Casa da flor: tudo caquinho transformado em beleza

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A Casa da Flor tudo caquinho transformado em beleza

Amelia Zaluar

foto: Amelia Zaluar

Rio de Janeiro – 2012


foto: Amelia Zaluar

Eu faço por pensamento e sonho. Eu não tive mestre, aprendi no ar, aprendi no vento... Aí tem um mistério na minha vida que eu mesmo não posso compreender. Gabriel Joaquim dos Santos



foto: Francisco da Costa


Dedico este trabalho A meu pai, Achilles EmĂ­lio Zaluar, mĂŠdico e humanista ( in memoriam ). A todos os mestres, artistas populares, sĂĄbios na vida e na arte .


foto: Francisco da Costa


Sumário

Prefácio

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Apresentação

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Introdução

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Capítulo I

A biografia do artista

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Capítulo II

Espaço social e ornamentação

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Capítulo III

Os cadernos de assentamentos de Gabriel

57

Capítulo IV

Uma tentativa de compreensão

79

Capítulo V

As imagens poéticas

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Capítulo VI

A restauração da Casa da Flor

103

Capítulo VII

Posfácio

109

Bibliografia

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A Casa da Flor

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Prefácio Uma flor de casa, um mistério de beleza No caminho de São Pedro da Aldeia, ergue-se uma casa. Fica no distrito do Vinhateiro, atual Parque do Estoril, quase na divisa com Cabo Frio. Não é uma edificação comum. Chama a atenção, desde logo, pelo inusitado da forma e do material de que se faz: uma estranha arquitetura erguida de restos fraturados, cacos, pedras, objetos e materiais atirados ao lixo, por imprestáveis, inúteis. E, no entanto, no estranhamento que provoca, desperta mais do que curiosidade. Há nela qualquer coisa que mobiliza a sensibilidade de quem a observe desprovido de preconceitos: logo percebe estar diante de um objeto de arte. Isso talvez aconteça porque o que se vê foi – sobretudo construído com a argamassa do sonho – o sonho de um homem do povo, um homem simples do povo. Do sonho, de cacos, de pedras, ele forjou na terra de sua vivência, o lar de sua morada. Obstinadamente. A simplicidade de sua artesania associou-se à pura sensibilidade e culminou com a concretização de uma obra de arte, arte popular, a sua Casa da Flôr, com o circunflexo de sua alfabetização concretizada na madurez dos seus 36 anos. Construiu-a pouco a pouco, com o fruto do trabalho duro nas salinas, que lhe gretaram e incharam os pés, e levaram-lhe, gradativamente, a visão. Seu nome: Gabriel Joaquim dos Santos. Na sua casa, passou a conviver com a solidão deliberada, acompanhado de suas reflexões e de alguns cães de estimação. Parentes, os tinha. Que lhe garantiam os necessários cuidados. Pensamentos e reflexões, também o alimentavam. Registrava-os em anotações, na sua linguagem carregada de minúcias, registro de experiências, sensações, memórias, reflexões e das visões estranhas que marcaram a “sofrência” dos seus últimos anos. E foram 92, vividos na casa que considerava a sua pessoa, “um enredo, uma história”. História e enredo feitos de pura sensibilidade, que descobria beleza na singeleza do material precário e nos arranjos com que os agregava. Entre muitos, a barroquíssima moldura de cacos e pedaços de bibelôs, incrustados com cimento, as luminárias de lâmpadas queimadas, ali apenas mobilizadoras de prazer estético, como os vidros dos faróis dos automóveis presos às paredes. Adornos outros, azulejos, louças, em profusão, a multiplicar brilhos faiscantes à luz da lamparina noturna... E mais que tudo, flores, flores de pedra, moldadas com pedaços de garrafas, de telhas, de manilhas, de seixos, de conchas.


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Na origem da construção, muitas vezes além da matéria sonhada, o fruto de suas visões. Em tudo, a livre criação, a partir da rusticidade das coisas simples. E quem as transforma e nelas descobre o encanto tem o prazer do feito. A ponto de deixar registrados, por escrito, seus fazeres e seus sentires, como se lê nas suas anotações: De noite, acendo um lampião, me sento nessa cadeira, ó que vida, ó que alegria para mim, ó que alegria nessa cadeira. Quando eu acendo a luz e vejo tudo prateado de noite, fico tão satisfeito! Tudo caquinho transformado em beleza! Eu mesmo faço, eu mesmo fico satisfeito... Me conforta.

No meio do caminho de Gabriel havia a sensibilidade, o conhecimento e a tenacidade de Amelia Zaluar, pesquisadora e professora. A visão, em 1978, da obra e daquele artista despossuído a moveu e a comoveu. Chegou mesmo a subverter, como ela declara, as normas de produção estética a que sua formação a condicionara. Daí para a total dedicação e entrega à causa da casa o passo foi imediato: “Sentia-me atraída e intrigada pelo mistério a decifrar. Tudo nele era espantoso, os significados do que eu via pareciam-me, algumas vezes, paradoxais: um pobre trabalhador de salinas que amava a beleza e que resolveu cercar-se dela para ser feliz, que fez seu sonho realizar-se e literalmente viveu dentro dele. Um artista despossuído que optou pela solidão para poder entregar-se apaixonada­mente ao seu trabalho paciente e obstinado. Um semialfabetizado que usava poeticamente as palavras, capaz de manter presa a atenção das pessoas, que o escutavam, interessadas, sempre em silêncio. Um homem que nunca sentou num banco escolar, que não teve mestres, e que se comportava como um historiador, anotando, em seus cadernos, os acontecimentos que o impressionavam e, ainda, discorrendo com bom senso, sobre fatos importantes da nossa história. Um artista que não teve acesso a museus, nem galerias, nem livros de Arte e que criou obra tão original e marcante”. Tão marcante e tão original que despertou a admiração de artistas e especialistas como Ariano Suas­suna, Ferreira Gullar, Alcides da Rocha Miranda, Ítalo Campofiorito, Carlos Scliar, Zanine, Nise da Silveira, Lélia Coelho Frota, Paulo Coelho, Carlos Byington, Eduardo Galeano. E com denodo e obstinação, Amelia rompeu preconceitos, elaborou monografia, premiada em 1993, mobilizou entusiasmos e apoios, projetou e concretizou exposições, tornou a obra de Gabriel dos Santos conhecida em todo o Brasil, produziu audiovisual, clipes, estudos. Garantiu, ao longo de trinta anos, a preservação e a divulgação da casa. Faltava o testemunho na permanência do livro. Ele vem a lume, finalmente, com a presente publicação. Acrescida de um estudo ainda mais aprofundado dos cadernos de apontamentos do seu idealizador e criador, um ser humano raro, situado entre aqueles que, como a autora Amelia Zaluar, acreditam na força do sonho e na beleza como poderosos nutrientes do nosso percurso existencial. Domicio Proença Filho | Escritor, professor e integrante da Academia Brasileira de Letras


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Apresentação A Casa da Flor Entre as ilustrações de Leonardo da Vinci para o estudo que realizou em colaboração com o matemático Luca Paccioli sobre as relações harmônicas, há o desenho de um compasso com o qual se podem obter sempre aquelas relações. Embaixo do desenho, no entanto, ele escreveu: “quem não tiver aquelas relações nos olhos pode jogá-lo fora”. Todos podem fazer construções, e as fazem frequentemente com relações harmônicas, pois assim terão aprendido na escola. No entanto, elas nos passam desapercebidas como as folhas de papel industrialmente produzidas em retângulo de ouro. Todos aprendem a escrever, mas poucos são poetas. Neste trabalho emocionante feito por Amelia Zaluar, há uma frase de seu Gabriel que ela destaca sabiamente, comentando fotografias sobre seus próprios trabalhos: Qualquer um pode bater uma fotografia. É só apertar um botão. A pessoa tem a máquina, mas é preciso ter o motor da máquina, é a cabeça que bate a fotografia. Isso é coisa do espírito.

Podemos escrever obras e obras sobre trabalhos de arte, mas como transpor para palavra aquilo que é executado em cores, volumes ou ritmos sonoros? A linguagem dos artistas plásticos paira no seu plano, não no da palavra, que serve tão bem à poesia, a qual, por sua vez, também não pode ser traduzida em cores. Poderíamos dizer que seu Gabriel se projeta em sua arquitetura. Mas se ela nada mais fosse do que uma projeção do seu Gabriel, como poderia ser lida e amada por outras pessoas? Assim como compositores dos séculos anteriores podem nos falar mais claro que muitos de nossos contemporâneos, também escultores de épocas remotas e culturas quase desconhecidas têm para nós um encanto imortal. Aprendemos a pensar sob bases que em seguida podem ser negadas e, pior ainda, o mesmo saber que julgávamos só nos levar ao progresso caminha para o holocausto. Precisamos, sobretudo, acreditar na intuição, amar a vida com a beleza, seu alimento mais forte. A alma humana precisa da arte como do ar, do prana. Apreciamos há alguns anos aqui no Rio uma esplêndida exposição de fotos e reproduções de obras de Gaudí, um dos maiores gênios em várias artes, especialmente em arquitetura. Homem culto e conhecedor do que de melhor havia no Ocidente e parte do Oriente. Seu Gabriel, com todas as dificuldades que se possa imaginar, por ser pobre, negro, vivendo no interior do Estado do Rio, chegou a fazer uma obra que, embora de pequenas dimensões, lembra a todos o velho mestre Gaudí, em quem provavelmente nunca teria ouvido falar. Por essa pequena obra ele jamais será esquecido. O filósofo chinês sonhou que era uma borboleta, e quando acordou não sabia se era um homem que havia sonhado ser uma borboleta ou uma borboleta que sonhava ser um homem. Seu Gabriel sonhou que era uma flor. Alcides da Rocha Miranda | Arquiteto


foto: Amelia Zaluar

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Introdução Introdução1

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Conheci seu Gabriel em 19 de março de 1978. Havia lido num pequeno jornal – o Zero – de circulação restrita a algumas cidades da Região dos Lagos, uma reportagem, com duas fotos, sobre a Casa da Flor. O interesse foi-me despertado de imediato: saí de Arraial do Cabo, onde passava uns dias, e dirigi-me para São Pedro da Aldeia, na mesma tarde. A beleza e a singularidade da habitação e a figura, gentil e sensível, de seu autor, comoveram-me. Os estranhos materiais usados, objetos quebrados, retirados de montes de lixo e reciclados, e o magnífico resultado obtido com os arranjos ornamentais que cercavam toda a casa, subvertiam, para mim, as normas conhecidas de produção estética. Alguns meses depois, precisando realizar um trabalho para conclusão de um curso, escolhi a Casa da Flor como tema. Sua extrema originalidade pedia um estudo detalhado da construção – do espaço social e da ornamentação, entendidos como “cultura material” –, mas, mais ainda, pela complexidade do assunto, o estudo das motivações internas que impulsionaram o artista, e, nesse esforço, tentar desvendar sua visão particular do mundo. Comecei colhendo algumas entrevistas e tomando muitas fotografias. Levava-lhe, algumas vezes, como presente, cacos de louça, que ele apreciava receber e que logo carinhosamente aplicava nos bordados das paredes. A admiração por ele crescia à medida que o trabalho avançava; a inteireza e a dignidade do seu semblante me impressionavam. Sentia-me atraída e intrigada pelo mistério a decifrar. Tudo nele era espantoso, os significados do que eu via pareciam-me, algumas vezes, paradoxais: um pobre trabalhador de salinas que amava a beleza e que resolveu cercar-se dela para viver feliz, que fez seu sonho realizar-se e literalmente viveu dentro dele. Um artista despossuído que optou pela solidão para poder se entregar apaixonadamente ao seu trabalho paciente e obstinado, ignorado e mal visto pela sociedade, mas determinado em um projeto de vida poético e artístico. Um semialfabetizado que usava poeticamente as palavras, capaz de manter presa a atenção das pessoas, que o escutavam, interessadas, sempre em silêncio. Um homem que nunca sentou num banco escolar, que não teve mestres, e que se comportava como um historiador, anotando, em seus cadernos, os acontecimentos que o impressionavam e, ainda, discorrendo com bom senso sobre fatos importantes da nossa história. Um artista que não teve acesso a museus, nem galerias, nem livros de arte e que criou obra tão original e marcante. Um artista plástico e arquiteto notável, sem diplomas. Depois de completada, naquele mesmo ano, a primeira monografia, continuei com as visitas a ele, colhendo outros depoimentos (que totalizam oito horas de gravação) e fotografando (cerca de

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Todas as falas de seu Gabriel neste ensaio estão grifadas em Calibri Itálico.


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quinhentas fotos), até poucos meses antes de sua morte, em 1985. Gabriel tinha se transformado, para mim, num símbolo, o exemplo maior da capacidade criadora do homem do povo, de sua liberdade no ato de criar, de sua integridade como artista, ou, como nos diz Lélia Coelho Frota, o símbolo da “coragem de assumir o seu eu profundo”.2 É por demais instigante para qualquer um que se interesse pelos problemas da arte e da educação a observação e o estudo dos que, premidos pelas dificuldades econômicas, ignorados pela sociedade, mas, principalmente, desligados de compromissos com regras e modelos oficiais, criam intuitivamente, têm maneiras próprias de se expressar, e o fazem, em seus ofícios, de forma talentosa. Uma pergunta me inquietava cada vez que me defrontava com o assunto: por que, justamente um dos nossos artistas mais originais, era justamente aquele que não frequentou escola e não teve acesso ao “saber culto”? O ensino institucionalizado, o obedecer e seguir normas estéticas estabelecidas levaria à anulação da criatividade? Teria razão S. S. Bhatti, professor e arquiteto, ao afirmar que “os designers, os escultores, fariam bem ao se submeter à rigorosa desescolarização, se quiserem reencontrar um pouco da imaginação criadora e da inocência curiosa, extintas por uma overdose de educação formal”?3 Outra questão que sempre despertou em mim muitas reflexões era a evidência de um olhar preconceituoso, lançado sobre a produção artística do povo, que não é considerada como arte, mas sim como “algo curioso, típico, acidentalmente encontrado e salvo pela cultura mais evoluída”,4 como nos mostra Luiz Felipe Baêta Neves. Citando o mesmo autor, “uma das linhas de força de uma ideo­ logia estética tradicional aponta a arte ocidental como inatingível e inabalável cume da arte internacional de todos os tempos”.5 Assim, a qualidade plástica da peça, que é o que na verdade interessa para qualquer julgamento de natureza estética, em se tratando de uma obra de procedência popular, ela não chega a ser examinada, pois há a pré-exigência absurda e perversa, a de que pertença à norma culta, à “verdadeira” cultura. Tudo o mais é visto como somente “pitoresco”. Mas para intelectuais e arquitetos de renome a Casa da Flor é bem cultural da maior relevância. Referiram-se a ela, com admiração, nomes como Ariano Suassuna, Ferreira Gullar, Alcides da Rocha Miranda, Ítalo Campofiorito, Zanine, Carlos Scliar, Nise da Silveira, Lélia Coelho Frota, Carlos Byington, Paulo Coelho, Affonso Romano de Sant’Anna e o uruguaio Eduardo Galeano.

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FROTA, Lélia Coelho. Mitopoética de 9 Artistas Brasileiros. Vida, Verdade e Obra. Pág 9. BHATTI, S.S. Bhoulbhoulaiyan, un Labyrinthe Indien. Pág. 18. NEVES, Luís Felipe Baêta. O Paradoxo do Coringa e o Jogo do Poder/Saber. Págs. 20 e 22. Ibidem.


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Outra constatação – esta, porém, me incutia respeito – era a capacidade de improvisação do homem do povo, o saber tirar partido dos materiais que estão à mão, fornecidos pela natureza ou advindos do lixo industrial, o inteligente aproveitamento desse material gratuito para criar toda espécie de objetos necessários, artísticos e/ou artesanais, em sua casa, em seu trabalho, na caça e na pesca, nos enfeites e vestimentas para suas festas, nas manifestações da sua religiosidade. Ao contrário da classe “erudita”, prisioneira em uma sociedade consumista, induzida a comprar, sempre e sempre, até muito mais do que realmente precisa, extremamente dependente dos “melhores” materiais, daqueles que são considerados como “nobres”, os únicos apropriados para o trabalho com as mãos, e que, por isso, despreza outros recursos alternativos, privando-se de uma maior flexibilidade no ato de criar. Em minha trajetória como professora e pesquisadora das artes plásticas populares, deparei-me, muitas vezes, com pessoas extremamente sábias, que, como Gabriel, adquiriram, através da vida, além da maestria em seu trabalho, grande sabedoria existencial e que aprendi a amar e respeitar: Celestino, o filósofo criador dos bichinhos de miolo de pão; Laurentino, mestre cesteiro de Xerém; o querido e alegre Conrado, ceramista que nos mostrava cenas do seu Nordeste amado; e o extraordinário Mudinho, que limitado em sua condição de surdo-mudo, viveu, no entanto, inteiramente integrado à sua comunidade, pessoa muito inteira e natural, o duende das imagens na madeira, da Praia Rasa, em Búzios. A morte de Gabriel fez aumentar, ainda mais, meu desejo de ver reconhecida a beleza e originalidade da Casa da Flor. Parecia-me absurdo – e é – que muitas pessoas, razoavelmente bem informadas, conhecessem e apreciassem Gaudí, o mundialmente conhecido arquiteto de Barcelona, que viveu a milhares de quilômetros daqui e que morreu há mais de oitenta anos, e jamais tivessem ouvido falar de Gabriel, o habitante de São Pedro da Aldeia, aqui no Estado do Rio de Janeiro, tão perto de nós. Era preciso furar esse bloqueio, construído de preconceitos; acabar com esse olhar viciado com que nos ensinaram a olhar qualquer obra estranha ao nosso meio sociocultural; forçar uma reflexão sobre o problema; expor para o grande público a belíssima obra desse artista negro, pobre e semialfabetizado, que valorizou a gente da sua cor e que mostrou a todos a força da pobreza. Com esse objetivo, foi montado um ambicioso projeto – que era o que o assunto merecia –, cuja primeira etapa era a organização de uma exposição itinerante com 57 fotografias, uma planta-baixa da casa, um texto explicativo e alguns dos mais bonitos trechos das entrevistas de Gabriel, dirigida especialmente à comunidade universitária, parcela da população que mais me interessava atingir. Neles, os jovens, terra fértil, as sementes plantadas germinariam com mais força... A mostra foi exibida, a partir de novembro de 1986, em 52 espaços culturais, em todo o país (23 estados da Federação). Mais tarde, vieram enriquecer a mostra uma maquete, um audiovisual, um vídeo de 8 minutos, um clipe de 5 minutos. e duas colunas salpicadas de cacos. Em 2003, uma segunda exposição, que estabeleceu uma relação de Gabriel com a obra de Ferdinand Cheval, o carteiro francês que ergueu sozinho um palácio de pedras, conchas e cimento, foi exposta na Mansão Figner/Arte Sesc, e, em seguida, levada para a Casa dos Azulejos, em São Pedro da Aldeia.


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A segunda fase do projeto era a elaboração, com vistas a uma futura publicação, desta monografia. É um documento iconográfico, destinado à preservação das belas imagens criadas por esse genial artista sonhador, e também uma reflexão sobre sua produção. Não se pode ignorar a história comovente e exemplar de um brasileiro que conseguiu transcender a dura realidade de sua vida para criar uma obra-prima de interesse universal. A monografia, premiada em 1993 com Menção Honrosa no Concurso Sílvio Romero, da Funarte, esperou muitos anos para ser finalmente publicada, com várias alterações, dado o tempo decorrido. Nos últimos anos, foram acrescentados um texto sobre as mudanças ocorridas em mim, de como o trabalho e a pesquisa me modificaram internamente; e ainda um estudo mais aprofundado sobre os cadernos de apontamentos de seu Gabriel. Esta obra está constituída de 7 capítulos. O primeiro é dedicado à biografia do artista; o segundo, à etnografia da casa, em que são abordados aspectos de sua localização, das divisões internas, da ornamentação, mais o inventário dos móveis e utensílios. O terceiro, uma análise das anotações nos cadernos de assentamentos, caracterizada como uma autobiografia. O quarto capítulo é uma tentativa de compreensão da obra que tenta ser instigante. O quinto mostra uma série de fotografias do fenômeno plástico, acompanhadas de algumas falas poéticas do autor da obra. O capítulo seis trata da restauração da casa, longamente tentada por nossa organização. No final, capítulo sete, um posfácio, no qual falo da minha transformação interior durante a jornada de mais de trinta anos investindo no trabalho de preservação e divulgação da Casa da Flor. Acredito que é preciso, com urgência, rever os conceitos que achatam e castram os artistas oprimidos, seja por sua baixa condição financeira, seja por serem “loucos”, crianças ou índios, todos estes também muito discriminados no julgamento de seu trabalho. É preciso criar novas estruturas de pensamento, novos critérios de análise estética, mais justos, não mesquinhos, de horizontes mais abertos. É preciso terminar com os preconceitos que limitam, que bloqueiam, que cerceiam o ser humano, o que propiciaria uma verdadeira liberação da criatividade – o libertar da fantasia –, o que, em essência, tornaria o ser humano mais livre e mais feliz. “A arte marginal faz pensar e acreditar na alternativa do gesto criador se estender a todo homem, um dia”.6 Com este homem/artista aprendi sempre, muito. Até em relação à fotografia, ele me surpreendeu e provocou reflexões, ao comentar, um dia, enquanto observava calmamente algumas das fotos que eu havia batido de sua casa: Qualquer um pode bater uma fotografia. É só apertar um botão. A pessoa tem a máquina, mas é preciso ter o motor da máquina, é a cabeça. É a cabeça que bate a fotografia. Isso é coisa do espírito.

Nessa convivência, durante oito anos, a pobreza de suas roupas e a simplicidade material de sua vida, lado a lado com a riqueza de seu intelecto e a beleza plástica de sua criação, marcaram-me

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FROTA, Lélia Coelho. Mitopoética de 9 Artistas Brasileiros. Vida, Verdade e Obra. Pág. 7.


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muito. Minha admiração por ele não diminuiu, pelo contrário, só aumenta, à medida que vou percebendo – e intuindo – os meandros mais escondidos de sua personalidade densa. Depois de sua morte, na primeira vez em que voltei ao local, tive a sensação de que a casa diminuíra. Talvez a ausência de sua figura carregada de poesia e transcendência tornasse a casa menor. Não sei... O que sei é que não quero esquecer a maior lição que ele deixou: a de acreditar nos sonhos e ir ao encalço deles, persegui-los com obstinação, mesmo aquele que parece impossível realizar. Quero agradecer sinceramente a todos os que me incentivaram a publicar este trabalho. A Domício Proença e ao Dr. Alcides da Rocha Miranda, que apresentaram, de forma brilhante, a Casa da Flor, nesta edição. A Francisco Moreira da Costa, fotógrafo, e a Alzira Reis, programadora visual, que cuidaram, com interesse e talento, da imagem deste meu trabalho. A Humberto Borges, revisor. À Cida Borges, muito competente, nas constantes colaborações no computador. A Flávio Protásio Ceccon, companheiro precioso na criação do documentário. Ao Dr. Abram Eksterman, que, de 1968 a 1978, ajudou-me a adquirir consciência de mim mesma. À Elizabeth Pacheco, que ajudou a tornar possível, dentro e fora de mim, a concretização da primeira etapa do meu sonho/projeto, a exposição de fotografias. À Maria Eugênia Camolez, pelo suporte que me deu, durante oito anos, clareando minha caminhada. A meus netos Lucas e Tiago, pelo conforto de seu amor. À Regina Sá, sempre pronta a colaborar em meus momentos de aflição. Ao amigo solidário e sempre prestativo, de uma inestimável ajuda, Geraldo Ferreira, elo com a comunidade de São Pedro da Aldeia. E sua hospitaleira esposa, Rosário. A Valdevir, Helena, Naná e Vilson, da família de seu Gabriel, pelo apoio e pela confiança. A nosso generoso e amigo contador, Lídio Barbosa. Agradeço ainda à Ariadne Marra de Souza, à Teresa Cristina de Sousa Farias, à Vanice da Silva Queiroz e à Alessandra Tomé, seu empenho e boa vontade ao me secretariar. À equipe do Cecip (Centro de Criação da Imagem Popular) pelo grande apoio. Ao SEBRAE, através da gerência de Heliana Marinho, que patrocinou o Curso de Criatividade para professores da região, e ainda a exposição de artistas que se inspiraram na Casa da Flor, com um belo catálogo Sonho pra fazer e faço. Nesse dia foram também comemorados os vinte anos do Instituto Cultural Casa da Flor com exposição de muitos documentos sobre o assunto. 2007.


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A todos os companheiros da Sociedade de Amigos da Casa da Flor, hoje Instituto Cultural Casa da Flor – pela confiança. E pela esperança, sempre demonstrada, em alcançarmos nossos desejos e sonhos. Quero ainda celebrar com os que se mobilizaram pela preservação e divulgação da Casa da Flor. Celebrar a sensibilidade, a emoção, o entusiasmo, a generosidade que nos tomou a todos para salvar concreta e espiritualmente – dentro de nós – a Casa da Flor. Tantos, tantos, que se comoveram com a história de seu Gabriel... Impossível citar todos. Registro alguns: Adalberto Amaral, Ana Maria Santeiro, Ariano Suassuna, Armando Ribeiro, Carlos Byington, Célia Pimentel, Cláudia Márcia Ferreira, Cláudio de Andrade, Cláudio F. Aranha (que criou a logomarca), Claudius Ceccon, Delzimar Coutinho, Dinah Frotte, Eliomar Coelho, Fernando Fuão, Francisco Cantarelli, Gabor Geszti, Gino Fonseca, Hildegardo Milagres Fontoura, Ivo Barreto, Iza Pacheco, José Cursino Raposo, Jorge Costa, Jorge Vasconcellos, Lélia Coelho Frota, Lúcia Pinheiro, Maria Laura de Castro, Maria Luiza de Andrade, Mário Alves de Oliveira, Marcílio Barroco, Nicolas Alexandria, Nara Machado, Paulo Branquinho, Raimundo Rodriguez, Ricardo Gomes Lima, Ricardo Luz, Roberto Ponge, Rubens Ribeiro, Salgueiro Dias, Sérgio Caldieri, Teresa De Biase, Ute Lohos e Vinicius Lavalle. E, principalmente, ao grande mestre Gabriel, pelo que acrescentou à minha vida, pelo quanto saí enriquecida deste nosso encontro. colaboradores especiais Humberto Borges, leitor atento e revisor do meu trabalho, por suas sugestões inteligentes e ótimas soluções para o texto.

Gera ld F incan erreira, p o e todas sável part la sua i meu as etapas cipação e col m do “braç aborador s projetos , maio o dir mesm eito”, co r, meu mo e o se le nome ia.

os vir d ado Valde de dedic rnou-se to m , é l s, a ria -avô Santo asa do tio da memó a r c u o s a d d a e lg or ad zelad lente divu a históri exce abriel e d ução. tr de G cons

e is, mo da Re o co mina nou a ir xo m er jet Alz pro l, det apai iva e o ua e riat s a s riu vis ois a c nte ade dora , dep graf ende ó ma ada fot pre . gra nspir uma s sur tação o r i e p ito en lou alh mu reve r det ornam e pta da s e ca

R Rodrigu aimundo de difíc es, em um trab il a de esforç realização em lho termos o físico , incorp facilida orou co de o e Gabriel. spírito criador m de Fundam enta restaura ção da c l na asa!


foto: Francisco da Costa

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capĂ­tulo I A biografia do artista


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A família Gabriel Joaquim dos Santos, chamado por amigos e parentes pelo apelido de Bié de Vinuto (Benevenuto, seu pai), nasceu no município de São Pedro da Aldeia, a 13 de maio 1892. Seu pai, Benevenuto Joaquim dos Santos, nascido em 1842 e falecido aos 90 anos em 1 de junho de 1932, no mesmo município, era negro escravo, alto, magro, de cabelos lisos. Trabalhava numa fazenda e tinha por funções, como feitor, fiscalizar e castigar os negros que fugiam. Leopoldina Maria da Conceição, sua mãe, era filha de uma índia, “pega no laço” pelo avô de Gabriel. Tinha cabelos lisos e muito longos, que caíam até os joelhos. Era gorda, baixa e bondosa. Nascida em 1848, morreu aos 84 anos, dias após a morte do companheiro, em 18 de junho de 1932. O pai, Vinuto, segundo depoimento de Naná, sobrinha de Gabriel, enlouqueceu aos 80 anos. Saía nu, pelos arredores, gritando: “Aqui d’el Rei, Sinhá Leopoldina, que estão me matando”. Em 10 de abril de 1899, portanto onze anos após a Abolição da Escravatura, a família mudou-se para uma grande propriedade, no Vinhateiro, com “100 braças de testada e 420 de frente a fundos”, o que corresponderia a 203.280m2, ou 4 alqueires, propriedade essa comprada pelo chefe da família. No grande terreno, situado na encosta do morro, havia um cafezal. No local já existia uma casa de pau-a-pique, de pé até há pouco tempo. Nessa casa viveram os pais de Gabriel e seus doze filhos, seis homens e seis mulheres: Bernardino, Ezequiel, Quintina, Gabriel, Felipe, Sincera, Maria Rosa, Apolinária, Paulina, Estanislaura, Manuel e Antônio. As mulheres da família dedicavam-se à cerâmica, fabricando panelas, alguidares e potes queimados ali mesmo numa “coivara” de lenha. As peças eram vendidas ou então trocadas por peixes, em Arraial do Cabo, aonde Gabriel ia com o pai, a pé, pela praia, numa caminhada de quatro léguas. Saíam à meia-noite e chegavam com a barra do dia se anunciando. Bernardino, o irmão mais velho, carpinteiro habilidoso, produzia cuias, colheres, gamelas, farinheiras e pilões. Os outros homens trabalhavam no campo. Gabriel, desde cedo, manifestou em seu temperamento uma acentuada queda para as artes. Cantava, com voz bonita, acompanhando-se com a harmônica e o violão. Fazia flores – rosas e cravos – de papel crepom, para vender. Desenhava muito bem em tecidos a serem bordados. Pintava em cartolina sereias e santos, de encomenda, dedicando versos, de sua autoria, à pessoa que o contratava. Autodidata, dizia que não teve escola, que aprendeu no ar, no vento. Já rapaz, construiu uma capelinha, consagrada a Santo Antônio, onde ele organizava festas nas datas tradicionais da Igreja Católica. No altar, santos de barro, que ele mesmo esculpia e pintava.


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De lá saíam procissões, os lampiões acesos, os santos nos andores, foguetes estourando no ar... Em 1926, compreendeu, ao ouvir um pastor falar, que a religião católica não o satisfazia plena­ mente, e passou para a Igreja Batista, à qual pertenceu até morrer. Na ocasião, desfez-se dos santos e derrubou a capelinha. Extremamente devoto, dedicou-se à religião com o mesmo afinco e responsabilidade que manifestava no seu trabalho e no trato com o mundo. Viveu sempre com dignidade, apesar da pobreza, cercado do respeito de seus irmãos de fé – também nesse aspecto não foi uma pessoa comum. Mostrava-se mesmo severo na crítica ao caráter dos conterrâneos, em observações escritas em seus cadernos. Deixou registrada nas paredes de sua casa a confiança depositada em Deus, e, em seu discurso, percebe-se que acreditava criar guiado por inspiração divina, associando sua capacidade inventiva com a força e a criatividade de um espírito superior: Eu mesmo fazendo, eu mesmo me espantando, isso pode ser só de mim?

foto: Amelia Zaluar

Isso não é da gente, não. É o espírito de Deus que concede!


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Do sonho à fantasia, nasce a casa Desde pequeno, Gabriel intuiu que teria que viver sozinho, fora da família, para fazer, com tranquilidade, os trabalhinhos de que tanto gostava, para ter seu espaço e liberdade para criar. Aos 20 anos, uma revelação: um sonho lhe mostrou que devia construir uma casa só para si. Como definiu Fernando Pessoa, “Deus quer, o homem sonha, a obra nasce”. Gabriel usou, a partir daí, as visões que lhe chegavam à noite, por meio de sonhos, concretizando-as durante o dia. A partir de 1912, começou a construção, distante apenas três metros da casa da família. Levantou primeiro um quarto pequeno onde passou a dormir, nesse mesmo ano. Lentamente, depois disso, ano após ano, começou a erguer as paredes dos outros cômodos, a levantar o telhado. Lavrador e depois trabalhador nas salinas da região, dispunha de poucos recursos para comprar o material necessário à obra. Trabalhava sozinho, em seus momentos de folga. Gastou muito tempo, muitos anos – quase onze – para terminar a habitação. No ano de 1923, veio-lhe, mediante novo sonho, a ideia de enfeitar a casa: anteviu um enfeite numa das paredes. Mas como? Com quê? Onde conseguir os apetrechos e materiais indispensáveis? Quê fazer? Desistir do sonho, apagar da memória a visão tão bela que o inconsciente lhe trazia? Matutando muito, resolveu embelezar seu rancho com o refugo das construções locais, restos de obras grandes da cidade, com objetos e materiais quebrados encontrados no lixo, com coisas jogadas fora porque consideradas imprestáveis para o uso. Pensei em fazer do nada. De tão bizarra, a ideia fez com que os conhecidos passassem a olhá-lo com estranheza, como se tivesse enlouquecido. Nessa procura, não havia materiais nobres para Gabriel. Ele não procurava, em suas andanças pelas estradinhas desertas, objetos inteiros. Queria mesmo os cacos. Nem procurava os formalmente aceitos como adequados para determinadas funções. Via, nesses restos, nos materiais mais humildes, possibilidades que os outros não viam. Tudo servia para compor sua casa/escultura, para dar vazão a uma prodigiosa criatividade. O estragado, o imprestável, o lixo, o inútil, transformavam-se, através de seus olhos visionários, em matéria preciosa para a produção de beleza, num estranho e singular processo de assimilação, em que os elementos, os cacos, eram selecionados por sua beleza e energia intrínsecas, não percebidas pelas pessoas comuns. Sem formação técnica especializada, Gabriel supriu, com sua grande inteligência, todas as limitações, e utilizando como recurso principal a intuição, aprendeu sozinho a executar uma série de tarefas. Fez de tudo: foi pedreiro e carpinteiro, arquiteto e construtor, operário e artista. Alfabetizou-se rapidamente, já homem feito, aos 36 anos. A data está devidamente registrada em um de seus cadernos:


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Gabriel dos Santos aprendeu a ler a 10 de setembro

foto: Amelia Zaluar

de 1928. Até aí não sabia nada.

Esse homem singular, inquieto e curioso, que queria aprender a escrita, resolveu pedir a um menino, que morava nas vizinhanças, para ensiná-lo. Comprou uma cartilha, e, com esse único material didático, aprendeu a ler e a escrever, e, como queria muito, a definir a Bíblia. Com esses rudimentos da escrita, mantinha comportamento de um erudito, preocupado com o registro das datas significativas nas paredes de sua casa, ou com a anotação sistemática, em seus cadernos, dos acontecimentos do seu universo particular e, o que é mais surpreendente, com o registro de fatos históricos da sua região e do país. O bom senso com que Gabriel discorria sobre a nossa história era duplamente espantoso, por se tratar de uma pessoa que vivia num lugar bastante isolado, sem acesso, portanto, aos meios de comunicação. Lia jornais esporadicamente, não tinha rádio nem televisão (o que não queria), não frequentou escolas, nem museus. Recebeu em vida, portanto, um reduzido volume de informações. Com esse pouco, porém, conseguia entender e explicar, com propriedade, graças a inteligência e sensibilidade apuradas, acontecimentos havidos fora do seu espaço geográfico. Como uma pessoa que come pouco, mas digere bem os alimentos e fica abastecida... Comentava, espantado, que os jovens, que estudam quatro ou cinco anos na faculdade, saem sem saber nada da profissão. As pessoas não sabem nem cozinhar!, espantava-se ele.


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A solidão do artista Gabriel nunca se casou, nem teve filhos. Sempre morou sozinho na Casa da Flor. Dizia mesmo que não conseguia dormir com a presença de outra pessoa em sua casa, mesmo que fosse uma criança. Isso o perturbava muito. Teve como companhia, durante muitos anos, alguns cachorros: Brilhante, Jardineira, Viajante, Abril, Finlândia e Diamante. Quando da morte deste último, anotou seu pesar em um caderno: O Diamante um cachorro de estimação de Gabriel apareceu doente no dia 1 de janeiro de 1977. Gabriel mandou Vilson matar no dia 3 de janeiro de 1977. Lembrança e saudade do meu cachorro. Companheiro de viagem nunca mais eu quero. 3-1-77 Diamante.

Criava galinhas, quando moço, e afeiçoou-se de tal modo por uma delas que, quando de sua morte, construiu um pequenino mausoléu – uma caixinha de cimento – com inscrição e data, na parte externa do muro, para que ela não se desmanchasse por aí à toa. Em volta da casa, dezenas de maribondos voavam, assustando os visitantes, mas que, surpre­ endentemente, não picavam o proprietário do lugar. Aposentou-se em 1960, vivendo, a partir daí, com uma pensão irrisória, mas que, segundo ele, o livrava da mendicância ou de viver à custa de outros. Não voltarei mais nunca ao trabalho. Estou aposentado por Doutor Geraldo no dia 25 de julho no ano de 1960. Agora até o fim, Gabriel Joaquim dos Santos, estou liberto para sempre.

Tinha os pés inchados e cortados quando o conheci. Cataratas nos dois olhos, foi, talvez, o resultado do duro trabalho nas salinas da Região dos Lagos. Foi perdendo gradativamente a visão, primeiro de um dos olhos, e depois, nos últimos anos de sua vida, do outro. Via somente sombras no final. Mas isso lhe bastava para que continuasse trabalhando no embelezamento do seu lar, completando um bordado ou remendando os enfeites danificados, alguns até por ele mesmo. Pedia sempre a Deus que lhe desse a força da coragem para continuar. Nos últimos anos de sua vida, vivia atormentado por espíritos assombrados que dizia ver e escutar. Instigado por essas almas penadas, que estariam agrupadas em cima de sua casa, chegou a quebrar algumas flores e a rica moldura de um retrato na sala, e ainda queimou algumas roupas suas. Deixo aqui registrado seu depoimento a respeito desses acontecimentos estranhos, que tanto o fizeram sofrer no final da vida:


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Eu nunca ouvi o meu pai contar uma história dessas que falasse gente na nuvem. Nunca. A força nossa é toda aqui embaixo. Lá em cima não... Eu não sei o que é. Uma bateria, um exército, um agrupamento de cento e cinquenta pessoas, mulher, homem, criança. Falam português. Ninguém escuta, só eu. É uma zoeira, uma falaria do Cabo até aqui. Isso me apareceu no dia 4 de março (1980). Mexe nas coisas, arrebenta corrente, apanha as coisas, esconde, não posso ter nada em casa. As pessoas estão tristes mas não sabe o que é, os animaizinhos fica maluquinho... Me apareceu um anjo nu que me disse que era meu anjo da guarda e me mandou quebrar as coisas. Depois de um tempo, a noite foi passando e ele me disse que era o demônio. Anda me machucando, me disse que eu vou ficar paralítico. Esse joelho aqui tava doente mas aí chegou, bota fora os dois. Um enfraquecimento do corpo... E de noite aquele enxame a noite inteira, em cima. Ele conversou comigo, disse que é um capitão espiritual que tem que largar o posto pra meter outro no lugar. E aí falou comigo pra fazer a parte, pra assinar um papel. Eu não compreendo essas coisas. Disse para ele: Não senhor, não posso assinar porque não compreendo isso. E aí começou a danação...

Não seria essa compulsão de quebrar aquilo que tanto amava, sinal de que a velhice, a deterioração de seu corpo, o estaria levando à destruição da casa, obra de uma vida inteira, que afinal nada mais era que um prolongamento de seu próprio corpo? Conservou, porém, a memória fresca até o fim, lembrando com detalhes fatos acontecidos há décadas. Os parentes sempre o procuravam para dissipar alguma dúvida a respeito das datas de aniversário, de casamento ou de morte dos familiares. Aos 92 anos, caiu e quebrou a perna esquerda em três lugares, sendo levado para um hospital em Cabo Frio. Lá os médicos instruíram a família para operá-lo em Niterói, com o que Gabriel não concordou. Provavelmente, intuía que morreria de qualquer jeito, mas mais triste, se fosse internado no hospital. Não conseguiu deixar sua casa, que era sua segunda pele. Voltou para casa e morreu tranquilamente, 46 dias depois, no dia 3 de março de 1985, às 16 horas. Seu corpo foi velado na Igreja Batista de Campo Redondo e enterrado no Cemitério de Santa Isabel, em Cabo Frio. Cinco dias antes de sua morte, pediu ao sobrinho Vilson para zelar por sua casa, para ser sua pessoa, justificando: – Isto é um enredo, uma história... As almas se recolhem em si mesmas. São fortes. Aqueceram-se em todos os pesares humanos. Nada têm, nem esperam: ao sobrevir a morte, Por ela esperarão como se espera um irmão. Pablo Neruda


foto: Francisco da Costa

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capítulo II Espaço social e ornamentação


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Localização A Casa da Flor fica no distrito do Vinhateiro, hoje Parque do Estoril, município de São Pedro da Aldeia, no Estado do Rio de Janeiro, região Sudeste do Brasil, a cinco quilômetros da sede, quase na divisa com o município de Cabo Frio, à beira de uma estradinha vicinal, Estrada dos Passageiros, colada à antiga estrada que ligava os dois municípios. Próximo à Rodovia RJ 140. Há, em volta, algumas construções de alvenaria, quase todas ocupadas por sobrinhos-netos de Gabriel e outros parentes. Bem próxima, a casa comprada por Benevenuto, pai de Gabriel, que, hoje, infelizmente, já desabou. Chega-se a ela pela estradinha de terra. Ao pé de uma guararema (ou pau d’alho), hoje desaparecida, árvore majestosa que diziam ter mais de 200 anos, já se avistava a casinha, no alto de um outeiro, a uns 7 metros do nível da rua. O terreno onde está assentada a casa é um platô. Atrás, o morro avança por uns 900 metros.

desenhos: Gabor Geszti

A casa é cercada por um jardim natural, formado por algumas árvores frondosas, arbustos, plantas e flores da região, perfeitamente integrada à natureza ao redor.


foto: Francisco da Costa

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Ornamentação da parte externa

foto: Francisco da Costa

foto: Amelia Zaluar

Uma escadaria de treze degraus baixos e irregulares, toda de pedras, cujos níveis são marcados por jarras de flores petrificadas, conduz a ela. Estranho muro, levantado com pedaços de tijolos, potes e telhas quebradas, cerca a habitação pelos lados norte e leste. Flores e esculturas fantásticas ponteiam esse muro. Não há dois enfeites iguais. Aqui e ali, algumas surpresas: um pedaço de bibelô – uma cara de leão – restos de um gerador de eletricidade, garrafas de refrigerantes dispostas ao redor de um enfeite, manilhas que sustentam uma grande flor de cacos...


foto: Amelia Zaluar

foto: Amelia Zaluar

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A escadaria termina em frente a um painel bordado na parede da fachada oeste, o mais representativo de todos, aquele onde estão assentados com cimento o nome da casa e a data em que seu dono começou a ornamentação. Toma toda a parede, e talvez seja o mais belo de todos! Entre o muro e a casa, contornando-a, um corredor. Junto à porta de entrada (lado leste), alguns bancos de pedra, um lugar para os visitantes sentarem e conversarem: um lugar fresco, confortável, uma sala de visitas singular, ao ar livre. Os bancos, embutidos no muro, ou formados por saliências no corpo da casa, forrados de retalhos de azulejos: das próprias paredes e do muro saltam essas protuberâncias e reentrâncias... Uma arquitetura extremamente sensual, orgânica... e prática, ligada às necessidades de seu dono: uma casa especificamente construída para – e por – aquele ser humano. Seu templo!

foto: Amelia Zaluar

As paredes externas e o muro, completamente recobertos de pedaços de coisas quebradas, formando flores, folhas, cachos de uvas, colunas e esculturas fantásticas, mosaicos, desenhos simétricos, compõem uma decoração barroca e perturbadora. Perturbadora porque fora do comum, inesperada, surpreendente...


foto: Amelia Zaluar

foto: Francisco da Costa

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Do lado direito de quem sobe a escada, cobrindo a parede, um enfeite/escultura de grande força plástica: duas colunas de cimento bordadas e encimadas por vidros de faróis de automóvel. Embaixo, uma flor de pedras lisas chapadas num degrau, um nicho para esconder um osso de baleia que nunca se estraga, e, no alto, um arranjo com telhas, o que sugere um pagode chinês, um templo oriental. Em seguida, na mesma parede, mais uma decoração, formada por arranjo com cacos de garrafas – uma de plástico –, um mosaico de pedrinhas e, no telhado, outro enfeite de telhas superpostas.

foto: Amelia Zaluar

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foto: Francisco da Costa

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foto: Amelia Zaluar

Um rico painel, na fachada norte, cerca um escudo cor de ferrugem, de barro, com as Armas da República: pedaços de fundo de garrafa verde, ladrilhos amarelos e brancos o cercam, num desenho simétrico e harmonioso, de bonito efeito policromático. Ao lado, um nicho aberto na parede para proteger um bibelô – um cachorrinho sentado, trazido quebrado por uma vizinha que chorou muito ao perder aquele enfeite, mas que Gabriel consertou e colocou ali, em segurança, no seu fraternal jeito de lidar com os objetos e as pessoas.


foto: Francisco da Costa

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Entre as duas portas, na fachada leste, a casa é oferecida aos visitantes, noutro belo painel, construído em 20 de julho de 1952, com pedras, conchas, cacos de jarras e azulejos: “Lembrança de Gabriel dos Santos Nasceu em 13 de maio de 1892”. Aí, ele mostrava sua receptividade aos que iam lá para conhecer sua obra. Hoje, sem ele, o enfeite se assemelha a um túmulo com inscrições. Ao lado, um detalhe de um painel chama a atenção: pedaços de vidro, material transparente, aplicado às paredes de cimento, foscas, que criam efeito inesperado. Do outro lado da porta principal, o homem entrega sua criação à proteção de seu Senhor: “Deus esteja nesta casa. 10 de abril de 1899”. Data em que tudo começou, quando a família para lá se mudou...


foto: Amelia Zaluar

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As divisões internas, os enfeites e o inventário dos móveis e utensílios

Propositadamente, o interior da habitação é pouco iluminado. Mal dá para se estar de pé em certos pontos, pois o pé-direito da construção é muito baixo: em alguns pontos não chega a dois metros. Durante o dia, a luz entra fraca pelas duas pequenas portas, obedecendo aos objetivos básicos de sua criação: recolhimento e meditação, templo/habitação. A casinha tem três pequenos cômodos: uma sala, um quarto e um depósito. Entra-se pela sala, que é ligada ao quarto por uma arcada baixa, bordada no alto. O quartinho, muito escuro, tem dois espaços, divididos por outro arco: um separadozinho para a cama e, do outro lado, o espaço usado para o altar dos livros. Uma pequenina porta liga o quarto ao depósito. Como entradas de luz, só as duas portinhas (a da sala e a segunda, à direita do guarda-livros, uma porta-cocheira, as duas saindo no corredor) e a janelinha, no depósito, e que dá para a rua. Janelas e portas também feitas com restos de madeira velha, conseguidas na casa do pai. Não há cozinha. Gabriel nunca cozinhou lá. Sempre fez suas refeições com os pais e irmãs, ou com a sobrinha, na casa ao lado. Não há banheiro. As funções ligadas à cozinha e ao banheiro, mais sujas e mais degradantes para ele, não podiam acontecer dentro de um templo, de um lugar sagrado, como considerava a construção. Não há luz elétrica na casa, como era da vontade de seu dono. Para iluminar suas noites, suas noites tão produtivas, de tanta criação, somente uma lamparina. Nada mais lhe era necessário. Não há água encanada. Gabriel bebia água de chuva, captada por um sistema extremamente simples, mas engenhoso, improvisado por ele mesmo. Em dias de chuva, a água corre por um rincão no telhado, é acumulada numa cisterna e vai cair, através de algumas calhas moldadas com cimento e providas de furos – bicas – numa talha grande, muito antiga, colocada dentro de uma casinhola, onde fica depositada para o uso. Essa casinhola, tapada por uma pedra mármore, ganha de presente, foi construída em 1936, o que está registrado num enfeite. Nunca lhe faltou água para beber. Relatado por Valdevir, seu tio-avô, criou um sistema também


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muito simples para refrescar a água da talha: deixou uma abertura na casinhola, por onde entrava o vento forte, comum naquela região, e outra abertura, ao lado, por onde saía o ar, mantendo assim uma corrente fria, chamada por ele de geladeira. Das peças do mobiliário do morador, quase todas lhe foram doadas como presente ou como recordação – herança – de pessoas amigas falecidas, já que todos sabiam da alegria que Gabriel tinha de receber esse tipo de presente e de como as cuidava com carinho. Constavam dessa lista, enquanto ele vivia, quatro cadeiras – uma com braços. No quarto, a cama de jacarandá, alta, com grades, sistema de berço, feita em 1933 por ele mesmo.

foto: Amelia Zaluar

Na salinha, defronte à porta de entrada, uma estante, feita em 1953: duas prateleiras de madeira, cimentadas na parede, com sua coleção de jarras, licoreiras, vidros de perfume, fruteiras, xícaras, copos e compoteiras.


foto: Amelia Zaluar

foto: Francisco da Costa

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foto: Francisco da Costa

À direita de quem entra, uma mesinha com tampa de mármore, onde Gabriel escrevia, também fixada na parede. Por cima, uma barroquíssima moldura de cacos e pedaços de bibelôs, incrustados com cimento, cerca o retrato do dono da casa. Em seguida, do outro lado da passagem para o quarto, o retrato de Getúlio Vargas, por quem tinha enorme admiração, também emoldurado com cacos.


foto: Alzira Reis

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Incrustados nas paredes, alguns vidros de faróis de automóveis. Pode-se assim entender o encanto que Gabriel dizia sentir, ao olhar seus enfeites, iluminados pela luz dançante da lampa­rina, quando se recolhia à casa, à noite. Os vidros, as lâmpadas, os azulejos, as louças, faiscantes, e Gabriel, sentado, na cadeira de braços, como no trono de um rei, a olhar sua obra, maravilhado...

foto: Francisco da Costa

foto: Francisco da Costa

foto: Amelia Zaluar

Do teto da sala, pendem algumas luminárias. De lâmpadas queimadas... sem outra função que a de proporcionar prazer estético. O que impressiona é que se percebe nelas um estilo: a exuberância do art-nouveau...


foto: Francisco da Costa

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Dois objetos decorativos insólitos surpreendem no ambiente ricamente decorado: uma bandeira do Brasil, de papel, e uma estampa da ponte Rio-Niterói. Num canto da salinha, uma mala grande servia para guardar cacarecos: chapéus, sapatos velhos, roupas, papéis e jornais. Ultrapassando-se a passagem que leva ao quarto, um momento de espanto e de respeito, quase religioso: misto de quarto e santuário, o local surpreende com os seus riquíssimos bordados. Do lado direito, a cama onde o homem descansava do seu duro trabalho nas salinas, onde sonhava e devaneava. Na parede, acima da cama, o primeiro bordado, mais singelo que os outros. No teto, por cima da cama, um jirau para tapar o pó que cai das telhas. Do lado esquerdo, a portinha para o depósito e um guarda-loiças embutido nas paredes grossas, para guardar a coleção de loiças antigas: terrinas, pratos, tigelas, xícaras, que ganhou de presente há cerca de cinquenta anos. Em volta e por cima do armário uma decoração barroca: flores modeladas em cimento colorido, bibelôs quebrados e azulejos em profusão.


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Uma coluna também bordada e outra arcada separam o espaço de dormir da parede mais nobre da casa, a mais profusamente decorada. No centro dela, um armário de alvenaria, uma estante para guardar os livros, chamada significativamente de altar dos livros, nome indicativo do profundo respeito que Gabriel tinha pelo conhecimento e pela religião. Cercando o guarda-livros, uma decoração fantástica: lâmpadas coloridas embutidas, cacos, pedaços de bibelôs (um passarinho, um pinguim), correntes, cachos de uvas e flores de massa de cimento, mariscos, ossos de animais, jarras e canecos de louça dispostos na parede baixa; uma tampa de ralo bem no alto do armário, muitos retalhos de vidros coloridos. Os objetos úteis passam a valer apenas como decoração... Difícil de entender: fica-se até aturdido com tal profusão de surpresas. A maior delas: um bico de bule de louça branca com uma flor de plástico espetada na ponta! Nas prateleiras, alguns livros, a Bíblia, almanaques, cadernos de apontamentos, velhas latas de biscoito vazias... No alto, o retrato de um amigo, Guilherme. Num canto, uma bacia sobre armação de ferro, e, dentro dela, a única fonte de luz de que dispunha o sonhador: a pequena lamparina de querosene.


foto: Francisco da Costa

fotos: Francisco da Costa

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foto: Francisco da Costa

foto: Francisco da Costa

foto: Francisco da Costa

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No depósito – quartinho separado para guardar cacarecozinhos – algumas prateleiras de madeira, onde se viam panelas de ferro, potes de barro, garrafas, baldes, ferramentas velhas, pratos. Numa das paredes, um mosaico de cacos de pratos brancos e um detalhe bizarro: afixado nela uma peça de metal. Uma pequenina janela permitia a seu morador olhar a estradinha, ver quem chegava lá...


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Os materiais rejeitados Gabriel usou na construção de sua casa algumas ferramentas que lhe foram emprestadas ou dadas de presente. Conservava algumas quando o conheci. Para fazer seus enfeites, porém, usava apenas um pequeno alicate para cortar os azulejos e vidros e uma colherzinha de pedreiro para aplicar os enfeites com uma mistura de cimento, areia e água. E suas mãos, suas habilidosas mãos, e mais nada! Mantinha tudo limpo, paredes e muro, as esculturas e os detalhes, varridos com uma vassourinha e lavados com uma água de cimento.

foto: Amelia Zaluar

Para a ornamentação, o material empregado era basicamente refugo de construções e coisas quebradas, um material de segunda mão: pedaços de telhas, tijolos, potes, jarras, talhas, vasos, pratos, copos, garrafas, espelhos, ladrilhos, azulejos, xícaras, bibelôs. Foram usados também alguns materiais insólitos, tais como lâmpadas queimadas, vidros de faróis de automóvel e de bicicleta, correntes, ossos de animais, conchas, mariscos, caramujos, pedras, pastilhas, canaletas de barro vitrificadas, ralo de chão, enfeites de papel, pratinho de papelão, tampa de lata de goiabada, estre-


la-do-mar, emblema da Volkswagen, grade de radiador... Sem preconceitos, ia escolhendo esse material rejeitado por todos, mas valioso para ele, confirmando Kandinski, que escreveu: “Tudo que está morto palpita. Não apenas o que pertence à poesia, às estrelas, à lua, aos bosques e às flores, mas também um simples botão branco de calça a cintilar na lama da rua... Tudo possui uma alma secreta, que se cala mais do que fala”.7

foto: Amelia Zaluar

foto: Francisco da Costa

foto: Amelia Zaluar

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7 JAFFÉ, Aniela G. O simbolismo nas artes plásticas. In: JUNG, Carl Gustave. O homem e seus símbolos. Págs. 250, 253 e 254.


foto: Alzira Reis

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Gabriel embelezou seu lar sem um projeto pré-estabelecido, de etapas rígidas a cumprir. Começou pelo interior de casa, pelo bordado ao lado da cama, antevisto num sonho. Prosseguindo, e sem terminar a parte interna, passou a enfeitar também a parte externa. Assim, surgiu a primeira jarra de uma longa série de enfeites – florões – formados por um vaso e flores de pedra, isto é, flores criadas com retalhos de garrafa, pedaços de telhas, de manilhas, conchas e muitas pedras. O vaso, suporte para as sempre-vivas – tanto pode ser parte de um garrafão, como ser a fusão de dois vasos emborcados ou ainda ter seu corpo formado por garrafas de refrigerantes.


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Nascia o nome de sua obra – A Casa da Flor – pela predominância desse motivo usado na decoração. foto: Amelia Zaluar

De suas visões e sonhos, foram surgindo outras ideias. Quando era um sonho, aproveitava o material que tinha à mão para torná-lo concreto, real. Ao se entregar ao seu pensamento vivo, à tardinha, quando se recolhia, criava outros motivos que também iria executar quando dispusesse dos meios. Mosaicos, elaborados com caquinhos ou seixos encontrados nas ruas, foram sendo aplicados nas paredes. Colunas de pedra e cimento, algumas enfeitadas com ladrilhos e faróis de automóveis. Esculturas modeladas com cimento, cachos de uvas, flores e folhas, volutas. Luminárias de lâmpadas que não mais acendem, suspensas do teto... Nichos para proteção de alguns objetos importantes... Retratos cimentados na parede, emoldurados por ricos bordados de cacos, de pessoas significativas – dele mesmo, de um amigo, de Getúlio Vargas. Frases e datas, escritas no cimento, destinadas a registrar acontecimentos ou pedidos de proteção divina. Como definiu o arquiteto Carlos Nelson F. dos Santos, “uma linguagem só não bastava a esse autor. Construía, esculpia, grudava, revestia. No entanto, ainda faltava expressão: aí escrevia dentro da casa, fazendo dela agenda, arquivo, dicionário. A obra poética foi esticada até os limites...”.8 Gabriel, artista genial, desprovido de preconceitos, ao sabor de uma prodigiosa imaginação e com total liberdade de criação, foi decorando os espaços ainda vazios, trabalhando em sua obra até morrer. Nessa incessante tarefa de aproveitar o “imprestável” para a produção de beleza, tudo servia para ser reciclado e aplicado numa série interminável de motivos ornamentais. Não há dois enfeites iguais. Uma composição de riqueza plástica surpreendente! Total exuberância: é o barroco intuitivo criado por um artista cafuzo, marginal e solitário, descendente direto do negro africano e do índio brasileiro. Uma profusão de influências culturais, de visões de mundo, de maneiras de sentir as coisas... Como diz Nietzsche em Assim falou Zaratustra: – Eu vos digo: é preciso ter ainda caos dentro de si para poder dar à luz uma estrela dançante. 9

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SANTOS, Carlos Nelson Ferreira. Uma flor para a paixão. (Inédito.) NIETZSCHE, Friederich W. Assim falou Zaratustra, um Livro para Todos e Para ninguém. Pág. 34.


foto: Amelia Zaluar

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capĂ­tulo III Os cadernos de assentamentos de Gabriel


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ó depois da morte de Gabriel, vim a saber, por sua sobrinha Naná, que ele manteve, durante muitos anos, o hábito de anotar todos os acontecimentos do seu dia-a-dia, em cadernos, dos mais simples e baratos. Percebi, emocionada, ao lê-los pela primeira vez, que ele deixou um documento de grande valor para todos os que se interessam pela sempre surpreendente produção do homem do povo.

Dono de memória privilegiada, sabia de cor as datas importantes referentes a nascimentos, casamentos, acidentes, desentendimentos e mortes de parentes e conhecidos, conforme depoimentos dos mais próximos, que a ele recorriam em caso de dúvida. Analfabeto, ansiava por aprender a ler e a escrever: demonstrava um interesse grande pelos acontecimentos de seu tempo e queria informar-se. Já homem maduro, pediu a um menino que frequentava escola, seu vizinho, que lhe ensinasse a cartilha. Ao terminar de estudá-la, sabia definir a Bíblia. Deixou escrito: Gabriel Joaquim dos Santos aprendeu a ler no dia 10 de Setembro de 1928. Até aí não sabia nada. Tinha 36 anos de idade. Passou, então, a registrar, em sete modestos cadernos, os fatos que o impressionavam, desde os mais banais, como a venda das galinhas que criava, até os de grande importância histórica para o país, como o golpe militar de 1964.. É o relato de um homem simples e isolado, sem acesso aos meios de comunicação, os quais só encontrava ao sair de casa e andar quilômetros até as cidades vizinhas, mas que era ligado nos acontecimentos de sua época. Tinha clareza e inteligência para perceber a importância desses fatos, e os preservava para o futuro. Deixou o testemunho de sua “pequena grande vida”10 no relato da “pequena e a grande história vividas com a mesma intensidade”. Anotava, datando-os sempre, dados sobre sua vida pessoal: doenças, consultas médicas, visitas dadas e recebidas, auxílios, presentes, convites, o trabalho nas salinas, os salários recebidos, a compra de mantimentos, objetos e peças de vestuário. Referências ao trabalho de embelezamento de sua casa, enfeites criados, doação de pessoas conhecidas que lhe levavam cacos, pedras e objetos quebrados, estão também anotadas. Num comportamento típico de um erudito, de um historiador, escrevia ainda sobre os melhoramentos introduzidos na região: a construção de igrejas, pontes e estradas de ferro, introdução da energia elétrica, graves tragédias acontecidas. Os fatos políticos narrados traziam, por vezes, alguns comentários seus: sobre as violentas prisões e mortes ocorridas durante a ditadura militar, análise sobre o desempenho de alguns presidentes da República, o que demonstra, sem sombra de dúvida, sua sensatez e clareza de raciocínio. Opinava sobre a construção de Brasília, sobre os benefícios conseguidos pelo povo durante o governo Vargas, ao qual era grato por tê-lo livrado da mendicância ao parar de trabalhar na velhice, graças à pensão que tinha direito. Não satisfeito em colocar dia, mês e ano de alguns fatos, para si mais importantes, ainda anotava a hora em que os fatos ocorreram, como na promulgação da Lei da Reforma Agrária, às 4 horas da tarde.

10 SANT´ANNA, Affonso Romano de. A Primavera Possível. Jornal do Brasil, 27/09/1987.


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Comparava a situação do Brasil perante outros países da América do Sul. Falava que os escravos que chegavam ao país vinham da costa da África. Sabedoria própria, intuitiva, vinda de um homem que não recebeu nada da educação formal, mas dotado de grande inteligência e sensibilidade... Os dados relatados não estão em ordem cronológica: numa mesma página são descritos fatos ocorridos em décadas diferentes. Muitos dados referem-se às primeiras décadas do século XX, o que prova que os sabia de memória antes de escrevê-los. Na capa de uma caderneta escreveu: Esta escritura foi feita no dia 21 de outubro no ano de 1956 e contém anotações referentes às décadas de 1930, 1940 e 1950. Sua compulsão em registrar datas importantes aparece também nas paredes e muros da Casa da Flor. Feitas com uma massa, mistura de cimento e barro, a caneta ou a lápis, aparecem datas, tais como: Lembrança de Gabriel do Santos, nasceu a 13 de maio de 1892; Deus esteja nesta casa. 10 de abril de 1899 (data em que a família mudou-se para lá); Casa da Flôr – 1923 – data em que criou o primeiro enfeite; e datas referentes ao término de muitos enfeites. Fez de sua casa tão linda um relicário afetivo, de suas paredes, arquivo. Para tentarmos compreender a necessidade de Gabriel em memorizar e salvar do esquecimento os acontecimentos vivenciados por ele, é preciso remontar-nos à África, à região das savanas ao sul do Saara, onde a força da tradição oral mantém vivos os tesouros do conhecimento, graças à memória excepcional dos velhos. Cabem a eles, os “griots genealogistas”,11 transmitir esses tesouros, para as outras gerações, pacientemente, como explica a expressão “de boca a ouvido”, ao longo dos séculos. Viajam muito para se informar sobre a “história, proezas e gestos” dos personagens que cita, para acompanhar o “desenvolvimento das famílias, clãs e etnias no tempo e no espaço”. De memória, guardam datas e informações sobre cada membro dos diferentes núcleos familiares. Sua missão, é claro, é reforçar a identidade de seu povo. Gabriel, tendo inconscientemente introjetado esse comportamento de seus ascendentes africanos, mantinha-se preocupado com a preservação histórica de seu grupo social, mas utilizava, ainda, para consegui-la, além da oralidade, a escrita em seus cadernos. Ao escrever sobre si mesmo, na narração da sua história de vida, ora na primeira pessoa ou, quase sempre, na terceira pessoa, Gabriel assumia a “dupla função de protagonista e testemunha de seu tempo”.12 “Recordar a própria vida quer dizer selecionar, lembrar de pedaços, instantes, momentos”. Ao aprender a escrever, Gabriel desliga-se do compromisso único da comunicação oral e inicia sua autobiografia, em tópicos, aos pedaços, para marcar sua presença no espaço-tempo em que viveu, para afirmar sua identidade, para não ser esquecido. Fazia suas anotações em letras maiúsculas, de forma, com muitos erros de ortografia: escrevia como falava, unindo, por vezes, duas palavras numa só, como Jongolar, em vez de João Goulart, ou quistava (que estava), miaconteceu (me aconteceu), nocamais (nunca mais). Nota-se, porém, que 11 A. HAMPATÉ-BÂ “A tradição viva”. “História da África”, Volume 3. Pág. 211. 12 FRANCESCHETTI, Andréa. Viagem Histórica e Sentimental através da autobiografia. Palava 10. Pág. 64.


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há registros posteriores corretos de nomes como Goulart e Kubitschek. Não havia pontuação em seus escritos. Para tornar a leitura dos assentamentos mais fácil, as palavras estão transcritas em sua grafia correta. A ausência de pontuação foi mantida, mas, para dar ritmo à leitura, foram colocadas letras maiúsculas em cada início de frase. Foi necessário fazer uma seleção, por sua importância e singularidade, entre as centenas de anotações, as quais também não aparecem em ordem cronológica.


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Uma autobiografia Gabriel Joaquim dos Santos, crente de natureza. Nasceu no dia 13 de maio no ano de 1892. Foi católico. No ano de 1912 fez uma capela pra adoração católica. No ano de 1926 deixei. No dia 24 de dezembro de 1926 me converti no Evangelho de Jesus. No ano de 1941 foi trabalhar em serviço na salina de José Maria. No dia 3 de agosto no ano de 1955 me aposentei no Instituto de Cabo Frio. Acabou a luta. Graças a Deus, amém. Combati todas as coisas com fé em Deus. Gabriel dos Santos.

Algumas passagens que se passou

Gabriel fez a biografia da família, com dados relativos aos pais e a seus onze irmãos. Usava o termo Vinuto, relativo a Benevenuto, seu pai, como um sobrenome para os irmãos e sobrinhos:

Benevenuto, que tem o nome Joaquim dos Santos morava no Vinhateiro desde o ano de 1899 Faleceu no dia 1 de junho no ano de 1932 Leopoldina Maria da Conceição faleceu no dia 16 do mesmo dia do mês de junho de 1932 Lembranças a seu filho Gabriel Joaquim dos Santos nasceu no dia 13 de maio de 1892 Começou a invocar o nome de Deus tinha 20 anos de idade Fiz uma capela 1912 capela romana No dia 24 de dezembro de 1926 me converti ao Evangelho de Jesus Já era crente de natureza só faltava me arrepender Combati o bom combate e guardei a fé Estou descansado no poder de Deus. Quintina Maria da conceição nasceu no ano de 1876 Filha de Vinuto Apolinária nasceu no ano de 1881 Bernardo nasceu em 1878 Bernardo morreu dia 9 de março no ano de 1968 Quintina morreu no dia 28 de outubro de 1970 Quintina Ezequiel Bernadino Joaquim dos Santos Gabriel Joaquim dos Santos são herdeiros da propriedade de Benevenuto Joaquim do Santos sendo Gabriel procurador de todos... Os filhos independentes Sincera Maria Felipe Antônio Apolinária Paulina Manoel e filhos não terão mais direito na herança de Benevenuto São independentes 13 de julho de 1966 No dia 18 de julho Paulina foi a São Pedro da Aldeia tirou a guia na nova lei da Prefeitura Ficou tudo pronto de consenso. Gabriel Joaquim dos Santos paga imposto de 1933 até 1965 Passou-se 34 anos Depois veio a nova lei no ano de 1966 Passou o pagamento da Prefeitura para o Banco do Brasil no dia 6 de outubro Gabriel dos Santos pagou em 1966. Felipe Joaquim dos Santos nasceu no ano de 1891 Foi lavrador foi salineiro Aposentou-se no Instituto de Cabo Frio Casou no de 17 de abril de 1953 Felipe morreu paralítico às 3h da tarde no dia 9 de agosto no ano de 1967 Lembrança 76 anos de idade. Antônio Vinuto foi aposentado no dia 28 de maio no ano de 1958.


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Antônio Vinuto começou a fazer uma casa no Vinhateiro no dia 14 agosto no ano de 1960. Bernardino chegou aqui na noite de 1 de Dezembro pra convidar pro casamento do filho 1960. Paulina tem dinheiro guardado com Gabriel dos Santos 50 contos no dia 15 de março de 1967. Paulina começou a vender panela na olaria no dia 15 de março de 1967 No dia 26 de dezembro recebeu 4 contos. Lembrança da festa de Santo Antônio na casa de Vinuto começou no ano de 1912 Acabou no ano de 1925 Passou-se 40 anos No dia 13 de junho de 1965 Quintina fez uma ladainha a Santo Antônio Luiz de Presiliana rezou 13-6-65. Essa cozinha Wilson fez no dia 15 de dezembro no ano de 1961 Gastou-se 6 contos Gabriel estava doente mas ainda ajudou a fazer com muito sacrifício e com dinheiro O serviço começou no dia 8-12-61 Os Vinutos. Felipe fez a primeira casa aqui no dia 6 de junho no ano de 1941. Maria de Vinuto nasceu no ano de 1894 e morreu no dia 2 de setembro de 1975. Gabriel começou a fazer os alicerces da casa de Felipe no dia 30 de abril de 1958 7 dias de serviço. Antônio de Vinuto acabou de pagar uma conta de 2 contos e 250 cruzeiros no dia 10 de junho de 1962.


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Sincera Vinuto morreu no dia 28 de Setembro no ano de 1938. Sorteio Militar Sergio Vinuto foi pra Marinha no dia 16 de janeiro no ano de 1973 e deu baixa em Janeiro de 1974. Manoel Vinuto morreu no dia 26 de abril no ano 1943.

Gabriel organizava, algumas vezes, por assunto, os dados coletados, intitulando-os. Aparecem nos cadernos de apontamentos: Guerreiros do Brasil (sobre os mais conhecidos chefes militares do país, como Osório, Tamandaré, Deodoro da Fonseca, Caxias); As cidades do Brasil (fundação das Capitais Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador); Os Primeiros (1ª missa no Brasil, 1º Governador-Geral). Nessas notas, nota-se a capacidade de síntese do autor, ao enfatizar o dado principal sobre cada assunto:

Os movimentos do Brasil

A guerra do Paraguai começou em 1864 acabou em 1870 Dom Pedro e Lopes. O Brasil declarou guerra à Alemanha no dia 22 de agosto no ano de 1942. Washington Luiz Pereira foi deposto fora do Governo do Brasil em outubro no ano de 1930. Getúlio Vargas enviou as forças brasileiras pra guerra na Europa no dia 13 de setembro de 1943.

Aviação

Alberto Santos Dumont nasceu em Minas Gerais no ano de 1873. Morreu no ano de 1932. Brasileiro Foi o primeiro que voou no aeroplano no dia 3 de outubro no ano de 1906 Por isso se chama Pai da Aviação Brasileira 14-11-60.

Prisão de cadeia

Tinoco filho de José Borba foi preso no dia 16 de janeiro de 1957 porque bateu em Carolino um homem velho Senisa e filho foi intimado no mesmo dia Romínio Paulo preso em Cabo Frio no dia 27 de agosto. Manoel de Bastiana foi preso no dia 1 de maio por causa do comunismo em 1964.


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Os primeiros

O Brasil foi descoberto por Pedro Alvares Cabral em 1500 A primeira exploração o rei Dom Manoel de Portugal em 1501 O primeiro Governador Geral Tomé de Souza em 1547 A primeira missa rezada no Brasil no dia 26 abril no ano de 1500 Henrique de Coimbra padre.

Greve

A greve das fábricas de Cabo Frio começou no dia 30 de maio de 1960 Acabou no dia 28 de junho Miguel Couto assinou e perdeu a questão No dia 15 veio uma força do Rio Os grevistas foram presos no dia 16 de junho de 1960 Voltaram no dia 17 Os empregados começaram a trabalhar no dia 3-6-60. A lei dos governos de 1930 até 1966 O governo de Getúlio Vargas O Brasil passou em ordem da lei direita e bem dirigida a todo o povo. O governo de Eurico Dutra foi um descanso pra nação o povo viveu quieto Não houve questão alguma graças a Deus. O governo de Juscelino Kubitschek foi de grande sabedoria Mudou a capital do Brasil pra Goiás Fez bem. O governo de João Goulart foi agitado... não pode conseguir. O governo de Castelo Branco foi ruim Houve muita falta de ordem houve muita morte muita carestia muito sangue derramado Sem justiça muita fome em 1966.

Compra de valor

Paulino comprou uma lasca de terra no Vinhateiro no dia 25 de Fevereiro de 1960. Olímpio genro de Cândido comprou um sítio pequeno no Vinhateiro no ano de 1945 depois loteou No ano de 1957 de 24 de outubro ele fez uma casa Daí os compradores do lote começaram a fazer casa que hoje até o dia 2 de abril de 1960 se conta 11 casas.


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Em outros registros, juntava notas mais pessoais, como Morte e Desastre, Devedores de 1959, Dinheiro pedido, Dinheiro recebido, Visitantes de Gabriel, Gabriel ganha dinheiro dos amigos, Prisão e cadeia, Instituto de Pensões de Cabo Frio, Assassinatos, Amaziados, Restos mortais de 1937 até 1960, Casamento antigo, Salinas.

Mais frequentes eram as anotações sobre nascimentos, mortes e casamentos de parentes e conhecidos Constam ainda notas sobre seus cachorros, seus companheiros de sempre. Escrevia muitas anotações sobre compra de terras e construção de casas:

Lembrança: Marcelino Camargo do Cabo Frio casou-se a primeira vez no ano de 1914 levou 23 anos Dia 18 de outubro de 1937 a mulher morreu e Marcelino casou a segunda vez no dia 18 de março de 1938 Passaram 26 anos e Marcelino depois faleceu morreu no dia 9 de Janeiro de 1965. Alberto Euzébio um carro matou no dia 15 de abril no ano de 1952. Chico Araújo quebrou a perna no dia 22 de janeiro no ano de 1971. Eunice filha de Antônio Barcelo nasceu no dia 25 de setembro no ano de 1926 às 5 horas Faleceu no dia 7 de março no ano de 1965 às 4 horas da madrugada Deixou 3 filhos Lembrança de seus parentes e amigos. Dedeco filho de Ramos morreu de repente do coração no dia 6 de maio no ano de 1967. O cachorro de Gabriel nasceu no dia 5 de abril de 1976 O carro matou no dia 28-4-78. Joaquim Pedro nasceu no ano de 1891 e morreu no dia 24 de dezembro às 5 horas do ano 1964 Lembrança a todos. Vitalina filha de Cristóvão nasceu no ano de 1922 criou-se na casa do pai Com 22 anos saiu de casa sem motivo No dia 15- 5- 44 teve uma filha Caiu doente no dia 6 de agosto de 1966 foi pro hospital de Cabo Frio Morreu no dia 9 de agosto Vitalina passou muitos revezes na vida Lembranças 9-8-66. Um cachorro matou Jardineira na Aldeia no dia 20 de novembro de 1923. Gabriel fez a sepultura de Brilhante no dia 5 de setembro de 1973 Lembrança. Uma filha de Luiz de Petínio foi passear no Rio e morreu afogada no dia 10 de fevereiro no ano de 1974. Aureo comprou a casa de Lica Leite no dia 5 de novembro no ano de 1960 Deu 15 contos.


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Algumas observações sobre sua vida profissional, como trabalhador nas roças e nas salinas, pagamentos e aposentadoria estão anotadas:

Gabriel foi na salina no dia 16 de outubro de 1963 José Maria disse que eu estou aposentado 14 anos de trabalho bem feito Começou em 1941 até 1955 Gabriel Joaquim dos Santos foi aposentado no dia 3 de agosto de 1955. Ordenado de salina naqueles tempos: Os operários ganhava por dia no ano de 1912 se ganhava 2 cruzeiros por dia no ano de 1920 se ganhava 3 cruzeiros por dia no ano de 1940 se ganhava 7 cruzeiros por dia no ano de 1950 chegou a 60 cruzeiros no ano de 1960 veio 340 cruzeiros. Gabriel Joaquim dos Santos começou no serviço da salina do Peró no dia 29 de junho de 1939 O serviço parou no dia 30 de setembro no ano de 1941 porque Henrique Lage morreu. José Maria assinou a carteira de Gabriel dos Santos no dia 19 de junho de 1952. Os trabalhos que eu fiz quando me encostei no Instituto na salina de José Maria no dia 6 de novembro de 1955 teve me chamando pra ir trabalhar No dia 7 Gabriel foi e choveu nesse dia.


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No dia 20 de setembro trabalhou com Guilherme cavando terra em 1956. Gabriel Joaquim dos Santos largou a salina de José Maria por doença no dia 16 de julho no ano de 1955 Fiz exame com doutor Teófilo e eu me encostei no Instituto no dia 3 de agosto de 1955 O primeiro dinheiro que recebi foi 1 conto e 200 cruzeiros. Gabriel trabalhou nessa salina Maracanã desde o ano de 1912 Saiu no ano de 1955 cansado. Gabriel começou a receber ordenado mínimo a 7 agosto de 1954 Saiu 50 cruzeiros. Gabriel dos Santos recebeu a carteira sindical no dia 21 de dezembro de 1967.

Registrou, com detalhes, seus problemas de saúde, exames, ajuda de amigos. Percebe-se a solidariedade existente na comunidade: nos momentos de dificuldade, todos pobres, uns ajudavam os outros:

Eu caí doente no dia 27 de outubro no ano de 1961 Gabriel. Gabriel Joaquim dos Santos no dia 17 de outubro no ano de 1937 mandou tirar a fotografia pra tirar a carteira profissional. Gabriel recebia dinheiro no Instituto de Cabo Frio desde 3 de agosto de 1955 Aconteceu que no dia 23 de fevereiro de 1965 passou ordem pra receber em São Pedro da Aldeia no Banco Cordeiro. Gabriel espetou um prego no pé no dia 30 de agosto Fiz uso de vinagre com fumo No dia 22 de setembro fui em Cabo Frio Um moço me deu uma pomada Custou 1 conto Me achei melhor No ano de 1964 pedi a Deus que me curasse Amém 24-9-64 Foi feito. Gabriel dos Santos estrepou a perna no dia 5 de dezembro Fez tratamento No dia 24 me deram alta fica por conta do Instituto Gastei 5 envelopes de pílulas e 3 caixas de injeção paguei 35 contos. Gabriel começou a botar chapa no dia 25 de janeiro de 1960 Acabou no dia 30 de junho 5 meses e 1 dia 3 contos. Gabriel se consultou com doutor Teófilo a primeira vez no dia 16 de julho de 1955. Os visitantes e gente que deram auxílio a Gabriel doente foi João Araújo Áureo Narcisa Rita Gezoíno Nelson Coelho Guilherme Nilo. Gabriel Joaquim dos Santos Eu fiz exames com doutor Geraldo no Cabo no dia 9 de maio de 1958 Me deu 7 meses de repouso Instituto de Cabo Frio.


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No dia 13 de abril Gabriel foi matriculado no Posto da Ponte Tomou uma injeção para curar o ouvido Estava doente 13-4-61. A doença de Gabriel dos Santos 25-6-58 Os crentes que fizeram oração em corpo presente foram Francisco Aspenio Antônio Barcelo... no dia 30 de julho No dia 10 de novembro de 1958 eu fui fazer conta com doutor Teófilo e José Maria da minha doença Eles não quiseram nada Deus lhes ajude Lembranças 10-11-58. No dia 25 de maio no ano de 1958 me caiu uma telha nos pés Eu fiquei mal Fui no doutor Ponte comecei a fazer tratamento e nada de melhorar O doutor desenganou disse que fosse pra Niterói Vim a Cabo Frio no dia 6 de junho José Maria me levou a doutor Teófilo Eu fui operado A filha de ... tomou a responsabilidade do tratamento até o dia 30 de junho Eu peço a Deus que me livre de tanto mal desta vida amém Foi feito a 30-6-58.

Por vezes, Gabriel se mostrava reconhecido com a ajuda de amigos ou descontente em relação à atitude de outros. Com comentários breves, elogiosos ou desabonadores, ele avalizava o caráter de alguns conhecidos que faziam parte do seu universo doméstico:


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29 de junho de 1962 Aureo pediu a Gabriel dos Santos 5 contos emprestados até 8 dias Levou 4 meses no dia 9 de novembro ele me deu 2500 cruzeiros porque eu pedi. No dia 29 de agosto de 1966 Gabriel pediu a Fiazinha que não queria briga aqui. Sebastião casou-se com a filha de Agripino no dia 20 de outubro no ano de 1967 Não deu preferência a Gabriel dos Santos Não me convidou Tenho queixa Não se despreza amor velho pelo novo que depois que o novo vai embora o velho vem a servir Acabou lembrança de presente de 1955 até 1967. Desordem no dia 3 de junho de 1961 às 8h da noite Gabriel estava deitado me chamaram Era o filho de Antônio me dizendo que o pai estava brigando em casa Eu fui lá falar alguma coisa Vim embora e ficou tudo em paz 3-6-61. Nene de Antônio esteve aqui Convidou Gabriel pro casamento da filha no dia 22-10-76.

Anotava, com rigor, sua movimentação financeira: os empréstimos feitos, pagamentos dos deve­ dores, vendas de ovos e galinhas, preços dos gêneros alimentícios. Emprestava dinheiro com frequência e anotava sempre as datas do empréstimo e do pagamento, quase sempre numa mesma caderneta:

Pagamento de março saiu 42 contos em 1965 Pagamento de abril 42 contos... Pagamento de dezembro de 1965 saiu com 81 contos... Pagamento de março 1966 saiu com 53.500 contos... Pagamento de outubro saiu com 58.800 contos... Pagamento de dezembro de 1966 saiu com 108 mil cruzeiros. Preços dos gêneros no mês de dezembro de 1966: a carne 3500 cruzeiros farinha 400 cruzeiros açúcar 300 cruzeiros feijão 800 cruzeiros milho 250 cruzeiros arroz 700 cruzeiros 1 quilo de café 240 cruzeiros 1 quilo de peixe 1 conto 2 quilos de galinha 2 contos 1 ovo 100 cruzeiros 1 pão 40 cruzeiros 1 quilo de batata 350 cruzeiros 1 laranja 50 cruzeiros 1 quilo de banana 150 cruzeiros 1 litro de querosene 25 cruzeiros Um homem ganhava 3 contos na salina e 500 cruzeiros por dia Não dava pra nada Atenção Passou-se esse tempo nos anos de 1966 no governo de Castelo Branco O povo passou crise. Gabriel comprou uma moeda de dinheiro do filho de Nene no dia 23 de janeiro de janeiro de 1964 Um dinheiro que foi feito em 1773. A crise de açúcar Gabriel comprou no dia 10 de abril de 1964 a 210 cruzeiros. Vendi 31 quilos de galinha a Lazinho 10 de abril de 1964. No dia 29 de julho de 1963 Gabriel comprou 1 cobertor e uma caneta na casa de seu Manoel por 1 conto e 400 cruzeiros. No dia 15 de maio de 1958 eu vendi 2 galos a Nelson por 205 cruzeiros.


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A conta de Guilherme que deve a Gabriel de 9 de agosto de 1966 Importa tudo 27 contos No dia 1 de janeiro de 1977 Guilherme pagou a conta a Gabriel Não me deve nada. Preço da galinha no ano de 1958 Custava 1 quilo 100 cruzeiros Gabriel vendeu. A cachorra quebrou a chapa de Gabriel no dia 24 de janeiro de 1975 Mandei consertar no dia 27 de janeiro Dei 30 contos paguei ao doutor. Recebi 2 contos e 84 cruzeiros do mês de fevereiro de 1958... Recebi no dia 9 de Julho 4 contos e 138 cruzeiros... Pagamento de julho 2000 e 58 cruzeiros... O pagamento de janeiro de 1959 saiu com 3477 cruzeiros.

Os presentes dados ou recebidos também estão anotados:

Lembrança de Guilherme No dia 22 de janeiro de 1967 esteve aqui na casa de Gabriel me disse que recebeu o Espírito Santo nesse dia Eu dei um conto de presente a ele 22-1-67. No dia 8 de setembro Gabriel botou 1200 na caixa pra comprar um lampião pra congregação. José Maria me deu os tijolos no dia 30 de junho de 1960. Eu dei uma franga a Cristóvão 10-4-64. Sebastião me deu uma lata de doce no dia dos meus anos 13 de maio de 1961 Fiz 69 anos No dia 13 de maio fez 72 anos em 1964 Sebastião me deu uns biscoitos. No dia 30 de novembro de 1964 dei 300 cruzeiros a Gesoíno Estava doente. Antonieta levou um tombo no dia 18 de agosto de 1971 No dia 19 de setembro Gabriel foi na casa dela Dei 1500 Estava doente.


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Uma dona de Petrópolis esteve aqui e me deu 50 contos no dia 17 de novembro de 1974. Gabriel dos Santos deu 10 contos a igreja do Cabo no dia 17 de setembro de 1967. No dia 12 de abril o tenente da marinha deu 120 contos a Gabriel em 1974 Esteve aqui. Veio um carro aqui no dia 24 de dezembro trazer um auxílio de Natal importância 12 contos em 1966. Anísio morreu no dia 3 de fevereiro de 1961 Deixou lembrança pra Gabriel um serrote uma cadeira um formão um dinheiro 3-2-61 Morreu Anísio.

Gabriel, extremamente devoto, dedicou-se à religião com o mesmo afinco e responsabilidade que manifestava em seu trabalho e no trato com o mundo. Viveu sempre com dignidade, cercado do respeito de seus irmãos de fé. Anotou:

Gabriel dos Santos primeiro crente do Vinhateiro no ano de 1926 no tempo da perseguição e luta Corria muito perigo um crente naquele tempo Gabriel dos Santos venceu todas as dificuldades. Gabriel falou no culto na casa de Marta no dia 4 de fevereiro de 1968. A pedra da igreja do Campo Redondo foi fundada no dia 26 de setembro no ano de 1935. A igreja batista do Cabo fundada no Arraial foi no ano de 1922 A igreja batista da Aldeia foi fundada no dia 16 de agosto de 1953 A igreja batista de Cabo Frio foi fundada no dia 9 de abril de 1961. As igrejas passaram em perseguição de 1913 até 1930 O povo crente passava muito perigo As igrejas eram apedrejadas Os pregadores eram cercados no caminho Os crentes eram odiados Os encrenqueiros andavam procurando os crentes pra zombar deles Fazem mal Os crentes daqueles tempos só podiam agüentar por meio de um milagre Atravessei o perigo 10-9-66. A 1ª igreja batista foi fundada no Brasil no ano de 1616 com muita dificuldade. Eu fiz comunhão na igreja batista de São Pedro no dia 29 de setembro de 1968. Gabriel dos Santos pregou o Evangelho na casa de Justino Cedro no dia 8 de abril no ano de 1944. O primeiro Evangelho pregado no Brasil foi no dia 26 de abril de 1500 Pregou a 1ª missa no descobrimento do Brasil em 1500.


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O padre Antônio começou a fazer curas e milagres no dia 7 setembro de 1947.

Datou a criação de alguns enfeites para o embelezamento da Casa da Flor, bem como compras de objetos para essa tarefa e ainda o recebimento de presentes para o mesmo fim:

Naná me deu a corrente de metal no dia 6 de agosto de 1952. Marta me deu uma andorinha no dia 26 de janeiro de 1967. A rosa de pedra foi feita no dia 29 de Janeiro de 1965. No dia 27 de abril de 1961 eu comprei uma jarra de vidro em Rubem por 150 cruzeiros. No dia 1 de fevereiro comprei umas 3 borboletas a Abílio por 300 cruzeiros 1963. Gabriel comprou uma manilha no dia 30 de junho de 1961. Eu comprei uma sopeira a Abílio no dia 6 de setembro de 1961. Eu fiz o ramo do retrato no dia 24 de junho de 1961. Essa flor de barro que tem na parede da casa por fora foi feita no dia 24 de junho no ano 1964 Gabriel fez lembrança. Guilherme me deu um pedaço de concha no dia 12 de março de 1964. Os homens de São Paulo tiraram o retrato da casa de Gabriel dos Santos no dia 14 de janeiro no ano 1968 Tomou nota de tudo quanto tinha Me disse que essa casa não pode desmanchar que é obra da natureza 14-1-68. Gabriel botou 3 garrafões na beira da casa no dia 18 de novembro de 1976. Gabriel comprou 1 prato a Chico Sá no dia 9 de fevereiro de 1956.


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Gabriel comprou a pedra mármore a Paulino dia 9 de março 1977 2 contos. Vitória me deu um vaso de vidro no dia 12 de dezembro de 1955. Gabriel fez trabalhos de azulejos que comprou no dia 21 de novembro de 1975. Gabriel trouxe uma pedra do Saco do Negro no dia 28 de dezembro de 1957. Gabriel fez o vaso que tem o garrafão no dia 8 de novembro de 1976. Gabriel botou 3 pratos no alto no dia 12 de maio de 1978. Gabriel botou vidro de carro em cima da casa no dia 19 de junho de 1978 Botou as garrafas na manilha dia 20-6-78 Botou azulejo na cama dia 11 de julho 78. Osnélio filho de Cocota e João Araújo nasceu em 1936 Tinha 22 anos de idade quando deu umas lâmpadas a Gabriel dos Santos Tinha 66 anos quando recebeu esses presentes 21-10-58. Uma moça do Cabo me deu azulejo no dia 28-5-78. Guilherme filho de Maria Albertino me deu coração de pedra a 13 de maio de 1955. Naná me deu um passarinho de vidro no dia 17 de junho de 1963.

Dados históricos importantes estão presentes nos cadernos, o que mostra o cuidado de Gabriel com a preservação da história. O mais espantoso é que ele não tinha rádio nem acesso fácil aos meios de comunicação. Guardava-os de memória ao saber deles em suas caminhadas pela região e, depois, escrevia-os cuidadosamente:

O primeiro ordenado mínimo começou no dia 6 de julho com 50 cruzeiros em 1954. Getúlio Vargas foi presidente do Brasil no ano de 1930 Fundou o Instituto no dia 10 de novembro de 1937. A inauguração da capital de Brasília foi no dia 21 de abril no ano de 1960 no governo de Juscelino Kubitschek Essa capital foi profetizada por dom João em Goiás em 1708 no tempo da colônia brasileira. A primeira capital federal foi na Bahia em 1549 Depois passou pro Rio de Janeiro em 1763 A terceira em Goiás em 1961.


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A primeira escola do Rio de Janeiro foi uma casa de palhoça feita pelos jesuítas no ano de 1613. No dia 18 de julho de 1967 Castelo Branco foi pro Ceará de avião Morreu na viagem Ele nasceu em 1900. A cidade de Cabo Frio foi fundada no dia 13 de novembro no ano de 1615 e o convento e a igreja de São Francisco foi feita no dia 2 de agosto de 1680. As leis do cativeiro no Brasil começou no tempo da colonização no ano de 1532 e acabou depois No dia 13 de maio de 1888 a Princesa Isabel libertou os negros. A igreja velha da Aldeia foi feita em 1723. A primeira vila do Brasil foi 22 de janeiro de 1523 por Martim Afonso de Souza em São Vicente. A reforma agrária foi fundada no dia 12 de março no ano de 1964 no governo de João Goulart assinada no Rio de Janeiro às 4h da tarde No dia 1 de abril houve um levante João Goulart renunciou foi pro Rio Grande do Sul Houve uma grande falta de gêneros para o povo 1 de abril de 1964 O marechal Castelo Branco tomou posse de presidente da República no dia 15 de abril de 1964.


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Roubaram uma santa da Igreja Católica de Cabo Frio no dia 20 de outubro no ano de 1960 Os três ladrões foram presos Essa santa apareceu no ano de 1721. O Papa de Roma morreu no dia 3 de junho no ano de 1963. João Goulart foi pro lugar de governador da República em Brasília no dia 7 de setembro de 1961 porque Jânio Quadros renunciou ao poder com 7 meses de governo Fugiu no dia 25 de agosto de 1961. Os comunistas foram expulsos no Brasil a primeira vez no governo de Getúlio Vargas em 1935 Passou-se 29 anos no dia 1 de abril de 1964 no governo de João Goulart segunda vez o comunismo no Brasil foi derrotado e preso e morto João Goulart fugiu O aperto foi grande no Brasil inteiro. Guerra na Alemanha a primeira começou no dia 4 de agosto no ano de 1914 e acabou no dia 11 de novembro no ano de 1918 Alemanha assinou. Alemanha perdeu jogo com Brasil no dia 27 de junho de 1974. A Independência do Brasil fez 151 anos no dia 7 se setembro de 1973. A ponte de Niterói pro Rio começou no dia 25 de novembro no ano de 1969 No dia 4 de março fez a inauguração no ano de 1974 no Governo de Emílio Médici Brasil. A perseguição do comunismo no Brasil começou no dia 1 de abril de 1964 Foi muita gente presa outros exportadas outros foram mortos outros fugiram As prisões ficaram cheias João Goulart foi embora pro Rio Grande do Sul O sindicato caiu Acabaram perseguindo os sócios Foi uma luta perigosa em 1 de abril de 1964. Caiu um zepelim no Cabo é americano no tempo da guerra da Alemanha no dia 16 de janeiro no ano de 1944. Getúlio Vargas suicidou-se a 24 de agosto de 1954 Foi feito. Melhoramentos na região, como a chegada de estradas, da luz elétrica, a fundação de escolas, foram descritos com detalhes: A máquina abriu a estrada no Morro da fazenda em frente da casa de Gabriel no dia 26 de maio de 1976 Pra lotear. A estrada de ferro começou de Iguaba para Cabo frio no ano de 1934 e chegou no Vinhateiro no dia 21 de março no ano de 1936 A inauguração foi no dia 11 de setembro no ano de 1937 No dia 30 de agosto de 1965 começou a arrancar de Cabo frio os ferros Acabou- se a estrada de Maricá 30-8-65. A estrada asfaltada começou a fazer no dia 1 de outubro no ano de 1953. A avenida Beira Mar de Cabo frio fundada no dia 7 de março de 1967.


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A escola de Porto do Carro foi fundada no dia 25 de julho de 1967. A salina Maracanã foi fundada no ano de 1900 No ano de 1936 José Maria tomou posse dela. A primeira luz elétrica veio no Vinhateiro no dia 4 de outubro no ano 1961 Acendeu no dia 26 de outubro de 1961 Passou-se 4 anos depois resolveram botar no Porto do Carro de Cabo Frio no Governo Castelo Branco No dia 4 de janeiro acendeu a luz em 1966. O encanamento de água chegou no Vinhateiro no dia 20 de abril de 1961. A ponte de Cabo Frio foi feita no ano de 1926. A igreja velha de São Pedro começou a consertar no dia 19 de novembro de 1972. No dia 14 de novembro teve luz elétrica no Vinhateiro Prefeito Waldir Silva Lobo 14-11-65.

Acidentes, tragédias e temporais na região eram assinalados: No dia 11 de março de 1972 deu um temporal aqui de trovoada Caiu um raio no Baixo Grande. No dia 3 de dezembro de 1966 vinha um carro com grande velocidade na curva do Vinhateiro matou o chofer perto da casa de Nelson Coelho 3-12-66.


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Jairo ficou louco da idéia no dia 11 de novembro no ano de 1966 No dia 13 ele veio pra casa todo escangalhado e ferido A assistência trouxe de Cabo Frio. A pedreira de Hugo explodiu no dia 3 de março no ano de 1961. No dia 27 de setembro de 1913 deu um tufão de vento Um vapor na praia que vinha do Norte carregado afundou. No dia 22 de março no ano de 1930 deu um temporal arrebentou uma bomba d’ água que arrasou a terra. Outubro de 1960 fez 30 dias de nordeste vento Faltou água nos poços acabou tudo O povo passou mal Pedro Tavares negou água ao povo. Na fábrica da salina Perina no dia 13 de dezembro no ano de 1963 Explodiu um tanque de ar Quebrou todos os aparelhos de máquina de escrever e machucou dois homens. No dia 24 de outubro no ano de 1972 deu um tremor de terra em Cabo Frio. No dia 4 de maio de 1974 tomaram a pasta de dinheiro de Nelson Coelho de noite na estrada. A farmácia de Divaldo pegou fogo em Cabo Frio no dia 14 de janeiro no ano de 1960 Começou a queimar às 6h da tarde acabou às 9h da noite Houve muito prejuízo.

Acidentes em outras regiões do país também estão registrados: No ano de 1966 10 de janeiro deu um temporal de chuva que nunca deu no Rio de Janeiro que botou a cidade no fundo Morreu muita gente Até os defuntos saíram da cova as águas botaram pra fora da terra 10-1-66. Pegou fogo no Circo Americano em Niterói no dia 17 de dezembro no ano de 1961. No norte do Brasil em março de 1960 deu um temporal no Ceará que botou Fortaleza a capital do Ceará no fundo em 1960 março.

Gabriel Joaquim dos Santos, na narrativa de sua vida, nesse arquivo de recordações, voltado para si mesmo, falando de si e dos outros, ele, humildemente, refletiu sua época, o seu modo de viver e o de sua comunidade, mostrou valores morais e éticos, preocupações sociais, as relações afetivas, os problemas e realizações, enfim, marcou, sem sombra de dúvida, sua presença no mundo. Foi feito.


foto: Alzira Reis

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capĂ­tulo IV Uma tentativa de compreensĂŁo


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“A criatividade é o fruto da intuição, “A criatividade é o fruto da intuição, da imaginação, da paixão e de um sólido bom senso 1...”

da imaginação, da paixão e de um sólido bom senso...” 13

Analisar ou classificar a Casa da Flor é tarefa complexa, já que ela foge totalmente dos padrões convencionais do estudo da arquitetura e da arte; não há, nela, um estilo dominante, reconhecido como norma. Dizer que é o mais belo exemplar de arquitetura espontânea ou fantástica, no Brasil, é pouco, para qualquer um que se debruce sobre o assunto para pensar. Na verdade, ela e seu criador seriam interessantes temas de estudo também no campo da antropologia, da psicologia, da psicanálise, da história, da sociologia, da linguística. Podemos começar procurando entendê-la como fenômeno técnico, como sublinha o antropólogo Marcel Mauss, já que “fabricada e pensada em relação ao seu fim físico de proteção e abrigo”14 para, em seguida, observá-la como fenômeno artístico, em relação à busca de sensação estética. Gabriel, na primeira fase do seu trabalho – dos 20 aos 31 anos de idade – dedicou-se à construção de um abrigo para morar, sem nada de ornamental, mas já elaborado para servir a seus desejos e necessidades mais fortes. Num claro impulso de individuação, de crescimento, ele se retirou do lar da família e se isolou, à procura de seu próprio caminho. Todo seu empenho, nesses primeiros anos, foi para erguer uma casa que tivesse o essencial, que lhe garantisse apenas segurança e conforto. Numa primeira observação, é possível identificar que, mesmo sem conhecimento algum de arquitetura, tal como um animal que usa o instinto para resolver os problemas de iluminação e ventilação de sua toca, implantou seu refúgio coincidentemente com os eixos básicos “x-y” (norte-sul/leste-oeste). As duas portas de entrada, como enfatiza a professora e artista plástica Maria Augusta Rodrigues,15 ficaram direcionadas para o leste, para o nascer do sol, e, simbolicamente, para a vida. Esses dois pontos de entrada da luz solar, continua ela, mais a janela do depósito – voltada para o oeste, para o poente – colocada equidistante dos dois, têm como consequência uma distribuição equilibrada da luz. Eles iluminam o ambiente, o interior da habitação, mas protegem a câmara – colocada exatamente entre as duas portas – que é o lugar de dormir o lugar protegido onde ele se recolhia para descansar, o lugar mais escuro, próprio para o repouso. A disposição das portas para o lado leste favorece a ventilação da casa, conservando-a mais fresca durante a noite, e, beneficiando-se, inclusive, dos ventos dominantes na Lagoa de Araruama. 13 BHATTI, S.S. Bhoulbloulaiyan, um Labyrinthe Indien. Págs.18. 14 MAUSS, Marcel. Manual de etnografia. 15 Em palestra.


foto: Alzira Reis

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Interessante assinalar ainda que, se traçássemos uma linha acompanhando o caminho percorrido desde o início da escadaria até o local da cama onde ele dormia, teríamos delineado a forma de uma espiral. Como o caracol, Gabriel, intuitivamente, buscava proteção e conforto no fundo mais escuro da sua casa/concha. Se nos detivermos, com Jean Dethier em “Arquiteturas de terra ou o futuro de uma tradição milenária”,16 na discussão sobre a sabedoria das construções de terra (a taipa e o adobe são os dois processos principais), vamos ver que, utilizando esse material, arrancado gratuitamente da natureza, o homem do povo consegue “adaptá-la em múltiplas variações, às condições peculiares do meio social e econômico, geográfico e climático”. Por interesses econômicos, essas tecnologias são olhadas, porém, pelas elites – que privilegiam o concreto, o aço, o alumínio – como sinônimo de pobreza, e as virtudes e a inteligência de seu uso são desprezadas e não reveladas, principalmente aos que mais precisam conhecê-las: engenheiros e arquitetos. As tecnologias tradicionais da terra são, no entanto, universais, e um terço da população mundial chega a se utilizar delas, tanto em regiões quentes e secas quanto nas chuvosas e úmidas. “Os métodos de utilização da terra permitem a não dissociação da materialidade e espiritualidade do ato de construir”, comenta Dethier, “pois esse material possibilita a simultaneidade das ações construtivas e artísticas”. Utilizada também para o revestimento das paredes, a terra crua proporciona ao homem o exercício da criatividade individual em sua decoração. Em muitos países do mundo – não só, mas principalmente no continente africano – o tratamento das fachadas, executado com evidente prazer por segmentos tradicionais da população, aparece como verdadeira linguagem plástica, “abstrata, geométrica, simbólica e figurativa”. Assim, “a arquitetura torna-se, ao mesmo tempo, a expressão de um profundo impulso criativo e um espetáculo de prazer”. Detenhamo-nos, apenas sobre esses tópicos do belíssimo estudo acima citado, para que nos ajudem a entender, um pouco mais, a produção do nosso Gabriel: sua casa, construída de pau-a-pique, técnica ainda muito usada pelo homem do meio rural brasileiro, e que felizmente começa a ser utilizada por alguns arquitetos – seus bancos e estantes de alvenaria, sensualmente aplicados, sua bela e profusa ornamentação, “organicamente associada às paredes, com total unidade de matéria”, bastam para situá-lo num contexto universal e identificá-lo como legítimo representante do espírito africano. “A arte não deve ser anunciada, ela deve surgir quando não a esperamos, como uma surpresa”.17 Tentaremos entendê-la, a seguir, como fenômeno estético. Depois de levantada a casa, começou para seu autor a segunda fase do trabalho: interminável, pois a ela dedicou, até morrer, 62 anos de sua longa vida. Foi para ele, sem dúvida, a etapa mais gratificante, de muita fruição, pois, como ensina Aristóteles, há no objeto estético um elemento de contemplação, de satisfação, fora da necessidade imediata, uma alegria sensual. 16 DETHIER, Jean. Arquitetura de terra ou o futuro de uma tradição milenária. Pág. 33. 17 DUBUFFET, Jean. Texto na Exposição Dubuffet e l´art brut. Rio, 1933.


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Prazerosa e obsessivamente, Gabriel explorava os arredores como um garimpeiro, sempre em busca de mais um colorido pedaço de porcelana quebrada em algum acidente doméstico, de algum caco de vidro especial para servir de pétala para uma sempre-viva, de algumas bonitas pedrinhas para compor mais um mosaico. Nosso artista, segundo o termo proposto pelo antropó­ logo francês Claude Lévi-Strauss – com o objetivo de nos ajudar a entender os mecanismos pelos quais operaria o “pensamento selvagem” – é um “bricoleur”, isto é, aquele “que executa operação que consiste em remendar coisas ou fazer objetos com pedaços de outros objetos”.18 Caracteriza o bricoleur o fato de “operar com materiais fragmentários já construídos, ao contrário do engenheiro que, para dar execução ao seu trabalho, necessita de matéria prima”. Aquele, continua Lévi-Strauss, utiliza meios e alternativas que evidenciam a ausência de planos pré-estabelecidos e não obedecem às normas e processos adotados pela técnica. O bricoleur, afirma ele ainda, é capaz de executar grande número de tarefas diferentes, mas, ao contrário do técnico, ele não subordina cada uma delas à obtenção de matéria-prima e de ferramentas. Ao contrário, ele usa da liberdade de sua fantasia para arranjar-se com o que consegue encontrar. Gabriel, como já vimos, por não estar preso a normas, recolhia os materiais pelo que podiam servir. Com esses elementos restritos que possuía, manipulando os mesmos materiais, ele fazia e refazia as combinações, obrigado a usar, sempre e sempre, a imaginação. Grande variedade na composição desses conjuntos se observa. Os elementos da decoração iam sendo combinados pelo artista, à procura da simetria, do equilíbrio na distribuição das massas, da harmonia de cores e formas, à procura da beleza. Não importava, para ele, a destinação primitiva dos elementos usados, o que o interessava era o resultado final, a totalidade, cada um dos elementos escolhidos ficava subordinado a ela. Procurava Gabriel, sempre, novos significados nesses elementos que iam sendo incorporados ao conjunto: os azulejos, as lâmpadas, as garrafas foram sendo aplicadas com outras intenções, capazes de expressar o que ele tinha em mente e que iam produzir “resultados brilhantes e imprevistos”, marcando assim sua produção com traços particulares. Como muito bem explica Lévi-Strauss “a poesia do bricoleur lhe vem de que não se limita a cumprir ou executar; fala, não somente com as coisas, como também, por meio das coisas, contando pelas escolhas que faz entre possibilidades limitadas, o caráter e a vida de seu autor. Sem jamais completar seu projeto, o bricoleur põe-lhe sempre algo de si mesmo”. 18 LÉVI-STRAUSS, Claude. O pensamento selvagem. Págs. 37, 38 e 42.


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Exemplo maior de uma arquitetura visceral, a Casa da Flor configura-se como a expressão simbólica do artista, é altamente indicativa de como ele pensava o mundo, é sua autobiografia, não escrita, mas contada e expressa na massa e na pedra. É a sua história, como ele mesmo dizia, um relicário afetivo composto pelos detritos rejeitados por outros, que ia marcando o dia-a-dia da sua existência. Cada pedacinho da decoração lembrava-lhe algo ou alguém, cada um envolvia uma recordação, doado ou achado durante a eterna peregrinação. Cada elemento, particularmente destinado, cada um deles, pensado e aplicado isoladamente, fruto de uma elaboração particular. “Por debaixo da crosta de adaptação ao cotidiano utilitário, tantas vezes árido e desfigurado por ansiedades estéreis, corre o rio perene de onde brotam as fantasias criativas da alma”.19 Em termos de arquitetura, a obra de Gabriel possui uma qualidade ímpar: a perfeita integração ao meio ambiente. Ela se encontra plantada harmoniosamente em platô natural, elevado aproximadamente 7m sobre o nível da rua, sítio escolhido com inteligência e sensibilidade. Não se sobressai à natureza ao redor, não a agride. Ela se funde naquele espaço, não somente pela forma, mas também pelas cores e materiais do próprio ambiente. As cores da terra, da vegetação, das pedras, misturam-se naturalmente com o material aplicado. Por força de um mimetismo singular, de alguns ângulos, as flores de pedra parecem mesmo mais algumas flores do jardim natural, agreste e muito colorido, ao redor, e a própria casa, flor maior, desabrochada e linda, naquele campo.

19 PELEGRINO, Hélio. Circo, Mito, Noite. Jornal do Brasil. 18/11/1987.


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Percebe-se também, com toda evidência, uma intenção dramática por parte do autor da obra, que, como um excelente diretor de cena, ou como verdadeiro representante do barroco, conduz a nossa emoção, num crescendo, mansamente, desde a chegada pela velha estradinha, quando se avista, por baixo, a construção. Sobem-se os degraus, largos e baixos, lentamente, para melhor apreciar as esculturas do jardim. Terminada a escadaria, já em terreno plano, aumenta o número de enfeites. Surgem os bordados das paredes e o muro, bizarro, diferente, que apreciamos como numa galeria de arte. Caminha-se devagar, tantas as surpresas. Contorna-se o corredor e, a seguir, um lugar para descansar, para respirar, para digerir o que foi visto: os banquinhos de pedras, incrustados na parede e no muro. Chega-se à porta e a entrada na sala vem carregada de dramaticidade: depois dos olhos se acostumarem à escuridão, começam a aparecer, vagarosamente, como num passe de mágica, as paredes coalhadas de enfeites, centenas de cacos coloridos aplicados na decoração luxuriante. O efeito da passagem lenta da luz intensa do lado de fora para a penumbra no interior e, em seguida, para a percepção dessa festa de cores e reflexos, formas e recortes, é de cortar a respiração. Gabriel provavelmente sabia, ao afirmar que não desejava a luz elétrica em casa, que a magia conseguida por esse truque de cenógrafo estaria perdida com a chegada brusca e instantânea da luz, trazida pelo apertar de um botão. O depoimento de Gabriel sobre o momento mágico que desfrutava ao acender a luz do lampião, à noite, é significativo. E poético: De noite, acendo um lampião, me sento nessa cadeira, ó que vida, ó que alegria pra mim, ó que alegria nessa cadeira. Quando eu acendo a luz e vejo tudo prateado de noite, fico tão satisfeito! Tudo caquinho transformado em beleza! Eu mesmo faço, eu mesmo fico satisfeito... Me conforta...

Para o filósofo Gaston Bachelard, existe um parentesco entre a lamparina que vela e a alma que sonha. Para ele, a chama determina a acentuação do prazer de ver, algo além do sempre visto. As


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imagens da chama contêm um símbolo de poesia. E conclui: Todo sonhador inflamado é um poeta em potencial. Toda fantasia diante da chama é uma fantasia admiradora.20 “É talvez o que o fantástico significa: ser tão excitante ou estranho, como ser indescritível”.21 Poucas pessoas têm o privilégio – e a coragem – de construir para si a casa ideal, nascida de suas ideias, fruto da elaboração do consciente e da manifestação do inconsciente, a sua casa, verdadeiramente singular. Ao analisarmos a Casa da Flor, enquanto fenômeno técnico/artístico, vemos que, para Gabriel, não havia uma real distinção entre a vida e a arte, pois essa habitação era, ao mesmo tempo, um abrigo e uma obra de muita sofisticação plástica, à qual se dedicava a cada dia um pouquinho. Para o nosso artista intuitivo, a arte fazia “parte do fluxo da vida, era mais um respirar natural do que uma atitude de exceção”. Ele próprio se referia à sua casa como sendo uma obra da natureza uma casa franca, sem mistérios; o segredo ali é o ar livre. Gabriel Joaquim dos Santos, criador e solitário ocupante da Casa da Flor, conseguiu, assim, em vida, integrar fantasia e realidade, pôde materializar sua emoção e habitar literalmente dentro do seu sonho, confirmando Gaston Bachelard, quando diz que “a casa é uma das maiores (forças de integração) para os pensamentos, as lembranças e os sonhos de um homem”.22 Continuando, escreve Bachelard: “A casa abriga o devaneio, a casa protege o sonhador, a casa permite sonhar em paz”. Inspiração é a ação de aspirar o ar. Para os gregos, é uma insuflação divina, o ser possuído pelo vento, o ser animado de um sopro divino no coração ou no “espírito-empnéusis”.23 Gabriel, ao explicar que não aprendeu com ninguém tudo que fez para o embelezamento de seu lar, disse que tinha aprendido no ar, aprendido no vento. Não conseguia explicar o que acontecia nos seus momentos de criação, atribuía-o a Deus, dizia que havia um mistério em sua vida. Muitos artistas se referem a esse momento como uma centelha divina que os atingem, algo que lhes é soprado ou que vem do reino do sonho, do centro da alma, com explicou Garcia Lorca. Gabriel, sensitivo, intuitivo, antenado, mediúnico, captava as mensagens, via as imagens e, em seguida, as materializava. Místico, em conexão direta com Deus, estabelecia a ligação divino/ humano. Entregue, obedecia a essa ordem que lhe chegava do alto, é o religare, origem da palavra “religião”. Para ele, os sonhos e esses momentos de inspiração quando acordado, determinantes para a criação, não lhe pertenciam, pois ele atuava apenas como um canal, o patrimônio era da humanidade, a patente é de todo mundo. Para ele, a casa era mais do que uma moradia, um lugar que o protegesse: ele vivia num templo, do qual se dizia o zelador, onde reverenciava Deus, onde seu espírito religioso o aproximava do divino, onde cada flor era uma mensagem de adoração ao Senhor!

20 21 22 23

BACHELARD, Gaston. A chama de uma vela. Editora Bertrand Brasil. Pág. 11 e 19. SCHUYT, Michael; Elffers, Joost; Collins, George R. Fantastic Architecture – Personal and Exccentric Vision. Pág. 8. BACHELARD, Gaston. A chama de uma vela. Pág. 26. PEREIRA, Cristina da Costa. A inspiração espiritual na criação artística.


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O homem e a obra se confundem; impossível diferenciá-los. Sua morada é um organismo vivo, um corpo, um coração. Na verdade, ele tinha consciência da metamorfose, da simbólica transmutação de sua casa, objeto material, inanimado, em um organismo vivo, uma casa de cacos transformada em flor. Numa poesia escrita, em 1947, para uma moça que esteve hospedada com a família, ele usa uma imagem poética, na qual mostra essa relação: O primeiro que encontrou meu coração ferido Abra a folha e vereis um viola decidida. Uma viola decidida pra quem sabe tocar. Abra a folha e vereis uma sereia do mar. Uma sereia do mar que no mar ela faz morada. Abra a folha e vereis uma menina formada. Uma menina formada que nunca conheceu o amor. Abra a folha e vereis meu corpo virou-se em flor.

Também outros construtores de uma arquitetura informal, já que criaram formas ditadas por uma fantasia liberta de modelos, como afirma Michael Schuyt em Arquitetura Fantástica,24 foram considerados como excêntricos por seus vizinhos e tornaram-se ermitãos, optaram por viver isolados, já que o mundo que os cercava não podia entendê-los. Encontraram assim uma maneira natural de

24 SCHUYT, Michael; Elffers, Joost; Collins, George R. Fantastic Architecture – Personal and Exccentric Vision. Págs. 7 e 66.


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viver, puderam expressar seus pensamentos livremente, seguir seus desejos e criar à sua maneira. Seus sonhos tornados realidade na pedra, na madeira, nos cacos, no cimento e nos resíduos industriais servem como prova de que é possível conviver concretamente com a poesia. Irmão espiritual de Gabriel, outro grande artista e mestre da arquitetura fantástica é o modesto carteiro Joseph Ferdinand Cheval (1836-1924) que, no sul da França, em Hauterive, também inspirado em sonhos, construiu para si um enorme palácio – o Palácio Ideal – formado de torres, grutas e labirintos, com pedras, conchas, concreto e vidro e que, ainda, nos últimos dez anos de sua vida, levantou um túmulo – para si mesmo – no cemitério local. Como Gabriel, Cheval orgulhava-se de sua obra, que dizia ser o fruto da coragem de um homem que fez tudo sozinho. O místico Cheval tornou-se o ídolo do surrealismo e tem hoje sua obra incluída na lista dos monumentos históricos nacionais franceses.25 Raymond Isidore, em Chartres, na França, com retalhos de cerâmica, revestiu inteiramente, formando belos desenhos de flores, igrejas e animais, as paredes de sua casa, de uma capela e de uma tumba (Tumba dos Espíritos), além do chão do jardim, e que nos mostra como a sensibilidade poé­ tica pode estar presente num homem simples do povo, um simples empregado do cemitério local. Com o mesmo tipo de material e mais pedras e conchas, o leiteiro Robert Vasseur, em Louvreis, na França, cobriu as paredes, o chão da casa e o jardim com mosaicos, em composições geomé­ tricas e abstratas de grande beleza plástica. É exemplar ainda a obra de Nek Chand26 – O Jardim de Pedra – criada por um operário de construção e reparação de estradas, em Chandigarh, na Índia, que imaginou construir um reino fantástico, saído de seus sonhos e dotado de vales e montes, quedas d’água e pontes, de figuras cobertas por mosaicos. Esse homem simples, de um poder de imaginação muito forte, trabalhou sempre sozinho, durante oito anos, sem que houvesse feito uma planta ou projeto. Manteve seu reino/escultura por algum tempo escondido de olhares indiscretos, chegando a cercá-lo com um muro de barris de óleo, “guardas silenciosos do reino desconhecido”. Tanto quanto Gabriel, Nek Chand sabia da beleza intrínseca dos materiais mais humildes, mesmo os rejeitados; também ele os recolheu – as pedras, pedaços de cimento – com uma paciência infinita e os reciclou “inovando e improvisando constantemente; também ele seguiu infalivelmente a natureza”, e, mais ainda, coletou plantas abandonadas, plantando árvores e arbustos, de uma maneira que faria “inveja aos melhores paisagistas”, na palavra de S.S. Bhatti, arquiteto e professor. Este comenta ainda que o iletrado, naturalmente impregnado da experiência coletiva e da energia criadora dos seus ancestrais, possui, no mais alto grau, as qualidades da intuição e da imaginação. Outra identificação que liga os dois artistas visionários – Gabriel e Neck Chand – é que ambos deram uma dimensão nova ao conceito de arquitetura orgânica, criada por Frank Lloyd Wright, segundo o qual, quando se utilizam “materiais disponíveis com abundância” no local da construção, o “produto acabado torna-se parte integrante do sítio, ao invés de ser apoiado sobre o sitio”. Ao 25 SCHUYT, Michael; Elffers, Joost; Collins, George R. Fantastic Architecture – Personal and Exccentric Vision. Págs. 184 e 187. 26 BHATTI, S.S. Bhoulbhoulaiyan, un Labyrinthe Indien. Pág. 15.


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fazerem uso dos “materiais de recuperação” estariam, por conseguinte, elevando esses elementos ao nível de um material culto, isto é, superando sua característica de imprestável ou inútil, para o de uma nova, absolutamente oposta. Ainda como semelhança entre as duas obras, a teatralidade, concretizada no conjunto arquitetô­ nico de Chandigarh em sua construção em diferentes planos, nos quais o visitante, para apreciá-la, é obrigado a caminhar devagar, numa direção pré-estabelecida, a se curvar ao passar de um plano para o outro, a fazer, volta e meia, uma pausa, para descansar. Capítulo I “É perfeitamente claro em suas formas, mas totalmente obscuro no significado, porque representa formulações altamente subjetivas e frequentemente místicas”.27 Por fim, pensemos no arquiteto catalão, Antoni Gaudí (1852-1926), o grande mestre das formas orgânicas e fantásticas, cujo nome é sempre associado ao de Gabriel. Mundialmente famoso, Gaudí também muito amou os mosaicos de cacos de cerâmica colorida e criou uma arquitetura de caráter escultórico, deixando em Barcelona prédios belíssimos, como a Igreja da Sagrada Família, o Parque Güell e a Casa Mila. O estilo de Gaudí, um dos pais da arquitetura contemporânea, as “formas orgânicas cristalizadas na cerâmica e nas esculturas”, o uso apaixonado dos cacos, o amor à natureza, na qual ele se inspirava, o fervor religioso, o misticismo, o celibato, tudo nos remete a Gabriel. Dois espíritos em sintonia, um, artista com sólida formação erudita, em contacto com as obras dos grandes mestres do mundo, de todas as épocas; o outro, artista que viveu isolado de tudo, despossuído, autodidata, mas que construiu como Gaudí uma obra belíssima, impregnada de poesia e humanidade. O que evidencia, sem sombra de dúvida e que está dentro do homem essa fonte de energia, que permite transformar a matéria bruta em beleza, nesse ato mágico de dar vida e sentimento ao inanimado, de estabelecer uma corrente de emoção, entre autor, matéria e observador, e que essa capacidade de criar nasce com o artista, não se aprende. Independe, para o aparecimento da centelha da criação num ser humano, de ensino institucionalizado, de sua formação cultural, de sua cor, da língua que fala, da civilização a que pertence. A obra de arte é, portanto, “uma emoção humana cristalizada e, embora silenciosa, ela transmite a ideia de seu criador a quem a contempla”.28 Em muitos lugares no mundo, os arquitetos visionários, ou “inspirados”, como queria o surrealista André Breton, em geral pessoas iletradas ou semiletradas, isoladas, porque vítimas de um olhar hierarquizante, viciado e preconceituoso, trabalham obsessivamente, às vezes por décadas, sem nenhum conhecimento de arquitetura, seguindo sua intuição, concretizando seus sonhos e visões, materializando fantasias, desligados de compromissos com regras acadêmicas ou modelos padronizados. Suas criações instigam pela originalidade, pela ingenuidade e pela pitada de loucura de seus autores, como enfatizou o historiador Michel Vovelle. 27 SCHUYT, Michael; Elffers, Joost; Collins, George R. Fantastic architecture – personal and excentric vision. Inc. Publishers. 28 MARTINS, Saul. Arte Popular Figurativa. Pág. 14.


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Gabriel, com sua única e poética obra, inclui-se no seleto grupo dos “construtores do imaginário”. Sua arquitetura é fantástica, insólita, orgânica... Necessário se torna introduzir ou aprofundar a discussão sobre essa arquitetura no Brasil, tema que já vem despertando a atenção de críticos e teóricos em todo o mundo. Indispensável iniciar-se um movimento que seja a semente de um novo olhar, um olhar despido de preconceitos, para as ricas, tão esquecidas e pouco valorizadas manifestações do homem simples, entre as quais sobressai sua surreal e incomum arquitetura. Não sei o que tenho eu com os cacos. Quebra um prato, eu fico tão contente que me dê um caco, depois eu transformo o prato numa flor. Fico tão satisfeito.

Que dizer ainda sobre a opção de Gabriel pelos cacos? Da metamorfose do lixo em produto artís­tico, da arte marginal que ele tão bem representa? De seu trabalho de vanguarda, isolado num recanto da América do Sul, enquanto na Europa, no grande polo irradiador de movimentos artísticos, à mesma época, nas duas primeiras décadas do século XX, artistas de renome revolucionavam os conceitos de arte até então vigentes, transformando o objeto inanimado em material precioso para a criação artística? De sua função arquetípica, qual verdadeiro alquimista, que transformava o feio, o sujo, o estragado, em flor, flor/cálice, símbolo maior da ligação do humano com o sagrado? Gabriel, com esse comportamento, rompeu com o preconceito firmemente arraigado de que o lixo, sinônimo de sujeira, podridão, imundície, deve ficar bem longe, desaparecer, morrer. Escondemos, com nojo, esse material impuro. Se aprofundarmos a rejeição maciça pelo lixo, veremos que, simbolicamente, queremos esconder nossas culpas, nossos erros, nossa fraqueza, nossa sombra, e não pensar na morte. Ele, por sua condição social, negro que era, recupera sua gente jogada fora, escória de uma sociedade branca e cruel, e, ao mesmo tempo, cria, com esses restos, uma obra de inegável beleza. O acúmulo desordenado dos detritos derivados do lixo orgânico e industrial, em todo o planeta, e a dificuldade para a destruição desse material poluído e poluente é motivo de grave preocupação para o homem contemporâneo. Em todo o mundo, projetos de reaproveitamento desses restos têm sido criados para evitar o absurdo de o homem terminar soterrado pelo lixo produzido por ele mesmo. Biólogos e ecologistas estudam o assunto, educadores ambientais e sanitaristas procuram soluções, políticos preparam novas leis. Mobilizam-se os produtores de cultura, intelectuais se preparam para pensar soluções. Escritores abordam o tema, músicos criam melodias e artistas plásticos expressam suas ideias a respeito. É preocupação mundial! O homem do povo, sempre premido por grandes dificuldades econômicas e extremamente ligado às tradições de sua cultura, já tem incorporada a atitude de utilizar o que tem à mão, seja o material fornecido pela natureza ao redor como ainda as sobras de produtos industrializados, para criar toda espécie de utilidades de que precisa, desde a sua moradia até o brinquedo de sua criança. Simples sacos plásticos de leite servirão para fabricar uma sacola, um pneu de caminhão transforma-se em lata de lixo, um tubo de pvc vira uma flauta para o folião da Folia de Reis, retalhos


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de pano montarão uma encantadora bruxinha. Milhares de peças encontradas em qualquer feira ou mercado popular e nas casas de nossa gente mais simples reafirmam essa tendência, sempre presente na arte e no artesanato folclóricos. Nosso Gabriel, porém, com a revelação, em 1923, que resolvia o seu problema de obtenção do material, chegou ao topo, deu uma função mais nobre – a arte – ao emprego daquilo de que ninguém quer saber. A Casa da Flor nos aparece assim como uma solução poética para o desafiante problema de nossa era, e torna-se o símbolo da coragem, da determinação e criatividade neces­ sárias para superar os momentos de grave crise. “Os grandes artistas não buscam suas formas nas brumas do passado, mas sondam tão profundamente quanto podem o centro de gravidade recôndito e autêntico de sua época.”29 Naturalmente, os artistas plásticos sempre vão expressar o espírito de sua época, as angústias e aflições existenciais do tempo em que vivem. Desde o início do século XX, grandes nomes da arte começaram a utilizar objetos e detritos recolhidos no lixo como material para sua produção. Como Miró, pintor espanhol, que ia à praia para apanhar “coisa largadas por ali, à espera de que alguém lhes descubra a personalidade”, e reunia-os depois em curiosas composições que surpreendiam até a ele mesmo. Por volta de 1910, Picasso e Braque criavam colagens com entulhos. À mesma época, o pintor alemão Kurt Schwitter trabalhava com os detritos de sua lata de lixo e “conseguia reunir tudo com tanta seriedade e pureza que obtinha efeitos de estranha beleza”. Essa valorização, feita por ele, “dos materiais mais grosseiros ao nível da arte”, nada mais era do que “o velho princípio alquimista, segundo o qual o objeto precioso que buscamos será encontrado na matéria mais vil”. A ideia de que as coisas têm uma “alma secreta” e que, portanto, um objeto significa “muito mais do que o olho pode perceber”, foi compartilhada por muitos outros artistas que se orientavam, consciente ou inconscientemente, pelo velho conceito alquimista de que há um espírito dentro dos objetos inanimados. Pintores de renome como Paul Klee, Kandinski, Georgio de Chirico exploravam esse veio, o último deles chamando a atenção para o aspecto fantasmagórico do objeto comum, que “só os raros indivíduos veem nos seus momentos de clarividência e meditação metafísica”. Surpreendentemente, pelo isolamento em que sempre viveu, Gabriel faz parte desse grupo inovador para sua época, revolucionário, que elevou o concreto, a matéria, os materiais mais grosseiros à categoria de arte. É indispensável que se reafirme aqui que a Casa da Flor não é meramente uma manifestação do instinto, mas também o produto de um intelecto de gênio. Típico da cultura erudita é assumir-se como “proprietário exclusivo da racionalidade ou da sensibilidade”30 – voltando a Luís Felipe Baêta Neves. Pelos depoimentos do artista/filósofo, percebe-se que ele tinha consciência do valor de sua obra e de como ela é resultado de muita reflexão. Sabia o que estava procurando fazer: um monumento da pobreza. 29 Jaffé, Aniela. O simbolismo nas artes plásticas. In: JUNG, Carl. O homem e seus símbolos. Págs. 250, 253 e 254. 30 NEVES, Luis Felipe Baêta. O Paradoxo do Coringa e o Jogo do Poder/Saber. Pág. 25.


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É necessário conceituar a obra de Gabriel – a arquitetura e os depoimentos escritos por ele – como uma questão de patrimônio imaterial, questão essa muito discutida ainda, por envolver dúvidas. Nosso artista repetiu na construção de sua casa, com a técnica do pau-a-pique, uma tradição popular viva em muitos países do mundo. Ao mesmo tempo, sua tarefa de revestir as paredes com milhares de cacos, para embelezá-las, encontra eco em sua ascendência africana. O “saber fazer” o que ninguém fazia em sua comunidade de origem mostra a força inconsciente da tradição cultural de seus antepassados. A necessidade de preservar a história de sua época, como seus antepassados genealogistas o faziam, guardando-a, também, sob a forma de um diário, confirmam-no, sem sombra de dúvida, na categoria de patrimônio imaterial, notadamente universal. “Na palavra do poeta, na caridade do santo, na generosidade do herói, na ação do homem autêntico se cristaliza o penhor da grandeza e da beleza de cada ser humano”.31 Gabriel possuía, sem dúvida, a autenticidade, a honestidade inerente ao verdadeiro artista. Viveu mergulhado em si mesmo, nas profundezas de seu sonho e de sua fantasia, na reflexão sobre a vida e o mundo e projetou sua intensa luz interior em sua criação poética. Generosamente ele a oferece aos outros: – Essa casinha está aqui, a patente é de todo mundo. Sabia que ela não lhe pertencia, sabia que a cada um que a contemplasse caberia uma parcela de emoção, uma forma de participação. Sua casa nos aparece, assim, impregnada de sentimentalidade, é um verdadeiro ato de paixão: cada flor de pedra, uma oferenda; cada bordado, a expressão manifesta do amor, de um grande amor transcendental. A casa é o seu coração que pulsa ardente e amoroso, é um verdadeiro relicário afetivo. Falta abordar ainda o sentido simbólico da tarefa interminável de Gabriel Joaquim dos Santos, que se dava, simultaneamente, em dois planos distintos: externamente, no que é concreto, material, visível, a construção e o embelezamento da Casa da Flor; internamente, naquilo que é abstrato, espiritual e invisível, a construção de si próprio. Despedaçado em sua condição humana pelas circunstâncias do social e do racial, ignorado e isolado pela indiferença, com os cacos de si mesmo, ele juntou, amalgamou e levantou, ele se organizou, pedaço por pedaço, sem esmorecimento, a vida inteira, à procura da harmonia. Como se estivesse montando um gigantesco quebra-cabeça, no tempo e no espaço internos, pacientemente quebrou correntes que o tolhiam, colocou em ordem o caos, conseguiu a libertação do seu ser, alcançou a paz e a dignidade. Gabriel permanecerá, sempre, como exemplo maior da possibilidade, para o ser humano, da transcendência por intermédio da arte. Os belos ornamentos da Casa da Flor são, na verdade, as imagens do inconsciente de um homem lúcido e verdadeiro, os reflexos luminosos de uma alma poética e corajosa, são as flores que resul­ taram da boa digestão de tantos ingredientes dolorosos e difíceis, tudo caquinho transformado em beleza. Do fragmentado ao inteiro, a jornada dos raros... 31 PELEGRINO, Hélio. Circo, Mito, Noite. Jornal do Brasil 18/11/1987.


foto: Amelia Zaluar


capítulo V As imagens poéticas


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Eu tenho um pensamento vivo!

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foto: Francisco da Cost

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A casa depende do espírito, é uma casa espiritual

Todo mundo sabe que isso é obra que ninguém pode desmanchar. Essa obra não se desmancha porque isso tudo é feito de pedra. Isso é uma coisa, um acontecimento, isso é uma coisa de muita importância. É caco, é caco, mas é uma coisa de muita importância


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Isto é coisa do espírito... isso é coisa que já vem, é pessoa que já nasceu pra essas coisas

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Aqueles cacos veio pra mim em caco, está tudo transformado, tudo quanto é beleza. Tudo caquinho transformado em beleza


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Aquelas flores é feita com caco, de telhas, é uma coisa mais forte, caco de pedaço de pedra, porque quero fazer que fique aí, não se desmanche. A chuva bate, lava, é sempre, é uma sempre-viva aquilo

Esta casa não é uma casa, isto é uma história, é uma história porque isto foi feito por pensamento e sonho


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Aí tem um mistério na minha vida que eu mesmo não posso compreender...

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A gente entra nas cidades grandes, aquilo lá está tudo bem moderno, tudo bem organizado, tudo custa muito dinheiro. As pessoas veem a força da engenharia, a força da riqueza. Mas aqui elas gostam de ver porque é a força da pobreza.

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Isso não é só de mim. Deus me deu coisa pra fazer isto, que vem um aviso, vem aquela coisa no sentido, no sonho, no pensamento, que eu faço...


Salgueiro Dias

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capítulo VI A restauração da Casa da Flor


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foto: Francisco da Costa

foto: Amelia Zaluar

esde a criação da Sociedade de Amigos da Casa da Flor, em setembro de 1987, a prioridade do trabalho foi a de tentar a preservação do imóvel, cujo processo de tombamento foi iniciado em 1983, na gestão do então titular da Secretaria Extraordinária de Ciência e Cultura, Prof. Darcy Ribeiro, e findo em novembro de 1987 – Decreto 5.808/82 – pelo Diretor do Inepac, arquiteto Ítalo Campofiorito. Sem recursos destinados para a empreitada, o imóvel foi se deteriorando com o passar do tempo, quase chegando ao desabamento da estrutura do telhado e das paredes. Foi esse abandono geral, proposital ou inconsciente, fruto talvez dos preconceitos que cercavam a obra? Teria sido um desastre, seria mais um patrimônio cultural do país deixado desaparecer pela passividade, pela indiferença, pela falta de amor por nossas próprias riquezas, pela falta de empenho e interesse em resguardar nossos tesouros para as gerações seguintes. Como afirma Eduardo Galeano, é a América Latina especializada em ignorar-se, porque foi treinada a cuspir no espelho, em se autodesprezar. A Casa da Flor, discriminada e negligenciada, mostraria que continuamos a fechar os olhos à beleza, à nossa arte, à nossa energia de vida. Para o psicanalista junguiano Carlos Byington, o desaparecimento da Casa da Flor se faria ao preço de um empobrecimento cultural maior, de uma desarticulação simbólica, da desesperança e da alienação. Conseguimos, em 1992, na vigência do prefeito Iédio Rosa, recursos para realizar uma obra de emergência, com a construção de um muro de pedras e de uma vala para desvio da água da chuva, visando à contenção do terreno, já em adiantado estado de erosão e que poderia, se ruísse, arrastar todo o imóvel. A obra, a cargo do artista Marcílio Barroco, foi realizada em maio do mesmo ano. Durante muitos anos a associação continuou insistindo, junto aos governos municipal e estadual, na necessidade urgente de se iniciar a obra de restauração das paredes, dos telhado e dos enfeites. A própria desapropriação do local, indispensável para se poder realizar a tarefa, levou oito anos para se concretizar, em 1986, finalmente, no período do prefeito Rodolfo Pedrosa. Finalizado o processo no ano de 2000, na vigência do prefeito Carlindo Filho, já pagas as indenizações aos herdeiros de Gabriel e construída uma casa, por insistência da associação, para um dos herdeiros, Vilson, que lá residia desde o falecimento do artista, pudemos, finalmente em 2001, receber os recursos necessários do Fundo Nacional de Cultura/Ministério da Cultura, complementados estes pela contrapartida de 20% do total, custeados pela associação. Por sua vez, a Fundação Cultural Palmares/Ministério da Cultura, destinou uma verba com o mesmo objetivo, o que veio a possibilitar que se cuidasse também da iluminação do local e da recuperação paisagística, e, ainda, da criação de um documentário de 30 minutos, roteirizado e dirigido pela autora deste livro, com a assistência de Flávio Ceccon, da equipe do Cecip (Centro de Criação da Imagem Popular). A prefeitura de São Pedro da Aldeia, no governo de Paulo Lobo, colaborou fornecendo material e designando um operário para o trabalho.


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Como não se tratava de uma obra civil comum, mas de uma obra de arte de características peculiares, pensou-se num trabalho cuidadoso, realizado por uma equipe pequena e especializada, tendo em vista as modestas dimensões da área construída. Para a tarefa, foram definidas as seguintes etapas:   Instalação de um pequeno barracão de obras para guarda de materiais e instalação de banheiro provisório para os operários, já que a casa não dispõe de sanitário.   Coleta de todo o material decorativo que estivesse solto e disperso pelas imediações. Por sorte, Vilson, o sobrinho do artista, teve o cuidado de colocar tudo que caía num ponto só, o que depois facilitou muito a sua reposição. Todos esses fragmentos foram limpos, catalogados e devidamente acondicionados para posterior reutilização durante as obras de restauro.   Reprodução de 150 fotografias do acervo da autora para auxiliar no trabalho de restauração.   Foi feita, com sucesso, uma campanha junto às escolas da região para a doação de conchas e seixos. Conhecidos e amigos de seu Gabriel e da equipe também doaram, a nosso pedido, lâmpadas, louças antigas – pratos, xícaras, jarras, bules, travessas, pires. Ao mesmo tempo, a equipe de restauradores deslocou-se até as praias e a Lagoa de Araruama à procura de mariscos e conchas. Uma visita à loja para turistas foi ainda realizada com o mesmo objetivo. Foi necessário repor vasos e peças de barro quebrados, cópias encomendadas ao ceramista Kzé, que se orientou pelas fotografias. Móveis – cama e cadeira de braços, portas e janelas – foram também reproduzidos por um marceneiro local.   Desinfestação dos ambientes internos da casa para retirada de marimbondos. Foi feita ainda a descupinização do madeiramento da cobertura com substituição das peças comprometidas, mantendo-se as características das originais (tipo de madeira, dimensões e coloração).   Revisão do telhado, substituindo-se as telhas quebradas por outras similares e recolocação das que porventura deslizaram, acarretando a entrada da água das chuvas no interior da casa. O trabalho ficou a cargo do Sr. João Batista, da empresa Bela Vista Restaurações Artísticas, técnico indicado pelo Instituto Estadual do Patrimônio Cultural (Inepac).   Limpeza cuidadosa das superfícies externas e internas, manualmente, com água e estopa ou tecido macio.   Consolidação das peças soltas e reintegração das faltantes, com base na farta documentação iconográfica existente – 150 fotografias ampliadas do acervo da autora e sua consultoria permanente. A consolidação foi feita com cimento e barro, mantendo-se o traço original utilizado pelo artista.   Proteção das superfícies internas e externas e hidrofugação com resina siliconada, para vedação e impermeabilização da edificação, produto este indicado pela equipe técnica do Inepac.


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Para o projeto paisagístico, entregue ao paisagista Eduardo Lins, também encarregado de sua implantação, foi feito um levantamento topográfico por técnicos do Emope, com a demarcação dos limites da área desapropriada – 508,72 m2 –, identificando-se a vegetação existente, elementos construídos, escadas, acessos e outros. Na execução do cercamento e ajardinamento da área, foram retirados os pontos de formigueiros, garantindo-se a integridade das fundações dos muros externos, que eram diretamente apoiados no solo. Foi feito ainda o projeto e a implantação correspondente da iluminação externa, visando garantir proteção física e identificação noturna. A colocação de placas sinalizadoras de acesso ao imóvel, atribuição da Prefeitura, assim como a obra de melhoria do acesso à casa, mudando o capeamento da rua, foram programadas. A restauração dos enfeites que cobrem as paredes internas e externas, o muro e a escadaria foi realizada, com brilho, competência e empenho pelo artista plástico Raimundo Rodriguez, cuja tônica é trabalhar com materiais reciclados e/ou reaproveitados, e que imediatamente compreendeu e incorporou o espírito do construtor da casa. Raimundo tem em seu currículo participação em seriados da TV Globo: foi responsável pelo núcleo de arte na série “Hoje é dia de Maria” I e II (2005) e diretor de arte nos seriados “A Pedra do Reino” (2007) e “Capitu” (2008). Foram seus auxiliares, também muito dedicados, Carlos Roberto Salgueiro Dias e Cláudio Andrade. Como servente de obras foi contratado Valdevir dos Santos, sobrinho-neto de Gabriel, que já vinha desempenhando, com responsabilidade, a função de zelador do imóvel e que, a partir daí, foi contratado, a nosso pedido, como funcionário municipal. O trabalho de coleta, identificação e armazenamento do material solto nos diferentes cômodos – sala, quarto e depósito – e nos muros, escada e acessos, foi devidamente executado: as peças foram limpas, numeradas e envoltas em plástico-bolha e armazenadas em caixas com etiquetas coloridas, que variavam de acordo com o local a que pertenciam originalmente. Para facilitar a reposição das peças, Salgueiro Dias desenhou os principais enfeites, as luminárias e algumas paredes mais ricamente decoradas. Foram retirados do teto lustres e luminárias, desenhados e recolocados, depois de limpos e consertados.

fotos: Sandra Moraes

Ao engenheiro responsável pela obra, Edson Costa Correa, foram atribuídos o acompanhamento dos trabalhos de restauração, a criação das instalações provisórias e a iluminação externa, além dos cuidados com a limpeza e o transporte.


Salgueiro Dias

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Coube à equipe do Inepac, dirigido na ocasião por Alexei Bueno, e coordenada pela Diretora do Departamento de Patrimônio Cultural e Natural, Maria Regina Pontin de Mattos, orientação, acompanhamento e fiscalização das obras, esta última a cargo de Roberto de Luz Gomes. Parceria esta que se revestiu de grande importância durante todo o processo. A construção do barracão, o levantamento feito pelo emope, a recuperação do telhado e a retirada das peças soltas, sua catalogação e seu armazenamento foram realizadas em dezembro de 2000, e a intervenção do restauro artístico, de 3 de janeiro a 23 de março de 2001. Pronta a restauração, a Casa da Flor revelou novamente sua grande beleza! Pelo trabalho em prol da recuperação do monumento, a associação foi contemplada, em dezembro de 2000, com o Prêmio Estácio de Sá, na categoria Defesa do Patrimônio Público, outorgado pelo Conselho Estadual de Cultura/Governo do Estado do Rio de Janeiro. Cumprido o objetivo principal de nossa luta, a associação veio, logo depois, a transformar-se numa organização não governamental, denominada Instituto Cultural Casa da Flor.


foto: Amelia Zaluar


capítulo VII

Posfácio


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Uma forte influência A forte carga simbólica que envolve a Casa da Flor acabou contribuindo para meu crescimento pessoal, ajudando em meu processo de individuação. O interesse de Gabriel pela flor, desde a confecção em papel crepom, a manufatura dos muitos enfeites em forma de flor, a escolha do nome da casa, evidenciam a força desse símbolo em sua jornada. Para Carlos Byington, nosso artista “era um ser humano seguindo seus símbolos através do sonho e da fantasia, em função de um chamado em direção à realização plena do seu potencial artístico, religioso e humano”.32 A flor é uma mandala, que, segundo Byington, expressa a totalidade psíquica por meio de formas geométricas concêntricas. Ao escolhê-la como enfeite preferido, Gabriel usou-a como “um símbolo que fizesse jus ao significado da construção da casa no seu processo de individuação”. Por outro lado, a casa, como lugar que nos abriga, que nos protege dos rigores do clima, é símbolo feminino, tem o sentido de refúgio de mãe, de útero materno. Significa também o ser interior e é, simbolicamente, a imagem do universo, explicitando sempre crenças religiosas e tradições culturais milenares. Gabriel, como já vimos, ao construir uma casa tão ricamente enfeitada, aproximou-se da tradição africana de usar a criatividade na decoração das habitações, como acontece, por exemplo, na Mauritânia, país da África Ocidental, onde, segundo uma tradição secular, as mulheres refazem a pintura mural das fachadas de suas casas, desbotadas pela chuva, com motivos simbólicos e tradicionais de sua cultura. Em outro país, o Sudão, uma das nações mais pobres da África, numa região desértica, a Núbia, há também o costume, passado de geração para geração, da pintura das paredes das casas, em cores fortes, obedecendo, quase sempre, a padrões geométricos, criando uma explosão de cores, no universo monocromático imposto pelo deserto. Um objeto que se fez em pedaços, pode-se reconstituí-lo colando os fragmentos. Uma pessoa que se desintegrou emocionalmente por traumas ou carências afetivas pode-se reconstruí-la por intermédio da ajuda psicológica, da terapia, da expressão artística... A analogia entre as duas situações é percebida em expressões de uso corrente como “estou um caco”, “preciso juntar meus cacos”. Recompor uma imagem destruída ou usar os pedaços para criar uma nova imagem é o objetivo de qualquer ação, quer no plano material, quer no psíquico. Gabriel, sem dúvida, trabalhou-se também internamente ao criar seus mosaicos, suas mandalas de flores. Transmitia tranquilidade, mostrava ser uma pessoa bem integrada, apesar de sua pobreza. De onde lhe vinha essa serenidade? Não era apenas um sobrevivente, era um vencedor, um herói! Que transformou cacos em beleza, aquilo que era estragado, em flor... Ainda me espanto, depois de tantos anos, com meu envolvimento com a Casa da Flor. Percebo que tomei para mim a tarefa de contar para o mundo uma história emocionante e de, por meio dela, 32 BYINGTON, Carlos. A missão de seu Gabriel e o arquétipo do Chamado. Págs. 124 e 127.


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procurar despertar as consciências para a necessidade que temos de procurar sempre, sem esmorecimento, nossa real singularidade para poder chegar à completude. Objetivo primeiro e mais importante de qualquer tipo de luta, individual ou coletiva, no plano material ou no espiritual. Gabriel, com seu exemplo, clareia para nós essa difícil caminhada. A mim, coube talvez a ação de mostrar essa luz, de mantê-la acesa, de não deixá-la apagar-se. Estive lutando para manter de pé um símbolo vivo. Mas enquanto me esforçava para concretizar tal ideal, ia, ao mesmo tempo, amadurecendo, ficando mais forte ao vencer obstáculos, tornando-me mais plena ao conseguir realizar cada etapa do projeto. Ia também juntando meus cacos. Perguntava-me sempre onde me situava nesse contexto, por que essa sintonia sensível com uma obra tão original. Na primeira vez, em 1978, em que relatei para meu psicanalista, Abram Eksterman, meu trabalho com a Casa da Flor, que acabara de conhecer, repentinamente, debulhei-me em lágrimas. Muito espantada, não compreendi, de imediato, que a minha relação com esse trabalho estava estabelecida num nível mais profundo. A partir daí é que comecei a me ver envolvida emocionalmente também. A intenção de procurar me posicionar na relação com o objeto da minha pesquisa estendeu-se durante longos anos. Tem sido um frutífero aprendizado. Segundo Jung, “o estudo de uma obra de arte é o fruto intencional de atividades anímicas complexas”.33 Em meu trabalho, em que procurava salvaguardar uma obra de arte, ainda não reconhecida como tal, fui, lentamente, com cuidado, usando muitas vezes a intuição, tentando entender as circunstâncias psicológicas do autor. Como afirma ele, “o segredo do mistério criador... é um problema transcendente”, e a cada experiência, a cada descoberta, minha compreensão se ampliava e eu usava esse material psíquico precioso também para me conhecer melhor. Minha pesquisa de um objeto material externo caminhou lado a lado com minha pesquisa interna pessoal, confir­mando as palavras de Jung: a obra-prima é ao mesmo tempo objetiva e impessoal, tocando nosso ser mais profundo. E como ensinou Jung, Gabriel “enquanto artista ele é, no mais alto sentido, homem, e homem coletivo, portador e plasmador da alma inconsciente e ativa da humanidade”. Espero ardentemente que a Casa da Flor possa finalmente ocupar o lugar de destaque que ela merece no panorama da cultura brasileira. Que passe a ser vista como o símbolo arquetípico da força e da energia de vida do povo brasileiro, onde estão manifestados “criatividade, arte, misticismo, dedicação, transcendência e amor”.34 E que Gabriel Joaquim dos Santos passe a ser visto como um dos grandes artistas brasileiros, aquele que, apesar de todos os preconceitos que o cercavam – o da pobreza, da cor, do analfabetismo, o de ser descendente de escravos e de índios, o de sua predileção pelos materiais sujos – realizou uma obra de beleza invulgar, poética e eterna, símbolo das infinitas possibilidades do espírito humano.

33 JUNG, Carl. O espírito na arte e na ciência. Págs. 75, 88 e 93. 34 BYNGTON, Carlos. A missão de seu Gabriel e o arquétipo do chamado. Pág. 116.


foto: Francisco da Costa

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Depoimentos


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Mal desperta, o velho Gabriel começa a modelar com suas mãos as maravilhas que em sonhos vê, antes que elas escapem. Assim levantou a Casa da Flor. Nela mora, sobre a ladeira de uma colina batida pelo vento marinheiro. De sonho em sonho vai crescendo, ao longo dos anos, a moradia do velho Gabriel, este castelo ou bicho esquisito de alegres cores e sinuosas formas, todo feito de lixo. Eduardo Galeano

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E ali, por quase um século, viveu um homem preto solitário transformando a pedra em flor. Inutilmente. Ludicamente. Lindamente, com aquela pureza que só os iluminados têm. Com suas flores de pedra, seu Gabriel inventava a primavera. A primavera possível! Affonso Romano de Sant´Anna

foto: Francisco da Costa

Descobriu, por intuição, as relações bachelardianas entre casa, útero e amor. Fez seu objeto eterno, porque sempre inacabado. É o arquiteto de uma obra só e nem precisava fazer mais nada. Ali se refugiava para voltar a ser criança ou para nunca deixar de sê-lo. Carlos Nelson Ferreira dos Santos


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...o que acontece no universo amplo da cultura, no qual a criação do povo comum há séculos interage com a norma culta, resultando naquela respiração profunda, total, que tantos chamam de arte, e que confere um sentido regenerador à aventura da vida humana. Lélia Coelho Frota

A casa fica perto de Cabo Frio, no Rio de Janeiro, e é toda construída com cacos de vidro. Seu dono, Gabriel, sonhou em 1899 (?) com um anjo que lhe dizia: “Constrói uma casa de cacos”. Gabriel começou a colecionar ladrilhos quebrados, pratos, bibelôs e jarras partidas... Durante os primeiros quarenta anos, os moradores locais afirmavam que era louco. Depois, alguns turistas descobriram a casa e começaram a trazer Quem os amigos; Gabriel virou gênio. faz tão bela Paulo Coelho casa, a si mesmo se basta, sabe moldar o mundo a seu contento. Olho ao redor de mim: nada me falta. Se acaso me faltar, eu mesmo invento.” Um castelo tirado de um conto de fadas? Pode ser, mas sobretudo é a vitória de um homem pobre sobre a banalidade aparente da vida, sobre sua condição de pobreza e necessidade... Ferreira Gullar

Mário Alves de Oliveira


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Bibliografia

Livros ANDRADE, Mario de. “O artista e o artesão”. In: Baile das quatro artes. São Paulo: Livraria Martins Edit., 1963.

MALINOWSKI, Bronislaw. Uma teoria científica da cultura. 3ª ed., Rio de Janeiro: Zahar, 1975.

BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

MARTINS, Saul. Arte popular figurativa. Belo Horizonte: Edições Carranca, 1977.

____________. A chama de uma vela. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.

MAUSS, Marcel. Manual de etnografia. Lisboa: Editorial Pórtico, 1927.

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Pesquisa e texto Amelia Zaluar Coordenação editorial Amelia Zaluar Copidesque Humberto Borges Revisão Vinícius Loureiro Programação visual do livro, diagramação e capa Alzira Reis Coordenação gráfica Folio Digital Fotos da capa

Francisco da Costa

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Zal22 Zaluar, Amelia. A casa da flor : tudo caquinho transformado em beleza / Amelia Zaluar. — 1. Ed. – Rio de Janeiro : Amelia Maria Zaluar, 2012. 118p. : il. Col. ; 21x25. – ISBN 978-85-914507-0-1 (broch.) 1. Arquitetura. I. Título. CDD 720 Bibliotecária Responsável: Amanda Araujo de Souza Carvalho CRB 7/6351



..devotos que somos, eu e Amelia, da Casa da Flor e de seu genial arquiteto, Gabriel Joaquim dos Santos. Ariano Suassuna

ISBN 978-85-914507-0-1

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