Redobra 16

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CRISTINA FREIRE | EDUARDO STERZI | EDUARDO VIVEIJOÃO PAULO BARRETO GRECO | LUIZA DIAS FLORES E URBANISMO: AÇÕES (IM)POSSÍVEL | DESINJOACEMA-(DES)-VIRADA: A CIDAFLORESTA TÓXICA: VIDA METRÓPOLE AMAZÔNICA EXPERIÊNCIAS BREVE ANCESTRALIZAÇÃO EM SURIO | A CIDADE, O POESIA: UM MODO DE FORDLÂNDIA - RUÍNA DO DEBATES E DEPOIS? DE TORNA CAPAZES? | HERINTERCULTURALIDADE À INTERCORAPRENDERMOS A LIDAR COM A LOBO-ARISTOTE PARA SOMETAMORGAIA

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REINVENTAR A CIDADE

REDOBRA – N. 16 - ANO 7 – 2022

REDOBRA é uma publicação conjunta dos grupos de pesquisa Laboratório Coadaptativo LabZat –PPGDANÇA/UFBA e Laboratório Urbano – PPG-AU/UFBA REDOBRA integra a plataforma de ações CORPOCIDADE

ISSN 2238-3794

WWW.LABORATORIOURBANO.UFBA.BR

WWW.CORPOCIDADE.DAN.UFBA.BR

WWW.LABZAT.DAN.UFBA.BR

WWW.REDOBRA.UFBA.BR

COORDENAÇÃO EDITORIAL

Fabiana Dultra Britto – coordenadora do Laboratório Coadaptativo LabZat –PPDANÇA/UFBA, Paola Berenstein Jacques – coordenadora do Laboratório Urbano – PPG-AU/UFBA

EQUIPE PRODUÇÃO EDITORIAL

Ana Luiza Silva Freire, Daniel Sabóia, Dilton Lopes, Igor Gonçalves Queiroz, Lucas Lago, Rafaela Izeli, Ramon Martins (coord.)

PROJETO GRÁFICO

Daniel Sabóia, Janaína Chavier, Patricia Almeida

CONSELHO EDITORIAL

Alejandro Ahmed (Grupo Cena 11) Cibele Rizek (IAU/USP)

Fernanda Peixoto (FFLCH/USP)

José Lira (FAU/USP)

Josianne Cerasoli (IFCH/UNICAMP) Margareth da Silva Pereira (PROURB/UFRJ)

Paulo Reyes (PROPUR/UFRGS)

Ricardo Trevisan (FAU/UnB)

Rita Velloso (EA/UFMG) Roberta Ramos (Dança/UFPE)

NÚMERO 16 - ANO 7 - 2022

Reinventar a Cidade

EDITORES DESTE NÚMERO

Paola Berenstein Jacques (Laboratório Urbano/UFBA), Silvana Olivieri (Laboratório Urbano/UFBA), Thiago Mota Cardoso (PPGAS-UFAM)

EDITORAÇÃO

Daniel Sabóia, Igor Gonçalves Queiroz, Rafaela Izeli, Ramon Martins

CAPA

Silvana Olivieri e equipe de editoração

REVISÃO

Ana Luiza Silva Freire, Lucas Lago

TRADUÇÃO

Ana Luiza Silva Freire, Cecília Campello do Amaral Mello, Margareth da Silva Pereira, Vladimir Moreira Lima Ribeiro

COLABORADORES DESTE NÚMERO

Alessia de Biase, Alex Simões, Ana Luiza Silva Freire, Cecília Campello do Amaral Mello, Celia Collet, Cinira d’Alva, Cristina Freire, Daniel Lê, Eduardo David de Oliveira, Eduardo Sterzi, Eduardo Viveiros de Castro, Éric Valette, Fabiana Dultra Britto, Françoise Parfait, Gilles Tiberghien, Guilherme Soares, Igor Gonçalves Queiroz, Isabelle Stengers, Jan Kopp, João Paulo Barreto Tukano, Karina Buhr, Lucrecia Raquel Greco, Luiza Dias Flores, Marcelo de Trói, Marcos [Gaio] Matos, Marcos Vinícius Bohmer Britto, Margareth da Silva Pereira, Paola Berenstein Jacques, Rafael Luis Simões Souza e Silva, Silvana Lamenha Lins Olivieri, Suely Rolnik, Thiago Mota Cardoso, Valérie Jouve, Vladimir Moreira Lima Ribeiro, (se)cura humana –Wellington Tibério e Flavio Barollo

SUMÁRIO

Berenstein

Thiago

EDITORIAL Paola
Jacques, Silvana Olivieri e
Mota Cardoso REINVENTAR A CIDADE Isabelle Stengers ENTREVISTAS ALEX SIMÕES, CRISTINA FREIRE, EDUARDO DAVID DE OLIVEIRA, EDUARDO STERZI, EDUARDO VIVEIROS DE CASTRO, JOÃO PAULO BARRETO TUKANO, KARINA BUHR, LUCRECIA RAQUEL GRECO, LUIZA DIAS FLORES, SUELY ROLNIK Entrevista a Paola Berenstein Jacques, Silvana Olivieri e Thiago Mota Cardoso ENSAIOS ÁGUA E URBANISMO: AÇÕES ARTÍSTICAS PARA UMA CIDADE (IM)POSSÍVEL coletivo (se)cura humana: Wellington Tibério e Flavio Barollo DESINVENTAR A CIDADE Marcelo de Trói JOACEMA-(DES)-VIRADA: A CIDADE ENCANTADA DOS PATAXÓ Thiago Mota Cardoso FLORESTA TÓXICA: VIDA MULTIESPÉCIE E POLUIÇÃO NA METRÓPOLE AMAZÔNIICA Guilherme Soares OS TEMPOS DE FORDLÂNDIA Alessia de Biase conversa com Margareth da Silva Pereira, Valérie Jouve, Jan Kopp, Daniel Lê, Françoise Parfait, Gilles Tiberghien e Éric Valette 09 31 57 77 99 119 143 17
EXPERIÊNCIAS BREVE RELATO PANDÊMICO Paola Berenstein Jacques ANCESTRALIZAÇÃO EM SURUBABEL OU COMO BEBER UM RIO Marcos [Gaio] Matos A CIDADE, O PENSAMENTO ANIMAL E A POESIA: UM MODO DE NARRAR Cinira d’Alva MUDAR DE MUNDO Silvana Olivieri FORDLÂNDIA - RUÍNA DO FUTURO, CIDADE FANTASMA Ana Luiza Silva Freire e Igor Gonçalves Queiroz DEBATES E DEPOIS?: DE QUE NOSSA HERANÇA NOS TORNA CAPAZES? Isabelle Stengers HERDAR E DIFERIR Cecília Campello do Amaral Mello DA INTERCULTURALIDADE À INTERCORPORALIDADE (OU COMO APRENDERMOS A LIDAR COM A PREDAÇÃO DO MAPINGUARI E DO LOBO-ARISTOTE PARA PODERMOS “SONHAR OUTROS SONHOS”) Celia Collet RESENHAS METAMORFOSES EM NÓS Marcos Vinícius Bohmer Britto e Rafael Luis Simões Souza e Silva MIL NOMES DE GAIA Fabiana Dultra Britto 175 183 203 221 279 287 305 337 349 241
EDITORIAL

A REDOBRA é uma proposta editorial em processo mutante – DO BRA, DESDOBRA, REDOBRA – que se define à medida em que é feita, e cada nova edição incorpora e explora os diferentes contextos circunstanciais que lhe fomentam, a partir de dois grupos de pesquisa – Laboratório Urbano (PPG-AU/FAUFBA) e Laboratório Coadaptativo LabZat (PPGDANÇA/UFBA) – e da plataforma de ações CORPOCI DADE. Apesar de não se deixar pautar por imposições ou normas de agências indexadoras, a REDOBRA é justificada e nutrida por sua con dição universitária, por seu contexto acadêmico, cuja rotina instaurada entre ensino, pesquisa e extensão é também expandida pela liberdade inventiva e pela cooperação criativa. O elemento disparador desta edi ção, lançada como parte da comemoração dos 20 anos de atividades do grupo de pesquisa Laboratório Urbano, é um bom exemplo. A tradu ção do texto-chave da edição – Reinventar a cidade? A escolha da complexidade , de Isabelle Stengers –, inédito em português, nos foi gentilmente oferecida pelos professores Cecília Mello (IPPUR/UFRJ) e Vladimir Ribeiro (CAp/UERJ), exatamente após a sua recusa por revis tas indexadas.

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A partir do texto de abertura de Isabelle Stengers que discorre sobre “a escolha da complexidade”, Reinventar a cidade? passou a ser o mote principal em torno do qual toda a edição foi montada pelo grupo de editores: Silvana Olivieri, dou toranda do PPG-AU/FAUFBA e Thiago Mota Cardoso, professor da PPGAS/ UFAM, atuaram como editores convidados deste número, e Cecília Mello ficou responsável pela seção Debates. A seção Entrevistas parte desta mesma questão, proposta a um grupo heterogêneo de interlocutores, todos externos ao campo da arquitetura, urbanismo ou planejamento urbano (campo que tende a mono polizar o debate sobre o futuro das cidades). Nossa indagação – “Entendendo a urgência de mudarmos o modo como fazemos mundos e paisagens, quando está em jogo inclusive nossa possibilidade de sobrevivência enquanto espécie num planeta à beira da catástrofe climática-ecológica, gostaríamos de lhe convi dar para pensar conosco esse tema, respondendo à pergunta: qual a sua escolha para reinventar a cidade?” – foi respondida por dez intelectuais e/ou artistas, e suas respostas, com várias pistas críticas para (re)pensarmos as cidades a partir da complexidade, como propõe Stengers, foram elencadas em ordem alfabética: Alex Simões , Cristina Freire , Eduardo David de Oliveira , Eduardo Sterzi , Eduardo Viveiros de Castro, Karina Buhr, João Paulo Barreto Tukano, Lucrécia Raquel Greco, Luiza Dias Flores e Suely Rolnik .

A seção ENSAIOS é composta por artigos de Wellington Tibério com Flavio Barollo [coletivo (se)cura humana], Marcelo de Trói, Thiago Mota e Guilherme Soares, e uma conversa entre Alessia de Biase, Margareth da Silva Pereira e Gil les Tiberghien com Valérie Jouve, Jan Kopp, Daniel Lê, Françoise Parfait e Éric Valette (coletivo suspended spaces), montada por Alessia de Biase e traduzida por Margareth da Silva Pereira. O texto Água e urbanismo: ações artísticas para uma cidade (im)possível nos apresenta ações do coletivo artístico/ ativista ambiental (se)cura humana, reunido a partir da crise de abastecimento de água em São Paulo (2014) para “problematizar o desenvolvimento urbano e sua relação com as águas que corriam e ainda correm pela cidade”, buscando provocar um olhar mais atento “para a natureza negligenciada pelo urbanismo rodoviarista que se apossou de nossas cidades”. O coletivo busca, ao focar na questão das águas urbanas, trabalhar “pelas fissuras, brechas e vãos que insistem em se abrir aqui e ali”, mostrando vestígios e sobrevivências de uma “natureza aquática do território” que ainda pulsa em nossas cidades. Já Desinventar a cidade , de Marcelo de Trói, foca na questão da mobilidade urbana, fazendo uma crítica ao que denomina de “carrocracia”, tida como uma “herança maldita do que se estabeleceu como paradigma de cidade, na qual o automóvel tem papel determinante”. O autor propõe, em resposta à proposta de Stengers de uma re invenção da cidade pela complexidade, a sua desinvenção, acreditando que só as sim poderia-se abrir “espaço para que outros modos de vida emerjam”. O texto Joacema - (des) - virada; A cidade encantada dos Pataxó, de Thiago Mota

Cardoso, nos mostra Joacema como um lugar indígena encantado. Retrata esta cidade antiga, que sobrevive ainda hoje encantada, mesmo que “na invisibilida de para quem não está sob efeito do encante”, tendo sido “construída ao mesmo tempo em que Salvador, a capital do Brasil Colônia, era erigida no século XVI”. O autor não busca tratar de uma representação ou de uma crença, mas sim, de forma bem distinta, de uma proposta de “ontoepistemologia onde “naturezas se transformam afetando corpos”. Em Floresta tóxica: vida multiespécie e poluição na metrópole amazônica , Guilherme Soares, por sua vez, relata suas incursões em Manaus, pelas matas do Corredor Ecológico Urbano do Mindú, a partir da imagem da “Floresta Tóxica”, do filme de animação “Nausicaä do Vale do Vento ” (1986, de Hayao Miyazaki). O texto busca “compreender a emergên cia de paisagens multi-específicas nas ruínas urbanas” ao narrar uma experiência nos fluxos de um igarapé, numa cidade-metrópole amazônica, em sua relação com a ficção (animação), “procurando desvelar histórias a partir de diferentes perspectivas humanas e não-humanas: de outros animais, vegetais, fungos, as sim como a partir do próprio lixo e demais elementos abióticos da paisagem”. O autor situa o texto como uma proposta inicial, um exercício que tenta “manei ras um pouco menos antropocêntricas de formular nossas ideias, levando em conta jogos de perspectiva situadas em diferentes níveis e escalas”. Por fim, a conversa intitulada Os tempos de Fordlândia foi montada a partir das falas de uma mesa redonda realizada em torno da expedição artística fluvial empreen dida em 2018 pelo coletivo suspended spaces pelo Rio Tapajós até Fordlândia, a cidade “norte-americana” construída por Henry Ford na Amazônia brasileira para produção de borracha (pneus), inaugurada em 1928. O texto, inicialmen te publicado no catálogo da exposição sobre Fordlândia montada pelo coletivo, gira em torno da noção do(s) tempo(s) daquela cidade, como projeto e como lu gar, e é remontado como uma pequena ficção – “optamos por seguir o caminho de uma memória “rapsódica” – jogando com a não-lineariedade das memórias que funcionam sempre, como os sonhos, por anacronismos e esquecimentos. A exposição resultante desta experiência da cidade norte-americana amazônica, em ruínas mas ainda hoje habitada, será remontada nos galpões de oficinas do Museu de Arte Moderna da Bahia em dezembro próximo (2022).

Na seção EXPERIÊNCIAS, composta por cinco artigos de membros do grupo de pesquisa Laboratório Urbano, os textos buscam experimentar diferentes formas de narração de experiências urbanas, a começar pelo Breve relato pandêmico redigido por Paola Berenstein Jacques para compor o livro-coletânea “Regards sous contrainte: carnet de terrain d’un monde pandémique” (Olhares sob constrangimento: caderno de campo de um mundo pandêmico) organizado por Alessia de Biase (2021). A organizadora pediu uma descrição etnográfica a cinquenta pesquisadores, um relato em primeira pessoa do singular, de uma de suas experiências urbanas pandêmicas. O texto, em formato de uma escrita au

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tomática misturada com imagens mnêmicas, narra uma manhã “ordinária” em Salvador, mais especificamente no campus Ondina da UFBA, durante a pande mia de Covid 19. Ancestralização em Surubabel ou como beber um rio, de Marcos [Gaio] Matos, narra a experiência do autor como um “hidronauta”, em expedição pelo Rio São Francisco à Nova Rodelas, “um poço sem fim de lem branças” da antiga cidade de Rodelas, que foi “afogada pelas águas do lago arti ficial de Itaparica e agarrada a um entorno de ilhas e territórios antes ocupados pela comunidade nativa Tuxá – também cobertos pelo lago – e que a única cons trução visível da cidade antiga é a caixa d’água, que parece flutuar sobre a super fície do lago como um jazigo a velar seus escombros”. O autor-hidronauta busca fazer emergir as “memórias submersas junto às ruínas de Rodelas no fundo do lago. Puro instinto, se despe e mergulha apressado naquele mar de água doce, abduzido por uma traquinagem infantil dançando inebriada pelo encantamento do encontro”. Em A cidade, o pensamento animal e a poesia: um modo de narrar, Cinira d’Alva relata um processo de imersão na cidade de Fortaleza du rante uma residência artística (“Sala vazia”, 2019), quando “borram-se as fron teiras entre forma, conteúdo, sujeito, coisa, humano e animal”. O texto retoma o processo e os trabalhos resultantes desta residência – o conjunto de áudios, imagens, objetos e vídeos, intitulado “Concerto para múltiplas vozes: o recado de Exu”; e o vídeo-poema “Eu, um mamífero” – buscando “compreender com mais clareza como algumas práticas – que são críticas ao pensamento logocên trico ocidental – convergem para uma mesma atitude que, em última instância, demanda a construção de uma corporeidade distinta do habitual”. Já em Mudar de mundo, Silvana Olivieri parte da proposta de Arturo Escobar – “Mudar de mundo e não mudar o mundo” – para “alertar da necessidade de abandono da concepção de mundo hegemônica da modernidade ocidental, sustentada pela separação entre cultura e natureza (humanidade e não-humanidade) e pelo ex cepcionalismo humano, pressupostos que não só não nos ajudam a lidar com a crise ecológica e climática do planeta, como estão na origem dessa crise”. A autora busca mostrar esse “mundo onde cabem muitos mundos” reivindicado pelos zapatistas, atentando para “a percepção de existir em um mundo povoa do e “animado por múltiplas subjetividades, agências, inteligências, formas de vida ontologicamente heterogêneas com as quais podemos nos comunicar, nos relacionar, nos aliançar”. Percepção que se manifesta “mesmo se tratando de um ambiente urbano, em uma grande cidade”, a partir da “expertise de xamãs, fei ticeiros, curadores, curandeiros, pais e mães-de-santo, que recebem mensagens de animais, plantas, pedras, das montanhas e nuvens, do vento e da trovoada, dos espíritos, de ruídos, em suma, de tudo que vive ou se manifesta no ambiente no qual estão imersos”. Esta seção, como a anterior, também termina com um texto sobre a cidade construída pela Ford Motor Company na Amazônia, Fordlândia – ruína do futuro, cidade fantasma , de Ana Luiza Silva Freire e Igor Gonçalves Queiroz, que buscaram, a partir da montagem de fragmentos de ima

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gens (documentos, discursos, filmes, fotografias, ilustrações), “encontrar fissu ras existentes entre estas histórias que foram homogeneizadas, alinhadas a esta narrativa oficial da conquista, exploração e modernização da Amazônia brasilei ra, de modo a experimentar outras possibilidades de se pensar a própria escrita da história urbana”. Os autores investigam outras formas de narração da história desta cidade “norte-americana”/amazônica para fazer “emergir histórias de le vantes, revoltas e insubmissões dos operários – ou mesmo da própria Amazônia selvagem – na cidade de Fordlândia, diante da imposição de um modo específico de trabalho e, sobretudo, de um modo de vida baseado em exigências morais e culturais norte-americanas. A ação da natureza (in)surge, desta forma, como protagonista em relação ao planejamento fabril e empresarial de Fordlândia.”

A seção DEBATES foi montada por Cecília Mello em torno de outro texto de Isabelle Stengers, complementar ao que abre esta edição: E depois? De que nossa herança nos torna capazes? Stengers novamente nos coloca uma per tinente e urgente questão: “do que, hoje, aquilo que nós herdamos nos torna ca pazes? Esta questão ganha, atualmente, uma significação totalmente nova. Seria possível dissociá-la da maneira pela qual nós enfrentamos a questão ‘e depois?’ Uma questão que desafia a imaginação, a nossa em todo caso, sobretudo nes se momento em que está sendo cada vez mais documentada de forma precisa e sombria pelos climatólogos”. Dessa vez Stengers recorre ao xamã e líder político Yanomami Davi Kopenawa que, “pertencente a um povo caracterizado pela an tropologia moderna como “animista”, observa que “os brancos dormem mui to, mas só sonham com si mesmos”. A autora comenta: “Parece-me que Davi Kopenawa não se engana. A moda intelectual que, hoje, nos propõe pensar o desastre que nós deixaremos como herança para nossas crianças através do tema do Antropoceno é testemunha disso. Antropos, o Homem, teria hoje conquis tado o estatuto de força geológica.” Em Herdar e diferir, Cecília Mello parte do texto de Stengers e de sua questão principal – “De que nossa herança nos torna capazes?” – para, por sua vez, questionar: “o que seria possível dizer-fazer diante de uma catástrofe que não é uma previsão para 2050, mas um fato da atualidade para muitos(as)?” O texto que inicialmente se intitulava “Considerações sobre um grito” se apresenta como “um ensaio sobre os modos possíveis de se habitar a universidade pública e produzir conhecimento nos dias de hoje” e busca tra tar “dos efeitos da perturbadora convergência entre dois gritos: o de Indianare Siqueira em 2017 e o grito de Virginia Woolf no ensaio ‘Três Guinéus’, publicado quase oitenta anos antes (1938)”, para, então, “prolongar esse grito, essa objeção, essa posição que é desconcertante para quem é cria e herdeira dessa uni versidade. Ela nos obriga a parar para pensar e a inventar modos de herdar que não sejam replicar; que possam ser também diferir”. O último texto da seção, Da interculturalidade à intercorporalidade (ou como aprendermos a li dar com a predação do Mapinguari e do Lobo-Aristote para podermos

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“sonhar outros sonhos”), de Celia Collet, também parte do texto de Stengers que abre esta seção Debates, buscando responder à questão co locada pela filósofa belga: “E depois? De que nossa herança nos torna capazes?”. Para tal, a autora propõe uma escuta atenta dos “indígenas (através da antropologia) sobre as questões da corporalidade, predação, captura, relação com o Estado, cultura e multinaturalismo, para que, ao fazer isso, possamos entrar em contato com o que ‘somos capazes. E as sim podermos, através da composição de novos vínculos, reativar po tências há muito tempo subjugadas pelo modelo moderno e capitalista de pensamento e relacionalidade”.

Dois textos encerram esta edição, na seção RESENHA. Metamorfoses em nós, de Marcos Vinícius Bohmer Britto e Rafael Luis Simões Souza e Silva, é a resenha do livro Metamorfoses, de Emanuele Coccia, publicado no Brasil pela editora Dantes, em 2020, proposta pelos au tores como uma “metamorfose do próprio livro, que digerimos e en carnamos no nosso pensamento”. Uma outra forma textual surge da “remontagem das palavras do próprio Coccia em forma de poemas”, atuando como “imagens-pensamento”, para “iniciar e ao mesmo tem po sintetizar as ideias que o autor projeta em cada capítulo”. Em Mil Nomes de Gaia , Fabiana Dultra Britto faz a resenha de Os Mil Nomes de Gaia: do Antropoceno à Idade da Terra: volume 1, livro organizado por Déborah Danowski, Eduardo Viveiros de Castro e Rafael Saldanha, estréia da editora Machado, reunindo as comunicações apresentadas no Colóquio Internacional homônimo, ocorrido na Casa Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, em 2014. O texto é uma descrição crítica dos catorze artigos e duas entrevistas que compõem o livro, proposto com vistas a “aumentar a sensibilidade da Academia e da intelectualidade em geral para a urgência, gravidade e significação histórica” da crise ambiental planetária, possibilitando compreender “que se trata de um complexo engendrado pelo desequilíbrio da dinâmica relacional estabelecida en tre os seres, matérias, energias e os processos componentes da Terra”, cujo controle “depende do reconhecimento do coprotagonismo de to dos os agentes e suas respectivas responsabilidades”.

Esperamos assim, com este conjunto de provocações, proposições e composições articuladas neste número 16 da REDOBRA , ter amplia do as múltiplas possibilidades de respostas complexas e, ao mesmo tempo, sensíveis, à questão crítica exposta por Isabelle Stengers: Rein ventar a cidade?

Boa leitura!

Paola Berenstein Jacques, Silvana Olivieri e Thiago Mota Cardoso

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REINVENTAR A CIDADE?

A ESCOLHA DA COMPLEXIDADE

ISABELLE STENGERS

Professora da Université Libre de Bruxelles TRADUÇÃO

Cecília Campello do Amaral Mello (IPPUR-UFRJ) e Vladimir Moreira Lima Ribeiro (IAp-UERJ)

Ter aceito abrir esse colóquio, sem ser urbanista, ou representante dos atores protagonistas da paisagem urbana, constitui para mim um desa fio estranho. Aceitar o convite para falar sobre “complexidade” é ainda mais inquietante.

A complexidade faz parte dos frequentemente chamados “novos pa radigmas”. Em seu nome, quantas teses já não foram escritas, quantas grandes perspectivas já não foram abertas, quantos contrastes entre on tem, quando “tinhamos crenças”, e hoje, em que “sabemos”, não foram propostos?

No entanto, se aceitei esse convite, foi precisamente devido a esse desafio: tentar levar a sério todos os que anunciam que o pensamento da complexidade constitui uma novidade importante, suscetível de nos obrigar a conceber de outra forma aquilo com que lidamos, por exem plo, as cidades.

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Irei começar por uma caracterização muito simples do que podemos chamar “entidades complexas”. Eu diria que são aquelas que não se deixam decompor em sub-entidades mais simples. Aquilo que se deixa decompor ou analisar de tal forma que o funcionamento do conjunto da entidade apareça como a soma das partes funcionais, será dito “complicado”.

Para dar um exemplo um pouco desconcertante, Bruno Latour propõe um contraste en tre um grupo de babuínos, que ele caracteriza como “complexo” e certos aspectos das sociedades humanas, que seriam somente “complicados”.

Com efeito, as relações entre babuínos são hoje descritas como “se fabricando” permanentemente, para retomar a oposição bergsoniana entre o “já pronto” e o “se fazendo”. O lugar de um babuíno em seu grupo não pode ser deduzido de um traço que pertenceria a ele mesmo, de maneira estável, como um atributo –esse é dominante, esse é submisso. Esse lugar depende de uma rede de alianças que não para de se modificar, é objeto de negociações, de confirmações, de ve rificações contínuas. O etólogo não pode deduzir, ele ou ela deverá aprender a seguir, a cartografar.

Por outro lado, as sociedades humanas inventaram possibilidades de estabilizar, ao menos parcialmente, papéis e atributos. Não supõe-se que o policial tenha que negociar sua autoridade, já que seu uniforme a assinala para todos. Quando vejo o uniforme do policial, não há espaço para hesitação. Sua significação é “já pronta”.

O mesmo ocorre com o significado das luzes dos semáforos, ao passarem do ver melho para o verde, com o nome das ruas, os números das casas, com aquilo que se pode antecipar ao entrar numa padaria, com o estatuto das pessoas, ao menos daquelas que não são sans papiers (imigrantes sem documentos).

Em resumo, um número indefinido daquilo que chamamos frequentemente de “convenções” está definido de maneira estável o bastante para que, sem pensar demais, nós possamos confiar nelas. Enquanto respondente a essa longa série de convenções, uma vida humana pode ser complicada, mas não complexa. As sim, se ultrapasso um sinal vermelho, por exemplo, o padeiro não irá se recusar a vender o pão, ou se um policial é insultado apesar de seu uniforme, seus colegas não irão se colocar contra ele para expulsá-lo do bairro.

Essa distinção é relativa, claro. Muitos policiais, em alguns bairros, muitos pro fessores, em certas escolas, sabem que sua função não lhes garante mais um pa pel estável. Sua profissão se tornou “complexa”. Por outro lado, toda uma série de convenções que regulam a vida urbana devem ser conservadas permanente mente por corpos de profissionais com relações por vezes complexas. A com plicação que as convenções permitem e visam não é um dado estável, mas um acerto que tem que ser produzido o tempo todo.

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Passemos a outro exemplo, em que aparece igualmente o contraste entre o complexo e o complicado e sua relatividade: a descrição de um corpo vivo. Diz -se que a saúde reside no silêncio dos órgãos. É também, e talvez sobretudo, a possibilidade de se descrever cada órgão e mesmo cada interação bioquímica, enquanto preenchendo uma função. Cada órgão, cada interação tem, então, ao mesmo tempo, uma identidade separável e uma razão de ser no que diz respeito à vida do corpo. Um pouco como o policial, o semáforo, o carteiro etc. Mas essa bela estabilidade pode desaparecer em caso de doença. Nesse caso, tudo pode se embaralhar. Aquilo que parecia ter por função fazer isso ou aquilo poderá co meçar a desempenhar outros papéis, totalmente inesperados e frequentemente nocivos ao bem-estar da pessoa. As escalas de descrição podem se misturar, o que era descrito como separável põe-se a se comunicar. Em suma, não sabemos mais como descrever e nos damos conta de que a possibilidade de descrição es tava relacionada à possibilidade de se atribuir funções. E que a possibilidade de se atribuir funções era, ela mesma, relacionada à distinção que proponho entre o complicado e o complexo.

O que chamamos de saúde se traduziria, assim, na prática, pela possibilidade de trazer um corpo de volta a um funcionamento certamente complicado, mas interpretável sob um modo econômico, isto é, lógico, cada parte desempenhan do um papel suficientemente bem determinado e funcionalmente inteligível. Como vocês se deram conta, meus dois exemplos não pertencem àquilo que nós chamamos “ciências da complexidade”. Não defini um “objeto complexo” no sentido em que hoje a ele associamos um novo tipo de saber. Não propus tam pouco para vocês um sistema que ilustre um funcionamento “na fronteira da ordem e do caos” (apesar da metáfora ser estupenda), ou um sistema caracte rizado por relações altamente não-lineares, cujo comportamento pode, através de uma sucessão de “bifurcações”, conhecer transformações qualitativas. Não falei para vocês da complexidade atualmente associada à diversidade de ecossis temas, nem do laço descoberto através das simulações informáticas, entre com plexidade e robustez. Nem tampouco da complexidade associada a um sistema climático, cujo caráter caótico é ilustrado pela imagem da célebre “batida de asa de uma borboleta”. Em suma, não associei a complexidade com o tema de uma “descoberta” que marcaria a história dos nossos saberes e permitiria traçar uma diferença entre o paradigma de ontem e aquele de hoje, o primeiro privilegiando o determinismo, a previsibilidade e, portanto, a estabilidade, as relações lineares entre causas e efeitos, a possibilidade de especificar a boa pergunta a partir da qual um sistema se tornará inteligível, e o segundo, colocando em cena a im previsibilidade, a sensibilidade às condições iniciais, os atratores estranhos, as bifurcações. Mas sigamos. O que apresentei para vocês é um contraste, não uma oposição. E o contraste entre complicado e complexo não é, aqui, uma questão de “progresso do conhecimento” – nós descobrimos que não é complicado, mas complexo – que se trata de uma questão de situação, no sentido forte: não “como se é situado”, mas, antes, “como se situa”.

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Que se trate de babuínos, de protagonistas de uma vida urbana, mas também de um corpo vivo, nós estamos lidando com verdadeiras escolhas práticas, ligadas a certas apostas. E essas apostas associam a forma como poderiam ser descritos, ao mesmo tempo, a atividade de diferentes protagonistas - os babuínos, os ha bitantes das cidades, os órgãos, os mecanismos bioquímicos - e sua resultante.

O modo de socialidade dos babuínos que tomei como exemplo de complexida de faz parte da invenção do que é arriscar ser babuíno no mundo. Arriscar, assim, uma relação entre indivíduo e grupo que deverá ser permanentemente renego ciada em um mundo onde outras espécies animais, os pinguins, por exemplo, arriscaram uma definição totalmente diferente dessa relação, com outras apos tas e outras definições de acerto.

Quanto ao contraste entre a lógica funcional de um corpo em boa saúde e o ema ranhamento assustador das relações que caracterizam um corpo doente, ele não designa nossas possibilidades de conhecer, mas o corpo enquanto capaz de per manecer vivo. O conjunto das descrições do que chamamos de “funções” biológi cas não é, como as descrições do clima ou de um ecossistema, “neutra quanto aos valores”. São verdadeiras celebrações do sucesso que constitui “manter-se jun to” para um corpo vivo, segundo certo modo, mais do que segundo outro modo. Parece-me crucial a diferença que demarco entre os sistemas que são complexos “de fato”, por exemplo, o sistema climático, e as situações nas quais o contraste entre complexo e complicado é ligado a uma escolha prática. É por isso que, antes de passar à questão das cidades, consideraria um caso hoje muito importante de complexidade neutra quanto aos valores. É a doravante célebre figura de Gaia: a Terra enquanto um planeta vivo, resultando de uma história que associa, irredu tivelmente e de modo complexo, as terras, os oceanos, os climas e os seres vivos. Gaia, no início, foi bastante mal caracterizada. Ela foi comparada a um corpo vivo, a um organismo, um organismo que era preciso respeitar e proteger. Ora, a ques tão que nosso futuro coloca se torna muito mais interessante, se consideramos que Gaia não é de modo algum um organismo, no sentido em que poderíamos dizer que ela está saudável ou doente. O que quer que os homens façam, Gaia so breviverá e, mais do que certamente, sobreviverão esses seres vivos inumeráveis que foram os verdadeiros artesãos da Terra enquanto planeta vivo, os microrga nismos. O que Gaia anuncia é a dependência direta de nós humanos – e também, infelizmente para eles, a dependência de uma série de outros grandes animais que não pediram para ser solidários das nossas histórias – em relação ao regime de existência atual de Gaia, um regime de existência em relação ao qual nós tería mos o poder de modificar. O que nós consideramos como “naturalmente dado”, quadro estável de nossas atividades e cálculos, poderia facilmente ser posto em questão por essas mesmas atividades e reduzir a nada o princípio desses cálculos. Que Gaia seja complexa é o que nos inquieta hoje e com razão. O fato de que não haja uma medida energética comum entre os “meios” humanos e aqueles de

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Gaia não garante a perenidade de seu modo de existência atual, do qual depen demos. É certo que tornados, enchentes, transportes climáticos ou hidrodinâ micos (moções, Corrente do Golfo) colocam em jogo quantidades de energia em relação às quais são derrisórias aquelas que podem mobilizar os humanos. Mas as “perturbações” ligadas às atividades humanas e as quantidades mobilizadas por essas modificações podem também perfeitamente desencadear efeitos inco mensuráveis para as atividades humanas.

Acertam aqueles que, para dizer o que ameaça os humanos, falam de Gaia er guendo os ombros para se livrar de um mosquito que faz cócegas. O erguimento de ombros é, quantitativamente, uma reação desmesurada em relação à coceira, mas essa reação designa uma sensibilidade. O que está em questão é a sensibi lidade em relação às perturbações humanas, sob o modo de um agenciamento complexo entre processos que inseparavelmente concorrem para o regime de existência de Gaia. Mas esse regime de existência, com exceção do fato de que dependemos dele, não tem nada de particular. Contrariamente ao corpo vivo, não há uma distinção interessante, salvo para nós, entre uma Gaia em boa saú de e uma Gaia doente. Com Gaia nós estamos certamente lidando com a mais poderosa figura da complexidade, no sentido do que chamei de “neutra quanto aos valores”, aquela que encontra todos os que tentam modelizar processos al tamente interdependentes. Gaia não é um organismo, cujo regime de existência deveria ser celebrado enquanto um sucesso para si mesmo; é, antes, um ser irri tável, um agenciamento susceptível de forças indomáveis, cuja (sempre relativa) tranquilidade importa para nós mais do que tudo.

Como esta figura da complexidade situa aqueles que aprendem a encontrá-la? Trata-se de dizer adeus à simplicidade, certamente, mas trata-se também de di zer adeus à figura reconfortante de uma estabilidade garantida, quase maternal. Gaia obriga a adoção de uma perspectiva radicalmente assimétrica, obriga a não esperar a menor reciprocidade. Não se negocia com Gaia. Nossas súplicas não chegam a ela como eram supostas chegarem aos antigos Deuses e fazê-los aban donar sua justa vingança. Gaia não conhece a vingança, apenas a instabilidade. É preciso, então, aprender a pensar levando-a em conta, sabendo perfeitamente que ela mesma não nos leva minimamente em conta. Que a Corrente do Gol fo possa desaparecer e com ela o clima temperado da Europa Ocidental, ou que Bangladesh possa ser submersa não são ameaças no sentido usual, no sentido em que nos será dito “atenção, tentem se comportar melhor”. Aquele ou aquela que ameaça poderá parar de ameaçar no caso dele ou dela pensar que a ameaça foi compreendida. Quando se trata de Gaia, não se trata de ameaças, pois mesmo se nós de repente manifestarmos as melhores das intenções, a maior das sabedorias, nada indica que não seja tarde demais. Gaia é inexorável, surda às nossas súplicas.

Trata-se, assim, neste caso, de aprender sem a menor esperança de reciprocida de. O abandono dessa esperança, a saber, uma forma de sabedoria estóica, é, com

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efeito, uma das mensagens daquilo que chamamos de “complexidade”, tal como associada aos modelos e teorias contemporâneos. É o que exprime muito bem Stuart Kauffman, um dos pais da “ordem na fronteira do caos”, em seu livro “At Home in the Universe” (Em Casa no Universo). At home, em casa, mas num lar muito inquietante. Escutemo-lo:

“Nossos menores movimentos podem desencadear pequenas ou grandes mudanças no mundo que fabricamos e re-fabricamos juntos. Os trilobitas vieram a existir e partiram. O tiranossauro veio e foi embora. Cada um tentou (...), cada um deles fez o melhor do ponto de vista da evolução. Considere que 99,9% de todas as espécies advieram e desapareceram. Sejam prudentes. Nossos passos mais seguros poderão desencadear a avalanche que nos le vará. E nem vocês nem ninguém podem predizer qual grão provocará a alteração ínfima ou a alteração catastrófica. Sejam prudentes, mas continuem a andar: vocês não têm escolha. Sejam o mais razoáveis que puderem, mas tenham a sabedoria de admitir sua ignorância global. Nós fazemos o melhor que podemos e tudo isso para terminar por produzir as condi ções de nossa própria extinção, abrindo o caminho para outras formas de vida e maneiras de ser”.

A sabedoria dos estóicos nos pede para agir sem nos dar a nós mesmos boas razões para esperar. É um grande pensamento, uma grande lição, mas – e é aqui para mim o ponto importante – ele não me parece ser pertinente e, mais do que isso, parece -me um pensamento catastrófico quando o problema colocado diz respeito a uma situação de tipo político. E se há um problema que é bem “político”, no sentido etimológico, é o problema que aqui nos reúne, aquele da Cidade. Vocês notaram que a bela exortação de Kauffman poderia perfeitamente dirigir-se ao primeiro capitalista existente, uma vez que aquilo que chamamos de mercado econômico é reconhecido como caótico, ou na fronteira entre a ordem e o caos? E os capitalistas, de fato, conhecem bem essa incerteza estóica, quando não se dissimulam por trás de modelos estáveis e ilusórios, ilusórios porque estáveis, oriundos da economia dita racional. Eu me refiro aqui à tese de Max Weber sobre a Ética protestante nas origens do capitalismo: os protestantes calvinistas afirmavam não poder merecer a graça divina, afirmavam depender de um árbitro bem capaz de suscitar a angús tia. O sucesso na acumulação bem sucedida de capital e a proibição do desfrute imediato de bens do mundo que lhe corresponde, vem funcionar para eles como o único sinal suscetível de apaziguá-los. Se o sucesso deve se definir em um mun do caótico, o paralelo é efetivamente pertinente. Quando um capitalista diz, com fervor, “o mercado decidirá”, ele evoca realmente um ser cujos caminhos são tão impenetráveis, imprevisíveis e inexoráveis como aqueles do Deus dos Calvinistas.

Mas vocês perceberam igualmente em que posição estranha essa forma de sabedoria nos coloca, quando a cidade está em questão? As metáforas se tornam insultos para aqueles que ela concerne. Os problemas sociais se tornam, por exemplo, comparáveis a avalanches, o que significa que aqueles que aí partici pam são como a neve e os rochedos: levados por um movimento do conjunto,

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sem pensamento ou razão. Sente-se uma total falta de “urbanidade”. O capita lista despreza bastante a política, mas para aqueles aos quais a cidade se coloca como um problema político, o conjunto das metáforas ligadas aos sistemas que são de fato complexos não ajuda nada e, pior, os leva a esvaziar a questão política: não se faz política com avalanches.

A fim de falar da novidade que poderia constituir a questão da complexidade quando ela é questão de política urbana, é preciso sublinhar que a complexidade, no sentido de Gaia, das avalanches, da instabilidade sempre possível não é, quanto à ela, uma novidade.

Leiam os textos do século XIX sobre a multidão, você encontrará aí esses ter mos – turbulência, crise, explosão, treinamento, agitação, sublevação, transbor damento – que hoje em dia são retomados pelos teóricos da complexidade para caracterizar as bifurcações e transformações qualitativas que caracterizam certos sistemas complexos.

Leiam igualmente os textos dos urbanistas do século XIX, aqueles que fabri caram essas ruas onde se devia circular com um mínimo de fricção, confronto, obstáculo. Tratava-se de favorecer um fluxo de circulação estável, isto é, regular, de evitar dissipações, perdas, turbulências. Tratava-se de evitar os agrupamen tos que pudessem ser germes de transtorno ou de congestão. A cidade moderna fabricada ativamente, deliberadamente, por esses urbanistas, tem por palavra de ordem: “circulem!”

Em suma, nós não esperamos as teorias da complexidade para pensar a instabi lidade, a mudança brutal do estado físico de um sistema, a transformação quali tativa da ordem circulante em turbulência destruidora ou paralisia geral. É assim que pensavam aqueles que fabricaram nossas cidades modernas, aqueles que, precisamente, fizeram a escolha da complicação – os canais de todo tipo, canais de esgoto, evacuação dos dejetos, separação entre a rua para os automóveis e as calçadas para os pedestres, retificação das fachadas etc. A cidade moderna não é oriunda de um progresso, no sentido anônimo, consensual e quase natural do termo. Ela foi produzida pela escolha deliberada de lutar contra a complexidade por meio da complicação.

Essa escolha, essa luta, demandou muito trabalho, muito cálculo, muito custo e regulamentação. Separar o espaço privado, onde se pode permanecer e o espaço público, onde é preciso circular, foi uma obra gigantesca. Para os urbanistas, trata va-se de uma questão de higiene, mais do que de política: fabricar uma cidade se guindo o modelo de um organismo em boa saúde, onde nada se estagna, onde são evitadas as desordens e a febre. A estagnação é a degeneração, a doença, a desor dem. Um organismo em boa saúde é aquele em que cada função, bem separada, é ligada às outras por mecanismos circulatórios, sem acidente nem turbulência.

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Os urbanistas, portanto, não têm grande coisa a aprender com as teorias da com plexidade. É, por outro lado, o fato dessas teorias permitirem ressuscitar velhos medos, antigas preocupações, reações plausíveis, o que talvez explique seu gran de sucesso cultural, o sentimento de que os cientistas “descobriram” algo de muito importante. Isso não significa de forma alguma que essas teorias seriam “apenas” o reflexo desses medos, preocupações, oposições. Eu não coloco em causa o interesse em relação às teorias da complexidade, mas o caráter fulgurante do seu sucesso.

Ao apresentar a vocês o contraste entre a complexidade dos grupos de babuínos e a complicação inventada pelos humanos, não desejo evidentemente propor a vocês fazer um “retorno” à sociedade babuína. Seria estranho colocar em causa –e de qual ponto de vista? – a invenção humana de marcadores estáveis, escrituras, papéis instituídos. Trata-se de um conjunto de convenções no sentido forte do termo, no sentido em que con-vir remete àquilo que permite aos protagonistas “vir para um mesmo lugar”, se reunir. A convenção não é “somente um acordo”, caracterizado pela marca do arbitrário ou da repressão. É um acordo sem o qual algumas coisas, que o acordo torna possíveis, seriam irrealizáveis. A propósito, sem este acordo as concentrações de humanos que são as cidades seriam evidentemente inimagináveis. A sociedade dos babuínos nos permite sonhar com a autenticidade serena das antigas aldeias, onde não havia anonimato, onde cada um vivia em tempo real sob o olhar e na dependência dos outros. Esse não é um sonho de urbanista.

Por outro lado, trata-se talvez de pensar as cidades, no sentido moderno, como oriundas de uma escolha que vai muito além das convenções. Elas são o produto de uma luta deliberada, política, técnica e regulamentar contra a complexidade. E essa definição da cidade transformou em transtorno, desordem, patologia, em suma, em ameaças, tudo o que povoava as antigas cidades, onde o público e o privado não se opunham, mas se emaranhavam.

Isso, em si, não é uma denúncia. É somente porque as cidades são desde então tais que os urbanistas concluíram pela necessidade de tentar “reinventá-las” - e é isso que faz que minhas observações tenham sentido aqui. Elas significam que o contraste entre complexidade e complicação deva, talvez, ser recolocado em jogo. Se é assim, todo um conjunto de ideais ligados ao advento da complicação devem ser ativamente, deliberadamente, questionados e, sobretudo, qualquer analogia entre a cidade e um corpo em boa saúde. Pois de nada serve inverter as analogias, fazer o elogio da patologia, dos processos de cancerização, das que das de pressão ou das embolias pulmonares. É por isso que eu falei de situação no sentido forte, “situar se”, mais do que “ser situado”. Se “reinventar a cida de” tem algo a ver com a questão da complexidade, é o conjunto das metáforas que fazem da cidade um corpo que deve ser deliberadamente, conscientemente, abandonado.

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O grande interesse da metáfora do corpo é que ela instituía a legitimidade de um saber de tipo médico, de intervenção em caso de doença, de pedagogia para a prevenção. Prevenir, explicar, inculcar bons hábitos, definir dispositivos pe dagógicos que revertam maus hábitos, que incitem a uma boa conduta, mesmo que isso signifique que a polícia se ocupe daquilo que será em seguida apenas um desvio minoritário a um ideal consensual: eis a grande invenção dos urbanistas e higienistas do século XIX. Se essa invenção, hoje, atingiu seu limite, não são apenas os conteúdos de saber, mas também as relações de saber, as relações que autorizam e que supõem os saberes pretendentes à objetividade, que devem ser reinventados. E se há uma reinvenção possível, ela me parece passar por definir como uma incógnita, ativa, deliberada, o que a medicina alega e que autoriza seu saber: a saúde e a doença.

Eu proporei, para me aventurar na difícil questão do que implica talvez o aban dono de qualquer semelhança entre o urbanista e o médico, uma frase de Deleu ze e Guattari. Tratava-se do cérebro: Deleuze e Guattari afirmavam que o cére bro não pode ser reduzido a um órgão de formação e comunicação da opinião (como fazem os psicólogos cognitivistas, cuja posição em relação a aquilo que eles denominam conhecimento é, aliás, análoga àquela dos médicos frente ao corpo e àquela dos urbanistas e outros higienistas frente à cidade). Se, para De leuze e Guattari, o cérebro escapa a um saber de tipo objetivo é porque, neste caso, apreender é criar.

É o que sabem bem os amantes de drogas psicodélicas, mas também os adeptos de antigas técnicas espirituais. É o que sabem todos aqueles para quem se inter rogar sobre o cérebro não significa saber como ele funciona, mas aprender aquilo de que ele pode se tornar capaz – graças a novos agenciamentos sociais ou indi viduais, novas conexões com o exterior, novas próteses técnicas ou químicas.

Uma das maneiras de dizer “apreender é criar” é dizer que a maior parte entre vocês já sabe que “aprender é aprender com, criar os laços e os dispositivos que permitam aprender com as populações interessadas e não sobre elas”. Aprender estando em situação e não aprender sobre uma situação. Isso quer dizer conse guir criar situações correspondentes a um aprendizado com um duplo viés: o aprendizado, pelos protagonistas interessados em uma situação, da sua própria capacidade, e o aprendizado a obrigar urbanistas e outros especialistas a apren der com eles, entre eles e por eles.

Isso implica algumas restrições, sobretudo o fato de que, deliberadamente, ativa mente, contra toda plausibilidade, trata-se de conseguir não se remeter àqueles que “criam problemas” enquanto “ameaças” suscetíveis de serem levados por uma avalanche ou uma revolta, nem tampouco enquanto “fracos”, vítimas de dificuldades, devendo ser assistidos, serem reinseridos no tecido social. É o caso, por exemplo, quando propõe-se aos jovens aprenderem as virtudes viris do es

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forço e da solidariedade jogando basquete nos bairros: não tenho nada contra o esporte, mas suspeito que os próprios interessados sabem que se trata antes de tudo de ocupá-los, e que aqueles que buscam ocupá-los os definem ao mesmo tempo em termos de “falta” e de “ameaça”.

A aposta de “apreender é criar”, projeto tão deliberado, político, consciente, como aquele da invenção da cidade-organismo em boa saúde no século XIX, me parece implicar a invenção de dispositivos cujo valor primeiro é de se dirigir aos protagonistas da vida urbana sob um modo que pressupõe e atualiza sua força, que podemos chamar de sua expertise. Não se trata evidentemente de se limitar a reunir um grupo e perguntar “o que vocês querem”? Não se demandará a pes soas até então definidas como “fracas” de produzirem de repente sua própria ex pertise, essa seria uma má utopia, partindo da ideia de que somente a repressão separava essas pessoas de sua própria força. Por outro lado, é claro, não se trata de uma política cosmética – política imediatamente intuída e na qual só aceitam participar aqueles que esperam daí tirar vantagens pessoais. Devem, então, ser evitadas ativamente, deliberadamente, politicamente, as iniciativas de tipo ain da e sempre pedagógicas, que visam aprovar – como se nós “aprendêssemos” juntos a necessidade incontornável – decisões e medidas previamente definidas no seu essencial. Isso é, evidentemente, mais fácil de dizer do que de fazer, mas é isso que, finalmente, nos interessa a todos, sejamos urbanistas ou não. Sempre pensei que um problema não estaria muito mal formulado se, formulado deste modo e não de outro, ele cruze com outras possibilidades e as coloque em resso nância, no sentido da mais alta dificuldade.

O que viso aqui - e isso é normal porque “reinventar a cidade” não é qualquer coisa - é, portanto, um processo eminentemente custoso em tempo, em esfor ços, em decepções, em desordem relativa, em retomada constante: com plexo. Isso implica outras restrições, relativas, dessa vez, ao exterior.

Com efeito, o processo está condenado a fracassar se lhe é demandado de apresentar provas, de provar que ele constitui, por exemplo, uma solução melhor do que a política de tolerância zero que, diz-se, trouxe segurança às ruas de Nova York e lotou as prisões americanas: escolha deliberada da política da complicação, pois faz se respeitar as convenções.

É um processo que deve igualmente resistir à atração da estabilização, que assegura e permite a legibilidade, o “quem faz o quê”. Com efeito, deve ser uma questão de se experimentar dispositivos suficientemente múlti plos, redundantes, díspares e indeterminados quanto à sua função, para que não se tornem eles mesmos um novo modo de estratificação, ou uma questão de rivalidade para novos pequenos chefes (como são hoje tantos centros culturais criados pela boa vontade do Estado).

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É também um processo vulnerável à acusação de “brincar com fogo”, de atiçar os conflitos. De fato, só há verdadeira criação social quando trata-se de forças que aceitam se ligar, se articular, o que supõe que elas consigam, antes de tudo, articular, produzir seu próprio movimento, isto é, atualizar, afirmar e produzir uma heterogeneidade real e a priori conflitiva.

É deste modo, parece-me, que a questão da complexidade pode ganhar impor tância. Não se trata de ciência, nem de utopia, mas de escolha: manter o ideal de uma cidade homogênea, decifrável do exterior, complicada e funcional, ou ar riscar uma cidade que aprende, isto é, uma cidade bagunçada, conflitual, incerta, repleta de disputas e de negociações e, portanto, relativamente opaca em relação ao exterior. Uma cidade que desaponta as boas intenções de todos aqueles que cobram sem tentar participar da criação das questões pertinentes, de todos aque les que pensam que têm o direito de conhecer sem ter que apreender e, portanto, criar.

Compreende-se, então, que se há uma questão de complexidade em matéria de reinvenção das cidades, essa questão designa uma escolha eminentemente, radicalmente, política, uma escolha que os urbanistas, planificadores e outros gestionários do espaço urbano são bastante incapazes de definir entre si. Mas pertence a eles, se eles concebem essa escolha pertinente, recusar o papel de médico, abster-se de toda operação que eles sabem ser cosmética, apreender - e aprender a dizer aos outros – aquilo que condena hoje suas boas intenções e suas boas ideias a continuar a ser apenas isso, boas intenções e boas ideias.

Não se pode pedir mais para quem quer que seja, mas talvez não se possa pedir menos para aqueles que afirmam a necessidade de “reinventar a cidade”.

1 Conferência de abertura do Colóquio “Urbanidades - encontros para reinventar a cidade”, organizado pela Fundação 93, durante a CitésplanèteBienal do Meio Ambiente, iniciativa do Departamento de Seine Saint-Denis, França, em colaboração com a ASTS (Association Science, Technologie et Société), 2000. Tradução de Cecília Campello do Amaral Mello (IPPUR/ UFRJ) e revisão de Vladimir Moreira

Ribeiro (CAp/UERJ).

PARA CITAR: STENGERS, I. Reinventar a cidade? A escolha da complexidade. Tradução de Cecília Campello do Amaral Mello e Vladimir Moreira Lima Ribeiro. Redobra , n. 16, ano 7, p. 17-27, 2022.NOTA
Lima
ENTREV ISTAS

REDOBRA 16

Entendendo a urgência de mudarmos o modo como fazemos mundos e paisagens, quando está em jogo inclusive nossa possibilidade de sobrevi vência enquanto espécie num planeta à beira da catástrofe climática-eco lógica, gostaríamos de lhe convidar para pensar conosco esse tema, res pondendo à pergunta: qual a sua escolha para reinventar a cidade?

ALEX SIMÕES

Poeta, performer

Esta cidade tinha tudo para não ser minha, mas é. Ela me assusta não pelo seu tamanho, senão pelo que nela não cabe mais. Já coube nela mais batuque de ter reiro e não só dentro dos terreiros, quando era preceito das muitas casas sem preceito receber todo mundo para comer caruru tão logo os sete meninos es vaziassem a tigela da balbúrdia. Já coube nela rio que dava para nadar, coisa que, embora não tenha alcançado, me é trazida pela memória de criança com meus tios contando que era só descer a avenida Bahia, onde nasci e cresci, e seguir em direção à Gomeia de Joãozinho. O que alcancei foram os rios fedendo e sendo um por um cobertos pelo asfalto. Cresci num bairro que até meus sete anos fazia sentido ter a palavra “fazenda” no nome, por causa das árvores que davam frutos e que eu precisei aprender a subir para pegá-los. Tinha cobra e sariguê rondando as casas, virando de quando em vez comida de caça, e um ritmo que combinava com os mais velhos, que nela transitavam sem medo, porque eles cabiam nela. Não tenho saudade daquela cidade porque ela nunca foi minha. Ela foi também a cidade da colônia, onde os pretos tinham de saber o seu lugar, que geralmente era na rua e à noite. A cidade que reinvento, ela sim é minha. Seu ritmo é lento e os pretos têm casa para morar e andam nas ruas sem medo do capitão do mato, que hoje veste farda e é chamado de policial ou segurança. Ela reverbera memórias que não apenas as minhas ou as dos meus tios me contando o que não dava mais para nela fazer. Nela viveram Xica Manicongo sendo uma mulher preta trans denunciada pelo Santo Ofício e Luiz Gama quando era ainda uma criança liberta. Nela os mais velhos e todas as pessoas que precisam de mais tempo e mais espa ço para se locomover têm lugar com rios cheios de vida. Salvador tem um caos muito particular e é o seu caos que nos une, e não há sentido em reinventar uma Salvador que não seja caótica. Venho tentando entender as pistas que esta cidade me dá com palavras e frases soltas e fragmentadas nas paredes, nas ruas. Quando estou a pé ou de bicicleta no miolo do centro de uma Salvador inexoravelmente colonial, sou apenas mais um que insiste em caber nesta cidade, que tinha tudo para não ser minha, mas é.

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CRISTINA FREIRE

Crítica de arte, curadora, professora da USP

“O passado é vingativo” já advertia Otávio Paz no clássico O Labirinto da Soli dão.

Como pensar o futuro da cidade ou reinventá-la sem considerar o passado? O passado próximo, o distante, o ancestral e o imemorial?

No Brasil, o passado ancestral comum não se encontra na cidade, mas na floresta. As ruínas romanas, as pirâmides egípcias ou os templos gregos não constituem arquétipos de nosso inconsciente coletivo.

Compreender esse arquétipo de um ser-floresta em nós é apreender um todo coletivo maior, um sistema solidário que abarca o vegetal, o mineral e o animal, sem hierarquias. Antes de tudo há que se superar as certezas arraigadas do pen samento hegemônico Ocidental. Isso porque esse outro modo de construção do conhecimento, em cooperação e na solidariedade entre todos os seres, põe em suspensão o antropocentrismo e o pensamento cartesiano que separa corpo e mente, e nos coloca como observadores externos da Terra e distantes do solo em que pisamos. Essa outra forma de ver e viver implica uma participação ativa na criação necessária de outras paisagens (incluindo florestas), entendida como a expressão de valores, representações e modos de vida, pautada pelo sentido de justiça, sociabilidade e solidariedade entre todos os seres vivos.

Nessa opção existencial, o saber abstrato, instrumentalizado pelo tempo linear da produção, isto é , das contas e do lucro, deixa de ter preponderância. Esse tipo de saber sensível e intuitivo é resistente à uniformização da mídia, ao conformis mo das modas, à manipulação da opinião pela publicidade, pesquisas de opinião e redes sociais.

Nessa ecologia da subjetividade deve-se buscar reinventar nossa relação com a terra, não só no sentido abstrato do planeta Terra, mas em sua concretude, no

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solo, tão escondido pelas camadas de cimento e asfalto no chão das cidades. Como explicar a invisibilidade e degradação do solo no planeta inteiro, se dele também depende a vida na terra? Como compreender, historicamente, a falta de consciência e de cuidado, sabendo que 1/3 do solo do planeta está destruído?

Assim, a floresta tropical, reserva de biodiversidade que vem sendo destruí da desde o início da colonização, é força motriz capaz de equilibrar o planeta, em suas urgências climáticas e pandêmicas, e também capaz de produzir subjetividades, estados de consciência e transcendência, em mundos expandidos invisíveis e inconscientes, ao articular todos os seres vivos; vegetais, animais, minerais, constelações e planetas, forças formativas, super e suprassensíveis, realidades sutis, não quantitativamente mensuráveis, espirituais e anímicas, im pulsionadas pela ética do cuidado e pela força da resistência, necessariamente colaborativa e solidária.

O dilema que se coloca hoje é: como acessar e integrar essa floresta ancestral, impressa em nosso corpo, como traço inconsciente de memória biocultural que nos identifica coletivamente ? Se a natureza nos fala por sinais, o que se busca é um olhar capaz de ver as correspondências entre as formas, para reaprender a ler os símbolos, os pontos densos onde se cruzam diversas linguagens, lugares e tempos.

EDUARDO DAVID DE OLIVEIRA

Escritor, filósofo, professor da UFBA

ORLA E O OUTEIRO

Pedalava distraído pela orla de Salvador quando lembrei desses versos de Al berto Caeiro, e um sentimento de indignação invadiu-me o peito, pois, a pouco tempo, folheara um livro, aleatoriamente, quando deparei-me com expressões racistas de Fernando Pessoa. Fui sempre afeito a reinvenções, pois o exercício da imaginação antecede a política. Passei tempo a imaginar, por exemplo, os fa lanstérios de Charles Fourier e sua cidade utópica, bem como as sociedades sem Estado dos Guaranis de Pierre Clastres, ou as aldeias tradicionais de Kinshasa, no Congo, ou mesmo a Cidade de Pedra do Antigo Zimbabwe... De minha indigna ção nasceu o desejo de ressignificar o poeta português, um dos meus preferidos - mas agora maculado. Ainda distraído, mas imbuído da intenção de revitalizar o imaginário, imaginei o poeta, com seu chapéu característico e óculos redondos, montado numa bicicleta antiga, de grande roda dianteira, admirando a paisagem negra de Salvador: uma cidade construída sobre o sangue de pessoas escraviza das, abaixo da chibata dos portugueses, agora revisitada sob o prisma da beleza negra, que dá à capital soteropolitana seu brilho e poesia. Neste caso, a reinven ção é a do poeta, pois sobre a cidade paira mais o reconhecimento do que ela já é, e que, no entanto, foi encoberto por anos frios de racismo e exclusão. Pela poesia, fez-se, então, política.

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Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver no Universo... Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer Porque eu sou do tamanho do que vejo E não, do tamanho da minha altura... Nas cidades a vida é mais pequena Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro.

Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave, Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe de todo o céu, Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos nos podem dar, E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver. AlbertoCaeiro,in“OGuardadordeRebanhos-PoemaVII”

era uma vontade de mar e sol no fundo da boca na superfície da pele

aros prateados tatuagem e ferrugem cicatriz e maresia

olhos vadiando no horizonte tanto mar, tanto mar atrás, os montes era a pele azeviche a beleza crua x a razão retilínea

a cidade arde curvilínea olhos negros miram a areia branca um mar de passagem era um sonho? realidade? toda verdade, antes, é produto da utopia! Caeiro recriado pedala no passeio

da minha cidade minha meu outeiro é orla brisa, liberdade, rima...

EduardoOliveira

EDUARDO STERZI

Poeta, crítico literário, professor da UNICAMP

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Diante de objetos que são também acontecimentos, como a cidade, a própria noção de escolha encontra um limite. Afinal, talvez o que defina uma cidade seja justamente a sua recalcitrância reiterada em se adequar a qualquer desejo locali zado – individual ou de grupo – e sobretudo a qualquer projeto – mesmo os mais generosos. A cidade escapa a nossas decisões e frequentemente decepciona, por que se molda, antes de tudo, pelos fluxos que a vão desenhando e redesenhando continuamente, na maioria das vezes ao sabor das necessidades, que podem ser brutais, na medida em que exprimem esquemas sociais e econômicos perversos.

Em São Paulo, por exemplo, cidade em que moro há mais de vinte anos, por mais que gostemos de pensar que os novos parques (Minhocão, Augusta, Tietê, do Povo etc.) ou as ciclovias, ou ainda a Paulista aberta para pedestres aos domingos, ou o bilhete único de transporte (hoje reduzido a um simulacro do que já foi), sejam marcos de reinvenção da cidade, nenhuma dessas iniciativas se compara, em inventividade e em efeito contínuo sobre a vida dos habitantes, à região sem pre móvel que chamamos de “Cracolândia” – que é uma região e é também um povo – ou ainda aos corredores muito concretos, ainda que a rigor virtuais, que os milhares de motoboys criam diariamente nas principais avenidas da cidade ao transitar entre os corredores delimitados para todos os veículos automotores, aos quais, porém, eles não podem se restringir, pois trânsito aqui é eufemismo (o congestionamento é a regra) e tempo, como se sabe, é dinheiro.

Penso, portanto, que, quando falamos em reinvenções da cidade, precisamos antes de tudo recordar e levar a sério a ambivalência da palavra invenção – e tam bém a redundância que, em alguma medida, o prefixo re-introduz neste concei to. Afinal, etimologicamente, inventar é encontrar; e este sentido vive, numa espécie de concorrência subterrânea, por baixo do sentido hoje mais corrente, que é o de produzir algo novo. Podemos dizer, pois, que reinventar significa pro duzir alguma novidade a partir do que já está dado, mas também, tantas vezes, reencontrar algo preexistente como se fosse novidade. E a cidade, assim como a linguagem, está sempre dada de antemão quando a ela chegamos, como in divíduos ou como comunidades; inventar uma cidade do zero, como se fez em Brasília ou em outros lugares, é algo da ordem do delírio, tanto quanto as línguas artificiais – o esperanto ou o volapuque. Inventa-se, aí, antes de tudo esse zero do qual se parte – que, de zero, a rigor, não tem nada: o que há, desde sempre, é já uma grande quantidade de coisas, pulsantes de vida mesmo quando suposta mente inanimadas, contra as quais inventamos.

Daí que o grande desafio, quando se torna urgente reinventar a cidade, talvez seja se manter longe de novas versões desta violência originária que as cidades artificiais deixam explícita. As reinvenções da cidade são, sim, sempre arqueológicas – mas seus achados, por mais ruinosos que pareçam, são partes de uma coisa viva. Reinventar a cidade é, portanto, antes de tudo, reencontrar as inven ções da cidade, os modos como ela foi e é construída, talvez sobretudo para iden tificar os desvios do impulso que lhe deu origem (que pode ser um projeto ou uma contingência), não, porém, para corrigir esses desvios, de forma no fundo moralista, mas para interpretar e compreender as razões desses desvios. Esses desvios, afinal, tanto quanto os atalhos, são a própria forma da cidade, muito mais do que seus traçados oficiais, suas ruas e suas avenidas. Numa cidade, como sabe qualquer pedestre inveterado, seja este um flâneur ou um cracudo, as linhas que o desejo e a necessidade vão traçando são muito mais importantes do que as rotas previstas ou previsíveis. Se isso vale no espaço, talvez valha ainda mais no tempo (e a história talvez seja apenas outro nome para a geografia).

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EDUARDO VIVEIROS DE CASTRO

Antropólogo, professor da UFRJ

Eu dificilmente faria uma proposta (ou diagnóstico) melhor que a de Mike Davis neste artigo1:

QUEMCONSTRUIRÁAARCA? 2

A crítica ecológica utópica da cidade moderna foi prenunciada pelos socialistas e anar quistas, começando pelo sonho do Socialismo de Guildas - influenciado pelas ideias bio-re gionalistas de Kropotkin, e, mais tarde, de Geddes - de cidades-jardim para trabalhadores ingleses, e terminando com o bombardeio do Karl Marx-Hof, a grande experiência de vida comunitária da Viena Vermelha, durante a Guerra Civil Austríaca em 1934. Entre estes estão a invenção do kibbutz pelos socialistas russos e poloneses, os projetos de habitação social modernistas da Bauhaus, e o extraordinário debate sobre urbanismo conduzido na União Soviética durante a década de 1920. Esta imaginação urbana radical foi vítima das tragédias das décadas de 1930 e 1940. O stalinismo, por um lado, desviou-se para um monumentalismo na arquitetura e na arte, desumano em escala e textura, pouco diferen te das hipérboles wagnerianas de Albert Speer no Terceiro Reich. A social-democracia do pós-guerra, por outro lado, abandonou o urbanismo alternativo em favor de uma política keynesiana de habitação em massa - a qual enfatizava as economias de escala em edifí cios de grande dimensão e em zonas suburbanas baratas - desmantelando, dessa forma, as identidades urbanas tradicionais da classe trabalhadora.

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Enfrentar o desafio do design urbano sustentável para todo o planeta e não apenas para alguns países ou grupos sociais privilegiados demanda uma imaginação vasta, tais como as artes e ciências desenvolvidas na Bauhaus e nos Dias de Maio de Vkhutemas. Esse desafio pressupõe uma vontade radical de pensar para além do horizonte do capitalismo neoliberal, rumo a uma revolução global que reintegre o trabalho das classes trabalhadoras informais, bem como dos pobres rurais, na reconstrução sustentável dos seus meios de subsistência e dos seus ambientes construídos. Claro que este é um cenário totalmente irrealista, mas ou se embarca numa viagem de esperança, acreditando que a colaboração entre arquite tos, engenheiros, ecologistas e ativistas pode desempenhar papéis pequenos mas essenciais, para tornar mais possível um alter-monde, ou se submete a um futuro em que os designers são apenas os imaginadores oportunistas das existências alternativas das elites. As “zonas verdes” planetárias podem oferecer oportunidades faraônicas para a monumentalização de visões individuais, mas as questões morais de arquitetura e planejamento só podem ser resolvidas nas favelas e na dispersão das “zonas vermelhas”.

Nesta perspectiva, somente um retorno ao pensamento explicitamente utópico pode escla recer as condições mínimas para a preservação da solidariedade humana diante de crises planetárias convergentes. Creio entender o que os arquitetos marxistas italianos Tafuri e Dal Co quiseram dizer quando advertiram contra “uma regressão à utopia”; mas para er guer nossa imaginação à altura do desafio do Antropoceno, devemos ser capazes de ima ginar configurações alternativas de agentes, práticas e relações sociais, e isto exige, por sua vez, que suspendamos as suposições político-econômicas que nos acorrentam ao presente. Mas o utopismo não é necessariamente milenarismo, nem está confinado apenas a ser pro clamado de um pedestal ou púlpito. Um dos desenvolvimentos mais encorajadores nesse es paço intelectual emergente, onde pesquisadores e ativistas discutem os impactos do aque cimento global no ambiente, tem sido uma nova vontade de defender o Necessário e não o meramente Prático. Um coro crescente de vozes especializadas adverte que ou lutamos por soluções “impossíveis” para as crises cada vez mais enredadas da pobreza urbana e da mu dança climática, ou nos tornamos cúmplices de uma verdadeira triagem da humanidade.

Ao que eu acrescentaria uma condição preliminar para qualquer reinvenção da cidade, em particular no contexto brasileiro: (1) reforma agrária radical; (2) fim da matriz tecno-econômica da monocultura de commodities. Para reinventar a cidade é preciso reinventar o que está para além dos limites da (nova) cidade. Não sei, porém, até que ponto as condições mencionadas são consistentes com a proposta de Davis, visto que ele não chega a elaborar a relação entre sua cidade -como-solução para o Antropoceno e a dominação mundial do agronegócio no Plantationceno.

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JOÃO PAULO BARRETO TUKANO

Ativista indígena, antropólogo, professor da UFAM

É preciso olhar a “natureza” como extensão das pessoas, ou, as pessoas encara rem como extensão da “natureza”. Sem esse olhar, a vaidade humana sempre se sobreporá sob a ilusão de que somente os humanos são agentes de transforma ção, ou seja, destruir a “natureza” que são casas de waimahsã e de agencialidade própria, para substituir por casas de cimento, encarando a “natureza” como pas sivo. Isso passa em primeiro lugar na reeducação da sociedade, educar as pessoas para o convívio com as diferenças e as diferentes formas de vida. E as instituições de ensino, seja de engenharia, de arquitetura, recuperar o sentimento de per tencimento das pessoas com a “natureza”. Fazer ciência com o coração, e não somente pela razão.

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KARINA BUHR

Cantora, compositora, poeta, escritora

Presença. A cidade precisa da convivência em todos os espaços, precisa do teatro e da música na rua, da poesia, do artesanato, da alegria e da lata de lixo. Está tudo endurecido, quanto mais dinheiro mais fora da movimentação urbana, mais es tigmas, mais falta de olhares, e a cidade definha, abandonada e apenas absorven do, não acolhendo quem não está atrás dos muros altos. Quem está atrás tam bém não participa, só usufrui.

A cidade está ansiosa, tem crise de pânico, não respira, não mistura. O pensa mento em cada um como essencial pro funcionamento saudável do lugar em que se vive, como árvore, pessoa, ritmo, rima, com a mesma importância. O car naval de rua traz sua solução de volta em quatro dias. O contato de todos com a arte que todos produzem, que furam membranas, sem apagar conflitos, exaltan do os conflitos necessários para mudanças conscientes.

Ocupar os espaços, públicos e também privados, se espalhar, fomentar pra que outros se espalhem por conta própria, criar, agir, continuar, fluir. Comida, inter net, acesso à saúde, tudo derrubado. Como pau da mata, a mesma importância, o mesmo corte pro chão e ainda há os de pé. Dá muito trabalho, é quase impossí vel, mas se pode fazer no miúdo enquanto se cobra dos graúdos, cada qual e suas forças, apesar de toda desesperança e luto.

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LUCRECIA RAQUEL GRECO

Antropóloga, performer, professora da UFBA

Para reinventar a cidade, eu focaria na porosidade, na respiração no ritmo e na permeabilidade, na mão, nos pés e no pulmão e coração. Respirar e andar como motor de vida possível, da vida melhor. Mãos, coração e pés “na frente”; costas “na frente”. Deslocar os eixos. Rastejar. As alturas tem que ser extra cotidianas, cotidianizar o chão que pisamos, entender os pulmões do todo. Parece abstrato, politicamente inviável. Que isso seja inviável é o asfixiante.

Parecem conceitos, mas são existências. Reinventar a cidade é reinventar formas de existir. Baixar o nível, tocar. Ver. Atender. Cuidar. Implantar pulmões. Descal çar. Olhando para o chão e sua impermeabilidade assassina, assim como as fissu ras fazem. Os buracos de reformas poderiam nos levar a desfazer as estruturas. Olhar para o chão deixa ver as existências humanas descuidadas, os pisos hostis. Permear pode ajudar a abraçar e a não aceitar os limites densos das desigualdades e colonialidades. Questionar as peles que nos separam.

Um filho meu, falando da “sujeira” da terra no seu corpo, perguntou: “por que a terra não fica suja?”. Achei que ele entendeu que terra não é sujeira.

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Antropóloga, professora da UFAM

Penso que todo processo inventivo deve partir de certas condições materiais-semióticas. E talvez esse seja o primeiro ponto que demanda uma escolha para responder a questão. Afinal, qual cidade? Escolho partir de Manaus, a cidade que por distintos motivos tenho feito casa nos últimos anos. Falo como antropóloga e como moradora de uma cidade amazônica, por si só um ponto de inflexão às reflexões majoritárias da antropologia urbana. Inflexão que parece oriunda de uma dificuldade em atentar ao urbano desde a Amazônia, cujo modelo (colo nial, sem dúvida, da Cidade com C maiúsculo, do ideal moderno) parece não “encaixar” no que aqui se situa. Lida a partir da falta (aquilo que ela não é, os serviços que ela não tem, a sua precarização enquanto Cidade); e do exotismo (aquilo que ela deveria ser ao olhar colonial, marcado pela transitoriedade que a faz por vezes invisível: Manaus figura como uma cidade-passagem para turistas, pesquisadores, viajantes deslumbrados com o interior da floresta amazônica e suas populações nativas humanas e não-humanas, em busca de uma Amazônia que habita o limiar do paraíso idílico da Natureza preservada; do desejo explo ratório, da Natureza domesticada aos interesses do Capital; e do inferno inci vilizado da Natureza indomável e perigosa. A dualidade entre Cidade/Cultura – Floresta/Natureza, uma dessas complicações do pensamento ocidental que as cidades amazônicas, do meu ponto de vista, resistem em se adequar.

44 LUIZA DIAS FLORES

Enquanto antropóloga, sentirpensar o que é a cidade desde o contexto amazô nico é uma importante escolha nesse processo inventivo. Mas, afinal, de quais agenciamentos partir? E a antropologia, sem dúvida, pode ajudar a formular essa questão e derivar suas consequências no exercício de pensar com aquelas e aqueles que fazem a cidade, diretamente envolvidas/os e interessadas/os na sua criação. No meu caso, além de moradora, envolve uma aproximação com os terreiros que compõem a cidade de Manaus. Territórios comunitários negros e afroindígenas de culto à deidades, encantados e espíritos, em que as dimensões minoritárias da sociedade brasileira são experimentadas, na presença de ma landros, bruxas, prostitutas, transgêneros, indígenas, velhos escravos, animais encantados e divindades não-brancas, entidades veneradas e que nos ensinam sobre resistência às violências coloniais, embaralhando as temporalidades linea res e os espaços individualizados da modernidade, incluso a Cidade.

O que tem me interessado são as relações que os terreiros, majoritariamente situados em bairros periféricos, estabelecem com as matas (as Áreas de Prote ção Ambiental, os corredores ecológicos e as áreas verdes, como os inúmeros igarapés), incluso as complexas relações constituintes desses lugares nas ruínas do capitalismo (poluentes variados também fazem parte dessas composições).

As matas são lugares de contínuas negociações, por vezes conflituosas, com seres que ali habitam e que também participam da cidade de Manaus. Através dos circuitos que criam, dos envolvimentos (entre humanos e mais-que-huma nos), dos enfrentamentos (contra as investidas do racismo religioso e racismo ambiental) e das práticas de cuidado, tecnologias ancestrais africanas e afroin dígenas continuamente reativadas, é preciso desenvolver a atenção e aprender com as forças e seres ignorados e exortados pela modernidade, mas reconheci dos pelas comunidades de terreiro, que insistem em habitar e a fazer a cidade. Certamente outros caminhos inventivos já estão em curso e, como ensinam as lideranças de terreiro ao sujeito que inicia uma relação com as deidades e entidades, “é preciso aprender a sentir”. Escolher aceitar essa premissa talvez seja um começo possível.

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SUELY ROLNIK

Filósofa, psicanalista, crítica de arte, professora da PUC SP

DESCOLONIZAR O INCONSCIENTE, EIS A QUESTÃO

Reinventar a cidade insere-se no movimento mais amplo de reinvenção da vida em todas suas manifestações, tarefa que se impõe a nós no presente com uma urgência incontornável. Em meu modo de ver as coisas, tal tarefa implica, neces sariamente, um trabalho de descolonização do inconsciente. Mas por quê?

Um sistema político-sociocultural, seja ele qual for, não é uma abstração, mas se encarna em determinados modos de existência que resultam do regime de inconsciente que lhe é próprio. Tal regime é responsável pela produção de um certo tipo de subjetividade e de sua relação com o outro, assim como o tipo de sociedade que se tece nesta trama – o que dá ao referido sistema sua consistên cia existencial, sem a qual não se sustentaria. É nesta esfera que um sistema se produz e se reproduz e é, também nela, que ele se transforma. Do embate entre as forças que levam à sua reprodução ou transfiguração, em diferentes graus, re sultam as formas da realidade e seu respectivo desenho cultural, razão pela qual podemos chamar esta esfera de (micro)política.

O modo de subjetivação dominante produzido por esta fábrica de mundos, sob o regime de inconsciente próprio ao sistema colonial-racial-patriarcal-capitalista, é a neurose estrutural. O espírito3 separa-se dos efeitos, em nosso corpo, das for ças dos componentes do ecossistema ambiental, social e mental do qual somos parte; efeitos que nos fecundam, gerando embriões de futuro. Tal separação nos

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dissocia de nossa condição de viventes, na qual nos constituímos como trans pessoais (frutos dos efeitos variáveis de tais forças), e nos reduz à nossa condição sociocultural, definida segundo a cartografia vigente, na qual nos constituímos como pessoas (nossos personagens nesta cartografia). Nos convertemos, assim, em cápsulas narcísicas, blindadas ao outro, projetando ideias inadequadas sobre aquilo que nos acontece, geradas pelo espírito em seu exercício reativo, decor rente da obstrução de seu acesso aos referidos embriões, que conduzem o desejo a responder reativamente à sua presença. Tais respostas interrompem a germi nação destes futuros larvares, o que, em seu limite extremo, é gerador da peste fascista que hoje se propaga pelo planeta, especialmente no Brasil.

Sabemos da violência intrínseca ao capitalismo na esfera macropolítica: a pre carização da vida da maior parte dos humanos e sua exploração, assim como a exploração de todos os demais componentes do ecossistema ambiental, base da acumulação de capital. O que nos é menos evidente (exatamente por estarmos dissociados de nossa constituição transpessoal) é sua violência na esfera micro política: o abuso da vida em sua potência ativa: potência pulsional de criação e transfiguração das formas de existência, sempre que necessário para que a vida retome o ritmo em seu fluxo, quando este se vê interrompido, cumprindo assim seu destino ético que consiste em perseverar. Vejamos como se produz este abu so na fábrica de mundo sob a gestão deste regime de inconsciente.

Separado dos efeitos do ambiente em nosso estado vital, o espírito passa a não ter como avaliar os futuros em gestação de que tais efeitos são portadores, de modo a compor ideias adequadas que orientem o desejo em suas ações para que tais futuros venham à existência. Colocado neste cativeiro, o espírito só pode avaliar aquilo que nos acontece projetando representações da cartografia so ciocultural, do sistema em curso, segundo a qual se dá a gestão desta fábrica de mundos – no caso, a cartografia do modo de existência antropo-falo-ego-logo cêntrico. Um modo de existência indissociável da ideia inadequada de que este seria o ápice de um suposto processo de desenvolvimento humano (chamado de civilizatório), o que implica uma outra ideia, igualmente inadequada de que a criação de formas da vida humana seguiria uma linha progressiva supostamente universal. Orientado por estas ideias inadequadas, o exercício do espírito passa a ser restivo.

O princípio organizador desta ideia inadequada é a noção de raça aplicada à espé cie humana (noção que se refere não só à cor de pele como marcador de diferença, mas também ao gênero e à classe, entre outros). Tal noção é uma invenção deste sistema em sua fundação, no final do século 15, junto com seu empreendimento colonial e escravocrata, com o qual tem início a acumulação de capital, base deste sistema, hoje globalitário. A falácia desta noção estabelece uma hierarquia ima ginária que sustenta a referida ideia inadequada de que o modo de existência dos

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homens brancos das elites europeias colonizadoras estaria no topo do suposto desenvolvimento da espécie humana, em relação ao qual se mediria o valor de todos os demais, de acordo com seu maior ou menor grau de aproximação deste modelo.

São estas operações micropolíticas que criam as condições para a cafetinagem da vida, não só a vida dos humanos supostamente inferiores, mas a de todos os componentes da biosfera. O desejo passa a agir desviando de seu destino éti co a potência de criação de formas de existir, para levá-la a produzir formas que viabilizem a acumulação de capital, não só econômico e político, mas também narcísico. Sendo assim, sua violência na esfera micropolítica sustenta e legitima sua violência na esfera macropolítica.

Se nos restringimos a combater este sistema na esfera macropolítica, permane cemos micropoliticamente sob o domínio deste regime de inconsciente, mantendo assim as bases para a perpetuação da cartografia social que ele produz na esfera macropolítica, mudando apenas suas roupagens. Resistir na esfera mi cropolítica implica em ocupar a fábrica de mundos, para tomar seu comando e orientá-lo a partir da perspectiva da descolonização do inconsciente, no lugar da perspectiva de sua colonização, eixo de sua gestão em curso.

É isso o que vem sendo empreendido pelos ativistas dos movimentos negros, indígenas, feministas, LGBTQIA+ e ambientalistas, os quais têm logrado im por-se cada vez mais na cena pública4. Em alguns países da América Latina, tais movimentos têm gerado efeitos de contágio cada vez mais potentes, a ponto de provocar a irrupção de levantes em parte significativa das respectivas sociedades.

Nesses levantes, experimentam-se outros modos de existência, autogeridos e autônomos em relação ao Estado democrático de direito. A inspiração destes deslocamentos vem da ativação, no presente, de perspectivas micropolíticas de relação com a vida próprias das ancestralidades afro-diaspóricas e indíge na5, próprias também da ancestralidade das mulheres, antes deste seu exercício micropolítico ativo de relação com a vida ter sido cancelado sob o estigma de “bruxaria”. Em tais experimentações sociais se esboça uma imagem de futuro de outras formas possíveis de governabilidade em que, orientando-se segundo estas perspectivas, a sociedade definiria suas prioridades, das quais os dirigentes por elas designados seriam os mandatários.

É em sintonia com estes movimentos que proponho a seguir dez sugestões para este tão esperado protesto dos inconscientes. Tais sugestões, obviamente, têm o limite daquilo que pode meu corpo nesta construção coletiva.

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DEZ SUGESTÕES PARA OS INCONSCIENTES QUE PROTESTAM

1. Desanestesiar nossa vulnerabilidade às forças que compõem o ecos sistema ambiental, social e mental: a experiência dos efeitos, em nosso cor po, das forças que emanam dos demais elementos que compõem o corpo vivo da biosfera e com os quais interagimos, quer o saibamos ou não. Tal vulnerabilida de é a potência de nossa experiência transpessoal (própria de nossa condição de viventes). Embora distinta de nossa experiência como pessoas (própria de nossa condição sociocultural), elas são indissociáveis e se interferem mutuamente, o que define o movimento pulsional e impulsiona os processos de subjetivação.

2. Desobstruir cada vez mais, e com maior empenho, nosso acesso à tensão que resulta da interferência mútua entre estas duas experiências, motor dos devires individuais e coletivos: tal tensão produz, inevitavel mente, um estado estranho e familiar, ao mesmo tempo; estado que nos deses tabiliza, gerando um mal-estar.

3. Ativar e desenvolver o saber eco-etológico (ou saber pulsional) ao longo de toda nossa existência: um saber próprio do espírito em seu exer cício ativo, por meio do qual ele sabe que a causa de nossa desestabilização são tais embriões de futuro que se aninham em nossos corpos (frutos de nossa fe cundação pelas forças com as quais interagimos no ecossistema). Ele sabe que esses embriões tensionam o mundo em que nos reconhecemos e nos desterri torializa, e que essa é a causa de nossa fragilidade. O espírito se vê, então, forçado a avaliar os futuros que tais embriões anunciam e a criar uma ideia a partir des ta avaliação, para responder às demandas que a vida nos impõe como exigência para que estes futuros em gestação venham à existência.

4. Não denegar a fragilidade resultante desta desterritorialização, nem interpretar o estado instável e o mal-estar que essa nos produz como “coisa ruim”; tampouco projetar sobre eles leituras fantasmáticas, produzidas por nossa subjetividade reduzida à sua experiência como pessoa. São ejaculações precoces do ego, por sentir-se ameaçado de desamparo e falência e as consequên cias imaginárias desta ameaça: repúdio, rejeição, exclusão social, humilhação e, no pior dos casos, a loucura. As leituras fantasmáticas são ideias inadequadas, produzidas pelo espírito em seu exercício reativo, acerca da causa deste estado instável e seu desconforto, e que nos faz interpretá-lo como decorrente de um suposto erro (nosso ou de outros), que vem sempre acompanhado dos senti mentos tóxicos de culpa ou de ressentimento.

5. Não ceder à vontade de conservação das formas de existência e à pres são que esta exerce contra a vontade de potência da vida em seu impulso para produzir diferença, toda vez que se vê sufocada nas formas do presente. Ao con

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trário, buscar sustentar-se na corda bamba desse estado instável até que a imagi nação criadora construa um corpo-expressão que, por ser portador da pulsação dos embriões de futuro, atualize o mundo virtual que tais futuros em gestação anunciam, permitindo assim que as formas agonizantes acabem de morrer.

6. Não atropelar o tempo próprio da imaginação criadora , evitando assim o risco de interromper a germinação de um mundo. Tal atropelo torna a imaginação vulnerável a deixar-se expropriar pelo regime colo nial-racial-patriarcal-capitalista, que instrumentaliza a vida e a desvia de seu destino ético. É nesse desvio que a imaginação é capturada, submeten do-se ao imaginário que tal regime nos impõe sedutoramente, o que a tor na estéril. No lugar do exercício da criação do novo (para dar corpo àquilo que a vida nos demanda), a imaginação passa, então, a reduzir-se ao mero exercício de sua capacidade criativa, dissociada da vida e cafetinada para produzir novidades (que multipliquem as oportunidades de investimen to e estimulem a voracidade de consumo). É com base na produção desta monocultura dos territórios subjetivos, sociais e mentais que se opera a acumulação de capital econômico, político e narcísico.

7. Não abrir mão do desejo em seu exercício ativo, sua ética de afirma ção da vida. Isso implica em manter a vida fecunda, o mais possível, buscando alinhar-se a seu processo ilimitado de diferenciação de formas de existência e seus respectivos valores.

8. Não negociar o inegociável: tudo aquilo que obstaculiza a afirmação da vida, em sua essência de potência criadora. Aprender a distingui-lo do negociável: tudo aquilo que se poderia aceitar e remanejar porque não debilita a potência pulsional instituinte; ao contrário, é o que gera as con dições objetivas para que emerja um acontecimento, cumprindo-se assim o destino ético desta potência.

9. Praticar o pensamento em sua plena função: indissociavelmente ética, estética, política, crítica e clínica. Isto é, reimaginar o mundo em cada gesto, em cada palavra, em cada modo de existir e de se relacionar com o outro (humano e não humano), toda vez que a vida assim o exigir. Em suma, libertar o espírito de seu cativeiro colonial-racial-patriarcal-capita lista, de modo a devolver-lhe a potência de seu exercício ativo.

10. Não esquecer que substituir a monocultura dos territórios subjetivos, sociais e mentais (produzida pelo espírito em cativeiro) pelo reflorestamento destes territórios é um trabalho coletivo que não tem fim. Um tra balho que depende da disposição para exercê-lo por parte de muitos, numa orques

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tração comum que resulta das composições entre o que pode cada corpo, com seus dons e linguagens singulares. Não esquecer que este trabalho sempre se confrontará com forças reativas, submetidas ao feitiço que as leva a desejar a monocultura subjetiva, social e mental – ou seja, a desejar a morte.

1 Eduardo Viveiros de Castro compar tilha o link do texto “ Who will build the ark?”, de Mike Davis, publicado na revista New Left Review em 2010. Nesta edição da Redobra, traduzimos e publicamos trechos do artigo de Davis citado por Viveiros de Castro, com o título “Quem construirá a arca?”.

2 DAVIS, Mike. Who will build the ark?. New Left Review, v. 61, p. 29-26, 2010. Disponível em: <https://irows. ucr.edu/cd/courses/10/reader/ New%20Left%20Review%20-%20 Mike%20Davis%20%20Who%20 Will%20Build%20the%20Ark.htm>. Acesso em 10/09/2022. Os fragmen tos textuais aqui reproduzidos foram traduzidos por Ana Luiza Silva Freire.

3 Faço uso, aqui, da noção de “espí rito”, propositalmente, na intenção de associá-la a seu exercício ativo, o diferenciando de seu exercício reativo, dominante na tradição do pensamento moderno ocidental (e, portanto, em nós mesmos), reatividade que descrevo a seguir no corpo do texto. Tal intenção se insere em certa vertente da filosofia ocidental que se desvia desta tradição. Escolho esta vertente como ancestrais, cuja herança atualizo na criação de estratégias para o trabalho de descolo nização do inconsciente de seu regime

e, portanto, do modo de produção do pensamento sob este regime.

4 Evidentemente, tais movimentos não começaram hoje. Os movimen tos dos indígenas e dos afrodescen dentes vêm de longa data: inúmeras experiências coletivas, nesta mesma direção, atravessam os cinco séculos que nos separam da fundação colonial, genocida e escravocrata dos países neste continente. E se, hoje, tais movi mentos se intensificam e se expandem é porque, na última década, eles têm logrado impor-se com mais força, na contracorrente de seus reiterados si lenciamento e invisibilização, quando não de sua destruição física, promovi dos pelos procedimentos perversos do sistema dominante nestes contextos, que nunca deixaram de existir. Tam bém o movimento feminista vem de longa data: seu início, no continente, se dá no século 19, com a luta pela educação feminina, direito ao voto e abolição dos escravos. Uma segunda onda de tal movimento eclodiu nos anos 1960/70, quando a ideia de gê nero se separa de sua suposta base do sexo biológica e passa a ser considerada como multiplicidade variada e variá vel. Uma terceira onda eclodiu nos anos 1990, quando se destitui a ideia do binarismo também com relação ao sexo biológico, que até então ainda era considerado binário. Sua quarta onda começou há uma década, ganhando uma velocidade de propagação que dá ao feminismo um protagonismo que

racial-patriarcal-capitalista
NOTAS

jamais havia conquistado. Cabe assi nalar que, antes das mulheres terem se unido em um movimento batizado de “feminismo”, elas eram as que mais mantinham ativa a resistência na esfera micropolítica; no entanto, suas vozes tendiam a ser menosprezadas e canceladas pelo machismo imperante no sistema patriarcal, especialmente poderoso no continente e mais pode roso ainda no Brasil. E quanto ao atual movimento LGBTQIA+, este tem seus antecedentes nos anos 1970, quando começou mais discretamente; na déca da seguinte, o movimento ganha força em resposta ao surgimento da AIDS, tornando-se mais visível nos anos 1990, uma visibilidade incomparável com a potência de propagação que vem adquirindo nos últimos dez anos.

5 São exemplos desta experimentação coletiva: o movimento Zapatistas no México (que teve início há quase três décadas e persiste ainda hoje) e, mais recentemente, os levantes das socieda des chilena (2019-2020) e colombiana (2021-2022), que sustentaram a vitó ria de Gabriel Boric Font à presidência do Chile e de Gustavo Petro e Francia Márquez, à presidência e à vice-presi dência da Colômbia, respectivamente.

6 As dez sugestões, aqui propostas, são um mix de duas versões anteriores, publicadas em meus livros mais recen tes: Esferas da Insurreição. Notas para uma vida não cafetinada (São Paulo: N-1, 2018; uma terceira edição revisa da está prevista, pela mesma editora, para outubro de 2022) e As aranhas,os Guarani e alguns europeus. Outras no tas para uma vida não cafetinada (São Paulo: N-1, 2022; no prelo).

PARA CITAR: JACQUES,P.B.; OLIVIERI, S.; CARDOSO, T.M. Redobra 16 (entrevista). Redobra , n. 16, ano 7, p. 31-53, 2022.
ENSAIOS

ÁGUA E URBANISMO: AÇÕES ARTÍSTICAS PARA UMA CIDADE (IM)POSSÍVEL

WELLINGTON TIBÉRIO

Doutorando do FFLCH-USP e membro do coletivo (se)cura humana

FLAVIO BAROLLO

Videoartista, performer e membro do coletivo (se)cura humana

APRESENTAÇÃO – (SE)CURA HUMANA

A crise de abastecimento que foi vivenciada em São Paulo no ano de 2014 disparou uma série de questionamentos sobre a lógica de urbani zação que produziu condições tão absurdas de vida nas grandes cidades, mas que por costume acabamos por naturalizar. Essa situação materia lizou-se na falta de água em nossas torneiras ao mesmo tempo em que tínhamos esse mesmo recurso correndo em grande quantidade por diversos rios e córregos canalizados no espaço urbano. Foi nesse contexto que algumas iniciativas ganharam força e outras surgiram no sentido de problematizar o desenvolvimento urbano e sua relação com as águas que corriam e ainda correm pela cidade.

O coletivo (se)cura humana é fruto desse momento e surgiu do encontro entre um geógrafo músico e um engenheiro ator, somado às energias de diversas ou tras pessoas que embarcam em suas ações e criações de caráter aberto e colabo rativo. Seu campo de ação é a cidade, sua temática é a água. Tem como forma de ação a prática da performance, a criação de esculturas urbanas com materiais da construção civil e a produção de vídeos na perspectiva da videoarte.

As ações do grupo encontram-se em um ponto de convergência entre uma postura ativista ambiental e a ação artística. Os artistas têm no ativismo ambiental a possibilidade de potencializar certas experimentações devido à força que emana da defesa de uma causa, do engajamento que o envolvimento em uma luta pro porciona, e os ativistas ambientais têm na arte a possibilidade de potencializar suas questões devido à força da estética e seus efeitos no campo do sensível, da mobilização de outros sentidos para o engajamento em alguma questão. Portan to, há uma vitalidade mútua que se retroalimenta no encontro entre arte e ativis mo. Ética, política e estética convergem na potencialização da vida que se realiza no tempo presente.

A cidade é a maior obra humana existente, obra coletiva, anônima, contraditó ria. Ao longo do tempo, camadas foram se sobrepondo, alterando-se e se mis turando no espaço onde ela se desenvolve. A cidade é um fenômeno espacial complexo. Somos herdeiros de uma cidade construída por nossos antepassados. Deixaremos uma cidade como legado para os que virão. Entre o passado e o futu ro, estamos aqui e agora. Lamentamos certos caminhos escolhidos, analisamos criticamente o seu processo de desenvolvimento, assim como temos ideias e so nhos de uma outra cidade possível. Mas a questão que nos mobiliza é: diante do que temos, essa materialidade dada, e do que esperamos que venha a ser, o por vir, o que podemos realizar agora? Em um certo jogo de temporalidades temos como referência de ação dar materialidade ao que se apresenta como desejo de uma outra cidade. Presentificar um futuro idealizado como forma de conferir for ça para que esse futuro aconteça, mas também como prática de experimentação sensorial no presente da cidade que queremos, que reivindicamos, para a qual encontramos meios de fazer com que ela já exista entre o possível e o impossível. A cidade de São Paulo, por exemplo, teve o seu sítio inicial definido em função de dois rios, um pequeno, o Anhangabaú, que abastecia a então vila de São Paulo de Piratininga com água potável, e outro maior, o Tamanduateí, que servia como via de transporte de mercadorias vindas de pequenos produtores do entorno. Esse último também fazia a ligação com o maior rio da região, o Tietê, e assim co nectava a vila a um território bem mais amplo. Nesse contexto, a dinâmica social e econômica da cidade de São Paulo se desenvolveu numa relação muito intensa com suas águas. Fontes, tanques, chafarizes, casas de banho, poços e córregos eram parte importante da paisagem. Barqueiros, sentinelas de ponte, aguadeiros, zeladores de chafariz, lavadeiras, pescadores, comerciantes de pescados, cons trutores de poços, funcionários das casas de banho formavam uma parte impor

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tante da realidade socioeconômica intimamente relacionada às águas da cidade1

No entanto, no curso dos séculos que fizeram de seu território o centro mais dinâmico da economia do país - impulsionado pelo capital das lavouras de café, que trouxe a ferrovia e os imigrantes - e reafirmado pela força da industrialização tardia que se desenvolveu amplamente por essas paragens, as águas da cidade - seus rios, córregos e fontes - deram espaço para as avenidas, o asfalto e o con creto, sendo confinadas em canos, tubulações e estruturas da engenharia civil que as eliminaram da paisagem urbana e da dinâmica socioeconômica da cidade.

Na atual megalópole paulistana, os rios formam uma paisagem rara. A identidade do pau listano de hoje parece pouco sustentada por uma rotina frutificada em torno dos cursos fluviais. Dificilmente lembramos que a conhecida cidade da garoa foi, durante séculos, um lugar com muitos veios de água, apoiada por uma rica cultura material relacionada à construção de samburás, barcos, moringas de barro, fontes, pinguelas e pontes de madeira. Cidade das travessuras e receios vinculados aos rios, irrigada por águas que hoje correm na escuridão dos encanamentos (...). (SANT’ANNA, 2007, pág. 13)

Lembradas apenas nos episódios de enchentes e alagamentos, ou quando de sua falta nas torneiras das residências, as águas passaram a ocupar um lugar de pro blema a ser equacionado pelas técnicas que promoveram o urbanismo respon sável por negar toda a dinâmica ambiental que constituía o território no qual se desenvolveu a cidade. As tais “soluções” surgem como símbolo do avanço civi lizatório no domínio da natureza, mas nada mais fazem do que tornar evidente a falência do modelo de desenvolvimento urbano que produziu nossas cidades. A retificação e canalização de córregos e rios e a construção de piscinões não só não resolvem nossos problemas como reafirmam um modelo de cidade árido que visa eliminar a água e toda sua dinâmica ambiental da vida urbana. Assim também é nosso sistema de abastecimento, que ignora a existência de água no interior da própria cidade e vai buscá-la cada vez mais longe, justificando altos investimentos e grandes impactos ambientais, nos afastando do necessário re dimensionamento da nossa relação cotidiana com esse recurso natural funda mental à existência.

É diante dessa realidade que uma importante movimentação começa a surgir no sentido de olhar para a natureza negligenciada pelo urbanismo rodoviarista que se apossou de nossas cidades. Embaixo de muitas de nossas ruas e avenidas estão nossos córregos e rios. Pelas sarjetas da cidade corre água limpa de nascentes e de rebaixamentos de lençol freático2. Olhares atentos passam a se interessar pelas fissuras, brechas e vãos que insistem em se abrir aqui e ali. Os rios foram escon didos, as nascentes sufocadas, o chão impermeabilizado, mas há vestígios de que a natureza aquática do território ainda pulsa.

Nessa perspectiva, segue um pequeno texto que convidava os moradores de um bairro em São Paulo para conhecerem uma intervenção do coletivo (se)cura hu mana:

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A NASCENTE E O EDIFÍCIO

A cidade cresce, para os lados, para cima e para baixo, sobre põe-se à natureza, a cidade recria a paisagem, a cidade se im põe. Mas frestas se abrem aqui e ali, brechas, vãos. Há uma manifestação silenciosa e incansável de algo que escapa aos controles do asfalto e do concreto. O sol promove rachaduras, a chuva desgasta, as plantas abrem fendas, a água cria fissuras. A cidade fica mais interessante quando reparamos nessa delicada disputa por espaço. Somos produtores de uma cidade que sufoca, de um projeto de espaço urbano opressor, assim se fez a nossa querida São Paulo. Somos também força capaz de dar vez às trincas, ao que rompe os pisos, ao que emerge no deserto cinza.

Na Avenida Pompeia há uma calçada em que a água teimosamente insiste em brotar da terra. Ca sas foram construídas sobre esse local, depois foram derrubadas, interesses imobiliários querem secar a área para que seus áridos planos sejam tocados em frente, mas ela está lá, minando e umedecendo essa cidade dura. Podemos ignorá-la e, cedo ou tarde, técnicas modernas de rebaixamento de lençol freá tico darão um jeito de tirá-la de nossas vistas, mas também podemos lhe dar uma força e abrir espaço para que sua presença se manifeste de forma mais visível e talvez funcione como uma pedra no sa pato dos grandes interesses que tomam a forma de gigantes torres de concreto. A nascente e o edifício, versão contemporânea de Davi e Golias.

Figura 1. Lago da Pompeia Ver em: https://www.securahumana.com/ post/lago-da-pompéia

E então, eis que surge um lago, com peixes e plantas, para que a água possa fluir e, quem sabe, possa afogar mais uma investida do velho projeto de uma cidade sem vida. Venha ver, conhecer, se benzer, venha ser testemunha dessa possibilidade de uma outra cidade.

Essa intervenção ocorreu em um contexto de disputa judicial com uma constru tora que pretende erguer uma torre de 22 andares e 2 subsolos em uma área onde há várias nascentes. Eles argumentam que não há nascentes no local. Mas bastou cavarmos um pequeno buraco em sua calçada (com a parceria de Luiz Eduar do Moreira e Fábia Karklin) e lá estava a água dando forma a um belo laguinho. Diante da inconveniente evidência, no dia seguinte a construtora o concretou3.

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ESTRANHAMENTO E ESPANTO

Sermos capazes de estranhar o mundo em que vivemos é uma virtude a ser cul tivada. Se pararmos para olhar com atenção para nossas cidades, verificamos que nos acostumamos com o absurdo, aceitamos como fato consumado o que é in concebível, nos anestesiamos diante de uma realidade que se apresenta como inevitável. No entanto, a história está aí para nos mostrar que foram escolhas que nos trouxeram até aqui, projetos estiveram em disputa, visões diferentes sobre o desenvolvimento da cidade se confrontaram e deram forma ao que te mos hoje. E a história não acabou, a fazemos cotidianamente. Sermos capazes de estranhar a cidade em que vivemos é um passo fundamental para escaparmos da compreensão fatalista que geralmente se associa a interesses econômicos na defesa da inevitabilidade do urbanismo em curso.

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Figuras 2 e 3. Performance Mergulho no Rio de Tietê.

É nessa perspectiva que podemos compreender o papel de ar tistas e ativistas que, com suas ideias e ações, questionam a rea lidade que se apresenta como dada. Muitas vezes a vitalidade de seus questionamentos atuam na chave do estranhamento e do espanto. É essa vitalidade que talvez seja reclamada por Ailton Krenak (2020, p. 109), quando nos diz: “Nós precisamos ter coragem de ser radicalmente vivos, e não ficar barganhando a sobrevivência”.

A coragem da invenção de outras formas de estar na cidade, de ocupar os espaços, de atuar na materialidade dada para que se realize uma outra experiência de cidade, essa é a chave de uma ação artística/ativista. Como defendeu MESQUITA (2008), em sua dissertação sobre arte e ativismo, “já não basta ao artista apenas a ‘politização da arte’, mas a invenção de outras formas de emancipação do sujeito, de uma necessidade de produzir coalizões entre posicionamentos éticos e estéticos aliados aos movimentos de contestação”.

Tendo como referência esses pressupostos, destacamos aqui uma ação do (se)cura humana que consistiu em fazer um “mer gulho”4 no famoso rio Tietê, em plena metrópole de São Paulo.

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Até meados do século passado, o Rio Tietê recebia moradores da cidade para banhos, competições de nado e regatas. Por duas décadas ocorreram provas de natação com a importância de uma São Silvestre para os dias de hoje. O evento, que aconte ceu anualmente entre 1924 a 1944, chegava a reunir milhares de pessoas nas margens do rio para acompanhar a competição. Na edição de 1941, por exemplo, 1.957 nadadores disputaram a prova. O percurso, de 5.500 metros, começava na ponte da Vila Maria e terminava em frente ao clube Espéria, onde hoje fica a ponte das Bandeiras. Nas margens, a vegeta ção predominante era de mata ciliar. Algumas chá caras e pescadores compunham o cenário bucólico da beira do rio. Mas, já na década de 40, o problema da poluição começou a surgir. Com o desenvolvi mento industrial de São Paulo, indústrias come çaram a se instalar nas margens do rio, lançando dejetos e esgotos diretamente em suas águas e isso significou a destruição total desse importante lo cal da cidade de São Paulo. Lugar de vida, beleza, lazer, natureza, foi poluído, retificado, espremido

Filmagem de Alexandre Freitas Ver em: https://www.securahumana.com/ post/mergulho-no-rio-tietê

entre vias de fluxo rápido e consequente abandonado pela cidade. O rio Tietê transformou-se em um símbolo do preço a ser pago pelo desenvolvimento. Re signados, cidadãos e cidadãs se acostumaram em ter um rio morto atravessando sua cidade.

Diante da impossibilidade de diversas gerações, que cresceram na cidade de São Paulo a partir da década de 50, viverem a experiência de ter contato com o rio que atravessa sua cidade, diante do absurdo de ter um rio transformado em es goto a céu aberto, diante do estranhamento e consequente espanto com a cidade que temos, decidimos realizar uma ação radical: entrar no Rio Tietê, um mergu lho-não-mergulho em suas águas, buscar aquele lugar completamente insalubre da cidade, aquele que crescemos aprendendo a ter distância, que nos convence mos por décadas de que sua função era receber nosso esgoto e que seu estado de poluição era de certa forma o seu destino inevitável.

Espanto, uma pessoa entrou no rio Tietê! Essa cena produz um efeito de deses tabilização em qualquer paulistano. Crescemos compreendendo que naquele rio não cabe a vida. É aí que está a força da ação, o absurdo de um corpo vivo brin cando no rio expõe o real absurdo que é um rio morto pelo processo de desen volvimento urbano. Há algo de podre na cidade em que vivemos. E esse jogo de estranhamento e espanto mobiliza nossa percepção e nos abre para deslocamen tos sobre o que vislumbramos como possível. O possível e o impossível entram em curto circuito: há uma pessoa brincando dentro do rio Tietê.

TEMPORALIDADE E ESCALA

Há uma problematização da sociedade em que vivemos que ocorre em grande escala: fóruns, conferências, plenárias, acordos, debates, projeções, etc. Uma movimentação importante que visa rever o caminho que está nos levando rumo a um colapso socioambiental. Nessa esfera se discute o futuro, que mun do queremos em 2050, 2100, etc. Os compromissos assumidos se espraiam no tempo e no espaço. Fundamental essa preocupação com as próxi mas gerações, essa vinculação ética com os que virão. No entanto, a dimensão das grandes transformações, que se fazem necessárias, não corresponde ao tempo de nossas vidas. Estamos aqui, estamos agora, e uma pergunta se impõe: como fazer de nossas vidas algo um pouco menos medíocre? Que o futuro seja melhor, mas que o presente também o seja. Daí vem um princípio fundamental das ações do (se)cura humana: antecipar e materializar utopias, en contrar uma forma de dar materialidade ao que se almeja enquan to transformação, fazer acontecer no presente o que se apresenta como expectativa de futuro, o presente como o tempo forte, o tem po do acontecimento, o tempo da vida que se realiza. E utilizar da força simbólica das ações no presente inclusive como estratégia de

Próxima página: Figuras 4 e 5. Parque Aquático Móvel na Avenida Pompeia Ver em: https://www.securahumana. com/post/parque-aquatico-movel

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luta no fortalecimento do que se apresenta como utópico. O que queremos e o que temos, o possível e o impossível, passam a fazer parte de um jogo no qual os corpos se implicam, e essa implicação, ao deslocar o que se apresentava apenas no plano discursivo para o plano físico, tem o potencial de mobilizar de forma mais intensa nossas energias em prol da transformação almejada, pois a mesma passa a ser experimentada.

É nessa perspectiva que realizamos uma atividade/happening que se chama “Parque Aquático Móvel” e também uma instalação chamada “Rio Paralelo”. No plano da cidade em que vivemos, somos submetidos a uma vida alijada do con tato com nossos rios. Nossas águas urbanas nos foram expropriadas. Temos o sonho de que um dia eles serão abertos e balneáveis, de que um dia teremos uma cidade mais agradável para se viver. Mas até lá parece que nos cabe sofrê-la, até reivindicar que seja diferente, mas ficarmos no campo da esperança de que essa desejada transformação venha a acontecer um dia.

Diante dessa situação, criamos uma condição real em que nos banhamos nos rios da cidade em pleno espaço público. O Parque Aquático Móvel consiste em captarmos água de alguma nascente ou de algum ponto de descarte criado pela técnica de rebaixamento de lençol freático e, por meio de um sistema de bombas e reservatórios, enchermos piscinas ou a jogarmos para o alto, numa espécie de cachoeira urbana. Esse acontecimento configura-se em uma cena festiva, na qual celebramos as águas da cidade vivendo a experiência de nos banhar em seus rios. A água que utilizamos nessa atividade compõe os córregos e rios que correm canalizados sob o asfalto, mas a captamos antes que se contaminem.

Essa situação cria um deslocamento na percepção de quem participa, pois vive -se a experiência concreta de algo que estava apenas no plano da utopia, de um futuro incerto, portanto vedado a nós vivos no presente, mas também dos tran seuntes que inevitavelmente são impactados pela cena surreal de pessoas em trajes de banho se divertindo em pleno asfalto com as águas de nossos córregos e rios, algo inimaginável, porém materializado na brecha entre o possível e o impossível.

Além da questão da temporalidade, outro aspecto fundamental no jogo entre o possível e o impossível diz respeito à escala. Muitas vezes o que é impossível numa escala macro torna-se possível em uma escala micro. Esse redimensiona mento do campo de batalha pode ser compreendido como uma tática de guerri lha. Pequenos ataques que vão minando as resistências, que vão materializando a possibilidade do que estava fora do campo do possível. Por exemplo, queremos os rios da cidade limpos e abertos, mas isso é impossível no presente. No entanto, a sua impossibilidade está ligada à escala considerada. Se a redimensionamos, abrem-se brechas onde podemos atuar e experimentar. Não temos condições técnicas e materiais de abrir e limpar os córregos e rios da cidade, mas numa es cala micro podemos criar um “rio paralelo”, uma instalação que “recria” um rio

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limpo em paralelo ao rio poluído como forma de atuar no campo imagético/ mental, no qual o que nos parece impossível se materializa em uma forma pos sível. Essa “recriação” de um rio limpo em paralelo ao poluído pode ocorrer de duas formas, lidando com águas ainda limpas ou lidando com águas já poluídas.

A primeira corresponde à captação e desvio das águas ainda limpas de alguma nascente ou de rebaixamento de lençol freático e fazê-las seguir por um circuito, antes que entre em contato com as águas poluídas do rio que corre sob o asfalto. Esse é o caso da instalação Rio Paralelo Água Preta, na qual utilizamos a água de rebaixamento de lençol freático descartada por um condomínio em uma travessa de pedestres para criar esse “outro” rio (em parceria com Luiz Eduardo Moreira, Fábia Karklin e Felipe Julian). Ou seja, diante da impossibilidade de cessarmos o esgoto jogado no córrego canalizado metros abaixo da travessa, bem como de abrirmos o rio novamente, libertando-o de seu confinamento, criamos um ou tro “leito de rio” na superfície, paralelo ao rio canalizado. Um rio sobre o rio. Esse superior começa em um pequeno lago com peixes e plantas, para depois correr em seu leito por cerca de 50 metros e então retomar o seu triste destino que é contaminar-se em seu curso poluído. Esses 50 metros funcionam como uma janela para uma outra cidade, de onde se pode vislumbrar uma outra relação com nossas águas urbanas. A presença e visibilidade do singelo curso d’água atua na dimensão da dinâmica social local, pois as pessoas que por ali circulam passam a interagir com essa nova realidade.

A segunda forma de “recriação” de um rio limpo em paralelo ao poluído ocorre lidando com as águas já poluídas de algum córrego ou rio da cidade. Nesse caso o grande desafio que se apresenta é exatamente tratar essa água para que ela ve nha a ser limpa. Há a vontade de que isso seja tentado em circuito aberto, onde a água seja captada no rio, passe por um sistema de tratamento, realize um certo percurso e ao final retorne para o mesmo rio, mas nossa experiência nesse caso ocorreu apenas em circuito fechado, no qual a água captada ficou circulando por meio de um sistema de bombas, assim sendo tratada constantemente. Nessa perspectiva, criamos a instalação Rio Paralelo Tamanduateí. O verdadeiro rio que leva esse nome possui uma enorme importância histórica desde a fun dação da vila de São Paulo de Piratininga, mas hoje encontra-se completamente poluído e espremido entre vias marginais, sendo praticamente identificado ape nas como um grande canal de esgoto, ou então ignorado por completo. A inicia tiva visava exatamente dar visibilidade a ele, ao absurdo de nossa relação com ele, tentando romper a naturalização de termos um rio morto atravessando nos sa cidade. O próprio ato de buscar contato com suas águas já se configurou um acontecimento. Captamos 2000 litros de água do rio em uma ação performática de conexão com o que a cidade nos ensina a negar. Os passantes se espantavam em ver pessoas se relacionando com aquele rio, querendo suas águas, brincando com elas. Esse espanto talvez nos faça lembrar que aquilo é um rio e que o maior absurdo é o estado em que ele se encontra.

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Página anterior: Figura 6. Rio Paralelo Água Preta Ver em: https://www.securahumana.com/ post/rio-paralelo Página anterior: Figura 7. Rio Paralelo Tamanduateí. Foto: Jennifer Glass e Foto do Rio Paralelo Tamanduateí, na Mostra Jardinalidades. Ver em: https://www.securahumana.com/ post/rio-paralelo-tamanduatei

Figura 8. Rio Paralelo Tamanduateí, na Mostra Jardinalidades. Ver em: https://www.securahumana.com/ post/rio-paralelo-tamanduatei

Uma vez captada a água, a levamos para dentro do Sesc Parque Dom Pedro II, uni dade vizinha ao rio, para a composição da instalação que consistia em uma pequena estação de tratamento ecológica e um pe queno lago onde queríamos manter, com essas águas, uma vida aquática de peixes e plantas. Toda essa estrutura foi cons truída em parceria com o engenheiro am biental Leonardo Tannous e o construtor ecológico Jeferson Rogério e fez parte da Mostra Jardinalidades, com curadoria de Gabriela Leirias e Faetusa Tirsah. O pro cesso de tratamento da água consistia na sua passagem por tanques que continham brita graúda e miúda, areia, carvão ativado e plantas macrófitas filtrantes, o que aos poucos foi melhorando os parâmetros de qualidade da água, tornando-a novamente suporte para a vida de plantas e peixes. Os visitantes achavam bonita a instalação, mas o mais surpreendente era saber que aquelas águas eram do Rio Tamanduateí. Esse fato disparava uma sé rie de indagações quanto às possibilidades reais de que o rio venha a ser limpo novamente, bem como sobre a relação da cidade com os seus cursos d’água. O impossível tornado possível em pequena escala, como disparador de importan tes questionamentos sobre nós mesmos e sobre a lógica de desenvolvimento urbano até então em curso.

BRECHAS E GUERRILHAS

O artista britânico Banksy, em seu livro “Banksy: Guerra e Spray” (2016) nos oferece algumas dicas interessantes para a ação artística/contestatória de rua, entre as quais destacamos a seguinte: “É sempre mais fácil conseguir perdão do que permissão”. Essa constatação nos soa como impulsionadora de um atrevi mento necessário para se dar forma à energia criativa/provocativa no espaço público. Para que algo de novo aconteça é mais razoável guiar-se pela crença no valor ético-político e estético da ação do que embrenhar-se nas amarras burocrá ticas das negociações oficiais e legitimadas pela estrutura do Estado ou da pro priedade privada. Isso não significa desconsiderar a existência de tais estruturas, tanto que a possibilidade do perdão está sempre no horizonte, mas sim assumir um risco necessário para que algo não previsto nas normatizações que regem o mundo como está possa acontecer. A burocracia administra, a arte cria/transgri de, e esse encontro guarda uma tensão que se for iniciado pelo acionamento da primeira, tende a minguar a energia da segunda, já se o movimento for o contrá rio pode-se conquistar uma certa ampliação do campo do possível.

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Desde o início essa ideia foi um princípio importante das ações do coletivo (se) cura humana. Na verdade, sendo justos com a ordem dos fatos, encontramos na formulação de Banksy a expressão de algo já praticado. Nesse sentido, sem pre consideramos a possibilidade de atuarmos nas brechas entre a legalidade e a ilegalidade. Há um espaço entre esses campos, há algo de indefinido na adminis tração dos territórios, e nesse espaço de indefinição algo novo pode acontecer. A Travessa Roque Adóglio, localizada no bairro da Pompeia, em São Paulo, tem sido um local de experimentações nesse sentido. Nela têm atuado vários artistas e pessoas que não se identificam dessa forma, mas que se lançam na liberdade da experimentação estética proporcionada pela dinâmica aberta do espaço públi co onde as credenciais que hierarquizam os cidadãos perdem, ou melhor, dimi nuem sua força constrangedora. Aliás, a própria ideia de autoria perde em parte sua força delimitadora, tendo em vista as múltiplas intervenções a que uma obra está sujeita no espaço público. Há que se exercitar um certo desapego em nome do descontrole inerente a esse espaço.

A Travessa Roque Adóglio, assim como qualquer outra na cidade de São Pau lo, era um lugar árido em vários sentidos. Em 2016 teve início uma movimen tação por ali que mudou significativamente esse lugar. Intervenções artísticas, paisagísticas e festivas deram outra cara para o espaço. No entanto, uma grande novidade surgiu ali no fim de 2017, a chegada da água de uma nascente - que originalmente se encontra a cerca de 150 metros de distância - por meio de um sistema de tubos. Muitas intervenções que ali ocorreram já remetiam à água, afi nal exatamente embaixo do seu piso está o Córrego Água Preta canalizado. Mas a chegada de uma água limpa e constante foi um marco que materializou os dese jos de apropriação que podemos fazer da nossa cidade por meio do uso de nossas águas. Daí surgiu o Lago da Travessa, uma espécie de oásis em meio ao concreto. Um lago com água limpa e cheio de vida aquática5

A nascente originária dessa água, que hoje chega na Travessa, encontra-se no ter reno de uma igreja, na rua Cajaíba, em São Paulo. Ela já foi muito usada no passa do e não é difícil encontrar pessoas na região que contam histórias de quando pe gavam água ali para levar para suas casas. Aliás, essa prática era muito comum em toda a cidade, especialmente antes do estabelecimento do monopólio da água no final do século XIX6. Essa era uma relação com as águas da cidade que aos pou cos foi se perdendo. Nessa fonte da rua Cajaíba não foi diferente. Reconhecida como de boa qualidade, o seu uso foi interrompido quando os donos do terreno no qual ela aflorava resolveram canalizá-la e despejá-la diretamente na sarjeta, tornando-a inacessível para coleta. No entanto, ainda assim ela era visível e pas sou a chamar mais a atenção quando começamos a conviver com racionamentos nas torneiras, durante a crise de abastecimento de 2014. Ela não parava de correr pela sarjeta e a cerca de 30 metros adiante caia na primeira boca de lobo que apa recia. Dessa observação surgiu a vontade de voltar a usá-la, a qual tomou forma,

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Próxima página: Figura 9. Lago da travessa

Roque Adóglio. Ver em: https://www.securahumana.com/ post/lago-da-travessa

Figura 10. Água disponível na travessa

Roque Adóglio. Ver em: https://www.securahumana.com/ post/lago-da-travessa

ainda no plano das ideias, quando percebeu-se a proxi midade da mesma com a referida travessa. Muitas ve zes as construções e demais intervenções urbanas não nos fazem perceber o relevo e as conexões naturais que existem no terreno. Um declive considerável jogava a favor da ideia de levá-la à travessa, mas alguns obstá culos como atravessar a rua e cruzar o terreno privado de algum vizinho jogavam contra. Nesses momentos é importante contar com a força do coletivo, pois as chances de resolução se ampliam. E resolvemos. Ideias mirabolantes, negociações com vizinhos, idas e vindas, até que uma tubulação foi instalada ligando a nascente à travessa. Ela capta a água por meio de um pequeno cotovelo e a conduz dentro de canos por uns 30 metros descendo pela rua Ca jaíba, então essa tubulação entra em um bueiro, segue pela galeria de águas plu viais para cruzar a rua e sai do outro lado também em um bueiro, dali segue pelo muro do terreno de uma generosa vizinha e depois de cerca de 100 metros de canos, a água chega no centro da Travessa Roque Adóglio, quase uma miragem.

É incrível o impacto da presença da água, o seu efeito de produzir vida, de trans formar os espaços. Essa fonte e seu lago somam-se às movimentações que querem reverter o sentido que demos à relação com as nossas águas urbanas.

Uma vez instalada a obra, ela se afirmará ou não pela sua própria força ética, es tética e política. No caso do Lago da Travessa surgiu uma questão importante que foi a demanda de sua água por quem vive em situação de rua. Isso criava um problema, pois contaminava o lago com sabão e outros produtos utilizados na necessidade básica de higiene do corpo ou na lavagem de roupa. A solução para esse impasse foi a instalação de um desvio no encanamento original para a disponibilização de uma torneira com um tanque (em parceria com Luiz Eduar do Moreira, Felipe Julian e Luana Santos de Souza, com seus alunos de Gestão Ambiental da FMU). Essa medida, além de resolver a questão, abriu um campo de reconhecimento e relação com as pessoas que vivem nessa precária situação, o que é fundamental em um país subdesenvolvido e extremamente desigual como o nosso. Claro que isso incomodou alguns vizinhos, e então surgiu o poder público com a ameaça de destruição total, mas a legitimidade conquistada pela sua força ética, estética e política junto a um número muito maior de vizi nhos falou mais alto e garantiu sua permanência no espaço.

A ação artística e ativista que tem o espaço público como campo de realização, atua inevitavelmente no âmbito do conflito, no âmbito das negociações neces sárias diante da diversidade e dos jogos de força que constituem a esfera pública, mas diferentemente dos importantes caminhos institucionais, procura pelas brechas e lança mão de táticas de guerrilha para fazer avançar as ideias e o debate.

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CIDADE (IM)POSSÍVEL

A cidade como suporte da ação, como campo de batalha, como território em disputa que ocorre no âmbito da materialidade que dá forma às estruturas urba nas e à vida que nela vivemos, mas também no âmbito simbólico, que sustenta os sonhos e desejos de uma outra cidade. As intervenções no espaço público são densas de sentido político pois dialogam com as forças e energias que produzem o espaço urbano.

Nesse contexto, de um espaço produzido e atravessado por técnicas que se so brepõem ao longo da história, o conhecimento técnico muitas vezes é importante, mas é preciso exercitar um certo desprendimento, uma atitude de fazer acontecer com os recursos e saberes disponíveis. Conversas, trocas de ideias, es tar atento a sugestões e saber agregar pessoas e habilidades é sempre importan te. Em certo sentido, podemos considerar a prática identificada de “gambiarra” como um procedimento acessível, o que não significa fazer qualquer coisa e de qualquer jeito, mas uma postura de não se desmotivar e estagnar com as limi tações técnicas, uma postura de fazer acontecer da forma que for possível, com o que se tem à mão. Essa ideia aproxima-se do conceito de bricolagem, que foi desenvolvido por Lévi-Strauss e que aqui é retomado por PORTO (2018):

“Em seu livro, Lévi-Strauss explica que o trabalho do bricoleur se caracteriza por um uni verso instrumental fechado em que ele tem sempre que se virar com um conjunto finito de materiais heterogêneos. Este conjunto não é composto conforme algum projeto pré-esta belecido, mas é o resultado contingente das oportunidades que lhe foram disponíveis; e os

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elementos recolhidos por ele representam um conjunto de relações concretas ou virtu ais entre si, possibilitando operações diversas. Diferente do engenheiro que trabalha a partir de um projeto prévio e com um conjunto de matérias-primas específicas, o bricoleur precisa solucionar seus problemas a partir da combinação do conjunto de elementos limitados que conseguiu de criações e destruições anteriores (‘isso sempre pode servir’). Portanto, ele precisará criar novas relações entre os materiais, criando novas possibilidades de seus usos a partir da reorganização das disposições internas desta rede de objetos. Cada um destes elementos não estará mais determinado pela sua função de origem e ganhará novos usos e arranjos, escapando a uma identidade que lhes fixa uma destinação.” 7

Podemos entender a prática artística/ativista nos termos aqui apresentada como um exercício de lidar com as limitações de forma provocativa à inven ção de soluções inesperadas. Seja por meio da bricolagem ou da gambiarra, é importante encontrar meios para superar os desafios técnicos sempre que possível.

Além disso é importante compreender que tal prática geralmente corres ponde a uma ação circunstancial, algo não exatamente replicável na sua to talidade, pois requer a consideração de variáveis únicas em cada território. No entanto, no contexto da globalização e da fragmentação atual, ao passo em que se demanda uma atenção ao lugar, sua realidade material, esse mes mo local se transforma em base para questionamentos conectados em escala global. No caso apresentado neste ensaio, temos a questão da água no espaço urbano e a dinâmica de um urbanismo que desconsidera o ambiente natural sobre o qual se impõe.

Dentre inúmeras possibilidades de ações sobre a cidade, apresentamos aqui alguns princípios de uma ação artística/ativista que investe na irrupção da experiência temporária como mobilizadora de uma energia vital que nos desloca em relação à dinâmica repetitiva da vida cotidiana e torna-se dispa radora de novos conflitos entre o possível e o impossível.

REFERÊNCIAS

NOTAS

1 Conforme SANT’ANNA (2007), pág. 11.

2 Técnica de engenharia civil que consiste em instalar um sistema de bombas para retirar do subsolo dos prédios a água que mina ali pois suas fundações atingiram o nível do lençol freático. Essa água, geralmente limpa,

é despejada na sarjeta e segue até o pri meiro bueiro que encontrar para então correr pelas galerias de águas pluviais até o córrego mais próximo.

3 Diante dessa ação, divulgamos um segundo texto sobre o ocorrido: “Uma disputa está em curso. A construtora Exto quer levar a cabo seu plano de se

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car o terreno que adquiriu na Av. Pom peia para ali levantar um edifício de 22 andares. Moradores e cidadãos querem mais espaço verde, lugares públicos de encontro e lazer, e a construção de um singelo laguinho na calçada daquele terreno simbolizava isso. Nessa manhã de quinta-feira concretaram o lago. Claramente esse pequeno reservatório com peixes e plantas mostrava algo que não interessava à construtora ser de conhecimento de todos. Há água ali, bastante e de boa qualidade, uma linda nascente como inúmeras outras que desapareceram embaixo do concre to dessa cidade. Mas as coisas estão mudando, estamos em um momento de repensar a nossa vida urbana e se não é muito possível recuperar as antigas, podemos preservar as nascentes que ainda existem, que ainda nos dão o ar de sua graça e que podem tornar a vida nessa cidade um pouco melhor. É muito simbólico o contraste entre o lago e o concreto, aí também está o contraste entre o espaço de encontro e o espaço privado, entre o interesse público de uma cidade mais humana e o interesse particular na lucratividade, entre o ócio e o negócio.”

4 A palavra mergulho está entre aspas, pois de fato tratou-se de um não mer gulho, uma vez que o performer não teve contato direto de sua pele com a água do rio.

5 O processo de construção do Lago da travessa pode ser visualizado no link http://securahumana.com/Lago-da -Travessa

6 A partir desse momento começou a haver um cerceamento do acesso livre às águas da cidade, com a progressiva eliminação de fontes e poços por toda cidade, pois esses estabeleciam con corrência com a água canalizada.

7 PORTO, Renan Neryi. Bricoleurs do fim do mundo – Pensamento bricoleur e práticas de criação de sentido, Re vista Lugar Comum, UFRJ, n. 52, pp. 243-257, 2018.

8 Conforme BEY (2018). / BANKSY. Guerra e Spray, Editora Intrínseca, 2016.

BEY, Hakim. TAZ – Zona Autônoma Temporária, São Paulo: Veneta (cole ção Baderna), 2018.

KRENAK, Ailton. A vida não é útil, São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

MESQUITA, André Luiz. Insur gências poéticas: arte ativista e ação coletiva (1990 – 2000), Dissertação de Mestrado, FFLCH / USP, 2008

PORTO, Renan Neryi. Bricoleurs do fim do mundo – Pensamento bricoleur e práticas de criação de sentido, Revista Lugar Comum, UFRJ, n. 52, pp. 243-257, 2018.

SANT’ANNA, Denise Bernuzzi de. Cidade das águas: usos de rios, córre gos, bicas e chafarizes em São Paulo (1822-1901), São Paulo: Editoda Senac, 2007.

PARA CITAR: TIBÉRIO, W.; BAROLLO F. Água e Urbanismo: ações artísticas para uma cidade (im)possível. Redobra , n. 16, ano 7, p. 57-75, 2022

DESINVENTAR A CIDADE

MARCELO DE TRÓI

Coordenador da linha de pesquisa Corpos, Cidades e Territorialidades Dissidentes do Núcleo de Pesquisa e Extensão em Culturas, Gêneros e Sexualidades – NuCuS (IHAC/UFBA) –e analista de informação no Instituto Multiplicidade Mobilidade (IPMMU)

“Em suas cidades não é possível conhecer as coisas do sonho. Nelas não conse guem ver as imagens dos espíritos da floresta e dos ancestrais animais. Seu olhar está preso no que os cerca: as mercadorias, a televisão e o dinheiro. (…) Nós, contudo, temos pena dos brancos. Suas cidades são muito grandes e eles vivem desejando um monte de objetos bonitos, mas, quando ficam velhos ou enfraque cidos pela doença, de repente têm de abandonar todos eles, que logo se apagam de suas mentes. Só lhes resta então morrer sós e vazios. (…) São esses os pensamen tos que ocupam minhas noites nas cidades, onde nunca consigo dormir direito” (KOPENAWA, BRUCE, 2015, p. 437-438)

Enxergo as formações urbanas como fruto de lutas históricas entre hegemonias e dissidências (TROI, 2021). Nessa disputa, analisar a cultura é essencial para compreender como chegamos até aqui, redirecionando nosso olhar para pensar a cidade, desafiando convenções e identificando os elementos que estruturam as relações no espaço urbano.

Não enveredarei aqui pela árdua tarefa de definir o que é cultura, com suas infini tas forças e práticas (WILLIAMS, 1992), ou pensá-la como a capacidade humana de produzir significados, criar costumes, signos e ritos. Cultura também tem sido a ação dos humanos para moldar pedras, definir paisagens e alterar ecossis temas inteiros. E por outro lado, as culturas também são formadas e interpeladas por componentes não humanos dos quais clima, meio ambiente e mesmo a coo peração interespécies são determinantes.

Este ensaio pretende apontar que, no complexo processo de neoliberalização do mundo, nenhuma utopia vem desalinhada da perspectiva moderna da “inven ção”, do “novo” como “superação” do velho, levando-nos muitas vezes a fazer, mais uma vez, tábula rasa da cidade. Como sabemos que isso é impossível e que é um dos erros crassos da modernidade, trata-se mais de desfazer os pensamentos, desaprender formações e “desinventar” a cidade e tudo que pensamos sobre ela, abrindo espaço para que outros modos de vida emerjam. Meu foco aqui será nos aspectos da mobilidade, tema sob o qual venho me debruçando nos últimos anos.

Importante alertar que quando me refiro à modernidade, falo de um espaço temporal que começa com a economia do Atlântico e o tráfico de pessoas negras escravizadas e chega até os dias de hoje com novas formas de exploração. Uma época com fases “cumulativas e não sucessivas” (MIGNOLO, 2017, p. 4) que estruturam o binômio definido pelos teóricos latinos como modernidade/co lonialidade e que representou um salto de conhecimento tanto na Europa como nas suas colônias. Este saber colonizado, forçado, organizado e imposto também foi responsável pela maneira de se pensar e se construir as cidades.

Na exumação desse processo, emergem práticas de produção, exploração e ex portação da vida, nas quais precisamos enxergar além das convenções e mirar em sinais do futuro que despontam no horizonte. Eles revelam o esgotamento da cidade moderna, tal qual a conhecemos, e anunciam tempos de mudanças ra dicais com o aumento de eventos severos ligados à emergência climática.

HERANÇA MALDITA?

No atual momento histórico é urgente uma imaginação de coletividade fora das expectativas falsas do aceleracionismo ou da implantação de modelos urbanos que não levam em conta as formações culturais e históricas do local. É preciso se reconectar com sinais do passado, de coisas que ficaram para trás e que foram extirpadas por contrariarem interesses econômicos.

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Processos globais foram fortemente inseridos em contexto locais, principal mente, no que diz respeito aos modos de se mover. Tais processos foram inseri dos a partir de práticas que tiveram como fim uma apropriação cultural, não da maneira como esta vem sendo pensada pelas identidades, mas no entendimento do sequestro de modos de ser e estar em um espaço, representando empecilhos para a ocidentalização/globalização dos diversos territórios adquiridos a partir da colonização (TROI, 2022). Nesse esquema complexo e, muitas vezes, não ciente, as cidades foram um laboratório coletivo que, em princípio, marcou a passagem da nossa vida como caçadores coletores nômades para espécies fixas, sedentárias, que precisaram criar o seu locus de convívio social e de reprodução da espécie.

Sob a perspectiva cultural, sabemos que as formas de agrupamento humano va riam muito de um continente para o outro. Mas as origens de certa urbanidade que estruturam as características das cidades transitam pela a Mesopotâmia, na região entre os rios Tigre e Eufrates, passando pelo Egito, Grécia e, finalmente, Roma. Esta última ordenou e levou à frente todas as heranças urbanas da anti guidade, expandindo a urbe para toda a Europa ocidental que tratou de impor sua visão de cidade ao resto do mundo colonizado, mesmo como cópia mal feita ou, como afirmou Aimé Césaire ao se referir à vida na colônia, um desastre, uma “versão absurdamente perdida do paraíso” (CÉSAIRE, 2017, p.652). Depois vieram as revoluções industriais, a invenção do automóvel, a mitificação de cida des como Paris e New York, e as metrópoles passaram, então, a ser o local do de sejo fetichizado pelo cinema, o símbolo da modernidade por excelência, indício de progresso e civilização. Certo modelo de urbanização passou a se repetir em diversas partes do mundo, criando um paradigma de cidade e de vida coletiva.

Isso não significa que outros arranjos coletivos não surgiram. E aqui me refiro às civilizações andinas ou ainda às mais radicalmente disruptivas e, digamos, anti urbanas, às formas de organização das gentes da terra como os Yanomami. Esses sempre estiveram menos preocupados em criar estruturas perenes, ao contrá rio, com agrupamentos menores estiveram e estão muito mais integrados à fau na e à flora, sem o sentido de dominação da natureza ou eliminação de aspectos naturais que é inato à ideia de cidade.

Ao visitar Nova Iorque e Paris entre o final dos anos 80 e início dos anos 90, o xamã Davi Kopenawa fez reflexões potentes do ponto de vista da diferença e da observação daquilo que cultuamos como cidade, as quais vão muito ao encontro do caminho que penso que devemos tomar para criar outros modelos de coleti vidade. Sobre Paris, a “terra que treme”1, disse o xamã: Nessa cidade de Paris, multidões de carros e ônibus corriam o dia todo, fazendo um barulho ensurdecedor, apertados no meio das casas. A terra de lá é toda escavada de túneis sem fim, como se fossem grandes minhocas. Longos trens de metal não paravam de andar por eles com grande estrondo, deslizando em barras de ferro há muito arrancadas das profundezas

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do chão. É também por isso que me parecia que o chão tremia o tempo todo, mesmo durante a noite. Para quem sempre dormiu no silêncio da floresta, essas vibrações são muito inquie tantes. Os brancos não parecem percebê-las, porque estão acostumados a nunca deixar sua terra em paz. (KOPENAWA, BRUCE, 2015, p. 423)

Curiosamente, os pontos críticos observados e narrados por Kopenawa são os mesmos louvados por certa ideia de modernidade, de futurismo, da cidade que não dorme e se agita, com uma infraestrutura que supostamente facilita a mo bilidade na urbe. Deixamos de perceber muitas coisas das cidades por estarmos isolados privilegiadamente em outros contextos, inebriados por elas, inseridos em reproduções ideológicas nas quais a velocidade e certa ideia de progresso se colocam como estruturantes da metrópole.

Foi assim historicamente a cada nova introdução de elementos no espaço urba no, todos alinhados à especulação do capital. A noção reprodutiva da cidade, e aqui pensando nos processos de acumulação marxista, está muito mais presente no que convencionamos classificar como “cidades ocidentalizadas”. Elas criaram seus códigos de construção urbana, instituições, paradigmas e o desenvolvimen to técnico que anunciavam “o declínio e queda da autonomia das cidades e dos sistemas urbanos na sua realidade histórica” (LEFEBVRE, 1991, p. 47).

Realidade histórica é, assim para este ensaio, um elemento chave para refletir sobre as temporalidades do espaço urbano, as influências e imposições cultu rais que nos levaram ao modelo de cidade que conhecemos hoje, principalmen te pensando nos conglomerados urbanos que possuem acima de um milhão de pessoas. Digo isso porque ao pensarmos o urbanismo como ideologia, como nos

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ensinou Lefebvre (2001), tiramos de foco certa ilusão de que a construção par ticipativa das cidades estaria acima dos interesses da acumulação capitalista que marcou a interferência urbanística com ênfase e orquestração global a partir do século XIX. Sem esquecer que as ideias sobre a cidade já circulavam e interferiam em terras longínquas desde a expansão ultramarina.

Tais ideias continuam a se propagar com certo misto de inveja e frustração. É o que sinto quando vejo as soluções do Norte Global para as cidades, a exemplo das políticas públicas para a diminuição do espaço para os automóveis nas últi mas décadas, o aumento da rede de transportes sustentáveis e a priorização dos pedestres (Fig. 1 e 2). Ações que não deixam de ser inspiradoras e desejáveis, mas que, novamente, nos fazem pensar: chegaremos a essa realidade algum dia? Ou: Continuaremos a ser a “versão perdida de paraíso” de Césaire?

Projetos de “melhorias urbanas” não deixam de levantar suspeitas, principal mente no Brasil, onde historicamente essas ações foram acompanhadas de pro cessos de gentrificação, racismo e descaracterização cultural dos locais - e aqui poderíamos citar como exemplo a reforma do Pelourinho, em Salvador, e as obras nacionais para as Olimpíadas e a Copa do Mundo.

A herança da cidade ocidental desenhou o passado e promete influenciar o futu ro. Quando a Alemanha e a França anunciaram que até 2050 deixarão de produ zir automóveis movidos a combustível fóssil, pensamos: o novo tempo chegou. Mas logo somos invadidos por uma onda pessimista, lembrando que os carros elétricos não são uma solução e que as baterias de lítio que substituem o petró leo alimentam apetites extrativistas, muito longe da sustentabilidade ecológica

Figuras 1 e 2. A cidade de Bordeaux, na França, antes (2002) e depois (2008): a orla do rio Garonne mostra o cais invadido por veículos e fachadas cinzas (à esquerda). Em foto mais atual (à direita), a partir de projeto do paisagista Michel Desvigne, o cais ganhou um jardim, os carros perderam espaço e o VLT ocupa boa parte da pista destinada anteriormente aos automóveis. Um grande projeto vem sendo desenvolvido na cidade para diminuir o número de carros em consonância com as ações para evitar o aumento da temperatura no planeta.

Fonte: Bordeaux Métropole. Disponível em: <https://www.bordeaux-metropole.fr>.

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e mais próximas aos sonhos fascistas e colonialistas. Em julho de 2020, Elon Musk, fundador e CEO da Tesla, maior desenvolvedora de carros elétricos do mundo, escreveu na rede social Twitter: “Vamos dar golpe em quem quiser mos! Lide com isso”. Ele se referia à situação política na Bolívia que passava por um golpe de Estado promovido pela extrema direita, e sobre o fato de que mais de 50% dos depósitos de lítio do planeta estejam na Argentina, Bolívia e Chile2 Ademais, os carros poluentes descartados na União Europeia ainda terão uma vida longa abaixo da linha do Equador, alimentando novos sonhos decadentes da popularização do automóvel - enquanto a UE endurece as políticas para re duzirem a emissão de CO2, muitas empresas desses países exportam os carros obsoletos para o Sul Global3.

Passamos séculos tentando nos transformar nas cidades europeias, sem nun ca chegar lá. Desconsideramos o tempo todo que, apesar de enfrentar proces sos globais, nossa realidade é diferente, nosso clima e história são diferentes. A grande maioria da nossa população é extremamente vulnerável e está empenha da em sobreviver à tragédia brasileira, sem tempo para reivindicar uma outra ci dade, apesar de saber onde ela não se realiza. Nossa elite, com seu pacto colonial, parece ter prazer com o depauperamento e subordinação das classes sociais mais baixas. Não suportam que algum possível estado de bem estar social possa che gar a pessoas fora do círculo de uma sociedade de castas e privilégios, na qual as diferenças são caladas com violência e qualquer ameaça ao lucro resulta em “chumbo no lombo” dos que reclamam e protestam.

Reconstituir os fios que nos trouxeram até aqui ou imaginar linhas de fuga po tentes que sejam capazes de nos retirar da vocação da cidade moderna são ações árduas, principalmente porque continuamos sob influência de novas lutas urba nas relacionadas ao “direito à cidade”, conceito lefebvriano que vem ganhando novos sentidos com o agravamento da crise climática e o avanço do neoliberalis mo. Ainda assim, muitas lutas não são capazes de avançar neste “direito” porque este precisa ser discutido também enquanto ética.

As mobilidades, assim como a crise climática (e ambas estão imbricadas e impli cadas), nos têm ensinado que é preciso uma nova ética. O uso do automóvel não pode estar circunscrito ao direito ou a nossa possibilidade de escolha. A “man são da liberdade”, como diz Chakrabarty (2013), tão difundida no holoceno e assentada fortemente na indústria do petróleo, na emissão de gases de efeito es tufa, não pode mais balizar a vida nas cidades. Esta é apenas uma das convenções que precisam ser desfeitas.

Ao discutir a cidade, Isabelle Stengers (2000, p. 3) concorda que as convenções são “estáveis” e que, dessa forma, ganham “confiança”. Mas se a cultura tem o papel de estabilizar o que se põe como conflito, como ela acredita, também é verdade afirmar que o papel da cultura é desestabilizar e criar o dissenso. Assim é a visão disruptiva de Ailton Krenak (2020) para quem as cidades são “sorvedo

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res de energia” totalmente dependentes da eletricidade: “Muitas pessoas vivem sozinhas nesses centros, deixamos de ser sociais porque estamos num local com mais de 2 milhões de pessoas” (KRENAK, 2020, p. 13).

Devemos sim desconfiar das convenções e é disso que se trata o “desinventar a cidade” que intitula este ensaio, numa referência óbvia à conferência de Stengers (2000). Se para ela, “passar o sinal vermelho” pode não fazer com que o padeiro se recuse a vender pão a alguém, isso deveria mudar no século XXI. Passar o sinal vermelho deveria ser tão grave quanto uma pessoa que encontra condições de caminhabilidade utilizar o automóvel para percorrer uma distância de menos de um quilômetro, emitindo CO2, porque acredita que tem “liberdade” ou “direi to” a isso.

Tem sido um desafio desnormalizar, desnaturalizar processos e falar, especifi camente, das ideias e convenções estabelecidas, da herança maldita do que se estabeleceu como paradigma de cidade, na qual o automóvel tem papel deter minante. Além disso, é preciso ir de encontro à política neoliberal e sua miti ficação do progresso, do trabalho e da produção desenfreada e irresponsável. É preciso pensar em não-desenvolvimento, em redução máxima de produção, em reaproveitamento. É preciso fazer parar a roda mortal do Capitaloceno que pre fere queimar seus produtos4, descartar alimentos e roupas, a ver uma sociedade igualitária e verdadeiramente ecológica.

A CIDADE COMO UM CORPO: QUANDO A PANACEIA É A AUTO ANIQUILAÇÃO

E se a cura para os males da cidade fosse...o fim da própria cidade? É evidente que a criação retórica e também paradoxal dessa ideia é uma forma de radicalizar o pensamento sobre as mudanças que precisam acontecer; falamos de aspectos sedimentados na cultura e, sendo assim, falamos sobre uma tarefa difícil.

As leis possuem limites quando não são um desejo coletivo, consensual e quan do o sistema de justiça também está inserido no fenômeno da colonialidade. Da mesma forma é a cultura. Só podemos realizar mudanças efetivas a partir dela e o fato é que não temos ainda novas práticas difundidas que possam dar conta de uma transformação radical da cidade. Tudo é feito a passos lentos, como exige o tempo histórico. Entretanto, eventos severos ligados ao clima colocam a tragédia e a destruição como uma possibilidade de mudança - o que veremos mais à frente. Mas, voltando à investigação de como chegamos aqui, não há dúvida de que a associação da cidade com o corpo na cultura ocidental tenha sido uma das causas de tal tragédia e destruição.

Os atenienses já faziam analogia entre corpo e construção. Mas pensar a cidade propriamente como um corpo foi uma invenção da Idade Média, sendo João de Salisbury um dos primeiros a estruturar esse pensamento na Paris do ano 1.159 (SENNETT, 2003) - ideia que influenciou diversos pensadores e construtores

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do espaço urbano. Foram as construções discursivas da “cidade como um cor po” que deram base para as modificações urbanas que iriam acontecer com mais força a partir do século XIX. Junte-se a isso a noção de população, um “novo corpo” para Foucault (1999, p. 292) - que criou uma forma diferente de pensar as cidades - já que é no espaço urbano que a população tem se concentrado ma joritariamente nos últimos séculos.

Esse processo de antropomorfismo deixou um legado: a suposição de que a ci dade deveria funcionar como um corpo com suas artérias livres. A cidade como um corpo humano emergiu como um espaço de poder a ser controlado, moldado. Como explica Sennett (2003), desde o início da história da urbani dade, e mais fortemente em Roma, as linhas do corpo, templos e cidades reve lavam os princípios de uma sociedade bem organizada e que, posteriormente, seria altamente valorizada e cultuada na modernidade.

Em termos urbanísticos, vale pensar que 100 anos antes da influência demo lidora do Barão de Haussmann na Paris do século XIX, o Marquês de Pombal aproveitou a terra arrasada da cidade de Lisboa com o terremoto de 1755 para enterrar de vez a cidade medieval lisboeta, “(…) alargando ruas que, desde 1701, já estavam sendo reformadas para a passagem de carruagens maiores, quadricu lando quarteirões, impondo uma modernidade que a cidade portuária teimava em não aceitar” (TROI, 2021, p. 160). A historiadora Mary Del Priore (2015) notou que o terremoto foi essencial para a implantação do projeto de cidade mo derna de Pombal.

No século XX, organizar o espaço de forma precisa foi a obsessão do pensamen to de Le Corbusier, o pai do urbanismo moderno, que teve suas ideias aprimo radas e propagadas por Oscar Niemeyer e Lúcio Costa com uma das mais em blemáticas - senão a maior - cidade modernista: Brasília. Basta fazer um passeio pelas cidades do interior paulista e constatar as centenas de cidades construídas de forma quadriculada, em inspiração a esse modelo urbano. A cidade setorial dividida, organizada racionalmente, longe do paradigma do labirinto medie val o qual dificultava a vigilância e impedia o fluxo dos artefatos modernos, em especial, do automóvel. “A cidade livre com suas artérias em fluxo contínuo”, propaganda enganosa que até hoje alimenta os constantes planos e reformas ur banas que já nascem velhos, justamente por tentarem resolver problemas inso lúveis pois se assentam em um modo de vida insustentável.

Mobilidade de uns, imobilidade de outros. A ilusão da cidade bem organizada circunscrita às áreas luminosas, como diria Milton Santos (2006), não elimina as áreas opacas, àquelas onde foram relegados os corpos dissidentes, a multidão de pessoas negras minorizadas que faz do Brasil um dos campeões da falta de água e esgoto5, de moradias irregulares, da falta de transporte público, de uma maio ria que vive à margem do conforto da vida moderna, a qual ainda é um sonho distante para muitos. Quando pensamos nas cidades metropolitanas, a ideia de acessibilidade vale para poucos.

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Além da falta de universalidade (e sabemos que ela é mais uma das ilusões da modernidade), em 300 anos de disciplinamento das cidades, nunca houve ta manha combinação entre controle social, sequestro do espaço público e mor te aos centros urbanos. Esse dispositivo só sobreviveu em função da ideologia carrocrata que inventou a cidade contemporânea, lugar perigoso, de passagem, abandonado aos desígnios da especulação imobiliária.

O carro é assim o objeto complexo que gerou um novo sentido de saber: com o fordismo, influenciando todas as outras formas de produção, e com ele mesmo se tornando o elo das cadeias produtivas. Com o passar dos anos, o automóvel contribuiu para a degradação da vida nas cidades, prejudicando sua função pri meira como o local da convivência e das diferenças. A invenção do automóvel e o incentivo à mobilidade individual privada como novo paradigma de loco moção nos grandes centros urbanos alterou nossa percepção de tempo e espaço, modificou nossas relações humanas na urbe e nos transformou em pessoas que passam o tempo com medo de serem atropeladas - percepção que também atravessou Kopenawa ao visitar a cidade: “Não durmo bem, só como coisas es tranhas e vivo com medo de ser atropelado por um carro! Nunca consigo pensar com calma. É um lugar que realmente provoca muita aflição” (KOPENAWA, BRUCE, 2015, p. 436).

A cidade passou a ser o local onde o afastamento e o isolamento passaram a ser a regra. O fenômeno teve origem na “terra que treme” do século XIX, mas de pois tornou-se comum nas metrópoles e a partir dos anos 50, com a ascensão do american way of life. A segregação espacial e suburbanização francesa no século XIX, acompanhadas pela norte-americana no século XX, fez surgir os bairros racialmente homogêneos com suas habitações suburbanas, os condomínios e a invenção do cotidiano congestionante, as highways e Avenidas Paralelas6 e seus movimentos diários de rota casa-trabalho-casa que abarrotam nossas cidades em horários de rush. Tudo programado, um caos planejado. Em se tratando de países do Sul Global, soma-se a esse cenário o racismo estrutural, a violência em razão da degradação social, da pobreza, da falta de oportunidades e da alta renta bilidade do mercado de segurança, que agrava e incentiva ainda mais esse modo de vida.

Amplamente exportado para o mundo globalizado, esse fluxo diário de pessoas em seus automóveis que percorrem longas distâncias até seus trabalhos está centrado no regime patriarcal branco. A ascensão dessa masculinidade exigiu um consumo intensivo de combustíveis fósseis e, para a classe trabalhadora ou média, empregos dependentes desse consumo. Esse dispositivo levou Cara Dagget (2018) a cunhar o conceito de “petromasculinidade”: “extrair e queimar combustível era uma prática de masculinidade branca e de soberania americana, de tal forma que o poder explosivo da combustão poderia ser grosseiramente igualado à virilidade” (DAGGETT, 2018, p. 32).

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DESINVENTAR A CIDADE

O marxismo e outras teorias materialistas são unânimes em afirmar que estabe lecemos relações sociais através de objetos e coisas que produzimos e fazemos circular. Não existe história humana desmaterializada. Somos constituídos e criamos agência com ferramentas, objetos, construções, máquinas, etc. Como afirma o novo paradigma da mobilidade (URRY, 2010), humanos nada mais são que diferentes objetos e significados dentro de um sistema - o que também colocou as mobilidades como um dos fenômenos mais importantes do nosso tempo. Essa tentativa de criar uma ciência social movente está assentada nas teo rias da complexidade, com forte amparo na interdisciplinaridade. Fugindo das dicotomias, a preocupação está no papel constitutivo do movimento no funcio namento de instituições, na estruturação da cidade, na criação de práticas sociais e no fluxo de pessoas, ideias e coisas.

Diferente das teorias que estudavam as mobilidades até o final do século XX, o novo paradigma da mobilidade mostrou que a suposta separação do público e privado é apenas mais uma convenção não obedecida quando falamos de mobi lidade. O carro é o maior exemplo dessas brechas e falhas do sistema de conven ção, porque ele é um ente privado que domina e determina por completo um espaço que deveria, em tese, ser público.

Tenho me esforçado para desnaturalizar certos aspectos da vida na cidade, em especial o uso das mobilidades motorizadas. E mesmo sendo um cicloativista e entusiasta da bicicleta, jamais eu afirmaria, de maneira romântica e utópica, que as bicicletas sejam a solução para os problemas urbanos relacionados à lo comoção, porque não são - principalmente se falarmos da realidade de acesso e infraestrutura necessária para seu uso seguro. Mas todos concordamos, exceto os carrocratas, que a mobilidade ativa é vital para uma cidade mais diversa e um elemento fundamental para contribuir com a diminuição da emissão de CO2 (TROI, 2021). E não estamos falando de um número pequeno, pois estima-se que há mais de 33 milhões de bicicletas no Brasil (PEREIRA, 2021) e que, mes mo em silêncio e sem visibilidade, elas têm contribuído com a imaginação de um outro mundo e o estabelecimento de novas práticas que possam reverter o enorme buraco em que estamos metidos.

Olhando a história, percebemos o papel contraditório da inserção das mobilida des na vida humana e dentre eles, alguns que sinalizam possíveis respostas para os problemas presentes.

Bicicleta e automóveis impactaram as cidades desde a sua invenção. Relativa mente normalizada nos dias de hoje, exceto para as pessoas automobilistas que consideram as ruas exclusividade delas, o surgimento da bicicleta causou um al voroço em cidades como Paris e Londres no final do século XIX. Naquele tempo, a bicicleta representou uma ameaça aos pedestres e à diversidade das ruas. Mes

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mo em Salvador, o objeto foi visto como ameaça na primeira década do século XX, principalmente para as carroças puxadas por animais que podiam se assus tar com a bicicleta (TROI, 2021).

Nesse sentido, o carro também representou uma mudança radical para as ruas. Na Inglaterra vitoriana, por exemplo, a Red Flag Law (lei da bandeira vermelha), obrigava o automóvel a se movimentar à velocidade máxima de 6,4 km/h e com uma pessoa que vinha a sua frente com uma bandeira vermelha, alertando a todos de que algo potencialmente perigoso se aproximava - lei que evidentemente caiu, com a popularização dos automóveis e o domínio desses na paisagem ur bana.

Disciplinar as ruas foi uma das principais tarefas para urbanistas nas primeiras décadas do século XX. Na Salvador de 1927, com o aumento dos artefatos mó veis como bondes, automóveis e bicicletas, a ação do governo foi tentar proibir e regular o tráfego de pedestres (sic). Ou seja, a ideia “genial” dos governantes da época era extirpar o modo de locomoção mais importante da cidade, que há três séculos atravessava a história urbana da capital baiana, porque a prioridade do momento era atender às demandas dos modos de se mover da modernidade, em especial os automóveis e bondes. Já naquela época, o transporte urbano por tri lhos fora privatizado em favor de companhias norte-americanas que ofertavam um péssimo serviço, mas que conferiam ares “civilizados” nos trópicos, levando todos a crer que aquela era a cidade ideal a ser cultuada.

Continuamos a correr apavorados dos carros, que têm salvo conduto para ace lerar acima da velocidade permitida. Se algo ocorrer, foi “acidente”. Considero acertada a decisão da ABNT - Associação Brasileira de Normas Técnicas, na NBR 10697, que substituiu a denominação “acidente de trânsito” por “sinistro de trânsito”. Afinal, não podemos considerar que esses eventos sejam fortuitos, mas sim resultado de negligência e de uma cultura que secularmente têm igno rado as consequências da hegemonia dos carros nas cidades.

O fato é que os artefatos móveis foram introduzidos na vida mundial e nacional a partir de novas práticas sociais e, evidentemente, isso só aconteceu com muita propaganda (TROI, 2021) e sob interesse e articulação do capitalismo global, principalmente quando falamos do automóvel e de sua poderosa indústria, os quais alteraram nossa relação com o tempo e espaço, aumentando o nosso agen ciamento com a velocidade.

Nesse percurso histórico, os carros venceram a batalha, tornando-se hegemonia na ocupação das ruas da grande cidade, relegando espaços menores para outras formas de mobilidade e condenando as ruas apenas a atividade de locomoção - sendo que, historicamente, elas foram usadas para o comércio, lazer, criativi dade e atividade política (BERTOLINI, 2020). Precisamos ter em mente que o aparecimento do automóvel é uma coisa absolutamente nova dentro da histó

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ria milenar das cidades. As ruas não podem e nem devem ser exclusividade dos automóveis porque elas não foram feitas para eles. Até o século XIX, podemos constatar a diversidade de pontos de vistas e usos das ruas e das cidades, se com parados aos dias de hoje (Fig. 4), o que não deixa dúvidas de que a inserção dos carros no espaço urbano deixou as cidades bem menos interessantes.

Toda a transformação na nossa maneira de se mover pela cidade impactou e im pacta a nossa relação com as estruturas urbanas e também influencia a socialização entre as pessoas. Ao longo do tempo, as noções sobre o que é privado e o que é público também foram alteradas.

Os novos estudos sobre as mobilidades abriram o campo de investigação urbana para outros olhares, a exemplo dos conflitos sociais e os cruzamentos com os marcadores da diferença (classe, gênero e raça). Constatamos, assim, que a histó ria das mobilidades é uma história de barreiras, uma história de desigualdade e também de lutas urbanas. Concordo com Laura Kemmer (2020) quando afirma que a infraestrutura da cidade gera vínculos sociais e, conforme estudo que rea lizei em Salvador, os serviços de mobilidade fizeram emergir uma coletividade urbana que foi um canal de insatisfação social (TROI, 2021). Como uma encru zilhada, a mobilidade passa a ser um ponto chave para pensarmos a desinvenção da cidade.

Página anterior: Figura 3. Fac-símile da capa do jornal A TARDE de 25 mar. 1927 com notícia sobre a regularização do tráfego de pessoas pela polícia de costumes. Desde a invenção da cidade moderna, pedestres nunca foram prioridade: “Mais de 30 anos depois da inserção do primeiro automóvel na cidade, o que percebemos pelos relatos é a permanência e acirramento da disputa nas maneiras de ocupar a cidade e que, de certa forma, persistem nos dias atuais, em velhos problemas que apenas se atualizam”. (TROI, 2021, p. 229).

Próxima página: Figura 4. Nova Iorque, em 1900, ainda sem a presença massiva dos automóveis e com uma diversidade de atividades na rua. Fonte: domínio público/Detroit Photography (TROI, 2021, p. 156).

Ao estudarmos esse campo, um misto de senti mentos invade a mente das pessoas pesquisado ras. A situação de impotência é imensa, porque muitas coisas parecem impossíveis de serem mudadas em função da complexidade da vida contemporânea e em função da dependência da infraestrutura criada no último século, mesmo sabendo que ela é e sempre será insuficiente.

Talvez contemos com um auxílio de Gaia para acelerar ações mais efetivas na desinvenção das cidades. Mesmo que ela seja “surda às nossas sú plicas” (STENGERS, 2000, p. 5), devemos ouvir os cientistas que falam por ela e nos preparam para o pior.

Dados recentes revelam que até o final do sécu lo XXI diversas cidades litorâneas brasileiras vão sofrer com os impactos das alterações climáti cas, entre elas Salvador. Esta “cidade movente” (TROI, 2021) que, desde a sua fundação, tem es tabelecido uma relação determinante com os mo dos de se mover e criando vetores de expansão até

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mesmo em cima do mar com seus aterros seculares, deverá ser uma das mais impactadas em um cenário no qual não acontecem medidas de mitigação do au mento da temperatura no planeta. A previsão de cenários apocalípticos com a subida do nível do mar exige de todos - mas especialmente dos tomadores de decisão e gestores - um planejamento para a adaptação, o que tem acontecido de forma muito tímida, mais com retórica do que com ações concretas.

O capitalismo despreza a política porque a arte do acordo, da conversa, da negociação impõe limites ao apetite infindável do capital. Se a palavra de ordem da cidade moderna fabricada era “circulem”, talvez a nova palavra de ordem para a cidade do século XXI seja: parem, sintam, reparem, aproveitem a cidade.

Se a cidade tem se expressado como um espaço ambíguo no qual o carro explana o próprio paradoxo da urbanidade - de um ente privado que domina e determi na como deve se estabelecer as relações de força no espaço público - questiona -se: como acreditar na separação entre público e privado nas cidades? Vejo que essas fronteiras são apenas ilusórias e servem para que aqueles que detém a he gemonia continuem tratando as dissidências ao seu bel prazer, com remoções e delimitações de quem pode circular, onde e como.

As convenções podem até funcionar de maneira mais efetiva nos países “desenvolvidos”, mas como crer nelas no Brasil, se elas são quebradas a todo tempo? Não existe convenção que não tenha brechas por onde escapam todo o desejo de uma sociedade fascista, na qual o capital tem poderes absolutos sobre todos que fazem a cidade.

LINHAS FINAIS: E NÓS COM ISSO?

O fim do Ministério das Cidades depois da ascensão do go verno militar de extrema direita representado pela eleição de Jair Bolsonaro foi um retrocesso enorme para as polí ticas urbanas que vinham sendo construídas no Brasil. A extinção do Conselho Nacional das Cidades e o enfraque cimento de legislações amparadas pela Carta de 1988, que davam ênfase à função social da cidade, foram um duro golpe na sociedade civil organizada que já tentava a duras penas influenciar as decisões sobre o espaço urbano. Cons tatamos, mais uma vez, que não existe luta vencida e que é preciso manter-se em estado permanente de reivindicação. Apesar da exaustão e do pessimismo refletidos neste en saio, não gostaria que ficasse a impressão de que defendo que as lutas urbanas não mereçam ser lutadas. Ao contrá rio, não nos resta outra opção a não ser continuar o embate

Figura 5. As áreas em vermelho serão as provavelmente alagadas segundo as projeções científicas para 2100, em cenário onde nenhuma medida para mitigação climática é tomada pelos países: “Tanto a Gamboa de Baixo como a região do Comércio e Calçada possuem grandes chances de serem inundadas até o final do século. Eventos climáticos severos já vêm ocorrendo nesses locais, a exemplo das chuvas que ocorreram em novembro de 2019” (TROI, 2021, p. 278-279)

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contra as hegemonias. Fica também evidente que a prática de investir recursos públicos em torno de ganhos privados, inaugurada pelo Barão de Haussmann na “terra que treme” no século XIX, continua a ser a tônica da gestão das cida des no século XXI. Qualquer possibilidade de mudança nesse cenário passa por uma mudança radical de governar as cidades, quebrando os laços históricos que unem governos e especulação, esta última representada pelo apetite sem fim do mercado imobiliário e da indústria automotiva. Nossas pesquisas podem influenciar políticas públicas, mesmo sabendo que es sas parecem insuficientes para resolver o problema central que, de forma inexo rável, parece ser o fim da própria cidade tal qual a conhecemos. Descobrir ou tros caminhos que nos levem a novos modelos de urbanização passa por uma ampliação do olhar de pessoas pesquisadoras para bairros, cidades menores do interior e por iniciativas que acontecem longe dos olhos daqueles que adminis tram o espaço citadino.

Dados do IBGE, divulgados em 20217, revelaram que dos 5.570 municípios brasileiros, apenas 17 possuem mais de 1 milhão de habitantes, sendo 14 deles

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capitais de estados. Esse grupo concentra 21,9% da população ou 46,7 milhões de pessoas. Outras 49 cidades têm mais de 500 mil moradores e 326 possuem mais de 100 mil pessoas. Apesar de uma grande parcela da população brasileira se concentrar nas grandes cidades, cerca de 14% da população vivem em cidades de até 20 mil pessoas, o que equivale a 3.770 municípios. Na preocupação legí tima de realizar pesquisas em grandes cidades inseridas em processos comple xos e globais que interferem na mobilidade, na moradia, mas que têm avançado muito pouco nas últimas décadas, deixamos de aprender com o que acontece no interior do país. Muitas cidades são carentes de pesquisas que podem ajudá-las a evitar o caminho enveredado por grandes cidades brasileiras.

Se a cidade continua inimaginável, se tornando inclusive um pólo de expulsão populacional, é porque nos conglomerados urbanos atuais não se realiza ple namente o direito de todas as pessoas. Pretos e pobres continuam sem acesso pleno à cidade, mulheres cis e trans continuam ameaçadas em ruas perigosas e propícias a serem violentadas até mesmo dentro do transporte coletivo.

Porque os urbanistas não podem sonhar com a “autenticidade serena das antigas aldeias” (STENGERS, 2000, p. 8)? O reconhecimento do outro, da outra, e a apropriação da cidade se realizam em muitos bairros de Salva dor, nas comunidades cariocas, nas periferias do país, em lugares mágicos como Afuá, no Pará, a cidade de palafitas onde só existem bicicletas... A sociedade civil tem feito muito mais, sonhado mais que os responsáveis pela gestão da cidade. São por esses lugares que também precisamos guiar o nosso olhar.

Nosso dever é alertar as cidades menores sobre os perigos da sedução das lógicas carrocratas e urbanas da modernidade que infestaram os grandes centros. O devir Paris, o devir New York, o devir São Paulo devem ser in terrompidos por um devir anti urbano, caminhante, cadeirante, acessível e verde. Com isso, não estou afirmando que seja tarefa fácil desfazer o já feito na periferia da periferia do mundo. É uma missão homérica com bar reiras culturais imensas a serem transpostas, sendo uma empreitada equi valente a trocar o pneu de um carro com ele andando para depois jogá-lo numa ribanceira.

Tomar o espaço das ruas sequestrado pelos carros pode ser uma primeira meta na desinvenção da cidade, assim como deixar que as árvores cresçam sem a preocupação com uma infraestrutura mal pensada ou, nas palavras de Stengers (2000), pelas complicações criadas para lidar com o comple xo.

Enterrem-se os fios da energia elétrica, adotem-se energia solar sem bu rocracias, descubram os rios escondidos embaixo de avenidas, removam pessoas de áreas antes tomadas pelas águas e pelas florestas. Deixemos o

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NOTAS / REFERÊNCIAS

mato crescer em paz. Ocupemos os prédios abandonados e especulados pelo capital, ocupemos as áreas centrais com populares que sofrem nas encostas pe rigosas da cidade. Plantemos árvores frutíferas nas ruas e praças para a alimenta ção de todas as pessoas que querem e necessitam. Transformemos o transporte público em prioridade absoluta, como já prevê a lei que não se cumpre. Ten temos implantar a tarifa zero, realidade em muitas cidades e que, sem dúvida, representaria bem menos gasto que o pagamento de juros que os governos tanto gostam de honrar com os investidores e especuladores. Eliminemos o espaço dos carros, criando faixas para caminhantes, cadeirantes, esqueitistas, ciclistas, incentivando as pessoas a ocuparem as ruas como quiserem.

É tempo de deixar a natureza fazer a sua parte e tempo de nós nos adaptarmos aos desígnios de Gaia. “Sonhemos como os babuínos” poderia ser um belo título para um futuro artigo ou mesmo uma máxima a ser adotada pelos humanos nas cidades desinventadas do século XXX.

1 Kopenawa afirmou que tinha sonhos recorrentes com as viagens que passaria a fazer para divulgar a luta do povo Yanomami no Brasil. Em 1990, o xamã esteve em Paris no Tribunal Permanente dos Povos em sessão dedicada à Amazônia Brasileira. Os espíritos Yanomami, chamados de xapiri, definiram Paris como kawëhei urihi, “a terra que treme”: “Deram -lhe esse nome porque assim que pus os pés lá, ao descer do avião, me senti cambaleante” (KOPENAWA, BRUCE, 2015, p. 422).

2 Sobre o assunto, ver reportagem no site Brasil de Fato, intitulada ““Vamos dar golpe em quem quisermos”, diz Elon Musk, dono da Tesla, sobre a Bolívia”, publicada em 25 jul. 2020 e disponível em: <https://www. brasildefato.com.br/2020/07/25/ vamos-dar-golpe-em-quem-quiser mos-elon-musk-dono-da-tesla-sobre -a-bolivia>. Acesso em: 12 mar. 2022.

3 Sobre o tema, ver reportagem do El País, intitulada “Como a vida dos car ros aumenta enquanto a dos humanos diminui”, publicada em 21 jan. 2010 e disponível em: <https://brasil.elpais. com/brasil/2019/01/07/actuali dad/1546870571_450575.html>.

Acesso em: 12 mar. 2022.

4 Só no Reino Unido, estima-se que a Amazon destrua 130 mil itens novos não vendidos, por semana. As denúncias se acumulam em diversos países. Sobre o assunto, ver reporta gem intitulada “Amazon destrói cerca de 130 mil itens novos por semana no Reino Unido”, no portal TecMundo, publicada em 22 jun. 2021 e dispo nível em: https://www.tecmundo. com.br/mercado/219697-amazon -destroi-cerca-130-mil-itens-novos -semana-reino-unido.htm>. Acesso em: 13 mar. 2022.

5 Estima-se que 48% da população

brasileira não possua coleta de esgoto e que mais de 35 milhões de pessoas no país não tenham acesso a água tratada. Os dados são do Sistema Nacional de Informação Sobre Saneamento e estão disponíveis em: <http://www.snis. gov.br/>. Acesso em: 13 mar. 2022.

6 Via importante da cidade de Salvador (BA), a Avenida Paralela fez parte de um conjunto de avenidas construídas nos anos 70 ainda sob a influência das reformas urbanas pensadas no início do século XX e que tiveram o EPUCS - Escritório do Plano de Urbanismo da Cidade de Salvador, como principal mentor.

7 Para mais informações consultar o site do IBGE, no item Estimativas da População, disponível em: <https:// www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/ populacao/9103-estimativas-de -populacao.html>. Acesso em: 14 mar. 2021.

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JOACEMA-(DES)-VIRADA: A CIDADE ENCANTADA DOS PATAXÓ

THIAGO MOTA CARDOSO

Professor do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFAM (PPGAS-UFAM) e do Programa de Pós-Graduação em Gestão de Áreas Protegidas na Amazônia (MPGAP/INPA)

ENCANTAMENTO RIZOMÁTICO

Impossibilidade da visão e da impermanência da precisão. Vila braba dos encontros-encantes-errantes dos Pataxó em mundos de virações.

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INa praia, em frente ao Muriã, próximo de onde estávamos, na Lagoa Grande, uma sobrinha de Ângela encontrou nos arrecifes uma pedra diferente, com um brilho indescritível. Ela, atraída, pegou a pedra e ficou tonta e com medo. Avisou ao marido, que lhe disse que ela, a pedra, era encantada, para ela pegar e tentar desencantar. A moça, no início, não teve coragem, mas sob insistentes pedidos, vindos de pes soas da aldeia e das cidades vizinhas que queriam comprar a pedra, foi pegar a tal pedra. Ao trazer a pedra para casa e abrir a porta, olhou para o marido e viu na verdade um bicho horrível, peludo com den tes enormes. Com medo, a pedra sumiu de sua mão e reapareceu na praia. Ao soltar a pedra e sair do espanto do encantado, ela passou a ver normalmente.

Página anterior: Figura 1. (sem título) Fonte: Thiago Cardoso, 2014.

II Erilsa (conhecida como Uruúba), professora da Escola Indígena e hoje liderança Pataxó, me contou que ela e os alunos estavam tendo uma aula de biologia so bre peixes ósseos e cartilaginosos. Num certo momento, um aluno perguntou se existia arraia de água doce em Barra Velha. Ela respondeu que sim, que a sogra de seu irmão contava que no rego, um buraco no brejo, com água bem escura, tinha uma cacimba e lá algumas pessoas viam uma arraia bem grande em cima da água boiando, encantada. Os alunos perguntaram, “professora quem encanta va nessa arraia?”. E ela respondeu: “boa pergunta, vamos pesquisar?”. Em Barra Velha, no mesmo córrego onde fica o rego, tinha um córrego com mais água, tinha árvores enormes como uma jundiiba. Ali era um lugar encantado, onde era possível ver peixinhos reluzentes e uma lagosta enorme. As margens foram des matadas e foi construída ali uma ponte e uma estrada para veículos, aterrando o buraco habitado pelos encantados.

III

Os Pataxó, povo indígena habitante do sul baiano, descrevem os encantados como sendo materialidades invisíveis, existências que se vê-ouvindo, que se ouve-vendo ou se conversa nos sonhos situados em lugares-em-multiplicidade ontológica. É sobre este assunto que nos debruçaremos neste ensaio etnográfico.

Encantados são habitantes das matas, rios e mar, em geral vivem em buracos, grutas, sumidouros, fundo de pedras, onde fazem seus lugares que, na perspec tiva Pataxó, não são paisagens selvagens, mas, sim, são suas cidades e reinos. En cantados são, ao mesmo tempo, pessoas que sofreram encantamento pela ação de Deus nos tempos primordiais da criação, sendo responsáveis por cuidar dos animais e peixes – são as mães da caça, sereias e mães d’água. Há outros encanta dos, também pessoas, que se encantaram, sob benção de Deus, no momento da

morte, em virtude de manterem uma vida magnificada por suas ações e sabedo ria, por serem grandes lideranças ou pajés. Estes morreram e se encantaram por permissão de Deus e são conhecidos também como caboclos. O espírito bom, aquele encantado, é poderoso, capaz de ajudar os Pataxó em sua lida cotidiana, a curar doenças e a prever o futuro. Traz mensagens e é bom conselheiro. Tais encantados são bem recebidos nos rituais e, por outro lado, evitados pelos Pata xó evangélicos que os descrevem como “enganações” do demônio, e não como pessoas, parentes que morreram, ou pessoas antigas criadas por Deus para cui dar das coisas do mundo.

Se quisermos compreender as implicações do encantamento é importante si tuarmos o corpo encantado no seu lugar de existência, o que os Pataxó deno minam de lugar encantado, fazendo uma brevíssima leitura da noção de mundo Pataxó, ou de lugares-mundos1. Para os Pataxó em Barra Velha, o mundo possui três dimensões espaçotemporais de existência: um estado primordial, a partir do qual tudo no mundo passa a existir a partir da ação de Deus – também chama do de Tupã, Niamisu ~ ou Txõpay: Deus criou o mundo e o preencheu com coisas animadas, que agem no mundo e possuem a prerrogativa da comunicação. As segunda e terceira dimensões ou estados, são a existência visível e invisível da materialidade. Tais existências se dão após a transformação do mundo primor dial a partir do demiurgo.

As coisas que existem no mundo atual são percebidas em três categorias: a pri meira delas seriam as “coisas da natureza”. Em diversas conversas que tive com os Pataxó, teriam me dito que “natureza” para eles tinha um sentido mais alar gado2, que abarcava tudo o que existe-agindo no mundo: terra, pedras, animais, plantas, matos, insetos, ventos, morros, os cantos dos pássaros. Essas “coisas da natureza” são coletivos de coisas animadas, que agem no mundo, comunicam-se em suas linguagens e se transformam a partir das relações em que estão enreda das. As “coisas da natureza” dizem muito mais sobre as origens e performativi dades das coisas em seus lugares no mundo do que a uma essência ou substância biológica dada de antemão. Todas as “coisas da natureza” foram criadas por Deus nos tempos primordiais e deixou para o cuidado dos encantados. Ele também criou, nos tempos antigos, as pessoas, as gentes, sejam índios ou brancos. Deus santificou algumas pessoas que são seus mensageiros diretos, mediando a rela ção dos humanos com o supremo. Por outro lado, os bichos virados e os espí ritos ruins não seriam coisas de Deus, estariam perdidos pelo mundo, são da “coisa ruim” ou “demônio”.

Um outro ponto sobre as existências. Como dito, tudo o que existe no mundo existe, ao mesmo tempo, em duas outras dimensões ou estados: uma dimensão visível e uma dimensão invisível. Estas não correspondem, respectivamente, a dimensões materiais e imateriais, objetivas e subjetivas, mas sim a materialida des que se apresentam de uma forma a outra ao observador, em mundos dis

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tintos, onde pessoas vivas, mortas e encantadas performam mundos com seus corpos. O mundo visível é o que percebemos como nossa realidade, e o mundo invisível as coisas se apresentam de diferentes formas quando a pessoa se en contra em encantamento, ou virada, situando-se no mundo dos encantados. O mundo invisível é o mundo dos espíritos dos mortos e também o mundo dos encantados e caboclos.

A dimensão primordial é dada: um mundo repleto de gentes e suas coisas (ob jetos, plantas, rituais), “coisas da natureza”, santos e demônios. Deus encantou e encanta o mundo a partir da metamorfose material e do modo de agir de um humano vivo e visível em encantado e invisível. Pessoas, vivas, mortas ou en cantadas, não estariam na categoria do que comumente chamam de “coisas da natureza”. Cada coisa criada no tempo primordial tem o seu lugar numa simul taneidade de corpos duplos, seja no mundo visível ou invisível. Estes lugares não são dados, e sim devem ser constantemente recriados, cuidados e controla dos pelas pessoas humanas e não-humanas, sejam estes materialmente visíveis, como os Pataxó, ou invisíveis, como os encantados, para que a vida tenha con tinuidade. Como me disse uma vez Ianã, morador do Muriã, “tudo tem que ter uma pessoa pra cuidar. Tem que ter uma mãe pra cuidar daquilo”.

Enquanto os humanos abrem lugares e cuidam das coisas da casa, das plantas e dos animais amansados, cabe aos encantados das matas, a caipora ou vovó, e dos rios, as mães d’água, intra-agir com as “coisas da natureza”, cuidando de suas existências. Enquanto os humanos abrem seus lugares a partir da transformação material direcionando as relações para seus interesses, numa lagoa, como a La goa Grande, os encantados fazem seus lugares e cuidam dos animais, das plantas e de outras coisas. Lugares, sejam encantados ou não, emergem do movimento e do crescimento de pessoas e “coisas da natu reza”. As matas, com seus habitantes animais, são cuidados pela vovó da mata (a caipora), que habita buracos debaixo da terra. Os peixes e mariscos são cuidados pela mãe d’água, que vive debaixo de pedras nos rios e na linha que separa o mar da terra. Adentrar nestes mundos encantados seja pelo sonho ou pelo encantamen to do corpo/lugar é correr o risco de mudar de perspectiva e de começar a ver as coisas de outra forma. Estes lugares são evitados ou, caso haja necessidade de acesso para se capturar algum ani mal, marisco ou peixe, é necessário negociações.

Figura 2. (sem título)

Fonte: Thiago Cardoso, 2014.

Todas as coisas existentes ocorrem materialmente no mundo em um constante devir, são ontologias instáveis, que trocam de posições – entre o vi sível e o invisível, o vivo e o morto, o brabo e o manso – em decorrência das malhas relacionais que emergem dos movimentos e encontros ao longo de suas jornadas de vida. Trocar de posições é trocar de lugares. Os huma nos fazem e desfazem seus lugares, quando junto a outros modos de vida com os quais intra-agem, coordenam ações de transformação e adequação das coisas da natureza - do mundo dos encantados - ao seu modo de vida. Assim criam lugares, morada de linhas de vida que passarão a viver juntos: gentes com seus parentes, plantas e animais domésticos. A inversão tam bém é verdadeira: um lugar ou morada, quando tomada pelos matos e pelo encapoeiramento, torna-se habitada pelas “coisas da natureza”, morada dos “outros”, e sua gestão passa a ser dos encantados. Ao mesmo tempo, um en cantado a todo tempo cruza as fronteiras entre os lugares, realizando visitas em rituais ou no cotidiano nas casas das pessoas, e gentes adentram nos lugares, seja para pescar ou caçar, ou, por intermédio de um rezador, para recuperar algum espírito capturado.

Um lugar encantado é um lugar onde todos os habitantes da mata chegam e par tem em seus movimentos. Seres que não devem trocar de lugar: gente, espírito dos mortos, animais, plantas, encantados e caboclos, todos têm seus lugares. Uma vez seu Zé, da aldeia Craveiro, me disse “cada um tem seu lugar, e cada um tem seu dom”. Mudam-se lugares e corpos ao mesmo tempo, pois são entrelaça dos em co–construção. Cuidar do lugar, do corpo e das relações de reciprocidade é manter-se gente, condição fundamental para não virar bicho – torna-se gente com os lugares. Assim, a posição de gente, de humano, bem como do lugar não é

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condição a priori, mas sim um processo o qual a pessoa deve ao longo de sua vida cultivar, sendo afetado pelo lugar e o afetando, na busca do viver sossegado jun to com outras linhas de vida que perfazem seus caminhos. A vida, entre lugares, passa-se entre os limites, nas fronteiras, e o cruzamento delas, pelos perigos que comportam, deve ser evitado.

Isto nos faz perceber que “coisas da natureza” e ‘coisas de gente” não são domí nios separados da realidade, que tais coisas vivem de forma separada e possuem ontologias radicalmente distintas: o que prevalece é a animacidade generalizada e a troca de lugares/perspectivas, o cruzamento de fronteiras e a iminência da transformação. Estes lugares na natureza, onde nem um humano vivo abriu lu gar, recebem nomes binominalmente de acordo com eventos ou pela descrição de sua forma. O primeiro nome refere-se ao estatuto de sua existência: mata, mar, campo, mangue, monte e serras. Como as Mata do Coração, Mata do Par que, os Campo do Coelho, Campo do Coração, Campo Branco, Monte Pascoal, Serra da Gaturama, Serra do Gavião, no mangue temos Bagueira de Cima e Bagueira de Baixo, Pacuio, Riacho, dentre tantos outros luga res nomeados. No mar também teríamos pedras e cabeços, com seus nomes como Calungi e Pedra do Nego. O Monte Pascoal é um caso ímpar: seu nome só foi reconhecido recentemente após contato com personagens do Estado, antes era comumente chamado apenas de pe dra ou Pé da Pedra. São nestas manchas nomeadas na paisagem onde os invisíveis encantados fazem e desfazem seus lugares, bem como circulam dia a dia.

JOACEMA, DESENHANDO MUNDOS VISIVEIS/INVISIVEIS

Joacema foi uma cidade que se encantou

Estávamos na aldeia Barra Velha, no território indígena Pataxó. Durante minha pesquisa de campo etnográfica, era comum eu e meus filhos Luana e Caio banharmos nas águas quentes da lagoa grande, a meio caminho entre nossa casa, na praia, e a sede da aldeia. Enquanto banhava em suas águas quentes, Caio e Luana brincavam sob o sol já escon dido por detrás de Barra Velha, e o crepúsculo estourava em multicor. Lembrei dos ensinamentos que obtive entre os mais velhos: seria prudente evitar os banhos nas lagoas ou ficar perto do mar com as crianças desprotegidas, ainda mais se elas fossem tidas como pagãs, como era o caso de Caio e Luana. O risco era da mãe d’água gostar deles e agir para atraí-los para o encante, seu lugar de morada.

Figura 3. (sem título)

Fonte: Thiago Cardoso, 2014.

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I

A Lagoa Grande é uma lagoa que flui. É difícil precisar seus limites. Suas águas são oriundas dos diversos córregos que descem do Monte Pascoal. Quando a la goa está cheia, elas interligam o Rio Caraíva com o Rio Corumbau e penetram pelo manguezal, por brejos e por debaixo da terra, deslizando pela areia da praia e se entrelaçando às águas do mar. Nos buracos onde saem esta água doce, nas praias, nos lajedos de pedra, é possível ouvir – nem todos conseguem em esta do normal – os toques dos tambores da mãe d’água, um encantado das águas. Ao longo da lagoa há muitos lugares encantados, são sumidouros onde vivem estas invisíveis pessoas encantadas, onde se é possível “ver” animais ou pedras encantadas, como índice da existência de um lugar invisível para as pessoas em “estado normal”, com sua perspectiva assentada no mundo vivido pelos Pataxó.

O “ver” para os Pataxó diz respeito às múltiplas possibilidades de sentir uma presença, de perceber o nós-com-outro. Uma pessoa pode ver um encantado pelos assovios ou pelo toque do tambor, assim como uma caça pode ver um ca çador sentindo seu cheiro.

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O nome Muriã é dado para se referir a este coletivo de lugares-moradas do gru po familiar que emerge a partir de Tururim. Batizado por Tururim, Muriã quer dizer “lugar da areia branca com arbusto”. Assim surge o Muriã e desse modo este lugar se tornou também outro, com outros encontros entre linhas de vida. Foi ali no Muriã que foi cedida nossa morada inesperada, inaugurada com nossa chegada no dia 01/02/2014, no Buraco do Tapuia. Buraco do Tapuia foi o nome que batizou o lugar. Nome dado em homenagem aos buracos no lugar denomi nado de Joacema, de onde saíram os famosos Tapuias Abatirás, encantando o mundo.

Joacema, lugar indígena encantado. Secularmente encravado no epicentro do território Pataxó no extremo Sul da Bahia, nas confluências das forças da terra -mar. Joacema se conecta com a Lagoa Grande pelo subterrâneo, por onde a água flui. Durante todo o período que passei em Barra Velha durante minha pesquisa etnográfica, nunca consegui alguém para me levar a Joacema, situada ao sul da al deia, entre a famosa e turística praia do Espelho, em Trancoso, e a vila de Caraíva. As pessoas não tinham tanto interesse em ir a este lugar e também não era passa gem ou destino para ninguém atualmente – diferentemente do passado, quando os Pataxó tinham que passar andando por Joacema para ir até Porto Seguro.

Em Joacema, todos dizem “ninguém consegue viver, fazer casa por lá, é encantado”. Paradoxalmente, Joacema para muitos é um “lugar his tórico”, “onde começa a história dos Pataxó” ou que os “Pataxó tem muito pegadio”. Um lugar muito lembrado nas narrativas e histórias contadas, onde ninguém vai ou consegue morar, a não ser alguns alu nos das escolas das aldeias em suas pesquisas de campo. Um lugar que não adentrou nos mapas das medições e demarcações das Terras Indí genas e que não foi reivindicado nas retomadas de terra. Explicou Tururim, em uma conversa que tivemos no Muriã, que na época que Joacema foi construída, Salvador, a capital da Bahia e do Brasil, estava também em construção. Neste tempo, uma criança indígena saía do buraco na Joacema para caçar um bem–te–vi. Em uma de suas saídas, o filho de um branco pegou o bem–te–vi. O pequeno nativo foi pegá-lo de volta e o menino da vila acabou batendo nele e ficando com o pássaro. O menino índigena adentrou de volta no buraco chorando. Em pouco tempo, os tapuio Abatirás, ou Bakirás, e para alguns Mavão ou índios Formiga, saíram do buraco e devastaram Joacema não deixando nada para contar história. Os índios retornaram para o buraco e nunca mais voltaram. Após este evento, Joacema se encantou. O motivo do encan tamento é uma incógnita.

Figura 4. (sem título) Fonte: Thiago Cardoso, 2014.

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Quando se passa por Joacema, lá se mostra como um lugar de mussununga, com cajueiros bravos enfileirados e outras plantas dos campos. Tem uma lagoa, cha mada de lagoa tola, pois corre pelo lado contrário: da direção do mar para a oeste. O buraco dos Tapuias são três buracos com cerca de cinco metros que ficam nas falésias. A outra Lagoa Encantada é onde fica um facho de ouro. Dizem que o encantamento se deve a este facho: quem consegue “vê–lo” fica com vontade de pegar, mergulha, mas quando toca nele, ele desaparece ou na hora de desen cantar perde a coragem. Outras pessoas não possuem coragem e nem realizam o mergulho. Para desencantar, é necessário deixar o sangue ou a saliva no obje to encantado, trazendo-o para nosso mundo. Conta-se que muitos já tentaram sem sucesso.

Esta Joacema antiga, hoje encantada, tinha casas, calçada e porto, sendo cons truída ao mesmo tempo em que Salvador, a capital do Brasil Colônia, era erigida no século XVI. Ela está lá em seu encante, em plenitude reluzente, com máqui nas funcionando, animais cantando, calçada, barcos aportando, bares e mora dias, mas na invisibilidade para quem não está sob efeito do encante. Dizem as histórias que algumas pessoas, após passarem por Joacema à noite, vêem esta cidade, galos cantando fora de hora, cachorros latindo. Certa vez um rapaz an-

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dando pela praia encontrou uma casa com uma mulher que o chamou para se deitar com ele. Ele não negou companhia e entrou na casa. Passou uma noite de sexo na casa da moça e, ao acordar, se viu dormindo debaixo de um cajueiro bra bo. Olha para o lado e para o outro e só encontra cajueiros, todos arrumados lado a lado, como casas em uma rua. Conta-se que, antigamente, os viajantes que ali passavam chegavam numa cidade e deitavam numa rodoviária ali amanhecendo o dia. Quando abriam os olhos, eles estavam debaixo de um pé de árvore. Esta pessoa estava sob efeito do encante e por isso “trocou de lugar”, passando a ver um mundo como um ser encantado o vê. Uma pessoa sob o encante também vê guaiamuns encantados, jacarés, flores, cobras. Se estivesse em “estado normal”, ele veria o mundo como nós normalmente o vemos, e a cidade encantada estaria ali, mas invisível.

As narrativas sobre Joacema demonstram uma memória sobre um evento histó rico ocorrido há mais de quatro séculos. O príncipe Maximilian Wied Neuwied descreveu Joacema em sua passagem pelo lugar, rememorando o documentado ataque a esta vila:

Uma vez alcançada a margem do norte com toda a ‘tropa’, avançamos, ao longo da costa, pela planície coberta de frondosas balsas, limitadas a distância por colinas; mas logo e de novo encontramos altas e íngremes ribanceiras de argila e arenito, que foi preciso escalar, pois as vagas impetuosas tornavam a costa inacessível. Segue-se uma trilha escarpada até o elmo dessas ‘barreiras’, e entra-se num altiplano, num ‘campo’, denominada Jauassema ou Juassenia. Nesse local, de acordo com a tradição dos moradores, houve outrora, nos pri mórdios da colonização portuguesa, grande e populosa vila do mesmo, ou Insuacome, mas que, à maneira de Sto. Amaro, Porto Seguro e outros estabelecimentos, foi destruída pela guerra com uma bárbara nação de canibais, a “Abaquirá” ou “Abatirá”. Essa tradição se baseia, sem dúvida, nas devastações que os Aimorés, ora Botocudos, levaram à ‘capitania’ de Porto Seguro, quando a invadiram em 1560, conforme encontramos relatado na History of Brazil de Southey e na Corografia Brasilica3 .

Ali do alto da Joacema o naturalista expressa todo seu olhar paisagístico, uma visão romântica de uma natureza selvagem e uniforme:

Dessa altiplanura, o panorama do ermo litoral e do oceano imenso é sublime, e arrasta o es pírito do viandante solitário à contemplação embevecida. Os coleios da costa vão perder-se nos longes do horizonte azul; as ribanceiras vermelhas e alcantiladas alternam-se com os vales umbrosos, que, tanto como as alturas, são forrados de florestas de matiz verde-escuro; os vagalhões do oceano raivoso escachovam com um rumor profundo e cavo; na distância indistinta, os olhos contemplam a branca espumarada torvelinhando nas fragas, e o es trondo trovejante da eterna e compassada ressaca, que a voz de nenhum ser vivo interrom pe, retida majestosamente pelas solidões intermináveis. Profunda e solene é a impressão que produz a cena sublime, quando pensamos na sua constância e uniformidade através de todas as vicissitudes do tempo 4

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Os Pataxó tratam do encantamento da Joacema como parte de um evento his tórico que enreda os tapuio, os brancos, cidades, plantas, minerais e Deus. Essa perspectiva diferencia-se da forma como Florent Kohler trata do assunto. Para Kohler, “não deixa de surpreender a persistência, sob uma forma fragmentá ria” deste mito, entre um povo “profundamente impregnado pela fé católica” e que “preservaram tão pouco de seus costumes antigos e tradições”. Para ele, a referência a “índios selvagens” vivendo debaixo da terra indica um mito com importância estrutural, pois indicaria uma representação temporal das noções de selvagem e civilizado, inscrito no espaço5. Por outro lado, a emergência mate rialista e relacional da Joacema enquanto lugar encantado se dá com a recusa de entender tal fenômeno enquanto uma criação mental ou metafórica, mas sim compreendê-lo enquanto um evento histórico e sociológico.

II

Vamos voltar para a pedra encantada do início deste ensaio. A pedra encantada nos sumidouro nos leva para os fios de água que nos ligam a Joacema vista de baixo. Na perspectiva do Jairo, que me contou esta história numa noite em Barra Velha, ver a pedra encantada implica um corpo afetado pelo encante, um corpo localizado no lugar encantado. Ver é estar localizado, num corpo/lugar afetado. O lugar virado, afeta a visão-escuta da pessoa em encantamento. Não se trata aqui de uma representação ou de uma crença, mas sim numa ontoepistemologia onde “naturezas” se transformam afetando corpos.

Segue o fio. Em Barra Velha, havia muitas destas pedras, recolhidas das matas pelos indígenas do passado ali se encantou e podem ser vistas nas águas do mar e das lagoas. Na lagoa, como a lagoa grande, em sua época de cheia, as pedras po dem ser vistas por pessoas que conseguem ver, brilhantes em seu fundo, junto com peixes brilhantes. Ao pegar esses peixes eles transpassam suas mãos como se ela estivesse furada, disse-me o meu interlocutor. Seguindo esta história lhe perguntei sobre os minerais que ficam dentro da lagoa da Joacema: “isto é outra história, mas é a mesma”, me contou desenhando o movimento da Joacema en cantada, o seu mapa (ver figura na próxima página).

Jairo, muitas vezes passava andando por Joacema. Ali ficava olhan do. Assim como em todas as narrativas sobre Joacema, as coisas acontecem à meia noite. É quando você pode ver a cidade, os galos cantando e as galinhas ciscando. Na sua parte alta teriam cajuei ros brabos enfileirados como casas na cidade, que na Joacema se ria cajueiros-casas, materialidades múltiplas que se apresentam a perspectiva do sujeito localizado no encante (cidade) ou fora dele (cajueiro brabo), ou como diria Jairo, “ali é tudo casa”. No mar você consegue ver os postes de ferro com argolas, que marcam o tempo histórico da transformação.

111 Próxima página: Figura 5.Joacema (desenho em caderno de campo)

Fonte: Thiago Cardoso, 2014.

“Eu tenho o encantamento do mar!”, me disse Jairo. “Já fui lá em Joacema pelo mar”. No mar eu era recebido pelas meninas, pelas sereias. “Às vezes andava pela praia e escutava um barco parar perto das pedras e ali eu escutava todas cantan do”. Para Jairo, as meninas eram lindas e gostavam muito dele. No mar elas lhe ofereciam um liquidozinho para beber, as comidas eram leves, tinha muita far tura, as frutas estavam disponíveis nos pés e a comida era “limpa”, diferente da comida que comemos, pesada, mal cheirosa (com carne). Para entrar no mar era só ele bater na água que ele trocava de roupa direto: “virava como um tubarão!”. Entretanto, dentro do mar, todo mun do era gente: peixes, tubarões, tartaru gas, todos gente, vendo o mundo como humanos. Todavia, o corpo para entrar tinha que estar limpo, um corpo for mado por comidas limpas (sem carne e sem cheiro), sem esta premissa as mu lheres-sereias não se interessaram por sua presença e não apareceriam para ele.

Dentro do mar ele era levado a muitos lugares, andava muito. Foi andan do pelo fundo do mar que conheceu muitas cidades, cidades enormes, onde acontecem muitas festas, tinha carros importados e muita liberdade. Assim foi quando conheceu Joacema pelo mar, e viu o ancoradouro dos navios relu zentes e os buracos que ligavam, como ruas, o mar com a lagoa encantada. Na Joacema, era comum encontrar va cas nas fazendas, vacas-pessoas, igual gente como ele. No mar a transformação era possível “com autorização de Jesus!”. Seguindo as premissas do perspectivismo ameríndio6, no ponto de vista de Jairo, no mar era como aqui (na reali dade vivida em nossa con versa), mas diferente, pois no mudo do encante, no mundo virado, não tinha peso, men tiras, cheiros ruins, comida pesada e nem ruindade.

Figura 6. (sem título) Fonte: Thiago Cardoso, 2014.

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Jairo, todo dia ia no mar, ele vivia por lá com as mulheres. Ele queria ficar lá, en cantado. Todo mundo da aldeia achava que ele estava enlouquecendo, pois o cor po dele ficava ali andando pela praia, mariscando, tomando banho, mas ele estava em outro mundo: “era como o mesmo mundo, mas era outro mundo”, disse-me.

CORPOS-LUGARES-PERSPECTIVAS

Joacema é a vila que não fui. É a cidade que não foi. É vila-mato-in-visivel-para.

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REFERÊNCIAS

NOTAS

Repensar a cidade, implica reviver a cidade e revirar sua forma de existên cia, esta “monstruosidade” modernista. Joacema é uma cidade-perspec tiva, existente para corpos (des) encantados. Sendo um lugar em encanto afeta a vida cotidiana dos Pataxó e das pessoas que habitam suas bordas. Para os Pataxó, desencantar Joacema, esta cidade de festa, bares, caminhos, tornando lugar dos matos brabos, passível de ser ocupada, implica tam bém, uma inversão: o encantamento do mundo, em especial da cidade de Salvador da Bahia.

Viver Joacema, como vivem os Pataxó, é viver num mundo onde corpos são lugares-mundo-multiespecificos, estes corpos-lugares-mundos que variam, viram, invertem, transformando perspectivas. Ao performar pers pectivas tais lugares, nos acolhem em pensamentos de que olhar as cidades é olhar-ver seus reversos existenciais, que desafiam nas margens as ontolo gias absolutistas do modernismo - cidade versus rural; construído versus selvagem; visível versus invisível; natureza e cultura, enfim. Diante deste diagnóstico, não estamos propondo nos abrirmos para o projeto multi culturalista, que aponta para as muitas representações sobre a cidade, para as crenças culturais ou simbolismos que lhes envolvem, mas sim, para os processos diferenciantes, para multiplicidades e para pluriversos de pers pectivas localizadas e em fricção7 em mundos que viram e se reviram onde vivem seres que se encantam em habitabilidades outras.

1 CARDOSO, 2018.

2 Ver reflexão em DE LA CADENA, 2018.

3 WIED-NEUWIED, 1820, p. 241279

4 WIED-NEUWIED, 1820, p. 241279.

5 KOHLER, 2009, p. 111.

6 VIVEIROS DE CASTRO, 1996.

7 TSING, 2005 /

CARDOSO, Thiago Mota. Paisagens em transe: ecologia da vida e cosmo política Pataxó no Monte Pascoal. Brasília: IEB Mil Folhas, 2018.

CASTRO, Eduardo Viveiros de. Os pronomes cosmológicos e o pers pectivismo ameríndio. Mana, v. 2, p. 115-144, 1996.

CADENA, Marisol de la. Natureza incomum: histórias do antropo-cego. Revista do instituto de Estudos Brasileiros, p. 95-117, 2018.

KOHLER, Florent. El mundo salvage y la tierra de los ancestros: los Pataxó del Monte Pascal (Bahia, Brasil). In:

/

ELISSON, N.; MAURI,

M. M. (org.). Paisajes, espacios y territórios. Qui to: Abya-Yala, 2009, p.109-126.
TSING,
Anna Lowenhaupt. Friction: An ethnography of global connec tion. Princeton University Press, 2011.
WIED-NEUWIED,
prince Maximi liam.. Viagem ao Brasil. Belo Hori zonte: Itatiaia; São Paulo: USP, 1989 [1820]. PARA CITAR: CARDOSO, T. M. Joacema-(des)-virada: a cidade encantada dos Pataxó. Redobra , n. 16, ano 7, p. 99-117, 2022

FLORESTA TÓXICA:

VIDA MULTIESPÉCIE E POLUIÇÃO NA METRÓPOLE AMAZÔNICA

GUILHERME SOARES

Doutorando do Programa de Pós-graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Amazonas (PPGAS/UFAM) e membro da coordenação do Núcleo de Estudos da Amazônia Indígena (NEA)

PRÓLOGO

Manaus, no estado do Amazonas, região norte do Brasil, é uma cidade curiosa, e muitos diriam difícil de se habitar. Fica situada às margens do Rio Negro, um pouco acima do ponto onde este encontra o Rio Soli mões para formar o Rio Amazonas, com seus largos horizontes de di mensões quase que oceânicas. Existem duas estações, segundo a deno minação utilizada na região: no verão, a época da vazante/seca do Rio Negro, que vai aproximadamente de junho a novembro, o calor é inten so, atingindo seu pico excruciante nos meses de agosto e setembro; no inverno, época da enchente/cheia do rio, chove constantemente, pe ríodo de muitas tempestades e vendavais que arrasam a cidade, além de propício ao crescimento do mofo, que começa a se empoderar de tudo nas casas em um ritmo voraz.

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Porém, sobretudo, Manaus é um centro urbano cosmopolita em meio a um imenso mosaico de florestas da Amazônia. A despeito das duras intempéries, é um lugar de enorme diversidade cultural e linguística, morada de pessoas que vem de muitos lugares do Brasil, seja para trabalhar nas fábricas do Distrito In dustrial, estudar e atuar como pesquisadores nas instituições científicas de ex celência existentes na cidade, como o INPA e a UFAM, cumprir obrigações do serviço militar ou tentar a vida de diversas maneiras. Da mesma forma, muitas pessoas se deslocam do interior do estado, de comunidades tradicionais ribei rinhas, comunidades quilombolas e aldeias indígenas para estudar, trabalhar, buscar atendimento médico, visitar parentes ou tudo isto ao mesmo tempo. Manaus possui hoje comunidades indígenas urbanas, aldeias multiétnicas, além de comunidades de imigrantes que vieram em ondas nos últimos anos para a ci dade, vindos principalmente do Haiti e da Venezuela. Os fluxos que atravessam Manaus são intensos e incessantes, sendo que o indicativo mais nefasto disto foi a rápida disseminação da pandemia de Covid-19 na capital e para o interior, mesmo com as dificuldades de deslocamento que a geografia da região impõe, que transformou o estado do Amazonas em um dos palcos das mais tristes e horrendas notícias nos últimos dois anos.

Pode-se dizer que essa característica é altamente constitutiva de Manaus, que de vido em parte a própria localização geográfica, que a situa como uma espécie de “porta de entrada” para Amazônia, sempre recebeu fluxos muito variados, que foram se encarnando nas estruturas urbanas e nos modos de habitar que vieram a formar a cidade, desde a violência colonial e da ensandecida luxúria do ciclo da borracha, passando pelos projetos de desenvolvimento da ditadura militar, incluindo aí a Zona Franca, política de incentivo fiscal que deve necessariamente ser considerada em qualquer tentativa de se entender os processos mais recentes de formação da complexidade que é Manaus.

Esses fluxos por sua vez estão intrinsecamente relacionados às águas que correm pela região e atravessam a própria cidade, a malha capilarizada de igarapés que formam a bacia hidrográfica do Rio Negro. O crescimento e a ocupação da cidade se deram acompanhando seus trajetos, entrelaçando-se em suas histórias, e ao contrário de muitas metrópoles brasileiras que aterraram grande parte de seus cursos de água, em Manaus os igarapés capturam a atenção em meio a paisagem citadina, fazendo-nos considerar talvez outras formas mais sutis de aterramen to. Vidas humanas e não-humanas se fazem junto às águas poluídas dos igarapés da cidade, matizando-a com algumas cenas pitorescas. Pequenas embarcações, canoas de madeira cruzando as águas, agrupamentos de casas de palafita e esta leiros improvisados aparecem ao lado do concreto dos equipamentos urbanos, pontes asfaltadas, prédios de escritórios e condomínios de luxo. Jacarés tomam sol em pedras salientes nos córregos, a plena vista dos transeuntes. Bandos de capivara cruzam nadando em meio à contaminação das águas e se alimentam do capim que cresce na lama fétida das margens. Macacos, araras, papagaios e

periquitos se reúnem nas árvores à beira dos igarapés para comer frutas em meio às avenidas sufocadas pela fumaça dos escapamentos, fazendo tanto barulho e alarde quanto os automóveis.

A FLORESTA TÓXICA

Próximo à casa onde eu morava alguns meses atrás, passa o Corredor Ecológi co Urbano do Mindú1, primeiro Corredor Ecológico Urbano criado no Brasil. O Corredor está dividido em cinco trechos. Eu residia justamente próximo ao trecho considerado o mais “bem preservado”2, na área do círculo vermelho em destaque na Figura 1. Este trecho corresponde a área do SESI, Manaus Golf Club, RPPN da Honda, Colônia Japonesa e Conjuntos Habitacionais Petros, Tiradentes e Villar Câmara. Há algum tempo me chamava atenção a quantidade de pessoas que fazem uso dessas matas para coletar frutas como banana (Musa sp.), cacau (Theobroma), buriti (Mauritia flexuosa), manga (Mangifera indica), açaí (Eu terpe precatória e Euterpe Oleracea) e tucumã (Astrocaryum aculeatum) – ape nas algumas das espécies que eu consegui auferir a partir de observações casuais.

A princípio, imbuído de algumas das questões com as quais venho lidando em minha pesquisa de doutorado3, me perguntava quais seriam as formas de uso, manejo, seleção e propagação das plantas no espaço da floresta, que tipo de for mação paisagística isso resultaria, que destino teriam os produtos retirados e outras coisas desse tipo. Entretanto, quando finalmente me dispus a adentrar pelas trilhas abertas na mata, me deparei com uma paisagem que me transpor tou para um cenário um pouco menos convencional, algo que me pareceu estar além da dicotomia entre, de um lado, uma floresta prístina e selvagem, e do ou tro uma floresta antrópica e cultural. Ao caminhar por lá logo me veio à memória a imagem da “Floresta Tóxica”, do filme de animação “Nausicaä do Vale do Ven to ”, produzido em 1986 pelo Estúdio Ghibli e dirigido por Hayao Miyazaki4

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Figura 1. Corredor Ecológico Urbano do MIndú. Fonte: Google Maps, 2021.

Na animação, o mundo se encontra destruído, a “civilização” completamente em colapso, resistindo apenas algo como cidades-estados que lutam umas con tra as outras na disputa por dominar os poucos recursos que restam e estabelecer a hegemonia sobre a terra arrasada. Além de lutarem uns contra os outros, os seres humanos que restam também lutam contra a misteriosa e perigosíssima “Floresta Tóxica”, um ecossistema formado por um conglomerado de plantas e fungos que expelem gases venenosos, habitada por insetos gigantes super agressivos, e que avança dia após dia com o ímpeto de tomar o mundo inteiro. Esta floresta, contudo, guarda um segredo descober to apenas pela protagonista do filme, Nausicaä, uma mulher atenta e sensível à ecologia do lugar. Ela descobre que a floresta nada mais é do que parte do processo de regeneração do mundo, e que silencio sa e vagarosamente as plantas e fungos estão filtrando e purificando a atmosfera envenenada do planeta, enquanto criam uma nova terra bem abaixo de onde tocam suas raízes e de onde se estendem suas mi corrizas. Os humanos, todavia, sem compreender, querem retomar o mundo para si e desejam destruir a floresta, despertando a fúria de seus insetos guardiões e piorando ainda mais as coisas.

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Figura 2. Trecho poluído do Igarapé do Mindú que corta o Corredor Ecológico

Ao perambular pelas matas do Mindú, pude vislumbrar as semelhanças com este mundo fictício, ao sentir com todo o meu corpo um ambiente hostil e des confortável, com aromas tóxicos, pútrido e poluído, mas que abriga uma eco logia diversa e na qual se observa uma beleza peculiar. Um lugar onde se dese nham vários tipos de emaranhados em que relações ecológicas, culturais, sociais e políticas se misturam e confundem. Inspirado nisso, decidi começar a tentar desenvolver impressões deste vislumbre, experimentar seguir alguns fios desses emaranhados, procurando desvelar histórias a partir de diferentes perspectivas humanas e não-humanas: de outros animais, vegetais, fungos, assim como a partir do próprio lixo e demais elementos abióticos da paisagem.

Retiro minhas intuições principalmente das contribuições de Haraway (2006) e Tsing (2018; 2021), autoras que por sua vez trazem reflexões centrais para a constituição de um modo de pensar e conduzir etnografia levando em conta, e muito a sério, as relações com o mundo mais-que-humano, que vem sendo referido nos últimos anos como Etnografias Multiespécies (KIRKSEY & HEL MREICH, 2010). Minha intenção, ao andar e experienciar etnograficamente o Mindú, é contar histórias a partir de uma prática especulativa, o que quer dizer apenas permitir imaginativamente extrapolar os contextos, mas assentado nas discussões científicas e narrativas com o lugar. Para isso, tive em meu horizonte duas orientações básicas, que dançam uma com a outra, se aproximando e dis tanciando em seus movimentos de constituição mútua.

Aventurando-me pelo Mindú, busquei exercitar algumas tensões que pude en xergar no esforço de sistematização e análise sobre as paisagens na Amazônia, o que venho conduzindo em minha pesquisa de doutorado à qual me referi. Onde estariam situados Manaus e o Mindú nas narrativas mestras que comandam os discursos e políticas em torno da Floresta Amazônica, com seus grandes divi sores? Que deslocamentos essas narrativas, com seus pressupostos e entendi mentos do que é considerado natureza, perturbação ou mesmo uma floresta antropogênica, poderiam sofrer quando pensadas a partir de um lugar no qual emaranhados multiespécies estabelecem tipos de coordenação que por vezes parecem se fazer à revelia dos fluxos de contaminação que marcam sua relação com a cidade, e outras compor com eles próprios?

A partir do mesmo princípio, tentarei propor alguns deslocamentos das narrati vas que existem atualmente sobre o igarapé do Mindu, sua relação com a cidade de Manaus e os moradores de seu entorno. As histórias que pude ler até agora, contadas pela educação ambiental, geografia e pelo poder público de Manaus, são formuladas sempre com base em ideias como a da perda ou degeneração da natureza , estabelecendo uma correlação direta entre o aumento da população de Manaus com a diminuição da presença de árvores em torno do igarapé e au mento da poluição de suas águas5. O pano de fundo dessas histórias é a política econômica de incentivo fiscal à industrialização no estado do Amazonas, a Zona

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Franca, criada na década de 1960 durante a ditadura militar, e que nos anos de 1980 passou por um processo ultra acelerado de intensificação e expansão (SE RÁFICO & SERÁFICO, 2005).

Estas são histórias que separam o polo humano do polo natural, nas quais um re pele o outro, sem a possibilidade de coexistirem. Fala-se, por isso, recorrentemen te em preservar e conservar o igarapé, e é pautada nessas noções que se baseiam as intervenções do Poder Público. Como resultado desse modelo de relação com o mundo-mais-que-humano e dos dispositivos práticos e conceituais ao mesmo tempo criados por ele e que o engendram recursivamente, são empreendidas ações como o despejo de moradores para instauração de áreas de preservação e a construção de muros e cercas ao redor do igarapé, por exemplo (TAVEIRA, 2010).

Tendo tudo isto em vista, apresento aqui o que pude organizar da minha ex periência etnográfica, o que tenho pensado e refletido, e sobretudo como isso tem me afetado. Minhas observações, como certamente perceberão, fornecem uma imagem parcial do emaranhado de interações que acontecem em muitas camadas e tempos distintos no espaço da Floresta Tóxica, focando em algumas pontas dos múltiplos fios que o constituem e que são possíveis de seguir. Nesses termos, a descrição que ofereço é também um convite ao leitor para se engajar junto comigo na prática especulativa, e me ajudar inclusive a buscar meios de me entregar e fazer parte destes mundos cujos vislumbres são colocados aqui.

COEXISTÊNCIA, VIDA E MORTE

O ponto de partida de minhas incursões à Floresta Tóxica foi a mata do Con junto Petros (Figura 3). A partir de um campo de futebol onde eu ia diariamente praticar Tai Chi Chuan (no centro da imagem), comecei a observar os caminhos feito pelas águas na época da inundação do igarapé, assim como os caminhos feitos pelas formigas, que me levaram a encontrar as trilhas utilizadas pelas pes soas que circulam e se relacionam com aquele fragmento de floresta. Para orga nizar minhas notas e observações, dividi a área em dois pedaços, que podem ser claramente visualizados na ilustração: a área do açaizal (esquerda) e o alagado (direita). Entretanto, apesar de poderem de fato ser caracterizadas de forma dife rente, uma vez que certos elementos predominam em uma ou em outra, as duas compartilham elementos descritivos, o que quer dizer que o que relato no açai zal, por exemplo, não acontece apenas estritamente ali. Não é minha intenção, portanto, estabelecer nenhuma divisão rígida entre as áreas.

Os “zais” são concentrações de espécies arbóreas geralmente comestíveis e bas tante utilizadas pelas pessoas e grupos em toda a Amazônia. Dessa forma, açai zal é o nome dado a uma área que possui uma concentração significativa de pal meiras de açaí. Como outros exemplos, podemos citar os castanhais, buritizais, cacauzais e por aí vai. Essas concentrações são comumente associadas à ocupação

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***

e presença humanas na paisagem, existindo, porém, um debate mais ou menos acirrado ainda a respeito da preponderância da agência de outros animais na for mação destas, como atesta a célebre questão em torno da castanha-do-brasil6 (Bertholletia excelsa). A despeito da controvérsia, não me parece absurdo dizer que tanto pessoas como outros animais dividem mais ou menos equitativamen te a responsabilidade, e por que não dizer o cuidado, pela formação do açaizal. Além disso, esse debate não considera a própria agência vegetal em escolher, se duzir, moldar e se deixar moldar às circunstâncias, todo o repertório, enfim, de habilidades e comportamentos de que dispõem as espécies vegetais para se lidar com o ambiente e outros seres, e que nos últimos anos vêm sendo estudados e cada vez mais ganhando espaço como uma perspectiva dentro das Ciências Bio lógicas7

Diversas vezes durante minha prática matinal observei o intenso movimento de um grupo de araras vermelhas (Ara chloropterus), que costumavam chegar por volta das 8h da manhã e se reunir na copa de uma das samaúmas (Ceiba pentandra) que se destacam no fragmento próximo ao campo. Essas araras se alimentam do açaí e, segundo um dos moradores que encontrei perambulando pela mata em um dos meus passeios, gostam bastante das castanholas, fruto da chamada castanholeira ou amendoeira-da-praia (Terminalia catappa L). Assim como as araras, grupos de sauins costumavam chegar pela manhã no campo e prescrutar toda a mata em volta à procura de alimento, enquanto se divertiam saltando entre as árvores, muitas vezes parando para olhar com curiosidade os movimentos lentos e ritmados que eu executava.

A castanhola e o açaí são parte da dieta dos sauins, sendo o segundo também muito apreciado pelos japiins (Cacicus cela) e outras aves da família Icteridae, comuns nestas matas. De modo geral, no entanto, as pessoas no Amazonas não possuem o hábito de comer castanholas. Ainda assim, pelo que pude notar, elas são abundantes no Mindú, e ao seu lado geralmente encontram-se muitos pés de açaí, que crescem ainda mais altos e esguios devido à sombra que a grande copa das castanholeiras projeta. Ao mesmo tem po que serve como fonte abundante de alimento para espécies amea çadas como a arara-vermelha e o saium-de-manaus, a castanholeira pode causar um desbalanço no processo de sucessão florestal, suplan tando espécies nativas e impedindo que uma comunidade diversifi cada de árvores se estabeleça. O seu rápido crescimento e a sombra de sua enorme copa projetada no dossel dificultam o acesso das outras espécies de árvores à luz solar e, por conseguinte, que atinjam sua ma turidade. Por outro lado, muitas vezes desconhecemos por completo o que se passa embaixo da terra, que tipo de relações suas raízes em preendem com a densa assembleia de fungos e bactérias que vivem no solo, e que tipo de comunicação estabelece com as outras árvores à sua volta. A castanholeira é, assim, como muitos outros personagens da Floresta Tóxica, um ser repleto de ambiguidades.

125 Próxima página: Figura 3. Mata do Conjunto Petros. Ilustração de Luana Cardoso (2021).

Infelizmente não tive a sorte de encontrar ninguém coletando açaí por ali, pro vavelmente devido a maioria dos cachos ainda estar em processo de amadureci mento. As evidências da movimentação humana, porém, estão por toda a parte. A julgar pelo tamanho das pilhas de cachos que encontrei e a quantidade de ár vores em si, esta deve ser uma atividade bastante produtiva e de certa importân cia. A área do açaizal possui ainda muitas bananeiras. É um fato bastante trivial, mas importante de mencionar, que as bananeiras só proliferam se após a retirada do cacho a planta que o forneceu for cortada ou derrubada, possibilitando assim o aparecimento dos brotos que crescem a partir de seu caule subterrâneo, ou ri zoma. Além das bananeiras, também se destacam os jambeiros (Syzigium sa maragense), o cupuaçu (Theobroma grandiflorum) e o cacau, que se beneficiam de algumas clareiras existentes na mata. Porém, muitas árvores destas duas úl timas espécies que observei se encontravam visivelmente infectadas e doentes, com os frutos apodrecidos (no caso do cacau).

Existem pelo menos dois fungos conhecidos por sua predileção pelas árvores do gênero Theobroma , ao qual pertencem o cacau e o cupuaçu, e que causam adoecimento e morte nestas plantas, podendo mesmo levar a perdas de 50 a 100 por cento dos frutos em áreas de cultivo. Esses fungos são Moniliophtora perniciosa , causador da doença conhecida como vassoura-de-bruxa e Moniliophtho ra roreri , causador da monilíase do cacaueiro8. Recentemente, em agosto deste ano, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento lançou um alerta de emergência fitossanitária no Amazonas devido a detecção de monilíase no esta do vizinho do Acre9. Os dois fungos possuem uma história de dispersão e con tágio através de fluxos que se estendem da região do caribe até a Pan-Amazônia, seguindo as plantations de cacau e a cadeia produtiva das multinacionais e con glomerados produtores de chocolate. Não pude deixar de imaginar se este fungo não estaria espalhando seus esporos por aqui bem antes de que pudéssemos vir a notar, e se não teria bem na minha frente um pequeno fio desta história de con taminação, vida, morte, trabalho mal remunerado, migrações forçadas, lucros exorbitantes e feriados felizes de Páscoa e dia dos namorados.

Ao mesmo tempo, um outro tipo de fungo parece conseguir viver harmoniosa mente com as árvores, e embora não seja encontrado exclusivamente associado aos cacaueiros, foi nas raízes expostas destes que ocorreram meus dois encontros com o Favolus brasiliensis . Interessante mencionar que este cogumelo co mestível se tornou há alguns anos, junto com outras espécies amazônicas, uma sensação na gastronomia brasileira, chamado pelos chefs do sudeste do país de o “champignon caboclo”, como destacado na mídia mais ao sul10. Este movimento se associa, por sua vez, às iniciativas recentes organizadas por pesquisadores que estão estudando a diversidade de cogumelos comestíveis na Amazônia, conhe cida há muito tempo pelos povos indígenas, e criando projetos de estruturação de cadeias produtivas que conectam as aldeias aos restaurantes de chefs renoma

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dos de São Paulo. Os cogumelos que eu encontrei pareciam ter vários pedaços mordiscados, o que sugere que antes de cair no gosto da alta classe sudestina, consumidores mais discretos o apreciam in loco.

Nas clareiras, ao redor de algumas árvores, é possível notar que a terra é revolvi da frequentemente, provavelmente com o intuito de aproveitar a camada mais superficial de matéria orgânica oriunda da decomposição das folhas para a fei tura de adubos. Uma outra presença na floresta, no entanto, chama atenção por esse mesmo hábito. Os sabiás-do-barranco (Turdus leucomelas) são de longe a espécie de pássaro mais presente, dando a impressão de estarem realmente por toda a parte. Movimentando-se entre os galhos mais baixos das árvores e revi rando as folhas que se acumulam em torno dos troncos, imagino se não estão à procura de pequenos insetos ou de materiais para construir seus ninhos - mas talvez haja algo mais aí que minha sensibilidade e falta de familiaridade com seus hábitos ainda não conseguiu perceber. O movimento é tamanho que, até eu me acostumar, parei constantemente para ouvir e prestar atenção se havia alguma outra pessoa por perto, uma vez que o ciscar dos pássaros pelo chão dava a im pressão de haver passos pela mata.

Todas estas interações e encontros que relatei acontecem em meio a um descon forto persistente. As nuvens de mosquitos, o odor fétido do igarapé e da lama às suas margens, o lixo espalhado por toda a parte e rejeitos de todo tipo acumula dos aqui e ali, torna caminhar pela Floresta Tóxica um exercício nada agradável, e um tanto perigoso devido à possibilidade de encontro com animais peçonhen tos e potencialmente nocivos - para os quais esses lugares de acúmulo de rejeitos se torna uma habitação atrativa, como escorpiões, aranhas, cobras e ratos. Se na área do açaizal essa sensação é amenizada pelas clareiras e trilhas, uma vez que este pedaço ao que tudo indica possui maior movimentação de pessoas usual mente, na área do alagado esse sentimento chega ao seu ápice, e a sensação de claustrofobia e sufocamento é contínua.

O simples ato de caminhar se torna difícil, e é necessário contorcer o corpo, se abaixar, pular e se esgueirar, como aqueles ladrões de obras de arte que vemos nos filmes desviando com destreza dos lasers vermelhos atravessados em todas as direções. É preciso estar com a atenção redobrada para ver bem onde se está pisando. A vegetação rasteira é bastante densa e não há trilhas, pairando sobre o ambiente o risco de pisar em alguma serpente venenosa como uma jararaca (Bothrops jararaca) ou a surucucu (Lachesis muta). A floresta se torna muito mais abafada e quente e com pouca visibilidade para além da confusão de galhos, raízes e lixo de toda sorte. Vez ou outra, apenas, há um momento para respirar. Nessas horas, quando é possível olhar ao redor, formas monstruosas vêm à tona, árvores cujas histórias são quase inimagináveis para mim, tão idiossincráticos parecem seus arranjos corporais.

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CONSERVAÇÃO E TRANSGRESSÃO

Em alguns lugares às margens da rua, mais próximo das casas dos Conjuntos, a floresta torna-se uma espécie de extensão dos quin tais das casas. O espaço é cuidado, tenta-se mantê-lo livre de lixo, e é varrido frequentemente e mantido aberto. Predominam man gueiras, bananeiras, algumas plantas medicinais, como crajiru (Ar rabidaea chica) e a babosa (Aloe vera), e outras que, ao menos do meu ponto de vista, emprestam uma beleza singela ao lugar, como o manacá (Brunfelsia) e outros arbustos com flores.

Diferente da área do Conjunto Petros, a floresta das áreas dos Conjuntos Ti radentes e Villar Câmara é separada da rua por uma cerca. Porém, mesmo as sim, em alguns lugares, a mata mais próxima das casas possui uma dinâmica similar à qual acabo de relatar - são espaços cuidados e às vezes diretamente cultivados. Geralmente encontramos esses espaços próximos dos portões que existem ao longo da cerca, que ficam trancados por cadeados, sugerindo que alguns moradores possuem um acesso privilegiado a eles. No entanto, em outros casos, se trata claramente de uma transgressão. Em um dos locais por onde passei, um pedaço da cerca tinha sido arrombada e transformada em “portão”.

Não faltam placas às margens da floresta, acompanhando a cerca que a sepa ra da rua pública e das casas dos Conjuntos, para alertar quanto à ilegalida de de qualquer atividade que modifique ou possa causar algum dano àquela paisagem, seja a caça de animais, coleta de frutos, cultivo de plantas, cons trução de casas ou, o que não deixa de provocar certa ironia, despejo de lixo e resíduos.

As ideias de proteção, cuidado e conservação parecem se articular de modos confusos e contextuais no âmbito da Floresta Tóxi ca. O tipo de cuidado e proteção empreendido pelos moradores do Conjunto Petros e Tiradentes, que cultivam e mantém limpos os trechos de mata na Área Protegida como se fossem seus próprios quintais, é certamente diferente da ideia de cuidado e proteção que o poder público tem em mente ao construir cercas e dificultar a en trada de pessoas na floresta, como fica claro na legislação ambiental referente às Áreas de Preservação e nos próprios objetivos contidos na proposta de criação do Corredor do Mindú11. Da mesma forma, é válido supor que o entendimento desses termos para os que fazem uso dessas matas para ganhar a vida ou complementar a renda familiar e/ou a própria alimentação também tenha suas diferenças, se postos lado a lado com os outros dois.

131 Figura 5.Cerca no Conjunto Tiradentes Figura 4. Alagado.

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INVASORES

Para cada sentido que esses termos assumem a partir das diferentes perspectivas e relacionamentos envolvidos, é marcado em contrapartida o sentido e o signifi cado também do termo invasor. Um dos mais famigerados e tenazes organismos considerados invasores no Mindú é o caramujo-gigante-africano (Achatina fu lica). Tanto em artigos acadêmicos como em sites de jornais e revistas, a história de introdução dessa espécie no Brasil é sempre a mesma, e um tanto mal contada. Nativo do leste-nordeste da África, foi trazido (não se sabe bem de onde) ilegalmente para o sul do país como alternativa econômica ao escargot europeu12 (Helix sp.). O cultivo foi posteriormente abandonado e os caramujos liberados no ambiente, uma vez que o hábito de comer a carne do molusco, por diversos motivos, não ganhou adeptos. Devido aos seus hábitos reprodutivos prolíferos e a capacidade de viver em vários tipos de ambiente, adequando-se especialmente às condições tropicais, se espalhou por praticamente todo o país, multiplicando -se rapidamente em ambientes antropizados (aqui entende-se tanto áreas urba nas como espaços agrícolas), e é presente hoje em ao menos 23 estados. Apesar do nome, nos termos da classificação biológica o caramujo africano não é um caramujo, e sim um caracol, devido aos seus hábitos exclusivamente terrestres. Essa confusão aparentemente trivial é apenas uma das muitas ambiguidades e incompreensões que cercam o “caramujo” africano.

A espécie é referida em trabalhos de educação ambiental como sendo uma das 100 piores pragas do mundo, sendo o causador de sérios danos ambientais, eco lógicos e econômicos, além de ser um risco para a saúde pública, sendo o vetor direto ou intermediário de doenças como meningite eosinofílica e angiostron gilíase abdominal. O risco de se contrair as enfermidades está associado ao con sumo de sua carne crua ou mal cozida, mas principalmente pelo contato com as fezes ou com o muco que libera ao se locomover13. Na internet é possível achar sem dificuldade muitas cartilhas elaboradas pelas Secretarias de Saúde estaduais que orientam para os riscos de contato com a espécie e dão diretrizes para sua identificação e eliminação.

Em dias úmidos é possível observá-los por toda a parte nas matas do Mindú. Eles também ocupam os quintais das casas dos Conjuntos próximos, deixando mui tos moradores irritados com sua presença, uma vez que costumam sair para se alimentar das plantas dos jardins durante a noite. Há alguns anos, quando morei em uma casa no Conjunto Tiradentes, travei uma guerra contra esses molus cos, que buscavam insistentemente se alimentar das minhas plantas favoritas. Na época eu já conhecia as narrativas que o associam com doenças e contamina ção, sentindo grande aversão por eles. Este sentimento era compartilhado pelo senhor para o qual eu pagava o aluguel, que sempre que podia me incentivava fervorosamente a eliminá-los.

Após algumas tentativas mal sucedidas de afastá-los das minhas plantas e expul sá-los do meu quintal, resolvi tentar deixar de lado os sentimentos estabelecidos e buscar uma nova abordagem. Neste mesmo período comecei a ter contato com a literatura das Etnografias Multiespécies, o que contribuiu bastante para que eu me sensibilizasse e procurasse estabelecer uma convivência com os caramujos, ao invés de tentar exterminá-los. Passei então a reservar um espaço no quintal para deixar alguns restos de frutas juntamente com as fezes dos meus cachorros, pensando que se eu alimentasse os caramujos, eles deixariam de atacar minhas plantas. A estratégia foi parcialmente exitosa, e os ataques às plantas diminuíram consideravelmente. Com o tempo e observando-os mais de perto, passei até a encará-los com simpatia. Sua lenta placidez, a maneira calma e graciosa como se deslocam, movendo os olhos em várias direções, a resiliência e o ímpeto des ses animais ganharam minha admiração. Eles também passaram a me aconse lhar quando era necessário ou não regar as plantas pela manhã, uma vez que o maior ou menor nível de atividade deles pelo quintal normalmente indicava se iria ou não chover aquele dia. Cheguei a flagrar até mesmo alguns momentos de “fofura”, quando surpreendia algum deles comendo tranquilamente uma folha ou outra coisa qualquer, dobrando seu corpo de modo a segurar o alimento fir memente e expondo sua pequenina rádula, estrutura semelhante a uma língua repleta de dentículos de quitina que eles usam para raspar superfícies.

Talvez devido a simpatia que desenvolvi em relação aos caramujos, comecei a desconfiar um pouco das narrativas que o caracterizam como um animal sujo, pestilento e ameaçador. É curioso que uma pesquisa rápida em uma das mais acessíveis enciclopédias virtuais traz informações que põe imediatamente em dúvida o nojo e o temor impensado que já observei em muitas pessoas na rela ção com os caramujos. Vale dizer que assim como meu antigo locatário, a senho ra que me alugava um quarto no Conjunto Villar Câmara, último local em que morei, realmente parecia odiá-los, e sempre que encontrava um rastejando pelo quintal imediatamente o esmagava com raiva e um certo requinte de crueldade. Assim, pesquisando um pouco, li que a despeito de ser o hospedeiro natural do nematóide Angiostrongylus cantonensis, causador da meningite eosinofílica, pelo menos até 2005 não haviam sido registrados casos da doença no Brasil. Quanto a angiostrongilíase abdominal, doença causada pelo parasita Angiostrongylus costaricensis, foram registrados casos em estados do sul e sudeste, porém muito provavelmente transmitida por outros hospedeiros intermediá rios, como o Phyllocaulis variegatus, lesma com ampla distribuição geográfica em quase todo o continente Sul-Americano. Além disso, a doença raramente é fatal e na maioria das vezes evolui como uma parasitose comum. Me parece que o maior dano que o caramujo pode causar de fato, constatado em vários dos paí ses em que foi introduzido, é ao cultivo agrícola, dado sua ampla dieta e apetite voraz. Também é aventado seu impacto negativo nas populações de moluscos

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nativos. Contudo, há suspeitas de que em ambientes menos antropizados sua proliferação seja espontaneamente controlada por predadores como gambásou mucuras para nós aqui no norte (Didelphis spp.) - e cobras come-lesmas (es pécies da família Colubridae) (COELHO, 2005). Tudo isso torna incerto qual seria seu papel na ecologia da Floresta Tóxica, tornando-o similar aos fungos venenosos da Floresta Tóxica de Nausicaä, animação à qual me referi no início deste texto.

Mal consigo disfarçar meu fascínio por estes seres, e não coloquei aqui nem uma pequena fração das várias coisas muito interessantes que tenho lido. Mas uma úl tima constatação justifica minha delonga, assim como apoia a comparação com os fungos de Nausicaä. O muco liberado pelos moluscos tem a função de manter seu corpo hidratado, facilitar a locomoção, a captura de alimentos e a reprodu ção, ao mesmo tempo que proporciona resistência a infecções por microrganis mos, uma vez que possui um fator antimicrobiano (IGUCHI et al., 1982). Esse fator pode ser potencializado dependendo do que o caramujo ingere, uma vez que ele possui a habilidade de absorver propriedades e certos princípios ativos dos alimentos que consome. Pesquisadores observaram a eficácia do muco na recuperação de lesões, potencializando seus efeitos cicatrizantes e anti-inflama tórios, administrando aos caramujos dietas acrescidas de confrei (Symphytum officinale) e própolis, produzido por abelhas da espécie Apis melífera14. Assim, o mesmo muco que contamina, em uma outra configuração do campo de relações, pode curar.

Dessa forma, fica claro que o caramujo africano não é em si mesmo agente da contaminação, degradação ambiental, destruição e desequilíbrio ecológico. Seu corpo e sua vida se fazem imiscuídos em emaranhados biossociais complexos, nos quais as interações multi-específicas, ocorrendo em múltiplos níveis, distri buem e redistribuem incessantemente as agências, e as transformações são em sua maioria imprevisíveis e inevitáveis – ou inescapáveis. Esse potencial de de sestabilizar de forma encarnada narrativas que atribuem a culpa do impacto e da degradação a certos agentes privilegiados, mostrando que corpos e propriedades se fazem em constituição mútua com o ambiente e a partir de quais e que tipo de relações os organismos estão engajados, pode muito bem funcionar de mote para pensar a ecologia da Floresta Tóxica em relação às águas dos igarapés e a cidade de Manaus, com sua infraestrutura e política ambiental.

As chamadas “invasões” em Manaus, aglomerados urbanos que começaram a surgir durante o processo de migração intensa das pessoas dos municípios do in terior do estado para a capital, atraídas pelas oportunidades econômicas geradas com a implementação do polo industrial, via política de incentivo fiscal da Zona Franca, são referidas frequentemente como o principal fenômeno responsável pela degradação das matas e contaminação dos igarapés. As narrativas históri cas, os relatórios produzidos pelas agências ambientais públicas e as análises dos geógrafos e engenheiros evocam termos muito parecidos com os da história de

dispersão do caramujo africano, como impulso econômico, abandono, falta de alternativa, proliferação desordenada e insalubridade (MACHADO, 2012). Esse tipo de narrativa é construída em referência a uma lógica de conservação que está materializada por sua vez na infraestrutura da política ambiental promul gada pelo Estado.

A LÓGICA DO AUTODEPURADOR

Nos seus 18,2 km de extensão, o igarapé do Mindú atravessa, além do Corredor Ecológico, outras três Unidades de Conservação - UC. Seguindo desde a sua nas cente, são elas o Parque Municipal Nascentes do Mindú, Reserva do Patrimô nio Particular Natural da Honda – RPPN e o Parque Municipal do Mindú. Afora as áreas correspondentes às Unidades de Conservação, tanto o canal principal como os demais afluentes que compõem sua bacia encontram-se densamente ocupados e quase completamente desmatados em seu entorno, tendo passado por diversos tipos de intervenção do poder público como canalizações, retifica ções, barragens e alocação de estruturas para controle de inundações15

Em 2010 a Prefeitura Municipal de Manaus lançou o plano de Recuperação Am biental e Requalificação Social e Urbanística no Igarapé do Mindú, que contem pla ações em vários níveis, desde a delimitação de áreas protegidas, realocação de pessoas em áreas de risco, criação de conjuntos habitacionais, obras de sanea mento e instalação de equipamentos urbanos. Avaliações recentes dos resulta dos do plano apontam, contudo, os inúmeros desafios e gargalos enfrentados. A avançada situação de degradação do curso do igarapé e a questão do despejo de resíduos sólidos e químicos parecem ser problemas incontornáveis16 Defrontar com os planos de engenharia, legislação ambiental e com a literatura que busca analisar os subsídios legais, as motivações ambientais e sociais, assim como os resultados e impactos das políticas elaboradas e aplicadas, desperta sen timentos ambíguos. A linguagem técnica e jurídica parece criar uma espécie de nuvem lógica e atemporal na qual o que se pretende fazer, o que se deveria fazer, o que se planeja fazer, o que de fato tem sido feito, os resultados esperados e os resultados obtidos, tudo se confunde, se torna difícil de discernir. Soma-se a isso grande número de matérias jornalísticas que ora exaltam as ações exemplares do poder público, ora denunciam o desperdício dos recursos e o abandono dos lugares.

Duas coisas, no entanto, me chamaram atenção enquanto minha consciência flutuava nessa nebulosa. A primeira é a aparente falta de curiosidade pelas di versas vidas que orbitam, se fazem e se atualizam em torno e junto ao igarapé. A ecologia do Mindú e de suas matas é grosseiramente simplificada ao vermos aplicada uma ideia de conservação eivada de pragmatismo, que parece se defi nir principalmente através do quantitativo de cobertura vegetal disponível nas áreas (ALBUQUERQUE & MOLINARI, 2020). Todas aquelas relações que ten

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tei traçar no começo do texto, uma pequeníssima parte do que acontece na es tonteante ecologia da Floresta Tóxica, assim como os diversos envolvimentos das pessoas com os espaços, nada disso chama a atenção ou parece entrar na pau ta dos gestores públicos e dos analistas que os aconselham ao decidir sobre suas intervenções. Por um lado, transparece a urgência em frear o processo de degra dação do igarapé, delimitando Áreas Protegidas para evitar “invasões”, despejo de lixo e resíduos, desmatamento e assoreamento. Por outro lado, as ações de re cuperação implicam uma reestruturação da dinâmica urbana a longo prazo, que caminha de modo incerto e cambiante ao longo dos revezes da administração pública e trocas de gestão, não fazendo frente à intensidade dos fluxos responsá veis pela deterioração das matas e do igarapé.

Esta tensão entre necessidade urgente de preservar o que está se perdendo e o pensamento de “reserva para o futuro” que sustenta a ideia de Áreas Protegidas17 permeia o pragmatismo das ações do poder público voltadas para estas áreas. Apesar de protegidas por uma legislação que regulamenta seus usos e atribui ções, proteção da qual os avisos e as cercas às quais fiz alusão são a expressão mais bruta, essas medidas não são capazes de impedir os fluxos de contaminação e adoecimento que atingem o igarapé e suas matas, que adentram e corroem a estrutura legal de proteção, ao mesmo tempo que são possibilitados e engendra dos por ela em um certo sentido (FONSECA et al., 2012).

Me deparei com um termo que expressa muito bem a tensão inerente a este modo um tanto estranho de pensar a conservação, que isola as Áreas Protegidas do resto da cidade, acreditando estar assim preservando estes espaços e man tendo-os protegidos das diferentes formas de degradação. O Rio Negro, para onde escoa toda a malha de igarapés que entrecortam a cidade de Manaus, é visto como livre de contaminações domésticas e industriais, uma vez que, dado seu imenso volume de água, atua como autodepurador, ou seja, dilui a quantidade de poluentes ao ponto de tornar sua concentração insignificante18. Nesta lógica, a pretensa garantia de existência do igarapé do Mindú está na preservação de sua nascente e alguns pontos do seu curso a partir da delimitação das Áreas Prote gidas que citei no começo deste tópico. Na medida em que se imagina que os fluxos de contaminação não causam nenhum impacto na escala regional, basta preservar a origem do igarapé, a sua fonte, para que este possa ser recuperado em algum momento do futuro e toda a ecologia possa ser restaurada. Diferente da máxima de Guimarães Rosa, aqui, a travessia, tudo aquilo o que acontece no meio da jornada, não importa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este texto trata de uma experiência nos fluxos de um igarapé, numa cidade Ama zônica. Nele procurei mais traçar um percurso e levantar questões do que pro priamente analisar os contextos e relacionamentos apresentados. Minha pouca experiência com a Floresta Tóxica não permite ainda nada mais do que isso. Pre

tendo continuar seguindo esses fios, assim como descobrir alguns outros. Me emaranhando junto a eles, espero poder me encontrar e compreender a emer gência de paisagens multi-específicas nas ruínas urbanas.

Não estou certo ainda de nenhuma resposta para as questões que levantei; esse trabalho se trata, como espero ter deixado claro, não apenas de uma proposta em andamento, mas de uma proposta que está se fazendo enquanto anda. Peço des culpas se alguém estava esperando alguma resposta para as perguntas colocadas, meu intuito não era prometer nada sem cumprir, mas apenas tatear. Ofereço vis lumbres, nos quais acredito firmemente que as questões estão inseridas, e a par tir dos quais é possível brincar com e deslocar os termos que elenquei, tais como natureza, domesticação, co-evolução e conservação - com a cidade no centro.

Um sentimento persistente ao me colocar em meio às constantes ambiguida des que a Floresta Tóxica me apresenta, é a ausência de um ponto de apoio fixo, a falta de definição, a incerteza quanto aos contornos dos encontros que rein ventam interações urbanas-florestais. Tudo acontece apenas em um momento, e por isso, me sinto jogado o tempo inteiro na contradição de escrever - que em si é uma forma de reter a experiência - sobre algo que nunca é, mas está sempre sendo. Tenho a impressão de estar diante de uma figura que possui uma geome tria absurda, a qual, dada as minhas limitações, só consigo apreciar um lado de cada vez. No entanto, cada vez que olho um lado, os demais não só se encontram ocultos como alteram sua configuração uns em relação aos outros e ao meu pró prio olhar.

Para concluir, deixo aqui então mais duas perguntas sem resposta. A complexi dade nas relações envolvidas entre humanos, plantas, animais, solos, bactérias, fungos, regimes hidrológicos e fenômenos atmosféricos - ou, em outras pala vras, a gama de processos bióticos e abióticos que operam em ritmos e tempo ralidades as vezes díspares e outras vezes coordenadas, mas que de uma forma ou de outra se interpenetram - se levadas realmente a sério e estudadas caso por caso em todas as suas particularidades, na tentativa de mapear todos os rela cionamentos e maneiras em que estes elementos se influenciam mutuamente, sobrecarregariam os modelos científicos para muito além da sua capacidade ex plicativa, que só podem fornecer descrições desses processos tal como ocorrem a nível genérico, ou descrever apenas uma pequena parte dessa imensa rede em detalhes, deslocando-a do seu contexto de interações.

O que acontece então se buscarmos olhar para estas relações tentando entender as práticas e relacionamentos envolvidos nela a partir de outras matrizes de pen samento e formas de conhecer? E o que acontece ainda se, inspirado nisso, mas indo além, tentarmos maneiras um pouco menos antropocêntricas de formular nossas ideias, levando em conta jogos de perspectiva situadas em diferentes ní veis e escalas? Este texto é o início de um pequeno exercício que ousa se afetar por essas perguntas.

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NOTAS / REFERÊNCIAS

1 Segundo o Relatório de Impac tos Ambientais – RIMA realizado pelo IPAAM (2008), mais do que a delimitação de uma área protegida, o Corredor do Mindú é uma iniciativa que procura se constituir como uma política pública que contempla uma série de ações ambientais, estrutu rais e sociais visando a mitigação dos impactos da ocupação urbana sob o curso d’água do igarapé do Mindú, a preservação de suas matas ciliares, assim com a garantia da manutenção de um fluxo gênico entre as popula ções de plantas e animais, visando em especial a proteção do Sauim-de -manaus (Saguinis bicolor), espécie endêmica da região do entorno de Manaus e bastante ameaçada (VIDAL, GORDO & RÖHE, 2014).

2 Na avaliação dos autores do RIMA.

3 Em minha pesquisa atual, tomo como ponto de partida as controvér sias científicas em torno da ideia de “Domesticação da Amazônia”, uma narrativa caudatária das transforma ções de paradigma ocorridas mais ou menos no final dos anos 1980 em um conjunto de disciplinas, como a Arqueologia, História, Antropologia, Botânica e Ecologia. Antes a Amazô nia era retratada pela “velha síntese” produzida pela Ecologia Cultural Norte Americana (STEWARD [org.], 1946) como um ambiente hostil e impróprio ao estabelecimento dos grupos humanos e ao desenvolvimen to de complexidade social. A nova visão, formulada dentro do programa

de pesquisa da emergente Ecologia Histórica (BALÉE, 2006), se baseou em novas interpretações e achados ar queológicos, na reconsideração de cer tos relatos históricos e em trabalhos etnográficos com populações indíge nas atuais, para propor a ideia de que a floresta e a variedade de ambientes que conformam a Amazônia foram em sua maioria modificados ao longo dos séculos através da interação com os grupos humanos que os habitaram, pelo manejo ancestral das paisagens, de forma consciente ou inconsciente, cujas marcas permanecem visíveis até hoje.

https://studioghibli.com.br/filmo grafia/nausicaa-do-vale-do-vento/

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6 PERES
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10 O
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13 GARCIA & CHAVEIRO, 2011; QUEIROZ & FACHÍN-TERÁN, 2013.

14 SÍRIO, 2005; RIBEIRO DA SILVA, 2009.

15 SILVA NETO & ALEIXO, 2019; QUEIROZ et al., 2020.

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OS TEMPOS DE FORDLÂNDIA

ALESSIA DE BIASE

Professora na École Nationale Supérieure d’Architecture de Paris La Villette e coordenadora do Laboratoire Architecture Anthropologie (LAA)

CONVERSACOM:

MARGARETH DA SILVA PEREIRA

Professora titular na Universidade Federal do Rio de Janeiro, professora visitante na Universidade Federal da Bahia e coordenadora do Laboratório de Estudos Urbanos (LeU)

VALÉRIE JOUVE

Artista, antropóloga, fotógrafa e professora na École Nationale Supérieure d’Architecture de Paris La Villette

JAN KOPP

Artista e professor na École Supérieure d’Art de Clermont Métropole

DANIEL LÊ

Artista, professor na Université Picardie Jules Verne (Amiens, France) e membro fundador do coletivo Suspended Spaces

FRANÇOISE PARFAIT

Artista, professora na Université de Paris 1 Panthéon-Sorbonne e membro fundadora do coletivo Suspended Spaces

GILLES TIBERGHIEN

Filósofo e professor na Université de Paris 1 Panthéon-Sorbonne, na École Nationale du Paysage de Versailles e no Institut d’Architecture de Genève

ÉRIC VALETTE

Artista, professor na Université Picardie Jules Verne (Amiens, France) e membro fundador do coletivo Suspended Spaces

TRADUÇÃO

Margareth da Silva Pereira

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Em 15 de novembro uma mesa redonda foi realizada. Quem estava presente lem bra-se mas um ano e meio depois cada um, agora, brinca com as lembranças que guarda. Como dizia Siegfried Kracauer, a memória não é linear. Funciona por anacronismos e esquecimentos e não é questão de precisão e exaustividade. Kra cauer opunha-se àqueles que “acreditam apreender a realidade histórica recons truindo sem falhas a cadeia dos acontecimentos na sua sucessão temporal exata”2 Assim, aqui optamos por seguir o caminho de uma memória “rapsoidica”. No mundo grego, rhapsoidos era “aquele que reunia ou costurava a canção” (raptein = costura e oidos = canção). A epopeia grega não era um monolito, se desenvol via por episódios e as mesmas representações do rhapsoidos seguiam um caminho descontínuo, onde cada fragmento era reunido e “costurado” aos outros para ser montado de acordo com o gosto e o humor do público. Neste texto procedeu-se a uma nova montagem da mesa redonda. As palavras continuam as mesmas, mas a ordem mudou, ela se cruzam de forma diferente, com a cumplicidade de cada autor. Este diálogo de seis vozes em torno da noção do tempo de Fordlândia, como projeto e como lugar) torna-se aqui uma pequena ficção.

ALESSIA DE BIASE

Quais são os tempos de Fordlândia? Como diria Ernst Bloch3, a que presente ela pertence? Para retomar uma palavra de François Hartog, em Fordlândia, a ideia de “calendário” torna-se uma questão: a “descoberta” do novo mundo foi, não só uma questão geográfica, mas também um grande desafio temporal. Onde co locar as pessoas que construíram e viveram Fordlândia nos nossos calendários, na nossa narrativa do mundo? A história do Brasil é ritmada por períodos, por ciclos ligados à produção de matérias-primas: ciclo do pau-brasil (madeira), da cana-de-açúcar, de ouro, diamantes, algodão, café, borracha...O último desses ciclos, o da borracha, investiu, entre outros, na região de Fordlândia, e Henry Ford foi talvez um dos seus últimos atores. Ele colocou um “projeto” no meio da floresta, uma projeção, um futuro. Impôs ali não só uma espacialidade, mas também uma temporalidade diferente daquela da floresta (mas qual é o tempo da floresta?). Hoje, o que dizer sobre esse futuro? Fordlândia ainda se projeta em direção a um futuro? A que temporalidades ela pertence? No âmbito do pro jeto Suspended spaces, o que significou passar uma semana em residência em Fordlândia? Que tempos foram experimentados?

FRANÇOISE PARFAIT

A residência é a coluna vertebral do projeto Suspended spaces . A idéia de com partilhar um tempo, uma experiência, um lugar. É isso que tem sido desde o iní cio. O projeto nasceu em Chipre, de uma emoção compartilhada com algo que não entendíamos: uma cidade-fantasma chamada Famagusta4, de que pouco sa bíamos. O acaso trouxe-nos a esta cidade ocupada e vazia ao mesmo tempo, aos confins de uma Europa geopolítica mal conhecida e mal identificada, mas que tinha uma força emocional e fictícia muito poderosa. Após essa primeira estadia

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em Famagusta tentamos aperfeiçoar um pouco este modelo e concordamos que é de fato no deslocamento, na partilha dos olhares, da palavra ou dos silêncios que pode nascer algo como formas artísticas, que estejam finalizadas, tenham sucesso ou não. E neste projeto, a conclusão não é um objetivo absoluto, pode ser um objetivo, mas não necessariamente. Agora, nesta residência amazônica, da qual ainda não voltei inteiramente a despeito do tempo já passado – falamos dos tempos, do tempo antes, do tempo durante quando as coisas se abrem e acontecem, quando tenta-se ficar algumas referências, quando se espera e vive -se com o tempo dos outros: 20 pessoas embarcadas em um mesmo barco são muitas temporalidades, muitos atrasos: é enorme!

ALESSIA DE BIASE

O que me encantou durante todo este tempo foi observar o tempo de uns e de outros em relação ao que faziam... Uma dessas temporalidades me surpreendeu, porque se opôs à velocidade na produção atual de imagens. Foi a da lentidão que Valérie [Jouve] põe em prática para a construção de suas imagens...

VALÉRIE JOUVE

Sim, mas também há que dizer que uma outra temporalidade se impôs às foto grafias... Esqueci os chassis em Paris antes de partir! Trabalho há 30 anos e nun ca esqueci uma ferramenta tão importante como é o chassis para fazer minhas imagens. Simplesmente eu não poderia fazer imagens! Isto casava, surpreen dentemente bem, com o encontro com Fotoativa , coletivo cujo meio privilegia do era a fotografia artesanal, por falta de produtos, papéis, filmes, mas também por gosto. Para um trabalho em Fordlândia, isso fez muito sentido. Todo o povo de Belém ria muito, felizes em ver-me confrontada a este tempo que não era o “meu”. Procurei continuar agindo e comecei, com a ajuda de Bertrand [Lamar che], a construir um chassis, e depois dois chassis, que poderiam receber as pla cas específicas do plan-film . Se voltarmos à questão do tempo, tive que mudar completamente a minha maneira de fazer as coisas, sobretudo rapidamente, e em um lugar que exigia, ao contrário, alguma lentidão. E eu me via correndo o tempo todo porque precisava, ainda, recarregar rapidamente os filmes. Essa confusão de tempos sucessivos fez muito sentido. Lá estava eu, no limite das minhas seguranças, tendo não somente que lidar com uma ferramenta antiga mas também com o suporte destes plan-films (os chassis improvisados) muito mais velhos mas que me permitiram, contudo, fazer imagens.

FRANÇOISE PARFAIT

Vivemos com a temporalidade dos outros, com o nosso próprio temporizador espelhado com os dos outros com os quais compartilhamos um espaço, o barco, Fordlândia e um tempo. Os 8 dias da residência. Esta experiência foi extraordi nária a se viver pois ela produziu uma densidade, uma intensidade temporal.

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VALÉRIE JOUVE

Com certeza... Véronique [Isabelle] e Debora [Flor], artistas e ativistas da Fotoativa fizeram um trabalho de desenho com crianças em torno de uma árvore: cuidar de uma árvore, à sua maneira, à maneira das crianças, foi importante nos encon tros com as pessoas. Bertrand [Lamarche] produziu uma tela de cinema que dispôs em diferentes lugares da vila de Fordlândia, como um sorrisinho a este Ford vindo dos Estados Unidos da América, a um lugar agora em abandono por estes mesmos Estados Unidos que não tem mais nada a oferecer -lhe em termos de moeda; Camila [Fialho] e José [Viana] fi zeram uma ação em uma das fábricas de Ford com sementes que colocaram para secar e depois abandonavam, e que eles começaram a limpar longamente...

ALESSIA DE BIASE

Havia também o fato de que este tempo da residência era im posto a este lugar, éramos muito visíveis, tínhamos um gran de barco ligado a este pequeno porto, estávamos, em nosso barco, um pouco fora de escala naquele porto onde havia ou tros barcos e os grandes barcos chegavam, mas partiam de pressa. Pequenas excursões começaram a ser organizadas: do porto vamos a Fordlândia, propriamente dita, vamos ver as ruínas dos três hangares de Ford e vamos embora, tudo de mora no máximo duas horas. Os barcos podem ser grandes, mas sa excursão só durou duas horas. Nós ficamos 8 dias no cais, então estávamos fisicamente muito presentes. Uma vez, pessoas me disseram: “A diferença é que vocês ficam e nós nos perguntamos porque vocês ficam, o que fazem, é estra nho que fiquem aqui muito tempo”. Quando perceberam o que estávamos fazendo, ficaram impressionados e, ao mes mo tempo, contentes com o facto de ficarmos, de não irmos embora. Ficar muda tudo.

GILLES A. TIBERGHIEN

Talvez a disponibilidade do viajante seria “esperar algo que não se espera”, ou seja, estar sempre aber to ao que pode acontecer e que está na ordem do acontecimento porque para ele foi inesperado. En tão é surpreendente, e a verdadeira viagem é sem pre uma surpresa. Se ela não for surpreendente é

Figura 1. Bertrand Lamarche, Telas, instalação in loco , 2018
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porque estamos viajando no conforto de ônibus pullmans com imagens coladas em todas as janelas, que são aquelas do nosso imaginário pré-formado. Infelizmente, é o que mais acontece.

FRANÇOISE PARFAIT

Durante a residência, podíamos nos dizer, “temos tempo”, temos “um pouco de tempo”, ou temos “não muito tempo, mas um pouquinho de tempo”. E então esse tempo tinha uma plasticidade à qual eu era sensível, especialmente porque vivíamos juntos. Cada artista, pesquisador, ou até mesmo a tripulação do barco, ocupava esse tempo, cada um com seus objetivos, suas atividades, etc. Era uma experiência formidável medir seu tempo com o tempo dos outros. Somos seres temporais, estamos apenas de passagem, e penso que é importante, quando se fala de Suspended spaces, isto é, de espaços em suspensão, dizer que se partimos do espaço, é ao fim e ao cabo para chegar ao tempo. A verdadeira razão deste projeto é partilhar um pedaço do nosso tempo de vida, juntamente com outros artistas.

ALESSIA DE BIASE

Ao mesmo tempo, essa viagem abriu outras interrogações em torno do tempo: a questão desta residência – eu nunca tinha feito residência na minha vida, eu não sabia o que era uma residência – eu não sou uma artista. Sou antropóloga e no meu trabalho não se fazem “residências”, mas fala-se de “fazer uma experiên cia de campo” durante um tempo bastante longo. Uma semana é uma duração um pouco estranha para mim, por isso tive que aceitar esta nova linha tempo ral, assumi-la como uma nova linha temporal com a qual podíamos fazer e dizer coisas. Em conjunto com os meus colegas, organizo workshops que têm uma curta duração, mas não são chamados de “residências”. Uma residência é muito mais interessante do que um workshop porque a palavra não se refere tanto ao trabalho (work), mas sim à uma residência em algum lugar. E residir algum lugar exige uma temporalidade cotidiana, no sentido de que se você reside em algum lugar, você compartilha algo do lugar onde você tenta habitar.

GILLES A TIBERGHIEN

Gosto da ideia de um tempo de espera na residência: a ideia de residir em algum lugar supõe fazer uma suspensão, uma extase, temporal. Deixar o tempo fluir em velocidades diferentes para cada um, o que não é fácil ou evidente porque o tédio vem rapidamente, mas é ele também que pode ser o que garante essas variações temporais. Há pouco falava com Yann Beauvais sobre o que se chama cinema experimental: aborrecer-se, como falei com ele, é uma experiência fundamental. Quando não se está familiarizado com este cinema a primeira coisa que acontece é aborrecer-se terrivelmente mas, passado esse primeiro momen to de tédio, chega-se à emoção estética, acontece o que tem de acontecer. Penso

que nas viagens é um pouco assim, há o tempo da espera, em que não se sabe muito bem o que acontece ou irá acontecer e depois o momento em que, de re pente, tudo se articula. O que digo vale sobretudo para um período curtíssimo porque quando ficamos um tempo longo em algum lugar tudo se cristaliza e se fixa como em gesso ou como em uma gelatina de tempo da qual não se escapa mais. Mas aqui, em Fordlândia, parece-me, não houve esse perigo.

ÉRIC VALETTE

Oito dias em um povoado como este é muito curto e também muito longo por que não há nada para fazer. Todos nós nos interrogamos sobre o que iríamos fa zer para não nos aborrecermos. Para não perdermos tempo não fazendo “nada”. Para aproveitar ao máximo esta presença rara, em um território distante onde talvez nunca voltemos. Descobrir o que fazer. Acho que desenhar é uma resposta simples a essa pergunta. Pousar sob uma árvore e desenhar é uma maneira de inscrever o tempo de observação em um suporte. É, aliás, o que mais me interes sa no desenho, o objetivo mais importante para mim: ficar muito tempo a obser var cada detalhe de um lugar. É uma experiência do tempo. E finalmente, todos nós tínhamos planos, para alguns era apenas esperar e isso já era uma atividade.

ALESSIA DE BIASE

Havia quem esperasse que chovesse, como Daniel [Lê]; havia quem esperasse pelo amanhecer, como Françoise [Parfait]; havia toda uma série de expectati vas... Esperar que coisas pudessem acontecer mas que talvez não acontecessem...

DANIEL LÊ

Eu tinha, como Jan [Kopp], observado furos no telhado da usina Ford indicados pelos círculos de luz projetados no chão. No dia 20 de dezembro de 1930, para manifestar sua recusa do regime alimentar imposto por Henry Ford, os trabalha dores de Fordlândia se revoltaram. Esta revolta ganhou o nome de “movimento quebra panelas”. Eu pedi às crianças do vilarejo que me emprestassem panelas que instalei abaixo dos furos do telhado. Em seguida esperei pela chuva. Era a estação seca e eu passava os dias esperando a chuva. Deixava o tempo passar len tamente, sensível às mudanças da luz, ao vento, atento aos barulhos (craquea mento) da construção, aos cantos dos pássaros quando o sol se levantava, aos vôos dos morcegos ao cair da noite. Eu me coloquei na escuta da usina, de sua voz, sua respiração, seus fantasmas. No último dia da residência a tempestade finalmente chegou, e a chuva fez soar o canto das panelas de Fordlândia.

JAN KOPP

Durante a primeira estadia em Fordlândia, passei algum tempo arranjando ele mentos encontrados no local, peças mecânicas, pensando propor uma espécie

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de território, uma espécie de mapa de objetos que se apaga ao mesmo tempo em que se faz. Na residência que fiz no verão passado, desejei continuar esta busca do tempo e voltei ao mesmo lugar. Só que, desta vez, ao invés de objetos, perse gui os pontos brilhantes que o sol projetava no chão. Ou seja, como o sol atra vessava o teto desta fábrica através de pequenos furos e projetava a certa altura do seu percurso círculos claros no chão. O que também foi muito interessante é que Fordlândia está quase abaixo da Linha do Equador, um pouco mais ao sul. Percebi que o deslocamento destes círculos, quando os observávamos durante muito tempo, fazia um percurso reto enquanto nós, habitualmente, estamos acostumados a ver curvas: o sol desenha sobretudo curvas. Então decidi vascu lhar o traçado desses pontos de luz. Comprei um pincel numa das lojas do po voado e limpei o pó onde estavam os pontos brilhantes. Então, não é literalmente a poeira que se depositou aí desde que esta fábrica deixou de funcionar, mas, metaforicamente, pode-se imaginar que nos últimos 70 anos, desde que Fordlândia deixou de funcionar, é como se uma cer ta poeira tivesse pousado nesse chão. Tomei o sol como um pretexto para remover essa poeira e isso foi desenhando linhas retas no solo. Era uma ação inútil, que consumia muito tempo e produzia um desenho que ligava, enfim, um passado de 70 ou 80 anos de existência desse chão com um dia ensolarado em Fordlândia.

Figura 2. Jan Kopp, Capital Fordlândia 2, vídeo, 2018

FRANÇOISE PARFAIT

Estávamos à beira de um rio e de uma paisagem totalmente aberta. É muito raro ter essa experiência e vivê-la durante esse tempo. Estávamos, portanto, extre mamente sensíveis às mudanças de luz, de manhã, à noite, ao amanhecer, ao anoitecer. Saíamos à noite e saímos de manhã antes do nascer do sol. Estávamos sensíveis à percepção de toda essa luz extremamente volátil, extremamente su til. Assim, alguns de nós trabalhamos com a luz – esperando por ela, antecipan do-a, lidando com ela, já que, finalmente, estávamos obrigados a lidar com o que acontecia, com o que nem sempre era esperado. Essa região da Amazônia é atravessada por frequentes tempestades cujos relâmpagos víamos ao longe à noite, mas em todas as direções, e a chuva podia suceder ao sol ao longo de dias muito diferentes uns dos outros. Embora tivéssemos acesso a uma previsão de tempo local, era bastante aleatório prever com segurança o tempo que iria fazer e foi preciso adaptar os projetos ao tempo que fazia.

GILLES A. TIBERGHIEN

Às vezes é como se vivêssemos em ilhas de tempo. O Paraíso, nas narrativas me dievais, era uma ilha cujos rastros terrestres alguns vão tentar encontrar. Conta -se, por exemplo, a história de São Brandão que viveu entre os séculos V e VI e que navegando com alguns fiéis chega em um dado momento a uma ilha, descobrindo que é o Paraíso. Em alguns outros re latos do mesmo tipo, aqueles que aportam nessas ilhas têm a sensação que muito pouco tempo se passou desde que parti ram quando, na verdade, muitos anos já se passaram. Portan to, nessas histórias, há esta dilatação temporal que manifesta bem o que acontece quando estamos nós mesmos neste tipo de situação de um “entre parênteses”, imersos em uma outra história e em outro espaço. A ilha de São Brandão é talvez um pouco o que vocês puderam viver em Fordlândia (para não falar de paraíso!), um lugar em que várias temporalidades se sobrepõem porque cada qual vive o tempo do seu jeito.

ALESSIA DE BIASE

Sim, com certeza... Mas há também a ideia de que nem todos vivem no mesmo tempo – aquilo que Ernst Bloch dizia em Héritage de ce temps/ Herança deste tempo 5, isto é que nem todos vivem o mesmo presente...

GILLES A. TIBERGHIEN

Era exatamente isso que a experiência de vocês em Fordlân dia me fez pensar e sobre os diferentes tipos de tempo aos

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cada,

Figura 3. Françoise Parfait, Sem título (homenagem a Daniel Boudinet), fotografias emolduradas,

quais estamos presos. Há um pequeno livro maravilhoso, Mondes animaux et mondes humains/ Mundos animais e mundos humanos de Jakob von Uexküll6, um etologista que tinha observado muito o comportamento dos animais – provavelmente conhecem a história do carrapato de Deleuze, o carrapato que é estimulado por apenas três afetações e apenas três, vem de Uexküll – e segundo Uexküll, uns e outros, não vivem forçosamente no mesmo tempo nem no mesmo espaço. Agora, parece que estamos na mesma sala, mas não é necessariamente exato, provavelmente estamos em espaços diferentes, estamos em espécies de bolhas espaciais e temporais e em fusos dife rentes, paralelos mas distintos. A forma como você contou sua histó ria mostra bem que não estamos no mesmo tempo, que não vivemos exatamente o mesmo tempo. Espaços diferentes e qualidades dife rentes ligam-se, evidentemente, em um dado momento e em um de terminado lugar, e esse lugar é a história, é o social, é a comunidade. O que acho emocionante é a busca dessas diferenças, embora estejamos quase sempre homogeneizando o tempo e o espaço, espacializando o tempo, mas é muito mais complicado do que isso.

MARGARETH DA SILVA PEREIRA

Com Gilles Deleuze e com Jacob von Uexküll gostaria justamente de pensar a ideia de espaço como um ambiente próprio a cada um e não como um conceito em si, desencarnado mas também tendo em mente a evocação que Alessia [de Biase] propôs desde a abertura da nossa mesa redonda hoje, em torno da ideia de assincronia ou não-contemporaneidade de Ernst Bloch... É interessante tal vez assinalar, em primeiro lugar, que estas noções derivam da Naturphilosophie do final do século XVIII, tal como a apresentou Georges Gusdorf em Le Savoir Romantique de la nature/ O saber romântico da natureza 7... Como comenta Deleuze sobre o carrapato, talvez possamos pensar que esta natureza amazôni ca nos coloca em posição de questionar a ideia que se faz de tempo, entendido como uma causalidade articulada e unitária (passado/ presente/ futuro) e a ideia de espaço como uma capacidade homogênea e também única de sermos afeta dos (por uma certa situação). O que nos leva, ainda, a um modo de pensar outro, que eu diria, espinosano, do qual a Naturphilosophie incorpora alguns aspectos e busca propor uma teoria e aqui devemos falar em diferenças. Lembremos que o mundo carregado por Bento Espinosa é um mundo português e barroco, com o qual manteve laços estreitos. O barroco, aqui é definido menos em termos de estilo ou de período histórico do que como cultura de crise e, portanto, como uma cultura crítica que se interroga sobre o tempo, a natureza, as interações, as afecções.Esta cultura barroca esforça-se por quebrar a noção de espaço fechado, homogêneo, encapsulado. O tempo barroco é relacional, plástico, informe e vi vido como em permanente construção, reconstrução, montagem, remontagem: uma verdadeira “nebulosa”. A propósito das noções de espaço e de tempo que

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42x32cm
2018

cada um traz consigo, parece-me necessário dizer aqui, como brasileira, que a floresta e a natureza estiveram sempre presentes nas minhas interrogações. A construção das cidades e o desejo de permanência que impregna a arquitetura, por exemplo, devem ser compreendidos em suas relações com a floresta. Em ge ral, os brasileiros têm dificuldade com o conceito de história desenvolvido pelo pensamento cristão e católico, fundamentalmente teleológico, finalista e linear. Trata-se sempre de uma história que progride, que sustenta uma certa evolução material. Estas reflexões sobre os modos de pensar o tempo, sobre os modos de temporização, estiveram sempre no campo de visão das minhas pesquisas que começaram a interrogar-se, em paralelo, sobre a noção de história.

GILLES A. TIBERGHIEN

A ideia de tempo linear está fortemente inscrita em nós: essa ideia de que a história se desenrola e desenvolve-se segundo uma forma contínua. Na História da Arte mais ainda. Desde Vasari, fica-se sabendo que há uma espécie de clímax, de um acme, no Renascimento e depois isso se perde, se degringola. Há algo como um crescimento seguido por uma decadência, que é extremamente forte, e que segue um modelo de tempo “orgânico”. A Europa moderna tem dificuldade em se libertar desse modelo, orientado segundo uma visão de “flecha do tempo”, em se libertar da ideia de progresso segundo a qual a humanidade tende para alguma coisa. George Kubler, interessou-se pelo tempo de um ponto de vista ar queológico. No início dos anos sessenta ele escreveu Formes du temps/Formas do tempo, traduzido na França em 19738. Foi um livro que marcou os artistas americanos dos anos 60. Kubler desenvolve uma concepção de tempo que não é contínua, mas descontínua, com intensidades particulares, vazios, momentos em que o tempo se precipita ou, ao contrário, se expande, e essa maneira de ver é muito mais interessante, para compreender a temporalidade das civilizações e do que vivemos.

ALESSIA DE BIASE

Enquanto europeia, herdando uma modalidade moderna e linear da narração histórica nacional, o que me interessou no Brasil é que, paralelamente a esta modalidade, temos também uma história do país que se conta por ciclos. Não há muitos lugares em que se tenha esta dupla narração sobre a própria história: uma linear, moderna, uma história que se conta por datas que se seguem, e outra por ciclos. Isto é fascinante porque temos uma espécie de caixas que se abrem e se fecham, e que narram de maneira especial a História de um país. Estes ciclos são caracterizados por um material, uma fruta, algo que uma sociedade explora por uma relação de força e de poder, por uma economia e que implica na fun dação de cidades e na invenção de modos de espacialização. Há momentos de abertura e de fechamento desses ciclos. Fordlândia, foi fundada fora do ciclo da borracha, porque no momento em que Ford investe e funda a cidade, o mercado global já tinha sido transferido, pelos ingleses, para a Malásia... Mas o Ford está

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fora deste ciclo ou é o último actor deste ciclo? Este ciclo da borracha engloba ou não esta experiência Fordlândiana? Ou será que o Ford inclui este pequeno canto perdido da floresta amazônica na epopeia americana moderna?

MARGARETH DA SILVA PEREIRA

Quando Henry Ford se aproxima do Brasil ele não está só. Estamos em um mo mento de pan-americanismo. É o tempo industrial do Ford, mas também um momento forte de liberalismo e da entrada de outros atores na cena econômica. Um tempo marcado doravante não só pela presença portuguesa, inglesa e fran cesa desde a independência em 1822, mas também alemã desde o final do século XIX10. Nas décadas de 1920-30 é a América do Norte que afirma, agora, forte mente, sua presença no Brasil. Por exemplo, a aventura de Percy Fawcett, geó grafo inglês, patrocinado pela Royal Geographical Society desde 1906 e cujas explorações da região amazônica a partir da Bolívia e do Mato Grosso são, nesses anos, também fortemente apoiadas por interesses norte-americanos. Este per sonagem, que vai inspirar La cité perdue de Z/ A cidade perdida de Z de David Grann9, desaparece em 1927, pouco antes da decisão da Ford de se instalar nesta região. Também me refiro às ações do empresário americano Percival Farquhar e nos projetos das empresas associadas ao seu grupo, como a Rio de Janeiro e a São Paulo Tramway, Light and Power Company, também conhecidas como Mackenzie Syndicate . Farquhar construía a estrada de ferro do rio Madeira até Mamoré, com o objetivo de criar uma linha ferroviária que atravessasse as Amé ricas e, certamente, em ligação com os projetos da própria Ford. Quem pagou as longas expedições de Fawcett na Amazônia? Os Rockefeller. Eles representam uma América, melhor seria dizer uma ideia de Estados Unidos da América, dife rente daquela de Ford e em conflito com ele também...

ALESSIA DE BIASE

Concepções distintas de tempo, em conflito...

MARGARETH DA SILVA PEREIRA

Sim, conflitos nas visões de tempo... e aqui entra-se na ideia de um tempo bio lógico dos ciclos. Um tempo que, embora seja entendido como uma linha, faz referência a ritmos longos, mas visões de tempos vitalistas, mais curtos, circu lares (nascimento, crescimento, morte), que orientam as leituras da História por ciclos, e as leituras da História da Arte por estilos, com movimentos que se sucedem. No entanto, observa-se também, com a ideia dos ciclos, uma visão muito mais repetitiva do tempo, uma visão mecânica que parece ajustar-se às engrenagens do mundo industrial e cuja cadência curta invade, cada vez mais, o quotidiano. É o tempo da produção em cadeia que é gerada por uma visão do tra balho alienante. É um tempo que se chamará fordista e que é forjado a partir do papel e da posição de cada indivíduo em uma engrenagem. É assim este mundo

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fechado, que é o próprio mundo de Ford, que se esforça por impor-se no coração do Tapajós. E, claro, houve conflitos dentro do próprio grupo de indivíduos que participam da sua aventura na Amazônia. Conflitos entre a maioria dos técnicos que defendem o fordismo e outros mais atentos à natureza, ao regime das águas, ao regime temporal ligado aos ciclos do semear e colher. Temos aqui um tema interessante e não estudado em torno dos sociólogos que trabalharam com Ford e desenvolveram uma certa teoria e também uma engenharia social onde a ideia de uma engrenagem social dos anos 1920 vai mais longe e que, evidentemen te, mostram a arbitrariedade do industrial norte-americano, principalmente na Amazônia. É um tema fascinante que deveria ser desenvolvido...

VALÉRIE JOUVE

Esta dualidade dos mundos e a consequente “mecânica” social é uma questão muito presente na minha vida. Tendo nascido em Firminy, na bacia mineira de Saint Etiènne, penso que Fordlândia ressoou em mim como algo muito próxi mo, muito íntimo. Aqui nos vemos diante de uma fábrica que é central na histó ria desse lugar e sob a qual os corpos sofreram e eu repenso nas minas de Firminy e em meu avô. E, assim, no meio da Amazônia, em torno de um local de traba lho, vemos irromper nosso próprio mundo, um mundo que conhecemos tão bem. Mas mesmo se as casas operárias americanas são de madeira, são as mesmas que as nossas, organizadas da mesma maneira númerica, por gestões sucessivas. Firminy ainda vive hoje a crise econômica, como Fordlândia vive a crise econô mica da época dos americanos (do mesmo período industrial). Contudo a vida ainda está presente aqui, este lugar tem uma singularidade, uma temporalidade, uma magia. Em Fordlândia meu trabalho voltou-se para a história deste íntimo, o que me levou a contemplar imagens de Fordlândia durante um tempo longo. E, até hoje, ainda não parei completamente esse trabalho. No interior da fábrica de Fordlândia, por exemplo, vemos máquinas que são as mesmas que eu havia fotografado em Grand Combe, na região de Cévennes nos anos 1990. Essa foi uma das raras minas em que consegui entrar, uma vez que todos estes lugares estavam fechados e proibidos para visitas. Vemos a mesma turbina no Grand Combe ou em Fordlândia, e eu diria que essas temporalidade são também as temporalidades de um passado ativo. Estes centros industriais, que encontrei em Fordlândia, são uma parte do início do meu trabalho no final dos anos 80. Nutrir possíveis, propor visões, o trabalho é, desde o início, composto de montagens. Tento sugerir a familiaridade possível entre lugares muito distantes geografi camente uns dos outros, para que sintamos que temos ligações, nós humanos, sejam indígenas, escravizados ou operários de minas que eram tratados como animais. Antes de tudo, é uma história de poder, de aviltamento, de desumani zação, de sofrimento e de tantos outros males, atualmente tão reais. Esse mundo torna-se a sua própria caricatura, feita da avidez de poucos para o infortúnio de muitos. No início, constroem-se edifícios e casas, organizam-se [as coisas], traz -se uma multidão [de gente] para ser besta de carga, e isso continua sem limites.

Só que os que consomem ganham mais do que os que trabalham e nesse aspecto, a cidade pequena que é Fordlândia é até uma espécie de porto seguro. Apesar de tudo, a vida ali corre tranquilamente, falo de um ponto de vista humano, porque hoje, o contexto em toda parte é pesado. Algumas das imagens que fiz foram um tributo a Walker Evans, que atravessou os Estados Unidos durante a gran de crise [de 1929] e aqui, neste vilarejo tão pequeno da Amazônia, encontrei as arquiteturas americanas das suas imagens. Vê-se uma espécie de mistura entre as imagens em cores de Fordlândia e o preto e branco das imagens que fiz em Saint Etienne. Existem certas ligações formais na construção de casas que são as mesmas, para alojar os habitantes – indígenas ou escravizados de um lado, cam poneses famintos do outro lado do mundo. Foi essa coisa que eu tive vontade de trazer à tona em Fordlândia, com essa temporalidade de um passado que é sempre o nosso presente, porque foi o passado que alimentou esse presente que faz com que hoje estejamos aqui.

ALESSIA DE BIASE

As temporalidades destas modernidades ainda hoje se impõem talvez de manei ra fantasmática... Um exemplo é certamente em Belterra, a cidade onde a expe rimentação de Ford estendeu-se após a queda de Fordlândia, e onde a sirene da planta industrial ainda toca cinco vezes por dia: 6h entrada dos trabalhadores, 7h entrada dos oficiais, 11h30 almoço dos trabalhadores, 13hs almoço dos fun cionários, 16h30 fechamento da fábrica. Não existem mais nem a fábrica, nem os seus operários, nem os seus funcionários, contudo o tempo da fábrica, agora como fantasma, ritmado pela sirene, é hoje um patrimônio (que se impõe) ao vilarejo... Por falar em fantasmas, numa conversa muito agradável que Daniel [Lê] e eu tivemos com um antigo trabalhador de Ford, Edir, ele nos contou o quanto durou realmente a partida dos americanos. Quanto tempo durou o de saparecimento de uma presença americana. Ford não saiu do local de uma hora para outra. Quanto tempo ele levou para sair? Talvez os executivos tenham ido de uma sexta para uma segunda-feira. Mas Edir, nessa época criança e filho de um operário de Ford, nos contava que, durante dez anos, o cortador de grama do vi larejo passou pelas ruas para cortar as sebes. Aquele cortador de grama, no meio da Amazônia, naquela pequena povoação onde não existiam necessariamente bordas, era algo muito simbólico. Quando o cortador de grama foi embora, os americanos foram embora.

VALÉRIE JOUVE

Aquele cortador de grama... Vi que as pessoas começaram a cortar a grama de pois que chegamos... Pensei que talvez o prefeito de Fordlândia pensasse que, se estrangeiros vinham de tão longe para passar tanto tempo, a cidade tinha que ficar mais limpa. Não sei se foi o caso, mas para mim parecia ter relação com a nossa presença em Fordlândia.

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ALESSIA DE BIASE

Existe algo de fantasmático nesse silêncio entre a partida de Ford e hoje... Há uma escolha, como sempre se faz, de um passado, e esse passado é muito curto em relação a esta cidade-vilarejo que está lá, que sobrevive. Todos se lembram exclusivamente daqueles dez anos fordianos, como ainda faz a sirene de Belterra todos os dias... No entanto, há um silêncio sobre estes últimos setenta anos de pois, que permitiram que este lugar existisse, que ainda fosse habitado, que exis tisse um quotidiano e uma certa urbanidade. Quando estamos em Urucuritiba, numa pequena aldeia do outro lado do rio, falamos da Fordlândia como se fosse uma cidade... Experimentamos uma certa urbanidade, e estamos falando de um lugar que tem, apenas, cerca de 30 lojas e bares e uma vida urbana, mas quando estamos do outro lado do rio, na ainda menor Urucuritiba, estamos realmente numa pequena aldeia da Amazônia. Esta urbanidade foi também construída ao longo dos setenta anos sobre os quais ninguém fala. Há um silêncio que me interessa: será possível ocupar-se de Fordlândia para além de Ford?

MARGARETH DA SILVA PEREIRA

Ouvindo vocês, e lembrando de Fordlândia e Belterra, penso que talvez fosse necessário colocar a questão de Ernst Bloch de outra forma e nos perguntarmos: a quantos fantasmas pertencem os presentes destas duas povoações? Que fan tasmas deveríamos talvez esquecer? Sim Alessia, Ford foi certamente um epi sódio violento e inesquecível mas sabemos que há outras histórias silenciadas e que, creio, permanecem. Vou insistir nos silêncios das narrações, nos silên cios da história e também no silêncio do tempo. No entanto, gostaria de evo car alguns desses silêncios, em relação aos quais as avaliações críticas permitem dar nossas vozes. Eu dizia que as formas como as diferentes culturas pensam e definem o tempo me interessam, de um ponto de vista acadêmico, há muito tempo. Contudo, mesmo estando atenta aos choques e às imbricações de dife rentes temporalidades, eu ignorava partes inteiras da minha própria história e de uma parte amazônica das minhas heranças mas que criticamente, podemos fazer emergir. Em Mato Grosso, onde nasci, há uma espécie de linha divisória entre duas partes do território brasileiro, como se fosse uma linha imaginária que cortasse o Brasil central ao meio. Olhando para um mapa que representa as bacias hidrográficas brasileiras, posso dizer que cresci sob a tutela da bacia Guarani, que olha para o sul do país até à Argentina, em vez de olhar para a do Tapajós que flui para o norte do Brasil. Para mim, o Rio de Janeiro era muito mais perto do que o norte do Brasil. Meus antepassados transitaram de barco entre Cuiabá e o Rio mas havia um grande silêncio sobre os rios dessa bacia que vai para o norte do Brasil e, no entanto, foi um dos cami nhos de penetração, organização e construção das cidades ao longo do século XVIII e grande parte do século XIX... Passei muitos anos sem saber nada disto. Foi apenas nos últimos sete ou oito anos que comecei gradualmente a aperceber-me da minha história também

160 Página anterior: Figura 4. Valérie Jouve, montagem de fotografias Fordlândia/Firminy

do ponto de vista geográfico. Comecei a pensar de onde vinha... A minha bisavó materna indígena vinha do lado norte, de Diamantino, de uma população que, ao que parece, chegou a Mato Grosso vinda do norte do país. Do lado do meu pai, não falávamos dos indígenas, mas a presença da cultura indígena também estava dentro de nós, dentro dos nossos corpos. Estes, provavelmente, desce ram dos Andes, da atual Bolívia e dos povos que chamamos “Chiquitos”... Co mecei a aperceber-me desse silêncio quando, após um longo período de tempo em que vivi na Europa, voltei a ver a minha família paterna em Mato Grosso. Reconheci então nos seus rostos os mesmos traços que tinha aprendido a ver e comparar nos álbuns de viagem da expedição Langsdorff, nos desenhos de Her cule Florence. Os descendentes desses indígenas viviam perto de Cuiabá e eu brincava com eles na infância. A minha reflexão contudo sobre estas questões estava ainda muito longe, abstrata... também não conhecia Fordlândia, apenas os relatos sobre Fordlândia. Eu também não conhecia a Amazônia. Até 2018, eu nunca tinha descido o rio Amazonas, por exemplo, nem subido o Tapajós ou co nhecido o Guaporé. É como se a Amazônia não tivesse o mesmo estatuto que o resto do país. Interrogava-me sobre a floresta, sobre a natureza, e sobre a tensão que a construção de tantas cidades provocava diante desta presença, a violência que as cidades provocavam nesses territórios e aos seus habitantes nômadaes. Guardava a memória do universo aquático e em movimento dos grandes rios do Pantanal, entre o Brasil e a Bolívia, onde nos banhávamos durante dias inteiros durante minha infância, mas permanecia, por assim dizer, às portas da Amazônia... E é aqui que podemos voltar também à questão dos mundos afetivos, como o carrapato de Deleuze evocado por Gilles [Tiberghien]. Quando se é arquiteto na Itália, por exemplo, e tem-se diante dos olhos o Panteão ou as ruínas mate riais do Fórum romano. Mas quando se é brasileiro, vivendo na Amazônia ou no Rio de Janeiro, pode-se fazer o mesmo discurso sobre cidades, arquiteturas e florestas? Ou quando somos afetados pela visão e pela memória dos céus de Brasília ou da Baía de Chacororé, perto de Cuiabá? A partir de quais referências? Quais são os mundos e as cidades que nos habitam?

ALESSIA DE BIASE

Para dizer de outra forma, anacronias… Esta figura temporal que parece atra vessar nosso debate. Durante a residência em Fordlândia, eu vivi situações onde fantamas se misturavam constantemente com a realidade. Duas mulheres que encontrei, Ivone e Jurema, mostraram uma relaçnao com o tempo muito parti cular através de suportes como albuns de fotografias e um pequeno monóculo. Jurema, por exemplo, misturaou, em seus albuns de fotografias, suas próprias memórias familiares com arquivos das famílias de fazendeiros ligados à funda ção de Forlândia, que ela mesma conseguiu preservar. E Ivone religa o tempo ao aprofundar seu olhar no pequeno monóculo onde está conservada a única foto dela com seus dois gêmeos nos braços. Os dois gêmeos que morreram com al guns anos de diferença. Máquinas temporais extraordinárias e uma relação com o tempo inédita…

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Jurema mora do outro lado do rio. Uma pequena casa em madeira branca e azul. Ela cons trói pequenos barcos de madeira para colocar flores. Jurema sonha com um museu. Um mu seu para conservar o pouco que ela salvou de uma história destinada a desaparecer. A his tória de um lugar. Registros de vendas e de créditos. Fotos e cartões-postais. Jurema guarda tudo. Em sacos de plástico. Em seus álbuns, ela mistura suas fotos e suas lembranças com as de uma outra história, aquela de Fordlândia.

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Ivone tem um pequeno monóculo rosa entre suas mãos. Ela olha para dentro, muitas vezes. Ela olha a foto de seus dois gêmeos. Mortos, os dois. Uns trinta e oito anos depois do outro. Esta foto é a única que atesta a existência deles como gêmeos. A única em que Ivone está com eles. Em seus braços, Ivone volta-se para a luz. Fecha suas mãos em torno do monóculo. Seu corpo. Para escurecer ao redor. Para mergulhar. E renovar os tempos.

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VALÉRIE JOUVE

Quando mostro estas imagens de árvores que eu trabalho, elas também carre gam Fordlândia que é uma floresta amazônica, uma floresta que está fora da es cala do humano e com a qual o homem teve que lidar há muito tempo e onde, hoje, as árvores continuam a crescer mesmo nas ruínas. Sente-se uma floresta danificada, deteriorada, mas as árvores continuam a crescer. Isto para mim é um arquivo a céu aberto.

MARGARETH DA SILVA PEREIRA

Claro que podemos pensar na natureza como um grande arquivo a céu aberto. Podemos pensar essa sedimentação também nos homens que estão lá com seus hábitos, com seus gestos, com suas atividades, como antes e depois de Ford, e todas as camadas de suas memórias estão impregnadas nos seus corpos, na forma como falam, no vocabulário que usam. Para nós, brasileiros, é mais fácil perceber porque é a nossa língua. Percebi, por exemplo, que falo um português quase do século XVIII, porque Cuiabá, de onde venho, foi separada do resto do mundo até a construção de Brasília, até 1960. Mas aqui em Fordlândia percebe -se que há outros falares e outras maneiras de dizer também. Claro que há tam bém os edifícios que ainda estão lá, mas o que é mais poderoso ainda, é que essas memórias também estão no ar, estão também na floresta, nas palavras, no modo de dizer daqueles que nela habitam... e também há que se voltar para Hercule Florence e seus registros. Temos que voltar a viajantes que o próprio europeu deveria conhecer mais... europeus que partiram também e que nos propõem ver com outros olhares que talvez tenhamos pouco a pouco esquecido, ou que tal vez esqueçamos de tempos em tempos, mas que talvez esteja no momento de colocá-los e aos seus registros e reflexões novamente em circulação e em debate.

ÉRIC VALETTE

Muitas vezes pensei em Hercule Florence durante a residência, por que vimos, com Françoise [Parfait], uma belíssima exposição que lhe foi dedicada no Museu de Mônaco10, quando voltamos da nos sa primeira viagem de observação a Fordlândia. Este francês jovem que participou da expedição do Barão von Langsdorff chegou ao Ta pajós por volta de 1828, um século antes de Henry Ford. Ele viu o que vimos, os rios, as margens, as luzes. Esta expedição foi uma es pécie de catástrofe, como um sinal precursor do fracasso industrial fordiano que estava por vir. O que é espantoso em Hercule Florence é esta fé na missão que lhe foi confiada: registar sistematicamente o que via e descobria. Uma série de suas pinturas é particularmente surpreendente. Representa céus, apenas céus. Foi feita depois de regressar da expedição, já vivendo no estado de São Paulo. Poderia

Página anterior: Figuras 5 e 6. Alessia de Biase, Anacronias, instalação: impressões sobre fundo azul, 40x60cm, 30x40cm, 30x40cm, monóculo

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ser um projeto artístico, mas Florence justifica a iniciativa dizendo que os céus do Brasil (e nós verificamos) são particularmente variados e que é importante que os artistas da cidade que querem pintar paisagens saibam como eles se pare cem (“Estudo do céu para uso dos jovens paisagistas”11). Trata-se, portanto, de documentar uma vez mais, num vasto projecto científico de conhecimento, mas o que é tocante em Hercule Florence é que há uma dimensão artística na tarefa que ele se dá (e não me refiro às suas qualidades como desenhista), precisamente quando apesar do calor e da doença que dizimou a expedição, ele se dá ao tempo necessário para documentar as mudanças de luz sobre o Tapajós ou para inven tar uma forma de notação do canto dos pássaros. Essa atenção a tudo o que o rodeia, humano e não-humano, esse cuidado na observação, precisa, sensível, rigorosa, contradiz tanto a brutalidade do projeto expedicionário...

MARGARETH DA SILVA PEREIRA

Penso também nos dois irmãos Alexander e Wilhelm von Humboldt que, como alemães eruditos, falavam latim, grego, inglês e francês. Wilhelm não viajou tão longe, foi ao país basco, no início do século XIX e que perturbação isso provocou no seu pensamento, no limite, poderíamos dizer numa parte do pensamento europeu hegemônico à época... Quando ele chegou no país basco, teve um cho que porque pela primeira vez não via com estranhamentos negros ou indíge nas, como nos séculos XV e XVI. Não havia chineses ou japoneses com olhos puxados... Então ele olhava para aqueles homens e mulheres que pareciam ser como ele, mas que falavam uma língua incompreensível. Wilhelm, começou a pensar em questões de ordem antropológica e, acima de tudo, cultural de forma muito forte e a perguntar-se: “mas se eles são como nós – Wilhelm escreve so bre isso – por que cantam de uma maneira diferente?” Por que emitem sons que não compreendemos? Estas interrogações levam-no, pouco a pouco. a associar a língua e as formas da linguagem às culturas – a uma “visão de mundo “– como demonstrou Anne-Marie Chabrolle Cerretini12. Não me deterei aqui sobre Ale xander von Humboldt, mais conhecido... aquele que nos ajudou a compreender não só a ideia de interação e de “mundos que nos são próprios”, como discutía mos há pouco, ou até mesmo de natureza e de “ambiente”, e sobretudo de ecos sistemas com ligações mais ou menos visíveis, mas com articulações e efeitos uns em outros em cada movimento. Seja como for, a voz é um sopro, a palavra é uma respiração e a floresta na sua diversidade nos fala. Quando se está em Ford lândia, ou quando se está na Amazônia, estamos em um território de fricções e conflitos. É necessário prestar atenção não só a esta zoofonia do mundo ou a esta cacofonia como Éric [Valette] evocava na sua performance13, mas mostrar-se atento ao que está no ar, ao que está no que é dito e narrado, ao que permanece além da matéria, ao que permanece como voz... enfim, ao que é como um sopro do mundo em nós.

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GILLES A. TIBERGHIEN

Página anterior: Figura 7. Hercule Florence, Jovens Munducuru. Cabelos raspados; pontos de sobrancelha. Tatuagem bronzeada escura. Pele acobreada clara, maio 1828, aquarela e grafite sobre papel, 21,1x20,2cm, Coleção C. H. Florence, Leila e Silvia Florence, São Paulo

Figura 8. Hercule Florence, Pacu Manchado (Myloplus), abril 1828, aquarela e grafite sobre papel, 24,3x32,8cm, Coleção Arquivos da Academia de Ciência de São Petersburgo (Rússia)

O que você diz Margareth, me faz lembrar de Marco Polo, que é talvez o iniciador das primeiras grandes histórias de viagem e que chamou o seu livro Le de visement du monde/ A conversa ou A descrição do mundo porque é o mundo o que se conta nas narra ções de Marco Polo. Este livro também é conhecido sob o seu título italiano Il Milione, mas foi publicado pela primeira vez em francês. Para mim, quando via jo, tenho sempre a ideia de que vou ser o destinatário da narrativa dos outros, as quais irei, eventualmente, transformar à minha maneira, dando-lhes uma nova forma. Não inventamos nada a não ser estas formas, e os artistas fazem isso muito bem, assim como os escri tores, os poetas e os viajantes quando entregam seus diários ou seus relatos de viagem. A minha exposição Récits du monde/ Narrações do mundo14 incidia sobre isso, ou seja, sobre a construção das narrativas e sobre o imaginário das viagens a partir do século XIX. Esse imaginário radica-se largamente no fato colonial, nas representações que os impérios – sobretudo britânicos e franceses no século XIX, mas também as colônias portuguesas e espanholas – tinham veiculado, através de uma série de publi cações. Livros e também revistas (Le tour de monde, L’Illustration,.../ Volta ao mundo, Ilustração,...) que retransmitiam estas imagens conhecidas por todos escritores da época. Não contemos sequer, no início, com a expedição de Bona parte ao Egito que levou consigo cientistas e um batalhão de personagens que vão fazer leituras dos locais e de monumentos, criar herbários etc. Esta enor me quantidade de documentos vai dar lugar a uma publicação extraordinária: La description de l’Égypte/ Descrição do Egito, em 10 volumes enormes, sem contar as pranchas, que têm cerca de 75 cm de altura, e cujo primeiro volume foi publicado em 1809. Esta fonte de perplexidades e de saberes surpreendentes, vai irrigar todo o século XIX e evidentemente, é ao mesmo tempo, uma opera ção de pilhagem. Então esse nosso imaginário, porque herdamos tudo isso, faz com que as viagens que sonhamos, que projetamos, sejam completamente im buídas desse legado, quer queiramos ou não. Então, viajar é muitas vezes andar às voltas destas histórias, enriquecer esta fantasia e, ao mesmo tempo, livrar-se dela. É ter um olhar crítico, distanciado em relação a estas imagens veiculadas, que chamamos, muito simplesmente, clichés. O que pressupõe que tenhamos uma relação distanciada do que vemos, uma relação diferenciada do real. Esta é a poderosa lição de Victor Segalen, este viajante maravilhoso, médico e sinó logo, que partiu para a China no início do século XX e morreu com 41 anos,

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em 1919. Segalen liderou várias expedições na China, e a questão do exotismo o preocupava muito. Para ele o exotismo não era o das “palmeiras e dos came los”, nem o de Loti e de Farrère, que criticava, ao veicular imagens prontas que provocavam no leitor uma emoção, trazendo-lhe um delicioso sentimento de evasão. O exotismo ao qual ele, pelo contrário, dava um valor positivo era o dos que ele chamava “exotes” – palavra que forjou – isto é, daqueles que podem dife renciar indefinidamente a diversidade do real, daqueles que são capazes de ver a diferença no mesmo. Então não se trata mais de procurar as semelhanças, como habitualmente se faz, entre coisas que nos parecem comparáveis – “isto me faz lembrar esta coisa, faz-me pensar nesta outra” – mas sim de descobrir em que é que elas são diferentes. A primeira pergunta é em que isto é diferente daquilo que conheço? É por isso que a viagem é um empreendimento extremamente cansativo, que pressupõe estar constantemente em alerta.

ALESSIA DE BIASE

A propósito de imaginários e do exotismo de alguns, eles fazem plenamente parte das narrativas sobre os futuros... Fordlândia foi uma utopia urbana, uma narração de um possível “outro” amazônico. Estou muito interessada nestas construções em torno de narrativas de futuros das cidades que, desde as uto pias de Thomas More15 ou das ucronias de Louis-Sébastien Mercier16, no sé culo XVIII, representam espaços-tempo de onde se podia fazer uma crítica ao presente... Françoise [Parfait] e Éric [Valette] estavam comigo em frente ao Rio Tapajós, sentados no café de Cristina, como todas as tardes, olhando jogadores de dominó sob a sombra de uma enorme mangueira, bebendo uma cerveja. De repente, João irrompe em nossa mesa e diz: “Fordlândia não tem futuro, ela teve um futuro, mas ela o perdeu, portanto agora ele não existe mais”. Sua fala foi como se estivéssemos jogando cartas e, jogássemos mal uma carta e pronto! Já não podemos tocá-la! Durante todo esse tempo eu me perguntei várias vezes o que significava para uma cidade não ter um futuro, não ter pelo menos uma ideia de futuro... O que é viver um eterno presente?

MARGARETH DA SILVA PEREIRA

Será que Fordlândia nos leva a nos darmos conta mais radicalmente de nossas próprias visões de tempo e, portanto, também das nossas expecta tivas? Parece-me que tanto Fordlândia quanto a floresta, que nos fala com sua presença “silenciosa”, nos fazem, direta ou indiretamente compreen der ainda de modo mais evidente que as nossas maneiras de pensar o pas sado ou o futuro foram construídas historicamente, passo a passo, com a noção de projeto à qual se associa a ideia de utopia. Além do mais, a par tir do Iluminismo, as próprias ideias de projeto e de utopia penetraram, por sua vez, nas nossas concepções hegemônicas de espaço e de tempo, e declinaram-se no interior dos conceitos de previsão, de progresso até nos

NOTAS

discursos do urbanismo dos anos 1920-30 de Ford e de seus sociólogos, onde se fala então de um futuro desenhado em planta, um “futuro em plano”, para usar o título do livro de Jean-Pierre Gaudin17. Entre o desejo de construir a Utopia e a História, estes suspended spaces desvelam os fantasmas que povoam o nosso presente... De fato, o rio está sempre aí com os seus vestígios, a natureza está também aí, com o seu tempo lento e violento como quando chove ou quando as águas sobem, as máquinas enferrujadas estão aí também com os velhos e per furados telhados que criam efeitos com a luz que os atravessam e tanto intrigou Jan [Kopp]. Então, acabamos por nos perguntar onde está o sopro da vida? Onde pulsa o sopro de vida que resistiu a Ford? Onde estão os que resistiram ao pro cesso de distribuição de terras que foram atribuídas a Ford, os que lhe resistiram e os que ali permaneceram?

FRANÇOISE PARFAIT

O testemunho de João – diante de um rio tão vasto, tão pacífico, tão aberto à viagem, ao futuro, ao distante, ao alhures – é para mim um dos momentos mais comoventes da residência. O que ele está dizendo é o oposto disso. Para ele, a Fordlândia é o passado, é a oportunidade perdida... uma oportunidade que se deixou escapar. Agora é tarde demais, o tempo parou para o João, nada mais pode acontecer. Esta nostalgia, compartilhada por alguns habitantes de Fordlân dia que cultivam a memória daquela idade das possibilidades que foi o perío do fordiano – engraxando-se as máquinas, fazendo girar as turbinas, reparando os edifícios – não é o sentimento dominante da juventude que anima o vilarejo quando projeta sua voz, sua música, seus sonhos. É disso que fala Luiz Magno [Ribeiro], o diretor da escola que forma as novas gerações, opondo-se fortemen te ao culto fordiano e à melancolia que ele instila até nos visitantes apressados. Estes, vêm verificar rapidamente a presença do arquivo e vão embora, tranquili zados pela aparente conformidade entre o mito e a realidade de Fordlândia.

1 NT - Entre 14 e 18 de novembro de 2018 o coletivo francês Suspended spaces realizou no espaço La Colonie, em Paris, o seminário intitulado Fordlândia, une archive à ciel ouvert/ Fordlândia um arquivo a céu aberto em torno da exposição intitulada Retour de Fordlândia/ Retorno de Fordlândia Os eventos visavam expor visões e

questões mobilizadas por um grupo de artistas, professores, fotógrafos por ocasião de uma estadia na região amazônica, em uma residência na po voação criada por Henry Ford em fins dos anos 1920 e depois abandonada. Este texto resume a roda de conversa realizada em 15 de novembro de 2018, coordenada por Alessia de Biase, a qual

participou da estadia às margens do Rio Tapajós com Valérie Jouve e Jan Kopp – a partir da iniciativa, particu larmente, de Françoise Parfait, Daniel Lê e Éric Valette, criadores do projeto Suspended spaces. Na ocasião foram convidados, ainda, Gilles Tiberghien e Margareth da Silva Pereira, para discu tir as noções de tempo em Fordlândia, tratada especificamente naquela tarde. O texto original, em francês e aqui traduzido, Les temps de Fordlândia, foi publicado no catálogo Fordlândia - Suspended spaces #5 (Édition Suspen ded spaces et Les presses du réel, 2020)

2 Sigfried Kracauer, L’ornement de la masse. Essais sur la modernité weima rienne, Paris, La Découverte, 2008, traduzido da edição italiana (La massa come ornamento, Napoli: Prismi, 1982, p. 114).

3 Ernst Bloch, Héritage de ce temps [1935]. Paris, Payot, 1978.

4 O projeto Suspended spaces nasceu em 2007. Conferir Suspended spaces #1 - Famagusta, Paris, BlackJack, 2011.

5 Ernst Bloch, Héritage de ce temps (1977), Paris, Klincksieck, tradução de Jean Lacoste, 2017.

6 Jakob von Uexküll, Mondes animaux et mondes humains (1934), Paris, Denoël, tradução de Philippe Muller, 1965.

7 Georges Gusdorf, Le Savoir Romanti que de la nature, Paris, Payot, 1985.

8 George Kubler, Forme du temps. Remarques sur l’historie des choses,

Paris, Champs Libres, tradução de Yana Kornel e Carole Naggar, 1973.

9 David Grann, La cité perdue de Z (2009), Paris, Robert Laffont, tradução de Marie-Hélène Sabard, 2010.

10 Exposição Hercule Florence: Le Nouveau Robinson, em cartaz na Villa Paloma em Mônaco, de 17 de março a 25 de setembro de 2017.

11 Hercule Florence, série de pintura “Etude du ciel à l’usage des jeunes pay sagistes”, em Le Nouveau Robinson, ou l’Artiste livré à luimême, Recherche & Découverte et écrits divers, 1er cahier, Collection CHF, Inv. 4182-hf. Conferir também o catálogo Hercule Florence, Le nouveau Robinson, Monaco, Hum boldt Books/Nouveau Musée National de Monaco, 2017.

12 Anne-Marie Chabrolle-Cerretini, La Vision du monde de Wilhelm von Hum boldt. Histoire d’un concept linguisti que, Lyon, ENS Éditions, 2008.

13 Éric Valette, La jalousie du plant de manioc/ la vengeance du bois qui pleu re, conferência-performance, 2018.

14 Récit du monde, exposição a partir dos arquivos de l’IMEC, IMEC, Abbaye d’Ardenne, Saint-Germain-la-Blan che-Herbe, de 20 de outubro de 2018 a 17 de fevereiro de 2019.

15 Thomas More, L’Utopie (Louvain, 1516), Paris, Librio, 2003.

16 Louis-Sébastien Mercier, L’an deux mille quatre cen quarante. Rêve s’il en fût jamais, (Londres, 1771) Paris La Découverte, 1999,

PARA CITAR: BIASE, A. Et
al. Os tempos de Fordlândia.
Redobra , n. 16, ano 7, p. 143-171, 2022
17 Jean-Pierre Gaudin, L’avenir en plan. Technique et politique dans la prévision urbaine. 1900-1930, Paris, Champ Vallon, 1985.

EXPERIÊNCIAS

BREVE RELATO PANDÊMICO 1 PAOLA BERENSTEIN JACQUES

Professora titular do PPG-AU/UFBA e coordenadora do Laboratório Urbano (PPG-AU/UFBA)

Desde o início do isolamento, aqui começado em março de 2020, o som da cidade parece ter mudado bastante. Passo a escutar bem mais os pássa ros. Todos os dias pela manhã os bem-te-vi cantam alto e alegremente sua liberdade e, pela tarde, as maritacas parecem festejar a ausência de huma nos, presos em suas residências em home office 2. Durante o dia, casais de gaviões passam pela janela em voos rasantes, cada vez mais próximos dos vidros, e algumas gaivotas também passaram a dar o ar de sua graça.

As praias da cidade tiveram seus acessos fechados com tapumes e, em areias urbanas, antes lotadas de banhistas, algumas tartarugas marinhas passaram a desovar. Até mesmo as baleias passaram a chegar bem mais próximo da orla e não é mais raro ver, da janela de casa, famílias inteiras passando com seus saltos e esguichos d’água. Há vários relatos de animais selvagens, como onças ou jacarés, passeando por ruas de diferentes cida des do interior, agora com bem pouca circulação de pessoas ou de veículos.

Todas as aulas e demais atividades presenciais na Universidade Federal da Bahia foram interrompidas e, até hoje3, só as atividades essenciais foram mantidas, todo o resto se dá de forma remota. O acesso aos campi univer sitários passou a ser restrito a poucas pessoas. Após mais de um ano sem entrar no principal campus da Universidade, em Ondina, precisei buscar livros no estoque da Editora Universitária, cuja sede fica bem no centro deste campus que reúne vários prédios de faculdades distintas. A UFBA possui outros campi e prédios isolados em Salvador, mas esse é o maior campus e fica em um bairro residencial, formando uma cidadela universi tária dentro da cidade.

Ao passar o portão de entrada parecia adentrar um espaço outro (no sentido fou caultiano), a vegetação tinha invadido os prédios, sobretudo as várias obras ina cabadas – reflexo da crise financeira das Universidades públicas do país, mesmo motivo que levou à interrupção do serviço de jardinagem dos campi durante a pandemia – que praticamente desapareceram ao passar a funcionar como “es truturas” vegetais formando enormes “jardins” verticais. Me lembrei imedia tamente de um relato de um velho amigo, Henri-Pierre Jeudy, de uma viagem à Chernobyl (Ucrânia) alguns anos após o desastre nuclear (1986), quando ele me contou em detalhes sua surpresa ao adentrar a dita “cidade fantasma” con taminada - que se tornou radioativa e inabitável por milhares de anos - quase completamente coberta por uma vegetação estranha que invadiu toda a cida de abandonada pelos humanos. Ao caminhar completamente só, pelo campus antes sempre lotado de estudantes, lembrava dessas imagens de Chernobyl, e passei a me sentir numa aventura pela “zona” do filme Stalker (do cineasta Tar kovski, 1979). Me senti uma “stalker” atravessando uma “zona misteriosa” mas que, diferentemente daquela bem sombria e desértica do filme russo, era uma zona colorida tropical, temporariamente abandonada pelos humanos mas ple namente habitada por várias outras espécies diferentes.

A pequena mata tropical, que já existia no campus, se transformou em uma ver dadeira selva, que invadiu as ruas internas, praças e os caminhos de pedestres. Os animais silvestres, como micos e lagartos, que já circulavam antes – mas em proporção e tamanhos menores -, passaram a dominar o espaço do campus ve getalizado. Além do verde dominante, muitas outras cores surgiam ao longo de meu caminho, tanto nas plantas quanto nos bichos, em particular nos insetos. Logo na entrada da editora, meu destino, enormes borboletas coloridas passea vam entre folhagens de diferentes tons, e o que era grama virou mato e a grade da porta foi recoberta de trepadeiras e samambaias. Lembrei de vários relatos de viagem por regiões “selvagens”, como aqueles de Mário de Andrade de barco rumo à Amazônia, publicados na série “O turista aprendiz” (1927).

“12 de maio. Pela manhã apareceu a bordo uma borboleta mariposa que media bem uns três metros e vinte da ponta de uma asa à outra. Era toda de veludo pardo com aplicações de renda de Veneza, mui linda. Dessa qualidade eu já conhecia, porque uma senhora no meu bairro tem uma no jardim. Isso não impediu que a aparição fosse recebida com aplauso geral, porque durante as correrias pra pegar a mariposa, ela sempre achou um jeito de apre sentar os passageiros uns aos outros e de noite deu um baile no salão”.

Ao tentar abrir a porta engradeada já coberta de plantas e raízes, vários outros relatos, imagens e lembranças diferentes me invadiram. Lembrei de cenas de um outro filme, também dirigido por Tarkovski, Nostalghia (1983), com imagens sobrepostas de lugares diferentes em que o tempo parecia ter parado, em sus penso, e ter sido gravado ou esculpido em ruínas. Me afastei um pouco da grade para me sentar em um banco úmido recoberto de limo, e passei a observar logo

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na minha frente o prédio, “que era ainda construção e já é ruína” como canta Caetano Veloso em “Fora da ordem” (1991), lembrando também do que escre veram Walter Benjamin e Asja Lacis sobre a cidade de Nápoles (1925): “nesses recantos mal se percebe quais as partes onde continua a construção e aquelas que já entraram em ruína”. O prédio que seria o novo Instituto de Ciências da Infor mação já estava quase completamente tomado pela farta vegetação. Penso no que poderia ser uma ciência da informação vegetal. Penso na suspensão da vida universitária no campus, em sua ruína viva, no próprio campus como um espa ço em suspensão, um espaço outro tomado por outras formas de vida, um espa ço em “devir selvagem”. Como podemos pensar nessa coexistência de formas de vida, espécies e tempos distintos na retomada das atividades universitárias no pós-pandemia? Algo mudará no pós-pandemia no campus e na cidade? Como pensar em um “devir selvagem” das cidades?

Tiro minha máscara hospitalar para beber um pouco de água que levava na mo chila, e rememoro uma fala que ouvi em uma live recente do pensador e líder in dígena Ailton Krenak direto de sua aldeia no médio rio Doce, da reserva indíge na isolada e fechada aos “brancos”. Ele nos dizia: “Esse vírus está discriminando a humanidade. Basta olhar em volta. O melão-de-são-caetano continua a crescer aqui do lado de casa. A natureza segue. O vírus não mata pássaros, nenhum outro ser, apenas humanos. Quem está em pânico são os povos humanos e seu mundo artificial, seu modo de funcionamento entrou em crise”. Tanto Krenak quanto o líder Yanomami, Davi Kopenawa – que nos denomina de “povos da mercadoria” –, chamam atenção para nosso antropocentrismo, Krenak insistia em sua fala: “Temos que abandonar o antropocentrismo; há muita vida além da gente, não fazemos falta na biodiversidade. Pelo contrário”. Lembro também de uma frase de Lévi-Strauss, não me recordo mais em que livro, que dizia que o mundo co meçou sem os homens (humanos) e terminará sem eles, lembro ainda do livro recente do Kopenawa (com o antropólogo Bruce Albert) onde ele nos alertava: “A floresta está viva. Só vai morrer se os brancos insistirem em destruí-la. Se conseguirem, os rios vão desaparecer debaixo da terra, o chão vai se desfazer, as árvores vão murchar e as pedras vão rachar no calor. A terra ressecada ficará vazia e silenciosa. (...) Então morreremos, um atrás do outro, tanto os brancos quanto nós. Todos os xamãs vão acabar morrendo. Quando não houver mais nenhum deles vivo para sustentar o céu, ele vai desabar”.

Ao imaginar essa “queda do céu” da lenda Yanomami, lembro de uma imagem da floresta feita por Claudia Andujar em preto e branco e de uma escultura clás sica do titã grego “Atlas” carregando o firmamento celeste em suas costas que Aby Warburg escolheu para uma das pranchas de seu Atlas da memória. Lembro também da “imagem de pensamento” do “anjo da história” (1940) de Walter Benjamin, a partir do quadro de Paul Klee, Angelus Novus (1920), em que o anjo é carregado para o futuro de costas, com as asas abertas pelo vendaval, pela tem pestade do progresso que nos leva à catástrofe4

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"Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumu la incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos de progresso"

Ao me levantar do banco esverdeado e recolocar minha máscara, re lembro do manifesto antropófago (1928) de Oswald de Andrade –“Tupi, or not tupi that is the question” – e de outra canção de Caetano Veloso, “Um índio”, que passo a cantarolar ao finalmente me dirigir para a porta lateral da editora onde o porteiro, único humano que vi no interior do campus, já me esperava com o pacote de livros que tinha ido buscar. Em todo o caminho de volta até o portão de entra da – portal mágico que me abriu a esse espaço-tempo em suspensão, mas tão vivo e colorido –, retorno cantarolando pelo campus em devir “selvagem”, ou “em movimento” como diz o jardineiro Gilles Clé ment, a profética canção (do disco “O bicho”, de 1977):

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Nakeuxima Manihipi-theri, povo Yanomami (1976).

Fonte: Montagem de Dilton Lopes e Ramon Martins para o cartaz da conversa virtual com Guilherme Wisnik –O anjo da história e a queda do céu –no Seminário de Cultura e Realidade Contemporânea (2020) da Escola da Cidade (SP).

“Um índio descerá de uma estrela colorida, brilhante De uma estrela que virá numa velocidade estonteante E pousará no coração do hemisfério sul Na América, num claro instante Depois de exterminada a última nação indígena E o espírito dos pássaros das fontes de água límpida Mais avançado que a mais avançada das mais avançadas das tecnologias

O axé do afoxé Filhos de Gandhi ViráFigura 1. Angelus Novus , Paul Klee (1920) & desenho de Orlando

Virá

Impávido que nem Muhammad Ali Virá que eu vi Apaixonadamente como Peri Virá que eu vi Tranquilo e infalível como Bruce Lee Virá que eu vi

NOTAS

Um índio preservado em pleno corpo físico

Em todo sólido, todo gás e todo líquido

Em átomos, palavras, alma, cor

Em gesto, em cheiro, em sombra, em luz, em som magnífico Num ponto equidistante entre o Atlântico e o Pacífico Do objeto-sim resplandecente descerá o índio

E as coisas que eu sei que ele dirá, fará Não sei dizer assim de um modo explícito

(...)

E aquilo que nesse momento se revelará aos povos Surpreenderá a todos não por ser exótico

Mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto Quando terá sido o óbvio”.

Enquanto termino de digitar essas notas, a Comissão de Constituição e Justiça aprovou a PL 490, que busca retirar a proteção das terras indígenas ga rantida pela Constituição Federal de 1988 e lembro do discurso histórico do mesmo Ailton Krenak na Assembléia Constituinte. Trata-se de mais um golpe contra os já vulneráveis povos originários, perseguidos desde a inva são europeia em 1500, considerados “atrasados”. Os povos indígenas, de di ferentes etnias, foram novamente um dos mais afetados pela atual pandemia mas, mesmo assim, protestavam há semanas – antes de serem violentamen te dispersados pela polícia federal – em frente à Câmara de Deputados na capital do país, ícone do “progresso” nacional e da arquitetura e urbanismo modernos, Brasília.

1 Texto (em forma de relato/“escrita automática”) originalmente publicado em francês (com alguns cortes) no livro-coletânea “Regards sous con trainte: carnet de terrain d’un monde pandémique” (collection Décrire, édi tions BOA, Paris, 2021), organizado por Alessia de Biase (LAA/LAVUE/ CNRS). A convite da organizadora

(que nos pediu uma descrição etnográ fica), cinquenta pesquisadores relata ram, em primeira pessoa do singular, uma de suas experiências urbanas, em várias cidades do mundo, durante a pandemia (2020/21).

2 Uma parcela mais privilegiada da po pulação, com condições para trabalhar de casa.

3 Relato de maio de 2021. 4 Neste exato momento, 14 meses após os primeiros casos, nos aproxima mos rapidamente do meio milhão de mortos pelo novo vírus no país, com muitas mortes que poderiam ter sido evitadas se não fosse a postura nega cionista, irresponsável e negligente do atual governo federal de extrema direita. PARA CITAR: JACQUES, P. B. Breve relato pandêmico. Redobra , n. 16, ano 7, p. 175-181, 2022.

EM SURUBABEL

OU COMO BEBER UM RIO

MARCOS [GAIO] MATOS

Doutorando do PPG-AU/UFBA e membro do Laboratório Urbano (PPG-AU/UFBA)

Nova Rodelas é um poço sem fim de lembranças. Afogada pelas águas do lago artificial de Itaparica e agarrada a um entorno de ilhas e territó rios antes ocupados pela comunidade nativa Tuxá - também cobertos pelo lago - a única construção visível da cidade antiga é a caixa d’água que parece flutuar sobre a superfície do lago como um jazigo a velar seus escombros. O maior desafio da população que persiste é passar adiante as memórias e histórias da velha Rodelas. O desenho da cidade, suas ruas, praças e construções ainda sobrevivem em fotos desbotadas e na presença dos galhos da copa das árvores secas furando a superfície das águas fabricadas pela barragem que estrangulou o rio.

Neste tempo, estávamos evidentemente com a novidade do desco nhecido e todos os caminhos abertos. E no avanço da aproximação, a paisagem do rio nos recebia extrovertida, quase ofuscando o olhar do Hidronauta, que passeava distraído pela majestade do espaço. Animava nossos corpos na apreensão de cada existência, absorvendo a raridade de cada sutileza que a vista e as sensações pudessem abraçar. A amplitude do lugar é tão evidente que mesmo invisibilidades e silêncios são cruamente absorvidos, entrelaçando ainda mais seu corpo já entrelaça do à paisagem. Mais uma vez, e mais do que nunca: Natureza sobre natureza.

ANCESTRALIZAÇÃO
1

A perfeição é atingida quando se crê que não há mediação alguma entre a natureza – exte rioridade total – e a forma segundo a qual essa é percebida. Apagados o trabalho, o labor, a fabricação. Apagados os intermediários, as cadeias de razões e de justificativas. Frequente mente, no caso da paisagem e algumas vezes apenas no caso de alguma obra, o que é dado como parte de um sistema radicalmente estranho a nosso funcionamento mental (a natu reza física, o Outro) entra em acordo e ressoa nessa mesma construção: a natureza, pura exterioridade, passa a ser também pura interioridade. Temos o íntimo sentimento de uma perfeição, de uma relação de natureza a natureza. Isso decorre de uma dupla garantia: a natureza (exterior) garante a paisagem, e a paisagem garante – porta-se como fiadora – do natural de nossa natureza (interior). (CAUQUELIN, 2007, p. 124)

A exceção de contínuas vibrações que se materializavam em ondas miúdas se dobrando na superfície doce do São Francisco, a paisagem é sussurro. Nesse ins tante, o hidronauta passa a ser capturado e ajustado sem pressa a uma perspec tiva desertificada de gente, mas ocupada por uma aura policêntrica de ausências e possibilidades, intensamente povoada pelo marulho de memórias submersas junto às ruínas de Rodelas no fundo do lago. Puro instinto, se despe e mergulha apressado naquele mar de água doce, abduzido por uma traquinagem infantil dançando inebriada pelo encantamento do encontro.

O encantado é aquele que obteve a experiência de atravessar o tempo e se transmutar em diferentes expressões da natureza. A encantaria, no Brasil, plasmada na virada dos tambo res, das matas e no transe de sua gente cruza inúmeros referenciais para desenhar nas mar gens do Novo Mundo uma política de vida firmada em princípios cósmicos e cosmopolitas. [...] A noção de encantamento traz para nós o princípio da integração entre todas as formas que habitam a biosfera, a integração entre o visível e o invisível (materialidade e espiri tualidade) e a conexão e relação responsiva/responsável entre diferentes espaços-tempo (ancestralidade). Dessa maneira, o encantado e a prática do encantamento nada mais são que uma inscrição que comunga desses princípios. (RUFINO; SIMAS, 2020, p. 4)

A vontade de rio intensifica o estranhamento de uma mistura que desde sempre existiu. E a cada gole de água, o hidronauta despersonifica continuamente sua existência até se dar conta do seu emparelhamento a um devir correnteza e a paisagem à sua volta. Afluindo ao drama de um São Francisco impregnado pela memória de Rodelas, os seus afetos mais clandestinos.

Revigorado por este abraço líquido, constata que é apenas mais um dos nós in finitos que, anonimamente, atam e desatam uma diversidade de histórias num mesmo ser emaranhado ao movimento e a bricolagem de fluxos e acontecimen tos na composição de uma história desmedidamente muito maior e mais com plexa. E que, na feitiçaria daquele momento, a instabilidade dos seus mundos estavam, enfim, colidindo.

A essa altura, as corredeiras que no passado carregavam a vitalidade de um São Francisco livre de qualquer contenção já inundavam o hidronauta, despurifican

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do seu sangue com a doçura corrente do velho Chico, para animar uma alquimia de fluxos. Compartilhavam agora, a mesma densidade etérea que entrelaçam crises e histórias distintas numa experiência que implode as contenções do seu corpo, bem como as demarcações ontológicas que nos estrangulam a vida e go vernam as diferenças entre humano e natureza, vida e não-vida, animado e desa nimado, entre ser e não ser, desenhadas por um construcionismo multicultural que, desde sempre, coloniza e subjuga mundos e cosmologias não ocidentais. Manejando o estranhamento dessa simbiose, o hidronauta se expande, e se ex pande ainda mais pelas tensões de uma corporalidade entrelaçada a uma paisa gem sem fim. Paisagem que movimenta e inflaciona nas armadilhas do tempo a fricção imprescritível dos seres e a multiplicidade de suas cosmologias.

Estamos acostumados a pensar que o ser é algo que podemos contornar em uma forma de vida, um ethos, um caráter, enquanto a lagarta e a borboleta nos mostram que não é bem assim que funciona. Também do ponto de vista do ethos, a vida passa facilmente de uma forma para outra e nunca é reconduzível a um mesmo mundo – no fundo, no processo de metamorfose dos insetos, se passa de um mundo para o outro e a vida é o que permite a jun ção desses dois mundos. (COCCIA, 2020, p.1-2) [...]contaminar-se pelo outro não é confraternizar-se, mas sim deixar que a aproximação aconteça e que as tensões se apresentem. O encontro se constrói quando de fato se constrói a partir dos conflitos e estranhamentos e não de sua denegação humanista. (ROLNIK, 2003 p.6)

A imanência desse amálgama que agora inunda a consciência e o corpo etéreo do hidronauta borbulha e faz emergir uma outra potência onipresente, mas até então desacordada: a natureza múltipla de uma ancestralidade em suspensão. Ao acionar esse feixe de relações ancestrais, inflexiona sua corporalidade adoçada pelo rio e colapsa completamente a grafia de uma árvore genealógica piramidal que se frutifica numa progressão bem-comportada no tempo e atávica ao fal so purismo de uma alteridade geneticamente consanguínea e linear. Este des pedaçar inesperado arrebata sua existência e amplifica indiscriminadamente a noção ocidentalizada de parentesco, enraizada na ideia de uma origem comum. Lhe desconecta de um familismo conhecido e previsível, encarrilhado numa sucessão de ascendências puramente humanas e povoadas por uma sequência cronológica demarcada por datas, aniversários e semelhanças nominais. Em seu lugar, explode a complexidade rizomática de uma conexão ancestral ilimitada e extrovertida, replicada numa configuração onde “qualquer ponto de um rizoma pode ser conectado a qualquer outro e deve sê-lo. É muito diferente da árvore ou da raiz que fixam um ponto, uma ordem” (DELEUZE, 1997, p. 4). Naquele instante, o hidronauta se afluía num idioma de alteridades atômicas e tensio namentos que vão, desde sempre, ligando, remontando, borrando e parindo incessantemente a potência dos corpos a partir dos seus deslocamentos e intera ções — amigáveis ou não — com outras existências e cosmologias.

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Comunicações transversais entre linhas diferenciadas embaralham as árvores genealógi cas. Buscam sempre o molecular, ou mesmo a partícula sub-molecular com a qual fazemos aliança. Evoluímos e morremos devido a nossas gripes polimórficas e rizomáticas mais do que devido a nossas doenças de descendência ou que têm elas mesmas sua descendência. O rizoma é uma antigenealogia. (DELEUZE, 1997, p. 14)

Diante desta infestação que lhe assalta a existência, sente sem pressa seu ser im pregnado por uma liminaridade latente a outras intensificações e corporalidades desconhecidas, também liminarizadas exponencialmente. Nesta perspectiva, se reinaugura e reconhece a si mesmo como um devir de colisões perene, desprovido de direções e finalidades. Neste estado mutacional e já desamarrado dos limites espaço-temporais, corpo e consciência persistem em sua diluição na pai sagem rodelense vaporizados na dispersão de uma apreensão atrevida e multi plicada em atlas. Caçador de mil olhos, aciona o desejo dos seus instrumentos inscritos no corpo como tatuagens e continua com seus gestos de alastramento, na tentativa de perscrutar o silêncio de minúcias e reminiscências memoriais submersas nas águas do passado.

Passeia como nuvem entretido e alerta pelo espaço liso da praia de Surubabel. Se afeta pelo vai e vem de uma fronteira líquida, animada por vibrações que lam bem e lubrificam sua aura em sintonia com o movimento das águas guardadoras de ruínas. Com as ferramentas afinadas e já imantadas ao seu corpo convertido em flutuações, prossegue em suas prospecções memoriais por Rodelas. Conver sa com o que desconhece, imerso numa coreografia anômala e feiticeira, invo cando entidades-rizomas para misturar ainda mais sua carne emanada ao tempo e ao espaço, onde a liberdade e a diversidade de conexões se infinitam.

Nesse sentido, o encantamento dribla e enfeitiça as lógicas que querem apreender a vida em um único modelo, quase sempre ligado a um senso produtivista e utilitário. Daí o encanto ser uma pulsação que rasga o humano para lhe transformar em bicho, vento, olho d’água, pedra de rio e grão de areia. O encante pluraliza o ser, o descentraliza, o evidenciando como algo que jamais será total, mas sim ecológico e inacabado. (RUFINO; SIMAS, 2020, p. 8)

Se entrelaçam a paisagem e a bruma que embriaga o lugar com a invisibilidade das coisas e dos tempos que não viveu. No desejo dessa busca, sua ancestrali dade lateja, tentando agenciar um porvir de memórias que ensaiam aparições numa aliança perene entre passados e presentes. Neste ponto, o hidronauta per cebe que não há mais distinção nem ordem na duração, e que a fila perpétua de instantes que, até então, teimavam em quantificar o correr da vida, se dispersa numa brisa de fagulhas sussurrando à sua intuição que “Articular historicamen te o passado não significa conhecê-lo ‘tal como ele propriamente foi. Significa apoderar-se de uma lembrança, tal como ela lampeja num instante de perigo” (BENJAMIN, apud LOWY, 2005, p. 65). Se vê então, abraçado por essas mi cro constelações. Imerso em aparições miúdas, operando como vagalumes na

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penumbra dos tempos, lentamente destacando a silhueta de vestígios e esque cimentos que vão seduzindo sua apreensão, iluminando com um brilho ainda infante as frações de um passado “que rói o porvir e incha à medida que avança. Uma vez que o passado cresce incessantemente, também se conserva indefini damente” (BERGSON, 2006, p. 46). Um passado que acelera suas intensifica ções atropelando a si mesmo para atrasar sua estadia no agora dos acontecimen tos. Evocando e amontoando lentamente uma selva de sussurros e recordações rodelenses, que vão se desequilibrando e desabando o peso virtual de suas me mórias para se atualizar nas feições do presente hidronáutico.

Surfando no lombo dessas sobreposições temporais, sua ancestralidade já ex trovertida é provocada e passa também a reluzir essa alquimia piscante que dilui as gradações entre passado e presente, perturbando ainda mais sua paisagem. E mesmo que a flexibilidade e a segurança de certas rupturas temporais orientem o rumo das narrativas históricas coletivas, a potência ancestral do hidronauta grita em outra direção. Inspira e ecoa dos extratos mais ocultos do seu corpo -paisagem um ruído visceral que anima e faz tremular o ambiente, para estilha çar toda cadeia de periodizações e rupturas entre passado e presente, que encar rilham a oficialidade dos acontecimentos.

Nesse horizonte, se afeta por uma outra cosmologia temporal completamente divorciada das epistemologias ocidentais que especulam traduções do tempo e seus desvios. Um lugar onde passado, presente e futuro - não necessariamen te nesta ordem - nunca existiram como categorias funcionais nem atuam como sujeitos-duração, mas como intensidades desmatematizadas e fora do universo de posicionamentos que, de um jeito ou de outro, narram e empurram a oficia lidade da história. Ademais, é partindo deste equívoco que exclui outras pos sibilidades de ser no tempo que o hidronauta atua para profanar e “subverter os equipamentos conceituais de quem traduz” (VIVEIROS DE CASTRO, 2004, p.5) e perder-se na indeterminação de num espaço-tempo inventado por novas motivações e apreensões; se afastando da miopia que esconde outros mundos e tempos, para incorporar a vibração de subjetividades e perspectivas sobrenatu rais à sua aventura temporal. Borrando e apaziguando sua imaginação, junto à armadura ontológica, há muito tempo incrustada na pele das ciências civilizan tes, para só assim conciliar outros possíveis.

Quando abrir a porta e assomar à escada, saberei que lá embaixo começa a rua; não a nor ma já aceita, não as casas já conhecidas, não o hotel em frente; a rua, a floresta viva onde cada instante pode jogar-se em cima de mim como uma magnólia, onde os rostos vão nascer quando eu os olhar […] (CORTÁZAR, 1994, p. 4)

Diante dessas turbulências, o hidronauta aciona suas ventanias para deambular na abstração de um tempo fora do tempo. Num idioma temporal apartado das gêneses históricas e divinas. Selvagem e intuitivo, performando sem as cicatrizes

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de rupturas e divisões demarcatórias; incomensurável e sem futuro, mas sempre acolhedor do presente. Uma brisa de multiplicidades sem duração e disfuncio nal, que embriaga o espaço com a invisibilidade e o devir de suas conexões com a paisagem. Desde sempre matizando a policromia exuberante da sua aura ao aqui e agora de uma natureza errante, completamente inconsciente das métri cas e posicionamentos que se confundem e se sobrepõem em meio à aceleração de um mundo racionalizado pela modernidade. Um tempo sem tempo, volátil, mas sempre presente, que não passa nem assenta, mas que amanhece e anoitece, que chove, que venta, que treme a copa das árvores e os extratos mais profun dos da terra cultivando seus jardins e abismos. Que move rios e marés e troca as fases da lua, que traduz o brilho das estrelas, impuro, que alimenta e protege, que ataca, incendeia, chora e ri, mata e aflora, sempre partilhando e transmutan do uma cosmologia de alegrias e adversidades, ritualizadas no imponderável de suas perturbações e dialéticas. Fluxo perpétuo de ruínas e renascimentos rodo piando a contingência insanável das transformações sobre si mesmo. Imantado a vitalidade de uma dimensão espacial ao avesso e existindo desligada das métri cas que imprimem o antes e o depois para habitar um regime de intensificações ferozmente exilado pelo homem branco e a flacidez da utopia moderna.

O hidronauta é, então, enfeitiçado por essa existência indomável. Assaltado por uma tridimensionalidade que se completa por um excesso de vida e movimen to, que encanta sua aliança com a paisagem da região de Rodelas, o revestindo com cargas subjetivas e qualidades temporais diversas, suspensas das acelera ções e vivenciada na potência de outras intempéries - sem o hábito burocrático que comprime a vida na ansiedade de uma mola infinita, sempre voltada em di reção a um futuro esgotado.

“Mas o futuro não existe, existe o aqui e agora. Estamos vivendo projeções de futuros muito improváveis que venham a acontecer, mas preferindo o futuro ao presente. […] A fricção com a vida proporciona um campo de subjetividade que prepara a pessoa para qualquer tarefa na vida. A gente não precisa formatar alguém para ser alguma coisa, mas antes pen sar na possibilidade de proporcionar experiências que formem pessoas capazes de realizar tudo o que é necessário”. 2

Segundo os princípios que regem nosso existir, a vida é feita para ser vivida com toda a intensidade que o momento oferece. Essa ‘filosofia’ se baseia na ideia do presente como uma dádiva que recebemos de nossos ancestrais e na certeza de que somos “seres de passagem” [...]. Nessa visão está implícita uma noção de tempo alicerçada no passado memorial, mas nunca numa vazia ideia de futuro. O ‘futuro’ é, pois, um tempo que não se materializou, não se tornou presente e, por isso, impensável para a lógica que rege nossa existência. (MUNDURUKU, 2012, p. 68)

Ainda na praia, o hidronauta flutua por esse espiral de temporalidades até se deparar com as ruínas de uma floresta estranhamente cinza e imóvel, destacada

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num horizonte matizado com a brancura instável das nuvens. Uma flora estra nha, conservando árvores como se fossem totens do tempo, espalhados às mar gens e no meio do São Francisco. É quando, repentinamente, a paisagem de Su rubabel sacode - ali, uma gravidade incomum emana de galhos e troncos secos, prontamente aliciando seus movimentos e afecções. O hidronauta sente na hora o assombro aflitivo da morte lhe inundar o ser enquanto se arvora.

E assim que atravessa a floresta e se dispersa no acúmulo das árvores - petrificadas no tempo pelas contenções que mutilam o rio - o hidronauta evoca um de sassossego represado na rigidez dos seus troncos (ossos?). As árvores e as pedras possuem a eficácia de conservar a variação de sua temperatura no correr do dia, assim podem “falar de uma memória de toda matéria orgânica, sim, da maté ria em geral, no sentido de que determinadas ações efetivas deixem nela ves tígios mais ou menos duradouros” (SPAMER, apud ASSMAN, 2011, p. 227).

Mesmo aos mais desavisados, elas memorizam. E como os humanos são seres memorizantes e, por cadeia, podem também acumular o universo memorial de suas interações e experiências com outros entes vivenciadas em outros espaços e tempos.

Sabedoria das plantas: inclusive quando elas são de raízes, há sempre um fora onde elas fazem rizoma com algo - com o vento, com um animal, com o homem (e também um as pecto pelo qual os próprios animais fazem rizoma, e os homens etc.) “A embriaguez como irrupção triunfal da planta em nós”. (DELEUZE, 1997, p.19)

Por meio de suas raízes, elas se conectam à cosmologia da terra e às tramas que movimentam os mundos, onde cada gesto encontra e convida outros para dan çar a música das transformações e da memória com mais outros e assim por diante. E se as árvores memorizam, elas podem, do seu jeito, também difundir. E se arvoram a irradiar, na imobilidade dos seus passos enraizados na areia, as voltas que o tempo dá. Neste instante o hidronauta é violentamente sugado pe los ossos da paisagem e desenvelhece o tempo.

Ainda mais rarefeito em meio a essa cadeia alucinada de desvios e transmutações, o hidronauta percebe ao seu redor um outro mundo estranhamente familiar, presentificado num passado recente ainda nas terras de Surubabel. Nessa nova configuração espaço-temporal, no entanto, o acontecido se refaz na apreensão de um novo agora, reanimando velhos instantes nas rugas de um tempo em refluxo. Com sua nave temporariamente assentada num avesso temporal, tes temunha in loco a infância dos esquecimentos ardendo num presente diferido, mas tão raros de aparições no futuro que já passou, quando ainda estavam exces sivamente desbotados pelo tempo.

Nessa policronia confusa onde o hidronauta experimentava a reedição dos mo mentos, passado e presente continuavam a partilhar suas intensidades, mas ainda se comportando como fugitivos experimentados e contumazes, sempre

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escorrendo seus desdobramentos diante de quaisquer tentativas de captura e evocação mais persistentes. Uma junção temporal tonta, que aparenta propo sitalmente não colaborar em absoluto com captores e seus tradutores oficiais em meio a seus processos de aparelhamento; que se orienta na contramão dessa busca impossível e perene pela verossimilhança factual dos acontecimentos e que, definitivamente, não se retrai na memória de um tempo morto, mas retor cido e modificado. “A bem da verdade, ela já não nos representa nosso passado, ela o encena” (BERGSON, 1999, p. 89). Num estalo, o hidronauta percebe que o passado, mesmo acontecendo agora no presente, performava num lugar de névoas e fumaças desconcertantes, imerso numa miopia que jamais alcança a completude diante de tanta hesitação ao redor. Em meio a esse tiroteio temporal que lhe atravessa e sangra as vísceras memoriais, o hidronauta atenta que, em qualquer tempo, o passado disputa a contingência de seus incidentes com uma cronologia pacificada, obediente à uma linearidade historiográfica traficada e reescrita falaciosamente por mãos êmulas. E quando, de alguma forma, é draga do à superfície conturbada do presente, o passado se entrega trôpego, vacilante e estafado na instabilidade da sua permanência, inundado pelo não dito e por falhas temporais e factuais. Preso a esse tumulto, desnorteado e perdido na multidão de silêncios e esquecimentos que rodopiam alucinados à sua volta, o passado se desmonta e desaba, e esfarela-se ainda mais em cacos - e o que vem à tona?

Uma inflação ainda maior de frangalhos. Fauna infinita de informações de toda espécie boiando a esmo num mar revolto de acontecimentos e tem poralidades dispersas na iminência de serem pescadas a qualquer momento pela rede esburacada da oficialidade histórica. E o que se apresenta à mesa para matar a fome das narrativas mais bem aparelhadas pelas instituições que, de alguma forma, manejam as feições do conhecimento ou do poder, é consumido em fatias. Destrinchadas, temperadas e mastigadas, são servidas ainda quentes e esfumaçadas. Bem ao gosto dos atores mais “eminentes”, a empanturrar as entranhas da história e arrotar ao mundo o protagonismo de suas pautas, demandas e uma suposta eficiência do contexto esquizofrê nico de progressismos onde estão inseridos. Ao mesmo tempo, vão empur rando para as bordas do prato o que é descartável, não comestível e tudo mais que foge ao paladar “gourmetizado” dessas organizações. Vão ficando de lado as carcaças, os restos, peles, cartilagens, pêlos, ossos e toda sorte de refugos históricos como analogia à pilha de ruínas, escombros, cadáveres e a procissão de vestígios, silêncios e esquecimentos que se perdem e sobram pelo caminho no rastro necropolítico (MBEMBE, 2003) dessas operações de apagamento e desterro - como o ocorrido em Rodelas.

A história contada nos livros oficiais e didáticos, assim como na televisão, narram ape nas uma parte da história. Apresentar um lado da história acaba sempre por silenciar outras histórias, aquela que não é tão conveniente que as pessoas conheçam. Aliás,

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quem teria interesse em saber a visão das 200 famílias Tuxá que tiveram suas ilhas inundadas em nome do “progresso da nação”? (CRUZ, 2017, p. 25)

Ainda que a confusão dessas considerações temporais possam ilustrar a cadeia de fins de mundo que se alastram exponencialmente pela face do planeta, assim como os agentes do esquecimento e governanças letais, especializadas em instaurar devastações, genocídios e catástro fes - e estamos, nesse momento, testemunhando desgraçadamente uma delas ancoradas em regimes negacionistas para construir uma pilha de mortos - obviamente nos atemos aqui aos acontecimentos recortados e situados na região de Rodelas ou Nova Rodelas e o seu topônimo submerso, a “Velha” Rodelas. Emparelhada no tempo, às crises e ao drama apocalíptico de outras histórias a exemplo de Bru madinho, Mazagão, Fordlândia, Mariana, o Quilombo Dom João bem como uma infinidade de outras cidades, paisagens e povos amerín dios a exemplo dos Tuxá de Rodelas, violentamente desterritoriali zados de suas cosmologias pela inundação provocada pela barragem.

Figura 1. Árvores mortas ou submersas no São Francisco.

Fonte: Gaio Matos.

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Na excitação dessas águas perturbadas pela ventania, a grafia da copa de ár vores ilhadas parece desfilar no silêncio da paisagem como uma procissão de vértices. De longe, recortam o horizonte em fatias com a sinuosidade esque lética de seus galhos despidos de folhagem para atravessar o tempo. Entre uma brisa e outra, oscilam como um ritual de lanças, prontas para defender suas existências do esquecimento prescrito por um dilúvio planejado. O res salto de suas pontas perfura as águas, emergindo na superfície do lago como armadilhas ou como a quimera de alguma dança da guerra ainda sem nome.

Ao olhar do Hidronauta, esse estranhamento animado na planície das águas franciscanas reverbera como reminiscências seculares de uma resistência ameríndia Tuxá, diante da loucura invasiva do homem branco. Uma escrita camuflada, grafada na memória do tempo, que evoca e arrepia nas sensações do seu corpo-paisagem uma sobrevivência poderosa. Um embate que atravessa ciladas temporais, resistindo ao esmagamento agenciado pelo avanço da civilização, emblematizada na construção da represa que fabricou o afogamento de suas terras. “Nosso Toré não é só uma dança, mas também um ritual religioso. Uma parte dele é de preparação espiritual para enfrentar uma situação conflituosa” (UILTON TUXÁ, 2008). Essas pontas que trincolejam ao vento parecem ainda evo car as vozes do silêncio, trazendo à tona o grito abafado de exis tências e cosmologias continuamente fulminadas pela insanidade epidêmica do progresso, ressoando uma narrativa esquecida e se pultada pelo não dito de uma história oficial que sempre celebrou o massacre das diferenças, o extermínio e dominação do outrocinicamente empunhando o álibi da infâmia civilizacional.

Figura 2. Solo árido da região de Rodelas. Fonte: Gaio Matos.

E não é isso que o peso morto dos monumentos urbanos, que poluem as cida des e os cartões postais, impõe? Diante do monstro de concreto (monumento?) que estrangula o São Francisco numa paisagem matizada pelo corpo hidronáu tico, esses galhos que dançam nus e esqueléticos com a vibração mansa do rio se inscrevem na pele do meio ambiente como contra-monumentos Tuxá - petri ficados numa coleção de vestígios que permanecem no presente como cicatri zes memoriais de um passado brutal, que atravessa o tempo, decepando o povo Tuxá e a população de Rodelas de suas terras de origem. E como nos lembra Benjamin: “Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura. ” ( 2005, p. 70). Sobre o processo de expulsão Tuxá, Manuel dos Santos Tuxá nos lembra que:

Em 1986 ocorreu o primeiro ato de agressão com nosso povo que foi dividido. Em 1988, fomos deslocados para a nova cidade deixando a parte do nosso território fértil onde tudo o que se plantava, e colhia. Era a garantia da autonomia do povo Tuxá, grande produtor de

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199 cebola, arroz e mandioca. Até hoje, 32 anos passados, não recebemos terras para plantio e o que fica é o sentimento de revolta, injustiça e impunidade. 3

A profusão dessa flora de rastros no ecossistema de Surubabel desconcerta a pai sagem do hidronauta ainda perturbado, à beira do rio. Ao mesmo tempo, ani mam a eficácia de uma brisa sonora do tilintar seco dos galhos, acionando um regime incomum de sensações feiticeiras. O estranhamento dessas vibrações parece também evocar travessias de tempo ocultas, quase invisíveis. Não antes de se desdobrar numa sinfonia memorial esparsa e opaca, difícil de ser apreen dida, essas aparições musicalizam toda a atmosfera do ambiente. Nesse instan te, seus sentidos de audição se arvoram para tentar acolher o anonimato desses sussurros, que logo adentram sua paisagem auditiva. Essa evocação ruidosa e crescente orquestra um motim de sensações sonoras que rasgam o mutismo do tempo com a potência de uma memória ameríndia quase necrosada. Sitiada num infinito de silêncios pela barbárie de um apagamento colonial que, desde então, se atualiza persistentemente onde “O presente se lança com força imperativa sobre nossas existências: descaso, injustiças, a morosidade, espera, descrença e o

NOTAS / REFERÊNCIAS

esquecimento. Ainda assim, resistimos. ” (CRUZ, 2017, p. 16). Nesse mes mo tom, como nos relata a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, “sabe -se pouco da história indígena: nem a origem, nem as cifras de população são seguras, muito menos o que realmente aconteceu. Mas progrediu-se, no entanto: hoje está mais claro, pelo menos a extensão do que não se sabe” (CUNHA, 1992 p. 11).

Atordoado, o hidronauta se deixa carregar pela amplificação dos ruídos memoriais que embriagam sua audição, até desaguar sua paisagem num passa do ainda mais remoto onde tremula em meio à uma desordem sangrenta e ensurdecedora. Habitando agora a infância da invasão colonial, se vê encur ralado num campo de batalhas existenciais onde assiste, incrédulo, a con tenda magnífica de um guerreiro ameríndio traçado com as cores da guerra e adornado com um disco de madeira entalhado nos lábios. A muscularidade nativa dessa resistência se contraía empenhada em retaliar o ataque letal dos invasores, ávidos em domar a região sertaneja.4 Uma confusão de vísceras esvoaçantes se espalhava em meio a desordem da disputa tingindo a caa tinga com uma vermelhidão mútua. Enquanto isso, desviando das tripas e ossos quebrados, o hidronauta se protegia da guerra camuflando a tontura da sua paisagem nas micro trincheiras que rachavam a aridez do solo serta nejo.

1 Surubabel, Sorobabel ou Dzorobabé, refere-se a uma das ilhas no meio do Rio São Francisco habitada pelos Tuxá. Segundo Salomão (2006) a aldeia mudou-se para o território conhe cido hoje como Rodelas, depois de uma grande enchente no rio quando ainda não havia brancos na região.

Posteriormente, com a implantação do lago artificial de Itaparica, ocorre uma nova migração e uma luta pela terra que até hoje persiste. Esse fato resulta num processo de autodemar cação pelos Tuxá, à revelia da FUNAI, de um território situado à beira do Rio São Francisco reconhecido como ancestral e batizado novamente como Surubabel.

2 Fala de Krenak no 2º Congresso Vir tual LIV - Laboratório Inteligência de Vida, realizado em 18/09/2020

3 Depoimento dado por Manoel Uilton dos Santos Tuxá aos jornalistas Azael Goes e Juciana Cavalcante para a CBHSF - Comitê da Bacia Hidrográ fica do São Francisco. Disponível em: www: https://cbhsaofrancisco.org. br/noticias/novidades/.

4 As invasões holandesas no Brasil referem-se ao projeto de ocupação do Nordeste brasileiro pela Companhia Holandesa das Índias Ocidentais du rante o século XVII. A batalha mencio nada ocorreu na localidade de Ribeira das Alagoas do São Francisco..

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PARA CITAR: MATOS, M.G. Ancestralização em Surubabel ou como beber um rio. Redobra, n. 16, ano 7, p. 183-201, 2022.

A CIDADE, O PENSAMENTO ANIMAL E A POESIA: UM MODO DE NARRAR

CINIRA D’ALVA

Doutoranda do PPG-AU/UFBA e membro do Laboratório Urbano (PPG-AU/UFBA)

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um escorpião alguns besouros um elefante e uma aranhola uma tartaruga dois sapos um tatuí e uma patativa nesta ordem mas não apenas esta .. e um pinguim deixaram um recado

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Assim começa o poema-síntese de um processo de imersão que pude vivenciar na cidade de Fortaleza durante a residência artística “Sala vazia”, realizada em março de 2019, pelas organizações Trincheira e Salão das ilusões, espaços de fo mento e criação cultural em Fortaleza, no Ceará. Durante um período de dez dias, uma série de errâncias urbanas me levou à elaboração de uma narrativa que possibilitou, por meio de uma instalação visual e sonora, um campo propício à instauração de experiências indiretas do público com a cidade. O relato de uma experiência, dependendo do modo como se faz, pode gerar agenciamentos po tentes para quem escuta as memórias do vivido. Neste trabalho que aqui comen to, o modo de se pôr à escuta se confunde com o próprio conteúdo da escuta e com a forma de narrar o que foi escutado. Borram-se as fronteiras entre forma, conteúdo, sujeito, coisa, humano e animal.

O dispositivo proposto para as errâncias se limitou ao corpo atento “disposto à perda e à dissolução”. Ao fim de dez dias, me deparei com um conjunto de bi chos, os quais encontrei em formas e tempos diversos. O processo do trabalho, intitulado Concerto para múltiplas vozes: o recado de Exu , foi apresentado em duas salas, uma contendo áudios e outra, imagens impressas, objetos e vídeos. O recado dos bichos foi enunciado no poema Eu, um mamífero, apresentado em forma de vídeo-poema.

Este texto é uma possibilidade de me voltar para a experiência e compreender com mais clareza como algumas práticas – que são críticas ao pensamento logo cêntrico ocidental – convergem para uma mesma atitude que, em última instân cia, demanda a construção de uma corporeidade distinta do habitual. O método cartográfico e a técnica da montagem, propostos como procedimentos para uma escuta da cidade, fizeram emergir um pensamento animal possível de se expres sar através de um poema. Talvez porque a linguagem da poesia, como afirma a escritora Maria Esther Maciel (2020), assim como o animal em sua estranha alteridade, “desafia o poder humano de compreensão e se furta às explicações racionais, para se inscrever sobretudo na esfera do corpo e dos sentidos”. Des confio de que os bichos que surgem durante o processo, a partir dos fragmen tos coletados em campo, sejam uma metáfora da atitude proposta, a “atitude à espreita” típica do animal, mas também do escritor e do filósofo, como lembra Gilles Deleuze (2020). A cartografia e a montagem, como procedimentos de investigação urbana, demandam um corpo capaz de compor com a multiplicidade de seres e tempos que formam a cidade. Um corpo que se perceba entrelaçado a uma paisagem repleta de agenciamentos e não isolado no comando da ação. É o que também nos demanda o momento atual de dominação antropocêntrica.

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o recado eu vou dizer mas antes quero fazer alguns reconhecimentos: reconheço minha posição de mediação disso que veio a ser um ‘concerto de múltiplas vozes’ reconheço a disposição do meu corpo não é pelos olhos que se escuta nem pelos ouvidos talvez pelos pelos, isso que possuímos o mais próximo das ondas ser onda é a única forma de suportar o aprendizado do tempo um do qual não possuímos mais memória

Cada experiência com a cidade é única, mas isso é uma coisa que se aprende e se esquece. A cada vez carregamos fórmulas de experiências bem-sucedidas e espe ramos que funcionem. Foi assim que iniciei no dia 13 de março de 2019, cotidia namente, um deslocamento a pé entre minha casa (no bairro Praia de Iracema, em Fortaleza) e o local da residência Sala vazia (no bairro Centro), com algumas variações no percurso. Foi assim que aguardei com ansiedade, a princípio, e de pois com angústia, que acontecimentos “incríveis” me cruzassem o caminho:

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O CORPO

“13.03.19_ saí pelo caminho usual. Ao fim da tarde minhas pernas me levam na turalmente na direção do poente. Meu estado sempre se altera quando atravesso a rua Antônio Augusto. Hoje, mais ainda. Hoje me sentia prestes a testemunhar algo incrível a qualquer momento. Dosar a ansiedade vai ser um desafio. Fui le var uma primeira imagem pra colar na parede da sala vazia. Hoje foi quarta feira”.

A “mulher sem cabeça”, primeira imagem exposta na sala vazia, reflete a atitu de proposta: deixar que a capacidade receptiva esteja à frente do hábito de fa zer escolhas a priori. O que esteve em jogo durante a realização da ação foi esta atitude diante do campo da pesquisa. A proposição não passou da execução de uma ação: “errar”, imbuída de uma determinada atitude: “estar atenta”. Junto a isto, a aposta na capacidade da “perda de controle e dissolução”. Uma proposição desta natureza aposta na potência da experimentação e se aproxima da noção de cartografia elaborada por Gilles Deleuze e Félix Guattari (1995) investigada por

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Kastrup (2015, p. 18): a cartografia é “um método não para ser aplicado, mas para ser experimentado e assumido como atitude. [...] uma intervenção que se realiza através de um mergulho na experiência”. Vêm de longe as tentativas de driblarmos o domínio da razão sobre a experiên cia. Muitas dessas tentativas se iniciam simultaneamente à própria construção do projeto da modernidade, e talvez subsistam ancoradas na desconfiança de que a mudança necessária em nosso conceito de humano depende delas. Penso que o desejo de “dissolução”, expresso nessa proposta, parta desse lugar, da in tuição de que desmanchar as demarcações criadas pelo modo de operar moder no nos leve a uma versão melhor de nós mesmos. O desejo de dissolução sendo, portanto, desejo de “fazer falar” outros seres que não apenas os humanos. Os bichos e as coisas, por exemplo.

CORPO-ONDA

Página anterior: Figura 1. “mulher sem cabeça”.

Fonte: Arquivo pessoal (2019).

“Estar atento” é uma atitude capaz de gerar outro corpo. Gilles De leuze em seu Abecedário (2020), fala de uma “atenção à espreita” que é típica do animal, mas que é a mesma do escritor e do filósofo. O movimento da ameba é também descrito por Deleuze como uma metáfora do tipo de exploração que o corpo faz em uma cartografia, um movimento regido por sensações, por ações de forças invisíveis. Kastrup (2015) assemelha a atenção do cartógrafo a uma antena para bólica: uma matéria aparentemente desconexa e fragmentada vem ao seu encontro, até que a atenção, numa atitude de ativa receptividade, é tocada. Corpo-à-espreita, corpo-ameba, corpo-antena-parabólica. Há uma performance do corpo, que pode ser exercitada e desenvolvi da. Um “tônus atencional” que deve evitar tanto “o relaxamento pas sivo” quanto a “rigidez controlada”. Esse trabalho com a atenção, afir ma Kastrup, precisa ser desenvolvido como política cognitiva. Nesta política, a matéria não é mero suporte passivo da produção do pesqui sador: “ela não se submete ao domínio, mas expõe veios que devem ser seguidos e oferece resistência à ação humana. Mais que domínio, o conhecimento surge como composição” (Passos et al. 2015. p. 49).

Logo nos primeiros dias do processo percebi a transformação gradual do corpo em algo que denominei “corpo-onda”. A matéria, como afirma Kastrup, oferece resistência. Essa resistência, anotada cotidianamente em um diário de campo, revelava a contingência de uma composição de corpos que, assim como o meu, tinha agência e se relacionava: “15.03.19_ Acordo onda. O som do alarme é nota. Vou pegar os lápis de cor. Não há lápis de cor. Pego a aquarela. No estado onda, obstáculo gera movimento. Eis o conteúdo da minha experiência”.

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3. os objetos do mundo diz o poeta walt whitman fluem perpetuamente. “todos estão escritos para mim e eu preciso entender o que dizem” as coisas carregam palavras mas se não são vistas são mudas como toda matéria parece ser

Construir um corpo sensível para errar na cidade, mostrou-se similar a desconstruir o corpo humano: cortar a cabeça e deixar crescer pelos, mover-se entre obs táculos como uma ameba, um tatuí, uma aranhola. O sensível, nos diz Emanuele Coccia em A vida sensível (2010, p. 10), “é aquilo pelo qual vivemos indiferen temente à nossa diferença específica de animais racionais: paradoxalmente, ele define a nossa vida enquanto ela não tem nada de especificamente humano”. Deste modo, cada animal não seria senão uma forma particular de relação com o sensível, que tem como resultado sua própria forma: “a vida que as próprias imagens esculpiram e tornaram possível”. Para observar a si mesmo, no entan to, faz-se necessário, para todo animal, constituir a própria imagem fora de si, em um espaço exterior:

É no espelho que conseguimos devir sensíveis e é ao espelho (e não exatamente aos nossos corpos) que demandamos nossa imagem; é apenas depois de termos pronunciado alguma palavra que podemos ouvir aquilo que dizemos. Não se trata simplesmente da impossibili dade da percepção imediata de si. Na realidade, é sempre fora de si que algo se torna passível de experiência: algo se torna sensível apenas no corpo intermediário que está entre o objeto e o sujeito. (Coccia, 2010, p. 19)

O mundo das imagens, o lugar do sensível, não coincide, assim, nem com o es paço dos objetos (o mundo físico), nem com o espaço dos sujeitos cognoscentes, ele vive em um “terceiro espaço”, entre objeto e sujeito, que Coccia denomina um “meio”:

O MEIO

Um meio é um ser que tem em si mesmo um suplemento de espaço diferente daquele pro duzido por sua natureza e por sua matéria. Esse lugar é a recepção mesma. Um meio é um receptor. A existência do sensível é possível apenas graças a essa potência suplementar que alguns entes têm, potência que não se baseia na natureza das coisas, nem na essência de suas matérias nem nas suas formas. Não é da essência da madeira receber inscrições e fi guras. Não é da essência da celulose receber e acolher os traços que a caneta inscreve. A potência do meio é a recepção. (Coccia, 2010, p. 30)

Assim, afirma Coccia (2010, p. 38), do ponto de vista da imagem, o espelho ou o fundo do olho seriam a mesma coisa: “não passam de superfícies capazes de acolher a imagem, de não lhe opor resistência”. Mas além de receber o sensível, o meio é capaz de transmiti-lo. É graças a ele que o sujeito pode “ver, perceber e, dessa maneira, interagir com o objeto”. O meio estaria, assim, aquém de toda a dialética entre sujeito e objeto.

Penso na atitude do corpo que cartografa na atitude de “receber” o mundo. Pen so em uma das muitas definições do método da cartografia: a intervenção que “se realiza por um mergulho na experiência que agencia sujeito e objeto, teoria e prática, num mesmo plano de produção ou de co-emergência”. (Passos, Kas trup, Escócia. 2015. p. 18). Seria esse “plano” um “meio”? Seria também similar ao funcionamento de um meio a atitude do corpo-cartógrafo? Nem humano, nem animal. Nem sujeito, nem objeto. Nem coisa, nem alma. Apenas potência imaterial de receber e transmitir?

A MEIO

Os fragmentos se acumulavam na sala vazia. Uma foto dos meus avós, a imagem de dois sapos e fotos do trajeto que conduziu a eles, fragmentos de textos sobre o tempo, trechos de filmes, recibos de compras, artigos de revistas. Até que uma ordenação surgisse, experimentei a dúvida e a falta de sentido como norma. À medida que mais imagens se juntavam ao conjunto, eu ansiava por uma peça que trouxesse sentido à narrativa. Por mais que tenha, eventualmente, encon trado tais peças, a narrativa não se fechava em um único sentido, e a forma de transmiti-la parecia um desafio tão complexo quanto a experiência da monta gem dos fragmentos. Eventualmente precisei me dedicar a uma síntese, e o que fiz foi agrupar pequenos conjuntos de imagens em subconjuntos e ordená-los a partir de sua aparição. Como as aparições se davam em intervalos de tempo, de senhei setas que cruzavam o espaço da sala em direções diversas, causando ainda mais a sensação de confusão e falta de sentido.

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Finalizada a tentativa de síntese, mais peças continuavam a chegar, o processo parecia não ter fim. Em algum momento percebi, ainda durante a montagem, que as pessoas que entravam na sala faziam conexões muito particulares com as imagens, como se estivessem vivendo uma experiência similar à minha. Foi quando entendi que a montagem da sala não era um processo para realizar algo, mas um fim em si, ou melhor, um “não fim”. E decidi usar a sala como espaço expositivo.

A força do fragmento, diz Paola Jacques (2001, p. 44), está precisamente em suas potencialidades anárquicas que provocam tensões:

Podemos então considerar a confusão como provisória e a ordem fragmentária como or dem em construção, em transição, intermediária, em transformação contínua. O Frag mento é força daquilo cuja natureza não conhecemos, daquilo que não oferece qualquer garantia de atualização. O Fragmento semeia a dúvida. (JACQUES, 2001, p. 44)

É preciso um “corpo-onda” para suportar a dúvida, o mutável e a ausência de um sentido ou lógica unitários. Mas é também preciso um corpo-onda para usufruir do prazer do inacabado e da surpresa. Também da novidade que é testemunhar uma narrativa se construir de forma singular.

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Figuras 2 e 3. “sala de montagem”. Fonte: Arquivo pessoal (2019).

Walter Benjamin usou o processo de montagem para narrar, a partir de frag mentos, a história de uma cidade, no caso, Paris. Mas, ao “citar sem aspas”, talvez tenha entendido que são os pró prios fragmentos que narram, a par tir de sua justaposição na montagem. A montagem como “meio” (Coccia, 2010), o autor como “meio”, recep tor e transmissor do universo sensível que se engendra: “Tão densa é a montagem que o autor, esmaga do por ela, mal consegue tomar a palavra”. (BENJAMIN apud JAC QUES, 2001, p. 44). A afirmação de Benjamin se assemelha à de Coccia (2010), para quem “o su jeito não desempenha nenhum papel na gênese do sensível”. O verdadeiro centro da percepção é a imagem. “Assim, toda forma de conhecimento sensível é uma aceitação de uma imagem per ceptiva que já se produziu fora de nós. Não há uma ação específica do sujeito no ato da percepção: perceber não significa produzir a imagem de algo, mas recebê -la”. (Coccia, 2010, p. 34). Desta forma, seria preciso observarmos a gênese da percepção “do ponto de vista da imagem” e não a partir do sujeito que a percebe.

Ora, se é verdade que as coisas se tornam propriamente percebidas fora dos objetos, elas não aguardam, porém, um sujeito para constituir-se como perceptos, como imagens. E vi ce-versa, é a existência do sensível que torna possível a sensação, e não o contrário: é porque o visível existe que a visão é possível, e é porque a música existe que a audição é possível. [...] Não somos nós e nem mesmo nossos órgãos que transformam o mundo em algo passível de se fazer experiência. Não é o olho que abre o mundo: a luz existe antes do olho e não no seu fundo, o sensível existe antes e indiferentemente da existência de todo órgão perceptivo. (COCCIA, 2010, p. 36).

O sensível (a existência fenomênica do mundo), afirma Coccia, “é a vida sobre natural das coisas, a vida das coisas além da sua natureza, para além da sua exis tência física”. E é o meio que permite às formas prolongarem sua vida para além de sua natureza e de sua existência material e corpórea. O “esmagamento” do autor, de que fala Benjamin, não é senão o entendimento de que as imagens se formam em outro lugar que não a psique do sujeito, estão aquém deste (e além dos objetos), mas é uma “arte” tornar-se esse lugar.

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4.

“a desatenção é a primeira etapa da violência” disse o joão moreira salles citando simone weil em texto publicado na revista piauí em dezembro de 2018 ano da destruição do museu nacional do brasil.

“nós que vemos o outro nas garras da aflição, nós somos obrigados, primeiro e acima de tudo, a prestar atenção” disse a simone weil

Mesmo com a intenção de não dirigir o processo, fazemos escolhas e toma mos direções. Por isso a importância de acolher todo fragmento aparente mente sem valor. Foi assim que por sorte, mais que por cuidado, guardei o pedaço de papel onde anotei o telefone de um senhor que me acompanhou à noite sob a chuva em meu primeiro dia de errâncias (o dia 13 de março). Seu Gildo se aproximou de mim, em um trecho escuro da Av. Dom Manoel, le vando sua bicicleta pela mão. Apressei o passo e ele apressou também, con seguiu ficar ao meu lado e fazer uma pergunta. Andamos juntos por volta de dois quarteirões, o suficiente para me dizer que era pedreiro e que era de Assaré, a terra do Patativa. Pediu que anotasse seu telefone e que o procuras se um dia em Assaré. Depois que entrou na pousada onde estava hospedado desconfiei de que sua intenção era a de me acompanhar no trecho escuro da avenida.

Foi também assim que, por dias, desconsiderei o primeiro bicho da pequena série de bichos que apareceram durante o processo. No dia da apresentação pública da proposta, dia 11 de março (an tes do início das errâncias), uma amiga encontra um jornal antigo no porta-malas de seu carro, cola-o na parede ao lado do prédio da residência e ao final da apresentação me comunica: “abri um portal pra você”. Vi os jornais colados na parede e não dei im portância. No dia 14 de março, encontro um pequeno elefante de plástico no local da residência que me faz voltar atrás e receber o fragmento oferecido por minha amiga. Abre-se o portal.

Figura 4. “o elefante”. Fonte: Arquivo pessoal (2019).

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O TEMPO
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Esse pequeno incidente com o tempo é suficiente para me colocar em um estado de alerta a coincidências que havia previamente ignorado. Uma delas sendo a atenção despropositada que vinha dando a lavanderias de roupas nos percursos cotidianos. Não fosse por isso (pelos pequenos lampejos de coisas sem sentido), não teria me chamado a atenção uma revista Piauí tendo na capa a frase “Aula de lavanderia” durante um almoço na casa de minha mãe. A matéria que vem de encontro ao fluxo já aberto no processo, no entanto, não é essa. Mas a “isca” veio a partir desse encontro. A matéria da revista que me faz confirmar a direção do processo e também me ajuda a enunciá-lo, é o texto de João Moreira Salles: “El Salvador: a respeito da força e da fragilidade”. Nele, Salles narra o telefonema de um amigo no dia seguinte ao incêndio do Museu Nacional do Brasil, em se tembro de 2018. A partir da fotografia de um conjunto de besouros Coleópteros feita pelo amigo em sua última visita ao museu, o autor discorre sobre a respon sabilidade que temos perante o frágil e, citando Simone Weil, afirma repetidas vezes: “A desatenção é a primeira etapa da violência” (Salles, 2018).

A imagem dos besouros coleópteros produziu um efeito de euforia no meu corpo. Uma primeira ordenação do conjunto do trabalho se mostrou possível. Não apenas pela associação com o aparecimento de bichos (até aquele momento um elefante, uma tartaruga, dois sapos e uma aranhola), mas devido à coincidência de minutos antes, ao ter que voltar à minha casa por ter esquecido o computa dor, escutar no rádio do carro uma entrevista com uma bióloga falando da pos

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sível extinção das baratinhas de praia (os tatuís) no litoral cearense. Neste inter valo (entre o encontro com a revista e a entrevista escutada no rádio), o sentido do aparecimento dos bichos parecia se revelar: a vulnerabilidade de existir no território onde predomina a espécie humana; a cidade.

Página anterior: Figura 5. “os besouros coleópteros”.

Fonte: Revista Piauí no 147.

Figura 6. “novamente o elefante”.

Fonte: Arquivo pessoal (2019).

A questão da lógica fragmentária, como afirma Paola Jacques (2015, p.52), é também temporal, “diz respeito a uma or dem incompleta e mutável”. Neste fluxo, múltiplo e aberto, o futuro não está determinado, outras associações podem ser feitas, “em particular a partir do intervalo (do vazio que os separa) entre eles”.

NOVAMENTE, O ELEFANTE

Recebo outra mensagem da amiga que me ofereceu a imagem do elefante. Na mensagem ela sugere a leitura de um livro do escritor português José Saramago.

Àquela altura do processo não dispunha de tempo para leitura, mas encontro no Youtube um vídeo em que Saramago comenta a razão da escrita do livro. Aqui um trecho do comentário transcrito:

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O elefante morreu um ano depois de ter chegado em Viena. Esfolaram-no e cortaram-lhe as patas dianteiras para usá-las como recipientes (para colocar ali os guarda-chuvas, as bengalas, os bastões, as sombrinhas...). Se não tivesse acontecido isto, que é histórico, eu não direi que não teria escrito o livro, mas talvez não escrevesse. Porque aquele corte das patas, aquelas patas, que tinham andado milhares de quilômetros (da índia) até chegar a Viena, no fundo eram uma metáfora da inutilidade da vida: não conseguimos fazer dela mais do que o pouco que ela é. Quer dizer, que triste fim, não é? Que triste fim. Por isso, este elefante deve a sua existência literária a essa circunstância. (SARAMAGO, 2019)

É assim que, através de uma sugestão de leitura, retorno ao fragmento “elefante” para reiterar a mensagem trazida nas pistas anteriores. Se seres tão diminutos quanto besouros e tatuís demandam nossa responsabilidade sobre o frágil, seres tão grandes quanto elefantes podem ser fragilizados pela ação humana. Os frag mentos expunham, por operações múltiplas no espaço e no tempo, os parado xos que definem nossas relações com os bichos: a animalidade do humano nas relações com os animais.

“O que vem a ser o tempo quando passa a ser pensado como multiplicidade pura?” Indaga Peter Pál Pelbart (2019) em texto publicado em uma revista que também chega a minhas mãos como fragmento. Os pontos da cartografia se co nectavam como na imagem do rizoma de Deleuze e Guattari (1995). O tempo como uma rede de fluxos intercruzados: “entra-se por qualquer lado, cada ponto se conecta com qualquer outro, ele é feito de direções móveis, sem início ou fim, tendo apenas um meio, por onde ele cresce e transborda” (PELBART, 2019). O tempo como o conceito de Exu, que “atirou uma pedra hoje e matou um pássaro ontem”.

O RECADO DOS BICHOS

6.

a palavra que os besouros coleópteros carregam é a fragilidade o joão moreira sales leu a palavra dos besouros mudos os besouros não são mudos eles fizeram o joão escrever um texto de seis grandes páginas na revista piauí no ano em que o museu nacional do brasil foi destruído

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“quanto a mim diria mesmo que o objeto da responsabilidade é o frágil, o perecível que nos solicita, porque o frágil está, de algum modo, confiado à nossa guarda, entregue ao nosso cuidado” tudo nasce do ato de prestar atenção eis o recado dos besouros.

Em Metafísicas Canibais (2018), Eduardo Viveiros de Castro analisa como a concepção do ser para os ameríndios diverge em um ponto muito específico da concepção do ser para o ocidente moderno. Enquanto no regime ontológico oci dental apenas o sujeito cognoscente é dotado de agência sobre a realidade, para os povos do “Novo mundo” esta é composta por uma multiplicidade de pon tos de vista. Todos os existentes seriam centros potenciais de intencionalidade. Os povos ameríndios imaginam um universo povoado por diferentes tipos de agentes, tanto humanos como não-humanos: deuses, animais, plantas, fenôme nos meteorológicos, objetos ou artefatos. Todos, seres providos de alma.

Neste universo heterogêneo de seres sensíveis, apenas alguns indivíduos têm a capacidade de cruzar as barreiras entre as outras espécies para administrar as relações entre estas e os humanos. São os xamãs, “interlocutores ativos no diá logo transespecífico”. (2018, p. 49). Para Viveiros de Castro, essa interlocução demanda um modo de conhecer inverso ao da nossa epistemologia objetivista. Enquanto para esta, “conhecer é objetivar” – ou seja, deixar claro o que é intrín seco ao objeto e o que pertence ao sujeito do conhecimento – para o xamanis mo ameríndio “conhecer é personificar”, ou seja, fazer um deslocamento para o ponto de vista daquilo (ou daquele) que se deseja conhecer:

[...] diríamos que estamos aqui diante de um ideal epistemológico que, longe de buscar redu zir a “intencionalida de ambiente” a zero a fim de atingir uma representação absolutamen te objetiva do mundo, faz a aposta inversa: o conhecimento verdadeiro visa a revelação de um máximo de intencionalidade, por via de um processo de “abdução de agência” sistemá tico e deliberado. (VIVEIROS DE CASTRO, 2018, p. 51)

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O sujeito do conhecimento, no caso o xamã, aparta-se de sua agência, para dar lugar à escuta das intenções dos demais agentes. Novamente citando Benjamin, qualquer possibilidade de intenção é “esmagada”.

Os personagens que povoam o mito indígena, diz Viveiros de Castro, possuem aspectos humanos e não-humanos inextricavelmente emaranhados. “O mito fala de um estado do ser onde os corpos e os nomes, as almas e as ações, o eu e o outro se interpenetram, mergulhados em um mesmo meio pré-subjetivo e pré -objetivo”. A finalidade da mitologia é justamente a de contar o fim desse estado de ser. Ou seja, de descrever a passagem da Natureza à Cultura. Esta passagem, não seria um processo de diferenciação do humano a partir do animal, como na crença evolucionista ocidental; pois a condição original comum aos humanos e animais, para os indígenas, não é a animalidade, mas a humanidade. Os mitos contam como os animais perderam atributos que os humanos ainda mantêm. Assim, se nossa antropologia vê a humanidade como erguida sobre um funda mento animal oculto pela cultura – tendo outrora sido completamente animais – o pensamento indígena conclui ao contrário que, tendo sido outrora huma nos, os animais e outros seres cósmicos continuam a sê-lo, mesmo que de uma maneira não evidente para nós. (2018, p. 60).

A revelação dessa natureza oculta dos seres, afirma Irving Goldman, tem uma associação íntima com a violência:

[...] em ambas as tradições intelectuais: a animalidade dos humanos, para nós, e a humani dade do animal, para os ameríndios, raramente se atualizam sem acarretar consequências destrutivas. Os Cubeo do Noroeste amazônico dizem que a ferocidade do jaguar é de ori gem humana. (GOLDMAN apud VIVEIROS DE CASTRO, 2018, p. 60)

Em L’Animal que donc je suis, nos lembra a escritora Maria Esther Maciel (2020), o escritor Jacques Derrida faz uma crítica implacável das falsas oposições que separam a espécie humana das demais espécies. Oposições que “serviram não apenas para o estabelecimento de uma radical cisão en tre homem e animal, humanidade e animalidade, como também para a legitimação das práticas humanas de violência contra os demais viventes”. Também Michel de Montaigne, continua Maciel (2020), admitiu formas alternativas de racionalidade e questionou a hierarquia entre os humanos e outros animais. Montagne, assim como Derrida, associou a crueldade dos homens contra os animais aos atos de crueldade dos homens contra os próprios homens.

O curioso, no conjunto de animais que surge durante a experiência que relato neste texto, é constatar – após o aparecimento de elefantes, tartaru gas, aranholas, tatuís, escorpiões e besouros – que a imagem da patativa é

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trazida por um poeta. Essa, uma outra vereda do rizoma: a poesia como a lingua gem mais apta a servir de meio às imagens. Patativa do Assaré é um poeta que canta a fragilidade do humano – no caso o homem do sertão cearense – e clama a responsabilidade para com ele. Finalizo essa reflexão com um trecho do poema Seu dotô me conhece? fragmento que integrou a instalação sonora na exposição do trabalho. A patativa, ainda a tempo, quis deixar seu recado, a nós, seres da academia:

Seu dotô, só me parece Que o sinhô não me conhece Nunca sôbe quem sou eu Nunca viu minha paioça, Minha muié, minha roça, E os fio que Deus me deu. Se não sabe, escute agora, Que eu vô contá minha história, Tenha a bondade de ouvi: Eu sou da crasse matuta, Da crasse que não desfruta

Das riqueza do Brasil.

REFERÊNCIAS

CANTINHO, Maria João. “Conversa com Maria Esther Maciel: animalidade e literatura”. Revista Caliban. Acessa do em setembro de 2020, em https:// revistacaliban.net

COCCIA, Emanuele. A vida sensível. Florianópolis: Editora Cultura e Barbá rie, 2010.

DELEUZE, Gilles. O abecedário de Gilles Deleuze. Acessado em setem

bro de 2020, em http://escolano made.org/wp-content/downloads/ deleuze-o-abecedario.pdf

DELEUZE, Gilles; & GUATTARI, Fe lix. Mil Platôs: Vol. 1. Rio de Janeiro, RJ: Ed. 34 Letras, 1995.

JACQUES, Paola. Montagem urbana: uma forma de conhecimento das cidades e do urbanismo. In: JACQUES, Paola; BRITO, Fabiana;

DRUMMOND, Washington (org.). Experiências metodológicas para a compreensão da cidade contemporânea. Salvador; Edufba, 2015.

PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virgí nia; ESCÓCIA, Liliana (orgs). Pistas do método da cartografia: Pesquisa -intervenção e produção de subjetivi dade. Porto Alegre: Sulina, 2015.

PELBART, Peter Paul. O tempo não reconciliado. Acessado em março de 2019 em https://territoriosdefiloso fia.wordpress.com/2015/04/28/o -tempo-nao-reconciliado-peter-pal -pelbart/

SALES, João Moreira. El Salvador: A respeito da força e da fragilidade. Revista Piauí 147, 2018.

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Metafísicas canibais: elementos para uma metafísica pós-estrutural. São Paulo: Ubu Editora, n-1 edições, 2018.

PARA CITAR: D’ALVA, C. A cidade, o pensamento animal e a poesia: um modo de narrar. Redobra, n. 16, ano 7, p. 203-220, 2022.

MUDAR DE MUNDO

SILVANA OLIVIERI

Doutoranda do PPG-AU/UFBA e membro do Laboratório Urbano (PPG-AU/UFBA)

Importa que histórias fazem mundos e que mundos fazem histórias.

Donna Haraway

Página anterior: Montagem 1. Estátua de Diana, divindade da caça e protetora dos animais. Tiergarten , Berlim, fim do séc. XIX.

+ “A Lontra”, Walter Benjamin.

Fonte: Photographische Gesellschaft + BENJAMIM, W. A Lontra. In. Rua de Mão Única . Brasiliense, 5a ed. 1995.

“Já não se trata mais de mudar o mundo, mas de mudar de mun do”. O antropólogo Arturo Escobar (2018) é mais um a aler tar - desde a famosa carta atribuída ao chefe Seattle, dos povos Duamish e Squamish, respondendo ao presidente dos Estados Unidos sobre a compra de suas terras, publicada pela primei ra vez no fim do século XIX1 - da necessidade de abandono da concepção de mundo hegemônica da modernidade ocidental, sustentada pela separação entre cultura e natureza (humanidade e não-humanidade) e pelo excepcionalismo humano, pres supostos que não só não nos ajudam a lidar com a crise ecoló gica e climática, como estão na origem dessa crise, gravíssima. Um mundo que, ao se tomar como “único”, nunca soube com por com outros, operando como uma “máquina de destruição” de mundos e ontologias, sempre em nome do “moderno”, do “progresso”, do “desenvolvimento”, da “civilização”2. “Mudar de mundo” como propõe Escobar é passar a habitar um mundo múlti plo, relacional e “mais-que-humano”, constituído por uma multiplicidade de mundos heterogêneos e divergentes (incluindo o mundo moderno), humanos e não-humanos, parcialmente conectados, que negociam seus “desacordos on tológicos” politicamente, explica Marisol de la Cadena (2013)3. Esse “mundo onde cabem muitos mundos” reivindicado pelos zapatistas é aquele dos povos e coletivos que a antropologia convencionou denominar de “animistas”4. Gente que conseguiu resistir à máquina destruidora, preservando habilidades, práticas e saberes que, associados a ignorância, atraso, crença ou superstição, fomos en sinados a reprimir, a desprezar e a esquecer, cuja recuperação ou - como prefere Isabelle Stengers (2012) - “reativação” se mostra agora imprescindível à nossa sobrevivência num planeta “danificado”5.

Nem toda mudança de mundo é um processo consciente, ou que acontece sob nosso controle ou vontade, podendo ser deflagrado por agências outras, não só humanas, através de situações não apenas inesperadas como inimagináveis. Em 2008, época em que não havia ainda despertado para a relevância dessas ques tões, aproveitei que passava alguns dias em Lisboa para ir ao Oceanário. Ape sar de abominar instituições que causam sofrimento em outras espécies para “diversão” humana, falou ainda mais alto o desejo de conhecer pessoalmente o animal que fascinava Walter Benjamin em seus passeios no jardim zoológico de Berlim, o Tiergarten, durante a infância, na virada do século XX, rememora dos num conto lido pouco antes da viagem. Pois o protagonista de “A lontra” não era um mero animal, nem um animal enjaulado. Benjamin o descrevera de forma mágica, como um ser misterioso, parente da chuva, o “animal sagrado das águas de chuva”, que fazia das grutas vazias e úmidas “mais de templo de que

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abrigo”. Um sujeito muito ocupado, que vivia mergulhando na “profundeza es cura e insondável” do tanque, para “tratar de alguns assuntos urgentes”.

O casal de lontras marinhas “Eusébio” e “Amália” era a principal atração do Oceanário, mega aquário construído para a Expo’98, remetendo a um porta -avião. Famosas e adoradas, chegaram ali em 1997, raptadas adultas nos mares do Alasca, seu habitat natural, e na época já tinham idade bastante avançada, perto dos vinte anos, longevidade máxima da espécie6. Enquanto a morada da lontra no Tiergarten era um lugar calmo e silencioso, localizado numa área de pouca visitação, nos confins do zoológico, um imenso parque urbano, o recinto das lontras no Oceanário era um ambiente totalmente artificial, agitado e ba rulhento, visitado anualmente por mais de um milhão de visitantes. Decepcio nada, quase arrependida, minha paciência se esgotou rápido. Quando uma das lontras demora a voltar do mergulho, desisto e vou embora. Antes de chegar à saída, outra decepção, ao me deparar com um vidro devassan do o fundo do tanque. Entretanto, mesmo bem iluminado, apenas se podia ver a lontra que boiava na superfície da água deleitando o público com suas “brinca deiras”. Procurei por alguns instantes a que estava submersa, não conseguindo visualizá-la. Dei mais alguns passos até que, sentindo um chamado, parei e me virei para trás, no sentido do contrafluxo. Só então a avistei, no alto de uma tira de vidro que preenchia o estreito vão entre duas paredes. Escondida num ponto cego da arquitetura panóptica do tanque, onde não só escapava da vigilância dos humanos como, sem que desconfiássemos, ela nos espiava. Como a lontra do conto, conseguia fazer da morada cativa um templo, o “refúgio” possível, segre do que quis compartilhar comigo. Para não chamar atenção, agradeci a cumplici dade balançando discretamente a cabeça, sorrindo.

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Contaria essa história por diversas vezes, exaltando sobretudo a astúcia da lon tra que, arrancada do seu território, soube recriá-lo nas frestas do território do inimigo. Mas sempre suspeitando de que havia algo mais naquele encontro, algo que escapava à minha capacidade de compreensão, que excedia às possibilida des do que pensava ser o mundo - e, por consequência, a cidade. Foi somente uma década mais tarde, quando já fazia parte da comunidade de candomblé de Salvador e - muito devido a isso - escrevia o projeto de doutorado, propondo justamente uma “virada ontológica” no campo dos estudos urbanos, que viria a compreender mais profundamente o que acontecera no Oceanário de Lisboa. Teria sido um tipo de experiência que David Abram (2013) define como “ma gia”, em seu sentido mais fundamental: a percepção de existir em um mundo povoado e “animado” por múltiplas subjetividades, agências, inteligências,

***

formas de vida ontologicamente heterogêneas com as quais podemos nos co municar, nos relacionar, nos aliançar. Expertise de xamãs, feiticeiros, curadores, curandeiros, pais e mães-de-santo, que recebem mensagens de animais, plantas, pedras, das montanhas e nuvens, do vento e da trovoada, dos espíritos, de ruí dos, em suma, de tudo que vive ou se manifesta no ambiente no qual estão imer sos - mesmo se tratando de um ambiente urbano, em uma grande cidade. Ogan de um dos terreiros mais antigos de Salvador, o Bogum, no bairro do Engenho Velho da Federação, o escritor Everaldo Duarte lembra as capacidades sensoriais extraordinárias de três mães-de-santo da casa, já falecidas:

Emiliana conversava com a natureza. Olhava o futuro através de um copo com água e constatava os indícios vistos ali, caminhando pelo quintal, contando as pedrinhas no chão com sua bengala, de cabeça baixa e resmungando preces e louvações aos voduns. Todos os dias, antes de qualquer tarefa ao amanhecer, ela percorria o mesmo caminho e verificava as mudanças ocorridas no chão batido. Através das mudanças observadas, ela planejava as atividades para o resto do dia. (...) Emiliana dizia que “os búzios respondem às perguntas que a gente imagina, mas a natureza mostra aquilo que nem imaginamos”. E não errava uma previsão.

Runhó era diferente. Ela olhava os mistérios da previsão através das sombras da folhagem das cajazeiras no chão e na forma de nuvens no céu. Runhó não tinha búzios. Jogava com castanhas de caju, com caroços de feijão, com tampinhas de garrafas, com botões de paletó, com qualquer coisa que estivesse ao alcance das mãos nos momentos de necessidade. En tretanto, seu forte mesmo era a pesquisa ou a interpretação das figuras que se projetavam no chão, das folhas da cajazeira em frente ao barracão, nos dias de sol. Não só da cajazeira, por estar sempre ali perto dela, mas de qualquer outra árvore sob a qual ela pudesse se sen tar. Era bonito vê-la quieta, pensativa, observando as sombras se deslocarem e assumirem formatos diferentes lhe dando subsídios para as suas previsões. Quando se fazia um céu carregado de nuvens, o ritual era o mesmo; ela passava horas olhando o céu, buscando fi guras e movimentos que lhe indicariam respostas para suas questões. Do mesmo modo que Emiliana, Runhó jamais errava uma previsão. (...)

Com Nicinha, já não se pode dizer que havia instrumentos que lhe auxiliassem nas previ sões. Ela, só em ouvir a pessoa, já determinava o diagnóstico. (...) Era tão sensível às irradia ções do outro que, de longe, ao ver a pessoa (às vezes pelo buraco da fechadura da porta da frente), ela mandava dizer que não estava. Nicinha fazia previsões com base nas respostas emitidas pelos sons da natureza. O canto de um pássaro, o espocar de um foguete ou um apito fora dos padrões e do momento, fosse de gente ou de animal ou mesmo daquilo que ela só podia ouvir. (...) Nicinha podia ver o que ou quem estivesse às suas costas. Na verdade, Nicinha era cercada de tantos mistérios que a faziam diferente, superior, igual e humilde que nenhum de nós pôde até hoje definir (DUARTE, 2018, p.82-3).

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O candomblé se apresentou a mim como essa arte da “atenção imanente” e da “criação de conexões” (Stengers, 2012). Na primeira vez que fui ao Ilê Axé Omin Da, apenas para entregar uma mala, a pedido de uma amiga, um portão de ferro enganchou minha bolsa e levei um puxão. A mãe-de-santo, Mãe Edenis, pronta mente entendeu a mensagem e previu: “Ih minha filha, pelo jeito você vai vol tar”. Assim como nos muitos mundos indígenas, no candomblé tudo que existe é vivo, tudo é sujeito, tudo pensa e age, podendo interagir conosco de diversas maneiras, querer nos dizer coisas. Entretanto, nem todos são capazes ou estão “autorizados” a perceber, só percebendo a pessoa certa, no momento certo. Ten do pesquisado em alguns terreiros de Salvador, o antropólogo Roger Sansi rela tou um caso ocorrido com uma mãe-de-santo. Ao passar perto dos escombros da casa da irmã, que havia desabado, escutou o pedido de socorro de uma pedra:

Depois de uma forte chuva, a casa de sua irmã desabou. Passando do lado, ela escutou uma voz fraca vindo das ruínas. Ninguém mais tinha ouvido. Ela parou e começou a olhar de baixo das ruínas enquanto a voz ficava mais clara e alta, pedindo que ela a tirasse dali de dentro. Finalmente, encontrou uma pedra estranha, com a forma de uma caveira de bode. Ela a levou para casa [de candomblé] e colocou a pedra na posição do assento do Exu, atrás da porta de ingresso do barracão (SANSI, 2013, p.109).

Mas nem toda pedra fala conosco. Embora tudo seja vivo, nem tudo é vivo do mesmo modo, ou na mesma intensidade. Vida é uma força “mágico-sagrada”, sem a qual qualquer “existência estaria paralisada, desprovida de toda possibili dade de realização”, explica Juana Elbein dos Santos (1977). Essa força tem vários nomes; na cosmologia iorubana, matriz do candomblé jêje-nagô, é denominada “axé”. Como toda força, o axé pode diminuir ou aumentar, fazendo com que tudo exista “mais” ou “menos”7 – quanto mais forte, mais vivo, maior o poder mágico imanente do ser ou da coisa8. Uma pedra de muita força, “a pedra encan tada de Reykjavik”, teve sua história contada pelo artista Hreinn Fridfinnsson:

No ano de 1934, um homem chamado Thorbjorn comprou um terreno em Ármúli, a uma longa distância de Reykjavik. Como o terreno era muito pedregoso, Thorbjorn chamou quatro ou cinco homens da cidade para limpá-lo. As pedras seriam levadas para o porto, onde poderiam ser usadas nas obras de ampliação do porto. Uma das pedras ficava na parte sul do lote. Era bastante grande, muito pesada, e embaixo tinha uma fonte. Os operários fizeram um buraco na pedra, para no dia seguinte colocarem dinamite e explodi-la. Nessa noite, Thorbjorn sonhou com um homem que o visitava, bastante aflito, perguntando por que não deixava sua casa em paz. Thorbjorn perguntou onde era a casa, e ele respondeu que era a pedra. Disse ainda que se a pedra for perturbada, haveria graves consequências. Thorbjorn decidiu deixar a pedra ali e realizou o plano de construir uma granja. Em 1940, um grupo de padeiros comprou a granja com o terreno, de Thorbjorn. Eles contrataram um homem chamado Tönsberg como gerente. Ele soube a história da pedra, mas decidiu mesmo

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assim limpar o terreno (...). O trabalho começou em 20 de maio de 1942, com dois buracos sendo feitos na pedra. Seria explodida em alguns dias. Contudo, uma repentina mudança ocorreu na produção de ovos na granja. (...) Tönsberg trouxe um veterinário para examinar as galinhas e enviou uma amostra da forragem para o laboratório da Universidade. Nos dias seguintes, não se encontrou nenhum ovo. Tönsberg então se lembrou da história da pedra de Thorbjorn e começou a considerá-la, levando duas semanas ainda até tomar uma decisão e, durante esse período, continuou sem encontrar nenhum ovo. Finalmente, cinco ovos foram encontrados. Desse dia em diante, a quantidade de ovos foi aumentando até voltar ao normal novamente. Desde a época desses acontecimentos, a cidade de Reykjavik cresceu tanto que a pedra está agora quase no centro da cidade, onde permanece impertur bável até hoje 9

Também as árvores mais fortes, consideradas “mágicas” ou “sagradas”, não de vem ser cortadas, pois a agressão será revidada. Essas árvores costumam ser protegidas por seres espirituais ou encantados, que nelas fazem morada. Quando esteve na Escócia, Starhawk (2018) leu no jornal sobre um conflito entre auto ridades que queriam abrir uma estrada, e os moradores afetados que não aceita vam, porque no caminho havia uma “árvore de fadas”, uma árvore onde as fadas viviam. “Ninguém queria tocá-la nem estava disposto a cort á-la, pois tinham medo do que as fadas lhes fariam”. Árvore sagrada do candomblé, considerada a divindade Iroko, a velha gameleira que restou do terreiro Língua de Vaca, em Salvador, no bairro do Garcia (demolido para a construção do Departamento de Polícia Técnica, nos anos 1970), era cuidada por Ebomi Cidália e por um “Exuzi nho”, que morava no “pé de Iroko”. Quem conta é ebomi Cici:

A história que eu conheço, uma das que tia Cidália me contava, é que um dia ela foi botar oferendas para ele [Iroko] e viu um espírito que habitava a árvore. Era um Exuzinho, muito jovem. E ela ficou assustada, porque quando ela chegou, ele se escondeu atrás da árvore. Era estranho uma criança brincando ali; ela chegava, ele se escondia”. Ela nos dizia que ele tinha olhinho azul e o cabelo louro todo enroladinho. A meu ver ele deveria ser… sabe o que é um menino sarará? Ela procurou saber quem era ele. Depois, quando fizeram o jogo [de búzios], disseram que era um exu que também guardava o pé do iroko10

O que vale para pedras, árvores, animais, humanos e até artefatos, vale também para os lugares. Há lugares mais fortes e vivos, portanto mais encantados – e consequentemente mais perigosos - que outros. Geralmente, os lugares mais isolados e intocados, onde há pouca ou nenhuma perturbação humana, ditos da “natureza”, costumam concentrar mais força e encantamento, como cachoeiras, rios, lagoas, matas, praias, grutas, dunas. Também são fortes alguns lugares edi ficados pelos humanos, como encruzilhadas, mercados, feiras, cemitérios, casas abandonadas11. Pesquisadora da Encantaria Maranhense, Mundicarmo Ferretti (2004) descreve os chamados “lugares de encante” como sendo de “muita ener

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gia, de muito poder, de uma força inexplicável”, e também “de muito mistério, de muita ‘mironga’, de muito segredo”12. Para se passar nesses lugares, é reco mendável fazer “saudações ou at é mesmo pedido de licença”, alguns requeren do “complicados rituais”, explica Duarte (2000). A depender do hor ário, do estado físico em que o indivíduo se encontre, “de onde veio ou para onde vai”, pode haver até interdição de passar, para evitar que algo de ruim aconteça.

É o caso do “Bitedô”, na cidade de Cachoeira. Ali existiu um antigo terreiro de candomblé, fundado por africanos por volta de 1800, ou mesmo antes, expulso quando suas terras foram cortadas pela linha da Imperial Estrada de Ferro Cen tral, o que incluiu a construção de um viaduto ferroviário, ainda no fim do sé culo XIX. Desde então, o local passou a ser utilizado pelos terreiros para fazer “trabalhos pesados” e despachar seus carregos fúnebres, possuindo “muita coisa debaixo da terra’’, ‘’muita coisa enterrada’’. O Bitedô é habitado por espíritos de pessoas já falecidas, “eguns” de muita força, e outros seres poderosos, como revelou o ogan Teodoro de Jesus:

Só ia deixar o carrego quem tinha coragem, porque a maioria tinha medo de entrar no Bi tedô à noite. O ogan da casa do meu pai, Justo, que fazia esse serviço, chamava-se Lourival Ferreira, “Bicho Mato” (...). Ele gostava de sair comigo porque eu não tinha medo e os ou tros ogans tinham. Lembro que, no Bitedô, era sempre em um pé de cajá onde ele arriava as coisas. Ele trocava língua [falava em língua africana] com a árvore e parecia que a árvore tombava para a frente; parecia que a árvore ia nos engolir com sua copa; ela arriava em cima da gente e quem tinha medo corria. Meu irmão nem chegava perto, ele podia ir de dia no Bitedô, mas à noite não. Certa vez, voltei de dia no Bitedô só para ver se o pé de cajá tinha caído mesmo (CARVALHO, 2006, p.45).

O terreiro do Bitedô se transferiu para um terreno próximo à Lagoa Encanta da, outro lugar “sagrado” de Cachoeira, com muito encantamento. Não era toda hora que se podia tomar banho nessa lagoa, porque a pessoa corria o risco de desaparecer. Dizia-se também que quem mergulhava e desaparecia, ou os pre sentes e oferendas depositadas nela, e até um carro de boi, apareciam no Dique do Tororó, em Salvador. Uma lagoa tão poderosa que teria até a capacidade “de se locomover, ora está em um lugar, ora se transporta para outro” (Carvalho, 2006). Atualmente, está seca. Mãe Filhinha responsabilizava a construção de um posto de gasolina pela “quebra do encanto” da lagoa:

O lugar que têm aqui sagrado mais que a Pedra da Baleia é ali onde têm o posto, que fizeram o posto l á em cima na Lagoa Encantada, ali tinha uma portinha desse tamanho ô, ali onde t ê m aquele posto de gasolina ali era uma barroquinha desse tamanho, mas de uma ora pra outra aquilo cobria tudo de á gua, ali depois da cachoeira o lugar mais sagrado era ali, agora botaram o olho desmancharam com tudo, o lugar sagrado que tinha dentro de Cachoeira era ali, ali quando dava 11 horas n ão podia passar, voc ê v ê tanta coisa ali de dia que voc ê

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n ão podia passar de um lugar pra outro, ali tinha um camarão de ouro e tinha uma cobra ali, e n ão sei o fim que deram que desapareceu que eu nunca mais vi, quebraram o encan to, chamava Lagoa Encantada, mas quebraram o encanto, se ca í sse uma pessoa aqui nessa portinha desse tamanho ia sair l á no Dique em Salvador. É, ô, debaixo tinha aqueles tubo debaixo d’água que iria sai l á em Salvador ( VELAME, 2012, p.214).

Nas últimas décadas, a devastação causada pelo projeto civilizatório moderno/ colonial/capitalista vem ocorrendo de modo ainda mais avassalador, adquirin do um poder e uma velocidade que dariam inveja aos “primeiros extirpadores de idolatrias e exploradores do século XIX”, assinala Cadena (2018). Para quem sabe “ver”, por toda parte há sinais de que as forças que animam ou avivam o mundo estão ficando mais fracas, que o encanto dos seres, das coisas, dos lu gares está sendo quebrado, que espíritos estão sumindo dos lugares que deve riam guardar. O grande pesquisador Sérgio Ferretti (2013) foi alertado que o Rei Dom Sebastião, encantado que costumava aparecer na Ilha dos Lençóis Mara nhenses com a forma de um touro, não estaria mais aparecendo “porque a praia dos Lençóis est á sendo muito visitada e já possui muito morador”. José Adário dos Santos, o “Zé Diabo”, artista ferramenteiro e pai-de-santo, não esconde seu desgosto com os “melhoramentos” realizados no terreiro de culto a Egungun (ancestrais), na Ilha de Itaparica:

Os espíritos, o orixá, já se afastou muito da Terra. Sempre ouvi meu povo dizer. O povo tá fazendo muita bobagem...(...) fui pra lá quando era menino ainda com meu povo, era dessa largura aqui o mato pra você subir, mato de um lado, mato do outro, pra você subir tinha que subir com ojé [sacerdote] senão o Baba [espírito] lhe escarreirava...Eles abriram estrada, era candeeiro quando eu fui...na segunda vez já era o que, Aladin, acendia, tinha aquela lâmpada,...[agora] quando eu fui, asfaltou tudo, abriu estrada de cá de baixo até lá em cima, botou luz em tudo, cumé que pode, rapaz? Quer dizer, tirou, quebrou o axé... quebrou o axé...Como quebrou o encanto das coisas! Qual é o Baba que tem ali mais minha gente? Não tem...A energia ficou muito fraca, tá entendendo? A energia ficou muito fraca... Tinha que continuar a mesma coisa!13 .

Depoimentos de moradores antigos de um dos bairros de Salvador que mais so freu com a turistização e a urbanização predatória, Itapuã, obtidos por Doralice Alcoforado (2008) e Tânia Gandon (2018), trazem a visão comum de que os encantamentos desaparecem quando se perde o respeito pelo lugar. Antes “en xistia muita coisa”, mas “hoje não tá enxistindo mais”, reclama dona Fernandina Paranhos Chaves. A pedra de São Tomé, que “de primeiro” aparecia de sete em sete anos na praia de Piatã, “depois que o pessoal pegaram a fazer uma revolução, revolução quer dizer, desacreditar, desacreditar na pedra...ela aparece...desapa rece”, observa dona Ana, ao que respalda seu Edgar, pescador: “Depois que a

inteligência foi acordando...não sei porque, desapareceu. Mas com certeza tinha uma pedra, porque eu vi”. Dona Eulina ouvia a avó contar que “viam muita coi sa, eles viam. Aqui em Itapuã hoje é que não se vê mais nada...Se via!” Dona Se nhorinha garante que Iemanjá já foi embora do Abaeté: “Se é encanto não tem, porque aqui embaixo tudo virou casa, casa demais, onde era rio, riacho, lagoas, fizeram essas construções. (...) Alcancei muita matança no Abaeté, se dando a Iemanjá... mas agora, Iemanjá não tá mais ali, não”. Em outro “santuário” para o povo-de-santo, o Dique do Tororó, a “Oxum mais doce e mais justa que se pode conhecer” nos últimos tempos anda triste, cercada de asfalto, buzinas e sirenes, mas ainda resiste: Havia quem visse Oxum desfilar, majestosa, por sobre as baronesas que, no verão, floriam todas em seu louvor. Ora mergulhava, ora flutuava sentada a pentear longos cabelos que se confundiam com os talos da baronesa. De vez em quando, ela seduzia um afoito que, sem se dar conta, mergulhava em território proibido, a bacia que ainda é dela, e n ão voltava à superf ície antes do terceiro dia; e quando voltava era bem distante, do outro lado do Dique, na bacia dos Eguns, onde os Ancestrais se re ú nem para receber e conversar com os rec é m -chegados no Orum. Hoje o Dique n ão é mais o mesmo. (...) A popula ção realmente estava carente de uma á rea de lazer t ão bonita e ordenada como a que se criou ali. Poré m pagamos um alto pre ço. O palco se modificou. Ali Oxum já n ão flutua mais, a n ão ser de madruga da, em surdina, quando os ônibus, os carros, as ambul â ncias e todo o resto da parafern á lia param de circular e por causa disso ela pode cantar. Já n ão é mais o mesmo canto alto e solto. Apenas alto e sincopado que traduz o seu pesar pela invas ão ao seu lugar de brincar (DUARTE, 2000, p.264).

É possível, portanto, que um dia Oxum tenha de abandonar o Dique. Ou, talvez, que aja como a Princesa Iná, encantada que mora no fundo da baía de São Marcos, em São Luís, filha do Rei Dom Sebastião. O engenheiro civil Bento Moreira Lima Neto (2005) descreve uma série de estranhos acidentes, alguns inexplicáveis, ocorridos durante a construção do porto de Itaqui, nos anos 1960. Pais-de-santo então explicaram que as perfurações para colocação dos tubulões haviam dani ficado o telhado do palácio da princesa que, bastante contrariada, respondia aos ataques a seus domínios atrapalhando os trabalhos de construção, derrubando e implodindo gabiões, quebrando equipamentos e até matando mergulhadores, às vezes com bastante crueldade. Para acalmar a fúria da encantada e obter sua permissão para o prosseguimento da obra, terreiros de São Luís lhe ofereceram sacrifícios e uma grande festa numa praia próxima, apoiados pelas autoridades locais. Com esse “armistício”, em 1970, não houve mais acidentes “misterio sos” na construção do porto. De tempos em tempos, as oferendas precisariam ser renovadas para evitar um novo conflito com a princesa14.

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Assim como o Ocidente moderno arrogou para si o direito de ser “o Mundo”, como acusa Escobar (2015), arrogou-se também o direito de determinar o que deveria ser a cidade, pretendida como a obra emblemática do seu projeto civi lizatório, máquina destruidora de mundos e ontologias. O que fomos levados a acreditar cegamente que seria a cidade é meramente a concepção de cidade própria do mundo único hegemônico, segundo o qual toda e qualquer cidade é pensada como uma criação pura e exclusivamente humana, onde os únicos ha bitantes, os únicos sujeitos e agências, os únicos que importam são humanos. Como resumiu Claude Lévi-Strauss em Tristes trópicos (1955), nos termos do mundo único, a cidade é a “coisa humana por excelência”,

Foi preciso “mudar de mundo” para entender que “cidade” é uma palavra enga nosa. Daquelas que, a depender do mundo no qual sejam proferidas, bem como das relações que fazem emergir esse mundo, podem designar coisas radical mente distintas, correspondendo à noção de “equívoco” de Eduardo Viveiros de Castro (2018), o “mal-entendido” na comunicação entre pessoas (humanas ou não) que podem até falar uma mesma língua, mas habitam mundos que não são os mesmos. Não é simplesmente uma “falha em compreender”, mas a “fa lha em compreender que as compreensões não são necessariamente as mesmas, e que elas não estão relacionadas a modos imaginários de ‘ver o mundo’, mas aos mundos que são vistos”. Ou seja, ao invés de diferentes visões ou pontos de vista de uma mesma coisa, temos pontos de vista de coisas diferentes, uma vez que, assim como os pontos de vista, as coisas pertencem a mundos diferentes, sendo concebidas nos termos de seus mundos. No exemplo dado por Cadena (2018), “território” significa para o Estado peruano um pedaço de terra sob sua jurisdição, mas para o coletivo indígena AwajunWampi é uma entidade produ zida por suas pr áticas de vida, ou ainda “o território são os AwajunWampi”.

Para quem pertence a um mundo que não é o “único”, a cidade é uma coisa “mais-que-humana”: um ambiente ou lugar (mais ou menos) vivo, (mais ou menos) encantado, habitado por diferentes espécies de pessoas ou sujeitos, hu manos e não-humanos, como a floresta descrita em A queda do céu . Ao visitar Nova York, em 1991, Davi Kopenawa viu, “debaixo de uma grande ponte”15, uma “moça das águas”, de “olhos e cabelos negros muito bonitos”, com os “jo vens seios despontando”, possuindo a parte de baixo do corpo “como de peixe”. “Há muito tempo, essa moça dos rios deixou nossa floresta e se perdeu muito longe, nos confins das águas”, esclareceu o xamã yanomami, descobrindo na ocasião que “os brancos sabem desenhá-la” e “lhe dão o nome de sereia” (in Al bert; Kopenawa, 2015). Encantados estão sempre entre nós, nas cidades, apenas nem todo olho está preparado para “ver”, isto é, para reconhecer suas presenças e agências, não necessariamente através da visão.

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Próxima página: Figura 1. Eusébio ou Amália, Oceanário de Lisboa, 2008.

Fonte: Silvana Olivieri.

Walter Benjamin dizia que certos lugares, “como certas plantas”, teriam o poder mágico “de nos fazer ver o futuro”. Geralmente “sí tios abandonados, e também copas de árvores acuadas contra mu ros, becos sem saída ou entradas de jardim, onde ninguém jamais se detém”. A casa da lontra no Tiergarten era um desses “rincões proféticos”, um lugar de muita força e encantamento, assim como seu “reluzente habitante”. Naquele dia no Oceanário, vi que alguns animais também teriam esse poder. E que quem consegue ver o fu turo, já habita um outro mundo, mesmo sem saber. A lontra veio nos avisar que ainda é “coisa do passado tudo que nos espera”. Um assunto dos mais urgentes.

- O mundo que você e Don Juan pintaram é cheio de coiotes mágicos, corvos encantados, e magnífi cos guerreiros. É fácil de ver como ele pode lhe atrair. Mas, e em relação ao mundo de uma pessoa urbana moderna? Onde está a mágica nele? Se todos nós pu déssemos viver em montanhas talvez conseguíssemos manter o mistério vivo. Mas como poderemos fazer isso se estamos perto de uma estrada?

- Uma vez formulei a mesma questão para Don Juan. Nós estávamos sentados em um café em Yuma e insi nuei que eu poderia me tornar apto a parar o mun do e ver, se pudesse viver no ermo junto com ele. Ele olhou para a janela, viu os carros passando e disse: “Ali, lá fora, é o seu mundo”.

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NOTAS / REFERÊNCIAS

1 Há algumas versões dessa carta, tradução da fala do grande cacique Seattle, ao que tudo indica ocorrida em 1854. Ver http://selvagemciclo.com. br/wp-content/uploads/2021/07/ CADERNO26_SEATTLE.pdf.

2 Entre os habitantes do mundo único, Stengers (2018) distingue os “agentes da modernização”, operadores/servos da máquina destruidora, dos “pratican tes modernos”, aqueles que estão “cap turados” pela máquina, portanto mais suscetíveis de traí-la e abandoná-la.

3 Escobar (2015) ressalta que, embora essas ontologias caracterizem muitos povos não-ocidentais, não se restrin gem a eles, havendo expressões de mundos relacionais não dominantes dentro da experiência da modernidade ocidental.

4 Animismo é um dos primeiros conceitos da antropologia, introduzido em 1871 pelo evolucionista inglês Edward B. Tylor no clássico “Primitive Culture”, como uma “crença religiosa” de povos situados na base da escala da civilização, atribuindo a tudo um espírito ou “alma”. O termo “ressur giria das cinzas” na década de 1990, como um “novo animismo”, sinônimo de ontologia relacional. Ainda assim, faz-se necessário reconhecer, como faz Stengers (2018) que “as diversas definições dadas a animismo carregam os selos das suas origens e podem dificilmente ser desvinculadas das pejorativas associações colonialistas”.

5 Levar a sério a existência e o poder dos “outros que humanos” é o

compromisso básico da chamada “ontologia política”, proposição que amplia o conceito de “cosmopolítica” formulado por Stengers. Ver Escobar (2015) e Stengers (2018).

6 Eusébio viria a falecer em 2010, e Amália em 2013, ambos com mais de 20 anos. Tiveram três crias no Ocea nário, fato raro para animais mantidos em cativeiro, indicando que não perderam (ou não completamente) a natureza “selvagem”.

7 O controle ou a manipulação das forças que animam seres, coisas, luga res também é domínio da “magia” ou “feitiçaria”, “em si uma coisa neutra, que pode se tornar benéfica ou maléfica conforme a direção que se lhe dê”, ressalta Hampaté Bâ (2010).

8 Ao descrever a cosmologia do povo Sipáia, Curt Nimuendaju (1981) escla rece que, para os povos indígenas, não existe nada de sobrenatural, na acepção ocidental do termo. “No conceito dos índios, o que conta é “a maior ou menor atividade de um poder mágico imanente a todos os seres, se alguém é capaz de produzir alguma coisa que aos outros pareça prodigioso. Esse extraordinário não tem limites: sim plesmente, tudo é possível e natural”.

9 Texto da obra “Sacred and Enchanted Places” (1972), tradução da autora. Em abril de 2022, toda a vegetação ao redor da pedra fora retirada, levantando suspeitas de haver algum novo plano para sua remoção. Ver https://guidetoiceland. is/connect-with-locals/regina/

huldumannssteinn-i-reykjavik-theelf-rock-in-reykjavik-the-capital-cityof-iceland-1.

10 Matéria do jornal “A Tarde”, de 13/2/2017, intitulada “Árvores urbanas testemunham a história da cidade”. Ebomi Cidália relatou a Sueli Santos Conceição (2008) que, na época da obra, “todas as tentativas para retirá-lo [o pé de Iroko] não tiveram êxito, o que fez Estácio de Lima, o então diretor [do DPT-BA], o governador Roberto Santos e o Coronel Artur procurarem orientação no terreiro do Gantois. Foram orientados que a poda não poderia ser feita por qualquer pessoa, por se tratar de uma divindade, mas por uma preparada para tal missão e também seria necessário fazer um ebó [oferenda]. Então, o diretor chamou dois homens da cidade de Cachoeira para fazer o serviço: durante o procedimento, um morreu e o outro perdeu a perna. Na mesma semana, o diretor do DPT-BA teve um mal súbito e veio a falecer em Arembepe, (...) quando comemorava o Dia dos Pais com seus filhos”. Ainda segundo ebomi Cidália, “este fato tem mais ou menos vinte anos”. Desde 1999, o DPT realiza anualmente um ritual de culto a Iroko, inicialmente sob os cuidados de ebomi Cidália, e, após seu falecimento, em 2012, de pai Air do terreiro Pilão de Prata.

11 Embora os seres espirituais possam estar em todo lugar, alguns lhes são preferidos, onde gostam de passear ou de morar, e que protegem como

“donos” ou “mães”. Uma função parecida com a que, para os romanos, tinham os Lares e os genius loci, divindades protetoras dos lugares – sejam montanhas, bosques, rios, nascentes, celeiros, fóruns, teatros, ruas. Também havia o “genius urbi”, protetor das cidades. “Genius urbis romae” era o gênio da cidade de Roma, cujo culto era no Capitólio. “Não há nesta cidade lugar que não esteja impregnado de religião, e que não esteja ocupado por alguma divindade... Os deuses têm nela sua morada”, dizia Tito Livio sobre Roma. Sérvio, no “Comentário à Eneida de Virgílio”, afirmaria que “nenhum lugar é sem um gênio”. Ver Foustel de Coulages (1961).

12 Há grande preocupação com o turismo nesses locais, pois “quem não tem vidência não sabe que às vezes uma duna esconde um palácio e pode querer pisar ou construir uma casa em cima da encantaria, na casa dos donos do lugar”, diz Ferretti. Às vezes, os encantados conseguem manter afastados os humanos, caso de Joacema, praia no sul da Bahia, próxima à aldeia Pataxó de Barra Velha. Mesmo numa região turística, entre Caraíva e a Praia do Espelho, em Trancoso, não houve, até hoje, quem se interessasse por Juacema. Segundo os Pataxó, “ninguém consegue viver, fazer casa por lá, é encantado” (Cardoso, 2018, p.76).

13 Ver documentário “A possibilidade dos espíritos” (2016), disponível no https://vimeo.com/179223913, última consulta em 7/5/2021.

14 Após 30 anos, em 2011 voltou a acontecer um acidente misterioso com um grande navio no porto de Itaqui, uma semana depois da imagem de Iemanjá - colocada no porto justamente na época da revolta da princesa Iná - ter sido levada para outro local. Segundo informaram os noticiários, o navio era novíssimo, mas apresentou um vazamento inexplicável, ficando impossibilitado de seguir viagem. Ver http://blog-dopedrosa.blogspot.com/2011/12/oreino-encantado-de-d-sebastiao-e. html.

15 Bruce Albert acredita ser a ponte Triborough, sobre o East River, ligando Manhattan aos bairros do Queens e do Bronx, perto do hotel onde Kopenawa se hospedou e que chamou sua atenção logo na chegada a Nova York (Albert; Kopenawa, 2018, p. 671).

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PARA CITAR: OLIVIERI, S. Mudar de mundo. Redobra, n. 16, ano 7, p. 221-239, 2022.

INTRODUÇÃO

FORDLÂNDIARUÍNA DO FUTURO, CIDADE FANTASMA IGOR GONÇALVES QUEIROZ

ANA LUIZA SILVA FREIRE

Doutoranda do PPG-AU/UFBA e membro do Laboratório Urbano (PPG-AU/UFBA) Doutorando do PPG-AU/UFBA e membro do Laboratório Urbano (PPG-AU/UFBA)

Fundada no Pará em 1928, às margens do rio Tapajós, a cidade de Ford lândia foi criada para abrigar uma plantação extensiva da espécie de se ringueira Hevea brasiliensis, bem como toda a infra-estrutura necessária para o processo de beneficiamento da sua seiva, e assim, garantir a produção de borracha demandada pelas fábricas de automóveis Ford Motor Company. "Em Fordlândia, ou seja, Terra de Ford, nasceu uma cidade em presarial aos moldes de uma little town americana, contudo erigida em plena selva" (TREVISAN; FICHER; SANTOS, 2019, p. 7). A cidade foi, ainda, de acordo com as idealizações sociais de Henry Ford, um projeto civilizatório: "[...] uma cidade criada e gerenciada com base em técnica e ciência é o segredo para a manutenção, tanto de uma dinâmica produti va bem sucedida, como para a existência de uma comunidade de homens saudáveis" (THE AMAZON... 1944, tradução nossa).

O projeto da company-town correspondia à visão de Ford acerca do que deveria ser uma sociedade, seus hábitos, condutas e modos de vida, orien tados a partir de um "cuidado científico" (THE AMAZON... 1944, tradu ção nossa) e de uma visão específica do modo de vida ligado à indústria, arraigada fortemente em um componente moral, e que por isso descon siderava quaisquer condições contextuais e específicas dos habitantes daquela região. A cidade, portanto, não foi apenas um empreendimento econômico ou urbanístico. Como o próprio presidente Getúlio Vargas proferiu ao visitar Belterra: Ford também plantava "saúde, conforto e feli cidade" (GRANDIN, G. 2010, p. 337).1

Fordlândia não é uma cidade reconhecida pela maioria dos brasi leiros tanto quanto outros grandes centros, capitais, núcleos ur banos ou cidades novas, evidenciadas pela maioria dos estudos de história urbana no Brasil. A cidade, entretanto, possui a sua própria História oficial, ensaiada e narrada por obras de valor his tórico e cultural e de importância relevante para a compreensão da história política, econômica e social do Brasil e reflexão sobre os destinos do país (Conselho editorial do Senado Federal. In.: MORAIS, 2013, p. 5).

Em "O meu dicionário de cousas da Amazônia", escrito em 1931 por Raimundo Morais2, numa argumentação teleológica, o verbe te "Fordlândia" diz que a cidade "[...] vai ser talvez o maior núcleo humano na bacia amazônica, pelo menos o maior centro indus trial do vale. O ponto é a política não entorpecer nem perturbar a trajetória da formidável empresa, por interesse e ódios mesqui nhos" (p. 84). Já no verbete relativo a Henry Ford, o empresário é apresentado como figura heróica e como um salvador que chega à Amazônia para retirá-la das sombras: "O período de transição na Amazônia, entre o mistério e a luz, vai fechando o seu ciclo som brio com a nota viva das realizações que marcam um instante de claros, luminosos horizontes nos destinos nacionais."

Com este texto buscamos - a partir de fragmentos de imagens - encontrar fissuras existentes entre estas histórias que foram homogeneizadas, alinhadas a esta narrativa oficial da conquista, exploração e modernização da Amazônia brasileira, de modo a experimentar outras possibilidades de se pensar a própria escrita da história urbana. Pretendemos, a partir da montagem 3 de ima gens (documentos oficiais, discursos, filmes, fotografias e ilustra ções) fazer emergir histórias de levantes, revoltas e insubmissões dos operários - ou mesmo da própria Amazônia selvagem - na cidade de Fordlândia, diante da imposição de um modo específico de trabalho e, sobretudo, de um modo de vida baseada em exi gências morais e culturais norte-americanas. A ação da natureza (in)surge, desta forma, como protagonista em relação ao plane jamento fabril e empresarial de Fordlândia, no seu processo de arruinamento, dado simultaneamente à construção e tentativa de consolidação da cidade - ou imagem que se fez dela - de acordo com os motivos de sua fundação e que culminou no seu abando no pelos seus idealizadores.

Figura 1. Relógio de ponto de Fordlândia, 1930. Fonte: The Henry Ford Digital Collections.

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MONTAGEM 1. RUÍNA DO FUTURO

“O que os habitantes do interior do Brasil precisam é de uma vida econômica estabilizada por salários adequados, em dinheiro efetivo, como pagamento do seu trabalho, ao mesmo tem po que um regime de vida de acordo com as modernas normas de higiene [...]. Temos muitas esperanças sobre o futuro desenvolvimento de milhões de hectares de terreno no Brasil e ou tras nações sul americanas, que jamais foram tocadas pelos modernos métodos de aprovei tamento sistemático dos recursos naturais." (FORD, Henry. In: Jornal do Commercio, 1929)

"O desenvolvimento das forças produtivas fez cair em ruínas os símbolos do desejo do sé culo anterior, antes mesmo que desmoronassem os monumentos que os representavam [...] com o abalo da economia de mercado, começamos a reconhecer os monumentos da bur guesia como ruínas antes mesmo de seu desmoronamento." (BENJAMIN , Walter [1935], 2018, p. 69)

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Um grande relógio de ponto em destroços, com sua estrutura mecânica comple tamente arruinada e suas peças espalhadas e misturadas a outros objetos, sobre o chão de um galpão desabitado. Essa imagem, pertencente ao arquivo digital da fundação do engenheiro estadunidense Henry Ford, é contrastante em relação às fotografias encontradas nos registros oficiais - que em sua maioria apontam para um passado heróico e glorioso - relativos à época da construção e ocupação norte-americana na região norte do Brasil. A fotografia é uma pista de que a His tória oficial de Fordlândia - pautada na conquista da selva e reforma moral dos habitantes trabalhadores - coexiste a outros atores e histórias.

"A demonstração dessa coexistência nos exige o deslocamento e a rasura das cristalizações homogeneizantes dos fatos históricos, organizados teleologica mente sobre a linha cronológica do tempo e instituídos sob uma história oficial." (JACQUES et al. 2019, p. 29). Tal como a anedota narrada por Walter Benjamin4 sobre os relógios alvejados por franco-atiradores, sem arranjo prévio, no mesmo horário e em diferentes bairros na Revolução de Julho em Paris - gestos que fa zem "parar o tempo" e "estilhaçam a cronologia tranquila da História oficial " - a imagem do relógio de ponto em destroços de Fordlândia oferece o lampejo de um movimento que levou a uma interrupção: um levante que, naquela época, gerou uma suspensão na continuidade do planejamento ordenado da cidade, instaurando uma outra temporalidade.

A imagem do relógio apresenta, sobretudo, um aspecto fundamental que acom panhou Fordlândia desde sua fundação até seu abandono pelos norte-ameri canos: aquilo que está além da racionalidade, do planejamento, do tecnicismo científico, e da modernização entendida como sinônimo de progresso histórico e social - progresso que o fordismo ajudou a desenvolver. O relógio reaparece, no tempo do agora, como uma imagem de pensamento 5 que provoca a experimen tação de uma operação historiográfica onde torna-se necessário fazer "parar o tempo para permitir o passado esquecido ou recalcado surgir de novo [...] e assim ser retomado e resgatado no atual" (GAGNEBIN, 2013, p. 9).

A imagem desmonta a história [...] como se desmonta um relógio, ou seja, como se disjunta minuciosamente as peças de um mecanismo. Enquanto isso, o relógio para de funcionar, [...] [o que] provoca um efeito de conhecimento que, de outra forma, seria impossível. Po de-se desmontar as peças de um relógio para aniquilar com o insuportável tique-taque da contagem do tempo, mas também para entender melhor como funciona, e até mesmo para consertar o relógio defeituoso. (DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 131)

Georges Didi-Huberman (2015), ao falar sobre estas relações entre imagem e tempo, para se pensar a história, diz que "a imagem seria, portanto, a malícia na hist ória: a malícia visual do tempo na hist ória" (p. 131, grifos do autor). A partir do pensamento benjaminiano, ela aparece, retorna como potência e torna visível as reminiscências do passado. "Poder-se-ia-se dizer que a imagem desmonta a

história" (p. 131, grifos do autor). O exercício de montagem e desmontagem de fragmentos surge, portanto, como uma operação historiográfica que nos possibilita mobilizar distintas imagens - documentos oficiais, discursos, fotografias, recortes de jornal, peças publicitárias e/ou cinematográficas - fazendo emergir outras possíveis (e infinitas) histórias de Fordlândia.

Assim, em 1929, o Jornal do Commercio do Rio de Janeiro já saía em defesa das concessões políticas e territoriais feitas pelo governo brasiliero à Ford Motor Company, exaltando o estabelecimento das suas fábricas, plantações e a "colabo ração da inteligência e do capital estrangeiros", num território longínquo, "onde regiões enormes [antes] inexploradas, profundamente ricas permaneciam esté reis ante a falta de braços, a falta de capital, a falta de técnicos, a falta de tudo, en fim”. Fordlândia, reforça o Jornal, começando a instalar-se às margens do Tapajós, não tardaria, por certo, a "transformar-se em magnífica e portentosa realidade e o ouro negro, correndo em caudaes, há de servir para o florescimento de novas forças vivas da economia nacional, desdobrando-se em comércio e em indústria, em riqueza, finalmente". A matéria cujo título ambicionava um futuro promis sor - "Ford no Pará: dentro em breve devemos estar produzindo pneumáticos" - oferecendo uma pista do futuro porvir, conclui: "O tempo, em breve dirá."

As alterações na divisão social do trabalho são também alterações relativas ao tempo ou temporalidade cultural, introduzindo o tempo de trabalho como ideologia. Na verdade, a progressiva introdução do trabalho assalariado na região amazônica tem como peculiari dade constituir-se em um longo percurso para a sua atual hegemonia. Sob outro aspecto, a introdução concomitante da moeda como forma dominante de relação entre o trabalho e o capital constitui-se em uma forma de violência, que pode ser enfocada culturalmente. A especificidade do regime fordista de trabalho substitui o tempo regido basicamente pela natureza por um controle regido com medidas em minutos. (VICENTINI, 1991, p.89)

A instauração de um novo modo de vida, de uma nova relação de produçãoou de uma nova ideologia e cultura, com outra temporalidade, da qual fala Yara Vicentini - instaura também, nunca de maneira dissociada, forças revolucionárias que vão de encontro a tais ações impositivas. O relógio destruído de Fordlândia foi consequência da "Revolta de quebra-panelas", ocorrida apenas um ano após a publicação da elogiosa matéria no jornal carioca, e teve como estopim uma mudança de funcionamento do refeitório da company town . Os operários, antes acostumados a serem servidos, foram surpreendidos por uma mudança de logística em que eles mesmos deveriam servir os próprios pratos, o que ocasionou a formação de uma fila extensa, onde começou o tumulto que levou à revolta. Conta-se que na primeira hora 800 homens entraram e saíram sem problemas do refeitório; no entanto, o reabastecimento de comida não acontecia em velocidade adequada, causando protestos, até que um dos operários - Manuel Caetano de Jesus - enfrentou um dos dirigentes da cidade e iniciou-se o levante. (GRANDIN, 2013, p. 232).

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Figura 2. MONTAGEMSeringueiros defumando látex sob um telhado de sapê & afresco de Diego Rivera inspirado no Complexo Ford River Rouge (1932-1933).

Fonte: GRANDIN, 2010 & The Detroit Institute of Arts.

Reclamações, denúncias e tentativas de fugas da cidade já existiam antes desta revolta - aliás, a única possível de se encontrar disponível publicamente nos re gistros do próprio arquivo da companhia Ford. Uma notícia do Diário Carioca (RJ) de 1929 acusava: "continua a retirada de trabalhadores de Fordlândia, onde impera francamente o regime da escravatura". Nas falas dos trabalhadores que conseguiram fugir de Fordlândia e chegar em Belém, são denunciados o não cumprimento de seus contratos: os salários recebidos eram menores do que o valor que havia sido acordado, não havia apoio médico na cidade e a alimenta ção era precária. Este acontecimento foi reproduzido em diferentes notícias, nos jornais Correio da Manhã (RJ) e Diário Nacional: a democracia em marcha (SP), de 1929. Este último finaliza sua matéria afirmando que as promessas resulta ram em um "estado sanitário muito pior do que no próprio tempo das 'vacas magras'".

O jornal O Ceará, em 1928, conta que operários que tentavam escapar de Ford lândia foram também acossados pelo governo do Pará, sob a mira de fuzis, sendo obrigados a voltar à cidade onde haviam sido contratados, do contrário seriam presos. Em outro tom, O Rebate, do Acre, traz em 1929 uma coluna que começa tecendo uma crítica aos jornais do Pará, os quais noticiam "coisas desagradáveis passadas nos domínios do senhor Ford", e elogia o empresário por trás da funda ção da cidade: "o senhor Ford não é um homem que se deixa impressionar pelo o que dizem. É um super homem, um super milionário [...] um homem bem in tencionado". À despeito disto, a coluna finaliza com a constatação de que a vida em Fordlândia não era tão "deliciosa" como nas "fábricas americanas do deus do dinheiro", e que os que para lá foram, voltaram "tristes, desiludidos, sem saber falar inglês… e com fome". Também, a ideia de que "o trabalhador/caboclo bra

sileiro é que não presta" (O PACOTILHA, 1928) orientava a ação de outros bra sileiros em altos cargos em Fordlândia: Raymundo Monteiro, amazonense e um dos dirigentes da cidade em seu momento inicial, "rebaixou o salário dos traba lhadores, que eram pagos pelos americanos [...] e reduziu também a alimentação dos operários para a da pior espécie".

Já no final da década de 1940, Fordlândia não era mais ocupada pelos norte -americanos. Em 1945 se deu o encerramento oficial do projeto de Ford, a par tir de um decreto que indenizou a companhia estrangeira em 250.000 dólares6 Alguns anos antes, entre o final da década de 1930 e a primeira metade de 1940, Fordlândia e Belterra passaram por mais uma tentativa de tornarem-se grandes produtoras de borracha. A necessidade da matéria-prima aumentou enorme mente, devido à Segunda Guerra e ao fato de que as colônias britânicas na Ásia estavam sob controle dos japoneses. A Amazônia brasileira viu, então, um gran de influxo de investimento internacional, oriundo do acordo entre os gover nos do Brasil e dos EUA. A chegada de cerca de 60.000 "soldados da borracha", vindos principalmente do nordeste - os "flagelados da seca"- marca o início do trabalho de extração de látex da seringueira nesta outra fase da região. A propa ganda do governo entoava: "A Amazônia como a terra da fartura, onde a floresta era sempre verde, e a seca, inexistente" (MEMORIAL... 2020).

A terceira parte do filme, "O despertar dos vencidos", exibe o cemitério. Isolado da vila,e aparentemente abandonado, o recinto tem recebido os corpos de Fordlândia desde a sua fundação: primeiro os de Ford, mortos de exaustão e doenças tropicais, depois os dos seus descendentes que resolveram permanecer na vila e os dos novos migrantes que entretanto aí chegaram. Um cemitério que se tornou imagem paradigmática da cidade-fantasma de

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Ford. Um cemitério cujas imagens perpetuadas online elidem a história dos que aí foram enterrados. [...] A conjugação de todos estes elementos adquire um tom Benjaminiano: como se o Angelus Novus lograsse suspender a tempestade que o arrasta para o futuro e, claman do pelo erguer dos vencidos, conseguisse despertar os mortos, mudando o curso da história. (DIAS, 2020, p. 22)

Em Fordlândia e Belterra, segundo Carlos Haag (2009, n.p.), a necessidade de borracha para ser utilizada durante a Segunda Guerra fez com que, em 1937, 1.200 acres fossem desflorestados para receber mais de 2,2 milhões de semen tes de seringueiras. Em 1941 o número aumentou para 3,6 milhões, mas no ano seguinte, a produção não conseguiu ir além de meras 750 toneladas de borracha, uma fração de 45 mil toneladas extraídas no auge do boom da borracha. Ainda assim, entre a plantação extensiva das seringueiras e a extração em seringais na tivos, cerca de 35.000 "soldados da borracha" morreram durante o "esforço de guerra" (CAPITAL, 2013, p. 12).7 A cidade Amazônica que havia sido imaginada para ser "um jardim em meio à selva brava" (JORNAL... 1967), tornou-se, em pouco tempo, "um cemitério de seringueiros" (JORNAL... 1947).

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MONTAGEM 2 - AMAZÔNIA CIVILIZADA, FORDISMO SELVAGEM

253 Figura 3. MONTAGEMFlagelados pela seca, trabalhadores nordestinos a caminho dos seringais (s.d) + cemitério de Fordlândia (1931).

Fonte: Memorial da Democracia & The Henry Ford Digital. Próxima página: Figura 4. MONTAGEMFordlândia, ilustração de Mark Stutzman & Folha de seringueira doente (1936).

Fonte: GRANDIN, 2010 & The Henry Ford Digital Collections.

"Descrição da fábrica de Ford em Highland Park, Detroit: 'Toda a sala, com seus intermináveis corredores, está movimentando eixos e rodas, com sua floresta de colunas escorando o teto, correias de couro, intermináveis fileiras de máquinas, guinchos, batidas e ruídos, o cheiro de óleo, a névoa de fumaça, a população es trangeira de aparência selvagem [...]. Imagine uma selva de rodas e correias e formas estranhas de ferro - de homens, máquinas e movimento -, acrescente a isto todos os tipos de som que pode imaginar: o som de [...] um milhão de macacos brigando, um milhão de leões rugindo, um milhão de porcos morrendo, um mi lhão de elefantes correndo por uma floresta de chapas de ferro, [...] um milhão de pecadores gemendo enquanto são arrastados para o inferno - imagine tudo isso acontecendo à beira das Cataratas do Niágara [...] e você poderá ter uma vaga noção daquele lugar.'" (STREET, 1914. In: GRANDIN, 2010, p. 49)

"A modernidade é, entre outras coisas, o triunfo da destreza técnica sobre a na tureza. Este triunfo requer que a natureza seja limpa de relações sociais trans formadoras". (TSING, Anna Lowenhaupt, 2019, p. 187)

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Uma vila operária em plena selva amazônica, mas com ares de América do Norte passadista. A ilustração de Mark Stutzman para a capa do livro de Greg Grandin, "Fordlandia: The Rise and Fall of Henry Ford’s Forgotten Jungle City", publica do em 2008 nos Estados Unidos, traduz bem o sonho da cidade ideal de Henry Ford no Brasil. Em Fordlândia, além das praças, hospital, casas, gramados verdes, escolas, creches, rádio, salão de baile, campo de golfe, cinemas, também foram inseridos - em meio à selva - os costumes e proibições americanas (bebida, cigar ro e futebol são só alguns dos exemplos). Na imagem, não se vê homens, apenas mulheres passeando e crianças brincando na rua que segue uma linha reta. "A sel va, no entanto, assoma ao fundo, pronta para engolir a cidade e o céu é composto de uma 'névoa laranja sanguínea' como aquela que Grandin descreve como sen do causada pelas técnicas errôneas de corte e queima da colônia." (TIMES, 2010)

A cidade idealizada para, no âmbito nacional, devolver à região norte brasilei ra o crescimento econômico que ali existiu durante o primeiro ciclo da borra cha, e para, no âmbito internacional, suprir a demanda de látex das fábricas de Ford - de modo que ele pudesse não se submeter ao cartel inglês que domina va à extração da matéria-prima na Ásia8 - precisou lidar com diversos percalços que escaparam à lógica do planejamento que havia sido imaginado para o seu futuro. Para Ford, "[...] aquele assentamento tornou-se o clímax para toda uma vida de concepções ousadas a respeito da melhor maneira de organizar a socie dade" (GRANDIN, 2013, p. 21). Para além dos levantes e insubmissões dos tra balhadores habitantes - vistos aqui como uma recusa ao modo de vida imposto e não simplesmente como uma inadaptação às regras na cidade - a construção de Fordlândia e seus edifícios, a tábula rasa promovida pela limpeza da mata, além do próprio regime de monocultura imposto aos seringais, antecipavam o arruinamento que em poucos anos ali se daria efetivamente. Confrontados com a selva, os homens e mulheres norte-americanos enviados para construir o as sentamento de Fordlândia depararam-se com uma natureza estranha e violenta, indomesticável e asfixiante:

Quando olhavam para o alto e viam urubus, aqueles comedores de cadáveres que induzi ram, em outros exploradores da Amazônia, um senso da sua transitoriedade, eles pensavam nos pombos de Detroit. A vida na densa floresta tropical era dura para muitos membros da equipe da Ford. O tédio podia ser opressivo e alguns sucumbiram a doenças e à morte. Con tudo, em vez de provocar pensamentos de moralidade ou mortalidade, a Amazônia tendia a instilar nos pioneiros da Ford melancolia, o desejo de recriar a América, uma América em grande parte criada pela Ford Motor Company. (GRANDIN, 2013, p. 21)

Para a realização deste projeto, fez-se necessário um incêndio de grandes proporções para a limpeza das terras concedidas a Ford, que estendiam-se por cerca de 1 milhão de hectares9. Iniciou-se deste modo o nascimento de uma cidade baseada numa “ampla campanha sanitária contra os perigos da selva” (GRANDIN, 2013, p. 17). Para além da discussão sobre certas tipologias arquitetônicas que comportassem o sistema fabril em meio à floresta, seria

preciso criar uma estrutura que garantisse a sobrevivência do novo habitante, relacionadas principalmente às questões de habitação e higiene para cerca de 5.000 homens.

Os idealizadores da cidade entendiam que o "cuidado científico" (THE AMA ZON... 1944, tradução nossa) fazia-se necessário não apenas à plantação de se ringueiras enquanto foco da produção, mas aos trabalhadores de Ford na Ama zônia: casas limpas e arejadas, equipadas com conveniências modernas, escolas que ensinavam "cultura física e higiene", berçário, refeitório com alimentação "cientificamente equilibrada", hospital e recreação em campo de golfe, e jantares ao ar livre. Havia a ambição não apenas de promover a produção intensiva de borracha, mas de desenvolver um projeto civilizatório assentado nos moldes do capitalismo norte americano do período entre Guerras.

Ficará nas costas daquela unidade setentrional do Brasil a glória de imortalizar a época de esplendor dos automóveis que têm o nome do seu fabricante. [...] As habitações [...] são coletivas, em número de 300, servindo cada uma delas ao abrigo de três famílias. Imagi ne-se o que não é a existência dessa gente na promiscuidade de um "tapiri" [...]. No interior dos tapiris, recobertos com palha de curuá, insetos, morbigênicos, confraternizam com os moradores. Mas não são só os insetos. Os tapiris, [...] se não se encharcam de águas fluviais, como os barracões construídos no vale das matas, servem de abrigo aos 700 bois e aos 500 porcos que vivem em comunhão bíblica com os trabalhadores e suas famílias. No entanto, a febre e o reumatismo atacam os moradores dos tapiris das baixadas. Outras moléstias se verificam: a mais impressionante destas é uma doença desconhecida, que já vitimou uma centena de pessoas. (DIÁRIO... 1930)

Nesta descrição das habitações coletivas para os trabalhadores operários da ci dade, nota-se a precariedade de um modo de vida onde coabitavam homens, animais e doenças. Ainda no terceiro ano da cidade, apesar dos planos de im plementação, as casas permanentes para os trabalhadores brasileiros não haviam sido construídas. Alguns deles tinham de remar até o local de trabalho, enquan to uma verdadeira "aldeia nativa", formada pelas famílias dos homens casados, crescia às margens do rio Tapajós.

Fordlândia possuía estradas por onde circulavam os carros modelo T da Ford, vindos de barco dos EUA para a Amazônia - mesmo modo com o qual chegava todo o maquinário para as instalações da cidade e as próprias unidades habita cionais, importadas integralmente (TREVISAN; FICHER; SANTOS, 2019, p. 7). A torre de caixa d'água chegou a ser o "edifício" mais alto da região e sobrevive até hoje, despontando sobre as matas ao redor do Tapajós. O hospital, "cons truído a partir de um esboço de Albert Kahn, o arquiteto das fábricas da Ford em Highland Park e River Rouge" (GRANDIN, 2013, p. 26), com capacidade para realizar cirurgias e maquinário para exames de raio X, foi celebrado como um dos mais modernos do Brasil naquele período. Acerca das intenções de Ford para o hospital:

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258 [Ford] resolveu chamar a si o hospital e mandou construí-lo a seu modo e conforme os seus métodos. [...] No hospital Ford, diz ele, o doente será curado do mal que sofre e não da doença que o médico diz que ele tem. E para completar o seu método, revelado nessa deliciosa ironia, ele estatuiu o seguinte: o doente é examinado seguidamente e separadamente por cinco até seis médicos, sem que saiba um do outro, e cada qual escreve o seu diagnóstico; tudo sepa rado, sem troca de ideias e esses relatórios vão às mãos do chefe de clínica e resolver o caso. Depois disso, pois, será difícil que o doente não seja realmente curado da moléstia que sofre e não da que o médico quer que ele sofra. (O PAIZ, 1928)

Além deste controle, sobre o cuidado com as doenças na cidade, era ainda preo cupação da ideologia de Ford o tipo de alimentação que deveria ser imposto aos seus trabalhadores. O consumo da farinha de mandioca, alimento típico da re gião, por exemplo, não era visto com bons olhos pelos dirigentes de Fordlândia. Era vetada a compra e consumo de bebida alcoólica, em obediência à Lei Seca em vigor nos EUA (mas não no Brasil) naquela época10. Os operários brasileiros eram alimentados com farinha de aveia e pêssegos enlatados trazidos dos EUA, pão e arroz integral. Ford era ainda um grande defensor da soja, e as creches de

Fordlândia "experimentavam dar leite de soja aos bebês, porque Ford detestava vacas" (GRANDIN, p. 29).

O maior desafio do controle absoluto, ainda por vir, "[...] tratava -se, antes de tudo, de disciplinar a árvore da borracha [...], orienta das segundo todos os ensinamentos da técnica moderna" (DIÁ RIO... 1932). O processo de manutenção de uma monocultura da espécie Hevea brasiliensis e a parca quantidade de látex extraído das seringueiras da company town foram dificuldades presentes desde o início da plantação.

259 Figura 5. Um Lincoln Zephyr preso na lama de Fordlândia, por volta de 1940.

Fonte: The Henry Ford Digital Collections.

O plano declarado do grande capitalista norte-americano, ao pleitear jun to ao governo do Pará a concessão de terras no interior do Estado, foi o de lançar as bases de uma cultura sistemática, racional, e em grande escala, da borracha. Os seringais, na Amazônia, são nativos, razão bastante para que se creia na prestabilidade das terras a uma aventura agrícola como a sonhada pelo homem que foi um dos maiores fomentadores da indústria dos pneumáticos. (DIÁRIO... 1930)

A ação da natureza no fracasso de Fordlândia revelou exatamente o oposto do que acreditava-se (crença que ainda sobrevive em ver tentes econômicas atuais no Brasil) acerca das imbricações entre desenvolvimento social e economia: "Ford representava o vigor, o dinamismo e a energia que definiam o capitalismo no início do século XX; a Amazônia incorporava a imobilidade primitiva, um mundo antigo que até então havia se mostrado inconquistável" (GRANDIN, 2013, p.18). O que ocorreu em Fordlândia mostra que lá se deu o exato oposto do postulado, acerca do poder e papel do capitalismo: foi um fungo - o microorganismo causador da doença botânica do "mal das folhas" - o agente invisível responsável por derrotar a técnica e o conhecimento científico importados pelos norte-americanos à Amazônia Bra sileira.

O trabalho insistente, com diferentes tentativas de técnicas empregadas para tornar a plantação das seringueiras bem sucedida, nunca chegou a ser exitoso. A terra preparada para receber a plantação extensiva de Hevea é o oposto do que a planta necessita para se desenvolver com saúde. A devastação, realizada para tor nar possível o cultivo em monocultura da seringueira, resulta em um ambiente completamente diferente do ideal para o desenvolvimento da planta: A Hevea necessita de distanciamento entre uma árvore e outra, e depende de diferentes espécies coexistentes a ela para sobreviver e melhor se desenvolver, condições que dificultam o espalhamento do fungo que provoca o mal das folhas, uma vez que ele não é adaptado a todas as diferentes espécies presentes na complexa flo resta amazônica. Foi precisamente devido à inexistência de tal fungo na Ásia que

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as mudas de Hevea brasileiras levadas para lá adaptaram-se tão bem, ao ponto da produção de borracha daquela região ultrapassar o montante produzido na Amazônia brasileira - o que contribuiu para o fim do primeiro ciclo de produção de borracha do nosso país. Em Fordlândia tentaram-se vários experimentos a fim de alcançar a produção massiva da borracha - como utilizar diversas cepas da seringueira, enxertar diferentes árvores - mais fortes, de diferentes idades, e que produziam mais e menos borracha - em uma mesma muda. Mas, ainda assim, o volume da matéria-prima extraído das monoculturas de Ford nunca foi suficiente sequer para cobrir os custos do empreendimento urbano e industrial da própria cidade.

A antropóloga Anna Tsing (2015, p. 152, tradução nossa), ao investigar "flores tas industriais", produzidas para abrigar plantações extensivas de pinheiros na Europa e na Ásia e a relação dessas florestas - quando inativas e abandonadas - com a produção de cogumelos matsutake11, observa que "paisagens não são panos de fundo ou cenários para a ação histórica: elas são ativas por elas mes mas". O fungo do mal das folhas, microcyclus ulei , é uma espécie codependen te da Hevea brasiliensis, a qual, por ser nativa do Brasil, encontra sua moléstia apenas nesse território. No ambiente complexo da floresta, entretanto, o fungo não chega a causar grandes danos à árvore. O cultivo da seringueira na forma de monocultura e agricultura extensiva, de modo domesticado, visando a maximi zação da produção da borracha, resultou na maximização da presença do fungo nas árvores. O antagonismo forçado entre ciência aplicada e natureza - também entre as especificidades da cultura brasileira e a norte-americana - deu-se, em Fordlândia, como uma fantasia da qual a atitude imperialista dos norte-america nos não conseguiu controlar. "Organismos não precisam mostrar sua equivalên cia humana (como agentes conscientes, comunicadores intencionais ou sujeitos éticos) para contar." (TSING, 2015, p. 158, tradução nossa)

É nesse sentido que Fordlândia tem uma história paradigmática acerca do sonho de progresso moderno, onde o ideal de futuro capitalista, imaginado em perfeita harmonia com a natureza, completaria-se e teria-se como produto uma socieda de finalizada, dividida em classes diferentes e pacificada, aliadas em torno do tra balho. Não somente as insurreições dos trabalhadores habitantes de Fordlândia apresentam-nos como rebeldia à imposição de um modo de vida particular de um povo. Também as moléstias desconhecidas que acometiam os habitantes e o espraiamento do microcyclus ulei - insurreições do próprio meio - indicam-nos que a ação histórica acontece além das práticas e planejamento humanos. Não considerarmos a interdependência humana com o meio e com as outras espécies é apostar que certos modos de vida podem sucumbir antes que a perigosa sepa ração entre natureza-cultura se complete, mesmo que a finalidade desse tipo de ação seja justificada como fundamental à existência humana.

MONTAGEM 3 - CIDADE-IMAGEM, CIDADE-FANTASMA

Figura 6. Frame do documentário "The Amazon Awakens" (1944). Fonte: Disney Company.

"A fábula dos tesouros encantados, desse maravilhoso Eldorado, que os flibusteiros, al mirantes, piratas, frades, soldados e ladrões procuravam por todos os quadrantes do vale equinocial, e, principalmente, nas orlas do Parima, desfecha agora, pela mão propiciatória de Henry Ford, numa chuva de ouro, chuva de ouro fecunda como aquela derramada por Júpiter em prol dos seus anseios amorosos." (MORAIS [1931], 2013, p.101)

Figura 7. Salão de baile de Fordlândia, com a tela de cinema ao fundo (cerca de 1933). Fonte: The Henry Ford Digital Collections.

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Num fotograma, a silhueta de um grupo de exploradores empunhando lanças avista um castelo encantado. Em meio a uma paisagem de montanhas e som bras de uma floresta, a cena parece sobrepor, de modo surreal, algumas refe rências imagéticas. A primeira, a antiga lenda indígena do El dorado, a cidade feita de ouro maciço que remete à época da colonização, responsável por atrair muitos aventureiros europeus ao Novo Mundo. A segunda, uma imagem que, hoje em dia, já nos é bastante familiar: o famoso castelo do parque de diversões Luna Park , ou, mais contemporaneamente, o castelo da princesa Cinderela na Disneylândia. A cena é apenas uma das imagens curiosas do documentário The Amazon Awakens (1944), produzido pela Walt Disney Company12 no âmbito da Política de boa-vizinhança13 norte-americana.

O documentário, lançado, ironicamente, quando Fordlândia já fracassava diante do propósito para o qual havia sido criada, retrata aspectos de uma vida cotidiana pacificada entre natureza selvagem, indústria e atividades culturais, reconheci damente mais próximas de valores tradicionais dos Estados Unidos do que dos brasileiros. Narra a história da bacia amazônica a partir da exploração européia na América do Sul, descrevendo o que seria um exotismo animal e vegetal. Para isso, apresenta três cidades situadas na floresta, entre elas Fordlândia. É a partir dessas cidades que o filme contrapõe imagens da selva e da exploração dos seus recursos, a partir da chegada da modernização a essas localidades.

The Amazon Awakens mistura ficção e realidade. Animações interagem com re gistros fílmicos de Fordlândia, filmagens da própria companhia Ford: casas no estilo bungalow, crianças fardadas brincando organizadamente, trabalhadores alimentando-se num refeitório com as suas "refeições cientificamente equili bradas", funcionários jogando futebol ou golfe, e carros modelo T e A circulando pelas estradas da cidade. Uma Amazônia supostamente domesticada descortina -se diante dos olhos do espectador e serve como pano de fundo de um cotidiano ficcional e pacificado, na cidade ideal do industrial norte-americano. A voz em off do narrador conclui: "Este grande vale fértil é o desafio e a esperança do novo mundo. Um paraíso de riquezas além dos sonhos mais selvagens do homem" (THE AMAZON… 1944, tradução nossa). Assim, por meio destas imagens, o filme narra a história de um conto de fadas moralizante ou mesmo de uma fábu la maravilhosa Disney - uma versão da história da civilização de Ford a ser disseminada através de uma mídia de massa em plena expansão naquele momento: o cinema.

[O que se fez em Fordlândia] [...] já é notável sob todos os pontos de vista. E pode ser facil mente apreciado numa fita que todas as tardes, a partir das 17 horas, está sendo exibida no cinema Odeon, na sala Azul. Mostra ela o que foi a Amazônia no seu efêmero progresso e indica-nos os passos gigantescos que Henry Ford está dando para a sua restauração. Pas sado, presente e futuro desfilam na tela, numa série de paisagens, coisas e fatos que são um verdadeiro ensinamento para todos os brasileiros que querem conhecer o seu país. Ver esta

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fita é conhecer uma das grandes realizações da indústria moderna no mundo e perceber que, enquadrada no Brasil, a nossa terra só tem a esperar dessa realização um formidável influxo de vitalidade para o seu progresso. (DIÁRIO NACIONAL, 1932)

As viagens de Ford eram documentadas por uma equipe de filmagem que sem pre o acompanhava, assim como os feitos realizados nas instalações de suas fá bricas: a pintura do mural por Diego Rivera no Detroit Institute of Arts, cirur gias realizadas nos hospitais Ford e o processo de montagem de seus carros, por exemplo. Não à toa, talvez a citação mais conhecida de Henry Ford seja: "Se eu tivesse o último dólar no bolso, gastaria em propaganda" (FERNANDES, 2013).

Foi esse ímpeto de documentação e registro histórico - imbricados à publicidade - que levou à filmagem dos feitos da Companhia Ford, dos mais heróicos aos mais banais.

Se, por um lado, Fordlândia foi objeto de documentação cinematográfica e foto gráfica, por outro, a exibição de filmes na company-town amazônica cumpria um importante papel de entreter e educar moralmente os trabalhadores brasileiros. Fordlândia recebia noticiários e documentários dos Estados Unidos, transmiti dos em sessões coletivas de cinema aos operários, promovidas pelos dirigentes da cidade como forma de lazer e de educação acerca do universo do fordismo e dos processos de produção dos produtos resultantes deste sistema. Era, tam bém, uma forma de apresentar o universo norte-americano aos brasileiros14

Nas profundezas da quente Amazônia, os projetores mostraram numa tela ao ar livre [...] um grande número de filmes [que] apresentavam o heroísmo não de exploradores, mas dos carros Ford, que podiam pôr os lugares mais remotos ao alcance da imaginação do homem comum. [...] Até onde ele podia penetrar na Amazônia [...]. O Ford News, um jornal interno para os funcionários da empresa, publicava regularmente histórias de aventuras do Mode lo T ao longo da estrada Inca ou na selva Maia. Se um carro Ford podia fazer aquilo, qual quer um poderia e assim a era das explorações deu lugar à era do turismo. (GRANDIN, 2013, p. 291)15

Utilizando-se do cinema como um verdadeiro difusor dos seus ideais, Ford, es trategicamente, ia moldando a sua própria imagem no imaginário mundial, e Fordlândia participava dessa construção imagética. Assim, a imagem de Ford foi criada de modo a associá-lo a um herói mítico ou santificado, de um conto ma ravilhoso: Henry Ford e "o seu titânico empreendimento" (JORNAL DO CO MÉRCIO, 1950). "Henry Ford na terra maravilhosa do Tapajós" e "uma aventura agrícola como a sonhada pelo homem" (DIÁRIO NACIONAL, 1930). Uma [...] obra ciclópica, bem própria do vertiginoso progresso dos nossos dias." (DIÁ RIO NACIONAL, 1930). "Ford virou o mito do Eldorado de cabeça para baixo. O homem mais rico do mundo, ele era iluminado - o 'Jesus Cristo da indústria', como um escritor brasileiro intitulou Henry Ford - e o 'Moisés do Novo Mun do', como foi chamado por outro autor. [...] O 'Reino de Fordlândia' era decidida mente secular e sua magia era tecnológica" (GRANDIN, 2010, p. 19).

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Esta produção de imagens em torno do homem Henry Ford e do seu cotidiano, bem como de seus empreendimentos e criações, foi um investimento político e econômico da sua Companhia. Resultou na imagem de um homem revolucio nário, visionário e gênio da sua época, e que até a atualidade sobrevive nos anais da História. Ironicamente, este mesmo sujeito, a partir de suas ações, ajudou a construir a sua própria imagem de vilão16 dessa história de ficção ou conto mo ralizante de Fordlândia.

Atualmente, a cidade fundada a partir da idealização de um homem que nem sequer chegou a visitá-la e que acreditava, assim como diversos pensadores do urbanismo moderno, em uma comunhão entre a cidade e a fábrica17, onde a pro dução material teria como consequência o desenvolvimento social e espiritual dos "homens" em uma cidade que, a despeito de contar com uma população per manente desde a época da ocupação norte-americana, é associada à imagem de cidade fantasma18 e cidade em ruínas - designação consolidada devido a mul tiplicação de notícias e propagandas, inclusive turísticas, as quais fetichizam e reificam as histórias de Fordlândia.

As práticas de registro e documentação de Ford e sua Companhia compõem um exercício de contar suas próprias histórias, e por isso possuem um viés historio gráfico que orienta-se no caminho de se auto-inserir no curso contínuo de uma história progressista. Estrategicamente, o próprio Henry Ford fez uso de certos artifícios narrativos como difusores e produtores da sua história, os quais muitas vezes estão dissociados da discussão sobre a escrita da história tradicional: a publicidade e o cinema. Diferente da tentativa de se produzir uma educação tra dicional através dos livros19, Ford propõe uma educação pela imagem20. Através

Página anterior: Figura 8. Gerador elétrico central, Fordlândia (1933). Fonte: The Henry Ford Digital Collections. Figura 9. Charles Chaplin, "Tempos Modernos" (1936). Fonte: KANOPY, 2020.

dela, e de modo ampliado, percebe-se a difusão da cultura norte-americana. A potência das imagens, entretanto, está justamente no fato dessas mesmas serem capazes de conter em si a potência desestabilizadora do discurso para o qual fo ram produzidas. São elas mesmas suas contra-imagens ou contra-narrativas de um modo de pensar, agir e fazer política, uma vez que como nos ensina Walter Benjamin (2018, p. 764) - no seu método da montagem - devemos utilizá-las, mostrá-las e deixá-las falar em toda a sua potência residual. Estas imagens são, sobretudo, potências para fazer pensar outros modos de narrar - ou contar, já que falamos de tantas aventuras heróicas - histórias que vão além do que está representado, e que conformam uma própria expressão política do que foi ima ginado em suas produções.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na mesma época da fundação de Fordlândia e das tentativas de fazer dela uma cidade de produção massiva da borracha (entre 1920 e 1940), Walter Benja min reunia fragmentos para o trabalho das Passagens, livro que não chegou a ser concluído devido à morte precoce de seu autor. Com esta obra, Benjamin tentou "apresentar a expressão da economia na cultura" (TIEDEMANN, 1982 In. BENJAMIN, 2018, p. 33). Tiedemann (p. 30) nos fala que "o que interessa va em Benjamin na cultura [era] sua superfície ou lado externo que contém ao mesmo tempo ilusão e promessa". A construção de Fordlândia, com sua violên cia e exploração humana e da natureza, devido à imposição forçosa tanto de um outro modelo produtivo como de um outro tempo - sempre imbricados -, pode ser implicada em um entendimento de que seu arruinamento iniciou-se muito antes de seu desmoronamento.

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Arriscamos: o futuro de Fordlândia é anunciado, desde o seu planejamento, como uma ruína. O almejado desenvolvimento social, pensado a partir da transformação dos seringueiros em verdadeiros operários da floresta, que aconteceria graças ao desenvolvimento econômico e tecnológico da região, de fato nunca se efetivou plenamente. Do contrário, a imposição de outro modelo de produção - e de vida - perpetuou e acentuou as desigualdades e violências neste processo. A arquitetura e urbanismo como expressão do de senvolvimento econômico, associados ao progresso, podem ser vistos, à con trapelo, como a sua própria ruína, quando se entende que a ideia de progres so é em si uma marcha para a catástrofe. Assim, como nos aponta Benjamin (2018) na sua crítica a respeito da Paris moderna dos anos 1868, poderíamos interpretar a moderna Fordlândia também como uma cidade "[...] arrivista que começa a contagem de tempo a partir do seu próprio surgimento."

REFERÊNCIAS

NOTAS

1 Em 1940, Vargas visitou Belterracidade construída também por Ford para substituir Fordlândia como local de produção de borracha, logo que foi compreendido que a company town original nunca conseguiria produzir a quantidade necessária da matéria -prima para gerar lucro. Foi nessa visita que Vargas proferiu o discurso em blemático de inauguração da "Marcha para Oeste", campanha para povoar e industrializar a Amazônia.

2 O jornalista João Ribeiro em O Estado de Florianópolis de 1931 es creve: "R. Morais não é só um escritor ou viajante. [...] Escrevendo sobre a 'Fordlândia', empresa gigantesca do milionário americano, pensei que cairia no lugar comum de arrepiar -se com o imperialismo e com a invasão da grande república do Norte. Esse fraco sentimento só medra em corações fracos sempre dispostos a um falso patriotismo hermético, de portas fechadas para o estrangeiro. [...]

A 'Fordlândia' é o complemento da

abertura do rio à navegação mundial. [...] Ele augura o futuro não muito re moto a grandeza do empreendimento colossal, a previsão de uma Nova Or leans onde hoje se assenta a humilde Santarém".

3 No caminho de Walter Benjamin (2018, p. 764): "Método deste traba lho: montagem literária. Não tenho nada a dizer. Somente a mostrar. [...] Porém, os farrapos, os resíduos: não quero inventariá-los, e sim fazer-lhes justiça da única maneira possível: utili zando-os." Ou: "Pensar por montagens no campo da história do pensamento urbanístico seria pensar [...] tensionan do as diferentes narrativas urbanas de seus mais diversos narradores, cons trutores e praticantes das cidades, de tempos distintos. Seria ainda utilizar os farrapos e resíduos, fragmentos tanto narrativos quanto urbanos, como tensionadores de homogeneidades, totalidades e partilhas hegemônicas, aprendendo com as heterocronias urbanas, já e ainda presentes – sobrevi

/

ventes, materialmente ou não, mesmo que por vezes apagadas, silenciadas ou esquecidas – em qualquer cidade" (JACQUES, 2018 In: JACQUES; PEREIRA, 2018, p. 223).

4 Reproduzimos aqui a tese XV das Teses sobre o conceito de História, de Walter Benjamin: “A consciência de fazer explodir o contínuo da história é própria das classes revolucionárias no instante de sua ação. A Gran de Revolução introduziu um novo calendário. O dia com o qual começa o novo calendário funciona como um condensador de tempo histórico. E, no fundo, é o mesmo dia que retorna sem pre na figura dos dias de festa, que são dias da rememoração. Os calendários, portanto, não contam o tempo como relógios. Eles são monumentos de uma consciência da história da qual, há cem anos, parece não haver na Europa os mínimos vestígios. Ainda na Revolu ção de julho ocorreu um incidente em que essa consciência se fez valer. Che gado o anoitecer do primeiro dia de luta, ocorreu que em vários pontos de Paris, ao mesmo tempo e sem prévio acerto, dispararam-se tiros contra os relógios das torres. Uma testemunha ocular, que, talvez, devesse à rima a sua intuição divinatória, escreveu então: [...] Quem poderia imaginar! Dizem que irritados contra a hora/ Novos Jo sués, ao pé de cada torre/ Atiraram nos relógios para parar o dia." (BENJAMIN, 1940 In: LOWY, 2005, n.p., e-book).

5 "[Ao utilizar as imagens de pensa mento,] Walter Benjamin escreve em fragmentos e renuncia ao curso ininterrompido da argumentação

que persegue uma única questão, que segue uma única lógica ou visa um único objetivo, não mais seguindo um estilo argumentativo dedutivo e linear. [...] Essas imagens não são em nada figurações eternas, mas querem não só opor ao pensamento conceitual um ponto de suspensão, como também chocar pela sua forma enigmática e assim colocar em movimento um pen sar." (GAGNEBIN, 2017 In: BRITO; JACQUES, 2017, p. 33) “A imagem de pensamento é, muitas vezes, algo bem mais simples ou bem ‘menor’, até mes mo minúsculo, que nos toca por sua intensidade concreta, imediata e, ao mesmo tempo, sintomática”. (DIDI -HUBERMAN, 2017, In: JACQUES; PEREIRA, 2018, p. 225).

6 Uma reportagem do Jornal do Commercio (AM) de 1945 relata as especificações do decreto-lei que determinou a aquisição das concessões de terras de Fordlândia e Belterra ao Banco de Crédito da Borracha S. A.: "o artigo quarto. dispõe que Banco de Crédito da Borracha S. A., em 31 de dezembro do corrente ano, entrará de posse do acervo da Companhia Ford do Brasil, inclusive das concessões de Fordlândia e Belterra, cuja transferên cia ao referido banco fica o Estado do Pará autorizado a efetuar [...] A conta e demais fundos especiais, correrão as despesas até o máximo de 24 milhões e 300 mil cruzeiros com o custeio".

7 APara uma comparação, morreram 500 soldados brasileiros, entre os que atuaram na Itália, durante a Guerra.

8 A partir da segunda década do século

XX, países como Malásia e Sumatra substituíram a região Amazônica como maiores produtores de borracha: “Em 1912, propriedades na Malásia e em Sumatra estavam produzindo 8.500 toneladas, comparadas com as 38 mil toneladas da Amazônia. Dois anos depois, a Ásia estava exportando mais de 71 mil toneladas. Menos de três anos depois, este número subiu para 370 mil toneladas”. (GRANDIN, 2013, p. 45). As seringueiras da Ásia eram originárias da Amazônia, devido à uma operação de biopirataria que Henry Wickham (tornado cavaleiro pela Rainha Vitória por essa operação) empreendeu ao contrabandear 70 mil sementes amazônicas e entregá-las aos Reais Jardins Botânicos de Londres, “onde foram transformadas nas mudas usadas no desenvolvimento da concor rência para o látex" (p. 45) nas colônias inglesas da Ásia.

9 Enquanto finalizávamos este texto, eram relatados incêndios criminosos no Pantanal brasileiro, onde quase 25 mil hectares dos cerca de 815 mil do Pantanal já foram devastados pelo fogo somente este ano. Enquanto isso, segundo informações da BBC News Brasil (2020), o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) diminuiu o ritmo das operações de fiscalização no Mato Grosso do Sul, refletindo na queda das multas aplicadas a desma tamento e queimadas ilegais (uma queda de 22%, em comparação ao ano passado). É impossível não associar esses acontecimentos, entendendo-os como sobrevivências históricas do in cêndio de grandes dimensões, iniciado

por Ford em 1928, com o objetivo de abrir terreno para a sua plantação de se ringueiras no Pará. Fordlândia já surge, portanto, como prenúncio e símbolo de uma época de exploração brutal e cri minosa da região Norte brasileira.

10 Os costumes e proibições na cidade não se limitavam apenas às questões relacionadas aos hábitos alimentares e à proibição de bebidas alcoólicas. O jornal Pacotilha (MA) publicou em 1930, numa matéria intitulada: "A dissolu ção dos costumes na Fordlândia": "Em veemente e judiciosa local, [o jornal] 'A Noite' chama a atenção do governo fe deral para a região amazônica explorada pelo milionário Ford, que se transfor mou num velhaconto de prostituição."

11 Anna L. Tsing estuda a relação entre a destruição capitalista e sobrevivências multiespécies nas paisagens arruinadas por esse sistema econômico: "Agri cultores cortam carvalhos para lenha e carvão; carvalhos brotam de seus tocos, tornando-se características estáveis da arquitetura da floresta. A floresta aberta de carvalhos cortados dá lugar a pinhei ros [...] O pinheiro, por sua vez, cresce com cogumelos matsutake, que com plementam os nutrientes das árvores, pois também se alimentam das raízes. Os seres humanos apreciam os corpos reprodutivos fúngicos como alimento gourmet. Essas coordenações produzem uma floresta [...] [as quais] são moldadas pela industrialização, guerra e urbani zação, por um lado, e novas espécies, mudanças climáticas e doenças, por ou tro. Os humanos são parte da história, mas os humanos não fazem a história” (TSING, 2019, p. 148).

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Walt Disney visitou Fordlândia em 1941, quando participou de uma mis são para promover a integração comer cial, cultural e científica das Américas. "A Disneylândia, com sua mistura de canais que se alternam entre história e fantasia, realidade e simulação, inventa uma maneira de se relacionar com o mundo físico que caracteriza cada vez mais a vida cotidiana. Essa concepção controlada e totalmente sintética ofe rece uma experiência simplificada e hi gienizada que substitui a complexidade mais rebelde da cidade." (SORKIN, Michael. 2004, p. 234) Não à toa, Sor kin fala que a Disneylândia promove uma "diversões em cadeia fordista". Fordlândia queria também essa versão estranha e corrigida da natureza, mas a produção não era de diversões, e sim de trabalho.

13 Durante a Política de boa vizinhança, havia "[...] uma série de iniciativas [...] que os Estados Unidos desenvolviam com relação a seus 'vizinhos do Sul', as quais receberam, quando não o apoio governamental explícito, ao menos uma espécie de chancela oficial. No âmbito cultural, essas iniciativas foram de natureza bem diversa: exposições para divulgar a arquitetura e o urba nismo, como Brazil builds, em 1943; Two cities, planning in North and South America, em 1947; e Latin American architecture since 1945, em 1955, todas realizadas no The Museum of Modern Art (MoMA) de Nova York, e acom panhadas por publicações específicas; criação de símbolos da cultura latina destinados ao consumo de massas, como a carreira hollywoodiana de

Carmem Miranda, ou os personagens de quadrinhos Zé Carioca, Panchito e o Gauchinho Voador, criados quando da viagem de Walt Disney à América do Sul, em 1941." (GOMES; HUAPAYA, 2009, p. 153).

14 "Na Fordlândia, além dos documentários sobre expedições ao pólo Sul ou às montanhas da Lua, eram projetados filmes como Yellowstone National Park e Glacier National Park, promovendo viagens de lazer e apresentando aos trabalhadores da plantação as maravilhas naturais da América, acessíveis como nunca graças a Ford.” (GRANDIN, 2013, p. 291)

15 O Governo do Pará apresenta a Fordlândia de hoje: "Quase 90 anos depois, Fordlândia ainda mantém viva a memória daquela época. Andar pela cidade é como visitar um museu a céu aberto" (PARA, 2017). Em um site que promove turismo na região do Tapajós, traz: "Anualmente, grande número de visitantes se dirigem à Fordlândia, que está sob a administração política da cidade de Aveiro, localizada a 2 horas de barco do local" (TAPAJÓS, 2020). O site de turismo TripAdvisor, Fordlândia é apresentada como uma "Ghost Town" [cidade fantasma]. (TRIPADVISOR, 2020)

16 "Era corrente tomar Ford como um vampiro da atividade do homem ama zonense, para aqui vindo a fim de suga nossas riquezas e reduzir nossa gente à escravidão." (JORNAL… 1950).

17 Outra experiência emblemática bra sileira, também relacionada à cidade

-fábrica automobilística é a Cidade dos Motores (RJ), de J. L. Sert. "Tratava-se do projeto de uma cidade autossu ficiente com habitação, comércio, serviços e todos os equipamentos de educação, saúde e lazer [...]. Dimensio nada para abrigar 25 mil habitantes e serviria de suporte à implantação da Fábrica Nacional de Motores - FNM que ali estava sendo construída visan do a produção de motores de aviação e tratores brasileiros uma vez que as importações haviam sido prejudicadas devido à 2a Guerra Mundial." (ACKEL, 2007 In. CRONOLOGIA)

18 Cf. Cidades Fantasmas. Direção de Tyrell Spencer. Brasil, 2017. (70 min.), son., color.

19 Uma das pistas de que a educação dos brasileiros em Fordlândia dava-se menos a partir dos livros, é a constatação de que a biblioteca da cidade era composta somente de livros em inglês, que foram substituídos em 1948 num projeto do ministro Daniel de Carvalho. Cf. JORNAL… 1948.

20 Quando nos referimos a esta "educa ção através da imagem", entendemos a noção de imagem de maneira amplia da, a exemplo da própria difusão do conhecimento de Ford através dos seus livros. À respeito disso, por exemplo, o tradutor dos seus livros no Brasil, responsável por cunhar a expressão "o Jesus Cristo da indústria", foi o editor e famoso escritor de livros infantis Monteiro Lobato. Assim, é impossí vel não associar a ideia de educação - também da educação das crianças em Fordlândia - presente no trabalho de

ambos. Lobato descreve a história de Ford como "o 'Evangelho Messiânico do Futuro'. 'Para o Brasil', disse ele, 'não existe literatura ou estudo mais útil do que o livro de Henry Ford'" (GRANDIN, 2010, p. 90).

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PARA CITAR: FREIRE, A. L. S.; QUEIROZ, I. G. Fordlândiaruína do futuro, cidade fantasma. Redobra , n. 16, ano 7, p. 241-275, 2022.

DEBATES

E DEPOIS?: DE QUE NOSSA HERANÇA NOS TORNA CAPAZES?¹

ISABELLE STENGERS

Professora da Université Libre de Bruxelles

TRADUÇÃO

Cecília Campello do Amaral Mello (IPPUR / UFRJ) e Vladimir Moreira Lima (IAp / UERJ)

Herdar, quantos sentidos para essa palavra! Podemos herdar sem saber o que herdamos ou sem termos o menor pudor – ou então pensando ser mos capazes de fazer tábula rasa. Podemos também incitar alguns para que herdem – por exemplo, herdar de nossos ancestrais os gauleses – ou tentar persuadi-los de que a herança à qual se ligam nada mais é do que um peso que os paralisa. Podemos ainda elevar o que herdamos ao esta tuto de patrimônio da humanidade – nossa tarefa, assim, consistirá em fazer com que todos os humanos desta terra herdem…

De fato, o texto que introduziu nossos debates se valeu de pensadores acima de qualquer suspeita – Benjamin, Bernanos, Derrida; cada um ao seu modo conjuga a herança com uma escolha que não exige nada mas obriga, e que, muito mais do que nos pertencer, responde a um apelo, a um impulso, a uma violenta eleição. Mas eu gostaria aqui de lembrar dessa observação bem conhecida de George Canguilhem, historiador da biologia e da psicopatologia: “Quando saímos da Sorbonne pela rua Saint-Jacques, podemos subir ou descer; se subimos, nos aproximamos do Panteão, que é o Monumento onde estão alguns grandes homens, mas, se descemos, nos dirigimos diretamente para a Delegacia de Po lícia”2 .

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Talvez essa estranha bifurcação entre subir e descer não caracterize apenas aque les que estudam o espírito humano, ela também pode ser estendida à questão da herança – em todo caso, tal como a questão se coloca entre nós. Algumas vozes cuja elevação é indiscutível nos convocam a meditar sobre o sentido e a respon sabilidade dessa questão. Mas condenam certamente a maior parte a despencar ladeira abaixo, transformando aquilo a que atribuímos importância em um argu mento normativo pronto para acionar o braço armado do Estado. Não é em seu nome que vozes ressoam sob o modo da intimação, talvez mesmo sob o modo da imprecação, nos ordenando a não trair as Luzes, denunciando aqueles e aque las que às vezes chegam a ser tratados como Munichois3 , traindo seus valores em nome de uma paz ilusória?

Dirão que nossa herança é exigente. Quanto a mim, diria que ela é perigosa, altamente seletiva e suscetível de autorizar em toda boa consciência, em toda inocência, uma verdadeira caça às bruxas – e penso aqui na violência midiática ocorrida muito recentemente cujo alvo foi Houria Bouteldja, porta-voz dos In dígenas da República. Penso também naquilo que fez com que as herdeiras das lutas feministas gritassem “não em nosso nome” quando viram os defensores dos “direitos das mulheres”, recrutados tão recentemente, transformar o que havia sido conquistado em uma herança consensual, de que todo ser humano bem-pensante pode tirar proveito – mesmo que, para que sejam respeitados, seja necessário descer em direção à delegacia de polícia.

Talvez seja por isso que, enquanto mulher e enquanto filósofa, eu não queira cultivar a mínima piedade diante de nossa herança, mesmo que ela tenha me alimentado. Eu preciso lembrar da incontornável autoridade, disseminada em tantas demonstrações filosóficas, acerca da incapacidade das mulheres se elevarem à altura das exigências da filosofia. Como Virginia Woolf, em seus Três Guinéus, quero guardar uma memória longa e lenta, não para denunciar, mas para não aderir. “Jamais paremos de pensar”, escreve ela, “em que consiste esta ‘civilização’ em que nos encontramos?”4 .

Em Três Guinéus, Virginia Woolf prevenia as mulheres que, dali em diante, te riam acesso às instituições e às carreiras onde nossa herança é transmitida: “pre cisamos pensar”. Ela ousava considerar, inclusive, queimar essas grandes univer sidades – Oxford ou Cambridge! – capazes de transformar seus irmãos em seres ao mesmo tempo submissos e violentos, ávidos por reconhecimento e capazes das piores brutalidades se os ideais abstratos que sustentam suas identidades são contestados. E, entretanto, como eu, Virginia certamente era uma filha das Lu zes, nem fiel, nem infiel, mas se recusando confiar nessa herança. Recusando-se também a fugir em direção às alturas desencarnadas onde se faz uma piedosa meditação sobre as aporias insuperáveis da existência humana.

Precisamos pensar: do que, hoje, aquilo que nós herdamos nos torna capazes? Esta questão ganha, atualmente, uma significação totalmente nova. Seria possível dissociá-la da maneira pela qual nós enfrentamos a questão “e depois?”, posta por

esse encontro; uma questão que desafia a imaginação, a nossa em todo caso, sobre tudo nesse momento em que está sendo cada vez mais documentada de forma pre cisa e sombria pelos climatólogos. Nós podemos saber, graças a esta ciência (que também faz parte de nossa herança) que não estamos diante de uma crise, isto é, de algo transitório. Os gases do efeito estufa que são ininterruptamente emitidos em quantidades cada vez maiores permanecerão na atmosfera durante séculos. Quando penso, hoje, em nossa herança, é o contraste entre esse saber e nossa consternação coletiva o que me arrebata. E a questão que me assombra não é, então, aquela das gerações futuras, questão bem abstrata, mas sim aquela das crianças nascidas nesse século, que conhecerão o que nós não podemos imagi nar. O que podemos lhes transmitir? Como falar para elas sobre o que herdam de um tal modo que possa significar algo diferente de uma maldição? Cada geração pode certamente dizer a seguinte: “Nós não podemos saber o que lhes aguarda, vocês terão que se virar”. Mas o que temos a lhes dizer é muito diferente: “Nós sabíamos o que lhes aguardava e deixamos acontecer”.

Mais que meditar, talvez convenha aceitar a prova que consiste em escutar aque les que não pertencem a essa civilização em que nos encontramos, mas que pos suem algo a dizer a respeito do que nós somos capazes. O xamã e líder político Yanomami Davi Kopenawa, pertencente a um povo caracterizado pela antropo logia moderna como “animista”, observa que “os brancos dormem muito, mas só sonham com si mesmos”5 . Estranha inversão de leitura, pois nossa civilização relegou os animistas a um regime de pensamento dito primitivo, porque atri buiriam às coisas, vivas ou não, uma experiência, até mesmo um pensamento que, é claro, pertence apenas aos humanos. E eis que a caracterização se inverte: nós somos aqueles orgulhosos de ter aprendido a aceitar que até mesmo nossos sonhos só falam de nós mesmos. Até quando sonhamos com um mundo em que os animais seriam respeitados, imaginamos esse respeito de um modo que só faz sentido para nós – em termos de direitos a lhes conferir, mesmo que para isso tenhamos que descer a ladeira que nos leva à delegacia de polícia, depois ao tribunal. Ainda mais uma vez. Parece-me que Davi Kopenawa não se engana. A moda intelectual que, hoje, nos propõe pensar o desastre que nós deixaremos como herança para nossas crianças através do tema do Antropoceno é testemunha disso. Antropos, o Homem, teria hoje conquistado o estatuto de força geológica. Ele involuntariamente prejudi cou o que desfrutávamos, entendendo como algo adquirido: o regime climático relativamente estável e temperado da época chamada Holoceno. Antropos, o Homem conquistador, havia definido a natureza como aquilo que ele estava livre para transformar, devastando-a profundamente. Até o fundo do oceano está poluído por plástico. Muitos dentre nós lutaram contra esta devas tação, falaram da necessidade de preservar nosso patrimônio comum. Mas hoje descobrimos um outro aspecto do que chamamos natureza. Esta natureza com que nos defrontamos hoje não é frágil, vulnerável e não está à nossa disposição;

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trata-se, antes, de uma potência temível, e é com ela que será preciso, se formos capazes, aprender a compor – e não no tempo de uma crise, mas para sempre .

Davi Kopenawa não se engana, os Brancos só sonham com si mesmos. E esse sonho quer que sejamos incapazes de aceitar o que está acontecendo. Sim, nós sabemos, mas não podemos nos impedir de pensar que trata-se apenas de uma crise, que um dia tudo entrará novamente na ordem humana. Antropos sonha hoje com aquilo que se chama geo-engenharia, que o tornaria capaz de domar o clima e também, por que não, capaz de regenerar uma Terra esgotada, envenena da, que entrou em um período que, para os paleontólogos, seria aquele da sexta extinção em massa. O Antropoceno é a Era do Homem que, tendo tomado cons ciência de seu poder, deveria assumir a gestão do planeta. Como se houvesse a mínima equivalência entre o poder de desencadear dinâmicas potencialmente irreversíveis e o poder de controlá-las, entre o poder de destruir e o de reparar.

Não gritemos mais uma vez, não protestemos afirmando que nós não somos Antropos. Antropos faz parte de nossa herança. Nós o herdamos a cada vez em que lemos sem nos espantar, na escola ou em um livro de vulgarização, esses relatos épicos em que “o homem” é o sujeito – “o homem”, sonhando isso ou descobrindo aquilo, ou se aceitando só em um mundo mudo, ao contrário dos povos supersticiosos. Não repitamos, segundo o filósofo Kant, que o homem adulto abandonou as muletas de suas superstições, que ele ousou fazer uso de seu entendimento. Esse homem, de pé sobre suas duas pernas, estudando as es trelas ao invés de venerá-las, é Antropos.

Antropos, então, faz parte de nossa herança. E essa parte de nossa herança não é capaz de aceitar o que se anuncia. É preciso uma história que seja digna dele: seja estando à altura do desafio, silenciando aqueles que ele chama de “catastro fistas”; seja engendrando uma história trágica, que será aquela da punição por sua audácia, ele que soube sonhar em se emancipar daquilo que o vincula à Terra. Será, então, game over, como dizem os americanos: o jogo acabou mas a honra está salva. Nós não teremos traído o nosso destino, mesmo se o preço for tornar a Terra inviável para uma grande parte daqueles que a habitam – as formigas e os cupins talvez sobrevivam, sem dúvida até mesmo alguns roedores e, certamen te, o imenso povo das bactérias.

Nada é mais obsceno que esse game over, com essa data que nos deixa siderados, 2050, quando, aprendemos, saberemos se passaremos ou não o limiar fatídico a partir do qual nada mais impedirá a temperatura média da terra aumentar muito além de dois graus. Como se a cortina caísse. Como se não houvesse mais nada a fazer. E nada a fazer uma vez que nós passaríamos a viver em um mundo que não nos promete mais nada, um mundo sem futuro, para além de toda redenção. Nossa última grandeza será reconhecer que fomos julgados e punidos. E isso é obsceno porque, mais uma vez, isso nos permite ainda ocupar todos os lugares, sonhar apenas com nós mesmos. “Nós fomos julgados” – como se uma verdade estivesse em jogo em um processo que implica tantos seres vivos, humanos e

não humanos, que não estavam concernidos por essa verdade, em um processo cego quanto às razões que podemos lhe atribuir.

Então, a questão talvez não seja aquela de promessas ou ausência de promessa de futuro. Talvez não haja mais futuro. E é essa exatamente a prova à qual nós nos confrontamos. Aquilo que nós herdamos pode alimentar nossa capacidade de nos desintoxicar dos sonhos do Antropos? Poderá nos ajudar a tomar partido, apesar dele, das maneiras de viver e de morrer com aqueles, os outros seres ter renos, humanos e não humanos, que continuarão a viver, custe o que custar, em um mundo em ruínas? E isso sem ter necessidade de promessas

É certo que a maior parte dentre nós em breve estarão mortos, bem rápido para escapar ao pior. Alívio covarde. Mas é diante das crianças desse século, essas crianças que conhecerão aquilo de que conseguiremos escapar, que se trata de pensar. O que implica conferir o poder de nos fazer pensar na probabilidade de les nos amaldiçoarem ou, pior, zombarem da evocação de nossos sonhos. É por eles, com efeito, que seremos julgados. Eles não meditarão mais sobre sua he rança, mas se arriscarão, nas ruínas, em prolongar o que nós aceitamos hoje: por exemplo, a necessidade de nos mobilizar para aumentar nossa competitividade. O que significa, na guerra econômica global, ganhar partes do mercado que ou tros perderão. Azar dos vencidos. Cada um por si na grande competição em que se afrontam os indivíduos, as regiões, as nações, os continentes.

Deste modo, a questão da herança se coloca para mim diante daqueles e daque las que, de qualquer maneira, estão condenados a viver nas ruínas deixadas pelos sonhos do Antropos, a ruína do conjunto daquilo que se supunha nos defender contra a sorte de todo ser vivo: a precaridade. E não falo aqui da precariedade im posta pela competitividade que faz reinar o medo de perder o seu emprego ou o temor de que nossa aposentadoria não nos permitirá viver dignamente. Essa precariedade já nos é familiar, mas nós soubemos impô-la a partir de cálculos hu manos. Eu penso em uma precariedade mais radical, contra a qual não há mais nada a protestar pois ninguém estará presente para responder a esses protestos. É essa a precariedade que muitos povos sobre essa Terra conhecem, e talvez estejam melhor equipados para vivê-la pois evitam o desespero de ver desaparecer aqui lo que tomavam como o que lhes é devido. Mas é justamente essa precariedade que se tratará de aceitar como horizonte para vidas dignas, apesar disso, de serem vividas. Pois se nós deixarmos às crianças desse século, e aos seus filhos, apenas a memória de nosso desespero e de nossa impotência, nós lhes deixaremos uma herança envenenada, feita de sonhos decepcionados e de ressentimento. O “e de pois?”, é agora que é preciso pensar, pois sua imaginação se alimentará dos apren dizados, dos relatos, dos possíveis que nós teremos sido capazes de compartilhar com eles quando nos colocarem a questão: “Vocês sabiam. O que fizeram?”.

Os ativistas, sobretudo nos Estados Unidos, fazem do reclaim a sua bússola. Re claim , que vem do francês “reclamar”, quer dizer recuperar, no sentido de lutar mas também de se reapropriar e de curar – pois eles aprenderam que a luta seria

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estéril se ela não se acoplasse ao aprendizado daquilo que demanda uma cultura da interdependência, onde cada uma e cada um se torna capaz de imaginar, de agir e viver graças aos outros, com os outros e também se arriscando diante dos outros. Reclaim é regenerar a capacidade de fazer existir nas lutas do presente os vínculos e os pertencimentos que foram destruídos para que exista Antropos. Isso significa lutar contra ou a favor de nossa herança? É aprender, em todo caso, a se curar de seus venenos.

Esse tipo de aprendizado não tem nada de exótico. Ele acontece, hoje, em um lu gar que não está tão longe de vocês. Uma vez que eu havia aceitado o convite do Fórum Philo du Mans, não pude comparecer à Notre-Dames-des-Landes, onde estão convergindo nesse momento pessoas que se definem como “oriundas do mundo dos livros, das letras e dos saberes”. Essas pessoas não sabem o que ad virá da herança que as alimentou e que também alimentou os sonhos de Antro pos. Mas elas sabem que o que se aprende em Notre-Dames-des-Landes é vital. Pois nesse lugar, aqueles e aquelas que resistem assumiram que seu futuro está em ruínas e não mais descendo a ladeira que vai do Panteão à delegacia de polí cia. Em Notre-Dame-des-Landes está se fabricando a herança que poderá ajudar as crianças de hoje a sonhar outros sonhos, diferentes daqueles de Antropos.

Tendo em vista que não pude estar lá, disse a mim mesma que poderia fazer escutar aqui o que nos diz um grupo de ocupantes que se denomina “Coletivo Tropa Errada”. Eis aqui alguns trechos de um texto que disponibilizaram online no dia 12 de outubro de 20166 .

Enquanto escrevemos essas linhas, o barulho do helicóptero tenta quebrar nossa concentração. Ele gira, infelizmente cotidianamente, lá onde os aviões não voam, espalhando seu rumor de guerra e reconquista. Ele espia e busca impressionar. Às vezes, ele se vira ligeiramente de lado para melhor nos observar. Ele está surpreso com a ronda dos tratores que há alguns dias depositam fardos de feno nas encru zilhadas? Com os comitês de apoio que vem identificar os lugares mais estratégicos para levantar suas barricadas? Com as formações que, a cada fim de semana, reú nem mais de cem pessoas que chegam para se preparar para as expulsões anuncia das? Talvez se surpreenda ainda mais com todos esses gestos que perduram. Sylvie e Marcel que cuidam do seu rebanho, as colheitas de trigo sarraceno, uma festa que celebra as colheitas de batatas, oitenta carpinteiros trabalhando na estrutura de um gigantesco hangar ou uma biblioteca recentemente inaugurada. Seu olhar pode abarcar, com os 2.000 hectares, toda a riqueza da vida que os povoa? É essa riqueza que eles pretendem destruir no próximo mês…

Se é vital para os governantes esmagar a zad 7, é porque ela constitui uma demons tração insolente de uma vida possível sem eles. E uma vida melhor. Pois aqui, a ex pressão “zona de não-direito”, que eles consideram apavorante, tomou uma acep ção radicalmente positiva. Contrariamente ao que existe nas ruas das cidades policiadas, na zad ninguém dorme ao relento e cada um come segundo sua fome. Grandes dormitórios acolhem os que chegam, um “não-mercado” semanal disponi

biliza os legumes, a farinha, o leite, o pão e os queijos produzidos no local sem que um preço venha sancionar seu valor. Nas muitas infraestruturas coletivas, mas também nas trocas ou nos trabalhos coletivos, as relações se baseiam na confiança e na ação comunal, o inverso das lógicas em curso que se apoiam na suspeita e no individualismo. Isso que os cínicos de todos os lados taxam de utopia irrealizável está provada nos gestos e na matéria. Mesmo a ausência de polícia e de justiça – os policiais não frequentam mais a zona desde 2013 –não produziu o caos que alguns teriam imaginado e desejado. Os opositores ao aeroporto demonstraram que são capazes de viver em grupo sem nenhuma tutela, subjugando-os. Pacientemente, uma comunidade de luta emergiu, unindo os vínculos tecidos para resistir tanto aos ataques quanto ao apodrecimento. Evidentemente, tudo isso não ocorre sem cho ques, tão desabituados que estamos para decidir sobre nossos devires. Nós reaprendemos, aprendemos, e nada é mais alegre e apaixonante do que mergulhar nesse desconhecido.

Se novamente for preciso tomar as trilhas da guerra para defender esse lugar, seremos mui tos a fazê-lo, aqui e em todo lugar. Foi o que mais uma vez afirmamos conjuntamente quan do ocorreu a grande manifestação de 8 de outubro. Sacamos nossos bastões e selamos esse juramento: defenderemos esse lugar como se defende a própria pele; policiais, soldados, polí ticos profissionais, vocês podem vir demolir as casas, abater o rebanho, destruir os arbustos que delimitam nosso território e as florestas, mas não se enganem: o fim de seus mandatos não será suficiente para extinguir o que vocês incendiarão em Notre-Dames-des-Landes.

Aquelas e aqueles que leem esse texto sabem o que aconteceu em Notre-Dames -des-Landes. O que quer que tenha ocorrido, será um começo, pois nada pode deter aquele que reaprende a criar a vida e a alegria dentro das ruínas.

NOTAS 1 Este texto foi originalmente publicado na coletânea Hériter, et après?, organizada por Jean Birnbaum, Éditions Gallimard, 2017. Trata-se de uma apresentação no 28° Forum Philo Le Monde/Le Mans, ocorrida entre os dias 4 e 6 de novembro de 2016 na Université Le Mans, sob a direção de Jean Birnbaum (cf. https:// umotion.univ-lemans.fr/forum-lemonde-le-mans/2016-heriter-et-apres/ video/0626-une-question-posee-parles-enfants/).

2 Georges Canguilhem, «Qu’est-ce que la psychologie?», in Études d’histoire et de philosophie des sciences, Paris, Vrin, 1994, p. 381.

3 O termo Munichois designa os partidários dos Acordos de Munique (1938). Em sentido figurado, indica a fraqueza e renúncia dos representan tes das democracias ocidentais frente ao avanço do nazi-fascismo (Nota da tradução).

4 Virginia Woolf, Trois Guinées, trad. Viviane Forrester, Paris, 10/18, 2002, p. 116.

5 Davi Kopenawa et Bruce Albert, La Chute du ciel. Paroles d’un chaman yanomami, Paris, Plon, coll. Terre hu maine, 2010, p. 284 (nouv. éd. Pocket, coll. Terre humaine poche, 2014).

Redobra , n. 16, ano 7, p. 279-285, 2022.

PARA CITAR: STENGERS, I. E depois?: de que nossa herança nos torna capazes? Tradução de Cecília Campello do Amaral Mello e Vladimir Moreira Lima.

HERDAR E DIFERIR

CECÍLIA CAMPELLO DO AMARAL MELLO

Professora associada do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ)

A raiva é cheia de informação e energia.

GRITO

Em sua intervenção no Fórum Philo Le Monde Le Mans1, a filósofa Isa belle Stengers faz o exercício de pensar a herança não como um estado de coisas já dado, em relação ao qual o sujeito precisa se posicionar, se responsabilizar, aderir ou se rebelar, mas como um vetor que o atravessa à sua revelia e, de algum modo, o obriga a se posicionar e agir. Não se herda uma coisa em si, transmitida de geração a geração, como no sen tido de se herdar um bem, uma riqueza que se recebe sem nada se ter feito, apenas por se pertencer a um segmento privilegiado. Herdar, no sentido em que Stengers delimita em sua fala-intervenção, é uma ação com efeitos bem concretos no mundo.

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É possível ignorá-la, tentar fingir que a herança não existe, ou ainda fazer como se ela não alterasse em nada o curso do sujeito – oriundo de uma tradição for jadora de subjetividades que se entende como capaz de romper com o “peso” das tradições. É essa a única herança que esse personagem particular julga digna de ser transmitida. Mas nada se herda impunemente. Herdar é, a um só tempo, ser posicionado e se posicionar no mundo – em relação a isso, não há indife rença possível. Stengers se dirige a seus colegas intelectuais europeus reunidos num grande fórum para discutir esse “tema premente da atualidade” e demar ca uma posição antiexegética e pragmática: o que faremos com essa herança? O que grupos minoritários têm criado em termos de alternativa ao modo de existência mortífero no qual estamos mergulhados(as) e ao qual não estamos destinados(as) como a uma fatalidade? Em suma, de que nossa herança nos tor na capazes? De minha parte, pergunto, talvez não tão modestamente, o que se ria possível dizer-fazer diante de uma catástrofe que não é uma previsão para 2050, mas um fato da atualidade para muitos(as)?

A primeira versão desse artigo se intitulava “Considerações sobre um grito” e foi apresentada em um seminário universitário em dezembro de 2017, diante do cochilo ostensivo de alguns homens brancos e do olhar encorajador de alguns colegas e estudantes2 . Os efeitos díspares dessa fala-intervenção naquele velho auditório me permitiram vislumbrar de forma um pouco mais nítida algumas facetas das questões que serão tratadas nesse artigo, que pode ser entendido como um ensaio sobre os modos possíveis de se habitar a universidade pública e produzir conhecimento nos dias de hoje.

O grito do título inicial era o grito de Indianare Siqueira, ativista transvestigêne re e puta, como ela se define, convidada a participar de uma atividade na univer sidade em agosto de 2017, na qual, como veremos adiante, ela recusou qualquer aliança com o saber científico e expressou abertamente seu desejo de demolir a instituição onde estava.

Esse artigo vai tratar dos efeitos da perturbadora convergência entre dois gritos: o de Indianare em 2017 e o grito de Virginia Woolf no ensaio “Três Guinéus”, publicado quase oitenta anos antes (1938). Nesse texto, a escritora britânica conclama as mulheres a não se deixarem cooptar pelo discurso bem-pensante dos seus maridos e irmão cultos, homens formados pelas Universidades de Ox ford e Cambridge, que, às vésperas da II Guerra Mundial, solicitavam o apoio feminino a um manifesto intitulado: “O que podem as mulheres para impedir a guerra?”. Woolf responde: nada3 . Não tinham até então acesso às universidades – não eram, portanto, cultas; não podiam exercer profissões bem remuneradas – e não eram, portanto, ricas. E, acima de tudo, esperavam que o acesso ao co nhecimento, às letras e às ciências fosse justamente o que poderia ter impedido os homens de forjarem uma nova guerra. Mas essa ideia revelou-se enganadora, constata Woolf. Ela não apenas conclama as mulheres que dispunham de algum

poder econômico a não doarem seus recursos à causa dos homens – porque “é claro que [esses recursos] não poderão ser consagrados à construção de uma uni versidade sob novas bases” – como incita, tomada pela raiva, que “as filhas dos homens cultos” queimem essas universidades e dancem em torno do fogo.

FOGOS

Essa imagem de mulheres queimando uma universidade patriarcal é, de fato, muito sedutora. Mas ela causa um mal-estar considerável naqueles e naquelas de nós que vivenciamos os sucessivos incêndios – propositais ou não – aos quais à Universidade Federal do Rio de Janeiro foi submetida nos últimos anos: o in cêndio de março de 2011 da capela de 1850 do campus da Praia Vermelha, tom bada pelo patrimônio histórico; o primeiro e o segundo incêndios no edifício da Reitoria, em outubro de 2016 e em abril de 2021, e o incêndio devastador que provocou a destruição do Museu Nacional da UFRJ, na Quinta da Boa Vista em setembro de 2018, evento profundamente traumático em sua brutalidade sem tamanho e pelo vazio que deixou. No dia seguinte, diante das cinzas do prédio onde tanto foi vivido, pensado, criado, ouvi de minha colega antropóloga, Joana Miller (UFF), a melhor definição do que acontecia ali: “Eis o velório de muitos mundos”.

Alguns colegas indagam: “Você vai defender a posição de quem questiona a uni versidade no momento em que ela sofre um dos piores, senão o pior ataque de sua história?”. Defender não, porque nem Virginia Woolf, muito menos India nare Siqueira precisam ser defendidas por quem quer que seja. Mas desejo, sim, prolongar esse grito, essa objeção, essa posição que é desconcertante para quem é cria e herdeira dessa universidade. Ela nos obriga a parar para pensar e a in ventar modos de herdar que não sejam replicar; que possam ser também diferir. Afirmo isso sem qualquer sombra de heroísmo, ciente da labuta que tal tarefa implica. Desejo argumentar que não se trata da mesma coisa, que não estamos falando do mesmo fogo, do mesmo incêndio. Aqueles que dizem que não pode mos criticar a universidade porque isso seria fazer o jogo de quem quer destruí -la produzem de forma insidiosa uma equivalência entre movimentos radical mente distintos. Há, evidentemente, uma diferença completa entre o desejo de destruir para construir algo novo e a destruição concreta, aplicada, impiedosa e cruel de um patrimônio incomensurável que demorou décadas para ser cons truído, que formou gerações e se afirmou enquanto espaço de uma potente e respeitável produção de conhecimento. O estabelecimento de uma distinção entre esses fogos é tão crucial, quanto impossível de ser desencarnada do agen ciamento concreto aos quais cada fogo se refere. Convido, então, o(a) leitor(a) a seguir o fio dessa meada.

Esse relato se inicia na Faculdade de Letras, onde o Instituto de Pesquisa e Plane jamento Urbano e Regional, no qual sou professora associada, se refugiou após

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o primeiro incêndio no edifício da Reitoria, em outubro de 2016. Desde então, embora o quinto andar não tenha sido atingido diretamente pelas chamas – ao contrário dos setores de Pessoal e Extensão da universidade, duramente atin gidos – a destruição de uma subestação de energia inviabiliza a ocupação das instalações do Instituto. O IPPUR está, portanto, há cinco anos, e sem previsão de retorno, sem salas de aula e de reunião próprias, sem salas de docentes, sem copa, sem auditório. Fomos generosa e prontamente acolhidos pela Faculdade de Letras, onde usamos as salas de aula mais antigas e instalamos a secretaria, a biblioteca e alguns laboratórios em espaços relativamente precários. Perdemos, ainda, os corredores e os espaços de convívio, descaracterizando o IPPUR en quanto espaço de encontro e trocas, vitais para a vida acadêmica e social de estu dantes e docentes4

Juntamente com os estudantes do GPDES (curso de graduação em Gestão Pú blica para o Desenvolvimento Econômico e Social, que faz parte do IPPUR), co -coordenei, em agosto de 2017, a organização de um Seminário de Extensão que abordaria temas que ainda são tratados de forma pontual nas disciplinas de Ges tão Pública. Os estudantes demandavam a discussão sobre essas temáticas, pois entendiam que os futuros gestores inevitavelmente terão que enfrentá-las em sua prática profissional. Os temas eram muito diversos e era esse o espírito do seminário Inclusão, Diversidade e Direitos : ser diverso ao pensar a diversidade. Eram eles: Ações Afirmativas no setor público; Desigualdades de Gênero e Raça; Populações LGBTI e setor público, Criminalização das drogas e encarceramento e Conflitos ambientais associados à indústria do petróleo.

A ideia era que, em cada mesa, tivéssemos pesquisadores(as) dedicados(as) a es sas temáticas lado a lado às pessoas que antigamente seriam definidas como “ob jeto da pesquisa” e que hoje são os “sujeitos da pesquisa” ou “interlocutores”. Por exemplo, na mesa sobre ações afirmativas, havia pesquisadores que estudam as políticas de ação afirmativa e estudantes por ela contemplados e que têm algo a dizer sobre ela; na mesa sobre criminalização das drogas e encarceramento ha via um estudante do GPDES, Samuel Lourenço Filho, egresso do sistema penal e autor de um belo livro sobre sua experiência no cárcere5 ; na mesa sobre conflitos em relação à pesca na Baía de Guanabara havia pessoas que estudaram o tema e Alexandre Anderson, pescador da Associação Homens e Mulheres do Mar, que com suas ações diretas e atuação junto à justiça, vem se contrapondo às áreas de exclusão de pesca impostas pela indústria petrolífera, verdadeiras áreas de exclu são do petróleo na Baía de Guanabara6 .

No exercício de construção do meu argumento irei deter-me, num primeiro momento, na mesa sobre população LGBTQI+ e políticas de saúde, onde havia pesquisadores da Fiocruz que trabalham com políticas de prevenção ao HIV -AIDS junto a esse segmento da população e Indianare Siqueira, ativista trans vestigênere e puta. Ao discurso científico, autorizado e bem intencionado dos

pesquisadores da Fiocruz, opôs-se o discurso de uma pessoa que é tida como público-alvo dessa política de saúde e que, no entanto, escapa à condição de “ob jeto” e se afirma enquanto alguém que tem algo a dizer sobre os efeitos dessa política em seu corpo. Para Indianare, algumas práticas da política de combate ao HIV-AIDS, em particular, a prescrição de antirretrovirais em caráter “preventi vo” para pessoas trans não portadoras do vírus, promoveriam o que ela chamou de “medicalização de corpos saudáveis” e reproduziriam a ideia de que é preciso proteger a “boa sociedade” branca e heterossexual das doenças disseminadas pe las travestis.

Indianare reafirma um dado que é de conhecimento público – confirmado pela própria Fiocruz – que a AIDS se concentra e cresce cada vez mais em popula ções heterossexuais. “Por que, então, políticas de distribuição de preservativos apenas para putas e travestis nos encontros que estas promovem e não para os médicos em seus Congressos Científicos?”, indaga Indianare. No público, um estudante do primeiro período de Gestão Pública pergunta como fazer terapia hormonal para transição de gênero. Os pesquisadores da Fiocruz emudecem diante do microfone: nada têm a dizer. E Indianare responde que este é um pro cesso muito delicado, que não pode ser feito de qualquer forma, mas com consultas a pessoas que já fizeram a transição e descobriram, por experimentos com o próprio corpo, o que funciona e o que não deve ser feito.

Antes de terminar, ela afirma: “O que eu queria mesmo era fazer os muros dessa universidade implodirem, tacar fogo, incendiar, acabar com tudo, destruir tudo mesmo”. Um dos pesquisadores tentou ponderar, argumentando que tinham objetivos em comum, a luta pelo direito à saúde, ao acesso a medicamentos etc., mas não conseguiu convencê-la. Após intenso debate, Indianare disse: “Você pode até ser gay, mas ainda é um homem branco cientista. Podemos ficar deba tendo aqui a noite toda, mas eu nunca vou concordar com você”.

Alguns dirão que o encerramento da fala de Indianare seria uma espécie de ex plosão de raiva, desatino ou um “ataque típico” de mulheres trans. Mas isso seria usar um clichê para parar de pensar. Ao invés de “tolerar” ou calar o grito de Indianare7, pode-se optar por levar a sério suas objeções e fazer seu grito ecoar, reverberar em outros locais, buscando desdobrar alguns questionamentos que esse grito ou essa cena como um todo carrega.

Importante pontuar que a noção de grito aqui usada nada tem a ver com a ideia de uma fala inarticulada ou sem sentido. Como afirma Vladimir Ribeiro (2016, p.66): “Um grito é, literalmente, detonador de uma corrente de ar diante de um sufocamento generalizado (…)”. Aqui não se pretende “domesticar o grito, mas fazê-lo ecoar, reverberar” e, mais do que isso, fazê-lo “destoar” do que se era esperado ouvir num auditório universitário. Desejo prolongar a potência das proposições de Indianare, que são inseparáveis da raiva como foram lançadas.

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Diante das feministas brancas que pedem que ela se expresse “de forma mais gentil” e que contenha sua raiva, Audre Lorde (1981), feminista negra estaduni dense, afirma: “a raiva é cheia de informação e energia”. Por isso, Lorde defende que deveríamos dar mais atenção à raiva, pois ela nos diz de uma história em que mulheres brancas e negras não foram aliadas, uma história em que a injunção a serem calmas, a domesticarem a raiva e a revolta foi justamente um dos meios de expressão do racismo, do sexismo e da opressão experimentada pelas mulheres negras, promovida por mãos brancas. Injunção à qual também estamos subme tidas nós, mulheres brancas, pelo viés do sexismo. Lorde afirma a raiva não como obstáculo ou problema a ser superado. A raiva, no contexto de um exercício de diálogo entre feministas negras e brancas, surge como um efeito do racismo não analisado de nós mulheres brancas e, por isso, precisa ser levada a sério e enfren tada. Em suas palavras, “qualquer discussão entre mulheres sobre racismo deve incluir o reconhecimento e o uso da nossa raiva” (Lorde, 1981, p. 9).

O potente desse encontro conflitivo entre mulheres é a objeção das mulheres negras diante do desejo de unificação das mulheres brancas sob a categoria “mu lheres”, em geral, que exprime de forma limitada as experiências das mulheres negras e negligencia a opressão das primeiras sobre as segundas. A história do feminismo expressa essa clivagem desde seus primórdios8 : no mesmo mo vimento de constituição do feminismo enquanto movimento político e devir minoritário, nós, mulheres brancas, somos instadas a desaderir do majoritário -em-nós e a questionar nossa necessidade de reconhecimento e nossa fidelida de ao patriarcado branco masculino. Então, pergunto: nossas práticas enquanto docentes e pesquisadoras indicam, de fato, um desejo de desadesão ao patriar cado branco masculino? Tenho minhas dúvidas. O que estamos concretamente fazendo nesse sentido?

Indianare projeta em cena sua ruptura pessoal e política com o majoritário, ao se recusar a “fazer o jogo” acadêmico, ao não aceitar ser “gentil” ou contemporizar com os colegas de mesa. Impede, assim, que sua presença ali passe a equivaler a qualquer coisa. O grito de Indianare carrega consigo a raiva, o cansaço e a carga insuportável da recorrência de uma série de fatos que iremos expor a seguir. Te mos, de um lado, o discurso autorizado da Ciência, que se crê bem intencionado, ou bom em si mesmo, encarnado na pessoa do pesquisador ali presente. Mas, ao contrário do esperado, o corpo-objeto dessa Ciência9 formula uma objeção: “o que vocês querem de mim?”. Estamos lidando com pessoas e grupos para os quais a relação de conhecimento não é indiferente, ou seja, sujeitos que formu lam objeções e questionam nossas práticas de pesquisa (Stengers, 1997).

Nesse sentido, o corpo-objeto se transforma, em Indianare, num corpo-potên cia, que, fazendo-se presente e visível, não apenas recusa a ideia de uma natureza inscrita binariamente nos corpos (sexo masculino/sexo feminino), como tam bém refuta a prática científica que visa reintroduzir a natureza (e a estigmatização

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de seus corpos como intrinsecamente perigosos) lá onde ela já foi há tempos su perada. As mulheres trans estão numa outra etapa, de superação da epidemia de AIDS e desenvolvimento pleno dos cuidados de si, práticas que as protegeram nas últimas décadas a ponto de não poderem mais suportar a reiteração insisten te e errônea de que seriam “grupo de risco” da doença.

Essa cena também evidencia o caráter majoritário de quem concebe as políticas de saúde e seu silêncio ou incompetência em relação às necessidades formuladas pelo próprio grupo; “as demandas do grupo”, no caso, a transição hormonal. O devir minoritário muda tanto o meio (a minoria) quanto o majoritário, deses tabilizando-o. Os grupos que fogem à heteronormatividade não suportam con sensos impostos à força: quando parece que se resolveu a questão, aparece um novo problema. O exemplo mais sintomático disso é a trajetória da sigla LGBT, que era GLS, virou LGBT, LGBTI, LGBTQI+ e vai continuar mudando, impedin do que se fechem as possibilidades, ou se institua uma unidade ou uma definição de uma vez por todas sobre as múltiplas formas de ser gente, desejar e amar.

MEADA

Escolhi essa cena porque acredito que, por mais afastada aparentemente do campo do planejamento urbano e regional (exceto pelo fato significativo de ter acontecido dentro do IPPUR), a densidade e a complexidade das questões que aí estão embutidas mereceriam ser desdobradas para o nosso meio. Vou começar pelo desejo perturbador de Indianare de demolir a universidade. Confesso que sou muitas vezes tomada por esse desejo, o que me leva a crer que talvez ele seja compartilhado por mais alguns e algumas de nós. A primeira forma de repressão desse desejo, de não permitir elaborá-lo ou levá-lo às últimas consequências, seria a objeção, já mencionada, de que não podemos questionar as práticas da Universidade, porque a universidade pública já está desmoronando, ou sendo desfeita.

Eis o trabalho cotidiano e insidioso da tecnocracia promotora do neoliberalismo na educação, atualmente acoplada a um projeto político a um só tempo ultralibe ral em termos econômicos e ultraconservador em termos políticos; anticiência, anti-minorias, antigênero, anticultura e antiambiental. Um projeto que preten de bloquear o processo de democratização das universidades públicas, inviabi lizar a pesquisa10 e transformar o acesso e a produção de conhecimento numa mercadoria paga, cara e acessível a poucos. Eis novamente a questão da diferença entre os fogos. A crítica trans à ciência é de uma natureza totalmente distinta da articulação tenebrosa daqueles que querem acabar com a possibilidade de uma ciência autônoma e do pensamento crítico e que trabalham a favor do dogma, da obediência, do ódio a tudo o que diverge e do fim de tudo o que é público e bem comum. Indianare reclama uma ciência à escuta de seus usuários e permeável à sua participação cidadã efetiva, não enquanto “objetos” de uma política pública,

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mas enquanto seres pensantes que têm algo a dizer sobre uma política pública de saúde que lhes diga respeito11

O encontro com o grito de Indianare provocou a percepção de que muitas de nós temos também um grito atravessado na garganta12 . Esse grito envolve, certamente, um outro conjunto de questões, mas só se tornou perceptível e de algum modo “liberado”, graças a esse encontro num auditório lotado da Facul dade de Letras da UFRJ em agosto de 2017. O choque com o devir minoritário de Indianare e o concomitante aprofundamento da leitura do pensamento de intelectuais negras, instigada por um grupo de estudantes do IPPUR13 , tiveram um duplo efeito sobre mim: por um lado, tornaram perceptíveis e nomeáveis as instâncias de minha própria identificação com o majoritário e, ao mesmo tem po, me fizeram entrar em contato com o meu próprio devir minoritário, meu próprio processo de singularização. Entendo o termo majoritário no sentido delimitado por Deleuze e Guattari (1980), isto é, a constante, o modelo, ou pa drão a partir do qual tudo se avalia e tudo se julga; o modelo ao qual se almeja, o protótipo do que se deseja, consciente ou inconscientemente. Esses padrões, evidentemente, nada têm de naturais. Na academia, os termos daquilo que é de sejado, reconhecido e valorizado são definidos por pessoas que têm gênero, raça e classe bem determinados, mas que entendem essas variáveis como passíveis de serem abstraídas, em nome de uma posição “neutra”, “imparcial” e “científica”. O devir-minoritário, por outro lado, é o movimento de se escapar à captura pelo majoritário, a força que impele à não-adequação ao modelo; a força de afirmação da sua própria diferença.

Poderíamos, então, afirmar que aquilo que chamamos de “homem branco”, para encurtar a história, seria, mais precisamente, uma espécie de imagem da tendên cia ao majoritário. Tendência que irá ganhar consistência ou, ao contrário, ser limitada, dependendo do terreno onde estiver brotando e também dos proces sos de subjetivação infrapessoais que irão favorecer ou não a eclosão e o domínio desse vetor “homem branco” dentro de cada um e cada uma de nós.

Note-se que todos e todas somos suscetíveis a esta tendência, que não discrimi na por gênero, raça, etnia, orientação sexual. O racismo não opera por exclusão, mas sim por inclusão diferenciada: ele projeta a ideia de que todos(as) podemos vir a ser o majoritário, mesmo que, no limite, o majoritário seja ninguém14 . O “desejo de ser branco” não é algo que se supere “de uma vez por todas”. Como afirma Frantz Fanon (1952) trata-se de algo que opera em brancos e não-bran cos, mas produz efeitos evidentemente distintos em cada um desses grupos. O desejo de ser ou de pertencer ao mundo dos homens brancos é algo que re torna quando menos se espera, daí a importância de se cultivar uma prudência permanente diante dos poderes sedutores do majoritário-em-nós. Célia Collet (2021), em artigo neste número, analisa de forma extremamente lúcida os riscos que correm os indígenas (e podemos extrapolar para as minorias políticas em

geral) ao responderem “ao chamado do Mapinguari”, isto é, o risco de captura do devir minoritário pela adesão ao padrão definido como natural pelo majoritário, no caso, a universidade tal como definida pelos brancos. Em suas palavras: A chegada dos indígenas à universidade tem sido tratada por estes como uma apropria ção importante em meio à guerra em que vivem. Mas, como na história do Mapinguari, a universidade pode devorá-los caso eles passem a falar sua língua, a respondê-la em seus termos. O caçador há que manter-se atento para não virar presa. Principalmente por estar vivendo entre corpos-outros e compartilhando perigosamente de seus hábitos. A universi dade tem se aberto aos indígenas, mas ainda não aos seus conhecimentos.

Virginia Woolf, no ensaio já citado, chama atenção para o fato de que as mu lheres não acessariam de forma imune à educação superior e que correriam um grande risco de se tornarem como seus “maridos e irmãos cultos”: “Seres ao mesmo tempo submissos e violentos, ávidos por reconhecimento e capazes das piores brutalidades se os ideais abstratos que sustentam suas identidades são contestados”15 . O grito de Indianare reverbera o grito de Audre Lorde, que ecoa o grito de Virginia Woolf, retomado por María Puig de la Bellacasa e Isabelle Stengers. Esses gritos contém uma especificidade, mas todos sublinham o cará ter insuportável de um certo modo da relação saber-poder instituída pelo gênero masculino e branco, ao qual muitas de nós aderimos, que se reatualiza de forma bem-sucedida há décadas, cooptando muitas de nós para dinâmicas deploráveis instituídas no coração mesmo dos processos de produção de conhecimento.

Daí o desejo de algumas (ou seríamos muitas?) de destruição de certas práticas naturalizadas no mundo universitário e na pesquisa, que nos impedem de pen sar e criar e tentam nos transformar em dóceis professoras exauridas com a sobrecarga de aulas, de pesquisa, de orientação, trabalhando nas férias e nos finais de semana, terceirizando os cuidados com nossos filhos, quando conseguimos tê-los, para conseguirmos publicar artigos indexados que provarão nossa produ tividade, nossa competência, nossa competitividade16 . Nosso cotidiano é povoado por mecanismos micropolíticos de estímulo à com petição exacerbada entre pares: por mais que você tenha artigos publicados em periódicos reconhecidos, eles nunca serão em número suficiente, por mais que você tenha uma jornada de trabalho exaustiva, entre aulas, orientações e ban cas, é preciso sempre fazer mais. Como afirmam Despret e Stengers (2011, p.1011), há uma violência própria na relação entre entes que competem e também nos modos de avaliação a que todos(as) estamos submetidos(as), no “dever de fazer prosperar seu capital de atratividade”. As agências de fomento dizem e muitos(as) colegas repetem, “um saber digno desse nome não deve temer a ava liação objetiva: quantos artigos? Publicados em quais revistas? Quantos acordos de cooperação? Quantas colaborações com outras instituições de alto prestígio, contribuindo para o “posicionamento” da universidade no mercado mundial?”

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(Despret e Stengers, 2011, p.11). Não são poucos(as) os(as) nossos(as) colegas que concebem a universidade como uma linha de produção acelerada para a for mação de “recursos humanos” para o mercado de trabalho e criação de tecnolo gia de ponta e “soluções” para o chamado “desenvolvimento econômico”. Estamos imersos(as) e reproduzimos cotidiana e acriticamente a lógica do pro dutivismo acadêmico, da chamada ciência “salame”, recortada em vários artigos para render mais e de todo o trabalho de aceleração da produção acadêmica, em que a quantidade é o parâmetro máximo e a qualidade e o tempo necessários para simplesmente se pensar e desenvolver uma ideia é algo que não parece rele vante. Neste contexto político, cada professor é impelido a tornar-se empresário de si mesmo em busca de projetos, recursos e trabalhando na gestão de pessoas. Dentre o conjunto dos docentes, as docentes mulheres – e, dentre essas, as ne gras e mães – são desproporcionalmente penalizadas, como indica a importante pesquisa das professoras Fabrina Furtado e Carmen Andriolli, da UFRJ17. Estu dos e iniciativas recentes vêm buscando chamar atenção para as especificidades do trabalho feminino nas universidades e revelam uma precariedade maior da inserção das mulheres18 , bem como uma forte assimetria no acesso a bolsas de produtividade entre pesquisadores homens e mulheres (Cf. Guedes et al. 2015), com efeitos desiguais sobre suas respectivas carreiras e rendas19 .

OXIGÊNIO

Numa direção completamente oposta, posto tratar-se de uma força política cria tiva e transformadora, estamos vivenciando nos últimos anos uma universidade que se abriu para – ou melhor, que foi aberta por – um público de jovens – em sua maior parte, negros e negras – que fazem parte da primeira geração de suas famílias a ter acesso ao ensino superior. No Seminário de Extensão já mencio nado, em todas as mesas, ao abrir o microfone para a plenária, ouvia-se o ecoar dessas novas vozes. Por exemplo, na mesa sobre os conflitos relativos à pesca, um estudante afirmou: “Sou filho e irmão de pescador e fico muito feliz de ver pela primeira vez um pescador falando na universidade”. Numa perspectiva mais perturbadora, na mesa sobre drogas, ouvimos um estudante dizer: “Moro no Complexo do Alemão, meus primos estão virando traficantes e gostaria de saber se há algum setor da universidade que poderia me ajudar a impedir isso”. Temos, agora, estudantes que vivenciam na prática questões que perturbavam as gerações anteriores sobretudo no plano teórico. Há duas formas de se encarar a questão da democratização do acesso à universidade. Alguns encaram a chega da dessa nova geração – “para quem o conhecimento universitário não era algo dado ou devido, mas uma aventura em terra desconhecida” – como se isso fosse algo “normal”. Como dizem Despret e Stengers (2011, p.13): “A preocupação é da ordem de uma eventual “queda do nível”. Vocês são bem vindas(os), sua

presença é normal, pois nós somos “democratas”, mas vocês devem se adaptar às nossas condições, ou seja, são bem vindas sob a condição de que nada mude, com a condição de não criarem caso”.

Foram poucos os esforços até agora por nós vivenciados de “transformar a chega da daqueles e daquelas que não são “herdeiros” pré-formatados num verdadei ro desafio”, como afirmam Despret e Stengers (2011, p.13). Estamos diante do desafio de “propor-lhes saberes que sejam dignos deles e delas, que lhes abram outros horizontes diferentes daquele – fatal – de se juntar à elite, que sempre se definiu sem eles e elas, ou melhor, contra eles e elas” (Despret e Stengers, 2011, p.13). Como estar à altura das questões trazidas por esse “novo perfil de aluno”?

O que o encontro com essas pessoas pode potencializar em termos de criação de novas formas de pensar, aprender, ensinar e agir?

O que muda em nossas práticas o fato de estarmos dando aula para pessoas que foram tradicionalmente o objeto de estudos e intervenção das ciências da vida e das ciências humanas? E que, agora, estão em sala de aula formulando objeções à nossa fala, lembrando-nos que acreditamos falar do ponto de vista do uni versal, do humano, da Ciência, do não-marcado, mas que o branco é uma raça e uma forma majoritária de pensar e de impor o pensamento ao outro, a forma do homem-branco-ocidental-morador das grandes cidades – falante de uma língua indo-europeia, a norma, o padrão, o universal, o modelo a ser seguido. A presença dessa nova geração produz nas gerações anteriores (na qual me incluo) muitos desconfortos, alguma culpa, um certo medo (de falar algum impropério) e alguma vergonha saudável. É claro que há também os que não sentem vergo nha, os que se defendem atrás de piadas sem graça, os que ridicularizem “o im pério do politicamente correto”, o “mimimi” ou desqualifiquem os recém-che gados como pessoas “menos capazes”, fiéis à concepção propriamente racista da “ineducabilidade dos negros”, identificada por Sueli Carneiro (2005) como elemento central do dispositivo da racialidade em nossa sociedade.

Gostaria de prolongar esse sentimento gerado “de fora pra dentro” pelas con dições absolutamente vergonhosas com que nos defrontamos cotidianamente (por exemplo, apenas 2% dos professores universitários no Brasil serem ne gros20 ). Levar esta sensação de vergonha a sério produz uma obrigação. A meu ver, nossa obrigação é prolongar a objeção embutida na presença de filhos e ir mãos de pescadores em sala de aula. Em que condições ou como é possível que haja o encontro da universidade com seu “fora” sem que isso seja um encontro fundado nas mesmas premissas de sempre, isto é, na supremacia do conheci mento científico indo ao encontro das “massas” que a ele devem se submeter e se adequar?

Ao mesmo tempo, é necessário fugir da posição que acredita numa espécie de “espontaneísmo”, em que os sujeitos “falando por si próprios” são a fonte de

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uma “verdade que sobe das massas”. Como fugir de uma relação teoria-prática fundada numa lógica de totalização: prática pautada pela teoria ou teoria como mera duplicação da prática? Estamos diante do problema de uma nova relação teoria-prática, algo que não é nada novo, posto que formulado no contexto dos acontecimentos de 196821 , que provocaram uma espécie de torção nessa rela ção: estas não poderiam mais ser da ordem da totalização; ao contrário, seriam “muito mais parciais e fragmentárias” (Deleuze; Foucault, 1972, p. 69).

Gilles Deleuze lembra, numa conversa com Foucault, que os acontecimentos de maio de 68 provocaram algo que deveria ser levado em conta pelos intelec tuais a partir de então: a indignidade de se falar pelos outros. Os movimentos que eclodem naquele momento prescindem de algum ser bem pensante que fale por eles, no lugar deles. Não é mais possível pensar da mesma forma após maio de 6822 . Desde o GIP (Grupo de Informação sobre Prisões), que reunia pessoas encarceradas, lado-a-lado a intelectuais e ativistas como Foucault, notou-se que “quando os presos começaram a falar, eles tinham uma teoria sobre a prisão, a penalidade, a justiça”. Como fugir da reprodução de uma relação hierárquica na produção dos saberes sem ceder às tentações de um igualitarismo forçado? Guattari (1990) chamou isso de uma busca por relações transversais, que conectam heterogêneos capazes de produzir algo novo, afirmando suas diferenças e prescindindo de unificações de quaisquer ordens.

ENCONTRO

Para terminar – e assumindo que esta é uma reflexão inicial – gostaria de analisar o conceito de justiça ambiental enquanto um exemplo de uma ideia nascida do encontro entre o saber acadêmico e o saber das pessoas. Trabalhadores do se tor de limpeza da Universidade da Carolina do Norte – que também eram mo radores de bairros de maioria negra – se encontraram com acadêmicos negros e solicitaram que estes os auxiliassem na luta contra a instalação de um lixão de dejetos tóxicos em seu bairro. Desse encontro – e da assustadora correlação descoberta entre alocação de rejeitos tóxicos e bairros de minorias não-brancas – nasceram os conceitos de racismo ambiental, injustiça ambiental e seu corre lato afirmativo, justiça ambiental , isto é, “a condição de existência social con figurada através do tratamento justo e do envolvimento significativo de todas as pessoas, independentemente de sua raça, cor ou renda, no que diz respeito à elaboração, desenvolvimento, implementação e aplicação de políticas, leis e regulações ambientais” (Bullard, 1994 apud Acselrad, Mello e Bezerra, 2009).

Essa ideia pode ser entendida como produzida em coautoria, por uma entre-cap tura entre intelectuais e movimentos negros e comunitários. Frente ao discurso hegemônico do desenvolvimento sustentável, moradores de comunidades ne gras nos EUA gritaram que “a poluição não é democrática” e demandaram da universidade a realização de pesquisas a partir do prolongamento desse grito.

Verificou-se empiricamente – na pesquisa seminal coordenada pelo sociólogo negro Robert Bullard (1994) – uma perturbadora correlação entre lixões de re jeitos tóxicos perigosos e comunidades negras, latinas, indígenas e asiáticas. Em suma, a abertura para as linhas de força trazidas pelas minorias em luta levou a uma ampliação e a uma torção do conhecimento que até então se tinha sobre meio ambiente e desenvolvimento, chamando atenção para uma variável-chave que vinha sendo negligenciada até então no debate ambiental: a desigualdade na distribuição de bens e danos ambientais e o viés racista das escolhas locacionais (Cf. Acselrad, 2020).

Trabalhos como o de Robert Bullard são exemplos daquilo que a filósofa fe minista Sandra Harding (1991) denominou de “objetividade mais robusta” –stronger objectivity em inglês. Harding defende a possibilidade de produção de um tipo de conhecimento em que o predicado “científico” não signifique neu tralidade, dada sua impossibilidade lógica: quem produz conhecimento estará necessariamente posicionado em algum lugar bastante preciso do espaço social. Harding propõe o abandono da noção de neutralidade, mas defende a impor tância da busca de uma maior objetividade, de uma “objetividade ampliada” nas práticas de pesquisa. Essa objetividade maior seria alcançada na medida em que se incluísse – na formulação das questões e nos métodos de pesquisas – a expe riência das minorias em geral. Às filósofas feministas da ciência devemos a “des coberta” de que a Ciência que se quer não marcada, que se entende como obra de “humanos” e se sonha universal é uma prática ocidental, branca e masculina. Nós mulheres somos bem-vindas ao mundo da Ciência desde que “não criemos confusão”, desde que nossa presença não a transforme, desde que façamos como os outros (Despret e Stengers, 2011, p.35).

Indianare Siqueira é bem-vinda na universidade, “desde que não crie caso”. Quando grita, discorda e diverge, faz alguns se encolherem, outros desdenharem e outros se revitalizarem com a força de sua presença e de sua fala. Nosso exer cício aqui foi o de tentar prolongar aquilo que seu grito provocou, reativando outras heranças possíveis. No fim das contas, somos nós da universidade quem mais precisa das minorias. Não para instrumentalizá-las, como foi e é feito ad nauseum . Mas para que sua presença e seu grito nos tire a sensação de torpor, im potência e sufocamento e lance uma golfada de ar em nossos pulmões. Para que, a partir do contato com experiências de resistência extramuros, ganhemos força, ousadia e coragem para gritar em defesa das mínimas experiências de autonomia, inteligência coletiva e pensamento que ainda é possível aí cultivar. Trata-se, so bretudo, de sermos capazes de nos conectar transversalmente com a herança dos que objetam e resistem – e, mais do que isso, nos permitirmos de algum modo ser atravessados(as) e potencializados(as) pelas forças que os(as) atravessam. Quiçá isso poderá nos conduzir a redefinir os sentidos do que entendemos como co nhecimento ou, mais modestamente, a instigar o desejo e a curiosidade por se co nhecer mais e melhor certas partes insondáveis do mundo e de nós mesmos.

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NOTAS / REFERÊNCIAS

1 Trata-se de um encontro anual organizado pelo jornal Le Monde na cidade francesa de Mans, em parceria com a Universidade de Mans, em que filósofos(as), escritores(as), cientistas e artistas debatem uma questão da atualidade. No ano de 2016, o tema do Fórum foi a questão da herança.

2 Agradeço, em particular, os comentá rios (e memes) encorajadoras de Henri Acselrad, Fernanda Sánchez, Javier Guibaudi, Raquel Giffoni, Renata An tão, Stefânia Pereira, Fernanda Souza e Vladimir Ribeiro à primeira versão deste artigo.

3 Sigo, aqui, a história reativada pela instigante análise de María Puig de la Bellacasa (2012) sobre o pensamento feminista diante das ciências.

4 Importante destacar que esse artigo foi escrito no contexto pré-Covid-19, ou seja, antes da situação de desma terialização das aulas, que evidente mente, agravou ainda mais esse quadro pré-existente.

5 LOURENÇO FILHO, Samuel. Além das grades. Rio de Janeiro: NotaTera pia, 2018.

6 Para saber mais sobre a atuação da AHOMAR, cf. Rougemont (2014). A respeito de processos de resistência que envolvem, entre outros, a AHO MAR, cf. Mello (2020).

7 A voz da população trans não apenas é pouco escutada na academia e nas polí ticas públicas como é sistematicamente calada pela violência e pelos crimes de ódio. Segundo dados da Associação

Nacional de Transexuais e Travestis do Brasil (Antra), a expectativa de vida de uma pessoa transexual ou travesti no País é alarmantemente baixa: cerca de 35 anos – menos da metade da média nacional, estimada pelo IBGE em 75,2 anos. Além disso, 40% de todos os as sassinatos de pessoas trans registrados no mundo ocorrem em solo brasileiro (Jornal do Comércio de 27/09/2016).

8 O discurso de Sojourner Truth, uma mulher negra alforriada, em 1851, em Ohio, “Ain’t I a woman?” demarca as diferenças entre as experiências de mulheres negras e mulheres brancas no contexto do nascimento mesmo do movimento feminista norte-ame ricano.

9 Seguimos, aqui, a proposta de I. Sten gers de distinguir uma Ciência (com C maiúsculo), associada à tecnociência, ao disciplinamento dos corpos e à submissão aos interesses do capital e as ciências (com c minúsculo), associa da às práticas científicas que buscam preservar a autonomia, a criatividade e a aventura no fazer científico.

10 Enquanto reviso esse artigo em dezembro de 2021, recebo a notícia de que 90% dos recursos que iriam para o CNPq foram cortados e direcionados para a CNEN (Comissão Nacional de Energia Nuclear), com o argumento de que serão utilizados para produção de “radiofármacos”. Vale lembrar que a CNEN é ao mesmo tempo um órgão de fomento e de regulação da energia nu clear, o que caracteriza uma violação do artigo 8º da Convenção Internacional de Segurança Nuclear, da qual o Brasil

é signatário, que prevê que órgãos encarregados do fomento à energia nuclear sejam separados daqueles que realizam atividades de regulação e fiscalização. Esse tema já foi analisado por nós no relatório Missão Caetité: Violações de Direitos Humanos no Ciclo do Nuclear, editado pela Plataforma DHESCA Brasil. Cf. Lisboa; Zagallo; Mello (2011).

11 Importante lembrar que a “participa ção comunitária” é um dos princípios organizativos do SUS, regulada pela Lei 8142/90, que instituiu os Conse lhos de Saúde, as Conferências de Saú de, bem como os colegiados de gestão dos serviços de saúde, que preveem a participação dos usuários.

12 Falo num feminino plural porque “eu não sou só eu”; as questões que trago aqui são fruto de um processo de diálogo e intercâmbio com outras mulheres, brancas e negras, de dentro e de fora da universidade. Embora efeito de um movimento coletivo, as proposições aqui colocadas são de minha inteira responsabilidade.

13 Kelly Regina dos Santos Silva e Vic tor de Jesus Barbosa compartilharam generosamente suas bibliografias e me auxiliaram de forma decisiva na cons trução da disciplina sobre Desigualda des Raciais e Território.

14 Vale citar esse trecho já clássico do “Mil Platôs”: “O racismo europeu como pretensão do homem branco nunca procedeu por exclusão nem atribuição de alguém designado como Outro: seria antes nas sociedades pri

mitivas que se apreenderia o estrangei ro como um “outro”. O racismo pro cede por determinação das variações de desvio, em função do rosto Homem branco que pretende integrar em on das cada vez mais excêntricas e retar dadas os traços que não são conformes, ora para tolerá-lós em determinado lugar e em determinadas condições, em certo gueto, ora para apagá-los no muro que jamais suporta a alteridade (é um judeu, é um árabe, é um negro, é um louco... etc.). Do ponto de vista do racismo, não existe exterior, não existem as pessoas de fora. Só existem pessoas que deveriam ser como nós, e cujo crime é não o serem.” (Deleuze e Guattari, [1980]1996, p. 40).

15 I. Stengers (2017, p. 120), retomando a argumentação de María Puig de la Bellacasa (2012, p. 18).

16 Nunca esquecerei da imagem que uma colega professora e pesquisadora de um instituto de ciências “duras” compartilhou comigo no período em que estávamos em licença maternida de: sentia-se obrigada a amamentar seu bebê lendo os últimos artigos de sua área de pesquisa no smartphone, por que se perdesse seis meses da produção do seu campo ficaria irremediavelmen te defasada.

17 Estudo das professoras Fabrina Fur tado e Carmen Andriolli, do CPDA/ UFRRJ (2021, no prelo) com docentes mulheres durante a pandemia de Covid-19, aponta: “Como outras con sequências do capitalismo neoliberal, os efeitos da atual crise sanitária e econômica não são democráticos, nem

abstratos; têm gênero, tem raça, tem classe. Os efeitos são e serão viven ciados por mulheres, em particular as mulheres negras, de forma singular, profunda e a longo prazo”.

18 “Os dados da pesquisa “Mulheres, Maternidade e Covid-19: um olhar desde a universidade pública”, cuja coleta de dados ocorreu entre os dias 01 de julho de 2020 e 13 de agosto de 2020, revelam uma sobrecarga de trabalho para as mães docentes que, em decorrência da divisão sexual do trabalho, são responsáveis e muitas vezes responsabilizadas pelo trabalho doméstico e de cuidado das filhas e filhos. Uma sobrecarga de trabalho que dificulta e reduz a produção acadêmica dessas mulheres e, quando a produção acontece, é com um alto custo físico e emocional” (Furtado e Andriolli, 2021, no prelo).

19 “A iniciativa Parent in Science (2018) demonstrou que, apesar das mulheres serem maioria nos programas de mes trado e doutorado, levam mais tempo para atingir o topo da carreira; apenas 1/3 das bolsas de produtividade são destinadas às mulheres” (Furtado e Andriolli, 2021, no prelo).

20 Como analisa o prof. José Jorge de Carvalho no contundente (e ainda atual) texto de 2006 “O confinamento racial do mundo acadêmico brasilei ro”, tema retomado recentemente por Bárbara Cruz e Noshua Silva (2017), que analisam a persistência do confi namento racial nos espaços e práticas de produção do conhecimento num contexto pós-implementação de ações

afirmativas.

21 Diz Foucault: “O intelectual dizia a verdade àqueles que ainda não a viam e em nome daqueles que não podiam dizê-la: consciência e eloquência. Ora, o que os intelectuais descobri ram recentemente é que as massas não necessitam deles para saber; elas sabem perfeitamente, claramente, muito melhor que eles; e elas o dizem muito bem. Mas existe um sistema de poder que barra, proíbe, invalida esse discurso e esse saber (...). Os próprios intelectuais fazem parte desse sistema de poder” (1972, p.70-71).

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PARA CITAR: MELLO, C. C. do A. Herdar e diferir. Redobra , n. 16, ano 7, p. 287-304, 2022.

CELIA COLLET 1

Professora associada de Antropologia do Departamento de Educação da Universidade Federal Fluminense

ANTROPOS

Mais que meditar, talvez convenha aceitar a prova que consiste em escutar aque les que não pertencem a essa civilização em que nos encontramos, mas que pos suem algo a dizer a respeito do que nós somos capazes. O xamã e líder político Yanomami Davi Kopenawa, pertencente a um povo caracterizado pela antropo logia moderna como “animista”, observa que “os brancos dormem muito, mas só sonham com si mesmos”. (STENGERS, 2022, p. 281)

Este artigo é uma experiência de levar a sério a sugestão acima, para a qual Isabelle Stengers nos convida no texto “E depois? De que nossa he rança nos torna capazes?” (STENGERS, 2021). Proponho escutarmos os indígenas (através da antropologia2) sobre as questões da corporali dade, predação, captura, relação com o Estado, cultura e multinaturalis mo (VIVEIROS DE CASTRO, 2002) para que, ao fazer isso, possamos entrar em contato com o que “somos capazes”. E assim podermos, atra vés da composição de novos vínculos, reativar (reclaim3) potências há muito tempo subjugadas pelo modelo moderno e capitalista de pensa mento e relacionalidade.

DA INTERCULTURALIDADE À INTERCORPORALIDADE (OU COMO APRENDERMOS A LIDAR COM A PREDAÇÃO DO MAPINGUARI E DO LOBO-ARISTOTE PARA PODERMOS “SONHAR OUTROS SONHOS”)

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Davi Kopenawa diz que “os brancos… só sonham com si mesmos”, denuncian do nossa herança antropocêntrica. O Antropos, criado a partir da separação/ criação da natureza e da cultura como fundamentos do mundo ocidental e oci dentalizador, é a herança que recebemos e iremos passar às novas gerações se mantivermos a posição de não “aceitar o que se anuncia”: a condenação “a viver nas ruínas deixadas pelos sonhos do Antropos” (STENGERS, 2022, p. 283).

Tratarei do Antropos a partir de uma criação que o acompanha: a cultura. Mais especificamente, abordarei o campo da educação escolar indígena, que se assenta em uma noção derivada do conceito de cultura: a interculturalidade. Proponho pensar sobre o conceito de cultura como parte da captura colonialista, verifican do como ele funciona no campo da escolarização indígena. A partir da pergunta de Stengers sobre se “aquilo que herdamos pode alimentar nossa capacidade de nos desintoxicar do sonhos dos antropos” (STENGERS, 2022, p.283), propo nho escutar como os indígenas lidam com a constante ameaça de captura por parte do branco. E assim, quem sabe, podermos ter ideias sobre o que fazer com o que herdamos, a fim de nos tornarmos capazes de deixar uma herança de vida para nossas crianças.

Trago, com este propósito, ao lado dos indígenas, a arte de Tom Zé, John Cage, Angel Vianna e de uma certa antropologia, como experiências de reativação (re claim) de “certas práticas marginalizadas e desqualificadas pelo mundo moder no-capitalista (…), vendo aí modalidades de resistência política e possibilidades de recuperação de um ‘comum’” (SZTUTMAN, 2018, p.339).

Tom Zé se vincula a esta questão contando como o contato com a educação aris totélica fez com que aquilo que não se adequava à lógica clássica, por ele denomi nada de “lixo lógico”, ficasse guardada no “hipotálamo” para depois “vazar” para o “córtex” com o movimento tropicalista. Um processo de reativação, a partir de conexões e vínculos produzidos pelo movimento contracultural dos anos 60. A inspiração de John Cage junto a essa geração de músicos foi muito importante, trazendo possibilidades de intensidade fundamentais para o vazamento do “lixo lógico”.

A pesquisa corporal de Angel Vianna reativa a corporalidade em nossa sociedade cartesiana e reinsere o corpo como lugar de conhecimento. O aprofundamento no estudo de sua pedagogia foi fundamental para a construção da pergunta-pro posição central deste artigo: é possível dar uma virada na política de educação indígena, transformando a proposta baseada na noção de cultura (intercultu ralidade) em outra, baseada no corpo (intercorporalidade)? Como veremos, a corporalidade é o modo de conhecimento dos indígenas; levar isso a sério pode trazer uma alternativa à atual política de educação intercultural. Trata-se de uma proposta evidentemente aberta ao debate. Seu pressuposto é a compreensão de que aquilo que os indígenas fazem com sua tecnologia ancestral de contracaptu ra é muito eficiente no seu movimento de existência e resistência.

A ideia de intercorporalidade também é herdeira de uma “antropologia da dife rença” desenvolvida por Lévi-Strauss no Pensamento Selvagem (1989) e Eduar do Viveiros de Castro (2002) e Tania Stolze (2005) com o conceito de “pers pectivismo ameríndio”, que coloca a corporalidade no centro do pensamento indígena. Proponho que a reativação da corporalidade seja uma possibilidade de (re)aprendermos a lidar com o sistema de captura. Para os indígenas, é impres cindível que saibamos como nos relacionar com os “outros poderosos” que a todo momento estão prestes a capturar nossa perspectiva (COLLET, 2006). A perspectiva está no corpo. A perspectiva é o corpo. Uma mudança corporal gera mudança de perspectiva. Assim eles lidam com os mortos, com as outras espé cies, com o parentesco e, também, com os brancos colonizadores.

A noção de cultura, como veremos, é uma máquina de captura da diferença. O culturalismo propõe a diversidade a partir de uma base universal-natural: o An tropos. Ao escutarmos os indígenas, temos a possibilidade de sair dessa captura. Sair da prisão a uma única ontologia, aquela construída pela modernidade em basada na invenção da dicotomia natureza-cultura.

A ESCRITA E ESTA ESCRITA

A escrita alfabética ocidental já é uma expressão do Antropos. Palavras que pre tendem representar, falar sobre o “mundo”, a “realidade” e a “natureza”. Muito diferente e distante das palavras-que-fazem-mundo, das palavras em continui dade com o mundo que notamos entre os indígenas e outros povos não ociden talizados. Proponho, neste escrito, uma experimentação sobre como abrir bre chas na herança de escrita que recebi, para que possa mais escrever-com do que escrever-sobre . Como veremos a seguir, a partir da proposta de corporalidade, minha aposta é pesquisar uma escrita-corpo, escrita-matéria, escrita-imanên cia. Nessa posição de experimentação, já pretendo me colocar fora do mundo da verdade, do finito. Assumo esse exercício como um processo em construção. Por isso, provavelmente, ainda aqui escrevo sobre . Mas espero que possa fazer escapar alguma materialidade nessa escrita, algum têxtil nesse texto.

O escrito trata de bricolagem e vai se formando como uma colagem, fala de pen samento mítico e aproxima personagens de épocas e contextos diferentes, crian do um novo corpo em que eles interagem. Espero fazer uma máquina-texto que coloque em relação peças tiradas de contextos diferentes, mas que possam fun cionar juntas, para ajudar a pensar o que seria uma educação intercorporal.

Manoel de Barros (2010) vem abrir o trabalho:

Descobri aos 13 anos que o que me dava prazer nas leituras não era a beleza das frases, mas a doença delas. Comuniquei ao Padre Ezequiel, um meu Preceptor, esse gosto esquisito. Eu pensava que fosse um sujeito escaleno.

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- Gostar de fazer defeitos na frase é muito saudável, o Padre me disse.

Ele fez um limpamento em meus receios.

O Padre falou ainda: Manoel, isso não é doença, pode muito que você carregue para o resto da vida um certo gosto por nadas… E se riu.

Você não é de bugre? – ele continuou. Que sim, eu respondi.

Veja que bugre só pega por desvios, não anda em estradas –Pois é nos desvios que encontra as melhores surpresas e os araticuns maduros. Há que apenas saber errar bem o seu idioma.

Esse Padre Ezequiel foi o meu primeiro professor de agramática.

Aqui, vou pelos desvios, com o desejo de encontrar surpresas e frutos delicio sos. Errando por caminhos menores, com o prazer imenso de não ser dirigida pela vontade de acertar em uma grande estrada.

1º MOVIMENTO: CULTURA

A IDEIA DE CULTURA E A INVENÇÃO DO ANTROPOS

Antropos, o Homem conquistador, havia definido a natureza como aquilo que ele estava livre para transformar, devastando-a profundamente. (STENGERS, 2022, p.281)

Antropos: cultura. Nossa herança vem da separação entre Antropos-cultura , de um lado, e natureza de outro: a descontinuidade entre gente e mundo e a construção da supremacia do Antropos sobre os demais corpos existentes no planeta. A noção de cultura foi forjada sobre a ideia de multiculturalismo e mo nonaturalismo. Os humanos compartilhariam de uma mesma natureza; o que os faria diferir seriam suas características culturais. Um mesmo corpo-natureza modificado pelo Antropos-cultura (VIVEIROS DE CASTRO, 2002).

Quando Eduardo Viveiros de Castro nos traz a ideia do multinaturalismo in dígena, conseguimos enxergar melhor o nosso multiculturalismo como uma construção. E, assim, podemos nos libertar de sua “naturalidade” e experimen tarmos outra relação com nossos corpos e os demais corpos do mundo. Se resol vermos, então, romper com a “naturalização” do “mononaturalismo” – e com a separação entre corpo e cultura – teremos que rever esse conceito e construir conceitos-práticas diferentes desta concepção. Durante muito tempo sabíamos o que era cultura: aquilo que nos separava da natureza. Mas, ao pesquisar os não ocidentais, a antropologia “descobriu” que cultura é um conceito moderno, construído pela sociedade ocidental, ao mesmo tempo em que construía outro conceito: o de natureza (WAGNER, 2009). É significativo que nessas outras so ciedades não encontremos tradução para esses termos. Tudo é natureza e tudo é cultura, ou melhor, nada é.

Nas últimas décadas, observa-se uma crescente aproximação entre antropologia, educação escolar e povos não ocidentais, fazendo com que a ideia de cultura se concretizasse entre eles. Cultura, que era uma ferramenta, uma artificialidade, passou a existir no mundo. Os indígenas passaram a fazer cultura. A cultura era o que eles precisavam fazer principalmente para existir neste mundo ocidental dos direitos e identidades. No nosso contrato social, as pessoas e os grupos têm que ter identidade para poder lutar por seus direitos . Direitos dos índios, direi to das mulheres, direito des LGBTQIA+. Quem não entra em uma caixinha de identidade, não entra também na política pelos direitos.

E neste sistema, para ter identidade, o que os povos precisam? Cultura. Assim, cultura entrou no mundo indígena como sinônimo de identidade, de direitos, ou melhor, de existência. Cultura é aquilo que só aquele povo tem, algo que os define distintivamente. Quando essa ideia chegou aos indígenas, ela já tinha se desenvolvido no mundo ocidental, no processo histórico de unificação e criação das nações, dos países, segundo o modelo ideal: uma nação = um povo = uma língua = uma cultura = uma identidade.

O folclore apareceu como expressão da cultura, como cultura transformada em identidade. Algo que funciona como um emblema, uma representação ideal da quilo que poucos, ou ninguém, vive na realidade de suas vidas. Ou melhor, que muitas vezes passa a viver depois que isso é transformado em verdade . Um bom exemplo, no Brasil, é a construção do futebol como cultura brasileira. Esse mo delo, então, passou a reger a construção da identidade dos povos indígenas. Uma identidade baseada na cultura como folclore, representação de cultura. Cultu ra como representação de cultura. Cultura como algo que disseram que sempre existiu para que ela pudesse ser criada. Podemos dizer que a chegada da cultura aos povos indígenas é a chegada da representação. Este artigo trata disso, de como a representação chega aos povos indígenas como uniformidade de pensamento disfarçada de diversidade de conteúdos-cultura. Como o Lobo-mau se disfarça de vovozinha para devorar a Chapeuzinho Ver melho (veremos mais adiante ao trazermos a composição de Tom Zé). A feitiça ria colonizadora, neste caso, se baseia em deixar os não-majoritários focados nos conteúdos das culturas, enquanto é passado para eles, de forma invisível, algo muito mais perigoso: a forma de ver o mundo através da representação.

DA CULTURA AO CORPO

A interculturalidade chegou aos indígenas através da política de escolarização (COLLET, 2001). A ideia de cultura chegou a eles como algo “natural”, como algo que se supunha que eles já tivessem, que todos os “humanos” têm e, ainda, como o que daria a eles a forma de inserção como povos distintos na socieda de brasileira. Nesse movimento pretendia-se ensiná-los que a sua perpetuação

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como diferença dependeria de sua adesão à política de identidade do Estado. Como veremos, suas diferenças/identidades dependeriam, então, do fim das diferenças, da aceitação da presença do Estado entre eles. Estado nos termos em que Pierre Clastres trata no livro “A Sociedade contra o Estado” (2003). Cultu ra, nesse sentido, é o mesmo que Estado. E, portanto, a interculturalidade é o modo deste último instalar o Cavalo de Troia (CAVALCANTI, 1996) entre estes povos. Felizmente, eles seguem lidando com a tentativa de captura pelo Estado, através de suas tecnologias rituais, perceptivas, relacionais, antropofágicas, o que os permite hoje deglutir isso que vem de fora e criar novas formas de existência.

A introdução das ideias de cultura e interculturalidade pela escola foram sendo assentadas através da prática da representação. Assim, o que se faz no dia-a-dia (dançar, cozinhar, fazer panela...) quando é escrito, quando vira apresentação da cultura na escola ou em outro espaço, quando vai ser exposto em museu, já não é o que era (vida), mas representação da vida, ou seja, um símbolo que fala sobre a vida. A panela, por exemplo, ao virar peça de museu ou de decoração, não é mais uma panela no sentido cotidiano de seu uso, mas um símbolo que reme te às panelas. Ela vira uma escrita-representação de panela, uma panela que fala sobre as panelas que ficaram em seu uso cotidiano. Da mesma forma, quando escrevemos sobre um ritual, o que temos são vários papéis com grafismos que remetem ao ritual e não mais o ritual. A panela do museu pode voltar a fazer co mida e o escrito sobre o ritual pode, quem sabe, ser uma parte da (re)invenção de um ritual a partir daquele, ou o que é mais comum, virar um novo ritual, ritual da defesa de monografia e de formatura4 .

Vejamos um exemplo: a introdução do livro pela escola entre os indígenas. Du rante o projeto Tucum de formação de professores indígenas em Mato Grosso, um dia um aluno me disse: “Chega o livro que fala do tubarão, e aí nós trocamos e falamos do pintado, pois este é de nossa cultura” (COLLET, 2001, p.70). O conteúdo, tubarão ou pintado, é o que é chamado de cultura. Mas, e o livro? A forma livro é um papel que representa um peixe através da escrita ou do dese nho. O que acontece se não estranharmos a forma livro, ou seja, se naturalizar mos a ideia de que há apenas uma forma de se relacionar com o livro? Primeiro, passaremos a acreditar que cultura é o conteúdo do livro e que só o conteúdo im porta como diversidade. Aprenderemos, também, a pensar que a forma-matéria não importa.

É como um truque de mágica, quando o mágico faz você olhar para uma coisa para poder fazer um outro movimento embaixo do seu nariz e você não per ceber. Assim, quando vemos, já estamos acreditando que a representação é o mundo. Que o que existe é o peixe e não o papel-livro na nossa frente. A re presentação nos afasta dos corpos; aqui, no caso, do corpo-livro. Mas também nos afasta, aos poucos, do aprendizado através de nossos corpos. Começamos a acreditar que o aprendizado é algo que se refere a conceitos que saem da boca

dos professores, ou do livro, e passam através dos ouvidos ou olhos para nossa cabeça e lá passam a morar.

É muito diferente do aprendizado direto no corpo, de corpo para corpo, que não passa por um conceito-representação-ideia. Como, por exemplo, através da prá tica dos Apurinã de comer miolo da cabeça do papagaio para falar bem (como ouvi quando trabalhei na escola apurinã), ou de pingar remédio do mato no olho para aprender a ler, ou mesmo a prática de ir fazendo e aprendendo ao fazer. Ou, durante a reclusão dos jovens indígenas, quando o conhecimento vai se fazendo através de atividades corporais e remédios do mato.

Em relação aos Guarani e Kaiowa, Amilton Mattos (2005, p. 16) escreve: “O corpo é o centro dos processos de aprendizagem herdados e reelaborados pelos Guarani”. Segundo ele, “os guarani transformam-se em canto e dança para refi narem sua percepção por meio dessas técnicas aperfeiçoadas ao longo do tem po” (Ibid., p. 17). E ainda: “O corpo constitui a porta de entrada para o cosmos” (Ibid., p. 17). Ressalta, ainda, este estudo do corpo guarani como importante para nos fornecer “coordenadas para multiplicar nossas possíveis aprendiza gens” (Ibid., p.17).

Aprender através do corpo é diferente de aprender através de conceitos, de ideias separadas da prática, de conteúdos que chamamos cultura . No primeiro modo, o que aprendemos passa direto pelo corpo-inteligência da experiência5 . No ou tro modo, recebemos primeiro na mente (consciência intencional e reflexiva), (GIL, 2004), para depois planejar e passar à ação do corpo. Neste caso, segundo Angel Vianna, “o cérebro comanda tudo, se o cérebro já tem a dança codificada, se você fica presa a ela, você só faz essa dança, fica preso àqueles movimentos e não consegue nenhuma criação” (RAMOS, 2007, p.19). A perspectiva de José Gil me parece interessante, pois ele não parte da contraposição entre corpo e consciência, mas propõe que a consciência do corpo é a impregnação da cons ciência pelo corpo. Assim como ele, a ideia de passar de uma visão mentalista para uma visão “corporista” não é o objetivo deste trabalho, até porque isso seria reforçar a diferença natureza/cultura que criticamos anteriormente.

Quando Angel Vianna iniciou sua pesquisa, não havia muita literatura disponí vel a seu alcance sobre movimento, consciência e corporalidade. Ela partiu, en tão, da investigação com seu próprio corpo, seus movimentos, da experimen tação para construir seu método. Segundo Enamar Ramos (2007), ela une em seu trabalho o conhecimento intelectual do corpo e o registro corporal: “Mo vimento e pensamento estão sempre juntos: o pensamento tem movimento” (RAMOS, 2007, p. 24). Hélia Borges (2009) chama atenção para o método de Angel Vianna como um “operador cognitivo”, que “permite resgatar um cor po na sua capacidade de ser afetado, como uma experiência estética, em que o invisível se manifestará no sensível, produzindo movimento no pensamento” (BORGES, 2009, p. 37).

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Partindo dessa perspectiva, podemos retornar à panela de barro e nos pergun tarmos: como podemos aprender a fazê-la? Fazendo – observando fazer – fa zendo. Relação do corpo da pessoa com o corpo do barro. Ou anotando como se faz: observação-registro-planejamento na mente – depois concretizar: faz-se na cabeça para depois fazer sobre o barro. Neste último caso, o barro não participa do processo intensamente como sujeito da ação. Ele é tratado apenas como a superfície que aceitará a ideia. Quem já fez uma panela sabe que a inteligência do barro é fundamental para ela ficar boa, que saber “ouvir” o que o barro está dizendo é importante: se a mistura está boa, se está muito aguado, se é esse barro mesmo ou de outro local…

A esta separação entre ideia e materialidade é que estou chamando de represen tação.

Neste ponto do texto, como forma de aprofundar a questão da corporalidade, quero introduzir a escuta que fiz de professores guarani quando estive no II Con gresso Internacional sobre Estudos Interculturais na Faculdade Intercultural Indígena (FAIND), da Universidade Federal da Grande Dourados, onde dividi uma mesa com Eliel Benites (FAIND/UFGD) e Teodora de Souza (Movimento dos professores Guarani e Kaiowa/FAIND). Lá propus pela primeira vez – vi sando ser mais condizente com a aprendizagem indígena que tem o corpo como elemento central – a passagem da concepção de uma educação intercultural a uma educação intercorporal. Fui com minha crítica ao conceito colonialista de cultura e deparei-me com um conceito guarani: teko.

Eliel diz que teko é jeito, corpo, território. E que, na educação indígena tradi cional, cada Ser tem seu teko particular, o jeito melhor de ser. “Não é só pensar, mas viver isso”. Então “se não estiver na escola com nosso jeito de ser, ela volta a ser colonizadora”. Teodora afirma que a escola engole os professores indígenas: “Nós estamos sempre tentando nos adequar ao sistema, precisamos dizer para o sistema como é o nosso jeito, saber indígena: eixo principal e ponto de chegada”. Sandra Benites (2018), professora e antropóloga guarani, em sua dissertação de mestrado, escreve: “Teko é modo de ser individual, é tekoha (lugar) onde cons truímos nosso teko. Assim como vários autores falam sobre teko guarani, enten do que o nosso próprio corpo é nosso território” (BENITES, 2018, p.71). Teko: corpo que é território.

Quando fomos visitar Dona Floriza em sua casa na reserva indígena, ela nos con tou que é costume dos Kaiowa enterrar na casa de reza a placenta e o umbigo da criança que nasce. Parece-me que ela estava falando sobre como corpos e lugares se formam mutuamente. Essa é a explicação que dou em português, pois o uso do termo teko já a dispensaria. Eduardo Viveiros de Castro se aproxima dessa forma de tratar a corporalidade quando fala do corpo no perspectivismo ame ríndio:

O que estou chamando de corpo, portanto, não é sinônimo de fisiologia distintiva ou de anatomia característica; é um conjunto de maneiras ou modos de ser que constituem um habitus. Entre a subjetividade formal das almas e a materialidade substancial dos organis mos, há esse plano central que é o corpo como feixe de afecções e capacidades, e que é a ori gem das perspectivas. Longe do essencialismo espiritual do relativismo, o perspectivismo é um maneirismo corporal. (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 380)

No conceito teko, os Guarani expressam o que eu pensava em tratar com eles. Eles traduzem como jeito; quase não ouvi a palavra cultura. Ela só é usada em momentos estratégicos, pois se conhece o poder político desta palavra. Eliel, em sua fala no congresso, deixou clara a importância da ação estratégica, também já adiantando o que eu diria sobre não responder ao Mapinguari, que tratarei mais adiante neste trabalho. Abaixo, reproduzo o que escrevi em meu caderno de via gem durante minha estadia em Dourados, como uma forma de trazer corpo e pensamento sensível a este texto.

A CABEÇA VOADORA À PROCURA DE UM CORPO

Pensando, a partir de experiências em que a chamada educação intercultural funciona como uma nova máquina de colonização, mergulhei na possibilidade de criticar esta prática, tão logo fui convidada para participar do Congresso em Dourados. Faço, aqui, o relato de apenas uma manhã desse encontro-ritual, ao qual fui com palavras-representações-sombras e recebi, ou melhor, fui arrebata da, por corpos-intensidade-terra.

Na terça-feira, apresentei meu caminho de cabeça voadora à procura de um cor po, de corpos, de terra. Falei de Platão, da representação, do perigo escola-universidade. Falei, não fiz. Representei, não agi.

Nos caminhos, quando buscamos com vigor, encontramos.

O meu caminho de nuvens de ideias, em que venho pisando, desequilibrando, até caindo e subindo novamente, surpreendentemente, como sempre tem que ser, me levou a aprender o que pensava ensinar. Ensinar, afinal, é minha forma de aprender.

QUARTA-FEIRA, SEIS DE DEZEMBRO DE 2017

Inicia como nos outros dias, com a reza dos Kaiowa de Panambi e Panambizi nho. Reza forte, ritmada, demorada. Outro tempo. Outro tempo entra na uni versidade. Não há pressa para começar o trabalho. A reza já é o trabalho. Já é a universidade indígena. Os rezadores não estão ali para falar em uma mesa. Não, Elaine, não faltou a mesa dos mestres. Eles estavam ali, do jeito deles. Com a fala-dança deles. Aula da Rossela na Angel Vianna: todos viram juntos um corpo único. Não é apresentação, representação. É preciso a reza. Não é simbólico.

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Um professor vem me contar que os indígenas fazem suas rezas para iniciar o dia, e o pessoal dos assentamentos, a mística. Temos que respeitar, ele diz. Eu co mento que nós professores estamos desprotegidos. Não fazemos nossos rituais coletivos, nem sacralizamos nosso espaço e tempo de trabalho.

O palco já está com um muro de tijolos no meio. Acima dele, uma haste de segu rar cerca elétrica. A música que toca diz: Dourados, faixa de gaza. Dos dois lados do muro, cadeiras aos poucos sendo ocupadas por professores, alunos e rezadores. Vejo algumas pessoas colocarem papéis em uns potinhos ao subir no palco.

Entram duas mulheres, uma Kaiowa e uma professora de teatro que me havia sido apresentada um dia antes. Elas começam a falar e estar. Cada uma de um lado do muro. Cada uma expressa sua língua falada e corporal. “Para chegar à aldeia, passamos por cachorros mortos, fedendo.” Do outro lado: desânimo. Talvez um pouco romantizado, penso. Que intensidade dessas línguas faladas e vividas ao mesmo tempo! Lado a lado, do muro. E várias pessoas diferentes em volta, dos dois lados do muro. Começam a pegar os papéis que foram co locados dentro dos potinhos, em que várias pessoas anteriormente escreveram frases sobre como é viver em Dourados. Eu teria escrito: lugar onde a leveza e a brutalidade são extremas.

Vida acontecendo. Mais uma vez: não era teatro-representação. Era teatro-ri tual-política. Não há espectadores, estamos todos dentro.

Já parecia muito?

Quando acaba esta parte, entram no palco alunos do curso de educação no cam po. Um como professor, em pé. Outros sentam nas cadeiras. O que está em pé raivosamente os arruma em fileiras organizadas, depois distribui papéis. Ava liação? Não os deixa conversar. Sério, mal-humorado, contra os alunos. Aí ele pega os papéis, um a um, escreve e devolve aos demais sentados. Cada aluno vira para a plateia e coloca em frente de seu rosto o papel com um número, uma nota: 3,5; 2; zero. A aluna do zero sai do palco. Pede a alguns de nós que escrevamos em um papel o que é a educação para nós. Logo já nos chama para irmos ao palco com ela. Veio fazer corpo conosco. Subimos no palco. Juntamo-nos aos demais alunos. Nos rebelamos e vamos para cima do professor. Em um dos papéis diz: educação popular. Somos a educação popular! Essa personagem. Vamos em di reção ao professor. Ele foge: Medo! Medo! Medo: humano, afinal! Aí, o cerco se torna um abraço em torno do professor.

Intensidade. Implicação. Não há fora. Não há apresentação. Não há representa ção. Somos a educação popular.

Que aprendizado. Que força. Quantas ideias e desejos me assumiram!

Que lugar é esse? O que fazem aqui?

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E eu que vim falando do mito da caverna! Há quanto tempo já quebraram suas correntes e estão no mundo. Ou nunca as tiveram! Quantas marteladas levaram minhas correntes nesta manhã! Quem sabe eu também tenha chance de escapar. E perceber o mundo, e sentir o mundo.

Outro mundo.

E então vem Cecília de Iquitos, com sua doçura e força, nos mostrar que fazer escola é antes de tudo construir junto a casa-escola. E basta. Isso já é a escola. O professor Washington nos traz a inclusão exclusora , falando da diferença ar rasada pelas ciências universais. E a formanda da educação do campo não deixa dúvida: fazemos política. Luta! Dos assentados, indígenas, professores: reforça um dos rezadores kaiowá. E completa: com alegria! Só pode ser assim, penso, pois esse é o maior valor que querem nos roubar: alegria-vida. E logo eles, de Panambi e Panambizinho, como vai contar a professora Graziela, os que sabem tudo de resistência, os que resistiram a serem “reservados”, que não entregam sua vida-terra-alegria. Ela nos mostra seu livro sobre a resistência deles e explica sobre a resistência que está em todos nós.

Essa professora coloca uma pergunta aos palestrantes, que os abordava sobre o fato das danças e das outras intensidades estarem sempre na periferia das ativi dades-escola-universidade.

Ela tocou no ponto! No ponto que me toca. Me tocou.

E quando eu já estava girando naquele redemoinho de forças ativadas desde o início da manhã, lembrei do toque de Deleuze e Guattari que me acompanha há tantos anos: “A voz não canta mais, mas dita, edita; a grafia não dança mais e dei xa de animar os corpos, mas se escreve coagulada sobre tábuas, pedras e livros” (DELEUZE; GUATTARI, 1976, p. 260).

Eles falam do processo político em que a voz-corpo passa a não mais ter uma relação de convivência lado a lado com a grafia, mas a ser subordinada por esta última.

A grafia que representa a voz: escrita.

Como fazer para que uma relação de subordinação não se instaure?

Em outros lugares, relato exemplos em que os indígenas aparecem como os mestres em manter esses campos separados (COLLET, 2006), ao inventarem práticas que não deixam a grafia se apoderar da voz.

Como, então, em meio a essa máquina feita de escola, capital, representação e escrita, unir ritual-intensidade à máquina-escola sem que esta última não su bordine a primeira?

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Não caberia a nós, caras pálidas, aprendermos a lição de que o que importa é o não hegemonizado? Se ainda olhamos para o centro como foco de nossa impor tância, nunca aprenderemos um pensamento sem centro.

E se pararmos de querer transformar o “menor” (como a “geografia menor” que foi falada no grupo de trabalho de terça-feira) em “maior” (institucionalizar, nas palavras de Eliel)?

Não é o caso de, ao invés disso, podermos valorizar o menor enquanto menor, e somente assim?

Os acadêmicos pareciam ser o centro, mas, no final, este centro, para mim, teve a função de – como em um emolduramento às avessas – destacar e enfatizar o que estava ao redor.

Uma política centrífuga.

O mundo que herdamos só foi construído às custas da separação entre cultura -natureza, corpo-pensamento, humanos-terra. O corpo teve que ser anulado, distanciado como presença, como imanência, para que pudesse ser instalada a máquina Estado-cultura-representação. A aposta deste trabalho é que a reintro dução do corpo em nossa vida e em nossas formas de conhecer e aprender po derá transformar a herança que recebemos em um mundo possível para nossas crianças. Os indígenas têm uma grande tecnologia acumulada de ativação do sa ber corporal e da presença. Ela os vem defendendo da captura por parte do Esta do. É imprescindível que os escutemos sobre isso se quisermos também voltar a ter um corpo-em-continuum-com-o-cosmos e nos livrarmos da captura do An tropos. Seguiremos tratando dessa sabedoria deles de estarem atentos às captu ras e exercitarem a atitude que Pierre Clastres (2003) chamou de contra-Estado.

SER CAPTURADO PELO MAPINGUARI: SOBRE PESQUISADORES INDÍGENAS NA UNIVERSIDADE

E por que então esta vontade de parecer herói ou professor universitário (aquela tal classe que, ou passa a aprender com os alunos - quer dizer, com a ruaou não vai sobreviver)?

Complexo de Épico, Tom Zé6

A condição de vida é a mesma condição de perigo. Sempre foi. A relação. A re lação é invenção. Por definição, imprevisível e perigosa. Trago, neste trabalho, o Mapinguari e o Lobo-mau, esses terríveis predadores, como forma de estudar mos rotas de fuga da ameaça Estado-escola-cultura. Em “A sociedade contra o

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Estado”, Pierre Clastres (2003) conta das estratégias indígenas para não deixar a representação se implantar.

A partir dessa ideia, percebemos permanentes práticas de contra-escola-Estado nas escolas indígenas. Muitas vezes, essas práticas são interpretadas pelas Secre tarias de Educação como deficiência dos indígenas, por ainda não terem alcança do o estado de civilizados-alfabetizados. Talvez, quanto mais o branco, a Secre taria de Educação, diga que a escola não está dando certo, essa seja a escola mais certa. A escola contra o Estado, literalmente.

A cultura. Ela também pode ser usada como estratégia! Como contra-Estado. Mas, atenção: isso depende de não acreditarmos que ela é algo que existe ! Se acreditamos nisso, corremos o risco de sermos capturados pela cultura-repre sentação (WAGNER, 2009).

No Acre, tem um bicho na floresta, o Mapinguari. Conta que dois caçadores que saíram para caçar num domingo, que é dia santo e não se pode caçar, encontra ram com ele. Eram dois compadres, cada um pegou uma estrada de seringa e combinaram de se encontrar mais adiante. Eles se comunicavam pelo grito. Mas aí, conta a estória, aconteceu que o Mapinguari gritou e um dos caçadores res pondeu. Aquele caçador que respondeu, ele pegou, colocou debaixo do braço e foi comendo a cabeça. O caçador que não respondeu se salvou e voltou pra con tar a estória.

Com a cultura, podemos fazer como o caçador que não respondeu. Muitos dizem que o Mapinguari não existe, mas aquele que o respondeu e morreu sabe que ele existe. Ele foi capturado pelo Mapinguari. O caçador foi caçado. O caçador só é caçador quando ele caça. Se vira presa, deixa de ser caçador. Talvez também seja assim com a cultura e a escola indígena, enquanto o indígena é caçador através da escola, ele existe, é indígena, mas, se vira presa, vira pedaço de Mapinguari. Meu argumento, aqui, é que a política de escolas interculturais faz exatamente o que ela fala. Ao propor uma interculturalidade do conteúdo sob a unicidade (monocultura) da forma ocidental passa-se à ideia de que o que importa é o con teúdo, e não a forma. Afinal, como disse antes, o que importa passar é o pensar e o viver através da representação. A representação se dá através de identidades, de coisas em si, dizendo de outro modo, de conteúdos, também chamados cultura. Portanto, o que se quer passar com a política da interculturalidade é estranho ao pensamento-vida indígena contra o Estado (que é indissociável do agenciamen to cultura-escrita-escola).

A relação professor-aluno também é uma relação de transformar os alunos sujei tos em objetos, pela sua posição de presa , passiva , sem poder de ação, de existir, de falar.

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A escola, tanto quanto a universidade, a pesquisa acadêmica e a ciência são práti cas de feitiçaria de transformação de sujeitos em objetos, em natureza domina da, em presa, em caça. Nunca existe um outro-sujeito, é sempre o cientista (su jeito) e o objeto (outro). É sempre o caçador e a caça em posições fixas. A prática da pesquisa produz sujeitos e objetos. Essa é sua eficácia. Transformamos rituais, panelas, comunidades, pessoas, animais e florestas em objetos, para assim tirar delas sua subjetividade, ou seja, seu poder.

É importante, então, avaliarmos, em nossas pesquisas e práticas nas escolas, se estamos repetindo a relação pautada na objetificação do outro. Pois essa é a for ma da sujeição ocidental moderna (LATOUR, 2009). Transformar o outro em objeto. E aí devemos perceber se os próprios indígenas não estão reproduzindo internamente, nas suas relações com seu povo e com seus pares, a característi ca do modo de fazer pesquisa dos colonizadores, qual seja, fazer pesquisa para inventar objetos: indígena como objeto, natureza como objeto, animais como objeto, plantas como objeto.

E quando os indígenas se tornam pesquisadores universitários, como eles po dem escapar de serem colonizados e de colonizar seu objeto de pesquisa? Como fazemos nossas pesquisas? Pesquisamos sobre algo? O que é pesquisar sobre ? O sobre pressupõe uma hierarquia e essa hierarquia transforma o outro sujeito em objeto. Como seria pesquisar com? Os diversos povos indígenas contam, através de seus mitos, como aprenderam com os animais suas técnicas e conhecimentos (plantar, tecer, dançar...). Se, para os indígenas, o que chamamos de natureza é uma miríade de sujeitos (como aparecem em seus mitos, práticas de caça e plan tio), e de forma alguma um objeto, de que forma eles passariam, então, a pes quisar como se ela fosse um objeto? Como poderiam transformá-la em objeto -natureza ao fazer a pesquisa?

Como poderia ser, na universidade, uma pesquisa com? Uma pesquisa que não se baseie nos métodos ocidentais de transformar a natureza-outro em objeto, para assim dominá-lo? Essa pesquisa já existe há muito, muito tempo. É só lem brarmos o quanto já foi transformado e inventado no mundo, a partir das ciên cias dos povos indígenas.

E qual seria a metodologia dessas ciências? Ela passa pela ativação dos sentidos corporais como acesso ao conhecimento e invenção, como nos mostra Lévi -Strauss no “Pensamento Selvagem” (1989).

A chegada dos indígenas à universidade tem sido tratada por estes como uma apropriação importante em meio à guerra em que vivem. Mas, como na histó ria do Mapinguari, a universidade pode devorá-los, caso eles passem a falar sua língua, a respondê-la em seus termos. O caçador há que manter-se atento para não virar presa. Principalmente por estar vivendo entre corpos-outros e com partilhando perigosamente de seus hábitos. A universidade tem se aberto aos

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indígenas, mas ainda não aos seus conhecimentos. Muito menos às suas técnicas de pesquisa, que envolvem uma relação sensível entre corpos.

E o que pode ser criado pela máquina-universidade?

Sabemos, por exemplo, que o papel impresso da monografia se transforma em papel do diploma, que se transforma em papel do contrato com as secretarias de Estado, que se transforma em papel-dinheiro. E o que é esse mundo de papel? O mundo da representação. O dinheiro representa o produto, o diploma repre senta a autoridade, a monografia representa a experiência no mundo vivido. Os indígenas têm capturado essas representações para o mundo da imanência e da corporalidade, transformando-a em alimento e condições para a formação dos seus corpos e aquele de seus parentes.

Mas, mais uma vez, cabe o alerta: não podemos responder ao Mapinguari. Trata -se, então, de se apropriar da representação como estratégia de vestir o corpo do outro, do inimigo, para continuar vivendo bem , segundo seu próprio teko. Como observamos nos rituais em que se pintam com grafismos de animais, usar ou vestir o corpo do outro é diferente de ficar perdido no mundo do outro; é possível compor-se com o outro, sem por ele ser devorado. Segundo Viveiros de Castro (2002), quando um homem é capturado por outra espécie, ele se torna um perigo para os seus, pois começa a agir como os daquela espécie contra os da sua espécie. Se colocarmos os brancos no espectro de espécies que se relacionam com os indígenas, a questão da escolarização se torna ainda mais importante, pois além de ter o próprio branco como ameaça, os indígenas que têm seus cor pos transformados pela convivência com o mundo dos brancos seriam também, segundo esta visão, um perigo para os seus.

Neste ponto da argumentação me vem uma pergunta, para a qual não tenho res posta, mas que gostaria de compartilhar. Em minha tese de doutorado (COLLET, 2006), coloco lado a lado o pajé e o professor indígena, estando o primeiro preparado para viver entre os mundos dos Kurâ7 e dos espíritos, e o segundo, preparado para viver entre o mundo dos Kurâ e dos brancos. Pergunto-me se os professores indígenas estariam preparados para essa mediação tanto quanto o pajé que vai a outros mundos e retorna ao seu. Claro que o pajé está suscetível a não voltar, esse perigo existe, mas sua formação o capacita a não ser captura do. Dentre os professores indígenas, como será que acontece a preparação nesse sentido?

Como vemos em vários mitos, pode-se ficar muito tempo preso a esse outro mundo – da cobra, da onça, ou do branco – mas a possibilidade de retorno quase sempre aparece. E volta-se ao próprio povo. Então, o herói pode ensinar o que aprendeu no tempo em que viveu entre o outro: tecer, plantar, pintar... Em vá rias histórias, depois disso ele se transforma em outros muito longe dos seus: vira lua, estrelas... E aí a saudade é grande.

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O LOBO SEU ARISTOTE

Essa visão de mundo indígena pressupõe sujeitos que vão muito além da nossa ideia de Antropos, opondo-se, assim, à “nossa tradição filosófica e política que, desde Aristóteles, tem feito da linguagem e do discurso uma característica própria e exclusiva do homem, o único animal que possui linguagem e discurso” (MELITOPOULOS; LAZZARATO, 1993, p. 11). A guerra indígena se faz nas frestas, muitas vezes vestindo a pele do outro, do inimigo, da universidade em sua universalidade e ousando, como tão bem sabem fazer os indígenas, não pra ticar a lógica da identidade. Esta última é uma das bases fundamentais da escola, instituição que começa a ser apresentada aos indígenas. Por exemplo, para esses povos, não há problema de ser eu e outro. E a ideia-prática de que podemos ser -transformar-se em outras naturezas é exatamente o que tem que morrer para a escola-Estado passar a existir.

A visão perspectivista indígena povoada por múltiplos sujeitos é muito dife rente da visão aristotélica de mundo, que se baseia em um substantivismo que leva à ideia de que não podemos ser e não ser ao mesmo tempo, o princípio da não-contradição. No álbum “Tropicália lixo lógico”, Tom Zé se dedica a estudar como a escola chegou ao sertão de Irará (BA), onde nasceu. Na canção cuja letra reproduzo abaixo, ele trata de um outro predador, não o Mapinguari, mas o Lobo Mau.

Tropicália Lixo Lógico

A pureza Chapeuzinho Passeando na floresta Enquanto Seu Lobo não vem: Mas o Lobo entrou na festa E não comeu ninguém.

Era uma tentação, Ele tinha belos motes, O Lobo Seu Aristotes: Expulsava todo incréu Ali do nosso céu

Não era melhor, tampouco pior, Apenas outra e diferente a concepção Que na creche dos analfatóteles regia Nossa moçárabe estrutura de pensar Mas na escola, primo dia, Conhecemos Aristótes, Que o seu grande pacote De pensar oferecia

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Não recusamos

Suas equações

Mas, por curiosidade, fez-se habitual Resolver também com nossas armas a questãoUma moçárabe possível solução

Tudo bem, que legal, Resultado quase igual, Mas a diferença que restou O lixo lógico criou

Aprendemos a jogá-lo No poço do hipotalo*. Mas o lixo, duarteiro, O córtex invadia:

Caegitano entorta rocha Capinante agiu.

*Versão óbvia de nosso mais velho amigo, o hipotálamo.

Em Irará, nos anos 40, Tom Zé experimentava a chegada do Lobo-Aristote, que a partir dessa época também já começava a chegar aos povos indígenas. E, nessa canção, ele atenta para o fato de que, mesmo com sua chegada, a potên cia criadora persiste e é reativada (reclaim), através do movimento tropicalista.

O “contra-Estado” de Pierre Clastres não é algo exclusivo dos indígenas, como este próprio autor ressalta. A geração de 68, da qual o tropicalismo fez parte, retoma o “Manifesto Antropofágico”, no qual Oswald de Andrade já fazia essa conexão com os indígenas. Suely Rolnik destaca esta obra como inauguradora da “produção de uma outra subjetividade”, que acontece no agenciamento da mi cro com a macro política (MELITOPOULOS; LAZZARATO, 1993, p. 14). Essa outra subjetividade possível, no Brasil desde 1920, pensava lado a lado a escola e a floresta.

Nenhuma fórmula para a contemporânea expressão do mundo. Ver com olhos livres. Temos a base dupla e presente — a floresta e a escola. A raça crédula e dualista e a geometria, a álgebra e a química logo depois da mamadeira e do chá de erva-doce. Um misto de “dorme nenê que o bicho vem pegá” e de equações. Uma visão que bata nos cilindros dos moinhos, nas turbinas elétricas, nas usinas produtoras, nas questões cambiais, sem perder de vista o Museu Nacional. PauBrasil. (ANDRADE, 1924, P. 09)

Tom Zé comenta o tema do álbum “Tropicália Lixo Lógico”, ampliando a cons telação de contra-Estado que desaguou no movimento Tropicalista: Atribui-se ao rock internacional e a Oswald de Andrade o surgimento da Tropicália. Não é exato.

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Some-se Oiticica, Rita, Agripino, o teatro de Zé Celso etc...: eis a constelação que cria um gatilho disparador e provoca em Caetano e Gil o vazamento do lixo lógico do hipotálamo para o córtex. O poderoso insumo do lixo lógico, esse sim, fez a Tropicália.

De 0 A 2 anos (...). Nunca mais, durante toda a vida, o ser humano aprenderá com tal inten sidade. Aí reside a força do aprendizado na creche tropical. Só a partir da escola primária, que para nós começava aos 6 ou 7, tem início o contato com a organização do pensamento ocidental promovida por Aristóteles – um choque delicioso –, cuja comparação com a cre che desencadeia o lixo lógico. (Tom Zé, 2018)

O que é considerado lixo-lógico pelo pensamento ocidental é o espaço da cria ção, do arteiro, como diz Tom Zé, do bricoleur de Lévi-Strauss, e de todo pensa mento que não passou por Platão e sua representação ou Aristóteles e sua lógica.

O elementarismo de Tom Zé aponta para esse /fazer/, para esse mundo material. É tudo uma questão de construção para ele. Nada aqui é psicológico, ainda que não se conserve a pureza dos elementos – daí seu elementarismo degenerado (SKYLAB, 2018 p. 11).

Na música de Tom Zé, o som vai junto com a palavra, muito além da música-re presentação. E os instrumentos são os sons que estão por aí, na rua, no mundo, a música dos objetos e não instrumentos que interpretam o mundo. Assim, Tom Zé não apenas fala em sua música sobre a arte que pode romper com os parâme tros aristotélicos, mas o faz também em sons e performances. Ele se aproxima de John Cage (2019) na pesquisa da imanência do som que não precisa ser re presentação, nem mesmo sair de instrumentos musicais. O som está na vida, na rua, na enceradeira. Cage (2019) diz: “Eu amo os sons tal como são e não tenho necessidade nenhuma de que sejam nada mais do que são. Não quero que sejam ‘psicológicos’.”

Esta aproximação se deve à influência que Tom Zé teve de Cage, através do livro traduzido por Rogério Duprat.

Quando, em 1985, Rogério Duprat traduziu DeSegundaaumAno, de John Cage, logo no co meço existia uma frase de Buckminster Fuller, o arquiteto do prédio sem alicerces: “Não é tempo da posse, é tempo do uso”. Isso me tirou do chão durante dois ou três anos, e depois de várias especulações acabei fazendo uma espécie de sampler que foi anterior ao sampler ele trônico da indústria de instrumentos e produz um efeito completamente diferente do sam pler convencional. Nesse afã, eu comecei a desenvolver instrumentos, como o enceroscópio e o buzinório (Tom Zé, 2018).

O trabalho de Cage cabe neste texto como expressão, na música, do que esta mos tratando em relação à educação. Assim, a composição de Cage segue o modo do bricoleur : “aproveitando seu potencial aleatório (o que estiver no ar na(s) estação(ões) sintonizada(s) na hora, vai fazer parte da obra)” (COSTA, 2018, p. 03).

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Na imanência do trabalho de Cage não poderia então haver diferença entre sons e efeitos sonoros. “Ele escreveria a trilha exclusivamente para efeitos sonoros –usando-os não como efeitos, mas como sons, i.e., como instrumentos musicais” (COSTA, 2018, p. 04). Sua música, como a de Tom Zé, foge à representação, tendendo à intensidade do som como matéria. Não há julgamento, não há nada além do acontecimento. “Um ‘erro’ está fora de questão, pois quando uma coisa acontece, ela autenticamente é” (COSTA, 2018, p. 11). Assim, afirmamos o corpo como o lugar do contra-Estado e contra-a-cultura, já que o Estado-cultura, tanto por definição, como historicamente, como vimos, é a negação da corporalidade enquanto imanência e continuidade intensiva com o cosmo. Nesse mundo de predação de perspectiva, há que se fazer e manter corpo para não ser capturado. E, para isso, criamos sons, gestos, danças, presença, mo dulação de relação. Sempre em movimento entre a instabilidade e a estabilidade.

2º MOVIMENTO: CORPO

EDUCAÇÃO E CORPORALIDADE

Uma característica da educação intercultural é que ela não é intercorporal. Ela não parte do aprendizado corporal, do corpo pensante, dos sentidos corporais como meios de pesquisa. Pelo contrário, o corpo é tratado, segundo o mode lo escolar ocidental, através das disciplinas escolares. O que, pensando bem, é uma forma de educar, de domesticar o corpo, mas seguindo a lógica ocidental do despotismo da mente-cultura sobre o corpo-natureza. O corpo disciplinado não cria, repete. Não é aberto ao mundo, mas fechado em hábitos, repetições. E, sobretudo, é anulado como acesso ao conhecimento.

Enquanto as metodologias e a prática das universidades, dos cursos para indíge nas mais especificamente, não comportarem o saber do corpo, a relação sempre será representacional e hierárquica. Continuará submetendo corpos-mundo a ideias-símbolos, ao submeter a pesquisa-ensino baseada nos sentidos e no cor po à pesquisa-ensino baseada em conceitos abstratos.

Preciso relembrar aqui, novamente, que uma coisa é o que pretendem fazer com os indígenas e outra é o que eles fazem com o que querem fazer com eles. Através de sua alta tecnologia de lidar com capturas, a todo tempo os indígenas estão in troduzindo sua corporalidade na escola e na universidade que querem capturá -los. Mas nunca sabemos se a captura será muito longa e forte, criando muita dificuldade para o futuro movimento de reativação (reclaim).

Na universidade, os estudantes indígenas aprendem pesquisa, por exemplo, como algo que se faz com palavras, gravadas e escritas. Com entrevista, pra zo, modelo e, sobretudo, conceitos abstratos. Não seria interessante, ao invés

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de focarmos no resgate dos conteúdos culturais (língua, alimentação, dança...), conhecermos melhor o modo indígena de pesquisar? Como os velhos pesqui savam? Como usavam seus sentidos, seus corpos, sua interação com plantas, animais e outros seres em sua pesquisa?

Segue-se, ainda hoje, um pensamento evolucionista, que considera os métodos indígenas de pesquisa como imprecisos ou pouco científicos por serem basea dos em concepções ontológicas diferentes da ciência ocidental. Os indígenas desenvolveram tecnologias sociais (com um socius mais ampliado que o nosso) de agricultura, psicologia, biologia, ecologia, filosofia, pedagogia, estética, enge nharia florestal, arquitetura, medicina... durante séculos. O que sabemos sobre seus métodos?

É uma pena que estes sejam substituídos pelos métodos limitados pela concep ção de mundo ocidental. Limitados pela sua vinculação política, econômica, cos mológica, com o pensamento-prática que rompeu com a “natureza” e, portanto, com a materialidade dos corpos.

Segundo Viveiros de Castro (2002), para os indígenas a diferença está no corpo. E a cultura seria o que há em comum entre os diversos seres. Nesse caso, não ha veria interculturalidade, mas monoculturalidade. A diferença, estando na natu reza, seria aquilo, portanto, que pode se colocar em devir. Como dizem Deleuze e Guattari, o devir acontece entre diferenças (VIVEIROS DE CASTRO, 2015).

LÓGICA DO SENSÍVEL

Ela coloca raízes na pequenez de um cesto (LÉVI-STRAUSS, 1989, p 15).

Em “O Pensamento Selvagem”, Lévi-Strauss (1989) expõe as ideias de lógica do sensível e ciência do concreto. Essa lógica está baseada no conhecimento e ação sobre o mundo através dos sentidos corporais: o paladar, a visualidade, o aroma, o tato, a audição. O autor destaca a complexidade dessa ciência construída atra vés da percepção acurada do mundo, fazendo uma crítica à visão ocidental carte siana do conhecimento, que desconfia de nossos sentidos e se fia no pensamento lógico. Na ciência do concreto, não há separação entre mundo e conhecimento, entre mundo e ideias.

Lévi-Strauss pensa a relação e não os termos. Assim, se em um primeiro mo mento de sua obra, ele pensa a relação entre significantes e significados, ainda buscando uma ordem transcendente, o estudo do pensamento selvagem o teria puxado para um plano de imanência e rizoma, como vê-se nas “Mitológicas”, que ele diz se tratar de um “mito da mitologia” (LÉVI-STRAUSS, 2010). No exemplo sobre a cura da dor de dentes, ele destaca a relação entre os dois corpos “indo juntos”, o que me parece guardar ressonâncias com o conceito de devir de Deleuze e Guattari (2002).

A verdadeira questão não é saber se o contato de um bico de picanço cura as dores de dente, mas se é possível, de um determinado ponto de vista, fazer “irem juntos” o bico de picanço e o dente do homem... (LÉVI-STRAUSS, 1989, p. 24).

“Ir junto”, acoplar-se, formar uma máquina. O pensamento-fazer selvagem for ma máquinas que agem sobre o mundo. A cura da dor de dente. Aqui já temos o funcionar no lugar do simbolizar. O bico de picanço funciona para curar a dor de dente, ao “ir junto” com o dente. O modo do mito e do pensamento-fazer selvagem procede como o bricoleur, que não age como o engenheiro através de projetos e de peças projetadas para um determinado fim. Ao contrário, o “con junto de meios do bricoleur (...) se define apenas por sua instrumentalidade (...) sempre que isso pode servir” (LÉVI-STRAUSS, 1989, p 33). As possibilidades estão ligadas à história de cada peça e a sua materialidade. Diz Lévi- Strauss que no mito ocorre o mesmo, pois suas unidades constitutivas já estão funcionan do dentro da língua, onde já possuem um sentido que restringe seu uso. Nessa máquina, “cada elemento representa um conjunto de relações ao mesmo tempo concretas e virtuais” (LÉVI- STRAUSS, 1989, p 33).

O pensamento bricoleur e mitológico, pensamento selvagem, operaria segundo sua funcionalidade, como uma máquina, podemos dizer. Não é um pensamento simbólico, no sentido de existir um mundo substantivo preexistente a ser co nectado a conceitos gerais. Se fosse assim, o bico de picanço teria um princípio ativo que sempre curaria a dor de dente. Não. Diferente disso, o que existe é a relação bico-dente indo junto e fazendo funcionar essa máquina de cura.

Da mesma forma, os elementos da reflexão mítica estão sempre situados a meio-caminho entre perceptos e conceitos. Seria impossível extrair os primeiros da situação concreta onde apareceram, enquanto que recorrer aos segundos exigiria que o pensamento pudesse, pelo menos provisoriamente, colocar seus projetos entre parênteses (LÉVI STRAUSS, 1989, p 33).

O bricoleur se volta “para um conjunto já constituído, formado por utensílios e materiais” (LÉVI-STRAUSS, 1989, p. 34), entra em contato com ele, pensan do nas respostas a seu problema, “ele interroga todos esses objetos heteróclitos que constituem seu tesouro a fim de compreender o que cada um deles poderia “significar” (LÉVI-STRAUSS, 1989, p. 34). No Anti-Édipo, Deleuze e Guattari afirmam que “o que isso quer dizer não diz para quê isso serve” (DELEUZE e GUATTARI, 2010[1972], p. 238). Ao bricoleur interessa o “para que isso ser ve?”, pois está sempre dentro de um problema e de um contexto específico e momentâneo.

Nas máquinas desejantes como elementos moleculares o “uso, o funcionamento, a produ ção e a formação são uma coisa só. E é esta síntese do desejo que explica, sob tais ou quais condições determinadas, os conjuntos molares com seu uso especificado num campo bioló gico, social ou linguístico” (DELEUZE e GUATTARI, 2010 [1972], p. 239).

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O funcionalismo não deve conhecer outras unidades-multiplicidades que não sejam as próprias máquinas desejantes e as configurações que elas formam em todos os setores de um campo de produção (o “fato total”). Uma cadeia mágica reúne vegetais, pedaços de órgãos, um retalho de roupa, uma imagem de papai, fórmulas e palavras: e não se perguntará o que isso quer dizer, mas que máquina está assim montada, que fluxos e que cortes se relacionam com outros fluxos e cortes (DELEUZE e GUATTARI, 2010[1972], p. 240).

A lógica do sensível e o pensamento mítico são inseparáveis dos corpos, pois acontecem na relação entre corpos. Esse pensamento nos permite sair da lógica abstrata do engenheiro que agiria por meio de uma sequência de causalidades e de planejamentos prévios à obra e adentrar na lógica do bricoleur que usa o que está à sua mão no momento, através de sua atenção para produzir a resposta ao problema naquele instante. O bricoleur não trabalha com solução universal. O engenheiro parte da solução universal, porque pretende construir um mundo universal.

O que chamamos de natureza, nesse mundo, é visto como objeto, pois será mero material a ser utilizado por um pensamento exterior e anterior a ela. O bri coleur, porém, entra em contato com o material, dialoga com ele como sujeito, para encontrar naquele momento o que ele pode tornar-se. Suas características, portanto, não são universais, mas práticas e relacionais. O bricoleur é um mes tre da “reativação” (reclaim), pois traz peças que foram usadas em um contexto de relações e as associa a outros vínculos. O saber através do corpo é um saber prático, concreto, em oposição a um saber que se pretende universal. O saber universal quer aplicar, não criar. Aplicar leis gerais e prévias.

Nós diferenciamos o engenheiro e o bricoleur pelas funções inversas que, na ordem ins trumental e final, eles atribuem ao ato e à estrutura, um criando fatos (mudar o mundo) através de estruturas, o outro criando estruturas através de fatos (fórmula inexata pois peremptória, mas que nossa análise pode permitir matizar) (LÉVI- STRAUSS, 1989, p.38)

O saber do corpo, por ser saber sensível, está sempre em movimento com o que está em seu entorno. O entorno o modifica. Ele não é um ser em um meio, mas um corpo em conexão com outros corpos, humanos, vegetais, minerais, invi síveis... O corpo nos leva através de sua sensibilidade e percepção a se misturar com o externo e, quando isso acontece, nos dissolvemos no todo e deixamos de ser o centro, nos tornando parte. Ora, esta visão de mundo pressupõe uma natureza animada, animista, com perspectiva, que se relaciona ativamente. O mundo deixa, então, de ser antropocêntrico. Ou passa a ser todo antropocêntri co, se pensamos no perspectivismo ameríndio: tudo é humano, pois tudo tem perspectiva. A qualidade de pessoa passa a não ser mais privilégio “nosso”.

O pensamento do corpo é um pensamento do bricoleur, do acontecimento, da máquina que se faz e se desfaz. É como nas práticas de Angel Vianna, o movi mento surge do momento com o outro, com o espaço, com o dia, com a tem peratura. Nunca haverá outro igual. O pensamento do corpo é o pensamento

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mítico. Lévi-Strauss (1989, p.38) já tratava da arte ao falar da lógica do sensível: “A arte se insere a meio do caminho entre o conhecimento científico e o pensa mento mítico ou mágico... Com meios artesanais, ela elabora um objeto material que, ao mesmo tempo, é um objeto de conhecimento”.

O XAMANISMO DE ANGEL VIANNA

Podemos tratar as questões vistas até aqui como concernentes principalmen te aos povos indígenas. Mas podemos também, como sugere Stengers (2021), “escutar aqueles que não pertencem a essa civilização” e entrarmos em processo de regeneração (reclaim) da “capacidade de fazer existir nas lutas do presente os vínculos e os pertencimentos que foram destruídos para que exista Antropos”. Sendo assim, quero explorar um pouco os ensinamentos de Angel Vianna e o que eles têm a nos propor como possibilidades de “reativação” (SZTUTMAN, 2018) de nossos corpos e de sua relação com os outros corpos-mundo. Angel Vianna, pesquisadora dos corpos, desenvolveu sua pesquisa e seu método em consonância com muitos aspectos ressaltados neste trabalho. Ao desprender o corpo do modelo hegemônico ocidental e abri-lo para outras possibilidades e particularidades, articulando experiência e reflexão, ela escapa do corpo-repre sentação, do corpo-apresentação.

Assim, ao tocar no próprio corpo, a particularidade do mesmo surgirá por meio da per cepção de si, e não pelo que dele é representado. Tocar no seu próprio corpo é, por si só, uma experiência única independente de comparar, explicar e representar.

Angel utiliza vários contatos corporais (...) sem falas, sem representações, somente pe los sentidos que fazem aflorar sensações, prazeres, surpresas e inquietações. (TEIXEIRA, 2008, p. 34)

A representação pressupõe, como vimos, a separação entre sujeito e objeto. Te mos sempre um sujeito se debruçando sobre um objeto, ou um signo sobre um referente. No método criado por Angel Vianna, a relação com outros corpos, com o espaço, com o mundo, é procurada e aprofundada.

O ambiente de Angel não pertence – de forma tão explícita – ao lugar da explicação, cujo processo de reconhecimento do saber é palpado na justificativa científica de comprovação da verdade instituída. O lugar é propício à vivência e à criação (TEIXEIRA, 2008, p. 29).

Na pesquisa proposta por Angel Vianna, o aluno executa seu movimento inter no, não há uma ordem externa que conduza a um padrão de movimento. A ideia é exatamente experimentar com o corpo, esse corpo único, em agenciamentos únicos naquele momento. Sair da ação mecânica, propor novas formas, desafian do o habitual. Resgatando a ideia de captura deste trabalho, podemos perceber que a relação corporal proposta por Angel é uma tecnologia importante para nos protegermos da predação do Antropos, pois se funda na relação entre equilíbrio e desequilíbrio experimentada nos corpos e na relação entre eles. O movimen

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to, a consciência do movimento, o corpo inseparável de seu movimento, não permitem a instalação do modelo da “identidade”. Segundo Carlos Fausto, ao tratar da questão dos “donos” na etnologia ameríndia “a predação é um vetor assimétrico da identificação-alteração: quem come contém o outro e a sua alte ridade dentro de si” (FAUSTO, 2008, p. 335). Contempla-se, assim, a sempre perigosa relação entre equilíbrio e desequilíbrio, pois no mundo há múltiplas singularidades internas e externas (ao invés de ser composto por indivíduos e identidades), em permanente movimento: vida.

Mover é desconstruir mundos, relações e identidades e reconstruir novas, a par tir de novos agenciamentos que, por sua vez, abrirão para novas possibilidades. Ao contrário, a estabilização e a identificação com o mesmo sufocam a vida, fa zendo suas intensidades tenderem a zero. Mover e criar sobretudo os corpos. Ao se mover, o corpo não está apenas se deslocando no espaço e acessando novas relações, ele está principalmente se recriando, diferenciando-se dele mesmo. Movimenta-se para diferenciar-se e multiplicar-se.

A antropofagia e a predação são atos de diferenciação de si, do outro. Pura criação e não processos de soma ou destruição ou apropriação unilateral. “O si e o mes mo não se confundem na construção da pessoa ameríndia” (FAUSTO, 2008, p. 341). Nem no xamanismo de Angel Vianna. Ambos acontecem no corpo, atra vés do corpo, este sendo o lugar da imanência, agenciamento, criação e possi bilidade de escapar da homogeneização, estagnação do modelo que se fecha na representação.

A criação de Angel se constrói, assim, sobre a pesquisa, uma auto-pesquisa das possibilidades de movimentação do corpo (RAMOS, 2007), de cada corpo pes soal, no momento, no espaço e nas relações que tece. Tornar-se mestre de si mes mo ao conscientizar-se do próprio movimento. “É espantoso o que o corpo é ca paz de fazer quando é deixado livre”, afirma Angel (apud RAMOS, 2007, p. 26).

O verdadeiro trabalho só se dá quando descoberto e sentido. Não acontece de uma hora para outra, ele precisa de tempo para perceber as oposições, a relação com o espaço, o espa ço em si, o estar presente, e saber quem está presente, a percepção dos sentidos e a percepção do corpo inteiro em relação ao corpo inteiro (RAMOS, 2007, p. 30).

Nesse corpo com o mundo não há dentro e fora, separação entre pensamento e corpo. O aprendizado de si, a partir das práticas propostas por Angel Vianna, se faz através da sensibilização da pele por onde acontece o fluxo dentro-fora-den tro-fora. “A integração provoca sensações com essas referências em uma intera ção que desfaz totalmente o dentro e o fora, como no anel ou banda de Möebius” (TEIXEIRA, 2008, p. 35). O professor ou orientador oferece seu “aprendizado vivenciado”, pois o mestre mesmo é o próprio corpo em sua relação com outros corpos “com base na sua fisicalidade, através dos registros de textura, densidade, peso, volume, apoio, tato, gravidade, força, vetor, espaço e tempo” (TEIXEIRA, 2008, p. 51).

A sociedade que herdamos, para ser ocidentalizada e modernizada, passou por processos de afastamento do mundo, do corpo, do movimento, do presente, do acontecimento, da inventividade e da materialidade, conforme tratamos acima. Passamos por processos de subjetivação que emudeceram nossas qualidades sensoriais e atrofiaram nossas possibilidades “pelas repetições não diferenciais de um gesto mecanizado” (BORGES, 2009, p.38).

Esse processo foi realizado através do extermínio de tecnologias de formação de coletivo, de cuidado, de consciência corporal, de pequenas percepções, de cria ção, de atenção, e tantas outras. E Angel Vianna e seu xamanismo contemporâ neo nos abrem múltiplas possibilidades de criação de novas tecnologias que po dem ser importantes para transformarmos a herança que deixaremos às nossas crianças.

EDUCAÇÃO INTERCORPORAL

A herança que podemos deixar às novas gerações, insisto neste texto, passará pelo “resgate” (reclaim) de nossa corporalidade e relações corporais e intensi vas. Nesse sentido, é importante atentarmos para o rompimento com a herança da educação intercultural, na direção da proposição daquilo que denomino uma educação intercorporal.

Como seria um pensamento e uma prática que possam tratar da diversidade de intensidades (sonoras, visuais, olfativas, de movimento, gestos, cores...) quan do estas ainda não foram capturadas pelo significado (como Cage, na entrevista mencionada, falando sobre o som ativo da cidade e a música)? Relações entre intensidades. Chegar ao corpo, meu e outro, estando “a meio-caminho entre perceptos e conceitos” (LÉVI-STRAUSS, 1989, p.33). Chegar aos ossos sem re presentação, sentir os órgãos sem representação, ouvir sem classificar, ver sem classificar, relacionar sem classificar: ficar no corpo. O corpo da intercorporalida de é o lugar da imanência.

Uma educação intercorporal, que possa colocar em devir esses diversos corpos -perspectivas. No sentido daquilo que Deleuze chama de hecceidades. Segundo Ingold (2011, p.143):

Estas hecceidades não são o que nós percebemos, já que no mundo de espaço fluido não há objetos de percepção. Elas são, ao contrário, aquilo com que percebemos. Em suma, per ceber o ambiente não é reconstituir as coisas a serem encontradas nele, ou discernir suas formas e disposições congeladas, mas juntar-se a elas nos fluxos e movimentos materiais que contribuem para a sua – e nossa - contínua formação.

A hecceidade existe no corpo. São corpos que se encontram, não imagens ou representações de corpos. Como seria, então, um pensamento que partisse dos corpos, da materialidade, do acontecimento, dos fluxos não capturados por con ceitos culturais? Como seria uma educação que pudesse se ampliar, do campo

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limitado da mente, para as possibilidades de aprendizado a partir dos corpos e seus sentidos?

Mesmo a Antropologia, que em seu percurso se colocou o exercício da diversi dade, se construiu majoritariamente através da aceitação do mundo dado e suas variadas representações. Estamos sempre lidando com generalidades concei tuais e não com momentos materiais. É sempre conceito-cultura e não corpo -agenciamentos. Cultura, constituída como o objeto da Antropologia, funciona, assim, como uma outra natureza, um universal a partir do qual as diferenças vão acontecer. A Antropologia fugiu da naturalização do mundo, mas caiu na sua culturalização, como uma segunda natureza.

Nesse sentido, a diferença é dada de antemão. Não tem a possibilidade de ser construída a cada instante. O conhecimento racional parte de categorias e pres supostos universais. A corporeidade, por seu lado, permite-nos estar no ins tante, na relação original dos corpos em cada momento, e isso possibilita um pensamento mais livre para a criação, um pensamento para o futuro e não preso desde o início ao passado. O que fazemos e pensamos não é algo feito sobre ou separadamente da natureza e dos corpos, mas algo que fazemos entre os corpos, como a proposta de Angel Vianna e a malha de Ingold:

Não se trata de um objeto fechado, independente, estabelecido contra outros obje tos aos quais possa, então, ser justaposto ou reunido. Trata-se, antes, de um feixe ou tecido de fios, firmemente reunidos aqui, mas que arrasta pontas soltas ali, que se emaranham com outros fios de outros feixes...toda planta é, também, um tecido vivo de linhas. E assim, de fato, eu o sou (INGOLD, 2011, p.148)

A educação intercorporal se faz no momento: através da bricolagem en tre os corpos presentes, confia na experiência vivida para criar no instante inesperado do agora. É diferente da pedagogia ocidental, que podemos chamar, a partir de Lévi-Strauss, de pedagogia do engenheiro, por se ba sear no planejamento e, por isso, não poder se conectar com outros cor pos no momento, pois este é sempre único, imprevisível.

Ou seja, a consciência do corpo não está voltada para reconhecer o mundo em fun ção de uma ação intencional que irá dar-lhe sentido, “mas como adesão imediata ao mundo, como contato e contágio com as forças do mundo” (GIL, 2001, p.177).

Letícia Teixeira (2008, p. 39) afirma que, na metodologia Angel Vianna, o corpo escapa da racionalidade e de uma organização prévia cultural ou orgânica e assim se torna um corpo vivo. A vida pressupõe a instabilidade, a imprevisibilidade, a ambiguidade e o risco. O corpo, então, deve estar desperto, atento “encarnado – com, no, dentro do corpo. Como? Na prá tica” (TEIXEIRA, 2008, p.39).

NOTAS / REFERÊNCIAS

O caminho percorrido por esse texto pretende nos levar a uma possibilidade de transformação da herança que recebemos. Se esta está calcada na invenção da separação cultura-natureza, talvez resgatando nossos corpos como lugar de uma prática atenta e de pensamento possamos ter uma chance de sair dessa sina. Para fazer algo diferente com o que herdamos, é imprescindível que estejamos conec tados com nossos corpos e com os demais corpos por uma sensibilidade atenta. Que acreditemos no nosso corpo como meio de aprendizado e de pesquisa. A lógica do sensível. Não é através da mediação única da racionalidade universal e abstrata que um conhecimento pode acontecer e ser afirmado. O saber pode acontecer diretamente entre os corpos, como observa Lévi-Strauss, em relação à ciência do concreto. A submissão do corpo à mente está em correspondência com a subordinação do mundo à representação, da oralidade à escrita.

1 Doutora em Antropologia pelo PPGAS-Museu Nacional-UFRJ. Pro fessora Associada de Antropologia do Departamento de Educação da Univer sidade Federal Fluminense. Este artigo é baseado na minha monografia de conclusão do curso de pós-graduação “Terapia através do movimento” na Faculdade Angel Vianna, sob orienta ção de Hélia Borges.

2 Ou o que a antropologia tem escutado daquilo que os indígenas nos falam.

3 Renato Sztutman (2018) traduz o termo Reclaim como “reativar”. Na tradução do texto de Stengers (2021), ele é traduzido como “reclamar”, “recuperar”, “regenerar”. No presente artigo irei usar o termo nas diversas traduções propostas, indicando a refe rência ao termo original reclaim.

4 Como noto na tese Ritos de Civilização e Cultura: a escola Bakairi (COLLET, 2006), podemos observar uma transformação dos

rituais anteriores à colonização, através da apropriação de rituais dos colonizadores, como a escrita. Assim, vemos, cada vez mais, os indígenas se apropriarem do ritual da escrita acadêmica como parte da composição de seus rituais de relação com os “outros”.

5 Lembro-me do corpo-consciência de José Gil (2004).

6 A analogia com o “Anti-Édipo” (Deleuze e Guattari, 2010 [1972]), que a semelhança vocabular nos sugere, é interessante, não só pela ausência de uma estrutura original edipiana, contra a qual, a imagem da cobra provando seu próprio veneno nos indica, como também pelas relações que as ideias de Tom Zé parecem ter com a filosofia deleuziana (Rogério Skylab, disponível em: <https:// www.academia.edu/35659686/ TROPICALISTA_LENTA_LUTA> Acesso em: 15/05/2018).

NOTAS / REFERÊNCIAS
“AQUILO QUE NÓS HERDAMOS PODE ALIMENTAR NOSSA CAPACIDADE DE NOS DESINTOXICAR DOS SONHOS DO ANTROPOS?”

NOTAS / REFERÊNCIAS

7 O povo Kurâ, chamado pelos brancos de Bakairi, vivem no que hoje é o Esta do de Mato Grosso. / ANDRADE, Oswald. Manifesto da Poesia Pau-Brasil. Correio da Manhã, 1924.

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RESENHAS

METAMORFOSES EM NÓS

MARCOS VINÍCIUS BOHMER BRITTO

Doutorando do PPG-AU/UFBA e membro do Laboratório Urbano (PPG-AU/UFBA)

RAFAEL LUÍS SIMÕES SOUZA E SILVA

Mestrando do PPG-AU/UFBA e membro do Laboratório Urbano (PPG-AU/UFBA)

Livro: “Metamorfoses”

Autor: Emanuele Coccia

Pensar em uma resenha para Metamorfoses1 , de Emanuele Coccia2 , so bretudo sob o efeito de uma leitura tão potente em instigar, deslocar e provocar outras formas de ver, se torna um desafio. Como transbordar para a escrita tudo aquilo que emerge como pensamento, como asso ciação, como contribuição para o nosso campo? Como dar forma a um texto sobre uma leitura que tanto trabalha a transformação, a coafetação entre diferentes corpos, espécies, múltiplas existências e tempos? O de safio se dá justamente por esse sentimento de querer redobrar-se que se instaura a partir da leitura. Sentimento que nos chega como convite – e também como provocação. Um desejo de mostrar-se afetado e incorporar na escrita as sucessivas metamorfoses que se dão como consequên cia do diálogo com a obra. Gostamos de pensar nesta resenha como uma reencarnação, que tomou forma a partir do livro, mas que está destinada a se transformar a cada leitura.

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Coccia se dedica em Metamorfoses a propor uma ampliação da percepção de vida e a explorar suas relações de transformação. O modo que o livro está estruturado – iniciando com a introdução e terminando com a conclusão – parece cumprir com um “ciclo de vida” canônico. No entanto, ao percorrermos os capítulos en tre estes dois momentos – passando por Nascimentos, Casulos, Reencarnações, Migrações e Associações – são estabelecidas ideias mais consonantes com o que é desenvolvido no livro: o nascimento não como o começo – e sim continuidade da existência, repetição com diferença, acúmulo de vidas e tempos heteróclitos –; e a morte não como um fim, não como o contrário da vida – e sim como meta morfose, uma fronteira. É interessante como o autor incorpora esse pensamen to na escrita do livro. Não apenas sua ideia vai se transformando ao longo dos capítulos, mas o próprio texto é escrito numa cadência de repetição e diferença, tomando formas distintas, se transformando, se reafirmando em outras formas. Coccia dá vida às palavras, formando arranjos onde uma ideia vai se repetindo de frase em frase até se transformar em outra coisa, em outra ideia.

De certo modo, nos pareceu um movimento natural encarar essa resenha como uma metamorfose do próprio livro, que digerimos e encarnamos no nosso pen samento. Atentos às repetições, às figuras de linguagem que o autor lança mão – epanáforas, anáforas e metáforas –, buscamos fragmentar e compor a partir desses fragmentos uma outra forma textual. Uma remontagem das palavras do próprio Coccia em forma de poemas, que atuam como imagens-pensamento3 , para iniciar e ao mesmo tempo sintetizar as ideias que o autor projeta em cada capítulo. Assim atravessaremos o livro, de imagem em imagem, em meio a vá rias outras que emergem desta leitura, entendendo que são sínteses transitórias desta experiência.

INTRODUÇÃO – FORMAS EM NÓS

Cada ser vivo é uma legião Cada um costura corpos e “eus” como um alfaiate Cada uma dessas formas tem o mesmo peso, a mesma importância Cada forma, cada natureza vem do outro e representa seu igual Cada ser vivo é em si mesmo uma pluralidade de formas, mas Cada uma dessas formas não existe de maneira verdadeiramente autônoma, pois Cada qual se define em continuidade imediata com uma infinidade de outras antes e depois dela mesma.

Coccia diz que a vida compõe um contínuo de dobras e desdobramentos, que se expressam em relações formais, mas que extrapolam as formas de vida que po demos imaginar. Uma relação de coimbricação para além da espécie humana, que não só começou muito tempo antes da existência da humanidade, mas que con tinuará por muito tempo após não estarmos mais pisando na Terra. Essa crítica ao antropocentrismo se dá não apenas por não haver uma relação de hierarquia

entre as diferentes espécies que nos precederam — pois em todas transita uma mesma vida —, mas também na relação de interdependência que a vida nos co loca com outros seres vivos, sejam eles animais, plantas, ou bactérias que vivem no nosso organismo.

NASCIMENTOS

Como todas e todos, eu esqueci.

Eu esqueci o dia e a hora, meus pensamentos e minhas emoções Talvez esquecer fosse a minha única opção?

Tive que esquecer, esquecer tudo.

Criar um vazio para abrir espaço ao resto

Criar um vazio para tornar possível qualquer experiência.

Eu tive que esquecer, e esquecer tudo, para poder perceber a mim mesmo.

Como todas e todos, eu esqueci tudo.

Eu me esqueci, mas também, e acima de tudo, esqueci tudo o que vivia em mim e mesmo continuo a fazê-lo.

Eu esqueci, por exemplo, que fui, durante nove meses, o corpo da minha mãe.

Como todas e todos, eu esqueci de que já fui o corpo do meu pai

Como todas e todos, eu esqueci tudo.

Eu não poderia ter feito diferente.

Tive que esquecer tudo para tornar-me o que eu era.

Eu nasci. Eu transmito sempre algo que não sou eu mesmo

Eu nasci. A matéria da qual sou feito não tem nada de meramente presente.

Eu nasci, e é quase uma tautologia.

Se nascemos é porque cada um de nós, em corpo e alma, é apenas uma parte do mundo.

O nascimento é o processo mais individual e individualizante que um ser vivo pode expe rimentar.

O nascimento é a primeira de todas nossas experiências, sua forma transcendental.

O nascimento é um corredor: um canal de transformação que leva a vida de uma forma a outra, de uma espécie a outra, de um reino a outro.

Ter nascido significa não ser nada além de uma reconfiguração, uma metamorfose de outra coisa.

Ter nascido significa ser feito da mesma matéria da qual são feitas todas as coisas que temos diante de nós.

Nascer, para cada ser vivo, é experimentar ser uma parte da matéria infinita do mundo, que inventa uma outra forma de dizer “eu”.

Nascer, para cada ser vivo, é não ser capaz de separar sua própria história daquela do mundo, não ser capaz de distinguir entre o local e o global.

São os nascimentos que desenham o mundo.

Todas e todos esquecem que nasceram.

Todas e todos esquecem.

Somos todas e todos a repetição de uma vida anterior.

Como ela deve estabelecer-se através do nascimento, a vida é sempre repetição.

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Uma vez nascidos, não temos mais escolha.

O nascimento faz da metamorfose um destino.

Como todas e todos, eu esqueci tudo. Nenhuma imagem me vem à mente.

Como todas e todos, eu esqueci tudo. Eu só poderia esquecer.

Toda nova vida é uma nova casa para o planeta, uma nova maneira para que ela diga “eu”; e ela, para fazê-lo, precisa esquecer-se.

A cada nascimento, dentro de cada um de nós, em cada um de seus seres vivos, a Terra esquece o que ela é ou o que ela foi até esse dado momento para modelar seu rosto de uma forma diferente, para construir sua história de uma forma diferente.

No nascimento, o esquecimento é a condição da metamorfose, o elemento mais profundo da memória. Esquecemos que o nosso corpo carrega em suas formas, uma mistura inumerável de seres vivos, nascidos de outros, e estes de outros, e de outros, “até as fronteiras da humanidade e ainda mais além, até as fronteiras do ser e ainda mais além”. Nos esquecemos da vida que animou nossos ante passados e abrimos espaço para que a vida seja carregada por uma nova forma, uma individualização que permite a distinção de um novo “eu” com o que é e o que foi “de fora” desta forma. Todo nascimento é um ato de esquecimento. A vida toma, nesse momento, uma outra forma, a forma que nos é dada ao nascer. Se somos a repetição da vida anterior, temos que esquecer as formas pregressas para nascermos. Nesse sentido, todo “eu” é um ser migrante, que nunca poderá identificar-se com uma única de suas múltiplas identidades.

CASULOS

Sempre sonhei com isso. Refugiar-me dentro de um casulo, não importa qual seja ele. Sempre sonhei com isso. Envolver-me na seda do casulo até cortar toda relação com o mundo por dias a fio.

Sempre sonhei com isso.

Ter a força das lagartas.

Ver asas surgindo do meu corpo de verme.

Voar ao invés de arrastar-me pelo chão

Passar de uma existência a outra sem ter que morrer e renascer

A mais perigosa forma de magia.

A existência mais próxima da morte. A metamorfose.

Muitas vezes me perguntei por que isso era só um sonho.

Dedicamos um amor sem entraves à transformação do mundo, para seu progresso e me lhoria, e, no entanto, tememos qualquer mudança efetiva.

Preconizamos a mudança dos objetos à nossa volta, mas esperamos que isso não toque na nossa identidade.

Transformamos o mundo até o esqueleto e, no entanto, tal mudança nos paralisa.

O casulo não é apenas o paradigma da técnica, mas também o do estar no mundo.

Todo eu é um casulo

Um casulo é, primeiramente e antes de tudo, a prova de que nossa vida não pode estar

atrelada a uma única identidade anatômica.

A vida das espécies no planeta é uma metamorfose constante.

A cada vez que comemos, fazemos-nos animais.

A cada vez que ingerimos um ser vivo, seja ele vegetal ou animal, somos simultaneamente o local, o sujeito e o objeto da metamorfose.

A cada vez que comemos, transformamo-nos em um casulo dentro do qual uma outra forma de vida torna-se humana

O que nós chamamos de vida, sob todas suas formas, não passa de um casulo dentro do qual Gaia inventa uma nova maneira de ser.

O mundo é um casulo feito de casulos.

Os casulos estão por todos os lugares. Cada célula viva é um deles

Os casulos estão por todos os lugares. Cada meio é um deles

Os casulos estão por todos os lugares. Eles não esperam pelo chamado à conversão ou à revolução.

Sempre sonhei em fazer parte disso. Ao meu redor, apenas seda, branca, macia.

Sempre sonhei com isso. Sem necessidade de protestar.

Sempre sonhei com isso. Sem necessidade de conceber um mundo distinto.

Esse sonho é a vida do nosso planeta.

Esse sonho é a história da vida.

Coccia transita entre o literal e a metáfora quando traz o casulo enquanto um espaço de refúgio e metamorfose. A imagem mais notável da metamorfose, a borboleta, é evocada neste momento. Uma mesma vida que habita dois corpos diferentes, sem que um morra para que o outro exista. Enquanto transforma mos o mundo, tememos a nossa própria metamorfose. No entanto, a nossa metamorfose não é um ato consciente ou passível de vontade. Diferentemen te da revolução, que busca modificar o entorno à imagem do eu, diferente da conversão, cuja transformação vem de fora por vontade própria. O casulo é “a construção de um limiar onde todas as fronteiras e identidades são suspensas de maneira temporária”, e é por isso que a metáfora com os insetos permite perce ber esse modo de metamorfose como o caminho que permite à vida transitar e conectar vários mundos incompatíveis (o terrestre e o aéreo, no caso da lagarta/ borboleta). “Todo inseto é um desfile de mundos, seja ele uma multiplicidade de idades, de situações, ou de verdadeiras silhuetas anatômicas”. Coccia relacio na esse modo de metamorfose com a criança e o adulto. “Adulto e criança não vivem no mesmo mundo. Eles não se cruzam, eles não entram em competição. Eles encarnam uma vida que não é reduzida a um mundo específico”, a criança vive num mundo diferente do adulto, assim como a lagarta vive num mundo diferente da borboleta. Todo ser vivo é uma quimera, na medida em que todo ser vivo passa por esse processo de hibridização entre diferentes seres em si mesmo. Os casulos estão por todos os lugares, estão presentes quando nos reinventa mos, quando nos adaptamos e até quando ingerimos outro ser durante a nossa alimentação.

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REENCARNAÇÕES

A cada dia, temos o hábito de sentar-nos e usar nossas bocas e mãos para literalmente incorporar o corpo de outros seres vivos: tirar-lhes a vida, tomar-lhes os ossos, a carne, e transformá-los em nossas vidas, nossos ossos, nossa carne

Comer sempre significa encontrar outros seres vivos, ser obrigado a viver a vida dos outros.

A vida alimenta-se de vida Uma vida nunca é autossuficiente

Ela precisa insuflar nela mesma uma outra forma de vida em ato, uma vida que outros construíram

Comer significa transfundir a vida dos outros em nosso corpo. Comer significa fusionar, fundir duas vidas em uma só

O que nós comemos é sempre e unicamente a vida.

A alimentação é a contemplação da vida em sua universalidade mais assustadora um frango torna-se um ser humano um ser humano torna-se um verme um verme torna-se uma pomba Não há um verdadeiro e único ciclo

A vida vai de corpo em corpo, de espécie em espécie

O que chamamos de morte é apenas o limiar de uma metamorfose

Cada ser vivo é um casulo pelo qual a vida constrói alguma coisa diferente na natureza nada morre, tudo se transforma a cada vez que ingerimos um ser vivo, seja ele vegetal ou animal, somos simultaneamente o local, o sujeito e o objeto da metamorfose

A cada vez que comemos, nos transformamos em um casulo no seio do qual uma outra forma de vida se torna humana.

Comer é o encontro multiespecífico mais universal do mundo

A política de Gaia é apenas essa construção cotidiana de uma carne comum a todos os seres vivos, que cada um utiliza mas que circula não apenas de local em local mas de corpo em corpo, de indivíduo em indivíduo de espécie em espécie

O destino de todos os seres vivos é tornar-se o corpo de uma outra espécie

Nós nunca deixamos de trocar de casa, de ocupar a vida e o corpo dos outros.

Nós nunca deixamos de nos tornar a casa e o corpo dos outros.

Ninguém nunca está totalmente em casa.

Ninguém neste mundo segue os usos e hábitos da casa

A morte é a passagem da vida comum a todas e todos de uma forma para outra

A morte nunca poderá interromper a vida, ela simplesmente muda o seu modo de existência

Toda morte é uma continuação da vida sob outros rostos.

A vida, por outro lado, constitui-se sempre sob a forma de uma reencarnação da vida que a precedeu

Há que se viver bem rápido e morrer com frequência, e não cair no fetichismo da forma que a vida escolheu

Partilhamos a mesma carne e o mesmo espírito com tudo o que há na Terra Nada do que habita em nós é novo.

Tudo vem de outros corpos, de outros lugares, de outros tempos. Tudo pertencia a uma outra vida, tudo já viveu várias vezes sob várias formas, tudo foi readaptado, reordenado, reformado.

Cada reencarnação permite que dois seres reencarnam-se um no corpo do outro.

A forma mais recorrente de metamorfose é a fagia. A vida promove, a todo mo mento, o encontro de corpos, sejam eles vegetais ou animais, onde um, ao ali mentar-se do outro, torna-o seu corpo, sua vida. O devorado, por sua vez, trans cende a forma confinada nos limites do seu corpo para transmitir sua vida assim que entra no corpo do outro. Quando isso acontece, somos ao mesmo tempo o sujeito, o local e o objeto da metamorfose. A fagia também nos mostra que não existe um único ciclo de metamorfose, pois ela vai migrando de espécie em es pécie, onde a vida é transmitida para além dos limites dos corpos, das espécies, das formas. A vida está apta a circular no corpo de todos os seres vivos, e apesar de ser difícil pensarmos no nosso corpo humano como alimento para outras es pécies, como o exemplo dado pela bióloga australiana4 que se viu incrédula por quase tornar-se alimento de um crocodilo, ainda assim viramos um banquete para bactérias e vermes que reencarnam o nosso corpo no deles, permitindo que a vida migre para nutrir outras formas.

MIGRAÇÕES

O verdadeiro sujeito de toda metamorfose é o nosso planeta.

Todo ser vivo é apenas uma reciclagem do seu corpo, uma manta de retalhos construída a partir de uma matéria ancestral.

O mundo se define, antes de mais nada, pelo fato de ser um planeta, um corpo, um conjunto de corpos caracterizados por um movimento irregular e quase perpétuo

O mundo é o ser da metamorfose

É por causa dessa natureza planetária que nada pode permanecer onde está, nem o que é

Os pássaros, o vento, os rios, mas também os edifícios, os cheiros, as cores

Tudo se move, tudo se transforma

Tudo muda de lugar, mesmo que não reparemos nisso. Tudo muda de forma, mesmo que essa transformação permaneça invisível aos nossos olhos.

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O mundo, enquanto realidade planetária, é um corpo à deriva Não há mais terra, Não há mais formas estáveis e definitivas.

Todos os continentes são balsas em movimento

De um ponto de vista planetário, a vida migra, pois é a terra, em que cada ser vivo põe seus pés, que se desloca.

A metamorfose, que é tão íntima do ser vivo, é uma consequência dessa deriva que anima e molda o corpo da Terra.

É metamorfoseando-se que a matéria pode fazer-se planeta, em deriva perpétua.

A condição planetária não é uma qualidade individual.

Ser um planeta significa sempre sê-lo para outra coisa ou para outra pessoa

Cada objeto no mundo é o planeta de alguma outra coisa.

Cada ser vivo é o planeta de alguma outra pessoa.

Toda relação com outros seres reproduz esta configuração planetária,

Onde um dos seres se torna o planeta para o outro

Onde são mutuamente o planeta um para o outro.

A relação metamórfica é sempre uma relação planetária, no duplo sentido de que ela transforma um objeto em mundo, e faz das formas implicadas uma o planeta da outra

Todo corpo é uma viagem em curso

Todo corpo é um corredor

Todo corpo é a porta de entrada para uma infinidade de outros mundos.

O mundo é planeta, e é por isso que ele não é nem um globo nem uma casa

O mundo é planeta, e é por isso que sempre existirá um outro lugar e uma outra forma A vida é a consequência da natureza veicular da matéria, da estrutura planetária deste mundo.

Há vida apenas onde os corpos são veículos, arcas, planetas uns para os outros Não há espaço, há somente viagem.

É a partir dessa veicularidade que nós deveríamos descrever e pensar nosso estar juntos. Ora, temos medo dos veículos Nós tememos as arcas.

Nós receamos a viagem

Não conseguimos nos libertar da nossa obsessão pela casa. Não conseguimos nos libertar do nosso amor por espaços bem organizados, limpos, que sejam nossos, exclusivamente nossos e não dos outros. Não conseguimos nos libertar do nosso amor por fronteiras nítidas É contra as casas que a metamorfose opera

O planeta Terra é apenas a vida da metamorfose, o desvio de tudo o que vive Todos os seres vivos fazem da sua relação com o espaço um meio de metamorfose de si próprio e do mundo que eles habitam.

O autor encara a vida como uma migração contínua multiescalar, multiespecí fica e multi-relacional, onde tudo na Terra e para além dela – os astros – está em constante movimento. Tudo se move, tudo se transforma. O mundo é um gran de corpo à deriva, transportando nessa viagem muitas formas de vida, onde nós somos passageiros que não sabemos quando a viagem iniciou nem o seu destino.

O mundo é o ser da metamorfose, e cada forma no mundo é o planeta de alguma outra coisa. As placas tectônicas são grandes balsas que se movem lentamente em relação ao tempo de vida que nossas formas carregam. As nossas cidades são grandes espaços de mudanças constantes, onde prédios e ruas trocam de lugar, se deslocam, são reconstruídos, migram. O nosso corpo é um planeta que abri ga várias outras formas de vida. Nada permanece onde está nem o que é, tudo se transforma. É metamorfoseando-se que os seres vivos animam a matéria do planeta.

ASSOCIAÇÕES

Toda metamorfose é a evidência de uma relação entre formas díspares que define o ‘ser’ de tudo aquilo que é vivo.

Essa relação não está fora de nossos corpos.

Trata-se de sua própria fisiologia. Somos, simultaneamente, lagarta e borboleta. Nenhuma silhueta, Nenhum ethos, Nenhum mundo poderá resumir nossas vidas.

O mundo está sempre, em todas as suas partes, concebido, desenhado, construído. Estar no mundo significa, para cada espécie, viver no espaço concebido e construído por outros.

Viver, portanto, significa sempre ocupar, invadir um espaço estrangeiro e negociar o que poderia ser um espaço compartilhado.

A agência arquitetônica ou urbana não é algo que se limita ao ser humano, é a faculdade mais geral de um ser vivo

Cada espécie é um ator consciente

Cada espécie viva entretém uma relação estética com o mundo ao seu redor. Estar vivo não significa apenas perceber o mundo de forma diferente das outras espécies, mas construí-lo, moldá-lo, de uma forma diferente

O meio ambiente não é algo que precede as espécies naturais, é algo que cada espécie remodela à sua própria imagem.

O mundo animado é um mundo de arquitetos

Cada espécie é de alguma forma obrigada a viver em um mundo produzido e concebido por outros

A arquitetura é sempre um salão multiespécie. É o paradigma da relação interespecífica

O espaço, o que persistimos em chamar de meio ambiente natural, nunca é “natural”.

O espaço em que vivemos é o produto de outros

A arquitetura não é apenas a relação ativa entre uma espécie e o mundo, mas a relação necessária entre eles.

É enquanto arquiteto do mundo que cada espécie está em relação com as outras.

O intelecto não é uma coisa, é uma relação.

Cada espécie decide, à sua maneira, o fado evolutivo das outras

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O solo deixa de ser uma realidade autônoma.

Não há solo.

O solo de um é a vida de outros

Cada um vive do corpo do outro

Cada um tirou seu corpo de outrem Todo ser vivo é a Terra dos outros

Não há solo urbano, espaço puro e simplesmente de ocupação urbana

Todo território é em si uma metamorfose em curso

Cada um de nós, como todo ser vivo e toda espécie, é um elemento de uma metamorfose coletiva

Um solo para outros seres vivos e outras espécies

É enquanto solo dos outros que temos uma potência de agir.

Cada espécie decide o destino evolutivo da outra, simultaneamente artista e obra

A Terra em si deve ser considerada como uma experiência artística

A natureza contemporânea é a cena onde a vida está na vanguarda do seu porvir.

É a vida como uma vanguarda natural

É a reprodução surrealista das formas de vida

As cidades deveriam tornar-se algo como museus para a natureza contemporânea

A cidade, enquanto museu da natureza contemporânea, não é nada além de um conjunto de artes e técnicas em perfeita continuidade com as nossas.

A vida nessas instituições deverá coincidir com um tipo de urbanismo interespecífico, com uma arquitetura paisagística multiespécies.

A cidade deve se tornar o que torna possível a contemporaneidade da natureza

Ela é nosso presente e, sobretudo, nosso futuro.

Ela é, sempre, uma projeção futurística do presente, sua metamorfose.

É curioso pensar que nossas cidades são, antes de tudo, construídas em espaços onde há ar para respirar. O oxigênio produzido pelo metabolismo das plantas é o que há de mais presente nas cidades, antes de prédios, antes de pessoas. As cidades são, assim como as florestas, um encontro multiespecífico, por mais que nós humanos continuemos persistentemente em pensá-las como artefatos ex clusivos da humanidade, em separá-las da relação com outras formas de vida. Vivemos num espaço concebido por outras espécies, onde cada uma participa ativamente de uma grande quantidade de modificações que resultam no nosso estar no mundo, que transformamos para outras espécies. Essa transformação é sempre multiespecífica e migrante: a flor concede à abelha a polinização; a se mente é levada pelo pássaro por longas distâncias para germinar. É por isso que pensar a relação do ser vivo com o espaço sob o prisma da autoctonia é sempre uma imposição normativa.

CONCLUSÃO – METAMORFOSES

A metamorfose é, a um só tempo, a força que permite a todos os seres vivos espalharem-se simultânea e sucessivamente por várias formas e o sopro que permite às formas conecta rem-se entre si, passarem de uma para a outra.

A metamorfose é a adesão e a coincidência com um corpo estranho Em uma metamorfose, a potência que nos atravessa e nos transforma não é de maneira alguma um ato consciente e pessoal de vontade.

A metamorfose é a fronteira que separa e divide as espécies umas das outras. A metamorfose é uma alegoria de purificação: assim como os insetos deixam seu antigo corpo e obtêm um novo modo de vida, da mesma maneira os homens devem deixar seu antigo modo de vida para adotar um novo.

A metamorfose é a propriedade dos corpos que nunca se separam de sua infância Todos os seres vivos podem endurecer sua pele para secretar a infância. Manipular seu corpo, destruir seus ossos, sua carne, dura demais, vivida demais para destilar uma juventude futura. O milagre da metamorfose é este aqui.

As metamorfoses são os dias onde tudo se parece com violência: aqueles em que os golpes que infligimos a nós mesmos parecem mais duros que os que o mundo pode nos enviar.

A metamorfose não é apenas um processo que diz respeito à forma global do corpo: ela é também a relação que se estabelece entre as diferentes partes do corpo, e que permite a cada uma delas seguir uma linha de vida, estender-se no curso de seu desenvolvimento.

A metamorfose é a mais poderosa objeção a qualquer teoria que pretenda enumerar tantas vidas quanto corpos existentes e afirmar uma descontinuidade do ser vivo que corresponde perfeitamente à forma das espécies e dos indivíduos.

Todo ser vivo é a contração e o desdobramento de uma biodiversidade anatômica, ética e ecológica cuja metamorfose é a condição de possibilidade e história. Ecossistema e cidade são espaços de conspiração metamórfica, de turbilhões onde as formas associam-se para possibilitar uma metamorfose maior da Terra, ou seja, para dar uma vida mais intensa e rica à Gaia.

Coccia defende que a metamorfose é a evidência de que a vida que nos atravessa é a mesma que circula ao nosso redor, e de que faz isso desde muito tempo, apenas mudando de forma, se transformando, se reinventando, se metamorfoseando. É uma única vida partilhada por todos os corpos, que migra numa continuidade intraespecífica pelos nascimentos, mas também interespecífica pelas reencarna ções. Para além de uma nova maneira de pensar a vida em suas formas, o autor aciona uma posição política de que a compreensão da humanidade passa por uma compreensão das relações de afetação interespecífica entre corpos, e que a espécie humana é apenas uma nesse emaranhado gigantesco da diversidade de vida na Terra. A metamorfose liga o tempo ao espaço, evidenciando a força vi tal metamórfica que migra de ser em ser, que mostra passado, presente e futuro num único sopro, e que anima Gaia em suas mais variadas formas de vida.

De certo modo, o livro Metamorfoses pode ser entendido como uma existência per se , uma outra forma de dizer eu, que também é repetição, que também é acú

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NOTAS / REFERÊNCIAS

mulo, “em continuidade imediata com uma infinidade de outras antes e depois dela mesma”. O livro pode ser entendido como uma legião, cujo corpo é com posto por muitas ideias e pensamentos que fluem como a vida, ainda que para que algumas ideias nasçam, outras tiveram que ser esquecidas. Coccia de certa forma incorpora o pensamento deleuziano. A dobra5 está presente na metamor fose, ainda que não diretamente citando Deleuze – como diz o próprio Coccia, “na linhagem dos seres vivos ninguém ocupa a posição de Adão”. As ideias de Ailton Krenak6 também reencarnam neste livro, repetidas com diferença, assim como as de outros tantos. A nutrição está presente através de ideias que afetam e criaram as condições favoráveis para que pudessem migrar de uma forma para outra. O livro também pode ser entendido como casulo. Um refúgio entre exis tências que nos deixa em suspensão, em transformação. Um caminho mágico, potente em instigar, deslocar e provocar outras formas de ver o mundo.

1 Publicado no Brasil pela editora Dan tes, em 2020, com tradução de Made leine Deschamps e Victoria Mouawad, e desenhos de Luiz Zerbini.

2 Doutor em Filosofia pela Universida de de Florença e Professor Titular de Filosofia na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS) de Paris.

3 Cf. BENJAMIN (2013).

4 Referência ao caso de Val Plumwood, citada no livro na página 117.

5 “Eis por que há metamorfose, ou ‘meta-esquematismo’, mais do que mudança de dimensão: todo animal é duplo, mas de modo heterogêneo, de modo heteromórfico, como a borbole ta dobrada na lagarta e que se desdo bra” (DELEUZE, 1991, p. 23).

6 Cf. KRENAK (2019).

COCCIA, Emanuele. Metamorfoses Desenhos de Luiz Zerbini, tradução de Madeleine Deschamps e Victoria Mouawad - 2 ed. - Rio de Janeiro: Dan tes Editora, 2020.

BENJAMIN, Walter. Imagens de pensamento – Sobre o haxixe e outras drogas. Tradução: João Barreto. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.

DELEUZE, Gilles. A dobra: Leibniz e o barroco. Tradução de Luiz Orlandi.Campinas, SP: Papirus, 1991.

KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Compa nhia das Letras (1a ed.), 2019.

PARA CITAR: BRITTO, M. V. B.; SILVA, R. L. S. S. Metamorfoses em nós (resenha). Redobra , n. 16, ano 7, p. 337-348, 2022.
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MIL NOMES DE GAIA

FABIANA DULTRA BRITTO

Professora titular da Escola de Dança da UFBA e coordenadora do Laboratório Coadaptativo LabZat (PPGDANÇA/UFBA)

Livro: “Os Mil Nomes de Gaia: do Antropoceno à Idade da Terra: volume 1” Org.: Déborah Danowski, Eduardo Viveiros de Castro e Rafael Saldanha

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Livro de estreia da Editora Machado (RJ), Os Mil Nomes de Gaia: do Antropoceno à Idade da Terra: volume 1, organizado por Déborah Da nowski, Eduardo Viveiros de Castro e Rafael Saldanha, reúne as comunicações apresenta das no Colóquio Internacional com mesmo nome, ocorrido em 2014, na Casa Rui Bar bosa, no Rio de Janeiro, com realização do Departamento de Filosofia da PUC-Rio e do Programa de Pós-Graduação em Antro pologia Social do Museu Nacional da UFRJ.

Página anterior: Figura 1. Uma imagem gráfica de pontilhado preto no fundo branco, cuja simetria da distância entre os pontos isométricos numa moldura circular simula um movimento contínuo e descentralizado de infinito espiral. De qualquer ângulo que se fixe o olhar se vê espirais entrelaçadas, sem começo nem fim aparentes, além da borda invisível do círculo. Certamente uma imagem emblemática do que postula o título. Fonte: Arte de André Vallias, disposta na folha de rosto do livro publicado pela Editora Machado (RJ).

Concebido por Eduardo Viveiros de Castro (UFRJ/CNPq), Deborah Danowski (PUC-Rio/ CNPq) e Bruno Latour (Sciences-Po, Paris), o Colóquio, organizado por Cecilia Cavalieri (mestranda, UERJ), Alyne Cos ta (doutoranda, PUC-Rio), Deborah Danowski, Juliana Fausto (doutoranda, PUC-Rio), Felipe Süssekind (PUC-Rio/CAPES/FAPERJ) e Eduardo Viveiros de Castro, foi certamente um gesto antecipador não apenas como divulgação, no Brasil, do debate internacional sobre o tema do Antropoceno mas, especial mente, como construção de um debate qualificado e politicamente posicionado quanto às ideias apresentadas e quanto ao contexto nacional atual de sucessivas monstruosidades desferidas pelo governo federal a tudo e todos cujas existên cias não apenas dependem do equilíbrio ecológico, mas são um de seus fatores de constituição.

A defesa dos povos originários, dos povos das florestas, dos povos quilombolas, dos povos sertanejos, dos povos ribeirinhos, dos povos sem terra e outros gru pos humanos assentados em territórios brasileiros cuja preservação é sua única garantia de sobrevivência, já era uma antiga causa urgente apontada por antro pólogos (como Eduardo Viveiros de Castro), indigenistas, geógrafos e biólogos, mas tornou-se uma pauta de dimensões bem mais amplas e com adesões bem mais abrangentes desde que o risco de consequências globais tornou-se mais iminente, com o avanço dos estudos e a responsabilidade do modo de vida capi talista, que ficou mais evidente com o advento da pandemia SARS COV-2.

Entre o Colóquio e o seu livro derivado, transcorreram-se 8 anos que precisam ser considerados para melhor contextualização das diferenças entre as ideias lá ditas e estas aqui escritas pelos mesmos autores, e para maior clareza sobre os desdobramentos, no tempo, daqueles conteúdos abordados.

Este primeiro volume impresso inclui textos de 16 autores e autoras entre bra sileiros/as e estrangeiros/as, atuantes em diferentes áreas do conhecimento e ativistas em diferentes setores da vida pública, que participaram do Colóquio apresentando suas contribuições ao debate proposto pelos seus organizadores:

abordar a crise ambiental planetária, confrontando perspectivas, descrições, ações e proposições com vistas a “aumentar a sensibilidade da Academia e da intelectualidade em geral para a urgência, gravidade e significação histórica” do problema.

O conjunto de textos inclui duas entrevistas – de Alyne Costa com Clive Ha milton, sem referência a contexto ou data; e de Juliana Fausto, Eduardo Viveiros de Castro e Déborah Danowski com Donna Haraway, realizada em 2016 – e 14 artigos tratando de um amplo e inusitado espectro de questões, tais como: a me mória da Terra (Bronislaw Szerszynski); a aproximação etimológica entre as pa lavras “ecologia” e “economia geral”, para refletir sobre o significado do tempo no antropoceno (Peter Szendy); a situação do Brasil na construção de uma “cul tura do antropoceno” (José Augusto Pádua); a defesa da ressocialização do “de sencantado mundo do materialismo naturalista” (Renzo Taddei); a estranheza do acontecimento do antropoceno e sua relação com “experimentações lite rárias sobre o deslocamento perceptivo” (Déborah Danowski); o problema do “sucesso do prefixo Gaia”, hiperativo, em contraponto ao caduco prefixo “geo”, analisado a partir da crítica feroz ao livro de Toby Tyrrell “On Gaia: a critical in vestigation of the relationship between life and earth ” (Bruno Latour); a ideia de cosmoecologia e a defesa de um ethos das maneiras de habitar “um mundo em vias de ser destruído, recusando, local e ativamente, sua destruição”, como sen do uma escolha política e estética, no sentido de “composição” entre diferentes formas de vida, analisando a substituição dos saberes do pastoreio pela produção industrial animal (Vinciane Despret e Michel Meuret); e a extinção de formas de vida como empobrecimento do mundo, aludindo ao antropoceno como regime de exceção que faz desaparecer os “subversivos” cujo modo de vida está em de sacordo com aquele único aceito pelo poder vigente (Juliana Fausto).

Na mesma linha crítica à crescente diminuição da diversidade, ainda há o texto sobre o perigo do sertão do mundo como risco de inviabilidade da existência, referindo-se à monocultura latifundiária (e seus componentes de eliminação da agrobiodiversidade, da alimentação familiar e das feiras populares, da toxicoma nia de adubos químicos, a catequese da assistência técnica…) como integrantes do “projeto colonial” e aludindo ao Nordeste como máquina de guerra inven tada pelo colonizador contra o sertão brasileiro (Rondinelly Gomes Medeiros); e o estudo sobre a atualidade da obra “Primer nueva coronica y buen gobierno ” escrita em 1612 pelo autor indígena andino Waman Puma de Ayala, para “com preender melhor e descobrir os mecanismos que explicam/produzem sua co lonização” e “os elementos que induzem ao apaziguamento e à paralisia de sua iniciativa histórica” (Silvia Rivera Cusicanqui); a ideia de que a guerra de Gaia é também uma guerra estética e imaginária, sugerindo – a partir de Oiticica e Oswald Andrade – apropriar antropofagicamente o ambiente e, bem humora damente nomeando de “gaiatos” aqueles que “absorvem Gaia fazendo dela uma experiência não métrica” de limite, e de “gaiatologia” o conhecimento da sub sistência (Alexandre Nodari).

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Há, ainda, uma reflexão sobre a ausência da categoria de sobrenatureza no discur so filosófico da modernidade sugerindo de que “a interpretação do Antropoce no como evento sobrenatural poderia evitar, de saída, a falácia simultaneamente especista e racista contida na ideia de que o homem […] é o sujeito absolutamen te neutro e impessoal, responsável pela catástrofe” (Marco Antonio Valentim); e outra sobre a necessidade de ser preservada a distinção entre Natureza e Cul tura, Sujeito e Objeto, como categorias analíticas fundamentais à compreensão do desenvolvimento tecnológico e do dinheiro como fatores intrínsecos à crise ecológica global (Alf Hornborg). E, por fim, o mais longo texto, com 80 páginas (sendo 6 de referências) que nos explica o significado do Antropoceno sob a óti ca das Ciências da Terra, mencionando o Antropoceno Working Group criado para “examinar a adequação da adoção do antropoceno como nova divisão do tempo geológico formalmente aceita” (Alexandre Costa).

Embora a ampla variedade das abordagens pudesse sugerir um caráter enciclo pédico (na melhor acepção do termo) ao livro, deduz-se uma clara coesão de sentido no conjunto dos artigos e entrevistas, todos criticamente posicionados sobre os danos crescentes ao planeta Terra e as formas de vida que lhe compõem, entendidos como resultantes da ganância irrefreável do sistema capitalista e seus valores individualistas, imediatistas, negacionistas da amplitude da crise e refratários a soluções de esforço global.

Para além do próprio significado combativo já evidente no gesto da sua publi cação, encontramos na leitura sequenciada do livro uma força instrutiva e for mativa nada desprezível ante às exigências de conhecimento especializado que a complexidade do assunto – e sua perigosa assimilação midiática – requer. Além do mérito de contribuir para a necessária popularização do problema e amplia ção de suas referências analíticas, o livro nos alerta para a própria condensação do problema que enfoca, direcionando a leitura para a compreensão de que se trata de um complexo engendrado pelo desequilíbrio da dinâmica relacional estabelecida entre os seres, matérias, energias e os processos componentes da Terra, cuja possibilidade de controle depende do reconhecimento do coprota gonismo de todos os agentes e suas respectivas responsabilidades. Cada artigo se liga aos demais como diferentes ênfases de um mesmo e único emaranhado situacional, cuja leitura pode transcorrer em qualquer ordem e a qualquer tempo, seja para melhor compreensão e confrontação de posições ou para consulta mais específica de algum dado, conceito ou argumento. Certamente, um livro para ficar à mão.

Há nessa empreitada editorial de dar forma impressa às falas apresentadas no Colóquio um movimento bem mais laborioso e sutil do que supõe o leitor apressado em busca de encontrar no livro os Anais tardios do evento. Trata -se do movimento de compor nova organização àquele conjunto de falas que, deslocadas do seu espaço-tempo “original” (supondo que houvesse), resultam

numa nova tessitura lógica discursiva que lhes confere novo sentido. Quase uma “composição por montagem”, nos termos propostos por Paola Berenstein Jac ques (2020), como uma prática de experimentar diferentes arranjos agregató rios dos elementos, favorecendo novas percepções – e compreensões – do todo, conforme variam as posições em que são dispostos no conjunto.

Uma operação nada simples que extrapola o gesto seco da ordenação cronológi ca das apresentações ou alfabética dos autores, porque implica aludir ao evento que lhe justifica sem reduzir-se à ele (ou já estaria 8 anos defasado) mas, antes, expandindo-o como caixa de ressonância criativa daquele momento e situação cujo impacto e consequências ganham outro fôlego ao alcançar novos interlocu tores – inclusive, já mais qualificados pelo adensamento do debate sobre o tema que, desde então, pulverizou-se ganhando cada vez mais presença nas livrarias, salas de aula, teses, museus e rodas de conversa.

Nesse sentido, a decisão dos organizadores de publicar em livro o material do Colóquio se mostra uma acertada percepção da insuficiência do encontro pre sencial como fórum de debate e interlocução, quando se deseja sensibilizar todo mundo ao problema, não somente universitários, intelectuais, cientistas e ati vistas que o estudam e o combatem.

E a escolha do livro de estreia mostra-se uma inteligente estratégia de inserção da Editora Machado no mercado editorial. De um lado, apresentando-se como uma casa de livros afinada com os atuais debates acadêmicos, intelectuais e com as ações dos novos ativismos políticos emergidos das camadas populares, dos povos originários, das etnias e populações mais negligenciados e vulnerabili zados, a Machado parece apostar justamente naquele nicho de produção cultu ral tão fortemente atacada e socialmente rebaixada pelo atual governo federal e os setores conservadores da sociedade que lhe dão sustentação. De outro lado, agregando esse amplo espectro de excelentes autores e autoras numa mesma obra, parece abrir-se como “plataforma amigável” para seus futuros projetos au torais. Nos dois casos, só temos a celebrar!

Considerando, ainda, que todas as comunicações proferidas no evento sofreram atualizações posteriores sendo, inclusive, reescritas e, ao longo desses 8 anos, derivaram ainda em outros escritos e comunicações desses autores e autoras, é um alento constatar que a Editora Machado, mesmo em sua estréia, não se do brou ao critérios do ineditismo que tanto corrói o espírito acadêmico e as polí ticas culturais.

Dois reparos não podem deixar de ser registrados: a ausência inexplicável das apresentações biográficas de cada autor e autora, que nos impede de localizá-los/ as no mundo e nas suas áreas de atuação; de melhor situar suas intervenções e melhor nos posicionar frente a elas; e algumas falhas de revisão que rompem o fluxo da leitura com estranhamentos de concordância e sentido em algumas

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frases (especialmente as traduções), de ortografia em algumas palavras e notas de rodapé repetidas. Ambos ajustes certamente previstos para o Volume II, cujo lançamento já aguardamos ansiosamente para conhecermos as intervenções dos demais participantes do Colóquio mas, também, para confirmarmos a continui dade da Editora Machado, que nos chega como boa promessa de novas referên cias aos nossos repertórios.

PARA CITAR: BRITTO, F. D.Os Mil Nomes de Gaia (resenha). Redobra , n. 16, ano 7, p. 349-354, 2022.
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