Memória pintada da infância na representação artística de Candido Portinari

Page 1

Memória Pintada da Infância na representação artística de

CANDIDO PORTINARI

Núbia Agustinha Carvalho Santos


Memória Pintada da Infância

na representação artística de

CANDIDO PORTINARI

Núbia Agustinha Carvalho Santos 2013


Memória Pintada da Infância

na representação artística de Candido Portinari IV Prêmio Leonilson de Artes Visuais - 2011 Projeto Editorial Maíra Ortins

Dados catalográficos

Conselho Editorial Bernadete Porto (UFC) Fátima Vasconcelos (UFC) Gilberto Machado (IFCE) Gilmar de Carvalho (UFC) Kadma M. Rodrigues (UECE) Manuelina Duarte (UFG) Tércia Montenegro (UFC) Revisor Felipe Aragão Projeto Gráfico Erivaldo Filho Impressão Expressão Gráfica Editora

Prefeitura Municipal de Fortaleza - PMF Secretaria de Cultura de Fortaleza - SECULTFOR


Apresentação

8

Introdução

10

Capítulo 1

Candido Portinari: uma vida dedicada à arte

Capítulo 2

Infância de Candinho: entre histórias e brincadeiras

Capítulo 3

O lugar do brinquedo e da brincadeira na obra de Candido Portinari

Capítulo 4

Memória pintada da infância na representação artística de Candido Portinari

Capítulo 5

13 23 39 47

As crianças e a arte de Portinari: uma vivência no ensino da arte

55

Reflexões finais

71

Memória Pintada | Índice das imagens

75

Referências

100


Apresentação

E

ste livro é antes de tudo resultado de uma longa pesquisa realizada pela autora, que soube entrelaçar com maestria sua experiência de pesquisadora e educadora. Por conseguinte, é certo também que sua escrita envolve e convida o leitor a uma viagem instigante ao passado das memórias de infância de Candido Portinari. A partir deste fio narrativo, Núbia Agustinha nos apresenta a vida e a obra deste importante artista. Este livro é também resultado de sua dedicação ao exercício da escrita e do entrelaçamento desta com sua pesquisa acadêmica. Um ato de delicadeza e de acuidade debruçados sobre o pintor e poeta Portinari. O fio condutor desta narrativa é a infância do pintor, pois é por meio das memórias de infância de Portinari que Núbia Agustinha desenvolve um olhar diferenciado sobre a pintura do artista de Brodósqui. Desta forma, Agustinha nos apresenta um inovador exercício de escrita biográfica que se desdobra em muitos universos provindos de suas variadas fontes de pesquisa. Por isso a autora possui uma importante trajetória no gênero biográfico, sem, contudo, perder o caráter científico de uma pesquisadora acadêmica. Em 2011 Agustinha, em parceria com Aline Albuquerque, escreve o Almanaque do Zé. O livro trata de uma forma lúdica e criativa a vida e a obra do artista plástico Zé Tarcísio. O gênero almanaque é reformulado pelas autoras e ganha um ar moderno e prático com atividades interdisciplinares para serem aplicadas em sala de aula. Em 2012 é também responsável pela organização de O inventário de uma obra, livro dedicado à vida e a um recorte da obra da artista plástica Heloysa Juaçaba. Ambas as publicações possuem forte traço biográfico, sendo, todavia, visível nestas publicações uma escrita inovadora para este gênero. Agustinha escreve biografias não apenas como quem conta uma história, mas também como quem propõe, com tais biografias, um vínculo com o ensino, um veículo

8

disseminador para ser aplicado em sala de aula. A escrita de Agustinha é leve e envolvente, vai pouco a pouco se desenvolvendo como uma onda, toma forma e corpo e cresce à medida que se dilata ao longo de seu exercício. A narrativa em suas mãos ganha em detalhes, pois é da ordem da delicadeza do olhar de quem tem a capacidade de se voltar completamente para o outro. Assim percebemos Memória pintada da infância na representação artística de Candido Portinari, onde Núbia Agustinha mais uma vez manipula suas fontes históricas com interpretações inteligentes sobre as obras de Portinari, por meio também das memórias de infância deste, ressaltando o retorno do pintor às suas origens e a importância deste retorno para a produção de suas principais obras. Tal como no Almanaque do Zé, este livro também traz atividades que a autora sugere de forma norteadora aos professores para serem aplicadas em sala de aula. Outra delicadeza do livro são as ilustrações infantis de alunos que a autora colheu durante seu processo de imersão nesta pesquisa, que também se desenvolveu cotidianamente nas sutilezas das salas de aula. Maíra Ortins | artista visual

9


Introdução

O

10

s textos, as obras de artes e os amores nascem de um conjunto de experiências que alimentamos no decorrer de nossas vidas. Escrever, fotografar, registrar de alguma maneira os nossos trabalhos dentro e fora da sala de aula podem propiciar a sua transformação em novas produções. Foi desses registros de minha experiência no ensino de Arte com crianças que realizei minha monografia de especialização em Arte-Educação, intitulada Retalhos de Brodósqui: o lugar do brinquedo e da brincadeira na obra de Cândido Portinari1. Das minhas 18 turmas de Educação Infantil ao Ensino Fundamental I, selecionei duas turmas de 1ª série (hoje, 2º ano inicial) para realizar a pesquisa. Trabalhar com esses níveis de ensino me instigou a pesquisar a temática do lúdico. Assim, tendo consciência da importância do brincar para a criança, nada mais pertinente do que unir o lúdico à arte. Após um levantamento bibliográfico pela história da arte, descobri que muitos artistas buscaram na infância inspiração para o seu fazer artístico. Partindo disso, optei, juntamente com as crianças, pela obra de Cândido Portinari. Tal seleção se deu não somente por ele ser um renomado artista da arte brasileira, mas, sobretudo, por representar, na sua vastíssima obra, a temática dos brinquedos e das brincadeiras de modo tão singular. Esse universo lúdico portinariano aproximou as crianças desse artista, como será possível observar nos discursos e nas representações pictóricas delas. As obras selecionadas para o estudo foram as seguintes: Futebol (1935), Brincadeiras de crianças (19391942), Espantalho no arrozal (1944) e Meninos com pipas, Crianças brincando e Menino com pião (1947). Muitas dessas obras apresentam outras brincadeiras, que resultavam em novas criações e discussões, como é o caso de Brincadeiras de Crianças, na qual temos as brincadeiras de pula-cela, amarelinha e meninos soltando pipas. Outra obra trabalhada, que não diz respeito ao universo lúdico, foi o Autorretrato do artista (1957), que suscitou muitas criações imagéticas e escritas, uma vez que poemas do Vinicius de Moraes dedicados ao artista foram os interlocutores dessa experiência no ensino de arte com as crianças. Ao revisitar o texto da monografia, acrescentei três pinturas que não tratam de brincadeiras, são elas: Café (1935), Enterro na rede (1944) e Família de retirantes (1944). Essa inclusão ocorreu pelo fato de essas obras, assim como aquelas outras, também retratarem temas que permearam o cotidiano da infância do menino Portinari e que o acompanharam ao longo de sua trajetória artística. A relação dessas obras com as memórias de infância de Portinari impulsionou-me a transformar o trabalho monográfico neste livro, cujo projeto de publicação foi contemplado no Edital das Artes de 2011, Prêmio Leonilson de Artes Visuais, da Prefeitura Municipal de Fortaleza.

No primeiro capítulo, “Cândido Portinari: uma vida dedicada à arte”, apresento alguns traços biográficos do artista, bem como a sua trajetória artística. No segundo capítulo, “Infância de Candinho: entre histórias e brincadeiras”, narro a infância do artista entrelaçada ao universo lúdico. Essas histórias e brincadeiras, fonte de estudo, foram representadas plasticamente pelo artista. No terceiro capítulo, “O lugar do brinquedo e da brincadeira na obra de Portinari”, discuto sobre o lugar do brinquedo e da brincadeira na criação artística do pintor. Que lugares são esses impressos na imagética do artista de Brodósqui? No quarto capítulo, “Memória pintada da infância na representação artística de Cândido Portinari”, a partir de um levantamento de fontes iconográficas e bibliográficas, ligo os fios da trama, no intuito de refletir e analisar a interlocução entre as rememorações da infância e as obras Café (1935), Enterro na rede e Família de retirantes (1944). Por último, compartilho com o leitor a experiência da pesquisa na escola, no capítulo intitulado “As crianças e a arte de Portinari: uma vivência no ensino de arte”. Sobre a escolha metodológica, a pesquisa foi de natureza bibliográfica, além de uma inserção do trabalho de campo. Apropriei-me da experiência de ensino na área das artes visuais para concretizá-la. Ainda sobre a pesquisa, vale ressaltar que ela se configura do tipo qualitativa, cujo universo foi constituído por 40 alunos de duas primeiras séries do Ensino Fundamental I, de uma escola da rede particular de ensino da cidade de Fortaleza, durante o segundo semestre de 2006. Tendo em vista as características da pesquisa, optei por embasar este estudo nos pressupostos metodológicos da pesquisa qualitativa, por encontrar os elementos e compreensões que mais se aproximam da realidade pesquisada nesse tipo de abordagem. Para Bogdan e Bilken (1994), a pesquisa qualitativa possui algumas características básicas, por exemplo: os dados coletados são predominantemente descritivos; a preocupação com o processo é muito maior que com o produto; o significado que as pessoas dão às coisas e à sua vida é o foco de atenção especial; a análise dos dados tende a seguir um processo indutivo. Nessa perspectiva, analisei as atividades artísticas das crianças, tanto as produções individuais quanto as coletivas, bem como os seus discursos, mediante questionários que tratavam sobre a temática das brincadeiras. Ainda utilizei na pesquisa poemas e visitas ao site do Projeto Portinari2. Esses recursos foram enriquecedores para essa experiência no ensino de arte com as crianças. Com esta pesquisa, as crianças conheceram a estética do artista de Brodósqui que transformou histórias e memórias de sua infância em obras de arte. Pinturas que dialeticamente expressam alegria, tristeza, grito e dor de homens, mulheres e crianças, representados nas pinceladas de um dos maiores nomes da arte brasileira, Candido Portinari.

1. Trabalho orientado pela professora Drª. Bernadete de Souza Porto, em 2007, pela Faculdade 7 de Setembro – FA7.

2. Disponível em: <www.portinari.org.br/candinho/candinho/abertura.html>. Acesso em: 24 de setembro de 2007.

11


Capítulo 1 | Candido Portinari: uma vida dedicada à arte

Capítulo 1 Candido Portinari: uma vida dedicada à arte

Num pé de café nasci. O trenzinho passava Por entre a plantação. Deu a hora Exata. Nesse tempo os velhos Imigrantes impressionavam os recém-chegados. O tema do falatório era o lobisomem. A lua e o sol passavam longe. Mais tarde mudamos para a Rua de cima. O sol e a lua moravam atrás de nossa Casa. Quantas vezes vi o sol parado. Éramos os primeiros a receber sua luz e calor. Em muitas ocasiões ouvi a lua cantar. (Candido Portinari) A política de imigração possibilitou que dois jovens italianos se conhecessem no Brasil nas últimas décadas do século XIX. Eram eles Giovan Battista Portinari e Domenique Torquato3, futuros pais de um dos mais consagrados artistas brasileiros: Candido Torquato Portinari, que dedicou sua vida à arte. Foi no início do século XX, mais precisamente no ano de 1903, que veio ao mundo Candido Torquato Portinari. O menino Candinho ou Candim4, nascido numa fazenda de café, em Brodósqui, no interior de São Paulo, mais tarde se tornaria um dos artistas mais importantes da História da Arte Brasileira. De 1918 a 1962, diversas temáticas históricas, sociais, religiosas e lúdicas foram representadas em sua vastíssima obra. O Projeto Portinari5 (2004) catalogou mais de 5.000 obras, entre pinturas, desenhos e gravuras, além de mais de 25 mil documentos relacionados à obra, à vida e à época do artista. Nele, muitos depoimentos de intelectuais, amigos e parentes constituem um acervo riquíssimo para pesquisadores, resultado de 25 anos de trabalho da equipe à frente do projeto, segundo João Candido Portinari, diretor do Projeto e filho do artista. 3. Giovan ficou sendo João Batista; e Domenique, D. Dominga. 4. Nome como era carinhosamente chamado pelos familiares ou pelos amigos mais próximos. 5. O Projeto Portinari foi criado em 1979, depois de um momento de grande transformação da sociedade brasileira, após 15 anos de regime ditatorial. A abertura política possibilitou iniciativas de resgate cultural, entre elas, o Projeto Portinari, que nasceu, segundo João Candido Portinari, da constatação de que, 17 anos depois da morte de Candido Portinari, suas obras não haviam recebido qualquer catalogação.

Memória Pintada da Infância na representação artística de Candido Portinari

13


Capítulo 1 | Candido Portinari: uma vida dedicada à arte

Capítulo 1 | Candido Portinari: uma vida dedicada à arte

Aqui selecionarei, de forma não linear, somente algumas questões fundamentais que marcaram a sua trajetória artística e pessoal. Ancoro-me nas memórias de infância de Portinari como um legado de enorme importância na constituição de sua obra sobre as brincadeiras, bem como de alguns temas sociais, cujas temáticas, muitas delas, estão fincadas nas rememorações da infância. Por compreender a importância de sua obra para a História da Arte Brasileira, convido alunos, professores, pesquisadores e o público em geral para conhecer as diversas possibilidades de investigação que a obra portinariana oferece. Afinal, quem foi Candido Portinari? Que memórias foram pintadas nas suas representações plásticas? Além de ser um consagrado pintor brasileiro, é importante lembrar que, além de artista, ele foi poeta, candidato por duas vezes pelo Partido Comunista Brasileiro – PCB, mais precisamente, um militante. Certamente, a atividade imagética sobrepõese às outras. Portinari foi um artista inquieto, fez usos de diversos suportes e de diversos estilos pictóricos para expor suas ideias na arte. No que se refere à técnica, Mário de Andrade faz a seguinte observação:

Em outros momentos, utiliza-se do Academismo7, estilo no qual foi realizada a sua formação. Já em outros tempos, sofreu influências picassianas e sua obra é marcada por características do Cubismo. Essa influência foi marcada por sua ida à Europa e, ainda, pela visita, em 1939, a Nova Iorque, à exposição do artista espanhol. Utiliza-se até mesmo da abstração geométrica, confirmando o caráter de experimentador revelado por Mário de Andrade. Quanto ao Abstracionismo8, Fabris (1990) lembra que Portinari, até o final da vida, foi um crítico dessa estética. Nesse sentido, ela afirma que:

Cândido Portinari é um experimentador infatigável. Não é preciso lhe conhecer a vida, basta seguir a obra dele em seus estádios e manifestações transitórias para verificar que este experimentalismo ansioso de verdades é o traço psicológico mais significativo do artista. Tudo ele tem experimentado na técnica, todos os processos de pintar, não só já no sentido superior da técnica, como do próprio artesanato. [...] a pesquisa tanto estética como técnica apaixona o pintor brasileiro, é o significado mesmo da sua obra, como caracterização da personalidade criadora (ANDRADE, 1939, p.123-125).

Essa relação do artista com a plasticidade, no sentido de transformá-la numa obra de arte singular, é resultante de sua técnica e de sua sensibilidade artística em materializar o invisível, isto é, ver em cores, em linhas, a representação do real. Por exemplo, a Série Retirantes é estilizada na forma e profundamente realista no conteúdo, compreendendo o sofrimento dos desvalidos da seca. Nela, Portinari utiliza-se do Expressionismo6 para denunciar plasticamente as condições de penúria dos retirantes nordestinos, cuja problemática atravessa os séculos. O que se tem feito sobre as condições climáticas do Nordeste brasileiro no âmbito das políticas públicas?

14

O que Portinari constata não é simplesmente a luta figurativo versus abstrato, como se poderia pensar à primeira vista: o pintor questiona a própria função da arte na sociedade contemporânea, sua perda de virulência crítica, sua substituição por meios mais modernos (imprensa, cinema, rádio, televisão). [...] O divórcio do humano e o desconhecimento do métier, imputados ao Abstracionismo, desempenham um papel considerável na “crise da arte”. Arraigado numa concepção de métier, que poderíamos definir “acadêmica”, uma vez que Portinari parece não conceber um artista que não domine profundamente o desenho, o pintor ataca as experiências abstratas até o fim da vida (FABRIS, 1990, p.22-23).

Conforme Fabris (1990), o posicionamento crítico do artista não o impediu de se lançar ao desafio da abstração geométrica, contradizendo-se. Numa de suas últimas entrevistas, em 15 de dezembro de 1961, no jornal O Globo, Portinari reafirma a sua posição acerca do Abstracionismo ao responder à pergunta “O que há de novo na pintura europeia?”. A resposta de Portinari ao questionamento é a seguinte: [...] De novo, há os grandes pintores, e Picasso e Chagal são os seus maiores. Mathieu e todos os demais, isso é bobagem. É possível que haja alguém fazendo boa pintura, mas esses ainda não apareceram. Acabarão aparecendo, sem dúvida, pois a arte é como a chuva na terra: não adianta querer fugir ou abstrair, que ela acabará por molhar. Quanto ao resto, esses que andam colando estopa nas telas, pedaços de vidro, papel de jornal, etc., dizendo que são modernos, isso é bobagem: não é nem novo, quanto mais moderno [...] (O GLOBO, apud, FABRIS, 1990, p.23).

6. Movimento artístico do início do século XX que, segundo Gombrich (2012, p.564-567) teve Van Gogh e Edvard Munch como seus primeiros representantes. Esses artistas expressaram em suas obras o sofrimento humano, a violência, a pobreza, etc. Foi na Alemanha que esse movimento encontrou solo fértil para expor sua estética.

7. Segundo Proença (2003), Academismo ou Academicismo refere-se à pintura da Academia de Belas-Artes, conforme os cânones dessas Escolas de Belas-Artes. 8. Estética artística alemã introduzida pelo pintor russo Kandinsky em 1910. Conforme Proença (2003), o Abstracionismo informal está relacionado à estética não figurativa e não geométrica. Está ligado à subjetividade, ao lirismo. Já o Abstracionismo formal, conhecido também como geométrico, caracteriza-se pela objetividade, está submetido ao rigor das formas geométricas. Seus principais representantes são Piet Mondrian e Kasimir Malevich (Coleção de Arte, 1997).

Memória Pintada da Infância na representação artística de Candido Portinari

Memória Pintada da Infância na representação artística de Candido Portinari

15


16

Capítulo 1 | Candido Portinari: uma vida dedicada à arte

Capítulo 1 | Candido Portinari: uma vida dedicada à arte

Tal posicionamento não é isolado, uma vez que, na época, muitos outros artistas e críticos de arte compartilhavam dessa ideia, principalmente em 1951, ano da I Bienal de São Paulo. Segundo Aracy Amaral (1984), a Bienal fora palco dos confrontos entre os figurativistas e os abstracionistas. A autora lembra ainda que os artistas do Clube da Gravura de Porto Alegre foram advertidos que um dos organizadores do evento, Matarazzo Sobrinho, iria a Porto Alegre solicitar o apoio dos artistas e enfatizar que a Bienal estava aberta a todas as tendências da arte. No entanto, Carlos Scliar advertiu os artistas para que não enviassem seus trabalhos, pois não seriam selecionados. Foi o que ocorrera com os gaúchos. Veja o depoimento do escultor e gravador Vasco Prado, partidário de uma arte social que representasse a problemática das relações sociais, ou seja, uma arte panfletária. Segundo Aracy Amaral (1984, p.246), Vasco Prado afirmou na ocasião que “houve um repúdio geral à Bienal por parte do Partido, [...]. Mas o Portinari participou, como convidado. Daí a contradição a gerar ressentimentos – por que um podia e os demais não?”. Esse tipo de determinação ideológica na arte, seja de esquerda, seja de direita, seja de outra natureza, é inadmissível. O artista precisa de liberdade para poder criar e recriar sua obra, como também de participar do que ele desejar. Nesse sentido, Herbert Marcuse (1999, p.55) ressalta que “a obra de arte só pode obter relevância política como obra autônoma. A forma estética é essencial à sua função social”. Exercer a arte, fora dos padrões do Partido, para os artistas engajados na luta política, era um ofício complexo. Portinari era partidário da ideologia comunista, contudo não submeteu a sua arte ao partido. A vida de Portinari estava entrelaçada de tal forma com a arte que é impossível separá-las. A liberdade de criar, de pintar temas diversos, só a morte foi capaz de encerrar. Vale lembrar que a militância política de Portinari se efetiva, de fato, em 1945, quando se filiou ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), candidatando-se a deputado federal, em 1946, de acordo com Amaral (1984), época da não clandestinidade do partido. Não fora eleito. Fabris (1990) revela ainda que, no ano seguinte, o artista se candidata ao senado, perdendo por uma margem pequena de votos. Annateresa Fabris (1990, p.19) diz que “Portinari não só fora intimado a depor várias vezes na polícia, como fora envolvido no inquérito contra os intelectuais que haviam lecionado na Escola do Povo” (op. cit. p.19). Em consequência das tensões políticas em torno do Partido, Portinari viaja para o Uruguai num exílio autoimposto. Nesse período, realiza exposições em Buenos Aires e em Montevidéu. Segundo Fabris (1990), a exposição na capital uruguaia foi usada

como pretexto para deixar o país. Hoje, documentos que se encontram no Projeto Portinari revelam que o artista era vigiado e que ficou fichado na polícia por suas ligações com o PCB. Em 1948, em Montevidéu, pintou o painel A primeira missa no Brasil, uma pintura bem diferente da naturalista que Vítor Meireles pintou sobre o mesmo tema no século XIX. Nesse mesmo ano, retorna ao Brasil; e o Partido, mais uma vez, é posto na ilegalidade pelo governo e os mandatos de seus representantes são cassados. A autora afirma que Portinari não deixou o partido, mas aos poucos foi se afastando de qualquer atividade de militante. No final da década de 40, consoante Fabris (1990), Portinari envereda pelos temas históricos já iniciados em Montevidéu. Assim, Tiradentes é pintado em 1949. Na década seguinte, no ano de 1952, pinta A chegada de D. João VI ao Brasil. Estas obras são grandes painéis encomendados para instituições educacionais e bancárias. Ainda no ano de 1952, conforme Fabris (1990), o governo brasileiro encomenda dois painéis, que doaria para a sede das Organizações das Nações Unidas – ONU. Assim, Portinari inicia um trabalho que duraria quatro anos. Os painéis Guerra e Paz, segundo a autora, foram apresentados ao público brasileiro no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, antes de seguirem para Nova Iorque. É relevante lembrar que o envolvimento do artista com a esquerda foi responsável pela execução dos painéis no Brasil, como também a proibição de seu visto de entrada nos EUA. Porém, na década de 30, Portinari usufruía de livre trânsito, neste mesmo país, por conta da segunda menção honrosa com a tela Café na exposição do Instituto Carnegie de Pittsburgh, em 1935. Seus trabalhos vão se integrando a acervos de importantes museus de diversos países. Assim, em 1938, a tela O morro é adquirida pelo Museu de Arte Moderna de Nova Iorque. No ano seguinte, realiza três painéis para o pavilhão brasileiro na Feira Mundial desta cidade e, em 1940, participa da exposição de Arte Moderna Latinoamericana do Museu Riverside de Nova Iorque. A obra Café é a confirmação da consagração do artista, que já vinha se apresentando em exposições individuais e coletivas no Brasil, resultado do seu fazer artístico modernizante. O prêmio de viagem à Europa em 1928 possibilitou conhecer outros países e diversos museus. Seu olhar para outras culturas o instigou a repensar a sua arte. Este reconhecimento de Cândido Portinari levou o governo brasileiro a convidá-lo para realizar vários trabalhos. Fabris afirma que:

Memória Pintada da Infância na representação artística de Candido Portinari

Memória Pintada da Infância na representação artística de Candido Portinari

17


Capítulo 1 | Candido Portinari: uma vida dedicada à arte

O renome internacional conquistado pelo artista leva o ministro Gustavo Capanema a encomendar-lhe, em 1936, uma série de afrescos para o Ministério da Educação, tendo como tema os ciclos econômicos: pau-brasil, cana-de-açúcar, gado, ouro, fumo, algodão, erva-mate, café, cacau, borracha, aos quais será acrescentada, em 1943, a carnaúba (FABRIS, 1990, p.11).

Embora a crítica de arte fosse muito favorável à pintura do artista, não faltaram críticos para acusá-lo de pintor oficial por estar trabalhando para o governo de Getúlio Vargas. No entanto, é importante reiterar que foi a boa repercussão da crítica e o prêmio de menção honrosa nos EUA que reforçaram este convite do ministro da educação Gustavo Capanema, que, segundo Fabris (1990), foi um apaixonado por arte nova, certamente almejando um país moderno. Já o presidente Vargas, segundo a autora supracitada, demonstrava indiferença pelas artes plásticas, não a proferindo nos seus discursos. Por outro lado, as suas preferências eram o cinema e o rádio, lembrados nos seus discursos populistas, no sentido de legitimar a nacionalidade brasileira. Conforme Santa Rosa (1999), mais um convite surge na década de 40, quando o arquiteto Oscar Niemeyer convida Portinari para a realização dos murais na Igreja de São Francisco de Assis, na Pampulha. A influência de Picasso transparece nessas obras, uma referência às formas desfiguradas de Guernica, causada pelo horror da Guerra Civil Espanhola de 1936. Portinari dá visibilidade aos sofrimentos estampados nos semblantes dos santos, é uma alusão ao próprio povo brasileiro. Segundo Fabris (1990), o expressionismo exacerbado e a posição esquerdista de Portinari fizeram com que o arcebispo de Belo Horizonte se recusasse a consagrar a capela, por se tratar de uma obra materialista. Assim, foi aberta ao público somente em 1959, mas as críticas continuaram. Vale dizer que a pintura mural já vinha sendo trabalhada pelo artista. A obra Café é que apontou para esta técnica, na qual Portinari iria confirmar o seu talento para a arte monumental, realizando murais, compreendendo ser uma técnica mais relacionada com o povo. No que se refere à pintura mural feita para o Ministério da Educação, Amaral (1984) faz críticas ao artista, dizendo da influência por este sofrida pelos muralistas mexicanos, principalmente Rivera, Siqueiros e Orozco. No entanto, o crítico de arte Mário Pedrosa não aceita tal influência e pontua as diferenças dessas duas realidades históricas, isto é, Brasil e México, como também a forma de esses artistas conceberem a plástica. Vale dizer que nada nasce do nada, as condições culturais, sociais e históricas são mediadoras de representações artísticas e não artísticas. Certamente, Portinari soube

18

Memória Pintada da Infância na representação artística de Candido Portinari

Capítulo 1 | Candido Portinari: uma vida dedicada à arte

dar originalidade às suas influências. O poeta Manuel Bandeira (1966) reconhece que, na década de 20, quando o jovem pintor ainda era aluno da Escola Nacional de Belas Artes, fora prejudicado em alguns salões pelo estilo modernizante de sua técnica. Mas quando o artista resolve apresentar trabalhos inferiores do que em outras vezes, porém ao gosto da Escola, ganha o prêmio de viagem a Paris em 19289. Esta viagem possibilitou-lhe repensar o seu fazer artístico, que encontra nas suas memórias de infância a potência de sua arte. Isso foi o que observei na carta que segue, escrita em Paris, sobre o Palaninho10, destinada a uma colega da Escola Nacional de Belas Artes – ENBA. Daqui fiquei vendo melhor a minha terra – fiquei vendo Brodósqui como ela é. Aqui não tenho vontade de fazer nada. Vou pintar o Palaninho, vou pintar aquela gente com aquela roupa e com aquela cor. Quando comecei a pintar, senti que devia fazer a minha gente e cheguei a fazer o “baile na roça”. Depois desviaram-me e comecei a tatear e a pintar tudo de cor – fiz um montão de retratos, mas eu nunca tinha vontade de trabalhar, e toda gente me chamava preguiçoso – eu não tinha vontade de pintar porque me botaram dentro duma sala cheia de tapetes com gente vestida à última moda. A paisagem onde a gente brincou a primeira vez e a gente com quem conversou a primeira vez não sai mais da gente, e eu quando voltar vou ver se consigo fazer a minha terra. Eu uso sapatos de verniz, calça larga e colarinho baixo e discuto Wilde, mas no fundo eu ando vestido como o Palaninho e não compreendo Wilde [...] Tenho saudades de Brodósqui – pequenininha, 200 casas brancas de um andar, no alto de um morro espiando para todos os lugares... com igreja sem estilo com uma torre no centro e duas pequenas dos lados... com o altar que eu fiz e Santa Cecília... [...] O Palaninho às vezes fica na cidade para ir ao cinema... mas quase sempre ele se vai embora no intervalo. Palaninho não sabe ler, mas quando vê surgir na tela um letreiro torto, feito a mão, já sabe que é o intervalo... (PORTINARI, 1979, p.24).

Esse momento em que o artista ficou longe de seu país e de sua terra natal foi primordial para a reflexão de seu fazer artístico. Sua pintura ganhou substância. O encontro com outras culturas despertou em Portinari suas raízes adormecidas. As suas memórias de infância foram materializadas em obras de arte. Estas suplantariam a memória individual, encontrando na memória coletiva o significado de uma realidade 9. Prêmio de reconhecimento do artista em concursos de Arte(Salões). Com o retrato de Olegário Mariano, Portinari foi contemplado no Salão para estudar Arte na Europa. 10. Palaninho é um tipo caipira, que usa calça de saco de farinha, muito religioso e tem um jeito de fala que só ele sabe. Sobre suas características físicas, Portinari diz que é baixo, muito magro e esbranquiçado pelo amarelão.

Memória Pintada da Infância na representação artística de Candido Portinari

19


Capítulo 1 | Candido Portinari: uma vida dedicada à arte

vivida por milhões de brasileiros. A arte é literalmente vivida pelo artista. Técnica, plástica e conteúdo, estes elementos configuram-se na poética visual de Portinari, que vai ser reconhecida tanto no âmbito nacional quanto no internacional. A trajetória artística de Portinari vai da Escola Nacional de Belas Artes no Rio de Janeiro às viagens feitas a Europa (Itália, por exemplo), Israel, México, Nova Iorque e Montevidéu. Assim, o pintor de Brodósqui vai conhecendo outras realidades e ressignificando essas experiências, ao mesmo tempo em que se constituía como um artista preocupado com as questões sociais. A sua arte é uma denúncia à violenta realidade dos que não têm terra, ou dos que são expulsos da terra por conta das estiagens. As secas são consequências mais de um problema político e social do que geográfico. Portinari fez de sua plástica uma espécie de arma, provocando nas pessoas uma reflexão acerca dos problemas sociais de seu país. A partir dessas experiências em terras estrangeiras e do contato com as vanguardas, o seu potencial criador ganha outra dimensão, dando originalidade à sua poética visual. O poeta Manuel Bandeira (1966, p.47) diz: E o homem de Brodóvsqui não se esqueceu de Brodóvsqui. Há nesta galeria admirável do Palace Hotel um grande quadro a óleo e várias aquarelas inspirados em aspectos e cenas da pequena cidade paulista. São das melhores cousas que já compôs Portinari e dir-se-ia que o pintor esperava a maturação de todos os seus recursos para encetar a transposição plástica de suas reminiscências de infância.

As recordações da infância de Portinari são muitas e atravessam a sua temática econômica e social, entrelaçando as histórias e as brincadeiras numa relação dialética entre o passado e o presente. Nesse entrecruzamento de temporalidade, o artista de Brodósqui fez sua escolha, morrer exercendo o seu ofício maior, pintar. Contrariou ordens médicas e não parou de pintar. Intoxicado pelas tintas a óleo11, o artista morre no dia 06 de fevereiro de 1962, no Rio de Janeiro, aos 58 anos. No próximo capítulo, discutirei sobre as memórias da infância do menino Candinho, por compreendê-la como uma dimensão social e cultural fundamental para a constituição do ser humano.

11. Revista Cruzeiro, 7 de fevereiro de 1962.

20

Memória Pintada da Infância na representação artística de Candido Portinari


Capítulo 2 | Infância de Candinho: entre histórias e brincadeiras

Capítulo 2

Infância de Candinho: entre histórias e brincadeiras Não tínhamos nenhum brinquedo Comprado. Fabricamos Nossos papagaios, piões, Diabolô. A noite de mãos livres e pés ligeiros era: pique, barra-manteiga, cruzado. Certas noites de céu estrelados E lua, ficávamos deitados na Grama da igreja de olhos presos Por fios luminosos vindo do céu era jogo de Encantamento. No silêncio podíamos Perceber o menor ruído Hora do deslocamento dos Pequenos lumes... Onde andam Aqueles meninos, e aquele Céu luminoso e de festa? Os medos desapareciam (Candido Portinari) A infância é uma época povoada de histórias e de brincadeiras, todos nós temos as nossas. Candido Portinari também teve as suas. Muitos autores já escreveram sobre o artista. É sobre esse assunto que vou narrar aqui, tendo como principais interlocutores o próprio artista, que escreveu sobre suas memórias de infância em O menino de Brodósqui (1979) e o jornalista e escritor Mário Rodrigues Filho, que rememora no livro Infância de Portinari (1966) a imagem do menino Candinho, como era chamado por seus familiares, por ser pequenininho e franzino, que, segundo o jornalista, a nonna12 pensava que nem ia sobreviver quando nasceu. Portinari, no seu livro O menino de Brodósqui (1979), diz que talvez tivesse uns dois anos à época em que seus pais se mudaram da fazenda Santa Rosa para a estação de Brodósqui, quando ainda nem sequer era um povoado. Nesses primeiros anos da infância, Candinho às vezes acompanhava sua mãe, D. Dominga, ao cafezal. Ia arrastando a sua perninha mais curta do que a outra, consequência de um “acidente quando era bebê”, segundo Rodrigues Filho (1966). Sobre essa vida campestre, o autor escreve: 12. Avó em italiano. A nonna referida no texto é a Dona Pelegrina, avó paterna de Cândido Portinari.

Memória Pintada da Infância na representação artística de Candido Portinari

23


Capítulo 2 | Infância de Candinho: entre histórias e brincadeiras

Os colonos tomavam café em canecas e Candim ficava olhando para os pés deles, fascinado. Pareciam-lhe pés gigantes. Todos estavam de pé no chão, os homens e as mulheres. Os pés achatavam, afundando na terra roxa, o peito largo, os dedos enormes, desenhados. Quando fosse grande, se chegasse a ser grande, queria ter pés assim, fortes, poderosos. [...] Olhava os seus pezinhos de nada, sobretudo o pezinho que só pisava de lado, que jamais ficava direito (RODRIGUES FILHO, 1966, p.31).

Essas imagens e outras fazem parte do cenário da infância de Portinari. Memórias e histórias que vão constituindo o homem e o artista Candido Portinari. Certamente, a obra Café, de 1935, é resultado dessas rememorações. Rodrigues Filho (1966) conta que os meninos viviam pelo campo brincando. Numa dessas aventuras, Paulino, irmão mais velho de Candinho, João Negrinho e Turim13 corriam muito, e Candinho ficou para trás, arrastando a sua perninha. Não sabia para onde estava indo, mas seguia os outros. O seu coração estava disparado de tanto medo, já não via mais os meninos. Pensou que estivesse perdido. Continuou a correr desviando das caveiras de boi e dos campos de barba-de-bode. O medo e a imaginação de Candinho aumentavam, quando, de repente, no meio do arrozal, surgiu um espantalho, que, com seus braços abertos, fez com que o menino se detivesse, sem necessidade de usar palavras. Candinho pensava ser o espantalho um “pobre”. O autor narra: Os braços do pobre não tinham mãos. Por dentro das mangas em farrapos, saíam dois tocos de pau. Tio Bepe tinha uma perna de pau, toc-toc, aquele pobre tinha os braços de pau. Era de dar medo, ali, os dois sozinhos, ele e aquele pobre que não se mexia, de braços abertos. [...] Era melhor não se mexer. Se ele se mexesse, o pobre se mexeria também e sairia atrás dele. Nunca vira um pobre mais maltrapilho do que aquele ali, parado diante dele. O rosto de palha arreganhava-se, em tiques nervosos. [...] O rosto do pobre secara, já era de palha mesmo. Aquele pobre estava morto e morrera assim, de braços abertos, assustando um menino, e ficara assim, no sol e na chuva. Agora era de palha e de pau. Onde estavam os outros que não vinham? Candim começou a chorar (RODRIGUES FILHO, 1966, p.42).

Em conformidade com o autor citado, Candinho só parou de chorar quando viu os outros meninos e lhes contou a história. Um dos meninos esclareceu que se tratava de um espantalho e que sua função no arrozal era a de espantar os passarinhos. Depois do acontecido, os meninos o convidaram para jogar pedras no espantalho para que, assim,

24

Capítulo 2 | Infância de Candinho: entre histórias e brincadeiras

perdesse o medo. Candinho passou muitas noites tendo pesadelos, até que o medo do espantalho foi embora. Teria essa história marcado tanto a vida de Portinari a ponto de motivar o artista a fazer a quantidade enorme de espantalhos que há em sua obra14? A imagem da pobreza causava medo a Candinho, embora ele fosse pobre e usasse roupa de saco de farinha, que, segundo sua mãe, parecia linho quando bem passada. Sabia que em Brodósqui tinha gente ainda mais pobre do que ele, principalmente os passantes, como os retirantes nordestinos, que eram chamados por todos, conforme Rodrigues Filho (1966), de “baianos”15. Mais uma história de sua infância que era transformada pelo medo numa monstruosa centopeia e depois num terrível dragão que soprava fogo era o trem com os seus apitos, que logo deixava de ser uma máquina passando a ser um bicho. Candinho não tinha medo quando o trem estava parado, contudo, quando em movimento, apitando e saindo fumaça, amendrontava-no a tal ponto que ele saía em disparada para se esconder, pois na sua imaginação o dragão tinha voltado. A dimensão simbólica toma conta do pensamento infantil, que é separado de forma tênue entre o real e o imaginário. Momentos de certezas e dúvidas confundindo-se na fugacidade do tempo presente. Portanto, a infância também comporta sentimentos contraditórios, como angústia, medo, tristeza, alegria, etc. Candinho adorava ir a Jardinópolis, onde morava sua avó materna, Maria Sandri, vários tios, tias, primos e belas primas. Segundo Portinari (1979), lá tinha tudo, isto é, placa nas ruas, números nas casas, dois cinemas e moringas. Diferentemente de Brodósqui, tão arenosa, terra roxa e silenciosa, que chegava a sentir tristeza e medo quando voltava. A brincadeira de faz de conta era impulsionada pelas cenas dos filmes. Eles internalizavam o galã, às vezes, os meninos de Brodósqui se imaginavam guardas campestres utilizando os chapéus dos pais, que dançavam em suas cabeças miúdas, como composição dos personagens. O tempo das brincadeiras ficou dividido quando Candinho despertou interesse pelo desenho, sonhava com uma caixa de lápis de cor. Estava juntando dinheiro para a realização do seu sonho. Sempre que ia visitar a avó Maria Sandri, ganhava algumas moedas. Nessa época, a venda de Seu Batista já estava arruinada de tanto vender fiado e o povo não pagar. Um coração enorme; para ele, todo mundo era “um homem bom.” Frase sempre repetida para se referir aos outros homens, e que Candinho achava

13. Colegas de infância de Portinari. Eles são os meninos de Brodósqui, então povoado, da primeira década do séc. XX.

14. Numa consulta feita ao Catálogo Raissonné, através do CD-ROM que acompanha o catálogo, contei mais de cem espantalhos pintados e desenhados pelo artista. 15. Sempre que o autor se refere aos retirantes, denomina-os de “baianos”. No que tange aos crimes em Brodósqui, são atribuídos sempre aos “baianos”, aos “escuros” ou aos “pretos”, nunca aos colonos ou fazendeiros.

Memória Pintada da Infância na representação artística de Candido Portinari

Memória Pintada da Infância na representação artística de Candido Portinari

25


Capítulo 2 | Infância de Candinho: entre histórias e brincadeiras

Capítulo 2 | Infância de Candinho: entre histórias e brincadeiras

engraçada. Conforme Rodrigues Filho, Seu Batista ficava triste em ver o seu filho desenhando com um pauzinho na areia, por isso, resolveu falar com o Zé Murari, que era um desenhista de estampa de santos. Ele, então, recomendou ao Seu Batista que comprasse para Candim um compasso, uma régua, um esquadro e uma caixa de lápis de cor, que iria ensiná-lo a desenhar. Assim, todas as noites Candinho ia à casa de Zé Murari. Começou no exercício de cópias em papel de embrulho para quadricular. Nesse tempo, de acordo com Rodrigues Filho (1966), todas as tardes, às 16 horas, havia futebol no largo. Candinho, Simão Macaco, Líbero, Ítalo, Alexandre, Luquetão, Manezinho de Oliveira, João Negrinho e Ricardo Preto eram do time dos menores. A bola deles era de meia, quem melhor fazia esta bola era João Negrinho. Já os componentes do time dos maiores eram: Faustin, Luiz, Honorato, Esteves, Tabaquim, Turim e Pé de Ferro. A bola destes era de bexiga de boi, mais leve que a bola de meia e de pouca durabilidade. Era regra não jogar com unha grande, senão estava fora do jogo. Quem mais estourava a bola era o Pé de Ferro. Os meninos iam ver se ele estava com as unhas aparadas. Estavam todas aparadinhas. Segundo o autor,

para pegar uma pedra para atirar no menino; mas se fosse do tamanho dele, dava um empurrão. Depois, cada um desenhava com o dedo maior do pé um círculo que representava a cara da mãe do outro. Segundo Rodrigues Filho (1966), Candinho nunca tinha chamado João Negrinho de tiziu. Mas, de repente, deu vontade e chamou:

[...] o Pé de Ferro furava uma bola com a maior facilidade. Era irmão de João Negrinho. Chamavam-no de Pé de Ferro porque vivia a chutar tudo. Tinha pedra no caminho, todo mundo passava por cima ou de lado, dando uma voltinha, mas Pé de Ferro não. Pé de Ferro ia logo chutando. [...] Pé de Ferro queria uma bola de verdade, de pneu, para ver se aguentava o chute dele (RODRIGUES FILHO, 1966, p.117-118).

26

— Tiziu. João Negrinho parou de brincar, olhou para Candim para ver de que ia chamá-lo. Se não tivesse o cabelo cortado a zero, Candim teria o cabelo branco, de um velho. Vovô foi a palavra que esteve na boca de João Negrinho. Para Tiziu era pouco, e João Negrinho gritou: — Manquim! Esperou que Candim desse o empurrão nele. Se Candim empurrasse ele, ele aí empurraria Candim, que talvez caísse, por causa da perna coxa. Só se Candim caísse é que João Negrinho ia riscar a rodela na areia. Candim nunca esperava que João Negrinho gritasse manquim para ele. Olhou para o chão, viu a perna coxa, era manquim e veiolhe um desconsolo. Por isso, em vez de empurrar João Negrinho, deu-lhe as costas, e arrastou a perna. — Candim! — João Negrinho já estava arrependido. Candim não respondeu, seguiu caminho, coxeando. Tiziu era para brincar, para mexer com João Negrinho. Manquim era para ofender. Estava de mal com João Negrinho (p.75 -76).

Os apelidos são uma forma cultural de se dirigir às pessoas. Existem aqueles dados pelos familiares, geralmente de forma carinhosa, usando o diminutivo ou abreviando o nome da pessoa. Muitas vezes, um apelido dado na infância é carregado pelo resto da vida. Mas essa prática pode ser perversa, quando não autorizada pela pessoa que carrega a alcunha. Neste caso, o apelido é dado, geralmente na escola ou na rua, com o objetivo de insultar e discriminar na maioria das vezes. No trecho acima, podemos perceber diversos apelidos. Por esta razão, vale abrir um longo parêntese neste capítulo no intuito de refletirmos acerca dessa prática utilizada por crianças e adultos com diversos propósitos. Algumas passagens no livro de Rodrigues Filho, A infância de Portinari, revelam as relações sociais e culturais internalizadas pelas crianças que fazem parte da cotidianidade, como é o caso das alcunhas. O mesmo autor diz que chamavam João Negrinho de tiziu porque ele era pequeno e preto como este passarinho. Quando o chamavam dessa forma, ele queria logo brigar. Se o menino era maior do que João Negrinho, este dizia apenas palavrões e corria

A partir do que foi escrito, posso afirmar que tanto Tiziu quanto Manquim foram apelidos usados pelos meninos para ofender. Portanto, há uma contradição nas palavras do autor. Se Tiziu fosse só para brincar, por que então João Negrinho ficara tão zangado? Sem falar que ele já carregava outro apelido no próprio nome, que não sabemos se ele gostava. Depois do acontecido, segundo Rodrigues Filho (1966), Candinho segue a direção do mato. Estava muito triste, nunca se sentira tão manco, agora parecia que o pé doía mais do que o normal. Quando estava alegre e brincando, esquecia do pé. Nisso viu um vulto passar mais afastado, era Ângelo Bôbo, um menino bem maior que ele, vivia de camisola branca e comprida, gostava de assustar menino, parecia alma de outro mundo. O melhor era ele voltar para casa, pois em breve o sol desapareceria. Na volta para casa, em conformidade com o autor, Candinho deparou-se com uma mulher pendurada numa árvore com a barriga aberta, cujos intestinos, na visão infantil de Candinho, pareciam cobras. Ficou com muito medo, olhou para todos os lados assustado, somente ele e a mulher. Poderiam até pensar que fora ele quem matou a

Memória Pintada da Infância na representação artística de Candido Portinari

Memória Pintada da Infância na representação artística de Candido Portinari

27


Capítulo 2 | Infância de Candinho: entre histórias e brincadeiras

mulher, pois tinha um canivete na mão que usava para cortar forquilha para estilingue. Nesse momento, pensava: Agora não se importava que João Negrinho tivesse chamado ele de manquim. O pé doía, mas manquim não doía mais. Tinha doído na hora, não doía mais. O que doía era o pé cansado de se arrastar e era o medo de que pudessem pensar que tinha sido ele (RODRIGUES FILHO, 1966, p.78).

Diante dessa cena horrível, apressou-se em ir para casa, pois o assassino poderia aparecer (e se fosse o Ângelo Bôbo?), mas lembrava que a camisola deste estava branquinha, sem nenhuma mancha de sangue. Não contaria nada para ninguém, até o assassino ser encontrado. Rezaria para que isso acontecesse logo. Esta cena o deixou triste e abatido. Todos em casa pensavam que Candinho estivesse doente, pois passava o dia em casa, à noite tinha sonho ruim, nem para o largo saía para brincar, havia decidido que só ia brincar quando o assassino aparecesse. Como ninguém comentava nada, talvez ainda não tivessem encontrado o corpo da mulher. Nunca D. Dominga vira seu filho tão triste, pegava na testa dele, mas não estava com febre. Mesmo assim, dava o azeite de rícino quando os meninos apresentavam alguma tristeza. Segundo Rodrigues Filho (1966), Candinho estava na venda de seu pai, quando, de repente, chegou a notícia do crime horroroso da mulher que tinha sido morta por um “baiano”. Candinho pensava nas facas enormes dos retirantes, só uma faca daquelas poderia fazer um buraco daquele na barriga da mulher. Ficou aliviado com a notícia. João Negrinho veio chamar para brincar, ele disse que estava doente. João Negrinho ficou contente, pois eles não estavam mais brigados. Candinho solicitou ao pai papel e lhe desenhou uma flor. Seu Batista ficou admirado e foi mostrar para D. Dominga, que ficou emocionada diante do desenho. Tata, a irmã mais nova de Candinho, gostava muito dos desenhos dele. Enquanto as pessoas que entravam na venda falavam do assassinato, Seu Batista falava da flor desenhada por seu filho. O pai de Candinho ficava entristecido cada vez que acontecia um crime em Brodósqui. Com o passar do tempo, as inadimplências foram aumentando e Seu Batista teve que entregar a venda e se mudar da rua de cima para a rua de baixo. Conforme Rodrigues Filho (1966), fora um choque para Candinho, até parecia que estava em outro país, embora na rua de baixo ficasse a venda do “compadre” Zé Brizotti. O autor assim a descreve:

28

Memória Pintada da Infância na representação artística de Candido Portinari

Capítulo 2 | Infância de Candinho: entre histórias e brincadeiras

A casa ficava quase no fim da rua de baixo, onde acabava Brodósqui. Pior, só a rua da linha. A rua de baixo não era tão longe do largo, mas subitamente o largo desaparecera. De manhã, ao sair de casa, Candim não via mais a igreja, o cruzeiro e o coreto (RODRIGUES FILHO, 1966, p.123).

Durante esse tempo, fora inaugurada a iluminação elétrica em Brodósqui. A banda de música, sempre presente nas inaugurações, tocara em frente da prefeitura. Pelo que podemos perceber, Brosdóqui já se emancipara. A casa de Candinho tinha uma lâmpada de dez velas que iluminava a sala e os outros cômodos. Mesmo assim Candim não se iludia com a lâmpada. Estava na rua de baixo. Não chegara ainda à situação dos meninos que empurrava a carrocinha de sorvete, enterrando as rodas na areia fina do largo, mas a pobreza rondava a casa da rua de baixo. E veio o medo da miséria. O pai tinha devolvido tudo, ficara sem nada, a fazer cadeiras para vender. Por isso saía de casa com a serra comprida ao ombro para derrubar cachetas (RODRIGUES FILHO, 1966, p.124).

Conforme Rodrigues Filho (1966), D. Dominga não ia mais ajudar ao Bepe (tio do Candinho) na roça, onde ele cuidava de mais de quatro mil pés de café. O trabalho dela aumentara, mas isso era bom. A fábrica de cadeiras ficava no quintal, ela e os meninos empalhavam as cadeiras que Seu Batista fazia. Quando ela falava em ir a Jardinópolis, Candinho se esforçava na produtividade do empalhamento, pois desejava ir com a mãe, ver sua avó Maria Sandri, que o presenteava com doces e moedas. Assim, [...] dona Dominga leva Candim para Jardinópolis. Era enorme a casa da outra Nona, a casa maior que Candim já vira. Ele pôde, assim, esquecer-se um pouco da rua de baixo, do largo que não era mais dele, com a igreja, o cruzeiro e o coreto (RODRIGUES FILHO, 1966, p.128).

De acordo com o autor, nesta visita, Candinho passou em frente a uma venda de moringuinhas com a sua avó e lhe revelou o desejo de pintá-las e seus propósitos. Esta lhe deu o dinheiro necessário para comprar dez moringas. Ao vê-las, já enxergava neste objeto uma possibilidade de retornar para a sua antiga rua. Dessa forma, Candim viu umas moringuinhas a duzentos réis cada uma. Se ele pintasse uma flor, um boizinho, uma paisagem numa moringuinha daquelas, podia vender mais caro e dar o dinheiro para a mãe. E aí, com o dinheiro das moringuinhas, ele podia ir outra vez para a rua de cima (RODRIGUES FILHO, 1966, p.128). Memória Pintada da Infância na representação artística de Candido Portinari

29


Capítulo 2 | Infância de Candinho: entre histórias e brincadeiras

Capítulo 2 | Infância de Candinho: entre histórias e brincadeiras

Para Candinho, era mais fácil pintar uma moringuinha do que empalhar uma cadeira. “As comadres” as achavam lindas, porém nunca compraram, com histórias como “se der cachorro no jogo, comprariam”. Quem realmente comprou por dez tostões sem esperar que desse cachorro, foi Carlos Silva, é o que revela Rodrigues Filho. Assim, a infância continuava entre moringas, histórias, trabalhos e aventuras. Segundo o autor, Candinho sonhava em conhecer Batatais, pois esta era maior que Brodósqui, também maior que Jardinópolis. Quando o mestre Antão da Banda da Força Pública de São Paulo ia a Batatais, todos comentavam. De modo que:

surgindo. As mesmas brincadeiras foram ganhando novos significados pela imaginação dos meninos, a partir dos acontecimentos históricos da primeira década do século XX, que falaremos mais adiante. Sobre essa arte de narrar, Walter Benjamin (1980), crítico da modernidade, reconhecia a importância da narrativa tanto para o narrador quanto para o ouvinte, no sentido de este mergulhar na história ao ponto de esquecer-se de si mesmo. Em Brodósqui, os meninos escutavam as histórias que os adultos contavam, sentindo-se parte integrante do enredo revelado. As histórias têm sua função social e cultural na constituição dos sujeitos, e Candinho escutou muitas delas, fictícias e não fictícias. As de “Trancoso” eram narradas pela nonna Pelegrina e também pela D. Iria. Entre as histórias contadas por esta senhora portuguesa, como lembra Portinari (1979, p.44), estão: Roberto do Diabo, Roldão, Carlos Magno, reis, príncipes e princesas. Que lindas eram as suas histórias e que bom era esse tempo. À noite, a meninada ia para casa de D. Iria para escutar histórias. Adiante há um trecho de uma delas sobre o cometa Halley. Ela começava:

Seu Batista ia. Ia todos os músicos. Candim ficou sonhando em ir também. O Paulinho ia. Tocava pistão de ouvido e ia ver a banda do mestre Antão tocar em Batatais. [...] E Candim ficou. Até o último momento esperou que o pai olhasse e visse a tristeza dele: — Você vai. Mesmo descalço, com as calças de saco de farinha, com aquele chapéu grande na cabeça, como andava todos os dias. Seu Batista entrou no vagão, Paulinho atrás dele, e Candim se sentiu mais só do que nunca. A vontade que tinha era de chorar. Não ia chorar. Se chorasse, os meninos caçoariam dele (RODRIGUES FILHO, 1966, p.142).

Em conformidade com o autor, Candinho, João Negrinho e outros meninos de Brodósqui resolveram seguir os trilhos do trem, com o intuito de chegar a Batatais. Seguindo os trilhos, não tinha errada, a primeira cidade maior que Brodósqui seria Batatais, diziam que eram três léguas ou dezessete quilômetros, coisa assim. Mas, para eles, cobrir tal percurso era muito desgastante, tanto pela distância quanto pelo sol forte que fazia. Chegaram ao cair da tarde em Batatais, cansados e famintos. Candinho só queria ver a cara do pai de assustado quando o visse. A banda estava na praça, o pai só podia estar perto, pois a música era algo apreciada por Seu Batista. “Candim viu o pai de pescoço esticado, olhando o mestre Antão no coreto [...]” (RODRIGUES FILHO, 1966, p.145). Segundo Rodrigues Filho (1966), o pai de Candinho ficou tão espantado com a coragem do filho que não quis mais saber do mestre Antão. Só era apresentando Candinho a um e a outro e contando a aventura dos meninos. Na volta, todos regressaram de trem e foi muito divertido, pois ficavam brincando nos vagões. Depois dessa história, quem sentira vontade de ter ficado em Brodósqui para ter ido a pé fora Paulino. O tempo vai passando, os meninos se desenvolvendo e Brodósqui vai se modificando. A energia elétrica simbolizava o progresso da cidade e outras histórias iam

30

Memória Pintada da Infância na representação artística de Candido Portinari

— Vem aí um cometa — começou D. Iria — com um rabo de fogo. Nem parecia uma história. O rabo de fogo ia crescer dia a dia, até encostar no chão. — Por enquanto não vai ter perigo — disse D. Iria. — Quando vai ter perigo? — Perguntou Candim sentindo uma coisa na garganta. — Quando encostar no chão. Aí a terra acaba. — E demora muito? — Era Candim outra vez. — Demora, sim. O rabo do cometa não cresce depressa. Se você olhar pro céu, talvez nem veja o rabo do cometa. [...] — Não tem nem cometa, dona Iria — disse Candim. — Eu procurei no céu e não encontrei. — É que não dá pra ver. Mas o rabo do cometa está crescendo, nunca para de crescer. — E se nós rezar pra ele não crescer? — É Deus que está fazendo crescer o rabo do cometa. — Pra quê? — Pra castigar a maldade do mundo. — Quando der pra ver, dona Iria, eu vou pintar o rabo do cometa. — Pois vai ser o mais bonito desenho que você vai fazer, Candim. (RODRIGUES FILHO, 1966, p.217-219).

Entre histórias, brincadeiras e apelidos, os meninos de Brodósqui iam crescendo. Candinho não pintou o rabo do cometa, porém desenhou o retrato de Carlos Gomes16, 16. Maestro e compositor consagrado, autor da ópera O Guarani.

Memória Pintada da Infância na representação artística de Candido Portinari

31


Capítulo 2 | Infância de Candinho: entre histórias e brincadeiras

Capítulo 2 | Infância de Candinho: entre histórias e brincadeiras

que estava estampado num maço de cigarros. Desenhou-o tão bem que Seu Batista estava decidido que, na primeira oportunidade, matricularia seu filho na Escola de Belas Artes. Enquanto Candinho não segue o seu destino rumo ao Rio de Janeiro, vamos nos adentrar no mundo dos brinquedos e das brincadeiras deste menino, conforme ele mesmo destaca:

Os meninos sempre inventavam brincadeiras para se divertir, seja nos meses de inverno, seja em outros meses. Agosto era o mês de ventos favoráveis aos brinquedos do ar. Setembro e novembro eram meses em que se comemoravam as datas cívicas. Conforme, Rodrigues Filho (1966), o coronel Zé Aleixo, que fora capitão da Guarda Nacional, e o seu Verçosa, que fora tenente, ambos nessas datas, vestiam a farda do passado e iam cheios de glórias para o largo da estação ouvir a banda tocar. Candinho e os outros meninos, após a cerimônia, gritavam em coro: “— Guarda Não Sou-de-Nada!” (p.93). Os brodosquianos se divertiam com a mangação dos meninos. Estes, por sua vez, encontravam na sonoridade das palavras mais uma forma de brincar. Por esse tempo, Candinho já tinha três irmãos: Paulinho, Tata e Zé, depois viriam mais oito. Foi um período que ficara em casa à noite, pois Zé estivera muito doente. De seu quarto, ouvia as vozes das meninas brincando de roda no largo. A melodia parecia triste e dizia o seguinte:

Nossos brinquedos eram variados, conforme o mês, e também havia os para o dia e os para a noite. Para o dia, eram: gude, pião, arco, avião, papagaio, diabolô, bilboquê, ioiô, botão, balão, malha e futebol. Para a noite: pique, barra-manteiga, pulando carniça, etc. Tinha o cabelo branco e apelidavam-me de vovô (PORTINARI, 1979, p.43-44).

Em conformidade com o autor, podemos perceber o caráter sazonal de certos brinquedos, no caso do balão e da pipa, este último também conhecido como papagaio e outras denominações em outros estados do Brasil. Este objeto milenar, segundo Atzingen (2001), não surgiu como brinquedo, mas como dispositivo de sinalização militar. Em Brodósqui, fora muito apreciado por Candinho e os meninos de seu tempo, uma de suas características é a sazonalidade, pois depende de ventos fortes. Trata-se de uma brincadeira de disputa, vence quem cortar primeiro a linha do outro. Candinho “derrubava os papagaios dos outros e ria feliz. Mas chorava vendo o papagaio dele cair, rodopiando, sem linha, até se arrebentar no chão” (RODRIGUES FILHO, 1966, p.141). A pipa, o pião e a bola foram alguns dos brinquedos em evidência nas brincadeiras representadas na obra portinariana. Acredito que essa divisão entre dia e noite está relacionada mais à visibilidade do objeto na brincadeira. Enquanto que as brincadeiras citadas para a noite não fazem uso de artefatos lúdicos, nesse caso, o corpo é o próprio brinquedo para a brincadeira acontecer. Mais uma vez, o tempo e os fenômenos da natureza contribuíam com as atividades brincantes de Candinho e de outros meninos brodosquianos. Observemos que: As chuvas nos traziam novos brinquedos, uns faziam barquinhos de papel e os deitavam n’água, outros patinavam nas sarjetas e os mais destemidos iam nadar nos mata-burros; poderiam acontecer mil coisas, mas felizmente recordo nunca haver acontecido nada de grave. Um dia de chuva, voltei para casa todo molhado e com sarampo. Dizia-se que onde se contraiu o sarampo ali deve ser curado e assim tratei na chuva o meu (PORTINARI, 1979, p.45).

32

Memória Pintada da Infância na representação artística de Candido Portinari

Onde está a Margarida Olé, olé, olé Onde está a Margarida Olé, seus cavaleiros. (RODRIGUES FILHO, 1966, p.100).

É possível perceber que há uma separação de gêneros nas brincadeiras. Tanto Rodrigues Filho quanto Portinari referem-se sempre às brincadeiras dos meninos. Parece que não havia meninas brincando entre os meninos, com aqueles brinquedos tipicamente masculinos, como o pião, a pipa e a bolinha de gude. A presença das meninas, nas raras vezes em que aparecem, é nas brincadeiras de roda, mais tarde foram também representadas em algumas obras do artista. Os meninos de Brodósqui brincavam de brincadeiras cantadas, a bela-mula, conhecida também por pula-cela e pula-carniça, era uma das preferidas da meninada. Aos gritos, eles cantavam e brincavam de bela-mula: Um, para começar. Dois, Felipe Salandré Três, cala a boca português Quatro, pulo bem alto Cinco, metelinco Seis, o diabo que te fez. (RODRIGUES FILHO, 1966, p.39)

Nesse tempo, a iluminação ainda era a gás, o acendedor de lampião era o José Argentão, pai do Quique, um dos meninos que brincavam com Candinho. Argentão limpava os lampiões, jogava fora as pedrinhas brancas de carbureto, pedrinhas essas que davam outras brincadeiras: Memória Pintada da Infância na representação artística de Candido Portinari

33


Capítulo 2 | Infância de Candinho: entre histórias e brincadeiras

Era um lampião aqui, outro ali, longe, o largo escuro de se ver os vaga-lumes apagando e acendendo. Então os garotos cantavam Vaga-lume, tem, tem Sua mãe tá aqui Seu pai também Vaga-lume, tem, tem. (RODRIGUES FILHO, 1966, p.39)

Além das brincadeiras tradicionais, as crianças inventavam outras brincadeiras e também confeccionavam os seus próprios brinquedos, como o estilingue (conhecido como baladeira no Nordeste), o pião, o ioiô, o cavalo de pau e os papagaios. São brinquedos e brincadeiras tradicionais que têm uma história, e que, por motivos diversos, encontram-se dentro da cultura na qual estão inseridos, de modo que, em Brodósqui, era uma festa para os meninos, que percorriam o povoado com o palhaço divulgando o espetáculo, da seguinte forma: “O palhaço o que é?”; Resposta: “Ladrão de muié”; “Olha o negro no portão”; Resposta: “Tem cara de tição”. (PORTINARI, 1979, p.50). Assim, algumas brincadeiras reforçam a discriminação relacionada à cor da pele, é importante observar que a prática do racismo atravessou os séculos na história do Brasil, permanecendo de forma velada ou escancarada até hoje. Praticadas de forma que muitas vezes tal discriminação passa despercebida pelas crianças de cor branca, ou seja, elas pensam que é algo natural, se tornou habitual, que não fere. E as crianças de cor negra, como elas se sentem? Vale dizer que algumas brincadeiras carregam marcas de racismo, resultado do sistema escravocrata, paternalista. Portinari, ao registrar essa cultura circense de “brincar”, no que tange à negritude, faz-nos pensar sobre o discurso de alguns teóricos sobre esta questão. Para Jandson Silva (2005): Na nossa história, o discurso racial emerge a partir do momento em que se colocam índios e negros numa condição natural de inferioridade em relação aos brancos. Assim como no caso das etnias, a justificativa inicial para essa enunciação é a moral cristã (SILVA, 2005, p.129).

34

Capítulo 2 | Infância de Candinho: entre histórias e brincadeiras

Embora essa questão racial não seja o foco deste livro, vale a pena destacá-la, uma vez que ela atravessa esses objetos culturais que são os livros. Como o(a) leitor(a) pode observar, encontrei nas leituras vestígios de racismo nas “brincadeiras” e que muitas vezes repassamos sem refletir sobre as consequências de uma simples “brincadeira”. Abri mais esses parênteses sobre o assunto para que fiquemos atentos. Outro assunto social que importa ressaltar foi o sonho de Candinho de voltar para a rua de cima ter se concretizado. Segundo Pellegrina Portinari17 (1985), o Sr. Sílvio Estrada viu Seu Batista triste por não ter onde morar, pois a casa na qual ele morava na rua de baixo havia sido vendida. Ele ofereceu um terreno para ser pago quando Seu Batista pudesse. Ela diz que muitas pessoas ajudaram a construir a casa com trabalho. Enquanto isso, moraram na casa da nonna e do tio Bepe. Assim ela relata: Para fazer a casa. Fizeram quatro cômodos (sic). E nós entramos, mesmo sem rebocar o chão, e por muito tempo o chão era de terra. Punha cinza, ficava bonito. Mas sentava, as cadeiras afundavam. A gente ficava tão triste! (PELLEGRINA, apud Depoimento ao Projeto Portinari, 1985, p.21).

Conforme Rodrigues Filho (1966), a casa da rua de cima não era aquela imaginada por Candinho, mesmo assim, ficava na rua de cima. O que incomodava era o fato de ser tão perto do cemitério, pois era a primeira coisa que via ao sair de casa. Ao direcionar o seu olhar para esse lugar, ele se benzia, depois se dirigia para o largo que voltava a ser dele, pois, no dizer do autor: Todas as ruas de Brodósqui davam para o largo. Chamava-se, porém, rua de baixo a que ficava no fundo do largo e começava onde acabava o largo. A rua de cima, não. Ia do cemitério ao largo da estação. O largo da igreja ficava no meio e era como se pertencesse à rua de cima. Candim não se sentia mais exilado (RODRIGUES FILHO, 1966, p.147).

Todavia, por esse tempo, diz o autor, Candinho não mais ficava no largo, pois tinham chegado em Brodósqui uns pintores para pintar a igreja. Enquanto os outros meninos se divertiam em subir nos andaimes para pular nos montes de areia, Candinho ia para a igreja com o intuito de ver os pintores. Depois de muito insistir em ajudar na pintura, eles permitiram que Candinho os auxiliasse. Ele subiu nos andaimes e aprendeu uma

Essa é uma discussão atual e importante relacionada não só à cultura lúdica. Refletir sobre essas questões históricas, sob a luz do presente, é o nosso papel de educadores; devemos ficar atentos aos momentos de brincadeiras, no intuito de nos posicionarmos frente a tais práticas inaceitáveis. Assim, segundo Costa (2005, p.29), “[...] a prática lúdica pode ser tomada como uma manifestação cultural, e como tal processo de significação, cuja natureza oferece possibilidade de leituras de outros fenômenos que não o lúdico, tais como as representações sociais”.

17. É a Tata, irmã de Candinho, que recebeu o mesmo nome da avó paterna, Pellegrina. Entrevista concedida às pesquisadoras Rose Goldschmidt e Ângela Lessa. Faz parte do Programa Depoimentos do Projeto Portinari. Esta é a casa onde fica o Museu Casa Cândido Portinari, afirma Pellegrina Portinari.

Memória Pintada da Infância na representação artística de Candido Portinari

Memória Pintada da Infância na representação artística de Candido Portinari

35


Capítulo 2 | Infância de Candinho: entre histórias e brincadeiras

nova técnica: o spolvero, que consistia num saquinho cheio de tinta em pó para ser aplicada com batidinhas na parede. Assim, ele pintou as estrelas da igreja. A partir dessa experiência, como também do retrato de Carlos Gomes feito por Candinho, Seu Batista percebia que Brodósqui era pequena demais para o talento de seu filho. Ele acreditava que Deus haveria de ajudar. Na entrevista concedida a Goldschmidt e Lessa (1985), do Projeto Portinari, Pellegrina fala sobre a idade que Candinho tinha na época da viagem ao Rio de Janeiro. Ah, ele era muito pequeno. Eles falam 15 anos. Não tinha 15 anos. Nós estávamos tudo doente, com a gripe. Tudo pobre, não é? Então ele me falou: ‘— Eu não vou’. Falei: ‘— Não, vai Candinho. Se você não for agora, não vai mais. Vai. (PELLEGRINA, apud Depoimento ao Projeto Portinari, 1985, p.5).

Pellegrina se refere à gripe espanhola, de 1918, que aparece após o fim da Primeira Guerra Mundial, vitimando milhares de pessoas em várias partes do mundo. Na casa de Candinho, segundo Rodrigues Filho (1966) e Pellegrina (1985), todos pegaram a gripe, menos Candinho. Embora dissesse estar doente para não viajar com Quirino para o Rio de Janeiro, não teve jeito, viajou. Em conformidade com o jornalista-escritor (1966), Candinho fez o percurso entre lágrimas e recordações. Brodósqui ficava para trás, bem como as brincadeiras, os brinquedos e as histórias vividas com os meninos desse lugar. “Brodósqui era o largo, a rua de cima, a rua do meio, a rua de baixo, as casas, os cercados de pinhões, os mastros com bandeira de Santo Antônio, a estação, o cemitério, as pitas, as caveiras de boi, os espantalhos” (p.270). Desse modo, a partida fora um divisor de águas na infância e na adolescência desse menino de Brodósqui que nunca esquecera a cor de sua terra, representando-a com seus meninos e suas brincadeiras. Portanto, é fundamental compreendermos o brinquedo e a brincadeira como parte integrante da cultura lúdica infantil. Dentro desta perspectiva é que, no capítulo a seguir, será analisado o lugar que cada um ocupa no universo imagético portinariano.

36

Memória Pintada da Infância na representação artística de Candido Portinari


Capítulo 3 | O lugar do brinquedo e da brincadeira na obra de Candido Portinari

Capítulo 3

O lugar do brinquedo e da brincadeira na obra de Cândido Portinari Lugar arenoso no meio da terra roxa Cafeeira. Imenso céu azul circula O areal. Milhares de brancas nuvens Viajam. Caravanas luminosas Em movimento. O mais solitário, ali Deixaria de sê-lo. Toda essa fagueira Companhia. Alegre e promissor Futuro... (Candido Portinari) A partir de algumas histórias narradas e das brincadeiras já descritas no capítulo anterior, que constituíram parte das memórias de infância de Candinho, importa dizer que o objetivo aqui proposto é analisar o lugar ou os lugares do brinquedo e da brincadeira na obra de Candido Portinari. Antes de adentrarmos nessa complexa tarefa, faz-se necessário uma breve definição sobre o que é brinquedo e o que é brincadeira. Para Gilles Brougère (2004), o brinquedo é, sobretudo, um suporte de representação. O autor amplia mais a definição: O brinquedo é um objeto infantil e falar em brinquedo para um adulto torna-se, sempre, um motivo de zombaria, de ligação com a infância. O jogo, ao contrário, pode ser destinado tanto à criança quanto ao adulto: ele não é restrito a faixa etária. Os objetos lúdicos dos adultos são chamados exclusivamente de jogos, definindo-se, assim, pela sua função lúdica. O brinquedo é um objeto distinto e específico, com imagem projetada em três dimensões, cuja função parece vaga. Com certeza, podemos dizer que a função do brinquedo é a brincadeira. [...] no brinquedo, o valor simbólico é a função [...] O brinquedo é, assim, um fornecedor de representações, de imagens com volume: está aí, sem dúvida, a grande originalidade e especificidade do brinquedo, que é trazer a terceira dimensão para o mundo da representação (BROUGÈRE, 2004, p.13-14).

O mesmo autor define também o que entendemos por brincadeira, ele esclarece: A brincadeira é, antes de tudo, uma confrontação com a cultura. Na brincadeira, a criança se relaciona com conteúdos culturais que ela reproduz e transforma, dos quais ela se apropria e lhes dá uma significação. A brincadeira é a entrada na cultura. Numa cultura particular, tal como ela existe num dado momento, mas com todo seu peso histórico. Memória Pintada da Infância na representação artística de Candido Portinari

39


Capítulo 3 | O lugar do brinquedo e da brincadeira na obra de Candido Portinari

A brincadeira é um processo de relações interindividuais, portanto, de cultura. É preciso partir de elementos que ela vai encontrar em seu ambiente imediato, em parte estruturado por seu meio, para se adaptar às suas capacidades. A brincadeira pressupõe uma aprendizagem social. Aprende-se a brincar. A brincadeira não é inata, pelo menos nas formas que ela adquire junto ao homem (BROUGÈRE, 2004, p.76-77-97-98).

Partindo dessas definições e das memórias de infância de Candido Portinari é que proponho problematizar sobre o lugar ou os lugares do brinquedo e da brincadeira no universo plástico desse artista. Quais os brinquedos e as brincadeiras representadas em sua poética visual? Que lugar ou lugares são esses que povoam a imagética de sua obra no que se refere à ludicidade? Retornaremos às memórias de infância, no sentido de redescobrir este lugar ou estes lugares, ou “não lugar”18, que permeiam a especificidade da infância representada em cores, em linhas, em poesia, por esse artista que soube tão bem representar a cultura lúdica em sua obra. No que tange às brincadeiras, uma figura marcante na memória de Portinari foi a do Padre Josué. Esse sacerdote, com a preocupação de legitimar sua religião entre a meninada, tratou logo de agradá-los: Organizou uma escola eficiente em local apropriado; em seguida, transformou a praça em campo de esporte com gangorra, balanço, barra, argola e um jogo que gostávamos muito. Chamava-se esse jogo beti. Depois, ele montou um cinema; para poder frequentá-lo, era preciso ter pontos que se ganhavam conforme a lição do catecismo (PORTINARI, 1979, p.42).

Os brinquedos postos na praça eram mais uma possibilidade de brincadeira. O cinema representava novidade e diversão, mas tinha um preço: aprender o catecismo. A brincadeira era totalmente gratuita. Para acontecer, era necessário o espírito de brincar. A praça era o espaço no qual aconteciam as brincadeiras, para a alegria dos meninos. No que se refere à escola, não encontramos nenhuma referência ao lúdico. Esta aparece como um lugar de estudo e de castigo. Em se tratando de castigo, pode-se afirmar que era uma prática usual das famílias e da escola dessa época, cujo objeto disciplinador era a palmatória. Vale dizer que a primeira casa na qual morou Candinho ficava atrás da Igreja de Santo Antônio e tinha um cercado de pinhões e uma porta de acesso à venda de Seu Batista. A casa, além de ser um lugar de relações familiares, narrativas, tinha também os seus momentos de castigo. Segundo Rodrigues Filho (1966), quando os filhos aprontavam, D. Dominga lhes dava umas tamancadas, a exemplo de tantas outras mães por esse Brasil afora. Entre tensões e aventuras, o espaço é reconfigurado, a vida na pequena Brodósqui das primeiras décadas do século XX se apresenta nas rememorações do artista, assim: O campo era o nosso melhor refúgio. Além dos frutos silvestres que havia sempre, durante todo ano, conhecíamos todos os recantos, todas as árvores; nas maiores subíamos para espiar o panorama, era agradável. Armávamos arapucas; bem me lembro quando, pela primeira vez, apanhei um sangue-de-boi (RODRIGUES FILHO, 1966, p.43).

18. Não-lugares é um conceito do antropólogo Francês Marc Augé, que compreende espaços como não identitários, não históricos, nem relacionais. O não lugar foi produzido pela supermodernidade, refere-se aos pontos de trânsito, como é o caso de aeroportos, rodoviárias, estações de metrô, dentre outros.

Desse modo, podemos destacar que o campo dava essa sensação de liberdade, ao mesmo tempo em que fornecia suporte para a brincadeira, ou seja, os meninos subiam nas árvores para admirar a vista do lugar. Eles tiravam da natureza a matéria-prima para a construção de seus brinquedos, como a madeira para as arapucas e as forquilhas para os estilingues. Quantas vezes os meninos de Brodósqui tinham que interromper as brincadeiras para testemunhar a tristeza dos retirantes que atravessavam a pequena cidade levando seus mortos na rede para enterrá-los pelos caminhos por onde passavam. Essas cenas permaneceram na memória de Candinho para serem transpostas em sua estética visual, anos mais tarde. Rodrigues Filho (1966) afirma que, após o enterro, os “baianos” jogavam o pau junto à porteira preta da Fazenda da Prata, do Capitão João Ramos. Durante o dia, Candinho ia cortar forquilhas para fazer estilingues perto da porteira preta. Durante a noite, nem gente grande passava perto da porteira, pois diziam ser mal-assombrada, fechava e abria sozinha, revela o jornalista-escritor.

Memória Pintada da Infância na representação artística de Candido Portinari

Memória Pintada da Infância na representação artística de Candido Portinari

Observe as respostas de Candinho sobre a lição do catecismo, segundo Rodrigues Filho. — Por que você está na terra, Candim? — Eu estou na terra — respondia Candim — para conhecer, amar e servir a Deus. E para pintar, tinha vontade de dizer. Mas não estava na resposta. Precisava ganhar os pontos do catecismo para ir ao cinema de graça (RODRIGUES FILHO, 1966, p.203).

40

Capítulo 3 | O lugar do brinquedo e da brincadeira na obra de Candido Portinari

41


Capítulo 3 | O lugar do brinquedo e da brincadeira na obra de Candido Portinari

Capítulo 3 | O lugar do brinquedo e da brincadeira na obra de Candido Portinari

Portinari diz que “o céu, a igreja, a terra e o cemitério estão sempre na cogitação da gente” (1979, p.45). O artista faz uma reflexão sobre a nossa ligação entre o plano terreno e o plano espiritual. A religiosidade presente no seio familiar contribuiu para a crença inicial em Deus, que mais tarde se dissipou. Não estou falando de religião, mas em capacidade de acreditar na vida, nos homens como seres capazes de transformar uma realidade. Sobre a morte, destaco aqui um comentário do artista a respeito do assunto, ao dizer:

Mesmo sem um acordo entre os meninos, havia a batalha, “era pei para lá, era pei para cá”. O Zé, outro irmão de Candinho, cansado de dar tiro sem matar ninguém, logo transformava a espingarda num cavalo de pau e saía pelo largo a cavalgar. Assim, a realidade era representada na prática lúdica dos meninos. Quanto ao largo19, podemos pensar como um dos lugares visíveis para a brincadeira acontecer; a imaginação, como lugar invisível para a elaboração da ação brincante; a memória, o lugar do vivido, cujas reminiscências são a matéria que o pintor vai dar forma e conteúdo na construção de sua obra. Portinari soube expressar com alma e talento a infância em sua pintura. Ainda sobre a guerra, vale lembrar a história que a D. Iria contava acerca do rabo do cometa: “— A guerra rebentou e não tem nenhum cometa — foi como Candim entrou na casa de Dona Iria” (RODRIGUES FILHO, 1966). Ela, então, fez uma associação do rabo do cometa aos bombardeios entre os países inimigos, justificando para os meninos sobre a história do rabo do cometa. Este caiu na Europa, tranquilizando Candinho, que ficara feliz por seus pais e as duas nonnas terem vindo para o Brasil. E pergunta: “— E o cometa pode chegar aqui?; D. Iria diz que: “— Só se o Brasil entrar na guerra” (RODRIGUES FILHO, 1966). Seu Batista ia todas as noites ler o jornal com dois dias de atraso na venda do Sr. Joaquim Henrique. Candinho só ia brincar depois de ouvir as notícias, lidas por seu pai, sobre a I Guerra Mundial. Já que a memória é o subsídio que dá força à narrativa, por isso, reporto-me muitas vezes a ela e, vez por outra, à história. É importante esclarecer a diferença entre ambas. Para o historiador francês Pierre Nora (1981, p.9),

A sepultura que mais me impressionou é de um jovem, Petrarqui, que deve ter morrido antes do meu nascimento. Diz: “O que vós sois eu fui, o que eu sou vós sereis”. Sempre que passava em frente desse túmulo, sentia um frio pela espinha. O terror e a insegurança contrastavam nitidamente com os nossos sonhos. Quantas vezes ficava à espera de alguma coisa que me livrasse dali e ao mesmo tempo me dava pena sair (PORTINARI, 1979, p.45).

Essa frase lapidar marcou-o profundamente. Era intrigante e, ao mesmo tempo, tão clara, criava-se um paradoxo entre a vida e a morte. Em suas memórias de infância, é perceptível a forte relação com a morte, pois esta era presente quase todos os dias em Brodósqui, seja na passagem dos retirantes, seja na labuta nas fazendas de café. O certo é que logo se espalhava a notícia de algum defunto. Entre mortes, brinquedos e brincadeiras, as crianças brodosquianas iam crescendo. Tais acontecimentos fúnebres despertavam nelas as brincadeiras de “bandido e soldado”, pois “os mortos estavam enterrados e os meninos brincavam de bandido e soldado. Todos queriam ser soldados (RODRIGUES FILHO, 1966). As notícias da Primeira Guerra Mundial, de 1914, também mexiam com a imaginação dos meninos. A brincadeira de “guerra” era explorada, e o brinquedo feito por Candinho era espada, e o dos outros meninos, carabina de cabo de vassoura. A cena lúdica começava: — Quem é grande é alemão — Candim desafiava Paulinho. Paulino não queria ser alemão. Nem Paulino, nem Quique, nem Turim, nem Pé de Ferro, nem Tabaquim. — Vocês são o quê? — Perguntava Candim. — Franceses — respondia Paulino. — E como é que nós vai brigar? (RODRIGUES FILHO, 1966, p.228).

42

Memória Pintada da Infância na representação artística de Candido Portinari

A memória é vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela está em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas deformações sucessivas, vulnerável a todos os usos e manipulações, suscetível de longas latências e de repentinas revitalizações. A história é a reconstrução sempre problemática e incompleta do que não existe mais. A memória é um fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente; a história, uma representação do passado. Porque é afetiva e mágica, a memória não se acomoda a detalhes que a confortam; ela se alimenta de lembranças vagas, telescópicas, globais ou flutuantes, particulares ou simbólicas, sensível a todas as transferências, cenas, censuras ou projeções. A história porque operação intelectual e laicizante demanda análise do discurso crítico. A memória instala a lembrança no sagrado, a história a liberta, e a torna sempre prosaica. A memória emerge de um grupo que ela une, o que quer dizer, como Halbwachs o fez, que há tantas memórias quantos grupos existem; que ela é, por natureza, múlti19. Um tipo de praça seca, sem brinquedos, um espaço amplo, extenso de lado a lado.

Memória Pintada da Infância na representação artística de Candido Portinari

43


Capítulo 3 | O lugar do brinquedo e da brincadeira na obra de Candido Portinari

pla e desacelerada, coletiva, plural e individualizada. A história, ao contrário, pertence a todos e a ninguém, o que lhe dá uma vocação para o universal. [...] Os lugares de memória nascem e vivem do sentimento que não há memória espontânea, que é preciso criar arquivos, que é preciso manter aniversário, organizar celebrações, pronunciar elogios fúnebres, notariar atas, porque essas operações não são naturais. [...] Sem vigilância comemorativa, a história depressa os varreria (NORA, 1981, p.9).

O lugar do brinquedo e da brincadeira, na obra de Candido Portinari, aparece concretizado em pinturas, desenhos, poesias e memórias, como forma de lembrar sua infância em Brodósqui20. Geograficamente, esse povoado foi o lugar com todas as suas paisagens: o largo da estação, o largo da igreja, o coreto, o campo de futebol em frente ao cemitério, a praça, a rua de baixo, a rua do meio, a rua de cima, os campos, as fazendas de café e os sítios. Aqui, nas suas memórias, Portinari encontrou um lugar de pertença, o lugar do vivido, que tão bem representou em cores e linhas. Brinquedos e brincadeiras entrecruzando as tragédias dos retirantes que iriam ter um lugar específico na obra portinariana. As memórias de infância é outro lugar específico que podemos identificar como um lugar representado por cores, linhas, texturas, volumes, formas e conteúdos que se transformam em poesia visual. Contudo, o próprio fazer artístico altera os espaços, ao sabor da memória ou da imaginação. A memória nos toca, afeta-nos, seja com riso, seja com choro, pois ela é viva, como diz Pierre Nora (1981), e também é responsável por lembranças e esquecimentos no tempo presente. As narrativas vão se constituindo pela necessidade de perpetuar uma memória. Os logradouros de Brodósqui foram testemunhos das histórias aqui apresentadas, no intuito de pensarmos acerca das representações lúdicas na obra de arte. Os lugares na arte tanto podem ser reais quantos imaginários. A brincadeira aparece como um lugar específico, porque faz alusão ao ser criança. A dinâmica da brincadeira pode levar à alteração das regras pelos brincantes, bem como do espaço disponível para a produção da brincadeira. Vale ressaltar a distinção entre lugares e espaços. Para pensar sobre esses conceitos, Michel de Certeau (1994) afirma que

44

Capítulo 3 | O lugar do brinquedo e da brincadeira na obra de Candido Portinari

Um lugar é a ordem [seja qual for] segundo a qual se distribuem elementos nas relações de coexistência. [...] Um lugar é, portanto, uma configuração instantânea de posições. Implica uma indicação de estabilidade. Existe espaço sempre que se tomam em conta vetores de direção, quantidades de velocidade e a variável tempo. O espaço é um cruzamento de móveis. [...] o espaço é um lugar praticado. Assim, a rua geometricamente definida por um urbanismo é transformada em um espaço pelos pedestres. Do mesmo modo, a leitura é o espaço produzido pela prática do lugar constituído por um sistema de signos – um escrito (CERTEAU, 1994, p.201-202).

20. Em 1893, é criada a Estação de Brodósqui para a escoação do café, pelo engenheiro Brodósqui. O distrito foi criado em 1902. Chegou à categoria de Vila, em 1906. A lei estadual nº 1381, de 22 de agosto de 1913, criou o município de Brodósqui. Ver <http://www.citybrazil.com.br/sp/brodosqui/index.php>. Acesso em: 27/06/2013.

A partir das palavras do autor, é possível dizer e reconhecer Brodósqui como o lugar de relações que fica num determinado espaço geográfico. Já o largo, o coreto, o campo de futebol, a imaginação, os sonhos, os arredores e as ruas de Brodósqui são os espaços praticados pelos meninos de Brodósqui. O lugar se relaciona com a ideia de pertencimento e de identidade. A infância vivida naquele lugar carrega esses laços de pertença e de afetividade. Portanto, a arte é um lugar singular e plural de relações com o brincar na estética visual de Portinari. Ela é legitimada como um lugar, que até mesmo a obra social do artista está permeada de recordações da infância, entrelaçando brincadeiras a cotidianidade do povoado e aos seus passantes, retirantes. Metaforicamente, a arte e a escrita são lugares que podem ser transformados em espaços pelos praticantes. É sabido por todos que a arte de Portinari ganhou visibilidade mundial e já conquistou um lugar na História da Arte. A travessia de fronteiras foi a redescoberta da infância. Mas, para isso, foi necessário viver em Brodósqui, sentir esse povoado, viver o lugar e sentir cada recanto para redescobrir em cores e em outras crianças, novas e velhas, para que também pudessem ter o prazer de conhecer, revisitar a memória, a história vivida e pulsada, transformada em linguagem visual. Crianças, adultos, todos nós, de uma forma ou de outra, encontramo-nos em sua obra. Ela é o lugar de encontro de lembranças de infância de Portinari e também daqueles que lançam um olhar para o que está dito e não dito na tela ou nos seus painéis. Arte e vida se misturam na resistência dos que lutam por um lugar ou por diversos lugares. A infância é a passagem que possibilita fincar no solo raízes invisíveis, de forma que não percamos a capacidade de sonhar, de chorar, de sorrir, de nos indignar, de acreditar, de amar, de brincar, enfim, de viver. O próximo capítulo discute a memória pintada do artista de Brodósqui em algumas de suas principais obras, cujos conteúdos denunciam as desigualdades sociais. As memórias de infância de Portinari estão imbricadas também nessas representações pictóricas.

Memória Pintada da Infância na representação artística de Candido Portinari

Memória Pintada da Infância na representação artística de Candido Portinari

45


Capítulo 4 | Memória pintada da infância na representação artística de Candido Portinari

Capítulo 4

Memória pintada da infância na representação artística de Candido Portinari A infância é compreendida pelo sociólogo Manuel Sarmento (2008, p.22) como uma categoria social do tipo geracional, e as crianças, seus atores sociais. Para o historiador Philippe Ariès (1981), o conceito de infância é um construto social e histórico ocidentalizado. Em outras épocas, não se tinha tal ideia, mas as mudanças na sociedade e na família e a institucionalização da educação escolar permitiram uma construção desse conceito. Esta categoria infância pode ser um lugar de experiências infantis povoado de histórias, às vezes, tristes, outras vezes, alegres, como também pode ser um espaço de brincadeiras, que, por sua vez, podem ser livres, dirigidas ou, quem sabe, até proibidas. Mas o certo é que todos nós guardamos na memória coisas que lembramos e coisas que nos esquecemos de nossos tempos de infância. Nesse sentido, Candido Portinari guardou para depois transformar em arte as suas memórias de infância. A sua imaginação articulada à realidade vivida em Brodósqui foi instigada por essas imagens de infância, as quais ele soube metamorfoseá-las em arte e poesia. É importante ressaltar que as memórias pintadas de Portinari perpassam todos os capítulos deste livro, ora em forma de narrativa, ora em forma de linguagem visual. Aqui, neste penúltimo capítulo, vou me deter à temática social no que tange suas imbricações com as recordações de infância. As obras analisadas são: Café, Enterro na rede e Família de Retirantes. A primeira se refere ao ciclo econômico, as outras duas retratam temas especificamente sociais. Assim, o entrecruzamento da poética visual com a vida contribuiu para a formação artística de Candido Portinari, que, ao se apropriar da miséria humana, elevou-a à categoria de obra de arte. Para compreender a vida e a obra do artista de Brodósqui, reitero aqui, mais uma vez, que os livros A infância de Portinari (1966), de Mário Rodrigues Filho, e Portinari: o menino de Brodósqui (1979), escrito pelo artista, foram primordiais para que refletíssemos sobre a relação da infância do pintor com a sua obra mais emblemática, ou seja, a que trata dos dramas humanos, como a morte, a violência social da exploração do homem pelo homem, as intempéries provocadas pelas estiagens e a ausência de uma política séria para combatê-las. Portinari, ao rememorar as cenas do trabalho nas fazendas de café, relata: Impressionavam-me os pés dos trabalhadores das fazendas de café. Pés disformes. Pés que podem contar uma história. Confundiam-se com as pedras e os espinhos. Pés semelhantes aos mapas: com montes e vales, vincos como rios. [...] Pés sofridos com muitos e muitos quilômetros de marcha. Pés que só os santos têm. Sobre a terra, difícil era distingui-los. Os pés e a terra tinham a Memória Pintada da Infância na representação artística de Candido Portinari

47


Capítulo 4 | Memória pintada da infância na representação artística de Candido Portinari

mesma moldagem variada. Raros tinham dez dedos, pelo menos dez unhas. Pés que inspiravam piedade e respeito. Agarrados ao solo, eram como os alicerces, muitas vezes suportavam apenas um corpo franzino e doente. (PORTINARI, 1979, p.52-53).

Essas imagens descritas impactaram o menino Candinho, ficaram impressas em sua memória, transformando-as posteriormente em arte. Observe em todos os quadrantes da imagem21 o movimento dos corpos na labuta nos cafezais. Com relação aos trabalhadores que estão em primeiro plano, pode-se observar a ênfase nos pés e sua íntima relação com o marrom da terra. Essa cor está disposta em diagonal, mostrando as tensões da realidade social pintada pelo artista. Nos quadrantes superiores, os pés de cafés se cruzam na diagonalidade das linhas formadas pelo verde. Aqui, não se vê o horizonte. Por quê? A tensão aumenta sob o olhar vigilante de um homem de botas, à esquerda do observador, próximo às sacas de café, que aponta para alguma coisa na cena pintada. Ressalto aqui a corporeidade enquanto dimensão do lembrado ou do vivido. Nessa mesma perspectiva, Delory-Momberger (2008, p.99) discute o espaço do corpo como lugar de experiência. A autora faz a seguinte reflexão: “Os homens habitam o espaço e o espaço os habita, eles constroem o espaço e o espaço os constrói, eles fazem o espaço significar e o espaço confere significado a seu ser e à sua ação”. Portinari comunica isso na sua obra ao exagerar na configuração das formas, significa sua ação na matéria plástica e na historicidade de suas temáticas. Em suas reminiscências, Portinari revela que, por volta dos cinco anos, ele e outros meninos brodosquianos começavam a mudar. Os mais velhos foram para a escola, ele fora, mas não tinha idade para estudar, e o professor mandava-o brincar. Assim, ele lembra que: Começávamos a abrir os olhos para a vida e uma vida povoada de sonhos, cansaços, grandes medos. Durante o dia, contavam-se histórias de lobisomem, mula sem cabeça, saci-pererê e almas de outro mundo. À noite, quando estávamos deitados, qualquer barulho nos apavorava. Também os irmãos mais velhos nos amedrontavam. Defunto era o nosso pesadelo, meus pais não deixavam que víssemos e por isso a curiosidade era grande. O primeiro que vi foi o Costinha, que tinha sido imprensado e esmagado entre sua carroça carregada de pedras e a parede da casa. Vi-o no caixão, passei muitas noites sem dormir. (PORTINARI, 1979, p. 42). 21. Ver obra Café (1935) página 76.

48

Memória Pintada da Infância na representação artística de Candido Portinari

Capítulo 4 | Memória pintada da infância na representação artística de Candido Portinari

A partir disso, podemos perceber que a infância não é somente uma época cheia de sonhos, de brincadeiras e de histórias fantasiosas, mas também de histórias verdadeiras e assustadoras. Portinari diz que, nas fazendas de café, aconteciam muitos crimes. O artista relata diversas barbaridades em suas memórias. “Nesse tempo, não passava dia sem enterro” (1979, p.52). Além dos crimes, havia os que morriam vítimas da miséria. O menino Candinho fora testemunha ocular de muitos cortejos fúnebres, pois morava próximo ao cemitério, e o campo de futebol era em frente a este. Quantas vezes não tiveram que interromper a partida para deixar passar um morto na rede! Os seus desenhos feitos na areia também eram destruídos pelas pisadas dos passantes e dos animais. As brincadeiras e as histórias se misturavam a uma dura realidade. Brosdósqui era passagem dos retirantes que vinham do Nordeste com destino a São Paulo. Não resistiam à fome e à longa viagem. Mais tarde, o artista representaria em sua obra o sofrimento dos retirantes. Quantas cenas de enterro na rede o menino Candinho presenciou? Quantas vezes a bola deixava de rolar no campinho de futebol dos meninos de Brodósqui para dar licença ao morto na rede? Assim, os meninos brodosquianos iam crescendo, dentre estes, estava Portinari. Na obra Enterro na rede22, é evidente a dramaticidade da cena na qual a figura feminina central se ajoelha e levanta as mãos para o alto, rogando aos céus piedade. Portinari, através da forma, transpõe para a tela uma carga de expressividade nos corpos, representados num grito de dor e sofrimento dos retirantes. A tensão expressa em cores, linhas e formas denuncia a penúria que o poder cala ou quer encobrir. Pés e mãos distorcidos aumentam a carga de dramaticidade da representação pictórica. O artista gravou em sua memória essas cenas impactantes, que foram transformadas plasticamente em denúncia social. Compreendemos que a obra de arte é aberta, assim como a memória, e está sujeita às interferências do tempo e das interpretações das pessoas, de modo que não podemos fazer afirmações absolutas acerca delas. No entanto, a partir dos elementos da linguagem visual, é essencial que a obra seja analisada tendo em vista esses princípios, isto é, seus elementos constitutivos, como a linha, o ponto, a cor, o plano, o volume, etc. Na obra supracitada, a cor predominante é o ocre, o movimento é dramático e tenso. A dor é exposta em volume e linhas da composição imagética. As recordações da infância de Portinari são muitas e atravessam a sua temática social, entrelaçando as histórias e as brincadeiras numa relação dialética entre o passado e o presente. No tocante às brincadeiras, Rodrigues Filho (1966) garante que havia 22. Ver obra Enterro na rede (1944) na página 77.

Memória Pintada da Infância na representação artística de Candido Portinari

49


Capítulo 4 | Memória pintada da infância na representação artística de Candido Portinari

Capítulo 4 | Memória pintada da infância na representação artística de Candido Portinari

momentos de intensa alegria. Todavia, esses momentos, muitas vezes, iam dando lugar à tristeza e ao medo que o menino Candinho sentia quando via os retirantes passando e carregando um pau grosso nos ombros, pois os homens tinham expressões duras nas faces, e as mulheres choravam. Eram cenas dos enterros na rede. Candinho sabia que dentro daquela rede balançando havia um morto. Nas palavras de Santos (2007, p.50), “essa relação corporal com a materialidade plástica, no sentido de transformá-la numa obra de arte singular, é resultante de sua técnica e de sua sensibilidade artística de ver a realidade”. Por exemplo, a Série Retirantes23 é estilizada na forma e profundamente realista no conteúdo estampado no sofrimento dos desvalidos da seca. Nela, Portinari utiliza-se do Expressionismo para denunciar o estado de miséria dos retirantes. Nessa obra, o céu aparece povoado por urubus que almejam a carniça exposta nos quadrantes inferiores da pintura. A família numerosa de retirantes ocupa a parte central da tela. Nos seus semblantes, está expresso o sofrimento. A penúria se configura nos corpos esqueléticos que dialogam com a cor fria que predomina no fundo da pintura. A partir das rememorações e de suas experiências em terras estrangeiras e do contato com as vanguardas, o seu potencial criador ganhou outra dimensão, dando originalidade à sua poética visual. Em Paris, no ano de 1946, Portinari expôs sua série Meninos de Brodowski e Retirantes. Segundo Antonio Callado (1956, p.111), o Duque de Windsor, comparecendo à mostra, quis comprar algum trabalho e indagou a Portinari: “— Não há flores?”; “— Flores, não — disse o pintor — só tenho miséria”. O artista de Brodósqui desfigura seus personagens da cena pictórica, no intuito de provocar no interlocutor um impacto na realidade social e brutal de homens, mulheres, crianças, velhos e animais que sofrem com as intempéries causadas pela estiagem, bem como pela falta de uma política que queira acabar com a penúria do povo nordestino. Forma e conteúdo são elementos que constituem a dramaticidade da obra portinariana. É nessa mesma perspectiva social e histórica que Walter Benjamin (1995) escreve sobre Infância em Berlim, por volta de 1900, nesse encontro do adulto com suas memórias de infância que se entrecruzam na coexistência das temporalidades. Para esse autor, a infância carrega um profundo sentido histórico, atravessado pelas memórias individual e coletiva, que narram as experiências vividas nessa relação dos homens com o tempo. A infância portinariana é, neste estudo, compreendida numa perspectiva da infância benjaminiana, inter-relacionada ao universo social, cultural e histórico. No caso de Portinari, o lugar do vivido é Brodósqui, as experiências foram impressas na memória e transpostas para o seu fazer artístico. E foi por valorar a dimensão social que Portinari ultrapassou as fronteiras geográficas com a sua arte. A grandiosidade de sua arte impulsionou mais um dentre tantos escritos sobre o artista e sua obra.

Ainda sob a dialética da lembrança, a infância de Portinari é pensada neste estudo como um espaço de poesia. O poeta Manuel Bandeira garante que: Não se pode, porém, dizer tudo pelos meios plásticos. Havia ainda em Portinari muito que contar da infância e do povoado. E, ultimamente, Portinari começou a escrever umas coisas a modo de poemas. Ele as chama simplesmente de escritos. “Vão aqui mais alguns escritos”, diz-me nos bilhetes que acompanham a remessa das suas produções literárias. São realmente poemas. Naturalmente a técnica de Portinari-poeta está longe do Portinari-pintor. Ele próprio tem consciência disso: “Quanta coisa eu contaria se pudesse e soubesse ao menos a língua como a cor”. (BANDEIRA, 1966, p.52).

Bandeira (1966) reconhece a relação de afinidades entre a arte literária e a arte pictórica, considerando-as “irmãs gêmeas”. O poeta e o artista buscam a arte um do outro, no sentido de se completarem. A incompletude é a garantia da busca daquilo que nos falta. Portanto, literatura e pintura são linguagens constituídas de sentimentos diversos, que encontram nos seus praticantes e apreciadores possibilidades de sonhar, de criar e de falar por outros canais não convencionais. Candido Portinari registrou, nos seus versos e na sua pintura, as suas recordações de infância. As cenas dos enterros na rede e dos retirantes, a que assistiu quando criança impactaram-no. Observe o poema escrito sobre essa temática social: Os retirantes vêm vindo com trouxas e embrulhos Vêm das terras secas e escuras; pedregulhos Doloridos como fagulhas de carvão aceso Corpos disformes, uns panos sujos, Rasgados e sem cor, dependurados Homens de enorme ventre bojudo Mulheres com trouxas caídas para o lado Pançudas, carregando ao colo um garoto Choramingando, remelento Mocinhas de peito duro e vestido roto Velhas trôpegas marcadas pelo tempo Olhos de cataratas e pés informes Aos velhos cegos agarradas Pés inchados enormes Levantando o pó da cor de suas vestes rasgadas (CANDIDO PORTINARI, 1964, p.77-78).

23. Veja essa obra na página 78.

50

Memória Pintada da Infância na representação artística de Candido Portinari

Memória Pintada da Infância na representação artística de Candido Portinari

51


Capítulo 4 | Memória pintada da infância na representação artística de Candido Portinari

Ao entrecruzar suas memórias de infância com a sua arte, o artista denunciou, pelas cores, pelas formas e pela escrita, os sofrimentos de homens e de mulheres condenados não só pela natureza, mas, sobretudo, pelas desigualdades sociais que imperam no país. A imagem é forte, por isso ficou gravada na memória de Candinho, que soube dar um sentido plástico e poético às suas experiências, que, para Josso (2008, p.29), trata-se do “[...] conjunto de aquisições acumuladas ao longo da vida, que é analisado em termos de experiências formadoras e/ou fundadoras”. Nesse sentido, as somas dessas memórias da infância de Cândido Portinari e de seu conhecimento no campo das artes resultaram em sua formação artística. No próximo capítulo, a interlocução entre artes visuais e literatura continua, e, para finalizar, compartilho com o(a) leitor(a) a minha experiência vivida na escola. Analisarei as obras de Portinari relacionadas ao lúdico trabalhadas em sala de aula, como também as atividades das crianças, produzidas a partir das releituras dessas pinturas.

52

Memória Pintada da Infância na representação artística de Candido Portinari


Capítulo 5 | As crianças e a arte de Portinari: uma vivência no ensino de arte

Capítulo 5

As crianças e a arte de Portinari: uma vivência no ensino da arte Como já foi dito, a pesquisa apresentada neste livro foi resultado de meu trabalho monográfico, que surgiu do meu interesse concatenado aos interesses das crianças do 2º ano inicial (na época, 1ª série) de uma escola da rede particular de ensino da cidade de Fortaleza, durante o segundo semestre de 2006. A partir do momento em que as obras (reproduções) eram apresentadas, as crianças iam tomando conhecimento sobre a vida do artista e sobre o contexto histórico no qual elas foram produzidas, numa linguagem simples, buscando uma relação com o tempo presente da criança. Nesse caminhar, apropriamo-nos da imagética de Portinari. Algumas pinturas referentes à cultura lúdica foram selecionadas, vislumbrando compreender o lugar do brinquedo e da brincadeira na obra de Candido Portinari. Dentro desse pressuposto, as obras trabalhadas foram: Futebol, Meninos com pipas, Menino com pião, Brincadeiras de crianças, Crianças brincando e Espantalho no arrozal, além do Autorretrato do artista. A partir dessas obras, percebi a necessidade de fazer uma ponte entre Arte e Educação Física, pois as brincadeiras ali representadas convidavam ao exercício corporal desenvolvido nas aulas de Educação Física. Essa parceria com a professora Ana Carla Araújo, docente da disciplina citada, possibilitou uma integração dessas duas áreas que até aquele momento trabalhavam de forma isolada, fragmentando o processo de aprendizagem. Desse modo, percebi a motivação das crianças pelas releituras dessas obras, após as brincadeiras realizadas nas aulas de Educação Física e também nas aulas de Arte. No que se refere à releitura, é importante esclarecer que: [...] por releitura, entende-se aqui a tradução da significação do objeto como fundamento para uma nova construção, buscando-se nessa ação a re-significação do mesmo objeto: re-ler para aprofundar significados, re-semantizando-os. Dessa forma, considera-se que toda produção oriunda de uma imagem referente é uma construção de um novo texto, no qual o sujeito produtor elabora uma interpretação, podendo até mesmo partir para a criação (BUORO, 2003, p.23).

É comum, segundo a autora, muitos professores do Ensino Fundamental confundir cópia por releitura. A cópia, como entendemos, é um mero exercício de “reprodução” de uma obra, enquanto que, na releitura, o aluno faz uma interpretação a partir de uma determinada obra, atribuindo novo significado, preservando algumas marcas visuais da obra do artista. Na releitura, ele tem liberdade de recriar, de se expressar Memória Pintada da Infância na representação artística de Candido Portinari

55


56

Capítulo 5 | As crianças e a arte de Portinari: uma vivência no ensino de arte

Capítulo 5 | As crianças e a arte de Portinari: uma vivência no ensino de arte

através da obra contemplada e lida. Reler em arte é permitir o diálogo com outras imagens (visuais, literárias, musicais, corporais, dentre outras) e com as experiências dos alunos, configurando, desse modo, uma criação artística. Vale ressaltar que a metodologia fundamentava-se na abordagem triangular24 da Ana Mae Barbosa (2005). Através de leitura de imagens, a pesquisadora e as crianças iam se apropriando da história da arte, finalizando o processo de aprendizagem com o fazer artístico. Alguns aspectos históricos eram trabalhados, sempre os relacionando com o tempo presente das crianças e também respeitando a faixa etária delas. A leitura da obra era realizada instigando o olhar infantil para a re-descoberta de elementos visuais. Assim, por meio de perguntas como “Vamos aprender a olhar mais?”, “Que tal sermos detetives da obra portinariana?”, e através de exercícios lúdicos, representamos, nas brincadeiras do pátio da escola, muitas das obras pintadas das brincadeiras de infância. Era importante compreender de que modo as crianças eram afetadas pelas obras. Como elas iriam significá-las? Por fim, o fazer artístico, no qual a criança, a partir de suas próprias experiências, tinha a liberdade de ressignificar a obra de Portinari. Partindo dessa perspectiva, observe na página 79 a obra Futebol (1935) e a “releitura”, página 80, da mesma pela criança. Felipe25 teve a liberdade de criar sua pintura. As traves da obra de Portinari são troncos de árvores cortados. Na “releitura”, elas são representadas como essa criança as “vê” no seu cotidiano; os animais são excluídos e o cruzeiro é posto ao lado da trave, não ocupando o espaço do jogo. A partida acontece ao anoitecer, conforme a explicação da criança. Posso dizer que a proposta de releitura ganhou outra dimensão, ou seja, Felipe recriou uma nova imagem tanto no que tange ao colorido, quanto aos outros elementos da linguagem visual: linhas, formas, etc. Segundo Richter (2004, p.57), “A criança pinta para jogar construtivamente com o elemento que define a visualidade da cor.” Nessa ação lúdica, Felipe ampliou o repertório visual ao ter contato, por exemplo, com livros de arte e visitas ao site do Projeto Portinari. Sobre a mesma obra, outras crianças representaram os animais, o cemitério. Em seus trabalhos, surgiram conversas sobre fantasmas e morte. No que se refere ao cruzeiro, algumas achavam que era um poste de iluminação. Aproveitei para falar que nessa época ainda não havia chegado energia elétrica ao povoado de Brodósqui, somente um

pouco depois. A obra possibilitou também falar do período marrom de Portinari, cuja tonalidade vai aparecer em outras pinturas. A partir das discussões que a obra Futebol sugeriu, vi a necessidade de trazer, em aulas posteriores, a imagem atual da cidade de Brodósqui. Ao comparar as temporalidades, estava provocando a reflexão sobre as mudanças e as permanências. Sobre isso, cabe mencionar que ao professor é essencial instigar o pensamento e o olhar das crianças sobre as imagens e os objetos de nosso cotidiano e a relação desses com outras épocas. Dentro dessa perspectiva do olhar, Anamélia Buoro afirma que: A questão da visualidade mostra-se pertinente como eixo central em projeto educacional que busca construção de conhecimento em Artes plásticas, pois conduz as experiências de aquisição de um repertório imagético. Portanto, o processo da leitura da pintura e do mundo vai nutrir de imagens a mente do aluno e ampliar seu repertório, possibilitando as recombinações e criações de novas imagens por meio da imaginação criadora (BUORO, 2003, p.137).

Essa ampliação do acervo cultural do aluno permite interligar as imagens ao mundo vivido, ressignificando experiências e construindo outros olhares a partir do universo imagético que a criança possui. Nessa perspectiva, elaborei uma questão26 para ser respondida envolvendo as obras estudadas. Essa questão é a seguinte: “Esta obra27 faz você lembrar alguma história de sua vida? Qual?”. — Sim. O meu primeiro campeonato. (Raul) — Sim. A primeira vez que eu joguei futebol. (Rui) — Sim. O aniversário do Gabriel. (Lara) — Sim. Quando eu jogava futebol na grama com meu pai e minha irmã. (Beatriz) — Sim. Os jogos do brasileirão. (Daniel) — Sim. Jogar futebol na quadra. (Marcos) — Sim. Quando eu ganhei de 6 x 0, empatei de 2 x 2 e nos pênaltis ganhei de 5 x 2. Perdi de 3 x 2 e empatei de 0 x 0. (Antônio)

Essas são algumas respostas selecionadas referentes à obra Futebol. Essa temática me possibilitou, mais uma vez, falar de memória com as crianças. Embora elas tenham pouca idade, já são capazes de selecionar alguns fatos que lhes são significativos. Como é possível observar nos discursos das crianças, o tema futebolístico foi um dos pre-

24. Conforme Barbosa (2005), essa abordagem é constituída pela história da arte, leitura da obra de arte e pelo fazer artístico. 25. Os nomes das crianças que serão mencionados neste trabalho serão todos fictícios, devido à necessidade de se manter suas identidades em sigilo.

26. Esta questão faz referência a uma das obras escolhidas pelas crianças, quando, no último dia de aula de Arte, reunimos as imagens trabalhadas em sala de aula e solicitamos a escolha de uma para responder a questão referida. 27. No que se refere às obras, é necessário dizer que em cada aula era trabalhada uma obra. Às vezes, eu retornava à mesma obra com outros exercícios gráfico-plásticos. No último dia de aula foi que juntei todas as obras estudadas e solicitei que as crianças escolhessem uma para responderem algumas questões.

Memória Pintada da Infância na representação artística de Candido Portinari

Memória Pintada da Infância na representação artística de Candido Portinari

57


Capítulo 5 | As crianças e a arte de Portinari: uma vivência no ensino de arte

Capítulo 5 | As crianças e a arte de Portinari: uma vivência no ensino de arte

feridos nas rememorações. Por outro lado, alguns alunos responderam não lembrar nenhuma história relacionada ao tema. Vale destacar que no questionário havia uma pergunta assim: “Faça um comentário dessa pintura” (Futebol). “A obra é legal porque tem menino de toda cor” (Lara). Importa ressaltar que Lara é negra, de modo que ela se sentiu representada na pintura de Portinari. É relevante lembrar que 2006 fora um ano em que houve a Copa do Mundo de Futebol, de forma que tanto os meninos quanto as meninas estavam ainda entusiasmados com os jogos do Brasil e com as atividades desenvolvidas no primeiro semestre, nas aulas de Educação Física, sobre esse esporte. Já no segundo semestre, fui desenvolvendo um projeto interdisciplinar entre essa área e a disciplina de Arte, tendo como elemento comum a obra de Portinari, no que tange aos brinquedos e às brincadeiras, sendo o parque e a quadra de esporte espaços já legitimados como o lugar da brincadeira e do jogo, embora o tempo dispensado às práticas lúdicas fosse insignificante para atividades tão necessárias e importantes para o desenvolvimento da criança. Outros espaços da escola poderiam ser otimizados para a brincadeira acontecer. E foi com esse espírito brincante que o espaço da sala de aula tornou-se um lugar de ludicidade nas aulas de Arte, valorizando a cultura lúdica presente na obra portinariana. Sobre o desenho28, estas foram as respostas das crianças com relação à pergunta citada anteriormente: “Esta obra faz você lembrar alguma história de sua vida? Qual?”.

porque ainda são tão pequenas, adoram brincar, talvez isso ocorra devido ao tempo de estudo, que as sufocam. Além da amarelinha, brincadeira que tem outras denominações no país, soltar pipas foi outra brincadeira lembrada pelas crianças. Quanto à brincadeira de pula-cela, no primeiro quadrante inferior, à esquerda da imagem, as crianças não a mencionaram nas suas falas por representar desconhecimento. Contudo, durante a pesquisa com as obras do artista, foram se familiarizando através das imagens e da experiência brincante. As crianças brincaram e se divertiram com essas brincadeiras tradicionais. Com relação às brincadeiras e aos brinquedos, adentrei em sua historicidade. Por exemplo, expliquei que a amarelinha é uma brincadeira que tem várias denominações. No Brasil, segundo Atzingen (2001), é conhecida por maré, sapata, avião, academia, macaca, etc. Quanto à pipa, afirmam Pontes et al. (2003), que ela não nasce como brinquedo, e sim, como algumas lendas chinesas revelam, como objeto de guerra. Da mesma forma, de acordo com Walter Benjamin (1980, p.10), “[...] as obras de arte mais antigas nasceram a serviço de um ritual, primeiro mágico, depois religioso”. Outra obra com a qual as crianças se encantaram foi Menino com pião. Os alunos conheceram essa obra através de imagem ampliada de reprodução. No decorrer de algumas aulas, fizeram a releitura dessa obra por meio de desenhos e pinturas coletivas e individuais. O objeto pião foi trazido para a classe para ser jogado. Sobre esse brinquedo, a pesquisadora Josélia Lima (2010) diz que jogar pião requer habilidade dos brincantes. A autora classifica o pião artesanal como brinquedo desafio em contraposição à versão do pião industrializado (beyblade), que ela classifica de brinquedo espetáculo, por suas características coloridas e por emitir som e luz. Os brinquedos envolvem múltiplos sentimentos, tais como alegria, tristeza, prazer, desprazer. No entanto, o momento do jogo é mágico. Johan Huizinga (2001, p.5) reconhece que:

— Sim, eu brincava de amarelinha. (Carla) — Sim, as brincadeiras que eu tive. (Roberta) — Sim, quando eu fazia o maternal. (Bruna) — Sim, são minhas brincadeiras de criança. (Mateus) — Não, nada. (Lúcia) — Sim, quando tinha 4 anos, fui para um clube, com as mesmas brincadeiras. (Rita) — Sim, porque eu fui jogar pipa, eu soltei a pipa. (Ana)

Todos os alunos que escolheram essa obra estão aqui representados. Consta que três são respostas de crianças do turno da manhã e quatro do turno da tarde. Apenas um menino escolheu a obra. As impressões das crianças é que essa obra transmite diversão e alegria nas brincadeiras representadas pelo artista. Nos discursos, a maioria das respostas refere-se ao passado, pois, segundo as crianças, já está bem distante. Essas brincadeiras “não fazem mais parte do mundo delas”, pois se encontram agora no Ensino Fundamental, cujo tempo presente não tem lugar para a diversão, só para o estudo ou pelo menos o tempo é exíguo para a brincadeira. Essa concepção é incompreensível, 28. Ver imagem na página 81.

58

Memória Pintada da Infância na representação artística de Candido Portinari

A intensidade do Jogo e seu poder de fascinação não podem ser explicados por análises biológicas. E, contudo, é nessa intensidade, nessa fascinação, nessa capacidade de excitar que reside a própria essência e a característica primordial do jogo.

É importante ressaltar também que o jogo, assim como a brincadeira e a obra de arte, comporta tensões, é o que discutem Vigotski (1998) e Marília Amorim (2003). Esta autora se fundamenta no conceito de exotopia29 de Mikhail Bakhtin para discutir 29. Segundo Marília Amorim, é o desdobramento de olhares, a partir de um lugar exterior. Ver: A contribuição de Mikhail Bakhtin: a tripla articulação ética, estética e epistemológica (2003).

Memória Pintada da Infância na representação artística de Candido Portinari

59


Capítulo 5 | As crianças e a arte de Portinari: uma vivência no ensino de arte

Capítulo 5 | As crianças e a arte de Portinari: uma vivência no ensino de arte

“a obra de arte como lugar de tensão porque entre o eu e o outro, entre o retrato que faço de alguém e o retrato que ele faz de si mesmo, há sempre uma diferença fundamental de lugares e, portanto, de valores” (AMORIM, 2003, p.14). A partir da experiência com o ensino de arte com crianças, observei que os desenhos e as pinturas produzidas por elas estão permeados de juízos de valor, como bonito, feio, certo, errado. Procurei desmistificá-los, no sentido de que as crianças compreendessem a arte enquanto conhecimento. Valorizei o processo criativo das crianças e a reflexão sobre as mudanças e permanência que residem numa obra de arte. Qualquer que seja o tempo histórico, será sempre uma questão de alteridade, a obra se faz a partir do olhar do outro. Aqui, o outro e os outros somos nós, professora de arte e crianças, que vamos significar e ser afetados pelo que nos sugere a obra. A leitura feita pela turma, quando apresentei Menino com pião (1947)30 pela primeira vez, foi a de que o menino estava triste, alguns diziam que estava apenas sério e concentrado no seu brinquedo. Outros falavam ser um menino pobre, porque o chapéu era de papel. Identificaram sombras no rosto e na mão do menino. O espaço que o menino brincava dava ideia de sala ou quarto. Chamei a atenção para a linha circular em seu olho esquerdo lembrando o giro do pião. Este rodopia na palma da mão, compondo a cena lúdica. Assim, as crianças vão se apropriando dos elementos visuais, como cor, volume, linhas, texturas e planos. “Quem conhece o pião?”. Com algumas perguntas desse tipo, iniciava-se um diálogo sobre esse brinquedo. Mostrei um pião de madeira e também um beyblade, versão contemporânea do pião. A maioria sabia brincar de beyblade, enquanto de pião, não, pois este artefato exige habilidade no jogar, é considerado um brinquedo de destreza. Conforme Manson (2002), o pião era um dos brinquedos mais apreciados na Antiguidade, de modo que atravessou os séculos encantando crianças e adultos, resistindo na sua forma artesanal. O seu rodopiar vai instigando poetas, pintores, músicos e crianças em suas criações. Sobre a obra supracitada, ver a releitura feita por uma das crianças31. A criança, ao reler a obra Menino com pião, optou por um espaço aberto. O menino ainda se encontra preso à cadeira, mas no semblante traz alegria de uma promessa, quem sabe, do brincar. Enquanto Portinari esconde parte do corpo do menino, a criança apresenta na sua representação uma menina com o corpo todo à mostra. O azul do vestido mistura-se ao fundo da mesma cor, numa integração de ambas as naturezas, humana e natural. O verde da grama é o mesmo verde dos olhos da menina. A cadeira

pode servir de metáfora de prisão. De que outras maneiras essa obra poderia ter sido representada? A cadeira, “natureza morta”, delimita o corpo, assim como o branco do papel não pintado pela criança. O semblante alegre da menina se contrapõe à tristeza ou à compenetração do menino de Portinari. Para Duarte Jr. (2004), o sensível passa pelos sentidos, conhecemos através deles. Este autor esclarece que:

30. Ver figura 7 na página 82. 31. Ver figura 8 na página 83.

60

Memória Pintada da Infância na representação artística de Candido Portinari

[...] a educação do sensível configura um vasto território, território do qual, sem dúvida, deve fazer parte a arte-educação, como um de seus componentes. Digamos, portanto, que nos largos domínios da educação estésica (ou educação do sensível) acha-se compreendida a educação estética, tomando-se aqui o termo “estética” com o sentido restrito que ele acabou adquirindo em nossos dias, ao dizer respeito mais especificamente à arte e à sua apreensão por um espectador, num dado contexto histórico e cultural. Portanto, a relação sensível, estésica, com a nossa realidade, deve constituir o solo a partir do qual podem crescer e melhor se desenvolver as plantas da percepção artística (ou estética) da vida. (DUARTE JR., 2004, p.184).

O autor confere amplitude à estesia (aisthesis) por considerar que nesta os sentidos estão mais desenvolvidos, isto é, estão mais refinados, possibilitando um posicionamento mais sensível e reflexivo frente aos desafios da vida. Ao retratar a natureza, a criança aponta para uma educação do sensível, que em nossos dias anda tão anestesiada. A corporeidade é um lugar também de arte e comporta as tensões dos mais diversos graus. O corpo é arte em movimento, e muitos artistas visuais utilizam-no como suporte em sua arte. A arte contemporânea transcende a materialidade convencional quando faz uso desse suporte. Após o encontro do olhar da criança com o universo pictórico de Portinari, no qual era feita uma descrição dos elementos presentes nas reproduções, essas obras eram interpretadas e analisadas coletivamente, no intuito de compreender a arte produzida pelo artista, articulando a obra ao presente dos alunos, como também narrando um pouco sobre a história daquele brinquedo representado na reprodução. Desse modo, o fazer artístico, às vezes, era individual e, às vezes, coletivo, isto é, dividíamos os alunos em pequenos grupos, nos quais as crianças escolhiam uma das obras relacionadas com as brincadeiras e os brinquedos para realizar uma releitura. Outro objeto lúdico estudado nas aulas de Arte foi a pipa, que também é conhecida, conforme Pontes et al. (2003), por outros nomes, como papagaio, arraia, pandorga, Memória Pintada da Infância na representação artística de Candido Portinari

61


Capítulo 5 | As crianças e a arte de Portinari: uma vivência no ensino de arte

Capítulo 5 | As crianças e a arte de Portinari: uma vivência no ensino de arte

rabiola, gaivota, curica, estrela, bolacha, dentre outros. As denominações variam conforme o formato desse objeto e do estado no qual é brincado. No entanto, os mais conhecidos são pipa, papagaio e arraia. Meninos com pipas (1947)32 foi outra obra apreciada pelas crianças. Observando esta imagem, a impressão que temos é que as pipas estão soltas no ar, enquanto que um grupo de meninos acena para elas. Não conseguimos ver a linha, não sabemos ao certo se é a reprodução que está ruim ou se é uma linha transparente. É relevante dizer para as crianças que a reprodução não revela tudo o que está posto na tela e que esta não substitui a emoção que é estar diante da obra original. No entanto, ela é importante para o nosso estudo, já que não podemos estar diante da obra. Portinari privilegia a questão étnica, quando representa em sua obra o negro, o branco, o índio. Sobre a obra citada, as crianças descreviam e interpretavam assim: “Os meninos estão num final de tarde a brincar com suas pipas”. “Há um menino confeccionando mais uma pipa”. “Tá escuro, não tem vento, as pipas vão cair”. Interpretar e descrever foram exercícios realizados na pesquisa. A atividade de analisar, por ser um exercício mais complexo, foi menos explorada. Na releitura coletiva33 da obra citada, as meninas se representaram na imagem, pois o artista geralmente representa meninos, até mesmo porque está associando aos seus pares de infância. Em plena luz do dia, o sol irradia todo o espaço do papel. Ao contrário dos meninos de Portinari, as meninas da releitura estão todas de frente, carregam nos semblantes sorrisos e todas são de uma mesma etnia. A multiplicidade de cores quentes e frias dá um tom alegre à cena. O detalhe da cena revela uma menina vaidosa, usando pulseira, laço de fita e óculos esportivos para se proteger dos raios solares. A blusa traz o desenho de um sol. A cor da roupa combina com os acessórios e se confunde com o fundo da imagem. O que mais podemos ler através das cores, dos corpos lúdicos e dos olhos atrás dos óculos? O que as crianças escondem, revelam nos seus desenhos, nas suas falas e nos seus escritos? O que sabemos é que arte e ludicidade têm uma relação muito próxima. Ambas carregam as subjetividades de seus autores. Mais uma obra estudada foi Meninos brincando (1940)34, da série Meninos de Brodósqui. Portinari afirmava que gostava de colocá-los em gangorras, balanços, no sentido de aproximá-los do céu, feito anjos.

Na releitura da figura 1235, aparecem apenas duas crianças brincando na gangorra. A permanência da noite continua, bem como as cores frias. A lua de Portinari parecia ser cheia, saindo por detrás do morro; a das crianças é uma lua nova num céu estrelado. Nas atividades individuais, muitas crianças optaram pelo dia para representar a obra citada. A experiência vivida na escola, por meio da obra de Candido Portinari, instigou as crianças para o universo imagético, possibilitando o início de uma alfabetização visual. Muitas atividades foram realizadas envolvendo brincadeiras, desenhos, pinturas individuais e coletivas, além de uma exposição na escola dos trabalhos das crianças, juntamente com algumas reproduções da obra de Portinari. A interdisciplinaridade fez e faz parte do meu pensar em arte. A literatura foi uma grande aliada nessa experiência com arte com as crianças. O poema Sonetinho a Portinari, de Vinicius de Moraes foi apresentado às crianças, juntamente com o Autorretrato (1957)36, de Candido Portinari.

32. Ver obra na página 84. 33. Ver releitura coletiva das crianças da obra Meninos soltando pipas (1947) na página 85. 34. Ver obra na página 86.

62

Memória Pintada da Infância na representação artística de Candido Portinari

SONETINHO A PORTINARI O pintor pequeno O grande pintor Ruim como veneno Bom como uma flor Vi-o na Inglaterra Uma tarde, vi-o No ermo, vadio Brodósqui onde a terra É cor de pintura Muito louro, vi-o Dentro da moldura De um quadro de aurora O olhar frio: — Lá ia ele embora... (Vinicius de Moraes) 35. Ver releitura das crianças na página 87. 36. Ver obra na página 88,

Memória Pintada da Infância na representação artística de Candido Portinari

63


Capítulo 5 | As crianças e a arte de Portinari: uma vivência no ensino de arte

Capítulo 5 | As crianças e a arte de Portinari: uma vivência no ensino de arte

A partir do poema de Vinicius de Moraes e do autorretrato de Portinari, as crianças fizeram criações imagéticas e escritas. Ver o texto abaixo de uma das crianças37.

Mais um autorretrato do artista está representado na figura 1639. Aqui a criança busca se aproximar na sua leitura da obra. Traz para o seu trabalho os elementos que visualiza no Autorretrato do artista. A seriedade expressa na fisionomia é captada pela criança, assim como a organização de seus pincéis. Já na figura 1740, a releitura passa a ser uma criação, pois nenhum elemento do Autorretrato permanece. O artista se apresenta ao ar livre em ação, no desenho infantil, ele está pintando um velho tema, só que dessa vez é uma menina que solta pipa. A criança que fez esse desenho destaca o gênero feminino na sua criação. Talvez por ser menina, quer se fazer representada, uma vez que só apareciam meninos nas imagens de Portinari apresentadas às crianças. A visibilidade eram os meninos, até mesmo porque Portinari representou na sua vastíssima obra os meninos de Brodósqui, raras são as meninas que aparecem. A autora do desenho escreveu em versos o que pensa sobre o artista: “Grande pintor/Portinari um belo/ paulista lutador”. São duas cenas representadas pela criança. Uma menina que brinca de pipa e um artista que pinta sua obra e se encontra atento, integrado nos retoques finais. Ele se encontra fora da tela, ao mesmo tempo em que permanece dentro dela, numa atitude de admiração por seu trabalho realizado. Em concordância com Pillar (2003, p.75), penso que “[...] é necessário compreender como a criança lê imagens, o que mais lhe impressiona, como ela interpreta e julga tais imagens”. Dentro desse pressuposto, foi como direcionei a vivência em arte na escola, no sentido de torná-la significativa para o aluno. Sendo assim, é importante relacionar a experiência infantil vivida à imagem que pretendemos levar para a sala de aula, buscando ressignificá-la. Nas figuras 18 e 1941, os alunos preferiram desenhar temas que Portinari dedicou a seus trabalhos, como crianças em gangorra e jogando futebol. No primeiro desenho, a criança escreve uma frase que diz assim: “meninos na gangorra, um pra cima e outro pra baixo, gosto muito de brincar de gangorra, pena que no parquinho da escola não tem gangorra para a gente brincar” (LIA, 2006). Tal frase é uma denúncia que a criança faz à ausência deste brinquedo no parque da escola. O registro escrito e gráfico de uma criança que gosta de brincar de gangorra é um testemunho de que existem escolas de classe média que não atendem aos anseios infantis, no âmbito dos brinquedos e no tempo dedicado às brincadeiras. O segundo desenho nos mostra um campo de futebol representado por dois países. A criança está se referindo a uma partida entre

TRANSCRIÇÃO DO TEXTO INFANTIL O grande Portinari anda solto pelo céu, ainda deve estar pintando um artista com um véu O querido Portinari, O nosso grande pintor Continua sendo querido Aqui com muito amor. Sempre gostei do Portinari Das obras deste pintor, Sempre vou tratá-lo com muita paz e amor Amo as obras de Portinari

O poema de Vinicius foi trabalhado em sala de aula, a interpretação foi feita pelos alunos. A princípio, não foi fácil. Depois instiguei as crianças a pensarem sobre o que as palavras queriam dizer. Inqueri sobre o que sabiam a respeito de Portinari, cujas pinturas estão em outros países visitados por Vinicius, além de algumas características físicas descritas no poema. Baseados no soneto e na reprodução do Autorretrato de Portinari que havia na sala de aula, as crianças poderiam optar por uma criação plástica ou escrita poética sobre o artista estudado. A maioria dos alunos escolheu desenhar, outros acrescentavam, junto ao desenho, textos declarando os seus sentimentos relacionados ao artista e à obra, como é o caso do texto acima, no qual a criança faz a representação do artista e de seus objetos de pintura e escreve um poema, fazendo questão de destacar em letras maiores o amor às obras do pintor. Na figura 1538, a criança dividiu o espaço do papel em três momentos: envia um recado “Brincando também se aprende”; faz uma representação que lembra um dos temas preferidos do artista Meninos com pipas; por último, faz o autorretrato do artista bem simpático e de corpo inteiro em ação, cujo olhar azul está direcionado para quem observa. Com uma das mãos, segura um pincel. Aos seus pés, estão os seus instrumentos de trabalho espalhados pelo chão. 37. Cópia do texto original e criação na criança página 89. 38. Ver figura da criança na página 90.

64

Memória Pintada da Infância na representação artística de Candido Portinari

39. Ver figura 16 página 91. 40. Ver figura 17 na página 92. 41. Ver as figuras 18 e 19, respectivamente nas páginas 93 e 94.

Memória Pintada da Infância na representação artística de Candido Portinari

65


Capítulo 5 | As crianças e a arte de Portinari: uma vivência no ensino de arte

Brasil e Itália, país este da família de Portinari. Na linha central, o símbolo de nossa bandeira é ressignificado com outra cor, a criança tem consciência disso, pois entende que arte é invenção, liberdade de transcender em cores, linhas e atitudes. Para Maria Isabel Leite: A criança tem capacidade de colocar ludicidade em suas ações mais simples – ao brincar, não está só fantasiando, mas realinhando o real, tecendo sua estrutura de compreensão do mundo. A brincadeira é um aprendizado sociocultural que manifesta das mais diferentes formas. Produzindo seus próprios brinquedos, as crianças registram sua história e a história de suas famílias; o desenho é também uma forma de brincadeira infantil; é também uma forma de registro histórico, social e cultural (LEITE, 1998, p.142).

Nesta perspectiva, os desenhos e as pinturas das crianças vão registrando as experiências delas, sinalizando os seus modos de brincar, pensar, ver e viver a realidade. Essa dimensão entre real e imaginário aparece de forma muito expressiva nas criações das crianças. Outro tema bastante recorrente na obra de Portinari são os espantalhos, o artista pintou inúmeros. Espantalho no arrozal (1944)42 foi a reprodução da pintura apresentada na sala de aula. A partir dessa referência visual, as crianças realizaram várias criações. Os espantalhos delas estavam noutras plantações, como de milho, de feijão e de laranja, assim disseram as crianças. Na paleta de Portinari, as cores predominantes são amarelo, azul claro e marrom; nos desenhos das crianças, é multicolorido. Há movimento tanto nas representações do milho, quanto nos espantalhos. Pássaros voam de olho nos grãos. O sol no canto do papel ilumina a poética visual das crianças43. Com versos nos debruçamos sobre mais um texto de Vinicius de Moraes que as crianças interpretaram através da linguagem do desenho.

Capítulo 5 | As crianças e a arte de Portinari: uma vivência no ensino de arte

POEMA PARA CANDINHO PORTINARI (Vinicius de Moraes) Lá vai Candinho! Pra onde ele vai? Vai pra Brodovski Buscar seu pai. Lá vai Candinho! Pra onde ele foi? Foi pra Brodovski Juntar seu boi. Lá vai Candinho! Com seu topete! Vai pra Brodovski Pintar o sete. Lá vai Candinho Tirando rima Vai manquitando Ladeira acima. Eh! Eh, Candinho! Muita saudade Para Zé Cláudio Mário de Andrade. Se vir Ovalle Se vir Zé Lins Fale, Candinho Que eu sou feliz. Ouviu, Candinho? — Diabo de homem mais surdo...

42. Ver obra na página 95. 43. Ver desenhos dos espantalhos das crianças nas páginas 96 e 97.

66

Memória Pintada da Infância na representação artística de Candido Portinari

Memória Pintada da Infância na representação artística de Candido Portinari

67


Capítulo 5 | As crianças e a arte de Portinari: uma vivência no ensino de arte

Capítulo 5 | As crianças e a arte de Portinari: uma vivência no ensino de arte

Após a leitura do poema, que discute a morte de forma suave e bela, as crianças fizeram desenhos muito interessantes representando o que estava escrito. Na figura 2244, a criança desenhou Candinho com seu topete segurando pelas rédeas o seu boi, que vai subindo a ladeira. O aluno é bem detalhista. Certamente, o boi a que Vinicius se refere não é o mesmo que as crianças desenharam, o poeta se refere àquele suporte de osso utilizado como boi (chamado gado de osso) que os meninos dos sertões e dos povoados do Brasil conhecem tão bem. O poeta em cada estrofe vai assinalando o percurso do artista, indicando brinquedo, características físicas e enviando recado para os amigos de Candinho, que também não mais se encontram na terra. Mas Candinho já não escuta, pois já partiu para se juntar aos seus. O desenho, a pintura e o poema foram linguagens contempladas nessa experiência no ensino de Arte na escola. Os dois poemas do Vinicius de Moraes apresentados anteriormente foram reinterpretados plasticamente pelas crianças. Histórias foram contadas através dos livros Candido Portinari (1999), de Nereide Schilaro Santa Rosa, Portinari (1997), de Nadine Trzmielina, e Com o coração na mão (2000), de Fátima Miguez. Este último é a história do artista em forma de poema. A narrativa poética encanta em versos e em cores a história do menino de Brodósqui, como se pode observar nestes versos:

com a autora acerca dos Museus Virtuais como espaços que ampliam o conhecimento em arte, também visitamos o site do Projeto Portinari, no intuito de conhecermos mais sobre a obra deste artista através da “Viagem ao Mundo de Candinho”. A interatividade do site permitiu a diversão das crianças a partir dos vários jogos na opção “Brincando com Candinho”. Nessa opção, temos: “Jogo da memória”, “Quebra-cabeça 1 e 2”, “Baú escondido”, “Par ideal” e “De quem é a boquinha?”. Constam ainda as opções “Histórias de menino” – que se referem às reminiscências de infância do artista – e “Galeria”, composta de 32 obras, que, em sua maioria, são dedicadas a temas da infância. Assim, as crianças puderam revisitar as obras estudadas e outras que elas não conheciam. Ao retornarmos à sala de aula, discutíamos sobre o assunto e realizávamos alguma atividade artística. Aqui, abro um parêntese para informar que o site do Projeto Portinari45 foi atualizado e que foram acrescentadas novas atividades no setor de Arte e Educação. Enfim, o site está com uma nova e bela configuração, vale a pena visitá-lo. Importa dizer que o site possibilitou naquele momento realizar algumas atividades em parceria com os professores da Educação Física da Informática Educativa. Vale destacar também o apoio das professoras polivalentes do Ensino Fundamental I. Dessa forma, ampliar o acesso cultural das crianças aos livros de arte, aos museus e a outros espaços culturais é papel das escolas e dos professores, porque quanto mais conhecemos, mais aprendemos a ver e, consequentemente, a ler imagens.

Tingir no tecido do tempo um menino de olhos pra dentro liberando sonhos, ilusões... Na palma da mão um pião rodopiando fantasias, emoções, plásticos desejos de ser criança... Na roda da lembrança A eterna infância... (MIGUEZ, 2000)

O poema faz uma referência à infância e ao pião, um brinquedo representado na obra de Portinari. Tal objeto remete às memórias de um menino cujos sonhos e reminiscências são transportados para a concretude plástica. A estética do rodopiar se entrelaça com a fugacidade do movimento que é capturado no registro pictórico. A rememoração, que é transformada em arte, é atualizada pelo objeto lúdico. No processo da pesquisa, o computador foi um importante mediador, ao possibilitar o acesso à vida e à obra de Candido Portinari. Portella (2003), ao analisar o site do Projeto Portinari, reconhece a importância da Internet como um instrumento poderoso que facilita a ação artístico-cultural por meio de imagens e textos. Em conformidade 44. Ver desenho infantil da representação do poema na página 98.

68

Memória Pintada da Infância na representação artística de Candido Portinari

45.Disponível em: <http://www.portinari.org.br/#/pagina/projeto-portinari/apresentacao. Acesso em: 24 de junho de 2013

Memória Pintada da Infância na representação artística de Candido Portinari

69


Reflexões Finais

Reflexões Finais Terei vivido muitas vidas? Tantas recordações baralhadas! Quando eram sonhos? Quando realidade? Posso me ver no longe muitas vezes, Tão remoto e tão rápido... Meus chapéus, minhas camisas, Onde estarão? O sol e o cheiro da terra... A Rosona, velha imigrante, com Seu lenço amarelo e preto... Para vê-la atravessava-se o cafezal e um córrego. Passarinhos... Era a avó do primo Júlio. A mula sem cabeça, o lobisomem São desse tempo. Mais distante A casa, o coqueiro grande. Madrugada orvalhada e cheirosa... (Candido Portinari) Candido Portinari, poeta-pintor, registrou em poemas e pinturas suas memórias de infância. Nessa configuração entre imaginário e realidade, a arte de Portinari se faz reconhecida, atravessando as fronteiras do Brasil e dos sonhos. Ele conquistou um lugar na história da arte de seu país, principalmente por meio de sua obra social e da série Meninos de Brodósqui. Muito ainda teria que dizer acerca de Candido Portinari, pois numa pesquisa nunca esgotamos um tema. A partir do momento em que iniciei o processo de levantamento das fontes, fui percebendo a multiplicidade de fios condutores que uma determinada temática suscita. Ao estabelecer relações com outras áreas do conhecimento, constituindo um saber específico, simultaneamente, fui deixando fios soltos para que outros pesquisadores interessados no mesmo assunto possam ampliar e fazer outras descobertas. Nesse percurso é que fui descobrindo e redescobrindo o métier da pesquisa. Foi nessa inquietude de conhecer a vida e a obra do artista de Brodósqui que os caminhos da história e da literatura se entrecruzaram com o da Arte, no intuito de problematizar o lugar do brinquedo e da brincadeira na obra de Candido Portinari e, principalmente, de descobrir que memórias da infância são representadas em Memória Pintada da Infância na representação artística de Candido Portinari

71


Reflexões Finais

Reflexões Finais

sua pintura. Assim, pude constatar que não só sua obra referente aos brinquedos e brincadeiras carrega memória indeléveis dos tempos de infância, mas também sua obra mais emblemática. Arte e memória surgiram como lugares por excelência, pois foi a partir delas que a obra de arte se materializou, isto é, nas brincadeiras e nos brinquedos de infância do artista. Não há limites, divisas nem fronteiras geográficas, as reminiscências foram despertadas através das relações que temos com as pessoas e as coisas. Enfim, a memória do artista foi representada em cores, linhas, volumes. Por isso, tive que estudar sobre a vida do artista, no sentido de compreender o recorte que fiz de sua obra, ou seja, as memórias da infância na representação artística de Portinari. Desse modo, pode-se afirmar que tais elementos foram fundamentais para que eu pudesse refletir sobre a infância do artista e a importância deste período de sua vida para sua arte. Ao descobrir lugares reais e imaginários na obra portinariana, fui percebendo as tensões que envolvem a obra de arte e a complexidade das diversas maneiras de concepções que temos de lugar. Por essa razão, foi importante dialogar com outros conceitos que transitaram na escritura deste livro, envolvendo arte, brinquedo, brincadeira, infância, memória, lugar e espaço. Esses conceitos dizem muito do ser criança. E foi com essa preocupação que revisitamos a infância de Portinari, no sentido de unir as narrativas dessa etapa da vida ao significado artístico dado pelo artista às suas memórias, de forma que:

que observei nas releituras das crianças e nas suas narrativas a respeito das brincadeiras. Ao aproximar as crianças à obra de Cândido Portinari, ampliei o acervo imagético delas com um dos maiores nomes da arte no Brasil. Dessa forma, reler, criar e brincar foram verbos que permearam o imaginário infantil durante o segundo semestre de 2006, no qual estivemos debruçados sobre as obras de arte que nos reportaram à cultura brincante de Portinari. Assim, pude reafirmar que a interlocução com outras áreas do conhecimento possibilitou maior aprendizagem na disciplina de Arte. Para finalizar, ressalto que arte e memória na construção da história de Portinari constituíram o ponto crucial deste livro, que compartilho com professores e demais leitores o resultado de uma experiência no ensino de Arte, assim como o meu encontro com a obra portinariana, que é sempre cheio de redescobertas a cada nova leitura. Por último, caro(a) leitor(a), gostaria de lhe informar que, na sobrecapa deste livro, há algumas sugestões de atividades para você realizá-las ou acrescentar outras a partir do que você leu aqui ou noutros lugares.

A infância tomada na perspectiva de outras temporalidades não se esgota na experiência vivida, mas é ressignificada na vida adulta por meio da rememoração. Falar da infância é reportar às lembranças do passado, não como este de fato ocorreu, mas a um passado que é, então, recontado a partir do crivo do presente e que se projeta prospectivamente. Nesse recontar, adulto e criança descobrem, juntos, signos perdidos, caminhos e labirintos que podem ser retomados, continuações de histórias em permanente “devir” (SOUZA e PEREIRA, 1998, p.35).

Para as autoras, o passado é analisado a partir da reflexão do presente. Nesse olhar retrospectivo e prospectivo, a memória de infância vai sendo ressignificada no cruzamento das temporalidades. Portanto, posso dizer que a obra de Portinari referente aos brinquedos e às brincadeiras é carregada de rememorações ressignificadas pelo olhar adulto do artista. A partir da pesquisa realizada, pude constatar que o encontro do olhar das crianças com a obra portinariana possibilitou novas leituras, outras lembranças lúdicas, foi o

72

Memória Pintada da Infância na representação artística de Candido Portinari

Memória Pintada da Infância na representação artística de Candido Portinari

73


MemĂłria Pintada Ă?ndice das imagens


Memória Pintada | Índice das imagens

Fig. 1. Café, 1935. Óleo/tela, 130x195 cm. Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro. In: SANTA ROSA. Nereide Schilaro. Candido Portinari São Paulo: Moderna, 1999. (Coleção mestres das artes no Brasil).

76

Memória Pintada da Infância na representação artística de Candido Portinari

Memória Pintada | Índice das imagens

Fig. 2. Enterro na rede, 1944. Painel óleo/tela, 180x220 cm. Museu de Arte de São Paulo. In: ______. Candido Portinari São Paulo: Moderna, 1999. (Coleção mestres das artes no Brasil).

Memória Pintada da Infância na representação artística de Candido Portinari

77


Memória Pintada | Índice das imagens

Fig. 3. Família de retirantes, 1944. Painel óleo/tela, 192x181 cm. Museu de Arte de São Paulo. Coleção de Arte Gênios da Pintura. Portinari, vol. 6 Editor Victor Civita. Abril Cultural: São Paulo, 1967. (Obra coleção particular).

78

Memória Pintada da Infância na representação artística de Candido Portinari

Memória Pintada | Índice das imagens

Fig. 4. Futebol, 1935. Óleo/tela 97x130 cm. Coleção particular. João Candido Portinari. Projeto Portinari. In: SANTA ROSA. Nereide Schilaro. Brinquedos e Brincadeiras. São Paulo: Moderna, 2001. (Coleção arte e raízes).

Memória Pintada da Infância na representação artística de Candido Portinari

79


Memória Pintada | Índice das imagens

Fig. 6. Releitura da obra Futebol. Tinta guache/papel, 2006. Acervo pessoal da autora.

80

Memória Pintada da Infância na representação artística de Candido Portinari

Memória Pintada | Índice das imagens

Fig. 5. Brincadeiras de crianças, 1939-1942. Desenho a aquarela e grafite/papel. Coleção particular João Candido Portinari. Projeto Portinari. In: SANTA ROSA Nereide Schilaro. Brinquedos e Brincadeiras. São Paulo: Moderna, 2001. (Coleção arte e raízes).

Memória Pintada da Infância na representação artística de Candido Portinari

81


Memória Pintada | Índice das imagens

Memória Pintada | Índice das imagens

Fig. 8. Releitura da obra Menino com pião. Tinta guache/papel, 2006. Acervo pessoal da autora.

Fig. 7. Menino com pião, 1947. Óleo/tela 65x54 cm. Catálogo – Os Museus Castro Maya. Rio de Janeiro: Banco Safra, 1996. (1947).

82

Memória Pintada da Infância na representação artística de Candido Portinari

Memória Pintada da Infância na representação artística de Candido Portinari

83


Memória Pintada | Índice das imagens

Fig. 9. Meninos com pipas, 1947. Óleo/tela. Coleção particular Brodósqui, São Paulo. Crianças famosos: Portinari. In: Nadine Trzmieline. São Paulo: Callis, 1997.

84

Memória Pintada da Infância na representação artística de Candido Portinari

Memória Pintada | Índice das imagens

Fig. 10. Releitura coletiva de Meninos soltando pipas, 2006. Tinta gache/papel. Acervo pessoal da autora.

Memória Pintada da Infância na representação artística de Candido Portinari

85


Memória Pintada | Índice das imagens

Memória Pintada | Índice das imagens

Fig. 11. Crianças brincando, 1940. Óleo/tela 81x100 cm. Coleção Fundação Emílio Odebrechet, Salvador – BA. In: _______. Candido Portinari São Paulo: Moderna, 1999. (Coleção mestres das artes no Brasil). Fig. 12. Releitura coletiva de Crianças brincando. Tinta guache/papel, 2006.

86

Memória Pintada da Infância na representação artística de Candido Portinari

Memória Pintada da Infância na representação artística de Candido Portinari

87


Memória Pintada | Índice das imagens

Memória Pintada | Índice das imagens

Fig. 14. Releitura do Autorretrato do artista. Lápis de cor/papel sulfite, 2006. Acervo pessoal da autora. Fig. 13. Autorretrato, 1957. Óleo/madeira 55x46 cm. Coleção (Cultural Pinakotheke). Rio de Janeiro, RJ. In. Portinari, o menino de Brodósqui. Org. Projeto Portinari 2ª Edição São Paulo, 2001.

88

Memória Pintada da Infância na representação artística de Candido Portinari

Memória Pintada da Infância na representação artística de Candido Portinari

89


Memória Pintada | Índice das imagens

Fig. 15. Recriações do Autorretrato do artista. Lápis de cor/papel sulfite, 2006.

90

Memória Pintada da Infância na representação artística de Candido Portinari

Memória Pintada | Índice das imagens

Fig. 16. Releitura do Autorretrato do artista. Lápis de cor/papel sulfite, 2006.

Memória Pintada da Infância na representação artística de Candido Portinari

91


Memória Pintada | Índice das imagens

Fig. 17. Recriações do Autorretrato do artista pelas crianças. Lápis de cor/papel sulfite, 2006

92

Memória Pintada da Infância na representação artística de Candido Portinari

Memória Pintada | Índice das imagens

Fig. 18. Releitura do Meninos na gangorra. Lápis de cor/papel sulfite, 2006.

Memória Pintada da Infância na representação artística de Candido Portinari

93


Memória Pintada | Índice das imagens

Fig. 19. Criação a partir da temática do futebol. Lápis de cor/papel sulfite, 2006.

94

Memória Pintada da Infância na representação artística de Candido Portinari

Memória Pintada | Índice das imagens

Fig. 20. Espantalho no arrozal, 1944. Óleo/tela 35x28cm. Coleção de Arte Gênios da Pintura. Portinari, vol. 6 Editor Victor Civita. Abril Cultural: São Paulo, 1967. (Obra coleção particular).

Memória Pintada da Infância na representação artística de Candido Portinari

95


Memória Pintada | Índice das imagens

Fig. 21. Recriação do Espantalho no milharal. Criação das crianças. Acervo da autora (2006).

96

Memória Pintada da Infância na representação artística de Candido Portinari

Memória Pintada | Índice das imagens

Fig. 22. Espantalho. Criação das crianças. Acervo da autora (2006).

Memória Pintada da Infância na representação artística de Candido Portinari

97


Memória Pintada | Índice das imagens

Fig. 23. Desenho sobre o texto do Vinicius de Moraes Poema para Candinho Portinari.

98

Memória Pintada da Infância na representação artística de Candido Portinari


Referências

AMARAL, Aracy Abreu. Arte para quê? A preocupação social na arte brasileira, 1930-1970. São Paulo: Nobel, 1984. AMORIM, Marília. A contribuição de Mikhail Bakhtin: a tripla articulação ética, estética e epistemológica. In: Ciências Humanas e Pesquisa: leituras de Mikhail Bakhtin. FREITAS, Maria Teresa, JOBIM, Solange e KRAMER, Sonia (orgs.). São Paulo: Cortez, 2003. (Coleção Questão da nossa época; v.107).

LANIER, Vincent. Devolvendo arte à arte-educação. In: Arte e Educação: leitura no subsolo. BARBOSA, Ana Mae (Org.). São Paulo: Cortez, 2002.

ANDRADE, Mário de. O baile das quatro artes. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1939.

LEITE, Maria Isabel Ferraz Pereira. Desenho Infantil: questões e práticas polêmicas. In: KRAMER, Sônia e LEITE, Maria Isabel (Orgs.). Infância e produção cultural. São Paulo: Papirus,1998.

ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: LTC, 1981. ATZINGEN, Maria Cristina Von. História do brinquedo - Para as crianças conhecerem e os adultos se lembrarem. Alegro: São Paulo, 2001. AUGÉ, Marc. Não lugares: Introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas: Papirus, 1994 (Coleção Travessia do Século).

LIMA, Josélia Inocêncio de. A criança e os artefatos lúdicos: um estudo etnográfico da cultura lúdica da rua. Fortaleza: Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Ceará - UFC, 2010. MANSON, Michel. História do brinquedo e dos jogos: Brincar através dos tempos. Lisboa / Portugal: Teorema, 2002. MARCUSE, Herbert. A dimensão estética. Tradução de Maria Elisabete Costa. São Paulo: Edições 70, 1999.

BANDEIRA, Manuel. Arte para os olhos: o numeroso Portinari. In: Andorinha, Andorinha. Rio de janeiro: José Olympio, 1966.

MIGUEZ, Fátima. Com o coração na mão. São Paulo: Difusão Cultural do Livro-DCL, 2000.

BARBOSA, Ana Mae Tavares Bastos. A imagem no ensino da arte. São Paulo: Perspectiva, 2005.

MORAES, Vinicius de. Poema para Candinho Portinari. In: Para viver um grande amor. Rio de Janeiro: José Olympio, 1984.

______. Arte-educação: conflitos/acertos. São Paulo: Max Limonad Ltda, 1985.

______. Sonetinho a Portinari. In: Livro de sonetos. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.

BENJAMIN, Walter. O narrador. São Paulo: Abril Cultural, 1980. (Coleção Os Pensadores).

NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. In: Projeto História (Revista do Programa de Estudos PósGraduados em História e do Departamento de História da PUC-SP), São Paulo, 1981.

______. Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação. São Paulo: Duas Cidades, 2002. ______. A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução. São Paulo, Abril Cultural, 1980. (Coleção Os Pensadores). ______. Infância em Berlim por volta de 1900. In: Rua de mão única. Obras escolhidas Volume II. São Paulo, SP. Editora: Brasiliense, 1995. BOGDAN, R. E BILKEN, S. Investigação qualitativa em educação – uma introdução à teoria e aos métodos. Porto: Porto Editora LDA, 1984. BROUGÈRE, Gilles. A criança e a cultura lúdica. In: KISHIMOTO, Tizuko Morchida (org.). O brincar e suas teorias. São Paulo: Pioneira, 1998. p. 26-27. ______. Brinquedo e cultura. Cortez: São Paulo, 2004. (Coleção Questão da nossa época; v.43). BUORO, Anamelia Bueno. Olhos que pintam: a leitura da imagem e o ensino da arte. São Paulo: Cortez, 2002. ______. O olhar em construção: uma experiência de ensino e aprendizagem da arte na escola. São Paulo: Cortez, 2003. CALLADO, Antonio. Retrato de Portinari. Museu de Arte do Rio de Janeiro, 1956. CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. artes de fazer. Rio de Janeiro: Vozes, 1994. COSTA, Maria de Fátima Vasconcelos. Cultura lúdica e infância no cenário da pesquisa. In: COSTA, Maria de Fátima Vasconcelos (Org). Cultura lúdica, discurso e identidades na sociedade de consumo. Fortaleza: Expressão gráfica, 2005.

OSINSKI, Dulce Regina Baggio. Arte, história e ensino: uma trajetória. São Paulo: Cortez, 2001. OSTROWER, Fayga. Universos da Arte. Edição comemoratva Fayga Ostrower. Rio de Janeiro: Editora Campus/Elseveier, 1998. PEREIRA, Rita Marisa Ribes e SOUZA, Solange Jobim e. Infância, conhecimento e contemporaneidade. In: KRAMER, Sônia e LEITE, Maria Isabel (Orgs.). Infância e produção cultural. São Paulo: Papirus,1998. PILLAR, Analice Dutra. A educação do olhar no ensino de arte. In: BARBOSA, Ana Mae (Org.). Inquietações e mudanças no ensino de arte. São Paulo: Cortez, 2003. PONTES et al. (Org.). Brincadeira e cultura: Viajando pelo Brasil que brinca. Vol. 2. O Brasil que brinca. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003. PORTELLA, Adriana. Aprendizagem da Arte e o Museu Virtual do Projeto Portinari. In: BARBOSA, Ana Mae, (Org.). Inquietações e mudanças no ensino de arte. São Paulo: Cortez, 2003. PORTINARI, Cândido. O menino de Brodósqui. Rio de Janeiro: Livroarte Editora LTDA, 1979. ______. Poemas. Rio de janeiro, José Olympio, 1964. RODRIGUES FILHO, M. A infância de Portinari. Rio de Janeiro. Bloch, 1966. SANTA ROSA, Nereide S. Cândido Portinari. São Paulo: Moderna, 1999 (Coleção Mestres das Artes no Brasil).

DELORY-MOMBERGER, Chistine. Biografia, corpo, espaço. In: Tendências da pesquisa (auto)biográfica/Maria da Conceição Passeggi (Org.). Natal, RN: EDUFRN; São Paulo: Paulus, 2008.

SANTOS, Núbia Agustinha C. Retalhos de Brodósqui: o lugar do brinquedo e da brincadeira na obra de Cândido Portinari. Monografia de especialização em Arte-Educação. Faculdade 7 de Setembro – FA7. Defendida em 2007.

DUARTE JÚNIOR. O sentido dos sentidos: a educação do sensível. Curitiba: Criar, 2004.

SARMENTO, Manuel. Sociologia da infância: correntes e confluências. In: Estudos da infância: educação e práticas sociais. Manuel Sarmento e Maria Cristina S. Gouveia (orgs.). Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.

FABRIS, Annateresa. Portinari, pintor social. São Paulo: Perspectiva, 1990. FERRAZ, Maria Heloísa Corrêa de Toledo e FUSARI, Maria F. de Resende. Metodologia do ensino de arte. São Paulo: Cortez, 1999. GOMBRICH, E. H. A história da arte. Rio de Janeiro: LTC, 2012. HUIZINGA, Johan. Homo ludens. São Paulo: Perspectiva, 2001. JOSSO, Marie-Christine. As histórias de vida como territórios simbólicos nos quais se exploram e se descobrem formas e sentidos

100

múltiplos de uma existencialidade evolutiva singular-plural. In: Tendências da pesquisa (auto)biográfica/Maria da Conceição Passeggi (Org.). Natal, RN: EDUFRN; São Paulo: Paulus, 2008.

SILVA, Jandson Ferreira. Considerações acerca dos usos do conceito de raça humana na constituição do psiquismo do brasileiro. In: COSTA, Maria de Fátima Vasconcelos (Org.). Cultura lúdica, discurso e identidades na sociedade de consumo. Fortaleza: Expressão gráfica, 2005. VIGOTSKI, Lev Semenovich. A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

101


Outras Fontes

Casa Museu Candido Portinari. Disponível em: <http://www.casadecandidoportinari.com.br>. Acesso em: 10/07/2007. Catálogo Raissoné – Projeto Portinari, Brasil, Petrobrás, 2005. Mondrian e a Pintura Abstrata, Editora Globo, 1997. PORTINARI, Pellegrina. (Depoimento ao Projeto Portinari). Campinas, SP, 1985. 73 f. (DE-58.1) Entrevistadoras: Rose Ingrid Goldschmidt e Ângela Maria Lessa. Projeto Candido Portinari. Disponível em: <http//www.portinari.org.br/candinho/candinho/abertura.htm>. Acesso em: 11/09/2006.

Este livro foi composto com a tipografia Perpetua Std. Miolo impresso em papel Pólen 80 g/m², capa em papel Cartão Supremo 250 g/m² e sobrecapa em papel Offset 120 gr. Impresso na Expressão Gráfica Editora. Fortaleza/Ceará/Brasil, setembro de 2013.

102


Num pé de café nasci. O trenzinho passava Por entre a plantação. Deu a hora Exata. Nesse tempo os velhos Imigrantes impressionavam os recém-chegados. O tema do falatório era o lobisomem. A lua e o sol passavam longe. Mais tarde mudamos para a Rua de cima. O sol e a lua moravam atrás de nossa Casa. Quantas vezes vi o sol parado. Éramos os primeiros a receber sua luz e calor. Em muitas ocasiões ouvi a lua cantar. (Candido Portinari)


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.