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FÓRUM DE GESTÃO PÚBLICA NA PARAÍBA “Por um desenvolvimento nacional sustentável” Promoção da EDITORA FÓRUM Homenagem ao Conselheiro Flávio Sátiro Fernandes Presidente de Honra: Conselheiro Fábio Túlio Filgueiras Nogueira

O EVENTO

16h – Intervalo para café

O FÓRUM DE GESTÃO PÚBLICA NA PARAÍBA é um Evento que reunirá profissionais de renome nacional para discutir temas e importantes abordagens do Direito Público, e terá como homenageado o Conselheiro e Professor Aposentado da Universidade Federal da Paraíba Flávio Sátiro Fernandes, autor dos livros História Constitucional da Paraíba e Lições de Direito Administrativo, ambos publicados pela Editora Fórum. A decisão de homenagear o seu editado partiu do Presidente da Fórum, Editor Luís Cláudio Rodrigues Ferreira.

16h30 – Palestra Divisão constitucional de competências e os múltiplos controles de políticas públicas: experiências concretas Vanice Lírio do Valle (RJ) Procuradora do Município do Rio de Janeiro

PROGRAMAÇÃO 21 de março - Quinta-feira 9h15 – Credenciamento 9h45 – Abertura oficial Luís Cláudio Rodrigues Ferreira Presidente e Editor da Fórum

10h – PAINEL: LICITAÇÕES “Promoção do desenvolvimento nacional sustentável”: reflexos práticos do novo objetivo das licitações Daniel Ferreira (PR) Mestre e Doutor em Direito Administrativo Atuação e responsabilidade da assessoria jurídica nas licitações e contratos Antônio Flávio de Oliveira (GO) Procurador do Estado de Goiás 12h – Intervalo para almoço

10h – Conferências de abertura Marco regulatório dos serviços de saneamento básico: experiências de gestão associada nas regiões metropolitanas Daniela Libório (SP) Advogada e Consultora em Direito Público Direito de acesso à informação: questões controvertidas envolvendo a aplicação da Lei 12.527/11 Cristiana Fortini (MG) Controladora Geral do Município de Belo Horizonte

14h– Painel: SERVIDORES PÚBLICOS Independência de instâncias e processo disciplinar Antônio Carlos Alencar Carvalho (DF) Procurador do Distrito Federal Regime remuneratório do servidor público: direitos e expectativas Luís Manuel Fonseca Pires (SP) Juiz de Direito no Estado de São Paulo

12h – Intervalo para almoço

16h30 – Conferências de Encerramento Regime Diferenciado de Contratações - RDC Benjamin Zymler (DF) Ministro do Tribunal de Contas da União Perfil constitucional do processo administrativo Carlos Ayres Britto (DF) Ex-Presidente do Supremo Tribunal Federal

14h – PAINEL: Gestão municipal e regiões metropolitanas Gestão do transporte coletivo e direito à mobilidade urbana nas regiões metropolitanas Rúsvel Beltrame Rocha (MG) Procurador Geral do Município de Belo Horizonte Competência municipal e licenciamento ambiental Talden Farias (PB) Advogado, Consultor Jurídico e Professor da UFPB

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22 de março - Sexta-feira

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16h – Intervalo para café

Carga horária: 11 horas Coordenador Científico: Fabrício Motta


CARTA AO LEITOR

SUMÁRIO

O jornalismo cultural tem merecido da imprensa brasileira cuidados que poderiam ser maiores, na medida em que se restringe a sua prática à edição semanal de suplementos literários, editados por alguns dos maiores jornais do país, reduzidos, hoje, a meros cadernos em que se trata de letras e artes, em meio a programações culturais das redes de televisão, cinemas, teatros e outros segmentos da cultura. Na Paraíba, perdura há mais de setenta anos, o Correio das Artes, suplemento literário, editado, hoje, no formado revista, pelo jornal A UNIÃO, o secular órgão da imprensa estadual, surgido em finais do Século XIX, sob os auspícios de Álvaro Machado, então Presidente do Estado e líder do Partido Republicano.O Correio das Artes nasceu, no seio do jornal oficial, graças a um grupo de intelectuais, liderado pelo saudoso jornalista Edson Régis, que anos depois seria vítima de ato terrorista, no Aeroporto dos Guararapes, no Recife, e seu primeiro número apareceu em 27 de maio de 1949, tornando-se, a partir daí, o grande veículo do pensamento paraibano, abrigando em suas páginas nomes expressivos da literatura e das artes locais. O Correio das Artes tem conhecido várias intermitências em sua circulação,ditadas pelas dificuldades que em nosso meio cercam o aparecimento e a manutenção de veículos de imprensa de natureza cultural. Presentemente, se acha circulando regularmente, com frequência mensal, cumprindo o seu antigo desiderato. Outros órgãos de caráter cultural conheceu a Paraíba, desempenhando todos eles o seu papel meritório, no estímulo às letras e às artes, valendo salientar o periódico ALVA, de que nos fala Alexandre de Luna Freire, no trabalho que elaborou especialmente para esta edição, jornal literário lançado em meados do Século XIX. Já nos anos 20 do século seguinte, apareceu ERA NOVA, cuja importância tem sido ressaltada até nossos dias, assim como MANAÍRA, cuja edição inicial surgiu em fins de 1939. Não se pode deixar de citar uma iniciativa interiorana, com LETRAS DO SERTÃO, congregando expoentes das letras e das artes da região, e cujas edições não se perderão na névoa do tempo graças à providência de Eilzo Matos que fez inserir todas elas em CD que distribuiu com amigos. Com o mesmo propósito de ALVA e mais de cento e sessenta anos após o seu aparecimento, está aqui GENIUS, abrigando escritores de diferentes estilos e tendências, não só da Paraíba, mas também de outros estados de nossa federação, cheia de fé e esperança, pois, segundo Carlyle, “aquele que tem fé nunca está só” e, para Aristóteles, “a esperança é o sonho do homem acordado”...

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JOACIL DE BRITO PEREIRA UM ESGRIMISTA DO DIREITO

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A REPRESENTAÇÃO MINIMALISTA DE O QUADRO-NEGRO

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SEIS POEMAS DE CIRO JOSÉ TAVARES

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SOB O SIGNO DA CULPA

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CONFERÊNCIA EM BUENOS AIRES

janeiro/fevereiro/março 2013 - Ano I - Nº 01 Revista da Fundação Flávio Sátiro Fernandes Diretor Responsável e Editor: Flávio Sátiro Fernandes (Registro Profissional de Jornalista Nº 01980-MTE/PB) Diagramação e arte: Júnior Damasceno (DRT-3902) Concepção da Capa: Milton Nóbrega Tiragem: 1.000 exemplares Redação: Av. Epitácio Pessoa, 1251- Sala 807 – 8º andar Bairro dos Estados - João Pessoa-PB - CEP: 58.030-001 Telefone: (83) 3244.5633 GENIUS se acha matriculada sob Nº 655.961, do Livro A-489, do Serviço Notarial e Registral Toscano de Brito de João Pessoa-PB CARTAS E LIVROS PARA O ENDEREÇO ACIMA

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Flávio Sátiro Fernandes

Ângela Bezerra de Castro

UMA BREVE LEITURA SOBRE AS HOMENAGENS A LUIZ GONZAGA EM CD Érico Dutra Sátiro Fernandes

Chico Viana

UM LIVRO NA MATRIZ DA HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA José Octávio de Arruda Mello

Paulo Bonavides

NOTAS PARA UM JORNAL LITERÁRIO Alexandre de Luna Freire

FESTA NA ACADEMIA Equipe GENIUS

OS MITOS E O FEMININO MACULADO: Gênesis André Agra Gomes de Lira

O DIREITO NA LITERATURA E NA FILOSOFIA Marcos Cavalcanti de Albuquerque

ACADEMIA DE LUTO Equipe GENIUS

O SOUSENSE PAULO GADELHA - EXÉQUIAS Eilzo Nogueira Matos

A IMORTALIDADE ACADÊMICA Damião Ramos Cavalcanti

AS PALAVRAS: UMA AUTOBIOGRAFIA ROMANCEADA José Jackson Carneiro de Carvalho


COLABORADORES ALEXANDRE DE LUNA FREIRE [Notas para um Jornal Literário] Membro da Academia Paraibana de Letras, Academia Paraibana de Filosofia e Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte. ANDRÉ AGRA GOMES DE LIRA [Os mitos e o feminino maculado: Gênesis] Poeta e ensaísta, autor dos livros Insultos do Eu (Poesias), Conversas com Júlia (Poesias) e A moral sexual – A mulher pós-moderna no confessionário (Ensaio) ÂNGELA BEZERRA DE CASTRO [A representação minimalista de O Quadro-Negro] Membro da Academia Paraibana de Letras e Professora do Departamento de Letras da Universidade Federal da Paraíba. Professora do Departamento de Letras da Universidade Federal da Paraíba. CHICO VIANA [Sob o signo da culpa] Professor da UFPB e doutor em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Sua tese, publicada em 1994 com o título de “O evangelho da podridão”, enfoca a representação da melancolia em Augusto dos Anjos. Atualmente ensina português e redação no curso que leva o seu nome. (www.chicoviana.com) CIRO JOSÉ TAVARES [Seis poemas de Ciro José Tavares] Natural do Rio Grande do Norte, bacharelou-se, em 1964, pela Faculdade de Direito do Recife. Desde cedo dedicou-se ás atividades literárias. Poeta e ensaísta. Em 1988, obteve o Prêmio Ladjane Bandeira de Poesia, patrocinado pelo Diário de Pernambuco e, em 2012, ganhou o Prêmio Edmir Domingues de Poesia, patrocinado pela Academia Pernambucana de Letras, além da consagação hors-concours, nos Prêmios Jorge de Lima, da UBE e Jorge Fernandes, também da UBE. DAMIÃO RAMOS CAVALCANTE [A imortalidade acadêmica] Membro da Academia Paraibana de Letras, atualmente exercendo a presidência dessa entidade. EILZO NOGUEIRA MATOS [O sousense Paulo Gadelha -Exéquias] Membro da Academia Paraibana de Letras, onde ocupa a Cadeira de

nº 3, Eilzo Matos é Bacharel em Direito, ex-Deputado Estadual, ex-Secretário de Estado, além de autor de várias obras de ficção e ensaios de política, destacando-se dentre seus livros o romance A VINGANÇA DAS COBRAS. ÉRICO DUTRA SÁTIRO FERNANDES [Uma breve leitura sobre as homenagens a Luiz Gonzaga em cd], pesquisador musical, notadamente em torno do gênero forró. Grande conhecedor da obra discográfica de Jackson do Pandeiro. FLÁVIOSÁTIRO FERNANDES [Joacil de Brito Pereira – Um esgrimista do Direito] Membro da Academia Paraibana de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano e Presidente da Fundação Cultural Flávio Sátiro Fernandes.Professor Aposentado do Curso de Direito da Universidade Federal da Paraíba. Doutor Honoris Causa das Faculdades Integradas de Patos (FIP). JOSÉ JACKSON CARNEIRO DE CARVALHO [As Palavras: Uma biografia romanceada] Membro da Academia Paraibana de Letras, Presidente da Academia Paraibana de Filosofia, ex-professor e ex-reitor da Universidade Federal da Paraíba. JOSÉ OCTAVIO DE ARRUDA MELO [Um livro na matriz da historiografia brasileira] Membro da Academia Paraibana de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano. Professor aposentado da UFPB e da UEPB. Atualmente, é professor do Centro Universitário de João Pessoa (UNIPÊ). MARCOS CAVALCANTI DE ALBUQUERQUE [O direito na literatura e na filosofia] Membro da Academia Paraibana de Letras. Desembargador do Tribunal de Justiça da Paraíba. PAULO BONAVIDES [Conferência em Buenos Aires], Professor Emérito da Faculdade de Direito do Ceará, Membro da Academia Cearense de Letras e do Instituto do Ceará. Doutor Honoris Causa da Universidade de Lisboa e das Faculdades Integradas de Patos (FIP). Considerado o maior constitucionalista brasileiro vivo, com projeção internacional.

Conheça a HISTÓRIA CONSTITUCIONAL DA PARAÍBA, do Conselheiro Flávio Sátiro Fernandes, segunda edição, em primorosa produção da Editora Fórum. História Constitucional da Paraíba veio a lume, em segunda edição, incorporando ao seu texto o relato das Constituintes e Constituições paraibanas de 1967 e 1989, não retratadas na sua versão primeira. À época, o Brasil se achava a debateranecessidade da convocação da Assembleia Nacional Constituinte que iria elaborar a Constituição Cidadã, assim intitulada pelo Deputado Ulisses Guimarães, no ato da promulgação. Após isso, iriam os estados se lançar à tarefa de sua constitucionalização à luz dos princípios e normas contidos na nova Carta da República. O importante desta obra é que, apesar de se voltar para o estudo e análise das Constituintes e Constituições de um estado membro da federação¸ela é da maior valia para quem se dedica ao estudo do constitucionalismo brasileiro, notadamente de sua história, haja vista o relato minudente dos principais fatos e circunstâncias que cercaram o funcionamento daquelas assembleias, as quais redundaram em diferentes constituições que, ao longo de mais de um século, disciplinaram a vida político-administrativa daquele estado, refletindo, em suma, a própria história constitucional do Brasil e, de resto, as dos demais estados brasileiros, as quais em muito se assemelham. História Constitucional da Paraíba, abarcando a construção institucional do Estado da Paraíba, de 1891 a 1989, é obra única no país, mencionada pelo constitucionalista Paulo Bonavides em seu Curso de Direito Constitucional, como uma das mais recentes contribuições à história constitucional do Brasil.

À VENDA NAS LIVRARIAS. EDITORA FÓRUM, BELO HORIZONTE.

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HOMENAGEM

JOACIL DE BRITO PEREIRA UM ESGRIMISTA DO DIREITO (*) Flávio Sátiro Fernandes

Ao começar a alinhavar estas impressões sobre Joacil de Brito Pereira, em torno de sua dedicação ao direito, a primeira imagem que me veio à mente foi a de um espadachim, a esgrimir com maestria e sem temor as armas brancas da dialética, da argumentação jurídica, da retórica forense, da oratória, dos remédios jurídicos, capazes de socorrer seus clientes e constituintes nas centenas de causas a que se entregou, pelas diferentes comarcas em que porfiou. Essa sua disposição para empreender a luta pelo direito, de que nos fala Von Ihering, se alicerçou, sem dúvida, nos ensinamentos hauridos na velha Faculdade de Direito do Recife, por onde se graduou, em 1950, compondo uma turma de que fez parte, também, outro paraibano ilustre, membro igualmente desta Casa, o escritor e teatrólogo Ariano Suassuna. Mas não só nos ensinamentos livrescos e nas lições repassadas por seus mestres naquela escola, através dos quais ele se inseriu na legislação, na doutrina, na jurisprudência, aprendeu Joacil a manejar as armas de seu ofício. Sede de aprendizado jurídico e ativismo político, importante para os embates forenses, foi, com certeza, sua participação nas lutas estudantis, desenvolvidas no âmbito do Diretório Acadêmico da Faculdade do Recife. Quem, como eu, estudou na tradicionalCasa de Tobias, pode dar o testemunho da pujança que sempre deteve aquele órgão estudantil e sua força na formação jurídico-política da mocidade estudiosa nordestina. Pode-se dizer que quem pelejou naquele Diretório vitoriou na vida pública. Ernani Sátiro, por exemplo, cujo centenário de nascimento esta Casa comemorou, presidiu o mencionado órgão estudantil e foi um vitorioso na política e no direito. Marco Maciel, ao tempo em que estive naquela Faculdade, foi seu Presidente e logo após se formarelegeu-se deputado estadual e, posteriormente, alcançou os mais elevados cargos, inclusive, Governador de Pernambuco e Vice-Presidente da República. Lembro igualmente que Joacil, disputou e obteve a indicação de seu nome para orador da turma concluinte de que fez parte. Antes de ultimar o curso jurídico já partici-

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pava Joacil das campanhas eleitorais em nosso Estado. Menino, ainda, recordo-me de tê-lo visto em Patos, prestes a se formar, participando de passeata e comício do “amarelo” - Argemiro de Figueiredo - ao governo do Estado. Uma vez diplomado, passou a exercitar a advocacia, fazendo uso dos conhecimentos que obteve na velha escola pernambucana. Embora tenha sido requisitado pela política, jamais deixou de se interessar pelo direito, até porque, assumindo uma cátedra no curso de direito de nossa Universidade, desdobrou-se no estudo da ciência jurídica, desempenhando com proficiência o magistério jurídico, conforme testemunham, em reconhecimento, os seus alunos. Mesmo no exercício parlamentar, não se afastou Joacil da ciência do direito, pois, não foram poucos os pareceres que ofereceu a projetos de lei dos quais foi escolhido relator e não foram também raros os discursos que pronunciou, em que a matéria jurídica era versada com grande sabedoria. Em livro que publicou, intitulado TEMAS DE DIREITO PÚBLICO, deixou-nos Joacil uma amostra da forma como tratou, da tribuna da Câmara, alguns assuntos jurídicos, ligados todos eles ao direito público, a saber: voto distrital, a pena de morte, revisão constitucional, parlamentarismo, decreto-lei, aprovação de leis por decurso de prazo, imunidades parlamentares dos vereadores. Em outra obra – TEMAS DE DIREITO E CIÊNCIAS AFINS -, embora não abandonando sua paixão pelo direito público, Joacil dá-nos lições de direito privado e de teoria geral do direito, dissertando sobre o direito das coisas, a ética no direito, o direito romano: atualidade e vida, o divórcio no mundo antigo, Kelsen: um jurista polêmico, fator tempo no direito consuetudinário internacional, além de outros temas ligados ao direito público, tais como, a execução da pena,a divisão dos poderes no regime federativo brasileiro, ilegalidade e inconstitucionalidade da Taxa SELIC etc. Em uma apreciação como a que faço, neste instante, não me cabe tempo para dissecar o pensamento de Joacil sobre matérias tão relevantes. Fica a tão só indicação de suas obras e de seus trabalhos, possibilitando a quem o

queira, proceder a um estudo mais detido do que ele pensava e do que ele doutrinou em livros, em palestras, em processos judiciais, em discursos parlamentares. Até porque desejo, aqui, fazer referência à sua atividade de operador do direito, como advogado criminal atuante, militante e vibrante, de nossos auditórios. Essa atuação marcante fê-lo participar de importantes casos judiciais na Paraíba. Ele próprio revela: “Posso dizer que funcionei, em certa fasede minha trepidante vida de advogado, nos processos-crimes mais rumorosos da Paraíba. Estava sempre presente à tribuna do Júri Popular, como patrono da defesa, ou como auxiliar de acusação”. Em algumas páginas de suas memórias, Joacil nos narra episódios de sua atividade advocatícia. Farei menção a apenas três. O primeiro a que me referirei serve para demonstrar o modo defraudador como são realizados os julgamentos populares no interior. A cabala aos jurados, as pressões, as ameaças, tudo isso capaz de influenciar a decisão soberana do júri. Nesse caso, aliás, seu primeiro júri, Joacil experimentou uma grande decepção com aquela respeitável instituição. Vejamos o que ele diz em uma de suas brilhantes páginas. “Meu primeiro Júri, após a formatura, foi naquela Comarca. [Araruna] Tratava-se de legítima defesa própria. A prova dos autos era boa para o réu. Preparei-me com toda a minha ciência; compareci ao julgamento sobraçando compêndios de doutrina e jurisprudência. Havia estudado o processo e estava disposto a desempenhar bem o meu papel. Precisava fazer nome. “Tive, no entanto, grande decepção quando, antes de iniciar a defesa, Beija entrou no recinto e segredou-me ao ouvido: “- Não precisa se esforçar muito, que tá tudo certo. Absolvição por sete a zero. “Quase não funcionava mais. Vi que o meu trabalho ia ser puramente secundário e formal. Dissesse o que dissesse, o réu seria absolvido. Só não abandonei a tribuna da defesa porque todos os familiares do réu me pediram. Achei até engraçado quando sua esposa disse:


“- Doutor, a festa já está pronta. Se o sr. não defender o meu marido, o Júri será adiado e a comedoria fica perdida. “Falei como pude, embora sem maior entusiasmo. Fiz de qualquer forma a minha exibição. Como já estava previamente acertado, o meu constituinte saiu dali absolvido, por unanimidade de votos. E a festança rolou a noite toda, no sítio de sua propriedade, a que eu também compareci. O segundo episódio diz respeito a um processo em que Joacil atuou não como defensor mas como assistente de acusação. É ASSIM QUE ELE RELEMBRA SUA PARTICIPAÇÃO: “Na verdade aquela tarde ia ficar para sempre na minha memória. O júri se instalou às 13 horas e prolongou-se pela noite adentro. Terminou lá pelas duas da madrugada. Quando cheguei, a praça estava repleta, com dificuldade varei a multidão, até chegar ao foro. Dentro, na sala do Tribunal Popular, apinhava-se um aglomerado numeroso de pessoas, com a gente mais seleta da sociedade local. Todo o cenário estava pronto para o desenrolar daquele acontecimento. “O Dr. Promotor acusou com segurança, não usou nem a metade do seu tempo. Deixou-me o resto, gentilmente, para que eu pudesse aparecer. E eu fiz o que pude. Sem afastar-me dos autos, desenvolvi a minha tese com apoio na prova, na doutrina, na jurisprudência. Mostrei a brutalidade do crime; uma barbaridade; abatida a vítima a faca-peixeira, em sua barraca de feirante, à luz do dia, em presença de várias pessoas. Sem piedade alguma, o réu não atendeu aos rogos da mulher do ofendido e de seus filhinhos menores. “Carreguei nas tintas, emocionei a plateia, fez-se silêncio, muitos choravam.Um jurado dos seus 65 anos deixou rolar pela face duas lágrimas furtivas. Enxugou-as com um lenço grande, de cores espalhafatosas, e recompôs a fisionomia rígida. Animei-me; pelos menos quebraria a unanimidade da decisão absolutória. Comovera aquele jurado e o seu voto seria decerto pela condenação. Com esse resultado manteria o acusado preso, pois a lei do tempo só libertaria imediatamente o réu se a absolvição fosse unânime. Seria decerto uma grande vitória.

“Tive que explicar que emotivo é a pessoa de bom coração, como ele, que teve pena da viúva da vítima, ainda bem jovem e dos seus filhinhos. “ENTÃO, ELE ME ESCLARECEU: “- É doutô, o sr. é um serviço pesado. Se não fosse o compromisso tão forte que eu tinha com o compadre Montenegro, eu tinha desgraçado o home. Essa lição sobre a satisfação da palavra dada e do compromisso assumido foi para Joacil, segundo suas próprias palavras “mais um ensinamento sobre a honra sertaneja, o cumprimento dos seus “tratos” sagrados, da palavra dada e empenhada”. E, com certeza, a palavra dada foi um apanágio da vida de Joacil, tanto na vida pessoal como na atividade profissional. O terceiro caso é relativo ao processo-crime a que foi submetido um marido traído, que matou a mulher e a quem Joacil defendeu no júri. ASSIM ELE NOS CONTA: “Em casos dessa natureza, o marido, como se sabe, é sempre o último a saber. Uma bela mulher. Bem alva, de cabelos pretos e ondulados, alegre e simpática. Mas parecia dominada por um delírio sexual. Amava com frenesi. Não se contentava com um homem só. Tinha o dom especial de provocar paixões. Não respeitava nem sacerdotes. Comentava-se o seu desregramento naqueles sertões entre Teixeira, Imaculada e São José do Egito. “O marido voltou inesperadamente, certo dia, de viagem e a flagrou com um dos seus amantes. Atirou nos dois, matando-a no ato, o seu parceiro fugiu, pulando por uma janela, baleado e perdendo sangue. Escapou, mas desapareceu para sempre da região. “No dia do julgamento, o foro estava cheio e a praça em frente recebeu grande multidão. Os trabalhos começaram às 13 horas. Prolongaram-se noite adentro e, às primeiras horas da madrugada, terminaram com a absolvição do réu, por unanimidade de votos.

“Apurado o resultado da votação, o réu foi absolvido por sete a zero. Uma surpresa para mim, mas não para os circunstantes. Quebrada a incomunicabilidade dos jurados, aproximei-me daquele homem que se comovera até às lágrimas, ao ouvir a minha acusação. Puxei conversa, ofereci-lhe um cigarro, ele aceitou e então perguntei: “- O sr. é um homem muito emotivo, não é?

“A prova era boa para a tese da defesa. O acusado eliminara a esposa em legítima defesa da honra. Isso, no Sertão, ainda que não fosse tão farta a comprovação, tinha ressonância. A honra do marido ultrajado deve ser lavada com o sangue de quem conspurca o tálamo. Essa a concepção social nos meios sertanejos. E, naquele caso, estava bem clara a infidelidade constante daquela infeliz mulher, que deveria ser uma doente. Havia até umas cartas do Padre vigário da Vila de Imaculada, cantando a jovem e disputada messalina.

“A sua resposta simplória, de homepouco instruído, foi outra indagação: “- Emotivo cuma, doutô?

“Julguei indispensável ler aquelas missivas, perante o Júri Popular. Correia Lima deu trabalho, como assistente do Ministério Pú-

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blico. Aguerrido e brilhante, explorou o fato de que a morta estava com três meses de gravidez. Emocionou os jurados. Houve réplica e tréplica e eu, então, li e comentei as cartas do padre. E prossegue Joacil: “Este procedimento contra aquele sacerdote custou-me caro. “No pleito seguinte, sendo eu candidato à reeleição para a Assembleia Legislativa, o pároco deitou e rolou, desencadeando uma forte campanha contra mim. Nas missas dominicais da vila e nas dos povoados, desancava a minha candidatura e a minha pessoa. Dizia que os católicos estavam proibidos de votar em mim. Que eu era herege, inimigo do clero, capa verde e filho do Satanás. Os correligionários e amigos de Joacil ficaram apavorados, na certeza de que a continuar aquela campanha, o amigo e candidato não seria reconduzido à Assembleia Legislativa. Joacil, então, armou um plano para desbaratar o propósito do reverendo. E é ele que relata. “Cheguei a Imaculada quase na hora da missa dominical. “Fiquei na ponta da vila, conversando pelas bodegas, até que à hora do sermão, entrei na igreja e fiquei por trás de uma coluna. “No exato momento em que ele se referiu a mim da forma costumeira, cruel e injusta, saí de trás do pilar e marchei em direção ao altar¸ gritando: “- Cala a boca¸ padreco atrevido! Você usa o púlpito sagrado para insultar-me e fazer política! Não permitirei mais isso! “O cura correu, apavorado. “Muita gente correu também. “Foi um Deus-nos-acuda. “A missa acabou-se. “Um escândalo mas também um santo remédio: o padre nunca mais fez sermão contra mim. Neste recinto, iluminado menos pelas lâmpadas postas em seu teto do quepelas cintilações do espírito de nosso saudoso confrade, quando a Academia Paraibana de Letras o reverencia, é esse o Joacil que eu quis mostrar, ressaltar e homenagear, como escritor ilustre, cidadão digno ejurisconsulto intemerato e intimorato. (*) Pronunciamento feito na sessão especial da Academia Paraibana de Letras, no dia 29 de outubro de 2012, na passagem dos trinta dias do falecimento do Acadêmico Joacil de Brito Pereira.


LITERATURA

A REPRESENTAÇÃO MINIMALISTA DE O QUADRO-NEGRO (*) Ângela Bezerra de Castro

Quando O Quadro-Negro foi lançado pela José Olympio, em 1954, era improvável que a ele eu pudesse ter acesso, nem mesmo à notícia de sua publicação. Estava iniciando o ginásio mas, àquela época, nenhum professor teria a ousada iniciativa de estudar o autor contemporâneo local ou de indicá-lo para a leitura. Ancorada no passado, nossa Escola recusava o presente e se tornava incapaz de prenunciar as incertezas do futuro. Naquela visão alienada, chegava-se à aberração de proibir os livros de José Lins do Rego, privando-nos do texto renovador e revolucionário que deveria ter sido a motivação e o exemplo, para que os jovens estudantes de então se expressassem na linguagem de seu tempo, superando a submissão colonial aos “barões assinalados”. Mesmo depois que me tornei leitora apaixonada dos grandes romancistas nordestinos, jamais tive o interesse despertado para o escritor Ernani Sátyro. E, quando isto parecia possível, na efervescente convivência universitária, o político de destaque, no regime vigente a partir de 64, projetou-se como sombra deformadora sobre o intelectual, erguendo a barreira de preconceito responsável pela ignorância de minha geração sobre a obra literária do acadêmico centenário que hoje reverenciamos. Foi a devoção do estimado confrade Evaldo Gonçalves ao Amigo Velho, que despertou em mim a necessidade de conhecer Ernani Sátyro, para além da memória fixada, com a verdade do depoimento e da pesquisa, no livro Ernani Sátyro:Convivência e Participação. A necessidade de conhecer o escritor, em decorrência do compromisso assumido com os objetivos da Academia Paraibana de Letras. Procurei O Quadro-Negro e Flávio Sátiro, gentilmente, me presenteou a 3ª edição, possibilitando-me uma entusiástica descoberta e a feliz superação do velho preconceito. Antes que chegasse ao texto do roman-

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ce, já tinha a certeza de que estava diante de um verdadeiro escritor. Menos pelo estudo e pelos artigos que o antecedem e revelam o interesse crítico pela ficção de Ernani Sátyro. A grande surpresa veio com o depoimento do autor para os Arquivos Implacáveis, de João Condé. Uma verdadeira síntese de mestre. Iniciando com a ressalva de que “Não é fácil dizer como nasce um romance”, o escritor encara o desafio. E com estilo sóbrio, em frases curtas e precisas, revelando uma aguda consciência do processo de elaboração ficcional, expõe a gênese de O Quadro-Negro, dando ênfase ao tempo de gestação e aos limites transcendentes entre a realidade e a criação literária. Depoimento capaz de enriquecer qualquer lição de teoria sobre a ficção narrativa. O Quadro-Negro é um romance escrito em forma de diário. Com esta escolha do modo de narrar, o autor confere intencionalmente ao protagonista, Paulo Márcio, a grande liberdade confessional que se desdobra na análise de si mesmo, do ambiente e dos outros personagens, concretizando o princípio que ele repete até as últimas páginas: “Só tem importância o que se passa dentro de mim”. Com a variante: “me importam as pessoas e nestas, principalmente, os retratos que me ficam cá dentro”. Na abertura do “diário”, reflexões sobre a linguagem, sobre o processo narrativo, sobre a correspondência necessária entre forma e conteúdo, sobre o estilo. Essa intenção programática da construção literária, inserindo Ernani Sátyro na tendência ostensiva dos escritores modernos que elegeram a metalinguagem como recurso temático e estético, chegando a elaborar uma teoria do conhecimento. Perfaz um ano e um mês o tempo da narrativa. Tem início com a chegada do jovem bacharel recém-formado à cidadezinha natal, para viver os conflitos que irão despertá-lo da inexperiência e dos sonhos, até a decisão de partir.

Torna-se instigante a comparação entre Paulo Márcio e dois outros personagens: Lúcio, de A bagaceira, e Carlos de Melo, em Banguê. Todos bacharéis, de volta para casa, e em crise de afirmação pessoal. No entanto, Lúcio e Carlos de Melo não sabem o que fazer do diploma e se desviam para a terra, numa espécie de fuga. O protagonista de O Quadro-Negro é o bacharel em ação, buscando na ordem jurídica a restauração e a garantia dos direitos. Essa diferença substancial entre os três personagens permite que se identifique em Paulo Márcio uma transfiguração inovadora, com a redescoberta da tradicional formação bacharelesca, predominante em nossa cultura, numa perspectiva de interferência positiva para o meio social, vislumbrando a prevalência do Direito na solução dos conflitos. Podemos constatar que Lúcio e Carlos de Melo são anti-herois desistentes. Enquanto o personagem criado por Ernani Sátyro é oheroi comprometido com a luta, opondo-se à realidade estagnada da cidadezinha simbolicamente denominada de Lagoa, espaço imaginário do romance. Em terra de sapos, Paulo Márcio não fica de cócoras com eles. E é pela ação do jovem bacharel que se estrutura o conflito central do romance. Entre a arbitrariedade da força político-econômica dominante e a justa aplicação da lei, o poder do Direito. É esse o problema que se desenvolve na representação minimalista de O Quadro Negro. Problema universal que se reproduz em todas as escalas da chamada sociedade politicamente organizada. Quer se trate de uma cidadezinha do sertão ou da metrópole mais progressista; de um país em desenvolvimento ou de uma potência do considerado primeiro mundo, em qualquer das realidades o Estado de Direito é ainda uma miragem ou um projeto sempre em processo de consolidação. Pois em cada instância se vê ameaçado por uma estrutura de poder, com seus “coroneis” que se colocam, arbitrariamente, acima das leis.


Na estreia como romancista, Ernani Sátyro acumulou considerável fortuna crítica, com a unânime constatação de que não dava continuidade aos grandes regionalistas nordestinos, seguia outra orientação estética. E é verdade. No entanto, a identificação do espaço romanesco com o sertão levou os críticos a uma visão reducionista da temática do romance e de outros elementos estruturantes da narrativa, esquecendo a natureza simbólica que os constitui. Os críticos não se aperceberam de que “o sertão” existe em todo lugar. Pressuponho que a percepção estereotipada da realidade sertaneja prejudicou as leituras de O Quadro-Negro, de tal maneira que o conflito central do romance não foi identificado, ou melhor, foi confundido com problemas menores. E personagens marcantes como Adriano Pereira, o juiz, e Maria Augusta, a enigmática e desafiadora namorada de Paulo Márcio, são injustamente subestimados, por certo, em decorrência da falta de análise do romance. Somente José Lins do Rego identifica em Adriano Pereira “um patético que nos

enche os olhos de lágrimas” lembrando a cena dramática em que o juiz, desarmado, enfrenta o fuzil de um capitão de polícia, reforçado pelas carabinas dos soldados que apontam para sua cabeça e, tomando as chaves do carcereiro paralisado, abre as portas da cadeia para dar cumprimento a um habeas corpus, que fora rasgado pela suprema arrogância político-partidária. Onde a deficiência crítica enxerga apenas um juiz preguiçoso, o grande romancista do moderno regionalismo brasileiro descobre o patético, uma categoria do trágico. E não há dúvida de que Ernani Sátyro construiu essa dimensão para Adriano Pereira, personagem de vital importância na constituição do conflito central de seu romance. Tanto que o protagonista-narrador reconhece no juiz o “homem que encarna a única reação possível à brutalidade e à violência”. A difícil missão do magistrado, isolado na comarca distante, cria para o personagem uma aparente rendição. Adriano Pereira quase não fala, recolhido à solidão do seu desamparo. Suportar o peso de ter confundi-

da sua individualidade com a instituição que representa parece esmagar o juiz, consumindo-lhe a vontade e a iniciativa. No entanto, uma grande reserva de energia e ação está contida na enganosa passividade, naquele silêncio onde se concentra a convicção abismal da defesa do Direito. Adriano Pereira é um personagem-símbolo. A ambiguidade que o constitui não converge para a formação de um caráter, mas para a transfiguração das dificuldades, defeitos e qualidades da complexa prestação jurisdicional. Acompanha-se uma constante e até chocante exposição da morosidade dos seus despachos, mas a grande ênfase é para o gesto definitivo do juiz, que evidencia um compromisso de vida ou morte com a prevalência do Direito, em sua função social insubstituível. APL, 14 de outubro de 2011. (*) Palavras proferidas na sessão especial em que a Academia Paraibana de Letras comemorou o centenário de nascimento do Acadêmico Ernani Sátyro.

LIVROS TRANSTORNOS E DIFICULDADES DE APRENDIZAGEM - Entendendo melhor os alunos com necessidades educativas especiais – Simaia Sampaio e Ivana Braga de Freitas (Orgs.), WAK Editora, Rio de Janeiro, 2011. Conhecer os transtornos de aprendizagem é uma necessidade do professor que recebe alunos com as mais diferentes necessidades. A inclusão tornou-se obrigatória nas escolas, nas nem todos estão preparados e ficam inseguros em como lidar com o aluno que necessita de cuidados diferenciados. Pensando nisso foi organizado este livro multidisciplinar com enfoque psicopedagógico e neuropsicológico abordando etiologias, características, diagnósticos, tratamentos dos diferentes transtornos que interferem na aprendizagem como Dislexia, Discalculia, Disgrafia, Disortografia, DPAC – Distúrbio do Processamento Auditivo Central, TDAH, autismo, Síndrome de Asperger, Síndrome do X-Frágil, Síndrome de Down e Psicomotricidade. O livro é dirigido para professores e profissionais clínicos, como psicopedagogo, psicólogos, fonoaudiólogos, neuropsicólogos, neurologistas e todos os profissionais envolvidos com os processos de ensino e aprendizagem. PARTICIPANTES: Simaia Sampaio (BA), Ivana Braga de Freitas (BA), Carla Silva Nascimento Rodrigues Oliveira (DF), Danielle Manera Ramalho (RJ), Eliane Dutra Fernandes (PB), Francisca Maria Alves de Andrade Sousa (PI), Giovana Rabello Cucker Del Castanhel (SC), Joselma Gomes da Silva (MA), Márcia Alessandra Parreira machado (SP), Roneide Valeriano (GO), RosanitaMaschini Vagas (RS), Maria Thereza Báis Bianchi (SP). DEFICIÊNCIA MENTAL LEVE – INVESTIGAÇÃO EM PRÁTICA EDUCATIVA – Cleomar Landim de Oliveira, ABMP-DF/Brasil, Digital Publish& Print. Este estudou investigou a construção da escrita em crianças deficientes mentais leves, em processo de inclusão em escolas públicas e particulares. Compuseram a amostra sessenta e uma crianças com idade entre oito e onze anos. Vinte e nove meninas e trinta e dois meninos. Pode-se inferir, com base nestes resultados, que há uma falta de estimulação psicomotora nos diversos contextos de desenvolvimento destas crianças. Muitas vezes os seus pais, por superproteção bem como por falta de informação e medo de os exporem a perigos, acabam por não oferecer situações favoráveis ao seu desenvolvimento psicomotor. Outros elementos que podem vir a explicar os resultados encontrados se referem à idade de início da escolaridade. Neste contexto o problema existe pela falta de experiências motoras infantis e pela falta de convívio significativo para esse desenvolvimento, assim como pela pressão que sofrem por parte dos pais e dos professores para a aprendizagem da escrita No estudo realizado, as dificuldades na aprendizagem da escrita mostram a necessidade de um trabalho psicopedagógico e psicomotor que aborde o desenvolvimento cognitivo e psicomotor, a fim de desenvolver a representação espacial do corpo, a orientação espacial e a motricidade da criança. (Cleomar Landim de Oliveira)

ENTRELAÇANDO AS CULTURAS NA TRILHA DA CIDADANIA

– Marinalva Freire da Silva (Org.) ideia Editora, João Pessoa, 2013. Esta obra congrega aspectos culturais que perpassam os mais variados campos dos estudos científico-humanísticos. Apesar da concretização do mosaico do conhecimento apresentado, devemos sempre observar atentamente que toda heterogeneidade, por vezes implícita desafiando a mente e o comportamento humano a fim de ser desbravada, descoberta, entendida. Um desafio de fazer com que estes estudos, dentro da sua heterogeneidade de abordagem, sejam capazes de entrelaçar nossas múltiplas concepções de cultura em uma fabulosa trilha que nos leve a um único caminho: o da construção de uma cidadania digna, respeitosa e aberta não somente às igualdades, mas às diferenças. (Sandro Marcio Drumond Alves). PARTICIPANTES: Durval Ferreira Vieira, Gilda Carneiro Neves Ribeiro, Gleba Coelli Luna da Silveira, Israel dos Santos Silva, Jeane Carneiro da Costa, João Ramalho Alves da Silva, José Alberto Miranda Poza, José Romero Araújo Cardoso, Karliana Barbosa de Arruda, Maria Célia de Assis, Maria Isis Freire da Silva, Marinalva Freire da Silva, Neide Medeiros Santos, Rafael Francisco Braz, Suely Dantas de Oliveira Moura, Tania Maria Nascimento, Gisely Dantas Pessoa.

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SEIS POEMAS DE CIRO JOSÉ TAVARES

Balada crepuscular Para Romero Nóbrega, in Memoriam

Lua da tarde na nitidez do azul derrama invisível garoa na campina, até que se esconda o enorme projetor. Tão clara a trajetória que a luz do fim do horizonte deixa ver a silhueta escura das montanhas engolfando mares cósmicos, ondulados de poeira morta acima dos meteoritos desgarrados. Apressa-te, lua vespertina, tenho pressa. Logo a mecânica celeste debruça mágico lençol de azeviche, rendilhado de desenhos luminosos. Não demora ou serás parte do mistério quando desconhecido venha inesperado ceifar minhas roseiras. Corre sem tardar no fictício azul pálida janela. Tenho pressa antes que me façam átomo disperso na sombria noite do universo. (Do livro Baladas e Moinhos)

Vega Ao Lácio Alves Cavalcanti,In Memoriam

Imagino-o tebano, à fuga solidário, o gole amargo vindo do fundo do cristal. Cilíndrico escudo transparente realimenta, vertical, taças submissas, exauridos corpo, alma, sonhos. Imagino-o solitário sempre, olhos afundados em círculos azuis, roupa molhada de sereno cheirando a pó da aurora. Fazia muito tempo quando soube. Ontem pude vê-lo e não disse adeus. Partiu madrugador, numa tempestade de estrelas da constelação das Três Marias. Imagino-o cadente, regressando solitário ao princípio do universo. (Do livro As elipses de Phoenix)

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Árvore do Fim do Mundo Finalmente alcancei-te árvore do fim do mundo. À sombra entrego meu corpo mítico ao teu, abandonado ao mau e ferido pelo tempo. E vejo a tentativa de podar os galhos nobres, os que pendiam sobre os muros espalhando flores pelo chão. Apesar das dores não perdeste o cheiro antigo e o fruto nos meus lábios tem o sabor do néctar dos deuses. Venho de longe, navegante de Aiolia, trazido pelos ventos, para deitar fadigas na terra sagrada que te cerca. Alcancei-te e fico sob tua quietude árvore do fim do mundo, cabeça acostada no regaço contemplando estrelas, o orvalho das manhãs caindo no meu rosto fará lembrar as lágrimas que a brisa vespertina enxuga antes que nos chegue a noite, árvore do fim do mundo. (Poema inédito)

Atos Finais Navega-me Phlebas, amargurada gênese fenícia de Eliot. Submersos assistimos livros resgatados às empoeiradas prateleiras da terra desolada. Um dia, quem sabe? teugaleão conduzirá derradeiros utensílios e ossos. Reserva-me parte da carcaça para sepultar nas sombras velhos sonhos. E cabides. Cabides, sobretudo! para exposição das roupas abandonadas e poídas. Lava meu corpo com o sal das preamares oceânicas, retirando o mofo transpirado através das brechas seculares. Acorrenta-me aos milimétricos desenhos, gravados nos mosaicos. Quero-me, limitado, escalar pálidas paredes e tocar roofs beijados de chuvas. Viajo-te, Phlebas, para que possas escorar tuas ruínas, viajando minhas dores infinitas. (Do livro Além da Rosa dos Ventos)


Mare Nostrum O mar está voltando a enxugar meus pés molhados de cansaço. Andei léguas nas vazantes estilhaçando areia feito lâminas partidas de cristais. A cadência monótona dos passos anuncia a própria morte e reencontra rarefeitas na primeira duna auroras de ontem salpicadas do orvalho amargo caído no jazigo do meu corpo. Quando acordava no caminho ainda havia a embocadura e o rio. Peixes mortos suspensos pelas guelras olhavam-me pendentes nas pontas dos calões. O mar voltando aceso e sempre a enxugar vazantes fatigadas sob os pés. Nas tardes do regresso vento errático cresta imerso maré grande, verde, castanho, azul e branco, sob intervalos vermelho e amarelo sumidos no útero da duna de acesso. Nas noites monocórdicas compassos de vazantes voltavam a enxugar meu infindável corpo poço queimando labaredas piscando nos portais. (Do livro Baladas e Moinhos)

A Leste de Greenwich Village Que neblina é essa, afinal? Que neblina é essa que não deixa entrar pelas vidraças lanças de ouro do universo? que insiste inundar átrios de noturnas claridades? Que neblina é essa que me esgarça os fios pelo tempo e rompe as linhas que bordaram vidas? Que neblina é essa que silencia ruas, anoitece casas extermina sonhos? Que neblina é essa que conduz à lágrima, cria o estéril, reprime o riso? Que neblina é essa que morre triste nas lembranças, turva a vista diante de retratos desbotados? Que neblina é essa que me esconde os calendários, destrói meus santos rasga véus nos templos? Que neblina é essa que não me responde? não me questiona,hoje,ontem, sempre? não me festeja a vinda, Não me diz adeus? Que neblina é essa, afinal, Que sequer apaga as luzes da memória? (Do livro As Elipses de Phoenix)

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DISCOGRAFIA

UMA BREVE LEITURA SOBRE AS HOMENAGENS A LUIZ GONZAGA EM CD Érico Dutra Sátiro Fernandes

O ano de 2012, por ocasião da passagem do centenário de Luiz Gonzaga, recolocou a música nordestina em evidência no cenário nacional. O filme “De pai pra filho”, por exemplo, foi sucesso de crítica e bilheteria em todo o país, alcançando grande audiência também na tv aberta, já no início deste ano, quando foi exibido em formato de minissérie. Em diversas cidades, não apenas do Nordeste, foram organizadas exposições, shows e festas celebrando o Rei do Baião. Já no âmbito das gravações musicais, foram dezenas de discos

gravados em tributo a Gonzaga, com artistas de variados gêneros interpretando as canções do repertório gonzagueano, e é uma retrospectiva desses cds lançados que trazemos para os leitores de GENIUS, em sua edição inaugural. O formato de discos em tributo a um artista não é novidade. O próprio Luiz Gonzaga, bem antes do ano de seu centenário, foi homenageado por nomes como Severino Januário (seu irmão) - em parceria com João Silva -, Israel Filho, Elba Ramalho, Ed Carlos e outros, que lançaram LPs/CDs

- Abrindo o baú de Luiz Gonzaga (Adelmário Coelho) - o baiano Adelmário Coelho, em seu 18º trabalho, optou pelo formato “acústico” que, no forró, nada mais é que a ausência de instrumentos como bateria, teclados e metais, resultando em um excelente disco. A escolha das faixas também foi um diferencial, pois fugiu do óbvio ao regravar canções como “Tu quémingabelá?” (Luiz Gonzaga), “Terra, vida e esperança” (Jurandy da Feira), “Sertão sofredor” (Joaquim Augusto/Nelson Barbalho) e “Manoelito Cidadão” (Luiz Gonzaga/Helena Gonzaga).

- As sanfonas do Rei (Falamansa) - um dos maiores responsáveis pela popularização do forró na região sudeste, a partir dos anos 90, o Falamansa contou com a participação de Elba Ramalho e Dominguinhos, entre outros, para prestar seu tributo a Luiz Gonzaga. A última faixa do disco, “A hora do adeus” (Onildo Almeida/Luiz Queiroga) é um dueto “póstumo” com Luiz Gonzaga, retirado do cd “Duetos com Mestre Lua”, lançado há alguns anos. O destaque do álbum é a regravação de “Erva rasteira” e “Festa”, ambas de Gonzaguinha, em uma única faixa, com a participação de Jorge du Peixe e Gustavo da Lua, do grupo pernambucano Nação Zumbi.

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com repertório baseado na obra do Mestre Lua. Coletâneas com músicos diversos gravando sucessos de Gonzaga também já existiam. Mas, como já era esperado, surgiram no ano passado tantos cds em homenagem ao Rei do Baião que nem o mais fanático dos forrozeiros consegue, de cabeça, elencar todos. A relação abaixo contém os principais tributos e, com certeza, ajuda a quem deseja pesquisar e adquirir essas merecidas homenagens ao maior expoente da nossa música nordestina:

- Gonzaguiando nos oito baixos (Luizinho Calixto) - defensor árduo e divulgador da histórica e cada vez mais rara sanfona de oito baixos, pouco procurada devido ao som limitado (porém único) e à dificuldade na sua execução, Luizinho Calixto, paraibano, irmão mais novo dos também forrozeiros Bastinho e Zé Calixto, gravou somente versões instrumentais - embora também seja cantor - de sucessos de Gonzaga, como “Sabiá” (Luiz Gonzaga/Zé Dantas), “Xote das meninas” (Luiz Gonzaga/Zé Dantas) e “Qui nem jiló” (Luiz Gonzaga/Humberto Teixeira). No acompanhamento do “pé-de-bode” (apelido popular do fole de oito baixos), instrumentos como sanfona de 120 baixos, pandeiro, triângulo e zabumba, todos tocados pelo próprio Luizinho, além de violão 7 cordas, cavaquinho, violino, flauta e clarinete.

- Tem sanfona no choro (Marcelo Caldi) – o jovem acordeonista, pianista, arranjador, cantor e compositor Marcelo Caldi também celebrou o centenário de Gonzagão em um disco todo instrumental. Da mais nova safra de acordeonistas brasileiros, Caldi costuma explorar e fundir vários ritmos em seu estilo, indo do forró ao jazz, do choro ao erudito. Nesse belíssimo trabalho em homenagem a Luiz Gonzaga, o músico carioca, ao contrário de Luizinho Calixto, preferiu buscar canções instrumentais pouco lembradas do repertório do Rei do Baião, como “Seu Januário”, “Luar do Nordeste” e “Araponga”, todas compostas pelo homenageado.


- Jurandy da Feira canta Gonzagão (Jurandy da Feira) - parceiro do Rei do Baião nos anos 70/80, o baiano Jurandy da Feira é o autor de 4 canções gravadas por Luiz Gonzaga: “Nos cafundó de Bodocó” (1976), “Frutos da terra” (1982), “Canto do povo” (1983) e “Terra, vida e esperança” (1984), todas regravadas nessa homenagem, ao lado de grandes sucessos como “Légua tirana” (Luiz Gonzaga/Humberto Teixeira), “Pense n’eu” (Gonzaguinha) e “A letra I” (Zé Dantas).

- 100 anos de Gonzagão (Jorge de Altinho) - outro parceiro de Gonzagão nos anos 80, Jorge de Altinho regravou 10 canções conhecidas, mas que, no geral, não foram os maiores sucessos do Rei do Baião, como “Fulô da maravilha” (Luiz Bandeira), “Amei à toa” (João Silva/Joquinha Gonzaga) e Mané Gambá, de sua própria autoria. O curioso é que esse cd saiu no formato convencional, em box de acrílico, com encarte, e em capinha de papelão, estilo promocional, sem encarte, mas que vem com 4 faixas extras remasterizadas, gravadas na década de 80 com a participação de Luiz Gonzaga.

- No Ton de Seu Luiz (Ton Oliveira) o paraibano Ton Oliveira bem que poderia ter repetido o estilo do seu melhor disco, o “Pra matar saudade”, de 2006, quando gravou no formato mais tradicional do forró, sem uso de bateria, que ficou muito acentuada nessa homenagem a Luiz Gonzaga. O trabalho não ficou prejudicado por isso, mas o pecado mesmo, sem dúvida, foi a participação de Frank Aguiar em “Xote ecológico” (Luiz Gonzaga/Aguinaldo Batista). Não dá pra ouvir essa, nem qualquer outra música de Gonzagão, com “uivos” ao fundo.

- Petrúcio Amorim canta Gonzagão (Petrúcio Amorim) - o autor de “Filho do Dono” e “Tareco e mariola” também prestou seu tributo a Gonzagão, que acabou saindo como uma “meia homenagem”. Explico: a primeira metade do cd traz canções baseadas no repertório de Gonzaga, com destaque para “Amanhã eu vou” (Beduíno), que tem a participação de Karine Leal, porém, a outra metade é uma coletânea de músicas retiradas de diferentes cds da carreira de Petrúcio Amorim. À exceção de “O Rei nas estrelas”, de sua autoria, as demais não possuem ligação com o homenageado.

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- Flávio José canta Luiz Gonzaga (Flávio José) - como não poderia deixar de ser, Flávio José mais uma vez gravou um excelente trabalho. O cd, que só saiu no final de 2012, traz 12 faixas, dentre elas 3 pot-pourris, e vem com uma bela capa e encarte com letras. Nas regravações de “Légua tirana” e “Estrada de Canindé”, ambas de Luiz Gonzaga/ Humberto Teixeira, participação do Quinteto de Cordas Stacatto, repetindo a experiência que Flávio José teve em apresentações ao lado de orquestras.

- Luas do Gonzaga (Gereba Barreto & Convidados) - Certamente, o tributo mais interessante de todos os lançados em 2012. Para o projeto, o cantor, compositor e violonista baiano Gereba reuniu uma seleção de compositores, a exemplo de XicoBizerra, Maciel Melo, Lirinha e Zeca Baleiro, para inserir letras em valsas, choros e maracatus instrumentais da obra de Luiz Gonzaga. Para interpretá-las, cantores de primeira linha como Elba Ramalho, Flávio Venturini, Adelmário Coelho/Santanna, Dominguinhos/Maciel Melo, Jorge Vercilo, Lenine/Margareth Menezes, Zeca Baleiro e outros. O álbum também possui faixas em homenagem ao Rei do Baião, como “Galope além do mar” (Gereba/Capinam), intepretada por Gereba, e “Sete Luas do Gonzaga” (Gereba/Ronaldo Bastos), na voz de Jussara Silveira. Pra completar a obra-prima, desfilam no disco alguns dos maiores acordeonistas do país: Dominguinhos, Oswaldinho, Genaro, Cézar do Acordeon, Silvinho do Acordeon, Targino Gondim, Cicinho de Assis, Marquinhos Café e Antônio Bombarda, além, claro, do próprio Gonzagão, em sanfona retirada da gravação original de “Verônica”.

- No balanço do forró - Genival Lacerda canta Luiz Gonzaga (Genival Lacerda) - Com mais de 80 anos de idade, “Seu Vavá” demonstra ainda estar em forma na sua homenagem ao Mestre Lua, produzido pelo seu filho João Lacerda e com a participação especial de Flávio José, Fagner, Elba Ramalho, Dominguinhos, Chico César e outros. Apesar de ser um bom disco, Genival repetiu o mesmo erro de Ton Oliveira ao deixar Frank Aguiar “uivar” em uma das faixas (“Deixa a tanga voar”, de Luiz Gonzaga e João Silva).


- Concerto para Gonzaga (Alcymar Monteiro) - no lugar da instrumentação tradicional do forró, Alcymar Monteiro optou por dar um tom erudito a alguns dos principais sucessos de Gonzagão, cantando acompanhado pela Orquestra Criança Cidadã dos Meninos do Coque, de Recife. Talvez por esse motivo Alcymar tenha incluído apenas as canções mais conhecidas da obra do homenageado. Além das interpretações do cantor, há 4 faixas instrumentais executadas pela Orquestra. Com bela produção, o álbum vem em embalagem luxuosa, no formato cd+dvd, e ainda pode ser encontrado em lojas na internet, ao preço médio de 40 reais.

- 100 anos de Gonzagão (vários artistas) - Box com 3cds, produzido por Thiago Marques Luiz, que traz 50 gravações inéditas de artistas de diversos estilos, demonstrando a importância da obra de Luiz Gonzaga em toda a música brasileira. O cd3, por exemplo, traz como nome tradicional do forró apenas Dominguinhos, ao lado de artistas de outros gêneros como Paulo Neto, Márcia Castro, Milena, Eliana Pittman, Virgínia Rosa, 5 a Seco etc. Os mais conservadores podem não gostar da inclusão de músicosde pouca ou nenhuma ligação com o forró, mas, apesar de algumas versões realmente irregulares, vale a pena conferir esse trabalho.

- Salve 100 anos Gonzagão (vários artistas) - coletânea organizada pelo cantador Téo Azevedo, o disco conta com 16 faixas interpretadas pelo próprio Téo e por nomes como Jackson Antunes, Genival Lacerda/João Lacerda, Caju e Castanha, Tiziu do Araripe etc. Todas as faixas são de autoria de Téo Azevedo, com exceção do poema “Um baiãozinho para o Rei do Baião”, de Assis Ângelo, e dos “Causos Gonzagueanos”, dos irmãos ManoVéio e Mano Novo. Nenhuma das canções do disco é do repertório de Luiz Gonzaga e algumas nem sequer falam no Rei do Baião, mas o cd vem com uma preciosidade: “Padroeira da Visão”, única faixa inédita do álbum, que é uma poesia de Téo Azevedo musicada por Luiz Gonzaga em 1984 e gravada ano passado por Dominguinhos, especialmente para o disco.

- O lado B do Gonzagão (vários artistas) - coletânea com músicos de gêneros variados da cena musical de Pernambuco, esse cd se tornou um dos principais tributos por explorar canções pouco conhecidas da obra de Gonzaga, como “Amor da minha vida” (Raul Sampaio/Benil Santos), na voz de Geraldo Maia, e “Menestrel do Sol” (Humberto Teixeira), interpretada por

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Zé Manoel e Noé Sosha. O álbum conta com arranjos diferentes, mais voltados à música pop, tanto que o acordeon só se faz presente em “A dança do Nicodemus” (Zé Marcolino), Feijão cum côve (J. Portela) e “Chofer de Praça” (Ewaldo Ruy/Fernando Lobo), executadas por Adriana BB, Quinteto Dona Zaíra e Jr. Black, respectivamente. - Olha pro céu (vários artistas) lançada em formato de cd duplo, a coletânea abrange versões de sucessos gonzagueanos gravados por diversos artistas ao longo de suas carreiras. O encarte é caprichado, com apresentação de Tárik de Souza e letras de todas as músicas. Quinteto Violado (cinco faixas), Caetano Veloso e Gilberto Gil (quatro faixas cada) são os que mais se repetem no disco, que também mostra regravações feitas por Elba Ramalho, Alceu Valença, Gal Costa, Dominguinhos e por nomes menos conhecidos como Marília Medalha e Gerson King Combo e a Turma do Soul. A única faixa inédita é a versão de Caetano Veloso para “Respeita Januário”, gravada em 1999, com voz e violão, para um disco caseiro em homenagem a seu filho.

- Baião de dois (Luiz Gonzaga e vários artistas) – no estilo do cd “Duetos com Mestre Lua”, lançado em 2001, a compilação apresenta duetos “virtuais”, permitindo que artistas como Dominguinhos, Zeca Pagodinho e Geraldo Azevedo, além de outros que não eram nem conhecidos quando Luiz Gonzaga faleceu, a exemplo de Chico César, Ivete Sangalo e Zeca Baleiro, dividissem os vocais com o Rei do Baião, graças à inserção de suas vozes nas gravações originais. Também foram incluídos novos instrumentos em “Asa Branca” (Luiz Gonzaga/Humberto Teixeira), com Fagner, e Paraíba (Luiz Gonzaga/Humberto Teixeira), com Elba Ramalho. O álbum, produzido por José Milton e Raimundo Fagner, traz ainda três duetos “reais”, retirados de LPs do próprio Gonzaga: “Plano Piloto” (Alceu Valença/Carlos Fernando), de 1983, com Alceu, “Forró nº 1” (Cecéu), de 1985, com Gal Costa, e “A vida do viajante” (Luiz Gonzaga/Hervê Cordovil”, de 1979, com o filho Gonzaguinha.

E MAIS - Outros músicos que lançaram álbuns em homenagem a Gonzagão em 2012: Novinho da Paraíba (100 anos de Gonzagão), Lourdinha Oliveira (Lourdinha Oliveira e as cantadeiras do Rei Luiz), Sandro Becker (100 anos de Gonzagão, em cd/dvd), Diassis Martins (Cantando Gonzagão), Quinteto Violado (Quinteto Violado canta Gonzagão - coletânea com versões gravadas ao longo da trajetória do Quinteto) e Israel Filho (relançamento do disco Saudades de Gonzagão, de 1993, com uma faixa extra).


LITERATURA

SOB O SIGNO DA CULPA Chico Viana

“Toma um fósforo! Acende teu cigarro!” Já lá se vão bem três décadas desde que ouvi esses versos pela primeira vez. Quem os citava era um colega de Liceu Paraibano apaixonado por Augusto dos Anjos e que sabia de cor quase todo o Eu e outras poesias. Ele sublinhava com tragadas esparsas o recitativo e assumia um tom lúgubre, que realçava o pessimismo do poema. Um dos versos era de descrença profunda no amor; dizia que o beijo é a véspera do escarro e que só a “pantera” da ingratidão é a inseparável companheira do homem. Meu colega de classe foi a primeira referência que tive do poeta. Ela vinha pela boca de uma pessoa simples, que não entendia muita coisa do que estava dizendo mas não conseguira escapar ao magnetismo daqueles vocábulos cortantes. Neles se falava em beijo e em escarro, em afago e apedrejamento, como se o autor, para revelar dimensões sombrias do ser humano, quisesse ir além das convenções poéticas. Na ingenuidade de seus 17 anos, o estudante refletia o deslumbramento que Augusto provocava no homem comum. Este nunca precisou de bagagem intelectual para compreender e, sobretudo, para sentir a força daquela poesia esdrúxula e estranhamente musical. Essas noções sobre a poesia do paraibano eu só adquiriria depois. Passaram-se muitos anos antes que eu tomasse contato com seus versos. Curiosamente, a empolgação do colega não encontrara eco em mim. Eu achava mais interessante ler Bandeira, Drummond ou Cecília Meireles, em cujos poemas era perceptível o legado dos modernistas de 22. Com seus decassílabos rimados, Augusto parecia estar na contramão da modernidade. Certamente fora por isso que os modernistas, com exceção de um outro artigo feito para destacar a estranheza do poeta, sua fonética de “estampidos”, praticamente o ignoraram. Para eles, Augusto era mais passado do que futuro. Quando enfim o li tive um impacto fortíssimo, desses que nos trazem uma percepção nova e radical do que seja a poesia. Até então a linguagem me parecia um filtro que

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separava o artista do mundo. As metáforas, com seu poder transfigurador, serviam mais para isolar do que para inserir o poeta na múltipla e por vezes fétida realidade da vida. Sons, melodias, ritmos, em consonância com velhos ideais clássicos de equilíbrio e harmonia, pareciam apontar para um limbo eufônico em que tudo soava rarefeito, quimérico. Como se lêssemos poesia para sair do mundo, e não para mergulhar nele. O que encontrei no Eu foi o oposto de tudo isso: um desejo não de pairar ou transcender graças às prestigiosas asas do Belo, mas de “consubstanciar-se com a imundície”, captar o mundo em sua concretude material, revelar a tragédia humana a partir da efêmera vida do corpo. Daí as inúmeras referências à doença, à disformidade e à morte, destino final da matéria. Para traduzir tudo isso era preciso uma estética nova, marcada pela dissonância de imagens e sons. Impressionaram-me sobretudo as frequentes referências ao sentimento de culpa, que no poeta aparecia de forma intensa e generalizada. Como se ele sozinho fosse o responsável por um crime universal e devesse, por isso, pagar pelos pecados de toda a espécie: “Ah!Com certeza, Deus me castigava!/ Por toda a parte, como um réu confesso,/Havia um juiz que lia o meu processo/E uma forca especial que me esperava!” A pungência de versos como esses me despertou a vontade de investigar-lhe com abrangência e rigor a obra. Augustoterminou sendo objeto da minha tese de Doutorado. O desafio era enorme, tendo em vista tudo quanto se escreveu sobre o seu livro desde a publicação, em 1912. Como estudá-lo sob um enfoque novo? Como ser original tratando de um autor com tão variada fortuna crítica? Minha preocupação não foi ser original, foi ser rigoroso. Eu quis sobretudo entender a melancolia que se impregnava naqueles versos, levando o chamado eu lírico a rejeitar a sexualidade e perseguir uma Unidade supostamente perdida nos primórdios do homem. De que falta ele se incriminava para se sentir furado por pregos e alfinetes, es-

magado por pesos e cargas? Senti que estava diante de uma representação desesperada e vigorosa do pecado original. Só isto explicava a culpa desmesurada, que parecia se estender a tudo que é vivo. Só nessa perspectiva era possível compreender o “desejo de ser Cristo” para sacrificar-se pelos homens. Deixei de lado considerações biográficas, uma armadilha perigosa para quem estuda um poeta tão singular. Preferi me concentrar no material linguístico, embora sabendo que muito do desespero contido na obra refletia a situação decadente do Pau D’Arco. Se a neurose do poeta devia-se em parte à influência da mãe nervosa, ou ao desejo incestuoso pela irmã Francisca, isso me parecia secundário. Preocupava-me não a gênese mas a representação da culpa, que se expressava nos vários níveis da linguagem: fônico, sintático, morfológico, semântico. Mesmo a vinculação do remorso ao pecado original, que percebi desde os primeiros contatos com os versos de Augusto, ficou em meu trabalho sem um maior desenvolvimento teórico-crítico. Talvez algum estudioso venha no futuro a desenvolver o assunto, que se insere em domínios como o da teologia ou da psicanálise jungiana. Augusto dos Anjos é desses poetas que pedem muitas leituras. Deve ser lido por diversos prismas, cada um deles iluminando um ângulo novo da sua obra romântica, barroca, simbolista e, ao mesmo tempo, moderna. Seus versos falam de temores e anseios cruciais no ser humano, cujo maior desafio é conciliar a porção animal com a aspiração à transcendência. Augusto não propõe um caminho, não chega a uma síntese. Mesmo porque, não sendo um místico nem um filósofo, ele não tem essa função. A linguagem é sua matéria e seu horizonte. Seus poemas são, basicamente, um testemunho do poder regenerador da arte. Só ela, conforme escreve o poeta em “Monólogo de uma Sombra”, é capaz de “esculpir” a dor humana e transformar em planície amena a “aspereza orográfica do mundo”. Ou seja: só ela, dando algum sentido à vida, é capaz de nos trazer alívio.


HISTORIOGRAFIA

UM LIVRO NA MATRIZ DA HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA José Octávio de Arruda Mello

Sumário: 1.1. Alguns exemplos da História à Política. 1.2. Sobre um livro tripartido. 1.3. Da didática ao historicismo. 1.4. Das projeções da Teoria ao nacionalismo – Capistrano de Abreu. 1.5. Do presenteismo da Teoria – conclusões.

Se observarmos a Historiografia e até a Cultura Brasileira, veremos que seus principais representantes dispõem de um livro básico em torno do qual gravita a obra. 1.1. Alguns exemplos da História à Política – Assim, o paraibano José Américo de Almeida que o casal José Honório/Lêda Rodrigues tanto apreciava. De A Paraíba e seus Problemas, escrito em 1923, derivaram as novelas A Bagaceira (1928), O Boqueirão (1935) e Coiteiros (1935), os ensaios O Ministério da Viação no Governo Provisório (1933) e O Ciclo Revolucionário no Ministério da Viação (1934) e até as memórias Antes que me Esqueça (1976).Caio Prado Júnior renovou a Historiografia brasileira, com Evolução Política do Brasil, em 1933, seguindo-se Formação do Brasil Contemporâneo – Colônia (6ª ed., em 1961) e História Econômica do Brasil (7ª ed., 1962), ampliações daquele. Já Nelson Werneck Sodré preparou Formação da Sociedade Brasileira e Formação Histórica do Brasil, aprimoramento do primeiro, em 1944 e 62, com todo restante de ciclópica produção histórico-literária carregando consigo a marca daqueles ensaios. Em Raymundo Faoro, o weberianismoestamental que acompanha suas concepções de criações como Machado de Assis: A Pirâmide e o Trapézio (1981), estriba-seem Os Donos do Poder (1958), da mesma forma que não se pode entender Celso Furtado sem Formação Econômica do Brasil cuja primeira edição é de 1959. Em Furtado as pautas da tese defendida em Paris são tão manifestas que, tematizando o continente, limitou-se a, em livro específico, substituir a expressão Brasil por América Latina – temos então a Formação Econômica da América Latina (1969).

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No plano da Ciência Política, as coisas também se passam dessa forma. Eminente representante do Grupo de Itatiaia – o professor Hélio Jaguaribe publicou, em 1969, Desenvolvimento Econômico e Desenvolvimento Político. Pois bem. Todo restante da obra, sinalizada pelo problema do Estado e a relação deste com a cultura e o processo histórico, provém dali. 1.2. Sobre um livro tripartido – Não é diferente o caso de José Honório Rodrigues. Se bem que, pelos anos quarenta, já despontasse com Civilização Holandesa no Brasil (1940), o livro referencial de sua obra aparece em 1949 – é a Teoria da História do Brasil (4ª ed., 1978) de que aqui me ocupo. Em verdade, não se trata de obra que apareça sozinha, porque, como parte de trilogia nascida nos Estados Unidos onde o autor perfez curso com a mulher, Lêda, que dali também sacou obra básica, A Corte Suprema e o Direito Constitucional Americano (1958) -, a Teoria será acrescida de A Pesquisa Histórica no Brasil (2ª ed., 1969) e os três tomos de História da História do Brasil (1979, 1988 e 1989), os dois últimos dos quais completados por Lêda. Na verdade, a trilogia constitui uma construção só, decomposta em vários títulos de diferentes momentos e uma só inspiração. Temos então não um livro mas três que constituem a célula mater do chamado honorianismo, como o mais consumado aparelhamento conceptual da Historiografia brasileira. De mais a mais, a Teoria e seus congêneres não representam apenas a base da criação de José Honório, como se verá. Ampliando-se sobre os próprios limites, a trin-

dade – com a Teoria à frente – espraiou-se sobre a cultura brasileira, ocupando o lugar até então pertencente aos manuais dos dois Charles – Langlois e Seignobos, e alemão Wilhelm Bauer. Essa realidade chegou a ponto de, na Paraíba, o jornalista Sérgio Botelho recomendar que a Teoria da História do Brasil constituísse leitura obrigatória para os alunos do Curso de Jornalismo. De minha parte, vou além: sustento que já é tempo de este livro constituir tema de uma disciplina inteira nos cursos superiores de História do país. Isto porque, em sã consciência, não se pode aceitar o qualificativo de historiador para quem, no Brasil, não haja lido e assimilado a Teoria da História do Brasil, de José Honório Rodrigues. 1.3. Da didática ao historicismo – Qual o segredo desse livro que ora completa cinquenta anos? A decompormos sua conceituação em forma e conteúdo, observaremos que, do ponto de vista formal, ele se distingue pelo caráter didático. Nesse particular, a propriedade da Teoria não exclui a comunicação direta, a simplicidade das frases, a objetividade, em suma. Como o reconheceu Francisco Iglésias, em artigo de 1950, ora reeditado pela Revista do UNIPÊ (1999): “O método da exposição é claro, objetivo, embora nem sempre com a desejada economia (...). Bastaria, se outros méritos não tivesse, a sistematização da matéria que andava por aí, dispersa, ou que não fora mesmo tratada, para se impor à consideração de quantos se interessam pelo assunto”. No tocante ao conteúdo, historicismo, nacionalismo e presenteismo constituem a


coluna vertebral da Teoria como o tripé da construção honoriana. Recusando as objeções de Poper, o qual, segundo JHR, “ignorava a tradição histórica que criticava”, Teoria da História do Brasil ressalta os precursores do historicismo – Niebuhr e Ranke – sua mais alta expressão conceitual – Theodor Momsen – e os principais representantes do século – Troeltsche, Meinecke e Croce. Para José Honório, o historicismo significa “aquela construção da realidade como história e só historicamente pode ser entendida”. Esse panhistoricismo levou o autor a encerrar o posfácio da edição de julho de 1977 da Teoria com o entendimento de que “a História não está empenhada na distração das elites, mas na revelação, ao longo do tempo, para o presente, e sob pressão do presente, da dignidade e do valor da existência humana e, sobretudo, da necessidade de manter viva a esperança na utopia humana”. Refratário à História como conjunto de exemplos, princípio da História Pragmática, recusada pela Teoria, apesar da válida valorização da exemplaridade histórica posteriormente sustentada por Nelson Saldanha -, Honório acredita nas forças vivas do processo histórico geradoras da utopia. Formulada por Karl Mannheim em Ideologia e Utopia, essa é uma idéia historicista, e mais. Por acreditar na História como forjadora do destino dos homens, ninguém batisou tanto seus livros com a palavra História. Além da trindade presidida pela Teoria, despontam História e Historiadores do Brasil (1965), Vida e História (1966, 86), História e Historiografia (1970), História, Corpo do Tempo (1976), Filosofia e História (1981), História Viva (1985), e, afinal História Combatente (1982), dedicada “A José Octávio de Arruda Mello e seus companheiros de estudos”. 1.4. Das projeções da Teoria ao nacionalismo – Capistrano de Abreu – Inúmeras passagens desses livros remontam à Teoria. A frase de abertura desta – “Deus não é dos mortos, mas dos vivos, porque, para ele, todos são vivos” – reaparece na Introdução de Vida e História, como a mais acabada síntese do honorianismo. Ela também irrigará as idéias expendidas nos prefácios de História da Igreja no Brasil organizada pela CEHILA (1983, 5). A antológica interpretação de Gilberto Freyre em História e Historiadores do Brasil está delineada às p. 142/3 da Teoria. Como os magistrais estudos acerca de Huizinga e Burckhardt pre-

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sentes a Vida e História. Ou “A Evolução Sumária da Aviação Comercial do Brasil”, esboçada na Teoria e consumada em Historiografia e História. Por outro lado, as penetrantes observações sobre o dinamismo capitalista do Norte europeu de História, Corpo do Tempo remontam a Pirenne que a Teoria considera “o mais claro e mais vigoroso dos intérpretes históricos econômicos, sem cair no unilateralismo e no esquematismo do materialismo histórico”. Não raro é a frase inteira da Teoria que aparece em outro trabalho. Dialeticamente algo hegeliano, José Honório lembrou na Teoria da História do Brasil a obra de Benedetto Croce – Cio Che é vivo e Cio Che é morto della filosofia di Hegel (Bari, 1907). Pois no discurso de posse da Academia Brasileira de Letras, em 1969, discorrendo acerca da influência de Hegel sobre seu patrono, Tavares Bastos, indaga, sem rebuços, “o que é vivo e o que é morto na sua obra?”. Voltado para a Filosofia da História, como evidenciará em livro dessa denominação, dois títulos de JHR se fazem hegelianos – Conciliação e Reforma no Brasil e Independência: Revolução e Contra-Revolução( 5 vols., 1975). Hegel também reaparece em Aspirações Nacionais (1963), quando da indagação do autor: “Será a Presidência a Reforma e o Congresso a Contra-Reforma?”. Outrossim, como sustentei em José Honório Rodrigues: Um Historiador na Trincheira (1994), livro, aliás, preparado com sua companheira LêdaBoechat, a Teoria da História não se refere a uma História vaga, abstrata, difusa. Ela é concreta, palpável, efetiva, pois do Brasil. Tal decorre do inarredável nacionalismo do autor. Este, proveniente do radicalismo mameluco de João Ribeiro corporifica-se em Capistrano de Abreu que constitui, com José Bonifácio, os brasileiros da maior admiração do autor. Prefaciador de todos os dez volumes das Obras Completas do cearense, JHR já esboça na Teoria as raízes desse sentimento. O mestre alencarino que pontificava na crítica aos documentos e na interpretação, é o reorientador da História do Brasil porque “Seu tema é inteiramente nacional, pois convidava os historiadores brasileiros a não centralizar seu interesse nas comunidades do litoral, mas no interior, no próprio Brasil arcaico, é verdade, mas nas origens autônomas do Brasil novo: as minas, as bandeiras, os caminhos”. A Teoria antecipa, então, comparação

explicitada em conferência da série Brasil, Tempo e Cultura¸ da Paraíba. Capistrano está para o Brasil como Frederick Jackson Turner, para os Estados Unidos. Ele é o descobridor da “nova Fronteira”, forjada pelo povo. Seguramente por isso, a Teoria não esquece autores capistraneanos como o Barão de Studart, que para JHR é o maior historiador regional do Brasil, sendo Capistrano o nacional, e o Antônio de Alcântara Machado de Vida e Morte do Bandeirante. 1.5. Do presenteismo da Teoria – Conclusões – Teoria da História do Brasil torna-se livro que aponta claramente para a História na construção da nacionalidade. Nesse sentido, roteiriza as Aspirações Nacionais, como força construtora do povo brasileiro “sempre maior que suas elites dirigentes”. A razão consiste em que a visão da História que dele deflue, inspirada em Croce, é de que “a história do passado se ilumina com as luzes de nossa própria história. (...) A história é o conhecimento do eterno presente. Para reviver o passado devemos aproximar-nos de nós mesmos”. Nessa perspectiva, “Toda história é história contemporânea, no sentido de que revive na própria consciência a atividade passada”. Data daí como, fiel a esses postulados de Teoria da História do Brasil, José Honório converteu-se em Historiador Participante, e, nas expressões de Cleantho de Paiva Leite, “um ativista contra os governos militares”. Nisso, seus discípulos paraibanos acompanharam-no, como foi possível. Sua obra, então, concretizando outra proposta da Teoria, volta-se para a realidade brasileira do tempo, fosse abominando a subserviência diplomática em Brasil e África outro Horizonte (1961, 65, 1984) e Interesse Nacional e Política Externa (1966), reatualizando a tradição liberal-radical em A Assembléia Constituinte de 1823 (1974), ou, ainda, valorizando os Direitos Humanos, na gênese destes da História Combatente. Este último livro, aliás, a começar pelos destinatários, ressalta os que pensavam como o autor da Teoria – “o bravo e liberal Osório”, e ainda Alceu de Amoroso Lima, Sobral Pinto, Barbosa Lima Sobrinho, Petrônio Portela, José Américo de Almeida, Hermes Lima e o filósofo hetero-marxista alemão Ernst Bloch com seu O Princípio da Esperança. Para nós, a esperança consiste em (re) ler e (re)atualizar o autor de Teoria da História do Brasil – José Honório Rodrigues!


CIÊNCIA POLÍTICA

CONFERÊNCIA EM BUENOS AIRES (*) Paulo Bonavides Carlos Cóssio no prólogo de seu livro Radiografia de la Teoria Egológica del Derecho escreveu página muito honrosa, de louvor a Fortaleza e aos estudantes com quem estabeleceu contacto acadêmico durante os breves dias de estada no Brasil a convite da nossa Universidade Federal. Agora se me oferece o grato ensejo, ao receber vossa homenagem, que deveras me comove, penhora e sensibiliza, de retribuir a tão cativante manifestação de apreço do insigne filósofo. E quero fazê-lo com igual expressão de afeto à metrópole argentina, onde hoje me acolhem com extrema benevolência e liberalidade os doutorandos da vossa Universidade. Para tanto, farei minhas as formosas palavras com que Rui Barbosa enalteceu Buenos Aires, quando aqui esteve em 1916 numa embaixada de confraternidade, representando a nação brasileira nas celebrações do Centenário de vossa independência. Reverenciando, pois, a majestosa cidade em rápidas linhas, repassadas de simpatia e profunda admiração, disse Rui Barbosa, que antes de se formar o estandarte azul e branco, “tinha Buenos Aires, no batismo que lhe deram, o mais vitorioso dos pavilhões: um signo que falava de benignidade, amenidade e suavidade aos corações de todas as gentes. Bons ares! Bons ares! Lenço branco de chamada aos que passam, de afeição aos que chegam, de saudade aos que partem (...) Buenos Aires! Buenos Aires!” (Rui Barbosa, in “Embaixada a Buenos Aires” Obras Completas de Rui Barbosa, Vol. XLIII, 1916, Tomo I, pág. 108, Fundação Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro, 1981). Nesta mesma Faculdade de Direito, em 14 de julho de 1916, pronunciou Rui uma de suas mais célebres conferências, em cujo intróito traçou o perfil desta Casa onde as letras jurídicas subiram às culminâncias do saber humano. Aquele que em verdade foi o maior amigo da Argentina em todos os tempos de nossa história disse: “Aqui se muniram com a primeira experiência no comércio das leis os vossos magistrados, os vossos parlamentares, os

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vossos estadistas de mais nota. O foro, a administração, o magistério dessas vastas disciplinas, sobre as quais assenta a estrutura dos estados têm aqui o viveiro das capacidades, o laboratório das soluções, a escola dos sistemas, das teorias, das verdades comprovadas e das questões em estudo. Todo o progresso intelectual de vossa pátria transitou, em sua gestação, em sua expansão, em sua consolidação, em sua frutificação, por estas salas, por estes bancos, por estas cátedras venerandas, que o lustre dos anos gloriosos reveste dessa santidade, com que a pátina do tempo consagra os bronzes antigos.” (Rui Barbosa, obra citada, págs. 27/28) Queremos traçar, em seguida, como principal objeto desta Conferência a linha teórica de evolução do constitucionalismo coevo, no espírito do discurso que proferimos em sessão do Instituto dos Advogados Brasileiros por ocasião da outorga da Medalha Teixeira de Freitas, quando resumimos todas essa evolução numa única frase: “Ontem os Códigos, hoje as Constituições.” Mas ali não dissemos tudo, porque faltou estabelecer o quadro discriminativo da mudança que se operava, o que agora podemos formular numa visão panorâmica de contrastes e variações ocorridas ao longo de muitas décadas. Confrontando o presente com o passado, indicaremos assim as prevalências contemporâneas desse constitucionalismo de vanguarda. Com efeito, as tendências agora referidas se inferem do potencial principiológico da Constituição brasileira de 1988, a mais avançada, a mais aberta, a mais normativa das constituições republicanas promulgadas no Brasil desde 1891. Vamos, portanto, prosseguir com um paralelo constitucional de feição doutrinaria: Ontem o domínio das regras, hoje o primado dos princípios. Ontem o Estado Liberal, hoje o Estado social. Ontem a democracia representativa, transitando do esplendor liberal à decadência contemporânea; hoje a democracia participativa, que é a promessa de nosso tempo às gerações porvindouras, a saber, a espe-

rança dos injustiçados no estabelecimento de uma república de justiça e paz social. Ontem a hermenêutica da subsunção, hoje a hermenêutica da ponderação, da proporcionalidade, da razoabilidade. Ontem os direitos fundamentais de uma só dimensão, hoje os direitos fundamentais de cinco dimensões ou gerações. Há pouco, por regra, um constitucionalismo formal, frio, dedutivista, rígido, de nenhum alcance social, indiferente a valores e princípios; doravante, por indeclinável, um constitucionalismo material, denso, principiológico, de substrato axiológico, pautando regras morais e sociais que se prendem à dignidade da pessoa humana. Dantes, o constitucionalismo do direito puro na versão normativista de Kelsen, omisso à contextura dos valores; agora, o constitucionalismo do direito justo, concretizando a observância e a normatividade dos princípios. Até há pouco, o constitucionalismo da retórica programática: utópico, idealista e filosófico, grandemente à margem da positividade jurídica; hoje o constitucionalismo dos direitos fundamentais inspirado da paz, da justiça e da fraternidade; que não vê apenas um povo ou uma nação, mas os povos e as nações na força e comunhão dos vínculos da solidariedade internacional. Mas não para aí a lista comparativa das metamorfoses do constitucionalismo; o que ele era no passado, o que ele veio a ser no presente. Senão vejamos ainda seguindo a mesma linha de comparação. Há pouco, as Cartas Políticas lecionadas em cátedras de Universidades como textos de filosofia jurídica ou como capítulo da história constitucional do Estado Moderno; doravante as Constituições aplicadas e estudadas já na teoria dos compêndios, já nas sentenças judiciais, já nos acórdãos dos tribunais, enquanto parte viva de um direito positivo que reconhece a importância capital e superlativa dos princípios na hierarquia e escala de juridicidade do ordenamento. Ontem o constitucionalismo das Constituições outorgadas, de baixa legitimidade;


hoje, o constitucionalismo das Cartas promulgadas, obra dos colégios constituintes, que em geral exprimem na sua feitura a correlação paritária e unificadora de princípios como os da legalidade e da legitimidade. Ontem, o constitucionalismo meramente político, da monarquia constitucional, sem controle de constitucionalidade e, de ordinário, desamparado e desfalcado de garantias; hoje o constitucionalismo normativo, vivo, pulsante, ancorado na suprema jurisdição dos tribunais constitucionais. Ontem, aquele constitucionalismo estagnado, hirto, pálido, metafísico, sem rosto, por onde a vida do direito não passava; hoje, um constitucionalismo de perfil concreto, aberto, flexível às mudanças, adaptativo e, em nosso sistema, gerador de um ser político que já se move no espaço de duas cidadanias constitucionais: a cidadania política que é a cidadania da polis e a cidadania social que é a cidadania da sociedade. Aquela, incorporando e concretizando os direitos da primeira geração, esta os da segunda: Ambas, contudo, numa lenta progressão, que se nos afigura ininterrupta, rumo ao estabelecimento da terceira cidadania constitucional com abrangência de todas as gerações de direitos fundamentais, configurando e consagrando portanto na doutrina e na práxis o termo de um longo ciclo de evolução cujo resultado não há de ser outro senão o advento da cidadania universal, ou seja, a cidadania do gênero humano. A esta altura costumamos contemplar matéria constitucional de feição republicana cintilante, em que a preponderância valorativa da justiça tem sido o norte, a direção, o luzeiro, o rumo por onde se guia a boa jurisprudência dos sistemas constitucionais. Desse constitucionalismo das cidadanias deriva também a versão teoricamente aperfeiçoada de um Estado de Direito cujo desdobramento contempla todas as modalidades, todas as dimensões, todas as gerações de direitos fundamentais; um Estado de Direito que se não deixa tolher nem emparedar na inflexibilidade normativa de teorias como a de Kelsen, indiferente a valores. Tal Estado assim o é por estabelecer uma concepção de pura juridicidade, ou seja, de Estado de Direito que se cinge unicamente à legalidade, mas que precisa de ser, acima de tudo, como preconiza a boa escola do neopositivismo, Estado de legitimidade, incorporando desse modo justiça, democracia e liberdade, isto é, valores superiores que o definem, sustentam e lhe dão prevalência. A Constituição, até ontem, utopia, metafísica, filosofia da política, código de direito natural; hoje ciência e direito positivo;

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princípio e normatividade; teoria do Estado e carta de direitos fundamentais. Demais disso, nessa latitude de pensamento e de abertura conceitual com que a doutrina se alarga e conquista novos espaços, a Constituição vem a ser por igual tratado de governo, livro de humanismo político, tábua ou declaração de direitos fundamentais e de garantias, que fazem o homem sentir-se livre na expressão das ideias, seguro na proteção dos direitos, tranquilo na consciência social de sua personalidade. Se a evolução fez, portanto, esse percurso no que diz respeito às Constituições, não menos relevantes e significativos os avanços da democracia na marcha do tempo. Em épocas da antiguidade clássica, houve o governo das cidades, a democracia da polis, o esplendor da civilização política tanto na Grécia, como na Roma republicana. A seguir, com a meia-idade aconteceu o arrefecimento da ideia secular de organização governativa da sociedade e depois o aparecimento do Estado-nação, em substituição do Estado-cidade. Por derradeiro, algo já se desenha em nosso tempo no horizonte da internacionalidade: o Estado mundial, de que o primeiro passo nesse sentido fora talvez a Constituição da União Européia, que, todavia, ainda não logrou aprovação, sem embargo do projeto já elaborado. Enfim, na mesma projeção de universalidade, desponta a paz como direito da quinta geração. De tal sorte, que ela acompanha de perto a caminhada da democracia – também direito fundamental, mas de quarta geração – rumo ao sobredito Estado universal, fadado a concretizar e coroar um dia o governo de todos os povos: hoje, apenas utopia, amanhã porém realidade. A ordem dessas reflexões passa agora à consideração do Brasil, país que braceja contra a decadência de seus costumes políticos, contra a perda de seu espírito republicano, contra o amortecimento de sua consciência federativa; Brasil, posto nas convulsões da corrupção que lhe será fatal se não a debelar. Este Brasil, em suma, precisa com urgência de trasladar-se duma democracia de falsa representatividade, de sobrevivência apenas na ficção, no papel e nas aparências, em virtude de fazer da Constituição um salvo-conduto da ditadura dissimulada ou da democracia mutilada, que já arruinou três repúblicas constitucionais – a de 1891, a de 1934 e a de 1946 – para uma democracia da lealdade constitucional, da normatividade jurídica, da participação, da honra, da legitimidade, do Estado social, do decoro,

da dignidade republicana, da solidariedade federativa, ou seja, portanto, da livre união e autonomia de suas unidades constitutivas. Por conseguinte, a nação almeja nesta era de crises e mazelas uma democracia de governantes honestos, de políticos com devoção à causa pública, observantes da ética e da moral, que jamais se locupletem do dinheiro público, que preservem na alma e no coração o sentimento de seus deveres de fidelidade à república, ao povo e à nação. A essa democracia o país constitucional intenta chegar em oposição às tiranias que oprimem e às ditaduras que torturam; mas isto acontecerá unicamente quando o cidadão participativo professar um constitucionalismo de luta e resistência, fazendo da Constituição salvaguarda da cidadania e sentinela da liberdade. A Constituição na América Latina afigura-se-nos rodeada de inimigos. Os mais sanhudos, os mais ferozes se aninham na corrupção do Congresso, na administração pública, na impunidade, na incompetência dos quadros governantes. Urge combatê-los em todas as frentes, em todas as esferas ideológicas, em todos os postos e lugares onde as franquias do cidadão, os valores, os princípios, as franquias e os direitos humanos fundamentais estejam postergados ou sob ameaça de postergação; enfim, onde o fantasma da crise constituinte ronde as instituições. Nunca é tarde para articular a resistência, nunca é tarde para ir ao campo de batalha pugnar pelo acatamento à ordem constitucional. Em rigor, a consideração histórica dos avanços da democracia entende particularmente com a democracia do Estado moderno, do Estado-nação, e não com a democracia do Estado Antigo, do Estado-cidade, cuja forma mais acabada teve por domicílio a polis grega. Aliás, esse Estado antigo viu a decadência e a queda do império romano até dissolver-se no universo feudal de uma idade média de dez séculos. O modelo de Estado pós-idade média fez contudo a democracia ressurgir. Mas sob a forma indireta e representativa, a qual ganhava em volume, extensão e quantidade o que perdia em legitimidade, pureza e qualidade quando cotejada com o exemplo histórico da democracia ateniense na Grécia Clássica – exemplo, por excelência, de democracia direta. Singular em tudo quanto se observa a esse respeito, é que a revolução tecnológica do século XXI, introduzindo a urna eletrônica na consulta eleitoral, tornou, desde o advento da informática, possível a instantaneidade das consultas plebiscitárias.


Com isso, removeu-se o maior obstáculo material que sustentava e reforçava o argumento da impossibilidade de estabelecer no Estado-nação a democracia direta em substituição da democracia representativa. A crise constituinte de legitimidade das formas representativas de governo já se instalou, posto que em fase ainda recessiva no sistema. Tal sistema de democracia indireta, a longo termo, porém, se mostra fadado a desaparecer ou a ficar arquivado nos anais das instituições políticas. Com efeito, os progressos da ciência fortaleceram a democracia participativa e ao mesmo passo, conforme já dissemos, decretaram a decadência e o ocaso daquela democracia dos corpos representativos, quais se apresentam eles em sua forma atual: peremptos, decadentes, gafados de corrupção; por isso mesmo, sufocados debaixo da poeira de modelos políticos que a humanidade condena e a civilização já não perfilha. Aqui a esta altura me volvo para um prognóstico exarado em artigo de 2088, estampado na revista “Estudos Avançados”, nº 62, da Universidade de São Paulo, em que a ideia central ali posta, no que toca ao Estado contemporâneo, era a de que este, com a democracia direta, aparelhava a nação para se tornar a nova polis do porvir. Mas complementando esse pensamento faz-se mister um acréscimo inarredável ao que então escrevi, a saber, urge empreender a caminhada messiânica rumo ao futuro como parte da jornada que a formação de uma consciência de cidadania universal requer. E, em seguida, dar o grande passo precursor nesse sentido: a ratificação e a concretização do reconhecimento da democracia como direito fundamental da quarta geração. Minhas Senhoras, Meus Senhores! Distintos Doutorandos e Doutorandas! A cerimônia solene e festiva desta noite

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de homenagem em que me destes ocasião de vir mais uma vez a esta terra tão amiga, tão fraterna, tão hospitaleira, tão abençoada, que é a vossa pátria, torrão de heróis e libertadores, onde não raro grava a história memoráveis atos de uma diplomacia de solidariedade continental, prólogo da união de nossos povos, há de ficar estampada indelével na memória de quem ora recebe, com humildade e gratidão, a láurea deste livro que me dedicastes, escrito com criatividade, engenho e devoção às letras jurídicas. Nesta casa, nesta Universidade, neste templo do saber jurídico, já escalou os degraus da vossa tribuna, como há pouco assinalei, o nosso imortal Rui Barbosa, patrono da advocacia brasileira, fundador em meu País de uma República que libertava, ao revés de um Império que escravizava. Aliás, proferiu ele aqui uma de suas mais belas alocuções, tecendo hino de louvor à nação que o acolhera de braços abertos quando a tirania duma ditadura o desterrara, com mão de ferro, para as amarguras do exílio. A gratidão de Rui Barbosa à Argentina inspirou-lhe pois algumas das mais vibrantes páginas de sua eloquência e de seu gênio de tribuno. Enaltecendo o vosso contributo aos progressos da civilização, assinalou ele ao mesmo passo a inquebrantável relação de amizade que une nossos povos. E advogando nesta sala acadêmica os foros da humanidade, formulou também a célebre proposição de que não há neutralidade entre o direito e o crime. Outro brasileiro, cujo nome também não posso deixar de declinar porquanto desde muito resplandece e se insculpe na memória argentina é Teixeira de Freitas, o civilista baiano que compartilha com Clóvis Beviláqua, jurisconsulto, a glória da redação de dois projetos de códigos que os imortalizaram nas letras jurídicas do Brasil.

Falo de Freitas visto que em minha primeira visita a vossa república, em julho de 1948, integrando uma embaixada de estudantes da Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil, nesta mesma casa, onde ora recebo tão penhorante distinção honorífica, a saber, o livro com que me distinguistes, ouvi de colegas estudantes e de professores argentinos frequentes referências de encômios a Teixeira de Freitas pelo influxo de seu projeto na elaboração do Código Civil da Argentina. Afigura-se-me que houve aí algo comparável ao reconhecimento dos constitucionalistas portugueses a Rui Barbosa, em razão da inspiração que estes foram buscar na Carta republicana do Brasil de 1891, da qualveio a ser principal autor o insigne baiano. Isto aconteceu no Portugal de 1911 quando o País, após derrubar em 1910 uma monarquia de oito séculos, promulgou sua primeira Constituição republicana. Em suma, laços na esfera do direito e da doutrina republicana muito nos honram e nos aproximam: com a Argentina, pelo Projeto de Código de Teixeira de Freitas, com Portugal pela Constituição de Rui Barbosa. Minhas Senhoras! Meus Senhores! Caríssimas Doutorandas! Caríssimos Doutorandos da Faculdade de Direito da Universidade de Buenos Aires! À vossa homenagem, ao vosso livro, à vossa generosidade o preito de minha gratidão. Muito obrigado. (*) Oração proferida na Faculdade de Direito da Universidade de Buenos Aires em 22 de setembro de 2011, durante sessão solene de lançamento do livro “Reflexiones sobre DerechoLatinoamericano – EstudiosenhomenajealProfesorPaulo Bonavides”, de autoria dos doutorandos e doutorandas daquela Faculdade e dedicado ao constitucionalista brasileiro.


LITERATURA

NOTAS PARA UM JORNAL LITERÁRIO Alexandre de Luna Freire

Ultrapassando a efêmera existência de “OTapuya” e de “O Investigador”, assume a Revista ALVA iniciativa de difusão da Cultura Provincial, na condição de periódico que reúne a participação de diversos Acadêmicos de Olinda nos remotos 1850, depois de duas décadas e meia da Proclamação da Independência. O que caracterizava as publicações da época na atividade jornalística era necessariamente a descontinuidade decorrente de dois fatores básicos: condições econômicas e antagonismos políticos. Com as seguintes palavras, já em seu número inicial de Janeiro, apenas com atualização ortográfica, é palpável descortinar a mentalidade e as agruras da ocasião: “INTRODUÇÃO. As vantagens, que produz o jornalismo literário, são já hoje manifestas, que dispensam longas provas. Reconhecido geralmente como o meio mais profícuo, que podia a imprensa oferecer em benefício da instrução e moralidade do povo, pois que é o mais fácil de por ao alcance de todos uma variedade de conhecimentos que aliás a poucos chegaria – o jornalismo literário, representante do caráter, das ideias, do estado de um País, e indicador dos passos dados na carreira do Progresso, tem-se tornado um elemento indispensável da civilização. Fora, portanto um absurdo intolerável negar a necessidade urgente que dele se faz sentir em uma terra como esta, onde pouco se cultivam as letras, onde a indústria é nenhuma, o comercio padece tristemente na falta de medidas acertadas e convenentes ao seu incremento, e a agricultura não tem modificado para seu aperfeiçoamento aquela rude trilha que a necessidade fê-la seguir. Duas vezes, porém temos testemunhado aqui a nobre tentativa duma publicação periódica respectiva tão-somente à ciência e a literatura: e duas vezes temos tido o dissabor de vê-la desfalecer ante os graves obstáculos deparados em o seu andamento. Se empresas deste gênero não exigissem mais que os precisos cabedais da inteligência, persuadi-nos de que há muito não contaríamos semelhante falta. Mas é que não basta só isso. Tristes são certamente algumas circunstâncias, cujo peso é necessário confortar,

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senão longo e aturado esforço empregar em combater. O que, porém nos dói fundo, e têm sido a causa principal de muitos de nossos atrasos, já não elas – inda mal: é esse fatal indiferentismo tão gélido, e tão arraigado, o qual infelizmente se entende a muitos respeitos, e parece enfim como se fosse fado desta infeliz provincia, pesar em tudo que podia tender à sua prosperidade. É este um dos mais fortes inimigos que ela tem, que todavia nos parece mui difícil de vencer-se. Cumpre guerreá-lo; convém, entendemos nós qualquer esforço produzido com semelhante propósito. Não hesitamos pois – conquanto poucos e fracos, mas levado do amor do estudo, instigados pelo desejo de ver melhorada um dia a sorte de nossa terra, e desobstruído o caminho que deve de levá-la ao templo da civilização – não hesitamos em empreender a presente publicação, com a esperança de estimular outras penas mais habilmente aparadas, e que com mais destreza e proveito possam ser manejadas – a fim de ir despertando o gosto da leitura, adormecido sob a influência de hábitos maus, que a ociosidade alimenta. Atento o que levamos dito, não se espere, portanto uma obra de grande vulto. São inteligências que começam a desenvolver-se agora: apresentam apenas um humilde ensaio literário. Outra “cousa não indica o título do presente jornal”. Inicia-se o “Bosquejo Histórico” de Salvador Henrique D’Albuquerque utilizando as iniciais S. H. de A. revolvendo as memórias da pertença da “Parahiba” [grafia do texto] à Capitania de Itamaracá e sempre fiado em Durão, celebrizado no epicismo posto em “Caramuru”, em seis capítulos desenvolve cenários e circunstantes do remoto entrevero dos Holandeses. Desvira os “Pitaguarés”, percorre os fortes de Cabedelo e Santo Antônio para se defrontar com os circunstantes holandeses aportando em 1634. Olinto José Meira escreve evocativas “Recordações e Saudades” e sobre a vida no campo e “os inconvenientes da “vida urbana”. Sobre “Prisões” vêm as iniciais: A. L., provavelmente Adelino Luna. Além, de passagem, dois “Romances”, em capítulos, “Dor e Prazer” e o “Sócio” de Joaquim da

Costa Ribeiro [J.C.R]. José Carlos da Costa Ribeiro [J.C.C.R], que sobreviveu ao filho José Carlos Júnior, da cearense Padaria Espiritual, apresenta o “Romance” intitulado “Dor e Prazer”, bem à moda inicial de fascículos literários e deixa interessante apologia ao “Pitaguaré”. Desses pontuais exemplos a merecer contextualização literária das incipientes publicações locais. A História da Paraíba vem, aos poucos, apresentando oportunas variações temáticas. Talvez um dia seja elaborado compêndio mais abrangente, a envolver a evolução da Comunidade e da Sociedade, a compreender suas instituições públicas e privadas, em suas apropriadas fases. Desde a iniciativa do historiador Deusdedit Leitão, quando lançou a História do Tribunal de Justiça da Paraíba, apercebeu-se da lacuna. Em boa hora surgiram reedições essencialmente ampliadas, resgatando a memória da egrégia Corte, de um dos ramos do Governo, ensaiando a reconstituição das ideias jurídicas no Estado e a somar contribuições para uma construção da evolução do Direito na Paraíba. Dos primeiros graduados na Academia de Olinda não é demais repetir o nome de Nicolau Rodrigues dos Santos França Leite, natural da então Conceição de Piancó. A Academia fora criada em 1827, vez que não vingara a proposta de Carneiro da Cunha perante os debates da Constituinte de 1823. Tinha em mira a então Cidade da Paraíba; por “aprazível”, seria um lugar para tranquilo estudo. Certo é que os paraibanos, com algumas posses, ou seja, que não precisassem ficar afetos à servidão da terra ou engajar-se a algum serviço militar, não precisavam mais atravessar o oceano para ingressar nas Faculdades de Direito da Europa, como fizera Francisco Xavier Monteiro da Franca. Advogara e exercera cargos públicos, graduado em Coimbra. Olinda e São Paulo passaram a exercer esse papel de ilustração e qualificação como um dos efeitos do processo derivado da declaração de Independência do Brasil. Na década de trinta do Século Dezenove formaram-se primeiros bacharéis brasileiros e até alguns egressos de “além-mar”, para logo em seguida, também começarem a lecionar e a exercer cargos públicos, com formação não estritamente europeia. Papel relevante para iniciar-se a cons-


trução da identidade nacional com a elaboração de suas instituições. Uma delas, para associar o nome de França Leite, foi sua intensa atuação na criação do Instituto dos Advogados, na década de Quarenta, seguinte, juntamente com Montezuma e outros. Fato que registrou, com acerto, Clóvis Bevilacqua na sua fundamental publicação sobre os bacharéis de Olinda e Recife, compreendendo desde a implantação dos Cursos até a década de 1920. Somente continuada por Nilo Pereira, nos anos setenta do século passado. Quanto aos paraibanos coube a Apolônio Nóbrega aprimorá-la, inclusive, com subsídios fornecidos por Deusdedit Leitão e, segundo registra, enaltece o desprendimento de sua contribuição. O valioso estudo é uma sequência biobibliográfica sucinta, provavelmente à lápis, à tinta e à memória, o que justifica algumas omissões de outros escritores, percorrendo livros e arquivos da Faculdade do Recife. Prevaleceu a boa vontade e o espírito público, aliás, indissociáveis. Por outro lado, o estudo publicado em 1964, na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro incorpora-se às necessárias bases bibliográficas para resgatar dados sobre personalidades locais, onde a “memória vegetal” também é frágil de mira desatenciosa. Já o sentira Liberato Bittencourt, quando publicara, em 1914, alentado volume a que deu o título “Paraibanos Ilustres”. Inspirara-se, como disse, na famosa publicação “Who’s Who?”. Com alguns senões, ou decepções: insistira em cartas mimeografadas dirigidas a diversas pessoas da Paraíba, solicitando subsídios sobre pessoas de “vulto”, sem lograr total e integral intento. Acreditou-se por muito tempo ter sido o livro de poesias de Francisco Xavier Monteiro da Franca o primeiro de autor paraibano, publicado postumamente em 1854. A se considerar como raízes da literatura provincial de paraibanos, também os publicados em outros lugares, -merece consentir a primeira coletânea publicada e preparada por autor paraibano: “Castália Brazileira”. Publicada por Olyntho José Meira, em 1850. Com a peculiaridade de inserir na antologia dois paraibanos. “Ode” de Francisco Xavier Monteiro da Franca [cujo resgate maior deve-se a Adauto Ramos], e poema de Joaquim da Costa Ribeiro. Figuras distintas durante todo o Século XIX e precursores na tarefa literária permaneceram ao largo das referências. Exerceram ocupações de ¬realce em decorrência de serem Bacharéis pela Academia de Olinda, o que constituía padrão para a investidura de cargos de relevo no Período ¬Imperial nas diversas Províncias do País. Principalmente na transição para a segunda metade do Século XIX.

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Olyntho José Meira era ainda estudante do 4º ano quando reuniu composições de poetas “velhos novos” da literatura portuguesa - aí considerada a brasiliense. Havia publicado no ano anterior o “Album dos Acadêmicos Olindenses” [1849]. A Academia transferiu-se para Recife em 1852. Os critérios discricionários das antologias, crestomatias, seletas, em pouco ou em nada contemplam a poesia paraibana. O “Thesouro Poético Brasileiro – Colectaneas das melhores poesias nacionais” – 1750 -1900, de Osório Duque-Estrada, Francisco Alves & Cia, Rio de Janeiro, 1913 é um exemplo. Só em 1851 é que surge o primeiro livro - de sopro - de autor paraibano. É o livro “Horas Vagas” de Joaquim da Costa Ribeiro. Este sim é raríssimo. Consta ter sido republicado em 1871 e merecido alusões de José Feliciano de Castilho. São várias poesias reu¬nidas num volume de várias páginas. Genro de Benedito Marques da Silva Acauã [informação que o Desembargador Antônio Elias de Queiroga e o Juiz Onaldo Queiroga me passaram]. ¬Natural de Pilar, foi Juiz em Sousa, na Paraíba; Juiz em Goiana; Chefe de Polícia em Pernambuco; ascendeu ao Tribunal de Relação daquela Província e Desembargador do Tribunal de Justiça com a instauração do regime republicano. Ainda, em 1849, publicou o “Álbum dos Acadêmicos Olindenses”. Poema de Francisco Xavier Monteiro da Franca, na “Castália”, é trecho escrito quando prisioneiro na Bahia em decorrência do movimento¬ político de 1817, enquanto padecia e esperava a sentença da Alçada da Bahia, referido por Liberato Bittencourt, no volume “Paraibanos Ilus¬tres”; bem assim “Soneto” recitado “por ocasião da Independência” do latinista Antônio Elias Pessoa, outro participante da animação nativista de 1817. Continha a “Castália”: Domingos José Gonçalves de Magalhães; Antônio Pereira de Souza Caldas; Antônio Ferreira Barreto; José Bonifácio de Andrada e Silva; Ignácio José de Alvarenga Peixoto; Antônio Gonçalves Dias; Thomaz Antonio Gonzaga; Joaquim José Teixeira; Manoel Odorico Mendes; Domingos Borges de Barros; Francisco Villela Barbosa; José da Natividade Saldanha¬; João Capistrano Bandeira de Mello; Joaquim Ayres de Almeida Freitas; José de Santa Rita Durão; Domingos Vidal Barboza; Firmino Rodrigues da Silva; Paulo José de Mello; Joaquim Norberto de Souza e Silva; Alexandre de Gusmão; Augusto Frederico Collin; Jeronymo Vilella de Castro Tavares; Manoel Alves Branco; José Bazilio da Gama; Cláudio Manoel da Costa; e José Francisco e Toledo. Teve o mérito, antes de todos, o de incluir poetas paraibanos no cenário da literatura brasiliana que se iniciava.

Tornou-se uma publicação rara, em¬bora a maior parte dos poetasque dela constam seja objeto de inserções em Coletâneas ou Antologias. Ainda que possa ser considerado pioneiro literário paraibano, permaneceu fadado quase ao esquecimento. A Olyntho José Meira colhe-se a particularidade que os demais livros foram publicados após a sua morte. Atuou na administração da Província do Rio Grande do Norte e no Pará, deixando duas raízes familiares: Meira e Sá [filho mais velho, paraibano radicado no Rio Grande do Norte]; Sílvio, Octavio [netos, radicados no Pará]. Estudioso do Municipalismo; e das Secas, antes de muitos. A precariedade das publica¬ções, não só literárias, na Província, como em todo o Império, era o fenômeno característico. Havia poucas Tipografias. Eram artigos de luxo. As edições limitadíssimas. No entanto, o “Album”, a “Castália” e as “Horas Vagas” foram publicados em Pernambuco pelos referidos paraibanos. São raríssimos. A biografia de ambos foi resgatada de Deusdedit Leitão. A de Olyntho também por Clóvis Meira. No livro História da Faculdade de Direito do Recife, de Clóvis Bevilacqua, há ligeiras menções. Poucas alusões há em autores que cuidaram dos levantamentos biobibliográficos. A não ser pela edição, também esgotada, do Instituto Nacional do Livro ePonget¬ti nos anos 50 do Século XX, teria a “Castália” caído no esquecimento indefinidamente. Podem ser considerados os “fundadores” da literatura provincial paraibana, sem esquecer que exerceram atividades jurídicas, administrativas e parlamentares. Ainda assim, trouxe a lume valiosa contribuição sobre a nomenclatura paraibana desde épocas remotas. A pesquisa histórica somente avançará quando Arquivos e Bibliotecas passarem por um processo de abertura e rígida documentação, ao invés de incineração e descarte. Ao menos, após a digitalização, passarem a integrar a memória coletiva e a Internet. Acesso e Democratização do Conhecimento. Muitos arquivos já foram irremediavelmente destruídos. Fator instrumental de Educação indispensável, imprescindível, imperioso mesmo, por antídoto de imperialismo cultural e digital. O movimento do Quebra-Kilos [então com “K”] serve de exemplo. Documentos da Escravidão, do mesmo modo, como para “apagar a vergonha”. Neste último, o paraibano Joaquim da Costa Ribeiro, ex-deputado Provincial, Juiz de Direito na Paraíba e em Pernambuco, integrou o Tribunal de Relação de Pernambuco, teve em mãos um processo de escravo. Não se sentindo à vontade, libertou os seus, em seguida, cuidou do processo. Figura de constante relevo,


publicou livro de poesias intitulado “Horas Vagas”, em 1851, tendo uma segunda edição em 1871. Nele há um poema intitulado “As Flores”, que já constava na Castália Brasileira que Olyntho José Meira publicara em 1850, sendo a primeira antologia poética paraibana. Conservar livros não é fácil. À época, de muitas remoções, escolhas entre viagem a cavalo, onerosos ou demorados acompanhamentos de tropeiros, de barco, impelia desfazer-se de livros. Além de dispendiosas edições diante de parcos recursos. Papel de jornal servia para enrolar peixe. Nesse sentido convém relembrar o nome de Nicolau França Leite [referido antes], tendo uma publicação póstuma de 1872, com o título “Considerações Políticas sobre a Constituição do Império do Brasil”, que havia ficado incompleta, por não ter contemplado o Capítulo sobre o “Poder Judicial”. A obra está atualmente digitalizada no sítio eletrônico da Rede RVBI, em domínio público. Outros figuraram com relevo nos estudos constitucionais a exemplo dos irmãos Braz Florentino e José Soriano de Souza. O primeiro celebrizou-se com a monografia [pela densidade era muito mais do que no sentido de hoje]: “Do Poder Moderador”; além de Parecer sobre o Projeto do Código Civil, de Teixeira de Freitas, e outros estudos. Soriano de Souza era Filósofo e Médico, por Louvain e Bahia, neotomista acirrado, veio a ser um dos primeiros comentaristas da Constituição republicana, reviu a posição, destacando a Separação da Igreja e do Estado. A memória jurídica, portanto, é feita de estudos variantes na temática ou alcançada em obras gerais ou isoladas. Basta ver que no Governo José Peregrino foi editado uma síntese da legislação paraibana entre 1875 a 1900, por João Monteiro de Medeiros, que alerta para a existência de livro anterior de autoria do então Juiz de Direito da Comarca da Capital Antônio de Souza Martins. Provavelmente esquecido em alguma prateleira remota. Seria a única fonte da evolução legislativa da Província, à exceção das avulsas leis orçamentárias e Relatórios Presidenciais, porém, sem sistematização. Antônio de Souza Martins era natural de Oeiras, então mais importante cidade do Piauí, foi Desembargador no Rio Grande do Sul e Ministro do então Supremo Tribunal de Justiça. E outra de J. Dias Júnior a compreender a legislação de 1900 a 1935. O que pode vir a suprir parcialmente talvez seja consultando “Datas e Notas para a História da Paraíba” de Irineu Pinto, nos volumes de 1908 e 1918. Sobre o Poder Legislativo tudo não ficou perdido graças ao esforço e tirocínio de Celso Mariz, quando lançou em 1946 a “Memória da Assembleia Legislativa” retornan-

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do a 1835, colocando o nome de Quem é Quem em cada Legislatura, sem omitir que muita coisa ficou em caixotes nas mudanças de endereços das Repartições. Deusdedit Leitão complementou-a posteriormente, atualizando-a. Na década de 80, Flávio Sátiro Fernandes publicou a “História Constitucional da Paraíba”, agora reeditada após a Constituição Estadual de 1989. Talvez o único Estado que tem uma história constitucional atualizada. Estreante na atividade, Renato Cesar Carneiro lançou, com sucesso, dois volumes com foco na História do Voto e das Eleições, desde épocas remotas. Entrelaçando, como se já não fossem, Ciência Política e Sociologia, com fontes históricas. O valioso suporte para a compreensão empírica do processo eleitoral no Estado. A eleição paroquial, no sentido da palavra, que deu um morticínio em Cajazeiras, descrito por Almino Álvares Afonso, em publicação dos remotos Oitocentos. Ou, de relance, por Romeu Mariz nas suas “Crônicas Sertanejas”; paraibano radicado no Pará, onde foi Desembargador. Foi Maciel Pinheiro, o primeiro paraibano a publicar um alentado volume sobre o assunto logo após a Reforma Eleitoral de 1875. Até as Paróquias e as Populações estão no conteúdo, inclusive modelos e formulários. Tinha havido um Recenseamento no Império. Sobre época posterior, na fase republicana, amplo e variado subsídio nas “Obras Completas” de Epitácio Pessoa ou jornais extintos, digitalizados ou não. Entretanto, a “história geral” somente é viável em trabalho coletivo, dada a extensão de assuntos e a densidade de vários. Apenas para lembrar quanto a publicações, ora esquecidas, ora “desconhecidas”: “Terrenos de Marinha”; também objeto de tratados de Manuel Madruga e José de Vasconcelos Paiva; ou sobre o “Recurso Extraordinário”, de Rodrigues de Carvalho, referenciado em livro do Ministro Oscar Dias Correia sobre o Supremo Tribunal Federal. O “Processo” já havia sido abordado na tese em que Adolfo Cirne, de Bananeiras, havia apresentado como exame à Docência na Faculdade do Recife. O livro era “As Ações Sumárias” do consagrado Professor e Advogado; conhecido na Alemanha de então, convivendo com Clóvis Bevilacqua e o mundo acadêmico de seu tempo. Houve uma reedição nos anos trinta, com anotações do filho, Pedro Cirne, integrando a legislação processual republicana. Em matéria processual, seus estudos ombreiam-se aos do Barão de Ramalho e Correia Teles. Era afamado civilista. Folheando alguns escritos avulsos de Deusdedit Leitão, coligidos junto à família do ilustre historiador pelo também historiador Humberto Fonseca de Lucena, deparei-me com valiosos subsídios para a História

Paraibana, tanto recente quanto remota. São recortes de jornal imprescindíveis para ultrapassar os limites das publicações isoladas. Aquelas que pretenderam ser uma “história geral”. As versadas em municipalidades, aspectos temáticos diversos ensaios específicos. Sem falar em estudos sociológicos espalhados em Revistas ou dissertações acadêmicas a merecer ampla divulgação ou republicação. A relevância dos esmerados textos faz sobressair a noção de meros conglomerados de datas e nomes. Porém, não fica aí no relevo se quisermos o desfile de situações e personagens dos distantes e distintos rincões do Estado. A chamada História Social a ser construída não poderá desprezar contribuições de tal jaez. Aportes os mais diversos buscarão convergências localizadas para confeccionar o tecido local do que se pretende descrever desde memórias orais, registros públicos e arquivos privados. Os jornais efêmeros espalhados, ao longo do tempo, em grande parte de difícil resgate terão muito a acrescentar ao que se entende por História da Paraíba, em sua maior parte, produzido com muito esforço e abnegação. Há importantes acervos a merecer recuperação para fornecer abordagens sobre a evolução da mentalidade, das instituições públicas, dos costumes, dos relevantes fatores econômicos e sociais. De um modo panorâmico o que se proponha costurar sobre a evolução das “mentalidades”, produto social e político. Apolônio Nóbrega, do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, ao escrever sobre os bacharéis paraibanos de Olinda e Recife, refere-se aDeusdedit Leitão, num episódio que diz muito de sua pessoa, notadamente o amor à História e à honestidade intelectual. Sabedor de que Apolônio Nóbrega estava a fazer tarefa idêntica a que iniciara, enviou dados de sua pesquisa, de modo espontâneo e inesperado sem qualquer pretensão. A extensão da obra historiográfica de Deusdedit Leitão não poderá ser aquilatada em discurso com pretensão linear, de estritas linhas. Diversificadas e minuciosas pesquisas que empreendeu, sem estardalhaço, com rigor cartorário e olhos documentais é tarefa múltipla. Basta citar as correções que faz a Heliodoro Pires ao biografar o Padre Rolim. Não seria ocioso lembrar a História do Tribunal de Justiça da Paraíba e a do Ministério Público. A última atualizada, com Evandro da Nóbrega. Ou, modernizando as memórias assembleares de Celso Mariz. É imperiosa a menção sobre os diversos estudos concernentes a diferentes aspectos do Sertão, do Rio do Peixe, de Cajazeiras, dos distintos confins regionais. Quem se predispuser a escrever uma História da Paraíba há que necessariamente escrever uma


história social, com as instituições públicas e privadas, com as produções literárias locais, espalhadas no espaço das peculiaridades municipais. Com o fermento das raízes municipais. São os estudos que fez de caráter local que convalidam repensar a história paraibana, nos moldes de uma Ciência, ao longe de fatos desconexos e descrições sem análise, de perfis incompletos e de datas sem “checklist”. Até de palpites. Às vezes, sem arquivos completos, deteriorados pela pátina ou destruídos pela mentalidade escravocrata. Uma tarefa a ser feita com a contribuição de Humberto Mello, Wellington Aguiar, Guilherme Dávila Lins, Flávio Sátiro, José Octavio, para lembrar os da Academia Paraibana de Letras. A literatura paraibana, entre os nossos, com Ângela Bezerra, Adylla Rabelo. A história paraibana repensada, de passagem, pode ser a congregação temática. A lembrar o livro “Revoltas e Repentes”, de Antônio Freire, os ensaios e reportagens de Dorgival Terceiro Neto e Hilton Gouveia. A resgatar também estudos pontuais, às vezes, sem o intuito, como o de Coutinho Lima e Moura, Pedro da Cunha Pedrosa, Antônio Botto, AlfioPonzi – com seu binóculo na varanda. Ou a verve de Aderbal Piragibe. É um período de escassas fontes, o da República Velha e, principalmente, o Provincial. Apolônio Nóbrega eleva o conhecimento sobre a República Velha. Flávio Sátiro, ao tracejar a nossa história constitucional, coloca-nos em proeminência no constitucionalismo das unidades que se querem federativas. Wellington Aguiar resgata particularidades do Segundo Reinado com notícias da

imprensa da época. O protesto extrajudicial de dívidas fazia-se nos anúncios de jornais. Havia caloteiros com força. Sem esquecer as “Crônicas Sertanejas” de Romeu Mariz, os versos matutos de MardokeoNacre, Zé da Luz e Luiz Nunes. Atenho-me, neste relance, a dois interessantíssimos e pouco conhecidos da nossa literatura, que Deusdedit Leitão põe em relevo. O primeiro ao referir-se aos albores do Modernismo na Paraíba com a Poesia de José Saldanha de Araújo. A merecer maiores estudos os livros o “Canto das Seriemas”, “À Sombra das Oiticicas”, além de outras produções ao largo dos anos Vinte do século findo. O outro aspecto aconteceu quando a Fundação José Américo, na Presidência Sales Gaudêncio, realizou um evento sobre a literatura paraibana, documentado em livro. Participaram Sérgio de Castro Pinto, o saudoso Lúcio Lins e Hildeberto Barbosa. Deusdedit Leitão trouxe à tona, levantando a poeira do tempo, dados biográficos de Francisco Xavier Monteiro da Franca e Joaquim da Costa Ribeiro. O ponto central em torno do início da Poesia Paraibana há cento e sessenta anos. Resgata a “Castália Brasileira”, de Olyntho José Meira, editada em 1850, onde, além de poetas antigos, publica trecho de poema de Monteiro da Franca e “As Flores” de Joaquim da Costa Ribeiro. Essa “Castália” foi republicada depois de meados do século passado, pela Pongetti. Está esgotada. Hoje está no domínio público, na Internet. Naquele período germinal editava-se a literária “Revista Alva” com a participação

de Olyntho Meira, os irmãos Joaquim da Costa Ribeiro e José Carlos da Costa Ribeiro, Diogo Velho Cavalcanti de Albuquerque, Salvador Henrique D’Albuquerque e Adelino, natural de Olinda, dos Luna Freire pernambucanos. A Revista Alva, a estar entre as primeiras publicações literárias, consta do livro de Fátima Araújo e teria, segundo Alfredo de Carvalho, há quase um século, continuado em Pernambuco. Salvador D’Albuquerque é autor de “Resumo da História do Brasil”, de 1848, e, segundo ele próprio, inspirada na de Abreu e Lima, de 1843. Há uma edição de 1881 [“Compêndios”], com cortes. Suprimidas as listas dos Reis e Papados do período português, atualizada com alguns acontecimentos das décadas posteriores. Deusdedit Leitão analisa as possíveis edições paraibanas, referindo-se à década de sessenta dos Oitocentos e a publicações de Cordeiro Sênior, além das considerações biográficas de Monteiro da Franca e sua produção poética, se detém sobre a poesia “As Flores” de Joaquim da Costa Ribeiro. Encerro com a poesia de Joaquim da Costa Ribeiro, que Deusdedit Leitão retirou do esquecimento: “Lá vejo a saudade... saudades acordam; Lá vejo os suspiros... suspiro também: Que doces imagens que assim se recordam! Que fundo mistério que as flores contêm! ....................... Sorri-vos, oh flores, no prado, na serra, Vós sois os brilhantes mais ricos da terra Caístes na terra d’um riso de Deus.”

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS • ALMEIDA, Horácio de. Contribuição para uma Bibliografia Paraibana. 3ª ed., João Pessoa: Editora A União, 1994. • ALVA. Jornal Litterario. Tomo I, nº 1, janeiro de 1850, João Pessoa: Typographia de José Rodrigues da Costa. • ARAÚJO, Fátima. Paraíba: Imprensa e Vida. Jornalismo Impresso: 1826 a 1986. 2ª ed., João Pessoa: Editora e Jornal da Paraíba, 1986. • AURORA. PeriodicoScientifico e Litterario dos Academicos Olindenses. Tomo I, nº 1, maio de 1849, Recife: Typ. Imparcial da Viuva Roma & Filhos. • FERNANDES, Flávio Sátiro, A PARAÍBA E O DIREITO, in A Paraíba nos 500 anos do Brasil, Vol. I, A União Editora, 2000, João Pessoa, págs. 171/180. • MARTINS, Eduardo. A Tipografia do Beco da Misericórdia. Apontamentos Históricos. João Pessoa: editado pela Secretaria da Educação e Cultura do Estado da Paraíba, 1978. _________________A União: Jornal e História da Paraíba: sua evolução gráfica e editorial. João Pessoa: s/e, 1977. • MEDEIROS, José Augusto Bezerra de. O Rio Grande do Norte no Senado da República. Biografia. Item VI – Francisco de Sales Meira e Sá. Brasília: Senado Federal, 1968. • MEIRA E SÁ, Francisco de Sales. Ecos do Sertão. Estrada de Ferro de Mossoró ao S. Francisco. Natal: Typ. d’ A REPUBLICA, 1912. Reproduzido na Coleção Mossoroense, Série C, Volume DLXX, 1990. • NÓBREGA, Apolônio. Bacharéis Paraibanos de Olinda e Recife. De 1832 a 1960. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Volume 262, janeiro/março de 1964. Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional. • PHILOPOEMEN. Huma Nota sobre os Quebra-Kylos da Parahyba do Norte. 1875. Reprodução fac-símile in: AFONSO, Almino Álvares. Uma Nota sobre os Quebra-Quilos da Paraíba do Norte. Mossoró: Fundação Vingt-um Rosado – Coleção Mossoroense, Volume 1277, Série C, 2002. Um Projeto do Dr. Meira e Sá. Ano 1910. Reproduzido na Coleção Mossoroense, Série B, nº 565, 1988.

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VIDA ACADÊMICA

FESTA NA ACADEMIA Equipe GENIUS

A Academia Paraibana de Letras regozijou-se, na noite do dia 28 de fevereiro do corrente ano, com a posse de seu mais novo membro, o escritor e historiador Marcos Cavalcanti de Albuquerque. Ao ato, de caráter solene e festivo, compareceram acadêmicos, autoridades, colegas e amigos do empossado, além de convidados diversos. Estiveram presentes, dentre outras autoridades, o representante do Governador do Estado, Procurador Geral Gilberto Pessoa, a Desembargadora Fátima Bezerra Cavalcanti, Presidente do Tribunal de Justiça da Paraíba, o Prefeito da Capital, Luciano Cartaxo, os ex-Governadores José Targino Maranhão e Wilson Braga, o Arcebispo da Paraíba, Dom Aldo de Cilo Pagotto, o Comandante do III Grupamento de Engenharia, sediado nesta Capital, o Presidente da Fundação Casa de José Américo, Flávio Sátiro Fernandes Filho, o Presidente do Tribunal de Contas do Estado, Conselheiro Fábio Filgueiras Nogueira, o Presidente do Tribunal Regional do Trabalho, Desembargador Carlos Coelho de Miranda Freire. A sessão foi presidida pelo Acadêmico Damião Ramos Cavalcante, Presidente da APL, que, após compor a Mesa, convidou a todos para, de pé, ouvir o Hino Nacional Brasileiro. Em seguida, foi concedida a palavra ao Acadêmico Astênio César Fernandes, a quem coube saudar o recipiendário. Feita a saudação, foi o novel membro da Academia convidado a assinar o termo de posse e a prestar o competente juramento, sucedendo-se a isso a outorga da Medalha Ad Imortalitatem e do diploma acadêmico, após o que foi dada a palavra ao recém empossado, para proferir o seu discurso de posse, cujo inteiro teor vai publicado em outro local desta Revista. As fotos aqui reproduzidas foram cedidas pelo empossado.

Um grupo de Acadêmicos, pouco antes da cerimônia de posse do novo confrade: Flávio Sátiro Fernandes, José Loureiro Lopes, Marcos Cavalcante (empossando), Oswaldo Trigueiro do Vale, Eilzo Matos e o Secretário do TJPB, Márcio Roberto

O Acadêmico Astênio César Fernandes saúda o mais novo membro da Academia.

O Presidente da APL, Damião Ramos Cavalcanti e o Acadêmico Marcos Cavalcanti

O Acadêmico Marcos Cavalcanti pronuncia discurso de posse

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O Acadêmico Marcos Cavalcanti e sua esposa, Íris Helena


RELIGIÃO

OS MITOS E O FEMININO MACULADO: Gênesis André Agra Gomes de Lira

Fernando Pessoa, em seu livro “Mensagem”, ao exaltar ser o “mito um nada que é tudo”1 (Barbosa,2005) não estava apenas poetizando sobre essa “fisionomia” interessantíssima da humanidade, mas expressando, no esplendor de sua maestria, um intricado e essencial apanágio do “logos” humano e de sua relação com o transcendente.O poeta português, nesse momento fascinante de criação, se aproxima do que Bachelard (2006) chamaria de “grande achado”, situação na qual a “imagem poética pode ser o germe de um mundo, o germe de um universo diante do devaneio do poeta”. É como se a vibração do mundo fosse sentida através dos mitos. E as “forças metafísicas” em sintonia com o “eu” e sua relação simiesca com a religiosidade, fizessem germinar, em conseqüência, rudimentos de conectividade imprescindíveis ao processo de elaboração e desenvolvimento da sociedade, repetindo-se na história e guardando traços bastante aproximados. Pensemos, em particular, o Gênesis, o qual repete o mito da criação registrado num texto da mesopotâmia chamado EnumaElish (Kirsch, 1997 - p. 235). A iconografia de Ísis, arquétipo da deusa mãe, amamentando Hórus (Gadalla, 2003 - p. 83) possivelmente revelaria um ar de frescor e respeito tão profundo para o povo egípcio, como o da virgem Maria com o menino Jesus no seu colo sagrado, o faz com relação aos Cristãos, em especial os Católicos.Os exemplos são infindos, como se houvesse, no inconsciente coletivo, chaves de compreensão utilizando a força simbólica dos mitos para conferir inteligibilidade ao metafísico (divino). É nesse sentido, que Danielle Pitta (2005, p. 16) ao comentar o conceito de inconsciente coletivo de Jung, define o mito “como

a organização de imagens universais em constelações, em narrações, sob a ação transformadora da situação social – o que implica unidade entre o indivíduo, a espécie e o cosmo”. Decifrá-los, portanto, em linguagem e imagens, é perceber o que toca no âmago dos sentimentos humanos e o faz transcender. Entretanto, há uma faceta dos mitos que merece ser abordada, e que é fundamental na compreensão do feminino maculado, ou seja, a interpretação mítica pode conter a intencionalidade do poder dominante de impor sua coerção, como se tutelado fosse pelo divino; e com o auxílio de representações simbólicas, disfarçar uma característica “cultural” situado numa determinada época, tornando-a uma espécie de conceito universal ao sabor de interesses e numa perspectiva atemporal. As civilizações enraizadas na religião hebraica trazem em seu arcabouço um traço cultural marcante, o “patriarcalismo”, sendo um dos seus pilares fundamentais. Logo, não há como não identificar a tendência, às vezes explícitas, em alguns de seus mitos de representar essa aura de poder do “pater”, em detrimento à condição do gênero feminino.Os mitos de criação presentes no Velho Testamento, alicerces precípuos do Cristianismo, do Judaísmo e do Islamismo são intensamente identificados com a força do poder patriarcal. Dentre esses mitos fundantes, encontra-se o “Adâmico”, inserido no Gênesis, primeiro livro do Pentateuco, supostamente escrito por Moisés. E este está repleto de afirmações de “preponderância” de gênero, suscitando um desequilíbrio imperioso da condição da mulher perante o homem, isso, naturalmente, sob os auspícios da leitura tradicional judaico-cristã. A cria-

ção da “primeira mulher”, vide Gênesis (2, 22)– 2“E da costela que tinha tomado do homem, o Senhor Deus fez uma mulher, e levou-a para junto do homem” - é a partir da costela de Adão, como alguns popularmente alcunham de “órgão torto”, sugerindo a inclinação desta para o mal. Corrobora com essa sugestão uma das teses centrais do “MalleusMaleficarum” “porque Eva nasceu de uma costelatorta de Adão, portanto nenhuma mulher poder ser reta (I,6)” (Muraro, 2002 – p.15), circunstância vivida na mitologia grega por Pandora, a primeira mulher, usada como instrumento de vingança por Zeus. Ressalve-se situação onticamente diversa encontrada na mitologia do antigo Egito (primeiras cinco dinastias), na qual o princípio feminino, simbolizados pelas filhas de Nut (céu) e Geb (terra), Ísis (consciência) e Nefith (corpo material) estão em perfeita harmonia com o princípio masculino (Osíris) (Gadalla, 2003). Mais à frente, em Gênesis (3, 1), transcrito abaixo, há o primeiro contato com a serpente - no mito, uma figura criada por Javé - dito por muitos Cristãos a representação do “demônio”, mas que representa o intelecto na Mitologia Egípcia (Gadalla, 2003 – p. 43) e, consoante Pitta (2005 - p.35), é, também, um símbolo associado ao falo, em conseqüência, à fertilidade (“simbolismo ofidiano”). Porém, esse contato é feito pela mulher, aludindo-se, por “vias tortas”, ser ela mais propensa a se entregar às tentações. Em seguida, ao ceder, confirmaria a ironia wildeana com relação à tentação3 , no caso do poeta e escritor irlandês, sem distinção de gênero; e ainda leva Adão para a “perdição”, i. é, acessa a “árvore do bem e do mal”, a “árvore do conhecimento”.

1“O mito é o nada que é tudo.O mesmo sol que abre os céus. É um mito brilhante e mudo.” 2 Todas os versículos bíblicos citados neste artigo foram extraídos da versão “ Bíblia Ave Maria”. Disponível em http://www.bibliacatolica.com.br/. Acesso em: 10 Jun 2007. 3 Oscar Wilde (1854-1900), poeta irlandês, ironiza a resistência humana em admitir a fraqueza perante à tentação, e afirma que a única forma de vence-la é cedendo a ela (Wilde, 2001 - p. 35).

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Gênesis 3,6 - E viu a mulher que aquela árvore era boa para se comer, e agradável aos olhos, e árvore desejável para darentendimento; tomou do seu fruto, e comeu, e deu também a seumarido4 , e ele comeu com ela. Aqui vale a analogia com o mito de Prometeu, o “fiscal da criação”, ajudado por Minerva, subiu aos céus e “roubou” o fogo divino (conhecimento), dando-o ao homem, por isso, condenado ao suplício eterno, num rochedo do Cáucaso, onde um abutre devora seu fígado, sempre renovado (Bulfinch, 1999). Não esquecer que a partir de então, os olhos do homem e da mulher foram abertos para o conhecimento, e aí, interessante observar, surge o pudor para com o corpo, vide Gênesis (3,7), outro marcante elemento gerador do sentimento de culpa da mulher, manipulado a fim de sofisticar o processo de dominação. O corpo passa a ser o receptáculo natural dos desejos e tentações. Gênesis (3,7) - Então foram abertos os olhos de ambos, e conheceram que estavam nus5 ; e coseram folhas de figueira, e fizeram para si aventais. Não é difícil, pois, entender o porquê da tradição cristã primitiva desenvolver “uma atitude de imputação de culpa à mulher pela entrada do mal ou do pecado na história humana”; e esse mal fica relacionado à sexualidade, segundo essa tradição, como “uma transgressão a um estado de inocência primitiva”, daí advir o pecado original da relação sexual (Gebara, 1994 - p. 41). No diálogo que se segue, há um espanto de Deus com a vergonha que agora a nudez causa em Adão (Gênesis 3,10), e, então, Deus indaga-lhe: Quem te mostrou que estavas nu? Comeste tu da árvore de que te ordenei que não comesses? (Gênesis 3,11). Nota-se Adão, por conseguinte, a culpabilizar a mulher pelo “desvio”: A mulher que me deste por companheira, ela me deu da árvore, e comi 6. (Gênesis 3,12).Com efeito, a “ira” de Deus se abate sobre os dois, mas, os versículos que se seguem não deixam de induzir a compreensão de que a mulher além de culpada passa a ser subjugada, e a ela é relegado um papel secundário na história. Gênesis (3,16) assim afirma: multiplicarei grandemente a tua dor, e a tua conceição; com dor darás à luz filhos; 4 Grifos não existentes no original. 5 Grifos não existentes no original. 6 Grifos não existentes no original. 7 Grifos não existentes no original

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e o teu desejo será para o teu marido, e ele te dominará 7.; e (Gênesis 3,17): E a Adão disse: Porquanto deste ouvidos à voz de tua mulher, (...), maldita é a terra por causa de ti; com dor comerás dela todos os dias da tua vida; falam por si só.Como se vê, coube à mulher, na figura de Eva, a “pior parte”, a de carregar nos ombros a “pusilanimidade” de ter cedido à serpente. Difícil, ante a interpretação literal, fugir dessa carga mítica. O mito adâmico, como bem disse Gebara (1994 – p. 42), “parece atuar no inconsciente coletivo, marcado pela tradição judaico-cristã”. Note-se, por outra via, que com o advento do Cristianismo, a figura mitológica de Eva encontra sua substituição com a figura da Virgem Maria, “Mãe de Deus”, porém, transmuda-se uma simbologia de mulher tentadora, não-confiável, responsável pela indução do pecado original, para um modelo de santidade inatingível, de recato, castidade e submissão, um ideal segundo Lopes (2000) de “maternidade imaculada” ou a “dessexualização do corpo feminino”. Nessa “antítese” Eva/ Maria, oportuno inserir a figura mitológica de “Lilith”, conforme a grande tradição dos testemunhos orais, reunidos em textos da sabedoria rabínica, a primeira companheira de Adão (Sicuteri, 1990 - p. 23). Transformada, contudo, em demônio, bruxa, por não se submeter à autoridade masculina e exigir igualdade. Ganhou expressividade na Europa, em especial na Idade Média, transfigurada como o demônio, conhecido por “Incubo/ Súcubo”, a invasora dos lares e das alcovas, tentando desviar e corromper a alma de quem lhe aquiescer, e suas seguidoras, “as bruxas”, consumidas, ao sabor litúrgico e codificador do “MalleusMalleficarum” nas fogueiras da inquisição católica. Assinala-se, portanto, a proximidade da mulher com o mal, desde que fuja ao modelo mariano (de santa) de submissão, castidade e sexualidade angelical, situação na qual a lascívia, a concupiscência da carne representa na sua simbologia o próprio demônio ou um retorno à “Eva pecaminosa”. Bataille (2004) percebe a implicação dessa alienação da “carne”, eis que ela se torna o “inimigo inato daqueles atormentados pela interdição cristã”. Ressalta-se a “suspeita” lançada sobre o gênero feminino através desses mitos, e que perdura ao tempo hodierno, é uma espécie de emblema, uma “letra escarlate” a vagar no imaginário de uma sociedade ainda patriarcal. Por outro

lado, a leitura tradicional do mito adâmico enseja outros males, quando assume uma conotação de proselitismo quanto à subjugação do gênero feminino, com isso fertiliza um ambiente “sexista” e forja uma reação potencializada ao “patriarcalismo”. Um “movimento pendular brusco”, nos moldes do mito indo–europeu, quando Rama em contraposição aos excessos das sacerdotisas levou a mulher para o “lar” no intuito de cuidar do “fogo sagrado(focolare), ou seja, delimitou seu espaço ao doméstico (Shuré, 1987 – p.35).Assim, os gêneros se digladiam, terminando por promover uma figuração da mulher como “inimiga do homem”, não contribuindo, ao seu tempo, para uma harmonização dos princípios femininos e masculinos exaltados na figura de Cristo, vide Gálatas ( 3,28) : “não há homem nem mulher, pois todos são um em Cristo Jesus”, e nos mitos egípcios, i. é, o equilíbrio almejado se perde ante um quadro de disputas atrozes. Nessa acepção, o próprio movimento feminista, sem prejuízo do reconhecimento de sua luta e conquistas indiscutíveis, adota uma “persona” de animosidades para com o homem, como se revivesse “o mito das amazonas”. As guerreiras amazonas são o exemplo de um mito de oposição contundente ao gênero masculino, representam a “resistência armada ao homem, a oposição à violação dos seus direitos (Alexandre, 1990 – p. 605)”. Na selva Amazônica, daí derivaria seu nome, encontra-se o paralelo dessas guerreiras - as “Icamiabas”, mulheres que viviam completamente isoladas na região, só mantinham contatos esporádicos com homens para procriar. As sereias, do mesmo modo, modelo da mulher reinvidicativa e “inimiga de homens”, metamorfoseadas por Ceres, arrojaram-se ao mar, onde seduziam, através de seu canto e beleza, para depois matar.Ou seja, os mitos também servem para afastar os sexos, mesmo considerando o lado positivo de enaltecer a força da mulher, eles podem criar no inconsciente coletivo possibilidades de posturas conflituosas. É nessa perspectiva que aparece a Teologia Feminista, reconhecendo a força mítica como elemento de interferência benigna nesse processo e propondo uma releitura não só do mito adâmico, mas da bíblia como um todo, de modo a caracterizar o conceito de complementaridade


entre os gêneros. A princípio, respalda-se esse “olhar diferente”, na possibilidade de se observar essas narrações em forma de mito, o que implica a necessidade de se permanecer “num universo simbólico”, no tocante a certas questões, universo que, no dizer de Paul Ricoeurapud (Gebara, 1994 -p. 44), “sempre possibilita o pensar de

novo”, sem impedimentos intransponíveis à construção de novos sentidos, imprescindíveis à vivência humana. Aliás, sob o condão dessa visibilidade, lastreada nas teorias do imaginário, Danielle Pitta (2005), ao tecer comentários sobre o pensamento de Edgar Morin, denota a situação de inacabado do “sapiens”, por isso,

sua condição de “perpétua juvenilização”, que viabiliza sua capacidade de aprendizado até a morte. E isso faz crer a também inacabada situação de hermenêutica bíblica, seguindo os mesmos pressupostos; por conseguinte, abre-se um espaço fertilíssimo para se instaurar essas neoconcepções de leitura das “escrituras sagradas”.

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DISCURSO DE POSSE

O DIREITO NA LITERATURA E NA FILOSOFIA(*) Marcos Cavalcanti de Albuquerque

I - A ALEGRIA E A HONRA DE ESTAR NA ACADEMIA - São para mim incontidas e inexplicáveis em palavras a alegria e a honra de estar na Academia Paraibana de Letras. O que sinto é algo que salta do âmago do coração e provém do extremo mais profundo d’alma. O Sinédrio de Coriolano de Medeiros é o refúgio dos intelectuais, dos pensadores, dos filósofos, dos historiadores, dos jornalistas, dos cineastas, dos cientistas, dos artistas, dos pintores, dos romancistas, dos poetas — enfim, dos escritores que, escrevendo a Cultura e a História da Paraíba, projetam-na para todo o Brasil, como a mais legítimaexpressão do talento paraibano, da sabedoria que exsurge desta terra tão pródiga nas Artes e na Literatura. A satisfação inexplicável de ingressar neste Jardim de Academos se constitui em algo que deleita o espírito, compraz o coração, inunda meu ser. Ter a honra de pertencerao Pretório Excelso da Imortalidade representa o coroamento e o reconhecimento de uma vida dedicada à pesquisa e ao trabalho justamente em favor da Cultura, da História, da Literatura em particular e das Letras em geral, em nosso Estado. II - O QUE É ACADEMIA - A palavra academia provém do grego antigo. Era o nome dado à escola criada pelo filósofo Platão, em 387 antes de Cristo, junto a um jardim a Noroeste e Atenas, em terreno dedicado à deusa Atena e que, segundo a tradição, pertencia a umpersonagem mitológico, o imbatível herói Academos. Nesse jardim, bem próximo a Atenas, Platão passava horas e horas, meditando sobre os enigmas da Filosofia, para ensinar a seus discípulos. Esses diziam que o filósofo ia e vinha, andava para lá e para cá, enquanto meditava, até dirimir os segredos do pensamento.Por isso é que, no mundo inteiro, a palavra academia representa lugar para estudar, escola, faculdade, universidadeou o lugar onde se reúnem os acadêmicos: a Academia Francesa de Letras, a Academia

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Brasileira de Letras, a Academia Paraibana de Letras, a Academia Militar de Agulhas Negras etc. No Brasil, o termo academia vê-se utilizado também para nomear estabelecimentos destinados ao Ensino teórico e prático de Ciências e, até mesmo, à prática de esportesaeróbicos dotados de equipamentos específicos. Na Academia Paraibana de Letras, temos este Jardim de Academos, construído pelo imortal Manuel Batista de Medeiros, quando presidente. É um jardim que, a um só tempo, lembra a escola platônica e homenageia com bustos grandes nomes desta Casa. III - O PATRONO DA CADEIRA Nº 17: O FILÓSOFO ANTÔNIO ALFREDO DA GAMA E MELLO. O filósofo Antônio Alfredo da Gama e Mello nasceu na cidade de Paraíba, atual João Pessoa, capital do Estado, no dia 1º de outubro de 1849. Aqui também faleceu, a 10 de abril de 1908. Filho de Severino Antônio da Gama e Mello e de dona Alexandrina d’Ávila Mello, fez seus estudos primários em colégios da capital e o curso secundário no LyceuParahybano. Bacharelou-se em Ciências Jurídicas e Sociais pela tradicional Faculdade Direito do Recife, em 1873, tendo sido contemporâneo de Castro Alves, Cardoso Vieira e Tobias Barreto. Lecionou desde a juventude, uma vez que herdara do pai a vocação para o magistério e para as línguas clássicas. Aliás, ele substituiu o pai, por intermédio deconcurso, na Cadeira de Latim do velho Lyceu, onde também lecionava Retórica com proficiência. Chegou a ser Diretor desse prestigiado colégio paraibano. Influenciado pelas ideias de Tobias Barreto e líder estudantil, ainda em Recife (PE), Gama e Mello sonhava com transformações políticas e sociais, desejando um Brasil socialmente mais evoluído.

Tornou-se além de advogado e professor, um profundo filósofo e orador exímio, sendo comparado ao grande escritor, advogado, político e estadista romano Marco TúlioCícero, nascido em Arpino (106 antes de Cristo) e falecido em Fórmia (ano de 43 também antes de nossa era). Gama e Mello fundou o jornal A República, órgão dissidente que pregava a igualdade e a justiça social. Na Política, foi Vice-Presidente da Província da Paraíba, no Império, nomeado por Carta Imperial de 19 de abril de 1880, governando-a de 15 de maio a 1º de junho daquele ano. Daí por diante, assumiu interinamente o Governo paraibano por cinco outras vezes. E chegou ao cargo de Presidente do Estado da Paraíba, que exerceu de 22 de outubro de 1896 a 22 de outubro de 1900. Estava no exercício do mandato de Senador da República, quando faleceu, em 10 de abril de 1908, em plena luta pela consolidação da República, há pouco instalada, e pela defesa dos direitos republicanos dos cidadãos. Em 1º de outubro de 1949, por ocasião do centenário de nascimento de Gama e Mello — que, sem dúvida, fora inegável talento na Oratória, no Magistério, na Política, na Filosofia, na Advocacia e nas Letras —, o acadêmico paraibano Demócrito de Castro e Silva, em magnífica conferência que pronunciou, neste sodalício, assegurou eloquentemente: “Neste ano de centenários, meus senhores, a Bahia, consciente de suas tradições e célula-máter da nossa etnogenia, não pode excusar-se ao preparo de um gênio da grandeza universal de Ruy Barbosa! Pernambuco, aprofundado das mesmas raízes do tradicionalismo histórico, social e geográfico exuberante do país, trabalhou a figuraimponente do diplomata e do político que se revelou em Joaquim Nabuco. E a Paraíba, a nossa Paraíba, se bem que pequenina e, talvez por isso, mais apegada a sua respon-


sabilidade na tarefa de preparar valores para o Brasil, achou por bem ser mais pródiga, já que lhe não coube ser mais rica. E aqui nasceram, naquele ano de 1849, osparaibanos ilustres que se chamavam Venâncio Neiva e Antônio Alfredo da Gama e Mello. Ambos se fizeram credores de u’a enorme soma de serviços prestados à pátria,que bem os elevam às culminâncias de seus reais merecimentos.” E, adiante, prossegue o conferencista: “Pincelando em largos traços o esboço político, literário, moral, social e humano, de Gama e Mello, o fiz numa imposição acadêmica, neste momento em que reavivamos todas as tintas do seu grandioso perfil. E a Paraíba, ainda, por intermédio desta Academia de Letras, reverencia a sua figura, descerrando a Bandeira da Pátria, para, mostrando-nos o seu retrato, recolher o seu exemplo e difundir os ensinamentos que nos legou, durante uma existência de trabalho, virtudes e probidades. Patrono de uma cadeira nesta Casa, a sua individualidade há de ser melhormente estudada por quem tiver a ventura de ocupá-la, quando do consenso unânime de sua escolha. A Academia Paraibana de Letras, meus senhores, que vem a encerrar as festividades dedicadas a Gama e Mello, foi a primeira a homenageá-lo, antecipando-se a estas comemorações, ao incluí-lo entre os trinta imortais que enriquecem a sua preciosa galeria. Não deslembrando o nosso pretérito, esta Academia de Letras, apondo o seu retrato, aqui,nesta hora festiva de evocação secular, contribui para que a sua imagem se nos afigure mais perpétua e se avulte mais ainda, na perene veneração de nossa memória. Porque, meus senhores, parodiando Ruy Barbosa, Gama e Mello plantou a semente do carvalhopara o abrigo do futuro e não a semente da couve para o prato de amanhã!” Este o perfil de GAMA e MELLO, Patrono da Cadeira nº 17. IV - O POLÍGRAFO JOACIL DE BRITTO PEREIRA, ÚLTIMO OCUPANTE DA CADEIRA Nº 17 – O primeiro ocupante da Cadeira nº 17 foi o grande orador, advogado, político, jurista, escritor, tribuno e intelectual Antônio de Aguiar Botto de Menezes. Seu segundoocupante veio a ser o inolvidável professor, político, jurista, orador, tribuno, poeta,escritor, romancista — enfim, o polígrafo Joacil de Britto Pereira, nascido a 13 de fevereiro de 1923, em Caicó (RN), filho de Francisco Clementino

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Pereira e dona Isabelde Britto Pereira. Faleceu em 29 de agosto de 2012, aos 89 anos de idade, nesta Capital, deixando viúva dona Neli de Assunção Santiago Pereira, com quem teve oito filhos: Isabel Cristina, Eitel, Joacil, Augusto Sérgio, Amneres, Francisco José, Nely e Rodrigo. No início dos anos de 1930, seus genitores deixaram o Rio Grande do Norte e vieram para esta Capital, onde Joacil cursou o primário no Colégio “José Bonifácio” e iniciou o curso ginasial no LyceuParahybano, dando prosseguimento aos estudos em Garanhuns (PE). Retornando a João Pessoa, concluiu o secundário no mesmo LyceuParahybano e fundou com alguns colegas o Teatro dos Estudantes, destacando-se como diretor e ator na peça Se o Anacleto falasse e em várias outras, realizações teatrais da época. Bacharelou-se pela famosa Faculdade de Direito do Recife, em 1950. Por isso, sua turma chamou-se de Turma do Meio do Século. E ele, Joacil, foi escolhido oradoroficial dos concluintes. Também por seus méritos próprios, viu-se contemplado com uma viagem por cinco países da Europa. Especialista em Direito Público, Direito Constitucional, Direito Eleitoral, Direito Administrativo, Direito Fiscal, Direito Financeiro, Direito Processual Civil, Direito Processual Penal e Direito Penal, neste último fazia o público delirar, como eloquente tribuno que era, na esfera criminal do Tribunal do Júri Popular. Exerceu muitas funções na área política de sua atuação, com destacada sabedoria, honradez, caráter e probidadeadministrativa, ocupando muitos cargos no Governo do Estado, dos quais podem ser citados, apenas para exemplificar: Secretário do Conselho Penitenciário, Redator de Anais e Debates da Assembléia Legislativa, Secretário de Governo e Chefe da Casa Civil no Governo Flavio Ribeiro Coutinho, Secretário do Interior e Justiça etc. Foi ainda Juiz do Tribunal de Justiça Desportiva da Paraíba; professor-fundador da Escola de Engenharia da Paraíba, tendo lecionado Ciência das Finanças; mas igualmente ensinou na Faculdade de Ciências Econômicas e na Faculdade de Direito da UniversidadeFederal da Paraíba. Ingressou na política como Deputado Estadual, mandato que exerceu por duas legislaturas, pela antiga UDN. Em 1979, elegeu-se Deputado Federal pela ARENA,sendo reeleito para mais um mandato, de 1983 a 1986, integrando a bancada do PDS e a Comissão Interpartidária da Constituinte, onde ocupou o cargo de Vice-Presidente, de 1985 a 1986.

Na Câmara dos Deputados, era respeitado por seus eloquentes, sábios e seguros pronunciamentos, sempre em defesa da democracia, da liberdade e dos valores democráticos no Estado de Direito. Afastado da política, retornou ao magistério, aposentando-se nesta função como renomado professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Paraíba. Como historiador de muitos méritos, era membro efetivo do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano (IHGP), instituição que presidiu por dois mandatos consecutivos,onde ocupou a Cadeira nº 24. Foi igualmente membro do Instituto Paraibano de Genealogia e Heráldica (IPGH), e, membro da Academia de Letras e Artes do Nordeste Brasileiro (Núcleo da Paraíba), onde ocupava a Cadeira nº 01. Tomou posse na Cadeira nº 17 da Academia Paraibana de Letras em 15 de dezembro de 1972, quando foi saudado pelo acadêmico Juarez da Gama Batista. Exerceu a presidência da Casa de Coriolano de Medeiros por dois mandatos de três anos. Na presidência desta Casa, obteve recursos para sua completa restauração e para dotar o auditório de um serviço de climatização com ar condicionado. Mas da mesmaforma restaurou e aumentou a acervo da Biblioteca “Álvaro Pereira de Carvalho”, entre outras realizações de sua brilhante gestão. Tornou-se detentor do Título de Cidadão de Bayeux, Alagoinha, João Pessoa, Teixeira e Guarabira. Viu-se agraciado com medalhas, diplomas e homenagens, por diversas associações religiosas e culturais. Aliás, o Dr. Joacil de Britto foi pródigo em receber as mais diversas honrarias, dentre as quais se destacam: a Legião do Mérito “Presidente Antônio Carlos”, no Grau de Grande Oficial, oficializado pelo Ministério da Educação e Cultura; e a comenda de Grande Oficial da Ordem do Ipiranga, que lhe foi concedida em dezembro de 1981. Além do mais, participou de diversos Congressos Internacionaisde Direito, especialmente no México e na Inglaterra. Na Literatura, Joacil deixou bibliografia invejável: poesias, romances, discursos, orações, peças de teatro e uma admirável trilogia autobiográfica. É também autorda letra do Hino Oficial do IHGP, com música do também saudoso historiador Domingos de Azevedo Ribeiro. O último necrológio que ouvi, pronunciado por ele, deu-se no velório da acadêmica precocemente falecida, a inesquecível Mariana Soares. Joacil, como ninguém, sabia bem usar as palavras; e as utilizava nobremente; tal sua afinidade com o verná-


culo, que parecia brincar com os vocábulos, com o timbre de voz, com a entonação, com seu ímpeto seguro ao empregar as palavras. Naquela ocasião, em que Mariana recebia a última homenagem, o Dr. Joacil invocava em improviso — para lamentarem o profundo pesar pela morte da colega — até mesmo as célebres carpideiras italianas, as quais, no entanto, ali se encontrando, haveriam de verter lágrimas verdadeiras, fugindo da rotina do choro fúnebre mercenário, face à tragédia ocorrida. Guardamos todos, com muita emoção, todo o decorrer da oração pronunciada por Joacil, naqueles momentos da homenagem fúnebre a Mariana, em particular quando ele comparava o sucesso da cronista e imortal ao voo do condor. E, de tão eloquente, a voz do Dr. Joacil, agora calada para sempre, ainda ressoa em nossos tímpanos e espírito. Nas comemorações dos 80 anos de Joacil de Britto Pereira, recebera ele significativa homenagem dos imortais integrantes deste sodalício, que ele de fato amava. A grande escritora e crítica literária Ângela Bezerra de Castro, em tom poético, disse com muita propriedade: “Joacil é, a um só tempo, mar agitado e lago sereno. Tempestade e calmaria. Vitalidade movida à paixão que se afirma em extremos paradoxais.” Já o cronista e escritor Gonzaga Rodrigues afirmou, de Joacil: “Ele entrou furioso, foi direto com a mão na abertura do comandante da Polícia, que fora dar força à suspensão dos atos, e chamou-lhe de traidor. Foi uma coisa horrível, aqueles galões trêmulos e mais que esfarrapados, desfigurados por um rosto de olhar e de palavras.” Adylla Rocha Rabello pronunciou sobre ele estas palavras: “Joacil de Britto Pereira, uma personalidade multifacetada que, na passagem de seus oitenta anos, pode ser vistocomo cidadão, líder político, advogado, acadêmico, historiador e ficcionista.” José Loureiro Lopes acrescentou: “Impossível condensar, em texto breve, a grandeza do político Joacil de Britto Pereira. Ressalte-se, acima de tudo, que foi sempre correto, nessa trajetória difícil e sinuosa.” Já o historiador Humberto Cavalcanti de Mello sustentou: “Joacil não faz obras voltadas exclusivamente para a História. Contudo, faz História, inicialmente, através de seus trabalhos biográficos.” O saudoso acadêmico Amaury Vasconcelos, disse: “No exercício da profissão, por mais de 50 anos, agiu sempre com honestidade, oferecendo sua oratória e sua pena, contundentes, admirando a todos, mormente às togas de nossos juízes e tribunais.” Quando lhe tocou a vez de agradecer a

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essas homenagens, Joacil relembrou as comemorações dos 86 anos de José Américo de Almeida, idade, em que lançouo livro de poemas intitulado Quarto minguante, e citou trecho do escritor Austregésilo de Athayde, da Academia Brasileira de Letras, onde era confrade de José Américo, pelo próprio Austregésilo cognominado de “Homem Crescente”, em artigo no Jornal do Comércio do Rio de Janeiro, em 3 de junho de 1975, o qual serviu de prefácio à primeira edição da obra poética americista: “Aprendam os moços, com ele, que não há idade que justifique o desencanto e a estagnação. Enquanto houver um sopro, ele será aproveitado para alimentar o sonho.” Dr. Joacil, se vivo fosse, na Quarta-Feira de Cinzas, transcurso dia 13, teria completado exatos 90 anos de idade. Sua memória todos nós desejamos que se perpetue para a honra da cultura nordestina. Este o perfil do último ocupante da Cadeira nº 17. Joacil de Britto Pereira - O Senhor de muitas tribunas. V - O DIREITO NA LITERATURA - No ramo das Ciências Humanas, compartilhado por duas prestigiadas áreas do Conhecimento que, mais do que nunca, abraço nesta Academia a partir desta honrosaposse, não poderia desprezar a relação das grandes Obras literárias que tratam de temas relacionados ao Direito e à Justiça. Assim como a Literatura, o Direito engloba uma perspectiva ligada à hermenêutica — ou seja, a arte de sua própria interpretação, na qual se analisa a qualidade literária do Direito, mas, principalmente, o exame de textos jurídicos a partir de análises literárias. É esta a própria aplicação dos métodos de análise da Crítica Literária às decisões judiciais e às petições dos advogados. E aí, impõe-se distinguir entre O Direito da Literatura” (que investiga os direitos autorais, a propriedade intelectual, o copyright e os crimes contra a propriedade intelectual, literária etc.); e, de outro lado, O Direito na Literatura”(que estuda as questões da experiência jurídica que vêm a ser descritas nas obras literárias). E devo registrar, ilustres pares acadêmicos, minhas senhoras e meus senhores, que são muito mais estreitos do que se supõe comumente os vínculos estabelecidos entre o Direito e a Literatura. Eventos tão humanos, embora certamente não elogiáveis, como o incesto, o estupro e o próprio contrato social estariam bem localizados desde que surgiu o mais editado de todos os livros, a Bíblia. O livro sagrado abriga ainda, só para citarmais alguns exemplos, o homicídio praticado por

Caim contra Abel, por inveja; o homicídio de João Batista, por degolação, de ordem de Herodes; o genocídio deElias contra os 450 falsos profetas do deus Baal; e a própria condenação de Jesus à morte na cruz, prolatada pelo romano Pôncio Pilatos, ao lavar as mãos e entregá-loaos judeus para a execução da sentença. Dos grandes oradores gregos e romanos, diversos institutos se fizeram de Literatura em lei, ou vice-versa. Enquanto jurista, testemunho quantas de nossas regras decorrem das gloriosas histórias e costumes perpetuados por estas duas grandes civilizações, a grega e a romana. Há ainda que se destacar, desde o século XV, os crimes e sua classificação na Divina Comédia de Dante Alighieri; em O mercador de Veneza, de Shakespeare, peçacujo auge ocorre no tribunal do Duque dessa antiga cidade-estado; Shylock recusa a oferta de seis mil ducados, feita por Bassânio (o dobro do originalmente emprestado)e exige sua libra de carne de Antônio, com o dramaturgo inglês apresentando, assim, diferentes possibilidades de interpretação da lei e dos contratos. Já no século XIX, FiódorDostoiévski traz, em Crime e castigo, um romance que aprofunda o estudo da culpa. Nele, a polícia termina por prender um inocente que se considerou culpado devido à forte pressão que sofria. Entretanto, o personagem Raskólnikov por fim é preso; mas, ante sua confissão, arrependimento e falta de antecedentes criminais, sua pena acaba por ser reduzida aoito anos de reclusão numa cadeia da Sibéria. Não menos conhecido, o personagem central de Dom Quixote — declarado arquétipo de obras do também imortal Ariano Suassuna, desta Academia — clama por Justiça e equidade, ao idealizar um conceito peculiar do que é certo e devido a cada um, em meio a suas aventuras, nessa obra de Cervantes, escritor considerado o expoente máximo da literatura espanhola. Nesta linha de ideias, é impossível, por fim, não relembrar O processo, famoso romance do escritor tcheco Franz Kafka, que conta a história de um homem, Josef K., envolvido num absurdo processo judicial sem que lhe seja dado qualquer tipo de explicação; simplesmente é preso e submetido a longo e incompreensível processo, por um crime cuja natureza nunca é revelada — roteiro inquietante, que conduz o leitor a sérias reflexões sobre a angústia, a frustração e a impotência do indivíduo numa sociedade opressora e burocratizada. Como ser preso por homens de uma Justiça que não é a Jus-


tiça convencional, mesmo havendo juízes e tribunais? É essa, certamente, uma alegoria em torno dos julgamentos a que nos submetemos diariamente, sem ao menos saber o real motivo que nos move. Kafka faz, deste modo, uma profunda crítica à manipulação das instituições administrativas do Poder e às sociedades contemporâneas. No Brasil, o brilhante Machado de Assis traz, em Dom Casmurro, a questão do adultério, da verdade e da traição. Interessante, ainda, é o caso do longo e conhecidoconto machadiano “O alienista”, que aborda a loucura e a maneira como se comporta a Lei nesses casos. Já na ótica proposta por Saramago — de um ponto de vista mais antropológico que jurídico, numa obra-prima da língua portuguesa, seu Ensaio sobre a cegueira —, é de loucura que surge um mundo sem ordem, submetido apenas ao comando do imoral e domais forte. Há casos judiciais que entram na Literatura até mesmo por erro judiciário, a exemplo do caso clássico dos irmãos Naves, em Minas Gerais. Esses manos, acusados de homicídio por um crime que jamais aconteceu, foram condenados à prisão; depois de muitos anos,a pretensa vítima fatal apareceu, mas, aí, já se causara enorme sofrimento aos acusados: um deles morrera na prisão, sendo o Estado condenado a pagar vultosa indenização a seus familiares. Outro caso que entrou para a Literatura foi o do comunista Luiz Carlos Prestes, preso no período da Ditadura Varguista e que nenhum advogado quis defender, tendo a Ordem dos Advogados nomeado como seu defensor o grande jurista católico Sobral Pinto. Sobral, após apelar sem êxito para todas as leis e juízes penais em favor do prisioneiro, impetrou habeas corpus no Supremo Tribunal Federal, invocando em prol do pacientea Lei de Proteção aos Animais... E o que dizer do caso dos estudantes Sady e Ágaba (ele do LyceuParahybano, ela da Escola Normal da capital da Paraíba)? Proibidos de se encontrarem na Praça João Pessoa, por desobediência, Sady foi assassinado por um guarda municipal; e, Ágaba, ante tanto sofrimento a marcar seu amor juvenil, não suportou mais viver sem o amado e cometeu suicídio. Este caso abalou a sociedade paraibana de seu tempo. Não são poucos, portanto, os casos nos quais uma ciência enriquece a outra, trazendo do Direito para a Literatura, a transcrição e riqueza de uma humanidade em constante ebulição. E, dentro de tal processo, de resultados múltiplos, em ambas as áreas, a do Direito e a da Literatura, só me sinto ainda

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mais regozijado e à vontade ao ascender a uma Estala desta honorável Academia. VI - A FILOSOFIA NO DIREITO - O jurista e filósofo austríaco Hans Kelsen exclui a metafísica para imaginar um cenário ideal sobre a verdadeira finalidade da justiça. Segundo ele, a justiça dos Estados contemporâneos é uma justiça realizada sob o Direito, para na sequência concluir que um fato pode ser considerado correto na Lei, embora nos pareça injusto, e vice-versa. É bem verdade que estas consideraçõestodas sobre a Lei e sobre o ordenamento jurídico limitam-se ao plano normativo — e isto não leva em conta a realidade social. Pergunta-se “Como poderia o Direito regular a vida das pessoas, se não leva em conta o mundo real, como ele é na verdade?”. É exatamente daí que surge a necessidade que temos, nós, operadores do Direito e escritores, de nos debruçar sobre as questões maiores, a fim de transcender da Filosofia os princípios que irão servir como ferramentas concretas de justiça e não apenas como marcos da legalidade, sendo profunda, portanto, a relação entre tais ciências. Porque, meus confrades acadêmicos, minhas senhoras e meus senhores, não se pode perder de vista a importância da crítica e a proposta de reconstrução do Direito Positivo, de Jürgen Habermas, renomado filósofo e sociólogo alemão. Habermas destaca a necessidadede uma equidade maior, que traduza uma melhor correspondência entre a Lei e o fato — como diversas vezes tive de raciocinar, enquanto magistrado consciente e preocupado com tais questões filosóficas. Trazendo, mais uma vez, a lição do austríaco Hans Kelsen, autor de diversas e importantes obras, temos a clássica lição da pirâmide, representando a hierarquiadas normas jurídicas. No topo, viriam as normas constitucionais; logo abaixo as leis; e, em seguida, as demais normas. Dentro do sistema normativo que nos interessa,deparamo-nos com a positivação das normas jurídicas, ou seja, a lei. Para o professor Flóscolo da Nóbrega, digníssimo acadêmico que orgulhou e honrou esta Casa por muitos anos, ficou a clássica lição de lei enquanto norma escrita de Direito, aprovada pelo Poder Legislativo e sancionada pelo Poder Executivo. Mas, por diversas vezes, a mera aplicação da referida pirâmide normativa nunca foi suficiente para atender aos anseios de uma sociedade que, se por um lado, não conseguiria atingir o bem comum sem regras, por outro precisa de verdadeiros pensadores que tenham este discernimento na hora de sua aplicação. Na realidade,conflitos sociais

precisam de solução, ou melhor, devem ser evitados. Assim que, naturalmente, as normas de conduta surgiram e com elas seus sistemas normativos —todos inscritos na Literatura, nos costumes, na moral, na religião, na família, na própria Arte em geral, bem como na Educação e no Direito. Sendo a paz, segundo Kelsen, uma das finalidades do Direito, para evitar a violência, verificamos que, hoje em dia, isto só não basta. Precisamos considerar o mundo real e as formas de compensação para melhor distribuir renda com o objetivo de diminuir as desigualdades sociais e econômicas — estas, sim, verdadeiras formas de violência num plano mais sofisticado. Por fim, enquanto magistrado, escritor e um eterno aluno das Ciências Filosóficas, Jurídicas e Sociais, lanço, aqui, a todos nós, um desafio: “Como falar de Direito, cumprimento de Lei ou realização da Justiça, para quem apenas sobrevive?” VII - UMA HOMENAGEM A MAMANGUAPE E AO TRIBUNAL DE JUSTIÇA - Mamanguape tem três patronos e três fundadores, dos dez imortais que instituíram esta Academia no inesquecível dia 14 de setembro de 1941, sob o lema Decuset opus [”Estética e trabalho”], há 71 anos. Portanto, esta casa me é muito familiar, seja em suas raízes,seja em suas tradições. São patronos mamanguapenses o Padre Francisco João de Azevedo Júnior, da Cadeira nº 27; o Presidente João Pereira de Castro Pinto, da Cadeira nº 31; e o poeta Carlos Augusto Furtado de Mendonça Dias Fernandes, da Cadeira nº 32. Os fundadores, também de Mamanguape, são o poeta Luiz Teixeira de Menezes Pinto, da Cadeira nº 12; Presidente Álvaro Pereira de Carvalho, da Cadeira nº 23;e o por todos os motivos célebre Cônego Mathias da Silva Freire, da Cadeira nº 26. Há que citar, também, os Desembargadores e Juízes que honraram e honram esta Casa do Pensamento, a exemplo dos Desembargadores José Flóscolo da Nóbrega, da Cadeira nº 01; Maurício de Medeiros Furtado, da Cadeira nº 36; Aurélio Moreno de Albuquerque, da Cadeira nº 23; Osias Nacre Gomes, da Cadeira nº 05; e Mário Moacyr Porto, da Cadeira nº 04. Quanto aos Juízes de Direito, são eles: Santos Estanislau Pessoa de Vasconcelos, patrono da Cadeira nº 30; e humildemente grandioso, o historiador e Juiz de Direito aposentado Humberto Cavalcanti de Mello, atual ocupante da Cadeira nº 34. Não poderia esquecer outros amigos que aqui têm assento, como o Desembargador Federal Paulo de Tasso Benevides Gadelha,


ocupante da Cadeira nº 23; e meucolega de turma na Faculdade de Direito da Paraíba, o Juiz Federal Alexandre Costa de Luna Freire, titular da Cadeira nº 16. VIII - DUAS DEDICATÓRIAS - Dedico, portanto, o maior troféu que um escritor paraibano pode receber na vida (o ingresso na Academia Paraibana de Letras) a uma cidade florescente e a um Tribunal honrado: a Mamanguape, minha terra; e ao Tribunal de Justiça do Estado da Paraíba, o meu Tribunal. Por isso, ofereço-lhes um poema de um dos maiores poetas de nossas plagas, também jurista, formado pela Faculdade de Direito do Recife, o Patrono da Cátedra nº 32, Carlos Dias Fernandes, ora ocupada pelo imortal Wills Leal. Carlos Dias Fernandes, autor de Fretana, de A renegada, da Torre de Babel, de Os cangaceiros, de Sólus, para citar apenas algumas de suas obras, que são muitas. Em seu leito de dor e de morte, no Hospital da Cruz Vermelha, do Rio de Janeiro, sofrendo de grave doença na próstata, que já afetava a sua bexiga, Carlos homenageia sua companheira de todos os momentos, escrevendo um belo poema para a amada, dando à criação poética o pomposo título latino de “Laus vita” (“Louvor à vida”). Citarei apenas duas estrofes: “Eis-me liberto, querida, Dos paroxismos da dor; Aos poucos, volta-me a vida, Deixou-me livre o torpor. Só venci a áspera lida, Por obra do teu amor.” “Que horas amarguradas, Desalentado vivi!... Que noites, que madrugadas De desespero curti, De pálpebras orvalhadas, Menos por mim que por ti.”

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O mesmo Carlos Dias Fernandes — decantando a pujança de Mamanguape, sua terra, por ocasião do declínio econômico a partir do ano de 1900, após o apogeu do século XIX — dedicou-lhe estes versos, em Fretana, seu maior livro de poesias, escrito em 1936, numa demonstração de seu grande amor telúrico pelo berço em que abriu os olhos pela primeira vez. Agora, cito apenas uma estrofe, mas, em se tratando de Carlos Dias Fernandes, isto é suficiente: “Oh, Mamanguape, Arcádia decaída. Meu ruinoso, vetusto e pátrio ninho, Estância de saudade estremecida, Acena-me de longe o teu caminho, Sob os teus gulandis, dá-me guarida, Minha fonte cristália, oh! Sertãozinho.” IX - OS AGRADECIMENTOS - Em primeiro lugar, meu maior agradecimento: a Deus e à Virgem Maria do Alto do Monte Carmelo, pelo dom da vida, inteligência e saúde, que me proporcionam o pensar, o compreender, o caminhar... A meus saudosos genitores João da Matta e Doralice Cavalcanti de Albuquerque, que estão com Deus e me protegem da eternidade. O agradecimento a meus familiares, na pessoa de minha querida e amada esposa Íris Helena; a meus estimados filhos, Marcos Filho, Raphael e Filipe; a minhas estimadas noras Renata e Bárbara; e a minhas lindas netinhas Maria Luísa, com três anos e nove meses; e Isis, com um ano e seis meses de idade. Um agradecimento especial a todos os imortais, meus confrades e minhas confreiras, que fazem a Casa de Coriolano de Medeiros, e que compareceram à minha eleição, no dia 11 de janeiro de 2013, e que são:

Alexandre Costa de Luna Freire, Ângela Bezerra de Castro, Antônio de Souza Sobrinho, Antônio Juarez Farias, Astênio Cesar Fernandes, Carlos Antônio Aranha de Macedo, Carlos Augusto Romero, Damião Ramos Cavalcanti, Dorgival Terceiro Neto, Eilzo Nogueira Matos, Evaldo Gonçalves de Queiroz, Flávio Sátyro Fernandes, Francisco de Sales Gaudêncio, Guilherme Gomesda Silveira d’Ávila Lins, Hildeberto Barbosa Filho, Humberto Cavalcanti de Mello, Jomar de Morais Souto, José Jackson Carneiro de Carvalho, José Loureiro Lopes, José Nêumanne Pinto, José Octávio de Arruda Mello, Luiz Gonzaga Rodrigues, Luiz Nunes Alves, Manuel Batista de Medeiros, Monsenhor Marcos Augusto Trindade, Maria das Mercedes Ribeiro Pessoa Cavalcanti, Osvaldo Trigueiro do Valle, Paulo de TassoBenevides Gadelha, Sérgio Martinho Aquino de Castro Pinto, Wellington Hermes Vasconcelos de Aguiar e Wills Leal, pela votação expressiva que me outorgaram, numa das mais consagradoras votações já conferidas, em todos os tempos, a um postulante de estala nesta Academia, concedendo-me a maior legitimidade para entrar nosilogeu em que agora ingresso. Aos presentes, os melhores agradecimentos pelo prestígio de seu comparecimento, mas com escusas por esta longa oração — no entanto necessária, por exigência regimental, para assinalar um momento ímpar na vida do novel acadêmico. Muito Obrigado! — é o que digo a todos.

(*) Discurso de posse na Academia Paraibana de Letras, ao assumir a cadeira nº 17, no dia 28 de fevereiro de 2013.


VIDA ACADÊMICA

ACADEMIA DE LUTO Equipe GENIUS

Na noite de dez de março faleceu, no Hospital Santa Joana, no Recife, o Acadêmico Paulo de Tasso Benevides Gadelha, 70, ocupante da Cadeira nº 23, da Academia Paraibana de Letras, vítima de câncer de pulmão, contra o qual lutava há cinco anos. O fato deixou enlutada não só a sua família, mas também os meios intelectuais da Paraíba, o Poder Judiciário Federal, do qual fazia parte, como Desembargador Federal, membro do Tribunal Regional Federalda 5ª Região, além de uma grande legião de amigos que cultivou ao longo de sua existência. Durante todo o dia seguinte, 11, o seu corpo foi velado no saguão do Tribunal Regional Federal, no Recife, com o comparecimento de familiares, colegas de jurisdição, servidores do judiciário, além de amigos, que, contristados, foram apresentarà família

suas manifestações de pesar. O sepultamento de Paulo Gadelha ocorreu às dezesseis horas, no Parque Morada da Paz, no Município de Paulista, região metropolitana do Recife, com a presença de amigos, colegas e autoridades, além de paraibanos que se deslocaram até a capital pernambucana. Escritor, historiador, cientista político, jurista, cronista, professor, Paulo Gadelha trouxe a lume farta produção literária e técnico-jurídica, além de discursos, compreendendo, entre outros, os livros História Política de Sousa (1945-2004), Além da censura (discursos), Da imunidade parlamentar, Esvaziamento econômico do Nordeste, Do voto distrital, Discursos na Assembleia Legislativa e vários outros. Deixou, inédita, uma obra sobre a histó-

ria política da Paraíba, a partir da redemocratização do Brasil, em 1945, e estendendo-se até os dias atuais. A seu pedido, o livro tem prefácio do Acadêmico Flávio Sátiro Fernandes. Vários depoimentos foram colhidos pela imprensa local e pela rede social facebooksobre a personalidade e a atividade profissional do extinto, quer como advogado, político e magistrado, ressaltando a sua integridade de caráter, a sua competência como profissional, quer na advocacia, quer na judicatura, e, sobretudo, a sua capacidade de fazer amigos e preservá-los ao longo da vida. A revista GENIUS, associando-se à dor da família e dos amigos de Paulo Gadelha, além deste registro, transcreve, em seu inteiro teor, a manifestação do Acadêmico Eilzo Matos, seu amigo e conterrâneo sousense.

O SOUSENSE PAULO GADELHA - EXÉQUIAS Eilzo Nogueira Matos

A convivência aproximada, firmada numa amizade que perdurou até o presente, num relacionamento de conterrâneos da mesma geração, registra a minha presença e a de Paulo Gadelha na vida sousense: ainda crianças, com pequena diferença de idade, correndo as mesmas praças e ruas; na adolencência, frequentando festas e reuniões; adultos, mergulhados nas águas turbulentas e agitadas da política de nossa terra. E considero, sem falsa modéstia, que marcamos a nossa presença ética e realizadora de ações que dignificaram os mandatos parlamentares e o exercício de secretarias de Estado, que nos couberam. Muitas são as lembranças, agradáveis e honrosas para mim, os registros que nos ligaram na vida pública. Eu, cedo me isolei extramuros, Paulo prosseguiu e destacou-se

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mais no exercício de cargos relevantes: foi diretor do Banco do Nordeste, Desembargador Federal, escolhido para uma cadeira entre os imortais da Academia Paraibana de Letras. Teve o meu voto para a sua eleição. Na Paraíba, no Brasil e em outros países, juntos participamos de conclaves, um deles na companhia do esclarecido deputado Manoel Alceu Gaudêncio, representando a Assembléia Legislativa, na discussão de teses que tratavam de questões referentes à cidadania, aos direitos humanos, ao progresso e ao desenvolvimento econômico e cultural. Mas o que marcava mesmo a sua presença entre nós, era a vocação intelectual, a sua assiduidade na imprensa escrita, o culto à ciência do Direito, ele um constitucionalista de renome. Dele recebi o seu livro “A Rosa e a Fran-

ça”, com uma intimação, segundo suas próprias palavras de oferecimento, para apresentá-lo aos nossos conterrâneos, o que fiz na solenidade do seu lançamento no auditório da Faculdade de Direito de Sousa, de que transcrevo alguns parágrafos. Desejo destacar em Paulo Gadelha o caráter do político competente, do intelectual “engajado” no melhor estilo francês. Essas qualidades, muitas vezes, passam despercebidas da maioria das pessoas. E em cidades como a nossa, a questão genealógica sobreleva sempre a ideológica. Mas está feito o registro. O advogado Paulo Gadelha pertence àquela categoria de bacharéis beletristas, que a Faculdade de Direito do Recife legou também aos paraibanos e espalhou na vida brasileira. Políticos, juristas, poetas, romancistas,


historiadores, críticos de artes, escritores enfim, que o espírito da velha escola, vivo, em todas as épocas, fez povoar nas páginas da história literária e das letras jurídicas do país. Os compromissos assumidos ao longo de sua vida, revelados nos textos do seu livro e na sua ação política, dão continuidade a uma tradição pernambucana, desde 1817 e 1824: o inconformismo em face do tratamento discriminatório dos governos da União para com o Nordeste, ainda hoje uma controvérsia crucial para a unidade da Nação. Esta marca de patriotismo e bravura foi honrada na Paraíba em Brejo de Areia, no Areópago de Itambé, na Fazenda Acauã, em Sousa, com Félix Antônio e os padres Arruda Câmara, Francisco Antônio e José Antônio Correia de Sá, Narciso da Costa Gadelha, Patrício José de Almeida, Luiz José Benevides e outros heróis da nossa história. Refém da tradição filosófico-sentimental dos fatos pernambucanos, Paulo ressurge no cenário público, desta vez no ambiente intelectual. Falo de um ambiente onde também vivi, de fontes onde também bebi os mesmos ensinamentos, preparando-me para a vida e as responsabilidades profissionais. De lá vieram figuras inconfundíveis como Augusto dos Anjos, José Américo de Almeida, José Lins do Rego, Epitácio Pessoa, Ernani Sátiro, João Agripino, Salviano Leite, Ivan Bichara, entre os paraibanos ilustres, egressos da vetusta Faculdade, oferecendo uma

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parcela significativa do ideário que moldou o perfil do estado, da sociedade brasileira, desde Abreu e Lima a Tobias Barreto, Clóvis Bevilácqua, Pinto Ferreira. Em bancadas opostas, convivemos eu e Paulo Gadelha uma legislatura inteira na Assembléia Legislativa da Paraíba. Daí, poder oferecer um testemunho vivo e insuspeito sobre sua conduta de homem público. Na agitação da vida política, nos momentos difíceis que marcaram a pressão da sociedade civil sobre os governos militares, reclamando democracia, contestando o arbítrio, a sua ação parlamentar crescia na tribuna pela crítica dos fatos, na defesa do Estado de Direito. A social democracia, de que é moda falar-se hoje no Brasil, representava naqueles dias de repressão, uma idéia perigosa e contrária à concepção ditatorial dos governos de então, apoiados na famigerada Lei de Segurança Nacional. Os Anais da Assembléia Legislativa guardam as corajosas intervenções do deputado Paulo Gadelha diante de um plenário perplexo. Assim, igualmente, a sua presença na imprensa, cujos trabalhos compõem o seu livro “A Rosa e a França”. Revelam o pensador que acredita na idéia do progresso humano, na capacidade de autoaperfeiçoamento da humanidade. A filosofia, o direito, a economia, a literatura, as artes plásticas, são temas abordados com observações agudas e crítica percuciente, transformadas em instrumentos de análises dos fatos sociais.

Uma consciência ligada ao racionalismo renascentista, ao Iluminismo. A forma breve e sucinta manifesta idéias arraigadas, fruto da especulação que alia a ação ao pensamento, como nos breves ensaios do longevo Bertrand Russel. Sinto-me por esta razão, feliz e recompensado com esta amizade. Vejo que Paulo não renegou as suas idéias, pelo contrário, nelas ainda acreditava, divulgando-as em livro. A vida nos entregou aos nossos destinos pessoais. Distanciados pela ocupação que cada um abraçou, vivemos nossas preocupações, cumprimos nossas tarefas. Há quem diga, como o ensaísta norte-americano Francis Fukuyama, com quem não concordo, que chegamos ao fim da história, que a humanidade não se move mais no terreno da utopia, pulverizadas todas as ideologias. A falta de idéias, como acentua o ianque, atrai o homem para causas pequenas.Peço desculpas pelas digressões, a forma tumultuada das minhas palavras, neste momento de pesar. Meu caro Paulo, como você, em “A Rosa e a França”, repudio o trágico pessimismo, o desespero, os desvios totalitários nietzcheanos. O mundo contemporâneo, onde tudo que é sólido desmancha no ar, como acredita Marshall Bermam, mais do que nunca precisa do estoicismo-epicurismo que assegurava ser a vida o maior bem, em face da morte e do efêmero. É a minha crença. Você continua vivo entre nós com a obra de ação e pensamento que realizou e deixou como legenda.


VIDA ACADÊMICA

A IMORTALIDADE ACADÊMICA Damião Ramos Cavalcanti

A imortalidade que a Academia nos concede decorre, antes de tudo, do compromisso dos empossados invocarem os seus antecessores. É também assim que eles renascem, tornando-se imortais, paradoxalmente, à medida que passam os centenários da sua morte, o que também poderá ser tempos somados ao esquecimento, se obras e valores da pessoa imortalizada não motivarem citações e alimentarem essas lembranças. Invocações ou lembranças, por muitos e durante o tempo em que deveriam fazê-las, raras, daí caras, mas necessárias à desejada imortalidade. Mas que imortalidade é esta que só cresce e tem vida, talvez, depois da morte? Neste sentido, a inveja dos homens entre si só se atenua quando os concorrentes falecem e assim consentem-se reconhecimentos. Porém, se assim é a imortalidade “post mortem”, ela ainda priva-nos da liberdade que buscamos durante a vida e que só pareceria plena depois da morte. Trata-se da liberdade de poder mudar coisas e obras que realizamos em vida, a conduta cidadã e ética, enfim o que nós fomos. Jean-Paul Sartre, na sua obra “HuisClos” (À Porta Fechada), reflete sobre esta liberdade: “Noussommestoutsvivantsetq u’ilssontmorts... qui ne cherchentmêmepas à changer (Nós somos todos vivos... mas, aqueles que morreram nada procurem mudar”. O que para mim significa ao morto, mesmo na imortalidade, perder a liberdade de desejar mudanças no que ele foi, no que falou, no que escreveu e nas consequências das suas ações.

Neste raciocínio existencialista, o imortal seria eternamente vítima dos julgamentos e juízos que ocorrerão sobre ele e sobre suas obras, sem chance de defesa, de melhorá-las ou de, pelo menos, modificá-las. Conclui-se que tudo o que o candidato à imortalidade “post mortem” tem a fazer só poderá fazê-lo tão somente em vida. Se assim é o tempo desta imortalidade, privativa da liberdade de mudanças, o imortal seria, na peça teatral, nada mais nada menos, prisioneiro da escuridão, sem luz e “à porta fechada”, “limitados num quarto sem porta e sem janela”. É mais agradável se alegrar com a ideia de que, depois da vida, não se necessite mais de espaço e de tempo e que essas metáforas são apenas literárias ou comparações para se compreender melhor a mortalidade ou, quiçá, a pretensa imortalidade. Talvez, aos desapegados de vaidades, imortais em vida, o reconforto é escutar Rainer Maria Rilke: “O tempo não é uma medida. Um ano não conta, dez anos não representam nada. Ser artista não significa contar, mas crescer como a árvore que não apressa a sua seiva e resiste, serena, aos grandes ventos da primavera, sem temer que o verão possa não vir. O verão há de vir. Mas só virá para aqueles que sabem esperar, tão sossegados como se tivessem à frente a eternidade.” Ser chamado de imortal é propício à vaidade; mas uma vaidade pertinente à obra que torna seu autor imortal, cuja exuberância transborda e passa pelo tempo, trazen-

do razões para história que reúne e exalta ilustres imortais, na história das letras, das artes, da ciência e dos valores da cultura. Ser imortal em vida não é uma herança, mas um legado que obriga o imortal à missão de levar à posteridade e, de imediato, às novas gerações valores culturais e potencialmente suas sementes como endoculturação da tradição, da memória e da cultura recriada. Em nome de todos que já se foram, outorga-se o título “ad imortalitatem”. Contudo, reitero que o destino imortal do homem é realmente um tema paradoxal, mas atraente e desejado. É evidente que não há mais importante para o homem que sua própria vida. Mas essa vida se torna um enigma, quando seu destino pode, a qualquer momento, ser ceifado, interrompido. Até parece que a ação humana seria perdulária. Eis um problema a resolver que só alcança solução se acreditarmos nas amplas possibilidades de sobreviver à morte em várias maneiras transcendentais de imortalidade, especialmente em troca de não se cultivar o absurdo niilista da existência humana. Daí nada é fortuito quando se deseja alcançar a imortalidade. Mesmo que se interrogue sobre a morte, mas que se sobreviva a ela. Quanto à imortalidade acadêmica, pergunte-se: Do que vale viver sem pensar? E se pensamos e escrevemos esses pensamentos passam além da vida, além da morte, para um estágio da memória coletiva, a qual nos somamos como matéria pensante etérea, eterna e imortal.

LIÇÕES DE DIREITO ADMINISTRATIVO - Editora Fórum Professor aposentado da Universidade Federal da Paraíba, o Conselheiro Flávio Sátiro Fernandes é autor de diversos livros e artigos divulgados em diferentes revistas especializadas do campo jurídico. Em linguagem simples, ele trata de temas de grande relevância e, às vezes, polêmicos, pela maneira como os aborda¸ não deixando de emitir suas opiniões e ideias que, em diversas ocasiões, se confrontam com o que pensam alguns doutrinadores. Tribunal de Contas, fiscalização municipal, responsabilidade dos Prefeitos, ação popular, controle social, improbidade administrativa, servidores públicos, prestação de contas, gastos com a manutenção e desenvolvimento do ensino, crimes licitatórios, concurso público, ouvidorias, controle externo, Câmara de Vereadores, responsabilidade fiscal, são questões que ele versa, ministrando a seus leitores proveitosas lições de Direito Administrativo, com incursões pelo Direito Constitucional e pelo Direito Financeiro. “Em direito – diz o Professor Flávio Sátiro Fernandes – vale muito a confrontação de ideias e o cotejo de opiniões que não devemos temer revelar, pois, ao expô-las nada mais estamos fazendo do que contribuir para o debate que enriquece a nossa ciência e contribui para o ideal maior de justiça”. E sobre as suas ideias, opiniões e sugestões, expostas neste livro, confessa: “Elas podem parecer ousadas, umas, e ingênuas, outras, mas, afinal de contas, de ousadias e ingenuidades faz-se o mundo...”

À VENDA NAS LIVRARIAS. EDITORA FÓRUM, BELO HORIZONTE.

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LITERATURA

AS PALAVRAS: UMA AUTOBIOGRAFIA ROMANCEADA José Jackson Carneiro de Carvalho

APRESENTAÇÃO DO AUTOR As palavras, quase unanimemente, é considerada a mais importante obra literária de Jean-Paul Sartre. Sem dúvida, foi a publicação dessa autobiografia romanceada o fator decisivo para que lhe fosse conferido o Prêmio Nobel de Literatura, por ele recusado por razões de natureza política. Durante sua longa carreira de escritor, o autor de A náusea sempre demonstrou um interesse todo especial pela biografia e pela autobiografia, como gênero literário. É sabido que dedicou grande parte de seu trabalho intelectual à redação de três grandes biografias: a de Flaubert, a de Baudelaire e a de Genet. A biografia de Flaubert, mesmo inconclusa, compreende um total de aproximadamente duas mil páginas. A tendência ou gosto pela biografia aparece igualmente na atividade literária de Roquentin, o personagem central de A náusea. E, como já visto, o perfil do narrador do romance possui traços muito assemelhados aos do autor. Embora, predominantemente romance, A náusea contém elementos autobiográficos bastante acentuados. As palavras é um deliberado projeto autobiográfico através do qual Sartre busca descrever sua infância, com ênfase na análise da consolidação de sua vocação de escritor e na influência que, nesta direção, teve a sua vida familiar. A análise é estendida à reflexão sobre a condição burguesa do ambiente onde nasceu e viveu. A preocupação central da narrativa é tentar descobrir a relação entre a história de vida do autor e a atividade intelectual do escritor, nos campos da filosofia, da literatura e do engajamento político. Inicialmente, deve-se fazer referência ao título do livro, As palavras. O objeto principal da obra, no fundo, é a história do domínio da linguagem (ler e escrever) por parte de uma criança chamada Jean-Paul Sartre, Poulou. Essa empreitada (aprender a ler e escrever) está na origem da construção da personalidade do autor: “Eu nasci com os atos de ler e escrever” (MO, p. 126). No início era o verbo, diz

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a Bíblia: como o mundo, segundo a religião, Sartre nasceu do verbo. A importância das palavras na construção do personagem Poulou foi por ele mesmo destacada: “Em certos momentos de minha vida, amava somente as palavras” (MO, p. 150). O primeiro capítulo do livro, Ler, compreende o conteúdo da página 11 à página 12. O segundo, Escrever, compreende a narrativa da página 113 a 265. Uma visão geral da obra é apresentada através da divisão do texto em sequências. Jean-Paul Sartre nasceu em Paris, em 21 de junho de 1905. Dez anos depois, ingressou no Liceu Henry IV, para cursar a sexta série. Pela primeira vez, um pouco afastado da família, excessivamente absorvente, começou a conviver normalmente com as crianças de sua idade e a ter os primeiros companheiros de infância. Seu pai, oficial da marinha, faleceu em setembro de 1906. Morto o pai, Sartre mudou-se, juntamente com a mãe, para a cidade de Mendon, onde passou a residir com os avós maternos. Cinco anos depois, retornou a Paris. Aposentado, seu avô fundou o Instituto de Línguas Estrangeiras, onde ministrava aulas de alemão. No período que antecedeu seu ingresso no Liceu, confinado em casa, Sartre, que era chamado, na intimidade, de Poulou, aprendeu a ler e a escrever. Em As palavras ele confessa que aprender a ler e a escrever foram os dois acontecimentos mais marcantes de sua infância e de sua vida. Ainda muito cedo, percebeu e incorporou ao próprio imaginário a convicção de que ser escritor era sua verdadeira vocação e que a escrita era o único instrumento de que dispunha para vencer a angústia da solidão e da morte. Em 1916, Anne Marie, a mãe de Sartre, contraiu segundas núpcias com um engenheiro e, por conta disso, mudaram-se todos para a cidade de La Rochelle. O casamento de Anne Marie representou a primeira grande ruptura na vida de Sartre: sua mãe deixou de lhe pertencer com exclusividade. Seu sofrimento aumentou ao ser obrigado a deixar o Liceu Henry IV, em Paris, por conta do deslocamento da

nova família para a cidade interiorana. Confessaria, depois, que os quatro anos passados no Liceu de La Rochelle foram os mais sofridos de sua vida. Em 1920, o jovem retornou ao Liceu Henry IV, em Paris. Depois de prestar o serviço militar, foi nomeado professor de Filosofia, na cidade de Havre, onde permaneceu até 1936. Em 1939, passou a ser professor do Liceu Louis-Pasteur, em Paris e, em seguida, incorporou-se ao exército, nos primeiros movimentos da Segunda Grande Guerra. Nos primeiros meses da guerra, foi preso e encarcerado no campo de Trèves, de onde fugiu um ano depois. Retornando às suas atividades intelectuais, fundou, com Merleau-Ponty, o grupo político de esquerda “Socialismo e Liberdade”. Em seguida, começou a colaborar com a revista LettresFrançaisese com o jornal Combat, então dirigido por Albert Camus. Sartre sempre demonstrou particular interesse em tirar o véu da própria face, voltar-se sobre si mesmo. Nas entrevistas concedidas a Jacques Chancel, para a produção do programa Radioscopie, em 1973; bem como em seu autorretrato publicado em Situations X, o romancista e filósofo sempre demonstrou um grande interesse autobiográfico. O depoimento prestado por Sartre a Simone de Beauvoir, publicado no seu livro Cartas a Castor, o romancista francês traça, com acuidade, os perfis de sua personalidade, como se vê no texto transcrito a seguir: Eu sou extremamente ambicioso [...]. A glória é sempre uma tentação para mim porque gostaria de estar acima das pessoas com quem convivo. Todavia, minha maior ambição é criar. Entretanto, o que acontece é que nunca estou plenamente satisfeito em relação àquilo que faço [...]. Mudo continuamente de estilo, sem jamais sentir-me completamente realizado. Sou estupidamente sentimental, covarde e sensível. Meu sentimentalismo é de tal ordem que chego às lágrimas com a maior facilidade, sem nenhuma razão especial (p. 9-10). A morte de meu pai, o segundo casamen-


to de minha mãe, os desentendimentos com meu padrasto, em boa hora, livraram-me da influência da família. Por sua vez, a hostilidade de meus colegas de escola, especialmente em La Rochelle, levou-me a voltar-me sobre mim mesmo, a isolar-me. Não consigo ser solidário com as pessoas, nem comigo mesmo (pp. 355-356). Em 1946, em entrevista ao semanário americano Haper’sBazaar, Simone de Beauvoir traça um retrato de Jean-Paul Sartre, do qual vale a pena citar alguns tópicos: Ele (Sartre) detesta o campo, a vida rural. Tem horror da vida agitada dos insetos e das plantas [...]. Somente na efervescência das cidades ele se sente à vontade, no coração de um universo artificial repleto de objetos artificiais produzidos pelo homem, na vida das cidades. Ferozmente decidido a ser um homem livre, Sartre mantém-se afastado de tudo o que possa representar uma obrigação, um peso ou que possa prendê-lo a um endereço. Nunca se casou, jamais adquiriu um bem, nunca possuiu uma casa, uma mesa de trabalho, um móvel, um carro, uma lembrança. Passou toda a vida adulta hóspede de um quarto de hotel. É capaz de se autocriticar com absoluta imparcialidade. Não expressava qualquer sentimento de inveja ou de arrependimento [...]. É importante destacar e transcrever também o diálogo entre Sartre e Simone de Beauvoir (Cfr. A cerimônia do adeus, p. 63), no qual ele fala sobre as motivações e as circunstâncias nas quais escreveu As palavras: S. de B.: Como ocorreu, pela primeira vez, a ideia de escrever As palavras e por que essa ideia passou tanto tempo apenas como ideia, sem ser concretizada? J-P. S: Entre os 17 e os 20 anos de idade, já alimentava o desejo de escrever sobre a minha própria vida, quando já me encontrasse na maturidade, aos 50 anos, por exemplo. S. de B.: Por que exatamente aos 54 anos puseste em prática esse projeto? J-P. S.: Porque aos 54 anos aconteceu uma mudança radical em minha vida. S. de B.: Sim, isto eu sei, muito bem: foi a mudança relativa à tua “politização” ou engajamento político. Mas por que essa mudança te levou a escrever exatamente sobre a própria infância? J-P. S.: Porque quis descrever toda a minha vida do ponto de vista da política, isto é, descrever minha infância, minha juventude e minha maturidade vendo cada uma dessas fases como etapas em direção ao comunismo. E, quando escrevi a primeira versão de As palavras, não consegui registrar tudo que pretendia sobre a minha infância. Por isso abandonei esse primeiro texto.

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GÊNESE DA OBRA A redação de As palavras é o resultado de um cuidadoso trabalho literário. O primeiro sinal desse projeto data de 1953: em um “caderno de anotações”, Sartre registrou algumas observações às quais deu o título de Autocrítica. Em 1955, começou efetivamente a redação do texto a que chamaria de “autobiografia”, restringindo a narrativa à sua primeira infância, isto é, ao período compreendido entre o seu nascimento (1905) e a idade de 11 anos (1914). Em 1963, Sartre decidiu publicar, na revista LesTempsModernes, que havia criado em 1945, o primeiro capítulo desta autobiografia. A esse capítulo deu o título de Abel, no qual descreveu e comentou seus nove primeiros anos de vida. Em seguida, publicou um epílogo explicando como a infância determinou o adulto que ele veio a ser. Finalmente, publicou um texto relativo aos anos 1914-1916, seus “mais belos e felizes” anos de vida, para usar suas próprias palavras. Em 1964, veio a lume o texto completo e definitivo de As palavras, Sartre adiantava que o livro teria uma continuidade, fato que não aconteceu. Em 1970, tornou pública a decisão de não completar a autobiografia. Segundo seu modo de ver, com o livro As palavras, havia alcançado seu objetivo fundamental, que era entender e explicar o processo através do qual se transformou num escritor. Não por acaso, a obra está dividida em dois grandes capítulos: o primeiro denominado Ler e o segundo intitulado Escrever. Aprender a ler e a escrever foram as duas grandes experiências existenciais vivenciadas pela criança Jean-Paul Sartre ou Poulou, como era chamado afetivamente em família. A partir de 1970, sua primeira e maior preocupação, como intelectual e escritor, passou a ser analisar as relações do homem com a história de seu tempo. No seu caso concreto, procurou entender e explicar como um homem, já na maturidade, passou a comprometer-se com a política, como foi envolvido por ela e como se transformou através dela (Situação IX, p. 187). A morte precoce do pai despertou, em Poulou, o sentimento de alguém desprovido de tudo, sem herança e sem patrimônio. Passou a depender dos avós maternos para garantir a própria sobrevivência. O primeiro objetivo de Sartre, ao escrever As palavras, indiscutivelmente, foi de ordem pessoal. Menos do que a pretensão de simplesmente evocar lembranças da infância, tratava-se de explicar, a si mesmo, como o autor chegou a ser o adulto que era, um escritor politicamente engajado, isto é, como descrever sua metamorfose existencial. Escrever

era um meio de aprender a se conhecer. No depoimento que prestou a Alexandre Astruc, para a produção do filme sobre sua vida, Sartre confessou: Antes considerava que nada era mais belo nem superior ao fato de “escrever”; “escrever” era criar obras que se eternizariam e eternizariam o autor. O sentido da vida de um escritor é identificado com aquilo que escreveu. Em determinado momento, exatamente a partir de 1953, passei a entender que esse raciocínio era um raciocínio fundamentalmente burguês. Isto é, era preciso entender que, além da arte de escrever, existiam outras coisas tão ou mais importantes. Comecei a perceber o que fez com que uma criança de nove anos tivesse chegado a ser dominada pela neurose da literatura. Para entender esse fato, escrevi As palavras (o texto integral do enredo do filme e do conteúdo da entrevista foram publicados pela editora Gallimard, em 1987). Além disso, no conjunto da obra de Sartre, o livro As palavras representou um ponto de ruptura. Com a autobiografia romanceada da sua infância, o pensador despediu-se definitivamente de toda literatura que não trouxesse consigo um claro engajamento político. Na verdade, as circunstâncias políticas internacionais da época produziram, em Sartre, uma forte tomada de consciência política quanto a seu papel de intelectual, no seio da sociedade em que estava inserido. A partir daí, fez da luta de classes seu próprio combate. Começou a entender que o perfil de escritor que, até então, ele encarnou, no fundo, foi um grande equívoco e que escrever devia representar, antes de tudo, um ato de comprometimento ou engajamento político. A redação de As palavras, fundamentalmente, foi uma tentativa de redescoberta daquilo que ele pretendeu ser ao longo do tempo, partindo da história de sua infância: um intelectual politicamente comprometido com determinados valores morais e políticos. A segunda intenção do autor, com a redação de As palavras, ultrapassava uma simples preocupação com o quadro de sua vida pessoal e íntima. Para além de sua própria experiência, Sartre se propôs dar um testemunho sobre o seu tempo: “Através de minha história, é a história de minha época que desejo registrar” (Cfr. artigo publicado no jornal Libération, em 4 de novembro de 1953). Assim, o objetivo, ao escrever a sua autobiografia, foi, igualmente, fazer de sua obra literária e filosófica um estudo ou análise sócio-histórica de uma geração que estava nascendo, depois da Primeira e durante a Segunda Grande Guerra. Finalmente, no conjunto das intenções,


Sartre atribuiu à sua obra uma dimensão didática, quando afirmou, no diálogo com Todd: “Parece que minha própria experiência pode ser significativa na medida em que representa uma multidão de pessoas semelhantes a mim”. O “Eu” de Sartre deixa de ser singular, passando a ser plural. Sua obra é um engajamento no universo social e político de seu tempo, distanciando-se, assim, de uma simples confidência sobre si mesmo ou de qualquer tipo de romantismo. Desde o início de As palavras, o filósofo nos leva a identificar o universo social do qual provém, ao apresentar sua árvore genealógica. Particularmente, apresenta aos leitores seus avós, com raízes muito fortes numa sociedade burguesa. Ao longo do tempo, sobretudo a partir do momento em que passou a assumir uma militância política radical e de esquerda, ele jamais esqueceu de fazer referência aos aspectos negativos de sua origem burguesa. De certa forma, invejava Camus, que nasceu e viveu numa condição de profunda carência material. Em primeiro lugar, destaca o conceito de “matrimônio” que predominava na sociedade da época. Usando como ponto de referência a vida de três casais, a de seus avós maternos e paternos, e a de seu pai com sua mãe, Sartre insiste sobre o “caráter social” do matrimônio, dominado pelo sentimento do dever e pela ausência de amor e sensualidade de acordo com a ética da pequena burguesia da época. Com frequência, o marido encontrava justificativas para se sentir dispensado de manter relações sexuais com a esposa. Com o mesmo objetivo, à noite, acomodava-se em quarto separado onde permanecia distante da companheira. Para ela, “o casamento era uma série infinita de sacrifícios intercalados de trivialidades noturnas” (MO, p. 16). A partir daí, pode-se compreender melhor a atitude da mãe de Sartre em relação ao seu segundo marido, “que cuidava dela carinhosamente, mas sem chegar a “indecência” de amá-la (MO, p. 16). A exemplo da mãe, ela preferia o dever ao prazer. Os filhos eram concebidos dentro do mesmo esquema: o cum-

primento de uma formalidade ou de um dever inerente à condição de casados. Assim, segundo Sartre, o avô Sweitzer, por quatro vezes, engravidou a esposa um tanto casualmente (MO, p. 14). Falecendo precocemente e sem deixar qualquer patrimônio à viúva e ao filho, o pai de Sartre, de certa forma, condenou a esposa a viver em absoluta dependência em relação aos seus genitores e, em seguida, em relação ao segundo esposo. A morte do marido fez com que ela perdesse toda a identidade social e autonomia pessoal, voltando à condição de uma jovem sem personalidade própria, absolutamente subordinada. Nesse contexto de uma família estruturada, de acordo com padrões e valores burgueses, Charles nunca abriu mão do poder de determinar o futuro de seus filhos e, particularmente, o futuro do neto querido, Poulou. O pequeno gênio seria professor de letras e, secundariamente, escritor, já que a literatura, entendida como arte, não era uma atividade cuja remuneração pudesse garantir a subsistência de alguém e, muito menos, de uma família. Para entender melhor a estrutura da família do escritor, convém descrever, sucintamente, sua árvore genealógica. Do lado materno, Sartre era descendente da família Schweitzer, protestantes da Alsácia; seu avô chamava-se Jean-Philippe; sua avó Louise e sua mãe Anne Marie. Na vertente paterna, seu pai, Jean Baptiste Sartre, era originário de Périgord, sendo seus avós paternos Eymond e ElódieChavoir Sartre. A mesma análise desmistificadora que Sartre desenvolveu em relação à instituição social do matrimônio burguês, foi realizada, também, sobre a religião. A religião fazia, também, parte do imaginário da sociedade burguesa daquela época. Embora tenham batizado os filhos, os avós maternos de Sartre não eram religiosos praticantes. Louise e sua filha Anne Marie frequentavam a igreja protestante, não para rezar, mas para ouvir um organista de renome (MO, p. 25). De seu lado, Charles era um anticlerical: fazia questão de ridicularizar

as aparições de Lourdes e o papa. A única coisa que o fazia visitar uma igreja era o interesse pelo estilo arquitetônico dos templos, com particular interesse pelo gótico. Nesse universo no qual a religião era mais uma questão de estética do que de fé, as pessoas costumavam fazer concessões às pieguices hipócritas (MO, p. 82). Entre os Schweitzers acreditava-se, quando se acreditava, puramente por oportunismo. Em certas situações, era conveniente aparecer como ateu, nesse momento a fé era relegada sem qualquer constrangimento. Dessa forma, o jovem Sartre viveu em um mundo regido por um código social inautêntico e defasado em relação à sua idade e à sua época. Educado por um avô de outra época, “velho republicano do império” (MO, p. 24), ele aprendeu certos deveres cívicos antigos que, historicamente, não tinham mais sentido, como o ódio em relação aos reis e aos imperadores: “um homem do século XIX impunha a seu neto ideias que vigoravam nos tempos de Luís Filipe” (MO, p. 24), rei da França, entre 1830 e 1848. Isso o levou a escrever: “Eu iniciava minha vida como um handicap de 80 anos” (MO, p. 54). Se, por um lado, Charles, o avô, era fiel aos princípios republicanos e defensor da escola pública obrigatória; por outro, não permitiu que seu neto, na primeira infância, deixasse de frequentar uma escola privada. Na realidade, o livro As palavras representou uma ocasião para um acerto de contas de Sartre com uma sociedade burguesa e ideologicamente autoritária. Nesse contexto, a criança logo aprendeu a regra a que deveria obedecer para conviver pacificamente com o seu meio: era preciso desempenhar bem o seu papel no seio da “comédia”, que era a vida familiar, orquestrada por um avô que assumia o comando total, na ausência do pai. A autobiografia foi o instrumento que possibilitou a condenação de uma educação que impunha à criança a conformidade a um modelo familiar, que estabelecia, como norma, a repressão às escolhas livres de alguém que dava os primeiros passos na existência.

SUGESTÕES BIBLIOGRÁFICAS • ARNOLD, A.J. Genèse et critique d’uneautobiographie, “les mots” de Jean-Paul Sartre. Paris: Gallimard, 2003. • ASTRUC, Alexander. Les écrits de Sartre. Paris: Gallimard, 1998. • AUDRY, C. Sartre et la realitéhumaine. Paris: Seghers, 1996. • BURGELIN, C. (Dir.). Lectures de Sartre. Lile: PUF, 1986. • COLOMBEL, J. Sartre ou le parti de vivre. Paris: Grasset, 1991. • CONTAT, M. (Dir.).Pourquoiet comment Sartre a écrit “Les mots”. Genesed’uneautobiographie. Paris: PUF, 1996. • DEGRUY, Jacques. Jean-Paul Sartre. La nausée. Paris: Gallimard, 1997. • HOLLIER, D. Politique de la prose. Jean-Paul Sartre etl’anquarante. Paris: Gallimard, 1992. • JEANSON, F. Sartre par lui-même.Paris: Aubier, 1975. • PACALY, J. Sartre aumiroir: une lecturepsycanalytique des sesécritsbiographiques. Paris: Klincksieck, 1990.

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