas adoptam, em contraponto a estas entidades celestes, referenciais sagrados conotados com uma mensagem martirial: são os casos das igrejas do arrabalde ribeirinho, consagradas inicialmente a St.ª Cristina39 e a S. Cristóvão40, e dedicadas, a partir da conquista da cidade, a S. Tiago e S. Bartolomeu, respectivamente, para além do de St. Justa41. Nestes casos, a adopção de novos cultos apostólicos em detrimento de cultos martiriais poderá, talvez, corresponder a uma de várias manifestações associadas à difusão dos cânones religiosos definidos, com o apoio da monarquia leonesa, no quadro da reforma romano-cluniacense. A substituição dos mártires pelos apóstolos pode entender-se como sintoma da tendencial adopção de cultos universais que se verifica a partir dos finais do século XI, mais consentâneos com os modelos de religiosidade que se difundem um pouco por todo o território cristão hispânico. Não podemos, à falta de informações seguras, pronunciar-nos aqui sobre a hipótese, avançada por vários investigadores, de estas imagens terem tido um papel fundamental, em substituição dos livros, na instrução religiosa dos leigos, ou até dos clérigos, que acorriam à igreja42. A hipótese pode pressupor, como é natural, o entendimento de que estes eram capazes de proceder à leitura das imagens com base nos textos que lhe conferem pendor narrativo. Sobre esta hipótese, os nossos diplomas são omissos. É, portanto, possível analisar-se a questão apenas numa perspectiva comparada, atenta à documentação que terá sido produzida na diocese em épocas mais tardias, tal como à que, sendo sua contemporânea, tem, pelo contrário, distinta proveniência. O que podemos afirmar é que, pelos finais do século XII, são visíveis no interior da Sé Velha de Coimbra, e, em especial, junto do altar de St.ª Maria, testemunhos de uma cultura visual atenta a alguns dos mais significativos episódios das Sagradas Escrituras, em particular do Novo Testamento. Estes testemunhos correspondem a um mobiliário litúrgico portador de imagens sagradas com um sentido narrativo, patente no carácter historiado das suas representações pictóricas e escultóricas: são os casos dos episódios da Anunciação, numa tábua de madeira dourada colocada sobre o altar, ou da Crucifixão, numa das relíquias provenientes do Monte Calvário, guardada no interior de uma cruz de altar. A estes casos, acrescentemos as imagens individualizáveis do Cristo Crucificado, de St.ª Maria e de S. João, tal como a da própria Cruz, representada quer sob a forma de alfaia, quer sob a forma de relíquias, num inequívoco sintoma de devoção litúrgica ao Salvador a que também o meio canonical crúzio se mostrava receptivo, nomeadamente através da comemoração das festas da Invenção e Exaltação da Cruz, patentes nos seus calendários, depois que nele passou a venerar-se a relíquia do St.º Lenho, doada por Sancho I, embora pertencente ao seu avô, o conde Henrique de Borgonha, juntamente com um cálice de ouro, em 1210. Em ambos os casos, podemos falar de registos iconográficos que reproduzem ciclos litúrgicos com formulários e cerimónias próprias, e que esses ciclos são consentâneos com a natureza predominantemente evangélica das relíquias depositadas na catedral pelo menos desde os finais do século XI, enriquecidas com a chegada de novas relíquias do Oriente, em particular de Jerusalém, Constantinopla

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39. DC 15 (907.04.13) e DC 37 (933.03.04). 40. DC 74 (957.11.02). 41. LP 427 (1098.12.03). 42. Leia-se Danièle Alexandre-Bidon, «Une foi en deux ou trois dimensions? Images et objets du faire croire à l’usage des laïcs», Annales HSS, n.º 6, Novembro-Dezembro de 1998, pp. 1155-1190. 43. Armando Alberto Martins, O mosteiro…, p. 707. A reconstrução manuelina da igreja continuará a fazer do altar-mor o altar da Cruz, embora mais ornamentado e associado a figuras em representação dos mistérios da Invenção e Exaltação da St.ª Cruz. Não se tratava apenas da Cruz exposta, mas de um Crucifixo com o Corpo de Cristo Crucificado. 44. Refira-se que, para além dos diplomas coligidos no Livro preto, que nos dão abundantes exemplos da recepção de episódios da Bíblia nos diplomas monásticos e eclesiásticos da época (Maria Teresa Nobre Veloso, «A presença da Bíblia nos documentos do Livro preto da Sé de Coimbra», in Estudos em homenagem ao Professor Doutor José Amadeu Coelho Dias [Organização: Departamento de Ciências e Técnicas do Património e Departamento de História], vol. 2, Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2006, pp. 233-245), também a produção letrada crúzia integra, a partir dos finais do século XII, narrativas historiográficas e hagiográficas em que a recepção da cultura bíblica é um tópico constante (Armando de Sousa Pereira, «Motivos bíblicos na historiografia de Santa Cruz de Coimbra dos finais do século XII», Lusitania sacra. Revista do Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica Portuguesa, 2.ª série, t. XIII/XIV, 2001-2002, pp. 315-336). 45. Armando Alberto Martins («Dois bispos…», p. 29) sintetiza o conteúdo deste documento nos seguintes termos: «[A Carta libertatis] permitia a esta instituição [mosteiro de St.ª Cruz] eximir-se dos poderes do bispo, mais livremente edificar o seu património, alargar o âmbito da sua influência local e regional» (sobre esta questão, vejamse ainda A. G. da Rocha Madahil, O privilégio do isento de Santa Cruz de Coimbra, Coimbra, Biblioteca Municipal, 1940; e Armando Alberto Martins, O mosteiro…, pp. 284-292). Após a outorga do documento, o bispo terá dado conhecimento da carta ao papa Alexandre III, de forma a obter a sua confirmação. As reivindicações do prelado viriam a ser alcançadas pela bula Ad hoc universalis ecclesiae, de 16 de Agosto de 1163 (LS, pp. 101102 e 103-106). Neste aspecto em particular, a acção enérgica de Miguel terá suscitado forte oposição na diocese, mormente entre os cónegos do seu cabido, para quem a concessão de regalias


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a favor do mosteiro crúzio terá sido feita de forma constrangente e pouco clara. É disso exemplo o facto de, após o regresso de Miguel a St.ª Cruz, os clérigos locais terem escrito cartas difamatórias da sua pessoa e acção ao papa, acusando o bispo de ter ele próprio delapidado o património da Sé em benefício da comunidade regrante de St.º Agostinho (Carl Erdmann, Papsturkunden in Portugal, Berlim, Weidmannsche Buchhandlung, 1927, pp. 257-258, n.º 84, de 1181.03.12). Domingos, cónego e mestre da Sé, em resposta ao inquérito mandado instaurar por Inocêncio III, ainda antes de 1 de Novembro de 1200, terá mesmo referido que, caso as medidas propostas pelo prelado tivessem sido aplicadas em conformidade com o disposto, o gesto marcaria o «initium destructionis Colimbriensis ecclesiae» (Armando Alberto Martins, «Dois bispos…», pp. 29 e 38, notas 17 e 19). 46. Veja-se, in genere, História…, pp. 168-175. Os trabalhos de referência sobre o assunto são da autoria de Maria Adelaide Miranda. Entre os mais revelantes estudos desta autora sobre a iluminura românica portuguesa, vários dos quais apontando no sentido do predomínio das representações iconográficas de origem veterotestamentária na produção medieval de manuscritos iluminados, destaquem-se, entre outros, os seguintes títulos: A iluminura de Santa Cruz no tempo de Santo António, Lisboa, Edições Inapa, 1996; «A iluminura de Santa Cruz no contexto da iluminura europeia medieval», Bibliotheca portucalensis, II.ª série, n.os 15-16, 2000-2001, pp. 67-97; «Do sagrado ao humano na iluminura românica em Portugal», in Estudos medievais. Quotidiano medieval: imaginário, representação e práticas (Coordenação de Amélia Aguiar Andrade e José Custódio Vieira da Silva), Lisboa, Livros Horizonte, 2004, pp. 67-94; e «Iluminura românica em Portugal», in La miniatura medieval en la Península Ibérica (Joaquín Yarza Luaces, ed.), Múrcia, Nausícaä, 2007, pp. 375-418. As suas relações com o ciclo memorialístico neotestamentário, de temática cristológica, foram abordadas, pela mesma autora, em «A iconografia de Cristo na iluminura românica de Santa Cruz de Coimbra», in Carlos Alberto Ferreira de Almeida. In memoriam (Coordenador: Mário Jorge Barroca), vol. II, Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 1999, pp. 83-95.

e Roma, durante o episcopado de Gonçalo Pais. Tal como salientámos há pouco, o modelo de adoração patente na Sé é também seguido na igreja do vizinho mosteiro de St.ª Cruz, cujo altar-mor românico, segundo as descrições conhecidas, exibia uma grande Cruz, objecto de adoração e fonte de espiritualidade, ladeada pelas imagens da Virgem Maria e de S. João Evangelista43. À semelhança do que tem sido apontado para outras igrejas, a abside principal do templo, com o seu prolongamento natural pela nave, poderá ter proporcionado à assembleia eclesiástica condições de legibilidade de ciclos memorialísticos cristãos44, facto que, como é evidente, não pressuporia necessariamente a recepção eficaz dessa mensagem no seio da assembleia dos fiéis. A falta de condições de luminosidade característica dos espaços de culto medievais, sobretudo em contextos de arte românica, como é o caso da Sé Velha ainda na segunda metade do século XII, e também a grande riqueza de alfaias e paramentos litúrgicos própria destes espaços solenes, pode ter dificultado a sua leitura e interpretação pelo conjunto dos crentes, numa altura em que se tornava cada vez mais necessário o desenvolvimento de novas formas discursivas, em larga medida apoiadas no incremento da cultura visual, visando a difusão dos ciclos memorialísticos ligados à vida de Cristo e dos Seus santos. Contudo, num instrumento de inventário como o que se produziu a pedido de Miguel – cuja autenticidade importa averiguar mais detalhadamente num posterior estudo, até por se lhe estar subjacente um discurso de enaltecimento da imagem pública do prelado indissociável dos graves conflitos institucionais entre a Sé e o mosteiro de St.ª Cruz durante o seu pontificado, na sequência da concessão da denominada Carta libertatis ao mosteiro regrante, em 1162, no próprio ano da morte do seu primeiro prior, Teotónio45, e que, em certa medida, o diploma do Livro preto deixa transparecer no tom apologético pessoal que caracteriza os seus fólios –, o acesso ao mobiliário terá proporcionado, pelo menos ao autor material do registo, a caracterização dos elementos supostamente doados pelo bispo à canónica de St.ª Maria e colocados junto ao altar da Virgem, razão pela qual terá sido possível a identificação das figuras de Cristo Crucificado e de St.ª Maria ou S. João no mobiliário eclesiástico, a descrição pormenorizada de um dos Crucifixos visível junto ao altar da nave principal, ou, inclusive, a identificação dos respectivos suportes materiais, tal como de algumas técnicas decorativas de excepção, merecedoras de destaque no momento em que se terá elaborado o instrumento. Este facto só se compreende se analisado sob a perspectiva de um agente capaz de proceder à descodificação dos motivos pictóricos ou escultóricos e à sua inserção nos ciclos iconográficos da Anunciação e da Paixão e Ressurreição de Cristo. Não obstante, se o posicionamento relativo destas representações na estrutura principal da igreja, e, em especial, no altar, terá sido pensado de forma a se valorizarem os ciclos iconográficos do Novo Testamento em detrimento dos do Velho Testamento, correntes na produção de manuscritos iluminados coeva46, só uma mais detalhada análise das fontes nos poderá ajudar a esclarecer.

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va r i a 路 p e t e r k l e i n - b e ato d e l i 茅 b a n a

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Recensões José Custódio Vieira da Silva e Pedro Redol Mosteiro da Batalha. Scala/IPPAR, 2008 Francisco Teixeira

Jérôme Baschet: L’iconographie médiévale. Paris: Gallimard, 2008 Joana Ramôa

Joana Ramôa Christus Patiens. Representações do Calvário na escultura tumular medieval portuguesa. Lisboa: Instituto de História da Arte – Faculdade de Ciências Sociais e Humanas / UNL, 2008. Luís Afonso

Dominique Machabert (dir.) Siza au Thoronet: le parcours et l’Oeuvre. Parenthèses, 2007 Luísa Castro Caldas

C . Cosmen Alonso; M. V. Herráez Ortega; M. P. Gómez-Calcerrada (Coord.). 2009 El Intercambio Artístico entre los Reinos Hispanos y las Cortes Europeas en la Baja Edad Media. Léon: Universidad de León, 2009 Joana Ramôa


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josé custódio vieira da silva e pedro redol. 2008

mosteiro da batalha scala / ippar f ra n cis co tei x e i r a Instituto de História da Arte – FCSH/UNL

Como ponto prévio à apresentação da importantíssima obra de José Custódio Vieira da Silva, desta feita realizada conjuntamente com Pedro Redol – especialista no estudo de vitrais – convém aditar uma pequena nota sobre o relevante trabalho da editora Scala, em particular no que se refere à colecção em que esta obra se insere e que já habitou os leitores a obras escritas por conceituados especialistas dos monumentos estudados, à presença de uma síntese rigorosa, dando conta do estado actual dos conhecimentos e uma qualidade de imagens que permite facilmente ao leitor acompanhar as leituras elaboradas nos corpos dos textos. O que se diz em cima sobre esta colecção em geral resume, de facto, as qualidades mais impressivas do mais recente trabalho de José Custódio Vieira da Silva, sendo ainda de realçar que esta obra põe à disposição de todos os interessados por arquitectura medieval um estudo detalhado e inovador sobre o Mosteiro da Batalha, uma construção da maior relevância no território português. Das inovações de leitura que decorrem de uma pormenorizada análise formal e estilística do Mosteiro, deve realçar-se a clarificação, na continuação de trabalhos anteriores, da importância do tardo-gótico na arquitectura e da sua complexidade estética que decorrem de um trabalho exemplarmente apresentado ao longo de 11 capítulos que detalharemos seguidamente. No primeiro capítulo, José Custódio Vieira da Silva estuda os problemas relativos à fundação desta casa religiosa, para o que legitimamente valoriza o testamento de D. João I, seu fundador, distanciando-se de outras análises, nomeadamente de Elie Lambert – em que a matriz da argumentação se baseava no muito citado plano Bernardino, existente em várias igrejas dos mosteiros cistercienses. O segundo capítulo – “ O programa construtivo e os arquitectos “ – permite ao leitor obter um conhecimento global sobre os responsáveis pelo estaleiro do Mosteiro, desde Afonso Domingues até ao início do século XVI, distinguindo os diferentes espaços que foram da responsabilidade edificatória de cada um. No capítulo seguinte, são explicitados os precedentes arquitectónicos susceptíveis de serem detectados numa

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análise formal e estilística do convento dominicano. Aí, as soluções arquitectónicas de Afonso Domingues são associadas à arquitectura medieval edificada especialmente em Lisboa e Santarém, sendo igualmente sublinhadas outras comparações, por exemplo com o Mosteiro de Leça do Bailio. José Custódio Vieira da Silva, numa via já percorrida por Mário Tavares Chicó e Gérard Pradalié, associa algumas soluções arquitectónicas do Mosteiro com o coro alto de S. Francisco de Santarém, mas colocando a hipótese inovadora do próprio Afonso Domingues ter a responsabilidade dessa invulgar solução construída na igreja escalabitana. Os capítulos seguintes oferecem uma análise arquitectónica e da escultura monumental dos diferentes espaços, a começar pela igreja, o que encontra a sua justificação – como o autor sublinha – não só pela sua importância simbólica, como pelo próprio destaque que lhe foi concedido por D. João I, bem como pela sua importância na arquitectura medieval portuguesa. Ao longo da obra, a reflexão sobre os diferentes espaços funcionais desta casa religiosa permite a José Custódio Vieira da Silva pôr em relevo dois aspectos fundamentais: por um lado, a existência de características relevantes que integram a arquitectura do Mosteiro na corrente mediterrânica; por outro, a importância do tardo-gótico para a compreensão de muitas soluções arquitectónicas e escultóricas. O destaque para a direcção de mestre Huguet à frente do estaleiro é justamente evidenciado pela introdução de um conjunto de novidades no panorama da arquitectura portuguesa: a existência de arcobotantes sobre as naves laterais; a capela-mor com dois andares ou a sala do capítulo que este mestre cobriu com uma abóbada única. O estudo do trabalho escultórico, desenvolvido a par da fina análise arquitectónica, permitem ao autor levantar os principais aspectos presentes no conjunto edificado, em que se sublinha a importância do estaleiro como oficina de escultura para o século XV. Vários aspectos de índole iconográfica e estilística são destacados: a importância da heráldica; o importante programa iconográfico do portal principal, com características iconográficas e de composição pouco comuns; a imagem do mestre pedreiro ou a figura arcaizante da Virgem. Deste modo, o autor debruça-se sobre um conjunto de soluções iconográficas que merecem a atenção de quem quer utilizar esta obra apenas como um guia seguro para a leitura das imagens existentes, embora as reflexões expostas mereçam também a atenção do investigador pelas questões que sugerem e, em particular, pelo confronto que merecem com leituras anteriores, desde as mais antigas de Vergílio Correia até às mais recentes de Paulo Pereira. O último capítulo dedicado aos vitrais – e da autoria de Paulo Redol – apresenta de um modo necessariamente sucinto as grandes questões que o conjunto de painéis suscita. A cronologia do programa de vitrais, a extensão dos restauros efectuados no século XIX, os vitrais encomendados por D. Manuel I e a presença documentada de mestres estrangeiros e de pintores na sua realização. Com esta obra o leitor dispõe de um estudo rigoroso, aliado à elegância da escrita, que pode ser utilizado como um guia seguro para a visita do mosteiro de Batalha. O investigador encontrará análise e perspectivas cuja novidade merece também uma cuidadosa reflexão.

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jérôme baschet. 2008

l’iconographie médiévale paris: gallimard j oa na ra môa Instituto de História da Arte – FCSH-UNL e bolseira da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT).

Fazer justiça à expansividade e à exuberância das figurações da Idade Média ocidental (ou dar justo aprofundamento à ideia que já antes Jean Wirth encerrara na expressão a prodigiosa inventividade da arte religiosa medieval) – eis aquela que avulta e é assumida como premissa fundadora desta obra de Jérôme Baschet, a mais recente do antropólogo historiador, professor na Universidade de Paris e de Chiapas, no México, e um dos principais medievalistas franceses da actualidade. Publicada em meados do ano de 2008, esta obra gozou da reunião de um conjunto de análises particulares (pequenos estudos centrados em objectos concretos da materialidade artística do Ocidente medieval) já realizadas pelo autor, aqui apresentadas como aplicações exemplares de uma metodologia e de uma forma de entender a imagem medieval cujos princípios definidores ocupam as páginas dos capítulos de reflexão teórica que cimentam e se antepõem aos referidos ensaios de iconografia medieval. O título da obra é sugestivo, consciente e, como percebemos desde a leitura dos primeiros parágrafos, provocatório – ou, pelo menos, provocadoramente remediado. Assim, constatamos que o recurso ao termo iconografia, que permite ao autor situar, com eficácia, a sua investigação no domínio particular do estudo das imagens, e se baseia na recusa deliberada do binómio hierárquico que o mesmo tende a estabelecer com o conceito de iconologia1, é, nesta obra, indissociável de uma vontade de contribuir para a revisão definitiva do conteúdo de que o citado termo – o de iconografia – é sistematicamente dotado, com consequências notáveis no próprio entendimento das imagens. A iconografia de Aby Warburg e, sobretudo, de Erwin Panofsky não está longe mas antes omnipresente, permanentemente ecoando na mente do leitor informado e mesmo avivando, a espaços, o próprio discurso do autor, numa demonstração clara da força e da resistência (e, porventura, também da ausência, em simultâneo, de outra construção teórica similar suficientemente sólida) dos Estudos de Iconologia de E. Panofsky, com 70 anos de existência. O debate permanece aceso; a metodologia por (re)definir.

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1. E que, em última instância, legitima a prática por si só dessa etapa primária de classificação temática das imagens a que, nesta perspectiva, corresponderia a iconografia – parcela apenas de um estudo mais abrangente sobre a imagem, portanto iconológico.


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2. Otto Pächt – Questions de méthode en histoire de l’art. Paris: Macula, 1994, p. 93. 3. Jérôme Baschet – L’iconographie médiévale. Paris: Gallimard, 2008, p. 18.

Com efeito, à urgência de uma tal revisão (assim como à dificuldade da definição de um método) revelam-se particularmente sensíveis os novos olhares que se lançam sobre a realidade imagética da Idade Média, de que Jérôme Baschet é representante, estando inerente à iconologia panofskiana uma relação entre a imagem e o texto que, concebida para um contexto intelectual e artístico muito concreto (a Florença de Quatrocentos) serve abusivamente os interesses de uma interpretação tão encantatória quanto esgotada da arte medieval como bíblia dos iletrados. Esta sobrevalorização da palavra, que tem efectivamente acarretado um certo entendimento da imagem como ilustração, como forma de tradução visual do pensamento de poetas e profetas, de teólogos e Padres da Igreja, constitui a pesada herança do olhar primeiro da iconografia sobre a arte cristã, para cuja cristalização – acusa Baschet – muito contribuiu a obra de Émile Mâle. Na realidade, ao papel lógico e convincente de tradução quase literal da palavra dos Evangelhos (no contexto de uma religião do livro em que mesmo aquela retira a sua credibilidade de uma procurada anunciação no Antigo Testamento), a imagem medieval tende a opor uma liberdade inventiva – arriscando-se, por vezes, nos limites da ortodoxia – que dificilmente se contém nos horizontes bem delimitados de tipos iconográficos estanques. De facto, como diz Otto Pächt, “dans la plupart de ces manifestations, il [l’art chrétien] constitue un énoncé sui generis sur le monde et l’existence humaine, la vie quotidienne comme les fins dernières, un énoncé qui ne se substitue à rien et auquel rien ne peut être substitué” (Pächt 1994, 93), mesmo que profunda e inquestionavelmente religioso. Se já em 1994, Otto Pächt procurava assim escapar às consequências de uma historiografia da arte demasiado submissa ao império da linguagem verbal, este é também e ainda, 14 anos depois, um dos vectores fundamentais do combate de Jérôme Baschet por um justo e global entendimento da imagem medieval. Imagem e não arte – para escapar ao uso anacrónico de um conceito forjado pela Estética dos séculos XVIII e XIX; imagens mais do que imagem – para debelar a convicção da existência de uma forma unívoca de as conceber; imago melhor que imagem – por naquela se conterem aspectos existenciais próprios da imagem medieval, tais são a natural dualidade (não dualismo) entre o corpo e o espírito (e o paradoxo sobre o qual assenta a Igreja da possibilidade de materializar o espiritual), a profunda ligação da imagem ao divino e o seu papel frequentemente intermediário na relação que com ele estabelece a humanidade. Para Jérôme Baschet, o termo imago “engage la définition de l’humain et du divin; il implique aussi l’histoire de leur rapport, depuis son origine [o momento em que o homem é criado à imagem de Deus], jusqu’à sa fin [no fim dos tempos, quando os corpos gloriosos dos eleitos se unirem a Deus], en passant par cette charnière qu’est l’Incarnation [o fenómeno da imagem de Deus] et qui, pour l’humanité, ouvre d’un même coup le chemin d’un rapport d’image avec Dieu et la possibilité d’un chemin vers Dieu par l’image” (Baschet 2008, 18). Entender a imagem medieval equivale, assim, na construção teórica do autor, sobretudo a conceber um quadro de relações – relações que são intrínsecas à imagem (e que se tecem, nomeadamente, entre formas e conteúdos) e relações que a mesma

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estabelece, desde logo, com o seu referente (numa dinâmica que vai muito para lá da mera significação), mas também com todo um conjunto de realidades sociais e práticas (lugares, gestos, palavras, outros tipos de objectos...) que lhe estão associadas, que lhe determinam o(s) significado(s) e sobre os quais ela mesma influi. Importa, por isso, mais do que perscrutar modalidades individuais de recepção das imagens (a que nos impeliria o seu entendimento numa perspectiva eminentemente doutrinal), procurar restabelecer o modo pelo qual a imagem organiza a sua própria percepção, tendo em conta aspectos determinantes da sua existência como sejam a localização da imagem ou as suas condições de legibilidade – sendo que, muitas vezes, a dificuldade na leitura toma parte no funcionamento significante da imagem, entrando em concordância com o conceito medieval de conhecimento, que merece ser desvendado, descodificado lentamente. Jérôme Baschet chama mesmo a atenção para os casos em que a visibilidade clara e absoluta não revela ser condição para o exercício eficaz das funções da imagem. Assim, mais do que representar, ela simplesmente é, o que não equivale, contudo, genericamente a uma qualquer confusão com o estatuto de superioridade e autónomo do referente que lhe serve de base. Basta, em certas ocasiões, para que a sua eficácia se exerça, que haja um reconhecimento da presença efectiva da imagem, mesmo que a sua leitura (e, portanto, a percepção do seu significado) seja difícil ou mesmo impossível: “le mode d’être de l’image relève ici d’une visibilité qui ne se manifeste que pour mieux se dérober à une complète révélation. Néanmoins, des éléments de sens s’en détachent, peu à peu, sur fond d’une surabondance sémantique toujours inaccessible” (Baschet 2008, 57). Corroborando a insustentabilidade de uma assimilação das funções da imagem medieval à prática pedagógica, esta mesma reflexão introduz-nos noutro dos postulados maiores desta obra de Jérôme Baschet, que corresponde ao sublinhar de uma inseparabilidade entre a imagem e a matéria em que ela ganha forma, que passa assim, nos antípodas da teorização anti-formalista de Panofsky, pelo reforço do papel da materialidade no desempenhar das funções da imagem, no modo como ela é percepcionada e, portanto, na construção dos seus significados. É, por isso, num contínuo reenvio entre o ser-imagem e o ser-objecto (conceitos a que Jérôme Baschet recorre, numa actualização e revisão dos de conteúdo e forma, considerados demasiado estanques e individualistas) que a imagem medieval tece a sua rede de relações, dotando-se de capacidade operatória: “des images médiévales, on dira qu’elles sont dans l’histoire. Non parce qu’elles reflètent la réalité ou témoignent des mentalités d’une époque, mais parce qu’elles sont engagées dans des actes sociaux et qu’elles contribuent à nouer des interactions entre les hommes, comme entre la terre et le ciel, tout en créant des configurations signifiantes singulières. Les images sont dans l’histoire, non tant parce qu’elles sont le produit du réel (et de l’idéel), mais parce qu’elles produisent du réel (et de l’idéel)” (Baschet 2008, 9). É desta teorização que parte o conceito de imagem-objecto, com o qual Jérôme Baschet procura definir o funcionamento e o estatuto das imagens medievais, nomeadamente através do sublinhar do que considera tratar-se de uma sua inescapável ligação à materialidade de um qualquer objecto, fazendo simultaneamente jus à ati-

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4. Jérôme Baschet - Ob. Cit., p. 57. 5. Idem, p. 9.


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2. “...la notion d’image est au cœur de l’anthropologie chrétienne, puisqu’elle définit le rapport entre Dieu et l’être humain, créé «à son image et à sa ressemblance» (Genèse 1, 26)” (Baschet 2008, 16). 3. Jean-Pierre Vernant – De la présentification de l’invisible à l’imitation de l’apparence. Image et signification. Paris: La Documentation française, 1983, pp. 25-37.

tude estética nelas presente e que a substituição pura e simples do termo arte pelo de imagem para a realidade medieval pode fazer negligenciar. Estamos, sem dúvida, perante um conceito pertinente e desafiador, ainda que profundamente ligado a um contexto absolutamente religioso e, particularmente, cultural. Não se trata, de qualquer forma, de promover uma concepção unívoca da relação entre a imagem e a sua objectualidade; pelo contrário, sublinha o autor que esta se pode estabelecer segundo diferentes modalidades, daí decorrendo a existência de diferentes tipos de imagens-objecto. Não se trata igualmente de encerrar a imagem numa coisidade inerte – donde a insistência no referido conceito de ser-imagem (que se articula com o de ser-objecto na formulação da imagem-objecto), com que Jérôme Baschet procura corroborar o carácter operante e activo da imagem, seguindo a ideia de imagem-corpo de Jean-Claude Schmitt - conceitos que revelam ser, simultaneamente, indissociáveis do quadro disciplinar de ambos autores e de uma reclamação subtil mas consciente do estudo da imagem para o domínio antropológico2. A própria Idade Média manifesta estar consciente desta dupla existência da imagem-objecto e é, de resto, da sua explicitação que nascerá parte das suas possibilidades de legitimação. Vemos, assim, por exemplo São Tomás de Aquino reflectir nesta dupla dimensão existencial da imagem, conferindo finalmente a exclusividade ao ser-imagem (nas palavras de Jérôme Baschet) no uso legítimo em contexto devocional. Com efeito, à manifesta ausência de uma definição normativa da iconografia no contexto do Ocidente medieval e à inexistência de um controlo formal exercido pela autoridade eclesiástica (condições de base para a proclamada liberdade inventiva da imagética deste período) opõe-se (talvez em parte justificando-as) o que parece tratar-se de uma noção clara das relações que com o seu referente a imagem religiosa estabelece, portanto, da apreensão pacífica do convívio entre matéria e espírito que nela se verifica. Com efeito, difundindo-se por um caminho que lhe é em grande medida aberto pelo fenómeno encarnacional, a imagem medieval em contexto cristão ocidental dificilmente se confundirá com a realidade ou entidade sobrenatural que ela representa (mesmo que para tal nela figure a inscrição que a defina como imagem de) e esse reconhecimento da sua condição de imagem (e apenas de imagem) revela ser uma primeira necessidade para que seja possível chegar a Deus através dela. E, na verdade, o fiel medieval sabe-o: a imagem é, para ele, não o próprio Deus ou o próprio santo que ela representa, mas um lugar privilegiado para a manifestação destes últimos que lhe servem de referente. Não será legítimo, deste modo, falar, para a imagem-objecto definida por Jérôme Baschet, de representação (pois corremos o risco de limitar os sentidos da imagem e de menosprezar a sua existência própria, que vai além da simples mimesis), nem de presença (pois a força sobrenatural que a vem habitar não é permanente nem lhe é inerente). Mais pertinente será o conceito de presentificação, definido por Jean-Pierre Vernant3 – significando que a presença divina que pode ocorrer na imagem não é garantida nem permanente, mas processa-se no espaço de uma interacção social. Nesta, por norma, entram igualmente em jogo um conjunto de imagens mentais que a imagem-objecto induz (percepção) e de representações preexistentes que ela mobiliza e reconfigura (pro-

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jecção), assim como uma série de práticas e de outras formas de comunicação (a palavra, a música, o gesto...) que com ela interagem e que participam activamente no estabelecimento das relações inter-humanas e entre o humano e o divino que dão sentido à imagem, que ela estimula e que Jérôme Baschet coloca no centro das preocupações do iconógrafo medievalista. Não se trata, assim, de buscar todas as significações da imagem, per se, nem de perscrutar a totalidade dos modos de recepção de que a imagem é objecto, tanto quanto de procurar repô-la na sua rede de relações, descortinando os moldes e o grau de eficácia da sua capacidade operatória. Não se trata da leitura das formas nem do aprofundamento dos conteúdos, mas do entendimento de ambos enquanto dimensões inter-penetrantes de uma mesma entidade que intervém na construção do real e na activação de condutores para a sua articulação com o sagrado. Para esta metodologia de análise, Jérôme Baschet propõe a designação de iconografia relacional – pois terá por objectivo maior restabelecer o quadro relacional no seio do qual a imagem define e põe em exercício o(s) seu(s) sentido(s), colocando de parte, a priori, qualquer dicotomia redutora entre forma e conteúdo e buscando um entendimento verdadeiramente global e “contextualizado” da imagem – e serial – pois baseada na configuração de uma série que reúna todo o conjunto de imagens que, mesmo (algumas) na sua ausência, estabeleçam relações com a imagem em estudo (e que podem ser de reverência ou de filiação reivindicada, de emulação e de amplificação, de radicalização ou de eufemismo, sempre de deslocamento, seja explícito ou não). Esta série assim reunida não corresponde ao conceito de ciclo iconográfico, embora possa englobá-lo, e pode mesmo ser, quando o estudo assim o justificar, transtemática - numa linha de investigação que se revela particularmente interessante quando as próprias imagens medievais, por localização ou outros factores potenciadores de uma associação entre si, estabelecem relações que naturalmente lhes alteram o sentido (seguindo o princípio de que a imagem não vive isolada nem funciona como entidade autónoma e estanque, fechada em si mesma), sentido que não pode ser, assim, resumido à soma do estudos das duas temáticas em questão. Sem lhe ser possível escapar em absoluto à componente de forte idealismo, a essa aspiração totalizadora dificilmente articulável com as condicionantes de uma investigação contida nos limites do humano que desde Panofsky insufla o trabalho de todo o iconógrafo, cabe a Jérôme Baschet o mérito de concretizar a proposta de um método – um dos terrenos mais sensíveis no campo da História da Arte – e de, para tal, reunir e desafiar algumas ideias cristalizadas, dando voz ao debate que há muito anima o estudo das imagens medievais e esforçando-se por sistematizar e dar novos fundamentos a propostas de entendimento que se pouco têm de verdadeiramente novas são, por isso mesmo, o testemunho claro da necessidade de continuar a consolidá-las e a defendê-las assim, em obra própria e com a mesma veemência de algo que é dito pela primeira vez. Num universo onde a imagética chega por vezes a sobrepor-se ao real, como é o do homem contemporâneo, a reflexão sobre as imagens ganha pertinência acrescida e novos contornos acrescem à discussão. Se não é este mundo da imagem-ecrã, como

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o autor lhe chama, que Jérôme Baschet pretende abordar, é também por distanciação dele mesmo que define o conceito central de imagem-objecto para a medievalidade, visando com ele conceber uma relação entre imagem e suporte, conteúdo e materialidade de características próprias e radicalmente diversa da actual. Concebidas no seio e como parte integrante de uma complexa rede de dinâmicas relacionais (desde logo, entre o Homem e a divindade, entre os vários elementos de uma ordem social que elas representam e de que participam, entre múltiplas configurações de um sistema de comunicação em que o verbal e o figurativo, forma e conteúdo actuam conjuntamente e se definem mutuamente, sem nunca, contudo, se assimilarem em absoluto), as imagens medievais parecem, assim, continuar a negar-nos a captação absoluta e definitiva das múltiplas significações que põem em jogo e que estão longe de se esgotar na identificação de todas as suas componentes – do mesmo modo que o sentido de uma frase não se procura somente na significação e no conhecimento individual dos seus elementos constituintes. Continua a ser, assim, um conhecimento sempre parcial e desvelado de forma gradual aquele que de si elas nos propõem – e qualquer metodologia que se pretenda dignificadora da complexidade deste objecto de estudo permanecerá, porventura, continuamente idealista ou resignadamente parcelar.

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joana ramôa. 2008

christus patiens. representações do calvário na escultura tumular medieval portuguesa (século xiv) lisboa: instituto de história da arte – faculdade de ciências sociais e humanas da universidade nova de lisboa lu ís u . a f o n so Instituto de História da Arte, FL-UL

O livro em epígrafe corresponde, em grande parte, à dissertação de mestrado em História da Arte Medieval apresentada por Joana Ramôa, em 2007, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da UNL. Esta dissertação foi desenvolvida pela autora enquanto bolseira de investigação do projecto IMAGO, uma base de dados de iconografia medieval que se encontra em livre acesso através da internet1. Deste modo, até ao momento, o livro em apreço constitui um dos outputs científicos mais relevantes do referido projecto2. A metodologia seguida na componente mais inovadora e profícua do livro de Joana Ramôa assenta na análise formal e compositiva de uma série iconográfica principal, no caso as representações do Calvário existentes na escultura funerária portuguesa do século XIV, complementada por uma série iconográfica secundária, a Estigmatização de S. Francisco esculpida em obras do mesmo tipo. Conforme destacou Jérôme Baschet3, a análise serial implica o recurso a sistemas informáticos de armazenamento e indexação de imagens, de modo a tratar de forma sistemática e exaustiva obras com a mesma iconografia. Este trabalho, facilitado pelos computadores, torna mais simples a identificação das mudanças, das constantes e dos pequenos detalhes que as imagens de uma série apresentam, o que por vezes permite avançar com interessantes descobertas e interpretações.

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1. Esta base de dados inclui, para já, apenas informações referentes à iluminura e à escultura funerária gótica portuguesa. Ainda assim, constitui, sem sombra de dúvidas, uma das mais importantes ferramentas de trabalho que o historiador da arte medieval portuguesa tem à disposição na Web: http://imago.fcsh.unl.pt/. Realizada a partir de um projecto financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (referência POCTI/EAT/45922/2002), espera-se que esta base de dados venha a ter continuidade em termos de financiamento por parte da mesma instituição e que alargue os géneros artísticos inventariados a curto prazo. 2. Entretanto, e resultantes do referido projecto, foram também já publicados os seguintes artigos na área da escultura tumular medieval: Ramôa, Joana. 2008. Os Centros de Produção Escultórica Medieval de Coimbra e Santarém: um olhar dirigido à iconografia do Calvário na Escultura Tumular Medieval Portuguesa. Arte Teoria. 11: 109-123; Silva, José Custódio Vieira da e Ramôa, Joana. 2008. O Retrato de D. João I no Mosteiro de Santa Maria da Vitória. Um novo paradigma de representação. Revista de História da Arte. 5: 76-95; Silva, José Custódio Vieira da. 2009. A Construção de uma Imagem. Jacentes de Nobres Portugueses do século XIV. El Intercambio Artístico entre los Reinos Hispanos y las cortes europeas en la Baja Edad Media. Léon: Universidad de León, 407-429. 3. Baschet, J. 1996. Inventivité et sérialité des images médiévales. Pour une approche iconographique élargie”. Annales. Histoire, Sciences Sociales, 51: 93-133. Um assunto que o autor continua a rever e a alterar, tendo dado à estampa várias versões do mesmo trabalho, designadamente “Porquoi élaborer des bases de données d’image? Propositions pour une iconographie sérielle”. Bolvig, A. e Lindley, P. (eds). 2003. History and Images: Towards a New Iconology. Turnhout: Brepols, 59-105; Baschet , J. 2008. Pour une iconographie sérielle. L’Iconographie Médiévale. Paris: Gallimard, 251-280. 4. Sem pretendermos ser exaustivos, gostaríamos de sublinhar os estudos mais recentes desenvolvidos por Silva, José Custódio Vieira da. 2003. O Panteão Régio do Mosteiro de Alcobaça. Lisboa: IPPAR, 2005. Memória e Imagem. Reflexões sobre escultura tumular portuguesa. Séculos XIII e XIV. Revista de História da Arte, 1, 46-81. Fernandes, Carla Varela. 2001. Memórias

Independentemente da qualidade da organização e indexação informática dos dados recolhidos, nada poderá resultar dos mesmos sem a participação criativa dos investigadores. No caso concreto deste livro, as vantagens e potencialidades da base de dados referida seriam perfeitamente estéreis sem a perspicácia, a competência e o profundo interesse pela arte medieval que Joana Ramôa revela. Embora os capítulos iniciais sejam demasiado genéricos, não temos dúvidas em como este livro constitui uma mais-valia para os estudos de arte medieval portuguesa, em particular no domínio da escultura funerária gótica, uma área onde se têm feito importantes progressos nos últimos anos4, mas onde ainda há muito a pesquisar. Este livro pode ser dividido em duas partes distintas, tanto na temática como na metodologia. A primeira parte (pp. 17-83), que corresponde aos capítulos I e II, trata de aspectos introdutórios e de contextualização. Incide, sobretudo, na evolução iconográfica do tema do Calvário (cap. I), desde o período paleocristão até ao final do século XIV, e no esboço de um quadro histórico (cap. II) dedicado às grandes linhas da espiritualidade medieval e à relação que a Igreja foi mantendo com a imagem durante o mesmo período. Metodologicamente, é um trabalho que assenta na sintetização de literatura crítica e não sobre fontes primárias. A segunda parte (pp. 85-146), constituída pelos capítulos III a VII, é dedicada à representação do Calvário e da Estigmatização de S. Francisco na escultura funerária portuguesa do século XIV. Esta parte do livro, ao contrário da anterior, resulta da análise directa de dez monumentos funerários góticos, a saber, os túmulos de Martim Afonso Chichorro (†1314, Santarém), da rainha Isabel de Aragão (c.1330, Coimbra), de Fernão Sanches (c.1335, Porto), de João Gordo (c.1330-40, Porto), do arcebispo Gonçalo Pereira (1334, Braga), do bispo de Évora Pedro II (†1340, Évora), do bispo do Porto Afonso Pires (†1362, Balsemão - Lamego) e de Inês de Castro (1358-60, Alcobaça), todos eles com representações do Calvário, e ainda os túmulos de Leonor Afonso (c.1325, Santarém) e do rei Fernando I (c.1382, Santarém), estes dois com representações da Estigmatização de S. Francisco. Em relação à primeira parte deste estudo, capítulos I (pp. 23-50 ) e II (pp. 51-83), julgamos que o seu interesse é menos significativo, pelo que, em nossa opinião, os seus conteúdos poderiam ter sido abreviados sem que o livro perdesse a qualidade e a relevância que possui no panorama da historiografia da arte medieval portuguesa. De facto, não obstante a rigorosa apresentação das metodologias a seguir e dos problemas a investigar (pp. 23-27), estes dois capítulos iniciais encontram-se dependentes de fontes algo datadas. No capítulo dedicado à iconografia de Cristo em geral, e do Calvário em particular, as obras mais utilizadas pela autora foram publicadas em 19285, 19396, 19407, 19458 e 19579. Consequentemente, a reflexão apresentada não reflecte uma outra problemática que actualmente envolve a questão da génese e evolução da iconografia de Cristo e do Calvário.10 Quanto ao capítulo dedicado à apresentação das grandes linhas da espiritualidade medieval e à relação entre a imagem e a Igreja, desde o período paleocristão aos inícios do século XV, parece-nos desviar-se um pouco dos objectivos centrais da obra. Teria sido talvez mais útil para o leitor a limitação desta análise contextual ao

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período que corresponde, de facto, ao objecto de estudo da autora, ou seja, a Baixa Idade Média e em especial o século XIV. O enorme valor deste livro reside, portanto, na segunda parte da obra, que corresponde aos capítulos III a VII (pp. 85-146), onde a autora estuda directamente vários monumentos funerários góticos portugueses. A partir de um sólido e apurado cotejo compositivo e formal das representações do Calvário na tumulária trecentista nacional, a autora propõe a identificação de dois modelos artísticos para a representação deste tema. Através de uma análise sustentada nas características plásticas das obras, a autora considera que estes modelos correspondem à cultura artística de dois núcleos escultóricos distintos, um situado em Coimbra, outro situado em Santarém. Em termos compositivos, o Calvário do grupo de Coimbra segue um modelo vertical, dispondo Cristo, a Virgem e S. João numa estrutura triangular, enquanto que o grupo de Santarém segue um modelo horizontal, com estas figuras praticamente ao mesmo nível, notando-se, por exemplo, o alargamento do braço da cruz e a presença do titulus (ausente no grupo coimbrão). Por outro lado, Joana Ramôa destaca que as figuras do primeiro modelo, de Coimbra, assumem uma maior desproporção entre a cabeça e o corpo e que as suas figuras possuem uma natureza mais ondulante. Em contrapartida, o segundo modelo, de Santarém, acentua formas mais angulosas e apresenta proporções mais equilibradas nos corpos11. A importância de Coimbra na produção escultórica portuguesa do século XIV é bem conhecida. Porém, em relação a Santarém a situação é bem diferente, pelo que as propostas de Joana Ramôa assumem a maior relevância e merecem o mais elevado destaque. Talvez devido à adulteração e destruição dos principais monumentos funerários góticos de Santarém, bem como devido à deslocação das suas principais obras remanescentes para outros locais – designadamente para o Convento do Carmo em Lisboa –, a excelência e a identidade do núcleo escalabitano não recebeu ainda o estudo merecido. O trabalho desenvolvido na segunda parte deste livro por Joana Ramôa constitui, por isso, um valiosíssimo contributo para o aprofundamento dos estudos dedicados à escultura gótica portuguesa, ao contribuir para se delimitar com maior rigor as características do núcleo coimbrão, ao nível da arte tumular, e ao apresentar, com consistência, notáveis contributos referentes à idiossincrasia do núcleo escalabitano. Por todos estes motivos, o livro de Joana Ramôa deve merecer toda a atenção dos historiadores da arte medieval portuguesa, revestindo-se de um carácter renovador que importa estimular e enaltecer.

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de Pedra. Escultura tumular medieval da Sé de Lisboa. Lisboa: IPPAR, 2005. Poder e Representação. Iconologia da família real portuguesa – primeira dinastia, séculos XII a XIV. Dissertação de Doutoramento em História da Arte apresentada à Universidade de Lisboa. Barroca, Mário. 2002. Escultura gótica. História da Arte em Portugal, Vol. II. Lisboa: Presença, 157-246, e por nós próprios, 2003. O Ser e o Tempo. As idades do homem no gótico português. Casal de Cambra: Caleidoscópio. 5. Bréhier, L. L’Art Chrétien. Son développement iconographique des origines à nos jours. Paris: Lib. Renouard-H. Laurens. 6. Doncoeur, P. 1939. Le Christ dans l’art français. Paris: Lib. Plon. 7. Kitzinger, E. e Senior, E. Portraits of Christ, Harmondsworth. Penguin Books. 8. Trens, M. El arte en la Pasion de Nuestro Señor (siglos XIII al XVIII). Barcelona: Amigos de los Museos. 9. Réau, L. 1957. Iconographie de l’Art Chrétien, vol. III. Paris: PUF. 10. Por exemplo, a autora segue um modelo explicativo marcado pela «mística imperial», uma ideia formulada na década de 1930 e desenvolvida por autores como A. Grabar, E. Kitzinger ou E. Kantorowicz. Este modelo foi posteriormente refutado por autores como T. Mathews. 2003. The Clash of Gods. A reinterpretation of Early Christian Art, 6.ª ed. rev., Princeton e Oxford, Princeton University Press, que não só sublinharam a importância do polimorfismo das primeiras imagens de Cristo, como destacaram a forte analogia entre essas imagens e a representação das divindades pagãs. 11. Seria interessante procurar perceber até que ponto estes modelos são conjugáveis com outras representações do Calvário realizadas na mesma época mas em suportes diferentes, designadamente na iluminura e nas estelas funerárias.


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dominique machabert (dir.). 2007

siza au thoronet: le parcours et l’oeuvre parenthèses luí sa ca st ro cal da s FCSH-UNL

Sans qu’aucune explication ne s’impose, il semblait qu’en invitant Álvaro Siza à l’abbaye de Thoronet, on ne se trompait pas. Que c’était une bonne, une excellente idée, une évidence même.

1. O Thoronet, fundado em 1146 pelos monges cistercienses de Tourtour no vale desabitado de Var, é uma das três importantes abadias cistercienses da Provença (juntamente com Silvacane e Sénanque), sendo considerada um marco do românico desta região francesa. Totalmente desprovido de elementos escultóricos, este mosteiro destaca-se pelos seus elementos arquitectónicos e a simplicidade emanada das formas geométricas de um edifício que se desenrola à volta do magnífico claustro decorado por arcos de volta perfeita.

O livro Siza au Thoronet: le parcours et l’oeuvre, editado em 2007, é coordenado por Dominique Machabert, escritor e jornalista interveniente na Faculdade de Arquitectura de Clermont-Ferrand e conhecedor profundo da obra da Escola de Arquitectura do Porto. Repleto de imagens e desenhos, este livro compõe-se de textos descritivos de um percurso criado para um monumento românico francês, o mosteiro cisterciense do Thoronet1, e de percursos da obra de Siza Vieira. Esta publicação parte de um convite dirigido a Álvaro Siza Vieira, arquitecto português, de reconhecido prestígio internacional, para visitar o Mosteiro do Thoronet, apresentar aí as suas obras e pensar numa intervenção original a expor neste espaço, num período entre Junho e Outubro de 2007. Num tom coloquial e intimista, os dois personagens principais – Dominique Machabert e Álvaro Siza Vieira – envolvem-se numa trama sobre o acto criativo e a sua conceptualidade, bem como reflectem sobre intervenções em monumentos ou edifícios históricos. Se o arquitecto-autor relata momentos, sensações, para além das entrevistas em discurso directo transcritas por entre o texto compositivo, o arquitecto-interveniente ganha também um papel principal e activo nesta obra. O livro encontra-se dividido em duas partes relacionadas entre si. A primeira é relativa a uma visita de Álvaro Siza Vieira ao mosteiro, com o intuito de criar uma instalação/ intervenção para este edifício classificado, mostrando-se graficamente esta visita e esta intervenção bem como um conjunto de raciocínios e diálogos sobre o projecto

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pensado para o mosteiro. Esta parte incorpora também as influências e aspectos do momento criativo do arquitecto. A segunda parte é constituída por sete obras de arquitectura do arquitecto português escolhidas por Dominique Machabert mas comentadas por outros intervenientes conhecedores desses projectos, todos encadeados num objecto comum ligado à intervenção de Siza Vieira no Thoronet. Termina com uma entrevista ao arquitecto sobre o percurso por ele criado para este mosteiro francês e ainda com uma análise e reflexão sobre uma série de hipóteses criadas pelo entrevistador em relação a obras projectadas por Álvaro Siza, a sua relação com o espaço bem como a utilização e reabilitação de imóveis com interesse histórico, abordando-se, a este nível, casos concretos como os de Varsóvia, do Porto, de obras de Fernando Távora e do próprio Siza Vieira, como o Chiado, em Lisboa. O coordenador do livro inicia o seu discurso com a confirmação da certeza do convite endereçado a quem considera um dos grandes mestres da arquitectura mundial2. Evidencia a forma como Álvaro Siza se relaciona com o Espaço, com o Lugar e como inicia o processo produtivo, através de um primeiro esquiço, tomado como ponto de partida para um entendimento da implantação, da forma e das proporções. Acentua o acto criativo como um acto conceptual que mais tarde se desenvolverá em contextual. É evidente, neste primeiro texto, a dedicação e homenagem que o autor pretende fazer a Siza Vieira. A forma como descreve as técnicas criativas, o local de trabalho, a modéstia que considera ser contraditória da complexidade das suas obras arquitectónicas mostram-nos a proximidade e o acompanhamento do trabalho por parte de Dominque Machabert. Por isso entende que a confrontação do pensamento, obra e trabalho de Álvaro Siza com uma obra produzida por uma Regra imposta e restrita representaria um enorme desafio, que ele ousou propor. O tom coloquial da obra desenvolve-se ao longo dos restantes capítulos, iniciando-se com a descrição da viagem de carro até ao Thoronet e o primeiro contacto com o local. Há um tom intimista no texto do autor, permitindo-nos, como num romance, vivenciar toda esta experiência. O ponto inicial da visita leva-nos ao momento em que Siza Vieira, chegado ao mosteiro, procura uma planta para uma orientação espacial. Dominique Machabert entrega-lhe então um simples plano turístico com informações básicas, não lhe possibilitando o acesso a nenhum outro mais aprofundado. Siza Vieira perde algum tempo a rodar o seu mapa sem encontrar um ponto de partida e um trajecto. Este episódio é primordial na actuação que o arquitecto virá a ter no local: será esta dificuldade, idêntica à de um mero turista ou um visitante vulgar do monumento, que o irá obrigar a definir uma estratégia de percurso considerada correcta para o verdadeiro entendimento do edifício. É sem dúvida este o momento que marcará o percurso que o irá conduzir à compreensão do espaço e à sua reflexão. Siza Vieira considera que a necessidade de conduzir o visitante o fará compreender verdadeiramente o espaço e valorizá-lo. Para efectivar este objectivo projecta uma intervenção muito ténue no espaço monástico, marcada pela simplicidade dos materiais que escolhe, como a madeira, o mármore e o ferro. Ao colocar estas peças temporais, sólidas mas discretas, pretende

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2. Dominique Machabert terá tido um contacto próximo com a comunidade portuguesa durante a sua infância e adolescência, levando-o a desenvolver um fascínio por Portugal, tornando-o seu objecto de estudo e a arquitectura produzida pela Escola do Porto o veículo para as suas análises em tom intimista. Tradutor de textos publicados por Álvaro Siza Vieira, torna-se assim um conhecedor do percurso deste arquitecto galardoado internacionalmente.


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uma intervenção delineativa da concepção do espaço. A peça em mármore assume-se como uma marca de flecha; o bloco em madeira define-se pela sua verticalidade e proximidade às técnicas construtivas originais; o ferro encontra-se orientado horizontalmente sobre um cabo delimitativo do trajecto. Esta escolha é acompanhada de uma entrevista onde o tema da reabilitação e seu impacto no edifício em ruínas é alvo de comentários por parte do arquitecto. Concretamente, Siza Vieira retrata dois tipos de intervenção: a recuperação integral ou a transformação total ou parcial por parte dos arquitectos que a projectam. Considera que o importante, o que define a arquitectura, é a continuidade e não a ruptura, mostrando que o papel do arquitecto é compreender e estudar um edifício para com a sua acção evidenciar a sua história, a sua existência. Este princípio está explícito na intervenção que desenvolve aqui no Thoronet, onde o arquitecto procura entender o espaço e a sua história e uso primitivo antes de projectar – trata-se de um acto reflexivo que tem em conta o pré-existente. É que, se por um lado, o entendimento da arquitectura de hoje e a sua evolução não é possível sem a compreensão da arquitectura produzida no passado, por outro lado, essa mesma arquitectura de hoje, quando aplicada à estrutura de um edifício pré-existente, deverá sempre partir de uma reflexão e investigação por parte do arquitecto antes da concepção do projecto. O respeito pelo uso, vivências, memórias do imóvel é fulcral para uma valorização e não alteração do edifício aquando da sua reabilitação. A segunda parte do livro é constituída por 7 projectos do arquitecto em Portugal e no estrangeiro. A escolha do autor não é meramente uma escolha das obras que considera as melhores e reveladoras da arquitectura de Siza Vieira; é, antes, marcada pela intervenção no Thoronet. O autor pretende, através dessas 7 obras, focar aspectos que de alguma forma se interligam com o monumento cisterciense. Há referências ao contacto da arquitectura com a natureza e sua integração na paisagem, como é exemplo o projecto do Centro Galego de Arte Contemporânea em Santiago de Com-

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postela ou a Piscina de Leça da Palmeira e o Restaurante Boa Nova em Matosinhos; a criação e relação com o objecto religioso e a sua mística, como a igreja paroquial de Marco de Canaveses; ou ainda o entendimento e valorização do pré-existente, como o Sítio Arqueológico de Cusa, na Sicília. Para simbolizar um projecto dotado de um percurso como ponto fulcral do entendimento do edifício apresenta-se a casa Vieira de Castro em Famalicão. As imagens dos edifícios são acompanhadas por textos encomendados a conhecedores ou actores destes projectos. O próprio Dominique Machabert insere outras visões pessoais e intimistas, permitindo uma abordagem diferente destes projectos, interligando-os num percurso da arquitectura e de estilo de Siza Vieira, sendo eles mesmos fundamentais para o entendimento do percurso proposto por este último para o Thoronet. Este livro é um projecto intimista do autor, mostrando de uma forma muito pessoal e visual um processo criativo. Todo ele se desenvolve ao redor do tema percurso ou percursos: há uma análise da obra do arquitecto por parte de alguém que conhece profundamente o seu trabalho, motivo mais que suficiente para aliciar Siza Vieira a intervir neste monumento francês. O título, Siza au Thoronet: le parcours et l’oeuvre, é muito bem conseguido, pois resume todo o conceito a desenvolver na narrativa, ou seja, tanto incide sobre o momento específico da deslocação de Siza Vieira ao local, como o Percurso e a Obra acabam por reflectir, nesta intervenção no Thoronet, toda uma longa carreira de produção arquitectónica. É um livro que aborda temas como a reabilitação, a arquitectura e a sua relação com a natureza e a luz ou a ambiguidade entre o projecto e o espaço, tornando-se uma obra que espelha as preocupações e as reflexões de inícios do século XXI.

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c. cosmen alonso; m. v. herráez ortega; m. p. gómez-calcerrada, (coord.). 2009

el intercambio artístico entre los reinos hispanos y las cortes europeas en la baja edad media león: universidad de león j oa na ra môa Instituto de História da Arte – FCSH-UNL e bolseira da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT).

O presente livro recolhe as comunicações de 23 investigadores participantes no Simpósio Internacional «El Intercambio Artístico entre los Reinos Hispanos y las Cortes Europeas en la Baja Edad Media», que decorreu na cidade de León entre 27 e 29 de Setembro de 2007 e cuja organização esteve a cargo do Instituto de Estudios Medievales e do Departamento de Património Artístico e Documental da Universidade de León. Esta reunião científica, de acordo com a opinião expressa por Maria Victoria Herráez Ortega nas páginas de apresentação do volume agora publicado, propunha-se questionar e aprofundar, como um dos seus objectivos fundamentais, a importância do mecenato artístico na Baixa Idade Média. Partindo-se da verificação que a encomenda régia foi, a par da iniciativa eclesiástica, o principal motor da actividade criadora nessa época, o desafio colocado aos diversos investigadores foi o de aprofundar os estudos sobre o papel desempenhado por esses patronos na encomenda artística, sabendo-se que a personalidade, a formação, a situação política e o poder económico dos diferentes soberanos e grandes senhores

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foram alguns dos factores que condicionaram o resultado final dessas criações. Em simultâneo, as relações de diversa índole estabelecidas entre as Cortes dos diferentes reinos europeus, potenciando as respectivas relações culturais, suscitaram o intercâmbio artístico e favoreceram a introdução de novas correntes em alguns lugares. O foco das atenções, decorrendo naturalmente da opção tomada por parte dos responsáveis pela realização do Simpósio, centrou-se, como se depreende também do próprio título da publicação, na situação dos reinos hispânicos. São estas, por consequência, as questões principais cujas respostas (ou a sua problematização) emergem dos estudos reunidos neste volume de 429 páginas, em boa hora publicado pela Universidade de León, sob a coordenação de Concepción Cosmen Alonso, María Victoria Herráez Ortega e María Pellón Gómez-Calcerrada, docentes e investigadoras desta mesma Universidade. Como afirma a principal responsável por esta iniciativa, María Victoria Herráez Ortega, estes estudos resultam da investigação realizada propositadamente para este efeito, tanto por investigadores já consagrados e com um largo currículo na História, na Literatura e na História da Arte, quanto por jovens investigadores. Entre alguns dos nomes aqui reunidos, contam-se os de José Manuel Nieto Soria, da Universidade Complutense de Madrid, com um estudo sobre «La dimensión cultural de la diplomacia castellano-leonesa en la época trastámara»; de Fernando Gómez Redondo, da Universidade de Alcalá de Henares, com um estudo sobre «Doña María de Molina y el primer modelo cultural castellano»; de Rafael López Guzmán, da Universidade de Granada, sobre «Relaciones artísticas entre el sultanato nazarí y el Reino de Castilla»; de Didier Martens, da Universidade Livre de Bruxelas, sobre «Isabelle la Catholique et la fondation d’une esthétique hispano-flamande: une approche typologique»; de Francesca Español Beltrán, da Universidade de Barcelona, sobre «Artistas y obras entre la Corona de Aragón y el reino de Francia»; de Javier Martínez de Aguirre, da Universidade Complutense de Madrid, sobre «La rueda de la Fortuna: Carlos III el Noble de Navarra (1387-1425) en Paris, de rehén a promotor de las artes»; e de José Custódio Vieira da Silva, da Universidade Nova de Lisboa, sobre «A construção de uma imagem. Jacentes de nobres portugueses do século XIV». A diversidade e riqueza dos estudos apresentados evidencia o acerto e a importância da iniciativa levada a cabo pela Universidade de León, que permitiu, mais do que abrir alguns novos campos temáticos, aprofundar sobretudo outros já existentes, colocando em saudável confronto perspectivas e abordagens diferenciadas. O complexo mosaico político e cultural da Península Ibérica na Baixa Idade Média ganha, desta forma, novos contornos, aprofundando-se situações cuja pluralidade de perspectivas permite enriquecer sobremaneira o conhecimento das suas originalidades culturais, que se manifestam mesmo quando se absorvem influências provenientes doutras partes da Europa.

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Varia O Projecto IMAGO: a constituição de uma base de dados digital de iconografia medieval. José Custódio Vieira da Silva, Adelaide Miranda, Joana Ramôa

Alle origini della memoria figurativa: S. Elisabetta D’Ungheria (1207-1231) e Isabella D’Aragona, Rainha Santa de Portugal (1272-1336) a confronto in uno studio iconografico comparativo Giulia Rossi Vairo

Imagens de Azul. Evidências do emprego do Azul Cobalto na cerâmica tardo medieval portuguesa Rui André Alves Trindade

Do Jardim Místico ao Jardim Profano: para uma leitura dos jardins medievais portugueses Costanza Ronchetti

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A Escultura em Portugal. Da Idade Média ao início da Idade Contemporânea: história e património Pedro Flor, Teresa Vale

Apresentação do projecto IMAGO no Seminário Livre Inter-Universitário 2008/2009 do IEM/GAHOM Joana Ramôa


va r i a · o p ro j e c to i m ag o

o projecto imago a constituição de uma base de dados digital de iconografia medieval j o s é cu stó d io v. si lva ; a d e l a i d e m i r a n da ; joa n a ramôa

O projecto Imago (POCTI/EAT/45922/2002), fi nanciado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (F.C.T.) e desenvolvido no âmbito da investigação associada ao Instituto de Estudos Medievais da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, teve o seu início a 1 de Setembro de 2005 e o encerramento oficial a 31 de Agosto de 2008, cumprindo, neste período aparentemente limitado de 3 anos, com o objectivo fundamental de constituição de uma base de dados iconográfi ca digital – a primeira realizada em Portugal –, relativa à Idade Média portuguesa e particularmente centrada nos campos artísticos da iluminura e da escultura tumular – http://imago.fcsh.unl.pt. O entendimento completo da novidade de semelhante proposta, bem como do alcance, no domínio da investigação sobre a Idade Média, de um tal esforço de reunião e de racionalização a que a constituição de uma base de dados desta natureza corresponde, concretiza-se em pleno no seio de uma consciência da importância dos estudos iconográficos no desenvolvimento da historiografia artística, e, em geral, no conhecimento das mentalidades medievais. Com efeito, nunca será demais insistir na enorme carência existente neste domínio específico da investigação em Portugal – o da Iconografia –, sem tradição no quadro dos estudos nacionais e de que se lançam agora, com passos sólidos, apesar de iniciais, algumas bases fundamentais de sustentação do que se deseja que venha a ser um domínio científico bem delineado, próspero e continuamente enriquecido por uma séria articulação interdisciplinar. Deste modo, foi objectivo verdadeiramente fundador do projecto Imago contribuir para o enraizamento seguro da Iconografia como área de investigação de grande fôlego em Portugal (ultrapassando o domínio da simples curiosidade, animado, a espaços, por interesses ocasionais) e impulsionar os estudos sobre a Idade Média, de forma abrangente, através da construção de uma base de dados aspirando de futuro à formação de um centro de iconografia medieval. A própria integração de um projecto desta natureza num Instituto de Estudos

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fig.1 página inicial da base de dados imago (http://imago.fcsh.unl.pt/)

Medievais justifica-se e procura corroborar este mesmo entendimento profundo de que, revestindo-se as imagens de uma memória social, o seu estudo e percepção em plenitude só beneficiarão com o diálogo, para o qual deste modo pretendemos contribuir, entre as diversas áreas do saber sobre a medievalidade, nomeadamente a História e a Literatura, para além, como é evidente, da História da Arte, da qual partimos e fora da qual não entendemos, de resto, o nosso estudo nem o nosso pensamento. Assumindo-nos como devedores da longa tradição iconográfica germânica e, sobretudo, francesa, coube-nos, como investigadores do projecto Imago, realizar o esforço inédito da constituição de uma base de dados iconográfica digital que coloca, desde agora, a investigação portuguesa a par do que há alguns anos vem sendo feito naqueles e noutros países (acrescente-se a Inglaterra, por exemplo), com a mais valia de à catalogação dos livros iluminados (que tendem a constituir objecto exclusivo dessas outras bases estrangeiras) se acrescentarem representações com suporte na

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fig.2 campos de pesquisa avançada na área da escultura

fig.3 ficha técnica da escultura

pedra, nomeadamente em arcas tumulares – tornando, deste modo, a iconografia o verdadeiro cerne e linha condutora de toda a base de dados Imago. Iniciado o trabalho de investigação, revelou-se indispensável, num primeiro momento, a concepção de um tesauro descritivo das imagens, adequado a cada uma das áreas nas quais se optou por concentrar o projecto – iluminura e escultura tumular –, instrumento de base fundamental para a descrição das representações e garante da eficácia e da facilidade da consulta no âmbito da base de dados informatizada. Seguiu-se a elaboração de uma ficha de catalogação para as peças (no caso da escultura tumular) e as iluminuras (no caso dos códices), num processo feito de reelaborações sucessivas, tendo em conta os interesses da investigação e a sua articulação com as propostas e a experiência nesta área de trabalho dos programadores informáticos. Para além destes contributos, assim articulados, os consultores internacionais, seleccionados pela sua experiência e saber na área da iconografia medieval, em geral, e da catalogação de imagens em bases de dados, em particular – Patrícia Stirnemann (Centre National de la Recherche Scientifique, Paris), Claudia Rabel (CNRS, Paris) e Fernando Galván (Universidad de León) – revelaram-se auxiliares preciosos, pelas suas sugestões e críticas, neste mesmo processo de elaboração das fichas de catalogação e de definição da estruturação temática da base de dados. Definido, estudado e enquadrado o corpus de estudo a catalogar, estabelecido, nos seus termos essenciais, o tesauro descritivo e a rede hierárquica dos temas, bem como as fichas de análise

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das peças e das iluminuras, coube, num terceiro momento, a construção da base de dados informática ao CITI – Centro de Investigação para Tecnologias Interactivas –, empresa sedeada na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (UNL), cuja capacidade e méritos, atestados, de resto, por vários prémios recebidos nesta e noutras áreas da programação, se revelaram indispensáveis à obtenção, em tempo útil, dos resultados esperados. Com a base de dados digital construída e consolidada -trabalho em que o diálogo permanente entre programadores e investigadores foi manifestamente frutífero e enriquecedor –, tornou-se possível a catalogação directa na base, para além do seu carregamento com toda a informação entretanto recolhida e que vinha sendo tratada segundo uma metodologia de trabalho com duas vertentes fundamentais: a recolha de imagens das peças e a sua análise e descrição completas, in situ, tanto da escultura como da iluminura; o trabalho de gabinete, feito da selecção e tratamento das imagens recolhidas, assim como da realização da ficha final de catalogação, completada pelos dados obtidos com a investigação, a pesquisa e o levantamento de fontes históricas, literárias, filosóficas e religiosas, em bibliotecas e arquivos. Assim, e tendo em vista a integração na base de dados Imago do maior número de peças possível e, particularmente, daquelas que entendemos serem as mais representativas do panorama escultórico tumular medieval português, a nível de todo o território nacional, foi realizado trabalho de campo e, consequentemente, catalogadas as arcas tumulares dos núcleos de escultura de: Lisboa (São Domingos de Benfica; Museu Arqueológico do Carmo; Sé; Igreja de São Domingos do Rossio), Odivelas(Antigo Convento de São Dinis e São Bernardo), Santarém (Igreja da Graça; Igreja de Santa Clara; Museu de São João de Alporão; Igreja de São Nicolau), Faro (Sé), Alcobaça (Mosteiro de Santa Maria), Batalha (Mosteiro de Santa Maria da Vitória), Lamego (Capela de São Pedro de Balsemão; Igreja de São João de Tarouca), Porto (Sé; Museu de Soares dos Reis), Viseu (Sé), Oliveira do Conde (Igreja Matriz), Oliveira do Hospital (Capela dos Ferreiros, Igreja Matriz), Coimbra (Mosteiro de Santa Clara-a-Nova; Sé Velha; Museu Machado de Castro), Tentúgal (Mosteiro de São Marcos), Évora (Sé; Museu Regional), Estremoz (Igreja de São Francisco), Reguengos de Monsaraz (Igreja de Nossa Senhora da Lagoa), Ourém (Igreja da Colegiada), Abrantes (Igreja de Santa Maria do Castelo), Grijó (Mosteiro de São Salvador) e Braga (Capela da Glória, Sé) – num total de 63 peças e 461 imagens catalogadas na base de dados. No que se refere ao campo artístico da iluminura, igual trabalho foi realizado, seguindo os mesmos pressupostos, embora neste caso as maiores dificuldades com que o projecto se deparou no que respeita à propriedade das imagens, assim como o número muito superior (quase inesgotável) de códices existentes em bibliotecas e instituições portuguesas, tenham exigido um esforço de inventariação que continua em curso e deverá, desejadamente, continuar no futuro, acompanhando o avanço significativo que se vem manifestando nesta área de estudos e gozando, nomeadamente, do interesse e dos conhecimentos dos novos investigadores. A superação das referidas dificuldades implícitas a um processo como o do projecto Imago, de recolha e disponibilização on line de imagens de peças artísticas, em ter-

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fig.4 campos de pesquisa avançada na área da iluminura

fig.5 ficha técnica da iluminura

mos de direitos de autor, passou pelo estabelecimento de uma série de contactos, no sentido de se obterem ou simples autorizações, ou, em casos mais complexos (sobretudo no que respeita à iluminura), a assinatura de protocolos mais abrangentes com as instituições de cultura adequadas – processo no qual, apesar da morosidade inerente, são merecedores de realce o acolhimento e a compreensão revelados por todos os responsáveis e técnicos que com o projecto Imago contactaram. Desta forma, e para além de se evitar a repetição de trabalhos já realizados, todos os direitos de propriedade sobre as imagens ficaram salvaguardados, devendo os interessados na sua utilização (fora do âmbito de consulta na base) e reprodução adquiri-las nos sites das respectivas instituições, seus legítimos possuidores. De tal modo, obtiveram-se autorizações e/ou assinaram-se protocolos com: o IGESPAR (Instituto de Gestão do Património Arquitectónico e Arqueológico), a BNP (Biblioteca Nacional de Portugal), a Academia de Ciências de Lisboa, a BGUC (Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra), a BPMP (Biblioteca Pública Municipal do Porto), a BPE (Biblioteca Pública de Évora), o Palácio Ducal de Vila Viçosa, o MNAA (Museu Nacional de Arte Antiga), o Museu Calouste Gulbenkian, párocos e entidades religiosas responsáveis por alguns dos objectos artísticos inventariados. Estabelecidos estes acordos, tornou-se possível a realização da reportagem fotográfica e a catalogação das iluminuras de 127 manuscritos, dos quais 2 Missais, 98 Bíblias, 23 Livros de Horas, 2 Speculum Historiale, 1 Homiliário, 1 Crónica Geral de Espanha, 1 Breviário da Condessa de Bertiandos,

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fig.6 ficha técnica com galeria de imagens

1 Missal de Estêvão Gonçalves e 1 Diadema Monachorum – correspondendo, até ao momento, a 600 catalogações na base de dados Imago. Para além de levar a cabo a fotografia, análise e catalogação das peças escultóricas e dos manuscritos (verdadeiro cerne do trabalho a que nos propusemos), o projecto Imago teve na sua própria divulgação, em revistas e eventos científicos nacionais e internacionais, uma das vertentes de actuação fundamentais – no quadro de um esforço de divulgação e de partilha de experiências e conhecimentos que julgamos ser hoje um dos principais desafios e deveres de todo o projecto de investigação (individual ou colectivo). Foi neste contexto e tendo em vista essa mesma partilha que, para além dos 23 artigos publicados na sequência da investigação desenvolvida, o projecto se empenhou directamente na organização de um Seminário Internacional, decorrido nos dias 15-16 de Novembro de 2007, e que teve por principal objectivo a apresentação pública da base de dados Imago, então ainda em fase de consolidação. Subordinado ao tema

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Imagem, Memória e Poder. Visualidade e Representação (sécs. XII-XV), contou este encontro ainda com a participação de 16 especialistas, nacionais e estrangeiros, de História, História da Arte, Ciências Musicais e Codicologia – formando, deste modo, um leque abrangente de comunicações de grande interesse, cujo teor é tema do presente número da Revista de História da Arte, editada pelo Instituto de História da Arte da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Podemos, deste modo, afirmar que, com a efectiva disponibilização on line de uma base de dados plenamente arquitectada e consolidada, para além de preenchida com alguns dos elementos iconográficos que entendemos serem mais significativos e representativos do panorama medieval português, vemos cumprido o propósito central do projecto que integrámos e com o qual, ou melhor, com esse seu fruto inovador e de longo alcance que é a base de dados digital, pretendemos continuar a facilitar e estimular o trabalho dos investigadores que à Idade Média se dediquem, contribuindo com esta centralização e divulgação de uma informação até agora dispersa e muitas vezes difícil de obter. O projecto Imago, delineado, projectado e impulsionado, desde o início, por José Custódio Vieira da Silva (coordenador do projecto e responsável pela investigação na área da escultura tumular) e Maria Adelaide Miranda (responsável pela área da iluminura), contou ainda, na sua equipa, com uma bolseira, Joana Ramôa, e outros três investigadores, com trabalho e estudos desenvolvidos e em desenvolvimento na área da iluminura, Ana Lemos, Luís Correia de Sousa e Ragnhild Marthine Bø – estes últimos integrados no projecto num processo de alargamento do grupo inicial que resultou em mais valias de grande significado, tendo permitido, desde logo, ampliar a investigação, alargar o número de dados recolhidos e potenciar os resultados e o alcance do projecto, mormente no que se refere à divulgação da investigação, levada a cabo nos termos a que atrás nos referimos.

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alle origine della memoria figurativa: sant’elisabetta d’ungheria (1207-1231) e isabella d’aragona, rainha santa de portugal (1272-1336) a confronto in uno studio iconografico comparativo g i ul i a ross i vai ro Instituto de História da Arte FCSH-UNL

1. Rossi Vairo, Giulia. 2008. Sainte Elisabeth de Hongrie (1207-1231) et Isabel d’Aragon, Rainha Santa de Portugal (1272-1336): affinités et différences. In Sainte Elisabeth (1207-1231) huit siècles de rayonnement européen Colloque international. Paris, 16-17 novembre 2007: in corso di stampa. 2. Per evitare confusione ed equivoci, ma anche per rispetto delle origini, nel corso di questo articolo chiamerò l’una Elisabetta, l’altra, Isabella, poiché, sebbene per il mondo cattolico siano entrambe Sancta Helisabecta, è con il nome di Santa Isabel, Isabella, quasi sempre accompagnato dall’appellativo di Rainha Santa, che è ricordata dalla storiografia e nelle fonti portoghesi.

Il 2007 è stato l’anno delle celebrazioni dedicate a sant’Elisabetta d’Ungheria: in tutta Europa sono stati organizzati convegni, mostre, congressi per commemorare l’ottavo centenario della nascita di colei che è stata definita la prima santa europea per la rapida diffusione ed internazionalizzazione del culto subito dopo la sua canonizzazione, avvenuta nel 1235, soltanto quattro anni dopo la sua scomparsa. In occasione del convegno conclusivo dell’”anno elisabettiano”, tenutosi a Parigi nel mesi di novembre, è stata presentata una comunicazione dedicata alla disamina delle affinità e differenze ravvisabili fra sant’Elisabetta d’Ungheria e sant’Elisabetta del Portogallo1. Lo studio che segue nasce come approfondimento di un aspetto specifico affrontato nel corso dell’intervento, ovvero la parziale sovrapposizione dell’iconografia delle due sante. In particolare, saranno prese in esame le prime testimonianze iconografiche delle due Elisabette cui ancora oggi si deve far risalire la loro memoria figurativa: l’Elisabethschrein, per Elisabetta d’Ungheria, e la monumentale arca sepolcrale, per Isabella d’Aragona2. Elisabetta d’Ungheria nacque probabilmente a Pressburg, oggi Bratislava, nel 1207 dall’unione del re Andrea il Gerosolimitano e Gertrude di Merania. Nel 1221, a quattordici anni, andò in sposa a Ludwig IV, langravio di Turingia: dal matrimonio nacquero tre figli, Ermanno, Sofia e Gertrude. Nel 1224, il consorte, in nome dei buoni rapporti con l’imperatore Federico II e sollecitato da papa Onorio III, partì per la IV

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crociata affidando la moglie e i figli al frate premostratense Corrado di Marburgo, inquisitore e acceso sostenitore in Germania delle crociate. La principessa rimase vedova nel 1227, dopo la morte di Ludwig sopraggiunta per peste, ad Otranto, ancor prima che s’imbarcasse per la Terra Santa. In seguito, la langravia, allontanata dalla corte dai fratelli del marito, si trasferì a Marburg dove, assistita da fra Corrado, sua guida spirituale, condusse una vita poverissima, dedita alla carità e alla cura dei più bisognosi e degli ammalati, distribuendo i propri beni e impiegando la sua dote in opere pie. Nel 1231, a soli ventiquattro anni, si spense a causa degli stenti e delle privazioni. Attorno alla sua sepoltura, divenuta, subito dopo la scomparsa, luogo di pellegrinaggio da parte della popolazione locale molto legata affettivamente alla giovane donna, iniziarono a verificarsi eventi prodigiosi tali da richiedere, nel 1233, l’istruzione del processo di canonizzazione. Il 27 maggio del 1235, a Perugia, Gregorio X proclamava la santità di Elisabetta, per la cui causa canonizationis si erano mobilitate le grandi potenze politiche del tempo: la famiglia dei langravi di Turingia, l’Ordine Teutonico, nella persona del langravio Corrado, Gran Maestro dell’Ordine, e soprattutto l’imperatore Federico II di Hohenstaufen, che, successivamente, si recò personalmente a rendere omaggio alla tomba della neo santa3. Esattamente quaranta anni dopo la morte di Elisabetta, a Saragozza nasceva Isabella dall’unione di Pietro III d’Aragona e Costanza di Sicilia. L’infanta aragonese visse la

fig.1 elisabethschrein. marburg, chiesa di sant’elisabetta, sacristia. veduta d’insieme. © bildarchiv foto marburg

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3. Dell’ampia bibliografia dedicata alla figura di sant’Elisabetta d’Ungheria mi limiterò a citare alcune delle opere più recenti: Blume, Dieter (a cura di). 2007. Elisabeth von Thüringen: eine europäische Heilige, Petersberg: Imhof, 2 voll.; 1981. Sankt Elisabeth: Fürstin, Dienerin, Heilige, Sigmaringen: Jan Thorbecke Verlag KG.


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sua infanzia alla corte di Barcellona fino a quando, nel 1282, appena dodicenne, andò in sposa a Dinis, giovane re del Portogallo. Nel corso della sua esistenza, Isabella svolse un’intensa attività diplomatica, all’estero, nell’ambito della politica peninsulare portata avanti dal marito, e nel suo regno, quando intervenne nello scontro fra il re e il figlio ed erede al trono, Afonso, scontro degenerato nella guerra civile che, a più riprese, si protrasse dal 1319 al 1324. A seguito della morte del consorte, la regina madre decise di ritirarsi a Coimbra nel palazzo fatto appositamente costruire in prossimità del Monastero di santa Clara e di sant’Isabel da lei fondato dove, dedita alla preghiera e all’assistenza dei più bisognosi, trascorse il resto della sua vita conclusasi nel 1336. Per la canonizzazione di Isabella, nota alla Cristianità come sant’Elisabetta del Porto-

fig.2 tomba di isabella d’aragona, regina del portogallo. coimbra, monastero di santa clara a nova. veduta generale della tomba all’interno del coro basso della chiesa. © foto dell’autore fig.3 tomba di isabella d’aragona, regina del portogallo. coimbra, monastero di santa clara a nova. © foto dell’autore

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gallo, ma per la Chiesa portoghese semplicemente come la Rainha Santa, si dovette attendere quasi tre secoli: beatificata da Leone X nel 1516, su richiesta del re portoghese Manuel, fu elevata agli onori degli altari soltanto il 25 maggio del 1625 a seguito dell’intervento risolutivo di Filippo III, all’epoca re di Spagna e Portogallo4. Dal punto di vista storico biografico, sono ravvisabili alcune analogie fra la vita di Elisabetta e quella di Isabella; anche sul piano più propriamente spirituale numerose sono le affinità fra le due donne: entrambe rappresentano un modello femminile di santità laica, entrambe sono ricordate per la loro religiosità nel contempo attiva e devota5. In realtà, ad unirle fu innanzitutto un legame di parentela diretto: i nonni, da parte paterna, erano Jaime I el Conquistador e Jolanda d’Ungheria, sorella di Elisabetta di cui era dunque pronipote. Anzi, proprio per rendere omaggio alla sua illustre familiare, le fu dato il nome di Isabel, traduzione portoghese di Elisabetta. Nella scelta del nome, il suo destino: senza temere d’incorrere in errore, si può affermare che sant’Elisabetta costituì un esempio da imitare e a cui ispirarsi per Isabella d’Aragona. Il ricordo di sant’Elisabetta torna nel corso di tutta l’esistenza di Isabella: a lei e alla madre del Secondo Ordine, santa Chiara, la regina decise di dedicare la chiesa del monastero clariano fondato a Coimbra durante la cerimonia di consacrazione dell’8 luglio del 1330. Il tempo ha cancellato la duplice intitolazione, conservando solo quella di santa Clara, ma è un vero peccato che ciò sia avvenuto poiché essa costituisce una possibile chiave di lettura per interpretare il monumento; d’altra parte ritengo

fig.4 elisabethschrein. marburg, chiesa di sant’elisabetta, sacristia. particolare, cristo tra gli apostoli. © bildarchiv foto marburg

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4. Anche per sant’Isabella mi limiterò a menzionare soltanto alcune opere, anche oggi di riferimento: Vasconcelos, António de. 1893-1894. Evolução do culto de Dona Isabel de Aragão esposa do rei Lavrador Dom Dinis de Portugal (a Rainha Santa). Coimbra: Imprensa da Universidade, 2 voll.; 1999. Imagen de la Reina Santa: Santa Isabel, infanta de Aragón y reina de Portugal, Zaragoza, Real Capilla de Santa Isabel (San Cayetano), 13 de mayo-4 de julio. Zaragoza: Diputación Provincial de Zaragoza, 2 voll. 5. Della copiosa bibliografia sul tema della santità nel Medioevo, si veda: Vauchez, André. 1989. I laici nel Medioevo: pratiche ed esperienze religiose, Milano: Mondadori; Idem. 1989. La santità nel Medioevo, Bologna: Il Mulino; Idem. 1990. Ordini mendicanti e società italiana XIIIXV secolo, Milano: Mondadori; Idem. 1993. La spiritualità nell’Occidente medievale, Milano: Mondadori; Idem. 2000. Santi, profeti e visionari. Il sopranaturale nel Medioevo, Bologna: Il Mulino; nello specifico, sulla santità femminile nel Medioevo, si veda: Muñoz Fernandez, Angela. 1988. Mujer y experiencia religiosa en el marco de la santidad medieval, Madrid; Klaniczay, Gabor. 1995. I modelli di santità femminile fra i secoli XIII e XIV in Europa centrale e in Italia. In Graciotti, Sante, Vasoli, Carlo (a cura di). 1995. Spiritualità e lettere nella cultura italiana e ungherese del Basso Medioevo, Firenze, 79-109.


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6. Si veda: Prata Figueira, Ana Paula Santos. 2000. A fundação do mosteiro de Santa Clara de Coimbra. Da instituição por D. Mor Dias à intervenção da rainha Santa Isabel. Dissertação de mestrado em História Medieval. Faculdade de Letras, Universidade de Coimbra: texto policopiado, 2 vol. Rossi Vairo, Giulia. 2001. Isabella d’Aragona, Rainha Santa de Portugal, e il Monastero di Santa Clara e Santa Isabel di Coimbra (1286-1336). Collectanea Franciscana, 71/1-2, pp.139-169. Macedo, Francisco Pato de. 2006. Santa Clara-a-Velha de Coimbra. Singular mosteiro mendicante. Dissertação de doutoramento em História da Arte Medieval. Faculdade de Letras. Universidade de Coimbra: Coimbra: texto policopiado. Idem 2009. Isabel de Aragão em Santa Clara a Velha de Coimbra. Anais VII EIEM – Encontro Internacional de Estudos Medievais. Idade Média: permanência, atualização, residualidade. Fortaleza – Rio de Janeiro: Premius Editora, 304-328. 7. Fra il XIII e il XIV secolo in Portogallo sorsero nove monasteri tutti dedicati alla memoria di Santa Chiara: a Entre-os-Rios nel 1256-58, poi trasferito a Oporto nel 1416; a Lamego, nel 1258, poi trasferito a Santarém nel 1259; a Coimbra, nel 1286, rifondato nel 1314-17; a Lisbona nel 1288; a Vila do Conde nel 1317; ad Amarante, nel 1333; a Guarda, nel 1344; a Beja nel 1343-45; a Portalegre, nel 1370; si veda: Andrade, Maria Filomena de. 2005. O processo fundacional dos conventos de clarissas no Portugal medievo. Fundadores, fundaciones y espacios de vida conventual: nuevas aportaciones al monacato femenino, coord. María Isabel Viforcos, Maria Dolores Campos Sánchez – Bordona. León: Universidad de León, 79-102. 8. Per una descrizione dell’Elisabethschrein e della sua decorazione, si veda Kindler, Anette. 2007. Scheda 129. In Blume 2007, 2, 201-206. 9. Per una descrizione approfondita della tomba e del suo programma iconografico, si veda Macedo, Pato. 1999. O túmulo gótico de Santa Isabel. In Imagen de la Reina Santa: Santa Isabel, 1, 93-114.

sia altrettanto significativa la sua perdita, dal momento che esso, dopo la morte della sovrana, diventerà a tutti gli effetti il mausoleo della Rainha Santa6. Sempre nell’intento di glorificare la memoria della prozia e, in continuità con la pietosa tradizione da lei avviata, nel 1327 Isabella fece costruire, nelle immediate vicinanze del monastero, un ospedale intitolato a sant’Elisabetta per prestare soccorso poveri e ammalati, alla cui assistenza avrebbe provveduto la comunità del cenobio e, all’occasione, lei stessa. Alla luce di questi fatti, si può dire che il culto della santa di Turingia sia stato, se non proprio introdotto – ma non mi risultano in Portogallo chiese e monasteri a lei dedicati prima dell’intervento in tal senso della regina –7, sicuramente alimentato e incoraggiato dalla pronipote, da sempre vicina alla spiritualità francescana. Anche dal punto di vista iconografico, è interessante osservare alcune similitudini fra sant’Elisabetta e sant’Isabella: esse infatti hanno in comune vari attributi che ne consentono una rapida identificazione: la corona, le rose, l’essere rappresentate in abito da terziaria francescana, soprattutto in epoca moderna per la prima (sebbene nessuna delle due abbia mai professato nel Terzo Ordine) e addirittura scene ed episodi che le vedono protagoniste singolarmente, quando le si rappresenta dedite alla cura e all’assistenza di malati, poveri, lebbrosi, intente a distribuire cibo ed elemosine. Tale è la sovrapposizione fra l’iconografia delle due sante in alcune opere, in particolare di pittura, che talvolta bisogna ricorrere alla loro datazione per non incorrere in errore. Rimanendo su questo piano, desidero soffermarmi su quelle che sono da considerarsi le prime testimonianze iconografiche relative alle due sante, le prime immagini cui far risalire la loro memoria, prima che la storia e gli uomini intervenissero a modificarne il ricordo, ovvero: l’Elisabethschrein, l’arca reliquiario conservata nella sacrestia della chiesa di sant’Elisabetta a Marburg, opera di maestranze di area renana, eseguita fra il 1235/6 e il 12498, e la monumentale tomba di Isabella, frutto della collaborazione del maestro aragonese Pero e del maestro Telo di Lisbona, sicuramente pronta al momento della consacrazione della chiesa di santa Clara e sant’Isabel e oggi all’interno del coro della chiesa del monastero seicentesco di santa Clara a Nova, sempre a Coimbra9. In realtà, assieme al reliquiario, per Elisabetta devono essere contemplate anche le splendide vetrate della cappella maggiore della chiesa di Marburgo, non solo perché la loro realizzazione è praticamente coeva allo schrein, ma anche per la perfetta corrispondenza iconografica e concettuale riscontrabile fra i programmi decorativi delle due opere, entrambe eseguite per celebrare la vita della santa, sebbene con finalità lievemente distinte; e seppure il confronto verterà principalmente fra lo schrein e la tomba, quando la circostanza lo richiederà, si farà esplicito riferimento anche alle vetrate. Prendendo in esame le prime opere realizzate per eternare il ricordo delle due donne, l’arca reliquiario e il monumento, possiamo osservare delle interessanti corrispondenze ed analogie, così come delle significative differenze: in entrambi i casi, esse furono destinate ad ospitare i loro resti mortali di cui costituiscono il primo deposito. Nel caso di Elisabetta, a seguito della canonizzazione, si procedette alla dissezione del corpo more teutonico, come era in uso presso alcune monarchie, ad esempio in

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Francia o in Inghilterra, per cui fu necessario creare più reliquiari che accogliessero le diverse porzioni delle sante spoglie, per alimentare e allo stesso tempo controllare il culto della neo santa10. Lo schrein conserva la maggior parte delle ossa (la parte considerata più pregiata del corpo del santo, perché più duratura nel tempo) e inizialmente fu collocato nel coro orientale della chiesa, in corrispondenza dell’altare principale, nello spazio conventuale accessibile solo ai frati dell’Ordine Teutonico11, seppure visibile anche dall’esterno. Così, il sepolcro, che fino alla canonizzazione aveva custodito il cadavere, al momento della traslazione delle spoglie rimase completamente vuoto, eppure offerto alla devozione dei pellegrini nella navata settentrionale della chiesa. La morte colse Isabella il 4 luglio del 1336 ad Estremoz, dove si era recata per cercare di portare la pace fra il figlio, Alfonso IV, e il nipote, Alfonso XI, re di Castiglia venuti ancora una volta a contesa. Subito si pensò di trasportare il corpo a Coimbra, luogo eletto dalla regina madre per la propria sepoltura, nonostante la stagione calda e la notevole distanza fra le due città scoraggiasse l’impresa. Per meglio affrontare il viaggio, preservare l’integrità del cadavere ed evitarne la decomposizione, si procedette all’imbalsamazione, pratica di origine orientale assai diffusa nei paesi dell’Europa meridionale. Per il trasferimento, il corpo fu posto in una semplice cassa di legno ricoperta di cuoio. Arrivata a Coimbra dopo sette giorni di viaggio, essa fu inizialmente vegliata all’interno del coro dalla comunità

10. Il reliquiario della testa di S. Elisabetta, identificato come tale su base indiziaria solo nel 1955, si trova allo Statens Historika Museum di Stoccolma. Si tratta di un cosiddetto “reliquiario coronato”: si dice infatti che Federico II giunto in pellegrinaggio sulla tomba di Elisabetta abbia voluto coronarne il capo. Di conseguenza, s’impose d’urgenza la realizzazione di un reliquiario apposito (1235/6). Esso è il risultato dell’assemblaggio d’oggetti di diversa tipologia: un calice in oro con il bordo, i manici e il piede decorati da pietre preziose, ricostruzione di un antico calice forse della fine del X secolo. Nel XIII secolo venne posizionato su di un nodo di raccordo con un piede d’argento e coperto da una calotta su cui è inserita una corona. Il reliquiario del braccio di S. Elisabetta, manufatto di raffinata oreficeria e pietre preziose, si trova nella Schlosskapelle di Bendorf-Sayn e si ritiene essere stato realizzato fra il 1240/50. Sui reliquari di S. Elisabetta, si veda: Reudenbach, Bruno. 2007. Kopf, Arm und leib. Reliquien und reliquiare Der heligen Elisabeth. In Blume 2007, 1, 193-202. 11. Fu proprio l’Ordine Teutonico ad innalzare a proprie spese la prima chiesa dedicata a Elisabetta di Turingia, sancendo la nascita del culto liturgico dopo la traslazione in loco delle sue spoglie mortali nel 1249, la chiesa mausoleo di S. Elisabetta di Marburgo. La costruzione fu avviata nel 1236 ed il cantiere si protrasse nel tempo, venendo ad acquisire forme e dimensioni maestose: alla sua decorazione e ornamento concorsero maestri di diversa provenienza e, a tutt’oggi, essa custodisce opere d’arte, manufatti e arredi straordinari. Sui rapporti fra Elisabetta e l’Ordine teutonico, si veda il volume: Arnold, Udo e Liebing, Heinz (a cura di). 1983. Elisabeth, der Deutsche Orden und ihre Kirche: Festschrift zur 700 jährigen Wiederkehr der Weihe der Elisabetkirche Marburg (Quellen und Studien zur Geschichte des Deutschen Ordens, 18), Marburg: Elwert Verlag e Boockmann, Hartmut. 1981. Die Anfänge des Deutschen Ordens in Marburg und die frühe Ordensgeschichte. In Sankt Elisabeth: Fürstin, Dienerin, Heilige, 137-150.

fig.5 elisabethschrein. marburg, chiesa di sant’elisabetta, sacristia. particolare, la crocifissione. © bildarchiv foto marburg

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fig.6 elisabethschrein. marburg, chiesa di sant’elisabetta, sacristia. particolare del rilievo di sant’elisabetta a figura intera. © bildarchiv foto marburg

di clarisse, per poi essere inserita all’interno del monumento funerario collocato in una cappella fatta costruire di proposito ancora in vita Isabella, ovvero in uno spazio pubblico accessibile ai fedeli, sebbene la tomba sia stata quasi da subito circondata da alte grate di ferro per scongiurare eventuali profanazioni. Il sarcofago custodì il corpo della regina fino al 1677, quando, a causa delle frequenti e distruttive piene del Mondego che ciclicamente invadevano la chiesa e i locali del monastero, si decise la sua traslazione presso la chiesa del nuovo monastero di Santa Clara a Nova, costruito su di un’altura, lontano dalle acque del fiume. In quest’ occasione, il cadavere della regina fu riposto all’interno di una nuova teca in argento e cristallo, collocata nella cappella maggiore, in posizione sopraelevata e dietro l’altare. Anche l’antico monumento fu trasferito nel nuovo monastero e sistemato nel coro delle clarisse, nel rispetto delle volontà espresse dalla regina nel suo secondo testamento redatto nel 1327. Sia lo schrein di Elisabetta che la tomba di Isabella sono capolavori d’arte plastica, sebbene realizzati con l’impiego di materie prime e tecniche diverse, straordinari per la loro fattura, caratterizzati da una materialità e una concretezza appositamente ricercate, affinché i visitatori potessero stabilire con essi un contatto visivo e tattile, se non fosse per gli espedienti messi in atto per scoraggiare il fanatismo dei devoti. Essi hanno la funzione di conferire “consistenza” all’immagine di colei i cui resti custodiscono. Sono opere preziose e pregiate anche per la qualità dei materiali utilizzati: se per lo schrein di Elisabetta ciò risulta del tutto evidente, anche l’opzione della pedra de Ança, tipica della regione di Coimbra, per la tomba di Isabella è frutto di una scelta meditata e indicativa di un’appartenenza. Ma già soffermandosi su questi primi elementi emerge una significativa differenza: lo schrein custodisce le spoglie proclamate sante della langravia Elisabetta ed è proprio per questo motivo che viene commissionata un’opera tanto preziosa e speciale. Così non è per la regina Isabella che, al momento della collocazione del cadavere all’interno del sarcofago, santa ancora non è, seppure molto amata, già appellata come benaventurada, ovvero beata, da coloro che lo scortano in corteo da Estremoz a Coimbra, e che, per altro, ha disposto personalmente l’esecuzione del suo monumento, aspetto da non sottovalutare e sul quale tornerò opportunamente in seguito. In entrambi i casi, il corpo (o quel che restava di esso) è oggetto, subito dopo la morte, di devozione pubblica e privata: pubblica, da parte dei fedeli e dei pellegrini accorsi sul luogo della sepoltura; privata, da parte della comunità conventuale che ne custodisce gelosamente il ricordo, ovvero i frati dell’Ordine Teutonico per Elisabetta, le clarisse per Isabella. Ma mentre per Elisabetta viene studiato un espediente per tutelare l’esclusività dei frati, conservando in uno spazio loro riservato le spoglie all’interno del prezioso reliquario e offrendo ai pellegrini un locale apposito dove pregare, una cappella, costruita sul luogo della tomba originaria ormai vuota, nel tempo dotata di un altare, di un nuovo monumento con copertura a baldacchino, retabli, affreschi, statue, per Isabella non vengono rispettate le prerogative delle clarisse e il corpo della regina è collocato in uno spazio sì accessibile ai pellegrini, al di là della grata del coro, ma circondato da alte inferriate.

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Lo schrein fu commissionato per sostituire la semplice cassa di legno che aveva inizialmente ospitato il corpo di Elisabetta: raffinato manufatto di oreficeria, realizzato con il concorso di diverse tecniche e l’applicazione di perle, gemme, pietre preziose e semipreziose, su di una base di rame dorato e argento, ha le forme, non casuali, di un edificio a sala con transetto, tanto che per esso si è parlato di micro-architettura. Sotto gli archi trilobati e i frontoni ogivali dei lati lunghi si trovano: da una parte, al centro, Cristo assiso in trono benedicente fra sei apostoli, anch’essi seduti; dall’altra, la scena della Crocifissione – oggi non più integra poiché manca il crocifisso e sono visibili solo le figurine di san Giovanni e della Madonna – fra i restanti sei apostoli; sui lati brevi, da una parte, la Vergine Maria, patrona dell’Ordine Teutonico e prima dedicataria della chiesa di Marburg, con il Bambino in braccio, e, dall’altra, sant’Elisabetta; sui lati spioventi dell’arca sono scolpite in bassorilievo otto scene della vita della santa. Il programma iconografico dello schrein fu deciso da altri e deve essere sicuramente letto in relazione alle prime fonti agiografiche, redatte immediatamente dopo la morte della donna: con esso si è voluto non solo glorificare la santa, ma anche rac-

fig.7 elisabethschrein. marburg, chiesa di sant’elisabetta, sacristia. particolare dei rilievi di uno dei lati spioventi del reliquiario: primo piano del langravio ludwig, nell’atto di congedarsi da elisabetta. © bildarchiv foto marburg

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12. Caesarius von Heisterbach, Das Leben der Heiligen Elisabeth, ed. Könsgen, Ewald. 2007. Marburg: Veröffentlichungen der Historischen Kommission für Hessen; Theodoricus de Apolda, Das Leben der Heiligen Elisabeth, ed. Rener, Monika. 2007. Marburg: Veröffentlichungen der Historischen Kommission für Hessen. 13. Sulla relazione fra Elisabetta d’Ungheria e Corrado di Marburgo, si veda Werner, Matthias. 1981, Die heilige Elisabeth und Konrad von Marburg. In Sankt Elisabeth: Fürstin, Dienerin, Heilige, 70-77.

contare il suo percorso spirituale verso la santità12. Disposti in ordine cronologico, gli otto rilievi devono essere letti da destra verso sinistra, a partire dal lato lungo dove è rappresentata la Maestà di Cristo: cinque sono biografici, i restanti tre indicativi dell’attività assistenziale della langravia. Le tre scene iniziali narrano la “preistoria” di Elisabetta: il langravio Ludwig IV, suo sposo, è protagonista assoluto del primo rilievo assieme al vescovo Corrado di Hildesheim, ritratto nel momento in cui accetta di portare la croce, ovvero di aderire alla crociata; nel secondo è l’addio fra i due coniugi, avvinti in un tenero abbraccio, persi l’uno nello sguardo dell’altro; nel terzo è la scena in cui due uomini abbigliati come pellegrini porgono alla giovane donna i resti del marito raccolti in una sacca e la fede nuziale. Da questo momento in poi Elisabetta smetterà gli abiti regali per vivere pienamente la sua vedovanza e dedicarsi alla carità: così è ritratta nel quarto rilievo, intenta nell’atto di donare i suoi beni e le sue vesti ai poveri. Nelle scena immediatamente successiva è rappresentata mentre riceve l’abito dal suo confessore e guida spirituale, colui che per primo proclamerà la sua santità, fra Corrado di Marburgo13. Di seguito, è raffigurata mentre mette in atto

fig.8 elisabethschrein. marburg, chiesa di sant’elisabetta, sacristia. particolare dei rilievi di uno dei lati spioventi del reliquiario: sant’elisabetta dona i suoi abiti ai poveri e sant’elisabetta accoglie i pellegrini della terra santa che recano i resti dello sposo ludwig. © bildarchiv foto marburg

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gli insegnamenti di Cristo: quando distribuisce elemosine ai poveri; quando nutre gli affamati; quando offre da bere agli assetati e mentre è intenta nella lavanda dei piedi. La complessità del programma iconografico dello schrein è evidenziata dai rimandi concettuali fra i rilievi dei due lati: ad esempio, alla prima scena con Ludwig protagonista che sposa la causa della Crociata, corrisponde quella in cui Elisabetta, a suo modo, accetta di portare la croce, quando riceve l’abito e con esso abbraccia una vita di penitenza, rinuncia e abnegazione. Questo passaggio è sottolineato dalla scena della Crocifissione che campeggia al centro del fianco che presenta i rilievi dedicati all’Elisabetta soror in saeculo.

fig.9 elisabethschrein. marburg, chiesa di sant’elisabetta, sacristia. particolare del rilievo di uno dei lati spioventi del reliquiario: sant’elisabetta che riceve l’abito da fra corrado di marburg. © bildarchiv foto marburg

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14. Kindler, Anette. 2007. Das Marburger Fenster. In Blume 2007, 2, 234-238.

Nelle vetrate della cappella maggiore della chiesa sono narrate le Storie della vita di sant’Elisabetta, corrispondenti in tutto e per tutto a quelle rappresentate sul reliquairio, per la scelta degli episodi, l’iconografia dei personaggi, la composizione delle scene, tanto da far supporre che alcune maestranze impegnate nell’uno furono attive anche nelle altre; di certo furono realizzate in contemporanea, dal momento che erano sicuramente pronte entro il 1249-5014. Le finestre che erano offerte allo sguardo diretto dei pellegrini per alimentare la loro devozione ed invitarli a seguire l’esempio della santa, presentano dodici scene, ovvero quattro in più rispetto allo schrein; sono disposte su due colonne e devono essere lette dal basso verso l’alto. Senza voler sviluppare il tema delle analogie e delle differenze fra un’opera e l’altra, vorrei solo ricordare che fra le scene aggiunte nelle finestre è l’ospitalità di Elisabetta a due pellegrini e il momento del trapasso di Elisabetta, ritratta sul letto di morte mentre un angelo porta in cielo la sua anima che ha le fattezze di un neonato. Complessivamente, l’immagine di sant’Elisabetta che ci restituiscono questi due capolavori è di grande umanità, umiltà e semplicità; eppure l’iconografia della santa subirà nel giro di pochissimi anni una trasformazione sostanziale. La giovane donna sobriamente abbigliata, il volto incorniciato da bende, come era uso per le donne maritate all’epoca, in testa una sorta di berretto che nasconde i capelli raccolti in un lezioso chignon e, una volta morto il marito, la vedova dalle chiome coperte dal velo, il più delle volte scalza e priva di qualsiasi ornamento, con indosso una tunica stretta in vita dalla corda, in cui sono evidenti tre nodi allusivi ai voti di obbedienza, castità e povertà, e un lungo manto anonimo, lascerà presto posto all’immagine sofisticata della bella principessa, elegantemente vestita, abbellita da qualche gioia e soprattutto dalla corona, saldamente fissata sul velo, spesso impreziosito da trame raffinate, che le copre il capo da cui il più delle volte spuntano le bionde chiome sciolte o raccolte in graziose acconciature (così appare anche nel monumento di Isabella d’Aragona). Inoltre, se prendiamo in considerazione il rilievo a figura intera, lievemente aggettante, presente su uno dei lati brevi del reliquario, ciò risulta ancora più evidente: qui la santa è rappresentata priva di qualsiasi ornamento, essenziale nella sua semplicità, il volto e il collo fasciati, veste un pesante mantello dal fitto panneggio che non lascia intravedere le forme; unico attributo distintivo, un libro con la copertina decorata da alcune pietre preziose, le Sacre Scritture, che stringe fra le mani e in cui risiede tutta la sua forza. In tutti i modi, sia nella prima che nella seconda versione, non fu certo Elisabetta a stabilire come avrebbe dovuto essere ricordata, ma sono altri che decidono come vogliono conservarne e tramandarne la memoria, aggiungendo o togliendo elementi identificativi della sua persona a seconda della loro percezione della sua santità. Lo stesso non si può certo dire per il monumento funerario di Isabella d’Aragona: fu realizzato ancora in vita la regina, la sua collocazione fu disposta proprio da lei e fu lei stessa a dare indicazioni sull’iconografia della tomba che riflette l’immagine con cui Isabella vuole essere ricordata dai posteri. Nel gennaio del 1325 la sovrana ha perso il consorte, il re Dinis; poco dopo, nel luglio del 1326, anche l’amata nipotina Isabel che aveva tenuto a battesimo, muore: ormai vedova, medita sulla sorte comune a tutti i mortali che l’attende e

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commissiona l’esecuzione del suo sepolcro. Ma, come scrive Philippe Ariés, “nello specchio della propria morte, ogni uomo riscopriva il segreto della sua individualità” (ARIES, 1975, 49)15: così Isabella stabilisce che il suo monumento debba essere un unicum, che si distingua nettamente da quello del marito – si servirà di altri maestri e opterà per un diverso programma decorativo –, se non fosse per quell’iniziale scelta di collocare la tomba di fronte all’altare della cappella maggiore, al centro della navata mediana della chiesa da lei fondata, come aveva già fatto il reDinis per il suo sarcofago nella chiesa del Monastero di S. Dinis e S. Bernardo di Odivelas. Per la maggior parte della sua esistenza Isabella è regina e da regina muore. Colpisce nella ricca decorazione scultorea dell’arca, solo apparentemente di facile interpretazione, la sua statua giacente: è rappresentata vestita con l’abito dell’Ordine di santa Chiara, su cui indossa un lungo mantello, che però, negli orli ricamati e dorati della maniche e della veste, tradisce una certa preziosità; ai piedi dei calzari dalla punta molto accentuata, ostentazione del lusso di chi le indossa; il capo è coperto dal velo, fermato dalla corona, ed è protetto da un baldacchino che rievoca nelle forme certe strutture gotiche del tempo, riccamente decorato con rilievi al suo esterno; la vita è cinta da una lunga corda che riporta ben sei nodi, più un ornamento che un simbolo; le mani sono incrociate poco al di sotto del petto e la destra è adagiata su di un piccolo libro d’ore chiuso. In evidenza sono gli oggetti allusivi al pellegrinaggio che la

fig.10 tomba di isabella d’aragona, regina del portogallo. coimbra, monastero di santa clara a nova. particolare dei calzari. © foto dell’autore

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15. Ariès, Philippe. 1975. Storia della Morte in Occidente dal Medioevo ai giorni nostri, Milano: Rizzoli, 49.


16. Su Isabella d’Aragona pellegrina a Santiago de Compostela, si veda Baquero Moreno, Humberto. 2002, Santa Isabel, rainha de Portugal, peregrina a Santiago, in Portugal na memória dos peregrinos. Actas de las Jornadas sobre o Caminho de Santiago (Porto, 29-30 marzo 2001), Santiago de Compostela, 17-26.

sovrana compì a Santiago di Compostela nel 1325 dopo la morte del marito e, in senso lato, alla sua condizione di pellegrina sulla terra: sulla destra, il bastone, sulla sinistra, la borsa a tracolla, decorata da una conchiglia e ripiena di monete ben visibili16. Lungo il corpo, gli stemmi che ricordano, e ricorderanno per sempre, le origini e l’attuale presente della giacente: in una sequenza che si ripete su entrambi i lati, secondo un ordine diverso, sono rappresentati lo scudo della Corona portoghese, lo scudo della Corona d’Aragona e lo scudo con l’aquila imperiale di Federico II Hohenstaufen; al di là delle ripitture dei secoli successivi, il volto appare ben delineato, non segnato dall’età, anzi vigoroso e sereno, gli occhi spalancati sull’eternità che l’attende. Non si può certo dire che nella rappresentazione della defunta domini l’umiltà, bensì l’umanità intesa come individualità: è un’immagine di forza – ricordiamo che quando l’opera fu scolpita Isabella aveva fra i 54 e i 59 anni, ha fatto il suo percorso di vita e opera una scelta consapevole –, di sontuosità, di prestigio, di orgoglio per le proprie origini quella che ci restituisce il monumento: esso “non è più contrassegno del luogo dell’inumazione, ma è già commemorazione del defunto, immortale fra i santi e celebre fra gli uomini” (ARIES, 1975, 101).

fig.11 tomba di isabella d’aragona, regina del portogallo. coimbra, monastero di santa clara a nova. particolare, le sante chiara, caterina d’alessandria ed elisabetta d’ungheria. © foto dell’autore

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Nella tomba di Isabella, a differenza del reliquiario di Elisabetta, non c’è narrazione, non c’è menzione della “preistoria” della futura santa, se non per quegli scudi che rimandano alle origini dinastiche della sovrana, c’è solo l’hic et nunc. Il re Dinis non figura affatto, a differenza del caso della langravia dove il marito è protagonista assoluto nella scena iniziale e assieme a lei nelle due successive, in corpore et in spiritu: si può dire che lo schrein celebri la santità della coppia dei langravi, anche se, formalmente, soltanto Elisabetta è elevata agli onori degli altari (il marito sarà solo beatificato). Eppure anche Dinis, oltre ad essere il compagno di una vita, con alti e bassi, ha avuto un ruolo nell’evoluzione del percorso spirituale di Isabella: insieme hanno incoraggiato la diffusione degli Ordini Mendicanti e di altri movimenti religiosi nel territorio del regno; insieme hanno sostenuto con dotazioni e donativi monasteri ed ospedali; insieme hanno intrapreso e condiviso attività caritative per i più bisognosi; ma il ruolo svolto dal re in tal senso non viene ricordato nel monumento. Nonostante ciò, a ben vedere, esistono delle analogie fra l’arca reliquiario di Elisabetta e il sarcofago di Isabella, ravvisabili in alcuni temi iconografici che si ripetono nell’uno come nell’altra: così, come nel riquadro che illustra la morte della santa nelle vetrate di Marburg, anche al centro del lato esterno del baldacchino della tomba della regina compare il motivo dell’elevazione in cielo dell’animula della defunta, secondo un modello iconografico d’origine bizantina assai diffuso nel Medioevo in tutta Europa. All’interno di un medaglione quadrilobato, un angelo con le ali spiegate reca su di un panno l’anima della regina, rappresentata come una bambina, nuda e con le mani giunte. In entrambe le opere torna il tema del pellegrinaggio: nel caso di Elisabetta, in un rilievo dello schrein gli uomini che le comunicano la morte del marito vestono da pellegrini, ma anche nelle vetrate, in uno degli episodi aggiunti, figura la langravia che accoglie due uomini chiaramente abbigliati come pellegrini, uno dei due con indosso il caratteristico cappello a falde larghe e a tracolla la bisaccia con tre conchiglie. Nel monumento è Isabella che si presenta come pellegrina dell’apostolo di Compostela: ancora una volta è lei la protagonista, in qualche maniera “racconta” l’esperienza realmente vissuta, quando, dopo la morte del marito, si recò sulla tomba dell’Apostolo per raccomandare al santo l’anima dei sui cari defunti. Presenta alcuni attributi identificativi del pellegrino, il bastone, la borsa su cui campeggia la famosa conchiglia, però stride quella sacca piena di monete, allusiva alla generosità nel distribuire elemosine, ma anche alla ricchezza della sua proprietaria. Altra interessante analogia è nella raffigurazione di Cristo fra gli apostoli, presente nel reliquiario. Però, nell’archetta – reliquiario di Elisabetta, si tratta di un Cristo benedicente, assiso in trono fra gli apostoli distribuiti sui due lati lunghi e, inoltre, nel secondo fronte essi sono disposti attorno alla scena della Crocifissione; nel sarcofago di Isabella, Cristo figura su uno dei lati lunghi dell’arca, è ritratto in piedi, coperto da un lungo manto mentre mostra i segni della Passione, in mezzo agli apostoli. In entrambi le opere è rappresentata la professione di fede dei diretti seguaci di Cristo, nella cui morte e resurrezione risiede la salvezza degli uomini. Fra la realizzazione del reliquiario di sant’Elisabetta e la tomba di Isabella d’Aragona è trascorso quasi un secolo: in questo tempo, seppure molto lentamente, è cambiata la

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percezione della santità laica, anche di quella femminile, laddove si è passati dall’exemplum estremo incarnato da sant’Elisabetta che opera una scelta di vita radicale di rinuncia, di povertà, di penitenza ed obbedienza, alla stregua di S. Francesco, suo punto di riferimento, alla proposizione di un modello comportamentale differente, più facilmente imitabile, che, seppure ugualmente caratterizzato dalla preghiera e dalla dedizione verso l’altro, è in realtà connotato dall’esercizio costante delle virtù rimanendo nel mondo: a questo modello sembra aderire anche Isabella per la sua forma vitae. È cambiato anche l’atteggiamento degli uomini di fronte alla morte: quello che era solo un passaggio da un mondo all’altro, è diventato un evento da celebrare affinché resti nel ricordo di coloro che sopravviveranno. In questo contesto, l’arte funeraria si è evoluta in senso realistico e a favore di una maggiore personalizzazione. Questi cambiamenti, che investono il campo della spiritualità e della mentalità, si riflettono anche nelle due opere che sono il prodotto di una temperie culturale e spirituale precisa. Ma, sebbene in entrambi i casi si tratti di manufatti che vogliono esaltare la defunta, bisogna sempre però rammentare che per Elisabetta ciò avviene in maniera passiva, in quanto sono altri ad operare le scelte definitive, mentre per Isabella è lei stessa che, se non proprio in maniera diretta, sicuramente consapevole, che lavora alla costruzione della sua memoria. Così sarà anche quando Isabella vorrà ricordare, nella sua tomba, colei a cui nel corso della sua esistenza si è ispirata: infatti tra i rilievi che ornano il lato breve ai piedi della figura giacente della sovrana, figura l’immagine scolpita di sant’Elisabetta accanto a santa Chiara e a santa Caterina d’Alessandria. Vi è rappresentata secondo l’iconografia tradizionale, o per meglio dire, degli inizi del XIV secolo: il velo sul capo fermato dalla corona, un lungo abito, stretto in vita da una cintura e sopra un mantello chiuso sul petto da una spilla, la mano sinistra adagiata sul vestito, mentre la destra solleva ben evidente un libro chiuso, il Libro delle Sacre Scritture.

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imagens de azul. evidências do emprego do azul cobalto na cerâmica tardo medieval portuguesa ru i a n dré a lv e s t r i n da d e Instituto de História da Arte FCSH-UNL

Agradeço ao Professor Doutor José Custódio Vieira da Silva, nosso orientador de Doutoramento, pela significativa orientação crítica que em muito contribuiu para a execução deste texto.

Uma das problemáticas em que temos reflectido nos últimos anos de investigação é a questão do emprego do azul ou óxido de cobalto com fundentes à base de chumbo, na produção cerâmica medieval e tardo medieval. Simbolicamente, o azul, em várias culturas, era tido como a cor do céu, da imensidão da água e observado pelos pensadores como cor transparente, pura, imaterial e cor do divino, da verdade e da fidelidade, no que diz respeito às três religiões monoteístas, e ainda do apego à verdade e ao firmamento celeste. Na arte pictórica da cristandade medieval, o azul é a cor da santidade; cor do manto da Virgem, vestida de túnica vermelha, que não esquece o apego à vida terrestre (Lexikon.1997.30). Daí que o seu emprego na arte atingisse grande procura. A paleta medieval de óxidos corantes para aplicação na cerâmica era constituída pelo óxido de ferro para obtenção dos amarelos; pelo óxido de cobre para obtenção dos verdes; pelo manganês, com vários graus de diluição, para obtenção dos roxos, púrpuras, castanhos e negros; pelo óxido de estanho para obtenção dos brancos; pelo alcalino de cobre para obtenção dos verdes turquesas e, finalmente, pelo óxido de cobalto, que tanto era utilizado diluído para a obtenção dos azuis como saturado para obtenção dos negros e mesmo púrpuras. Nos processos de impermeabilização da chacota cerâmica através do uso do vidrado, estes corantes eram misturados com um fundente primeiramente à base de galena1; posteriormente, já a partir, pelo menos, da transição do século XV para o XVI, a mistura dos óxidos corantes fazia-se com um fundente à base de óxido de chumbo

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1. (Carvalho 1922, 37). Taxas dos Ofícios Mecânicos da Cidade de Coimbra no ano de MDLVVIII. Coimbra, 1922. Cfr. O Regimento dos Oleiros de Coimbra do século XVI, onde são bem explícitos os dois procedimentos de impermeabilização através da aplicação do vidrado, a utilização de galena a qual se configurava com os procedimentos de mono-cozedura, a utilização do óxido de chumbo que implicava já um procedimento mais evoluído, próximo das técnicas da proto-majólica em que a peça teria que sofrer por duas vezes a ida ao forno cerâmico, uma para cozer o barro transformando-o em chacota e, posteriormente, uma segunda cozedura para aplicação do vidrado.


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irão. fragmento de duas grandes placas relevadas (em cima, 43,5x34cm; na base, 38,5x59cm), vidradas a azul de cobalto e decoradas com inscrições corânicas. cobalto aplicado directamente sobre marna, com fundente de chumbo. segunda metade do século xiii. museu britânico, londres. cfr. porter, vanetia, islamic tiles. ed. british museum. london,1995.

que, nos documentos medievais portugueses, aparece geralmente denominado de azougue. Este processo manteve-se até ao presente – principalmente na louça rústica da Estremadura portuguesa e mais propriamente na zona saloia – com a utilização somente do fundente de chumbo sobre a pasta cerâmica ou sobre a chacota. Este processo de “envernizamento” dava às peças a cor vermelha acastanhada, original da pasta, com acabamento vítreo. Das seis cores base da paleta medieval, três são já conhecidas e utilizadas nomeadamente na cerâmica europeia desde o Baixo-Império,

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isto é, o cobre, o ferro e o manganês. O estanho, o azul e o azul turquesa, são de proveniência oriental, resultante do contacto da Europa com a civilização Árabe. Os três primeiros corantes2, eram já empregues no vidrado cerâmico, conhecido e aplicado desde a Antiguidade. Encontram-se documentados, por via arqueológica, em peças cerâmicas de relevo da Pérsia e da Mesopotâmia, datadas de cerca de VI a.C., nos conhecidos frisos dos “archeiros” e da “caça aos leões” no palácio de Dário e na porta de Ishtar, da cidade de Babilónia, conservada no Berlim Staaliches Museum, de cerca 575 a.C. No mundo romano, durante o período Imperial, o emprego do vidrado em cerâmicas de uso comum e aplicada na arquitectura encontrava-se sistematizado, na Europa Ocidental. Com o colapso do Império, durante algum tempo os investigadores duvidaram do emprego do vidrado aplicado na louça ainda datável do período do Baixo-Império. Porém, esta opinião acabou por fi car invalidada pelo facto de que, na transição da Antiguidade Tardia para a Alta Idade Média, terem sido encontrados novos e seguros indícios do uso sistematizado de vidrados em peças cerâmicas Galo-Romanas do século V, pese embora que a terracota sigilata, material de barro cozido brunhido, foi usual na cerâmica comum e ao que parece continuou a sê-lo após as invasões bárbaras3. O emprego de uma camada vítrea tanto na cerâmica comum como naquela aplicada à arquitectura, teve não só como finalidade um acabamento mais perfeito das peças, como também a obtenção de uma impermeabilidade que aumentava a resistência da peça cerâmica, protegendo a pasta cozida e impedindo que esta se desfizesse em pó pela acção dos sais, pelo seu uso e repetido aquecimento no lar, pela absorção das gorduras e, no que respeita aos revestimentos cerâmicos, pela acção corrosiva do guano ácido das aves e dos elementos naturais. No caso das peças empregues na arquitectura, o vidrado permitia um acabamento brilhante e resistente, de alto efeito decorativo, o mesmo acontecendo à louça de aparato utilizada como baixela de mesa, consolidando assim a etiqueta medieval. No século IX, a grande novidade técnica empregue na cerâmica islâmica foi o esmalte de estanho para a obtenção de superfícies brancas e opacas que, juntamente com o fundente de chumbo transparente, garantia à peça uma opacidade e brancura das superfícies vidradas. A divulgação do vidrado de estanho, desde a sua origem até chegar à Europa, inicia-se provavelmente na China. No Médio Oriente é já conhecido no Egipto desde a época Sayta, no século X (Caviró 1975, 60). Importado o procedimento do Oriente para a Península Ibérica, são já conhecidos no século XI, em Medina Al-Zara, vidrados de estanho em peças de lustro metálico sobre vidrados estanífero as quais terão sido importadas possivelmente do Oriente. Em Málaga e Almeria, nos começos do século XI, fabricavam-se ainda peças de reflexo metálico mas com base cromática dada por engobes brancos, cobertos de branco de estanho, sob fundente de chumbo, ao contrário das peças de Medina Al-Zara (Villalba 1983, 34). Na cerâmica ibérica, o emprego de óxido de estanho parece remontar aos séculos X e XI, sendo deste período as primeiras notícias da importação deste metal, origi-

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2. Por definição, podemos distinguir dois géneros de cores; aquelas que são derivadas de pigmentos naturais e inorgânicos, que se designam por pigmentos e as outras, derivadas de produtos orgânicos, vegetais, animais que se denominam de corantes. Neste texto, por conveniência da escrita, algumas vezes referir-nos-emos a corante como óxido ou a pigmento. 3. “Durante a monarquia Visigótica, después da la caida del Império Romano, la qual fue destruida por la invasion de los árabes en la oitava centuria, el mismo estilo de la industria cerâmica, copiado de los romanos , continuaba en España”. Marti 1996, Vol.II, 66; Passelac 1996, 11-38; Trindade 2006, 177. Mais tarde, observase em Portugal que o hábito de brunir louça se prolongou até ao século XVI. Vasconcelos 1988, 45.


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espanha, valência. prato de aparato decorado com motivos a azul sobre branco de estanho. transição do século xv para o xvi. museu nacional de cerâmica gonzalez marti, valência. cfr. ferrer, maria paz soler. história de la carámica valenciana. tomo ii . ed vicent garcia editores, valência. 1988.

nário de portos ingleses, para as olarias levantinas (Marti. 1996, 58). Com efeito, o emprego de estanho como material de cobertura, permitia uma manipulação mais fácil e resultados mais atractivos para conseguir a opacidade e limpeza da cor branca do que o emprego da técnica de engobe branco sobre a pasta que, coberta com óxido de chumbo, deixava sempre uma tez amarelada na peça, como verificamos nas produções cristãs da Europa Central. O vidrado estanífero é composto por uma mistura de óxido de chumbo e de óxido de estanho, geralmente de três partes de fundente chumbo para uma parte de estanho. Esta fórmula era a empregue em vidrados hispano-mouriscos simples durante a Idade Média até ao presente. Outra mistura, cronologicamente situada a partir do início do século XV, consistia em baixar para duas partes de chumbo para uma de estanho quando o objectivo fosse o de conseguir um vidrado de qualidade superior e por isso mais espesso e menos brilhante. A esta última fórmula podia também ser adicionada a sílica, que se mostrava fundamental para uma melhor cristalização do esmalte, o sódio, sob a forma de sal marinho, usado nas peças de faiança e a alumina que aumentava a aderência do esmalte ao barro, tornando mais difícil o seu desta-

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camento. O arsénico é utilizado actualmente na constituição de vidrados estaníferos mas é provável que a sua utilização seja já ancestral, na melhoria das qualidades deste acabamento vidrado (Marti. Vol.I. 1996, 59). A fórmula podia ser melhorada com a adição de outros componentes usados no fabrico do vidro como a cal, a potassa e a soda, em percentagens mínimas, no intuito de se conseguir um vidro mais encorpado. Estas últimas fórmulas tiveram o seu início de aplicação a partir dos meados do século XVI e ainda se encontram correntes em algumas indústrias cerâmicas tradicionais até praticamente aos nossos dias. O desenvolvimento destas técnicas fez com que gradualmente, a partir do século X, o vidrado de estanho começasse a ser vulgarizado tornando-se, a partir do século seguinte, corrente nos processos de acabamento do material cerâmico, tanto na louça como em materiais de revestimento (Marti. Vol.I. 1996, 27). Na azulejaria, é a partir do século XII que o emprego deste corante natural se sistematiza na Península Ibérica nos meios laborais dos oleiros mouros. Dentro dos dados disponíveis, parece ser do consenso geral que a introdução da tecnologia do vidrado de esmalte estanífero na Europa foi feito pelos países do Sul, nomeadamente pela Península Ibérica, onde há conhecimento do uso deste material pelo menos a partir do século X. Porém, outra teoria expressa a opinião de que a tecnologia do vidrado estanífero se introduziu na Europa igualmente por contacto com a civilização islâmica, mas por via da Itália (Lemmen 1998, 38), sendo essa região o ponto de partida para a execução da azulejaria e cerâmica na técnica da majólica. Por outro lado, ficou demonstrado, em trabalho recente, que as primeiras evidências conhecidas sobre a presença de óxido de estanho em cerâmica de contexto cristão europeu são de facto provenientes de Portugal e encontram-se documentadas em peças dos pavimentos cistercienses, da segunda metade do século XIII, conservadas na Abadia de Santa Maria de Alcobaça, as quais, em tempo útil, foram sujeitas a análises físico-químicas (Trindade 2006, 193). As primeiras notícias do uso deste material para norte dos Pirinéus são mais tardias e provêem da região de Toulouse e Narbone, datáveis do século XIV, sendo secundadas por outras ainda mais tardias que referem o uso de esmalte de estanho na região de Florença, no final do mesmo século (Hennesy 1980, 34). Em Portugal, uma das fontes mais antigas sobre o fabrico de óxidos corantes foi escrita pelo próprio D. Duarte, incluída no Livro dos Conselhos ou Livro da Cartuxa (D. Duarte 1982). Nele está registado um número variado de informações que vão desde a correspondência até receitas e “mezinhas” para várias enfermidades, além de outra informação mais curiosa. A forma como vem escrito é extremamente elucidativa do empenho e da atenção que D. Duarte punha nos assuntos que o rodeavam, tratando-se sem dúvida de um precioso auxiliar de memória escrito pelo próprio rei, cujo estudo necessário contribui gradualmente para devolver a este monarca a importância que merece no contexto da dinastia de Avis. “Cores das pedras que se açharão nos vieiros” é um texto de conteúdo bastante denso e com uma forma de escrita confusa, não ajudando muito ao seu entendimento; daí que, segundo cremos, tenha vindo a passar despercebido ao longo dos anos.

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portugal. palácio nacional de sintra. n.º inv., pns 70. prato de aparato [brasero] em técnica de lustro metálico decoração relevada com gomos radiais. cordas segmentadas com pontuações de azul de cobalto aplicado espessamente. manises, valência, espanha. meados ou segunda metade do século xv. cfr. trindade, rui andré alves trindade. “cerâmica hispano mourisca de reflexo metálico nas colecções do palácio nacional de sintra”. in, vária escrita. cadernos de estudos arquivísticos, históricos e documentais. n.º 8, ed. da câmara municipal de sintra. sintra, 2001. © fotografia de rui trindade


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4. Cfr. Apêndice documental. Doc. 1. 5. A palavra alquímica, de Alquimia, é utilizada aqui fora do contexto esotérico, geralmente atribuído ao termo. Trata-se do manuseamento de materiais químicos por via empírica, forma que se afasta da Química, que opera com os mesmos elementos por via do método científico. 6. São de referir: Historia Naturalis de Plínio, o Velho, no seu 36.º volume, onde são abordados no início da produção de vidro e as composições dos seus elementos assim como as matérias corantes; os escritos de Isidoro de Sevilha, da transição do século VI para o século VII; o tratado De Universo, de Mauro de Mongúcia, do século IX, onde vem descrita possivelmente a mais antiga descrição de fornos de fundição de vidro; em conformidade com o anterior, está o Codex Luccensis 490 ou I Trattati attorno le Arte figurative in Itália e nella Península Ibérica, de autor anónimo, possivelmente grego a habitar em Itália pela centúria de 800 e conservado na biblioteca de Nápoles; o tratado Mappae Clavícula, anónimo do século X ou do século XI; o tratado De Coloribus et Artibus Romanorum, do século X, atribuído a Heraclio, datado da transição do século XIV para o século XV e o tratado Memoria del magistério de fare fenestre de vetro et de colori, de António de Pisa. (Jorge Cordeiro 1983, 7). 7. Cfr. Apêndice documental. Doc. 2. 8, Idem ib..b. 9. Idem ib..c. 10. Idem ib..d.

O texto relata a forma de conseguir cores através de minerais que naquela época eram simplesmente designados por “pedras”. No texto parecem ser identificados o fulminato de prata, a prata negra, a galena, o acetato cóprico, o verde óxido de cobre, o branco chumbo, o óxido de ferro e o manganês. Curiosamente não existe qualquer referência ao azul4. Neste texto, encontramos também alguns processos de manuseamento alquímico5 de minerais que importa referir e que, apesar de muito sucintos no documento, se encontram mais desenvolvidos no importante manuscrito De Diversis Artibus, de Theophilus (Jorge; Cordeiro. 1983. 5, 244) que constitui, além de outros6, a mais importante e completa fonte medieval, em forma de tratado, sobre o fabrico de vitrais e ourivesaria, artes aparentemente sem ligação com a manufactura da cerâmica, mas que um olhar mais atento consegue estabelecer relações. A importância do De Diversis Artibus relaciona-se com o facto de estarmos perante um documento sobre a manufactura de determinados elementos e componentes que são comprovados pela prática, isto é, o De Diversis Artibus afasta-se da maioria dos tratados medievais pelo seu rigor nas discrições, não enveredando pelo caminho da invenção. No documento de D. Duarte encontramos, entre outros elementos que não podemos identificar, o procedimento de separar o ouro da prata [Estas som as pedras que som açhadas nos vieiros das quaes sae prata fyna e som de çinquo maneyras.(...)iiij he branca mizcrada com amarelo/], que no tratado de Teófilo corresponde à complicada operação, descrita no capitulo LXX, do livro terceiro, “como separar o ouro da prata”7. Outro procedimento descrito por D. Duarte é a forma de conseguir o verde de cobre [A pedra de Cobre he uermelha e tyra a verde e há sabor como fez de ujnagre], que no tratado de Teófilo corresponde ao capítulo XXXVI, “O Verde Hispânico”, do livro primeiro8. O mesmo acontece com a preparação do mínio, derivado do branco de chumbo [A pedra do chumbo he poluorenta e muy de dentro he calor de cinza], que através do processo explicado por Teófilo se torna, ao fim de algumas operações, rubro que é o fundente conhecido por mínio9. Embora não venha referido por D. Duarte a manufactura do verde turquesa, vale a pena escutar as palavras de Teófilo no fabrico desse corante10. Estranhamente, D. Duarte não se debruça sobre o fabrico do azul. No seu livro pessoal de apontamentos não existem praticamente referências tanto técnicas como especulativas sobre esta cor que sabemos ser tida na Idade Média como a principal de todas as cores e muito apreciada. Não havendo explicação plausível para esta omissão, importa por isso ter uma visão alargada dos vários tipos de azul que então se produziam. O pastel dos tintureiros é uma cor azul, extraída por maceração das folhas da planta isatis tinctoria Lineu (Serrão 1981, 12). Este vegetal é nativo das regiões do Mediterrâneo, tendo a sua cultura sido desenvolvida durante a Idade Média primeiramente em França, a qual se tornou um grande centro exportador. Em Portugal, a isactis tinctoria Lineu crescia espontaneamente em todas as margens do Douro, não despertando interesse até meados do século XV, período a partir do qual o Infante D. Henrique viu o seu potencial económico. Terá sido cerca de 1445 que o Infante iniciou o cultivo

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sistematizado da planta do pastel com a consequente produção de azul, tendo por isso o privilégio régio do exclusivo do pastel e da construção de engenhos nos sítios que julgasse apropriados. Em 1490 esse monopólio foi dado a Luís Domingues, nas comarcas da Beira, Trás-os-Montes e entre o Douro e o Minho. O pastel foi profusamente empregue na tinturaria de tecidos, dos quais os mais conhecidos terão sido os de Alcobaça, cuja produção se manteve durante vários séculos, culminando nas recentemente quase desaparecidas chitas de Alcobaça11. Ainda no século XV, o pastel foi introduzido nas ilhas atlânticas. O seu cultivo em Cabo Verde não resultou como aconteceu com o índigo, então conhecido por anil, mas desenvolveu-se em especial nos Açores, onde constituiu fonte de riqueza até ao século XVIII. A tinturaria em Portugal durante a Idade Média teve alguma expressão e qualidade, embora não sejam conhecidos no país os produtos de tais manufacturas então existentes12, no entanto, sobre essa actividade, então nas mãos de tintureiros mouriscos, vale talvez a pena recordar dois casos de fabricantes de tapetes da primeira metade do século XV: Adela Sevilhão, mouro tapeteiro e Mafomede Láparo, mestre de fazer tapetes, que estavam autorizados pelo rei a ir a Marrocos à procura de tintas para o seu ofício13. Proveniente de uma planta, o azul pastel não poderia de forma alguma ser utilizado tanto no fabrico cerâmico como na pintura, dado que facilmente seria calcinado logo nos primeiros patamares térmicos do forno, durante a cozedura da louça, assim como se, misturado com um emulsionante, facilmente perdia a cor por oxidação, no caso de ser aplicado à pintura. No século XVI, Garcia da Orta, no seu Colóquios dos Simples e Drogas da Índia, publicado em Goa em 1563, fala-nos também de azuis extraídos de plantas com emprego diversificado na farmacopeia e na tinturaria de tecidos14. Orta refere-se ao anil com certo desprendimento, classificando-o uma matéria mercantil mais própria de «contratadores» do que de «filósofos» (Orta. 1987. 96). Orta indica que o seu nome indiano é nil, o qual provem do sânscrito nili, derivado da palavra nila que significa azul. A descrição do seu fabrico teria já sido feita por Marco Pólo, no século XIII, e as maneiras de apreciar o anil eram bem conhecidas no Oriente pelos portugueses que, ao melhor e mais leve, davam o nome de anil de nadador que valia trinta fanões15 a farazola16, enquanto que o de menor qualidade, “anil pesado, que tenha areia”, valia apenas dezoito a vinte fanões a farazola17. Outro azul, de proveniência mineral, era o azul cerúleo, conhecido na Antiguidade por azul Egípcio, que, ao que parece, não só era usado na pintura como também nas cerâmicas turquesas e azuis egípcias da Antiguidade, nas quais o pigmento corante não era aplicado directamente sobre a pasta cozida mas sim misturada com esta em estado cru e juntamente com serradura. A exposição ao calor do forno fazia com que a serradura se queimasse inteiramente e desaparecesse, deixando na peça minúsculos orifícios pelos quais a acção do calor vitrificava inteiramente a peça. Com a fusão do vidrado desapareciam igualmente as irregularidades e os orifícios deixados pela incineração da serradura. O fabrico do azul cerúleo vem descrito no capítulo XI do livro VII do tratado de Vitrúvio18.

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11. Sobre o emprego do azul pastel em tecidos de Alcobaça fica ou ficará provavelmente por aferir qual a sua influência cromática exercida na tradicional louça de Alcobaça, cuja decoração efectuada por belos matizes de azul ganhou fama, mesmo sabendo-se que esta louça só tenha iniciado a sua produção na segunda metade do século XIX. Sobre a louça de Alcobaça, Cfr. Cerâmica de Alcobaça. 1992. 12. Não havendo em Portugal tal registo de tecidos e tapetes, vale a pena efectuar uma visita ao Instituto de Valência de D. Juan, em Madrid. À parte de possuir uma das maiores colecções de cerâmica medieval do mundo, com particular destaque para as louças de aparato em técnica de reflexo metálico, provenientes do Levante espanhol, o Instituto possui ainda uma invulgar colecção de tecidos e de rendas medievais. Tudo leva a crer que o panorama do uso de têxteis deste género, altamente elaborados e ricos, tenha também sido uma realidade no nosso país. São identificados padrões cristãos, persas, turcos, marroquinos e mouriscos (mudéjares). 13. Carta de Privilégio de 7 de Janeiro de 1434 a Adela Sevilhão. “Mouro tapeteiro, morador em lisboa e que tem sua tenda em que lavra, bem como aos criados a quem ensina fazer tapetes”. Os privilégios são os mesmos concedidos a outro mouro tapeteiro por carta de 27 de Dezembro de 1435. Chancelaria de D. Afonso V. L.º 11, fl. 7. (Marques 1944, 488); Carta de Privilégio a 27 de Dezembro de 1435 a Caçome, morador em Lisboa, filho de Mafomede Laparo, mestre de fazer tapetes e que tinha a sua tenda em que lavrava. Seria isento de pagar em peitas, fintas e talhas, serviços e préstimos e bens assim de pagar os tributos que pagavam os mouros ao rei; “Ninguém poderá pousar nas suas casas de morada, adega e cavalariças e tomar-lhe besta, pão e vinho etc(...)”. Estas isenções seriam extensivas aos criados que com ele lavrassem nos tapetes e “poderiam ir além mar, pelas tintas e outras cousas necessárias ao seu ofício e levar consigo um homem, mas daria fiadores de como ia e voltava ao reino em tempo devido”.Chancelaria de D. Afonso V, L.º 11, fl. 95. (Marques 1944, 492).


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14. Do número de plantas que fornecem o anil ou índigo só duas eram importantes principalmente para a indústria, pela excelência do seu produto. Uma é originária das Índias orientais e a outra ou lhe atribuíam a mesma procedência ou a consideravam indígena da África tropical e em muitos lugares mesmo brotavam espontâneas. O anileiro é um arbusto que florescia bianualmente mas ao cabo dum ano, estava esgotado devido às duas ou três colheitas sucessivas que se faziam. O processo industrial para a preparação do anil não era complicado. Na época da fluorescência, secavam-se as plantas, reduziam-se a fragmentos. Posteriormente, pouco a pouco, o líquido ia tomando uma cor verde amarelada. Este, agitava-se bem para que o líquido com as folhas pudesse fartamente absorver o oxigénio do ar para pouco depois passar à cor azul intensa. Pela adição de água de cal, depositava-se e era então que se tomava o precipitado, enxugando-o e premindo-o, estando pronto para ser comercializado. Peixoto 1895/1972, 355. 15. Unidade monetária utilizada na Índia no século XVI, que valia entre 20 a 27 reais. Orta 1987, 93. 16. Unidade de peso utilizada na Índia no século XVI que, conforme as localidades, variava entre o seu peso entre 8 e 11Kg. Orta 1987, 93. 17. Orta 1987, 86. Cfr. Apêndice documental. Doc.3. 18. Vitrúvio 2006, 281. Cfr. Apêndice documental. Doc. 4.

Na paleta das cores, o azul ultramarino tem sido ao longo de séculos extremamente valorizado relativamente à variedade dos pigmentos tradicionais, não só pelo seu valor cromático como também pelos significados a que está associado e pela sua durabilidade e pureza da cor. Fontes do século XVI designam a lazurite como o azur, nome derivado e associado ao lápis-lazúli, mineral de cor azul do qual originalmente provém (Harley 1985, 43). O lápis-lazúli existe na natureza em várias partes do globo; porém, o mais antigo local conhecido da extracção deste mineral situa-se em Kokcha, região que no presente pertence ao Afeganistão, de onde se crê que provém a maioria do lápis-lazúli usado na Europa durante a Idade Média até ao início da época Moderna, tanto em pigmentos para pintura como também na ourivesaria. Os depósitos de lápis-lazúli situavam-se em locais remotos e de pouca acessibilidade, dificultando aos europeus o conhecimento da sua extracção e preparação, sendo, por isso, quase nula durante a Idade Média a manufactura com vista à obtenção de um pigmento. O azul era exportado durante essa época para a Índia e para a Europa que o recebia através da rota do Mediterrâneo, onde era conhecido por Azul de Veneza, nome que era reflexo do poder marítimo e comercial daquela cidade do Adriático. A obtenção deste pigmento mineral iniciava-se com a obtenção do melhor lápis-lazúli, que deveria apresentar uma cor escura livre de veios castanhos ou impurezas derivadas das pirites. A verificação da genuinidade do lápis-lazúli e do pigmento dele derivado era obtido através do calor, que mantinha inalterável a cor azul azurite depois de exposta a altas temperaturas nas fornalhas, ao contrário de outros materiais provenientes de minerais que, após esta operação, alteravam a sua cor. Aquecido o lápis-lazúli genuíno, o primeiro procedimento era mergulhá-lo em líquido frio, iniciando-se com o choque térmico um processo de fractura que facilitava a sua pulverização. Ao material azul resultante, após a remoção das escórias, dá-se o nome de lazurite. O pigmento podia então ser extraído através do recurso ao vinagre forte, sendo a cor resultante da solução neste líquido. A lazurite foi usada com vários géneros de aglutinantes adicionados ao pigmento, como as soluções de resina, ou pez de louro, para pintura simples em suporte de madeira; cera virgem para pintura em encáustica, sobre suporte de madeira; óleo de linhaça, óleo de noz e mastique, para pintura a óleo, tanto em suporte de madeira como em tela; água para a obtenção da aguarela, sobre suporte de papel; e gema de ovo para pintura a têmpera, sobre madeira, pergaminho ou papel. A pureza da cor da lazurite nestas soluções era a que resultava do material em suspensão nos aglutinantes, ficando em depósito a cor mais impura, geralmente apresentando um azul acastanhado. Como se depreende, a obtenção da lazurite – azul ultramarino – era assim um processo caro, dispendioso, cuja manufactura requeria alta experiência do manipulador. Em consequência disso, e enquanto não foi descoberta uma forma industrial de a produzir, a lazurite foi, durante os séculos XVI e XVII, um dos mais caros pigmentos existentes no mercado, conservando a sua reputação como o “diamante de todas as cores”.

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portugal. palácio nacional de sintra. quarto de d. sebastião. azulejo de padrão vegetalista com o motivo da parra e da gavinha. o seu formalismo respeita os modelos góticos dos ladrilhos vidrados em técnica de alto relevo. foram certamente as primeiras peças de relevo com vidrado policromado executadas em portugal. o azul de cobalto é empregue nos remates de ligação produção portuguesa dos finais do século xv. cfr. trindade, rui andré alves. revestimentos cerâmicos portugueses. meados do século xiv a meados do século xvi. ed. colibri. faculdade de ciências sociais e humanas da universidade nova de lisboa. lisboa 2007. © fotografia de rui trindade

A azurite, é o nome moderno de um mineral azul, material do qual, por acção química, se consegue o carbonato de cobre. No estado natural, a azurite encontra-se em estreita ligação com depósitos de malaquite. No século XVII, à azurite dava-se o nome de Lápis Armenius19, nome utilizado desde a Antiguidade. O pigmento preparado deste material era também chamado azul bice (que corresponde na moderna indústria das cores ao azul de cobalto e ao ultramar de cobalto) e noutras fontes coevas é designado pelo azul montanha. Porém, o nome de Lápis Armenius foi durante algum tempo erradamente interpretado, reportando-o ao lápis-lazúli. No estado natural, este material pode apresentar uma cor azul escura como o lápis-lazúli, mas o pigmento extraído dele é completamente diferente, não resultando

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19. O Lápis Armenius, parece corresponder à pedra arménia referida por Garcia de Orta nos seus Colóquios dos Simples e Drogas da Índia, já que o autor o compara com o lápis-lazúli. Orta 1987, 212. O mesmo Lápis Armenius é referido por Vitrúvio relativamente ao facto de ser um pigmento extremamente caro e difícil de conseguir e muitas vezes usado ao “desbarato” juntamente com crisocola – malaquite, pigmento verde azeitona e com a ostrum – púrpura. Vitrúvio 2006, 274 e 279.


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igualmente nele a aplicação dos processos de manufactura que se utilizavam para a obtenção do puro lápis-lazúli. Para a obtenção da azurite, o método mais usual era esmagar o mineral que posteriormente era sujeito a uma lavagem em solução de vinagre forte, com o objectivo de remover as impurezas verdes para, posteriormente, ser lavado com água corrente. Tradicionalmente, fazia parte do processo adicionar à água da última lavagem matérias aderentes ou colantes como o mel ou a cola de peixe, com o objectivo de o pigmento em partículas se separar das escórias minerais restantes. Mas outros azuis conhecidos podiam igualmente ser manufacturados a partir do cobre e usados no século XVI, mesmo antes da introdução do fabrico da azurite, como seja o caso do acetato de cobre, muito utilizado nas ligas metalúrgicas de latão e cobre. O azul de cobre era tradicionalmente preparado em recipientes de latão; o resultado da cor dependia das quantidades de sal e amoníaco (clorido de amoníaco) para a obtenção de um produto azul à base de cobre. As circunstâncias da descoberta do azul de cobre não ficaram documentadas, sendo por isso desconhecidas. O azul de cobalto ou esmalte misturado em silício era um corante mineral utilizado para obtenção de vidro colorido de azul e vidrados azuis aplicados à cerâmica. Antes de avançarmos para as questões históricas, convém esclarecer que o cobalto não se encontra na natureza de forma pura. Pertencendo à classe dos metais, o minério de cobalto está sempre associado a outro metal que é o arsénio e, na natureza, esta associação aparece das mais diversas formas, dando assim origem a outros minérios de cobalto. Passemos em breve revista os principais minérios de cobalto, os quais, pela ordem aqui apresentada, apontam para a sua crescente raridade na natureza. O minério de que se extrai o óxido de cobalto ou azul de cobalto para aplicação cerâmica é a Cobaltite, integrada no grupo dos sulfuretos (CoAsS) e na qual se encontra associado, além do arsénio, o enxofre. A Cobaltite está intimamente relacionada com os depósitos de cobre e, como sucedâneo da sua extracção, encontra-se em quantidades mínimas. Como mineral, a cobaltite apresenta nos depósitos um aspecto de cristalização cúbica parecido com as pirites, mas, ao contrário destas, que são douradas, a cobaltite é prateada. O processo de obtenção de tintas azuis para esmalte cerâmico já vem da Antiguidade e ainda hoje predomina na indústria (Medenbach 1983, 66; O´Donoghueth 1976, 160). A Saflorite, integrada no grupo dos sulfuretos (CoAs2), tem na sua composição a habitual associação ao arsénio. A sua aparência como mineral, na natureza, apresenta cor verde com cristalização microscópica prismática hexagonal. A Saflorite é aplicada na indústria no fabrico de insecticidas, têmpera para endurecimento de metais e para fins médicos (Medenbach 1983, 70; O´Donoghueth 1976, 160). A Eritrite ou Flor de Cobalto, integrada no grupo dos fosfatos (Co3[AsO4]-8H2O), deve o seu nome ao facto de se apresentar na natureza como um cristal vermelho roxo parecido com uma flor devido ao seu aspecto de eflorescências, com a sua cristalização microscópica prismática hexagonal. Mais uma vez aqui o cobalto aparece associado ao arsénio. A Eritrite foi identificada em 1754 por J. F. Henkel na sua obra História das Pirites, devendo o seu nome, Flor de Cobalto, a este cientista. Alguma

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confusão tem havido em publicações relativas à história das tintas e das cores ao atribuírem a descoberta da Cobaltite – matéria prima conhecida desde a Antiguidade para a produção de tintas azuis e de aplicação nos esmaltes, como já referimos – a J. F. Henkel. Porém, este cientista descreveu somente a Eritrite. Esta deve o seu nome ao geólogo e mineralogista F. S. Beudant, que a baptizou com base na palavra grega erythros, que significa vermelho (Medenbach 1983, 184; O´Donoghueth 1976, 160). A Skuterudite ou esmaltina está integrada no grupo dos sulfuretos (CoAs3) tendo na sua composição a habitual associação ao arsénio. Aparece na natureza em cristais cúbicos, octaédricos e dodecaedros rombos, sendo possível aparecer em agregados granulados. É um importante minério de extracção de cobalto. Encontra-se em filões hidrotermais de média e alta temperatura e está associada a depósitos de níquel e prata (Medenbach 1983, 74; O´Donoghueth 1976, 160). Por volta de 3500 a 2800 a.C., já se produzia cerâmica em Uruk, no sul da Mesopotâmia, perto de onde surgiu a cidade de Babilónia, desenvolvendo-se um estilo de cerâmica ricamente decorada na técnica de engobe ou com motivos gráficos incisos. Mas foi só a partir de 2000 a. C que começaram a aparecer as primeiras cerâmicas vidradas a azul de cobalto, cujo acabamento foi primeiramente aplicado a ladrilhos decorativos e mais tarde aplicado à olaria. É também nesta época que se começou a fabricar de forma sistemática o vidro. A descoberta da mistura de areia, quartzo e fundentes alcalinos foi de facto importante para a história da cerâmica vidrada antiga. A esta pasta vítrea, fundida em fornos, podia-se então misturar os primeiros óxidos corantes descobertos nessa época, que eram: o de cobre, que em base alcalina dava o turquesa; o estanho, para obtenção do branco e, já nesta época, o de cobalto, para a obtenção dos azuis, em aplicações vidradas coloridas (Cooper 1993, 19). Tanto quanto é possível aferir, terá sido esta a primeira aplicação conhecida do cobalto em vidro e em cerâmica. Porém, houve necessidade de resolver um problema técnico na cerâmica. O fundente primitivo de vidro junto com os óxidos corantes aplicado ao barro durante a monocozedura, liquefazia-se com facilidade e pela acção gravítica, facilmente escorria para a base da peça; daí que a sua aplicação inicial somente tenha sido em placas de barro – ladrilhos – decorativos. Porém, são poucas as peças de olaria conhecidas com o fundente primitivo, sendo nesta época que os oleiros mesopotâmicos descobrem as vantagens do fundente à base de chumbo que, além de permitir um brilho acentuado, fazia aderir a camada vítrea ao barro, com resultados apreciáveis (Cooper 1993, 19). No século IX, os oleiros árabes do Médio Oriente, ao aplicarem profusamente nas cerâmicas o acabamento vidrado adicionado com o branco de estanho, viram quase de imediato as possibilidades decorativas dadas por este material e cedo começaram a decorar as suas produções de pratos e outra louça branca com vários corantes metálicos. O verde de cobre e o púrpura, dado pela diluição acentuada do manganésio, foram bastante utilizados; no entanto, as manufacturas mais populares e apreciadas, foram aquelas decoradas a azul cobalto, que nesta época era proveniente da península da Arábia, onde se haviam encontrado extensos depósitos de cobaltite.

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portugal. lisboa, escavação do corpo santo, lisboa, 1996. fragmento de faiança. emprego do óxido de cobalto bastante diluído sobre fundo branco de óxido de estanho. decoração com motivos caligráficos muçulmanos. cerâmica portuguesa, da transição do século xv para o xvi ou primeira metade do século xvi. cfr. trindade, rui andré alves. 0. ed. colibri. faculdade de ciências sociais e humanas da universidade nova de lisboa. lisboa 2007. © fotografia de rui trindade

O cobalto arábico, junto com aquele já produzido no Afeganistão, sustentou uma florescente industria cerâmica no Oriente Médio, com centros de produção localizados em Kashan, perto de Teerão, Rayy, a norte do Irão, Rakka a norte da Mesopotâmia e Gargun, próximo do mar Cáspio. A apurada técnica cerâmica alcançada, marcada pela louça Seljúcida de profundos tons de azul e azul turquesa, teve o seu apogeu no século XIII, extinguindo-se abruptamente no mesmo século pela invasão mongol (Cooper 1993, 68). Uma das cores que pode ser manufacturada com o cobalto é o smalte – esmalte. O nome esmalte provém do francês antigo – esmal, cujo emprego está atestado desde o século XII. No Languedoque, desde o século IX conhece-se já o termo derivado do latim smaltum, que depois se transforma em esmaut. Na Alemanha, a palavra para este material é schmelzen, derivada da raiz indo-europeia em uso no norte da Alemanha com o nome de smelzan (Cooper 1993, 68). O azul cobalto foi um pigmento conhecido desde a Antiguidade mas só no século XIX se isolou o seu elemento químico. O óxido cobalto, quando aquecido e misturado com sílica, formava o conhecido saffer ou saffre, derivado do nome safira. Misturado em fusão com potassa obtinha-se um vidro azul ao qual se dava o nome de smalt. A cobaltite encontra-se no seu estado natural em várias partes do mundo e foi sempre explorado, desde as épocas egípcia e suméria, para a coloração do vidro. A chegada do cobalto à Europa é obscura; porém, é provável que já desde a Antiguidade tenha sido conhecido em todo o império romano.

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Na Idade Média, era já conhecida na Saxónia a extracção do cobalto associado à prata, ao arsénio e ao bismute. Durante séculos tornou-se a fonte do cobalto utilizado na Europa. O nome de cobalto era aplicado a um metal que estava associado a outro metal, o arsénio, pensando-se que este, pelo seu uso prejudicial à saúde, contaminava o cobalto, sem se suspeitar, contudo, que se estava na presença de dois metais extremamente tóxicos. Outra versão, mas de origem germânica, para explicar a origem do seu nome, dá conta que a palavra cobalto deriva do nome de gnomos malignos – os Kabolde (Medenbach 1983, 66) – que viviam nas minas quando os mineiros encontravam o metal, pelo que tinham que o tapar rapidamente pelo mal que fazia à saúde. No século XVI, os mineiros trabalhavam em estreita aproximação com o cobalto e o arsénio, usando grandes protecções de couro com máscaras e luvas para proteger o corpo da corrosão e intoxicação provocado pelo arsénio e a sua consequente absorção cutânea. A entrada do azul de cobalto na Europa ter-se-á feito pelo sul da Espanha. Por volta de 1248, e com a reconquista de Sevilha, a Espanha muçulmana ficou confinada à sua parte sul. É também por esta época que chegam ao Al Andaluz refugiados do Iraque, recém invadido pelo império mongol. Nessa mole humana, fugida à guerra e às depredações, vinham oleiros iraquianos que pela primeira vez introduziram na península o azul de cobalto (Cooper 1993, 86). Na transição do século XIV para o século XV, são descobertos em Chovar, província de Castellón, depósitos de minério de cobalto, o que terá significativa importância para a expansão comercial e artística da louça e azulejos levantinos nas cores azul e branca. Este azul de cobalto, considerado ao tempo “magnífico”, misturado com areias siliciosas formava um azul muito vivo e fácil de aplicar no barro biscoitado. Apresentava também uma excelente solidez de cor após a cozedura, como testemunham as peças cerâmicas levantinas daquele tempo. A descoberta dos depósitos de cobalto foi gratamente recebida pelos artistas cerâmicos, que já vinham trabalhando o cobalto importado desde o início do século XIV, tanto em Espanha como noutros reinos europeus, resultando daí uma enorme procura do produto (Marti 1996, Vol. I 100, 193). No entanto, apesar da facilidade do acesso ao azul cobalto, alguns centros cerâmicos ibéricos optam por continuar a produzir louça vidrada, nos tons verde, branco e manganés, usuais no século XIII e XIV. É o caso dos centros produtores de Teruel e de Toledo. Neste último, o azul de cobalto é introduzido tardiamente na produção de vidrados, já no século XVI (Tubino 1979, 30). Segundo os dados disponíveis, o primeiro registo documental da manufactura do cobalto no norte da Europa é de 1470 (Harley 1985, 54). Cinco anos depois, um fabricante, de origem francesa, instalado em Weidermhammer, começou a produzir com regularidade saffre, mas terá sido só em 1540 que, na mesma localidade, se inicia a produção regular de vidro colorido de azul de óxido de cobalto. Estes dados são confirmados documentalmente para o norte da Europa. O que parece não haver dúvida é que de facto a introdução do emprego do óxido de cobalto na Europa do sul

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portugal. igreja de s, lourenço, azeitão. nossa senhora do rosário. terracota vidrada com policromia de azul de cobalto e branco de estanho ( os restos de policromia dourada foram aplicados posteriormente apresentando técnicas do século xvii). emprego do óxido de cobalto em camada bastante espessa, do que resulta um azul ultramarino saturado. a razão desta aplicação de vidrados deve-se ao fundente de chumbo existente dentro dos processos hispano mouriscos. primeira metade do século xvi. cfr. trindade, rui andré alves. revestimentos cerâmicos portugueses. meados do século xiv a meados do século xvi. ed. colibri. faculdade de ciências sociais e humanas da universidade nova de lisboa. lisboa 2007. © fotografia de rui trindade


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20. Cfr. Apêndice documental. Doc. 5. 21. Note-se que as relações comerciais entre Portugal e a Alemanha (Prússia) se iniciaram ainda no reinado de D. João I, em 1430 (Duarte 2007, 174).

proveio do Médio Oriente. Neste contexto, as investigações documentais apontam para o emprego do óxido de cobalto na Península Ibérica, nomeadamente em Valência e na Catalunha, pelo menos desde os finais do século XIV e o início do século XV, sendo duvidoso que a sua chegada à Europa se tenha feito por via italiana. Noutro quadrante geográfico, a famosa cerâmica azul e branca da dinastia Ming, cujo fabrico se compreende entre 1368 e 1644, é a que pode reclamar mais atenção estética e técnica no nosso trabalho, pelo emprego sistemático do azul de cobalto. O azul de cobalto nas suas diversas formas proveniente da Pérsia e Afeganistão, era importado para a China desde o século XIV, justificado pela expansão do comércio verificada no início da dinastia Ming. Muito antes, era já utilizado na Pérsia, na decoração da olaria vidrada. Estas produções persas, exportadas para a China, eram muito apreciadas, levando os chineses a tentarem fabricar a sua própria louça azul. O cobalto importado da Pérsia era caro; porém, o seu poder corante era extremamente rentável o que justificava o investimento. Este era ainda mais elevado se o óxido de cobalto fosse misturado puro, ou sujo, com manganês, com o qual se obtinha um azul carregado mais próximo da gama dos violetas. No século XIV já os chineses extraíam o azul de cobalto; no entanto, de início a cor era impura pela sua má preparação, produzindo na cerâmica cinzentos azulados. Esta mistura era melhorada com a adição do cobalto importado da Pérsia, com a qual se obtinha na porcelana um vidrado de azuis intensos que muitas vezes tomava o nome apelativo de azul de Sumatra (Cooper 1993, 54). Em Portugal, no século XV, trabalhava-se já com o azul de cobalto, provavelmente na sua aplicação em vidro ou em ourivesaria com suporte em metal precioso, parecendo ser mais tardio o seu emprego na cerâmica. Sabe-se que, em 1424, vivia em Évora Abraão, judeu esmaltador que aparece referido numa procuração feita por Jacob Abete (Pereira 1998, 133). A designação da profissão de esmaltador não levanta dúvidas relativas à actividade e ao emprego do smalt. Esta palavra era utilizada na Europa para designar o óxido de cobalto, não fazendo por isso sentido que Abraão não trabalhasse com este material. Outra referência, não menos interessante, ao azul de cobalto vem vinculada na carta de quitação de João Gonçalves, passada em 1434, já em pleno reinado de D. Duarte, mas ainda passada em nome de D. João I20. Neste documento, o tesoureiro mor de D. João I recebe naquela data duas onças de “azur de acre”. Igualmente recebeu “azur d Alemanha huu arratell e duas onças”, porção que foi reforçada com dois arráteis de “azull d Alemanha”. Parece não haver dúvidas que da Alemanha para Portugal só poderia vir o azul cobalto, ainda não utilizado na cerâmica mas somente na ourivesaria e no vitral. É importante sublinhar que a fonte portuguesa antecipa-se, em cerca de quarenta anos, à primeira fonte alemã sobre a produção de azul de cobalto naquele país21. Quanto ao azul de Acre, parece também não haver dúvidas que se trata do azul de cobalto proveniente do Médio Oriente. Esta fonte documental, apresenta-se assim de crucial importância não só para a historia da aplicação e uso do azul de cobalto

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j. kunckel. ars vitraria experimentalis, 1689. forno para a extracção de cobalto durante o século xvii. na imagem, o forno possui uma longa chaminé para a saída de fumos e depósito do arsénio, permanecendo o cobalto calcinado na fornalha. cfr. herley, r.d.. artists’ pigments. ed. butterworths, 2.ª edition. london

em Portugal como também para a história da ourivesaria e do vitral no século XV, não sendo porém, ao que parece, conhecidas ainda nesta época a aplicação do corante azul na cerâmica portuguesa. Durante o século XVI, a aplicação do óxido de cobalto tanto na cerâmica como na coloração do vidro tinha larga difusão, mas só no final do século XVII a sua aplicação no vidro foi ilustrada por Kunchel com a edição, em 1689, da Ars Vitraria Experimentalis. De acordo com este autor, o cobalto era colocado num forno ou fornalha de revérbero ou de ambiente oxidante regulável, de forma que o fogo fosse tão intenso e

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forte que chegasse ao topo do forno. Neste processo, o arsénio contido ou associado ao cobalto era libertado pela acção de altos patamares térmicos, através de um fumo branco conduzido por uma longa chaminé horizontal que chegava a atingir dezenas de metros. À medida que o fumo arrefecia, o arsénio ia-se depositando por precipitação, devido à condensação, nas paredes inferiores da chaminé, para mais tarde ser recolhido pelos operadores em forma de pó, separadamente, para a obtenção do óxido de cobalto. Esta era uma parte do processo para o fabrico do arsénio puro. No decorrer da operação de incineração do cobalto, quando o fumo branco deixava de aparecer no escape da chaminé, significava, para o operador, que todo o arsénio contido no cobalto se tinha esgotado, sinal de que óxido de cobalto se tinha retido na fornalha. Depois de retirado, o produto era passado pelo crivo onde era separado das pequenas escórias resultantes do processo de incineração, sendo de seguida moído e acondicionado em fôrmas onde endurecia de tal forma que era vendido em barras, as quais, como veremos adiante, eram chamadas “pães” em Portugal. A dureza destes “pães” era de tal forma que, para o cobalto ser utilizado e desfeito, tinha que ser partido a martelo e depois esmagado em almofariz, até ficar em pó. Na Ars Vitraria Experimentalis, Kunchel adverte que o esmalte pode ser feito adicionando areia e potássio ao saffre, resultando daí um silicato de cobalto que vitrifica por aquecimento. Para esta operação, os compostos devem ser misturados em partes iguais em cadinhos de barro refractário que, indo à fornalha, devem sofrer a acção de alta temperatura durante, pelo menos, doze horas sendo a massa vítrea dai resultante sempre mexida com frequência até às primeiras seis horas. No final deste processo, a massa vítrea é removida e colocada em água. O choque térmico daí resultante, fazia com que a matéria se pulverize em grãos, os quais eram depois facilmente lavados e esmagados no almofariz. Neste processo, a massa vítrea em pó era acondicionada em contentores de acordo com o seu grau de cor, sendo que o melhor pigmento apresentava um violeta azulado escuro, de grande grau de saturação e pureza, quase se confundindo com o negro. O pigmento de menor qualidade apresentava cor azul saturado. Seguindo as fontes anglo-saxónicas, o smalt foi manufacturado na Holanda durante o século XVI e o pigmento produzido adquiriu uma reputação de excelente qualidade, atestada pelas produções cerâmicas daquele país. No século XVIII, iniciou-se o processo de fabrico em Inglaterra através de holandeses imigrados, embora, em 1573, o esmalte fosse já familiar e, ao que parece, fabricado localmente mas sem a qualidade indispensável para o seu uso (Harley 1985, 54). Será ingenuidade pensar que a falsificação de produtos industriais é fruto dos tempos modernos. No século XVI, o elevado preço do azul de cobalto atingido nos mercados fez com que este pigmento fosse falsificado com o evidente objectivo do lucro, sendo assim misturado com a cal, o cré e o pó de giz, com vista a fazer render o produto e sobretudo o elevado investimento (Harley 1985, 54). É no reinado de D. Manuel, no entanto, que aparece entre nós a primeira referência documental ao fabrico de azul, através da síntese mineral, assim como a primeira notícia do emprego do azul de cobalto em cerâmica.

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De tal trabalho de “fazer o azul” foi incumbido Jorge Afonso, pintor régio que, para esse propósito se instalou em Aljustrel, no Alentejo, para aí estabelecer uma fábrica de azul, em 1521. Uma referência numa carta de quitação de 1552, leva a pensar que esta actividade se manteve, pelo menos, durante aquele intervalo de tempo22. Em abono da verdade, este documento e o nome de Jorge Afonso foram já referidos anteriormente por outros historiadores, no contexto do estudo da pintura portuguesa do século XVI. Da leitura então efectuada pensou-se que o azul em causa seria a azurite, empregue profusamente como pigmento em trabalhos de pintura a óleo desta época; porém, pela análise do documento, que agora voltamos a trazer à discussão, cremos que podemos ir mais longe na sua leitura. No documento não vem referido, naturalmente, de que tipo de azul se trata23. Numa primeira leitura, subsiste assim a dúvida sobre o tipo de azul que se está a descrever, se a azurite, com condições de formação natural nos depósitos minerais de pirites ferrosas e cobre, ou do azul de cobalto, também associado aos mesmos depósitos mas sempre associado ao arsénio e este, por inerência, quase sempre associado aos depósitos de cobre e ferro. Em Aljustrel, a extracção do cobre e do ferro remonta à Antiguidade, sendo por isso possível de se tratar de um daqueles azuis, ambos com aplicação directa tanto na preparação de tintas para pintura como na preparação de corantes para a cerâmica, vidraria e ourivesaria esmaltada24. Seja como for, o azul produzido foi relativamente pouco, no espaço de trinta e um anos, o que leva a pensar que se tratava de uma actividade química artesanal não só para responder a um consumo reduzido, como também pelo facto de que a produção de cobalto tanto em minas de ferro ou cobre, ser sempre, por regra, residual. Por outro lado, a pequena quantidade de azul fabricada não tem implicações no seu alto rendimento, já que o seu poder corante é enorme e a sua fusão no forno é relativamente fácil, atingindo patamares de 750º. Dito por outras palavras, um grama de azul puro pode produzir uma tinta saturada – que se apresenta de cor negra – que misturada com outras cores ou diluída, produz um rendimento assinalável. Analisando mais em profundidade o documento, parece não haver dúvidas de que se trata da produção de azul de cobalto, já que é bem explicita a produção de dois produtos os quais estão, no texto, associados: o azul e as cinzas. Desde logo a pergunta é legítima: de que cinzas se tratava? Escórias? Outra cor, ou outro produto associado ao azul? Quanto às escórias, parece não fazer sentido vendê-las já que, como vimos, na produção do lápis-lazúli as escórias dariam outro azul de menor qualidade, o que não acontece na preparação da azurite e do óxido de cobalto. Por outro lado, tanto quanto se sabe, não são conhecidos depósitos minerais de lápis-lazúli em Portugal. Quanto ao facto de se tratar de cor cinzenta, tal parece não fazer sentido pois que, na síntese subtractiva das cores, o cinzento obtém-se facilmente com várias misturas de cores. Resta a terceira hipótese e, quanto a nós, a mais viável. Este cinza referido no documento terá sido certamente o arsénio que, como vimos, aparece como sucedâneo no fabrico do azul de cobalto ou óxido de cobalto e com utilidade na farmacopeia medieval e na indústria, nomeadamente na cerâmica, sendo

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22. Cfr. Apêndice Documental. Doc. 6. 23. Convém sublinhar que nesta época, como se encontra implícito na nossa demonstração, não era ainda possível distinguir, ao nível etimológico e do vocabulário, os pigmentos e corantes que temos vindo a tratar. 24. Este potencial da existência de cobalto é confirmado por estudos laboratoriais e no terreno, efectuados recentemente nos arredores de Beja, principalmente no sítio da Palmeira. O que parece ficar provado é que a exploração foi possível e talvez confirme as nossas razões relativas ao documento do pintor Jorge Afonso. (F. Tornos; C. M.C. Inverno; C. Casquet; A. Mateus; G. Ortiz; V. Oliveira. 2004, 143-181; Mateus. A. ; Figueiras J. ; Gonçalves M.A.; Fonseca 1998, 7). 25. O arsénio era também utilizado na constituição do reflexo metálico dourado misturado com cobalto e prata. Marti 1996, Vol.1, 327.


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portugal. museu municipal de silves. prato fundo. faiança portuguesa. segunda metade do século xvi. emprego do óxido de cobalto, bastante diluído, sobre o branco de estanho a estrutura decorativa deste género de peças, anuncia a decoração exuberante dos pratos de aranhões de faiança portuguesa do século xvii

26. Estas cinzas não devem ser confundidas com o “mazacoto” – cinza alcalina empregue para o fabrico do vidro – o qual se obtém das cinzas da fornalha após a combustão de determinados arbustos. Por outro lado, as cinzas referidas no documento são em reduzida quantidade e peso o que, para ser o “mazacoto” produzido em trinta anos, as quantidades deveriam ser mais elevadas. 27. As olarias régias de Lisboa eram oficinas que possuíam nas suas portas as armas reais. Viterbo Vol. V, 254-255; 163 -168. Cfr. Apêndice Documental. Doc. 7.

possivelmente já utilizado em tempos medievais na melhoria do vidrado estanífero25. O arsénio de cor branco acinzentado será então o produto referido como as “cimzas”; doutro modo não haveria necessidade de o referir nem de o vender26. Parece assim demonstrado o fabrico em Portugal, no primeiro quarto do século XVI, de azul de cobalto, o qual foi essencial para a produção de louça azul e branca dentro da técnica da proto-majólica e da majólica portuguesa. O destino deste azul seria certamente as olarias de Beja, Coimbra e as olarias régias de Lisboa27. Quanto à personagem de Jorge Afonso, pintor régio, coaduna-se com o perfil do pintor da Renascença, o qual reunia em si os três pilares herdados dos sistemas artísticos medievais: o conhecimento da arte e a sua execução; o conhecimento dos materiais e o seu manuseamento alquímico. Na cerâmica de construção produzida em Alcobaça nos séculos XIV e XV, a cor do azul escuro ou azul azeviche é bem visível numa enorme quantidade de peças que em tempos lajeavam várias alas da abadia. Numa primeira análise, tais peças suscitam no investigador uma ambiguidade técnica, já que aplicar azul em materiais de construção não parece muito razoável. Porém, este azul é dado pelo tipo de pastas argilosas recolhidas em depósitos de margas da era geológica do Secundário, as quais, após a cozedura, ganhavam cor azulada que era mais avivada com o acabamento de fundente transparente. Digna de interesse sobre o uso do azul de cobalto na cerâmica, apresenta-se ainda a

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avaliação feita, no ano de 1523, em Coimbra, por Gonçalo Madeira, dos trabalhos que Marcos Pires executou nos paços de el-rei. D. Manuel nomeou-o mestre das obras reais daquela cidade em 1517, atendendo ao prestígio de bom oficial no seu ofício de pedreiro28. Neste ano, e incluídas nas obras de que foi encarregue, contavam-se as dos paços de el-rei, as quais não satisfez na totalidade, pelo que se teve de efectuar a medição das obras executadas até àquela data e a inventariação e penhora dos seus bens e dos herdeiros, recorrendo-se inclusivamente aos bens dos fiadores para se liquidar o débito devido à coroa, num complicado processo, elucidativo do controle exercido pela fazenda real nestes casos. É neste contexto que encontramos valiosas informações sobre o paço de Coimbra, nomeadamente sobre os materiais cerâmicos usados em ladrilhamentos. De realçar a referência à diferença de materiais como o tijolo, tijolo roçado e as telhas de cobertura, e ainda de tijolo azul, o que, na nossa leitura, indica o ladrilho vidrado monocromo, coberto com óxido de cobalto ou seus derivados29, cujo preço elevado, referido por milheiro, é bem ilustrativo de material caro em relação aos demais30. Mais adiante, pela comparação de orçamentos, constata-se serem os mesmos “tijelos azuis” referidos como “tijelos mazajs”, “tijelos muzaal”, “tijelos mazuel”. Deturpações da palavra azul? Mais interessantes se tornam estas informações de tijolos azuis quando a seguir, no inventário feito dos bens de Marcos Pires, verificamos que este mestre pedreiro era detentor de imóveis na zona das olarias, tudo indicando ter também possuído uma olaria de onde possivelmente provinham os tijolos para os “cayamentos que aviam de ser ladrylhados de tijolo azul a sua custa”, o que pode pressupor terem sido fabricados por ele. O interesse acrescido que suscita a enumeração destas peças não se fica só pela importante evidência técnica, como também por o seu registo neste documento de 1523 as relacionar com o termo utilizado já por “Valemtim Fernandes”, em 1508, definindo azulejos como tijolos, isto é, exactamente o mesmo material cerâmico de que nos fala Gonçalo Madeira, medidor das obras de Marcos Pires. A diferença é que o primeiro os qualifica de vidrados e o segundo de azuis, não levantando por isso dúvidas de que ambos se referem ao ladrilho vidrado monocromo, hoje designado de azulejo e incluído na terminologia dos “azulejos arcaicos” conjuntamente com o azulejo hispano mourisco. Sendo evidente a impossibilidade de trazer para discussão neste artigo todas as fontes dispersas sobre este assunto, aquelas que apresentámos, suscitam desde logo a nossa meditação. À parte as considerações sobre os vários azuis minerais já referidos e aqueles apontados por Garcia da Horta, parece não haver dúvidas de que os mesmos provêm de matérias vegetais. Por outro lado, no corpus documental reunido no Arquivo Histórico Português, nomeadamente nas Cartas de Quitação de El Rey D. Manuel, encontramos bastantes apontamentos sobre o anil ou outros azuis que seriam usados tanto na tinturaria de tecidos como na pintura, possivelmente na cerâmica e outras actividades. Nesses documentos, a par de uma panóplia variada de produtos e tintas, o azul ou o anil aparecem numa referência muito vaga, levando a que não seja possível esta-

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28. Marcos Pires, que faleceria em 1522, depois de ter recebido avultadas quantias pelos encargos assumidos, era detentor de um património avultado composto por vários bens móveis e de raiz, parte deles adquiridos, ao que tudo indica, com dinheiro das empreitadas da coroa. Viterbo, Sousa 1988. Dicionário Histórico e Documental dos Arquitectos, Engenheiros e Construtores Portugueses. 2.ª ed. III Tomos. Imprensa Nacional Casa da Moeda. Lisboa, Vol.I, 309 e seg. 29. Em Alcobaça foram recentemente exumados alguns tijolos cujo miolo é composto por um material argiloso de tons negros e azul azeviche cobertos por fina camada de argila vermelha. Algumas destas peças, já desgastadas pelo uso, apresentam na superfície aquele material que, molhado, deixa transparecer tons de azul. Porém, é conhecida em alguns depósitos Ibéricos uma argila azul de elevada plasticidade também utilizada na olaria, a qual apresenta depois de cozida os habituais tons de avermelhados e ocres, (Lynggaard, Finn 1992. Tratado de Cerámica. Omega: Barcelona, 14). É por isso duvidoso que as telhas do tipo noticiado na medição dos paços de Coimbra fossem constituídas por aqueles materiais. Pelo contrário, antes parecem ser tijoleiras ou telhas cobertas possivelmente com azul de cobalto com óxido de chumbo. Outra possibilidade para conseguir o azul naquela época, obtinha-se através do almagre em pó, adicionado com ferrocinato de potássio em combinação submetida ao calor da fornalha de oleiro cujo pó resultante era posteriormente aplicado na peça. Ribeiro, Margarida 1991. “O Património Cerâmico Linguístico Português sob Influência Islâmica”, in Actas do Colóquio Internacional de Cerâmica Medieval no Mediterrâneo Ocidental 1987. Campo Arqueológico de Mértola. Lisboa, 491-496. 30. Cfr. Apêndice Documental. Doc. 8


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portugal. museu municipal de silves. prato fundo. faiança portuguesa. segunda metade do século xvi. emprego do óxido de cobalto, bastante diluído, sobre o branco de estanho

31. Cfr. Apêndice Documental. Doc. 9.

belecer uma comparação e de que anil se trata. Nestes casos, será perigoso arriscar tanto a origem como também a sua finalidade. Porém, a excepção que confirma esta regra, vem apontada num documento singular do “Livro da tauxasão das mercadorias que vem e qustumão vir aos senhores portugueses da nassão de Portugal Regidentes nestas vastas partes de framdes E barbante”. Trata-se de uma listagem de 1572 de produtos exportados de Portugal para Antuérpia, sede nessa época da feitoria portuguesa na Flandres, os quais, saídos do país para serem comercializados naquela cidade, eram alvo de taxa fiscal devida à coroa portuguesa. O documento é bastante interessante porque nele encontramos taxados cento e sessenta e sete produtos que então eram exportados para aquela parte da Europa: açúcar, azeite, água ardente, água de canela (perfume), anis, amêndoa, azebre, algodão, pau Brasil, de Pernambuco e ébano, canela, canfor( álcool), cardamomo, cravo da Índia, canela diluída em água; couros, cortiça, salsaparrilha, marfim, erva doce, enxofre, figos, gengibre, goma arábica, goma laca, graxa, lacre, malagueta, marmelada, noz moscada, panos da Índia, passas, pimenta, plumas, sabão, sedas, sumagre, vinhos, vinagre, entre outros. Neste outro item, estão três qualidades de azul ou, se quisermos, de anil: o anil da Índia, o anil da Berbéria e o pastel das ilhas31. Confrontando estes três azuis, parece não haver dúvidas de que o anil da Índia deverá corresponder ao anil de nadador cuja cor hoje se chama de “azul pavão”, usado na tinturaria fina de tecidos e já descrito por Garcia da Horta; o pastel das ilhas, tinta

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azul acinzentada, próxima do “índigo” para tingir tecidos grosseiros; finalmente, o anil da Berbéria que geograficamente correspondia a Marrocos, o qual, era vendido em várias modalidades, nomeadamente em forma de pão, isto é, de acondicionamento idêntico àquele que já antes vimos para a comercialização do azul de cobalto. Parece não existir muitas dúvidas em considerar este anil de Berberia como azul de cobalto, pois não faz sentido que das três qualidades de azul apontadas todas se destinem ao mesmo fim ou, em último caso, à pintura de iluminura. O anil de Berbéria, terá sido certamente o azul de óxido de cobalto, crucial para a pintura cerâmica em azul e branco e na técnica da majólica que se consolidou sistematicamente em Portugal, a partir da segunda metade do século XVI, cujas produções obtiveram posteriormente tanta expansão comercial em várias partes do mundo. Na história da cerâmica portuguesa, foi ainda no primeiro terço do século XVI que o azul de cobalto terá tido as suas primeiras aplicações sistemáticas nos revestimentos cerâmicos e na louça de branco de estanho, com pequenos apontamentos de azul de cobalto e com decoração primeiramente com motivos hispano muçulmanos e que mais tarde evolui para composições lineares e em espiral, que são de facto a raiz gráfica dos “aranhões” mais tardios. Este cenário coloca, ao nível histórico e artístico, a questão levantada da grande influência técnica, estética e artística da cerâmica portuguesa na cerâmica dos países baixos, nomeadamente na de Delft. É um facto que a louça holandesa influenciada pela porcelana da China, só começa a ser produzida a partir de dois momentos bem definidos. O primeiro, após a fundação, em 1604, da primeira Sociedade Anónima existente na Europa – A Companhia das Índias Orientais – e a segunda, cerca de 1624, quando começam a existir seguramente os primeiros registos documentais dessas faianças holandesas (Baart 1988, 18-24). Com efeito, tem sido consensual, ao nível da Historiografia da Arte, uma proposta que sempre pareceu paradoxal e contraditória. Como podemos aceitar, sem questionar, que sendo os portugueses os primeiros na Europa a importar maciças quantidades de porcelana da China, azul e branca, desde o início do século XVI, tenham sido os holandeses de Delft, praticamente um século depois, os primeiros a inspirar-se nas composições da louça chinesa e a influenciar a produção portuguesa? Como podemos então interpretar as posturas do Regimento dos oleiros de Lisboa, de 1572, quando uma das provas exigidas para obter a carta de oficio era a de executar a “louça de feição de porcelana” ou seja, contrafacção em faiança das porcelanas Ming, azuis e brancas? Por outro lado, questiona-se onde se encontra a louça portuguesa deste género, produzida no século XVI e certamente fabricada ainda antes da publicação do regimento de 1572. Neste campo da investigação histórica e artística, é muito cedo para avançar conclusões precisas e muito caminho de pesquisa falta ainda percorrer. É importante reflectir no sentido de que começam a estar reunidas as condições para que se possa aferir com mais apuro de que algumas peças cerâmicas portuguesas de aparato, atribuídas ao «reduto patriótico da louça portuguesa do século XVII», tenham sido fabricadas no país, ainda nos meados ou finais do século XVI.

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imagem do pigmento do óxido de cobalto para uso na cerâmica. os pigmentos modernos sintetizados, já não apresentam as características físicas dos antigos e são muito menos tóxicos devido à normalização industrial. no passado, o pigmento era compactado em pequenos tijolos ou pães e apresentava igualmente a cor negra. a elevada toxidade deste pigmento associado à de outros pigmentos à base de metais como níquel, crómio, antimónio e o chumbo, talvez não seja alheia à quantidade de oleiros que encontramos nos registos que vão dos finais do século xvi ao século xviii, nos hospitais de lisboa. cfr. chavarria, jaquim, esmaltes, aula de cerâmica. ed. estampa. lisboa,1999


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Apêndice documental Doc.1. “Cores das pedras que se açharão nos vieiros Estas são as cores das pedras que som açhadas nos vieiros as do ouro som de tres maneiras amarelas e uermelhas e pretas. A que for amarela de fora será uermelha[1] de dentro e luzente com olhos luzentes. A uermelha de fora será amarela de dentro e luzente Com pouca uermelhidom. A que for de prata [sic] de fora sera vermelha e dentro tyrando amarelo com veas brancas estas pedras deuem ser fendidas [sofrer fusão] em çenrradas d osos com anacmº e com sabom e com chumbo continuando fogo per .v. ou vj. oras. //Estas som as pedras que som açhadas nos vieiros das quaes sae prata fyna e som de çinquo maneyras. A Prymeira he branca. A 2.ª. he preta[2] a .3.ª he uerde, a iiij he branca mizcrada[3] com amarelo[4]/ as prymeiras brancas som pesadas e esperas de fora e quando as quebrarem de dentro som uerdes com brancura[5]. A 2.ª pedra he pesada e luzente / quando a quebrarem de dentro será mezcrada branca luzente de dentro, A verde.iij. he pesada e pouco branca com vermelho e olhos brancos luzentes. A 4.ª branca será pesada e mizcrada de dentro com vermelho/. A 4.ª [sic] branca pesada com amarelo/ e quando a quebrarem fará dentro olhos brancos luzentes/ estas pedras deuem ser fendidas com cerrada e sabom e dar lhe fogo bper .Vj. oras// A pedra de Cobre he uermelha e tyra a verde e há sabor como fez de ujnagre[6]. A pedra do chumbo he poluorenta e muy de dentro he calor de cinza[7]/ e outras tyrão a Color d amarelo[8] e outras tyrão a Color de negro[9]”. D. Duarte. Livro dos Conselhos de El-Rei D. Duarte. Op. cit..pp.176 e seg.. [1] fulminato de prata; [2] psatenosa ou prata negra; [3] prata; [4] enxofre; [5] acetato coprico; [6] verde óxido de cobre; [7] branco chumbo, ou minio, ou “branco transparente”; [8] óxido de ferro; [9]manganês.

Doc.2. “LXX. Como Separar o Ouro da Prata. Quando tiveres raspado o ouro da prata colocas o pó num pequeno vaso, onde se costuma derreter ouro ou prata, e tapa-o com um pequeno pano de linho para que nada saia pelo sopro do fole. Coloca-o frente ao forno e derrete-o. Acrescenta um pouco de enxofre em porpoção com a quantidade do pó, e mexe cuidadosamente com uma vara fina de carvão até que desapareça o fumo. Verte-o, então, imediatamente, num molde de ferro. Em seguida, bate-o levemente sobre a bigorna para reduzir alguma parte preta quimada pelo enxofre, pois é prata. Porque o enxofre não ataca o ouro, mas apenas a prata. Esta separa-se do ouro que conservarás cuidadosamente. Torna a derreter esse ouro no mesmo vaso e acrescenta-lhe enxofre. Quanto tiver sido mexido e vertido, separa a parte negra e guarda-a; continua até que o ouro venha puro. Coloca então todos os bocados pretos que conservaste cuidadosamente no vaso feito de osso e cinza , deita-lhe chumbo e aquece-o até recuperares a tua prata. Mas se quizeres

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conservar a prata negra para servir de nigela[?] Antes de a queimares, acrecenta-lhe cobre e chumbo consoante a medida mencionada acima, e mistura-os juntamente com o enxofre.” (Jorge 1983, 5 – 244). b “XXXVI. O Verde Hispânico. Se queres preparar verde hispânico toma placas de cobre, bem batidas, lima-as com cuidado dum lado e do outro, deita-lhes vinagre puro aquecido sem mel nem sal, e coloca-as numa pequena abertura de madeira escavada, pelo processo explicado atrás. Passadas duas semanas, verifica e lima-as até teres cor suficiente”. Idem ib.. p. 48. c “XXXVII. O Branco Cera e o Mínio. Para preparar o branco de cera tens que adelgaçar placas de chumbo, colocá-las secas numa madeira escavada, tal como o cobre anterior e deitar-lhes algum vinagre ou cobrir de urina. Passado um mês, tira a tampa e recolhe todo o branco que houver e coloca tudo como antes. Quando já tiveres o suficiente e quiseres fazer mínio, esfrega o branco de cera numa pedra sem água e mete-o em dois ou três vasinhos novos, que colocas sob carvão a arder. Terás um estreito ferro curvo com uma pega de madeira e largo no cimo, para que possas mexer e misturar essa mesma cera de vcz em quando. Faz isso muito tempo até que o mínio se torne completamente rubro”. Idem ib.. p. 48. O Mínio, ou óxido de chumbo é utilizado na manufactura da cerâmica como fundente transparente ao qual se adicionam os óxidos corantes, sendo igualmente o componente importante para o fabrico do cristal de chumbo. d “XXXV. O Verde Mar. Se desejares preparar a cor verde, toma um pouco de madeira de carvalho, escava-a em forma de concha, com o comprimento e a largura que quiseres. Toma uma tacinha cheia de sal muito concentrado, põe-na ao lume e cobre-a com carvões durante a noite. De Manhã, esfrega-a cuidadosamente sobre uma pedra seca. Junta pauzinhos finos, coloca-os na tal madeira escavada, de forma a que dois terços da cavidade fiquem debaixo e um terço acima, cobre cada lado com folhas de cobres, deita-lhe mel puro em cima e espalha um pouco de sal moído, coloca tudo isso sobres pauzinhos e tapa com outra peça de madeira, própria para isso, de modo a que não possa sair qualquer vapor. Faz então uma abertura e escava-a num canto dessa mesma madeira deita vinagre aquecido ou urina quente até encher um terço e fecha logo a abertura. Deves colocar a madeira em tal sítio que a possas cobrir de esterquilínio. Passadas quatro semanas, tira a tampa e retira e guarda tudo quanto encontrares sobre o cobre. Substitui o que tiraste sobre o cobre e coloca tudo como fizeras anteriormente”. Idem ib.. 47 e seg.

Doc. 3. “Anil nam he simple medecinal, senam mercadoria, e per isso nam há que falar nelle. E por vos tirar decuidados, sabei que o anil he chamado assi dos arábios e turcos e de todas as lingoas, e somente o Guzarate, que he onde se faz, o chama gali, e porém já agora o chama nil. He herva que se semea e parece com a quenós chamamos mangiriquam; e assi a colhem e põem a sequar per tempo, e molhada a pisam com páos, e dês que he bem pisada a ajuntam e põem a enxugar per dias, e quando a enxugam ou está enxuta, parece de cor verde, e quando mais se vay enxugando parece de cor azul crara, e depois escura, até que venha ser o mais fino escuro

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que pode ser; e quando he mais puro e limpo da terra he milhor, e a prova mais certa he quimado com uma candea, e não hade ficar com arêa, senão com huma farinha muito delgada; e outros o lanção em agoa, e, se nada, yemse por bom; de modo que há de ser leve e de boa cor. E porque he muito grave cousa hum filósofo estar mais nisto, será bem que comamos, e lexemos o anil aos contratadores”. Orta 1987, 86.

Doc. 4. “O Azul cerúleo. O fabrico do azul cerúleo foi instituído em Alexandria, e, posteriormente Vestório iniciou a sua feitura em Putéolos. A sua natureza e o modo como foi descoberto são dignos da mais admiração. Tritura-se, com efeito, areia com flor de nitro, tão subtilmente que fique como farinha; salpica-se então com limalha de cobres raspado com grosas e mistura-se tudo, de modo que fique conglomerado, em seguida fazem-se bolas com a ajuda das mãos e assim se comprimem para que sequem; uma vez secas, colocam-se num pote cerâmico de barro e levam-se ao forno; assim, à medida que o cobres e a areia se reforçam entre si aquecendo completamente sob veemência do fogo, dando e recebendo os respectivos suores, abandonam as suas propriedades e destruídas as suas forças pela intensidade do fogo tomam uma cor azul-cerúlea”. Vitrúvio 2006, 281.

Doc. 5. “Trelado da quitaçom de Joham gonçalluez thesoureiro moor d el Rey.Dom Johãm Pela Graça de deus Rey de Portugal E do Algarue E ssenhor de çêupta A quantos Esta Nossa carta de quitaçom escripta em este caderno Virem fazemos saber que nos recebemos conto e Recado de Joãm gonçalluez scudeiro nosso criado e thesoureiro moor de todo aquello que por nos ouue de amjnistrar E rreceber e despender no dicto oficio de tesouraria Seis annos que se começarom primeiro dia Janeiro que foy da Era do naçimento de Nosso SenhorJesu christo de mjll e iiijc xxiiijº annos que nos em ello comeou de serujr em pos Lourenço martjnz d albergaria que em ello foy nosso thesoureiro moor E sse acabarom esse dia iiijc xxx annos., em quall tenpo sse mostrou que ell Reçebeo de desuairados almoxarifes e Recebeores E oficiais nossos E rrequeRedores moores de pedidos E ssacadores delles E tiradores de dizimas de crelizias E comunas de Judeus E mouros e de mesmo que lhe mandamos cunprir e fazer pera nosso serujço esto que se adiante seguem. Primeiramente em no primeiro anno., da dita Era iiijc xxiiijº Reçebeo., (...) Jtem de tigellos d aluanaria quinhentos peças [sic]. (...) Jtem D azur de acre duas onças. (...) Jtem de azur d Alemanha huu arratell e duas onças. Item em o segundo., anno de iiijc e ujnte çinquo annos Reçebeo., (...) Jtem de azull d alemanha dous arrates., Ao todo nos dictos quator[sic] anos Esto que sse logo ssegue., (...) Jtem de tegellos de barro de desuairadas fyções quatrocentas e dez peças”. Publicado em Chancelarias Portuguesas. D. Duarte. Volume II, Tomo 2. documento 41, 62 e seg.

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Doc. 6. “Mandey tomar comta a Jorge Affonso, meu pintor que foy que teve carguo de receber o azul que se achou nas minas de Aljustrel o ano de 521 e pella recadação da dita conta se mostra carreguar sobre elle a recepta: de Dinheiro 21:680 reaes que recebeu per venda de azul; e de azul 2 quimtaes 22 arretes e 3 quartas e de cimzas 2 arrobas 17 arrates 3 quartas; e de jaspes de moer o dito azul, 1 e de balanças 3 com seus pesos. O qual dinheiro, azul e cousas que asy recebeo despendeo e entregou per meus mandados e do veedor de minhas obras, sem ficar devendo cousa algua como se vio pella recadação da dita conta, que foy tomada pello contador Custodio de Abreu com Mateus da Maya escrivão e vista per Duarte Abreu provedor de minhas contas e por tanto deu por quite e livre ao dito Jorge Affonso e a todos os seus herdeiros(...) e pera firmeza dello lhe mandey pasar esta minha carta de quitação per mym asynada e assellada do meu sello pendente. Mateus da Maya a fez em Lixboa ao primeiro de Dezembro de 1552. Entrando na dita contia acima 14:314 rs. De que lhe fiz quyta e mercê.” Chancelaria de D. João III. Livro 1.º de Privilégios. fl. 111v.. Publicado in, “Cartas de Quitação del Rei D. Manuel, doc. 783”. Arquivo Histórico Português. Vol.X. Lisboa 1916, 15.

Doc. 7. “(...)Refaçã e adubem e aproueitê as suas proprias custas e despesas em tall maneira que sempre sejam casas e temdas dolarias melhoradas e nam pejoradas e ponham logo na frontaria das ditas casas e temdas as armas delRey noso senhor em pedras bem abertas py(n)tadas de maneira que em todo o tempo se posa saber como as ditas temdas dolarjas sam do dito senhor e a elle pertemçê o foro dellas (...) anno do neçimento de noso Senhor Jhsuu Christo de mjll e bc e x annos(...)”. – Chancelaria de. D. Manuel, liv. 8. fl. 33v.

Doc. 8. “Mediçam das obras dos paços delrey Noso Senhor que fez Guomçalo Madeyra per mandado de Vasco Ribeyro das obras de Marcos Pirez mestre delas. (...) Aposentamentos dos jnfantes(...) Item diseram que nas casas que estavam ladrilhadas açhavam nouenta tres braças a iiijc Lx reaes a braça momta quoremta e dous mjl e seteçemtos e oytenta reaes. item diseram que mediram todalas guarnyçoes das paredes e que açhauam bijc Riij bvraças e dos vãos xxxbj braças majs que sam per todas bijc Lxxix braças e b palmos a cento reaes a braça em que momta xxbij ixc reaes. Soma ijc Liiijªijc Lxxxb {290.285$00} reaes. item diseram que mediram os telhados nos quaes acharam quynhemtas e trinta braças de que avia daver çem mil reaes se chegasem a b.c braças e se majs fosem nom avia daver majs que os ditos çem mjl {100.000$00} reaes e destes lhe foy descomtados quatro mjl telhas que ele gastou no ladrilhar dos cayamentos que aviam de ser ladrylhados de tijolo azul a sua custa e ele felos da dita telha que lhe ade ser descontada a mjl e oytoçemtos reaes {1.800$00} por mjlheiro em que momtam bij ijc {7.200$00} reaes asy qye ha daver deles nouenta e dous mjl

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e oytoçemtos reaes {92.800$00} e oluylho[sic] aviam de ser Lxxx braças e he xj braças e xxx iiij palmos que lhe descomtam a mjl reaes a braça em que momtam cymco mil e oytemta bij reaes e meo {5875$00} e asy adaver Lxxxbij bijc xij {87.712$00} rs. (...)”. Torre do Tombo – Corpo cronológico , parte 1.ª, maço,27 . doc.117. (Viterbo 1988, Vol.II, 309 a 328).

Doc. 9. “Livro da tauxasão das mercadorias que vem e qustumão vir aos senhores portugueses da nassão de Portugal Regidentes nestas vastas partes de framdes E barbante para por ela se comtar ho direito do trebuto que devem a dita nasão desde primeiro do mes de novembro do anno pasado de 571, ate houtro tal mês do prezemte anno de 572, feitas pelos senhores comsules e deputados deste dito anno. (...). anill[sic]da Imdia, hum quarto.................................................................46£. anil da Imdia, hum barril posto em............................................................23£. anil da Imdia, hum fardo posto e contado em..............................................20£. anil de Berbéria, hum fardete ou pao posto em............................................3£. anil de Berbéria, hum quarto posto em......................................................25£. (...). canfor, hum caixão posto em...................................................................15£. canfor, hum barril ou jara.....................................................................12£. camfor[sic] refinada, hum barril posto em................................................15£. (...). Goma arabiqua, hum quoarto................................................................10£. Goma arábica, hua pipa posta em .........................................................20£. Goma arábica, Goma alacar, posta em.........................................................................40£. (...). Pastel das ilhas, o quintal a..................................................................13s. (...) assinaram todos od ditos senhores cônsules deputados aos vimte e dous dias do mês de mayo João Fernandez escrivão da dita nasão o fez de mill e quynhentos e setemta e dous annos”. Casa da feitoria portuguesa em Antuérpia, liv. B , fl.56v. “Maria Brandoa, a do Crisfal. A Feitoria de Flandres”. In, Archivo Histórico Portuguez. Vol. VIII. [1.ª ed.], Lisboa, 1910. Archivo Histórico Portuguez. Vol. VIII. [2.ª ed.] anastática do original. Ed. Câmara Municipal de Santarém. Santarém, 2001. pp.30 e seg.

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va r i a · d o ja r d i m m í st i co ao ja r d i m p ro fa n o

do jardim místico ao jardim profano para uma leitura dos jardins medievais portugueses co sta n z a ro n c h e t t i Departamento de Ciências Musicais FCSH-UNL

espelho da salvação humana, c a 1500, chantilly, musée condé, ms. 1363

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va r i a · d o ja r d i m m í st i co ao ja r d i m p ro fa n o

1. Neste trabalho optou-se por inserir as citações em língua original, com excepção dos textos extraídos da Peregrinatio de Jerónimo Münzer, originariamente em latim.

«Un giardino è una costruzione delicata; una volta abbandonato, soggetto alle incursioni degli estranei e del tempo, si cancella facilmente; anche le strutture più consistenti che lo caratterizzano - fontane, bacini, padiglioni, voliere – sono destinate a lasciare tracce piuttosto labili.» (Cardini e Miglio 2002; 5) 1 Para podermos descrever um jardim de que o tempo não guardou vestígios, devemos recorrer a outras fontes e é aquilo que nos propomos fazer para tentar visualizar o espaço que lhe era reservado, em Portugal, no perímetro e na vivência de um palácio medieval. O período para o qual queremos dirigir a atenção é o da dinastia de Aviz, que se inicia com a subida ao trono de D. João I, em 1385, até aos primeiros anos de reinado de D. Manuel I, no final do século XV. A razão da escolha deste período prende-se com dois aspectos fundamentais para a questão em apreço: primeiro, a viragem histórica, política e, o que mais nos interessa, social, produzida pela tomada de poder do Mestre de Aviz, após a crise de 1383-1385; segundo, o facto de, para o período manuelino, já existirem aquelas fontes de informação de que a época em estudo carece. À falta de testemunhos concretos, teremos que tentar reproduzir o imaginário do jardim medieval nas três ópticas fundamentais, isto é: a visão mística do jardim, enquanto horto do Senhor, lugar de oração e de meditação; a visão lúdica do jardim, lugar privilegiado da poesia e dos amores cortesãos; a visão que os documentos não literários da época nos permitem construir. É necessário ter presente que esta realidade não é limitada ao território português, dado que, um pouco por toda a Europa, a falta de vestígios arquitectónicos do jardim medieval obriga a seguir este mesmo critério de análise por toda a bacia norte do Mediterrâneo. Por esta razão as nossas observações serão acompanhadas, como se fossem notas à margem, de descrições, situações e documentos coevos, retirados de outros países como a Alemanha, a França ou a Itália. O nosso percurso, em vez de seguir a linha ascensional da terra em direção ao céu, de acordo com as regras da cosmologia medieval, seguirá numa degradação plotiniana do divino e etéreo para o humano e terrestre. Começaremos portanto pelo jardim místico, descendo para o jardim de deleite, até poisar no jardim do paço medieval.

O jardim como espaço catártico: O Boosco deleytoso e O Orto do Esposo Trata-se de dois textos em prosa, em língua portuguesa, ambos anónimos. Enquanto a datação do segundo, de finais do século XIV, inícios do século XV, é confirmada pelos dois manuscritos presentes na Biblioteca Nacional de Lisboa, do primeiro sabe-se apenas que o texto existente, impresso em Lisboa a 24 de Maio de 1515, é da responsabilidade de Hermano de Campos, «bombardeiro d’el-rei nosso Senhor»; contudo, de acordo com José Leite de Vasconcelos, a sua estrutura linguística coloca-o em época anterior, permitindo assim considerar as duas obras contemporâneas.

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chants royaux sur la conception, frança, 2.º quart. séc. xvi, ms. francês 1537, pintura sobre pergaminho

A ordem em que foram colocados os dois títulos não é casual, pois pode usar-se o primeiro para chegar ao segundo, andando pelo boosco deleytoso até ao orto do Esposo. «Sendo eu mezquinho pecador em tal estado hia muyto amyude andar e espaçar per huû cãpo muy fremoso coprido d’ muytas eruas e frolles de boo odor. Mais nun [...] sobre my parriam aquella treuas muy escuras [...] me çercauom em derredor e dêtro em aminha conciençia.» (Boosco Deleytoso, II) Assim, a Alma começa o seu percurso nos limiares de um bosque onde encontra o seu anjo da guarda que, segurando-lhe na mão, leva o mezquinho pecador até à realização espiritual. É o tema recorrente do percurso per aspera ad astra que, através dos

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a árvore da igreja cristã, paris, biblioteca das artes decorativas

exercícios espirituais e dos colóquios com preclaros exemplos de virtude, leva a alma até à purificação. Embora a imagem faça lembrar a de Virgílio que guia Dante desde a selva obscura e aspra e forte do pecado até à selva spessa e viva que envolve o Paraíso Terrestre, a obra foi justamente aproximada e comparada com o De vita solitaria de Petrarca, onde o poeta conversa com uma longa série de célebres “solitários” para que justifiquem e autorizem a sua busca de uma solidão pura, nunca ameaçada pela anxietas e pelo tedium. Em Petrarca, o locus amoenus, lugar de deleite, retiro do mundo onde rezar, meditar e dedicar-se ao estudo dos clássicos em tranquila solidão, é um espaço objectivo, real: Vaucluse. No boosco deleytoso os lugares são imaginários, menos eruditos, mas talvez mais poéticos. A Alma atravessa, de mão dada com o seu anjo guiador, relvados viçosos que escondem pedras e espinhos cortantes, até chegar a clareiras, vergeis ou castelos onde se encontra uma fremosissima dama sempre diferente, carregada dos atributos simbólicos de cada uma das Virtudes e a quem, cheio de espanto, o pecador, com os giolhos em terra roguey [...] me desse consolaçom e remedyo em minhas tribullaçoões (Boosco Deleytoso, IV). Não é tanto a descrição pormenorizada de um jardim como locus amoenus, que aqui temos; é mais a imagem do jardim como negação do tempo e da morte, onde a alma se purifica do pecado e volta à integridade originária. O percurso entre uma clareira e outra é feito por zonas confusas e ruidosas de águas turbulentas, enquanto o relvado é sem movimento e sem vento, porque o movimento e o vento representam a inquietude e a instabilidade. Continuando o seu percurso, a Alma encontra ilustres figuras e claros exemplos que podem levá-la a entender e desejar a vida solitária na qual se encontram os meios para alcançar o «alto monte» onde é possível contemplar e receber o Esposo: o seu Orto. Proveniente do Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça, O Orto do Esposo é uma obra de doutrinação moral que procede através de exempla, de histórias e contos tradicionais, utilizando a Bíblia, bem como todos os autores mais abordados na Idade Média, num tecido repleto de alegorias. Comparando as Sagradas Escrituras com o jardim de Éden, o autor devolve-nos, ponto por ponto, uma descrição cuidadosa do espaço e dos símbolos do jardim místico. «A Sancta Escriptura he tal como ho orto do parayso terreal deleitoso porque ella he muy fremosamente apostada cõ marauilhosos e[n]xertos e muy graciosamête afeytada com muy graciosas plantas e he aprouada muy compridamête cõ especias de muy bõõ odor, e com flores muy resplandecentes he muy deleitosamente cheyrada, e cõ fructos muy dilicados he muy auõdosamête deleytosa, e cõ muy tenperados orualhos he muy blandamête regada, e he muy saudauelmête abalada cõ uentos muy mansos de grande temperança, e cõ muy deleitossos cantares daues he muy docemente resoada, e con muy linpos ryos he muy abastossamente circûdada, e cõ muy fortes sebes he muy seguramête guardada, e cõ guardadores muy preuistos he con grande vigilya gouernada. E, porque êno parayso terreal ha estas cousas, porê he cõparada e semelhante a Sancta Escriptura ao orto do parayso terreal.» (Orto do Esposo 1956, 14)

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Além da comparação pormenorizada que se segue a esta descrição introdutória e que ajuda na leitura dos símbolos da iconografia do Éden, o texto refere-se também a um elemento extremamente importante para o desenho do jardim medieval, a vedação ou cerca do Paraíso terrestre «cercado ê redor de muro de fogo [...] defensom de angios bõõs pera no leyxar hy chegar os maaos spiritus» (Orto do Esposo, 1956, 15) que delimita o espaço do hortus conclusus. Temos, portanto, nestas duas obras todos os elementos descritivos do jardim místico que a iconografia paralelamente ilustra e que, como veremos, desenhará a natureza que emoldura a poesia cortesã, revestindo assim com a mesma forma o conteúdo sagrado e o profano.

Do Hortus conclusus, do Hortus deliciarum, do Locus amoenus Os jardins do Pentateuco e do Evangelho constituem o paradigma do jardim de toda a época da alta Idade Média, aos quais sucessivamente se juntou o arquétipo do hortus conclusus saído do Cântico dos Cânticos, cuja escrita é atribuída a Salomão e que a Vulgata difundiu entre os literatos e os artistas da época. Dirigindo-se à sua amada, o autor do Cântico dos Cânticos usa estas palavras: «Hortus conclusus soror mea, sponsa, hortus conclusus, fons signatus» (citado em Araújo 1962, 62), adjectivando a mulher de jardim fechado, fonte sigilada e provocando com estas duas imagens o fascínio e a sensualidade do espaço íntimo ocultado, o desejo de descobrir aquilo que o espaço fechado esconde e, ao mesmo tempo, o respeito pelo pudor que o sela. No seu comentário ao Cântico dos Cânticos, Bernardo de Claraval (1090-1153) descreve o jardim de forma quadrada que reflecte os quatro cantos do universo, cujo centro é constituído por uma árvore (árvore da vida) ou por uma fonte ou poço (fonte de sabedoria, símbolo de Cristo e dos quatro rios do Paraíso), onde o amante e a amada, a criatura e o criador, se escondem para reencontrar-se. Na sua visão alegórica do jardim, aquele autor cisterciense refere duas tipologias que serão fonte de inspiração para a iconografia e a literatura seguinte, o hortus conclusus e o hortus deliciarum. O primeiro, um jardim secreto e fantástico, dentro do claustro, oferece protecção contra o mal. Aqui se encontram plantas cheias de significados simbólicos: a rosa, que representa a Virgem, mas também símbolo do sangue divino e, pelos seus espinhos, símbolo das penas de amor; o lírio, símbolo da pureza e da pobreza; as violetas, símbolo da modéstia e da humildade; a romã, que representa a sólida união da igreja; a palmeira, símbolo da justiça, da vitória e da fama; a figueira, metáfora da doçura, da fertilidade, do bem-estar, da salvação; a oliveira, símbolo da misericórdia e da paz; o trevo, que alude à Trindade. O segundo, hortus deliciarum, é o mais cantado pela literatura cortesã. Os romances de Chrétien de Troyes descrevem-no como um espaço vedado, cheio de frutos e flo-

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évard de conty, livro moralizado dos insucessos de amor, frança, séc. xv, paris, bibliothèque nationale, ms. francês 143

res eternas, envolto por uma atmosfera mística. Jean de Meung, no célebre Roman de la Rose, refere as várias espécies de árvores de fruto, as plantas ornamentais e o elemento refrescante da água. Como metáfora do “amor cortesão”, o hortus deliciarum é o percurso que o cavaleiro deve fazer para chegar à felicidade. São, portanto, estes dois horti as duas metades da vagem que encerra o locus amoenus, a paisagem literária “por excelência”, o tópico da descrição da natureza desta época. Na descrição poética, o jardim é, então, um espaço fechado em que se entra por uma porta, circundado por um muro que separa o que está dentro do que está fora,

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a realidade exterior e a interior: o espaço do jardim é um fresco alegórico de um lugar sem tempo, lugar da eterna primavera, sempre cheio de frutos e flores que não conhecem a caducidade. As iluminuras mostram cercas de canas entrelaçadas com roseiras, mas também paredes de tijolo que tornam diferente e íntimo o espaço que circunscrevem. Voltando agora às imagens do locus amoenus que as literaturas, de par em passo com o retrato dos livros iluminados e de algumas pinturas nos devolveram, Marie-Thérèse Haudebourg escreve: «Très tôt et naturellement, à l’image biblique du jardin du paradis, hérité de la Perse antique, les auteurs chrétiens avaient allié le topos du locus amoenus tel qu’il est exprimé par Virgile et d’autres poètes antiques. C’est pourquoi du jardin d’éden, lieu de pureté que ni le péché ni la concupiscence ne devaient souiller, on est revenu si facilement aux jardins des romans courtois qui semblent en définitive comme des reflets inversés du jardin d’éden. Avec la poésie de cour, le jardin, voué par les moines à la prière ou à la gloire de Dieu, devient donc parage d’amour: locus amoenus, le lieu de délices propice aux rencontres des amants.» (Haudebourg 2001, 144) É, com efeito, a descrição de uma estratégia para os encontros de Tristão com a rainha Isolda que nos permite visualizar o vergel do palácio real, situado por trás da câmara do rei e da das mulheres, em direcção à floresta: rodeado por uma cerca de tábuas pontiagudas cingida por um fosso; um grande pinheiro que estende as suas ramas até ao relvado; no centro do vergel, de uma fonte de pedra brota a água que se escoa por dentro de um pequeno canal, também de pedra, e corre até à câmara das mulheres, dividindo-a ao meio. É pelo fluxo da água que Tristão faz chegar as mensagens à sua amada e é por baixo da ramagem do grande pinheiro que os amantes se encontram. E durante um destes encontros o fascínio do luxurioso vergel do rei por debaixo das estrelas leva Isolda a comentar: «N’est-ce pas ici le verger merveilleux dont parlent les lais bretons? Une muraille d’air infranchissable l’enclôt de toutes parts; parmi les arbres en fleur le héros vit sans vieillir entre les bras de son amie et nulle force hostile ne peut briser la muraille d’air.» (Tristan et Iseult, XIV Le Coudrier et le chèvrefeuille) Com igual poesia e ainda maior definição, no início do terceiro dia do Decameron, Boccaccio oferece uma das mais belas descrições de um jardim cortesão: «Appresso la qual cosa, fattosi aprire un giardino che di costa era al palagio, in quello, che tutto era d’attorno murato, se n’entrarono [...]. Esso avea d’intorno da sè e per lo mezzo in assai parti vie ampissime, tutte diritte come strale e coperte di pergolati di viti [...]. Le làtora delle quali vie tutte di rosaj bianchi e vermigli, e di gelsomini erano quasi chiuse [...]. Nel mezzo del quale [...], era un prato di minutissima erba, e verde tanto che quasi nera parea, dipinto tutto forse di mille

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varietà di fiori, chiuso d’intorno di verdissimi e vivi aranci e di cedri [...]. Nel mezzo del qual prato era una fonte di marmo bianchissimo e con maravigliosi intagli. Iv’entro,[...] per una figura la quale sopra una colonna che nel mezzo di quella diritta era, gittava tanta acqua e sì alta verso il cielo, che poi non senza dilettevol suono nella fonte chiarissima ricadea [...]. La qual poi per occulta via del pratello usciva, e per canaletti assai belli e artificiosamente fatti, fuori di quello, divenuta palese, tutto lo ‘ntorniava; e quindi per canaletti simili, quasi per ogni parte del giardin discorrea [...].» (Boccaccio, Decameron, Giornata III, Introduzione) Apesar da literatura portuguesa não oferecer descrições tão extensas e pormenorizadas, temos, no entanto, um belo exemplo, embora tardio, dado pela mão de Bernardim Ribeiro, na sua Menina e Moça, onde a ama, relembrando o encontro furtivo de Beliza com Lamentor, adormece a desinquieta Aónia com a lengalenga da sua história: «Mal cuidava eu o que havia de acontecer à senhora Belisa quando aquela noite, depois de dormirem todos, nos alevantámos nós sós, caladamente, e pelo laranjal do jardim, que com a espessura do arvoredo fazia então maior escuro, p assámos cheias de medo. E vós pegada em mim toda tremendo, fomos sair pela portinha falsa que no mais escuro lugar dele estava, aonde achámos a Lamentor aguardando-nos já havia pedaço, todo cheio de esperanças tão longas, que enfim haviam de vir ser assim esperanças e não mais.» (Ribeiro, Menina e Moça, Bimarder e Aónia)

boccaccio, decameron, ilustração do séc. xv, frança (rouen), maître de l’échevinage, xv séc., ms. francês 129, pintura sobre pergaminho

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Como refere Ilídio Araújo, foi avançada a hipótese de esta cena poder ser enquadrada na Quinta da Sempre-Noiva, perto de Arraiolos, mandada construir por D. Afonso de Portugal, bispo de Évora e que, na altura em que Bernardino Ribeiro lá emoldurara os encontros dos amantes, já teria passado às mãos da filha, D. Beatriz. Ora, é bem possível que para descrever este encontro, o autor tenha usado os elementos descritivos que tinha ao seu dispor e, portanto, achamos lícito pensar que, no momento em que o autor escreveu estas páginas, os jardins ainda pudessem ter esta configuração, herança de uma tradição passada e ainda não fruto da nova tendência renascentista. Vimos assim variamente repetido este desenho de jardim fechado que a descrição luminosa de Boccaccio que citámos parece contradizer, derrubando as vedações enclausurantes e abrindo os espaços do jardim italiano renascentista. Contudo, é necessário lembrar o valor cívico de que se reveste este jardim do Decameron: na sua fuga desatinada da epidemia, o jardim é um lugar onde a brigada de jovens se recompõe e volta a adquirir o controle sobre a vida. No entanto, os jardins das novelas que, à vez, os jovens vão contando à espera de voltar à vida normal, correspondem perfeitamente à descrição do hortus conclusus. Considerando, portanto, esta abertura “boccaccesca” como uma excepção, o jardim íntimo e isolado é a conotação constante desta época que nos é transmitida pela literatura e que o próprio termo “jardim”, na sua etimologia gótica garda, “fechadura”, confirma. É verdade que em Portugal o termo jardim começa a ser utilizado, em forma erudita, apenas com D. João III; porém a imagem que nos chega deste espaço parece conformada à sua etimologia.

Entrando nos jardins medievais Baixando à terra, por assim dizer, encontramos a Europa numa época de grandes acontecimentos e mudanças: a Guerra dos 100 anos enfurece, fazendo de moldura ao cisma avinhonense; a peste de 1348 já passou, mas os seus resquícios ainda se fazem sentir; Granada, por sua vez, continua nas mãos dos Árabes. Estão presentes todos os elementos de insegurança e desequilíbrio que levam à busca da felicidade imediata e efémera. Se, por um lado, é o momento em que os reis e os nobres encomendam livros de horas para poder segredar com o Divino, rezar e meditar, é também verdade que os encomendam cada vez mais ricos e preciosos, como elemento de ostentação da sua opulência. E esta atitude reflecte-se ainda mais na arquitectura da época. Se quisermos uma belíssima junção destes dois aspectos, basta pensarmos nos sumptuosos palácios do Duque de Berry iluminados nas suas Très Riches Heures. Nos paços da realeza e da nobreza portuguesas não iremos à procura de tanto fausto e, por enquanto, ainda menos nos seus jardins: «Estou convencido que nos primeiros séculos da monarquia a jardinagem tinha um caracter modesto e rudimentar. Os jardins reaes eram uma reprodução modesta dos de Alcino, com as suas hortas e pomares, não esquecendo os canteiros de plantas therapeuticas.» (Sousa Viterbo 1906, 10)

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les très riches heures du duc de berry, março, ilustração do séc. xv, frança, chantilly, museu de condé

É esta a visão que Sousa Viterbo tem dos jardins dos paços reais, afirmando também que não haverá obras de arte até ao século XVII, assim como a construção de jardins botânicos destinados ao estudo das plantas é adiada até ao último quartel do século XVI. Com efeito, as poucas referências a hortas dos paços reais anteriores à época manuelina dão-nos essencialmente conhecimento da sua existência e também de um certo cuidado por parte dos reis para com eles, aparecendo em documentos que referem a compra de um imóvel onde são nomeados os “pomares”, como é o caso do documento que prova a compra do Paço de Água-de-Peixes por D. Dinis “com pomar, vinha azenha e casas” (citado em Carita 1987, 32).

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De um ponto de vista estrutural, a planta dos paços e das casas da nobreza, por aquilo que nos é possível deduzir dos seus vestígios, era o contrário do modelo da precedente casa romana e dos palácios árabes, ambos edificados em volta de um espaço central ajardinado, de um pátio habitualmente com uma fonte ao centro, mas que não dispensava uma horta exterior com diversa finalidade, enquanto, «[...] o paço medieval se fecha ao exterior e se estrutura para dentro, numa concepção que tem tanto de intimidade quanto de necessidade mínima de defesa, numa época em que a segurança era reduzida.» (Silva 2002, 33). Fecha-se, sim, mas não em volta de um espaço aberto, ao ar livre. O paço é um bloco único limitado na parte da frente por um pátio de entrada e, na parte de trás ou de um dos lados, por uma horta. Nem o Paço da Vila de Sintra escapa a este paradigma. Com efeito, a parte do palácio edificada por D. João I estrutura-se toda em volta de um pátio central, o pátio do Esguicho, com o grande tanque dos Cágados, existindo também outro, mais pequeno, o pátio de Diana, que obedece à mesma disposição. Isto leva sem dúvida a pensar que o seu perímetro seja de construção árabe, assim como, provavelmente, o seu requintado sistema de canalização das águas, para cuja manutenção sabe-se que chegou a existir uma inteira geração de mestres-de-obras. No entanto, o paço joanino funcionava como uma unidade, sendo a sequência das divisões no seu interior em funil, desde a sala até à trascâmara, sem que o percurso tivesse como finalidade o debruçar-se sobre o dito pátio. E mais, até às destrutivas remodelações dos anos 30 do século transacto, o palácio tinha de facto um pátio de entrada em frente ao corpo central e nas traseiras encontravam-se, e estes ainda hoje se encontram, embora com outros nomes, os Pomares da Rainha e o Pomar do Sol. Mas voltando a D. João I, a grande reviravolta por ele operada deixa claras marcas na lógica e na qualidade de vida da corte. Constrói o Mosteiro da Batalha e St.ª M.ª da Oliveira em Guimarães e reestrutura e amplia palácios como o Paço da Vila de Sintra, como já vimos, o reduto castelar de Leiria ou os Paços da Alcáçova de Lisboa. Ao mesmo tempo cria as condições que incentivam também a nova nobreza a construir e, sem dúvida, como se pode notar pelos alvarás de obras e outros inventários da época, dedica uma maior atenção ao conforto e à qualidade de vida dentro dos palácios, não esquecendo certamente os seus espaços ajardinados. Poderíamos até ousar a hipótese que a estes cuidados acrescidos não seja alheia a presença de D. Filipa de Lencastre, pois é notório o interesse dos britânicos pela jardinagem já naquela altura. Na mesma linha, a escritura de aforamento do rei D. Afonso V dos Paços do Arcebispo na Alcáçova de Lisboa, além de nos fornecer informações sobre as plantas escolhidas (ciprestes, laranjeiras e limoeiros), também já testemunha o cuidado que este rei tinha para com os seus “pomares”, o que nos leva a pensar que na época a sua fruição já não tivesse uma conotação meramente hortícula, mas também de deleite. É também de notar que as plantas referidas neste e noutros documentos da época são essencialmente plantas de alto porte, o que prova a influência dos jardins árabes para os quais, diversamente do modelo italiano e francês, as plantas usadas eram prevalentemente árvores, desenhando assim a parte frondosa do jardim num nível mais alto e entregando a parte térrea à pedra mármore, à água e aos seus pequenos canais.

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2. O manuscrito original do Itinerarium sive peregrinatio excellentissimi viri, artium ac utriusque medicinae Doctoris Hieronimi Monetarii de Feltkirchen, civis Nurembergensis, encontra-se na Biblioteca de Munique. Para facilitar a compreensão, aqui será usada a tradução portuguesa de Basílio Vasconcelos in “Itinerário” do Dr. Jerónimo Münzer (excertos), Coimbra, Imp. da Universidade, 1931, e a espanhola de José Lópes Toro in Jerónimo Münzer, Viaje por España y Portugal 1494-1495, Madrid, Talleres Alduc, 1951.

Voltando aos cuidados mostrados por D. Afonso V, também não é de espantar que a sua irmã, a Infanta D. Leonor, durante a navegação ao encontro do Imperador Frederico III, seu esposo, que a aguardava em Pisa, tendo parado em Ceuta, e hospedando-se no grande palácio real outrora residência do rei de África e de Aníbal, segundo nos relata o bispo Nicolau Lankmann de Valckenstein seu acompanhante, aí tenha plantado com as suas próprias mãos, dentro do hortus pulcherrimus, ao lado de um esplendoroso balneário, um ortulum, um jardinzinho para recordação e, como prova da dedicação de que tinha revestido este acto, «ortulanu summe commendavit, cui pro arra unum ducatum tribuit.» (Valckenstein, Desponsatio et Coronatio Serenissimi Domini Imperatoris Friderici III et eius Auguste Domine Leonore, § 31, 1992, 58). E aproveitando esta deixa do nosso bispo, vamos então demorar-nos um instante ao pé desta figura que começa a entrar também na cena dos jardins portugueses: o ortolanus, ou seja, o jardineiro. Enquanto as ordens de D. Afonso V para os cultivos na Alcáçova de Lisboa são dirigidas ao vigário, D. João II sente a necessidade de entregar estas tarefas a um verdadeiro profissional do ofício e manda chamar Gomes ou James Fernandes, hortelão e guarda da famosa horta de Valência, da qual voltaremos a falar mais adiante. E chama-o para trabalhar «na horta dos paços de Évora que, além das plantas de uso doméstico e dos pomares, seria semeada de hervas de virtude» (Sousa Viterbo, 1906, 71), informando-nos assim da dupla função do jardim do paço. O cargo de Gomes Fernandes começa em 1494 com um ordenado de 17.000 reais, pagos metade no princípio do ano e metade no S. João, mais o aproveitamento da horta e D. Manuel confirma-o, em 1496; suceder-lhe-á Pasquim Velanes, de provável origem italiana, a quem, por sua vez, segue António Monteiro e, a partir daí, uma série de nomes, às vezes ligados uns aos outros por parentesco, cujas pegadas Sousa Viterbo segue atentamente de paço em paço, entre Évora, Salvaterra, Almeirim, Alhos Vedros, por Portugal fora.

O álbum de fotografias de um turista pasmado Este último passeio pelos jardins medievais será feito na companhia de Jerónimo Münzer, um abastado médico alemão que, fugindo à peste que naquela época enfurecia em Nuremberga, a 2 de Agosto de 1494, com três jovens, filhos de ricos mercadores, António Herwart, Gaspar Fischer e Nicolas Wolkenstein, partiu rumo à Península Ibérica. O relato da viagem2 começa na fronteira entre Catalunha e Rossilhão, na cidade de Perpinhão, e é uma galeria de verdadeiras fotografias tiradas por um viajante extremamente curioso e entusiasta que não podemos deixar de imaginar com uma expressão de surpresa e maravilha desenhada na cara. As descrições sobre a arquitectura, a vegetação e a maneira de viver e de receber das pessoas com quem o viajante tem oportunidade de cruzar-se na sua estrada, riquíssimas de pormenores, começam a ser um pouco mais abreviadas até sair de Portugal, uma vez entrados na Galiza, com excepção

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do encontro com os Reis Católicos, em Madrid, episódio fulcral desta peregrinação. Do ponto de vista que mais nos interessa, o percurso do Doutor Münzer é semeado de jardins, pátios, pomares e terrenos férteis dos quais elenca todos os tipos de cultivos com a mesma abundância de pormenores e com o mesmo olhar maravilhado com que descreve os animais mais insólitos que, naquela época, os reis e senhores costumavam mandar vir de terras longínquas para seu deleite. E logo no primeiro dia de viagem, chegados a Perpinhão, «Estábamos hospedados en las afueras de la ciudad, junto a la muralla, en casa de cierto caballero llamado Don Sigisberto, cuya casa era tan magnífica, que la tomarías por algún castillo o palacio. Habia detrás de la casa, hacia el norte, dos extensos y muy alegres huertos, construídos como los claustros y cercas de los monasterios en Alemania. Todo el contorno estaba cubierto por diferentes clases de ubérrimos racimos, y sus costados, de árboles de la más variadas especies. [...] Los huertecillos aquellos estaban sembrados de todas las especies de frutos [...], los granados, los naranjos, las viñas, las higueras, los almendros, los nísperos, los melocotoneros [...]. Un acueducto sabiamente dirigido regaba con la mayor facilidad aquellos huertos [...]. No bastaría una hora para enumerar aquellas delicias. Nunca vimos huertos semejantes.» (Münzer 1951, 1-2) Se bem que este comentário final seja repetido várias vezes ao longo da peregrinação, estamos perante um exemplo de amplo hortus conclusus no espaço de uma casa senhorial. Estamos a entrar na zona que viu a dominação árabe e não admira que o viajante alemão fique tão estupefacto quer com as obras de hidráulica quer com a enorme variedade de frutos e árvores que a flora mediterrânica oferece. Prosseguindo no seu percurso, os quatro companheiros chegam a Barcelona, onde encontram a lonja dos mercadores, uma construção arquitectónica imponente, pois o seu pátio conta dez fileiras de laranjeiras e limoeiros, «en medio una fuente saltarina, y a los lados asientos cuadrados de piedra.» (Münzer 1951, 5). É curioso encontrar o elemento jardim numa construção destinada aos negócios e veremos outras estruturas do mesmo género ao longo da viagem. Extremamente interessantes são as notas relativas a Valência que é descrita como uma cidade pujante, fértil e rica em todos os recursos. Aqui encontra a Casa de Inocentes y de Locos, de que nos deixa uma vivíssima, quase arrepiante descrição, mas, sobretudo, é levado a visitar o horto da cidade «que está excelentemente plantada de limoneros, naranjos, cidros y palmeras. Y todas sus cercas cubiertas con las ramas y hojas de los naranjos. Hay también mesas, altares, púlpitos, naves, asientos, todo deliciosamente construído con arrayán, que es mixto entre frutal y arbusto, de hojas siempre verdes, como el boj. Tiene flores blancas y muy olorosas, como el lirio de los vales. Siempre está verde como el boj. Con facilidad se inclina, se conduce, se alarga y se dobla para todas partes. Así, con él se forman variadas figuras.» (Münzer 1951, 18)

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planta de saint-gall segundo desenho sobre pergaminho do séc. ix, saint-gall, stiftsbibliothek

Herbolarius

Pomarius

Hortus

Temos aqui um verdadeiro exemplo de arte paisagista, talvez inesperado nesta altura, que não parece dever-se à herança árabe e, por acréscimo, num espaço social que não tem nada a ver com la Huerta del Rey que a alegre companhia irá visitar logo a seguir. E finalmente chegamos a cruzar um hortus muito particular que até aqui não tinha sido visto: o horto do mosteiro. Se, por um lado, numa primeira fase, a chegada dos povos invasores do norte de Europa não habituados às temperaturas e às vegetações mediterrânicas e provavelmente com uma alimentação preferencialmente proteica e pouco atenta a certos requintes aromáticos, tinha abafado a tradição romana dos topiarii, por outro, não tinha com certeza abrandado o crescimento das hortas no espaço dos edifícios monásticos, que juntam o interesse de pôr a bom fruto a terra para produzir alimentos e remédios vegetais necessários aos monges, ao de possuir

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atributos inerentes à simbologia cristã. Os jardins dos edifícios da ordem beneditina tinham o seu espaço ajardinado geometricamente dividido em fi las de alegretes articulados em xadrez segundo regras precisas e a abadia de Cluny destinara um espaço considerável aos claustros e às zonas cultivadas com perfumes e aromas que pudessem ligar ao universo alegórico espiritual. Em seguida, o Doutor Münzer visita o mosteiro da Ordem dos Pregadores, fora de Valência, onde vivem seis frades, a quem o rei deu um excelente lugar «donde tienen preciosos y extensíssimos huertos, con muchas palmeras y dátiles – que en otro tiempo pertenecieron a los más ricos de los sarracenos – de los cuales pueden vivir. Tienen mucha agua de manantial. [...] ¡Oh, que bellos serían estos huertos cuando estaban en su esplendor los sarracenos, que son muy habilidosos en la exquisita disposición de los huertos, del frutos y de las cañerías, que si no lo ve uno dificilmente se cree.» (Münzer 1951, 32-33) Não é, sem dúvida, o mais característico horto monástico; no entanto, é interessante esta junção entre as duas tradições, cristã e muçulmana. No fundo, a ideia de jardim-paraíso oriental define uma tipologia muito próxima da claustral. O jardim islâmico ocupa o centro da casa assim como o claustro ocupa o centro da zona habitacional do mosteiro; um mesmo palácio pode ter vários jardins que comunicam entre si através de pequenas portas laterais assim como o mesmo mosteiro pode ter mais do que um claustro, enquanto a horta é virada para o espaço exterior. A cartuxa de Santa Maria de las Cuevas, que o nosso viajante encontrará perto de Sevilha, é um exemplo: «Tiene excelentes celdas, y sobre ellas los dormitorios, hermos huertos y claustros preciosamente construídos delante de las celdas. En la parte central, un huerto tan ameno, con varios dibujos de mirto, arrayán y jazmín, que es casi increíble. [...] Fuera del monasterio y de las celdas hay dos huertos que riegan con agua traída de Betis con dos mulas. Huertos, repito, agradabilísimos, con cidros, naranjos, granados, higueras, almendros, vides y perales, cuyos frutos estaban aún pendientes de los árboles. ¡No he visto, en verdad, huertos mas hermosos!» (Münzer 1951, 63-64) 3 Retomando então o percurso do nosso viajante, chegamos a Granada. De todo o percurso feito por Espanha até agora, podemos dizer que o desenho do jardim que se apresenta já não é apenas um desenho imaginário e ainda menos os jardins de La Alhambra que chegaram até nós. Vamos limitar-nos, portanto, a referir apenas a maravilha provocada no visitante alemão pela famosa fonte dos Leões: «en el centro de uno de los palacios, una gran taza de mármol, que descansa sobre trece leones esculpidos también en blanquísimo mármol, saliendo agua de la boca de todos ellos como por un canal. [...] No creo que haya cosa igual en toda Europa. Todo está tan soberbio, magnífica y exquisitamente construído, de tan diversas materias, que lo creerías un paraíso.» (Münzer 1951, 37)

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3. Esta descrição não pode deixar de nos lembrar a estrutura que se encontra no Paço da Vila de Sintra que já mencionámos.


No dia de São Martinho, a pequena comitiva parte de Sevilha em direcção a Portugal, onde entra, por Serpa, no dia seguinte e a partir deste momento, até sair definitivamente da península, com excepção da descrição da casa do cardeal Don Pedro de Mendoza, em Guadalajara, por onde passará logo após a visita aos Reis Católicos em Madrid, as descrições de jardins, até aqui tão entusiastas e pormenorizadas, não passam de pequenos apontamentos quase exclusivamente reservados a hortos e claustros dos mosteiros. Isto pode ter a ver com uma certa exigência de brevidade ou com a diminuição de interesse dos espaços ajardinados. No entanto, o relato continua salpicado pelas descrições dos campos e dos cultivos que se estendem entre as várias povoações e dos mercados, mantendo-se constante o fascínio pelas maravilhas botânicas. Chegados a Évora, onde na altura D. João II residia, o Doutor Münzer relata: «Há em Évora um lindo palácio real e uma lindíssima igreja abobadada, que é sé episcopal, com um famoso claustro; passeando sôbre ela, como se fôsse um terraço, vimos a situação da cidade, que é grande, maior que Ulm. No páteo do palácio real vimos também um camelo novo e bonito, que o rei mandou trazer da África, onde êles abundam.» (Münzer 1931: 13) Durante a sua estadia em Évora, a pequena companhia sentou-se quatro vezes à mesa com o rei e um dia «em que o Rei almoçava no jardim orlado de laranjeiras, ao pé do castelo de Évora...», descreveu para o visitante alemão as maravilhosas árvores da ilha de São Tomé, «tão altas que um fundibulário dificilmente lhes atinge o cume com uma pedra» e cujos frutos, parecidos com cabeças, são usados como vasos. «Êsse jardim, onde êle almoçou, era novo; havia quatro anos que o tinham plantado e rodeado duma sebe de canas. O Rei disse-me que nessa ilha o jardim se desenvolveria tanto em oito meses como em Évora em quatro anos.» (Münzer 1931, 59-61). Fica, portanto, confirmado o cuidado de D. João II para com o jardim e a transformação da horta ou pomar em jardim de lazer. A 26 de Novembro, chega Jerónimo Münzer a Lisboa, onde diz que existem dois castelos reais, dos quais não fornece mais descrições. No entanto, delicia-se com o pátio da sinagoga dos judeus, coberto por uma videira cujo tronco mede quatro palmos de circunferência. Visitando os conventos do Carmo e da Trindade, descobre mais uma maravilha botânica, «uma grande árvore chamada dragão, da qual corre sangue de dragão que é uma seiva avermelhada» (Münzer, 1931, 19) e à qual dedica duas páginas inteiras. O incansável alemão sobe também ao castelo «com palácios, páteos e outras cousas» que não descreve e onde encontra dois leões «os mais bonitos que tenho visto» (Münzer, 1931, 22). E este é o último apontamento que encontramos no percurso português, mas, como já foi dito, também o resto da viagem não nos oferece imagens pitorescas como as do percurso por Catalunha e Andaluzia. E por muito que isso possa de facto depender de uma forma mais rápida de relatar a viagem, não podemos pôr de lado a questão da imanência da herança árabe naqueles territórios. Ao longo deste trabalho não nos detivemos nos aspectos ligados à filosofia dos jardins-paraíso do mundo muçulmano, tocámos apenas em pontos onde os jardins árabes se

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cruzavam com os europeus. Queremos portanto fechar este texto usando como lacre uns versos de Ibn Jāţima, mestre de Almeria, de meados do século XIV, que, não resumindo esta filosofia, lançam seguramente a imaginação no fascínio do símbolo dos sentidos: Anda como una gacela que se aleja de nosostros, su talle es tan frágil, que parece va a romperse. La deseé en una fiesta, en médio de un jardín que nos enviaba el perfume del âmbar desde su arboleda. Me llamó y dijo: ¿Es que eres insensible? ¿Que jardín puedes desear después de verme? Su espesura, las ramas, el perfume, el rocio, sus hojas, las palomas, la duna, el laurel, su verdor, el vino, los dulces, las canciones, sus narcisos, el azahar, el mirto, la rosa, son mis vestidos, mis brazos, mi aliento, mis favores, mis pendientes, mis joyas, mis caderas, mi talle, mi cara, mi saliva, mis pechos, mi voz, mis ojos, mi boca, mis cabellos, mi mejilla; cuando aparezco, aparece mi hermosura y si me oculto no hay pena que se esconda ni belleza que se muestre.4

4. Tradução de Soledad Gilbert in El Diwan de Ibn Jatima de Almería: poesia arabigoandaluza del siglo XIV, Barcelona, Universidad de Barcelona, Publicaciones del Departamento de Árabe e Islam, 1975.

a história de bayad e riyad, espanha ou marroco, séc. xiii, vaticano, biblioteca apostolica vaticana, ms. árabe 368

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Bibliografia ARAÚJO, Ilídio Alves de. 1962. Arte paisagista e arte dos jardins de Portugal. Lisboa: Centro de Estudos de Urbanismo. BARRADAS, Alexandra Alves. 2007. Ourém e Porto de Mós. Lisboa: Edições Colibri. BOCCACCIO, Giovanni. 2005. Decameron. Milano: Einaudi. Boosco Deleytoso por Hermão de Campos, 1509-1518, impr. Lisboa, 24 Mayo 1515. CARITA, Hélder. 1987. Tratado da grandeza dos jardins em Portugal ou da originalidade e desaires desta arte. Lisboa: Edição de Autores. CARDINI, Franco e MIGLIO, Massimo. 2002. Nostalgia del Paradiso: il giardino medievale. Roma-Bari: Laterza. HAUDEBOURG, Marie-Thérèse. 2001. Les jardins du Moyen Ãge. Paris: Perrin. MÜNZER, Jerónimo. 1951. Viaje por España y Portugal 1494-1495, trad. de José Lópes Toro. Madrid: Talleres Alduc. MÜNZER, Jerónimo. 1931. Itinerário do Dr. Jerónimo Münzer (excertos) trad. Basílio de Vasconcelos. Coimbra: Imp. da Universidade. Orto do Esposo: texto inédito, fim século XIV ou começo XV, edição Bertil Maler. 1956. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro. RIBEIRO, Bernardim. 1984. Menina e Moça. Lisboa: Comunicação. SILVA, José Custódio Vieira da. 2002. Paços medievais portugueses. Lisboa: IPPAR. Tristan et Iseult, edição em francês moderno de René Louis. 1972. Paris: Le Livre de Poche. VALCKENSTEIN Leonor de Portugal imperatriz da Alemanha: diário de viagem do embaixador Nicolau Lanckman de Valckenstein, trad. de Aires A. Nascimento. 1992. Lisboa: Cosmos. VITERBO, Sousa. 1906. A jardinagem em Portugal: apontamentos para a sua história. I Série. Coimbra: Imp. da Universidade.

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A ESCULTURA EM PORTUGAL Da idade média ao início da idade contemporânea: história e património O Colóquio Internacional A Escultura em Portugal. Da Idade Média ao início da Idade Contemporânea: história e património, decorreu entre 12 e 14 de Março 2009, no Palácio Fronteira, em Lisboa. Organizado pela Fundação das Casas de Fronteira e Alorna, que acolheu a ideia inicialmente proposta por Pedro Flor e Teresa Leonor Vale, o colóquio tinha por objectivo primeiro apresentar, preferencialmente mas não exclusivamente numa perspectiva histórica, a escultura existente em Portugal, criada entre a Idade Média e o início da Época Contemporânea. Entre os seus objectivos contava-se o de desenvolver uma abordagem plurifacetada da temática eleita, não só procedendo à identificação e análise de obras e artistas, mas também de programas iconográficos e soluções decorativas. Ainda no âmbito da abordagem histórica pretendiam os organizadores questionar a existência de uma escultura portuguesa, detentora de características particulares, passíveis de serem objectivamente identificadas, bem como o papel desempenhado pela presença de obras importadas, reconhecíveis entre nós desde muito cedo. O colóquio tinha ainda por finalidade compreender e aprofundar questões inerentes à salvaguarda, conservação e preservação do património escultórico nacional.

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A Comissão Científi ca do colóquio era constituída pelos Professores Doutores Jean-Marie Guioullet, José Custódio Vieira da Silva, Natália Ferreira-Alves, Pedro Flor e Teresa Leonor Vale, tendo a coordenação científica e executiva sido assegurada por Pedro Flor, Teresa Leonor Vale, Maria João Pereira Coutinho e Sílvia Ferreira. Para uma mais efi caz organização dos sub-temas contemplados, identificaram-se as seguintes áreas temáticas, nas quais se enquadraram as 22 comunicações que ao longo dos 3 dias da iniciativa foram apresentadas pelos 26 participantes: I. Abordagem histórica, II. A escultura e as outras artes e III. O património escultórico: sua conservação, preservação e salvaguarda. Assim, as comunicações incluídas no primeiro quadro temático, permitiram efectivamente traçar um percurso desde a escultura românica até àquela neoclássica, passando pelo Renascimento, Barroco e Rococó, considerando não só a produção nacional, como também as peças importadas. Houve desse modo lugar a uma análise, por vezes mais abrangente, por vezes mais aprofundada, de obras e artistas nacionais e estrangeiros que se encontram ou encontraram no nosso país e que nem sempre foram objecto do olhar atento e cuidadoso do qual são merecedores. O segundo conjunto de comunicações, consagrado ao sub-tema da escultura e as outras artes, facultou uma abordagem diversificada que passou pela relação da escultura com as outras artes (nomeadamente aquelas denominadas decorativas) ou domínios (urbanismo) e pela representação da própria escultura (na azulejaria).


Finalmente, a terceira área temática, dedicada à conservação, preservação e salvaguarda do património escultórico existente em Portugal, contou com comunicações que, para além de apresentarem intervenções específicas, colocaram em evidência a importância da interdisciplinaridade e a concreta necessidade da constituição de equipas pluridisciplinares neste domínio. Durante as sessões, ouviram-se repetidamente apelos ao estudo integrado e exaustivo de inventário e de arquivo, à sistematização da informação recolhida e à promoção de projectos de investigação de fundo. Existe uma quantidade significativa de obras de arte escultóricas que carecem de estudo alargado, desejavelmente sob uma perspectiva interdisciplinar, tomando por base a pes-

quisa de arquivo e a observação cuidada e demorada da obra de arte. As novidades documentais que surgiram durante as intervenções e as diferentes propostas de trabalho sugeridas, sem esquecer as novas perspectivas metodológicas de abordagem à escultura foram constantes ao longo dos três dias, proporcionando um clima de debate profundo e variado que se estendeu, por vezes, até ao terraço do magnífico Palácio Fronteira durante as pausas para o café. No colóquio A Escultura em Portugal foi ainda possível estabelecer contactos diversos entre os comunicantes e os participantes que ultrapassaram largamente a meia centena, registando-se sempre uma óptima assiduidade em sala. Neste encontro de carácter científico procurou-se, sobretudo, promover o encurta-

mento de distâncias entre investigadores e estudiosos nacionais e estrangeiros provenientes das mais diversas áreas de interesse que, deste modo, tiveram a oportunidade de contactar entre si e partilhar experiências variadas no campo da investigação da História da Arte. Espera a Fundação das Casas de Fronteira e Alorna e os organizadores publicar um volume de actas que constituirá, certamente no futuro, uma obra de referência para todos aqueles que analisam, discutem e estudam com profundidade a arte da escultura.

Pedro Flor Teresa Vale

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Apresentação do projecto IMAGO no Seminário Livre Inter-Universitário 2008/2009 do IEM / GAHOM, na EHESS (Paris IV, Sorbonne) A divulgação do projecto Imago (POCTI/EAT/45922/2002), entendida como parte fundamental do desenvolvimento e do enriquecimento da investigação levada a cabo e da sua articulação vital com a comunidade (científica e mais geral), tem vindo a operar-se, como de resto se disse no espaço próprio de que a apresentação do mesmo projecto goza nesta revista, por vias diversificadas, de entre as quais ressalta a publicação de uma obra e de um conjunto de artigos assentes nos resultados e nos questionamentos que foram, simultaneamente, resultando e estimulando o trabalho de todos os investigadores envolvidos. Esta mesma preocupação com a divulgação da inédita reunião de dados e ima-

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gens a que corresponde a base Imago assenta na dupla consciência da enorme carência existente neste domínio específico da investigação em Portugal – o da Iconografia – e da importância que estas bases de dados assumem na actualidade, mesmo como instrumentos de novas metodologias de trabalho que estão a ser propostas e que gozam da ampliação significativa de horizontes e das ilações possíveis que o alargamento de corpus de estudo por esta via vem proporcionar. Assim, foi no contexto de uma sessão do Seminário Livre Inter-Universitário organizado no ano lectivo de 2008/2009 pelo Instituto de Estudos Medievais (FCSH), realizada na Universidade de Paris IV (Sorbonne), em Novembro de 2008, que mais uma vez pudemos, de resto numa das suas primeiras apresentações orais públicas, dar a conhecer o projecto de investigação Imago, os seus princípios definidores, métodos de trabalho e resultados finais, nomeadamente a um grupo de investigação que alimenta, no presente momento, uma base iconográfica semelhante (embora seguindo a vertente mais tradicional da catalogação centrada em livros ilumina-

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dos), concretamente no âmbito da investigação levada a cabo pelo grupo de Antropologia Histórica sobre o Ocidente Medieval (o GAHOM), que se integra na École des Hautes Études (EHESS, Sorbonne) e está associado ao Centre National de la Recherche Scientifi que (CNRS, Paris). À partilha de metodologias, dificuldades, léxicos e soluções que o debate com investigadores empenhados em tarefas idênticas sempre traz e que, numa segunda fase do projecto Imago, de que se aguarda aprovação pela FCT (Fundação para a Ciência e a Tecnologia), actuarão no enriquecimento da base de dados já construída, acresce sublinhar-se o facto de esta mesma apresentação ter proporcionado a integração da base de dados Imago (única do género em contexto português) na rede europeia de catalogações de índole iconográfi ca, em que os centros de investigação franceses continuam a ocupar um lugar pioneiro e orientador.

Joana Ramôa


Columbano Bordalo Pinheiro

António Silva Porto

José Júlio de Sousa Pinto

José Malhoa

Ângelo de Sousa

RETRATO DE JOVEM FUMANDO CACHIMBO (AUTO – RETRATO), N. DAT.

LUGAR DA PENHA, MARGEM DO TEJO, 1890-93 Óleo sobre tela, 114,5 x 72 cm

O HÓSPEDE INCONSOLÁVEL, 1884 Óleo sobre tela, 126 x 97 cm

VOLTA DA FEIRA (CHEGADA DO ZÉ PEREIRA À ROMARIA), 1905 Óleo sobre tela, 73,3 x 56,6 cm

Armanda Passos

SEM TÍTULO (DA SÉRIE CAVALOS), 1965 Tintas Astralith Premier sobre cartolina colada em platex, 100,7 x 70,9 cm

SEM TÍTULO, N.DAT. Óleo sobre tela, 129,9 x 96,4 cm

Óleo sobre tela, 34,4 x 25 cm

Amadeo de Souza – Cardoso

João Vieira

SEM TÍTULO (PAISAGEM), (C.1910) Óleo sobre tela, 50,3 x 61,3 cm

QUATRO ESTAÇÕES, 1989 Acrílico sobre papel, sobre platex 153,8 x 116,2 cm

José Escada

Dordio Gomes

José de Almada Negreiros

Maria Helena Vieira da Silva

Joaquim Rodrigo

Nikias Skapinakis

António Costa Pinheiro

SEM TÍTULO, 1970 Acrílico sobre papel colado em tela, 66 x 51 cm

CEIFEIROS EM DESCANSO, N.DAT Óleo sobre platex, 27 x 35 cm

FAMÍLIA, 1940 Gouache e aguarela sobre papel, 65,5 x 53,5cm

GAYA, 1971 Óleo sobre tela, 162,3 x 113,8 cm

VAU V, 1980 Vinílico sobre platex, 99,5 x 150,2 cm

PAISAGEM DE LISBOA, 1972 Óleo sobre tela, 100 x 81 cm

D. NUNO CONDESTÁVEL, 1966 Óleo sobre tela, 150,8 x 110,3 cm

João Hogan

Paula Rego

Júlio Resende

René Bertholo

Mário Cesariny

Júlio Pomar

Manuel Amado

ALTO DOS SETE MOINHOS, 1950 Óleo sobre tela, 97,3 x 130,5 cm

A PONTE (CÃO), 1972 Acrílico e colagem sobre tela, 38,3 x 46 cm

SARGACEIRO, 1971 Óleo sobre tela, 146,7 x 97 cm

UM CATALÃO EM MOSCOVO, 1991 Óleo sobre tela, 116 x 80,8 cm

SEM TÍTULO, 1973 Óleo sobre tela, 50,3 x 65,3 cm

TIGRE, 1980 Óleo sobre tela, 115,1 x 79,5 cm

PORTA DA ESTAÇÃO, 1986 Óleo sobre tela, 126 x 89,8 cm

Álvaro Lapa

Eduardo Luiz

António Dacosta

Manuel Cargaleiro

DA SÉRIE MORADAS NA MÃE-TERRA, 1973 Tinta acrílica e tinta de impressão sobre platex 61 x 68,2 cm

MORT DE REMBRANT, 1985 Óleo sobre tela, 114,2 x 162,5 cm

SEREIA, 1983 Óleo sobre tela, 89 x 116 cm

JANELAS E VARANDAS DE AZULEJOS, 1988 Óleo sobre tela, 111 x 60 cm

Carlos Botelho

Graça Morais

Menez

SEM TÍTULO (VISTA DE LISBOA), 1970 Óleo sobre tela, 54 x 73 cm

O ESPIRÍTO DO AMOR AUTÊNTICO, 1987 Óleo sobre tela, 100 x 81,4 cm

DUAS FIGURAS FEMININAS, 1988 Acrílico sobre tela, 125,8 x 144,2 cm

Pedro Chorão

Nadir Afonso

LEFT 7, 1992 Acrílico sobre tela, 96,8 x 162,1 cm

LEIPZIG, 1988 Óleo sobre tela, 86,8 x 121,2 cm

Eduardo Viana

António Charrua SEM TÍTULO, 1981 Óleo sobre madeira, 80,8 x 241 cm

CABEÇAS DE MULHER, (C.1914) Óleo sobre madeira, 31,5 x26,3 cm

Jorge Pinheiro

Jorge Martins

António Palolo

Luís Noronha da Costa

José Guimarães

Carlos Calvet

A VELHA, 1964 Óleo sobre tela, 121 x 111,7 cm

SEM TÍTULO, 1988-92 Óleo sobre tela, 88,8 x 150,5 cm

SEM TÍTULO, 1992 Acrílico sobre tela, 100,1 x 100,1 cm

SEM TÍTULO (DA SÉRIE MAGRITTE APÓS POLANSKI), 1969 Tinta celulósica sobre platex, 69,5 x 79,8 cm

SEM TÍTULO, 1986 Pasta de papel policromado colado sobre madeira, 198,8 x 99,3 cm

SEM TÍTULO, 1969 Acrílico sobre tela, 137,8 x 198,5 cm

Eduardo Nery ESPAÇO VIRTUAL, 1991 Spray acrílico sobre madeira, 75 x 92cm

Eduardo Batarda POR VOCAÇÃO, 1991 Acrílico sobre tela, 95,3 x 128,3 cm

A arte de partilhar No Millennium bcp gostamos de pensar que a colecção de arte que fizemos, ao longo da nossa história, tem mais sentido se for partilhada, proporcionando a sua fruição por pessoas que de outro modo não teriam oportunidade de a ela aceder. "Arte Partilhada Millennium bcp" foi a forma que encontrámos de o fazer, circulando pelo País uma selecção de cerca de quatro dezenas de quadros dos mais representativos autores portugueses da nossa colecção. Visite-nos, porque partilhar é também uma arte.



normas de redacção

regulations in the writing

Normas de redacção de artigos /recensões

Regulations in the writing of articles /critiques

01. objectivos

01. aims

A diversidade de autores, que colaboram com os seus trabalhos, na preparação desta publicação, exige o cumprimento de regras de normalização que têm como objectivo homogeneizar os conteúdos produzidos. Desta forma, torna-se premente o cumprimento destas normas aplicadas aos documentos produzidos, contribuindo para a qualidade da informação e documentação.

Due to the sheer diversity of authors that contribute with their articles to the magazine, we find that it is necessary to have rules and regulations to maintain a sort of consistency of the contents of each publication. Thus it is imperative that these regulations are followed in regards to the documents produced so as to contribute to the quality of the information and documentation.

02. publicação de artigos

02. publishing of articles

02.1 formatação aplicação : Microsoft Office Word tipo de letra : Times New Roman; tamanho 12 pt. numeração das páginas : Sequencial notas de rodapé: Numeração automática parágrafos: Alinhamento à esquerda com duplo espaçamento, não indentados.

02.1 format application: Microsoft Office Word font : Times New Roman; font size 12 pt. page numbering: Sequential footnotes: Automatic numbering paragraph: Left side alignment with double spacing, no indentation.

02.2 tamanho

02.2 size

Não deve exceder as 5000 palavras, ou cerca de 30 000 caracteres (com espaços).

Should not exceed 5000 words or about 30 000 characters (with spaces).

02.3 língua

02.3 language

Aceitam-se artigos em Português, Espanhol, Francês ou Inglês.

We accept articles in Portuguese, Spanish, French and English.

02.4 título

02.4 title

Claro e sintético em maiúsculas.

Clear and concise in capital letters.

02.5 subtítulo

02.5 subtitle

Opcional.

Optional.

02.6 resumo

02.6 abstract

Os resumos dos artigos não devem exceder o máximo de 1200 palavras, ou cerca de 7500 caracteres (com espaços), em português e, sempre que possível, em inglês.

Abstracts to the articles should not exceed 1 200 words, or around 7 500 characters (including spaces), in Portuguese and, if possible, in English.

02.7 palavras chave

02.7 keywords

Para cada artigo deverão ser indicadas até 5 palavras chave.

For each article a maximum of 5 keywords should be selected.

02.8 nota biográfica sobre o autor

02.8 small biography of the author(s)

• Assinatura a acompanhar o artigo • Afiliação Institucional • Contacto de email (opcional)

• A signature to go with the article • Institutional affiliation • Email contact (optional)

02.9 citações

02.9 quotes

Devem ser apresentadas entre aspas e acompanhadas por: (apelido do autor, data de edição da obra citada, nº da página).

Should be presented between quotation marks and accompanied by: (Author’s last name, date of edition of the quoted text, page number).

02.10 sistema abreviado autor-data

02.10 abbreviated system author-date

As referências no texto seguirão o sistema abreviado Chicago (autor data, página). Por exemplo (Grimal 1988, 65) ou (Hauschildt e Arbeiter 1993, 47). No caso de mais de dois autores, utiliza-se et al. (Laumann et al. 1994, 262). Artigos de imprensa, entrevistas e comunicações pessoais devem ser citados como notas finais, e não como referências bibliográficas abreviadas.

The references in the text will follow the Chicago abbreviated system (author date, page). For example (Grimal 1988, 65) or (Hauschildt e Arbeiter 1993,47). In case of two or more authors the use of et al is applicable. (Laumann et al. 1994, 262). News articles, interviews and personal communications must appear in footnotes, rather than in abbreviated bibliographical references.

02.11 bibliografia

02.11 bibliography

Toda a bibliografia segue as seguintes normas: exemplos (Monografias): • Silva, J.C.Vieira. 2003. O Fascínio do Fim. Lisboa: Livros Horizonte. Artigos de publicação em série. • Moreira, Rafael. 1983. A Acção Mecenática de Dom Miguel da Silva. O Mundo da Arte, Iª série: 111-123. Para esclarecer os casos não considerados nestes exemplos, os autores deverão consultar as normas de publicação no site: www.chicagomanualofstyle.org

All bibliography should abide by the following rules: examples (Monographs): • Silva, J.C.Vieira. 2003. O Fascínio do Fim. Lisboa: Livros Horizonte. Articles published in series. • Moreira, Rafael. 1983. A Acção Mecenática de Dom Miguel da Silva. O Mundo da Arte, Iª série: 111-123. In cases not considered by these examples, the authors should consult the rules of publication at the site: www.chicagomanualofstyle.org

02.12 ilustrações

02.12 images

• Fotografias, desenhos, quadros, gráficos, mapas, devem ser fornecidas em papel ou digitalizadas a 300 dpi’s, em formato jpg ou tif, com o máximo de 28x22 cm; • Cada imagem digital deverá ser gravada num ficheiro; • Todas as ilustrações não digitalizadas, deverão ser entregues em papel, numeradas sequencialmente, e acompanhadas da respectiva legenda; • No texto deverá ser mencionado o local exacto onde cada ilustração deve entrar, do seguinte modo: fig.1; fig.2; etc.; • Deverá ser entregue um ficheiro independente com a relação de todas as imagens, legendas, e respectivos ficheiros que contêm essas mesmas imagens. exemplo: Fig. 1 > Amadeo de Sousa Cardoso – Pintura, 1913 (CAM-FCG) > Foto001.jpg

• Photos, drawings, tables, graphs and maps should be give either in paper format or digitalised in 300 dpi’s, in jpg or tif format, with a maximum of 28x22 cm; • Each digital image should be saved in a different file; • All non-digitalised images should be handed in on paper, sequentially numbered and accompanied by an inscription; • The text should mention the exact location where the image is to be inserted in the following manner: fig.1; fig.2; etc.; • A distinct file should be handed in with the relations between all the images, the respective inscriptions and files that contain the images. exemple: Fig. 1 > Amadeo de Sousa Cardoso – Pintura, 1913 (CAM-FCG) > Foto001.jpg

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02.13 créditos das ilustrações

02.13 credit for the images

• No caso de os autores incluírem qualquer material que envolva a autorização de terceiros, é da responsabilidade destes obter a autorização escrita e assumir os seus eventuais encargos. No entanto, excepcionalmente, e a analisar caso a caso, o IHA pode intervir no pedido de autorização assumindo os custos. • Os créditos devem ser fornecidos para cada uma das ilustrações do seguinte modo: autor, data, copyright.

• If the authors include any material which involves the authorization of others, it is their responsibility to obtain a writing authorization and to take on the costs that it may imply. However, in certain situations to be analysed case-by-case, the IHA may intervene in the authorization by taking on the costs. • Credit should be given for each image by this order: author, date, copyright.

03. publicação de recensões

03.1 reviewed work

• Deverá ser identificada com: autor, data de edição, título, local de edição e editora. • A citação de outras obras para além da recenseada será feita somente no texto.

• Should be identified in the following way: Author, date of publication, title, place of publication and publisher. • Quotations from other works, besides the one reviewed, should be done in the text.

03.2 tamanho

03.2 size

As recensões não devem exceder as 1000 palavras (aprox. 6500 carac. com espaços).

All critiques should not exceed 1000 words (around 6 500 characters with spaces).

03.3 outras regras

03.3 other rules

As recensões deverão seguir as restantes normas dos artigos, designadamente: 02.1, 02.3, 02.7, 02.8.

The critiques should follow the aforementioned regulations, namely: 02.1, 02.3, 02.7, 02.8.

04. direitos de autor

04. author’s rights

No caso de os autores incluírem nos seus artigos qualquer material que envolva a autorização de terceiros, é da responsabilidade do próprio obter a respectiva autorização por escrito e assumir os eventuais encargos associados a essa autorização. No entanto, em casos excepcionais, e a analisar caso a caso, o IHA pode associar-se ao pedido de autorização com a assunção de encargos.

In case the authors include any material involving a third party, it is entirely his or her own responsibility to acquire its authorization in writing and to assume any costs. However, in exceptional situations to be analysed case-by-case, the Institute of History of Art may intervene in the authorization by taking on the costs.

03.1 obra recenseada

05. revisões de provas

05. proofreading

O autor receberá provas do seu artigo, de forma a garantir que a versão final a publicar coincida com a submetida a apreciação, não sendo possível alterações substantivas. A revisão final das provas é da responsabilidade do Conselho Editorial, que garante a reprodução fidedigna dos textos.

The author will receive proofs of his or her article to guarantee that the final draft to be published coincides with the article submitted, as substantial alterations are not permitted. The final proofreading is entirely the responsibility of the Publishing Committee, who will guarantee that the reproduction of the texts is faithful to the original.

06. envio dos trabalhos

06. delivery of articles

06.1 material em formato digital

06.1 material in digital format

Todo o material digital deverá ser enviado para: iha@fcsh.unl.pt

All digital material should be sent to the following email: iha@fcsh.unl.pt

06.2 material em formato não digital

06.2 material in non-digital format

Todo o material não digital deverá ser assinado, e enviado para: Instituto de História da Arte – Revista de História da Arte Faculdade de Ciências Sociais e Humanas Av. de Berna, 26 C · 1069-061 Lisboa · Portugal

All non-digital material should be signed and sent to: Instituto de História da Arte –Revista de História da Arte Faculdade de Ciências Sociais e Humanas Av. de Berna, 26 C · 1069-061 Lisboa · Portugal

07. selecção e publicação de artigos/recensões

07. selection and publication of articles/critiques

07.1 Todos os artigos/recensões propostos para publicação na Revista de História

07.1 All articles/critiques applied for publication in Revista de História da Arte

da Arte serão submetidos à apreciação do Conselho Editorial, cujo parecer fundamentará a decisão de publicação. Este poderá, caso entenda necessário, recorrer ao seu conselho de referees, solicitando parecer científico. Em qualquer dos casos, é obrigatoriamente preenchida a “Ficha de Avaliação” (ver Anexo 1).

will undergo an appreciation of the Publishing Committee, upon whose judgement the decision of publication will be based. If necessary, it may resort to its referees committee, which will provide a scientific analysis. In any case, an evaluation sheet (see Appendix 1) must always be filled out.

07.2 Na avaliação, o Conselho Editorial privilegia dos artigos propostos para

07.2 During evaluation the Publishing Committee will always favour articles for their scientific uniqueness.

publicação, a sua originalidade científica.

07.3 O Conselho Editorial e a Direcção da Revista de História da Arte reservam-se o direito de proceder à uniformização das referências bibliográficas, bibliografia e a alterações formais, consideradas indispensáveis, sempre que estas não alterem o sentido do texto.

07.4 O Conselho Editorial e a Direcção da Revista de História da Arte

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03. publishing critiques

07.3 The Publishing Committee and Board of the Revista de História da Arte are entitled to proceed with the uniformity of bibliographical references, bibliography and formal alterations, considered essential, as long as they do not change the meaning of the text.

reservam-se o direito de proceder à: • reprodução, qualquer que seja o suporte • colocação à disposição do público universitário ou outros • divulgação, nas suas várias modalidades: redes digitais, sites... • distribuição e venda de exemplares da obra

07.4 The Publishing Committee and the Board of the Revista de História da Arte are entitled to: • reproduce the work, regardless of format • place the work at the disposal of the academic community and others • disseminate the work, in various ways: digital networks, sites... • distribute and sell copies of the work

07.5 Os autores serão informados no prazo de 3 meses, qual a data da publicação.

07.5 Authors will be informed of the date of publication in the space of 3 months.

07.6 Após a publicação, cada autor receberá um exemplar da revista. Para os autores de artigos receberão ainda 30 separatas dos mesmos. •

07.6 After publication, each author will receive a copy of the magazine. Authors of articles will receive 30 addendums of their article. •

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anexo 1

appendix 1

Ficha de Avaliação das proposta de artigos a ser preenchida pelos membros do Conselho Editorial e/ou do Conselho de Referees internacional, em face das respectivas especialidades.

Evaluation sheet for any proposal of articles to be filled out by the members of the Publishing Committee and/or the International Referees Committee, in regards to their respective specialities.

título do artigo

title of article

recepção do original envio ao referee código de referee

reception of the original sent to referee referee code

01. O artigo cabe no âmbito de um número da revista Revista de História da Arte centrado nas questões metodológicas? Sim Não

01. Does the article fall under a number of the Revista de História da Arte, focusing on the methodological questions? Sim Não

02. O artigo parece-lhe: Publicável na forma actual Publicável com ligeiras modificações Publicável se for refeito Não publicável

02. Does the article seem: Publishable in its current form Publishable with some minor modifications Publishable if it is rewritten Not publishable

03. O artigo é: Demasiado longo (indicar onde deve ser encurtado) Demasiado curto (indicar onde deve ser desenvolvido) Apropriado

03. The article is: Too long (indicate where it can be shortened) Too short (indicate where it should be more elaborated) Appropriate

04. Apresentação do artigo: Estrutura Bibliografia

04. Article’s presentation Structure Bibliography

05. Conteúdo do artigo (utilizar uma folha anexa, inserindo sugestões ao(s) autor(es), recorrendo, se necessário, a alguns dos tópicos seguintes): • Tema, novidade, pertinência • Revisão do estado da questão • Teoria (domínio pelo(s) autor(es), confronto teórico, problematização, profundidade, etc.) • Metodologia (formulação do problema, delimitação do objecto, modelos, hipóteses, estratégias de investigação, procedimentos, definição de conceitos, tratamento de dados,desenvolvimento da análise, fundamentação das conclusões, etc.) • Dados empíricos (sustentação da análise, fontes, informação seleccionada) • Exposição (planos, equilíbrio, sequências, concisão) • Sugestões pontuais (feitas a lápis no texto original)

05. Article’s content (use a sheet as attachment and insert suggestions to the author(s), by using some of the following topics if necessary): • Theme, novelty, relevance • Review of the state of the theme • Theory (the author’s grasp of the subject, theoretical confrontation, questioning, depth, etc.) • Methodology (problem formulation, object delimitation, models, hypothesis, investigative strategies, procedures,

06. Comentários (não assinados)

definition of concepts, treatment of data, development of the analysis, validity of the conclusions, etc.) • Empirical data (analysis support, sources, selective information) • Exposition (plans, balance, sequences, conciseness) • Suggestions (written in pencil on the original text) 06. Remarks (not signed)

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Curso de Especialização Boas Práticas em Gestão Patrimonial Março a Maio de 2010 ORGANIZAÇÃO/INFORMAÇÕES

LOCAL

DATAS E HORÁRIO

Instituto de História da Arte

Centro de Informação Urbana de Lisboa

De 11 de Março a 27 de Maio

Av. de Berna, 26 C, 1069-061 Lisboa

(Picoas Plaza)

Quintas-feiras, entre as 14:30 e as 17:00

Tel: 21 790 83 00 (ext. 1540)

Rua Viriato 13E, núcleo 6, 1º

10 sessões de 2 horas e meia cada (total de 25 horas)

Email: cursodegestaopatrimonial@fcsh.unl.pt

1050-233 Lisboa

Visita de estudo ao Reino Unido de 7 a 11 de Abril

Parceiros

Foto: Nuno Pereira / SPIRA

http://cursodegestaopatrimonial.blogspot.com


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