Inspira-te, Património Criativo

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INSPIRA-TE, PATRIMÓNIO CRIATIVO “EDUCAÇÃO PATRIMONIAL, EMPREENDEDORISMO CULTURAL E TURISMO DE CONHECIMENTO”


Ficha técnica Título: Inspira-te, Património Criativo - Educação Patrimonial, Empreendedorismo Cultural e Turismo de Conhecimento Conceito e coordenação: Luísa Janeirinho e Margarida Mestre, Museu do Mundo/SPHAERA MUNDI Design e Capa: Lima Limão Fotografia: Born:África, Lima Limão, Tó Gomes Photography, Museu do Mundo

ISBN: 978-989-54015-7-4; Suporte: eletrónico Agosto de 2019


Este projeto é escrito a muitas mãos. A todos, sem exceção, o nosso muito obrigada! Um projeto com alunos, professores, artesãos, artesãs e comunidades da Ilha do Maio e da Ribeira Grande de Santiago.

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PATRIMÓNIO: NOSSA IDENTIDADE E NOSSA RIQUEZA

O Município do Maio acolhe com grande entusiasmo este projeto de preservação e valorização patrimonial. O Património tem sido ao longo de largos anos um importante ativo, relativamente ao qual temos procurado realçar o valioso contributo que pode dar ao processo de desenvolvimento local. São exemplos elucidativos dessa abordagem a publicação do Catálogo- Inventário do Património Cultural da Ilha do Maio, a boa colaboração dada na identificação das Sete Maravilhas Naturais da Ilha do Maio, a candidatura, em curso, do Maio a Reserva de Biosfera da UNESCO, a construção do Centro Interpretativo das Salinas do Porto Inglês, a definição das Áreas Protegidas, entre outras ações de grande relevo. É ponto assente que o Património constitui um importante instrumento de afirmação da identidade histórico-cultural dos povos e pode transformar-se numa valiosa fonte de riqueza, nas vertentes económica e turística. E numa altura em que Maio se prepara para ocupar um lugar de destaque no contexto do desenvolvimento do país, apostamos fortemente na preservação e valorização do património natural e cultural, numa lógica de trabalho em rede, desempenhando aqui os nossos parceiros um papel de transcendental importância, que nos cabe ressalvar e agradecer. E neste particular, destacamos este magnífico trabalho desenvolvido pela SPHAERA Mundo, sobretudo pelas Dras. Luísa Janeirinho e Margarida Mestre, sem deixarmos de enaltecer a grande colaboração da Fundação Maio Biodiversidade, do ilustre maiense Adalberto “Betú” Silva, dos nossos artesãos e demais agentes culturais, educativos e ambientais. A publicação deste Livro insere-se no âmbito do Projeto de Dinamização e Requalificação Turística da Ilha do Maio que é financiado pela União Europeia e conta com a parceria das Câmaras Municipais do Maio e de Loures, do Instituto Marquês de Valle Flor, da Sociedade de Desenvolvimento Turístico das Ilhas de Boa Vista e Maio e do Instituto Camões. Estamos convictos que este Livro terá uma grande utilidade na afirmação da nossa identidade cultural e paisagística e isso vai refletir positivamente no processo de desenvolvimento local que almejamos para o nosso Município. Bem-hajam!

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PRESERVAR O PATRIMÓNIO, UM DEVER SAGRADO

Entendo que o Presidente de uma Câmara Municipal como a de Ribeira Grande de Santiago (reconhecida pela UNESCO por ter no seu seio um Património da Humanidade tão importante como é Cidade Velha) tem o dever de apoiar todas as iniciativas que visem sensibilizar a juventude a identificar-se com o Património onde habita. Só promovendo a estreita relação das populações com os valores culturais e históricos à sua guarda se poderá corrigir a situação criada em Cidade Velha – as razões que fizeram a antiga importância do Berço da Nação cabo-verdiana são as mesmas que levaram as suas gentes a “desamá-lo” enquanto Património. Isto é: as populações sofreram na pele as nefastas consequências da histórica importância havida. Primeiro, o flagelo da escravatura, depois as devastações de piratas e corsários, o abandono para que os seus restos foram atirados, a ruralidade revivida, o atraso a que toda esta infausta “calamidade” condenou a urbe, não serão superados se não for alimentada a consciência da importância e grandeza histórica desta trágica sucessão de acontecimentos. Por isso, quando a Sphaera Mundi (Luísa Janeirinho) nos apresentou a proposta de um trabalho que passa agora pela edição deste pequeno livro educativo, de imediato e com o máximo carinho lhe dei total apoio. Por certo, e quanto sei, o trabalho proposto não culminará com a produção do que chega à estampa. Ele apenas “ameaça” ser uma das etapas de um projeto que começa a dar frutos. Portanto, é com entusiasmo que acolho cada um dos resultados que dele advêm. A ação patente na iniciativa de Sphaera Mundi, a que outras vontades têm aderido, tem efeitos positivos para a nova geração de Ribeira Grande de Santiago, para toda a população do seu município, para quem nos visita e connosco se irmana na mesma paixão, e tem efeitos positivos para a própria Cidade Velha, para o Património Material e Imaterial nela existente. Bem haja a Sphaera Mundi.

Manuel de Pina (Presidente da Câmara Municipal da Ribeira Grande de Santiago) 5


MENSAGEM DA COOPERAÇÃO PORTUGUESA EM CABO VERDE “INSPIRA-TE, PATRIMÓNIO CRIATIVO”

Foi com enorme satisfação que a Cooperação Portuguesa em Cabo Verde, via Programa Fundo de Pequenos Projetos, se associou à Sphaera Mundi para, em parceria com a ONG Born Africa, concretizar uma iniciativa de formação no quadro do projeto “Inspira-te, Património Criativo - Educação patrimonial e empreendedorismo no feminino”. Uma ação que foi em larga escala potenciada pelo substantivo, e reconhecido, trabalho que a Associação em apreço promove na Cidade Velha, desde 2012, incutindo nas crianças e jovens a importância da valorização do seu património cultural. Com efeito, e no nosso entendimento, o projeto conseguiu, de uma forma muito pertinente, criativa e pedagógica, maximizar as iniciativas desenvolvidas com a comunidade escolar, interligando as respetivas ações com o fomento do empreendedorismo cultural das mulheres. Neste contexto, e especificamente no que concerne a atividade financiada pela Cooperação Portuguesa, os desenhos, elaborados pelo(a)s aluno(a)s, intrinsecamente associados ao património material e imaterial da Cidade Velha, serviram de âncora para a constituição de moldes, tendo como objectivo (e resultado final) a confeção de boneco(a)s de pano. Testemunhámos o extraordinário trabalho coletivo desenvolvido pelas mãos de um conjunto de formandas, mães e outras mulheres da comunidade local, sob a cuidada, e muito prendada, orientação e mestria da Formadora portuguesa, a artesã Julieta Franco, atestando igualmente o inédito, e criativo, resultado que superou em muito as expetativas. Foram cerca de 38 personagens de pano que nasceram daquela ação de formação - bens artesanais únicos que foram vendidos na sua totalidade e cujo valor reverteu na íntegra para as formandas. Uma iniciativa muito bem-sucedida, de substantivo e imediato impacto económico e social para as mulheres artesãs, não apenas pelo efetivo retorno económico mas pela capacitação e valorização que foi possível suscitar do “saber ser, criar e fazer”, associado ao seu valor identitário cultural. Aos fazedores do projeto votos de muita inspiração para mais atividades e iniciativas que possam contribuir para o reforço, consolidação e sustentabilidade de tudo o que fora alcançado com este, tão criativo e singular, projeto. Bem-hajam! Praia, 2 deJulho de 2018 6


NOTA DE ABERTURA A Comissão Nacional de Cabo Verde para a UNESCO (CNU), através da Rede de Escolas Associadas da UNESCO que visa realizar projetos-faróis, à escala regional e internacional, sobre temas tais como: a preservação do património mundial, o desenvolvimento sustentável, o tráfico negreiro transatlântico e o diálogo intercultural, abraçou, desde 2012, o projeto da SPHAERA MUNDI que é uma associação que tem como missão Educar para uma Cultura de Paz e desenvolve as suas atividades em rigoroso respeito pela liberdade política e religiosa, num compromisso com o consignado nas Declarações Universais dos Direitos Humanos, nas Declarações e Convenções da UNESCO, relativamente à Preservação do Património Material, Imaterial e Natural e à Educação para o Desenvolvimento Sustentável, promovendo e integrando os objetivos do Desenvolvimento do Milénio e da Educação para o sec. XXI. Esta Associação estabelece uma Educação holística, intercultural e patrimonial, assente nas orientações da Unesco para um desenvolvimento pessoal e social sustentado e gerador de riqueza para as comunidades bem como uma Educação para um desenvolvimento sustentável baseada na compreensão e contextualização das práticas, na integração das narrativas culturais locais e na transferência de tecnologia e know-how que possibilite a autonomia responsável dos grupos/ comunidades, indo assim ao encontro do ideário da CNU. Desta forma ambas as organizações, estabeleceram uma parceria tendo presente o ideário da CNU para que fosse exequível o projeto da SPHAERA MUNDI, ou seja e frisamos, fomentar uma educação para uma cultura de paz, com base na educação/património; promover e dinamizar o património como valor identitário cultural e de desenvolvimento sustentável; promover e dinamizar o património material e imaterial através do turismo nacional e internacional. A concertação entre estas passou pela participação de Escolas Associadas no projeto da Associação, já que um dos projetos Farol da Unesco para as Escolas Associadas da UNESCO, é o Kit Educativo “O Património Cultural Subaquático e também o projeto importante da iniciativa da CNU de Cabo Verde: Projeto “Promoção e Desenvolvimento de Leitura”. Foi este “Djunta mon” que, com outras entidades, fez nascer, entre outros trabalhos, o 1º Caderno Criativo “Inspira-te, património criativo” – A Nossa Cidade Velha – Um lugar imaginado. A CNU promoveu o lançamento de 1000 exemplares para alunos do ensino básico de todo o país. O lançamento teve lugar em dezembro de 2016, com a Sra. DNE representada pelo Sr. Delegado da Praia na Escola Secundária Manuel Lopes e estiveram presentes mais de 250 alunos e de entre eles alunos das Escolas Associadas do ensino básico. O segundo eixo do projeto “empreendedorismo cultural” da SPHAERA MUNDI (tendo como parceira a born:áfrica) não envolveu diretamente a Direção Nacional da Educação, mas da parte da CNU teve o apoio institucional (não organizativo). No entanto, a ideia da formação complementar para a produção de personagens do património cultural da Cidade Velha tem na sua génese, ações de sensibilização para professores e artesãos, apoiadas pela CNU e, posteriormente, nos desenhos dos Cadernos Criativos (estes sim, que tiveram o envolvimento do ME / DNE) que serviram de inspiração para os trabalhos de costura artesanal das mulheres da Cidade Velha que foram formadas. O sucesso esteve além das expectativas! COMISSÃO NACIONAL DE CABO VERDE PARA A UNESCO

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A PROMOÇÃO DO PATRIMÓNIO AO SERVIÇO DO DESENVOLVIMENTO

O papel da valorização do património cultural na preservação das identidades nacionais e locais é amplamente reconhecido, sendo, nas palavras da UNESCO, “fonte insubstituível de vida e inspiração”. Nas geografias de ação do IMVF, enquanto Organização Não Governamental para o Desenvolvimento, verifica-se por vezes uma tendência para que questões de subsistência se sobreponham a outras, consideradas menos urgentes, como é muitas vezes o caso das questões de preservação e valorização do património. Defendemos que os processos de desenvolvimento resultam da interconexão entre diferentes áreas e que a promoção de um desenvolvimento coerente e verdadeiramente sustentável deve ter em conta esta premissa. O conhecimento histórico, a par da interpretação e compreensão de tradições, é um fator essencial para uma educação de qualidade que, na sua abertura ao mundo, não deve descurar a valorização do património local. A promoção do património agrícola e alimentar (sementes, práticas ancestrais, hábitos alimentares) é essencial para responder aos desafios alimentares prementes. Também a busca por um mundo mais sustentável assenta, em parte, no reaproveitamento e adaptação de modos de vida e de mecanismos de utilização e gestão de recursos naturais que são parte integrante do património civilizacional e comunitário de muitas populações. No quadro do Projeto de Dinamização e Requalificação Turística, a reabilitação do habitat e as ações de capacitação em métodos de construção, atividades essenciais para o empoderamento do tecido social, fizeram-se a par da utilização de materiais e técnicas constitutivos do património local. Ainda no contexto deste projeto, ficou evidente que o património cultural e natural local representa um recurso que, valorizado através de atividades turísticas e de artesanato, cria oportunidades de geração de rendimento, essenciais ao desenvolvimento socioeconómico da população da ilha. A promoção de um modelo de turismo de base comunitária, capaz de beneficiar as comunidades de forma digna e coerente, passa, sem sombra de dúvida, pela preservação e valorização do património. Esta lógica tem vindo a ser reconhecida e promovida pelo IMVF e parceiros locais, particularmente a Câmara Municipal do Maio, ao longo de vários projetos na Ilha do Maio desde o início da década de 2000. Esta publicação, resultante de uma parceria com a Sphaera Mundi, vem aprofundar este trabalho, destacando algumas das atividades desenvolvidas no quadro do Projeto de Dinamização e Requalificação Turística na Ilha do Maio.

Instituto Marquês de Valle Flôr

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O PATRIMÓNIO A IDENTIDADE E A FORMAÇÃO Manter a identidade de cada um, do grupo a que pertencemos e da sociedade em que vivemos é uma tarefa difícil. Primeiro, porque muitas das línguas que hoje em dia se falam estão ausentes do sistema de ensino, dos meios de comunicação social e não são usadas no mercado. A consequência mais direta desta situação é que, segundo dados das Nações Unidas, das cerca de 7.000 línguas, dialectos e falares locais, cerca de metade desaparecerá até ao fim do século. Ora, sendo a língua um veículo das identidades dos povos e de muitos países, com o seu desaparecimento, esfumam-se também da nossa memória as tradições, a literatura e a maior parte das formas culturais dessas sociedades e civilizações. Este processo tem-se vindo a agravar com o crescimento urbano a que se assiste e que, para o futuro, mostra valores impressionantes. Assim, por exemplo, para os finais dos anos 30 deste século calcula-se que cerca de 80% da população mundial esteja a viver em centros urbanos. Entretanto, se hoje existem pelo menos 26 megacidades, ou seja, cidades com mais de 10 milhões de habitantes, calcula-se que, em 2040 esse número terá atingido as 60 e, só para a Ásia, onde o processo de urbanização tem assumido formas mais radicais, em 2030, serão 22 as megacidades. Por outro lado, basta olhar para os dados demográficos de algumas cidades europeias para percebermos a dimensão dos problemas relativos ao património, material ou imaterial. De facto, nas nossas cidades habitam cada vez mais populações que têm pouca ligação com as estruturas construídas nessas mesmas cidades e, ao contrário, estão ligadas a práticas sociais que os novos habitantes gostavam de ver reconhecidas. Mas as dificuldades não acabam aqui. Na cidade dissolvem-se facilmente as especificidades e as características particulares dos recém-chegados e nem sempre é possível reconstruir novas identidades. Este fenómeno introduz de uma forma mais clara o problema das novas escolhas que os indivíduos e os grupos fazem do seu património e, com ele, as questões relativas à chamada patrimonialização e mesmo às formas híbridas que o património tem vindo a assumir. Não se pretende aqui organizar uma lista de problemas que o património defronta, mas tão só apontar as dimensões das questões a cujos desafios, aliás, não é fácil responder. Como podemos pretender que os dirigentes pensem numa resposta e na organização de políticas culturais e patrimoniais se nem a academia tem conseguido encontrar soluções e modelos. Uma ideia, todavia, parece segura. A educação patrimonial será sempre um desses pilares que fará a cidade, mega ou mais pequena, ser capaz de dar resposta aos problemas da integração e da inovação no espaço urbano. É esse lado que trata a presente publicação; mostrar como a resposta à dissolução das identidades começa na escola; que é aqui que começam as políticas de proteção e salvaguarda; que é nos bancos da escola que se ganham as primeiras “divisas” de cidadania. Os projetos podem ser mais simples ou complexos, mas quando são bem feitos, são sempre de saudar. É o caso deste pequeno livro. Faço-o não é só como um académico que assina este texto, mas como um cidadão empenhado no património e que reconhece a importância que a educação patrimonial deve ter nos dias de hoje. Filipe Themudo Barata Cátedra UNESCO da Universidade de Évora, 15 de Abril de 2018 9


INSPIRA-TE, PATRIMÓNIO CRIATIVO! EDUCAÇÃO PATRIMONIAL, EMPREENDEDORISMO CULTURAL E TURISMO DE CONHECIMENTO

Esta publicação, que tem como objetivo valorizar e divulgar a riqueza do saber fazer das comunidades e apresenta o resultado do projeto Inspira-te, património criativo –Educação Patrimonial, Empreendedorismo Cultural e Turismo de Conhecimento, desenvolvido na Cidade Velha, Ribeira Grande de Santiago e na Ilha do Maio (ambas em Cabo Verde), contou com momentos conjuntos de intercâmbio cultural e de partilha do saber fazer, entre as comunidades. O Instituto Marquês de Valle Flôr considerou pertinente a organização do presente documento – pela abordagem interdisciplinar e pela centralidade dada aos atores locais no processo de educação patrimonial, preservação e revitalização do património cultural, ambiental e turístico – tendo apoiado a sua concretização no âmbito do Projeto de Dinamização e Requalificação Turística na Ilha do Maio (DCI-NSA/2015/369-423), financiado pela União Europeia. A Cidade Velha - Património da Humanidade – e a Ilha do Maio – com as suas áreas protegidas – contêm uma riqueza patrimonial que a todos cabe usufruir, mas, também, proteger e dinamizar de forma sustentável, numa lógica de intervenção de cidadania, de todos e para todos. Assim, o Município da Ribeira Grande de Santiago e o Municipio do Maio acolheram desde o primeiro momento o projeto, cuja missão é Educar para uma Cultura de Paz, pela valorização do património, assente nos seguintes eixos:

i)

educação holística, intercultural e patrimonial, assente nas orientações da Unesco para um desenvolvimento pessoal e social sustentado e gerador de riqueza para as comunidades;

ii)

educação para um desenvolvimento sustentável assente na compreensão e contextualização das práticas, na integração das narrativas culturais locais e na transferência de tecnologia e saber-fazer, que possibilite a autonomia responsável dos grupos/comunidades;

iii)

transculturalidade – enquanto prática social assente numa ética da alteridade, concretizada em “cidadesmundo”, habitadas pelo universalismo da diferença, das culturas em viagem e das identidades em construção;

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Para além do trabalho colaborativo com as câmaras municipais locais (onde se destaca a participação e coordenação no terreno da Elizabeth Cardoso, da Julieta Domo e do Natalino Semedo, entre outros), o projeto contou, entre de 2011 a 2019, com apoios especificos para a concretização de algumas atividades: i) Comissão Nacional de Cabo Verde para a UNESCO, no apoio institucional a todo o projeto e para a formação de professores e edição do caderno criativo da Cidade Velha; ii) Serviço da Cooperação Portuguesa em Cabo Verde - Programa Fundo de Pequenos Projetos, financiado pelo Camões - Instituto da Cooperação e da Língua, I.P, para a realização de formação em educação patrimonial e empreendedorismo cultural na Cidade Velha; iv) do Instituto Marquês de Valle Flôr no âmbito do Projeto de Dinamização e Requalificação Turística na Ilha do Maio (DCI-NSA/2015/369-423), para a realização de ações de educação patrimonial, formação em empreendedorismo cultural e organização do caderno criativo sobre a Ilha do Maio; v) articulação e apoio dos Ministério da Educação e da Cultura e Indústrias Criativas…

…Mas contou principalmente com os alunos, professores e gestores, os artesãos e artesãs e as comunidades, no geral, que participaram e/ou acolheram este projeto, assim como com a colaboração e/ou participação de uma série de agentes locais (associações, empresas e pessoas) que colaboraram de perto na concretização do projeto. Destes destacamos a Ana Marta Clemente e a Julieta Franco (no trabalho de formação com os artesãos da Cidade Velha) ,a que se juntou a Margarida Martinez, o Helder Cardoso (na inspiração dos desenhos dos dois cadernos criativos), o Tó Gomes (no registo fotográfico), a Ronise de Pina (na colaboração de atividades) e a Lima Limão (na beleza visual com que composeram este registo final)… …entre tantos outros que ficaram na memória do nosso coração.

O trabalho realizado com alunos, professores, artesãos, técnicos, entre outros, destaca um modelo que tem como ponto de partida o valor do “território cultural” e das “comunidades patrimoniais” que ampliam o poder educativo do seu património material, imaterial e natural, que em conjunto lhe confere uma singularidade e particularidade única. A imagens iniciais revelam detalhes das atividades, pondo em evidência a forma como as comunidades se “constróem” e dão resposta aos “vários ambientes”, originando uma riqueza ímpar. 11


As imagens revelam, também, um processo criativo, empreendedor e belo, que a todos contagia e inspira. A riqueza comunitária destes locais, considerados Cidade Mundo, por estarem impregnados de narrativas multidisciplinares, hibrídas e intercontinentais, mobilizou à partilha de experiências interdisciplinares (música, poesia, artigos de opinião e científicos, relatos, fotografias…) e de várias origens geográficas – Angola, Brasil, Cabo Verde, Espanha, Guiné Bissau, Moçambique, México, Portugal - que se apresentam na 2ª parte com a abertura do tema Barco de papel (do menino das ilhas), da cantora e compositora Téte Alhinho. Os temas e conceitos de educação e património surgem de Cabo Verde, de Espanha, do Brasil, de Portugal e do México: A abrir, um elogio à força das Mulheres de Cabo Verde, aqui simbolizadas nas da Ilha do Maio, num poema de Jorge Carlos Fonseca. A seguir o artigo do Elter Carlos, Cidade Velha: um Concerto de Mundos, a que se junta o título de Adalberto Silva (Betú), A Ilha do Maio: Um futuro aqui tão perto, que cruza com o seu poema “Nha Berço”.

Desafia a reflexão sobre educação e diversidade cultural os temas de Agustin Escolano Benito, La Dimensión Emocional de la Formación, de Dores Correia, Por uma cultura de cidade educadora e de Madalena Mendes, Mundos em diálogo, o desafio da diversidade Cultural. Educar para o Património: uma tarefa difícil, mas possível é o texto pessoal de Isabel Marques Nogueira a que se junta: Um pequeno grande livrinho, de Nuno Rebocho. Mário Chagas abre um novo debate com o título, Memória, Museu e Educação a favor da libertação, acompanhado por La identidad, un vehículo hacia el futuro, de Alejandro de Alejandro Martínez Osuna. José Gregório Viegas Brás e Maria Neves Gonçalves refletem sobre A corporeidade como Património Cultural da Humanidade. A sintetizar o tema, Filipa Neto desafia-nos à reflexão: O Valor do Património Cultural para as Sociedades Contemporâneas: A Convenção de Faro. O empreendedorismo cultural chega-nos com temas de Cabo Verde, do Brasil, da Guiné Bissau e de Portugal: Empreender para dar vida ao sonho é o tema de Anne Marie Kourouma e Emanuel Gonçalves Pereira. Apresentam-se, então, relatos de experiências em educação, património e empreendedorismo que chegam pela mão de 12


Marcele Pereira, Nazaré Ribeirinha: decolonização de um território de memórias; de Vânia Brayner, Programa de Formação do Jovem Artesão do Museu do Homem do Nordeste; de Mariana Tandler Ferreira Economia solidária através da criação artística e empreendedorismo. Um olhar a partir da identidade territorial é o tema de Maria Adelaide Silva e de Miguel Feio (COSMUS – Community School Museums, Valorização do património cultural europeu). A sintetizar este eixo surge o tema de Ana Marta Clemente, Revitalização das artes e ofícios tradicionais. Sobre o papel da produção artesanal - Razões para a revitalização a que se junta Alcides J. D. Lopes em O Empoderamento das Comunidades: PCI em foco. Sobre o tema de turismo chega a experiência de Cabo Verde, da Ilha de Moçambique e de Portugal: O contexto do Turismo em Cabo Verde é o mote de Georgina Benrós de Mello, sendo que o tema de Filinto Elísio e Márcia Souto apresenta o Turismo e o esplendor da Cidade Velha. Cláudio Zunguene traz-nos o relato da experiência de Turismo Cultural e desenvolvimento sustentável na Ilha de Moçambique. Em jeito de síntese, Joaquim Lé de Matos conduz a ligação entre o saber fazer e o turismo em: Empreendedorismo Social e Turismo.

Teté Alhinho embala na melodia do seu Barco di papel, dedicado ao “Menino das Ilhas”! Delmar Maia Gonçalves,

Goretti Pina e Lopito Feijóo ajudam a “respirar” com a poesia moçambicana, santomense e angolana… A terminar, Educação patrimonial e o desafio das Cidades Mundo, de Luisa Janeirinho e Margarida Mestre leva-nos ao desafio do início de cada trabalho, onde reside a emoção e também o sonho de promover a diversidade cultural como património da Humanidade. …Amílcar Cabral orientou não só no sonho, mas, também, no valor da educação e da cultura enquanto ferramentas imprescindíveis nos processos de respeito, de independência e de plena cidadania – e é disso que este projeto trata! ...e é esta nossa estória que vos queremos contar... Luisa Janeirinho, Margarida Mestre e Francisco Moreira 13


QUANDO OLHAMOS PARA TRÁS UM PROJETO É UM SONHO! Estória, estória... Fortuna do céu, Amén. Era uma vez uma ilha, em Cabo Verde, com uma pequena cidade que continha a história do Mundo. A Cidade Velha!!!

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Pessoas e culturas em viagem que chegaram, se cruzaram e voltaram a partir levando um pouco de tudo e todos, mas deixando um “pequeno laboratório”, de tão grande valor, que Charles Darwin, ao visitá-lo, “descobriu” a Teoria da Origem das Espécies.

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…E era uma vez uma ilha pequena, a Ilha do Maio, mas com uma enorme riqueza: o ouro branco

O corsário Francis Drake dizia que o sal da ilha do Maio (o ouro branco) era tanto, tanto, que dava para abastecer o “mundo inteiro”.

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Estes locais são “Cidades Mundo”, cidades de encontro de várias culturas, em que cada uma deixou expressa a sua voz.

Cidades Mundo é um conceito cunhado pelo filósofo Italiano António Valleriani: Cidades assentes na transculturalidade, numa ética da alteridade, habitadas pelo universalismo da diferença, das culturas em viagem e das identidades em construção.

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Na Cidade Velha (na Ilha de Santiago) e na Ilha do Maio estiveram pessoas dos 4 cantos do Mundo.

A sua riqueza incalculável fez com que corsários célebres e piratas viessem em busca dos seus tesouros...

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Cuidado, os piratas estĂŁo a chegar!!!

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Onde está o tesouro??

Tesouro é o nosso património cultural e natural. Mas também são as camadas de histórias “escondidas” nos livros, na tradição e na imaginação. Francisco Moreira ajuda a distinguir cada uma delas pois sabemos que a memória é importante mas também é fluida e que as memórias contadas também vão sendo nossas, mesmo as imaginadas.

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CONSTRUIU-SE O GRANDE FORTE DE S. FILIPE PARA DEFENDER A RUA BANANA, O PELOURINHO E A RIQUEZA DO PATRIMÓNIO DA CIDADE VELHA.

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CONSTRUIU-SE O FORTE DE S. JOSÉ PARA DEFENDER A RIQUEZA DO PATRIMÓNIO NATURAL E CULTURAL DA ILHA DO MAIO.

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Muitas são as histórias que ligam a Ilha do Maio e a Ilha de Santiago…e a Cidade Velha! A História fala de muitas delas… …e as comunidades constroem muitas outras!

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CONHECER O PATRIMÓNIO DE FORMA LÚDICA E CRIATIVA

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O compromisso é Educar para uma Cultura de Paz, tomando como orientação as Declarações e Convenções da UNESCO, relativamente à Preservação do Património Material, Imaterial e Natural e à Educação para o Desenvolvimento Sustentável, promovendo e integrando os objetivos do Desenvolvimento do Milénio e da Educação para o sec. XXI.

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A JULIETA E A ANA MARTA AJUDAM, TAMBÉM, A CRIAR UM NOVO PATRIMÓNIO PARA A CIDADE VELHA, COM A IVONE, A AUSENDA, A MARIA E TODOS OS ARTESÃOS QUE CRIAM UM CONJUNTO DE PERSONAGENS DA CIDADE VELHA – LINDO!!!

CONHECER O PATRIMÓNIO DE FORMA LÚDICA E CRIATIVA

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A Co mis s ã o N a ci o na l de C a bo V er de p a ra a UN ES CO é pa r cei ra do M us eu do Mu n d o / Sp h a e ra M undi nes t e pr i m ei ro c a d e r no da co l eçã o In s p ira -t e , pa t r i m ó ni o cr i a t i vo p o is e le in t egra - s e em do i s p ro g ra mas des t a Co m i s s ã o d e s t in a d o s à s Es co l a s A s s o ci a da s da U N ES CO d e C a bo V er de, o de “D e s e nvo lv ime n to de H á bi to s de Lei tura e d a Es c r it a” e o do “ Co nheci m ento do Pa t r imó n io Ma t er i a l e I m a t er i a l de C a bo V er de” .

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In p ira -t e , o p a t r i m ó ni o é cr i a t i vo !

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Assim surge uma coleção de cadernos para escrever e pintar do projeto “Museu do Mundo/SPHAERA MUNDI. “

Ao primeiro caderno dedicado à Cidade Velha, Património Mundial da UNESCO, seguiu-se um outro dedicado à Ilha do Maio.

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O 2ยบ caderno criativo inspira com o patrimรณnio natural e cultural da ilha do Maio

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CADA DESENHO PROMOVE A ESCRITA, A PESQUISA, O CONHECIMENTO DIRETO, O ENCONTRO COM AS PESSOAS E INSPIRA A UMA EXPERIÊNCIA COM O PATRIMÓNIO DE FORMA AFETIVA, LÚDICA E CRIATIVA.

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Os contos também são património? ...são fortuna do céu, amém!

Capa de DVD Produzida pela Lima Limão 35


E EU TAMBÉM TENHO UMA ESTÓRIA

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Ñha Pomba é património?!

O batuque, a cimboa e os contos fazem parte do património cultural que é preciso preservar! 37


E a nossa música também é património! A Morna é Património Imaterial da Humanidade (UNESCO 2019)

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VIAJAMOS ENTRE A CIDADE VELHA E A ILHA DO MAIO… PARTILHAMOS O NOSSO SABER-FAZER A NOSSA CULTURA CONSTRUIMOS JUNTOS!

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O nosso saber fazer tradicional ĂŠ uma forma de contar as nossas histĂłrias

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Entrelaรงamos histรณrias.

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Ao resgatar histรณrias antigas estamos a costurar as novas.

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O NOSSO PATRIMÓNIO E AS MATÉRIAS-PRIMAS LOCAIS INSPIRAM-NOS

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As nossas praias, as nossas salinas... Temos um magnĂ­fico patrimĂłnio natural!

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Até a nossa passarinha é património!

E os peixes também! 50


o nosso mar ĂŠ um rico patrimĂłnio natural

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Educação Patrimonial e empreendedorismo cultural são objetivos deste projeto.

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O património é riqueza!

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Educação patrimonial, holística e intercultural, assente nas orientações da UNESCO para um desenvolvimento pessoal e social sustentado e gerador de riqueza para as comunidades; Hoje temos uma rede de pessoas, parceiros, que com sentimentos e ações construiram, em cada dia, esta realidade: um trabalho reflexivo e participativo envolvendo as populações, as empresas, as escolas, os artesãos, os técnicos, as instituições...

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PEQUENO PROJETO?? JÁ VOÁMOS PARA TANTOS LUGARES!!

Este projeto já foi a Portugal... e a França, e a Espanha, e a S. Tomé e Princípe.

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“O Património somos Nós!” diz a D. Rosa Linda.

NINGUÉM FOI ESQUECIDO... E OS QUE NÃO FORAM CONTADOS... GUARDAMOS NA MEMÓRIA DO CORAÇÃO! 56


Índice 59

BARCO DI PAPEL, in Menino das Ilhas Tété Alhinho

60 MULHER DO MAIO Jorge Carlos Fonseca 61 CIDADE VELHA: UM CONCERTO DE MUNDOS Elter Carlos 65

ILHA DO MAIO: O FUTURO AQUI TÃO PERTO! Nha berço - Adalberto Silva

67 LA DIMENSIÓN EMOCIONAL DE LA FORMACIÓN Agustin Escolano Benito 71 POR UMA CULTURA DE CIDADE EDUCADORA Dores Correia 78 NÓS Goretti Pina 79

MUNDOS EM DIÁLOGO, OS DESAFIOS DA DIVERSIDADE CULTURAL Madalena Mendes

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EDUCAR PARA O PATRIMÓNIO: UMA TAREFA DIFÍCIL MAS POSSÍVEL Isabel Nogueira

87 UM PEQUENO GRANDE LIVRINHO Nuno Rebocho 88

10ª SAPIÊNCIA Lopito Feijóo

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MEMÓRIA, MUSEU E EDUCAÇÃO A FAVOR DA LIBERTAÇÃO Mário Chagas

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LA IDENTIDAD, UN VEHÍCULO HACIA EL FUTURO Alejandro Martiínez Osuna

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A CORPOREIDADE COMO PATRIMÓNIO CULTURAL DA HUMANIDADE José Gregório Viegas Brás e Maria Neves Gonçalves

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O VALOR DO PATRIMÓNIO CULTURAL PARA AS SOCIEDADES CONTEMPORÂNEAS: A CONVENÇÃO DE FARO Filipa Neto

105

EMPREENDER PARA DAR VIDA AO SONHO Anne Marie Kourouma e Emanuel Gonçalves Pereira

112

NAZARÉ RIBEIRINHA: DECOLONIZAÇÃO DE UM TERRITÓRIO DE MEMÓRIAS Marcele Pereira

118

PROGRAMA DE FORMAÇÃO DO JOVEM ARTESÃO DO MUSEU DO HOMEM DO NORDESTE Vânia Brayner

124 ECONOMIA SOLIDÁRIA ATRAVÉS DA CRIAÇÃO ARTÍSTICA E EMPREENDEDORISMO UM OLHAR A PARTIR DA IDENTIDADE TERRITORIAL Mariana Tandler Ferreira 128 COSMUS – COMMUNITY SCHOOL MUSEUMS VALORIZAÇÃO DO PATRIMÓNIO CULTURAL EUROPEU Maria Adelaide Silva e de Miguel Feio 133 REVITALIZAÇÃO DAS ARTES E OFÍCIOS TRADICIONAIS SOBRE O PAPEL DA PRODUÇÃO ARTESANAL - RAZÕES PARA A REVITALIZAÇÃO Ana Marta Clemente 139 A CIDADE VELHA E O TURISMO Georgina Benrós de Mello 147

O EMPODERAMENTO DAS COMUNIDADES: PCI EM FOCO Alcides J. D. Lopes

152 TURISMO E O ESPLENDOR DA CIDADE VELHA Filinto Elísio e Márcia Souto 156 VENHO DE UM PAÍS Delmar Maia Gonçalves 157

TURISMO CULTURAL E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL NA ILHA DE MOÇAMBIQUE Cláudio Zunguene

164 EMPREENDEDORISMO SOCIAL E TURISMO Joaquim Lé de Matos 166 58

A EDUCAÇÃO PATRIMONIAL E AS CIDADES MUNDO Luísa Janeirinho e Margarida Mestre


Si bô cré bá conche mundo Dam bu mon nu bá ta bai Na nôs barco di papel Nu ta bai sunha um futuro Nu ta bai conquista strelas Nu ta bai ti tchiga lua Na nos barco di Papel Faze un mundo di ternura Pa tudo cau qui no bai Nu tá leva nos mensagem E na som di nôs batuco Nu tá braça mundo intero.

Barco di papel, in Menino das Ilhas Letra e música de Tété Alhinho Cantora e compositora caboverdiana 59


MULHER DO MAIO O abraço das mulheres do Maio é moreno, é negro, é mulato, é, por vezes, da cor pujante da espuma das ondas do mar... Cheio, forte, vem com os olhos de sol e maresia, o peito solto, o suave feitiço do batuque nas ancas, os sonhos, o fogo e os lábios adocicados, na esperança do pão em palavras de oiro Traz consigo, o abraço das mulheres do Maio, a vastidão azul e a salmoura do arquipélago todo. Parece que, no abraço, querem inundar o mundo de mistérios e partilhar a alma mas sem segredos inúteis ou amadurecidos versos. As mulheres de todas as cores da ilha do Maio, as mãos castanhas e verdes carregadas de ternura, poema ardente transido rumorejo de ondas, cintura de búzios e dança silabada de melaço, Abraçam como se receio tivessem de, num instante, perder, no MOMENTO certo do milénio, o ritmado e quente perfume da eternidade. Jorge Carlos Fonseca (poeta e Presidente da República de Cabo Verde), 60

in: O Albergue Espanhol, pag. 115, Edição Rosa de Porcelana, 2017


Elter Manuel Carlos É docente/investigador da Universidade de Cabo Verde. É Coordenador do MIL Cabo Verde e colaborador oficial da Revista Nova Águia. É Licenciado em Filosofia e mestre em Filosofia da Educação pela FLUP e doutorando em Filosofia pela Universidade de Santiago de Compostela. Publicou os livros: 1.Carlos, Elter (2015). Filosofia, Arte e Literatura – uma abordagem sobre a formação poética, literária e estética do povo cabo-verdiano, MIL&DG Edições: Lisboa. 2. Carlos, Elter (2018). Filosofia da Educação em Paulo Freire: Alteridade, Dialogicidade, Utopia e Crítica [No prelo].

CIDADE VELHA: UM CONCERTO DE MUNDOS Pertencemos à história muito antes de ela nos pertencer Gadamer, Verdade e Método O texto que ora se dá a pensar nasce no contexto do aprazível convite formulado pela Sphaera Mundi ao MIL (Movimento Internacional Lusófono) em Cabo Verde, como forma de fazer parte do ambiente festivo do lançamento do seu primeiro caderno lúdico, afectivo e criativo, corolário do trabalho que tem vindo a empreender com pessoas de Cidade Velha, no quadro de uma educação patrimonial. Desta forma, e no sentido de celebrar tal empreendimento criativo, nomeadamente no âmbito da educação patrimonial, empreendedorismo cultural e turismo de conhecimento, sentimo-nos desafiados a honrar a ação social, ética e estética da Sphaera Mundi mediante uma abertura que, em verdade, nada mais significa que colocar-se a serviço dos questionamentos que a Cidade Velha clama enquanto lugar genesíaco da cabo-verdianidade. Assim, a pergunta pelo sentido estético, artístico, histórico e patrimonial no contexto da Cidade Velha explica-se por um movimento de reconstrução dialógica entre narração, antecipação e projeção de gerações, outrossim, de valorização dos direitos das gerações vindouras e de uma ética do futuro. Neste sentido, a Cidade Velha, génese da antropologia e nação cabo-verdianas e, contemporaneamente, património cultural da UNESCO, proporciona a qualquer espectador atento – em que a Sphaera Mundi tem já um lugar merecido –, uma hermenêutica da cabo-verdianidade e dos horizontes civilizacionais dos povos que participaram de sua formação social. E é neste sentido, entre muitos outros possíveis, que se enquadram, a nosso ver, as ações da Sphaera Mundi na sua qualidade de organização preocupada com uma educação holística e, por isso mesmo, com as dinâmicas formativas desse (e nesse) lugar de memória e identidade, na persistente tentativa de introduzir as vozes das gentes desta Cidade do Mais Antigo Nome, como é apelidada pelo poeta José Luís Tavares, nas vozes plurais dos seus próprios antecedentes históricos. Neste sentido, não haveria melhor forma de encarar o desafio lançado do que fazer uma breve leitura da Cidade Velha – «a primeira cidade a ser construída pelos portugueses nos trópicos» (Pires, 2007: 15), – a partir de um olhar estético, traduzido 61


pelo seguinte título: Cidade Velha – um Concerto de mundos. À primeira vista poderá parecer estranho o título. Porém, ao dizer que se pretende traçar algumas linhas sobre a Cidade Velha a partir da arte, nomeadamente, a partir da experiência poética, coreográfica e musical, mas movidos sempre por um sentido histórico, parece que a coisa torna-se mais clara. E a palavra concerto surge no sentido de lançar um repto: instalar uma atitude estético-comportamental capaz de criar nos vários sujeitos um peculiar gosto de sentir a Cidade Velha como se de uma orquestra tratasse e, neste cenário envolvente, os músicos que a constitui fossem as suas gentes, gentes em processo formativo com vista a, desde a sua própria interioridade até a exteriorização na ação concreta, entregassem à valorização do seu património material, imaterial e natural. Desse património que os acolhe e que, nesta óptica, seja capaz de os devolver ao seu sentido originário. Cidade Velha manifesta-se, hermenêuticamente falando, como um cenário intertextual aberto à interpretações múltiplas e que se cruzam desde a dinâmica da singularidade e da pluralidade, da identidade e da diferença, da alteridade e da universalidade, em suma, das transformações sofridas ao longo de séculos e que, um olhar a partir da estética e da arte, revela-se aqui como complemento de outras tantas abordagens fundamentais que têm sido dedicadas a este lugar onde se deu o início da nossa aventura existencial. Sabemo-lo bem que as artes tanto antecipam como projectam o humano na temporalidade, não fossem os poetas os arautos da identidade dos povos e das nações. Retomando a ideia anterior, concebemos com Pires (2007) que, sendo a primeira Cidade construída pelos portugueses nos trópicos, Cidade Velha revela, de certo modo, a lógica de transformação sofrida pelo espaço da antiga cidade da Ribeira Grande que, depois de ter sido a capital do arquipélago, foi abandonada e passou a designar-se Cidade Velha, sendo assim, várias Cidades derivadas de diferentes concepções urbanísticas que ao longo do tempo subsistiam. Ora, é fazendo jus a tais interpretações plurais que se considere oportuno deixar-se falar a voz da experiência de criação de renomados poetas, destacando-se a exemplaridade de José Luís Tavares, no seu livro, Cidade do mais Antigo Nome, um livro que procura, entre outras dimensões, celebrar a Cidade Velha como lugar de começo da nossa narrativa existencial como povo histórico. Ouçamo-lo: (…) Agora que as rotas do mundo Já não passam à tua porta, perdura na tarde íngreme de agosto, ferida pelo mais donairoso azul, os seus nomes resgatados à poeira imóvel que os meus salitrados olhos prende a essa cantada página de desterro e começo (Tavares, 2009: 19). 62


Os versos de Tavares convocam-nos a festejar essa Cidade do mais Antigo Nome que, na sua antiguidade e no seu pendor matricial, deu luz e vida à nação cabo-verdiana, sendo o berço da paideia crioula em devir permanente. E ainda sobre essa velhinha cidade do futuro e do devir, canta divinalmente o poeta: Uma cidade é qualquer coisa assim: não o raso sol golpeando a pele, mas essa tensa mola que impele a fazer da dor seta, trampolim. (…) fala porém a linguagem da amizade, que importam as cicatrizes da idade? (Tavares, 2009: 23). Essa imagética da mola que impele a fazer da dor seta e trampolim, ao orientar o sujeito para a linguagem da amizade e não se importando com as cicatrizes da idade, convencendo-o a importar-se mais, como enaltece o poeta de A Cabeça Calva de Deus (Fortes, 2001: 80), com a terra que cicatriza e não com a terra das cicatrizes, revela-se aqui como autêntica lição desafiante e transgressora, isto porque dá lugar à dimensão do devir, a uma dimensão que ultrapassa a mera lógica presente/ passado/ futuro. Relacionando a linguagem poética com a coreográfica, nomeadamente com a peça Cidade Velha, percebe-se que, ao contar a história da Cidade Velha com o corpo dançante – desse corpo que outrora foi escravizado pelas cicatrizes da idade, mas que hoje é livre –, dá-se um interessante momento do que concebemos como concerto estético de mundos. E tal ideia de concerto está em jogo com a própria corporeidade do existir crioulo que, no hibridismo da dança contemporânea, deixa-se fundir e enredar-se com outras formas de expressão artística, nomeadamente, música, poesia e canto: verdadeiro concerto, harmonia e combinação, onde narrativa, ética e estética se entretecem numa lógica de reescrita do sentido da própria existência histórica de um corpo que, contemporaneamente, transformou-se em corpo poético-existencial e vivido.

Figura 1 (imagem do vídeo sobre Cidade Velha) 1 1 Cf. Vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=qS-p-CClBuQ Consulado entre 01 a 22 de Setembro de 2017. Agradecemos o Grupo de Dança Raiz di Polon pela permissão na da utilização das imagens nesta e em outras circunstâncias de investigação. 63


Ao congregar poesia, música, voz, canto e dança, a peça Cidade Velha2, com a duração de 45 minutos, foi concebida por Mano Preto. Também a coreografia, dramaturgia e direcção artística estiveram a cargo de Mano Preto. Já no tocante a banda sonora, esta esteve sob a responsabilidade do músico Mário Lúcio Sousa, conjuntamente com a participação dos seis dançarinos da companhia Raiz di Polon. Outras vozes da nossa tradição musical e da nossa cultura oral, nomeadamente, Nha Nacia Gomi, Manuel de Novas e Codé di Dona, participaram deste concerto estético de mundos onde o belo ganha um fundo poético, sendo que se inspirou, como assevera Mano Preto, no livro de poesia Cidade do mais Antigo Nome, do poeta José Luís Tavares3. Desta feita, o jogo estético entre os corpos que, entre si vão-se se expressando e comunicando, deixando-se conduzir pelo sentido de uma identidade narrativa e cultural em construção, encena o que entendemos ser uma configuração estética da aprendizagem do mundo crioulo cabo-verdiano. E, por excelência, percebe-se o movimento de passagem de um corpo-memória (dolorosa devido a um passado escravocrata) para um corpo-pessoa (um corpo com valores, eticidade e liberdade). E o mais interessante é que, toda essa narrativa, ao ser contada pelo corpo mediante uma linha de sentido (jamais um somatório de movimentos), leva-nos a compreender a dureza de uma existência que procura uma explicação para as suas interrogações. Assim, torna-se mais interessante quando compreendemos que a peça tem a duração de 45 minutos e provoca uma transpiração total e intensa nos corpos em movimento. Trata-se, na óptica de Mano Preto, de uma dança dura como a própria travessia dos escravos pelo atlântico em direção à Cidade Velha. Ora, em jeito de (in)conclusão, visto que num numero limitado de caracteres não se pode alongar mais o texto, gostaríamos de conceber a Cidade Velha como um jogo histórico-cultural e, outrossim, estético, onde, na lógica gadameriana, jogar consiste em ser jogado na existência. Nesse caso concreto, numa existência situadamente universal, onde a partir da linguagem poética, corporal, musical e plástica tende-se a deixar falar a voz da identidade e tradição, numa lógica de reelaboração de sentido. Assim, retomar as interrogações que dessa cidade velhinha merecem ser retomadas desde o seu sentido originário, significa, utilizando as expressões de Pereira (2006), permanecer em origem e em pensamento. Persistir em cultura. Significa ainda, e a nosso ver, colocar a pergunta ontológica sobre: quem somos na temporalidade? Mas, mais importante ainda é conduzir pedagogicamente as nossas crianças, jovens, adultos, numa lógica de educação holística e ao longo da vida, com vista a tornarem-se naquilo que são: torna-te naquilo que és! Tome o testemunho! Ora, as ações da Sphaera Mundi, uma vez que penetram no jogo do ser histórico, da identidade e interculturalidade, poderão ser lidas neste sentido, visto que têm contribuído para iluminar vários indivíduos no despertar vital da exploração daquilo que genuinamente são: a Cidade Velha! Da Cidade Velha! Essa cidade-mãe velhinha cujas suas rusgas são sinais de beleza e vitalidade, não obstante as situações-limite de outrora. Desta Cidade nossa matriz. 2 Esta peça pode ser acompanhada no YouTube, onde se encontra uma reportagem do programa de TV Nha Terra Nha Cretcheu. Além de resumir momentos da peça, traz uma entrevista muito sugestiva com Mano Preto. A respeito conferir o vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=qS-p-CClBuQ Consulado entre 01 a 22 de Setembro de 2017. 3 Ora, a peça Cidade Velha, foi apresentada três vezes no Brasil. Estas informações relativamente ao enquadramento da peça foram extraídas de uma pequena entrevista realizada via mail com Mano Preto, no dia 20-09-2017, por volt das 16H00, na Cidade da Praia. Igualmente, serviu de inspiração algumas observações por nós levadas a cabo no âmbito do Projecto Artistas e Criadores na Universidade (curso de Filosofia da FCSHA-Universidade de Cabo Verde), que nasceu no contexto das aulas de estética, envolvendo alunos de Filosofia e de outros cursos. 64


Adalberto Silva (Betú) Nasceu a 7 de Julho de 1961, na ilha do Maio, Cabo Verde. É licenciado em Economia (FEP, Portugal), com mestrado em Finanças (IUP, Espanha). Foi administrador de várias empresas e instituições, com destaque para: Banco de Cabo Verde, Banco Comercial do Atlântico e Transportes Aéreos de Cabo Verde. Exerceu a função de Deputado à Assembleia Nacional, eleito pelos círculos do Maio e de Santiago Sul, e a de Presidente da Assembleia Municipal do Maio. Autor de livros e de vários artigos cuja temática principal é a Ilha do Maio e compositor de música cabo-verdiana, co-autor do Hino Nacional «Cântico da Liberdade», tendo sido agraciado com vários galardões e homenagens, no país e na diáspora. Atualmente exerce a função de conselheiro do Primeiro-Ministro para economia e finanças.

ILHA DO MAIO: O FUTURO AQUI TÃO PERTO!1

Pelos dados geomorfológicos, sabe-se que a Ilha do Maio é a mais antiga do Atlântico macaronésio e, obviamente, a primeira do arquipélago cabo-verdiano. Essa primogenitura nunca lhe proporcionou nenhum estatuto especial, mas a idade geológica será provavelmente a justificativa para as características particulares da ilha que, por sua vez, se reflectem na sua história e na idiossincrasia da sua gente, e certamente irão determinar o seu desenvolvimento no futuro próximo. Por causa dos seus recursos minerais, particularmente o sal, a ilha foi, num passado relativamente longínquo, uma das mais importantes de Cabo Verde em termos económicos, a ponto de nela se erigir um forte de defesa, privilégio até então apenas de Santiago. Pela mesma razão, já num tempo pretérito menos distante, pôde relacionar-se directamente com o mundo, exportando para vários pontos do globo e albergando representações consulares de vários países. Para o presente e o futuro próximo, contam as cerca de quatro dezenas de praias que circundam a ilha numa espécie de grinalda doirada, a sua diversidade paisagística e a riqueza da fauna e flora marinhas, destacando-se entre as várias condições naturais que irão certamente marcar um percurso de desenvolvimento ancorado no turismo. Para isso, e não menos importante, deve-se contar com as legítimas aspirações e a reconhecida hospitalidade da sua gente.

1

Texto para o programa da RTP África “Nha Terra Nha Cretcheu” 15.06.2016 65


NHA BERÇO Di mar, escadaria Di ar, tapeçaria Stendide na mansidão Na ressaca di um tempe ingrate Qui fazel rainha resignada

Palmanhãzinha sol é linde Ta subi mansinho na céu Ta baté na brancura di sé tchon Ta brilha na sé salina Spedjo d’alma cristalina Nha berço Porto Inglês

Luar primorose Razão di nhas sentimento Ora quel ta dormi Qui um manto amigo di céu cobril Pa manha mancheno um dia novo.

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Agustin Escolano Benito Es profesor catedrático de la Universidad de Valladolid y fundador-director del Centro Internacional de la Cultura Escolar (CEINCE) con sede en Berlanga de Duero, España. Anteriormente fue catedrático de la Universidad de Salamanca, donde fundó la Revista Interuniversitaria de Historia de la Educación. Ha sido presidente de la Sociedad Española de Historia de la Educación y miembro de comité ejecutivo de la ISCHE. Es doctor honoris causa por la Universidad de Lisboa y ha sido profesor visitante de las universidades italianas de Macerata, Ferrara y Bolonia

LA DIMENSIÓN EMOCIONAL DE LA FORMACIÓN Solo recuerdo la emoción de las cosas, y se me olvida todo lo demás. Muchas son las lagunas de mi memoria.

Antonio Machado, Los Complementarios

A este motivo poético invoca el académico español Antonio Muñoz Molina cuando presenta la reedición facsímil

de un manual escolar muy singular editado por la República en 1937: la Cartilla Escolar Antifascista, texto que publicó el Ministerio de Instrucción Pública, en plena guerra, para alfabetizar a los soldados que combatían en el campo de batalla y suscitar en ellos, a través de la lectura, emociones heroicas1. Quienes se iniciaron con la anterior cartilla en la cultura letrada, y sobrevivieron a la guerra, tuvieron en este pequeño libro, en su materialidad textual e iconográfica, un recuerdo simbólico y real con el que recordar emociones bien registradas por su memoria. Algo parecido, aunque sin connotaciones trágicas, sucedió a José Jiménez Lozano, Premio Nacional Miguel de Cervantes, cuando encontró en la biblioteca del CEINCE la cartilla Rayas en la que, por los mismos años, había dado los primeros pasos en la lectura2. 1 2

Antonio Muñoz Molina, “La emoción de las cosas”, presentación inserta en la edición facsímil de la Cartilla Escolar Antifascista, Madrid, Viamonte, 1997 (original de 1937). Ver: “Nos visitaron: José Jiménez Lozano”, Papeles del CEINCE, 13, 2013, p. 4. 67


Todos recordamos la escuela como un espacio metafórico del mundo de la vida en el que operan anclajes afectivos que transforman la experiencia vivida en fuente esencial de nuestra propia identidad narrativa. El tiempo deviene tiempo humano –escribió el filósofo Paul Ricoeur-- en la medida en que se articula y expresa bajo la forma de relato, sustentado en buena parte en la educación sentimental3. Y los seres humanos dan sentido al mundo –se reafirmaba Jerome Bruner-contando historias, o sea, usando el modo narrativo de construir la realidad, una práctica discursiva que es en parte una rebelión frente al racionalismo dominante en las modelos comunitarios al uso, porque en ella afloraban siempre las emociones que se asocian a la experiencia4. La inmersión escolar es un hecho que afecta al mundo emocional. Desde la salida del nicho ecológico de la familia, y a lo largo de todo el proceso de la segunda socialización que ofrece la escuela, el niño –que se metamorfosea en ella convirtiéndose en alumno— se ve sometido al juego que sobre él ejercen los diversos climas y dispositivos de control afectivo que pone en acción el biopoder pedagógico que comportan los mecanismos de la formación: la ergonomía de los nuevos espacios y enseres muebles; los biorritmos de los cronos institucionales que se superponen a los domésticos; los códigos de la urbanidad, la disciplina y el ritualismo que rigen la gobernanza en la educación; las sutilezas del pudor, de la seducción y del humor que acompañan a los lenguajes educativos; las estructuras textuales de los manuales y las reglas de la escritura; los mensajes de la iconografía que inunda todos los ámbitos de la institución… Todos los elementos que definen el régimen escolar comportan, cada uno por separado y como conjunto, una semántica que ejerce sobre toda la infancia una educación sentimental bien definida y de influencia duradera. Este trasfondo cargado de afectividad no solo acompaña a los elementos cognitivos de la formación; potencia o neutraliza asimismo otros mecanismos complejos. Con ello, las vivencias emocionales contribuyen a conformar la subjetividad humana, lo que se manifiesta cuando aflora en el narratorio de las biografías cualquier estímulo que activa la memoria. Ello es así porque la cultura de la escuela es un conjunto holístico de cogniciones y emociones en interacción. Al sonar una canción aprendida en la infancia se activa una emoción antigua que está integrada en el palimpsesto de la memoria, nuestro sustrato antropológico. Lo mismo sucede al encontrarnos con la cartilla en la que comenzamos a leer o el cuaderno en el que dejamos registro gráfico de nuestras primeras huellas escribanas. Y por supuesto, algo dejaron en nuestra sociabilidad afectiva los pares de edad con los que cohabitamos durante años en las aulas y en los patios de recreación o los enseñantes que nos educaron, apercibieron, premiaron o castigaron. Nadie olvida desde luego un buen maestro, ni tampoco a un dómine disciplinante. La historia de la escuela no puede ignorar la dimensión emocional de la formación humana. El pasado formativo no 68


es desde luego el resultado de ningún logos discursivo, riguroso tal vez en sus supuestos y métodos pero siempre externo al mundo vivido. Tampoco es el efecto inducido por un proyecto emancipatorio, en parte programático y en parte mitologizado. La cultura escolar que interesa al historiador es la que se gesta en las prácticas empíricas que acontecen en contextos reales y que son puestas en acción por sujetos que operan, a menudo de modo sinérgico, con cogniciones y emociones. De ello habla en nuestro tiempo la nueva neurociencia, según veremos más adelante5. Las prácticas educativas, que se han generalizado al hacerse universal la escuela, han construido una nueva subjetividad y una nueva cultura, dando origen además a una renovada antropología y a nuevas formas de sociabilidad, que incluyen también el mundo de las emociones. Antonio Valleriani, fundador del Círculo Hermenéutico de Teramo, en Italia, al hablar de la “hermenéutica de la infancia”, recurre al ludus y al teatro para indagar en las simbolizaciones que se expresan en estas prácticas escénicas las claves explicativas del juego interactivo entre lo cognitivo y lo emocional6. En efecto, son los gestos, las máscaras y los ritos los sintetizadores del habitus que combina el conocimiento y la afectividad en los procesos de formación. El gesto es expresión del rostro, un rictus emotivo que ya observó Darwin, incluso en los animales. La máscara es la cara visible de la personalidad, un interfaz que muestra y oculta signos emocionales al tiempo. El rito es la ceremonia que pauta las reglas sociales que rigen en la convivencia escolar, controlando los sacrificios que ha de asumir la espontaneidad infantil para acomodarse a las exigencias de la vida en comunidad. Todas estas conductas tiñen la emotividad de los sujetos, tanto en su ejecución como en el relato de su recuerdo. En la actualidad, no solo es la psicología la que ha postulado la existencia de una inteligencia emocional7. La politología ha introducido recientemente el concepto de psicodemocracia para tratar de explicar los nuevos comportamientos ciudadanos en cuyas decisiones intervienen no solo las razones de la lógica y el interés sino también los móviles del prejuicio y de las emociones. El ensayo de Gabriele Giacomini, intitulado Psicodemocrazia, alude a las evidencias históricas del peso de la irracionalidad en el ascenso social de los fascismos y populismos, algo que los historiadores hemos documentado suficientemente, para luego adentrarse en la interpretación de muchos comportamientos sociopolíticos de nuestro tiempo, en los que la fascinación de lo irracional, el narcisismo de los liderazgos y las retóricas de la seducción condicionan la praxis y el discurso de lo público. Ello explica en parte que el Oxford Dictionary haya incluido en sus dos últimas ediciones los términos emoji y post-truth. El primero alude al pictograma que expresa al tiempo emociones conforme a criterios que pueden variar culturalmente, incluidas las bipolares como la tristeza y la alegría, un hecho de fusión que se manifiesta hoy, como se manifestaba en otras épocas en culturas arcaicas. La post-verdad se refiere al peso que lo emocional ha adquirido 5 6 7

Antonio Damasio, Y el cerebro creó al hombre, Barcelona, Destino, 2010, p. 176 ss. Antonio Valleriani (ed.), Il gioco, el volto e la maschera. Per un´ermeneutica dell´infanzia, Teramo, Andromeda, 2001. Daniel Goleman, Inteligencia emocional, Barcelona, Kairós, 1996. 69


hoy en la conceptualización de la realidad y en el peso de la irracionalidad sobre lo objetivo en cuestiones relevantes que afectan a la sociedad posmoderna y a la convivencia en democracia 8. En un plano más pragmático, la moderna economía viene subrayando el interés de la neurociencia por conocer el impacto de las emociones, así como de los sentimientos de identificación y empatía, en determinadas decisiones relativas al consumo de bienes y hasta en los resultados finales de las empresas9. En la filosofía de la cultura, George Steiner ha llamado la atención acerca del peligro que la educación mate los sueños de la infancia –primero mitos, después hechos, proclamó hace un siglo Ortega y Gasset-- y aboque a la reaparición del idiotes aristotélico, el sujeto no-ciudadano, un individuo sin rumbo y sin sentido, entregado a las derivas posmodernas, cargadas todas ellas de notorios componentes de irracionalidad10. Todas las disciplinas humanas, como más delante se aludirá, acusan hoy el influjo del affective turn y revisan sus respectivas epistemes y sus programas de investigación. Esta monografía sugiere modos de revisión de la historiografía educativa, un campo académico hasta ahora demasiado teñido de idealismo y de ilusiones pseudoliberadoras, y poco atento a las saludables razones de la práctica a las que invitaba el sociólogo Pierre Bourdieu, móviles que no excluyen los componentes simbólicos de las emociones y las pasiones que han operado siempre en el mundo de lo factual11. En estas perspectivas que introduce la historia de las emociones residen ciertas claves que ayudarán a entender algunas de las distorsiones semánticas que han deformado, eludido o silenciado los analistas del pasado de la formación. Acercar la historia educativa a estos abordajes es también una operación intelectual que introducirá un humanismo más culto y profundo en la comprensión del pasado y del presente de nuestra formación, y que acercará además nuestra disciplina al diálogo con otros saberes, no solo humanísticos sino incluso del ámbito de las ciencias biológicas, una perspectiva que en otro tiempo pudo parecer una deriva inoportuna, pero que hoy se percibe como un horizonte fecundo en la empresa de conocer más globalmente la condición humana y el hecho de la educación.

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Gabriele Giacomini, Psicodemocrazia. Quanto l´irracionalità condiziona el discurso público, Milano, Mimesis, 2016. Richard Barrett, A new psychology of human well-being, London, Barrett Values Centre, 2015. Ver: George Steiner, Lecciones de los maestros, Madrid, Siruela, 2005. Pierre Bourdieu, El sentido práctico, Buenos Aires, Siglo XXI, 2007, pp. 148-149.


Maria das Dores Correia Investiga processos de construção de Cidades educadoras em Portugal.É doutoranda na àrea da Filosofia da Educação na Universidade de Évora. Completou licenciatura e mestrado em Sociologia na mesma Universidade. Desempenha, há mais de 30 anos, funções técnicas nas áreas da Comunicação, da Cultura e da Educação nas autarquias de Évora e de Lagoa, Algarve.

Por uma cultura de cidade educadora

Cidade Educadora, um nome com um discurso por cultivar Giorgio Agamben,(1) filósofo italiano contemporâneo, escreveu sobre uma descoberta antiga, que atribuiu a Antístenes, segundo a qual “a linguagem pode perfeitamente nomear aquilo de que não pode falar”. Ou seja, segundo Agamben, a filosofia antiga distinguia cuidadosamente o plano do nome (onoma), do plano do discurso, (logos). Acrescentava que “das substâncias simples e primeiras não pode haver logos, mas apenas nome”. A Cidade Educadora, apesar de ter surgido em Barcelona no inicio dos anos 90 do sec. XX, e estar por isso próxima dos 30 anos de caminho por entre cidades de todo o mundo, parece continuar mais próxima do nome do que do logos. Apesar de muitos autores, oriundos de várias disciplinas e perspetivas filosóficas e científicas, terem produzido, ao longo destes anos, textos, argumentos e reflexões especializadas, a Cidade Educadora ainda surge, pelo menos nas quase oitenta cidades portuguesas que se chamam a si próprias Cidades Educadoras, como um nome. Ainda indizível, portanto. Indizível, é segundo Agabem, aquilo que não está atestado na linguagem, mas apenas pode ser nomeado. Enquanto o dizível é aquilo que se pode apresentar num discurso definitório, ainda que eventualmente não tenha nome próprio. Quase tão só como um nome, a Cidade Educadora tem vindo, contudo, paulatinamente, a abrir um espaço de reflexão, sem transportar um discurso definidor, nomeadamente em cidades portuguesas, europeias, sul americanas, asiáticas, entre outras.

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Cidade educadora, com intencionalidade Uma das notas diferenciadoras das cidades educadoras, relativamente a todas as cidades que são educativas, é a sua intencionalidade educadora. Trata-se “de uma intencionalidade educadora para além da educação formal” (2) segundo a expressão do preâmbulo da Carta das Cidades Educadoras, o documento comum a cerca de 500 cidades do mundo que se associam em torno do objetivo de se tornarem mais educadoras. Tal intencionalidade decorre de uma necessidade identificada na cidade e pela cidade: a de reconhecer, reconfigurar, e construir a sua vocação educadora. Esta necessidade, que a cidade reconhece, surge associada ao desejo de valorar um modo de habitar conjunto, ou seja de habitar com o outro, com o que é diferente. É nesse modo de habitar que se torna cada vez mais relevante para os humanos da cidade, a cada momento do seu percurso, ganhar capacitação para lidar com a diferença e com a complexidade que são características da urbe contemporânea. Lidar, é aqui descrito como o modo de quem “anda na lida”, se esforça de forma continuada. Considera-se uma competência a adquirir ou a treinar no agir quotidiano da Cidade Educadora, reforçando-se, por essa via. Lidar é entendido como correr ao lado, conviver com a diferença e com o outro. É essa competência de percecionar, interpretar, comunicar com o outro, que se escusa de pelejar, ou de desvalorizar, seja o outro, seja a sua diferença, uma das áreas a desenvolver na Cidade Educadora. Da intencionalidade à experiência prática No tecer dessa intencionalidade prática criam-se nós ou constrangimentos, cuja observação persistente pode ser geradora de conjugações promissoras para uma outra entretecedura de fios de sentidos, a ensaiar incessantemente. Ou seja, ao processo de construção da Cidade Educadora, chegam continuamente diferentes representações de cada interveniente sobre si próprio, sobre o outro, e sobre a comunidade que habitam. Para que essa construção da Cidade Educadora seja consequente, deve contar-se com um complexo polígono de realidades, cujos ângulos e lados são de natureza e origem diversas. Observar analiticamente cada um deles, bem como as relações que se estabelecem entre si, poderá sugerir outras perspetivas e novas configurações nesse polígono desafiante.

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Família, Escola e Cidade, uma tríade educadora correlacionada Uma das primeiras solicitações da construção da Cidade Educadora é uma mais ampla análise e compreensão da correlação entre os três espaços educadores, pilares estruturantes da educação contemporânea: a família, a escola e a cidade. Transferir continuamente responsabilidades entre estas três instituições educadoras, sem clareza ou consensos sobre as possibilidades de cada uma para a construção conjunta, tem vindo a revelar-se, ora desmotivante para os atores envolvidos, ora potenciador de conflitualidade onde se procura cooperação. António Nóvoa, pensando no futuro, recomenda: “À escola o que é da escola, e à sociedade o que é da sociedade”. (3) Propomos que nesse universo a que chamamos “sociedade”, consideremos com particular atenção as dimensões da família e da cidade, ao lado da escola. As três dimensões são fontes potenciadoras de vastas capacidades e recursos, a combinar em contextos integrados, e integradores. É, por outro lado, largo o consenso – evidenciado aos níveis do discurso académico, técnico-profissional, político e legislativo - sobre a necessidade de estabelecer relações de cooperação e de intimidade reforçadas, seja nas ações mais ambiciosas, seja nos quotidianos educadores da família, da escola, e da comunidade. Esta surge como a tríade capaz de conduzir os humanos contemporâneos a um objetivo apontado, pelas várias áreas das ciências sociais e humanas, como uma necessidade prioritária: melhorar a educação das pessoas. Contudo, aos níveis do quotidiano experienciado, verificam-se enormes dificuldades na articulação destas três partes do processo educador. Submetidas a altos níveis de expetativa, de exigência e de responsabilização, no contexto da contemporaneidade, as famílias, as escolas e as cidades, tendem a refugir-se nos seus códigos próprios, exclusivos do outro ou da outra parte. Parecem tentadas em insistir na procura da sua sobrevivência em contextos estilhaçados, reagindo à ameaça de desagregação ou de desconstrução continuada, com respostas imediatas de autodefesa, minimizando as condições favoráveis ao desenvolvimento da relação com o outro, seja a família, a escola ou a cidade. Cada uma destas três dimensões educadoras – família, escola e cidade - reconhece-se, a si própria e à outra, por uma linguagem e um programa próprios. A família tem vindo, ao longo dos séculos conhecidos, a ser reconhecida e valorizada por parte dos diversos sistemas que compreendem os humanos, nomeadamente pelas ciências, artes e humanidades. A filósofa da educação, brasileira, Vera Candau, é um dos muitos autores que coloca a família, na início do sistema reprodutor de cultura, definindo cultura 73


como “um conjunto complexo que inclui o conhecimento, as crenças, a arte, a moral, a lei, os costumes e todos os outros hábitos e aptidões adquiridos pelo homem, antes como membro de um conjunto restrito de pessoas, denominado família, e, posteriormente, como membro da sociedade mais ampla.” (4) Por seu lado, a “cultura de escola” ou de cultura escolar” vem assumindo importância crescente nos nossos tempos e espaços contemporâneos. O filósofo e historiador espanhol Agustín Escolano, que estudou a cultura escolar do seu país durante o seculo XX, entende por “cultura escolar ou cultura da escola, um conjunto de normas, teorias e práticas que codificam as formas de regular os sistemas, linguagens e ações nas instituições educativas”. (5) Contudo, não é ainda reconhecida uma “cultura de Cidade Educadora”. Em sintonia com as ideias de cultura, ou de cultura escolar acima referenciadas, uma cultura de cidade educadora poderá ser entendida como um conjunto de normas, teorias e práticas que codificam as formas de regular os sistemas, as linguagens e as ações nas instituições educadoras que integram os territórios urbanos onde se projetam, desejam e assumem as Cidades Educadoras do mundo. Cidades educadoras são cidades-mundo. Como escreve Luísa Janeirinho, doutorada em Educação e Património as cidadesmundo são “lugares de concentração policêntrica da universalidade, onde a diferença tem a sua origem na mestiçagem, o espaço de inter-relação de culturas, raças, indivíduos e ideias. A mestiçagem é uma categoria mental, espiritual, indiferente à cor da pele, à raça, que gera um mundo dialógico de liberdade e de compreensão mútua, onde todos têm o direito à sua intrínseca forma de ser (e não a copiar a do outro), pelo direito de mostrar uma autonomia” (6) A urgência de estabelecer conexões largas, resistentes, e flexíveis - entre família, escola, cidade - e de nutrir continuadamente (e não apenas pontualmente) as ligações cooperantes entre estas três instituições educadoras, tem sido encarada mais como uma recomendação, ou como um ensejo, do que como um desígnio priorizado nas práticas de cada uma delas. É essa prioridade que está no âmago da Cidade Educadora.

A cidade educadora reconstrói-se por dentro Tem vindo a observar-se nalguns municípios portugueses, uma tendência inconsequente de usar a “Cidade Educadora” como selo ou chancela, de fácil acesso, sem que lhe correspondam, necessariamente, conteúdos reconhecidos e validados pelas várias esferas da cidade. Por um lado, o conceito de Cidade Educadora propõe olhares atentos, progressivamente mais informados, contextualizados pelo tempo e espaço contemporâneos, e ao mesmo tempo partilhados por muitas cidades do mundo bem distintas entre 74


si. Exige que cada cidade que deseje ser educadora faça esse caminho ao seu próprio ritmo, investindo-se nas medidas que a própria definir como adequadas ao seu caso. Se a proposta de Cidade Educadora se apresenta com uma importante e atrativa margem de liberdade, implica também um elevado nível de auto -responsabilização, determinação própria, não regulada a partir do exterior desta cidade. Consequentemente, é a partir do seu próprio interior que a Cidade Educadora pode ser pensada, convidada a se reinventar quotidianamente. Ora, se no seu interior, a Cidade Educadora não desenvolver processos e fluxos de comunicação, crítica, observação de si mesma, e das suas possibilidades de escolha, a capacidade interna da Cidade Educadora tenderá a ser circunscrita ou exígua. Sem esse movimento interno, a Cidade Educadora torna-se apenas um selo ou marca de fácil transporte e utilização, mas desprovida da capacidade de operar as mudanças societais desejadas.

Descobrir os caminhos da participação nas construções educadoras Outra tendência viciosa, observada em vários processos de cidades que se autodenominam como educadoras, consiste na perceção de que uma tal construção como desígnio, dever, ou capacidade atribuída a uma esfera indeterminada; ou por outro lado, ser remetida para uma única esfera da cidade, nomeadamente para a esfera política e administrativa. Esta tendência, senão contrariada, compromete a construção da Cidade Educadora. Contrariar esta tendência concentracionária, implica não se conformar, ou aceitar como inevitáveis níveis fracos ou inexistentes de participação pública, por parte de quem observa e vive a cidade. O poder político da cidade chama a si a responsabilidade da decisão desse território se dizer, ou não Cidade Educadora. A partir dessa decisão, ou mesmo antes dela, espera e não pode prescindir de expressões, pressões, manifestações das quais dependem a evolução, o investimento de recursos, o empenhamento, a atenção, o cuidado político com a Cidade Educadora. Na ausência desses sinais visíveis da comunidade interna e externa da Cidade, a decisão política desta Cidade se dizer e se querer educadora desvanece-se, enfraquece. Pode então permanecer numa espécie de limbo entre o ser e não ser, ou pode mesmo descurar ou desvanecer a decisão de se pensar e construir como educadora. À semelhança do poder político, os demais poderes constitutivos da cidade tendem a fazer depender o seu investimento na Cidade Educadora do nível de solicitação manifesto por parte dos habitantes, ou seja, do debate público gerado. 75


Assim, os agentes económicos, religiosos, sociais e culturais da cidade, enquanto não sentirem a premência de uma demanda suscetível de se transformar em retornos com significado, remeterão a construção da Cidade Educadora para outros, de resto à semelhança do que aconteceu historicamente com os programas de educação formal ou seja com a Escola. Simultaneamente, também os habitantes da cidade tendem a esperar de níveis distantes de si, e só supostamente superiores, a construção da Cidade Educadora. Submersos na complexidade do mundo contemporâneo, no quotidiano inundado por propostas, produtos, seduções e exigências, mas também por limitações, o/a habitante da cidade é tentado a desvalorizar o seu papel inalienável, de construtor da Cidade Educadora. O défice de participação pública, ou a falta dos indispensáveis contributos dos habitantes da cidade, constitui um dos desafios primeiros a que a construção da Cidade Educadora tem de responder. A passagem de um estado de perceção da cidade como obra de outros para a cidade como obra coletiva, pertença das várias esferas que a constituem, por parte de quem a habita, é um dos processos da construção da Cidade Educadora.

Breves considerações finais Os humanos são o centro da família, da escola, e da cidade. Estão na génese, desenham e escrevem o percurso, inspiram o horizonte destas configurações sociais. O alheamento, ou a dispensa de participação das pessoas individuais e coletivas, na reconfiguração que está em curso nestas esferas, corresponde a um insuportável desperdício de recursos, e constitui-se como fonte de desequilíbrios de extensão imprevisível. No processo de construção de uma cidade educadora – que corresponsabiliza as esferas politico -administrativa, a da investigação académica, e a das pessoas que habitam a cidade – torna-se cada vez mais indispensável acolher, compreender, acompanhar diferentes formas, plataformas, ambientes, de participação pública, sem o que não será possível juntar à “cultura de escola” uma “cultura de cidade educadora”.

Junho de 2019

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Notas bibliográficas:

1- AGABEN, Giorgio, (1999) “Ideia da Prosa”, Lisboa: Livros Cotovia, pg. 104. 2- Associação Internacional de Cidades Educadoras, (2004) Carta das Cidades Educadoras - preâmbulo, disponível em http://www.edcities.org/wp-content/uploads/2013/10/Carta-Portugues.pdf , consultado em 1/6/ 2019. 3- NÓVOA, António, (2009), “Educação 2021: Para uma história do futuro”, Universidade de Lisboa, disponível em www: http://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/670/1/21232_1681-5653_181-199.pdf, consultado em 30/5 / 2019 4- CANDAU, Vera, citada por https://www.portaleducacao.com.br/conteudo/artigos/esporte/ambiente-culturalfamiliar/46268 (consultado em 2/6/2019). 5- ESCOLANO, Agustín, (2000) - Las culturas escolares del siglo XX. Encuentros y desencuentros, in Revista de Educacíon, número extraordinário, pgs. 201-2018, disponível em http://www.educacionyfp.gob.es/dam/jcr:9c51b5f5-7387-452a8fa1-ee43c5e617ee/re20000808522-pdf.pdf, consultado em 2/6/2019. 6. JANEIRINHO, Luisa, (2011) “Estudios hermenéuticos y ciudades mundo, contibuciones del legado de António Valleriani frente aos desafios del siglo XXI”, in Hermenéutica y pedagogia para la formación humana en una época incierta”. Mexico: Rede Internacional de Hermenéutica Educativa, Torres Asociados, Secretaría de Desarrollo Rural y Equidad para las Comunidades, pg. 16.

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Alice Goretti Pina Santomense da ilha do Príncipe, a residir em Portugal desde o ano 2000, em Lisboa, onde tem trabalhado como criadora de moda autónoma com marca registada desde 2008. Licenciada em Direito e pós-graduada em Criminologia, exerceu função de mediadora intercultural nas áreas de Saúde, Educação e Intervenção Comunitária no MISP da Câmara de Loures até ao ano de 2013. Publicou o primeiro livro (Viagem, poesia) em 2012, contando já com quatro livros, três prémios literários e diversas participações em Antologias. Ligada desde cedo ao associativismo, continua empenhada em questões de âmbito sociocultural. É Madrinha da Campanha Juntos Contra a Fome! que resulta de uma parceria entre a FAO e a CPLP. É mentora da Campanha Arte Solidária STP, lançada em Fevereiro de 2016, cujo o objectivo é, através da arte, apoiar doentes santomenses de Junta Médica em Portugal.

NÓS

Apenas nós alcançaremos o último flamejar do calor. Apenas nós saberemos se vão o derreter das pupilas, se ilusão o maravilhar perante o valsar dos lábios na seda que faz serenamente adormecer. O deserto a saber converter-se em oásis: nós! Os que reivindicamos algo mais fecundo que a semente, mais puro que a candura da simples contemplação. Apenas nós e o propiciar da flor à nossa varanda em suspensão.

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Madalena Mendes Licenciatura em Direito, Mestrado em Ciências da Educação, especialização em Educação, Desenvolvimento e Políticas Educativas. Professora e Formadora Titular de Formação Especializada para as áreas e domínios da Educação e Desenvolvimento e Política Educativa, certificada pelo Conselho Científico-Pedagógico da Formação Contínua. Investigadora na área das políticas educativas com participação em projetos e grupos de trabalho nacionais e internacionais. Expert do Programa Pestalozzi do Conselho da Europa e do Propjeto Erasmus+ - Inter+ Plurilinguismo e Interculturalidade no Contexto Educativo Europeu. Representante do Ministério da Educação na CPCJ de Almada (2010-2017). Vice-presidente Almada Mundo Associação Internacional de Educação, Formação e Inovação. Participação em Conferências, Encontros, Seminários e Reuniões Científicas. Publicações nacionais e internacionais na área da educação e das políticas educativas.

MUNDOS EM DIÁLOGO OS DESAFIOS DA DIVERSIDADE CULTURAL

As culturas estão todas envolvidas umas com as outras; nenhuma é pura e singular, todas são híbridas, heterogéneas, extraordinariamente diferenciadas e nada monolíticas. Edward Said

1. Processos culturais – Dimensões e abordagens As sociedades são hoje um mosaico de culturas, composto por várias etnias, várias formas de expressão, várias linguagens, vários signos e identidades múltiplas. O mundo é hoje um complexo mosaico de culturas, fruto do fenómeno da globalização. A globalização é um processo económico, político, tecnológico, social e cultural em grande escala, que consiste na crescente comunicação e interdependência entre os diferentes países do mundo unificando mercados, sociedades e culturas, através de uma série de transformações sociais, económicas e políticas que lhes dão um caráter global. A globalização é comparada por alguns autores ao carro de jagrená. O carro de jagrená respeita, na comparação metafórica de alguns autores, a um mito religioso hindu. A divindade jaggannath (“senhor do mundo”) era transportada anualmente 79


num carro que, numa velocidade avassaladora, esmagava tudo e todos à sua passagem. A referência ao ídolo hindu “senhor do mundo” simboliza os riscos incontroláveis da globalização ante a razão expectante e indolente de Leibniz. Segundo Boaventura Sousa Santos, sociólogo português, a “razão indolente” ou “razão preguiçosa”, apontada por Leibniz, assim o é, porque desistiu de pensar ante a necessidade e o fatalismo: “se o futuro é necessário e o que tiver de acontecer acontece independentemente do que fizermos, é preferível não fazer nada, não cuidar de nada e gozar apenas o prazer do momento” (2000, p.40). A veiculação da globalização como fenómeno linear, monolítico e inequívoco é hoje prevalecente, tanto no discurso científico, como no discurso político (Santos, 2001). Este sociólogo faz o levantamento das seguintes falácias que impregnam o carácter apolítico da globalização: a) determinismo – a globalização como processo espontâneo, inelutável e irreversível com um ethos, uma força e uma dinâmicas próprias impositora, incontestável e imbatível; b) desaparecimento do sul (conjunto dos países e regiões do mundo que foram dominados e submetidos a relações desiguais de saber-poder) – esta falácia tende a naturalizar as relações Norte/Sul, a destituí-las de conflito e a esvaziar de sentido a distinção entre Norte e Sul. A invisibilidade do sul e da periferia conduziu ao desperdício das vozes locais, das culturas locais e das vozes oprimidas destruindo equilíbrios, comunitarismos e identidades insubstituíveis. Conduziu ao epistemicídio. Necessitamos de uma nova geopolítica do saber, do conhecimento, do reconhecimento dos vários saberes e do reconhecimento da pluralidade dos lugares da sua enunciação. Santos diz-nos que uma epistemologia do Sul assenta em três orientações: Aprender que existe o Sul; Aprender a ir para o Sul; Aprender a partir do Sul e com o Sul (Meneses & Santos, 2010). A diversidade de culturas pode ser lida como uma ameaça, ou como uma oportunidade que rasga novos horizontes sobre a dimensão humana e sobre a sua capacidade criadora. Pode ser vista como um elemento perturbador ou como um fator de enriquecimento. Pode ser vista como um foco de tensões e conflitos ou como uma fonte estimulante de descobertas. A este propósito, relembramos que só em dia 21 de Maio de 2001 foi aprovada a Declaração Universal da UNESCO sobre a Diversidade Cultural. A Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural reconhece a diversidade cultural como sendo um “património comum da humanidade” e permite-nos comparar o conceito de diversidade cultural com o de biodiversidade. Esta declaração eleva a diversidade cultural à categoria de “património comum da humanidade”, “tão necessária para a humanidade como a biodiversidade biológica para os organismos vivos”, pelo que o desaparecimento de um organismo vivo, de uma língua ou de uma cultura acarreta consequências irreparáveis para a humanidade.

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2. Competência Nepantla Não faz sentido considerar as histórias globais fora dos contextos mais amplos de outras histórias locais, de outras culturas, de outros continentes. Continuar considerando apenas as formações sociais e os processos civilizatórios europeus, criando novas fronteiras, ou consolidando as estabelecidas, é desconhecer o rico movimento da contemporaneidade, que combina localismo com globalismo, “glocalismo”, no melhor sentido dialético do termo. Identificar, reconhecer e buscar a convivência com todas as formas e processos sócio-culturais de todas as partes do planeta, como queria o sociólogo brasileiro Octavio Ianni, deve ser a meta do século XXI. Além disso, considerar “sociedades europeias” e suas respectivas culturas, sem tomar em conta as contribuições extraeuropeias é insistir na hegemonização cultural. Mais do que tentar “traduzir” as demais formações culturais, o importante é desenvolver a competência “nepantla” (“viver entre e além” na língua náhuatl - um grupo de línguas e dialetos pertencentes ao ramo asteca). A competência Nepantla” (“viver entre”) significa: - desenvolver a capacidade de viver (“viver entre”) duas ou mais culturas, sem colonialidades; - desenvolver o olhar estrábico e a consequente capacidade de aproveitar todas as potencialidades de todas as culturas; - liquefazer todas as fronteiras entre as formações sócio-históricas, transformando o que era separação, divisão e alfândega em pontes sobre as quais se cruzam e interagem processos produtivos, associativos e simbólicos, por todo o Globo. Desenvolver a competência nepantla é o desafio maior deste mundo globalizado. Este conceito de fronteira permite-nos encontrar respostas que tentam dar conta do que significa viver dentro de e entre mundos, na encruzilhada de histórias esquecidas, relembradas, recompostas e revisitadas, cruzando territórios, pensamentos, corpos, línguas e a vida e, nesse processo, ser territorializado, desterritorializado e reterritorializado. A localização na fronteira emerge como local de intervenção crítica, como local de resistência, como confluência entre o viver global e as histórias locais. Boaventura Sousa Santos (2010), partindo da constatação de que a colonização e o mimetismo cultural e dos epistemícidios foram perpetrados através da supressão dos conhecimentos locais, propõe a ecologia de saberes. Para este autor o saber só existe como ecologia de saberes. A pluralidade infinita de saberes só existe na relação com outros saberes, nenhum deles se pode compreender sem se referir a outros saberes. 81


No contexto da Aldeia Global, temos que aprender a ver o mundo, não mais como ele foi ou imaginamos que ele seja, mas como ele realmente se tornou: um mundo híbrido, globalizado e feito a partir de muitos fios e de múltiplas identidades que entrecruzam, que se interpenetram e que se mesclam.

3. Mundos em diálogo As identidades não são um conceito homogéneo, fechado, monolítico, mas um processo sempre inacabado, em curso (Santos, 1996), em trânsito, em relação de alteridade (Glissant, 1990), com o outro, o diferente, o diverso. Temos que entender as identidades na sua tensão dialética, tanto fragmentação, desenraizamento e perda como redescoberta e incorporação. Todos somos sujeitos inseridos em estruturas dialogais atravessadas por deslocamentos, por trajetórias e por viagens identitárias, num constante processo de negociação de identidades. A identidade é multiétnica, transitória, mutante e migrante porque formada por vários elementos cruzados de várias culturas. Mia Couto, escritor moçambicano, alerta-nos, precisamente, para o facto de que “Ser branco não é assunto que venha da raça. Bem vistas as contas, todos nós somos mulatos. Só que em alguns isto é mais visível por fora” (Couto, 1996, p. 55). Para nos abrirmos à leitura e pronunciamento do mundo, Santos propõe a hermenêutica diatópica, “uma hermenêutica irrequieta capaz de atravessar e ultrapassar centros e certezas monoculturais (Pessoa diria decerto uma hermenêutica do desassossego) e que assim nos ajude a conceber as identidades, todas as identidades de forma produtiva, como identidades ameaçadas e ameaçadoras. Ou, como sempre descobrimos no texto poético, como inter-identidades” (Ramalho, 2001, p.549). E acrescenta “O outro está dentro de nós como nós estamos dentro do outro, a ameaça identitária é recíproca” (idem, p.550). Almada Negreiros (1893-1970), no poema Rosa dos Ventos, fala-nos da nossa consanguinidade interidentitária: Não foi por acaso que o meu sangue que veio do Sul se cruzou com o meu sangue que veio do Norte. Não foi por acaso que o meu sangue que veio do Oriente se cruzou com o meu sangue que veio do Ocidente. 82


Não foi por acaso nada de quem sou agora. Em mim se cruzaram finalmente todos os lados da terra.(…) O caráter relacional e contextual dos processos sociais e culturais, entendidos na sua complexidade, fluidez, hibridez e polissemia, acarreta profundas implicações na construção de mundos em diálogo, baseados:

 numa racionalidade comunicacional, dialógica e autonómica;  numa nova geopolítica do conhecimento entendida como ecologia de saberes;  no reconhecimento das interidentidades e das identidades múltiplas. É no exercício democrático da democracia, da participação crítica e da cidadania ativa e expansiva que é possível recuperar e reinventar as narrativas da emancipação, da liberdade e da autonomia e conceber novos processos sociais e culturais que, nas sábias palavras de Paulo Freire, tornem “o mundo mais redondo, menos arestoso e mais humano e em que se prepare a materialização da grande Utopia: Unidade na Diversidade” (Freire, 1993, p. 36).

Referências Bibliográficas Couto, M. (1996). A varanda do Frangipani. Lisboa: Editorial Caminho. Freire, P. (1993). Política e Educação. São Paulo: Cortez Editora. Glissant, E. (2005). Introdução a uma Poética da Diversidade. Trad. Enilce Albergaria Rocha, Juiz de Fora MG: Ed. UFJF. Meneses, P. & Santos, B. S. (2010). Epistemologias do Sul. Porto: Edições Afrontamento. Ramalho, M. I. (2001). A sogra de Rute ou intersexualidades. In Boaventura Sousa Santos (Org.). Globalização: Fatalidade ou utopia? pp.525-550. Porto: Edições Afrontamento. Santos, B. S. (2000). A Crítica da Razão Indolente: Contra o Desperdício da Experiência. Porto: Afrontamento. Santos, B. S. (2001). Globalização Fatalidade ou Utopia? Porto: Edições Afrontamento. 83


Isabel Marques Nogueira Nasci em Viseu, Portugal, a 27 de setembro de 1975, e entrei no mundo da comunicação social, em 1994, na Voz de Viseu (Rádio Renascença). Depois da rádio vieram os jornais: os semanários (Jornal do Centro e Expresso, em Portugal, e A Semana, em Cabo Verde); os diários (Diário de Viseu) e os mensais (Voz das Misericórdias, em Portugal); as revistas generalistas e da especialidade (Revista da Cruz Vermelha e da Ordem dos Médicos, em Cabo Verde), e a escrita minimalista, concisa e precisa de agência de notícias (Lusa, em Portugal, e Inforpress, em Cabo Verde) onde estive como chefe de informação. Trabalhei para uma produtora televisiva (ACI, em Cabo Verde) e fiz trabalhos para a televisão (RTP, Portugal). Neste momento sou jornalista em regime freelancer em Portugal e faço edição de texto para os países de língua portuguesa.

EDUCAR PARA O PATRIMÓNIO: UMA TAREFA DIFÍCIL MAS POSSÍVEL

Educar. Uma palavra que nos remete para coisas, aparentemente, tão simples mas tão complexas. Afinal, a educação também passa pelo “simples” bom dia, obrigado e por favor. Palavras que deveriam ser simples e de uso corriqueiro mas que estão cada vez mais em desuso. E isso nota-se quando se assiste a vídeos, com crianças a serem correctamente educados, e só por isso já se tornam virais nas redes sociais. Mas, afinal não deveriam estes ser os comportamentos banais? Porquê ficarmos surpreendidos? Deveríamos ficar chocados é com a falta de educação! Mas felizmente também ficamos, se houver uns palavrões no meio dos discursos infantis, porque se não houver é um discurso perfeitamente banal, apesar da ausência de um bom dia, de um por favor, de um obrigado ou de um posso? Afinal, educar, que aparentemente parece tão simples, está a tornar-se cada vez mais difícil. E a falta de exemplo por parte dos adultos dificulta ainda mais a educação. E tudo isto se torna um ciclo vicioso porque as crianças de hoje são os adultos do amanhã. Sim, é uma frase feita mas é a mais pura das realidades e temos de ter consciência disso. A aposta na educação tem de continuar a ser nas crianças para conseguirmos viver numa sociedade melhor, com mais respeito pelo outro, com menos egoísmo. Com um olhar mais terno sobre os feitos dos outros e orgulho nos nossos feitos também. Temos de saber apreciar e valorizar a nossa História e a História dos outros, para conseguirmos o respeito mútuo e a tolerância pela diferença, para nos aceitarmos em harmonia numa sociedade cada vez mais heterogénea. Estou a dar alguma novidade? Não. Mas então porque é que é tão difícil conseguir isto? Porque apesar de a teoria estar bem estudada é bem mais complexo de colocar isto na prática, porque cada um de nós se fecha na sua vida e nos seus problemas e até o simples bom dia, por favor ou obrigado lá fica por dizer e, a criança ali ao lado, não ouviu e como tal não vai repetir… Afinal, educar é uma tarefa difícil. Mas é possível se se fizer com amor. Se deixarmos de viver tão dentro de nós e olharmos para o lado, se dedicarmos a nossa atenção e o nosso tempo, por mais ínfimo que seja, aos mais novos, vamos conseguir fazer diferente. Porque o estamos a fazer com amor. Eu vi fazer diferente. Eu vejo fazer diferente. Eu acredito que é possível. 84


E se a educação começa em casa, porque é lá que reside o primeiro ninho de amor, é na escola que ela tem continuidade. A educação e a formação. E é também na escola que aprendemos a nossa História, o nosso passado. E em casa, com as histórias dos nossos pais sobre os nossos antepassados. E na escola, com a contextualização dessas mesmas histórias e outras, mais globais, que contam e explicam como surgem ou se transformam as comunidades onde estamos inseridos, como elas evoluem, e nos ajudam a compreender a nossa cultura e a afirmar quem somos, sem medos nem vergonhas para podermos honrar os antepassados que lutaram pela sociedade onde vivemos. Uma pessoa de bem com a sua História vai querer conhecer outras Histórias e vai saber respeitá-las com a mesma veemência com que respeita a sua. Alguém que respeita a sua História, e a dos outros, respeita o seu património material e imaterial, e o dos outros. O património é parte da História. São provas, que permanecem nos tempos, de que a História existiu, existe e vai continuar a delinear o futuro das sociedades onde estão inseridas e de outras culturas que têm curiosidade em saber. E quem nos vai dar a conhecer o nosso património? A escola. A escola fala-nos dele, contextualiza-o no tempo e apresenta-nos os seus autores. E quem nos educa para a valorização deste nosso património? Quem nos falar dele com amor, porque para educar é preciso amar. E esta educação pode vir da família, da escola ou da própria comunidade. Quem amar a sua História e o seu património vai preservá-lo, valorizá-lo e divulgá-lo, porque não conseguiremos guardá-lo em nós, apesar de ser parte de nós. Afinal, as pessoas que amamos são parte de nós mas, quem não gosta de “exibir” e elogiar os que mais ama? Eu vi esta educação patrimonial. Eu vejo esta educação patrimonial. Eu acredito que é possível. Sou jornalista e, entre o que mais me apaixona na profissão, é o conhecimento através dos outros, a sabedoria que bebo das suas histórias e das inúmeras vivências que são verdadeiras lições de vida. Já ouvi e escrevi histórias em inúmeras ruas, imensas cidades e até em vários países e tenho a sorte de o poder ter feito em mais do que um continente. E foi na Cidade Velha, na ilha de Santiago, em Cabo Verde, que assisti a um autêntico projecto de educação patrimonial. Parece tão simples: basta juntar o conhecimento ao amor e já está. Mas não é. Afinal educar para o património é muito complexo, envolve pessoas, muitas pessoas, muitos sentimentos diferentes, vários conhecimentos e visões sobre a mesma história e o mesmo património. Possivelmente até versões contraditórias sobre o mesmo acontecimento. E como conciliar tudo isto? Como harmonizar todos estes sentimentos e pessoas? E aquilo que se prevê ser uma enorme dor de cabeça (e acredito que será mesmo muito grande) é-nos apresentado com muita clareza e simplicidade pela mentora do projecto, que até parece a coisa mais fácil de concretizar. Luísa Janeirinho solta ideias carregadas de amor ao património e às pessoas que são, também elas, património e faz isto com tanta inteligência, criatividade e generosidade que aquilo que todos sabemos ser verdadeiramente difícil se torna fácil quando nos é apresentado de forma genuína, tão autêntica, tão envolvente. Envolver a comunidade escolar, a família e a comunidade urbana, desde os seus maiores responsáveis até à senhora que ganha o pão a fazer um doce tradicional, também ele parte do valioso património, é educar, com muito amor, toda uma sociedade para a valorização do património que detém. Afinal, o património material e imaterial de uma localidade é da responsabilidade de todo o cidadão que ali habita e que o visita. Assistir a canto-histórias num antigo convento, é aliar o património imaterial ao património material. Fazer desenhos e criar bonecos dos personagens das histórias contadas é materializar o património imaterial. É ter nas mãos o património que tem de ser salvaguardado. É preservar o passado para assegurar o futuro. 85


Saborear um Caldo de Peixe é mais do que alimentar o estômago e provocar prazer às papilas gustativas. É alimentarmonos, literalmente, de anos e anos de história e tradição de um povo. Desde a pesca como meio de sobrevivência, e até fonte de riqueza, como à própria agricultura para produzir tubérculos e vegetais tão saborosos, apesar da ausência permanente de água naquelas terras. Fazer caminhos pedestres por sítios já tão batidos pelos habitantes mas tão selvagens para quem os percorre a primeira vez é conhecer a História de um povo, é valorizar a cultura dos habitantes. É conhecer outras realidades. É enriquecer o conhecimento individual. É partilhar o conhecimento. É aprender a lidar com a diferença. É respeitar quem ali vive. É amar e respeitar os outros. É enriquecimento individual e colectivo. Fazer os caminhos e ficar. Permanecer neste mar de histórias de vida é navegar com segurança numa cultura diferente. É conhecer e valorizar o património imaterial de um local. Quem está, e recebe estes seres famintos de conhecimento, e quem partilha o seu património imaterial está a preserválo e a valorizar o que é seu. Quem exibe e partilha o património material, porque o ama e cuida, está a divulgar a sua História pelo mundo, está a assumir a sua localização no mapa e a engrandecer a sua cultura. E para estar a fazer isto é porque teve uma educação patrimonial. É porque teve a sorte de ter alguém com conhecimento e amor para o educar para o património. É porque, não só ouviu o adulto dizer bom dia, por favor ou obrigado, como também o ouviu contar histórias com amor, como o viu, e aprendeu, a fazer as receitas centenárias e viu cuidar e preservar o que é de todos. O que é nosso. E quem faz isto tem amor próprio e tem amor à sua nação. Tem respeito por si e respeito pelos outros. Conhece o seu passado, sabe viver o presente e tem alicerces para criar um futuro mais sólido. Isabel Marques Nogueira PS: O bom deste desafio é que não me foi pedido para fazer uma notícia onde teria de ser objectiva e factual. O bom deste desafio é que me foi pedido um “artigo de escrita livre e sentida”. Desta vez não fiquei longe de mim a falar dos sentimentos dos outros. Desta vez, escrevi em mim, com os meus sentimentos. Obrigada por isso.

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Nuno Rebocho Jornalista, poeta e escritor português, nasceu em Queluz (Portugal), cresceu e estudou em Moçambique, viveu longos anos em Cabo Verde. Foi preso político durante a ditadura de Salazar (cinco anos de prisão), autor de vasta obra publicada. Foi adjunto do Ministério da Habitação, Obres Públicas e Transportes do VI e VII Governos Constitucionais de Portugal e assessor da Câmara Municipal de Ribeira Grande de Santiago. É Cidadão Honorário de Cidade Velha e nomeado assessor lusófono da Korsang di Melaka.

UM PEQUENO GRANDE LIVRINHO Quando se conjugam vontades para inculcar na petizada o amor pelo Património Cultural - e, com isso, o interesse pela pujante História destas ilhas -, deve haver aplauso. É este o caso. Que essas vontades se encaminhem de fora, da Cooperação, e encontrem correspondência positiva por parte de uma autarquia para chamar a miudagem a um projeto deste tipo, é algo que deve ser apontado como um exemplo positivo a seguir lá onde for possível e para onde convirjam semelhantes vontades. Estava eu em Cabo Verde, em Ribeira Grande de Santiago, assessorando a respetiva Câmara Municipal, quando este projeto nasceu: Luísa Janeirinho apareceu no meu gabinete, sussurrou-me a ideia e, de imediato, a transmiti à vereação. O Presidente da edilidade logo lhe deu apoio. Das escolas vieram manifestações de interesse e disposições para uma colaboração ativa. Depois… “o homem sonha e a obra nasce”. Assisti às sessões públicas de apresentação dos trabalhos. Aos encontros de professores e pequenos alunos. Testemunhei o entusiasmo dos promotores, a alegria da criançada participante, o cuidado dos técnicos e professores para que desta iniciativa surgisse “obra asseada”. E ela aqui está: um pequeno livro com o qual os mais jovens colam ao seu espírito os significados de importantes monumentos (“pedra morta”), de tradições culturais (“pedra viva”), de fundamentais personalidades históricas. Ou seja, de quanto integra um Património Cultural, de quanto lhe é a substância. Diz o rifão: “de pequenino se torce o pepino”. De facto, insuflando nas novas gerações o prazer - o gosto e mesmo o amor pelo Património Histórico e Cultural, garante-se que esse Património seja preservado e defendido, resista aos atentados e vitupérios que a ignorância, a incúria, o desmazelo, a incultura, a falta de civismo - e, tantas vezes, a inqualificável ganância – proporcionam. Tem acontecido. Infelizmente. É punível. Deveria tê-lo sido, já que tais atropelos são armas de um terrorismo cultural contra os valores mais sagrados da Humanidade. Mas melhor que as exigidas medidas punitivas, a defesa do Património (a um tempo Nacional e da Humanidade) resulta eficazmente do respeito e do apego por esse mesmo Património. São trabalhos como este livrinho editado pela “Sphaera Mundi” que induzem na juventude (afinal, o futuro em construção) a intransigente defesa e preservação do Património da Humanidade. O meu aplauso. Nuno Rebocho 87


LOPITO FEIJÓO João André da Silva Feijó nasceu em Malanje, aos 29 de Setembro de 1963, Estudou Direito em Luanda, na Universidade Agostinho Neto (UAN). É deputado (reformado) da Assembleia Nacional da República de Angola. Poeta e crítico literário membro fundador da Brigada Jovem de Literatura de Luanda, da Academia Angolana de Letras e do Colectivo de Trabalhos Literários OHANDANJI . É membro da União dos Escritores Angolanos, do Grémio Literário. Desde 2004, preside a Sociedade Angolana do Direito de Autor, dirigindo a Gazeta dos Autores. Académico fundador da Academia de Artes Letras e Ciências do Estado brasileiro do Rio Grande do Sul, correspondente da Academia Brasileira de Poesia “Casa Raul de Leoni” e é igualmente, membro da International Poetry dos EUA e da Maison Internationale de la Poesie, sediada em Bruxelas, Reino da Bélgica. Tem livros traduzidos para o francês, inglês e italiano e colaboração dispersa em publicações de Angola, Portugal, França, Espanha, Brasil, Estados Unidos da América (EUA), Moçambique, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Nigéria e etc.

10ª SAPIÊNCIA

Tinta vermelha em lápis de carvão tinta da china até na cochinchina tinta das cores dos lápis coloridos tinta retinta de preta da guiné tinta que pinta o trinta sacrificado tinta distinta com pinta na cinta tinta desajeitada e há muito rejeitada tinta que finta quem esbarra na fita tinta fingida gentia maresia tinta demente diária em demasia tinta na testa desafiando o homem fútil tinta infinda no berço da pinta tinta miserabilíssima tinta no mercado. 88


Tinta agressiva na pele do tambor tinta colorindo a onda do vento incolor tinta vaidosa, andrajosa e venenosa tinta consinta consigo um porto de abrigo tinta suspeita de oferta aos jovens da cacimba tinta interferindo na cor da Paloma de Picasso tinta bem forte manchando o nosso epicentro tinta renitente da cor do vizinho insistente tinta imperialista excessivamente irrealista tinta dolorosa, preguiçosa e infeciosa tinta macia, malandra melancia tinta de quinta à quinta no quintal tinta no quinto pinto que printo tinta nos muros das quintas requintadas tinta com paixões e mundanas comichões tinta prensada na opção da língua portuguesa tinta assanhada no estalo do Ser sossegado tinta tomada por touros tarados tinta desgarrada, na farra do final deste ano tinta do tinto que pinta teus lábios carnudos.

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Tinta das listras de zonzas zebras azedas tinta qual rouge, pó de arroz cor de tijolo tinta maluca que a pele peluda barra tinta demais, incolor no calor do ardor tinta destinada aos deuses diurnos no activo tinta consagrada aos anjos da nossa apelação tinta do pau de tacula, no corpo do arco íris tinta doirada e certamente assombrada tinta convertida decoro de podre coração tinta de marca, bondosa e infiel sumidade tinta visível no mundo do além invisível tinta d’óleo, tinta d’água, plástica e acrílica tinta mareada, tonta e molhada tinta tarada na esteira de uma boa tourada tinta sofrida ao ritmo dos Ritos de Passagem tinta silvestre, borrada e assumida fatal tinta corrente nas veias das teias de aranha tinta das casas de tinta, no Universo Cabinda.

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Tinta de tonta intoler창ncia de tanta ignor창ncia tinta tinta tinta

tinta tanta tanta tinta

tinta branca e tinta preta de taxar a humanidade tinta de pura arrog창ncia, loucura e extravag창ncia tantatinta tintatanta tantatanta tantatintatonta!

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Mário Chagas Poeta, Graduação em Museologia, licenciatura em Ciências pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ-1980) mestrado em Memória Social e doutorado em Ciências Sociais. Um dos responsáveis pela Política Nacional de Museus (lançada em 2003) e um dos criadores do Sistema Brasileiro de Museus (SBM), do Cadastro Nacional de Museus (CNM), do Programa Pontos de Memória, do Programa Nacional de Educação Museal (Pnem) e do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram). Fundador da Revista Brasileira de Museus e Museologia MUSAS e criador do Programa Editorial do Ibram. Atualmente é professor da Unirio, com atuação na Escola de Museologia; professor visitante da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias (ULHT), professor colaborador do Programa de Pós-graduação de Museologia da Universidade Federal da Bahia (Ufba). É diretor do Museu da República (MR/IBRAM).

MEMÓRIA, MUSEU E EDUCAÇÃO A FAVOR DA LIBERTAÇÃO

I No último parágrafo do verbete “Memória”, publicado na Enciclopédia Einaudi, Jacques Le Goff projeta-se em devir

e afirma: “Devemos trabalhar de forma que a Memória sirva para a libertação e não para a servidão dos homens”1.

Aplicada ao campo dos museus a afirmação de Le Goff favorece o entendimento de que eles podem ser acionados

para a libertação ou para servidão dos homens; podem ser biófilos ou necrófilos; podem ser aparelhos ideológicos do Estado ou processos museais a favor dos movimentos sociais; podem contribuir para a cristalização da ordem estabelecida ou para a produção de inovações que deslocam a sociedade de suas zonas de conforto; podem trabalhar contra ou a favor da barbárie. Que devires queremos para a sociedade em que vivemos e que devires desejamos para os museus que construímos e que também nos constroem?

A compreensão de que os museus podem ter (e muitos têm) caráter repressivo e opressor exige atenção crítica.

Museus conservadores tendem a produzir mudanças sociais conservadoras. Essa reflexão aponta para a necessidade de uma qualificação do museu e da transformação social desejada. 1 92

Ver Jacques Le Goff organizador da Enciclopédia Einaudi, v.1, Memória/História, publicada no Porto, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1985.


II

A qualificação do museu tem correspondência direta com a qualificação daquilo que se denomina de mudança

social. Não convém investir em uma mudança social qualquer. As sociedades também mudam para pior, também mudam na direção da degradação da qualidade de vida, da perda da dignidade social e do desrespeito aos direitos humanos e ao direito de ser diferente; as sociedades também adotam uma orientação vetorial conservadora e reacionária; o poder executivo, o poder legislativo, o poder judiciário e os políticos, no seu modo genérico, também golpeiam a democracia.

(In)conclusão provisória: é preciso qualificar o museu e sua prática, para, a partir daí, qualificar a mudança social com

a qual ele está comprometido. É importante investir na democratização do acesso aos bens culturais e dos dispositivos de produção desses mesmos bens; é importante democratizar o próprio museu, compreendendo-o como uma tecnologia social.

III

Compreender os museus como tecnologia social, ferramenta ou dispositivo acena de modo direto ao entendimento

de que eles não têm valor em si, de que eles existem em relação e de que tudo depende do que se quer e se pode alcançar com eles. Por esta vereda, é possível compreender que os museus são meios, são apenas pretextos e podem deixar de existir depois de terem cumprido o seu papel social. É possível colocar em movimento, a partir deste desenho, reflexões e práticas museais que não sonham com a eternidade e nem mesmo com a longuíssima duração do universo e das estrelas e que, ao contrário do senso comum, contentam-se com a vida efêmera, com a transitoriedade dos vagalumes da memória e a vida breve das borboletas e dos passarinhos2.

2 De qualquer modo, é bom lembrar que alguns passarinhos como Mario Quintana e Manoel de Barros, do ponto de vista humano, além de viverem mais de oitenta anos, não morrem, encantam-se. 93


IV

É possível identificar no âmbito da museologia uma produção discursiva voltada para a valorização de preceitos,

regras, normas, códigos e definições operacionais considerados como de grande valor teórico e de grande poder explicativo. Frequentemente seus praticantes se consideram teóricos, cientistas e técnicos capazes de estabelecer diretrizes, molduras e enquadramentos norteadores do campo museológico. Por mais que algumas regras e definições possam ser consideradas importantes, o apego a elas tende a asfixiar e enclausurar o campo de conhecimento; tende a impedir a inovação e a rejeitar o que não cabe na “casinha” ou na “moldura” pré-estabelecida com o argumento de que tudo que ali não cabe é inválido e indigno de atenção. Particularmente, denomino esses procedimentos de museologia normativa.

O perigo da museologia normativa não está nas normas e regras, mas na sua naturalização, na crença de que seus

argumentos são científicos, técnicos e válidos para sempre, quando, na maioria das vezes, são políticos, ideológicos, discursivos. A museologia normativa crê em si mesma, aprecia navegar em sua zona de conforto, admira e preconiza os dogmas que produz. Presente em instituições nacionais e internacionais ela atravessa o campo museal de ponta a ponta, passa pelos centros de formação profissional, passa pelos museus clássicos e chega aos domínios dos ecomuseus, dos museus comunitários e dos museus de território. A museologia normativa quer sempre ter a última palavra e quer sempre dizer: isto sim, isto não; isto é, isto não é; isto pode, isto não pode; o seu interesse nas áreas de educação e formação está restrito à repetição, reprodução, conformação, domesticação.

É com base na museologia normativa que alguns praticantes apressados afirmam: “não existe Museologia Social,

uma vez que toda Museologia é social”. O que eles não entendem ou não querem entender é que a denominada Museologia Social implica uma práxis museal que, sem abrir mão do rigor, assume explicitamente o seu caráter político, a sua dimensão poética e a sua disposição para o combate às injustiças sociais e aos preconceitos.

A Museologia Social também está claramente a favor da democratização dos museus, do respeito à diferença, da

valorização da diversidade cultural e da redução das desigualdades sociais. A Museologia Social3 tem estreita relação com as práticas e reflexões da educação transformadora. 3 showToc . 94

Ver Cadernos do CEOM, volume 27, número 41, inteiramente dedicado à Museologia Social: https://bell.unochapeco.edu.br/revistas/index.php/rcc/issue/view/168/


É com base na museologia normativa que experiências inovadoras em curso no Estado do Rio de Janeiro, como a do

Museu da Maré4, do Museu de Favela (Pavão-Pavãozinho-Cantagalo)5, do Museu Sankofa6 da favela Rocinha, do Museu do Horto7, do Ecomuseu Nega Vilma8 da favela Santa Marta, do Museu Vivo de São Bento9 de Duque de Caxias, do Ecomuseu Amigos do Rio Joana10 da favela do Andaraí e do Museu das Remoções11 na Vila Autódromo, na Barra da Tijuca são tratadas como irrelevantes e criticadas12 por não seguirem os cânones do que se compreende por ecomuseu, museu comunitário ou museu de território.

A experiência de um museu de favela que lida com objetos é criticada e acusada de não ser inovadora pelo simples

motivo de trabalhar com objetos; o fato de outro museu de favela cobrar ingressos que revertem para os seus trabalhadores é criticado pelo simples motivo da cobrança de ingressos, sem nenhum outro argumento ou fundamento. A utilização de um museu como ferramenta estratégica de uma comunidade em defesa do seu direito à moradia, também é criticada pelo simples motivo do uso político do museu. Todas essas críticas estão ancoradas em preconceitos, na defesa de posições conservadoras e no temor da mudança13.

Algumas experiências museais realizadas nos últimos 13 anos e aqui mencionadas, estão amparadas em práticas

e reflexões que dialogam com a Museologia Social e com o campo da educação e da ação cultural, e, por isso mesmo, contribuem para o avanço do campo dos museus e da museologia.

4 Ver http://www.museudamare.org.br/joomla/ e também o artigo denominado “Museu da Maré: memórias e narrativas a favor da dignidade social”, de autoria de Mario de Souza Chagas e Regina Abreu, publicado na Revista Brasileira de Museus e Museologia (MUSAS), volume 3, 2007, páginas 130-152, IPHAN. 5 Ver http://www.museudefavela.org/ e também o artigo dos Cadernos do CEOM https://bell.unochapeco.edu.br/revistas/index.php/rcc/article/view/2611 . 6 Ver http://museudarocinha.blogspot.com.br/ e também https://www.facebook.com/SankofaRocinha 7 Ver http://www.museudohorto.org.br/ . 8 Ver http://ecomuseu-negavilma.blogspot.com.br/p/sobre-o-ecomuseu.html e também o artigo dos cadernos do CEOM https://bell.unochapeco.edu.br/revistas/index. php/rcc/article/view/2612 9 Ver http://www.museuvivodosaobento.com.br/ e https://www.facebook.com/pages/Museu-Vivo-Do-S%C3%A3o-Bento/283012245232527?fref=ts . 10 Ver https://www.facebook.com/EcomuseuAmigosDoRioJoana/ . 11 Ver https://www.facebook.com/museudasremocoes/ 12 Até o momento as criticas mencionadas não foram publicadas, encontram-se na ordem da oralidade sem registro em áudio ou vídeo, por isso, não é possível citá-las aqui de modo completo. 13 Idem 95


J. Alejandro Martínez Osuna De las Varas, Costa de Chila, Nayarit, México, Jefe de Educación y Cultura Municipal, Coordinador de enlace (vinculacion) de programas Cecan, Profesor de la Metodologia de la Investigacion y Asesor de Seminario de Tesis, Tepic Nayarit Coordinador de Arte y Cultura Municipal del CONSEJO ESTATAL PARA LA CULTURA Y LAS ARTES DE NAYARIT (SECRETARÍA DE CULTURA), Coordinador de Becas del Fondo Estatal para Cultura del CONSEJO ESTATAL PARA LA CULTURA Y LAS ARTES DE NAYARIT, (CECAN) Nayarit, México, Vicepresidente de Museos Comunitarios y Casas de Cultura, MINOM México, Presidente y Miembro Fundador del MUSEO COMUNITARIO LAS VARAS, Las Varas, Nayarit, México. Várias conferencias sobre património e identidade e creaciones literárias: El Mundo de la Imaginacion (cuentos para niños); Coleccion de cuentos “Pichas y Rulones 1”; Plaquet Colectiva de Poesía , CAIN “Barcaza”

LA IDENTIDAD, UN VEHÍCULO HACIA EL FUTURO La cultura y la identidad son conceptos aunados al término civilización. Por lo tanto van de la mano del crecimiento y del progreso de los pueblos que las cultivan y engrandecen. Está comprobado que un pueblo culto e informado es un pueblo fuerte. Uno que halla en el conocimiento de sus orígenes la fortaleza de sus decisiones presentes y futuras. Como parte inmanente de la cultura encontramos en la gastronomía, en las danzas, en las diversas manifestaciones religiosas y deportivas, la más pura expresión de sano y constructivo entretenimiento familiar en el contexto del desarrollo continuo de cada uno de sus integrantes, en especial de sus niños y jóvenes. La región de la Costa de Chila, en el Municipio de Compostela, Nayarit, en el occidente de México, se mantuvo durante muchos años aislada de la Cabecera Municipal y de la Capital del Estado. Este aislamiento se debió a la falta de vías de comunicación, servicios públicos, carreteras, médicos, energía eléctrica y telefonía, causas que dieron pie a la creación de una identidad muy particular, con su manera singular de celebrar sus fiestas, de practicar una agricultura de autoconsumo, de inventar sus propios modismos y usos de la lengua, practicar el intercambio de bienes en común acuerdo, apoyo y protección vecinal, pero sobre todo una vida cotidiana funcional, segura y despreocupada por los acontecimientos externos. A partir de los años sesenta, se abrió la carretera Tepic-Puerto Vallarta, colocando a la región de la Costa de Chila en el mapa nacional y convirtiéndola, gracias a su tradicional actividad agrícola, ganadera y a la pesca, en una de las regiones de mayor crecimiento económico y demográfico contemporáneo. Más tarde se fortaleció su economía con la oferta de bienes y servicios turísticos.

Desde hace muchos años tuve la inquietud de investigar el pasado de la tierra donde nací para rescatar y preservar la identidad de la región y los elementos que la conforman. Elementos esenciales que caracterizan a los que vivimos en las 96


poblaciones de la Costa de Chila. Así que un buen día, me di a la tarea de hablar con amigos, interesados como yo en la protección, conservación y difusión del Patrimonio Histórico y Cultural de nuestra región, sobre la responsabilidad histórica que teníamos en nuestras manos. Todo inició en el año de 1983. Luego de varias reuniones decidimos conformar una Junta Vecinal para darle seguimiento y oficialidad a nuestros proyectos. Los participantes de la junta veníamos de la misma región pero teníamos diferentes oficios, lo que fue importante para la diversidad de nuestros planes. Desde el principio fuimos autosuficientes, fuimos nuestro propio personal encargado de la organización y administración de nuestra asociación. Nos encargamos de conseguir donaciones y apoyo material de los comerciantes de las comunidades de la región, trabajamos juntos, motivados y sin cansancio con el único y primer objetivo de crear un Museo Comunitario en Las Varas, nuestro pueblo. Con el apoyo de las autoridades locales y comunitarias y del Instituto Nacional de Antropología e Historia (INAH) logramos dar inicio y seguimiento a nuestra empresa. Comenzamos con la realización de un programa de donaciones y con una campaña de visita a nuestros vecinos. Casa por casa les informamos sobre nuestra iniciativa de crear un espacio comunitario en donde pudiéramos mostrar un poco de nuestro legado arqueológico, histórico y cultural que nos identifica como pobladores de esta región. Les hablamos de la idea de colocar en este museo todo tipo de piezas arqueológicas e históricas encontradas y conservadas en los alrededores y de esta manera evitar que se extraviaran o que fueran a parar a manos de particulares y extranjeros. Después de un arduo trabajo en equipo y de concientizar a la población sobre nuestra riqueza cultural, logramos recibir alrededor de 300 piezas de donación arqueológica, herramientas de labranza antiguas, fotografías y documentos históricos importantes. Posteriormente nos dimos a la tarea de equipar la museografía con el apoyo de la comunidad y de especialistas del INAH. Con mucho esfuerzo, dedicación, cooperación y alegría, logramos inaugurar el primer Museo Comunitario en todo el Estado, en el edificio del Comisariado Ejidal de nuestro humilde pueblo, en el año 1984. A partir de este logro comunitario de rescate y difusión cultural, nos hemos dedicado a la investigación más compleja y profunda de los elementos que conforman nuestra identidad. Nos dimos a la tarea de investigar y registrar las zonas arqueológicas dispersas en los campos y montañas de la zona y tuvimos la fortuna de rescatar de entre la selva una zona arqueológica de gran importancia, que se encontraba en peligro de perderse. Este magnífico santuario es testigo de nuestras raíces, nuestros ancestros que vivieron antes de haber tenido contacto europeo. En este sitio se encontró una gran concentración de petroglifos, grabados y piezas arqueológicas. La Zona Arqueológica de Altavista cuenta actualmente con la protección de los habitantes de la Comunidad donde se encuentra ubicada y de las autoridades correspondientes. Todo este trabajo me ha dado la oportunidad de convivir con mucha gente de la región, de tener un intensivo contacto con instituciones educativas y de aprender más sobre mis raíces y mi cultura. He sido invitado por escuelas y otras Instituciones 97


para informar a niños y jóvenes sobre nuestro pasado, para intentar inculcarles el amor y el respeto a nuestra tierra, a nuestros orígenes, para que de esta manera se interesen y conozcan un poco más sobre los elementos que nos hacen únicos. Gracias a los frutos logrados he tenido la fortuna de haber sido invitado a otros Estados del país para hablar de nuestro trabajo y representar a mi Costa de Chila. Con orgullo he luchado, junto con mis compañeros, para preservar y desarrollar nuestra Identidad. He representado a nuestro país en diversos eventos internacionales, como los organizados en Portugal y Brasil por el Movimiento Internacional para una Nueva Museología (MINOM). He sido invitado a participar en la Universidad de Augsburgo, en Alemania, para informar sobre la Identidad regional del Municipio de Compostela, Nayarit. Por segunda ocasión en Alemania, participé en la Universidad de Potsdam para hablar sobre proyectos de rescate, conservación y difusión de la Identidad regional del Municipio de Bahía de Banderas, también en Nayarit.

Durante mi trayectoria laboral, dentro del ámbito cultural, he escrito y rescatado leyendas y cuentos tradicionales de la región, Casos y Sucesos de mi tierra, historias y anecdotarios de los pueblos de la Costa. He realizado también investigaciones sobre la cocina tradicional y he publicado sobre personajes que forjaron la región de la Costa de Chila. Esta última publicación fue realizada en base a entrevistas hechas a personas mayores de las diferentes localidades y el resultado fue sorprendente. Encontré en muchas voces sus orígenes y de cómo llegaron a la región. En la mayoría de estos testimonios descubrí, que las personas al hablar de sus llegadas a la región de la Costa de Chila, revelaban en su memoria oral, los orígenes de los primeros hombres y mujeres forjadores de los ejidos, las dificultades a las que se enfrentaron en esta cálida e indómita tierra, en esta su tierra la de la promisión, la de la miel y la de la leche, la que los arropó como una madre con la promesa de una vida mejor a la de sus orígenes. En ese su éxodo de la búsqueda de tierra propia, en donde alimentar las nuevas generaciones. Con esta amalgama de sudor y coraje se forjó esta, nuestra identidad. Identidad que tanto nos identifica como los ¨Chilenos’ que somos los que vivimos en los pueblos que conforman nuestra bella y amada Costa de Chila.

Alejandro Martínez Osuna Abril del 2018 Las Varas, Costa de Chila, México

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José Gregório Viegas Brás Professor Associado na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias (ULHT) em Lisboa. Doutor em História da Educação. Pós Doc em História da Educação. Pós Doc em Sócio- História. Investigador integrado do CeiED. Co-editor da Revista Lusófona de Educação. Tem participado em projetos de investigação financiados.Tem inúmeros artigos publicados em revistas internacionais e nacionais.

Maria Neves Professora Associada na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias (ULHT) em Lisboa. Doutora em Ciências da Educação (História da Educação), pela Universidade de Évora. Mestre em Ciências da Educação pela Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias. Pós-graduação em Formação Cívica pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Católica Portuguesa. Curso de Formação Especializada em Administração Educacional, pela Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias. Investigadora integrada do CeiED e membro de equipas de investigação de projectos financiados pela FCT. Diretora da Licenciatura em Ciências da Educação -Educação Social Coeditora da Revista Lusófona da Educação. Membro da Comissão científica de diversos eventos científicos. Autora de livros e de artigos publicados em revistas internacionais. Pós- doutoramento em História da Educação.

A CORPOREIDADE COMO PATRIMÓNIO CULTURAL DA HUMANIDADE

O património incorpora as marcas do tempo como se fosse uma síntese de experiências. O tempo vai mas sempre fica. A reversibilidade do tempo remete-nos para um processo vivencial que apela à nossa reflexão. O património (material e/ou intelectual) anula o intervalo, o vazio de acontecimentos e significados, carrega um passado que intervém no presente. Os projetos do futuro não podem deixar de integrar um pensamento temporal. A história do homem é a história do tempo com as suas continuidades e descontinuidades, formando uma unidade de conjunto. Transportamos este relógio vivo que é o património e isso deve merecer da nossa parte toda a atenção e estima para que a sua preservação possa ser uma realidade levada à prática por todos os responsáveis. Na realidade, todos somos responsáveis, todos devemos ser responsáveis. A educação patrimonial deve despertar em cada um uma tomada de consciência desta necessidade. Só conjugando as decisões macropolíticas com a micropolíticas é que poderemos assegurar a preservação do tesouro patrimonial e evitar condutas indignas. A grande questão do património é sublinhar um processo que expressa etapas do nosso pensamento que funciona como um saber matricial. Daí considerar-se o património como um bem cultural que traduz os valores que por terem sido marcantes, continuam a marcar-nos na perenidade dos tempos. De algum modo somos o que fomos, de algum modo o nosso “ADN” forma-se no património cultural que herdámos. Porém, nem tudo o que o homem fez deve ser considerado/classificado como património. Ganha o estatuto de património o que é susceptível de ser representativo de saberes e práticas relevantes que mereçam ser destacadas. Esta é uma questão importante, pois permitem despertar em nós o interesse para aceder a outras realidades que fermentam a nossa sensibilidade. Não se trata de mero saudosismo mas de preservar a nossa memória de modo a expandir a consciência. Isto corresponde a uma função educativa que não pode ser negligenciada. É preciso ligar o que se faz hoje com o que foi feito, é preciso estabelecer os processos constitutivos. É preciso ligar os “fios” que nos constituem, é preciso capturar o “novelo” da nossa existência. 99


O enigma que é o ser humano deve também ser procurado no corpo. Devemos ser procurados não no vazio, no extraser, no incorpóreo. Precisamos do corpo para nos humanizarmos. E neste processo de construção, muitas têm sido as versões de ser humano projetadas sobre o corpo ao longo da história. O corpo dá sentido à nossa pertença, ao que de pessoal se constrói a partir do social. Já se descodificou o código genético, mas continua-se a ignorar a importância de também se descodificar o corpo a partir dos códigos culturais. As transformações do corpo não se explicam apenas pela hereditariedade, pelos cromossomas e genes. Precisamos igualmente de perceber que a mudança se faz também pelas estruturas simbólicas da cultura da sociedade-grupo que serve de filiação e de construção da identidade, de um povo ou de cada um em particular. A presença do homem ao longo da história expressa-se no corpo. Nele, o mundo faz-se presente, com as suas visões filosóficas, religiosas, políticas, económicas, científicas, etc. Nele, a história escreve-se com várias linhas, várias tonalidades. Por isso, a leitura do corpo tem necessariamente que ser multidisciplinar e interdisciplinar, para não se cair no limitado conhecimento de interpretação que resulta da habitual abordagem assente na decapitação reducionista. Um fenómeno complexo não pode ser analisado de forma tão simplista. Hoje, quando se caminha para o pós-humano, importa mais do que nunca, investigar o corpo como parte integrante do património da humanidade. Estaremos a perder a humanidade do corpo? Repensar o humano na corporeidade é também um desafio que se coloca à reflexão patrimonial. Seja em nome da saúde, da moda, da estética, da identidade de género, da rentabilidade económica…a combinação entre a vida natural e a vida artificial pode vir a confundir-se. Sem dúvida que todas as transformações que estão em marcha e as que se avizinham terão grande repercussão na identidade corporal. Como é sabido, o corpo foi alvo de grande de investimento da sociedade capitalista. Os trabalhos de Michel Foucault são prova disso mesmo, desenterraram o corpo da marginalidade, colocando-o em grande destaque enquanto realidade biopolítica. Nele se cruzam diferentes poderes que o marcam, o disciplinam segundo os interesses em jogo num determinado momento histórico. E isso é algo que não pode passar despercebido à nossa reflexão patrimonial. Mas para onde caminhamos? As manipulações genéticas, as cirurgias estéticas, as próteses, os transplantes, os implantes de silicone, a robótica…fazem com que o pós-biológico não seja uma miragem, mas uma realidade bem próxima de nós. Não se estará a conduzir o corpo para um novo dualismo? Esta desmaterialização da nossa natureza não nos está a induzir a um novo tipo de corpo-máquina? Onde fica o humano? Um corpo não humano? Onde situar o “Eu”? O novo tipo de salvação que a ciência nos está a empurrar merece toda a nossa atenção. Seja como for, o homem não pode desaparecer. Isto leva-nos a integrar o corpo como parte integrante e necessária à reflexão patrimonial.

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Filipa Neto Licenciada em História, variante Arqueologia pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (1998) e Mestre em Evolução Humana, pela Faculdade de Ciências e tecnologias da Universidade de Coimbra (2003). Atualmente exerce funções no Departamento de Bens Culturais da Direção-Geral do Património Cultural (DGPC), onde é gestora da base de dados de património arqueológico - Endovélico e do Portal do Arqueólogo. Nos últimos anos tem coordenado, pela DGPC, vários projetos co-financiados pela União Europeia e organizado vários encontros profissionais, alguns dos quais em parceria com o Conselho da Europa para divulgação da Convenção de Faro (CF) e da Estratégia XXI. Encontra-se a desenvolver trabalho na ativação da rede de parceiros da CF, em Portugal, e na criação de uma rede de cooperação com Espanha, para promoção e integração da CF nas práticas de técnicos, projetos locais e escolares. Participa num projeto de Educação Patrimonial com a Inspeção Geral de Educação e Ciência para enquadrar os princípios da CF nas escolas.

If we truly realize the interdependent nature of the dust, the flower, and the human being, we see that unity cannot exist without diversity. Thich Nhat Hanh O Valor do Património Cultural para as Sociedades Contemporâneas: A Convenção de Faro

Vivemos num mundo cada vez mais exigente, fluido e rápido, onde as mudanças ocorrem a velocidades supersónicas, o esforço para nos mantermos atualizados é sobre-humano e o que é valorizado socialmente é a nossa capacidade de gerir, informar e inovar. Nesta agitação mundana, a exigência de continuamente transpormos o nosso eu nas mais variadas tarefas e ações, resulta tantas vezes numa insatisfação de expectativas e numa desconexão com a realidade essencial das coisas. O sociólogo Zygmunt Bauman chamou-lhe a isto a era da Modernidade Líquida, recorrendo à metáfora do estado liquido para explicar as constantes mudanças, a impermanência das coisas e a efemeridade das relações. Embora este conceito acarrete algum pessimismo na caracterização das atuais sociedades, Bauman perspectivou-o de uma forma até bastante construtiva ao referir que “a mudança é a única coisa permanente e a incerteza a única certeza”, reforçando assim a necessidade da adaptabilidade e criatividade do Homem para o suave fluir do progresso da civilização humana (Bauman, 2001). Assim, e seguindo a sua construção teórica, se para o futuro das sociedades humanas é necessário que o Homem se reinvente, então é igualmente fundamental que previamente se (re)conheça. É neste ponto que, a dimensão cultural e patrimonial fazem a diferença no desenvolvimento da civilização humana, uma vez que são elas que lhe conferem corpo e estrutura. Só através da consciência de uma identidade coletiva e individual, ou seja, do meio em que o Homem se insere, cresce e vive, daquilo que é feito, é que consegue apreender a sua verdadeira essência e as suas capacidades evolutivas.

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Deste modo, entender o papel do património cultural é entendermo-nos a nós. Sejam monumentos construídos, histórias contadas, canções de embalar, trajes de outrora, ou enxós de pedra recuperadas em povoados pré-históricos, tudo pertence à esfera humana e representa o testemunho da nossa vivência. Estar presente nesta ideia, ou antes, neste sentimento, é assim reconhecer que o património cultural nos define e é definido por nós. Assim, pensar em património cultural no século XXI requer o desafio de ampliar a nossa perspetiva, e romper com noções circunscritas a dogmas que resultam de políticas públicas e práticas de gestão e salvaguarda estabelecidas ao longo de várias décadas. Para Guilherme d’Oliveira Martins, coordenador nacional do Ano Europeu do Património Cultural – 2018, o Património Cultural é um “conceito dinâmico e deve evitar-se a tentação de ser apenas uma questão do passado, antes um direito e um dever, porque recebemos a herança das gerações que nos precederam e temos de acrescentar e enriquecer esse legado” (Martins, 2016). Trata-se portanto de compreender o património como um elemento de inovação e criatividade que vive da constante dialética de vontades, decisões e projeções sejam passadas, presentes e/ou futuras. Repensá-lo como valor potencial de desenvolvimento sustentado e gerador de riqueza, tanto material como imaterial. Mas o património cultural é também diálogo, compreensão, uma vez que é pela identificação e respeito pela diversidade que alcançamos a unicidade. O líder espiritual vietnamita Thich Nhat Hanh, escreveu “Estamos aqui para despertar da ilusão da separação” ao procurar referir-se que todos os fenómenos, sejam naturais ou humanos, são interdependentes, uma vez que só se conhecem quando interligados. Chamou-lhe o princípio da “Interexistência” (Hanh, 2010). Também a cultura pode, e deve, ser concebida como um elemento de unificação e proximidade entre os opostos, de compreensão pelo que é diferente e de abertura da nossa mente e coração em direção ao outro. Neste âmbito, o património cultural ajuda a promover a diferença não como algo discriminatório, mas como uma característica intrínseca ao Homem e portanto universal. A sua boa gestão permite assim potenciar práticas de cidadania responsável, assentes no respeito pelos direitos humanos e contribuir para a melhoria da qualidade de vida generalizada das sociedades contemporâneas. É precisamente partindo da ideia de humanização do património e da cultura, como base para um novo paradigma politico e jurídico, que o Conselho da Europa promoveu a Convenção Quadro sobre o valor do Património Cultural na Sociedade Contemporânea, assinada a 27 de outubro de 2005, na cidade de Faro, Portugal. Esta convenção vem reconhecer “…que cada pessoa no respeito dos direitos e liberdades de outrem, tem o direito de se envolver com o património cultural da sua escolha…” (Conselho Europa, 2005) reforçando assim a importância da participação ativa dos cidadãos na interpretação do património, e nos processos de salvaguarda e valorização dos bens culturais. Este diploma resulta do culminar de vários instrumentos jurídicos e da uma reflexão crítica e construtiva de mais de 40 anos, sobre como melhor proteger o património cultural, espelho de interculturalidades. O seu carácter inovador reside na proposta de uma nova noção do papel e funcionalidade do património cultural, e da procura de respostas à questão para Quem é que se deve proteger o património, em vez de Como se deve protege-lo. Introduz conceitos como Património Comum e Comunidades Patrimoniais, (Conselho da Europa, 2005) reconhecendo a noção do património cultural como valor 102


primordial do desenvolvimento humano, e a partir do qual todos os demais valores se constroem. Trata-se assim de um projeto audacioso e inspirador, assente na noção de património como uma herança comum e identitária que contribui para a dinamização socioeconómica e que suporta o exercício de uma cidadania participativa, livre e cooperante. A sua publicação marca uma profunda alteração no curso da história das políticas de gestão patrimonial, motivo pelo qual temos assistido a avanços e recuos nos seus processos de implementação nos vários países europeus. Com efeito, com a Convenção de Faro é posto à vista a necessidade de reposicionar o património cultural nas políticas governamentais, conferindo-lhe a importância de valor estratégico e transversal para o desenvolvimento de abordagens que se pretendem cada vez mais integradas e inclusivas, tarefa nem sempre fácil no enquadramento das políticas públicas nacionais. Não obstante, e porque se trata eminentemente de um instrumento atual e capaz de contribuir para a criação de respostas e soluções aos exigentes desafios do mundo moderno, a Convenção de Faro serve de suporte para as recentes recomendações Europeias, como a “Estratégia para o património cultural europeu para o século XXI” adotada pelo Comité de Ministros da Cultura do Conselho da Europa, a 22 de fevereiro de 2017. Esta Estratégia pretende encorajar e apoiar a implementação dos princípios de Faro no espaço territorial europeu, e aos vários níveis de implementação (nacional, regional e local) em torno de três componentes entre si convergentes: 1) componente social; 2) componente do desenvolvimento territorial e económico; 3) componente de conhecimento e educação. Com uma forte vertente pragmática e prática, a abordagem do Conselho da Europa para a implementação de ambos os documentos, apoia-se sobretudo na divulgação e incentivo de boas práticas, desenvolvidas no seio de entidades públicas, privadas e religiosas, associações não-governamentais e cidadãos, e na promoção de iniciativas para partilha de experiências. Procura deste modo, contaminar de forma positiva a sociedade civil para uma governança participativa na defesa e gestão do património cultural. Neste processo, a Rede de Parceiros da Convenção de Faro tem tido um papel fundamental, conferindo-lhe dinamismo e multiplicidade de abordagens (Conselho da Europa, 2018). A Convenção de Faro legitima assim vontades e sentimentos há muito sentidos pelas comunidades e cidadãos. Permite em conclusão afirmar qu, não há apenas um saber na forma de celebrar e valorizar património cultural, mas sim vários; não há apenas um caminho para a gestão e defesa da nossa memória cultural, mas sim vários; não há vários patrimónios culturais, apenas um, Nós.

Um especial agradecimento pelo convite da Luísa Janeirinho para a participação neste documento que testemunha o trabalho do projeto Museu do Mundo/SPHAERA MUNDI nos ideais da Convenção de Faro. 103


Bibliografia BAUMAN, Zygmunt (2001) – A Modernidade Líquida. Jorge Zahar. MARTINS, Guilherme d’Oliveira (2016) – Património, Herança e Memória in Participação: Partilhando a Responsabilidade. (ed.) Ana Carvalho, Acesso Cultura, Associação Cultural, pp. 18-28. CONSELHO DA EUROPA (2005) - Council of Europe Framework Convention on the Value of Cultural Heritage for Society [Consultado a 17.01.2019 em https://www.coe.int/en/web/conventions/full-list/-/conventions/rms/0900001680083746]. CONSELHO DA EUROPA (2018) – The Faro Convention Action Plan handbook 2018-2019. [Consultado a 17.01.2019 em https://www.coe.int/en/web/culture-and-heritage/faro-action-plan]. CONSELHO DA EUROPA (2017) - Recommendation of the Committee of Ministers to member States on the European Cultural Heritage Strategy for the 21st century (CM/Rec(2017)1) [Consultado a 17.01.2019 em https://rm.coe.int/europeanheritage-strategy-for-the-21st-century-strategy-21-full-text/16808ae270]. HANH, Thich Nhat (201) - The Sun My Heart. Parallax Press: Berkeley, United States.

Imagem 1 - Workshop sobre Comunidades Patrimoniais, no IV Congresso de Educação Patrimonial, Madrid 2018. Imagem 2 – Reunião sobre projeto de Educação Patrimonial como uma ferramenta da Convenção de Faro, Barreiro, Portugal, 2019,

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A Anne Marie Claire e o Emanuel são um casal que viveu em Cabo Verde, entre Dezembro de 2017 e Julho de 2018. Ela, natural da Guiné Conacri e Ele de Portugal, partilham a convicção de que um mundo melhor é possível, estando nas mãos de cada um, dar forma a ações empreendedoras que tenham por objetivo concretizar sonhos e aspirações que concorram para o bem-estar das pessoas e das suas comunidades. Licenciada em relações internacionais, mestre em gestão de recursos humanos, a Anne Marie Claire tem colaborado na implementação de projetos de apoio ao desenvolvimento, sobretudo no domínio da saúde pública; o Emanuel, licenciado em gestão, pós-graduado em economia social, dedica-se à gestão de projetos governamentais, financiados pela União Europeia, na região PALOP e Timor Leste.

EMPREENDER PARA DAR VIDA AO SONHO

Ser-se Humano é a grande riqueza que nos assiste, porque temos a capacidade de sonhar e o sonho é a matéria-prima que nos mobiliza no empreendimento de renovar ou construir um mundo melhor.

Sabemos que numa parte significativa do nosso planeta as pessoas ainda têm de concentrar uma grande parte das suas energias no exercício criativo da sobrevivência. Esta tarefa todo o dia, todos os dias desgasta o mais resiliente sonhador.

As dificuldades da vida, a escassez de recursos e a resiliência que, por vezes, não assiste a todos de igual forma, concorrem para uma realidade a que o antropólogo Oscar Lewis (1967) chamou de cultura de pobreza, assente na crença fatalista de que trabalho e ambição em nada melhorarão a existência do indivíduo e/ ou da comunidade, transmitindo-se num ciclo vicioso de geração em geração, através ações que se traduzem em marginalidade, dependência, segregação, numa equação que tem por denominador comum o sentimento generalizado de inferioridade e de falta de valor pessoal.

A vida no grande continente africano chega até nós, frequentemente, como sendo um palco privilegiado para assistir a esta realidade de pessoas desgastadas pelo exercício ardiloso da sobrevivência, que não têm mais tempo nem energia para sonhar. No entanto, a verdadeira realidade deste continente não é, de todo, assim, e nele se operam verdadeiros milagres através de pessoas que ousam empreender, dando vida aos seus sonhos e a um futuro mais promissor para as suas vidas e 105


para a dos seus descendentes.

Da experiência vivida nos vários países africanos, sobretudo da costa ocidental, por onde temos passado, temos percebido que as iniciativas bem sucedidas e geradoras de riqueza e bem-estar, não são propriamente obra do acaso, mas sim resultado do grau de instrução/ formação dos seus promotores, do contacto destas pessoas com ações ou projetos que as ensinaram a desenvolver técnicas e instrumentos de gestão simples que funcionam nas suas ações de empreendedorismo e que estão na base da concretização dos seus sonhos.

Na sua grande maioria, as iniciativas concretizadas têm em comum três etapas que, formal ou informalmente, se verificaram para que a ideia inicial, projeto ou sonho tivesse ganho forma. O contributo que pretendemos dar com este documento, consubstancia-se na identificação dessas etapas, na partilha dos instrumentos de gestão que estão na sua base, na explicação do seu funcionamento e, por último, no repto que lançamos para ousarem pôr estes instrumentos ao serviço da concretização de sonhos, materializados em ações geradoras de valor acrescentado, para si, para a sua comunidade e para o mundo, de forma geral.

Assim, as três etapas basilares identificadas em ideias que se tornaram projetos concretos, sustentáveis e com futuro são:

I.

IDENTIFICAÇÃO clara DO PROBLEMA que se pretende resolver ou minorar;

II.

IDENTIFICAÇÃO DOS OBJETIVOS que se pretendem alcançar para resolver ou minorar o problema;

III.

DESENVOLVIMENTO DE UMA ESTRATÉGIA para alcançar os objetivos com vista à resolução ou redução do problema.

A primeira etapa para a concretização de uma ideia inicial/ projeto consiste na IDENTIFICAÇÃO DO PROBLEMA, através do diagnóstico da situação geral considerada insatisfatória que se pretende alterar e, para se identificar corretamente o problema central, tem de se: - identificar os aspectos negativos da situação existente, 106


- reconhecer o que os estão a causar.

Figura 1 – Árvore dos Problemas | Fonte: Brandt (2014)

A forma de uma árvore pode facilitar este exercício.

Para se construir, tal como

ilustrado, uma árvore de problemas, tem de se atender aos seguintes aspectos:

a) Refletir sobre os problemas considerados prioritários;

b) Escolher o problema central, sendo aquele que se pretende minorar ou,

se possível, eliminar. Servimo-nos de um exemplo frequentemente utilizado para demonstrar como funciona este instrumento – e.g. Lixo nas ruas, que provoca o caos no trânsito em situações de chuva, devido ao lixo que entope os sistemas de escoamento da água, provocando enchentes e disseminando doenças provocadas pelo contacto com as águas contaminadas pelos lixos em deterioração;

c) Pesquisar as razões que estão na “raiz”,

ou seja, que são as causas do problema central – e.g. pessoas não colocam o lixo no devido local, número reduzido de operações de recolha do lixo e de cestos, falta de limpeza regular das ruas;

d) Estabelecer uma hierarquia dos problemas que são a causa do problema central, uma vez que os problemas que estão na base do problema central, poderão ter outros problemas de fundo na sua base e assim sucessivamente;

e) Interligar os problemas através de setas. 107


Figura 2 – Características de um objetivo bem definido | Fonte: Adaptação pelos autores do modelo de Doren, George (1981)

Apesar de parecer muito elementar, a análise de problemas através da respetiva árvore é muito eficaz para a sistematização do problema e para a correta compreensão das suas causas e efeitos, sendo uma prova de que a gestão eficiente se faz com recursos a soluções simples acessíveis a qualquer um.

A

segunda

etapa,

IDENTIFICAÇÃO

correspondente

DOS

OBJETIVOS

à que

se pretendem alcançar para resolver ou minorar o problema. Apesar de não ser fácil, é fundamental, pois permite saber para onde se quer caminhar e o que se quer alcançar. Frequentemente,

o

insucesso

verificado

nos projetos que empreendemos ou até nas grandes mudanças que queremos fazer na nossa vida, justifica-se pelo facto dos objetivos que definimos para esse efeito terem sido mal definidos.

Um objetivo bem definido compreende um conjunto de características. Sugere-se a palavra “SMART”, que, em inglês, significa esperto/ inteligente. e que é composta pelas iniciais das cinco caraterísticas que os objectivos devem refletir. Vejamos: A definição correta dos objetivos vai permitir descrever a situação futura que se espera alcançar com a concretização do projeto a empreender ou das ações a tomar. Para esse efeito, tem de se estabelecer uma hierarquia de objetivos, definindo:

a) Qual o objetivo geral, que corresponde à grande meta a alcançar; 108


b) Quais os objetivos específicos que concorrem para atingir o primeiro, ou seja, as concretizações bem sucedidas que, somadas, vão permitir que a grande meta a que nos propomos seja alcançada com sucesso. Para melhor se compreender a relação entre os diversos objetivos, podemos recorrer à ilustração da relação entre os meios e os fins recorrendo, agora, a uma árvore de objetivos. Figura 3 – Relação Atividades/ Meios e Fins | Fonte: Sistematização dos autores

Figura 4 – Árvore dos Objetivos | Fonte: Brandt (2014)

De acordo com a Figura 3 – Relação Atividades/ Meios e Fins, com a árvore de objetivos, convertem-se as situações negativas identificadas na árvore de problemas, em situações desejáveis e realizáveis, da seguinte forma:

a) Convertem-se as causas identificadas na árvore de problemas em atividades/ meios através das quais a solução central será alcançada;

b) Convertem-se os efeitos identificados na árvore de problemas, nos fins que se pretendem alcançar.

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Corroborando a ideia de que é no problema que está a chave para a sua solução, desta forma poderemos converter a árvore de problemas em árvore de objectivos, tal como ilustrado na Figura 4 – Árvore dos Objetivos, o que pode obrigar-nos a rever a primeira árvore, acrescentando ou eliminando objetivos, o que não nos deve preocupar, pois faz parte do processo. A terceira e última etapa, comum às ideias/ projetos concretizados com sucesso, consiste no DESENVOLVIMENTO DE UMA ESTRATÉGIA para alcançar os objetivos com vista à resolução ou redução do problema a intervir. A análise “SWOT” (denominação proveniente do Inglês) é o instrumento proposto para sistematizar:

a) Análise interna – os seus pontos fortes (Strenghts) e fracos (Weaknesses) b) Análise ao meio onde se está inserido – as suas oportunidades (Opportunities) e ameaças (Threats).

Para se fazer esta análise é necessário um grande conhecimento interno de nós e/ou da nossa organização, portanto, mesmo quando é elaborada por alguém diferente de nós próprios e/ou externo à nossa organização/ projeto, deve existir uma colaboração estreita entre quem redige a análise e todos os outros que detêm conhecimentos mais profundos sobre a organização, num espírito de grande colaboração e desejo de melhorar. Quando totalmente identificada a informação a constar na análise “SWOT”, os pontos fortes no Campo 1, os pontos fracos

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no Campo 2, as oportunidades no Campo 3 e as ameaças no Campo 4, sob a forma de tópicos simples e concisos, de acordo com a seguinte ilustração: Figura 5 – Análise SWOT | Fonte: Adaptação pelos autores do modelo de Humphrey, Albert (1960-70)

De uma forma genérica, esta análise permite definir uma estratégia que contempla:

a) Reforçar os pontos fortes da pessoa, da sua organização e/ ou projeto; b) Minimizar ou eliminar os seus pontos fracos; c) Aproveitamento das oportunidades proporcionadas pelo meio, ou seja, pelo sítio onde está ou onde quer implementar a sua ideia ou projeto;

d) Defender-se das ameaças aí existentes, através do(s) objectivo(s) específico(s) a alcançar. Apesar de existirem outros instrumentos para a definição da estratégia, a análise “SWOT”, diz-nos a experiência, gera muita simpatia, porque é de fácil compreensão e permite, sempre que existam, a participação de mais intervenientes no processo, com vista a dar forma a uma ideia/ projeto organizacional ou de vida pessoal com sucesso. Desta forma, a seleção das três etapas aqui apresentadas, identificadas nas ideias empreendedoras implantadas com sucesso no terreno e com as quais tivemos oportunidade de contactar, correspondem, não só a projetos de apoio ao desenvolvimento de iniciativa governamental, executados, promovidos e/ou apoiados por organizações internacionais no terreno ou por organizações não governamentais, mas também a projetos/ ações levados a cabo por pessoas que, na sua comunidade, sentiram o apelo para transformar essa realidade ou, simplesmente, empreender o sonho de darem forma a um projeto pessoal de mudança de vida. Cidade da Praia, 15 de abril de 2018 Coordenação Técnica e Redação Emanuel Gonçalves Pereira (Gestor; Perito Internacional de Projetos de Apoio ao Desenvolvimento) Pesquisa e Redação Anne Marie Kourouma (Lic. Relações Internacionais) 111


Marcele Pereira Professora de Museologia na Universidade Federal de Rondônia; Pró-Reitora de Cultura, Extensão e Assuntos Estudantis; Doutora em Sociomuseologia pela Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias - ULHT em Lisboa Portugal; Mestre pelo Programa de Pósgraduação em Museologia e Patrimônio da Universidade do Rio de Janeiro - UNIRIO PPG-PMUS e graduada em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ. Foi Diretora de Comunicação Social e Diretora Secretaria da Associação Brasileira de Museologia - ABM e Coordenadora de Museologia Social e Educação do Departamento de Processos Museais do Instituto Brasileiro de Museus, autarquia do Ministério da Cultura, coordenando a implantação e execução das ações dos Programas Ponto de Memória e a Política Nacional de Educação Museal – PNEM. Tem experiência na área de políticas Públicas, Museologia e Museologia Social, com ênfase em Educação Museal. Tem atuado nos seguintes temas: museologia social, educação, memória social, desenvolvimento de redes e museus.

NAZARÉ RIBEIRINHA: DECOLONIZAÇÃO DE UM TERRITÓRIO DE MEMÓRIAS.

O Programa de Extensão Em Defesa do Patrimônio Cultural dos Ribeirinhos: educação, memória e cidadania no Baixo Rio Madeira – PROEP está em seu terceiro ano de realização, e é fruto do Programa Nacional de Extensão - PROEXT, edital 2014, promovido pelo Ministério da Educação do Brasil - MEC. O Programa visa, entre outras ações, revelar, discutir e fortalecer a complexidade cultural ribeirinha garantindo autonomia para suas dinâmicas e processos. Pautado pela análise do contexto cultural e político da produção e reprodução do conhecimento, busca inserção na lógica que valoriza as epistemologias provenientes dos grupos e comunidades tradicionais. O Programa de Extensão se mantém ajustado no diálogo promovido a partir do respeito à produção cultural, as dinâmicas e as estratégias de sobrevivência diárias que alimentam o desejo de que a cultura ribeirinha saia da condição de subalternidade e escassez, pelo qual é vista por muitos, e possa ser considerada e valorizada a partir de seus impactos em outras áreas sociais, por sua pluralidade, grandiosidade e sabedoria. Um dos objetivos do PROEP em sua nova fase é, por meio de uma cartografia social, dar continuidade a construção dos circuitos museais da comunidade de Nazaré, propondo em conjunto iniciativas educacionais e artísticas que possam provocar discussões e reflexões sociais, econômicas e culturais a partir do protagonismo local. O Programa também busca contribuir com a capacidade de transformação e resistência das comunidades ribeirinhas, especialmente as localizadas no Baixo Rio Madeira, um dos afluentes principais do Rio Amazonas que banha os Estados de Rondônia e do Amazonas no Brasil. Frente aos desafios econômicos e socioculturais encontrados por estas comunidades ribeirinhas, é importante destacar o papel de promover, no âmbito da Universidade, outras oportunidades para o “confronto 112


comunicativo entre saberes”, onde a hegemonia da produção de saberes das Universidades possa ser desconstruída a partir de sua reconfiguração, proporcionando o diálogo e a valorização de formas alternativas de produção de conhecimentos sobre a realidade. Nada mais enriquecedor que observar a trajetória da Velha Guarda e o desenvolvimento do Festival Cultural, como elementos fundamentais para traçar a vida cotidiana das comunidades. Muitos conhecimentos cruzam as memórias do local, produzindo uma forte teia de relações, produções simbólicas, negações, afirmações, vivências e encantamentos.

Senhor Artemis Nazaré/2017

Importante destacar que a trajetória do Proep, na segunda fase de realização em 2016, sofreu profundo impacto, tendo as atividades seriamente afetadas quando em março o país e a democracia foram seriamente golpeados, fato este que enfraqueceu o desenvolvimento do Programa Nacional de Extensão, com o repasse de recursos interrompido. Sem um comunicado formal do Ministério da Educação, o planejamento e cronograma de trabalho foi gravemente comprometido e, neste caso, os maiores impactados foram os bolsistas que ficaram sem ter seus projetos renovados em 2016 causando prejuízo ao andamento das atividades, caracterizando a descontinuidade dos processos. Em junho num sopro de recomeço e, com a mínima decência diante dos compromissos assumidos, os repasses foram retomados, permitindo o retorno das atividades. No entanto, ainda hoje alguns bolsistas não receberam os pagamentos de suas bolsas referentes aos meses de dezembro que deveriam ter sido depositado em janeiro de 2017, criando um clima de desconforto para o Programa que assumiu a responsabilidade pelo descrédito diante das ações descontinuadas do Ministério da Educação junto ao Programa Nacional de Extensão/Proext. Com a regularização do repasse foi possível dar seqüência as ações planejadas com a realização da XVII Conferência Internacional do Movimento Internacional por uma Nova Museologia, primeira conferência Internacional sediada em uma comunidade ribeirinha em Rondônia, que discutiu a memória e sua capacidade transformadora para a comunidade de Nazaré, a Conferência promoveu a realização intensa de oficinas, debates e atividades que envolveram as escolas e a comunidade. 113


Com o fim das etapas iniciais previstas dentro do Proext/MEC, a terceira etapa conta com apoio Institucional da UNIR, por meio do Programa de Bolsas de Extensão e Cultura - PIBEC, da Pró-Reitoria de Cultura, Extensão e Assuntos Estudantis. Importante destacar o empenho e dedicação dos professores, técnicos e mais de 30 discentes, entre voluntários e bolsistas Proext que já estiveram conosco e os que permanecem nesta construção.

Equipe Proep e parceiros Minom/Nazaré 2016

Equipe Proep Nazaré/2017

Segundo Jackeline de Fátima Nakatani, discente do Departamento de Arqueologia e bolsista atuante desde a primeira etapa, “o Proep, abriu portas para outro mundo que me fez ver e experimentar momentos maravilhosos de muita aprendizagem que vou levar para minha vida”. A Comunidade Ribeirinha de Nazaré é responsável por organizar a maior manifestação cultural do Baixo Madeira, denominada de Festival Cultural. Durante esta grande celebração são realizadas no âmbito do Programa entrevistas, visitas aos moradores, discussões, caminhadas e apoio aos organizadores do Festival, especialmente com a confecção da ornamentação da festa e figurinos, de forma bem tímida, pois a comunidade concentra todo o processo de criação e produção com muita dedicação e habilidade. Os bolsistas e professores puderam experimentar a movimentação e os detalhes de realização de uma grande celebração cultural comunitária.

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Profa. Cida Louzada

Profa. Cida Louzada e Marcia Machado

O Festival Cultural realizado na comunidade ribeirinha de Nazaré, há cinquenta anos, encanta e fortalece a identidade cultural local. O Festejo, em princípio motivado por questões religiosas, resiste em muitas comunidades ribeirinhas promovidas pelas Igrejas Católicas onde os moradores auxiliam nos trabalhos. Com sua festa, Nazaré busca preservar o modo genuíno com que recorda tais manifestações, prefere não se adequar as novas modas, especialmente as influências no Boi Bumbá e nas quadrilhas, hoje grandiosos espetáculos com muito luxo e riqueza em suas fantasias, coreografias meticulosamente ensaiadas para concorrer a prêmios altos, garantindo espetáculos para públicos cada vez mais interessados nessa engenharia de espetáculo midiático e turístico. Nazaré procura sozinha, com parco apoio de entidades governamentais manter o espírito alegre e comunitário de sua festa. A quadrilha é incrementada por improvisos que garantem a diversão, as fantasias são aquelas de todos os anos, os moradores se sentem livres para fazer parte dos movimentos e os ensaios movimentam a vida da vila de Nazaré.

Boi Curumim/Nazaré 2017

Boi Curumim/Nazaré 2017

Com apresentações culturais e artísticas tradicionais, seus integrantes são moradores da comunidade, entre eles jovens e crianças e as apresentações do boi Bumbá Curumim, da quadrilha e do Serigandô são os pontos altos da festa. O ensaio, a produção, o enredo, cenário e figurino são pensados pela comunidade de Nazaré, especialmente por algumas famílias como 115


a Família Nunes, grande incentivadores e promotores da prática cultural ribeirinha, motivados pela memória do já falecido Manuel Maciel Nunes, primeiro professor da comunidade, que viu a Vila de Nazaré crescer a partir do seringal do Senhor Nanã.

Portal de chegada Festival Cultural de Nazaré/2017

Velha Guarda de Nazaré. Festival Cultural Nazaré/2017

Importante salientar que o Proep é resultado de uma Política Pública Nacional Brasileira que buscou fortalecer práticas extensionistas garantindo aos professores das Universidades Federais condições de fazer cumprir um dos pilares principais do ensino superior: a extensão, visando contribuir para o estreitamento da universidade e com os compromissos sociais de nosso pais.

Equipe em visita a residência do Senhor João Lobato. Nazaré/2017

Ao fortalecer as populações tradicionais buscamos com ações dessa natureza dar ênfase ao desenvolvimento de um programa que garanta destaque as resistências, garantindo oportunidades de crescimento entre comunidade acadêmica e sociedade, em ampla atitude de integração, troca e disseminação de conhecimentos.

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A dimensão pedagógica presente no Programa de Extensão Em defesa do patrimônio Cultural dos Ribeirinhos considera a prática educacional como uma ferramenta que provoca outras formas de aprendizagens e como diz Caterine Walsh (2014) visa desaprender e reaprender, desenvolvendo outras formas de engajamento social. A partir da experimentação dos processos museais, por meio da construção dos circuitos culturais, da Velha Guarda e do Igarapé, pretendemos contribuir para que a comunidade a partir do entendimento de Nazaré como um território de memórias insubordinadas tenham como horizonte a prática de iniciativas pedagógicas e museais desafiadoras da lógica normatizadora, capitalista, patriarcal, racista e homofóbica, atreladas a perspectiva da colonialidade do poder, colonialidade do saber e colonialidade do ser (Quijano, 2010). Dessa forma buscamos contribuir com a construção de caminhos que nos levam a pensar e sentir desde a perspectiva decolonial.

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Vânia Brayner Doutoranda em Museologia pela Universidade Lus fona da Humanidades e Tecnologia- ULHT, em Lisboa, Portugal. Antropóloga, especialista em Economia da Cultura e jornalista. Bolsista de Doutorado Pleno no Exterior da Fundação CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior do Ministério da Educação. Atua como consultora independente para a criação e implantação de políticas públicas de cultura para instituições governamentais e privadas, além de produções culturais independentes. De 2012-2014, atuou como consultora da Unesco no projeto de implementação e fortalecimento do Sistema Nacional de Cultura do Ministério da Cultura em Alagoas e Pernambuco (Brasil). De 2003-2012, foi Coordenadora Geral do Museu do Homem do Nordeste (MUHNE) da Fundação Joaquim Nabuco. Linhas de pesquisa nas áreas de cultura, patrimônio e contemporaneidade, com ênfase em museologia, sociomuseologia, museus e sociedade, memórias coletivas, políticas públicas e diversidade cultural.

PROGRAMA DE FORMAÇÃO DO JOVEM ARTESÃO DO MUSEU DO HOMEM DO NORDESTE1

Durante o período de 2003 a 2011, o Museu do Homem do Nordeste (Muhne), da Fundação Joaquim Nabuco, localizado na cidade de Recife, Nordeste do Brasil, foi um dos principais museus brasileiros a buscar sintonia com os princípios norteadores da Política Nacional dos Museus vigente, ao desenvolver processos museais construtivos de uma museologia social no campo dos museus oficiais. Essa nova Política, que trazia a ideia de uma museologia mais voltada para a sociedade, deu aporte e foi estratégica para a institucionalização das ações educativas e culturais do Museu. Uma das experiências nessa perspectiva foi o Programa de Formação do Jovem Artesão, realizado no período de 2004 a 2011, o qual recebeu menção honrosa de educação em museus, em nível nacional e internacional. Neste artigo, apresento as atividades do Programa num pequeno município de nome Araçoiaba, realizadas de 2006 a 2008.

O Museu e sua proposta pedagógica Inspiradas na ideia do seu criador, o antropólogo Gilberto Freyre (1900-1987), de que os museus são, essencialmente, um “centro de comunicação intelectual da espécie mais atraente, no seu modo de ser educativa” (Freyre, 2000), as ações educativo-culturais desenvolvidas pelo Muhne fincaram suas bases na pedagogia crítica-educativa, presente nas reflexões do educador e filósofo Paulo Freire, “na perspectiva de uma educação transformadora e de formação de futuros cidadãos”, objetivo afirmado pelo setor educativo do Museu, coordenado pela museóloga e educadora, Silvia Brasileiro, que sempre 1 Este artigo é um resumo do Capítulo 4 – O Jovem Artesão em Araçoiaba, do livro Desenvolvi-gente – a dimensão antropológica da cultura e o Jovem Artesão em Araçoiaba, da autora. Ver referências bibliográficas. 118


colocou-se contrária à visão tradicional de museu como simples recurso pedagógico para professores e alunos. Por isso, em seus projetos permanentes de educação, o Museu praticou suas ações como uma agência voltada para a inclusão sociocultural. A partir dessa nova perspectiva, o setor educativo tomou como referencial teórico a Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire, uma educação como prática para a liberdade que proporciona ao indivíduo as condições para, reflexivamente, descobrir-se como sujeito de sua própria destinação histórica.

O Programa de Formação do Jovem Artesão O Programa, voltado para um público jovem, oriundo das periferias da cidade, concebido pelo grupo Faço Arte2, com a participação do setor Educativo do Museu, teve o acervo museológico da instituição como referencial. Contudo, esta referência não se limitava aos objetos contidos no seu acervo físico, mas também no seu “acervo de gentes”. O objetivo estratégico do Museu era desenvolver uma tecnologia social no campo dos museus, capaz de produzir um modo de fazer e um modo de produzir conhecimento no campo da cultura, junto aos jovens das classes mais pobres — em geral, ausentes do convívio com os museus e com a criação e a fruição cultural. Para isso, era também necessário que o novo projeto atendesse aos requisitos de ser um trabalho educativo permanente, com baixo custo e de fácil aplicabilidade em outras instituições culturais e sociais. Dirigido a um público historicamente excluído, um dos objetivos sociais era melhorar a qualidade de vida do jovem participante, no sentido, de tentar diminuir o impacto da privação de capacidades (SEN, 2000) fortemente presente em seu cotidiano; e, por meio de um aprendizado participativo, ampliar as possibilidades das suas experiências estéticas e éticas, no caminho do desenvolvimento humano sustentável. Assim, em 2004, numa fase experimental, foram atendidos 20 adolescentes e jovens no módulo piloto do Programa de Formação do Jovem Artesão desenvolvido no Muhne pelo grupo Faço Arte e, paralelamente, no Movimento Pró-Criança (MPC), instituição de origem do grupo, onde foram criados dois núcleos de formação nas unidades localizadas em bairros pobres da cidade. Processualmente, o Programa de Formação do Jovem Artesão foi caracterizando-se como uma ação de inclusão sociocultural do Museu do Homem do Nordeste e do Movimento Pró-Criança (MPC)3, com a criação de uma rede de núcleos de formação profissional para jovens, entre 14 e 21 anos, no segmento do artesanato e do design artesanal. Até 2011, mais de 300 jovens do Recife e RMR foram atendidos pelo Programa, sendo o Museu responsável por cerca de 120 jovens, num período de seis anos. 2 Um grupo formado por produtoras independentes da sociedade civil, em conjunto com artistas e artesãos locais. 3 O MPC é uma entidade sem fins lucrativos, ligada à Arquidiocese de Olinda e Recife. É uma das principais instituições do país no desenvolvimento sócio-educativo de crianças, adolescentes e jovens em situação de marginalização e exclusão social, em Recife, Pernambuco. 119


A aposta num programa permanente de formação profissional de jovens no campo do artesanato de referência cultural se deu porque, além de desenvolver o pensamento criativo e a inteligência projetual que, segundo a jornalista e curadora Adélia Borges, não são privilégios da educação formal (2011, p.14), também poderia constituir-se numa oportunidade de geração de renda para os jovens que, apoiados numa formação empreendedora ao longo do Programa, poderiam dar continuidade profissionalmente, caso desejassem. Para isso, a metodologia do Museu acrescentou à troca de saberes entre as técnicas artesanais tradicionais e as artísticas contemporâneas, o profícuo encontro entre o artesanato e o design, ao incluir especialistas das diversas áreas do design de produto, com foco no artesanal4. Com isso, os resultados do Programa foram surpreendentes.

Um lugar chamado Araçoiaba O trabalho realizado com os jovens do município de Araçoiaba, localizado na Zona da Mata Norte de Pernambuco, a 67 quilômetros da capital (Recife), foi central no aperfeiçoamento da metodologia do Programa e, sobretudo, na sua consolidação dentro do próprio Museu e na criação de uma ampla rede de agentes institucionais, públicos e privados, o que lhe conferiu visibilidade na sociedade. Tudo começou quando, no final de 2005, o Museu foi convidado a participar de um projeto de responsabilidade social que a multinacional Unilever já desenvolvia no município e que visava, sobretudo, a elevação do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do município, o mais baixo da Região Metropolitana do Recife. Os recursos foram oriundos do Ministério da Cultura e possibilitaram ao Núcleo de Formação do Museu atender 50 jovens do município. Uma das principais diretrizes estabelecidas pelo Programa foi a introdução de referências culturais do lugar ao produto artesanal a ser criado pelos jovens, apoiado num diagnóstico sociocultural da cidade. O diagnóstico teve o objetivo de encontrar referências formais locais para nortear as ações do Programa, com foco no desenvolvimento do produto e nas ações de educação para o patrimônio, o que permitiu a construção conjunta do conhecimento sobre o município e oportunizou ao jovem participante voltar a olhar para a sua comunidade de uma maneira singular. Dentro da metodologia já desenvolvida com os demais gupos atendidos no Programa, o “Jovem Artesão” em Araçoiaba desenvolveu a sua ação pedagógica nos seguintes eixos:

Arte e Artesanato – desenvolve habilidades específicas e o sentido estético dos alunos com atividades ministradas

4 Foram convidados a participar do Programa diversos profissionais que atuam na vertente do design de produto artesanal, que incluiu designers, pesquisadores e curadores da área, como Janete Costa (arquiteta e curadora), Prazeres Accioly (designer têxtil), Melk Z-da (estilista) e Beth Paes (arquiteta e designer têxtil), de Pernambuco; Adélia Borges (curadora), de São Paulo; e Sérgio Matos (designer de produto), da Paraíba. 120


por arte-educadores e profissionais convidados — artistas plásticos e artesãos. Atividades: oficinas com diversas linguagens artísticas e técnicas, como desenho, pintura, reciclagem de papel, produção de papel artesanal, xilogravura, cerâmica, etc.

– Produto – realizado por profissionais da área de design e arte-educadores, promove a fusão dos resultados das oficinas de artes/artesanato com a criação e confecção de produtos. Atividades: oficinas de criação e finalização de produtos (estética, acabamento, funcionalidade, matéria-prima), criação de protótipos e embalagens, organização da produção, formação de preço justo e identificação do público consumidor. Nesse eixo, as vivências práticas com os produtos consistem na exposição e comercialização em feiras e eventos locais e nacionais.

– Desenvolvimento do Indivíduo - atividades de acompanhamento com o objetivo de promover o crescimento pessoal, o desenvolvimento social e profissional e a formação empreendedora dos jovens participantes. Atividades: oficinas, palestras e cursos sobre educação para o patrimônio cultural, empreendedorismo, associativismo, liderança e gestão de grupo, cidadania e pesquisa dirigida, ministradas por uma equipe multidisciplinar (arteeducadores, designers, artistas, estilistas, especialistas em educação para o patrimônio, desenvolvimento sustentável, administração e economia, ciências sociais, entre outras áreas). Além disso, realiza aulas-passeio aos museus, centros culturais e espaços de produção de arte e artesanato, com o objetivo de debater e consolidar conteúdos apresentados.

Após análise dos resultados coletados no diagnóstico sociocultural e a partir das discussões em sala de aula, os educadores e os jovens de Araçoiaba participantes definiram-se pela produção do papel artesanal e seus produtos derivados, com o diferencial de se utilizar a matéria prima local — fibras da cana-de-açúcar e de outras frutas e vegetais, como abacaxi, banana e maxixe; e pigmentos naturais do urucum e beterraba. Numa nova fase do projeto, 25 jovens foram selecionados e passaram a ser atendidos diretamente no Museu, com vistas à formação de um novo grupo produtivo que, mais à frente, viria a ser a primeira organização formal de jovens artesãos da Rede, a Associação Fibra e Arte de Araçoiaba (Arafibrarte). No Relatório de Gestão do Museu, a professora Silvia Brasileiro analisa os resultados e valoriza principalmente aqueles centrados no desenvolvimento humano dos jovens participantes, na valorização do patrimônio cultural e na participação efetiva do Museu nas políticas públicas de educação e cultura:

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Os resultados alcançados nesse projeto apontam para pensarmos o Museu como instrumento de inclusão social e cultural que, por meio dos seus acervos, favorece a ampliação do olhar, o crescimento pessoal, intelectual e estético desses jovens artesãos. Essas conexões e contextualizações entre os acervos do Museu, os produtos, os produtores e suas visões de mundo, reforçam a importância da preservação e valorização do patrimônio cultural e faz nos reconhecermos como espaços estratégicos para o desenvolvimento de políticas públicas de educação e cultura para o Brasil. (BRASILEIRO, 2011).

Mais do que formar artesãos, o Programa valorizou, desde o início, o desenvolvimento cognitivo dos jovens participantes, com estímulos à reflexão crítica das suas realidades vividas. Em entrevista no Muhne, a jovem Luíza, de 22 anos, traçou os seus objetivos de vida, a partir das novas perspectivas que ela própria identificou no Programa:

Eu penso em ter um trabalho nessa área talvez, por que antes eu pensava que ia estudar lá, e me formar lá mesmo e morar lá. Ser dona de casa e meu mundo se resumir ali. E depois do curso, eu comecei a ver lugares, outros meios, outras pontes. E minha vontade é de buscar cada vez mais. E espero conseguir um emprego bom, nessa área de artes plásticas, nessa área de artesanato que eu gosto muito de fazer. (LUIZA, 2010, comunicação pessoal)

Perguntada pelo facilitador da entrevista sobre o que, naquele momento, ela conseguia ver, quando abria a janela de sua casa, Luiza respondeu: “além da cultura que o curso passou pra gente, eu vejo adiante, porque eu sei que depois daquele canavial, vai chegar um lugar melhor”.

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Referências Bibliográficas:

Borges, Adélia. (2011). Design + Artesanato. O caminho brasileiro. São Paulo: Editora Terceiro Nome. Brayner, Vania (2012). Desenvolvi-Gente: a dimensão antropológica da Cultura e o Jovem Artesão em Araçoiaba. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana. Freire, Paulo. (1987). Pedagogia do Oprimido. 17 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra. Freyre, Gilberto. (2000). Que é museu do homem? Um exemplo: o Museu do Homem do Nordeste. In.: Catálogo do Museu do Homem do Nordeste – MUHNE, Coleção Banco Safra. Sen, Amartya. (2000). Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras.

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Mariana Mihaiela Ferreira Vive em Quinhamel, na Guinè Bissau. É licenciada em etnografia/musicologia e tem uma vasta experiência profissional sendo de destacar os inúmeros trabalhos desenvolvidos nas suas áreas de formação, nomeadamente, a administração e supervisão do projeto do Parque Nacional de Orango – Bijagós – nas atividades de eco-turismo - assim como a coordenação dos projetos de empreendedorismo cultural, sendo de salientar a Cabaz di Terra, a Artissal, e Mulheres +, sendo que todos eles têm como objetivos privilegiados a capacitação de artesãos locais, a valorização do saber fazer tradicional, a melhoria de condições para mulheres e grupos frágeis. Formadora nas áreas de gestão comunitária e liderança tem, também, alguns livros publicados nas suas áreas de formação e experiência profissional.

ECONOMIA SOLIDÁRIA ATRAVÉS DA CRIAÇÃO ARTÍSTICA E EMPREENDEDORISMO UM OLHAR A PARTIR DA IDENTIDADE TERRITORIAL

A Guine Bissau, denota-se e valoriza- -se muito com a sua diversidade. A diversidade pode ser encontrada, não só pelos produtos em si, mas também pelos modos de produção e de fabrico. Se nós olharmos para o seu espaço geográfico, a relação que temos entre o nosso espaço geográfico e a riqueza dos nossos produtos locais, é evidente . Ou seja, neste pequeno território nacional conseguimos encontrar uma diversidade imensa, que tem muito a ver com os hábitos de vida e com as necessidades que as próprias populações foram tendo, construindo a sua área de produtos tradicionais, sejam eles da área da gastronomia, sejam da área do artesanato e criação artística em geral. Produzidos ou transformados a nível local, os produtos locais são valorizados e procurados pelas suas características distintivas, geralmente identificadas de forma clara e simples. Entre essas, destacam-se, o sabor, a qualidade, tradição local/ marco cultural , aliadas a formas de produção sustentável e à perceção do importante contributo para a competitividade económica e a eficiência social e ambiental. As novas tendências do consumo valorizam estes atributos, aliando-os ao sentimento da defesa dos produtores e produtos nacionais/locais, à perceção destes como parte da nossa herança cultural que pretendemos preservar para as gerações futuras, criando assim novas oportunidades de mercado. Apesar destas vantagens parecerem evidentes, os produtos locais da Guiné Bissau, enfrentam grandes dificuldades no desenvolvimento da sua produção e comercialização. Desde logo, a manutenção da autenticidade, com a sua menor industrialização e a utilização de matérias-primas de qualidade, comporta custos que reduzem a sua competitividade de preço.. Além disso, para que os consumidores valorizem os produtos locais é necessário um esforço de marketing que pode 124


também ser bastante dispendioso, e em que o sucesso não é garantido. Para que os produtos locais se possam desenvolver é necessário, antes de mais, que os produtores sintam que a sua atividade é economicamente viável. Através dos produtos locais, é o território e o seu potencial que são valorizados. A presença destes produtos, assinalada expressamente no comércio, constitui um meio para que o público – visitantes e população local ganhe consciência da própria existência do território, do seu valor, da sua cultura e dos seus produtos específicos. É nesta perspetiva que se revela necessário aprofundar o conhecimento das condições de produção e valorização dos produtos tradicionais, tendo em vista fundamentar tecnicamente a adopção de medidas e formas de actuação que contribuam para aumentar o valor acrescentado local destas produções, e para melhorar os índices de emprego e de rendimento dos produtores e das comunidades. É aqui que entra a economia solidaria…. Ao longo dos 8 anos de trabalho da Cabaz di Terra, e das sistematizações de experiências subjacentes, confirmamos que as motivações para a economia solidária são de natureza subjetiva e ecológica em que as mulheres assumem um protagonismo cada vez maior e de aspirações por outro mundo possível e que está sendo construído no cotidiano. Assim, as intervenções da Cabaz, tem tido como centralidade a construção de novas relações econômicas e sociais que são construídas e reconstruídas cotidianamente pelos sujeitos que a constituem territorialmente. Assumimos pois, o risco de formular uma conceção de economia solidária a partir das interpelações vividas nesses anos pela heterogeneidade das iniciativas e pluralidade de atores e questões. Ao longo da nossa caminhada buscamos desconstruir algumas afirmações. A primeira delas é: a Guine Bissau e um dos países mais pobres do mundo …. Esta afirmação sempre é feita a partir de uma noção do que é pobreza e o que é riqueza. Podemos dizer que em termos de acesso ao exercício pleno da cidadania ainda temos muitos guineenses que não conseguiram alcançar uma condição digna de vida e de trabalho. Porém, é preciso relativizar o que chamamos de pobreza ao classificar uma população de pobre ou rica. No caso específico do debate sobre a economia solidária, afirma-se com clareza que Guine Bissau e um pais extremamente rico de ponto de vista ambiental e cultural , pela biodiversidade e pluri-diversidade de culturas e tradições. Do nosso ponto de vista, estamos a falar de riqueza. Assim, em vez de pensarmos a economia solidária sob uma ótica em que se procura transformar os produtores em pequenos empresários organizados, ainda que de maneira associativa, numa perspetiva unilateral, temos que fazer o caminho inverso. E que caminho inverso é esse? É o caminho de ter humildade e sensibilidade de perceber que tais iniciativas guardam originalidade e criatividade na busca cotidiana pela vida e no convívio com as características da região. Tais iniciativas contribuem para o fortalecimento do bemestar em cada uma das comunidades e territórios onde se conseguem implantar as práticas de economia solidária. Nesse sentido é preciso ocupar as linhas de frente da emergência de uma sociedade e de uma economia pluralista, face aos 125


riscos civilizacionais, ecológicos e sociais veiculados pela sociedade de mercado. A segunda afirmação é: a Guine Bissau é subdesenvolvida e é preciso que aportemos a esse povo sofrido, marcado pelas sucessivos sobressaltos políticos e conflitosdesenvolvimento. A onda desenvolvimentista que assola a Guine Bissau, é extremamente preocupante. E o que preocupa ainda mais são as iniciativas, o que é pior, estimuladas pelo Estado guineense de crescimento a partir da lógica do capital. As estratégias de desenvolvimento induzidas pelo Estado, a partir dos anos 90, aprofundaram as desigualdades e sempre pautaram pela dinamização urbana na sua maioria. Hoje, continua esvaziando o campo e inchando as metrópoles em nome do crescimento econômico que gera emprego. Mas, os resultados e usufrutos deixam a desejar. Grande parte do emprego é precário e temporário. A educação é extremamente deficiente e não há quadros profissionalizados no pais. Os jovens, sobretudo os que nunca saíram da Guine Bissau, acreditam que estão bem preparados profissionalmente o que não corresponde a realidade…dai a precariedade dos serviços e dos desempenhos laborais. Apesar de esforços gigantescos, ainda se segue a explorar a natureza como se ela fosse capaz de se recompor na mesma velocidade com que é delapidada. Os investimentos estão ligados ao consumo de bens com grande facilidade de crédito que alimenta a destruição das condições de vida digna para a população. Observa-se a ausência de infraestruturas de transporte e de saneamento no meio rural e nas cidades pequenas de uma forma geral. Nesse sentido é preciso que continuemos a resistir. Resistir à onda das indicações de inclusão produtiva, que nem sempre se articulam com as lógicas de emancipação das populações; e resistir à lógica, que às vezes provoca em nós o sentimento de que somos inferiores, coitadinhos e carentes. Nesse sentido a luta por uma Guine Bissau sem pobreza não se dá a partir da destruição de sua capacidade de resistência aos ataques do capital. Mas, ao contrário, dá-se a partir da observação cuidadosa dos modos de vida das populações fortalecendo-as e contribuindo para que se tornem cada vez mais autônomas. Esse é o desafio da proposta de educação em economia solidária que o planeamento estratégico para os próximos 5 anos da Cabaz di Terra aponta: o de favorecer a construção da autonomia e da emancipação tendo a criação e produção popular como trabalho. A margem disso, é claro, precisa-se o máximo de envolvimento dos cidadãos, das instituições e do Estado, no sentido de pensar e buscar concretizar em suas ações um processo de envolvimento que é multidimensional e que busca o bem-estar em cada comunidade onde as práticas associativas e de reciprocidade se afirmam. A terceira e última afirmação: Precisamos do crescimento para depois redistribuir a riqueza. É impressionante observar como ainda assumimos essa perspetiva como verdadeira, apesar do exemplo que nos dão a Europa e os Estados Unidos, nos últimos anos, que justamente nos permite dizer que crescimento econômico não é sinal de redistribuição e bem-estar 126


coletivo. No sentido inverso é preciso que pensemos essa questão à luz da ética do decrescimento em que: a) devemos enfrentar o desperdício improdutivo da sociedade de consumo que separa e destrói a capacidade de ser humano; b) devemos ser orientados por uma lógica de igualdade de gênero, de raça, do lugar que ocupamos na sociedade; e, c) devemos trabalhar de maneira holística a gestão coletiva dos diferentes recursos e riquezas que temos em cada um de nossos territórios. Então, dados esses pressupostos, está evidente que apoiamos a construção da economia solidária a partir e na direção de processos sustentáveis tendo em conta a diversidade das identidades territoriais guineenses. O que temos buscado como referência nas nossas intervenções é compreender a atividade econômica a partir de vários princípios e sentidos de reciprocidade, troca/intercâmbio e redistribuição. É uma economia de trabalhadoras associadas e trabalhadores associados que busca resolver questões de sua vida e da sociedade em geral e defende a prática de atividades econômicas por meio do vínculo social de proximidade (confiança, amizade e partilha). Tais iniciativas têm atenuado, em parte, os efeitos devastadores do mercantilismo e da degradação das relações sociais. A Cabaz di Terra ira sempre defender que, tal economia só se constrói a partir de um olhar multidimensional (político, econômico, social, cultural, ecológico e educativo, entre outros). Mariana Tandler Ferreira Maio de 2018

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Maria Adelaide Paredes da Silva Licenciatura em Línguas e Literaturas Modernas, Curso de Leitorado (ICALP, actual Instituto Camões); parte curricular dos Mestrados em Língua e Cultura Portuguesa e Educação e Desenvolvimento. Diretora do Centro de Formação de Associação de Escolas Almada Ocidental, do Centro de Formação de Associação de Escolas do Concelho de Almada e do Centro de RVCC. Diretora e do Centro de Competências Nónio Séc XXI. Coordenadora de vários Projetos Europeus, da Revista Proformar Online e da Revista AlmadaForma. Presidente Direção Almada Mundo Associação Internacional de Educação, Formação e Inovação (desde 2017) e membro dos órgãos sociais da Associação de Professores do Concelho de ALMADA. Miguel Feio Licenciatura, História e História Variante de Ensino. Mestrado em Ciências da Educação. Professor do ensino básico e secundário. Professor Universitário. Professor Ensino Especial. Consultor para a Educação, Património e Cultura.

COSMUS – COMMUNITY SCHOOL MUSEUMS VALORIZAÇÃO DO PATRIMÓNIO CULTURAL EUROPEU

Celebrando a Década Internacional para a Aproximação de Culturas 2013-2022 e identificando o ano de 2018 como o Ano Europeu do Património Cultural, a educação e a investigação têm como uma das principais responsabilidades o foco no estudo das comunidades e das suas dinâmicas na cidade (tomada de decisões, governo, planeamento, resolução de conflitos, comunidades alternativas, comunidades saudáveis, comunidades inclusivas, ecovilas, cidades de transição, etc.). Os pressupostos anteriormente nomeados permitiram construir uma narrativa museológica de trabalho, a partir do décimo 128


primeiro objetivo para o desenvolvimento sustentável, em contexto humanista e de acordo com o Horizonte 2020: tornar as cidades e os assentamentos humanos inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis.

O Externato Frei Luís de Sousa, em Almada (Portugal), escola da UNESCO e membro da Rede de Escolas de Educação Intercultural, estabeleceu uma parceria com organizações nacionais e internacionais que operam no campo da educação com o intuito de desenvolver estratégias para promover a integração social, melhorar a compreensão intercultural e um sentimento de pertença a uma comunidade, reconhecendo o valor patrimonial das comunidades, focado nos contextos da escola, comunidade e cidade.

COSMUS - Community School Museums, projeto europeu 2018-1-PT01-KA201-047472 ERASMUS+, procura valorizar o património cultural europeu como elemento central da diversidade e do diálogo intercultural. O projeto tem como visão estabelecer interações estratégicas e virtuosas, promotoras de diálogo intercultural, nos contextos escolar e comunitário, com sentido de inclusão e participação.

A missão do projeto COSMUS é estabelecer redes de aprendizagem, estimular a partilha de experiências, o desenvolvimento de competências, numa perspetiva de construção de conhecimento por via da colaboração e inovação.

Pilares de referência e eixos de ação: • Escola – diálogo intercultural, conhecimento e cidadania; • Comunidade - desenvolvimento social, territorial e económico; • Museu comunitário na escola - memória, identidade e inclusão. Mudar o mundo requer vontade, consciência e sabedoria. O projeto COSMUS pretende ser o primeiro passo para construir comunidades de aprendizagem e de prática, mobilizadas para compreender a diversidade cultural, numa perspetiva de cidadania global.

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Os principais objetivos consistem em: • Desenvolver estratégias de integração social, compreensão intercultural, sentimento de pertença e valorização das pessoas, nos contextos da escola, da comunidade e do território; • Promover processos de aprendizagem formal e não formal através do desenvolvimento de competências em literacia digital, TIC e multimédia, bem como a correta comunicação em línguas nativas e estrangeiras; • Sensibilizar para a responsabilidade social e cívica e empreendedorismo em ambientes culturais, estéticos e artísticos; • Satisfazer as necessidades de formação e aprendizagem de professores e alunos de uma forma significativa e adequada, com abordagens curriculares flexíveis e transformadoras, através do trabalho colaborativo, autónomo, numa lógica de inovação, criatividade e resolução de problemas. O projeto COSMUS congrega dez instituições europeias, numa rede de parcerias estratégicas: - Entidades Formais: 6 Escolas (Externato Frei Luís de Sousa, Portugal – Entidade Coordenadora; Colegiul National de Arta “Octav Bancila”, Roménia; Zespol Szkolno-Przedszkolny nr 1, Polónia; Istituto Istruzione, Itália; Ismail Sefa Ozler, Turquia; Kallitehniko Gymnasio, Grécia); 1 Universidade (Escola Superior de Educação Jean Piaget), 1 Centro de Formação de Professores (Eekhout Academy, Bélgica), 2 Associações (Almada Mundo, Portugal e Meraky, Espanha), - Entidades Não Formais: Câmara Municipal de Almada e ICOM Europa (Organização Internacional de Museus). As seis escolas envolvem alunos, professores e famílias de forma inclusiva, em articulação com a comunidade local, nacional e internacional. Um dos desafios subjacentes a cada uma das instituições educativas passa pela construção física de um Museu Comunitário de Escola, que promova a inclusão e interculturalidade, partindo da sua realidade escolar. Outro dos desafios consiste na produção de um museu virtual, com o contributo de todas as escolas. Os alunos participam respeitando critérios de igualdade de género, inclusão social, necessidades diferenciadoras, comunidades marginalizadas, insucesso e abandono escolar e aqueles que enfrentam problemas sociais ou religiosos ou outro tipo de exclusões.

O projeto desenvolve-se com recurso a metodologias participativas, inovadoras, interdisciplinares de desenvolvimento sustentável, trabalho em equipa numa linha de investigação-ação.

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Procura abordagens reflexivas e significativas para fazer face a diferentes temas e problemas, através de comunidades de aprendizagem e práticas educativas, construção de conhecimento, sentido crítico, protagonismo, envolvimento e participação da comunidade educacional. O projeto COSMUS constitui um universo de desafios a nível das competências comportamentais e emocionais (soft skills) para a promoção da interculturalidade, intergeracionalidade e da inclusão. As atividades de referência destinadas a este projeto incluem concursos, produção de conteúdos, produção intelectual, formação e aprendizagem, festivais, exposições, reuniões transnacionais e um evento multiplicador. Estima-se obter vários resultados, tangíveis e intangíveis, com impacto na transformação e mudança consciente da relação entre as comunidades envolvidas, que serão objeto de disseminação e estudo. Os contos, canções, relatos de vida, filmes, objetos, memórias e identidades, literatura e poesia, constituem um património significativo, desenvolvido no âmbito das dinâmicas educativas dos diferentes parceiros europeus, no domínio dos museus escolares comunitários. Pretende-se, igualmente, produzir um conjunto de ferramentas que permitam construir um museu comunitário nas escolas, uma publicação física e digital com a memória descritiva e detalhada do projeto e uma plataforma digital interativa, com um repositório associado. Objetivam-se resultados intangíveis nos seguintes tópicos: • Melhoria das competências de comunicação de professores e alunos (família), através de uma plataforma digital, fomentando a linguagem e a criatividade, debate e pensamento crítico, cooperação e desenvolvimento sustentável; • Uma consciência cognitiva do mundo e o seu potencial de transformação através de uma consciência intercultural; • Uma valorização do movimento de pessoas em escala planetária, • Interação e inclusão de diversos grupos étnico-culturais, diferentes na sua língua, religião, costumes e tradições; • O respeito pela diversidade cultural, contribuindo para uma educação mais humana e significativa, que valorize a diversidade da comunidade escolar e educacional; • Compreender os processos de mudança, sensibilizando para a reflexão sobre as comunidades que vivem e interagem na escola. • Promover a resolução colaborativa de problemas, em parceria com a comunidade educacional.

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Em suma: O projeto propõe-se explorar a dimensão europeia, num contexto de redes e parcerias estratégicas, promovendo a sensibilização e o desenvolvimento de atividades adequadas à construção do projeto COSMUS. O impacto esperado é significativo ao nível dos participantes diretos envolvidos, nomeadamente: professores, estudantes, comunidades, parceiros europeus, famílias e cidadãos da cidade, cujo património e contribuição cultural é reconhecido e valorizado, ampliando o impacto do projeto. É expectável que o projeto aumente o seu impacto em participantes diretos e indiretos durante seu decurso, sustentado numa informação, comunicação e disseminações contínuas e com sentido. Estima-se que os benefícios do projeto a curto, médio e longo prazo sejam muito significativos. Pretende-se desenvolver metodologias e produtos inovadores, acrescentando criatividade, imaginação e conhecimento, a partir dos diversos contributos, interações e redes estabelecidas no decurso do projeto. A construção de um museu escolar comunitário e das produções intelectuais que o suportam constituem uma inovação no setor educacional, social e cultural, inspirando a comunidade educativa a respeitar a diversidade, as memórias e identidades que pulsam no coração do COSMUS.

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Marta Morgado Arquiteta (1998-Lisboa), com 12 anos de experiência de intervenção em património arquitetónico, exerce desde 2009 funções de sócia-gerente da empresa Focusgroup CV. Com formação em joalharia na Escola Profissional de Ourivesaria (2000-Gondomar), envolveu-se em Cabo Verde em vários projectos de design e produção artesanal tais como, Krobo Jewelery, Dez Grãozinhos di Terra e a Ass. Born:Africa Handmade for Change. Da experiência de projecto e obra, trás para a produção artesanal o método do processo criativo e da paixão pelo saber fazer, toda a dedicação e o cuidado de quem faz o que ama.

REVITALIZAÇÃO DAS ARTES E OFÍCIOS TRADICIONAIS SOBRE O PAPEL DA PRODUÇÃO ARTESANAL - RAZÕES PARA A REVITALIZAÇÃO

Num momento em que a cultura imaterial em geral é alvo de atenções renovadas nos contextos cultural, político e económico, as denominadas artes e ofícios ou os “saber-fazer” tradicionais têm vindo a ser reconhecidas como parte fundamental da formação de identidade de qualquer comunidade. Enquanto atividades produtivas e criativas, com o seu valor assente no conhecimento e domínio das técnicas de produção e nos valores iconográficos e simbólicos a ela associados, as artes e ofícios tradicionais são uma das manifestações culturais contempladas no conceito de Património Cultural Imaterial, definido pela Convenção para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial – UNESCO, convenção esta adoptada pelo Concelho da Europa em 2003. De acordo com o seu artigo 2º/, entende-se por “património cultural imaterial” as práticas, representações, expressões, conhecimentos e aptidões – bem como os instrumentos, objectos, artefactos e espaços culturais que lhes estão associados – que as comunidades, os grupos e, sendo o caso, os indivíduos reconheçam como fazendo parte integrante do seu património cultural. Esse património cultural imaterial, transmitido de geração em geração, é constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função do seu meio, da sua interacção com a natureza e da sua história, incutindo-lhes um sentimento de identidade e de continuidade, contribuindo, desse modo, para a promoção do respeito pela diversidade cultural e pela criatividade humana.

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Com as atenções ao nível político cada vez mais colocadas na importância das questões culturais, o Conselho da Europa adoptou também em 2005 a Convenção-Quadro Relativa ao Valor do Património Cultural para a Sociedade, que defende que o conhecimento e o uso do património fazem parte do direito dos cidadãos de participar na vida cultural, como definido na Declaração Universal dos Direitos Humanos. O património é apresentado como meio para alcançar o desenvolvimento humano, promover a diversidade cultural e estimular o diálogo intercultural, constituindo parte integrante do modelo de desenvolvimento económico baseado nos princípios da utilização sustentável dos recursos (Conselho da Europa 2005; Thérond 2009). Também no domínio científico e académico a sua importância tem sido reforçada, com o interesse crescente no desenvolvimento de trabalhos de investigação, pensando o património cultural imaterial na sua multiplicidade de questões: como conhece-lo, como regista-lo, como defender a sua autenticidade e estimular a inovação. Para estas reflexões têm contribuído as abordagens da antropologia, da história, da geografia, das artes, do design, da economia, da sociologia e da educação, entre outras. Estamos assim na presença de uma dinâmica de reconhecimento da importância dos Saber fazer tradicionais, sem a qual seria impossível a sua revitalização. Com o foco colocado nas artes e nos ofícios tradicionais e tendo por base este enquadramento, gostaria de destacar, sob a forma de uma curta reflexão informal alguns aspectos conexos. O reconhecimento e a valorização por parte dos agentes culturais, políticos e económicos, encontra eco na sociedade civil em geral? A relação que hoje se observa entre os consumidores e os objetos de artesanato, permite-nos inferir que estes são predominantemente vistos como elementos decorativos ou elementos do folclore, relacionados com modos de vida com as quais as pessoas ou não se identificam já, ou se têm com elas alguma ligação emocional, esta encontra-se remetida para um passado remoto fazendo parte do universo das memórias de outros tempos. Podemos também dizer que, de modo geral, os consumidores estão mais vocacionados para integrar no seu dia-a-dia peças de produção industrial, do que artefactos de produção artesanal. Ao presente condicionalismo - imposto pelo modelo capitalista e industrial, que faz com que os consumidores contribuam ainda que inconscientemente para um distanciamento cada vez maior, entre a raiz utilitária dos objetos artesanais e a sua possível função no quotidiano - acresce uma desvalorização do saber fazer e dos processos produtivos, que pela sua 134


natureza predominantemente mecanizada, promovem a invisibilidade e a desumanização das diferentes etapas da préprodução aos produtos finais. Esta perda de conhecimento e de visibilidade, o imediatismo e a banalização dos produtos, contaminou toda a cadeia de produção e tem tido impactos negativos, sobretudo nas áreas de produção ligadas às artes e aos ofícios tradicionais, onde a singularidade e o valor intrinsecamente cultural da produção, perdeu terreno para produtos etnico-industriais e para o mercado do souvenir take away. Temos pois, se quisermos inflectir estas lógicas, que efectuar uma aposta na mudança das percepções e dos comportamentos, através de estratégias integradas e continuadas (duradouras), com reflexos nos curriculae escolares, que ponham o foco na valorização da produção artesanal, que contribuam para a efectiva partilha dos diferentes saber-fazer e por conseguinte, possam ser a base do resgate deste património e simultaneamente, uma plataforma de valorização efetiva das artes e dos ofícios locais. Sem estas bases, no momento de comprar taças para casa, o consumidor optará certamente por taças industriais, provavelmente de plástico, em detrimento de taças de cerâmica feitas à mão por alguém da sua comunidade, desvalorizando por completo toda a cadeia de valor intrínseco que o objeto transporta, para além da sua função. Como preservar a originalidade dos saber fazer tradicionais face às pressões impostas pelas solicitações do mercado? Temos vindo a assistir a um interesse crescente na ligação do artesanato com outras áreas do saber, tais como o design de produto e o design de comunicação, que tem proporcionado espaços de pesquisa e de reflexão neste domínio, assim como a diversificação, a preservação da originalidade da produção e a sua requalificação. Tem-se também assistido ao surgimento de diversos movimentos de defesa dos produtos de origem local e da produção artesanal, que funcionam como âncoras, reforçando as identidades e o pluralismo cultural. Estes movimentos, associados à revitalização dos saber fazer, à valorização da produção local e à defesa de um regresso a uma forma de economia menos dependente da importação e da grande indústria, têm servido de contraponto a fenómenos como o do “turismo cultural” que ao abrir uma nova frente de mercado com procura crescente por produtos tradicionais “artesanais”, não raras vezes, tem resultado na diminuição da qualidade e na perda de valor dos produtos que consome. O processo de continuidade dos saber fazer tradicionais é hoje entendido não apenas como a valorização de um património, testemunho da formação de identidades e culturas, mas também como atividade económica fundamental numa perspetiva 135


de valorização do local, do genuíno e de comportamentos mais ecológicos, e estas abordagens à escala local criam impactos no desenvolvimento social e aumentam a sustentabilidade económica dos artesãos podendo simultaneamente funcionar como tampões à eventual perda de originalidade, induzida pela pressão da procura. Sendo as artes e ofícios tradicionais cultura, são processos vivos, evolutivos e parte de um sistema. Se ao nível do reconhecimento cultural têm sido dados alguns passos, outros terão que ser dados em todas as áreas que dizem respeito ao produtor/artesão e à sustentabilidade da sua atividade profissional. A produção de um artesão, conhecedor de técnicas e procedimentos de transformação e preparação da matéria -prima, transportam em si todo o valor que decorre da sua integração e interrelação com o seu contexto. Neste sentido torna-se imprescindível a concertação de esforços para valorizar os “detentores” e os “transmissores” das tradições de saber fazer, as matérias e as técnicas, viabilizando a continuidade de vivências e dos seus enquadramentos, sem os quais se esvazia a produção original da sua alma, do seu sentido. A contribuição destas atividades para a economia local é reconhecida, a importância da sua defesa e promoção está identificada, no entanto as medidas políticas de valorização deste património têm que ser concertadas e transversais, não podendo ser vistas como uma preocupação apenas dos agentes da “cultura”. A sua sobrevivência, revitalização e sustentabilidade passa pela afirmação de novas gerações de artesãos. Importa por isso que o mestre artesão seja reconhecido e se reconheça como elemento fundamental no seio da sua comunidade. Colocar a actividade de artesão/ productor/ criador na lista de profissões desejáveis pelos jovens, como uma actividade valorizada, rentável e digna, é uma condição fundamental para a construção da evolução continuada do artesanato. A atenção dada ao artesanato não deve estar focada apenas nos produtos, mas sobretudo nas competências e nos conhecimentos necessários à sua produção. A salvaguarda tem de passar pela preservação dos objectos, mas também pela criação de condições que incentivem os artesãos a continuar a produzir e a transmitir o seu saber-fazer a outros, em especial aos membros mais novos das suas próprias comunidades. Só neste contexto será possível assistir ao surgimento natural de um artesanato contemporâneo que preserva, repensa e recria a identidade local, num percurso natural de evolução.

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STORIA, STORIA……VALORIZAÇÃO CULTURAL |PATRIMÓNIO IMATERIAL | CAPACITAÇÃO STORIA STORIA…, projecto concebido pela Associação Born:Africa handmade for change - cuja missão é a execução de actividades de capacitação destinadas a comunidades inter-geracionais, tendo por base o património imaterial, simbólico e identitário da comunidade, vinculado no tempo pelas personagens das estórias e da tradição oral. Acreditando na produção artística como meio de afirmação individual e da comunidade em geral, com especial incidência no património imaterial e nas simbologias identitárias, este projecto foi concebido enquanto vector de valorização da cultura local e promotor da geração de rendimentos. Estes princípios encontraram eco nos objectivos desenhados pelo projecto inspira-te património criativo, da Associação SPHAERA MUNDI, tendo ficado claro desde o primeiro momento que a criação de sinergias entre ambos daria bons frutos. Neste contexto de parceria, viabilizou-se a implementação do projecto STORIA STORIA, enquanto acção piloto no seio da comunidade da Cidade Velha – Ribeira Grande de Santiago, que foi enquadrado de modo a dar continuidade ao processo já iniciado pela SPHAERA MUNDI, junto das crianças em idade escolar, na educação para e pelo património. Paralelamente, envolveram-se costureiras e costureiros da comunidade, potenciando os conhecimentos de costura já existentes. A acção foi estruturada para ser um processo, transversal e multidisciplinar, que forneceu ferramentas para a autonomia, profissional e pessoal, partindo do capital de criatividade e capacidade de expressão que existe em cada um. O processo criativo teve como eixos condutores a importância do Património imaterial na valorização e preservação da cultura e da transmissão de valores na construção da contemporaneidade. A acção de capacitação foi conduzida pela artista Julieta Franco, que com enorme generosidade mergulhou no seio desta comunidade e abraçou de forma apaixonada, a missão de transmitir os seus conhecimentos e o seu saber fazer. A compreensão do contexto, a representação dos símbolos e marcas da cultura do quotidiano, a percepção dos vínculos emotivos dos elementos da comunidade com a sua história, foram a base da definição e concepção das personagens trabalhadas. As técnicas de execução, o cuidado colocado na produção, a aprendizagem do processo, desde a base desenhada do molde aos detalhes de acabamento de cada personagem de pano, deram corpo à colecção de bonecos. Cada personagem identificada, desenhada e baptizada pelo grupo de trabalho, foi concebida e transformada em moldes pelas mãos da Julieta, a partir daí foi lançar mãos à obra! Todo o grupo colocou em prática saberes antigos e novos, conjugou experiências, aprendeu e ensinou, num processo dinâmico de enorme enriquecimento para todos os envolvidos. Nasceram personagem de pano, muitas e variadas, cada uma única, todas com o mesmo objectivo. Conseguiu-se a valorização de um património que não é sempre evidente e visível, evidenciaram-se capacidades existentes, multiplicaram-se conhecimentos e práticas. Há personagens de pano a nascer todos os dias na Cidade Velha que vão para perto e para longe, contar um bocadinho da história de onde vêm. O brilho nos olhos de quem faz nascer cada uma das personagens e que continua a multiplicá-las é o melhor indicador dos bons resultados obtidos.

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Bibliografia COSTA, TERESA – Valorização das Artes e Ofcios Tradcionais – Desafios e oportunidades, Seminário, Ponte de Lima 2016 PEREIRA, TIAGO FILIPE BARRADAS - Desenvolvimento do Artesanato de Peniche -

Elementos para um Plano de Acção - Relatório de Estágio de candidatura ao grau de Mestre, UTL – IGOT, Lisboa

2011 CABRAL, Clara Maria Ferreira Bertrand - Dissertação de Mestrado - Património Cultural Imaterial, UTL – ISCSP, Lisboa 2009 CONCELHO DA EUROPA – CONVENÇÃO-QUADRO DO CONSELHO DA EUROPA RELATIVA AO VALOR DO PATRIMÓNIO CULTURAL PARA A SOCIEDADE, FARO 2005 UNESCO - CONVENÇÃO PARA A SALVAGUARDA DO PATRIMÓNIO CULTURAL IMATERIAL, Paris 2003 Krucken, Lia - Design e território - Valorização de identidades e produtos locais, SEBRAE, Brasil, S/D

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Georgina Benrós de Mello Nnatural de Cabo Verde, é economista pelo ISE da Universidade Técnica de Lisboa. Fez estudos de pós graduação em Cabo Verde, São Paulo, Brasil e na Universidade de Pittsburgh, EUA. Obteve o grau de Mestre em Património, Turismo e Desenvolvimento. Trabalhou em Cabo Verde e Timor-Leste. É a primeira mulher a exercer o cargo de Diretora Geral do Secretariado Executivo da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, com sede em Lisboa, desde 3 fevereiro 2014.

A CIDADE VELHA E O TURISMO1

Introdução.

2009 é o ano de base do presente estudo, que trabalha o período 2009-2012, visando traçar um retrato

básico da realidade do mercado turístico em Cabo Verde, na mira de perceber seu funcionamento e sua eventual relação com o património.

Perspectiva Regional.

Com base na informação disponibilizada pelos inquéritos anuais realizados pelo Instituto Nacional

de Estatísticas (INE) à movimentação de hóspedes nas estruturas de alojamento destinadas ao turismo, em todo o país, pode-se inferir as eventuais preferências regionais dos turistas, que se traduzem na posição relativa de cada ilha destino. Assim, no cômputo global, em 2009, a Ilha do Santiago constitui a terceira ilha de maior acolhimento de turistas, com 6,3% do total das entradas de hóspedes nas estruturas hoteleiras nacionais, logo depois das ilhas do Sal (44,8%) e da Boavista (25%) (INE, 2010).

1 Este artigo é extraído da dissertação de mestrado em Património Turismo e Desenvolvimento, com o título “Museu Virtual de Paisagens de Cabo Verde – Por um modelo alternativo de turismo”, defendida em 2014, pela Universidade de Cabo Verde, da cidade da Praia, Cabo Verde. 139


No Quadro n.º 1, a seguir, pode-se ver os dados caracterizadores do ano base do estudo: QUADRO N.º 1 - PREFERÊNCIAS REGIONAIS DOS PRINCIPAIS MERCADOS EMISSORES, ANO 2009 Ilha de destino \ Mercado de origem

Santo Antão

São Vicente

São Nicolau

Sal

Boavista

Maio

Santiago

Fogo

Brava

Total

Número de Entradas nas Estruturas de Alojamento

1.Reino Unido

250

970

17

36.493

17.703

32

1.515

26

5

57.011

2.Portugal

353

2.867

44

18.454

8.625

68

20.089

107

10

50.617

5.496

8.710

779

10.723

2.803

389

11.160

2.999

77

43.136

392

651

36

24.120

16.322

27

951

128

1

42.628

1.431

2.137

46

19.081

12.957

91

2.627

1.735

33

40.138

3.Turistas Residentes em Cabo Verde 4.Itália

5.Alemanha

Em suma, os 5 principais mercados emissores de turismo para Cabo Verde (referidos na tabela acima) correspondem a 70,7% do número total de hóspedes entrados nas estruturas nacionais de alojamento no ano 2009, que foi de 330.319 hóspedes (INE, 2010). Numa análise ano a ano, verifica-se que, ao longo do período estudado, a posição da Ilha de Santiago mantem-se como terceiro destino turístico em Cabo Verde. Apesar de ligeiras oscilações, as estruturas hoteleiras de Santiago absorveram entre 12 a 14% do total de hóspedes entrados nas estruturas hoteleiras de todo o arquipélago.

140


No Quadro n.º 2 seguinte, pode-se ver os dados caracterizadores do mercado no final do período em análise: QUADRO N.º 2 - PREFERÊNCIAS REGIONAIS DOS PRINCIPAIS MERCADOS EMISSORES, ANO 2012 Ilha de destino \ Mercado de origem

Santo Antão

São Vicente

São Nicolau

Sal

Boavista

Maio

Santiago

Fogo& Brava

Outras Ilhas

Total

Número de Entradas nas Estruturas de Alojamento

1.Reino Unido

n/d

710

n/d

42.311

71.174

n/d

819

n/d

224

115.238

2.França

n/d

11.962

n/d

20.175

18.283

n/d

4.197

n/d

14.976

69.593

3.Portugal

n/d

3.454

n/d

18.191

18.793

n/d

26.215

n/d

1.137

67.790

4.Alemanha

n/d

2.637

n/d

27.174

30.339

n/d

2.594

n/d

4.562

67.306

5.Turistas Residentes em Cabo Verde

n/d

9.079

n/d

12.255

4.684

n/d

14.047

n/d

11.545

51.610

Em síntese, também em 2012 os 5 principais mercados emissores de turismo para Cabo Verde (e referidos na tabela acima) correspondem a mais de 2/3 do turismo: ou seja, 69,6% do número total de hóspedes entrados nas estruturas nacionais de alojamento, que atingiu os 533.877 hóspedes (INE, 2013).

Comparando ambas as tabelas, conclui-se que, tanto em 2009, quanto em 2012, os seguintes mercados emissores de turismo para Cabo Verde integram o grupo dos TOP4: o Reino Unido, Portugal e a Alemanha. A que acresce a Itália, em 2009, cuja posição nos TOP4 é no entanto superada, em 2012, pela França. Importa sublinhar aqui o peso do turismo interno. Concretamente na Ilha de Santiago, o turismo interno representa a 2ª principal fonte de turistas entrados nas estruturas hoteleiras, em qualquer dos anos, logo a seguir aos turistas provenientes de Portugal. Outra particularidade interessante é que os turistas residentes no país são, na sua maioria esmagadora, em 2012, nacionais caboverdeanos. Com efeito, os caboverdeanos residentes registados hóspedes nas estruturas hoteleiras nacionais representaram 9,2% do total de hóspedes, nesse ano de 2012, contra 0,4% de estrangeiros residentes (INE, 2013).

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Cidade Velha, Património da Humanidade. A cidade de Ribeira Grande de Santiago, primeira capital de Cabo Verde e berço da Nação caboverdeana, foi a primeira povoação fundada pelos portugueses em solo caboverdeano, depois convertendo-se em capital da então nascente nova possessão da Coroa portuguesa e na primeira cidade fundada pelos europeus em África. Logo prosperou e de tal modo que viria a ser cobiçada pelos corsários que nos séculos seguintes a atacaram e destruíram sucessivamente, até que as autoridades do Reino de Portugal decidiram transferir a capital mais para sul. Situada em região mais abrigada, dotada de melhor porto e propiciando mais fácil defesa, constituir-se-ia assim a Vila da Praia, elevada à condição de cidade desde a segunda metade do século XIX: a cidade da Praia, actual capital de Cabo Verde.

Na cidade da Ribeira Grande de Santiago cedo começou o processo de miscigenação entre os senhores brancos e as escravas negras, que daria origem à mestiçagem e ao nascimento da língua e da cultura caboverdeanas, sendo pois, justamente, considerada como o berço da Nação.

Declarada Património da Humanidade pela UNESCO em 2009, a Cidade Velha constitui um produto turístico cultural por excelência. Diversos monumentos e ruínas históricos de grande valor podem ser visitados. Como a Fortaleza Real, o Convento de São Francisco, os vestígios dos pequenos fortes costeiros ou do hospital da Misericórdia, o Centro Interpretativo da Cidade Velha, entre outros pontos de interesse. De entre eles destacaremos o Pelourinho.

O pelourinho é uma coluna de pedra, erigida em lugar público, junto à qual se expunham e castigavam os criminosos. Era o padrão distintivo da autonomia administrativa das vilas, concelhos e cidades. Inscrito na tradição medieval, o pelourinho surge como símbolo do poder dos que dominam a cidade ou vila. O pelourinho tinha a função de distinguir com certos privilégios, as cidades que os possuíam. Por isso se situava nas proximidades dos edifícios representativos do governo local e da igreja. O poder judicial do concelho estava figurado no pelourinho. Tinham também direito de pelourinho os grandes donatários, os bispos, os cabidos e os mosteiros, como prova e instrumento da jurisdição feudal. O pelourinho de uma sede de concelho sempre foi um local de extrema importância, pois marcava o sítio onde publicamente se fazia justiça e se decidia acerca dos condenados. Em suma, o pelourinho simbolizava a dignidade de sede de um concelho.

A designação pelourinho deriva da associação dessa coluna com fins punitivos aos locais onde eram erigidas, em zona de 142


grande movimento de populares e geralmente nas proximidades do mercado. Sendo o mercado o centro comercial da vila ou cidade, onde se traficavam escravos, bens alimentares – produtos agrícolas, tecidos – panos de terra, etc., asseguravase assim grande visibilidade ao pelourinho e aos eventuais criminosos que aí fossem expostos e/ou punidos.

Como em outras paragens, o Pelourinho da Cidade Velha é constituído por uma base sobre a qual assenta uma coluna (ou fuste), a qual termina por um capitel, e assenta sobre os degraus necessários para dominar a praça e ficar horizontal o patamar donde subia a coluna. Rodrigues apud Gomes (2006, p. 174) atribui o Pelourinho da Cidade Velha ao arquitecto Marcos Pires, acrescentando que o Pelourinho já existia em 1512. Terá sido implantado na cidade da Ribeira Grande de Santiago entre 1501 a 1512, no largo em frente ao mar (Pereira, 2009, p. 72). Os principais dados técnicos desta obra – na sua configuração actual, pós sucessivos restauros, são os seguintes (Gomes, obra citada):

 Altura total: 4,20 metros  Nº de degraus: 3  Plataforma: Octogonal  Matéria prima: Mármore branco

Apresenta actualmente no topo uma esfera, a esfera armilar associada aos Descobrimentos Portugueses, a qual representa o conhecimento do mundo pelos Portugueses, simbolizando por isso os navegadores ao serviço da Coroa Portuguesa. A Cruz que nela se inscreve simboliza a Igreja Católica e a sua missão de evangelização, num período de “Descobertas”, em que os missionários têm, em Cabo Verde, a missão de converter os escravos ou “ladinizá-los”, preparando-os assim para a grande travessia oceânica. Contudo, estes dois elementos, a esfera armilar e a cruz, não existiam na configuração do Pelourinho nos anos 50 e 60 do século XX, como se pode conferir na Figura n.º 1 que se pode ver a seguir. Com efeito, a configuração do Pelourinho da Cidade Velha alterou-se no tempo, relativamente à sua configuração actual, tendo ganho em enriquecimento e beleza.

143


Figura n.º 1 - Pelourinho da Cidade Velha, Ribeira Grande de Santiago, anos 50/60.

Autor: Djessa Mello, finais dos anos 1950, início dos anos 1960

Esta figura prova igualmente que, ainda num passado recente, o Pelourinho localizava-se mais para o interior e junto às casas, do que na actual posição de maior proximidade ao mar. Do mesmo modo, a base que hoje, na sequência dos trabalhos de restauro da Cidade Velha levados recentemente a cabo, apresenta-se octogonal, com 3 degraus, era, ainda em meados do século XX, quadrada e constituída de 4 degraus. A meio da coluna, o Pelourinho apresenta uma argola. Pode-se relacionar esta argola, assim como os ferros no topo da coluna, com a função de justiça do pelourinho: serviria para os escravos serem amarrados e expostos à vergonha, senão mesmo açoutados ou mutilados, consoante a gravidade do delito e os costumes da época. Com efeito, “o Pelourinho da Cidade Velha destinava-se a julgar os delinquentes por crime de roubo, ou agressão não mortal, comuns na cidade fundada na ilha de Santiago, sendo amarrados, durante certo tempo, a uma peça de ferro (argola) (...)” (Gomes, 2006, p. 173). O Pelourinho da Ribeira Grande de Santiago seria contudo e sobretudo um símbolo de ostentação do Poder, mais do que um símbolo de Justiça (Gomes, 2006, p. 180), tese corroborada por Albuquerque et al. (2001). Em matéria de turismo e fluxos turísticos, ter-se-iam registado 9.207 visitantes no ano de 2009 (Fernandes, 2009), o que representa pouco mais de 25% dos turistas que visitaram a Ilha de Santiago. Desses visitantes, 42,7% eram caboverdeanos, representando os demais 57,3% turistas de várias nacionalidades, sendo as presenças mais numerosas as de britânicos (em 1.º lugar), de franceses (em 2.º lugar) e de portugueses (em 3.º lugar). As entradas para visita do interior da Fortaleza Real são vendidas a preços de ECV 100$00 e 500$00. 144


Na Figura n.º 2 abaixo, pode-se apreciar a configuração actual do pelourinho da Ribeira Grande de Santiago, de inspiração renascentista. Figura n.º 2 - Pelourinho da Cidade Velha, ano 2003

Autor: Adalberto Barbosa, 2003.

Trata-se de uma obra de grande beleza e rara configuração, com potencial intrínseco para constituir um produto turístico por excelência da Cidade Velha. Constitui, sem dúvida, uma obra de arte marcante na vida da Ribeira Grande de Santiago, mas também um marco basilar de uma fase preliminar da formação da Nação caboverdeana, como aliás as demais ruínas e toda a história da Cidade Velha. Em suma, existem motivos fortes de visita da região, caso esses recursos turísticos sejam devidamente trabalhados, não só pelas autoridades mas também pelas empresas do sector do turismo, para construção de um produto turístico sólido e de marca, sua colocação no mercado e venda aos operadores turísticos.

Lisboa, 31 de Março de 2018 145


BIBLIOGRAFIA

1. Albuquerque, L.; Baleno, I.; Cabral, I. M.; Cohen, Z.; Correia e Silva, A. L.; Santos, M. E. M.; Soares, M. J.. “História

Geral de Cabo Verde - Volumes I e II”. Instituto de Investigação Tropical e Instituto de Investigação Cultural. Lisboa e Praia, 2001.

2. Barcelos, C. J. S.. “Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné – Memória Apresentada à Academia Real

das Sciencias de Lisboa – Parte I”. Typographia da Academia Real das Sciencias. Lisboa, 1899. 3. Cabo Verde Investimentos. “Análise da Procura Turística Nacional e os Produtos Turísticos Prioritários”. CI. Praia, 2009.

4. Cabo Verde Investimentos. “Tópicos do mercado 2009 Alemanha”. CI. Praia, 2010. 5. Cabo Verde Investimentos. “Tópicos mercado britânico”. CI. Praia, 2010. 6. Cabo Verde Investimentos. “Tópicos do mercado Itália”. CI. Praia, 2010. 7. Cabo Verde Investimentos. “Tópicos do mercado Portugal”. CI. Praia, 2010. 8. Cabo Verde Investimentos. “Tópicos do mercado Residentes”. CI. Praia, 2010. 9. Costa, A.; Pinheiro, M.; e Tavares, J.. “Estudo da Cadeia de Valor do Turismo de Cabo Verde”. CPE/GPM. Praia, 2011. 10. Fernandes, H. J. M. L.. “Cabo Verde y la Ruta del Esclavo: Atlántico, el cruce de Alma y Sudor. Un ejemplo de exposición temporal”. Universidad Autónoma de Madrid. Madrid, 2009.

11. Gomes, L.. “O símbolo da autoridade na obra de arte colonial: o caso do Pelourinho da Cidade Velha – Santiago

de Cabo Verde”. Artigo publicado em Ciências Humanas em Revista - São Luís, V. 4, n.º 2, Dezembro de 2006, 169-183, e consultado em 25 de Janeiro de 2011, em: http://www.nucleohumanidades.ufma.br/pastas/ CHR/2006_2/lorenco_gomes_v4_n2.pdf

12. Instituto Nacional de Estatística de Cabo Verde. “Análise dos Principais Resultados – Movimentação de hóspedes 2009”. INE. Praia, 2010.

13. Instituto Nacional de Estatística de Cabo Verde. “Estatísticas do Turismo 2010”. INE. Praia, 2011. 14. Instituto Nacional de Estatística de Cabo Verde. “Estatísticas do Turismo - Movimentação de Hóspedes em 2011 - Análise dos Principais Resultados”. INE. Praia, 2012.

15. Instituto Nacional de Estatística de Cabo Verde. “Estatísticas do Turismo 2012 - Movimentação de Hóspedes - Folha de Informação Rápida”. INE. Praia, 2013.

16. Instituto Nacional de Estatística de Cabo Verde. “Inventário anual aos Estabelecimentos Hoteleiros 2012 – Folha de Informação Rápida”. INE. Praia, 2013.

17. Lopes Filho, J.. “Introdução à Cultura Cabo-Verdiana”. ISE. Praia, 2003. 18. Pereira, D. A.. “Marcos Cronológicos da Cidade Velha – 2ª Edição (Revista e Actualizada)”. IBNL. Praia, 2009. 146


Alcides Lopes É cabo-verdiano, possui graduação em Música (2006) e Mestrado em Antropologia (2015) pela Universidade Federal de Pernambuco, Brasil. Foi professor na Universidade de Cabo Verde – Uni-CV (2011-2012). Seu campo de pesquisa é Etnomusicologia. Atualmente cursa doutoramento em Antropologia pela Universidade Federal de Pernambuco. É autor do livro Os Tamboreiros da Ilha das Montanhas: música e sociabilidade no Colá Son Jon de Porto Novo (2017).

O EMPODERAMENTO DAS COMUNIDADES: PCI EM FOCO No campo das ciências humanas, no que tange a investigação em história, sociologia e antropologia, nos deparamos com conceitos problemáticos. Conceitos como “comunidade”, “cultura”, ou mesmo, “crioulização” são geralmente taxados de “conceitos guarda-chuva”. Uma analogia que se aplica na medida em que o guarda-chuva não nos protege totalmente da chuva. No nosso caso cabo-verdiano, o chapéu-de-sol também não nos protege plenamente do sol. Outrora, nestas disciplinas, os problemas que surgiam em virtude da utilização destes conceitos (comunidade, cultura, crioulização) como elementos estruturais de enquadramento, não eram substancialmente diferentes entre si. De certa forma, estes pesquisadores de diferentes perfis procuravam descobrir quais as variáveis significativas, determinar quais as relações que com caráter de recorrência se estabeleciam entre elas no intuito de constituir a comunidade como totalidade que podia dar unidade a essas recorrências 1. Não obstante, os fantasmas da falta de representatividade e da impossibilidade de generalização e/ou comparação têm assombrado as análises de todas e todos. Hoje, parafraseio Benedict Anderson na introdução da sua famosa obra Imagined Communities 2 revisitada em 2006. “Meu ponto de partida é a nacionalidade, como também o nacionalismo, como artefato cultural de um tipo particular. Para entendê-los propriamente precisamos considerar cuidadosamente como eles se desenvolvem em seres históricos, de que forma os seus significados se transformam com o tempo, e por que eles detêm uma profunda legitimidade emocional” (p. 4). 1 «On Referring to Ordinary Historical Persons», 1973. In E. A. Wrigley (ed.), Identifying People in the Past, London, Edward Arnold, p. 40 2 Anderson, B. 2006 [1983]. Imagined Communities: reflections on the origin and spread of nationalism. London, New York. 2nd Ed. Verso. 147


Na esteira da vasta tradição da historiografia liberal e das ciências sociais, não existe uma “definição científica” do conceito nação, não obstante a omnipresença do fenômeno. Não menos preocupante tem sido a constatação cada vez mais gritante de forças antagónicas dentro das fronteiras de “velhas nações”, outrora apreendidas como consolidadas. Ao mesmo tempo, levamos em consideração a observação de Anderson, ao citar Seton-Watson, quando argumenta que mesmo os membros da mais pequena das nações nunca irão conhecer todos os seus concidadãos, ou até mesmo saber se eles existem, ainda que na mente de cada um dos sujeitos esteja viva a imagem da sua comunhão.

No caso de Cabo Verde, um dos poucos países a serem profundamente moldados pelo fenômeno de migração,

estas diferenças tomam uma proporção crítica – a experiência histórica de um arquipélago povoado, em um primeiro momento por imigrantes, e que posteriormente experimentou a emigração em escala massiva. No capítulo, Cape Verdean Migration and Diaspora 3, Carling e Batalha argumentam que os laços cultivados com a diáspora formaram uma linha de vida crítica para o país recém independente, como também, instrumental durante a transição para a democracia multipartidária (p. 13). Segundo Hafstein, nas metanarrativas da modernidade, a comunidade como princípio moral sempre parece uma causa perdida: uma virtude fora de moda, salvo talvez em alguns redutos na periferia do mundo moderno. A familiaridade deste ponto de vista, é porque as comunidades compartilham destas perspectivas com as tradições populares e o patrimônio. Ou seja, a comunidade corre perigo e é objeto de preocupação válido para a consciência patrimonial. Esta passagem remete à pesquisa de campo realizada em duas situações distintas: primeiro, durante as festas de Colá Son Jon de Porto Novo nos anos de 2013 e 2014, no trabalho realizado com o mestre construtor Betchinha e sua família, como também, com o grupo de tamboreiros e coladeiras de Colá Son Jon Bota Fogo em Ribeira de Corujinha, bairro periférico da cidade de Porto Novo, do qual resultou o livro Os Tamboreiros da Ilha das Montanhas (2017) 4; e segundo, no bairro de Cova da Moura (Área Urbana de Génese Ilegal) em Amadora, Portugal, durante o mês de junho de 2017. Quando acompanhei as festas de Kola San Jon na antiga Lisboa no dia de Santo Antônio e no bairro de Cova da Moura no dia de São João. Também acompanhei as apresentações do grupo de batuko Finka Pé durante as apresentações na Feira do Livro de Lisboa, e em Castro Verde, no Baixo Alentejo. Em Cova da Moura, tive a sorte de acompanhar um ensaio para a Tertúlia da Morna realizado pelo músico Jon Luz e sua Produção, com a participação de vários músicos, entre estes, o Armando Tito e cantoras cabo-verdianas e portuguesas. Tal evento ocorreu na Associação Cultural Moinho da Juventude em uma tarde de sábado do referido mês. 3 4 148

Transnational Archipelago. Perspectives on Cape Verdean Migration and Diaspora. Edited by Luís Batalha and Jørgen Carling. Amsterdam University Press (2008). LOPES, A. J. D. 20017. Os Tamboreiros da Ilha das Montanhas: música e sociabilidade no Colá Son Jon de Porto Novo. Praia. Pedro Cardoso Livraria.


A razão de mencionar estes fatos tem a ver com o protagonismo da comunidade. Se o patrimônio material é mais topográfico, ou algum tipo de território; por sua vez, o patrimônio imaterial, no seu caráter etnográfico, é a comunidade. Em última análise, de acordo com Hafstein, a transformação das próprias comunidades seria feita para protegê-las do seu constante declínio no mundo moderno. Neste sentido, a comunidade se apresenta como o mais fundamental entre todos os elementos do patrimônio imaterial que a Convenção da Unesco de 2003 busca preservar. Podemos constatar esse desejo de empoderar as comunidades a partir da forma como a Convenção define o patrimônio imaterial 5. Dorothy Noyes afirma que, parte do que torna as comunidades atraentes é a sua naturalidade. Assim devemos entender que as comunidades precisam ser ativamente inventadas, suas fronteiras e singularidades devem ser estabelecidas para que possamos imaginá-las e mobilizá-las. Aos olhos de Hafstein, é isso que acontece com o patrimônio imaterial: o patrimônio cultural imaterial transforma políticas culturais em recursos para administrar populações. A partir desta perspectiva, para que haja “empoderamento”, há que haver “assujeitamento”. A fórmula do papel/ estatuto. Relembrando Michel Foucault, o paradoxo da subjetividade: a formação do sujeito ocorre em um contexto de poder. O momento em que obtemos status como sujeito em relação a nós mesmos e aos outros, imediatamente nos sujeitamos a um conjunto de regras e de normas de comportamento, definições, limites e formas de exclusão. Em outras palavras, as comunidades que cabem no escopo da definição da Unesco ocupam posições de sujeitos coletivos submissos aos Estados. Desta forma, o seu empoderamento reforça seus vínculos administrativos com o governo central, ao mesmo tempo em que afrouxa os vínculos culturais. O patrimônio imaterial concebido a partir das lentes da Unesco, é em parte escolhido, composto e interpretado pelas comunidades que ele representa, ou de acordo com elas. Assim, o patrimônio liberta e dá voz àqueles membros da comunidade considerados responsáveis. Bom, pelo menos em tese. “Quem conhece uma comunidade de Cabo Verde, sabe que o cabo-verdiano sofre, tem saudades, mas também ama, ao som da morna”6, a generalização desta citação me faz lembrar uma passagem crítica de Rogers Brubaker 7, quando ele argumenta de forma bastante convincente contra a noção de associação na diáspora. Ele critica os acadêmicos, e já assim, políticos que tendem exagerar a importância das diásporas, quando estes usam, por um lado, definições generalizantes que mascaram a verdadeira dimensão desta diáspora e, por outro lado, focando nas práticas diaspóricas que normalmente são 5 Entendemos por “patrimônio cultural imaterial” as práticas, representações, expressões, conhecimentos e saber [...] que as comunidades, os grupos, e em alguns casos, os indivíduos, reconhecem como parte do seu patrimônio cultural. (Unesco, 2003. Artigo 2, parágrafo 1.) 6 Declaração do ministro de Cultura de Cabo Verde Abraão Vicente, em entrevista concedida ao jornal ONU News, edição do dia do dia 26 de março de 2018. 7 Brubaker, R. 2005. ‘The “diaspora” diaspora’. Ethnic and Racial Studies 28(1): 1-19. 149


engajadas por uma minoria. Assim, o alerta é o seguinte: se usarmos uma definição all-inclusive de quem é cabo-verdiano na diáspora, precisamos admitir que este grande grupo de pessoas pode ter muito pouco a ver uns com os outros (Carling & Batalha, 2008). Por conseguinte, o que se recomenda neste caso, seria estreitar a definição para aqueles que nasceram em Cabo Verde e/ou mantêm contato frequente com o arquipélago, no intuito de dar à noção de diáspora um conteúdo mais substancial, como por exemplo, uma comunidade X de cabo-verdianos e descendentes em Boston Massachusetts onde aos domingo da primavera e verão, nos quintais das suas casas, ou em parques públicos é costume almoçar a cachupa e cantar as mornas de saudade ao som de violões, cavaquinhos, violas, banjos e chocalhos até o sol se pôr. E comunidades deste tipo, criadas ou que se automobilizam, poderiam ser localizadas em uma grande diáspora pulverizada e de múltiplas faces como é a controversa diáspora cabo-verdiana. Ao contrário, o que se percebe é um regime patrimonial que pode censurar as vozes discordantes e ampliar a hegemonia interna de uma voz única, silenciando qualquer dissidência na medida em que se percebe uma tendência totalizante com relação à morna. Quando esta usurpa e se apodera de toda a alma cabo-verdiana, como também dos estágios ou ritos de passagem da pessoa na comunidade, segundo o discurso do ministro. Esse efeito totalizante da morna sobre a alma cabo-verdiana pode ser percebido em outro discurso onde a Eurídice Monteiro (2015) ressalta: “mesmo no atual contexto da exaltação da diferença e do pluralismo, persistem resquícios de racialismo, sexismo e regionalismo, eivados frequentemente de ressentimentos (...), apesar do fim do colonialismo político e da progressiva intensificação do debate sobre a cultura e a sociedade crioula em Cabo Verde, regista-se ainda hoje, no pensamento mestiço cabo-verdiano, uma espécie de bifurcação entre a ideia da Europa e de África”. Destarte, é sensato perguntarmos: E nós, os cabo-verdianos, como é que ficamos? De que maneira o etos caboverdiano é processado na produção cultural da metrópole? Lógico que, aqui me refiro a algo mais do que uma corrente cultural regionalista, com pretensões universalizantes. Apreendo um contexto além do arquipélago problema, ou outrora “colónia modelo”. Sem a pretensão de adotar uma máscara homogeneizadora, assumindo pretensas virtualidades da mestiçagem, em detrimento do silenciamento das verdadeiras diferenças do arquipélago. 8 (Monteiro, 20015).

Um lugar onde ainda moram os flagelados do vento leste e os famintos com as suas rabidantis e seu batuko, suas

tabancas e suas rezas; as festas de santos e da bandeira de San Filipe, seus tamboreiros, coladeiras, mascarados, mandingas e ximibois; dos resistentes habitantes de Chã das Caldeiras, seus saberes e rituais tradicionais configurados em uma batalha 8 150

Monteiro, E. 2015. Entre os Senhores das Ilhas e as Descontentes: Identidade, Classe e Género na Estruturação do Campo Político em Cabo Verde. Praia. Edições Uni-CV.


cíclica contra as erupções; os pescadores artesanais, com seus botes de “boca aberta”, seus arpões. Anzóis, tarrafas, redes e adriças, suas técnicas e constituição da pessoa durante as s desertas, e os sonhos que não cabem em um pedaço de mar, teoricamente exclusivo, de mais de 600.000 km2; os pastores, seus ciclos e cabrestos, os agricultores e suas fundas, fórmulas e a sua habilidade de enganar o tempo.

Historicamente, os monumentos coloniais, as paisagens e tradições populares contemplados com patrimônio,

desempenham um papel importante na constituição dos Estados-nações. Ainda hoje, como está sendo o processo atual em Cabo Verde, o patrimônio continua sendo uma das formas de representar a nação, concentrando o imaginário político em figuras emblemáticas. Esta situação envolve atenuação de diferenças: uma cultura e história nacionais que exigem fidelidade, às custas de alguns esquecimentos seletivos e do sacrifício de outras formas de lealdade.

À guisa de conclusão, percebe-se que estas monoculturas se tornaram cada vez mais difíceis de conceber, na medida

em que as diásporas ou comunidades transnacionais se multiplicam. Os governos começam a reconhecer e promover “comunidades” concebidas como unidades administrativas e culturais, fazendo surgir uma nova forma de racionalidade governamental, orientada pela “organização de comunidades autorreguladas, em certos aspectos, desconectadas dos conjuntos maiores que constituem as sociedades definidas pela ideia da nação (Bennet, 2000). A comunidade agora é algo a ser programado pelos programas de Desenvolvimento Comunitário.

151


Filinto Elísio É escritor e editor. Autor de várias obras, entre poesia, prosa e ensaio, tendo coordenado os livros “Cabo Verde: 30 anos de cultura”, “Claridosidade: Edição Crítica” e “Cartas de Amílcar Cabral a Maria Helena: a outra face do Homem”. Filinto Elísio é ainda membro-fundador da Academia Cabo-verdiana de Letras, membro-correspondente de três Academias de Letras no Brasil, e membro-fundador da Amílcar Cabral - Martin Luther King Jr. Annual Conference (Africana Studes Department, da universidade de Massachusetts em Boston). Márcia Souto É professora e editora. Exerceu funções profissionais no Brasil, em Cabo Verde e em Portugal, respetivamente como professora, diretora dos serviços de edição e bibliotecas da Universidade de Cabo Verde e editoraresponsável da Rosa de Porcelana. Foi colunista em jornais de Cabo Verde e Macau. É licenciada em Letras e Mestre em Literaturas de Língua Portuguesa. Autora do livro de crónicas “Fenestra”. Coordenadora/editora e organizadora dos livros “Cartas de Amílcar Cabral a Maria Helena: a outra face do Homem” e “Claridosidade: edição crítica”.

TURISMO E O ESPLENDOR DA CIDADE VELHA

Recentemente, a conversa sobre a necessidade de transformar alguns polos de Cabo Verde em museus a céu aberto e com narrativas (históricas e culturais) capazes de atrair o turismo adveio da inscrição da Cidade Velha, antiga Ribeira Grande, fundada em 1462 pelos navegadores portugueses, pelo Projeto Open Heritage, da Google e da CyArk. Tal conversa, diga-se de passagem, incidia em como otimizar a oportunidade criada pelo Open Heritage, de levantamento digital do Berço da Nação Cabo-verdiana, para construir novas imagens visuais e narrativas para, finalmente, sairmos do turismo pontual e acidental, não pensado como centralidade, para um turismo mais sistemático e mais determinante da atual realidade económica cabo-verdiana. Vale enfatizar que o turismo, indústria em franca expansão, é tido como o eixo central do desenvolvimento e vai a caminho de 30% do PIB de Cabo Verde. Tal resultado deve-se sobretudo à procura dos turistas europeus dos destinos “de sol e praia”, no caso cabo-verdiano baseado na exploração e na construção imagética das potencialidades das ilhas do Sal e da Boavista. País de poucos recursos naturais e energéticos, bem como de enormes condicionalismos geoclimáticos, Cabo Verde tem no turismo a sua grande âncora e aos cabo-verdianos impendem desafios de o fazer crescer e de o diversificar. E um dos potenciais percepcionados é o Turismo do Conhecimento, consubstanciado na Cultura, na História e na Ciência, em verdade o tipo de turismo que mais cresce a nível mundial, e que parece poder constituir valor a agregar no core da oferta “balnear” de Cabo Verde. 152


E esta necessidade de reposicionar a oferta não pode deixar de centrar o olhar e a perspetiva sobre a Cidade Velha, tornada Património Mundial da Humanidade pela UNESCO, em 2009. De pronto, aos mais desavisados o questionamento sobre os elementos que podem suscitar interesse turístico à Cidade Velha, mormente interesse de Turismo de Conhecimento, já que o sítio, tanto a nível nacional como a nível internacional, considerando sua pouca divulgação, mal aparecendo no mapa e nos roteiros das grandes agências de viagens e de turismo. Embora assuma capital importância na representação do passado histórico-cultural e da memória coletiva de Cabo Verde e dos cabo-verdianos e, extrapolando, da memória do mundo (uma das Sete Maravilhas de Origem Portuguesa no Mundo), a Cidade Velha é ainda pouco divulgada, dentro e fora do arquipélago. Como ampliar o contingente turístico para Cabo Verde, se os promotores do destino desconhecem o real potencial do património material e imaterial do País, especialmente aquele que se repousa, há mais de cinco séculos, na Cidade Velha e que a descreve, um tanto marginalmente, como a primeira cidade fundada por europeus a sul do Saara e a primeira diocese da Costa Ocidental Africana, bem como um dos maiores laboratórios de animais e plantas, portos de escala para as navegações interatlânticas e mercados de compra-e-venda de escravos? Com certeza interessaria aos cidadãos cabo-verdianos e do mundo, muitos deles interessados em saber e conhecer mais sobre o que significou Cabo Verde e a ilha de Santiago, mas mais precisamente a Cidade Velha, primeira capital, na rota das grandes navegações e na rota dos escravos, na reconfiguração do mundo a partir do século XV.

Igualmente, conhecer a convergência dos vários povos europeus e africanos que, por caldeamento antropológico

muito especial, resultaram na mestiçagem e na mais ancestral sociedade crioula do Atlântico. Caldeamento este nem sempre harmonioso, nem sempre pacífico, posto baseado na desumanidade da escravatura e na desigualdade da relação colonial, e que determina o nascimento do Povo Cabo-verdiano, portador de um perfil cultural próprio e de uma língua crioula. Interessaria ainda pesquisar e levantar novas luzes sobre o papel do espaço, no tempo, como o verdejante vale onde corria água praticamente durante todo o ano, chamado por isso Ribeira Grande, corredor de fuga dos escravos para o interior da ilha de Santiago e lugar de produção da aguardente da cana sacarina, o famoso grogo, sinais que continuam a resistir ao tempo.

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O levantamento monumental da Cidade Velha, para além do já realizado pelo projeto de candidatura a Património Mundial da Humanidade e o de Salvaguarda do Património Histórico, em torno de uma Curadoria, e que nos ilumina, entre outras coisas, uma melhor e mais articulada narrativa do conjunto patrimonial coroado pela Fortaleza de S. Filipe, realça a Igreja de Nossa Senhora do Rosário, a Sé Catedral, o Convento de São Francisco, a Igreja de São Roque e o Largo do Pelourinho, tudo a carecer de uma perspectiva museológica mais contundente. O levantamento, numa ótica museológica, deve implicar não só no reaparecimento físico, em todo ou em parte, por exemplo, das igrejas de São Pedro, Monte Alverne e Nossa Senhora da Conceição, da ermida de Santa Luzia e do Paço Episcopal, bem como do Hospital da Misericórdia e das casas da Companhia de Jesus, as fontes de Santo António, de São João dos Cavaleiros, de São Veríssimo, São Brás e São Lourenço, mas de uma narrativa compreensiva suscetível de atrair, de informar e de formar o visitante. E, muito para além disso, as mais de 500 casas de pedra e cal apuradas nos estudos e das habitações dos escravos, e do muito que ainda está subterrâneo e subaquático, tudo a contar estórias de uma arqueologia por desvendar. Acreditamos que o afã e a emergência da requalificação e da diversificação turística de Cabo Verde interpela a um novo olhar crítico (e uma nova largada de perspectiva) sobre a Cidade Velha, com a reconstituição de roteiros (incursões de piratas e corsários, como o inglês Francis Drake e o francês Jacques Cassard, da bula Pro Excellenti do Papa Clemente VII, em 1532, que institui o Bispado, das passagens de Vasco da Gama, em 1497, e de Cristóvão Colombo, 1498, de Padre António Vieira, que ali escreveu “Cartas de Cabo Verde” e, sobretudo, dos milhares que escravos que partiram para a Europa e para as Américas. A abordagem de tais elementos, sob a perspectiva museológica, permitiria a construção de uma nova narrativa e de uma nova imagem visual (estético, inclusive) sobre a Cidade Velha, baseada no processamento das várias fontes – como os materiais publicitários, os media, o cinema ou a literatura – em prol de um constructo mental dos produtores e dos consumidores do turismo. No momento em que se aborda com mais acuidade a descentralização narrativa e imagética da promoção turística de Cabo Verde, em prol da afirmação de um destino turístico plural, de forma a contrariar o esgotamento de um modelo baseado no “sol e mar”, é preciso encararmos o Conhecimento como potencial real e endógeno, e, em tal surto, recentrar um olhar mais criativo sobre Cidade Velha, o passado (esplendor que vai de meados do séc. XV aos finais do séc. XVI) que temos para a construção do nosso futuro. 154


Das pequenas iniciativas, mas de grandes propósitos, como o projeto do Museu do Mundo/SPHAERA MUNDI, do livro “Aventura na Cidade Velha”, de Marilene Pereira ou “A Turma da Mónica na Cidade Velha” , de Maurício de Sousa, às grandes iniciativas como a da Open Heritage, numa parceria entre a Google e CyArk, passando por uma melhor política pública para a Cidade Velha e para a requalificação do turismo, tudo contribuirá para ampliar e tornar Cabo Verde como destino do Turismo de Conhecimento, sector que mais cresce no mundo.

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Delmar Maia Gonçalves Nasceu em 5 de Julho de 1969 em Quelimane, província da Zambézia na República de Moçambique. Publicou os Livros: “Moçambique Novo, o Enigma”; “Moçambiquizando”; “Afrozambeziando Ninfas e Deusas”; “Mestiço de Corpo Inteiro”; “Entre Dois Rios com Margens”; “Mares de Olhares em Mestiçagens de Poesia”; “ Pa(z)lestina”; “Fuzilaram a Utopia”; “Cosmografias do Verbo Literário” e “Sempre Tive Pressa do Porvir”. Venceu o Prémio Português de Literatura Juvenil Ferreira de Castro em Poesia em 1987; venceu o Galardão de Literatura África Today em 2006; venceu o Galardão Khanimambo de Literatura da Casa de Moçambique em 2008 e venceu o Prémio da Lusofonia em 2017.

Venho de um País do início do Mar onde toda a costa é cromática e a lua arredonda nossa sina.

Há Palavras que são como os seixos do caminho Há Palavras que são como o Mar e o Mar, companheiros

Venho de um País

o Mar chega ao Infinito.

de bruma e do início do Mar onde todas as fronteiras são cromáticas.

DMG

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DMG


Cláudio Diamantino Zunguene Natural de Maputo, Moçambique. Licenciado em Ensino de História pela Universidade Pedagógica de Moçambique e mestre em Preservação do Património Cultural pelo Instituto do Património Histórico e Artístico Nacional (IPHAN, Centro Lúcio Costa- Escola do Património, Rio de Janeiro). Exerceu a função docente no Ensino Médio em Moçambique nas disciplinas de História e Filosofia de 2007 à 2012. Desde 2012 trabalha no Gabinete de Conservação da Ilha de Moçambique (GACIM) como Investigador, tendo assumido de cargo de Chefe de Departamento de Proteção Arquitetônica, História e Arqueológica e atualmente também desempenha a função docente na Universidade Lúrio- UNILÚRIO: Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH) da Ilha de Moçambique.

TURISMO CULTURAL E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL NA ILHA DE MOÇAMBIQUE RESUMO O presente artigo tem como objetivo refletir em torno do turismo cultural na Ilha de Moçambique estabelecendo uma relação com o patrimônio e o desenvolvimento sustentável local. A Ilha de Moçambique goza do estatuto de cidade Patrimônio Mundial (1991) e a par dos atributos da sua paisagem histórica, urbana e cultural, têm atualmente no turismo cultural uma atividade geradora de recursos para as comunidades locais o que contribui para ações de preservação do patrimônio como forma a garantir uma eficaz sustentabilidade dos inúmeros atrativos culturais e naturais existentes. Atualmente na Ilha de Moçambique o turismo cultural que vem sendo potenciado pelas estruturas governamentais e setor privado e enfrenta-se inúmeros desafios quer na interpretação e expectavivas depositadas pelas comunidades locais por um lado e por outro, o interesse do Estado na promoção e divulgação da Ilha para o mundo. Perante este cenário importa comprender os contornos das dinâmicas atuais da prática do turismo cultural e as questões relacionadas com o desenvolvimento sustentável que se pretende incentivar num contexto de valorização e preservação do patrimônio da ilha. Palavras-chave: Ilha de Moçambique, turismo cultural, patrimônio, preservação, desenvolvimento sustentável.

BREVE APRESENTAÇÃO DO SÍTIO A Ilha de Moçambique, de onde advém o nome do país, figura nas rotas de navegação do Oceano índico já desde o século X e foi a primeira capital de Moçambique, entre 1507 e 1898. Posteriormente a capital foi transferida para Lourenço Marques, hoje Maputo. A Ilha foi um centro comercial para onde convergiam pessoas de diferentes partes do mundo: África, Ásia, 157


Europa e América (Lobato, 1966). Dois motivos obrigaram os portugueses à ocupação militar de portos na costa oriental de África: o ouro de Monomotapa, que os levou a fortificar Sofala, e a navegação da índia, que os fixou em Moçambique (Lobato, 1945: 4). A Ilha de Moçambique situa-se a entrada da Baía de Mossuril, no Oceano Índico. Fazem parte do arquipélago três pequenas ilhas, não habitadas: a Ilha de São Lourenço, onde está localizado o Fortim do mesmo nome, a leste as Ilhas de Goa e Sena.

Foto 1: Vista aérea da Ilha de Moçambique, Fonte: (Arkitektskolen, 1985) Os atributos da paisagem histórica e cultural da Ilha compreendem dois sistemas urbanos: a cidade de Pedra e Cal, de influência Árabe, Swahili e Europeia, e a cidade de Macuti, de influência Swahili a arquitetura tradicional Africana (Plano de Gestão e Conservação da Ilha de Moçambique, 2010: 33). Estas cidades reflectem não só uma mistura de saberes populares, como também um desenvolvimento urbano dentro de um continuum cultural onde o desenho arquitetônico e as técnicas construtivas locais e exógenas foram ajustadas ao contexto social e do meio ambiente local.

Fotos 2 e 3: Cidade de macuti ( a esquerda) e cidade de pedra e cal ( a direita) , Fonte: Cláudio Zunguene ( 2014) 158


A língua Nahara, a religião islâmica dominante na região, bem como as manifestações culturais representadas nas danças Tufo, Maulide e N´sope, corporizam a expressão da identidade das populações da Ilha.

Foto 4: Dança Tufo, Fonte: Cláudio Zunguen

Foto 5: Dança N´sope, Fonte: Cláudio Zunguene

PATRIMONIALIZAÇÃO DA ILHA DE MOÇAMBIQUE A Ilha foi Declarada Patrimônio Cultural da Humanidade pela UNESCO em 1991 pelo seu Valor Universal Excepcional (VUE). Segundo a recomendação do Conselho Internacional dos Monumentos e Sítios (ICOMOS), em maio de 1991 a Ilha de Moçambique devia ser incluída na Lista do patrimônio Mundial com base nos critérios IV e VI, abaixo descriminados: Critério (iv) A cidade e as fortificações da Ilha de Moçambique são exemplos excepcionais da arquitectura e técnicas de construção, onde as tradições locais, a influência portuguesa e, até certo ponto, a influência árabe e indiana se amalgam. Alguns materiais usados e a persistência dos princípios decorativos ilustram uma etapa significativa na história humana. A tipologia da arquitetura tradicional do Macuti demonstra a coexistência de dois diferentes estilos arquitetônicos ao longo do tempo e no espaço (ICOMOS: 1991). Critério (vi) A comunidade da Ilha de Moçambique está intimamente associada à história da navegação no Oceano índico. A Ilha desempenhou um papel único nas ligações intercontinentais, com importância 159


histórica mundial relacionada com o desenvolvimento e estabelecimento de rotas marítimas entre a Europa Ocidental Portuguesa e o sub-continente indiano. A riqueza do patrimônio intangível, também relacionado com os aspectos tangíveis da ilha, reflete as interações entre pessoas diferentes, desde tempos imemoriais (Idem).

O TURISMO CULTURAL, PATRIMÔNIO E DESENVOLVIMENTO LOCAL Falar de turismo na Ilha de Moçambique inevitavelmente devemos associar ao seu valor patrimonial, economia e sustentabilidade local. Embora haja receio em assumir que ela seja um turismo com alguns alicerces na base comunitária, sobretudo, pelo envolvimento de agentes da comunidade local, que muitas vezes contam com apoio das iniciativas do Governo e seus parceiros de cooperação nacionais e estrangeiros. Através do Programa ”Distrito Pôlo de desenvolvimento”, vulgarmente conhecido por “7 milhões1”, essencialmente virado para o incentivo às ações de empreendedorismo, produção de comida e geração de emprego, a ilha vivenciou avanços na questão do combate a pobreza urbana e promoção do turismo sustentável. O potencial turístico da cidade anda atrelado ao seu estatuto de cidade “Patrimônio Mundial da UNESCO” e nesse sentido diversas iniciativas tendentes a melhoria das condições de vida encontram no turismo a sua base de sustentação. A ação da UNESCO embora pouco enfraquecida nos últimos tempos na ilha quer nos programas de conservação e preservação do patrimônio edificado, quer nas diversas atividades ligadas a proteção dos recursos naturais e paisagísticos têm jogado um papel determinante para o desenvolvimento dum turismo sustentável com envolvimento das populações locais. Vale ressaltar que a principal atividade económica e geradora de renda na Ilha de Moçambique é a pesca artesanal que duma forma direta impacta sob a prática do turismo pois, parte da produção pesqueira destina- se ao consumo da população e outra parte considerável é direcionada para os principais operadores turísticos locais. Para melhor entender o cenário nos apoiamos em Omar (2013): A pesca constitui uma das atividades base de sobrevivência da maior parte das famílias. Esta atividade é principalmente assegurada pelo sector familiar, o que faz com que a sua prática seja feita em moldes tradicionais, isto é, com o predomínio do uso de técnicas artesanais, como a rede de arrasto e o uso de canoas e barcos a vela. Esta atividade é desenvolvida pelos homens, cabendo às mulheres, crianças e velhos, o processo de apanha de mariscos. Os recursos pesqueiros são 1 Programa iniciado em 2006 com a alocação pelo Governo de financiamentos para ações de combate à pobreza com incidência na produção de comida, geração de renda e criação de emprego nos distritos de Moçambique. Contudo, muito mal entendido e executado nos seus primeiros anos de implementação no país. 160


abundantes, mas o aumento populacional associado à limitação dos meios de produção leva a uma sobre-exploração dos recursos nas imediações da Ilha, causando baixa nos níveis de capturas e rendimento (Omar, 2011: 41). Os pescadores na sua maioria residem na cidade de macuti2 em casas alugadas e oferecendo condições da habitalidade precárias. Aliado a pesca, o turismo comunitário, enfatizado e defendido pelo governo como turismo cultural3, joga um papel de destaque na economia da Ilha de Moçambique. Aqui a atuação de guias de turismo informais caracteriza o cotidiano na ilha, em parte motivada pelo pequeno comércio de missangas, cestaria e tecidos africanos “capulanas”. Mesmo com a criação do Balcão de Informação Turística- BIT4 pelo Conselho Municipal da Ilha de Moçambique em 2014, os propósitos da sua instalação ainda deixam muitas incertezas quanto a melhoria da prestação de serviços turísticos na ilha. Este balcão nunca funcionou em pleno tendo sido um dos factores que contibuiu para isso, a falta de pessoal qualificado capaz de propor soluções viáveis para a melhoria do turismo e profissionalização dos guias. Atualmente este balcão foi substituido pelo recentemente inaugurado, Ponto de turismo. A atividade turística na ilha apenas se pôde iniciar depois do acordo de paz, que em 1992 deu por fim a uma guerra civil sangrenta. Mas na verdade ela reiniciava-se. O potencial da Ilha como destino turístico já nos anos 60, antes da descolonização do país, tinha sido fomentado (Souza, 2011). Esta persistência pela opção do desenvolvimento turístico da ilha, para além de contextos políticos contraditórios levanta algumas questões sobre o patrimônio e os seus usos e, aqui em particular o uso turístico, em contextos diversos. A questão mais abrangente é a dimensão política do patrimônio e do turismo cultural (idem). Este questionamento interessa pelas implicações culturais daquilo que a cultura tem de mais nobre: o seu significado humano e social (Forjaz, 19995). Todavia, o turismo cultural na prática baseia-se, em escala mundial, na manutenção de uma heterogeneidade cultural garantida pela museografia (Jeudy, 2005: 24). Ainda na visão de Jeudy, o mundo deve se tornar num grande museu para que a identidade, a etnicidade, a alteridade não sejam mais do que rótulos, e que a invocação destas últimas sirva sobretudo para o comércio turístico mundial. Assim: Três etapas são necessárias: a primeira é a extinção das culturas vivas, já realizada desde o começo do século; a segunda é a da ´´ passagem ao museu´´ dessas mesmas culturas, de uma homogeneização do espetáculo; e a terceira corresponde à reabilitação da heterogeneidade cultural ensejada pela ´´ guerra cirúrgica´´ e pelos movimentos humanitários, preparando a 2 Núcleo urbano da cidade da Ilha de Moçambique com construções vernaculares de influência africana e swahili onde as habitações têm cobertura de palha vegetal ´´ macuti´´. 3 Valorização das potencialidades culturais da ilha conjugando a arquitetura, urbanismo com os modos de vida e práticas culturais seculares. Contudo, atualmente questiona-se a aplicabilidade ou promoção do turismo cultural num contexto da crescente demanda e interesse pela ilha, para alguns “turismo de massa”, gerando debates sobre qual o tipo de turismo ideal para a ilha. 4 Criado o financiamento do Governo Provincial de Nampula através da Direção Provincial de Finanças. 5 Cf. Ilha de Moçambique: arte e arquitectura. In. Ilha de Moçambique: Convergências de povos e culturas. ANGIUS et ZAMPONI ( Orgs). 161


conservação patrimonial e da museografia (Jeudy, 2005: 24) Nos dias que correm tem havido acesos debates em torno do turismo na Ilha, havendo segmementos da sociedade que entendem por turismo cultural, a valorização dos atributos patrimoniais da cidade, desde aspectos ligados a arquitetura, hábitos e costumes locais, paisagem e acima de tudo a sua cultura. Na opinião deste grupo da sociedade local, qualquer iniciativa que atenta a esses valores e que promovam um “turismo de massa”, desfigura o perfil ideal do turismo cultural na ilha e pode contribuir de forma negativa para a espectacularização das práticas tradicionais, contrariando os princípios da preservação da autenticidade. Este posicionamento surge em contraposição ao crescente interesse por parte de redes de hotelaria que pretendem instalar na Ilha hoteis para a promoção do turismo. Este cenário nos remete a uma profunda reflexão em torno da importância do objetivo 6 do Plano de Gestão e Conservação da Ilha de Moçambique ( 2010: 2014): “Interpretar e divulgar a importância do Patrimônio Cultural da Ilha de modo a melhorar o conhecimento dos habitantes sobre o seu significado cultural, os benefícios e as implicações de viver numa Cidade Patrimônio Mundial”. O plano de desenvolvimento integrado (2009) propunha a criação de um curso de hotelaria e turismo na Escola de Artes e Ofício existente como forma de melhorar a prestação de serviços turísticos. Hoje com a introdução do curso de Turismo e Hotelaria na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Lúrio na Ilha, espera-se que novas soluções venham a ser ensaiadas na ilha com enfoque sobretudo num turismo comunitário virado para respostas a multiplicidade de procura e que responda a demanda do mercado nacional e internacional num contexto em que a cidade vive a euforia da comemoração dos seus 200 anos da elevação a esta categoria.

Foto 6: preparação das redes artesanais e barcos de pesca tradicionais usados na Ilha de Moçambique, fonte: Jens Hougaard (2017) 162


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANGIUS, Matteo et ZAMPONI, Mario ( orgs). Ilha de Moçambique: Convergência de Povos e Culturas. AEIP editore, 1999. ARKITEKTSKOLEN I Aarhus e SECRETARIA DE ESTADO DA CULTURA-MOÇAMBIQUE. Ilha de Moçambique- Relatório / Report 1982-85 (´´Livro Azul´´), 1985; CESO-CI. Plano de Desenvolvimento Integrado da Ilha de Moçambique, Maputo: BAD/ MEC, 2009;

JEUDY, Henri- Pierre. Espelho das Cidades. Tradução de Rejane Janowitzer. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2005. LOBATO, Alexandre. Ilha de Moçambique: Panorama estético. Lisboa: Agencia Nacional do Ultramar, 1966. LOBATO, Alexandre. A Ilha de Moçambique: Monografia. Lourenço Marques: Imprensa Nacional de Moçambique, 1945. MINISTÉRIO DA CULTURA - MOÇAMBIQUE. Plano de Gestão e Conservação da Ilha de Moçambique, Maputo, 2010. OMAR, Lúcia Laurentina. Os desafios para conservação ambiental e patrimônio cultural na Ilha de Moçambique. Dissertação de mestrado. Universidade de São Paulo, Programa de Pós-graduação em ciência ambiental: PROCAM, São Paulo, 2013. SOUZA, Carla Almeida. Ilha de Moçambique: Negociando o património colonial em redor do turismo cultural. In: XI Congresso Luso Afro brasileiro de Ciências Sociais, Diversidades e (Des) Igualdades. Universidade Federal da Bahia (UFBA), Salvador, 2011. UNESCO/ WORLD HERITAGE COMMITTEE: Nomination of Ilha de Moçambique for inclusion in the world heritage list 1990-91.

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Joaquim Lé de Matos Licenciado em Gestão de Empresas, Universidade internacional. Empreendedorismo Social, Instituto de Empreendedorismo Social. Pós Graduação de Empreendedorismo e Gestão da Inovação, Universidade Católica Business&Economic. Grupo Magensinus - Coordenador Geral do Sistema de Garantia e Gestão da Qualidade. Abordagem de Gestão por Processos. Comunicação e Envolvimento dos Stakeholders. Controlo de Gestão, Quinta São Cosme, Indústria de Lacticínios. Angariação de fundos e mobilização de recursos para projectos de investimento ,nacionais, europeus e internacionais. Mais de 15 anos de experiência em Empreendedorismo : Apoio a Start Up’s, Professor/facilitador de empreendedorismo. Gestão e Coordenação de projectos de empreendedorismo e elaboração de planos de negócio.

EMPREENDEDORISMO SOCIAL E TURISMO

Na sociedade moderna o turismo vem ganhando espaço com ritmo cada vez mais acelerado. E o empreendedor cuja visão está focada na inovação e criação de novos modos de influenciar o consumidor a utilizar seus produtos, tem descoberto na actividade turística um mercado promissor para o desenvolvimento de novos produtos e serviços a serem oferecidos aos seus clientes. As empresas e organizações que oferecem atracções, lazer, entretenimento, cultura, artesanato e outros serviços, formam grande parte do sector de turismo. E isto depende de questões culturais que envolvem o comportamento da população local, sua disponibilidade para receber o turista, sendo necessária para o desenvolvimento das actividades económicas da região. No entanto, para que haja essa receptividade é importante a qualificação da população local e as possibilidades de desenvolvimento de outras actividades turísticas decorrentes da cultura local que possam ser transformadas em produtos turísticos, resultando assim em empreendedorismo local e social.

O turismo inseriu-se no complexo sector de serviços e é influenciado pelos avanços tecnológicos e mercadológicos de áreas de ponta como o entretenimento e a segmentação de produtos e serviços nas sociedades cada vez mais pluralistas e democráticas. Compreender essas transformações sociais, intensificadas nas últimas décadas, é decisivo no planeamento estratégico e na operação das actividades turísticas. Uma das maiores buscas das pessoas actualmente é potenciar produtos e saberes tradicionais e regionais. 164


A vida corrida, a busca por grandes realizações profissionais, a competitividade, a globalização e o avanço da tecnologia tem deixado as pessoas mais ansiosas por seu futuro e esquecem-se de viver o presente. Portanto, a indústria criativa, nomeadamente o artesanato, tem demonstrado uma enorme capacidade de crescimento nos últimos anos em todo o mundo. Para entendermos melhor esse mercado em crescimento, precisamos saber que a indústria criativa, significa o ato de transformar, promover os saberes locais e mesmos ancestrais; ou seja, um conjunto das actividades relacionadas à qualidade de vida de uma nação, povo, ou mesmo comunidade local. Uma das maiores alternativas para o turista e a população residente de determinada região são as “estórias”, que por sua vez, atraentes e estão directamente ligado ao contacto com o cliente. Com isso, deve-se treinar e preparar de forma adequada para que seja receptiva, capaz de cativar o visitante, motivando-o a retornar. O empreendedorismo busca a auto-realização de quem utiliza este método de trabalho, estimula o desenvolvimento como um todo e o desenvolvimento local, apoiando a pequena empresa, ampliando a base tecnológica, criando empregos, evitando armadilhas no mercado que está incidido. Uma pessoa empreendedora precisa ter características diferenciadas como a originalidade, flexibilidade e facilidade para a negociação, saber contornar e tolerar os erros, ter iniciativa e optimismo, ser visionário para negócios futuros. O empreendedor de sucesso é aquele que certamente ajuda na economia de uma nação crescer. Inova o mercado com produtos e serviços diferenciados, consegue oferecer atendimento personalizado aos clientes, é fiel aos seus fornecedores e cria verdadeiras mudanças de comportamento: 1. promover a difusão de informação sobre uma determinada região ou localidade, seus valores naturais, culturais e sociais; 2. abrir novas perspectivas sociais como resultado do desenvolvimento económico e cultural da região; 3. integrar socialmente, incrementar (em determinados casos) a consciência nacional; 4. desenvolver a criatividade em vários campos; 5. promover o sentimento de liberdade mediante a abertura ao mundo, estabelecendo ou estendendo os contactos culturais, estimulando o interesse pelas viagens turísticas.

“Quem compra artesanato, está a comprar também um pouco de história. Nem que seja a sua própria história de viagens e descobertas”.

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Luísa Janeirinho É doutorada em património e educação, museóloga, socióloga, diplomada em Estudos Avançados em Educação Sustentável e inspetora no Ministério da Educação, em Portugal. Membro da Cátedra da UNESCO, - “Educação Cidadania e Diversidade Cultural” - da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias de Lisboa.

Margarida Mestre É licenciada em antropologia e pós graduada em Migrações, Inter-Etnicidades e Transnacionalismo. É formadora com curso de formação pedagógica de formadores e tem colaborado em inúmeros projetos no âmbito educativo, cultural e de turismo.

Ambas são fundadoras do projeto “Museu do Mundo” (2008), que tem como missão: promover a diversidade cultural como património da Humanidade e do projeto Inspira-te, património criativo.

A EDUCAÇÃO PATRIMONIAL E AS CIDADES MUNDO

As razões que levaram a Comissão da UNESCO a eleger a Cidade Velha como Património da Humanidade, em 2009, está para além do que podemos ler sobre o assunto. A Praça do Pelourinho, a Rua Banana, a Igreja de Nossa Senhora do Rosário … cruzam-se com os cheiros, sons e sabores do caldo de peixe, da sucrinha, das batucadeiras, das mangueiras, do mar… e com as pessoas e a sua morabeza…e com a memória do lugar – porque a Cidade Velha é um lugar de memória.

A Cidade Velha é, como nos lembra António Valleriani, uma Cidade Mundo1 assente na transculturalidade, numa ética de alteridade, habitada pelo universalismo da diferença, das culturas em viagem e das identidades em construção. A Cidade Velha é uma cidade de encontro de pessoas de vários lugares, proveniências culturais distintas, credos, medos e sonhos, que construíram num território o espírito de um lugar híbrido – a que chamamos o berço da nação crioula. Daí não ter sido por mero acaso que a Câmara Municipal da Ribeira Grande de Santiago tivesse acolhido, para nascer naquele município, em 2012, a Rede das Cidades Mundo e o projeto de Educação Patrimonial.

1 O conceito de Cidade-Mundo foi cunhado por António Valleriani, filósofo italiano e tinha como base o ethos do híbrido e da cultura barroca, presente em Portugal. Do texto inédito, oferecido a Luisa Janeirinho e Dores Correia, foi criada a “Rede das Cidades Mundo”, e utilização do conceito, com autorização da família do filósofo - https://ouvirparaintegrar. blogs.sapo.pt/6439.html 166


Ao trabalho empreendido na Cidade Velha juntou-se o projeto em curso na Ilha do Maio, sendo que as várias ações no terreno tiveram sempre como objetivo principal Educar para uma Cultura de Paz, sabendo que a educação patrimonial é a ferramenta capaz de gerar processos educativos e criativos nas comunidades, envolvendo os seus diversos agentes, interligando conhecimentos, pondo em diálogo gerações e os seus saberes, criando práticas de respeito e cidadania. O projeto nas duas comunidades teve por base este novo paradigma que visa realçar e ampliar o poder educador do património, servindo objetivos de integração e de desenvolvimento das populações e sustentou-se na necessidade de valorização e dinamização das potencialidades da Ilha do Maio e do estatuto atribuído à Cidade Velha, como Património Mundial, e da urgência de gerar rendimento sustentável para as comunidades – tendo em conta, por um lado, a necessidade dos mais jovens se apropriarem e valorizarem o seu património local e, por outro lado, das comunidades retirarem benefícios diretos para o sustento das famílias.

1º Eixo – Educação patrimonial O projeto iniciou-se por um conjunto de ações de sensibilização com as escolas/alunos, professores, técnicos, artesãos e comunidade em geral, sobre o património material, imaterial e natural, existente na Cidade Velha e na Ilha do Maio, com os seguintes objetivos:

1. Fomentar uma educação para uma cultura de paz, com base na educação/património; 2. Promover e dinamizar o património como valor identitário cultural e de desenvolvimento sustentável: • Conhecer e valorizar o património material, imaterial e natural na Cidade Velha e na Ilha do Maio; • Promover a escrita, a pesquisa, o conhecimento direto sobre o património, de forma lúdica e criativa; • Promover a pesquisa e o trabalho de projeto, nas escolas.

Com o objetivo de consolidar, nas escolas, o trabalho realizado, procedeu-se à organização de dois cadernos criativos para escrever e pintar, com o título: Inspira-te, património criativo, com desenhos produzidos por Helder Cardoso, um jovem artista local2, tendo como inspiração o património.

2 Helder Cardoso é atualmente um pintor de nome em Cabo Verde. Os desenhos do caderno criativo constituíram um dos seus desafios iniciais deste género, tendo esta sua arte sido identificada para o projeto pelo fotógrafo Tó Gomes. 167


O primeiro caderno criativo teve como tema a Cidade Velha– A minha Cidade Velha, um lugar imaginado – e foi produzido com o apoio da Comissão Nacional de Cabo Verde para a UNESCO. O 2º caderno dedicado à Ilha do Maio – Djarmai e o ouro branco – foi produzido com o apoio do Instituto Marquês de Valle Flor no âmbito do projeto de Dinamização e Requalificação Turística na Ilha do Maio. Os desenhos para colorir, com as suas perguntas de partida, inspiram à pesquisa, ao encontro com a comunidade local, na procura de respostas que permitam a organização de textos escritos pelos alunos sobre cada desenho apresentado, possibilitando que cada um construa a sua versão da História e das estórias - para que os cadernos se constituam como desafios que a leitura, a escrita, a arte e o património promove.

Tomando como pano de fundo os documentos orientadores a nível internacional e nacional é de salientar que se toma o processo de educação de forma ampla, tendo subjacente que a Educação se apresenta como o garante de sucesso, a longo prazo, para as novas conceções e compreensão do Mundo e na aprendizagem a viver juntos. O desafio da ação educativa é que seja capaz de dar resposta a uma verdadeira Educação para uma Cultura de Paz – a única que poderá garantir um compromisso entre o aprender a SER e aprender a viver juntos, que transforma a cidade habitada por “vários mundos”, numa 168


verdadeira Cidade Mundo, onde todos são parte integrante da história - dois dos quatro pilares da Educação expressos no Relatório para a UNESCO da Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI, coordenada por Jacques Delors3. Reconhece-se que o contexto cultural é imprescindivel para o sucesso do processo educativo e que o património contém pontecialidades e e oportunidades educativas ímpares. O impacto positivo que advém dos projetos de Educação Patrimonial, para as escolas e para as comunidades, inscreve-se nos desafios que hoje se apresentam à sociedade civil e às instituições e revelam a necessidade de todos sermos agentes ativos nas respostas sociais de um Mundo globalizado, interdisciplinar e intercultural, com vista ao sucesso e ao verdadeiro exercício de cidadania.

2º eixo do projeto – empreendedorismo cultural e com ele um turismo de conhecimento O trabalho de recuperação do património cultural (com as escolas e as comunidades) serviu de repto para a identificação e confeção de personagens do património cultural da Cidade Velha (presentes nas fotografias apresentadas na 1ª parte), que foram produzidas pelas mães dos alunos ou outras artesãs/ãos da comunidade local, em parceria com a associação local Born:África e o seu projeto Storia, Storia, cujo objetivo se adaptou ao projeto em curso, tendo o apoio do Camões - Instituto da Cooperação e da Língua, I.P. Por outro lado, na Ilha do Maio, o trabalho em educação patrimonial e empreendedorismo cultural foi possível com o apoio do Instituto Marquês de Valle Flôr, que permitiu, também, a organização de atividades conjuntas entre as comunidades da Cidade Velha e da Ilha do Maio, promovendo e apoiando actividades de troca de experiências e de valorização do saber-fazer construído pelas comunidades. Toda a dinâmica gerada, para além de fomentar a ligação escola-família, promoveu a apropriação e a valorização dos traços distintivos do património cultural da comunidade e, com a venda dos personagens, numa fonte de rendimento para as mães/famílias - fomentando uma cultura criativa com base no saber fazer tradicional/local e a obtenção de rendimento direto, com a venda dos materiais. Deste trabalho inicial surgiram roteiros integrados na cultura local com a participação das comunidades, denominados de turismo de conhecimento cultural, pelo facto do visitante interagir de forma lúdica e criativa no contexto local, com a participação da comunidade. Este projeto mostra o valor criativo da memória que promove a ação e é empreendedora rumo ao desenvolvimento. A 3

Educação: Um Tesouro a Descobrir, 1999, http://dhnet.org.br/dados/relatorios/a_pdf/r_unesco_educ_tesouro_descobrir.pdf 169


memória de uma Cidade Mundo, quando revelada em todos os seus detalhes, não é pretérita e fixa, mas uma capacidade narrativa que nos impele à ação e em que todos nos revelamos e relemos. Uma memória partilhada coletivamente, com registos oficiais, mas, também, outros que se encontram silenciados, traduzida em detalhes íntimos e subjetivos, que integram a biografia pessoal de cada sujeito – o seu património pessoal. O resgate da memória torna-a mobilizadora e a potencialidade educadora do património torna-se ação em cada desenho, estória e personagem produzido. Os bonecos de pano produzidos pelas artesãs/ãos, não são mais bonecos, mas personagens do mundo real, íntimo e estético, daquela comunidade, num desafio do saber fazer tradicional e do enlace entre o coletivo e o particular – a sua estória. É na perspetiva apresentada por Umberto Eco que o objeto (os personagens) aqui se apresentam: um objeto/personagem visto para além da sua materialidade, da sua inércia, transformado num guia evocativo da memória, um “lugar” que se desdobra em vários tempos e histórias que permitem edificar percursos pessoais narrativos e revelar um lado esquecido do património – aquele que é construído pelos detalhes e sentidos do quotidiano, a cultura empírica. Neste projeto de valorização da educação e do património sob o tema: Inspira-te, património criativo, foi convocada, não só, a memória oficial, mas, também, a contida em relatos de indivíduos que consagram descontinuidades e interrupções. A emergência destas “memórias marginais” (descritas em desenhos, pinturas e personagens, em relações com pessoas e entre pessoas, com os espaços, os tempos e apresentadas através da batucadeira Nhã Pomba, do pescador Armindo Preto, na peixeira) remetem para o conceito de “contra-memória” de Foulcault (1986). Foi um caminho trilhado na revisão do “regime de verdade” da memória e das versões cristalizadas do passado, propondo novas narrativas da abordagem da história, da memória e do património com recurso à criatividade e a sentimentos positivos da biografia pessoal e de valorização da estória da comunidade – energia transformadora da criação de uma Cidade Mundo. Neste projeto procurou-se revelar a força educadora do património acionando os conteúdos da memória ligada à construção da história oficial e, também, daquela que é escrita pelas memórias individuais. A primeira constrói um continuum de acontecimentos, registando e preservando o que a memória tem de coletivo, a valorização de factos, dados e pessoas, cuja importância atribuída concorreu para a sua preservação. A segunda enfoca as descontinuidades e ruturas, realça as diferenças, faz emergir temas marginais. Esta memória torna-se ativa, desenraíza os acontecimentos passados e da linearidade da história coletiva, apresentada pela história tradicional e marcada por estratégias de poder (Foulcault, 1979). Este projeto esteve comprometido com a sociedade e a comunidade: que mais do que um espaço é um lugar de uma comunidade patrimonial, mais do que utentes tem redes e mais do que temas tem problemas. Afastámo-nos, tal como 170


nos lembra Mário Chagas, da tendência para a celebração da memória do poder (instituições etnocêntricas e de totalidade das coisas e seres), assumindo a heterogeneidade e incoerência, onde circulam memórias e contra memórias e onde o património coletivo e memória são colocadas ao serviço da sociedade, do seu desenvolvimento e intervenção (Chagas, 2009). No final, sentimos todo o nosso trabalho do projeto Museu do Mundo ser legitimado pela partilha do texto de Filipa Neto sobre a Convenção de Faro, pois comunidades são o “centro” e “promover a diversidade cultural como património da Humanidade” a nossa missão.

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Bibliografia Livros

Borges, J. (1999). O Aleph (3.a reimpressão.). São Paulo: Editora Globo; Chagas, Mário (2009), Memória e poder: dois movimentos, Cadernos de Sociomuseologia, [S.l.], v. 19, n. 19, june 2009. ISSN 1646-3714. Disponível em: <http://revistas.ulusofona.pt/index.php/cadernosociomuseologia/article/view/367; Escolano Benito, Agustin ; Diaz Jose Maria, coords (2002) “La memoria y el desejo – la cultura de la escuela y educacion deseada”, Ceince; Fentress, James (1992), Memória social, novas perspectivas sobre o passado, Coleção Teorema, Lisboa; Foucault, M. (1979). Genealogia e poder. In R. Machado (Org.), Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal; Janeirinho, Luisa e Valleriani, António (2009) “ Um País de encruzilhada de culturas e raças (texto traduzido)”, https:// ouvirparaintegrar.blogs.sapo.pt/6439.html Janeirinho, Luisa (2015), Educação e Património, estudo da cultura material da escola em Portugal e Cabo Verde numa perspetiva hermenêutica, etnohistórica e pós colonial; tese de Doutoramento, Universidade de Sevilha; Kenski, Vani (1997), Sobre o conceito de memória, in Ivani fazenda (org.) A pesquisa em educação e as transformações do conhecimento; Brasil Papirus; Valleriani, A. (2006). Pellegrini nel labirinto del mondo e del vivere : Gracián e Comenio educatori del barocco. Milano: UNICOPLI; Valleriani, A. (2009 a). Memoria e patrimonio in educazione. [S.l.: s.n.];

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Publicação realizada no âmbito do Projeto de Dinamização e Requalificação Turística na Ilha do Maio DCI-NSA/2015/369-423, financiado pela União Europeia. O conteúdo desta publicação é da exclusiva responsabilidade dos autores e não pode, em caso algum, ser tomado como expressão das posições da União Europeia.

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