Além das ruas: histórias do graffiti

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dAS histórias

dAS histórias

São Paulo, 2023

Expediente

Coordenação editorial Carlos Costa

Edição Icaro Mello e Juliana Ribeiro

Projeto gráfico Mily Mabe

Produção editorial Luciana Araripe

Redação de conteúdo André Felipe de Medeiros, Icaro Mello e Juliana Ribeiro

Organização de conteúdo Binho Ribeiro, João

Vitor Maturana, Júlia Munhoz, Juliano Ferreira, Lari Umeri e Sofia Fan

Supervisão de revisão Polyana Lima

Revisão de texto Rachel Reis (terceirizada)

Editorial Binho Ribeiro: histórias escritas por letras entrelaçadas por
Felipe de Medeiros Linha do tempo Mulheres no graffiti por Katia Suzue As fundações do grafite como expressão urbana por Icaro Mello Livros para conhecer o grafite Crédito Ficha técnica 10 12 28 36 50 72 82 86 Sumário
André

Além das ruas - histórias do graffiti

Arte pública por excelência, o grafite é expressão fundamental dos espaços urbanos que habitamos. Herdeira de intervenções presentes em sociedades da Antiguidade, como a romana e a egípcia – nas quais turistas e nativos relatavam em paredes suas experiências com os espaços públicos –, a prática de grafitar se consolidou como expressão artística e política de jovens em todo o mundo, pintando e colorindo a paisagem opressora das metrópoles. Com movimentos de contracultura gestados nos anos 1960, nos Estados Unidos e na França, as grafias rápidas e hieroglíficas se desenvolveram técnica e esteticamente em obras de arte que hoje ocupam muros, paredes, galerias e museus.

Resgatando a história do movimento, a exposição Além das ruas: histórias do graffiti apresenta o trabalho de expoentes da street art e do grafite, de dentro e fora do Brasil, investigando os caminhos que essa arte percorreu desde a explosão nas ruas de Paris e Nova York, sua relação com a cultura hip-hop, sua internacionalização e chegada a São Paulo e os percursos que levaram à diversidade da cena atual brasileira.

Esta publicação traz conteúdos complementares e histórias da arte urbana através da vida de alguns de seus protagonistas: entrevistas com o curador Binho Ribeiro e o grafiteiro norte-americano T-Kid, e um texto da grafiteira brasileira Katia Suzue sobre a presença feminina no grafite, bem como indicações bibliográficas para que você conheça melhor a história e a realidade da arte de rua.

Além deste material, é possível encontrar outros conteúdos sobre a exposição Além das ruas: histórias do graffiti e os artistas participantes no site itaucultural.org.br e na Enciclopédia Itaú Cultural (enciclopedia.itaucultural. org.br). Ao longo de sua trajetória, o Itaú Cultural (IC) vem desenvolvendo diversas ações no campo das artes visuais, como exposições individuais e coletivas e, mais recentemente, mostras virtuais a partir do acervo de obras de arte do Itaú Unibanco. ☜

Itaú Cultural

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Daniel Melim. Mural da Luz, 2011. Fotografia: Daniel Melim

Bi NHO R i B Ei RO: H i STó R i AS ESCR i TAS P O R LE TRAS

ENTRELAÇADAS

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Da cultura underground ao reconhecimento internacional, o grafiteiro e curador desta exposição, Binho Ribeiro, relembra sua própria história, os trabalhos com ilustrações na juventude, as primeiras experiências pintando na rua e a formação da cena paulistana de grafite, da qual é um dos principais expoentes.

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“Fomos todos nós, 11 grafiteiros, presos numa manhã de Carnaval pintando as colunas do metrô Santana”, relembra Binho Ribeiro de um acontecimento em 2011 – cerca de 25 anos após a formação da cena paulistana do grafite, da qual ele é um dos principais nomes. Um jornalista acompanhava o grupo durante as atividades naquela manhã, e ele fez a ponte para que diferentes telejornais exibissem o caso, até mesmo com entrada ao vivo. “Minha mãe ficou assustada, porque ficou sabendo pela TV que o filho dela estava preso”, conta o grafiteiro. “Mas fomos absolvidos da acusação, porque o juiz entendeu que estávamos trazendo um benefício à cidade, não um vandalismo. Ou seja, era um relacionamento [tido como] marginal que começou a ser entendido como benéfico”, completa.

Essa pequena história sintetiza muitas das discussões que rondam o universo do grafite nas últimas décadas. Entre tentativas de deslegitimação – seja por sua origem periférica, seja pelo modo como ele ocupa os espaços públicos –e a aceitação tanto por parte de um público encantado com suas formas, traços e cores quanto pelas instituições, é uma narrativa que se aplica ao Brasil e a diferentes realidades no mundo. Todas essas questões são revistas na exposição

Além das ruas: histórias do graffiti, promovida pelo Itaú Cultural (IC) com curadoria do próprio Binho.

A linha do tempo exposta nesta publicação insere o movimento na história como uma estética recente –iniciada na Nova York de meados dos anos 1960 e 1970 e popularizada de vez na década de 1980 –, que resultou do desejo de expressão inerente ao ser humano, principalmente em uma situação de opressão ou invisibilidade. “Uma das histórias de seu surgimento é romântica: um cara queria que uma mulher visse o nome dele e começou a escrevê-lo no caminho que ela sempre fazia. Dali, outras pessoas se influenciaram e começaram a fazer isso também”, conta o curador. “A essência do início do grafite e da pichação é a mesma: a busca pela fama. Não a fama do mainstream, mas a de ser conhecido em sua comunidade, uma afirmação. O garoto que picha a lateral de um prédio vai criando um nome, uma marca, uma grife. E o grafite dialoga com isso, a essência é a mesma.”

UM FURACÃO CULTURAL

“Como não havia espaços em galerias para pessoas que eram excluídas, para uma sociedade esquecida e abandonada, começou a surgir uma cultura underground” – é assim que Binho resume o momento em que

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Além das ruas - histórias do graffiti

Grafiteiros durante a pintura de mural na Avenida 23 de Maio, um dos maiores corredores de arte urbana da América Latina. Prefeitura de São Paulo, 2015.

Fotografia: acervo Binho Ribeiro

Binho Ribeiro: histórias escritas por letras entrelaçadas

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Mural feito por Vitché, Tinho, OSGEMEOS, Speto e Binho. Chile, 1996. Fotografia: acervo Binho Ribeiro

Uma grande amizade iniciou-se neste intercâmbio ao Chile, que, além de fortalecer o grupo, proporcionou aos jovens artistas conhecimentos sobre estilos e técnicas essenciais na formação de seus caminhos artísticos. Essa evolução colaborou para estabelecer São Paulo como berço de uma cultura urbana eclética e diferenciada.

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Além das ruas - histórias do graffiti

Parte do mural na Avenida 23 de Maio, um dos maiores corredores de arte urbana da América Latina, 2015. Fotografia: acervo Binho Ribeiro

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o grafite como o conhecemos hoje começou a tomar forma na Nova York dos anos 1960, mais especificamente nos bairros periféricos, como Bronx e Brooklyn. Ao longo da década seguinte, o ato de escrever seu nome de maneira criativa sem autorização, principalmente em trens, cresceu exponencialmente em popularidade. Ao chegar aos anos 1980, o grafite foi entrelaçado à cultura hip-hop que ali nascia e, após medidas de segurança para diminuir o vandalismo nos trens, esse tipo de arte se espalhou de vez pelas ruas e prédios da cidade.

Paralelamente, a França vivia uma efervescência após os movimentos estudantis de maio de 1968, que tiveram seus slogans – como o icônico “É proibido proibir” – reproduzidos em pichações ao redor do país. Em 1981, o jovem Xavier Prou, de 20 anos, começou a pintar as ruas de Paris sob o pseudônimo Blek Le Rat (na brincadeira de “Rat” como um anagrama de “Art”) e originou o que veio a ser o movimento de estêncil, uma forma de arte urbana em profundo diálogo com o grafite.

“Tudo aquilo começou a fazer um redemoinho, um furacão cultural que não era aprovado pela sociedade. As galerias não aceitavam aquele formato de arte, e ele só crescia, até que houve uma hora em que não tinha como barrar aquilo”, conta Binho. Foi assim que essa cultura chegou também ao Brasil, de maneira bastante orgânica, quase que no boca a boca em diferentes círculos. “Eu vim do skate e do hip-hop; a dupla OSGEMEOS (formada por Otávio e Gustavo Pandolfo) era totalmente da raiz do hip-hop, o Speto já era ilustrador e recebia, às vezes, uma revista que alguém trazia dos Estados Unidos, via uma foto aqui e outra ali”, diz o grafiteiro. “A gente começou a crescer com essa cultura, todo mundo separado. Era uma época na qual você mal tinha um telefone em casa, e, mesmo assim, essa cultura cresceu em São Paulo.”

MOVIMENTOS COLETIVOS

“Eu não conhecia ninguém que fazia grafite, Speto também não. OSGEMEOS pensavam que só eles faziam aquilo no Brasil”, brinca o curador ao relembrar de quando, na década de 1980, ainda não havia uma cena no país. Na adolescência, ele ganhou uma bolsa para estudar desenho e, logo depois, um emprego na Galeria do Rock, no qual desenhava estampas para as marcas. Em pouco tempo, Binho começou a se aventurar pelo grafite ao pintar pistas de skate. Foi nesse contexto que ele conheceu Speto, que também já produzia dentro dessa estética.

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Binho Ribeiro: histórias escritas por letras entrelaçadas

Desde jovem, Binho demonstrou grande admiração pela cultura japonesa, com a qual sempre teve bastante contato através de amigos. Personagens como monstros e animais influenciaram bastante a definição de seu estilo. Casado com uma neta de japoneses, tem uma filha mestiça, nascida em 1994. Em 1999, pôde visitar a Terra do Sol Nascente, onde foi recebido pela família Luz (Jun, Akira, Eiji Mattsui) em Tóquio, e desde então teve contato com famílias, experiências e aventuras que o marcaram para sempre.

imagem à esquerda Binho Ribeiro com colegas grafiteiros em edição de revista japonesa de 1999. Fotografia: acervo Binho Ribeiro

imagem abaixo Mural com grafite de Binho Ribeiro em Tóquio, Japão, 1999. Fotografia: acervo Binho Ribeiro

Em uma ocasião, os dois estavam grafitando para um campeonato de skate promovido por uma igreja quando conheceram OSGEMEOS

“Eles nos mostraram que já faziam várias coisas que nós estávamos estudando, e nós fazíamos várias coisas que eles estavam aprendendo.

Foi quando combinamos de pintar juntos e começamos, ali, a crescer e a conhecer mais gente – como Tinho, Yama, Vitché e Onesto. Como pintávamos na rua, muita gente via e repercutiu demais. Então, a cada dois ou três anos apareciam umas 50 pessoas novas. E, assim, as coisas foram crescendo”, recorda.

Binho conta que, ao aprender uma técnica nova, ele a mostrava para OSGEMEOS e vice-versa. “Quando um conseguia uma revista, emprestava para o outro. Na época, era o único meio de informação. Se chega a polícia, como você inventa que tem autorização ou não? Toda essa malandragem da rua se tornou muito forte, se firmou como uma cultura underground muito rica de conteúdo. Era fascinante.”

Os 30 anos seguintes testemunharam diversos caminhos percorridos por esses primeiros grafiteiros da cena paulistana, desde o reconhecimento internacional e a presença em grandes galerias de arte, passando pela criação e participação em importantes iniciativas que apoiam

o movimento ainda hoje no Brasil e no exterior, até a criação de revistas e grandes eventos, como a Bienal internacional de graffiti fine art Eles também foram responsáveis por algumas das articulações com outros setores da sociedade, como os órgãos públicos, para que essa cultura no país ganhasse seu espaço de destaque na cena mundial.

Ainda assim, houve sempre certa desconfiança ou desaprovação vindas de mentalidades conservadoras em relação a esse tipo de arte. Binho acredita que parte disso se dá pela própria estética das letras entrelaçadas, com muitas cores e movimento: “É uma psicodelia que, se a pessoa não consegue ler, não entende. E, porque não entende, não gosta”. Segundo ele, um contato maior com esse movimento e seu contexto histórico pode ser fundamental para transformar essa perspectiva. “As pessoas irão à exposição esperando ver apenas grafite e vão encontrar um universo muito evoluído tecnicamente, extremamente bem exposto, com conteúdo histórico muito bem estruturado”, explica o curador. “Falo das coisas que vivi aqui no Brasil e no exterior, do que eu conheço, não do que eu acho ou queria que fosse.”�

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Além das ruas - histórias do graffiti

Binho Ribeiro: histórias escritas por letras entrelaçadas

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Avenida 23 de Maio. Fotografia: acervo Binho Ribeiro

Pinturas rupestres

(cerca de 40 mil a.C.)

Cenas que narram o cotidiano de um grupo social, com suas lutas e glórias, foram as primeiras formas de pintura feitas pela humanidade, tendo as paredes das cavernas como suporte. Houve também quem optou por soprar a tinta por entre os dedos e registrar o contorno de suas mãos, criando, assim, uma primeira versão do que hoje conhecemos por estêncil.

“O beijo " , 10 mil a.C. Fotografia: Willam e Carvalho e Silva

Antigo Egito

(cerca de 2500 a.C.)

Muito do que veio a formar as sociedades do mundo ocidental nasceu ali, às margens do Rio Nilo. Um dos legados da civilização egípcia foi a documentação de sua cultura, dos costumes e do dia a dia de sua população. Os registros existem em paredes que nos fascinam ainda hoje, milênios depois.

Arte popular romana

(cerca de 62 d.C.)

Quando a erupção do vulcão Vesúvio devastou a cidade de Pompeia, no ano 79, a lava também levou consigo diversas frases e desenhos que adornavam suas paredes – já foram escavados mais de 11 mil exemplares só naquela região. A prática, frequente em todo o Império Romano, era a única oportunidade de expressão do cidadão comum.

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Além das ruas - histórias do graffiti

Muralismo mexicano

(início do século XX)

Após o fim de uma ditadura militar, a Revolução Mexicana soprou novos ares criativos no país, com o surgimento de painéis que contavam a história da nação, enalteciam suas ancestralidades e promoviam a luta contra as desigualdades sociais. Ruas e prédios eram decorados com arte de cunho popular para todos verem.

Trens de Nova York

(final da década de 1960)

O bairro do Bronx, na periferia da cidade, ganhou traços e cores à medida que crescia um sentimento de inquietação com as desigualdades e violências contra sua população marginalizada. Os trens, assinados com uma grafia inédita, logo se tornaram ícones desse novo movimento, que se espalharia pelas ruas de Nova York com grande fôlego nos próximos anos.

Paris, Maio de 68 (1968)

Do outro lado do Atlântico, a França era palco de movimentos estudantis que ficaram marcados pela presença de pichações, principalmente nas universidades. Nas ruas, os estênceis ganhavam força como uma forma de arte característica desse novo tempo, ao lado de pôsteres e murais que ajudaram a construir o imaginário da street art ao redor do globo.

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Linha do tempo
Registro de trem pintado por T-Kid em Nova York, Fotografia: a cervo T -Kid

Além das ruas - histórias do graffiti

Um grafiteiro

na Bienal (1971)

Nascido na Etiópia e radicado em São Paulo, o artista gráfico Alex Vallauri (1949-1987) conseguiu entrar pela porta da frente em uma das maiores instituições de arte do Brasil, a Bienal de São Paulo. Participante de quatro edições entre 1971 e 1985, Vallauri tornou-se referência para uma nova (e ainda pouco aceita) arte urbana, que pretendia, em suas palavras, “enfeitar a cidade” e “transformar o urbano com uma arte viva [e] popular”.

Em 1978, também existia um movimento de street art protagonizado por grupos como Tupy Não Dá, Carlos Matuque e Jaime Prades, que realizaram diversas intervenções urbanas e ocuparam muitas ruas de São Paulo.

Nasce uma cena

(meados da década de 1980)

Dos deslocamentos de dois grupos marginalizados – o hip-hop do Largo São Bento e o skate, que chegou a ser criminalizado nas ruas de São Paulo em 1988 –, o grafite começou a unir pessoas influenciadas pelos movimentos em Nova York e Paris. Juntos, esses jovens paulistanos lutariam por espaço, reconhecimento e legitimidade na arte da cidade.

Primeiras parcerias

(início da década de 1990)

A nova década chegou com oportunidades para o universo do grafite na capital paulista. A prefeitura incentivou sua prática, cedendo materiais e espaços físicos para a produção dos grafiteiros, como forma de oferecer uma alternativa às pichações. Alguns trabalhos eram também remunerados. Paralelamente, o hip-hop foi fomentado pela Secretaria de Cultura e o skate, finalmente, legalizado.

Evento “Arte e cultura na kebrada" , 2015. n Fotografia: a cervo Binho Ribei ro

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Intercâmbio Brasil-Chile (1996)

Quando Binho Ribeiro, Tinho, OSGEMEOS e Vitché chegaram a Santiago para grafitar em um evento de hip-hop, a notícia repercutiu nos círculos de grafite de todo o Brasil como um novo marco para o desenvolvimento dessa arte no país. Ao mesmo tempo, no Chile, houve uma valorização dessa atividade, e não tardou para que logo começasse uma nova era de idas e vindas de grafiteiros entre os dois países.

Grafite na mídia

(meados dos anos 1990)

Com uma cena em São Paulo já consolidada, o grafite no Brasil teve sua popularidade expandida também pelos meios de comunicação em massa, entre eles revistas especializadas, como Ëpidemia, a publicação independente Fiz, fundada por OSGEMEOS, e a revista Graffiti, editada por Binho Ribeiro e distribuída pela Editora Scala em todo o Brasil durante dez anos, multiplicando o acesso aos artistas e eventos dessa cena. Na mesma época, a TV Globo exibiu a novela Vila Madalena (1999), que tinha como cenário a efervescência cultural do bairro de mesmo nome – epicentro da arte urbana na capital paulista.

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S
Revista “Rap Brasil" , especial de rua, outubro de 2006 “Graffiti, arte e cultura"
Linha do tempo
peto no Chile, 1996.
OSGEMEOS, Binho, Tinho e n Fotografia: acervoBinho Ribeiro

Evento Ruas , no Itaú Cultural

(2006)

Em 2006, o Itaú Cultural (IC) apresentou o evento Ruas. Além de performance circense, teatro, música eletrônica, rap e vídeos, foram realizadas oficinas de hip-hop, ações de pintura e palestra/debate sobre grafite com OSGEMEOS. Na ocasião, artistas – entre eles Binho Ribeiro – grafitaram placas na lateral do edifício do IC e painéis dispostos dentro do prédio.

30 horas de arte, CPTM (2006)

Com painéis e intervenções urbanas instaladas nos muros das estações, uma grande exposição de arte pública foi criada com o objetivo de humanizar a paisagem que acompanha a linha do trem e de aproximar a Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM) de seus usuários. O mutirão artístico, coordenado por Binho Ribeiro e Bonga, reuniu cerca de 150 artistas do grafite, vindos de diversas partes do país.

Museu de Arte de São Paulo

(2009)

Cento e quarenta mil visitantes. Esse foi o público da mostra De dentro para fora / De fora para dentro, que levou a obra de Daniel Melim, Ramon Martins, Titi Freak e outros expoentes da arte contemporânea com experiência na arte de rua para dentro do Museu de Arte de São Paulo (Masp), conhecido ícone da elite cultural paulistana.

Também em 2009, a Graffiti fine art (GFA) teve sua primeira edição, no Museu Brasileiro da Escultura (MuBE), com cerca de 50 artistas. Hoje, a Bienal internacional GFA conta com mais de cinco edições, sendo uma das mais completas exposições de arte de rua do mundo.

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Além das ruas - histórias do graffiti Registro de grafitei ros do Itaú Cultural durante pintando na área externa Fotografia: Cia. da Foto o evento “Ruas" , 2006.

A cidade abraça a arte

(início dos anos 2010)

Em 2011, a prisão de 11 grafiteiros – absolvidos após a conclusão de que sua atividade não era vandalismo, mas um benefício para cidade – ganhou repercussão e a Secretaria de Cultura de São Paulo patrocinou a criação do Museu Aberto de Arte Urbana. Uma das avenidas mais importantes para o trânsito da capital paulista, a 23 de Maio é também a sede do maior mural de grafite a céu aberto do mundo.

Museu de Arte de Rua (2017)

A Avenida 23 de Maio, que serve de eixo do corredor norte-sul de São Paulo, possuía uma extensa coleção de murais, que foram apagados por uma nova prefeitura. A ação gerou enorme repercussão negativa e levou a Secretaria de Cultura a criar o Museu de Arte de Rua (MAR), com a viabilidade do projeto prevista em lei, independentemente das próximas mudanças de governo.

Além das ruas (2023)

O IC convida Binho Ribeiro para a curadoria da exposição Além das ruas: histórias do graffiti, que reúne e organiza diferentes vivências e perspectivas sobre a arte das ruas e seu lugar no panorama artístico e cultural no Brasil e no mundo.

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Linha do tempo Registro de mural de Odé Fotografia: acervo Binho Ribeiro Fotografia: a cervo Binho Ribeiro Frasão e Katia Su zue, 2017. de a rte urbana de São Paulo, 2017 . Registro de mural d o museu

MULH ERES NO GRAF Fi T i

por Katia Suzue

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A grafiteira,

artista plástica

e educadora Katia Suzue fala de sua experiência com o grafite, de suas principais influências, da evolução de seu estilo, dos desafios e da construção de espaços de apoio e fortalecimento entre mulheres em uma cena da arte de rua tradicionalmente masculina.

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Nasci e cresci na Zona Norte de São Paulo e me lancei para valer no jogo do graffiti em 2005. Nessa época eu só queria fazer parte, criando bombs [formato de grafite rápido, com letras simples e poucas pela cidade. Por tempo fiquei cenário tradicional, de regras, muitos homens, pouquíssimas mulheres, muita vivacidade e muita competição. Segui trilhando esse caminho das ruas e resistindo a esse mecanismo nada convidativo às mulheres, em que era possível contar nos dedos as graffiteiras que conheci e com as quais pintei, mas com quem me conectei profundamente e até hoje guardo em meu coração.

Minha história começou no real vandal – estilo em que só cabem letras e que é ilegal por essência, no sentido literal de vandalismo; é oriundo do movimento hip-hop e tem como objetivo demarcar território – e foi se desdobrando, entre mudanças de estilos, acompanhando meu desenvolvimento e minha

evolução como estudante, artista, mãe, mulher e feminista. Quero contar um pouco sobre as mulheres que conheci ao longo desse período de lutas e glórias, no qual de poucas nos tornamos muitas. Nós nos fortalecemos em rede, compartilhando informações e eventos e nos energizando com as experiências de outras mulheres que, como nós, escrevem diariamente a sua história nas ruas de todo o mundo. Paralelamente ao meu percurso nas ruas, segui como educadora, lugar que me manteve em estudo constante e nutrindo o interesse pela trajetória dessas Seguindo a regra básica do graffiti – de respeitar quem veio primeiro –, quero começar citando Lady Pink, graffiteira equatoriana radicada nos Estados Unidos. Ela recentemente deu um depoimento contando que, quando começou a pintar, escutava rock e que a imagem atrelada a ela de mulher cult da cultura hip-hop (graças ao filme Wild style, de 1982, do qual foi protagonista) não a representava. Apesar disso, assim perpetuou seu nome e se tornou

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Além das ruas - histórias do graffiti
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Mulheres no graffiti
Katia Suzue, 2023. Fotografia: André Coletto

Além das ruas - histórias do graffiti

Registro de grafite da artista Katia Suzue. São Paulo. Fotografia: Katia Suzue

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uma grande referência feminina na cultura hip-hop. Atualmente, segue pintando nas ruas, atuando como educadora de graffiti em espaços culturais e vendendo projetos de arte. Apesar de ser uma das minhas grandes influências, ela não foi a primeira referência, já que, no início do meu percurso, a internet era uma ferramenta limitada, à qual nem todo mundo tinha acesso, e as primeiras mulheres com as quais tive contato encontrei na rua.

Outro grande nome para mim é Martha Cooper, fotojornalista norte-americana que tive o prazer de conhecer há alguns anos. Martha é uma enciclopédia viva do graffiti e, com seus 80 anos, segue mundo afora registrando a evolução dessa arte e o trabalho das novas gerações.

Um dos primeiros contatos que tive com outras mulheres no graffiti foi em 2003, antes de me jogar de vez na cena, quando vi Waleska Nomura pintando no Clubão, um espaço de convívio da galera na Zona Norte de São Paulo. Nesse dia me senti muito impactada vendo uma mulher pintar. Uma mulher amarela, de cabelos coloridos, que muito se assemelhava a mim. Nossa origem oriental nos conectava, e a força feminina ancestral me emocionou naquele momento raro e único. No início eu me apegava a qualquer figura feminina

que aparecesse e tentava rastrear essas mulheres para pintar junto. Foi assim que, em 2007, surgiram as Noturnas, grupo formado pelas graffiteiras Tikka, Prila e Zeila. Eu me juntei a elas, e, nos dois anos seguintes, entraram para o grupo Keila, Yá, Pan e Miss. Construíamos uma verdade que era só nossa, várias meninas cheias de disposição e muita vontade de colorir as ruas. Noturnas se tornou a primeira crew [equipe] de mulheres na cidade de São Paulo. Criamos nossas regras, colorindo a cidade cinza que a gestão política da época nos fazia engolir. Nós nos inscrevemos em editais e conseguimos realizar muitas conquistas apenas entre mulheres. Aprovamos o projeto As 13, que pela primeira vez levou 13 mulheres graffiteiras juntas em um espaço expositivo institucionalizado (com cachê, material e uma publicação), no Centro Cultural Ruth Cardoso.

Nesse mesmo período, fomos convidadas para o Encontro nacional da Rede Graffiteiras BR, encabeçado por Ana Clara, da crew Maçãs Podres, criada no ABC Paulista em 2003. Nesse encontro, tivemos contato com aproximadamente 50 mulheres de todo o Brasil. A Rede Graffiteiras BR nos serviu de apoio para viajar e pintar com outras mulheres de outros estados, e a partir disso muita coisa mudou, conexões foram estabelecidas

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Mulheres no graffiti

e uma revolução feminina no graffiti se iniciou. Ana Clara me abriu não só a porta para o mundo feminino do graffiti, mas também minha mente ao falar de feminismo, termo que, antes do contato com ela, eu nem sabia o que significava.

Nessa mesma época, eu me formei em artes e comecei a ocupar espaços culturais ministrando aulas de arte urbana. Posteriormente, eu me graduei em museologia pela Etec Parque da Juventude, bem em frente ao Museu Aberto de Arte Urbana (Maau). No momento da criação do museu, eu estudava e pintava havia pouco mais de cinco anos, mas já tinha em mente que havia aprendido a pintar e queria muito participar dessa cena. Foi então que recebi um convite para fazer a pintura em uma das pilastras do Maau.

Esse foi um momento em que muita coisa mudou na minha vida. Tive a chance de fazer minha segunda iniciação científica, via Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), com um inventário de obras de mulheres graffiteiras. Entreguei minha pesquisa em 2011 – nela mapeei 40 mulheres atuantes no graffiti na capital paulista, estudo que serviu de apoio para a produção do capítulo sobre mulheres do livro Graffiti em SP, publicado em 2012.

Em meio ao graffiti e aos estudos, engravidei. Pensei que seria o fim

do meu percurso nessa área, já que nós mulheres passamos por muitas provações no período de gestação. Nesse momento, recusei propostas para pintar, até que, como mágica, muitos convites irrecusáveis passaram a fazer parte da minha rotina. Então deixei os bombs e, graças aos movimentos do próprio graffiti, cheguei à street art. Passei a produzir telas e projetos de pintura, de grandes formatos, em instituições e galerias de arte.

Há cerca de dez anos, o graffiti se consolidava de maneira incrível, e quem tinha técnica e circulava na cena conseguia muitos trabalhos em campanhas publicitárias. Galerias na Vila Madalena, bairro paulistano, começaram a investir na venda de obras de artistas do universo da rua, outras instituições fomentaram a cultura da rua e, graças a esse momento, pude participar de residências artísticas internacionais, eventos nacionais e internacionais de muralismo e mostras coletivas em grandes museus de São Paulo, ganhei salões de arte e participei da Bienal de graffiti fine art como artista e como palestrante. Era um sucesso ser artista de rua.

Então chegou a pandemia de covid-19. Como ser artista de rua sem a rua? Eu me reinventei, mudei de cidade, de ares, e segui com as aulas remotamente. Mas como falar de arte

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Além das ruas - histórias do graffiti

de rua nesse momento distante da rua? Sendo educadora cultural – em um programa social desde 2014, e cada vez mais com demandas on-line –, tive a ideia de fazer entrevistas, focando em mulheres do graffiti, convidando artistas que começaram a pintar no mesmo período que eu. Entre as perguntas, uma era comum a todas, e eu a repasso a vocês: “Qual foi a primeira mulher que você viu fazendo graffiti na sua vida?”. ❄

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Registro de grafite da artista Katia Suzue, São Paulo. Fotografia: Katia Suzue Crew Noturnas e colegas grafiteiras em São Paulo, 2007. Fotografia: acervo Katia Suzue Mulheres no graffiti

AS FUNDAÇÕES DO GRAF i TE COMO EXPRESSÃO URBANA por

Icaro Mello

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Membro de uma geração

que construiu as bases da cultura do grafite em Nova York, o grafiteiro T-Kid fala da realidade social no Bronx, das mudanças estéticas e técnicas que o grafite incorporou com o passar dos anos e da potência de sua internacionalização.

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Nascido em Nova Jersey e criado no Bronx, em Nova York, Julius Cavero, conhecido mundialmente como T-Kid, descobriu o grafite ainda criança, aos 7 anos, através de tags (escrita do nome ou apelido do artista, no grafite e no picho, que lhe dá visibilidade e reconhecimento) pichadas nos muros. Fruto de uma complexa e dura realidade urbana daquela cidade na década de 1970, ele construiu uma reputação ainda jovem, com acrobacias urbanas e espalhando suas tags “King13” e “Sen102”.

A Nova York dos anos 1970 é comumente lembrada pela instabilidade econômica e pelo caos social: bairros com ruínas de prédios, alta taxa de incêndios criminosos, recordes de desemprego, roubos e uma cidade à beira da falência econômica. Nas ruínas dessa cidade, no entanto, crescia um movimento de resistência e contracultura, de latinos e negros pobres, que resultaria no movimento hip-hop e daria nova cara e voz à expressão de jovens marginalizados pela sociedade estadunidense.

Nesta entrevista, T-Kid nos conta sobre a atmosfera social na qual cresceu, a realidade das gangues, sua trajetória pessoal no grafite e as transformações que a cultura da arte de rua e sua representação estética percorreram até os dias atuais.

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Além das ruas - histórias do graffiti

T-KID T-KID

As fundações do grafite como expressão urbana

Quando você começou sua trajetória no grafite? Qual era o contexto urbano em

Nova York e suas motivações?

O momento em que percebi que existia algo chamado grafite foi no final da década de 1960. Você via por todo lugar. Eu era uma criança e percebia, enquanto crescia, que o grafite estava por todos os lados, como tag. Mas só comecei a entrar no grafite, fazendo tags, quando fugi da casa da minha mãe para ir morar com o meu pai, no começo da década de 1970.

Nessa época, o Bronx tinha muitas gangues e muitas drogas, era um bairro perigoso. Comecei a fazer tags quando entrei em uma, os Bronx Enchanters [Encantadores do Bronx]. Escrevia “King13”, e também o nome da gangue, nas paredes e caixas de correio. Foi só quando eu saí dela e fui para outra, os Renegades of Harlem [Renegados do Harlem], que comecei a escrever nos trens. Danko, Smoky, Diamond Dave e eu fazíamos motion tagging [pintar e grafitar com o trem em movimento]. Nesse período, eu usava a tag “Sen102”, que continuei fazendo até 1977, quando fui baleado e decidi sair do mundo das gangues. Foi nesse momento que eu me tornei T-Kid 170.

Como você criou o nome T-Kid?

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Esta é uma história engraçada, de quando era um garoto magrelo e gostava de jogar futebol americano na rua. Costumava correr e balançar meus braços gritando: “Me passa a bola”. Os outros garotos riam de mim porque, quando agitava meus braços, parecia a letra T, então começaram a me chamar de “Big T” [Grande T]. Quando entrei nas gangues, meus amigos me chamavam de kid [criança ou moleque], porque sempre fui o mais novo, e é comum as pessoas o chamarem de kid quando você é o mais novo em um lugar. IM IM

T-KID

Quando eu estava no hospital depois de ter sido baleado, meu irmão comprou um caderno de rascunho e algumas canetas El Marko e Buffalo para mim. Eu escrevia e rascunhava no papel. Escrevia um grande “T”, escrevia “Kid”. Então olhei para os desenhos e vi que os dois juntos eram muito legais, e era original: T-Kid. O interessante é que pode significar muitas coisas: The Kid, Terrible Kid, Tenacious Kid, Terrorizing Kid. Foi assim que criei o nome, no hospital, em 1977, me recuperando. Foi muito louco, mas o nome pegou.

Quando escrevia em paredes, caixas de correio e tudo o mais que encontrava, era vandalismo. Não tinha permissão para fazer isso, e essa era a maneira como as pessoas viam. A gente não buscava permissão, a gente só fazia. É bem interessante como o grafite se transformou no que é hoje em dia, apesar de as pessoas o odiarem tanto.

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No Brasil, e acredito que nos Estados Unidos também, existe uma linha tênue na maneira como a sociedade vê o grafite. Algumas pessoas o reconhecem como uma expressão artística e outras como vandalismo, sendo uma questão em constante debate. Como essas percepções impactaram sua vida e seu trabalho?
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Além das ruas - histórias do graffiti

Na passagem dos anos 1970 para os 1980, com a revolução cultural que se iniciou no Bronx, com o hip-hop, as pessoas passaram a ver o grafite de uma maneira diferente. A percepção começou a mudar porque as galerias no centro da cidade, em Manhattan, começaram a aceitar o grafite como um meio de ganhar dinheiro. A Autoridade de Trânsito [que administra os trens] e muitas pessoas odiavam o grafite porque achavam que a arte precisava ser limpa, ter uma estética, que é o que a mentalidade conservadora sempre pensou. Apesar disso, muitas pessoas tiveram a mente aberta e viram a verdadeira arte. O grafite é a única expressão artística que sempre se comunicou rompendo barreiras como raça, religião, idade. Não importa de onde você é, qual sua idade e no que você acredita ou não, o grafite te toca.

Por causa desse movimento cultural do Bronx, pessoas como [o fotógrafo] Henry Chalfant e [a fotojornalista] Martha Cooper documentaram o que acontecia em um livro. Assim que a publicação se internacionalizou, o movimento virou um fenômeno mundial. Tenho certeza de que muitos artistas hoje em dia, inclusive no Brasil, foram influenciados. Por exemplo, a história de OSGEMEOS. Eles conseguiram uma cópia xerocada do livro e isso os inspirou. Nosso movimento criou a fundação. Criamos, colocamos nos trens, e isso motivou e inspirou muita gente, a ponto de virar um fenômeno global. No meio disso tudo, para escapar do estigma da palavra grafite, começaram a chamar de arte de rua – afinal, é arte na rua.

Quando começou a ficar mais difícil de pintar os trens, o grafite passou a ir para as paredes, que eram mais aceitas pelo público, porque você podia pedir permissão. Não estávamos mais diante de um grande departamento federal, estávamos lidando com indivíduos, que gostavam ou não. Alguns reconheciam seus muros e paredes como um bom espaço para exibir arte, e isso foi uma transformação incrível.

Tudo se resume à maneira como você percebe o mundo: o quão conservador ou liberal você é, qual é a sua visão. A minha motivação sempre foi estabelecer o grafite como arte, porque ele é. É um meio de expressão, como a arte também é, seja ela visual, física ou performática. Arte é sobre expressão.

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As fundações do grafite como expressão urbana
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Registro de trem pintado por T-Kid em Nova York, 1984
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Escrever nos trens era muito forte em Nova York. Você consegue dizer por que era tão importante?

Muitos artistas de rua hoje em dia parecem não entender que o grafite nos trens foi a fundação do movimento. Antes disso, não havia murais de grafite, eram apenas tags nas ruas. Nós começamos a pintar os trens nos metrôs, e a importância de fazer isso é que eles se moviam. Era uma galeria em movimento. A gente percebeu que poderia pintar no Bronx e nossos nomes iriam de lá para Manhattan, Brooklyn, Queens. Escrever nos trens se tornou um rito de passagem para os jovens, que pintavam os nomes e os viam circular. Por isso que havia lugares como o Writer’s Bench [Banco dos Escritores, onde grafiteiros e escritores se reuniam para se organizar e observar os trens] na estação 149th Street, ou na Rua 125, onde os trens saíam dos túneis e as pessoas iam fotografar. Antes disso o grafite era tag , era escrita. Com os trens, nós passamos a gastar mais tempo, usar cores, criar estilos, fazer personagens que criavam vida com o trem em movimento.

Assim, o grafite como arte passou a existir. Era feito no aço, nos trens, era ilegal. A gente não pedia aos nossos pais que comprassem tinta, a gente roubava. Era arte das pessoas pobres, que não tinham nada, e isso deixava tudo mais passional. Quando foi para as paredes depois, tudo se tornou mais criativo, mais estético, e, como não era ilegal, as pessoas aceitaram melhor. Muitos grandes artistas nasceram aí, onde nada era comprado nem planejado. Juntos, nós nos energizávamos, trocávamos influências. Quando estávamos nos túneis e nos pátios dos trens, ficávamos sentados conversando, fazendo piadas, rindo, e essa energia era transformada em criações maravilhosas. Era incrível. Nunca mais teremos um período como aquele. Não tínhamos revistas, lojas dedicadas ao grafite, tintas específicas, cápsulas de spray. Usávamos o que estava disponível, o que conseguíamos achar. E isso é arte, ela vem da ausência. Nós nos tornamos algo e fizemos do grafite algo global.

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IM Além
T-KID
das ruas - histórias do graffiti

Você vem de uma família de imigrantes latinos. Isso influenciou seu trabalho?

Eu tenho muito orgulho da minha origem. Eu sou latino. Meu pai era um imigrante do Peru que veio para os Estados Unidos, trabalhou duro, me ensinou valores. Minha mãe era porto-riquenha e veio para Nova York com minha avó para trabalhar nas fábricas. Naquela época, o Bronx tinha muitos empregos nas fábricas. Meu pai gostava de futebol e era um homem muito inteligente. Era contador, mas gostava de trabalho físico, e por isso foi trabalhar com ferro, como soldador, em construção de prédios, pontes. Ele nunca estava em casa, sempre trabalhando. Eles se separaram quando eu tinha 3 anos, e eu morei com minha mãe até os 9 anos, quando fugi para ir morar com meu pai. Com ele, conheci a cultura peruana e fiquei fascinado pela cultura inca e moche dos Andes. Isso me influenciou, com certeza. Quando morei com minha mãe – inclusive em Porto Rico por um tempo –, as cores e a cultura porto-riquenha, a cultura taina, as casas coloridas me cativaram.

Tudo isso me incentivou a usar muitas cores, junto com as linhas finas da arte inca e moche. Eu só percebi essa influência depois, quando fui fazer pesquisas sobre essas tradições e percebi que aquilo era o que eu fazia, como me expressava. Afinal, o grafite é uma forma hieroglífica: é um sistema complexo de letras e símbolos que nem todo mundo consegue entender. É muito importante que as pessoas conheçam sua cultura, a cultura de onde elas vêm. Assim elas podem descobrir quem são. Eu sei quem eu sou. Sou latino, sou mestiço, eu me orgulho disso e expresso na minha obra.

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fundações do grafite como expressão urbana

Você já veio ao Brasil?

Infelizmente nunca fui. Mas já tive o prazer de trabalhar com muitos artistas brasileiros. Pintei uma parede no Bronx com OSGEMEOS e o Cope2. Pintei com o Bonga MAC em Paris. E pintei com o Binho na China, na França, na Alemanha e em Nova York. Só de pintar com eles, eu já pude sentir a energia do Brasil. O Brasil é incrível, assim como a arte que é produzida aí. Acho incrível, em São Paulo, os prédios enormes e os artistas fazendo seus grafites nas empenas [em arquitetura, empena designa qualquer parede lateral de uma edificação, normalmente na divisa do terreno]. Estou ansioso para conhecer o Brasil e me sinto grato por ter sido convidado a ir. Espero poder fazer algo que impressione vocês, porque vocês são impressionantes para mim. Espero que o que façamos juntos possa ser lembrado por muito tempo.

O que o motiva a continuar criando?

Eu tenho 61 anos e ainda estou ativo. Vou bastante para a Europa. Pinto muito. Até pinto trens por lá. Para mim, é importante poder dar de volta aquilo que me foi dado.

Quero ver o grafite como arte, feito como sempre fizemos, resgatando as raízes. Por isso, eu vou pintar trens até não conseguir mais andar. Me motiva muito poder ver meu trabalho chegando a museus importantes, como o Louvre, o Smithsonian, e ver as pessoas reconhecendo o grafite como uma arte de verdade. A maior parte dos grafiteiros não é treinada nas técnicas clássicas da arte, não foi a escolas de arte, não fez da arte seu negócio. Eles só se expressam, assim como eu faço. Se fizer dinheiro com isso, tudo bem. Mas o que é realmente importante, e me faz continuar, é que os artistas de hoje, de rua, vejam que essa expressão veio dos trens do metrô, de uma geração que não teve nada.

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T-KID T-KID IM IM Além
das ruas - histórias do graffiti

Que mensagem você gostaria de deixar para quem está começando no grafite?

Que sejam verdadeiros consigo mesmos como artistas. Sempre saiba o que você quer ser, o que quer aprender, o que você está disposto a fazer e do que deve abrir mão. Às vezes arte é sacrifício, e, se você está disposto a fazer esse sacrifício, será um grande artista. Seja disciplinado no que você faz, seja verdadeiro, acredite em si mesmo e no que é importante. Isso é o que a arte me deu, a autoconfiança de que posso alcançar tudo aquilo em que eu focar minha mente e meu coração. Mente e coração são muito importantes. A mente lhe diz o que fazer, mas o coração precisa sentir. Precisa parecer certo para você – e, se é isso que você quer, seja verdadeiro que o retorno será verdadeiro. ☁

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T-KID

Além das ruas - histórias do graffiti

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Registro de trem pintado por T-Kid em Nova York, 1984

“ Pintei uma parede no Bronx com OSGEMEOS e o Cope2. Pintei com o Bonga MAC em Paris. E pintei com o Binho na China, na França, na Alemanha e em Nova York. Só de pintar com eles, eu já pude sentir a energia do Brasil. O Brasil é incrível, assim como a arte que é produzida aí. Acho incrível, em São Paulo, os prédios enormes e os artistas fazendo seus grafites nas empenas. ”

L i VROS PA RA CONHECER O GRAF i TE

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Binho

Ribeiro, grafiteiro e curador da exposição

Além das ruas: histórias do graffiti , selecionou 11 livros que apresentam reflexões e críticas por meio de cores e traços nos muros da cidade. As obras bibliográficas indicadas abrangem, além da história do grafite, os trabalhos e os artistas de destaque desse meio.

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Subway art

Henry Chalfant e Martha Cooper

Thames & Hudson [edição em inglês]

Publicado pela primeira vez em 1984, Subway art é um conjunto documental do fotógrafo Henry Chalfant e da fotojornalista Martha Cooper que apresenta a explosão do movimento do grafite na cidade de Nova York. Conhecido como A Bíblia do Grafite, o livro é considerado um dos responsáveis pela internacionalização desse movimento.

Spraycan art

Henry Chalfant e James Prigoff

Thames & Hudson [edição em inglês]

Publicado em 1987, Spraycan art é um trabalho documental dos fotógrafos

Henry Chalfant e James Prigoff sobre o início da disseminação do grafite nova-iorquino ao redor do mundo, com obras e depoimentos de grafiteiros.

O mundo do grafite

Nicholas Ganz WMF Editora [edição em português]

Nicholas Ganz combina suas próprias experiências, depoimentos de artistas e mais de 2 mil obras para analisar a essência do grafite, conduzindo o leitor pela história desse movimento nos Estados Unidos, na Europa, no Brasil e em outros lugares.

O grafite na cidade de São Paulo e sua vertente no Brasil Sérgio

Poato

Núcleo Interdisciplinar do Imaginário e Memória (Nime)/Laboratório de Estudos do Imaginário (Labi)/ Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo

Lançado em 2006, o livro integra a coleção Imaginários, série semestral de obras que buscam compor um conjunto de artigos e trabalhos em diferentes áreas do conhecimento, como antropologia, artes plásticas, cinema, geografia, história, literatura e música.

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Além das ruas - histórias do graffiti

Graffiti planet

Alan Ket

Michael O’Mara Books [edição em inglês]

O grafiteiro, escritor e pintor Alan Ket apresenta um compilado de obras dos principais nomes do grafite mundial, como Banksy, T-Kid, Binho e OSGEMEOS.

Dondi White: style master general

Andrew “Zephyr” Witten e Michael White

Harper Design [edição em inglês]

Apresentando a vida e o trabalho de um dos expoentes do grafite nova-iorquino dos anos 1970 e 1980, o livro conta com fotografias, rascunhos, entrevistas inéditas e depoimentos de seus contemporâneos.

L’art du graffiti. 40 ans de pressionisme

Grimaldi Forum Monaco [edição em francês]

Catálogo da exposição de mesmo nome apresentada no Grimaldi Forum Monaco e que contava com obras do “pressionismo”, movimento de artistas que transportou a estética da arte urbana para as telas convencionais.

Tropical spray

Julien “Seth” Malland Martins Fontes [edição em português]

O artista parisiense Julien “Seth” Malland viaja ao Brasil para encontrar artistas brasileiros e aprender novas formas de criação. Em dez meses de viagem pelo país, em seis capitais (São Paulo, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Recife, Brasília e Porto Alegre), o autor apresenta as especificidades de cada região através da criação de seus artistas.

Graffiti SP

Ricardo Czapski Comg Editora [edição em português]

Em um projeto que começou como hobby, o fotógrafo e consultor financeiro Ricardo Czapski documentou e organizou representações do grafite na cidade de São Paulo entre 2010 e 2013.

O livro apresenta obras de Cranio, Speto, Chivitz, Kobra, Ozi, Alex Hornest, Tinho, Mundano e Magrela, entre outros artistas.

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Livros para conhecer o grafite

Graffiti fine art

vários autores Sesi-SP Editora [edição em português]

Fruto de uma parceria entre a Sesi-SP Editora e o Museu Brasileiro da Escultura (MuBE), o livro Graffiti fine art apresenta grandes nomes do grafite mundial ao lado de suas obras, explorando seus traços, suas influências e seus temas.

Graffiti Brasil

Tristan Manco, Lost Art e Caleb Neelon Thames & Hudson [edição em inglês]

Trabalho conjunto do autor e designer Tristan Manco, do coletivo de fotografia Lost Art (formado por Louise Chin e Ignacio Aronovich) e do grafiteiro Caleb Neelon, o livro Graffiti Brasil é um registro visual e histórico da criatividade, das técnicas e das particularidades da produção de grafite no país, apresentando o trabalho de artistas como Nina, Tupy Não Dá e Niggaz.

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Além das ruas - histórias do graffiti

Registro do artista André Gonzaga Dalata. Fotografia: acervo Binho Ribeiro

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Livros para conhecer o grafite

PÁG i NAS DE CR i AÇÃO

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Registro do evento Ruas, 2006.

Fotografia: Cia. da Foto

Registro de mural do Museu de Arte de Rua de São Paulo, 2017.

Fotografia: acervo Binho Ribeiro

Evento Arte e cultura na kebrada, 2015. Fotografia: acervo Binho

Ribeiro

Evento 30 horas de artes, CPTM, 2006. Fotografia: acervo Binho

Ribeiro

OSGEMEOS, Binho, Tinho e Speto no Chile, 1996. Fotografia: acervo Binho

Ribeiro

p. 1 p. 2-3 p. 4-5 p. 14-15
82
p. 18-19
Além das ruas - histórias do graffiti

p. 34-35

Registro da artista Katia Suzue pintando sua primeira empena, em 2015. Projeto Revivarte Cingapura - Água Branca. Fotografia: André Coletto

p. 40-41

Registro de grafite da artista Katia Suzue, São Paulo. Fotografia: Katia Suzue

p. 46-47

Registro de grafite da artista Katia Suzue, São Paulo. Fotografia: Katia Suzue

p. 48-49

Registro de grafite da artista Katia Suzue, São Paulo. Fotografia: Katia Suzue

p. 64-65

Registro de trem pintado por T-Kid em Nova York, 1984

Crédito 83

p. 66-67

Avenida 23 de Maio. Fotografia: Zanone Fraissat/Folhapress

p. 68-69

Noturnas Gang 2008. Primeira crew de graffiti só de mulheres na cidade de São Paulo. Fotografia: acervo Katia Suzue

p. 70-71

Projeto Olhar nascente para comemorar o centenário da imigração japonesa e o aniversário de São Paulo, no complexo viário das avenidas Doutor Arnaldo, Paulista e Rebouças, conhecido como “Túnel da Paulista”, 2007. Fotografia: acervo Binho Ribeiro

p. 90-91

Registro do evento Ruas, 2006. Fotografia: Cia. da Foto

Além das ruas - histórias do graffiti 84

p. 92-93

Ônibus com intervenção do artista Vermelho, por ocasião da terceira Bienal internacional graffiti fine art, São Paulo, 2020. Fotografia: acervo Binho Ribeiro

Crédito

p. 94-95

Registro do evento Ruas, 2006. Fotografia: Cia. da Foto

Registro do evento Ruas, 2006. Fotografia: Cia. da Foto

p. 96 85

Além das ruas - histórias do graffiti

EXPOSIÇÃO ALÉM DAS RUAS – HISTÓRIAS DO GRAFFITI

Concepção e realização Itaú Cultural

Curadoria Binho Ribeiro

Assistente de curadoria Lari Umeri

Projeto expográfico Renato Bolelli Rebouças

Projeto de acessibilidade Itaú Cultural

FUNDAÇÃO ITAÚ

Presidente do Conselho Curador Alfredo Setubal

Presidente Eduardo Saron

NÚCLEO DE COMUNICAÇÃO E RELACIONAMENTO

Gerência Ana de Fátima Sousa

Coordenação Carlos Costa e Renato Corch

Edição e produção de conteúdo Icaro Mello e Juliana Ribeiro

Supervisão de revisão Polyana Lima

Revisão de texto Rachel Reis (terceirizada)

Revisão de tradução Denise Chinem (terceirizada)

Identidade visual e projeto gráfico Mily Mabe

Comunicação visual Guilherme Ferreira e Mily Mabe

Produção editorial Luciana Araripe

Produção gráfica Lilia Góes (terceirizada)

Edição de fotografia André Seiti

Redes sociais Daniela Campos (estagiária), Jullyanna Salles e Victoria Pimentel

ITAÚ CULTURAL

NÚCLEO DE ARTES VISUAIS E ACERVOS

Gerência Sofia Fan

Coordenação Juliano Ferreira

Produção-executiva João Vitor Maturana e Júlia Munhoz

Acervo Steffania Prata

NÚCLEO DE AUDIOVISUAL

Gerência André Furtado

Coordenação Kety Fernandes Nassar

Produção audiovisual Amanda Lopes e Ana Paula Fiorotto

Captação Abaquar Produções (terceirizada)

Edição Algazarra Produção Cinematográfica (terceirizada) e Richner Allan

NÚCLEO DE EDUCAÇÃO E RELACIONAMENTO

Gerência Valéria Toloi

Coordenação de atendimento ao público Tayná Menezes

Equipe Domenica Antonio, Fabiano Nascimento, Matheus Paz, Natasha Marcondes, Victor Soriano e Vinícius Magnun

Coordenação de formação Valéria Toloi

Equipe Edinho dos Santos, Edson Bismark, Elissa Sanitá, Joelson Oliveira, Matheus Maia, Maya de Paiva, Mayra Reis Rocha, Mônica Abreu Silva, Silas Barbosa (estagiário), Victória de Oliveira, Vítor Luz e Vitor Narumi

NÚCLEO DE INFRAESTRUTURA E PRODUÇÃO

Gerência Gilberto Labor

Coordenação Vinícius Ramos

Produção Érica Pedrosa, Fábio Marotta, Fernanda Tang, Iago Germano, Tailane Felix (estagiária) e Wanderley Bispo

CONSULTORIA JURÍDICA

Gerência Anna Paula Montini

Coordenação Daniel Lourenço

Equipe Rafael Del Piero

AGRADECIMENTOS

A Bob Fonseca, Ludmila Cayres, Leandro Mantovani, Tiago Diel (Eurecka Filmes), Vinicius Vg, Alex Hornest, Henrique Cabral, Adriano Mendez, Bruna Monique, Fernando Augusto e Miguel Chaia. Aos artistas, à equipe de produção e às pessoas que fizeram e fazem parte dessa história, inclusive as que não foram citadas, mas que têm grande importância na construção dessa cultura. Aos grandes artistas que partiram, entre eles Zelão, Niggaz, Vermelho, Pakato e ACB (artista chilena que também marcou presença em importantes momentos do grafite em São Paulo), que colaboraram e deixaram suas obras e histórias eternamente.

O Itaú Cultural (IC) e a curadoria agradecem a todos os fotógrafos que cederam imagens e a todos os artistas, sucessores e colecionadores que autorizaram a exibição e emprestaram suas obras para a exposição. O IC realizou todos os esforços para encontrar os detentores dos direitos autorais incidentes sobre as imagens/obras aqui expostas e publicadas, além das pessoas fotografadas. Caso alguém se reconheça ou identifique algum registro de sua autoria, solicitamos o contato pelo e-mail atendimento@itaucultural.org.br. O IC integra a Fundação Itaú. Saiba mais em fundacaoitau.org.br.

Ficha técnica

sábado 6 de maio a domingo 30 de julho de 2023 terça a sábado | 11h às 20h

domingos e feriados | 11h às 19h

pisos 1, -1 e -2 entrada gratuita

Itaú Cultural Avenida Paulista, 149, São Paulo, SP

Memória e Pesquisa | Itaú Cultural

Além das Ruas: histórias do graffiti/organizado por Itaú Cultural; vários autores. – São Paulo: Itaú Cultural, 2023.

il.: 18 x 24 cm; 96 p.

ISBN: 978-65-88878-72-9

Bibliotecária Geovanna de Barros Kustovich CRB-8/010630

Esta publicação foi composta das famílias tipográficas Approach e PP Rader . O miolo foi impresso no papel pólen natural 80 g/m 2 e couchê fosco 115 g/m2. Duas mil unidades foram impressas em abril de 2023.

1. Gravuras . 2. Graffiti. 3. Artes visuais. 4.Xilogravuras. 5. Artes.   I. Instituto Itaú Cultural. II. Itaú Cultural. III. Título. CDD 760
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