Catálogo MITsp

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MINISTÉRIO DA CIDADANIA, ITAÚ, SECRETARIA MUNICIPAL DE CULTURA E SESC APRESENTAM




cartografias.mitsp_07 2020 Revista de Artes Cênicas Número 7 - 2020 ISSN 2357-7487 Mostra Internacional de Teatro de São Paulo / MITsp Departamento de Artes Cênicas da ECA-USP Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da ECA-USP Periodicidade anual Escola de Comunicações e Artes Av. Prof. Lúcio Martins Rodrigues, 443 Cidade Universitária - São Paulo - SP

EDITORAS RESPONSÁVEIS Daniele Avila Small, Luciana Eastwood Romagnolli e Sílvia Fernandes COMISSÃO EDITORIAL Antonio Araujo e Maria Fernanda Vomero EDITORA-EXECUTIVA Maria Luísa Barsanelli EDITORA-ASSISTENTE Mariana Marinho IDENTIDADE VISUAL E PROJETO GRÁFICO Casaplanta + Lila Botter REVISÃO Grená Conteúdo Multiplataforma



SUMÁRIO 8

Apresentação

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Ao Terceiro Sinal

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Insurgência em tempos de escassez

16

Cena Brasileira: uma paisagem de corpos insubordinados

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A quem se interessar

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Que se implodam as estruturas

22

Encontra de pedagogias da teatra: afetividades do saber riscar e arriscar

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Parceiros

MITsp | Espetáculos internacionais 34 40 44 48

Entrevista com Tiago Rodrigues By Heart Sopro Pelo prazer de pensar e fazer pensar por Maria João Brilhante

54 58

Burgerz As simples e importantes perguntas por Renan Ji

62 66

Contos Imorais – Parte 1: Casa Mãe Quando as ruínas falam por Clóvis Domingos dos Santos

70 74

Farm Fatale A utopia que nasce do feio por Rodrigo Nascimento

78 82 86

Multidão [Crowd] Jerk [Babaca] Estranhos (quase) familiares por Michele Bicca Rolim

92 96

O Pedido O Pedido e o muro sonoro por Wellington Júnior

100 104

O que Fazer Daqui para Trás A emergência das incertezas por Daniel Toledo

110 114

Tenha Cuidado O rasgo na armadura por Laís Machado

118 122

Tu Amarás A invenção do outro e a idealização do eu por Guilherme Diniz

126 130

Sábado Descontraído Recordar, repetir, elaborar por Renan Ji

134 138

ORLANDO Eternos Orlandos por Renan Ji

142

Rainha Jesus, Dez Anos Performances

148

Programação

150

Po/éticas insurgentes por Paola Lopes Zamariola

152

Contra o colonialismo patriarcal por Maria Fernanda Vomero

154

Quarantine e a democracia por vir por Rodrigo Nascimento

158

A inquietação de Lisandro Rodriguez por Ferdinando Martins


Olhares Críticos

MITbr | Plataforma Brasil 162 168 172 176

Entrevista com Andréia Pires Fortaleza 2040 Pra Frente o Pior Viver melhor num mundo pior por Clóvis Domingos dos Santos

180 184

O Ânus Solar O cordeiro imolado por Clóvis Domingos dos Santos

186 190

Cancioneiro Terminal Viver de cinzas por Renan Ji

192 196

Entrelinhas A profanação do silêncio por Laís Machado

198 202

Meia Noite Poesia, pedagogia e políticas dos corpos negros por Wellington Júnior

204 208

Gota d'Água {PRETA} Negras vocalidades: uma crítica ao presente por Guilherme Diniz

210 214

Por Onde Andam os Porcos A existência fossilizada em Por onde Andam os Porcos por Nathalia Catharina Alves Oliveira

216 220

Recolon Grito-paisagem por Wellington Júnior

222 226

Stabat Mater Real e ficção como valores complementares por Michele Bicca Rolim

228 232

tReta O choque como antítese à barbárie por Nathalia Catharina Alves Oliveira

234 238

violento. Corpo/corpus negro: paisagens de sentidos por Guilherme Diniz

240 244

ZOO ZOO e a ressaca colonial por Rodrigo Nascimento

248

Programação

256

Entrevista com Janaina Leite

260

A busca por autonomias instáveis na MITsp 2020 por Julia Guimarães

266

Tudo o que lhe peço para imaginar existe por Renan Marcondes Dossiê de Internacionalização

272

Internacionalização em tempos de decolonização: é possível? por Christine Greiner

276

Plataformas de lançamento para nossas artes cênicas por Maria Lucia Pupo

280

Internacionalização, interculturalidade e indicadores: ideias esparsas (para iniciar a conversa) por Lúcia Maciel Barbosa de Oliveira e André de Araújo

284

Entrevista com Christiane Jatahy Ações Pedagógicas

290

Programação

302

Entrevista com João Fiadeiro

306

A teatra contra a tutela: pedagogias indisciplinares da arte ou la esperanza es la más grande de las puras por Dodi Tavares Borges Leal

310

Navegar na incerteza (ensaio sobre uns possíveis) por Ana Harcha Eventos especiais

318

Seminário Perspectivas Anticoloniais

319

Homenagem a Francisco Medeiros

319

O Espectador e a Leitura da Cena

319

Residência Artística Fissuras Rítmicas

322

Minibiografias

334

Ficha Técnica

336

Agradecimentos


APRESENTAÇÃO

EM SUA SÉTIMA EDIÇÃO CONSECUTIVA, A MITSP – Mostra Internacional de Teatro de São Paulo reúne um recorte da cena contemporânea mundial, com produções que enveredam pela experimentação de linguagem e se mostram críticas ao seu próprio tempo. Dentro dessa perspectiva, em 2020 os eixos apontam para duas palavras-chave: transbordar e transgredir, conceitos refletidos também nas obras do artista Henrique Oliveira, que compõem a identidade visual desta edição. A Mostra de Espetáculos inclui trabalhos internacionais com artistas de diversos países, e a MITbr – Plataforma Brasil se consolida como um importante programa de internacionalização das artes cênicas brasileiras. Complementam a programação as atividades de Olhares Críticos, com conversas, publicação de artigos e críticas; e o eixo Ações Pedagógicas, que reúne residências, oficinas e outras atividades formativas. MOSTRA DE ESPETÁCULOS Se a edição passada foi marcada por produções documentais, esta 7ª MITsp vai por outro caminho, dando força à hiper-teatralidade. São trabalhos que buscam na metáfora e na poética teatral a potência para representar os absurdos de um mundo em conflito. Artista em foco, o português Tiago Rodrigues, diretor do Teatro Nacional Dona Maria II, apresenta dois espetáculos, By Heart e Sopro. Trafegando entre a realidade a ficção, o ator, encenador e dramaturgo explora a força da memória, seja como instrumento de afeto, seja como ferramenta de resistência. O francês Philippe Quesne, com a alemã Münchner Kammerspiel, usa do humor e da ironia em Farm Fatale, uma alegoria distópica sobre os impactos humanos no mundo. Em Sábado Descontraído, a ruandesa Dorothée Munyaneza, radicada na França, mescla linguagens artísticas diversas à sua memória de infância para falar dos horrores da guerra civil em seu país. A francesa Phia Ménard, em Contos Imorais - Parte 1: Casa Mãe, reimagina uma casa para a Europa e seus desabrigados a partir de uma simples estrutura de papelão. Já a franco-austríaca Gisèle Vienne se debruça sobre suas pesquisas em dança e marionetes para dissecar as relações humanas nos espetáculos Multidão (Crowd) e Jerk (Babaca). Esses espetáculos formam o Foco França, um pequeno panorama da cena contemporânea do país. 8


O português João Fiadeiro faz uma crítica à urgência e à rotina acelerada em O que Fazer daqui para Trás. Já a indiana Mallika Taneja fala da violência contra mulheres de seu país em Tenha Cuidado. A relação com o outro, o diferente, também é o mote de trabalhos como Tu Amarás, em que a companhia chilena Bonobo mostra uma sociedade receosa em receber forasteiros; e o britânico O Pedido, parceria entre o diretor Mark Maughan e o dramaturgo Tim Cowbury, sobre as falhas do sistema de asilo para refugiados. Há ainda um enfoque à visibilidade trans. Artista não binário, Travis Alabanza discute, em Burgerz, um caso de transfobia que vivenciou. ORLANDO, instalação da suíça Julie Beauvais, baseia-se no romance de Virginia Woolf para pensar um mundo pós-binário. Esta edição, por fim, celebra os dez anos do texto O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu, sobre um Cristo transexual, reunindo sessões da montagem original, com a britânica Jo Clifford, e da nacional, com Renata Carvalho. MITBR - PLATAFORMA BRASIL No seu terceiro ano, a MITbr amplia a proposta de abarcar a pluralidade de linguagens, temáticas e artistas da cena nacional. A coreógrafa Andréia Pires, artista brasileira em foco, discute o corpo político e o atual contexto do país em Fortaleza 2040 e PRA FRENTE O PIOR. O debate político e social, aliás, permeia boa parte dos trabalhos. Por Onde Andam os Porcos, de Kildery Iara, repensa o sistema capitalista e seus agentes. Maikon K relê Georges Bataille e sua crítica aos padrões da sociedade em O Ânus Solar. O Coletivo Mona fala do impacto ambiental das usinas hidroelétricas do Rio Madeira, em Rondônia, com a performance Recolon. O Grupo MEXA, com Cancioneiro Terminal, e o Original Bomber Crew, com tReta, colocam em cena corpos periféricos e marginalizados. O grupo Macaquinhos propõe uma ressaca colonial em ZOO, que desencanta os zoológicos humanos realizados em países da Europa durante o século 20. E Janaina Leite disseca o feminino – e seu papel social – em Stabat Mater, seu trabalho mais recente. Muito presente nesta edição são obras que tratam da questão do negro – discutindo a presença do corpo negro em cena ou mesmo relendo mecanismos históricos de opressão. É o caso de violento., de Preto Amparo, 9


APRESENTAÇÃO

Alexandre de Sena, Grazi Medrado e Pablo Bernardo; Entrelinhas, do Coletivo Ponto Art; Meia Noite, de Orun Santana; e Gota D’Água {PRETA}, de Jé Oliveira, adaptação do musical de Chico Buarque e Paulo Pontes. OLHARES CRÍTICOS A programação do eixo Olhares Críticos convida o público a pensar as artes cênicas e a contemporaneidade a partir de uma série de ações, como a realização de debates; mesas com pensadores de diversas formações e lugares de fala; e publicações de críticas diárias. A prática curatorial e ideia de cultura como um bem de todos são temas que norteiam as Reflexões Estético-Políticas deste ano, com mesas como A Cultura como Direito Constitucional e Bem Comum, Democracia em Foco: Mecanismos de Censura e Curadoria na Encruzilhada. Os artistas em foco desta edição, o português Tiago Rodrigues e a brasileira Andréia Pires, participam de entrevistas públicas, e o pesquisador francês Olivier Neveux, professor de história e estética do teatro na ENS de Lyon, ministra a masterclass Contra o Teatro Político. Pesquisadora em foco, a atriz, dramaturga e diretora Janaina Leite explora as questões estéticas e políticas de seu trabalho sobre o feminino, com uma desmontagem de seu espetáculo Stabat Mater e debates sobre as questões suscitadas pela obra. AÇÕES PEDAGÓGICAS As Ações Pedagógicas propõem discutir novas pedagogias e modos de produzir e transmitir conhecimento. E também modos de permitir a emergência de autonomias, novos jeitos de habitar e conviver. A programação foi iniciada, em 13 de fevereiro, com a residência artística Olho no Olho: Quem Consegue Ser Visível na São Paulo de Hoje?, com o grupo britânico Quarantine. Nela, os participantes buscam um diálogo com pessoas de pensamentos e ideologias diferentes – e até conflitantes. O argentino Lisandro Rodriguez trabalha a representação na residência Teatro Urgente: Encontro Agonizante, e o performer, coreógrafo e pesquisador 10


português João Fiadeiro, pedagogo em foco desta edição, participa de uma conversa performativa e realiza um intercâmbio artístico a partir de sua metodologia Composição em Tempo Real. No intercâmbio O Grande Retorno: Nenhum Passo Atrás, a guatemalteca Regina José Galindo propõe o convívio e a luta contra o retrocesso. Já a boliviana Maria Galindo repensa o processo criativo no campo da política a partir de um laboratório (Presenças Incômodas: Onde Está a Rebeldia?) e de uma performance (A Jaula Invisível). A voz e a representatividade de corpos periféricos são exploradas por artistas como a mexicana Lia García, que ministra um laboratório e realiza uma performance, e pela Encontra de Pedagogia da Teatra, programação com curadoria de Dodi Leal e coordenação de Maria Fernanda Vomero que reúne oficinas, performances e debates para revitalizar as metodologias de criação teatral a partir das experiências disruptivas de saberes não hegemônicos. PROGRAMAÇÃO ESPECIAL Por fim, uma programação especial abriga uma homenagem ao diretor Francisco Medeiros; uma mesa sobre a questão do público e da recepção, com a presença de Thomas Jolly e Flávio Desgranges; e o Seminário Perspectivas Anticoloniais, com curadoria de Christine Greiner, Andreia Duarte e José Fernando Peixoto de Azevedo, que promove exercícios de leitura e encontros para pensar as questões epistemológicas na relação anticolonial.

MITsp 11


AO TERCEIRO SINAL UMA MOSTRA NÃO APENAS MOSTRA, MAS PROVOCA, AGITA, CONVULSIONA. Cria espasmos e produz sangrias. Confronta, porque é da natureza da arte duvidar sempre do certo, do sólido, do liso e do redondo. Quando mostra, são mais os pontos cegos que são vistos. Se esconde, é apenas provisoriamente, como um golpe dramatúrgico para o que será revelado mais tarde. Uma Mostra não quer salvar nada nem ninguém. Talvez, na melhor das hipóteses, ajude a nos salvar de nós mesmos. Mas não precisamos ser salvos por nenhuma pátria, família ou religião. A danação pode ser uma opção. Até porque, paraísos assexuados e abstinentes são a própria imagem do inferno. Ao contrário, queremos a gula. Quantos deuses ainda serão criados para mascarar mecanismos de opressão e expropriação? Os nossos deuses, por outro lado, quando existem, nos empurram pra vida, pra festa, pro jogo. Embebedam-nos até chorarmos de rir de nossa tragédia-comédia sem sentido algum. Uma Mostra não tem nação. Os países que dela fazem parte são os próprios artistas: o país Andréia Pires, o país Tiago Rodrigues, o país Janaina Leite, o país João Fiadeiro, entre vários outros presentes nesta 7ª edição da MITsp. Todos eles são constituídos de uma cartografia sem fronteiras, com muitas beiras e dobras, precipícios e relevos. Em nossos territórios não demarcados, abominamos a ideia de povo, tão cara aos populistas autoritários da vez. Somos multidão heterogênea e acreditamos na partilha do comum. Recusamos também a ideia de pátria, pois cria um pertencimento forçado e postiço que ameaça nossa liberdade de bastardos. Somos filhos pródigos, ovelhas-rosas, enjeitados ou indesejados – mas nossos irmãos, somos nós quem escolhemos. Nas terras que ocupamos, não cantamos hinos nem hasteamos bandeiras, para que o câncer dos nacionalismos morra à míngua e não se multiplique. Nossa arte, portanto, nunca será nacional nem heroica. Aliás, uma Mostra não tem heróis, ela é construída, pouco a pouco, por um sem-número de pessoas. Trabalhadores como quaisquer outros, ainda que lhes sejam negados ou invisibilizados tal status. Precisamos entender que a cigarra e a formiga habitam os mesmos corpos. E, por não ter heróis, uma mostra é um organismo vulnerável. Pode acabar a qualquer momento, pois aqueles que nela trabalham também se esgotam, se fragilizam, adoecem diante de contextos continuamente adversos. Uma Mostra não é binária, mas é também transdisciplinar e transgênera. E por isso se coloca contra a conivência e a invisibilização das transfobias diárias. É 12


urgente desnaturalizarmos a violência e o culto à ignorância a que estamos sendo submetidos por quem governa este país. Precisamos combater qualquer poder político que pretenda aprisionar nossos corpos e libidos. Nossos desejos são tão fluidos quanto nossos gêneros. Estamos fora da caixa com muito orgulho. E não aparamos as pontas. Por isso, nenhuma cruzada moralista há de nos converter. Uma Mostra não tem bíblias nem tábuas de lei. Ela é o exercício da contradição, da falha, do tatear às escuras, da incerteza, do mal-estar. E ainda que a temporada de caça aos artistas esteja em pleno vigor, ao final, desmancharemos os rifles e revólveres. Pois não há Index que nos torne proscritos por muito tempo. As novas inquisições religiosas não resistirão e serão excretadas pelos santos orifícios. E as manipulações conservadoras hipócritas, que chamam de “curadoria” o que na verdade é “censura”, serão desmascaradas. Que uma Mostra, talvez essa, possa contribuir para que saiamos da inação hamletiana rumo ao enfrentamento da barbárie. Que os espetáculos nela apresentados nos ajudem a ultrapassar a depressão coletiva, o anestesiamento, a indiferença e a perigosa condescendência. Que produza antídotos contra a paralisia e outras catatonias. A economia não pode ser justificativa para o obscurantismo. Em nenhuma hipótese. Portanto, que nossos corpos se impliquem, que nossas vozes se ativem, que nossos sentidos se ampliem e que tudo isso seja, então, trazido à mostra. O terceiro sinal acaba de soar. Bem-vindas e bem-vindos à ação!

ANTONIO ARAUJO IDEALIZADOR E DIRETOR ARTÍSTICO DA MITsp

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INSURGÊNCIA EM TEMPOS DE ESCASSEZ INSURGIR EM TEMPOS DE ESCASSEZ SEMPRE FOI O MEU DESAFIO. Sempre busquei no fazer artístico forças para transformar a escassez em algo necessário que suscitasse a troca, o conhecimento e o diálogo. Ao longo da minha trajetória tive muitos projetos bem-sucedidos e outros nem tanto, porém, sigo firme no meu propósito como cidadão na busca e dignificação das minhas escolhas artísticas e intelectuais. Por mais complexa que seja a nossa profissão, num país onde o artista é invisibilizado e marginalizado por uma grande parte da população, esse desafio torna a tarefa hercúlea! Resistimos ou morremos?! Na atual conjuntura política do país, proponho-me a rever as minhas “convicções”, “verdades” e “certezas” diante de tanta desumanização e autoritarismo. Como gestor e produtor cultural, trago a reflexão e o debate sobre a fricção entre a idealização e a execução dos projetos. Pois muitas vezes os impasses burocráticos e as respostas tardias dos recursos para realização dos festivais, além de onerar os custos, adoece a todos nós. É urgente e se faz necessário tanto o poder público quanto o privado repensarem os tempos e os modos de fazer produção em nosso país. Um planejamento a médio e longo prazo impacta diretamente a redução dos gastos e dá uma maior visibilidade tanto para as ações artísticas como para as instituições apoiadoras. Sendo assim, ganhamos todos. Acredito que o âmbito cultural é uma potência! Já está mais que evidenciado, também por meio de estudos prévios, que este é um dos setores que mais geram riqueza para o nosso país. Quer dizer, estamos falando de um mercado de trabalho que gera milhões de empregos. É urgente termos em nossas mãos os indicadores econômicos da cultura para sabermos exatamente a potência e a riqueza gerada pelo setor. Por isso que na atual conjuntura faço um apelo para que todos nós, artistas, nos organizemos em torno de um movimento nacional para fazer esse levantamento e definitivamente mostrar a força da nossa área! Tomando como exemplo a edição da MITsp 2020, geramos algo em torno de 150 empregos diretos e 300 indiretos. Movimentamos a hotelaria, restaurantes, teatros, transporte público, pagamos impostos e, além disso, promovemos 63 ações reflexivas e pedagógicas gratuitas, 12 espetáculos internacionais e 13 espetáculos nacionais. Com a Plataforma Brasil - Programa de Internacionalização 14


das Artes Cênicas Brasileiras, um dos quatro eixos da MITsp, criamos uma interlocução direta com 68 programadores nacionais e internacionais, visando a circulação dos artistas brasileiros nos festivais e mostras pelo mundo. Em apenas duas edições da Plataforma tivemos a evidência de espetáculos e artistas convidados para se apresentarem em vários festivais. O que mostra a pujança e o diferencial da nossa produção artística. Lamento que o poder público nas três esferas não tenha desenvolvido ainda políticas públicas voltadas para a internacionalização dos nossos artistas. Será que não está na hora de termos uma bancada parlamentar que defenda as nossas causas? Para finalizar, quero reconhecer os nossos parceiros pela acolhida, seja econômica ou mesmo sediando ações em seus espaços, pois seria impossível realizar a Mostra Internacional de Teatro de São Paulo sem os seus apoios. Desde sempre agradeço ao Banco Itaú, Itaú Cultural, Secretaria Municipal de Cultura, Secretaria Estadual de Cultura e Economia Criativa, Sesc São Paulo, Sesi-SP, Sabesp, Porto Seguro, Veólia, Instituto Francês de Paris, Consulado da França em São Paulo, Goethe-Institut e Consulado da Alemanha em São Paulo, Pro Helvetia, British Council, Cultura Inglesa, Instituto Italiano, Instituto Camões e Consulado de Portugal em São Paulo. Muito obrigado por acreditarem e incentivarem esta Mostra em tempos tão sombrios!

GUILHERME MARQUES IDEALIZADOR E DIRETOR GERAL DE PRODUÇÃO DA MITsp

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CENA BRASILEIRA: UMA PAISAGEM DE CORPOS INSUBORDINADOS O BRASIL PARECE ETERNAMENTE URGENTE. E os trabalhos que compõe a mostra MITbr 2020 bagunçam noções estáveis sobre o tempo em que vivemos. Em comum, o fato de existirem mesmo e apesar das forças conservadoras de um governo que não governa, desconhece o real sentido da política e segue se vingando de tudo aquilo que contrarie seu novo projeto antigo de amar o colonialismo brasileiro, um governo que investe em propagandas que, no frigir dos ovos, disseminam ideias de que a arte não tem a menor importância. Ora, de fato não faria sentido, para um projeto como o que está posto, investir em práticas de insubordinação e definitivamente, ainda que contraditórias, por vezes subordinadoras inclusive, inseridas em sistemas que sustentam estruturas de poderes feios, a arte quer-se e é libertária. Ela move. Um dos seus maiores pressupostos é o movimento. A ginga no mundo. A gira. E a reação é um movimento que aponta direções para que outras ações, outras criações nasçam em lugares inimaginados, além de criar espaços para essa mobilizante esperança chamada invenção. Está presente no DNA da MITsp o interesse por uma cena expandida e essencialmente experimental, procuramos expandir também a geografia de origem desses espetáculos, criando outras rotas, assumindo riscos e incertezas para possibilitar o contato do público com muitas obras que pouco circularam por outros estados. Entendemos que pensar uma cena brasileira demanda deslocamentos territoriais, migrações de pontos de vista e o interesse por um Brasil que nem sempre é observado. No contexto político atual, optamos por tomar uma posição de quem não recua diante das forças do moralismo, do puritanismo e da censura. Nossa paisagem de espetáculos da MITbr 2020 contempla obras que posicionam o corpo como “centro do mundo”, como propõe Foucault, de onde “se irradiam todos os lugares possíveis, reais ou utópicos”. São trabalhos que demarcam um horizonte de enfrentamento e cultivo da liberdade de expressão, da ampliação de nossos mundos subjetivos, da possibilidade do pensamento divergente e do diálogo. Oferecemos a você uma possível paisagem da cena brasileira contemporânea. Se a paisagem é o encontro entre um ponto de vista e um espaço, o conjunto de 16


espetáculos que compõe a programação resulta do nosso contato sensível com quase oitocentas propostas artísticas que foram recebidas na convocatória, foi esse o nosso “espaço”. A paisagem que propomos é apenas um modo de olhar para a produção das artes da cena nesse momento brasileiro convulsionante e distópico. Essa programação composta de 13 espetáculos representa um panorama do total de projetos inscritos, assim, nunca é possível numa única mostra revelar toda a diversidade, verticalidade, perseverança e força das criações e processos artísticos que seguem promovendo uma tecnologia cognitiva através das suas proposições e políticas de existência. Chegamos a uma pequena rede de propostas – a nossa paisagem - que reverbera para um sistema poroso o suficiente para semear novas conexões e futuros, e estável no seu conjunto heterogêneo e correlato! Procuramos não nos limitar por rótulos do que seja teatro, dança ou performance, ao contrário, fomos guiados pelo corpo: que mundo nos revela? O que falam? O que movem? O que podem fazer mover? Que paisagens inauguram? Como somos afetados no encontro com os seus agenciamentos? Essas foram algumas das questões que pautaram nosso exercício curatorial e resultaram numa curadoria hegemonicamente formada por trabalhos que operam na chave da performatividade, mais distanciados da ideia de representação. Talvez, um modo de se relacionar com essas obras passe por se deixar afetar por noções como: corpo fim de festa; corpo que se reivindica; corpo marginal; corpo e ancestralidade; corpo que não aguenta mais; corpo manifesto; corpo festa; corpo denúncia; corpo insubordinado; corpo da luta. O nosso desejo é que você também possa ser movido, mover e fazer mover a partir do encontro com os mundos que se anunciam na ação desses corpos aqui e agora nesse Brasil agudo e urgente.

ALEJANDRO AHMED, GRACE PASSÔ E FRANCIS WILKER CURADORES DA MITbr – PLATAFORMA BRASIL

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A QUEM SE INTERESSAR PELAS FORMAS COMO ESTA REVISTA FOI PROJETADA, REALIZADA E DISTRIBUÍDA, é possível pressupormos uma pluralidade de subjetividades a quem se destina. E outra pluralidade imensamente maior a quem não se destina. Desenham-se, assim, um “nós” e um “outros” no campo discursivo que estas palavras atravessam. Barreiras afetivas a definir as fronteiras que dão forma ao que percebemos como mundo. Arte e campo progressista tantas vezes se encontram em um projeto de transformação desse mundo que visa ao “bem comum” e, em suas idealizações salvacionistas, convencem-se da própria universalidade e de que os fins justificam os meios. Dessa maneira, generalizam e normalizam uma ideia de “nós” sem questionar quem permanece excluído dessa noção de comum. Sem revisar as estratégias discursivas, econômicas, políticas, afetivas, corporais, que sustentam as estruturas classistas, racistas, coloniais e patriarcais da sociedade capitalista. Se na última década a economia da cultura parcamente se sustentou no país à base de uma política de incentivos fiscais que, por si mesma, já era insuficiente, excludente e direcionada por interesses empresariais; agora, sob os efeitos devastadores do desmonte das políticas públicas para a área, é preciso repensar os modos de produção para não repetir as estratégias neoliberais de precarização do trabalho que “nós” combatemos, não aniquilar a reflexão crítica nem submeter as subjetividades às violências do capital e às normatividades cis hétero e brancas. Assim como, em contradição com nossos próprios discursos, ainda perpetuamos moralismos e formas de censura, seguimos internalizando e naturalizando essas violências e exclusões, ao ponto de que as repetimos mesmo quando nos convencemos de que estamos trabalhando para combatê-las. As Reflexões Estético-Políticas deste ano propõem, então, o necessário debate do direito à cultura. Para tanto, é inescapável questionar: A quem é pleiteado tal direito? E a qual cultura? Fazer uma curadoria, submetida aos poderes estruturais e institucionais vigentes, é haver-se a todo momento com essas questões, com estratégias internalizadas e suas consequências. Nessa prática, têm ganhado relevo os impasses apresentados nos entrecruzamentos das relações de poder 18


que moldam as formas de opressão vigente. Por isso, um movimento importante deste ano é o convite à fala da pesquisadora Carla Akotirene sobre interseccionalidade. Ela abre um debate com artistas sobre as contradições da noção de cultura como bem comum, tendo em vista as complexas partilhas de privilégios e exclusões no campo da arte. Na mesma direção aponta a realização de um debate com realizadores das muitas frentes da MITsp sobre a prática curatorial nessas encruzilhadas. E se aqui convocamos a imagem da encruzilhada como intersecção de relações de poder é tanto por sua potência de abertura de caminhos quanto pela capacidade de nos fazer hesitar, parar, rever. Outro movimento fundamental que dá sentido à curadoria dos Olhares Críticos em 2020 é a atenção à pesquisa da artista Janaina Leite. Seu trabalho em Stabat Mater estabelece questões estéticas, éticas e políticas muito caras a nós duas: a não separação entre prática, teoria e reflexão crítica na concepção de uma obra artística. A radicalidade na pesquisa sobre si, sobre o feminino, sobre os enquadramentos sociais da mulher e sobre a linguagem do teatro, encarando um contexto social de moralismo crescente. A coragem da verdade como um enfrentamento praticado com o corpo. A sustentação de uma visada analítica e implicada sobre as complexidades e tensões dos impasses da subjetividade e da cultura. Se há um sentido em manter vivos nossos olhares críticos é marcar posição contra esses sistemas de crenças em que “nos” enquadramos, mas que atropelam os processos, atropelam o pensamento, atropelam as pessoas. Mais do que nunca, é preciso autocrítica. Assim, concluímos um ciclo de 7 anos de MITsp — em que estivemos presentes, de uma maneira ou outra, desde 2014. Na curadoria do eixo reflexivo, tentamos honrar o projeto inaugural dos Olhares Críticos, feito por Fernando Mencarelli e Silvia Fernandes, que tem sido nossa âncora de coerência no mar revolto da realização desta Revista Cartografias. Muito aprendemos e desaprendemos. Agradecemos as possibilidades que tivemos de realizarmos algumas ações significativas e, agora, nos despedimos. Saber parar é parte do saber fazer.

DANIELE AVILA SMALL E LUCIANA EASTWOOD ROMAGNOLLI CURADORAS DO EIXO OLHARES CRÍTICOS

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QUE SE IMPLODAM AS ESTRUTURAS O MUNDO CHACOALHOU EM 2019. Talvez de modo mais intenso, visível e contínuo que nos anos anteriores – Hong Kong, Haiti, Equador, Chile, Bolívia, Colômbia, Catalunha, França... Ou talvez os sismos sociopolíticos sejam mais frequentes do que pensamos – como os tremores de terra suaves com os quais nos acostumamos –, mas só nos damos conta daqueles que derrubam estruturas, desestabilizam o que parecia ordenado e transformam o ambiente físico e anímico. Talvez seja difícil compreender o que representa um terremoto telúrico se nunca vivenciamos um; mas, no Brasil, sabemos, sim, o que são convulsões sociais. Por isso, diante de um mundo em completo abalo político-sísmico, os grupos de poder e os mantenedores do status quo apressaram-se a oferecer um simulacro de normalidade, sustentado por estímulos de hiperconsumo, hipermoralismo e hiperdesinformação. Aqui, disseram, a terra não vai tremer (nem inundar ou queimar ou sangrar). Tudo manter-se-á (enunciaria o outro presidente) na mais absoluta normalidade. Como revelaram as projeções nos edifícios públicos da convulsionada Santiago, Chile, no explosivo fim de 2019: o problema era a tal da normalidade. Essa falsa ideia de que era “normal” manter as estruturas opressivas do neoliberalismo voraz, do machismo, do racismo, do colonialismo, do autoritarismo e da crueldade totalitária de governantes ignóbeis às quais cidadãos aparentemente passivos e esgotados se submetiam. Os abalos políticos também rompem vidros, postes, veículos, mas sua principal característica é justamente instalar uma cicatriz indelével no tecido social a fim de recordar, sempre, que nada mais será como antes, ainda que simulacros sejam oferecidos à população (e muita gente os aceite). Terra que treme em um corpo que busca estabilidade – falava eu ao português João Fiadeiro, pedagogo em foco da 7ª edição da MITsp, a respeito de minha experiência com um tremor de terra em Oaxaca, México. Era madrugada, o alarme sísmico soou e saí correndo descalça e sonolenta, sem saber se era uma alucinação ou não. “Podia ser esse um subtítulo da minha prática em Composição em Tempo Real. Como a ‘terra’ bem sabe, não há estabilidade sem agitação. Agitar é preciso”, ele me respondeu. Sim, agitar é preciso. Esses abalos todos me trouxeram uma constatação: no Brasil, parece que muitos de nós nos acomodamos no resignado discurso da resistência. Estamos resistindo, especialmente nas redes sociais, apegados à ilusória estabilidade da postura contestatória. “Seguirei sendo crítico, um opositor das atrocidades, mas sem me mover”. Sabemos, no entanto, que se nós não nos deslocamos, a “terra” – entre aspas, como escreveu Fiadeiro – nos chacoalha em algum momento. Convido a socióloga e historiadora boliviana aymara Silvia Rivera Cusicanqui para a reflexão. Há uma passagem deliciosa em seu livro Un Mundo Ch’ixi Es Posible – Ensayos Desde un Presente en Crisis (2018, p. 39), que traduzo aqui: “[...] o sonho das elites 20


nunca há de ser totalmente tranquilo, ameaçado como está pela irrupção de imagens dialéticas e constelações impensadas. O ‘pesadelo do assédio índio’, o ‘pesadelo do assédio das mulheres’, mas sobretudo a eclosão de comunidades de vida que se inspiram em epistemes índias, ecologistas e feministas desnudarão esses gestos paródicos e senhoriais e sua tática falida de cobrir com uma nuvem de palavras vazias os dispositivos mais arcaicos de colonização e subalternização”. Por isso, repito: não haverá volta à normalidade, senhores e doutores. Nós, minorizados e involuntários da pátria, mulheres, negrxs, LGBTI+, indígenas, sul-hemisféricos, antirracistas, anticlassistas, anticoloniais, dissidentes, dissonantes, desobedientes, não voltaremos aos rincões da opressão e da submissão. Seguiremos presentes na cena pública. Somos e seremos a assombração das elites e dos necropoderes. Diante dessa força sociotelúrica que emerge aqui, ali e acolá, o eixo pedagógico de um festival internacional como a MITsp não poderia deixar de gerar espaços de experimentação, de risco, de dissidência libidinal, de insurgência criativa, de partilha de saberes. Precisamos criar novas formas de estar, de protestar, de conviver e de fazer arte e política para além desse “mal vivir” (Silvia Rivera de novo) que nos é imposto. A linha curatorial que guiou a tessitura das Ações Pedagógicas foi Novas Pedagogias: Fissuras e Experimentações. Não tenhamos medo de implodir as estruturas, se necessário. Arrisquemos! Podemos falhar várias vezes; e daí? O importante é não perdermos o prazer de sermos aprendizes. No programa do eixo pedagógico, além das residências artísticas, dos intercâmbios, das oficinas e demais atividades, duas apostas: os Laboratórios de Experimentação – oficinas intensivas em que performers e ativistas latino-americanas, acompanhadas de artistas brasileiros de outras linguagens, vão arriscar propostas críticas e criativas, e a Encontra de Pedagogia da Teatra, um espaço festivo-reflexivo sobre a potência das vivências e identidades trans. A curadoria também contemplou uma abertura a experiências performativas pulsantes no continente americano, insistindo em modos de fazer teatro fora de uma matriz hegemônica dita “universal”, mas na verdade “colonial”. Mesmo os artistas europeus convidados a conduzir alguma ação não aderem a esses pressupostos cristalizados e deixam-se tremer por provocações e desobediências. Há também na programação um ato performativo-político, promovido pela artista indiana Mallika Taneja, que propõe uma marcha noturna de mulheres pela cidade. Não é preciso ser artista ou estudante de teatro para participar das Ações Pedagógicas; há atividades pensadas para jornalistas, ativistas, ecologistas, estudantes, aposentados, transfeministas, interessados em geral. Necessária é a disponibilidade para lançar-se ao risco e ao convívio com os demais. Como indaga a filósofa catalã Marina Garces, em Un Mundo Común (2013), num mundo que se construiu sobre a desvinculação de seus indivíduos de qualquer dimensão compartilhada de vida, em que o “nós” virou uma extensão ampliada do “eu”, como reaprender a noção de comum, sem cair na exaltação do unitário ou do homogêneo? Eis um de nossos desafios.

MARIA FERNANDA VOMERO CURADORA DO EIXO AÇÕES PEDAGÓGICAS

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ENCONTRA DE PEDAGOGIAS DA TEATRA: AFETIVIDADES DO SABER RISCAR E ARRISCAR A ENCONTRA É UM ESPAÇO PARA REVITALIZAR AS METODOLOGIAS DE CRIAÇÃO teatral a partir das experiências disruptivas de saberes não hegemônicos. Serão realizadas trocas reflexivas e práticas nas quais as corporalidades se arriscam em novas possibilidades de encontrar: outras formas de riscar os fazeres de espaço e de cena. A combinação de rodas com oficinas, sarau e momentos de convívio pretende instigar os afetos vetoriados pela perspectiva transfeminista de transição de gênero da área teatral: do teatro para a teatra. Pretendemos instigar novas pedagogias baseadas nos saberes trans. Como aposta prática do conjunto de atividades, apresentamos a Oficina de Afetos #sequercombina, com participações das performers Marina Mathey e Ave Terrena Alves. Serão dois encontros práticos cujo objetivo é desenvolver experimentos artísticos e corporais a partir da performance. Partimos dos desafios sociais da vivência transgênera para buscarmos dialogicamente e cenicamente formas criativas de expansão e trocas subjetivas ligadas à afetividade. Visando uma reflexão atenta e ampla dos processos formativos da Encontra, contamos com a roda de conversa Pedagogias de Transição. Amara Moira e Vulcânica Pokaropa nos indicarão como aportes da vida cotidiana e subjetiva desestruturam saberes educativos arregimentados por vícios da academia. Pretende-se refletir sobre os processos de criação e de troca disruptivos que arriscam novas afetividades como metodologia do conviver. Pedagogias que põe em transição e em risco modos hegemônicos de saber e de existir. Será um espaço para questionamento das modificações estruturais possíveis a partir dos saberes trans e suas pedagogias. Como destaque da linguagem performativa, a Encontra terá a vivência desenvolvida por Caz Ångela Apolinário Rodrigues, estudante de artes da Universidade Federal do Sul da Bahia. Trata-se de um programa concebido numa série contínua nomeada Pacote de Performances de Autocuidado e de Proteção. Amalteias, as más teias, as amas, as armas meladas, Melissas, ninfas que dão de comer, alimentam a divindade; mas de que “divino” se fala? É alimento a fala, o falo? Pensando nas que sempre foram negadas ao leite, mas que até aos deuses amamentaram, esta performance intenc(s)iona inverter a luz sobre a mesa, as tetas, sobre a cama, sobre nossas corpas e no ato performático questionar o que é o leite, o que é o mel, o que se come, o que se goza, o que é prazer, o que é nutrição; o que é dar, dar sustento ao organismo, ao social, ao espírito? 22


Ainda teremos a apresentação de um esquete que nos aproximará da abordagem da teatra. Trata-se do projeto de montagem GOTA TRAVA, que articula a população transgênera de Porto Seguro (Bahia) em torno de seus próprios saberes, seus próprios afetos e protagonismo. A textualidade de Gota d’Água, de Chico Buarque, e de Medeia, de Eurípedes, são os ensejos para provocações de uma proposta trans. A partir de uma invenção metodológica do olhar transgênero que propõe uma revisão para a obra de Augusto Boal (o Teatro do Oprimido), o projeto tem a Teatra da Oprimida como perspectiva de trabalho considerando os jogos, as técnicas e exercícios teatrais tendo em vista a luta transfeminista. E teremos uma edição pocket do Sarará Trans, um espaço de reflexão e troca de práticas artísticas em torno das resistências de corpos não hegemônicos. Ao propor uma crítica aos padrões brancos e cisnormativos de produção de saberes, a roda de conversa e as apresentações artísticas do Sarará Trans apresentam novas metodologias de encontrar e dialogar. A concepção do projeto é de Khalil Piloto, homem trans negro, meu orientando de mestrado no Programa de Ensino e Relações Étnico-Raciais da UFSB no Campus Sosígenes Costa, em Porto Seguro (Bahia). Khalil mediará a roda de conversa A Encontra das Pretitudes com as Transgeneridades. Na ocasião, poderemos acompanhar as considerações e os aportes da Erica Malunguinho, excelentíssima deputrava estadual de São Paulo. A reflexão será seguida de um espaço para fruição da experiência de coletividade guiadas por corpos trans negros e suas criações artísticas. Como atrações musicais, teremos a voraz Rosa Luz, performer e ativista, além da paulistana mais vogue da cena, Danna Lisboa, e do baiano Jackie Chean, estudante de artes da UFSB e já reconhecido por seus shows em Porto Seguro. Entre os números musicais, teremos a exposição poética de Preto Téo, que, da Bahia para São Paulo, tem nos arrebatado com palavras impactantes formadas a partir de sua vivência social e visão de mundo. Marina Silvério, por fim, exporá pinturas digitais que compõem seu trabalho de mestrado em Artes Cênicas na Universidade Federal de Uberlândia; em sua obra vemos reinvenções provocativas de artefatos, de pinturas clássicas e de imaginários sociais nas quais o corpo travesti aparece convidando percepções estagnadas a moverem o olhar com fluidez. A dramaturga Jo Clifford é o destaque internacional da Encontra e fará a abertura, com uma partilha litúrgica. Estamos aqui arregimentando um espaço de resistência, circular, efêmero em sua provisoriedade; permanente em seu impacto. Pode repetir-se. Pode ser apenas o começo. A densidade das encontras está na expansão que pode promover às nossas narrativas e trocas em sociedade. Ainda que o valor qualitativo que salta à visão desta curadoria seja os seus nomes, muitos ligados a pessoas trans reconhecidas na cena, prospectamos que seu maior alcance está nas reconfigurações erráticas que almeja. Encontremos, então: a fazer das teatras as nossas vias de encontras.

DODI LEAL CURADORA DA ENCONTRA DE PEDAGOGIAS DA TEATRA

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PARCEIROS

O Itaú Cultural atua em diferentes frentes para divulgar e fomentar a produção artística brasileira. No campo específico das artes cênicas, essa atuação se dá tanto por meio de uma agenda de espetáculos, feitos por artistas ou grupos de todo o país e exibidos gratuitamente na sede do instituto, em São Paulo, quanto através da realização de debates, cursos e editais, além do apoio a eventos como a MITsp – Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, que conta com a parceria da instituição pelo sétimo ano consecutivo. Criada em 2018, a convocatória a_ponte – cena do teatro universitário é um exemplo das iniciativas mais recentes do instituto. A partir de um chamamento público, a ação mapeia peças criadas por estudantes de artes cênicas de todo o Brasil e, posteriormente, exibe os trabalhos selecionados em uma mostra presencial. Outro caso, este mais vinculado ao exercício da reflexão sobre o fazer teatral, é o Encontro com o Espectador, uma série de conversas entre críticos, artistas e o público sobre determinados espetáculos. A atividade é fruto de uma parceria com o site Teatrojornal – Leituras de Cena [teatrojornal.com.br]. No site do Itaú Cultural [itaucultural.org.br], por sua vez, o público pode acessar informações sobre a programação do instituto e conferir uma infinidade de conteúdos elaborados exclusivamente para a internet, como a Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras e os materiais on-line do programa Ocupação Itaú Cultural, que destaca em exposições e produtos impressos e virtuais a trajetória de nomes fundamentais da arte e da cultura nacionais – a bailarina e coreógrafa Angel Vianna, a atriz Laura Cardoso, o dramaturgo e diretor João das Neves e o Grupo Corpo são exemplos de homenageados ligados às áreas do teatro e da dança. Acreditamos na relevância da MITsp no cenário das artes cênicas, em âmbitos nacional e mundial, e estamos certos de que a edição de 2020 do evento seguirá trazendo discussões essenciais para essa área de expressão. Além das peças e ações formativas realizadas na sede do instituto, a mostra conta com sessão de abertura no Auditório Ibirapuera – Oscar Niemeyer, espaço gerido pelo Itaú Cultural desde 2011.

EDUARDO SARON DIRETOR ITAÚ CULTURAL

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MITsp UMA TRANSGRESSÃO NECESSÁRIA Evento marcante no calendário cultural da cidade, a MITsp chega à sua sétima edição, e a Secretaria Municipal de Cultura anuncia uma novidade: o aumento de 50% no patrocínio. Neste ano, o Centro Cultural São Paulo torna-se o epicentro da programação, que se estende também aos nossos teatros e centros culturais. Outra boa notícia é que, na mesma semana do evento, o teatro Arthur Azevedo, na Mooca, reabre sua plateia, após obras de readequação. Em seguida, é a vez do Paulo Eiró ser entregue ao público de Santo Amaro. O apoio às artes cênicas tem sido uma de nossas prioridades. Em 2019, aumentamos o número de frequentadores dos nossos teatros por conta de uma curadoria atenta à qualidade da programação. Em janeiro de 2020, outro evento importante ocupou nossos espaços: o Verão Sem Censura, festival que deu visibilidade a espetáculos teatrais que sofreram algum tipo de cerceamento ao longo da história, especialmente no último ano. Esse tipo de “ousadia cultural” vem ao encontro das palavraschave que definem a MITsp nesta edição: “transbordar” e “transgredir”. Com sua vocação internacional de pesquisa, a Mostra insere-se plenamente na ideia de “São Paulo Capital da Cultura”, recebendo produções brasileiras e internacionais que transformam a cidade em um polo cultural fundamental, não só para o país como para o mundo. Longa vida à MITsp!

ALEXANDRE YOUSSEF SECRETÁRIO MUNICIPAL DE CULTURA DE SÃO PAULO

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PARCEIROS

CENAS, HÁBITO E DESVIO Conceber o teatro como aspecto integrante da realidade, que dela se alimenta para modificá-la, alterando por vezes seu curso ordinário – eis uma maneira potente de perceber as conexões entre arte e vida. Isso significa compreender as práticas teatrais inseridas no cotidiano e recusar o papel de excepcionalidade que as limitaria a determinadas classes e ocasiões. Contaminado de mundo, o teatro revela sotaques, enfrenta as circunstâncias que os territórios impõem, conciliando suas urgências com investigações estéticas variadas. Nessa perspectiva, é coerente que uma instituição cultural comprometida com os direitos culturais acolha as artes cênicas em seu dia a dia, reconhecendo as convergências entre criatividade e cidadania. O apoio do Sesc à MITsp - Mostra Internacional de Teatro de São Paulo desde a primeira edição do evento tem representado um elemento importante em tal contexto. Ao cotejar a produção nacional, da qual os públicos de São Paulo estão em geral mais aproximados, com experiências vindas de outros países, é oferecida a oportunidade de um olhar expandido sobre a arte contemporânea, que possa ora relativizar padrões regionais ora sugerir inusitados paralelismos. A produção cênica, principalmente a partir das interfaces entre prática, reflexão e formação, é potencialmente educativa; a ação cultural por meio do diálogo e parceria com relevantes agentes sociais é um aceno democrático. Na confluência desses dois vetores – educação e democracia – estará, é certo, o equacionamento de parte de nossos dilemas atuais.

DANILO SANTOS DE MIRANDA DIRETOR REGIONAL DO SESC SÃO PAULO

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SÃO PAULO VALORIZA A CULTURA E SEUS PROFISSIONAIS Bem-vindo(a) à 7ª Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, o mais relevante evento de artes cênicas do Brasil. Trata-se de uma edição especial, com mais atrações, mais espaços e um alcance ainda maior. O Governo do Estado de São Paulo tem a honra de apoiar mais uma vez a MITsp, por meio do ProAC Expresso, do patrocínio da Sabesp e da cessão de espaços, valorizando sua grande contribuição para o desenvolvimento humano, econômico e social do Estado. Em São Paulo, a cultura, seus profissionais e a política cultural são valorizados. Em 2019, o Governo do Estado investiu R$ 1,2 bilhão na área – uma entre várias demonstrações do compromisso do governador João Doria e de sua equipe com a cultura. Criamos equipamentos culturais, fortalecemos o fomento, desburocratizamos processos e apostamos em parcerias. Concluímos o restauro e readequação do Museu da Língua Portuguesa, criamos o MIS Experience, realizamos o ProAC Expresso, com o valor recorde de R$ 154,2 milhões, lançamos o programa Juntos pela Cultura e atingimos 99,4% de execução do orçamento da Secretaria. Muito foi feito; e muito ainda há por fazer. Em 2020, o investimento será maior; e os resultados, melhores. Este é o compromisso que reiteramos neste evento. O compromisso desta gestão com a arte, a cultura e a economia criativa. Em São Paulo, a política cultural está entre as prioridades. Questão de bom senso.

SÉRGIO SÁ LEITÃO SECRETÁRIO DE CULTURA E ECONOMIA CRIATIVA DE SÃO PAULO

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PARCEIROS

O British Council tem a honra de ser mais uma vez um parceiro internacional da MITsp, um festival imperdível dentro do calendário artístico do Brasil. Vivemos num momento em que normas e valores aceitos estão sob ataque, tendo as artes na dianteira de uma série de guerras culturais. É precisamente na área da cultura que nos levantamos quanto à liberdade de expressão com autenticidade e sem medo de retaliações verbais e físicas. A contribuição do Reino Unido neste ano inclui Burgerz, de Travis Alabanza que explora como corpos trans sobrevivem, a partir de um incidente sofrido pela trans-performer –quando um passante lhe jogou um hambúrguer–; e a peça de Tim Cowbury, O Pedido, na qual um refugiado é entrevistado por pessoas cujas palavras não são fáceis de entender e sua história é desvirtuada na tradução. Estamos também orgulhosos de apoiar a residência da companhia Quarantine, localizada em Manchester, por meio do Programa Pontes, que realizamos em conjunto com a Oi Futuro, dando oportunidades para que artistas britânicos trabalhem juntamente a parceiros do Brasil. Quarantine apresentará uma instalação performativa a partir da residência artística Olho no Olho: Quem Consegue Ser Visível na São Paulo de Hoje? O trabalho consiste em uma exposição de pessoas comuns que interagem com estranhos e que dialogam em espaços urbanos – possibilitando que novas histórias, vozes não oficiais e narrativas não hegemônicas sejam vistas e ouvidas. Desejo que vocês aproveitem a contribuição do Reino Unido deste ano na MITsp, e mando as minhas felicitações aos organizadores pelo que certamente sei que será um excelente festival.

O SESI sempre se manteve protagonista de suas ações na cultura, incentivando projetos artísticos grandiosos, acessíveis e gratuitos. No entanto, desde 2017, vem diversificando sua forma de atuação e intensificando o diálogo com outras entidades e iniciativas. A parceria com a MITsp é um ótimo exemplo dessa postura, que não só faz expandir a marca SESI, mas traz, em contrapartida, diferentes públicos ao nosso Centro Cultural FIESP. Produções arrojadas e pessoas antenadas com o que há de mais expressivo da produção teatral, seja na esfera nacional como internacional, evidenciam sua missão fundamental: dinamizar as relações culturais da sociedade, produzindo e difundindo o que há de melhor para todos os públicos. Além dos espetáculos, a parceria desdobra-se em oficinas e debates, evidenciando o DNA do SESI: a formação. Diminuir distâncias, aproximar o diverso, eliminar fronteiras: são perspectivas factíveis em um encontro como o da Mostra Internacional de Teatro. O SESI sabe do valor singular da cena brasileira e quer estar à frente das discussões e realizações em favor da internacionalização das artes brasileiras.

PAULO SKAF PRESIDENTE DA FEDERAÇÃO DAS INDÚSTRIAS DO ESTADO DE SÃO PAULO (FIESP) E DO

MARTIN DOWLE

SERVIÇO SOCIAL DA INDÚSTRIA DO ESTADO

DIRETOR DO BRITISH COUNCIL

DE SÃO PAULO (SESI-SP)

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O Consulado Geral da França em São Paulo renova, este ano, com entusiasmo e convicção, sua colaboração com a MITsp. Nós acolheremos, ao mesmo tempo, quatro espetáculos que ilustram perfeitamente a vitalidade e a força da criação contemporânea francesa. Além da presença de Phia Ménard, Gisèle Vienne e Philippe Quesne, artistas que compõem o Focus França na programação do festival, é importante salientar a presença do pesquisador francês Olivier Neveux, que ministrará uma conferência baseada em seu livro Contre le théâtre politique (Contra o Teatro Político). Todos esses artistas convidados apresentaram-se em conceituados festivais internacionais e terão, certamente, uma forte repercussão em São Paulo.

Desejos, conversas, negociações, planilhas, alterações, frustrações, quebra-cabeças, sorrisos. Assim mais um ciclo se completa com a chegada da sétima edição da MITsp - Mostra Internacional de Teatro de São Paulo. Mais um ano de parceria durante o qual o Goethe-Institut acompanha de perto o seu processo de construção.

Estamos igualmente felizes em poder, ao lado do ONDA – Office National de Diffusion Artistique (Escritório Nacional de Divulgação Artística) e da MITsp, acolher em São Paulo uma delegação de quinze programadores franceses, que virão apreciar o dinamismo e a força do teatro brasileiro apresentados na plataforma MITbr. Estamos certos que destes encontros entre artistas e programadores surgirão novas colaborações franco-brasileiras, mas, desta vez, nos teatros franceses.

A realidade, como em todas as edições da MITsp, é um pano de fundo para obras e atividades que nos confrontam com perguntas que estamos cansadas e cansados de ouvir ou que não queremos responder. Onde a comunicação tradicional tem falhado, a arte, materializando distopias, aponta caminhos possíveis. Em Farm Fatale, Philippe Quesne e o teatro Kammerspiele de Munique imaginam um futuro não tão distante no qual a humanidade se adapta a novas condições de vida na Terra. Assim como essa coprodução franco-alemã olha para a natureza das interações entre seres, desejamos que a MITsp seja uma oportunidade para lançar diálogo entre nossas realidades complexas!

Assim, a MITsp e nossos serviços culturais reiteram a importância do teatro, das trocas culturais que ele envolve e das trajetórias humanas que ele apresenta. Estamos honrados em fazer parte desta bela aventura e de participar deste momento de intensa vibração artística que este evento nos proporciona a cada ano. Bom festival!

Além de um número que aponta já para uma história desenhada na agenda cultural de São Paulo, essa nova MITsp parece chegar a um patamar diferente, buscando incorporar mais profundamente as diversas realidades até então refletidas e projetadas. A urgência pede que o protagonismo seja assumido, o microfone tomado e a música dançada.

KARINE LEGRAND COORDENADORA DE PROJETOS CULTURAIS

BRIEUC PONT

JULIAN FUCHS

CÔNSUL GERAL DA FRANÇA EM SÃO PAULO

DIRETOR REGIONAL DE CULTURA

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PARCEIROS

Vivemos tempos turbulentos e desconcertantes. Sem omitir esse contexto, a MITsp chega à 7ª edição com uma programação inspiradora que elogia a diversidade e abriga produções de muitos países. Esse encontro de potências atravessa individualidades e fortalece uma rede comum, estabelecendo um padrão de produção e disseminação cultural revigorante. O programa COINCIDENCIA, da Fundação Suíça para a Cultura Pro Helvetia na América do Sul, teve o imenso prazer de estar ao lado da MITsp em três edições seguidas, de 2018 a 2020. Juntxs construímos uma parceria engajada que afirma a troca, o intercâmbio e a circulação cultural como diretrizes. Neste ano, o programa COINCIDENCIA chega ao fim de seu ciclo trienal, em que valorizamos a cooperação fortalecendo a cada ano. Para esta edição, a MITsp convidou a artista Julie Beauvais para apresentar ORLANDO, uma ópera, instalação e experiência imersiva. Tendo como base o romance épico de Virginia Woolf sobre uma figura andrógina, Beauvais e Horace Lundd coreografam sete personagens que incorporam o paradigma pós-binário em Berlim, Kinshasa, Marfa, Londres, Varanasi, Belo Horizonte, Lisboa, Chandolin, Patagônia e Holanda. Acreditamos em uma constelação geográfica de laços internacionais. ORLANDO dissemina a possibilidade de convivermos com diferenças e percebermos as sutilezas do outro. Alteridade e especificidade de contexto estão no cerne da construção do programa COINCIDENCIA e esperamos sempre acolher projetos como esse.

É com grande alegria que a Cultura Inglesa apoia a 7ª edição da MITsp - Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, um evento que já se tornou indispensável no calendário cultural da cidade pela construção de uma programação tão necessária aos debates atuais. Acreditamos no papel da cultura, da língua e das expressões artísticas como instrumentos facilitadores e mediadores na sociedade e, por isso, investimos na promoção de acesso a obras e espetáculos internacionais. Ao apoiarmos a MITsp, fortalecemos o intercâmbio cultural entre o Reino Unido e o Brasil, democratizando o acesso do público a obras que enriquecem o nosso repertório cultural. Valorizamos e celebramos a importância de festivais pelo seu valor indispensável: promover espaços de convívio, de diálogo e de fruição artística; espaços de criação e ousadia para os artistas; de pertencimento e liberdade para o público; de engajamento criativo e social com as comunidades; de encontro universal de ideias e manifestações. Um festival tem como característica principal ser um espaço de celebração na cidade, um espelho para as questões do tempo presente e, acima de tudo, um espaço onde artistas possam criar e compartilhar novos trabalhos. Celebremos juntos mais uma edição da MITsp nessa ocasião que marca o ciclo de sete anos dessa grande mostra.

CATARINA DUNCAN COINCIDENCIA BRASIL INTERCÂMBIOS CULTURAIS SUÍÇA-AMERICA

LILIANE REBELO

DO SUL, 2017-2020 | PRO HELVETIA, FUNDAÇÃO

GERENTE CULTURAL

SUÍÇA PARA A CULTURA

DA CULTURA INGLESA

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O teatro sempre foi um espaço privilegiado para refletir temas e problemáticas atuais. A experiência estética avança paralelamente com a reflexão sobre a condição humana e a existência no presente. Nesse percurso de ação, em um nível máximo de qualidade, situa-se a corajosa programação da MITsp 2020. É uma honra para o Istituto Italiano di Cultura di San Paolo contribuir para o êxito do evento. Com esta colaboração o Istituto Italiano di Cultura di San Paolo pretende confirmar seu empenho em facilitar as trocas culturais e o intercâmbio com o Brasil de algumas entre as mais avançadas realidades do panorama teatral italiano e europeu.

MICHELE GIALDRONI DIRETOR DO ISTITUTO ITALIANO DI CULTURA DI SAN PAOLO

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MITsp | ESPETÁCULOS INTERNACIONAIS


ENTREVISTA

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ARTISTA EM FOCO

TIAGO RODRIGUES POR DANIELE AVILA SMALL, LUCIANA EASTWOOD ROMAGNOLLI E SÍLVIA FERNANDES

Em 2008, você estreou Yesterday’s Men, com Rabih Mroué e Tony Chakar. Mroué foi artista em foco na MITsp em 2017, como você, em 2020. Como é essa parceria entre vocês, no trabalho sobre a linguagem do teatro? Algumas das minhas maiores influências não são autores ou autoras que vi e ainda hoje são referências para mim, mas sobretudo artistas com quem trabalhei diretamente. E, da mesma forma que o coletivo belga tg STAN foi minha escola de teatro, o encontro com o Rabih Mroué foi muito determinante no meu percurso. Eu cruzei com ele em 2006 porque um programador, Mark Deputter, achou que seria um encontro interessante. Eu já conhecia o trabalho do Rabih, ele ainda não conhecia o meu: viu alguns espetáculos meus e muito rapidamente decidimos trabalhar juntos. Por um lado, o Rabih tem um trabalho bem assente numa escrita que parte do documental para efabular sobre suas raízes, o território onde cresceu e viveu, o seu território político mas também afetivo, que é o Líbano e Beirute. E eu sempre me vi muito mais como um nômade, como alguém que viaja entre espaços, que quer a cada vez aprender sobre uma realidade nova. Então, esse encontro foi muito fácil, porque encaixamos. Eu era um visitante daquele mundo do Rabih Mroué, e o próprio espetáculo dava nota disso: era a história de um homem chamado Tiago Rodrigues que viajava para Beirute e encontrava vários Tiagos Rodrigues. E acho que foi com Rabih Mroué que aprendi muitas das ferramentas que ainda tenho hoje, de como fazer entrar a realidade nos espetáculos, de como escrever a partir do real, mas oferecendo a liberdade de ficcionar, de manipular e de, através das ferramentas do teatro, interpelar a realidade. 35


ENTREVISTA

Você colaborou várias vezes com o coletivo belga tg STAN na criação de Bérenice, de Racine, em 2005, e mais recentemente em Como Ela Morre (2017), coprodução entre a companhia e o Teatro Nacional D. Maria II. Como foi essa criação conjunta? Eu cruzei com o tg STAN quando ainda era aluno do primeiro ano do Conservatório de Teatro em Lisboa, em 1997. Fiz uma oficina que o grupo conduziu em Lisboa, e foi como uma revolução para mim, foi uma epifania de que era possível um ator ser um criador de corpo inteiro das peças, e não apenas um servo opulente. E, então, alguma infelicidade que eu sentia como aluno da escola de teatro desapareceu muito rapidamente. E foi com esse encontro com o tg STAN que tive a certeza de que queria continuar a fazer teatro. Isso também implicou abandonar a escola de teatro, que nunca cheguei a acabar, e começar a trabalhar muito rapidamente. Logo meu segundo espetáculo como ator profissional foi com o tg STAN, fiz sete ou oito criações com eles. A mais recente foi em 2017 [Como Ela Morre], e foi uma peça muito especial, porque pela primeira vez escrevi para os atores do grupo. E então foi como o completar de um ciclo, poder 20 anos mais tarde voltar a trabalhar com eles, confrontados com aquilo que eu vinha experimentando como dramaturgo e encenador. Foi como devolver à companhia esse impulso inicial que me deram. Você já esteve no Brasil apresentando trabalhos como Se Uma Janela se Abrisse. Em 2013, no Festival Dois Pontos, o Mundo Perfeito apresentou Mundo Maravilha, peça criada em parceria com o coletivo carioca Foguetes Maravilha. De que maneira esse intercâmbio se deu, na materialidade da criação? Mais uma vez um diretor de teatro de Lisboa, o programador Mark Deputter, foi fundamental aqui. Estávamos a colaborar com o Mark no teatro que ele dirigia à época, o Maria Matos, 36

que foi durante muitos anos a grande casa de criação contemporânea em Lisboa. E Mark falou que eu deveria conhecer um artista brasileiro, o Felipe Rocha, que certamente teremos muitas afinidades. E eu o conheci quando apresentei Yesterday’s Man no Rio de Janeiro, e desse encontro nasceu a vontade de um projeto em conjunto que imediatamente propus ao Teatro Maria Matos. E a ideia foi, em 2009, fazer um laboratório em que vários artistas brasileiros e portugueses se juntaram, e durante um verão criaram diversos espetáculos. Foi um momento de grande vitalidade, de grande imaginação, com toda a imperfeição do trabalho feito de uma forma repentista. Todas as semanas estreávamos um espetáculo novo. Mundo Maravilha surge mais tarde, entre 2012 e 2013, da vontade de criar uma peça com mais tempo, que herda parte do nome da companhia Foguetes Maravilha e parte do nome da companhia que eu tinha à época, Mundo Perfeito. E foi muito interessante, nos processos de colaboração com o Brasil, esse reconhecimento de uma experiência diversa, mas com muitos pontos de contato, que não têm só a ver só com a língua ou um patrimônio cultural partilhado, mas também com o desejo da descoberta, da curiosidade, inclusive com a ignorância em relação ao outro. Isso é uma das coisas que eu reconheço sempre que estou no Brasil: estamos tão longe e, ao mesmo tempo, temos tantas coisas nos nossos bolsos que nos permitem dizer que estamos perto. Basta tirá-las dos bolsos, pôlas sobre a mesa e compreendermos que estamos mesmo muito bem próximos. No espetáculo By Heart, o tema da resistência por meio da memória é essencial e se atualiza na relação com os espectadores, que aprendem de cor um soneto de Shakespeare. Como foi o processo de criação da dramaturgia, que partiu da perda de visão de sua avó para desdobrar-se em várias narrativas literárias?


By Heart parte de um episódio pessoal. A minha avó foi cozinheira toda a vida numa pequena aldeia de Trás-os-Montes, no nordeste de Portugal, e tinha muito pouca educação formal, mas desde menina adorava ler e promoveu essa paixão nos seus filhos e netos. Um dia ela disseme que ia ficar cega, tinha 93 anos, e gostaria que eu escolhesse um livro para ela aprender de cor. Ela sempre aprendeu passagens de livros de cor, tinha esse hábito, e queria poder ter um livro na sua cabeça para ler quando os olhos já não funcionassem. Compreendi que o labirinto literário que me levou à escolha desse livro era cheio de histórias sobre a importância de aprender de cor também como gesto de resistência. Não apenas contra totalitarismos políticos, mas até biológicos – a morte. Mas também uma prova de amor pela literatura, pelo poder das palavras. E falava da minha profissão de ator, de teatro, da literatura, da escrita, da razão de criarmos obras de arte com palavras. Descobri que isso poderia ser uma peça de teatro quando me recordei da história de Nadezhda Mandelstam, mulher do poeta russo Osip Mandelstam. Quando ele foi preso pelo regime de Stálin e todos os seus livros e poemas foram confiscados, Nadezhda resolveu ensinar poemas. Criava grupos de dez pessoas e todos os dias ensinava um poema diferente de Osip Mandelstam para que ele não desaparecesse. E essa imagem, com todo o seu poder de resistência, mas também de amor, pareceu-me muito forte. E é por isso que convido dez pessoas a subirem ao palco para aprenderem um texto de cor enquanto levo o público pela mão nesse labirinto literário e autobiográfico que é By Heart . A indistinção entre ficção e realidade é uma das características de seu trabalho. Em Sopro, você desloca para o centro do palco a ponto Cristina Vidal, ainda em atividade no Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa. Como surgiu a ideia de colocar em cena esse protagonista invisível do teatro? Como foi o processo de trabalho com

a autobiografia e a história dessa profissão tradicional? Mais uma vez esse espetáculo, Sopro, nasce de um episódio pessoal. Eu estava a trabalhar como artista convidado no Teatro Nacional Dona Maria II, em 2010. Enquanto ensaiava na sala pequena dedicada aos artistas emergentes, espreitava nos intervalos os ensaios da sala grande, com os atores do Teatro Nacional. Pela primeira vez vi Cristina Vidal trabalhar, e era a primeira vez que via uma ponto trabalhar. Para mim, era como ver um fóssil vivo, e portanto fiquei fixado na Cristina Vidal, já não me lembro quem eram os atores. Eu só via a ponto, soprando o texto, virando as páginas, seguindo as cenas, e estava ali cristalizado esse agente da memória dos atores, que ajuda em caso de urgência, mas é também uma espécie de advogado do texto, um guardião do autor. Sendo uma profissão em vias de extinção, carrega em si essa história do teatro, esses séculos de transmissão de sabedoria teatral. E parecia-me que a ponto que está ali, entre os bastidores e o palco, na escuridão, mas sempre à beira dos atores e da luz, era um bom representante de tudo aquilo que é invisível no teatro e daquilo que são as profissões históricas, um patrimônio que, numa sociedade cada vez mais flexível, rápida e super capitalista, desbaratamos, como se já não nos servisse. Mas há ofícios que carregam em si um conhecimento que não podemos desperdiçar, em nome da civilização. E, portanto, quando vi Cristina Vidal há dez anos, no próprio dia fui ter com ela e disse: “Gostaria de trabalhar contigo, mas que estivesses no palco e que eu escrevesse um texto para ti”. Cristina riu-se e achou que não era possível. Na época, tentei falar com o teatro e arrancar com esse projeto, mas a direção mudou e a coisa caiu esquecida. Fui convidado, cinco anos depois, a dirigir o teatro Nacional Dona Maria II, e então tinha ao meu lado, como ponto, a Cristina Vidal. E disse a ela: “Olha, um dia destes, antes de me despedirem, ainda vamos fazer aquele espetáculo e vou te conseguir 37


ENTREVISTA

convencer”. Dois anos mais tarde, quando o Festival d’Avignon nos desafiou a criar um espetáculo com o Teatro Nacional, achei que era a oportunidade de falar dessa questão da memória do teatro, mas também da memória na nossa sociedade, e passei algum tempo a convencer a Cristina Vidal, que finalmente aceitou.

que é a transmissão. A transmissão implica não apenas aquilo que recordamos e oferecemos, mas também o que esquecemos e adulteramos. Aí, a verdade não é um valor absoluto, mas o encontro e a partilha são. Eu acredito que o teatro pode ser profundamente político e ao mesmo tempo íntimo de transmissão, de encontro, de partilha.

O espetáculo não é biográfico de uma forma fiel, mas se alimenta de muitas das histórias que a Cristina nos contou, a maioria passadas com ela, histórias dos bastidores do teatro. E forma uma figura ficcional que, paradoxalmente, é interpretada por uma verdadeira ponto. Portanto, quando a Cristina diz, no início do espetáculo, “esta é a primeira vez que estou em palco”, efetivamente é o primeiro espetáculo em que ela está à vista do público e é protagonista. Mas muitas das histórias misturam realidade e ficção, e esse jogo é alimentado pelo passado para sublinhar a força do presente.

Em Portugal, há um exemplo da ditadura que eu inclusive usei num espetáculo, que já apresentei em São Paulo, Três Dedos Abaixo do Joelho, baseado nos relatórios da censura ao teatro durante a ditadura em Portugal. Um censor proibiu a peça Desejo sobre os Olmeiros, de Eugene O’Neill, no entanto o mesmo censor permitiu que o filme passasse no cinema. Ele escreveu no relatório que o filme, com Anthony Quinn e Sofia Loren, podia ter cenas eróticas, podia ser imoral, mas era uma história que já tinha acontecido longe e que agora estava ali a ser projetada, não estava realmente a acontecer. Ao passo que, se atores portugueses apresentassem aquela peça em Lisboa à frente de espectadores portugueses, aquilo estaria mesmo a acontecer e todas as pessoas na sala seriam cúmplices. Se estivermos na mesma sala, somos todos cúmplices, e acho que esta é uma definição da força política, humana e íntima do teatro. Por isso, agradeço hoje, em democracia, a esse censor que tentou oprimir o teatro, mas ao fazê-lo me ofereceu um belíssimo elogio.

Há, nas duas peças que você traz à MITsp, um trânsito entre a palavra escrita da literatura no papel, a palavra falada da tradição oral e a palavra encarnada do teatro. Qual a força da palavra para você, em uma sociedade com tamanha desinformação, pós-verdade e fake news que alteram rumos políticos? O teatro, precisamente por ser essa assembleia humana, tem um poder de reflexão política muito particular. Não penso que o espetáculo seja necessariamente um gesto de intervenção política, mas acredito que é uma assembleia do público e dos atores na sala, e essa, sim, é eminentemente política e pode ser uma antecâmara para a ação. Quando se juntam pessoas numa sala, há uma cumplicidade e uma empatia que se criam, um fenômeno de transmissão. É verdade que a tecnologia nos permite um acesso muito imediato à informação, mas também à desinformação, e permite-nos um acesso desumanizado, que não é acompanhado desse fenômeno da civilização 38

A preservação da herança cultural europeia representada pelo soneto de Shakespeare em By Heart faz pensar sobre o genocídio epistemológico das culturas indígenas e africanas no processo de colonização do Brasil. Como você pensa esse deslocamento de contexto do seu trabalho quando circula por outros países e culturas? Uma das alegrias que fui encontrando no espetáculo By Heart é essa capacidade que uma peça criada num determinado contexto histórico, cultural e linguístico pode ter noutros contextos.


Quando apresentei By Heart no Canadá, percebi a força com que falava do processo de apagamento da cultura, mas também da existência dos indígenas do território norte-americano; quando apresentei na Austrália, percebi como podia falar de uma maneira tão forte sobre a opressão da cultura aborígene. Percebi que, embora seja um espetáculo profundamente enraizado na herança cultural europeia, apela a princípios humanistas e ideias globais que podem ressoar no olhar e na escuta de outros povos. E isso interessa-me muitíssimo, sobretudo porque nos permite pensar que uma peça tão relacionada com a cultura europeia, a partir do momento que olha a criação artística como uma ferramenta de resistência ao totalitarismo, pode ser uma ferramenta também noutras culturas e noutros contextos. E portanto acho muito interessante como as tradições culturais podem ser reinterpretadas e estar em diálogo, obviamente sem apropriações indevidas, mas que possam existir traduções. A forma como um branco do subúrbio de Lisboa pode ter sido profundamente inspirado por Nelson Mandela ou Patrice Lumumba fala da tradução, fala da escuta, da curiosidade.

da curadoria interfere no seu pensamento como criador e vice-versa? Já tive funções curatoriais, mas talvez a experiência mais avassaladora seja a que tenho vivido nos últimos cinco anos e meio como diretor artístico do Teatro Nacional Dona Maria II. E tem sido um enorme privilégio porque me permite, por um lado, continuar a fazer o meu trabalho artístico e, por outro, construir a programação deste Teatro Nacional. Estou permanentemente em diálogo com outros artistas a ver novos trabalhos e a descobrir e a desafiar os próprios limites do meu olhar sobre o teatro, e, portanto, não tenho dúvidas de que essa abertura, pluralidade e diversidade, que é exigida de um curador do Teatro Nacional, ilumina e põe em causa o meu trabalho artístico e permiteme criar o próximo espetáculo como se ainda não soubesse fazer teatro, e este é um dos meus grandes prazeres: começar cada vez com a certeza de que ainda não sei.

E é curioso pensar como a tradução e a tradição aqui podem não só ser foneticamente e graficamente próximas, mas também criar uma confusão progressista e libertária. Acho sempre interessante quando vejo populistas nacionalistas falarem da tradição como um valor fundamental quando são os primeiros a tentar apagar todas as tradições diversas, e portanto percebemos como o populismo nacionalista não está interessado na tradição, está interessado é no pensamento único monoglota, intraduzível, em vez de permitir, com a tradução, um pensamento de liberdade, fraternidade e solidariedade de uma sociedade progressista onde haja lugar para todas, todos, todes. Ao longo da sua carreira, você esteve em diferentes funções curatoriais. Como a prática

FOTO FI L I PE FE R R E I R A

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BY HEART*

Tiago Rodrigues PORTUGAL, 2013 | de 1h30min a 2h | CLASSIFICAÇÃO INDICATIVA 12 ANOS

* Em inglês, “de cor”, expressão que remete à memória e ao emotivo, ao coração (“heart)

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A história do espetáculo nasceu da relação de Tiago Rodrigues com sua avó Cândida, cozinheira e leitora assídua, que tinha por hábito decorar trechos de livros, muitos presenteados pelo neto em suas visitas. By Heart trata do vínculo entre a literatura e a memória, em especial do aspecto afetivo dessa relação. É um teatro que se assume como espaço de transmissão do conhecimento que não pode ser medido, que não é palpável – como o esconderijo que criamos, em nossos cérebros e corações, para textos proibidos durante regimes autoritários, decorando as obras e garantindo sua sobrevivência ao longo dos tempos. No solo, o ator e diretor trabalha a memorização de versos enquanto fala de sua avó quase cega, de personagens literários, escritores e críticos (como William Shakespeare, Boris Pasnernak, Ray Bradbury e George Steiner), além de um programa de TV holandês chamado Beleza e Consolação. 41


HISTÓRICO

É sobre o coração. Sobre contar histórias. Sobre memória. E sobre livros. É o teatro reduzido a uma poderosa essência. É um dos trabalhos mais delicados, simples e complexos que você vai ver. E tudo isso apresentado de forma calorosa, exuberante e com muito humor. By Heart é primoroso. TRACEY KORSTEN, Glam Adelaide

De Shakespeare a Ray Bradbury, esta estimulante releitura do teatro moderno é uma ode ao poder da memória. E à noção de que, mesmo que a liberdade, os livros e os corpos sejam suprimidos, nada nem ninguém pode nos tirar as palavras fincadas em nossos corações.

Ator, diretor e dramaturgo, Tiago Rodrigues aborda o teatro como uma assembleia: um local de encontro e partilha de ideias. Notabilizou-se por espetáculos que trafegam entre a realidade e a fantasia, com grande sofisticação poética. Quando era estudante, em 1997, trabalhou com o grupo tg STAN e, em 2003, fundou com Magda Bizarro a companhia Mundo Perfeito, na qual criou cerca de 30 peças, encenadas em mais de 20 países. Foi professor na escola de dança belga PARTS, dirigida por Anne Teresa de Keersmaeker, na escola suíça de artes performativas Manufacture e no projeto internacional École des Maîtres. Entre suas obras, destacam-se By Heart, Antônio e Cleópatra, Bovary, Como Ela Morre e Sopro, que estreou no Festival d’Avignon de 2017. Em 2018, venceu o XV Prémio Europa Realidades Teatrais, recebeu do governo francês o título Cavaleiro da Ordem das Artes e Letras e recentemente ganhou o Prêmio Pessoa 2019. Desde 2015, é o diretor artístico do Teatro Nacional D. Maria II, um dos principais da Europa.

EDWINA SLEIGH, revista Fest TEXTO, ENCENAÇÃO E INTERPRETAÇÃO Rodrigues é um grande diretor, mas o que faz dele um gigante é o modo magistral como ele escreve sobre tudo e como cria personagens com quem simpatizamos e por quem até nos apaixonamos.

Tiago Rodrigues

CÁTIA FAÍSCO, The Theatre Times

PRODUÇÃO EXECUTIVA Rita Forjaz

COM FRAGMENTOS E CITAÇÕES DE William Shakespeare, Ray Bradbury, George Steiner e Joseph Brodsky, entre outros CENOGRAFIA, ADEREÇOS E FIGURINO Magda Bizarro PRODUÇÃO EXECUTIVA NA CRIAÇÃO ORIGINAL Magda Bizarro e Rita Mendes PRODUÇÃO Teatro Nacional D. Maria II, a partir de uma criação original pela companhia Mundo Perfeito COPRODUÇÃO O Espaço do Tempo, Maria Matos e Teatro Municipal ESPETÁCULO CRIADO COM O APOIO DO GOVERNO DE PORTUGAL | DGARTES E APOIADO PELO INSTITUTO CAMÕES FOTO S M AG DA B I Z A R RO

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SOPRO

Tiago Rodrigues PORTUGAL, 2017 | 1h45min | CLASSIFICAÇÃO INDICATIVA 12 ANOS

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Homenagem ao teatro e seus bastidores, o espetáculo é construído a partir das lembranças de Cristina Vidal, que há quase 30 anos trabalha como ponto (a pessoa que sopra as falas para atores que se esquecem do texto) no Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa. Essa personagem das sombras está pela primeira vez sobre o palco, acompanhada por cinco atores. Num cenário que simula um teatro em ruínas, com mato crescendo em meio às tábuas, ela surge com texto em mãos, soprando as falas para o elenco. É por meio deles, os intérpretes, que Vidal reconta a sua trajetória e a história da própria casa de espetáculos. Guardiã de uma atividade em vias de extinção, ela evoca memórias reais e fictícias, mesclando causos das coxias, fantasmas de artistas que por ali passaram e clássicos da dramaturgia, como textos de Tchékhov, Racine e Molière. 45


TEXTO E ENCENAÇÃO Tiago Rodrigues COM Beatriz Maia, Cristina Vidal, Isabel Abreu, Marco Mendonça, Romeu Costa e Sara Barros Leitão ELENCO ORIGINAL Beatriz Brás, Cristina Vidal, Isabel Abreu, João Pedro Vaz, Sofia Dias e Vítor Roriz Com Sopro, Tiago Rodrigues assina um espetáculo conceitual e ao mesmo tempo profundamente emocionante. Uma homenagem vibrante ao teatro e àqueles que o fazem.

CENOGRAFIA E DESENHO DE LUZ

ETIENNE SORIN, Le Figaro

Catarina Rôlo Salgueiro

Thomas Walgrave FIGURINOS Aldina Jesus SONOPLASTIA Pedro Costa ASSISTENTE DE ENCENAÇÃO OPERAÇÃO DE LUZ Daniel Varela

Esse vaivém por vezes bastante cômico entre a criatura dos bastidores e seu dramaturgo tagarela (de quem ela zomba com frequência), além dessa virtuosidade que se mistura às anedotas de sua carreira, é o que dá uma leveza infinita a Sopro e nos dá a impressão de participar da situação, de nunca estar de fora dessa evidente cumplicidade que une personagens e atores: enfim, de respirar o mesmo ar que eles. No centro desse discurso, surgem trechos de peças nas quais Vidal precisou intervir. São clássicos do repertório, As Três Irmãs, O Avarento ou Bérénice, e nossa lembrança faz aumentar a emoção da experiência. Tiago Rodrigues reaviva essas “criaturas do vento”, centenárias, por meio de nós e conosco, com uma graça e uma inteligência que fazem de Sopro uma obra inesquecível. ELISABETH FRANCK-DUMAS, Libération

PRODUÇÃO EXECUTIVA Rita Forjaz ASSISTÊNCIA DE PRODUÇÃO Joana Costa Santos PRODUÇÃO Teatro Nacional D. Maria II COPRODUÇÃO ExtraPôle Provence-Alpes-Côte d’Azur, Festival d’Avignon, Théâtre de la Bastille, La Criée Théâtre National de Marseille, Le Parvis Scène Nationale Tarbes Pyrénées, Festival Terres de Paroles Seine-Maritime – Normandie, Théâtre Garonne Scène Européenne e Teatro Viriato APOIO Onda AGRADECIMENTOS Agnès Troly, Beatriz Maia, Carla Bolito, Carla Galvão, David Pinto, Filipa Matta, João Coelho, Julie Bordez, Magda Bizarro, Marco Mendonça, Mariana Magalhães, Paul Rondin, Romeu Costa, Sara Barros Leitão, Teresa Coutinho, equipe do Festival d’Avignon, equipe técnica do Cloître des Carmes e ICA – Instituto do Cinema e Audiovisual ESTE ESPETÁCULO É APOIADO PELO INSTITUTO CAMÕES

FOTO S C H R I S TO PH E R AY N AU D D E L AG E

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pelo PRAZER de PENSAR e FAZER pensar POR MARIA JOÃO BRILHANTE

Na memória, como no teatro, tudo se perde, tudo se cria e nada se transforma.1 João Bénard da Costa

1. ALGUMAS ETAPAS DE UM PERCURSO

Falar a partir da sua própria experiência parece ser um traço importante do gesto artístico de Tiago Rodrigues. Talvez mesmo um primeiro impulso “vital” para começar a criar esse ato de partilha de uma ficção ao vivo. Estando em aberto todas as possibilidades de criação, ficcionar a partir da experiência pessoal permite sair do privado para a esfera pública e revelar uma realidade desdobrada em múltiplas realidades e sentidos. O próprio afirmou em entrevista à Sinais de Cena: Não me interessa como ator fingir que sou outra pessoa. […] Para mim, a ideia de estar em palco foi sempre esta: como é que consegues uma intimidade pública? Como é que tens uma versão íntima de ti que se apresenta publicamente, em relação a uma ideia ou um texto? (COELHO & LEAL, 2014, p. 38)

Conhecer algumas etapas do percurso do ator, escritor, encenador e diretor artístico do Teatro Nacional D. Maria II (TDM II) pode ser um produtivo ponto de partida para o encontro dos espectadores da MITsp com as suas criações. Do seu currículo recorto por isso alguns momentos fundadores que considero iluminantes. Refiro-me, como disse, à exposição de uma voz própria e de um lugar de fala – como ator – autor (em By Heart), como escritor (em Tristeza e Alegria na Vida das Girafas), como encenador (em Sopro ou Bovary) – mas também à aparente simplicidade dos meios artísticos que convoca para a criação, sempre ao serviço dos atores, à dimensão afetiva de que estão imbuídos os seus textos e espetáculos, e que parece emergir da força comunicativa dos artistas que compõem a sua rede de colaboradores cúmplices, e também do sutil jogo entre o comum e o incomum, entre o subjetivo e o coletivo, o pessoal e o universal para o qual convida os espectadores. 48

1 Jornal O Público, 18 de outubro de 2002.


Maria João Brilhante é professora doutora em Literatura Francesa pela Universidade de Lisboa, onde leciona desde 1979 e dirige os cursos de mestrado e de doutorado. Pertence ao júri do Prix Europe pour le Théâtre e à Comissão Executiva da EASTAP – European Association for the Study of Theatre and Performance.

No começo esteve a escolha por uma formação de ator que inclui a deserção, aos 21 anos, da Escola Superior de Teatro e Cinema (ex-Conservatório) e a busca de experiências diversas materializadas na escrita para diferentes mídias, na produção de eventos artísticos e na encenação dos seus primeiros textos. Liberdade e aprendizagem vão a par, manifestando simultaneamente a procura de modelos e o desejo de autonomia, demanda já vivida custosamente pela geração precedente, mas impulsionada agora por uma urgência – URGÊNCIAS foi, aliás, o nome de um projeto que Tiago Rodrigues produziu de encenação de textos curtos escritos por jovens atores e/ou escritores no Teatro Maria Matos entre 2004 e 2007 – uma urgência incontrolável e que dispensa legitimação: falar com a sua própria voz e não através das vozes dos mestres, os encenadores e diretores pelos quais passava a triagem e admissão à tribo artística. Ao participar em 1995 da provocadora proposta de seminários de escrita e de criação promovidos por Jorge Silva Melo (fundador da companhia Artistas Unidos) com jovens atores, Tiago Rodrigues vislumbra os meandros duma prática que lhe assenta bem e que irá aprofundar pouco tempo depois com o grupo belga Tg Stan, iniciando uma cumplicidade com os seus membros que dura até hoje em espetáculos colaborativos e coproduções. Admira neles a prática libertária, a ausência de hierarquia, o espírito colaborativo, mas também o sentido de responsabilidade dos atores e o seu domínio completo da cena. Um tal percurso e o conjunto de criações que se vão sucedendo contam com essas cumplicidades e a colaboração empenhada de todos os intervenientes; só existem porque se entende o trabalho artístico dentro de uma rede que Tiago Rodrigues foi construindo com os artistas da sua geração e com as instituições que podiam viabilizar financeiramente os seus projetos, partilhando as suas ideias, acolhendo as deles e inventando modalidades de trabalho menos tradicionais que respondem a e desafiam uma crônica desafetação de meios (financeiros e não só) destinados à criação artística em Portugal. Tudo isso enquadrado pela realidade de cada momento, fosse a da sua estrutura Mundo Perfeito criada em 2003, fosse, desde 2014, a do TNDM II e, julgo não errar, com arbitragem da sua principal cúmplice, Magda Bizarro. Existe ainda no seu percurso um traço associado ao tempo e ao espaço que talvez explique a sua produtividade (três dezenas de espetáculos) em cerca de duas décadas de atividade. Tal como muitos dos artistas portugueses da sua geração, Tiago Rodrigues não vê barreiras para a criação e apresentação dos seus espetáculos. Nem linguísticas, nem estéticas ou artísticas, nem de produção. A circulação e a mobilidade tornaram-se desde os anos 1990 o paradigma de muitas companhias e performers portugueses, no teatro e na dança. A circulação intensa do seu trabalho produzido pela estrutura “leve” Mundo Perfeito, que o levou a uma aproximação a espectadores e culturas diversas, mas também ao trabalho com artistas e formas artísticas diferentes das suas, está associada a uma economia de produção que nasce da ideia e da finalidade sem submeter uma à outra. Uma arte de escapar a um receituário, ainda que ancorada em 49


alguns princípios e escolhas. O nomadismo é um deles. Foi elemento fundador do seu trabalho artístico e nem mesmo cedeu às obrigações mais estáveis da função recente de diretor artístico do Teatro Nacional D. Maria II. Como o próprio afirma, uma questão inicial de independência em relação ao Estado e de sobrevivência tornou-se marca identitária do Mundo Perfeito e um “desígnio artístico”. O tempo da produção/criação é também um tempo que sofre distensões e compressões, ou, melhor dizendo, onde se inscrevem múltiplas ações que coexistem segundo um ritmo determinado pela urgência e pela relevância do que se quer comunicar: escrever de manhã e ensaiar à tarde, dar uma entrevista, fazer produção, partir em digressão, iniciar um projeto para o qual foi convidado, dar aulas na escola belga P.A.R.T.S e em Portugal e, nos começos, escrever para os jornais, fazer rádio e roteiros para programas televisivos, organizar e mobilizar outros artistas. Tudo isso pode transmitir uma imagem pouco romântica do artista, mas corresponde muito mais ao real das artes, para citar Brecht, como sabem os que estudam os arquivos dos artistas e das companhias e prestam atenção às suas palavras. “Eu queria experimentar nas áreas mais diversas”, afirma na mesma entrevista, descobrindo uma “tendência para a versatilidade e uma certa capacidade organizadora e mobilizadora” nunca desligada da “valência artística” (COELHO & LEAL, 2014: 41). Então, para além da produtividade existe essa vontade de experimentação que obedece a um interesse concreto e real pelas coisas do mundo, mediadas pela linguagem, pela literatura, pelos discursos e como estes afetam as vidas comuns. Eu gosto da realidade explícita nos espetáculos, das referências explícitas, mas não gosto que o discurso seja explícito. Porque, para mim, é sempre um exercício de dialética. Interessa-me muito mais o conflito entre ideias e o debate. (COELHO & LEAL, 2014, p. 47)

Pensar, fazer pensar, discutir sabendo que as mudanças são imperceptíveis, as falhas prováveis, mas que o teatro continua a ser a ágora onde podemos existir como cidadãos do mundo. Em que é que esses recortes de um percurso traçado em boa companhia podem servir de antecâmara ao encontro do espectador com os espetáculos de Tiago Rodrigues? Na verdade, saber um pouco mais sobre o que direciona e tantas vezes condiciona o gesto criativo, que nunca é impensado mesmo se não consciente, afina o nosso olhar e aumenta o prazer do encontro com o objeto artístico. Nesse sentido, a recepção dos seus espetáculos tem mostrado que, se os atores estão no centro da criação, aos espectadores cabe fazer existir o evento, participar da experiência afetiva e intelectual e, como um bom anfitrião, Tiago Rodrigues cuida de nós, pensa com carinho a nossa presença. A comunicação encerra pequenos gestos que geram a surpresa perante o que é oferecido, a descoberta do desafio proposto e a sedução artística. Já referi a economia de meios, a distância em relação a um teatro de imagens a favor de um teatro de palavras, mas a escolha de elementos cênicos pela 50


sua funcionalidade ou pelo seu valor simbólico traduz, frequentemente um olhar irônico, a aceitação do estranho ou pelo contrário do comum: da vida para a ficção no palco e da ficção para a vida de todos nós. Nas suas palavras: Eu preciso que haja muita implicação e muita presença do real no palco, no espetáculo, às vezes também no texto, nas referências do próprio texto, na forma como os atores estão em palco, como se referem à sala, à arquitetura, à presença do público… Preciso de assumir que tudo aquilo é real porque acredito que, em última análise, isso leva à inscrição do teatro no real (COELHO & LEAL, 2014, p. 52)

2. BY HEART Estreado em 2013, o espetáculo vem circulando por quase todos os continentes e tornou-se um cartão de visita de Tiago Rodrigues, talvez o espetáculo onde realiza com grande felicidade o que é para si a ideia mínima de teatro: um ator cria um coletivo durante o espetáculo, materializa e torna visível a metáfora da comunidade e do ritual (o próprio sagrado aflora durante a ação), convocando o riso e o trágico, a vida e a morte (e a ressurreição?). Esse ator expõe-se e torna-se a ficção de si mesmo; ouvimo-lo falar de si através de palavras que são de outros, mas que incorpora, debate e devolve ampliadas pela glosa e pelo exercício dialético. As mais poderosas são evidentemente as que compõem o soneto nº 30 de Shakespeare (When to The Sessions of Sweet Silent Thought) que, à medida que são incorporadas pelos dez espectadores voluntários, farão emergir uma comunidade temporária. Dizê-las em diversos idiomas durante a digressão do espetáculo é mais que um desafio performativo e um risco para o ator, é o modo de criar a corrente afetiva em que muito obviamente assenta o espetáculo: afeto, memória, razão. By Heart refere-se ao gênero “stand-up”, mas gosto de o ver também como revisitação de formas ancestrais de atuação como a do jogral ou mesmo a do primeiro ator que se destaca do coro e com ele disputa dialeticamente. Ocorre-me dizer que se alude, ainda que discretamente, a uma forma arcaica daquilo a que, na cultura ocidental, chamamos teatro, e que existe também no contador de histórias presente em outras culturas. Todavia, essa revisitação não é uma mera citação, acontece na espessura do presente, naquele momento da vida do ator e dos espectadores reunidos. Perante a plateia, o ator Tiago Rodrigues propõe uma experiência: fazer aprender de cor (forma antiga para dizer “coração”) o referido soneto de Shakespeare e deste modo tornar as palavras do poeta parte dos seus corpos/mentes, transmitidas e medidas pelo tempo das nossas vidas. Ao envelhecimento, à doença, à morte, à destruição da biblioteca universal cada um de nós pode oferecer resistência pela memória. Tendo por mote a história da sua avó, Tiago Rodrigues apropria-se de narrativas ficcionais (Bradbury), histórias de vida (Pasternack, Mandelstam) e discursos literários (Steiner) para construir uma composição polifônica que vai orquestrando ao vivo, cruzando a repetição do ato de decorar com o seu roteiro de interpelações diretas ou implícitas 51


aos espectadores, feitas de palavras suas ou de outros, de ficção ou de dados autobiográficos. Em nenhum momento, o ator se torna uma personagem, mas aquela voz não é apenas a voz de Tiago Rodrigues porque a dimensão performativa assenta numa pluralidade de lugares de enunciação, dos mais íntimos aos mais formais, e de estratégias que vão da citação à improvisação. Nenhuma descrição do espetáculo (que espetáculo? O que não se repete cada noite?) poderá dar conta do poderoso sentimento de comunhão e de compromisso desencadeado junto dos espectadores, mesmo dos mais céticos e relutantes. Vai para além de viver, no palco, o trabalho de aprender de cor um soneto de um imortal poeta ou de entrar na discussão, a partir da plateia, acerca da nossa responsabilidade cívica em defender o que faz de nós humanos – a linguagem, o pensamento crítico, a literatura e o poder da ficção. By Heart leva-nos pelos labirintos da memória; somos intelectual e afetivamente transportados graças a um jogo onde não há vencedores, nem solução apaziguadora: apenas inquietação e nostalgia. 3. SOPRO Sopro estreou em 2017 no Festival de Avignon. Parte, de novo, de uma situação real: o encontro entre o diretor (Tiago Rodrigues) e uma das últimas representantes (Cristina Vidal) de uma profissão – a de ponto – que, como outras, está em vias de desaparecimento. A protagonista do espetáculo é quem trabalha há cerca de quatro décadas no TNDM II, como ponto. Os espectadores não a conhecem, mas habitam nela os fantasmas e episódios da história de um teatro centenário. Na verdade, Sopro leva-nos para lá desse dado biográfico porque Cristina Vidal guarda a história do teatro ocidental nas palavras dos grandes autores que soprou aos atores. Tratase, é claro, de teatro no teatro, uma forma recorrente através da qual o teatro fala de si próprio, desta vez um dispositivo usado pelo encenador para evidenciar a sua ligação à memória e ao esquecimento, para declarar o amor ao teatro e trazer para a luz do palco o que está normalmente longe da vista do espectador. No plano da ficção, um diretor desafia a ponto do seu Teatro a subir ao palco para contar a sua vida na profissão. Esse Teatro é um local fantasmagórico, em ruínas, e uma forma de não o deixar morrer pode ser ativando a memória do que ali se passou. É sobre essa metáfora da memória como teatro (recorde-se Giulio Camillo no remoto século XV) que se constrói o argumento do espetáculo: narrativa de uma vida em que se virão incrustar episódios ficcionados – a relação com a antiga diretora, com alguns atores, momentos inesquecíveis da sua prática como ponto - a que darão corpo cinco atores. Portanto, uma vida no teatro povoada de fantasmas e de afetos que, sabemos, raramente passaram para as páginas da História. Cristina Vidal, em cena, faz o seu trabalho, sempre que é re(a)presentada a representação de cenas do reportório clássico ou quando uma jovem atriz a encarna para narrar fragmentos da sua própria vida manipulados pela ficção. Vemo-la atenta às ações, vemos o movimento em direção aos atores, o seu posicionamento que não 52


corresponde ao verdadeiro e sempre pessoal (interpessoal, na verdade) saber fazer de um ponto. Sobre a presença de Cristina Vidal, tornada invisível pelo pacto que depressa se estabelece com os espectadores, mas visível nas suas ações de pontar ou dirigir a cena, assenta um primeiro gesto na criação do espetáculo: ficcionar, portanto, inventar artisticamente uma figura e o seu agir. Todavia, é desse gesto inicial que depende também a verossimilhança do contraste entre a narração pósdramática e os “inserts” dramáticos retirados de textos de Molière, Racine, António Patrício e Tchéckhov. O nosso olhar a partir do presente e as estratégias discursivas e de encenação empregadas por Tiago Rodrigues (discurso indireto e indireto livre, dêiticos referindo o aqui e agora da enunciação, comunicação frontal e direta entre ator e espectador, por exemplo) ancoram no real ficcionado a convenção de uma teatralidade que ecoa a longa história do teatro. Por fim, há que notar a dimensão coral do espetáculo. O cuidado com os ritmos e as tonalidades que os discursos vão tomando, as sonoridades que introduzem a espectralidade nostálgica de um teatro de ontem evocado pelo de hoje (a carruagem, o vento), a melodia da canção amplificando imagens que vão sendo trazidas pela nossa memória. Por que razão o ato de evocar a vida de Cristina Vidal no Teatro D. Maria II pode ser relevante para os espectadores de hoje? A resposta leva-nos de volta à epígrafe deste texto. Tudo se perde e tudo se cria, mas talvez alguma coisa se transforme. Tiago Rodrigues espera que vejamos o teatro, lugar do coletivo, de outra maneira: não como ponto de suspensão, mas como manifestação da vida. Regresso assim ao início. Um teatro que cruza o comum e o incomum, o subjetivo e o coletivo, o pessoal e o universal e que recebe os espectadores para um debate intelectual atravessado pela confiança em pequenos gestos empenhados em (talvez) mudar o nosso olhar sobre o mundo. Com By Heart e Sopro, Tiago Rodrigues desafia-nos a acompanhá-lo na discussão talvez central das nossas existências: aquela que incide sobre o papel da memória e do esquecimento, do desaparecimento físico e da fragilidade humana a que a arte – e o teatro que fisicamente nos congrega – pretende responder. Um poema que aprendemos de cor e as palavras dos grandes autores clássicos sopradas na sombra dos bastidores do Teatro Nacional D. Maria II por Cristina Vidal podem parecer pequenos detalhes na história da humanidade, mas ao passarem pela “manipulação artística” adquirem uma relevância REFERÊNCIAS universal e tornam-se COELHO, Rui P. (2018) Old Europe is (not) dying: Literature, parte de “um gesto de Tradition and Politics in Tiago Rodrigues Sopro (and other performances). In: Critical Stage: scènes critiques, june/juin, resistência política através issue n. 17, 2018. Disponível em: <http://www.critical-stages. da arte e da memória org/17/old-europe-is-not-dying-literature-tradition-andcontra o desaparecimento politics-in-tiago-rodrigues-sopro-and-other-performances/>. da Europa” (COELHO, 2018; Acesso em 19 jan. 2020. tradução minha). COELHO, Rui P.; LEAL, Joana d’Eça. Tiago Rodrigues: sem truques. In: Sinais de Cena, n. 21, junho/2014, p. 37–52.

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BURGERZ

Travis Alabanza REINO UNIDO, 2018 | 1h10min | CLASSIFICAÇÃO INDICATIVA 14 ANOS

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Depois que alguém jogou um hambúrguer e gritou uma ofensa transfóbica para Travis Alabanza em plena luz do dia na Ponte de Waterloo, em Londres, e nenhum dos transeuntes se manifestou, ile*, que se define como uma pessoa não binária, começou uma obsessão por hambúrgueres: como são feitos, qual a sua textura e seu cheiro e como eles viajam pelo ar. Este solo interativo é o clímax de sua compulsão. Nele, Alabanza, uma das vozes trans de destaque no Reino Unido, utiliza a plateia para explorar de forma pungente e bem-humorada como os corpos trans sobrevivem e como, ao se recuperarem de um ato de violência, podem conquistar sua própria cumplicidade. * Os pronomes não binários “ile(s)” (em inglês “they”) substituem os pronomes pessoais “ela(s)” ou “ele(s)”. São termos que não demarcam o gênero, já que pessoas não binárias não se identificam como femininas ou masculinas. 55


HISTÓRICO

Embora frágil, Alabanza é atrevidx e espirituosx, alimentando o público como uma estrela de cabaré experiente e dominando a imprevisibilidade do formato interativo. Ile* gera urros de riso, mas o roteiro raivoso e inteligente também é ressaltado com a verdadeira dor da exclusão, de ser encaixotado, de estar preso em um mundo onde a violência sexual e racial é predominante e, com muita frequência, tolerada. MARK FISHER, The Guardian

Uma das coisas que o espetáculo faz de maneira inteligente é usar a ideia de teatro como uma comunidade para questionar a facilidade com que nos tornamos cúmplices das estruturas de opressão. Não podemos sucumbir à mentalidade de espectador – devemos agir, não apenas observar passivamente. Como Alabanza coloca: “o silêncio queima”. LYN GARDNER, Edinburgh Festivals Magazine

Travis Alabanza atua, escreve e realiza filmes em Londres. Como uma das vozes artísticas trans mais proeminentes do Reino Unido, nos últimos quatro anos Alabanza iniciou grande parte das conversas públicas sobre as interseções entre negritude, gênero, visibilidade trans e classe. Seu trabalho cruza meios e formas, incluindo performances realizadas em espaços como Tate, Victoria and Albert Museum, Southbank Center, ICA, Lyric Hammersmith, Transmission Gallery e Royal Exchange Theatre, e apresentações em festivais como o Hamburg International Feminist Festival. The Guardian, Buzzfeed e Independent são alguns dos veículos que publicaram seus escritos. Entre 2017 e 2018, estrelou a adaptação de Chris Goode de Jubileu, lançou seu primeiro livro de poesia, Before I Step Outside (You Love Me) e foi artista residente na Tate Galleries. Atuou recentemente em Ridiculous of Darkness (Gate Theatre) e I Wanted to Fuck up the System But None of My Friends Texted Back (Wellcome Collection/The Sick of the Fringe).

CRIAÇÃO E PERFORMANCE Travis Alabanza DIREÇÃO Sam Curtis Lindsay DESIGN DE CENÁRIO E FIGURINO Soutra Gilmour DESIGNER ASSOCIADA Isabella van Braeckel DESIGN DE LUZ Lee Curran & Lauren Woodhead DESIGN DE SOM XANA MOVIMENTO Nando Messias ESTE ESPETÁCULO É APOIADO PELO BRITISH COUNCIL

FOTO S E L I S E RO S E

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as SIMPLES e IMPORTANTES perguntas “NÓS NÃO PEDIMOS PARA LUTAR, MAS SABEMOS SOBREVIVER. Antes de você sair, nós te amamos. Antes de você sair, eu te amo. Antes de você sair, respire. Eu te amo.” Essas palavras enunciadas por Travis Alabanza, numa palestra da plataforma TED 1, são parte final de um poema publicado no seu livro Before I Step Outside [You Love Me], de 2017. Trata-se de uma coletânea de poemas, imagens, ensaios e trechos autobiográficos, escritos sempre em trânsito na cidade.

POR RENAN JI

Travis Alabanza se autodeclara uma pessoa transfemme, fora dos padrões de gênero2. Utiliza em seus textos e suas falas o pronome “they” (com seus derivativos), o qual, nos atuais usos da língua inglesa, pode ser correspondente direto do pronome “eles/elas”, assim como pode ser uma forma neutra de “ele/ela”. Ao longo deste texto, quando em referência a Travis, utilizarei usos correntes da linguagem não binária em português3 , em respeito ao desejo dile de abolir as marcas de gênero na linguagem. Sobre Before I Step Outside [You Love Me], Travis afirma que cada pedaço do livro foi escrito enquanto ile estava no metrô, no ônibus, às vezes sendo encarade ou insultade nas ruas. Le autore deseja que a obra seja lida e exibida ao ar livre, nos espaços públicos, abertos à circulação de pessoas 4 . Na palestra TED, Travis nos chama a atenção para o fato de que todos nós, cedo ou tarde, na vida comum, precisamos sair de casa e frequentar espaços públicos. Contudo, para pessoas trans como ile, o espaço público é motivo de temor. Eis a tensão subjacente no trecho do poema: o ato cotidiano de sair de casa lhe exige um forte senso de autopreservação, reforçando valores que lhe são essenciais como corpo, raça e identidade. É necessário preparo e cuidado para blindar o que se é, não importa o lugar para onde se vai. Devemos lembrar que Travis Alabanza é atore, escritore e performer, e seus trabalhos já lhe garantiram lugar como uma das personalidades mais influentes da cultura queer. Stories of a Queer Brown Muddy Kid, performance de 2015, lidava frontalmente com temas caros aos estudos culturais, como racismo, sexualidade e cultura gay, provocando impacto na cena teatral 58

1 Ver https://www.ted.com/ talks/travis_alabanza_who_ is_allowed_to_be_a_victim/ transcript?language=en 2 “transfemme, gender non-conforming person”. Ver https://shadesofnoir.org.uk/ travis-alabanza-on-burgerz/ 3 Ver https://identidades. wikia.org/pt-br/wiki/ Linguagem_n%C3%A3obin%C3%A1ria_ou_neutra. 4 Conferir o texto de divulgação do livro em: https://travisalabanza. bigcartel.com/product/ before-i-step-outside-youlove-me-chapbook


inglesa. Ademais, ile escreve textos e ensaios em jornais, participou de uma residência artística na Tate Modern e, no primeiro semestre de 2019, foi coautore de uma performance-instalação (All the Ways We Could Grow) no centro cultural Free Word em Londres.

Renan Ji é doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor adjunto do Instituto de Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira (CAp-UERJ). Atua como crítico de teatro na Revista Questão de Crítica e escreve artigos e ensaios sobre teatro, literatura brasileira e literatura comparada.

Fica claro, portanto, que le multiartista Travis Alabanza já estabeleceu seu lugar nas instituições culturais, o que lhe dá certa visibilidade e respaldo na opinião pública. Entretanto, a projeção social não lhe fornece nenhuma garantia de segurança. Vejamos: em 2017, le artiste foi barrado no provador de uma das lojas da cadeia Topshop, sendo orientade a se deslocar para provadores da ala masculina da loja. Após denúncia de Travis no Twitter e polêmica nos jornais, a Topshop passou a adotar a neutralidade de gênero em seus provadores, não sem o custo de muita exposição midiática e linchamento virtual da figura de Travis. Meses antes, em 2016, andando à luz do dia pela Waterloo Bridge, Travis é atingide por um hambúrguer lançado por um passante, que antes gritou o insulto “tranny” e então seguiu naturalmente seu caminho. Cerca de cem pessoas testemunharam tal ataque, mas de acordo com Travis nenhuma prestou socorro ou esboçou reação diante do ocorrido. Como se pode ver, ainda que personalidade pública, Travis Alabanza continua sofrendo do mesmo e básico problema que parece afetar todas as pessoas trans: não se sentir respeitade, ou sequer segure, em espaço público. A gravidade do problema se mostra ainda maior ao constatarmos o lugar de naturalidade que muitos assumem perante os ataques gratuitos a grupos sociais minoritários. É como se, na sociedade, ser considerade vítima fosse um direito concedido seletivamente a alguns, e não uma condição irrestrita decorrente de qualquer ato de violência. Trata-se de um profundo problema ético-social e é notável como Alabanza tem respondido ao desafio com sua militância político-intelectual. As entrevistas concedidas e os ensaios que publica contribuem diretamente para o seu esforço de conscientização coletiva acerca da cidadania trans. Por outro lado, a sua própria atividade artística não se encontra apartada da luta pelos direitos civis das pessoas trans no Reino Unido. Veremos aqui como a própria arte pode se instaurar no âmago do debate público, assumindo uma linguagem simples e frontal, pautada no cotidiano, para sensibilizar e despertar a empatia de uma sociedade agressora e ao mesmo tempo omissa. A peça Burgerz, de 2018, é de longe o trabalho mais famoso de Alabanza, e ilustra bem como a sua arte é inseparável da vivência política. No palco, Travis encena a preparação de um hambúrguer, enquanto tece considerações diversas que buscam reprocessar o trauma do seu próprio ataque e refletir sobre a conivência das pessoas que o testemunharam – ação que pode ser tão traumática à vítima quanto o ataque físico em si. Para tanto, Travis convida um membro da plateia para ajudá-le, com a condição de que seja um homem 59


branco e cisgênero, plasmando, na sua essencialidade, os dois polos sociais em tensão no episódio da Waterloo Bridge. É importante notar que a presença em cena de um homem branco cisgênero não objetiva um encontro catártico, uma confrontação dramática diante do algoz. A intenção é mais simples: fazer um hambúrguer a quatro mãos para, como afirma le próprie autore no prefácio ao livro da peça, arquivar o acontecimento e complexificar sua narrativa. A redenção buscada por Travis não é a vingança ou a desconstrução do “inimigo”; é um trabalho analítico de refinar as camadas da memória e da cultura (começar do começo e se indagar: o que é um hambúrguer?); fazer perguntas íntimas ao seu antípoda social (quando foi a última vez que você chorou?); e, reencenando o ato de jogar o hambúrguer, tornar o acontecimento parte da memória coletiva de suas plateias. Nesse sentido, o arquivamento do que aconteceu a Travis se dá mais no campo da empatia, do afeto simples, relembrando-nos de que o direito de existir nas ruas também é simples e está sendo negado a ile e a muitas pessoas. As perguntas da peça são diretas, mas tocam em pontos nevrálgicos: “O que nós estamos pedindo que parece ser mais do que simplesmente respirar?” (ALABANZA, 2018)5 De fato, estamos em dias em que até mesmo o respiro parece ser uma concessão difícil ao discurso e às práticas sociais conservadoras. O momento parece pedir maior combatividade na militância política. No entanto, em Burgerz, Travis cede espaço para o humor, a filosofia, a crítica dos costumes e a mordacidade que parece ser a marca do seu estilo. O mérito do seu texto parece ser a capacidade de tocar em assuntos difíceis ou complexos com a leveza certa e a clareza necessária para atravessar as defesas do interlocutor (seja o homem branco cis, seja a plateia do teatro) e provocar a ação prática no cotidiano. A simplicidade da linguagem, misturada a momentos de humor e deboche cultural, consegue atingir a complexidade a partir de metáforas muito concretas. Escolher entre hambúrgueres e cachorros quentes, por exemplo, pode levar a uma especulação sobre a falsa liberdade que a sociedade e a cultura nos vendem. Na mesma perspectiva, pode-se ver que, incumbido de ler o livro de receitas, o homem branco ocupa uma posição falsa de sujeito do saber e das regras, pois ele somente se manifesta a partir das marcações de cena de Travis. Ile, por sua vez, parece se submeter ao comando do homem, mas logo de início aponta a primeira incoerência do discurso dominante: o livro de receitas diz que, primeiro, deve-se achar uma caixa para o hambúrguer. Mas quem vem primeiro: a caixa ou o hambúrguer? Qual deles deve se adaptar ao outro? Perguntas simples que remetem a problemas sérios.

5 Do original, em inglês, What are we asking for that seems more than just breathing?. A paginação da referência não se encontra disponível, pois a edição da peça a que tive acesso está em formato epub, que não possui paginação fixa.

No mais, o que talvez me pareça mais interessante em Burgerz – por unir agudeza de pensamento e simplicidade – seja o fato de uma pessoa trans compartilhar uma atividade manual com um homem branco e cis. De fato, há quem diga que colocar um homem branco para cozinhar com ume

6 Do original, em inglês: Do you want to make the effort to make someone feel more comfortable? If you don’t, then that says something about you, not me (MINAMORE, 2019).

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“transfemme” negre seja uma quebra de paradigma. Porém, acredito que a real potência desse recurso esteja no fato de que compartilhar uma atividade manual exige um esforço de proximidade física, pois há colaboração e partilha dentro de um mesmo espaço. O convite feito por Travis Alabanza ao “inimigo” mostra como, no microcosmo de uma cozinha cenográfica, a partilha do espaço pode ser, no fim das contas, algo simples e inofensivo. A facilidade de preparar um hambúrguer junto ao outro mostra, em contraponto, a atrocidade e o absurdo de se dar ao dispêndio de jogar um hambúrguer em outro ser humano, por puro despeito em relação à sua existência no espaço social. A vida nos ensina diariamente a dividir nosso espaço com o outro. É algo banal, um aprendizado civilizatório básico. Burgerz nos lembra disso, mostrando que negar o direito de espaço a uma pessoa trans, em meio a dezenas de pessoas, numa das zonas mais movimentadas de Londres, é amesquinhar imensamente o uso do espaço comunitário. E assistir a isso sem esboçar resposta é ser tão mesquinho acerca dos lugares de convivência quanto o próprio agressor. É também jogar o hambúrguer naquele que é diferente, respaldando um ódio social que diz muito mais do caráter daquele que o sente, do que da pessoa ele exclui. Travis Alabanza surpreende pela simplicidade de suas palavras e de sua dramaturgia, que ganham agudeza na medida em que le artiste sabe formular e responder às perguntas importantes, tanto na arte quanto no debate público. Durante sua conferência TED, por exemplo, ile afirma que vai definir a condição trans sem recorrer a Judith Butler, e que aquela não será uma aula de teoria do gênero. Diz ili então que ser trans é perceber que, ao nascermos, uma decisão foi tomada à nossa revelia, sem o nosso conhecimento. Ser trans é receber algo sem o consentir, e perceber que isso não foi feito para você. Se pudesse desdobrar o raciocínio, Travis talvez dissesse que ser trans é perceber que hambúrgueres muitas vezes não cabem nas caixas que lhe foram incumbidas. É entender que os pronomes preexistentes da língua, por exemplo, podem não representar o devir singular de uma pessoa. Para Travis, o uso de pronomes neutros é uma questão de resistência política e de esforço para o bem-estar do outro. E se alguém pondera que pode ser REFERÊNCIAS difícil se acostumar ALABANZA, Travis. Before I Step Outside [You Love Me], com a mudança, ile Publicação do próprio autor. 2017 responde, simples e ______. Burgerz. Londres: Oberon Books, 2018. diretamente: “Você MINAMORE, Bridget. “Damn, I’m good at this!” Is Travis Alabanza deseja se esforçar para the future of theatre?. Entrevista de 27 mar. 2019. Disponível fazer uma pessoa se em: https://www.theguardian.com/stage/2019/mar/27/travissentir mais confortável? alabanza-interview-future-theatre. Se você não deseja, SHADES OF NOIR. Travis Alabanza on “Burgerz”. Entrevista ao então isso diz algo sobre site Shades of Noir. Disponível em: https://shadesofnoir.org.uk/ travis-alabanza-on-burgerz/. você, não sobre mim.”6 61


CONTOS IMORAIS – PARTE 1: CASA MÃE CONTES IMMORAUX - PARTIE 1: MAISON MÈRE

Phia Ménard FRANÇA, 2017 | 1h30min | CLASSIFICAÇÃO INDICATIVA LIVRE

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O espetáculo foi concebido para a 14ª edição da Documenta de Kassel, realizada em 2017 entre as cidades de Kassel, sede da exposição de arte contemporânea, e Atenas. Partindo dos temas levantados pela mostra – a descentralização da arte, os conceitos de centro e periferia, o papel do artista num mundo em conflito –, a francesa Phia Ménard reflete sobre a identidade e os problemas da Europa de hoje, fazendo um paralelo entre as duas cidades: a alemã Kassel, no “rico norte” europeu, e a grega Atenas, imersa em crises. Sobre o palco, vestida como uma deusa grega futurista, ela se põe a construir uma estrutura de papelão, simples e frágil. Ela remonta ao Plano Marshall (que pretendia reerguer a Europa do pós-guerra), fazendo gestos repetitivos e robóticos nesse esforço de criar uma casa para o continente e seus desabrigados, seus refugiados. 63


HISTÓRICO

Toda a genialidade de Phia Ménard, arquiteta desta obra para o corpo vivo, é de manter a distância do espetacular sem economizar no gesto. Casa Mãe é talvez uma obra crucial no percurso de Ménard, um ato militante e político. Um grito. A Europa assim glorificada bem em seus escombros (re)torna-se um horizonte possível (...) Casa Mãe é um conto moderno. PHILIPPE NOISETTE, Les Inrockuptibles

Felizmente, as frases de Phia Ménard figuram apenas no texto de apresentação, não na própria peça. Porque toda a beleza de Casa Mãe consiste em ver a artista fantasiada de guerreira queer, Atena miserável, manipular o cenário sem que saibamos bem se ela cuida dele ou se o maltrata (nem se a casa a protege ou a enclausura): deixar que as imagens e o tempo nos digam. Isso nos deixa completamente livres para decidir se essas imagens evocam a construçãodestruição da Europa, a do patriarcado ou a maneira como essas duas questões estão ligadas.

A francesa Phia Ménard estudou dança moderna, mímica, atuação e malabarismo. Em 1998, com Le Grain, ela fundou a companhia Non Nova, que busca uma nova forma de trabalhar o malabares, por meio da estrutura cênica e dramatúrgica, e debruçando-se sobre trabalhos multidisciplinares, com artistas de experiências diversas. O projeto I.C.E. Injonglabilité Complémentaire des Eléments, pesquisa sobre a transformação, erosão e sublimação de materiais, deu uma nova projeção à carreira de Ménard, em especial com a montagem P.P.P. (Position Parallèle au Plancher), de 2008, na qual usava como elemento o gelo. A metamorfose vista no espetáculo virou símbolo de sua transição de sexo, ocorrida na mesma época. Depois disso, rodou o mundo com obras como L’AprèsMidi d’un Foehn e Vortex e tornou-se uma importante voz em questões de gênero. Em 2014, ela recebeu do governo francês o título Chevalier de l’Ordre des Arts et des Lettres (Cavaleiro da Ordem das Artes e Letras) e, no ano seguinte, tornou-se artista associada do Théâtre Nouvelle GénéraYon - Centre DramaYque NaYonal de Lyon e do Centre Chorégraphique NaYonal de Caen / BasseNormandie. Em 2017, estreou na documenta 14 Contos Imorais - Parte 1: Casa Mãe. O projeto prevê outras duas partes, Temple Père (Templo Pai) e La Rencontre Interdite (O Encontro Proibido).

ÈVE BEAUVALLET, Libération

FOTO S J E A N - LU C B E AU J AU LT

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DRAMATURGIA E DIREÇÃO Phia Ménard e Jean-Luc Beaujault PERFORMANCE E CENOGRAFIA Phia Ménard MÚSICA E AMBIENTAÇÃO SONORA Ivan Roussel DIREÇÃO DE PALCO Jean-luc Beaujault, Pierre Blanchet e Rodolphe Thibaud FIGURINO Fabrice Ilia Leroy DIREÇÃO TÉCNICA Olivier Gicquiaud CODIREÇÃO, PRODUÇÃO E ADMINISTRAÇÃO Claire Massonnet ASSISTENTE DE PRODUÇÃO Clarisse Mérot RELAÇÕES PÚBLICAS Adrien Poulard ASSISTENTE DE COORDENAÇÃO DE TURNÊS Lara Cortesi PRODUÇÃO-EXECUTIVA Compagnie Non Nova COPRODUÇÃO documenta 14 – Kassel e Le Carré, Scène Nationale e Centre d’Art Contemporain do Château-Gontier. A COMPANHIA NON NOVA É SUBSIDIADA PELO MINISTÉRIO DA CULTURA E COMUNICAÇÃO DA FRANÇA - DIREÇÃO REGIONAL DE ASSUNTOS CULTURAIS DO VALE DO LOIRE, PELO CONSELHO DA CIDADE NANTES, PELO CONSELHO REGIONAL DO VALE DO LOIRE, PELO CONSELHO DO DEPARTAMENTO LOIRE-ATLANTIQUE, PELO INSTITUT FRANÇAIS E PELA FUNDAÇÃO BNP PARIBAS. COM SEDE EM NANTES, A COMPANHIA É ATUALMENTE ASSOCIADA DO MALRAUX SCÈNE NATIONALE CHAMBERY SAVOIE E DO TNB - CENTRE EUROPÉEN THÉÂTRAL ET CHORÉGRAPHIQUE DE RENNES. O PROJETO CASA MÃE RECEBEU APOIO DO INSTITUT FRANÇAIS E DA CIDADE DE NANTES. ESTE ESPETÁCULO É APOIADO PELO CONSULADO GERAL DA FRANÇA EM SÃO PAULO E PELO INSTITUT FRANÇAIS

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QUANDO AS

RUÍNAS FALAM POR CLÓVIS DOMINGOS DOS SANTOS

Eu fiz a escolha de estar em relação com a arte de uma maneira vital, o que implica que meus atos não são definidos senão pelos limites vitais do corpo. Quando estou em cena, eu empresto meu corpo aos espectadores para tentar fazê-los viver uma experiência que não teriam sozinhos. Eu gostaria que o espectador viesse ver nossas formas pelo convite de ser perturbado. É nesse campo da investigação artística que me esforço para tornar necessária minha relação com o espectador, a fim de esvaziar todas as formas de conveniência e didatismo com ele. Tento fazer de cada encontro não uma demonstração artística, mas um encontro único com nossas sensações de estar no mundo. 1 Phia Ménard 66

PROVOCAR OS SENTIDOS, TRANSFORMAR AS MATÉRIAS, criar questionamentos sobre o corpo, o mundo, as coisas, produzindo assim inquietações através da arte, são alguns dos principais vetores do trabalho da artista visual e performer francesa Phia Ménard. Sua aproximação com o universo artístico se deu pelo malabarismo. Há mais de 20 anos ela vem produzindo espetáculos na interface entre o circo, a dança e a performance, tendo iniciado sua formação profissional na companhia de Jérôme Thomas. Também participou de espetáculos de dança de coreógrafos renomados como Hervé Diasnas e Valérie Lamielle. Ainda nos anos 1990,

1 Tradução livre do francês: “J’ai fait le choix d’être en relation avec l’art d’une façon vitale, cela implique donc que les limites de mes actes ne sont définies que par les limites vitales du corps. Lorsque je suis sur scène, je prête mon corps aux spectateurs pour essayer de lui faire vivre une expérience qu’il ne ferait pas de lui-même. J’aimerais que le spectateur vienne voir nos formes par l’envie d’être troublé. C’est dans ce champ d’investigation artistique, que je m’évertue à rendre nécessaire ma relation au spectateur, afin d’évacuer toutes formes de complaisance et de didactisme avec lui. J’essaie de faire de chaque rendezvous non une monstration


a artista cria então a Companhia Non Nova, 2 reunindo profissionais com disponibilidade para projetos pluridisciplinares e experiências diversas. A partir dos anos 2000, Phia produz trabalhos solo e cada vez mais se interessa pela relação do artista com o público.

Clóvis Domingos dos Santos é artista, pesquisador cênico e crítico no site Horizonte da Cena. Doutor em Artes pela Escola de Belas Artes da UFMG. Desenvolve estágio Pós-Doutoral em Artes Cênicas no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFOP, com pesquisa sobre crítica e cena contemporânea.

artistique mais une rencontre singulière avec nos sensations d’être au monde”. Disponível em: http://www.tandemarrasdouai.eu/sites/default/ files/dossiers/dossier_ pedagogique_phia_menard_ bd.pdf. Acesso em 12 jan. 20. 2 Para saber mais sobre o trabalho da companhia, acessar: http://www. cienonnova.com/i/en/cy-nonnova/. Acesso em 12 fev. 2020.

Uma virada em sua trajetória acontece a partir de 2008 com seus treinamentos e estudos sobre a imaginação, transformação e erosão de elementos naturais. Agora sua inquietação é diferente: como escapar da busca pelo virtuosismo? Interessa à artista uma arriscada e inusitada relação de intensidade e densidade com as matérias do mundo. Dentro do projeto I.C.E (Injonglabilité Complémentaire des Élements) são criados espetáculos de composição e dramaturgia corporal como P.P.P., primeira peça do ciclo nomeado como Peças de Gelo. Depois foi a vez da performance L’Après-Midi d’un Foehn – Version 1, a primeira parte das Peças do Vento, criada para o Museu de História Natural de Nantes na França. Nos anos seguintes, surgiriam trabalhos para uma nova série: Peças de Água e de Vapor. Uma Artista da Metamorfose, assim podemos nomear essa ousada criadora. Metamorfose inclusive em sua identidade, quando aos 37 anos muda seu gênero e se torna Phia. Seja por meio das instalações ou coreografias apresentadas, sua arte e sua vida se intercruzam, isto é, a mesma transformação que experimenta, por exemplo, com seus trabalhos com a água, acontece também com seu corpo em transição. Vale frisar que em parceria com o filósofo Paul Preciado, Ménard produziu a performance In the Mood, abordando questões sobre a identidade de gênero a partir de discussões filosóficas, biopolíticas e artísticas. A pesquisa da performer parece priorizar o comum existente nas diferentes materialidades que povoam o mundo. Nesse projeto criativo se articula um repertório diverso de formas (filmes, escritos e performances), e o que se interroga são aspectos múltiplos e vinculados à transformação das matérias, à luta pelo equilíbrio humano vital (seja físico ou mental), à força da imaginação, às leis da gravidade, aos fenômenos naturais e científicos etc. A opção pela performance física se dá como experiência viva e capaz de mostrar a plasticidade do corpo, sua potência e fragilidade, suas afetações, seu desejo de proteção, como uma casa a ser cotidianamente construída e habitada. Nesse ponto também nos aproximamos do trabalho Casa Mãe e sua poética da ruína. METÁFORAS DE UM FIM DE MUNDO Casa Mãe (Maison Mère) é a primeira parte de uma trilogia intitulada Contos Imorais (Contes Immoraux) que Phia Ménard criou para o Documenta de Kassel (Alemanha) em 2017, cuja temática foi Aprendendo com Atenas / Por um Parlamento do Corpo. Inspirada no Partenon grego, ela constrói sozinha uma 67


casa de papelão cujo destino final será a ruína. Com forte carga simbólica e política, o trabalho propõe ao público a contemplação de um corpo em seu esforço por edificar uma espécie de abrigo ou templo. Como um Partenon moderno, expõe assim questões urgentes para se pensar a Europa e o mundo atual com seus horizontes de problemas e barbáries como o drama dos semteto, a crise dos refugiados, as guerras intermitentes, as mudanças climáticas e a falência dos governos democráticos. Entre Atenas, a casa mãe da nossa civilização e base do nosso pensamento ocidental, e a cidade de Kassel, onde o nazismo alemão teve forte presença, a performer engendra um lugar intermediário, no qual uma tenda improvisada serve tanto de espaço real como metafórico para se tratar de violência, colonização, memória, destruição e renovação. Nessa obra plástica, visual e sonora, a artista utiliza folhas de papelão, rolos de fitas adesivas, algumas espadas (ou serão lanças que servirão depois de estacas para equilibrar e sustentar as paredes da casa?) e, como uma Atena contemporânea e punk, trava sua epopeia pessoal e ao mesmo tempo universal. Em Casa Mãe, testemunhamos a disputa desigual de um corpo humano (ou será a imagem de uma heroína?), diante da tensão causada frente a uma arquitetura monumental. Trata-se de uma instalação composta de uma série de elementos que oscilam entre gestos políticos, a contradição entre o planejamento do projeto e a utilização dos materiais escolhidos e a resistência de um corpo. Ménard examina, calcula, corta, bate, monta, cola, encaixa, empurra e de forma meticulosa vai erguendo sua construção. Em alguns momentos olha para o público parecendo buscar sua cumplicidade para que este acompanhe atentamente toda a energia necessária que é investida na execução desse projeto. Não há economia no gesto e nesse “canteiro de obras” é perceptível não somente a utilização da força, mas também de uma certa violência. A artista parece encarnar uma persona dominadora, em alguns momentos furiosa, uma espécie de guerreira obstinada. Casa Mãe vai, aos poucos, gerando uma atmosfera de tensão e admiração, uma expectativa se cria, por parte da plateia, para que o empreendimento alcance seu propósito e sucesso final. Aos nossos olhos as formas verticalizadas vão se tornando reconhecidas a cada parede que se ergue. Paradoxalmente, a imponência do edifício, de alguma maneira, também reflete sua precariedade. Quanto mais nos impressionamos com seu tamanho e engenhosidade, mais nos angustiamos com sua ameaça de entrar em colapso. Nossa respiração se torna curta. A estrutura que aumenta é a mesma que ganha peso e assim mais obstáculos surgem para o corpo da artista. Diante da catástrofe, não há nenhum tipo de ação e reação. Seria semelhante ao comportamento de cada um de nós diante da miséria que aniquila o mundo? Como mudar as realidades adversas que convocam nossa força e indignação? Estaremos todos indiferentes e anestesiados? 68


A cena final da performance é impactante e desoladora: o caos, o fracasso, o abandono dos deuses, a impotência. O que esse conjunto de imagens nos evoca? Seria a destruição-construção da Europa? Ou sua reconstrução constante? Falaria também do fim das utopias democráticas em países como o Brasil, que vem sendo arruinado por empresas, instituições e governos? Ou se trataria da falência do patriarcado? As ruínas expostas simbolizariam o atual declínio do pensamento e da vida humana e comunitária? Ou seria um alerta sobre a tragédia vivida pelos pobres e imigrantes em seus abrigos despedaçados? E se a água que cai não passasse de lágrimas para chorar um mundo no qual a solidariedade e compaixão se encontram apodrecidas? Coerente com a trajetória da artista, mais uma vez a metamorfose se efetua nessa “peça de água, de ar, de corpo” que parece tratar da ambição titânica para domar as forças do mundo. Impossível também não associar a violência imposta nessa construção aos seus gestos desumanos, sempre desencadeando mais violência e injustiça. Penso aqui no retorno dos colonizados que voltam para cobrar a fatura e dívida seculares por tanta exploração e morte. E se estivermos condenados a viver em um firmamento em eterna restauração e obrigados como Sísifo a carregar infatigavelmente as pedras que rolam desse imenso precipício? São infinitas as portas de entrada para a leitura dessa “casa-performance”. Como na citação que abre esse artigo, a artista não quer estabelecer nenhum tipo de interpretação. A cada um de nós cabe a coragem de encontrar os fios para se acessar esse trabalho, inventando algum sentido ou alguma resposta. É indiscutível que Casa Mãe é um conto moderno e de fato imoral, pois nunca estivemos tão desprotegidos. Séculos de processos civilizatórios não impediram que ainda hoje nos defrontássemos com o desamparo de um mundo em escombros. Nessa obra militante e provocadora, as ruínas falam.

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FARM FATALE*

Philippe Quesne / Münchner Kammerspiel ALEMANHA/FRANÇA, 2019 | 1h30min | CLASSIFICAÇÃO INDICATIVA 12 ANOS

*O título, “fazenda fatal”, brinca com a expressão francesa “femme fatale” (mulher fatal)

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Em Farm Fatale, o diretor Philippe Quesne evoca o imaginário da vida no campo. Mas esse espaço rural, antes idílico, agora surge num futuro distópico, já todo abandonado. Os sons da natureza se dissiparam, os pássaros e insetos desapareceram e as pessoas foram embora. Sobrou apenas um grupo de espantalhos, cinco figuras engenhosas que tentam rememorar o passado e, aos poucos, preencher esse lugar vazio. Eles vão trazendo elementos para o palco desnudo, unem-se num programa de rádio independente, fazem músicas, discutem problemas ambientais e até se lançam a questionamentos filosóficos. Mascarados, com a voz deformada e o caminhar endurecido, como se fossem zumbis, esses personagens usam do humor e da ironia na busca de um recomeço, na utopia de um mundo novo e melhor – um mundo sem pessoas. 71


HISTÓRICO

Farm Fatale, de Philippe Quesne, se mostra uma encenação bucólica e bizarra, cheia de piadas maravilhosas, mas na qual também surge a utopia de um mundo melhor. Um mundo sem pessoas. Sinceramente: aquecimento global, extinção de espécies – nós, humanos, estragamos tudo! Talvez realmente fosse melhor que o planeta começasse tudo de novo. Na sala vazia. E sem nós. CHRISTOPH LEIBOLD, Deutschlandfunk Kultur

Tudo é um absurdo maravilhoso, os cinco [personagens] falam baboseiras sobre abelhas – “Let It Bee” –, pois há uma alegria especial, ainda que realmente nos encontremos num apocalipse desertificado. Mas os espantalhos dão esperança (...) e acabam num mundo que talvez não exista mais, mas do qual algo novo possa emergir.

Uma das principais companhias da cena alemã, a Münchner Kammerspiele funciona desde 1933 como teatro municipal de Munique. O grupo busca um diálogo e uma confrontação com o presente e investe numa estética inovadora e contemporânea, com enfoque sociopolítico. Em 2015, quando Matthias Lilienthal assumiu a direção artística do teatro, a instituição expandiu seu escopo artístico, trabalhando com nomes reconhecidos e talentos mais jovens, além de convidar diretores de várias nacionalidades, como Philippe Quesne, Rabih Mroué e Toshiki Okada. Com Farm Fatale, Quesne faz sua segunda montagem dentro da instituição alemã – a primeira foi Caspar Western Friedrich, de 2016. Formado em artes visuais, o diretor francês trabalhou durante dez anos elaborando cenários para espetáculos teatrais, óperas e exposições. Na direção, ele cria peças com forte conexão entre espaço, cenografia e os corpos que ocupam o palco. Ele fundou, em 2003, a companhia Vivarium Studio, reunindo atores, artistas plásticos e músicos, numa pesquisa entre o lúdico e o melancólico. Desde 2014, é codiretor do teatro francês Nanterre-Amandiers.

EGBERT THOLL, Süddeutsche Zeitung CONCEPÇÃO, DIREÇÃO, CENÁRIO, FIGURINOS E Nenhuma ideia muito estranha, nenhum jogo de palavras ridículo, nenhum gesto demasiado trivial, nenhuma conclusão ingênua demais. Porque com sua pequena e democrática sociedade de espantalhos, Philippe Quesne desenha um espelho de nós mesmos. TERESA GRENZMANN, Frankfurter Allgemeine Zeitung

PRODUÇÃO DE PALCO Philippe Quesne ELENCO Léo Gobin, Stefan Merki, Damian Rebgetz, Julia Riedler e Gaëtan Vourc’h COLABORAÇÃO CENOGRÁFICA Nicole Marianna Wytyczak COLABORAÇÃO DE FIGURINOS Nora Stocker ILUMINAÇÃO Pit Schultheiss DRAMATURGIA Martin Valdés-Stauber PRODUÇÃO Münchner Kammerspiele, em coprodução com Nanterre-Amandiers, Centre Dramatique National ESTE ESPETÁCULO É APOIADO PELO CONSULADO GERAL DA REPÚBLICA FEDERAL DA ALEMANHA EM SÃO PAULO, PELO GOETHE-INSTITUT, PELO CONSULADO GERAL DA FRANÇA EM SÃO PAULO E PELO INSTITUT FRANÇAIS FOTO S M A R T I N A RG Y RO G LO

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A UTOPIA QUE NASCE DO

FEIO POR RODRIGO NASCIMENTO

Nós somos as abelhas do invisível1 Rainer Maria Rilke

A CRIAÇÃO DE COMUNIDADES EM MINIATURA. A transformação da cena em um viveiro no qual o ser humano é investigado do mesmo modo que insetos são analisados em um microambiente por um pesquisador. Em uma palavra, o teatro como meio para explorar um “microcosmo2”. Esses são alguns dos principais vetores das performances e encenações de Philippe Quesne (Les Lilas, 1970), dramaturgo, encenador e cenógrafo francês, desde que fundou o Vivarium Studio, em Paris, em 2003. Não só o próprio nome do Studio o sugere (“vivarium” em inglês significa “viveiro”), mas seus espetáculos são instalações que parecem reconstituir ambientes naturais, pondo em contato seres humanos e outros seres e chamando a atenção pela exuberância e plasticidade. O encenador, que em 2014 foi nomeado chefe do Théâtre des Amandiers, um dos mais emblemáticos centros teatrais da França, estudou artes plásticas, design e cenografia em Paris e trabalhou como cenógrafo para inúmeros teatros e óperas. Em seu Studio, que reúne profissionais de várias áreas, é priorizada a investigação das relações entre o espaço, os objetos e os corpos. Mas se de início essa disposição parece sugerir um trabalho de veio naturalista, focado em apresentar um ambiente com todos os detalhes e determinantes materiais que agem sobre a espécie humana, o que a busca pelo minúsculo nas instalações performáticas de Quesne sugere, na verdade, são mundos surpreendentes, em que diferentes seres coexistem e cujas imagens se assemelham às ilustrações de um livro infantil. Envoltos em uma atmosfera de sonho, tais mundos são a um só tempo realistas e fantásticos. Numa zona limítrofe entre as artes plásticas, o cinema e o teatro, suas performances e encenações, na mesma medida em que arrebatam e encantam, perturbam pela estranheza. Situações em ambientes ora isolados, ora abandonados, como uma 74

1 No original: “Wir sind die Bienen des Unsichtbaren” (tradução nossa). 2 Ver entrevista com Philippe Quesne disponível no programa da peça para a estreia de Farm Fatale com o Münchner Kammerspiele, em 29 de março de 2019. Disponível em: https://www. muenchner-kammerspiele. de/en/staging/farm-fatale. Acesso em 19 jan. 2020. 3 Antes de Swamp Club, Quesne realiza com o Vivarium Studio os espetáculos La Démangeaison des Ailes (2003), seguido de Des expériences (2004), D’Après Nature (2006), L’Effet de Serge (2007), La Mélancolie des Dragons (2008) e Big Bang (2010).


ilha deserta, um pântano, uma caverna escura, uma fazenda deixada para trás por seus antigos donos... Contudo, desses lugares ermos e estranhos emergem figuras tão melancólicas quanto cômicas, tão fantasmagóricas quanto encantadoras, tão bizarras quanto humanamente próximas.

Rodrigo Nascimento é crítico teatral do portal Cena Aberta, professor, educador popular e tradutor. Tem graduação em Letras pela Unicamp e doutorado em Literatura e Cultura Russa pela USP. Há anos dedica-se à pesquisa dos teatros russo e brasileiro. É autor de Tchékhov e os Palcos Brasileiros (Ed. Perspectiva).

Foi assim com Swamp Club (2014)3, performance que apresentava um pântano tomado pela névoa e habitado por criaturas estranhas. Em meio àquele ambiente minuciosamente reconstruído (ao mesmo tempo realista, fantasmagórico e estranho aos olhos), está instalado um núcleo de artes semelhante a um aquário. Ali, os artistas-residentes vivem em um tempo outro, longe da aceleração da vida urbana, até serem ameaçados por um projeto imobiliário em franca expansão. A peça funciona, dentre outras coisas, como uma metáfora para o atual estado da arte, que de algum modo não tem onde se firmar – e justamente a partir dessa condição movediça pode juntar forças para resistir às tentativas de enquadrar a vida. Também em The Night of the Moles (Welcome to Caveland!) (2016), o palco é transformado no interior de uma caverna, repleta de estalagmites e estalactites. Naquele microuniverso comprimido e escuro, sete toupeiras gigantescas passam os dias envoltas nas demandas mais banais da espécie, ao mesmo tempo em que, absurda e inesperadamente, estão preocupadas com a banda de rock por elas criada. Aquelas criaturas cegas, que por vezes se perdem no gesto de arrastar pedras para lá e para cá, tornam-se arquitetas de um mundo novo. Arrancam um sentido para a existência por meio de arranjos musicais inusitadamente psicodélicos e forjam a utopia em um espaço que parecia ser apenas o palco de uma existência ensimesmada, solitária e melancólica. Essa busca do maravilhoso onde já não parece haver possibilidades é retomada em Crash Park, la Vie d’une Île (2018), encenação na qual um grupo de pessoas, após um desastre de avião, termina em uma ilha inabitada por humanos e distante de tudo. A cenografia exuberante, composta de uma minúscula ilha com um pequeno vulcão, é literalmente rodeada de água e acompanhada, próximo dali, pela carcaça de um avião acometido por um acidente. No ambiente onde antes conviviam pacificamente o pequeno vulcão e seres como sereias, agora se encontra o homem, imbuído de toda a bagagem alucinante e destrutiva da civilização. Mas se uma ilha deserta é palco do isolamento, do desespero e da angústia da salvação, na encenação de Quesne, assim como em toda a tradição literária e cinematográfica que vai da Odisseia de Homero a Náufrago (2000), filme dirigido por Robert Zemeckis, passando pelo Robinson Crusoé de Daniel Defoe, ela é também palco das descobertas do humano, desde sua aventura por autoconhecimento até a investidura na produção de novos meios de vida e novos mundos. FARM FATALE – ONDE PARECIA HAVER SÓ MORTE... A disposição de aumentar para ver melhor, a relevância de objetos que de algum modo assumem significação incomum, a combinação de lugares 75


improváveis, estranhos e ermos com personagens que precisam forjar uma outra vida, bem como a fascinação quase infantil do conjunto dos elementos continuam em Farm Fatale, espetáculo dirigido por Quesne com a companhia alemã Münchner Kammerspiele. 4 Na peça, um grupo de espantalhos perde sua antiga função. Após o suicídio de proprietários da região e após a debandada de agricultores que se viram pressionados pelo agronegócio, eles se tornam tecnicamente desempregados. Enquanto ocorre o colapso do mundo ao redor, a fazenda abandonada onde essas cinco figuras bizarras agora se reúnem se converte em um lugar por se fazer, em um laboratório de um novo mundo. São seres em busca de um recomeço. Diferentemente das outras encenações de Philippe Quesne, a cenografia agora é toda branca e há aqui e ali fardos de feno, grandes garfos e alguns implementos agrícolas, mas não o clima sombrio do pântano, a claustrofobia de uma caverna ou o isolamento contrastado com a amplitude de uma ilha em meio ao mar, muito menos os elementos em perspectiva ou o jogo vastidão-aperto – apenas o nada de um cenário todo branco. A simbologia dessa escolha é reforçada pela presença sutil, mas irresistivelmente irônica, de uma placa na qual se lê “Umleitung”, que em alemão significa “desvio”. O ambiente ao qual esses espantalhos se reduziram é um grande vazio, lugar que não merece sequer ser erguido à condição de ponto de parada. Por outro lado, não se pode deixar de levar em conta que o conjunto branco também se assemelha a uma grande folha de papel, ou a uma tela por pintar, de modo que à irrelevância e ao vazio se contrapõe a possibilidade de ali ser inscrito o desenho de uma nova forma de vida. A ambivalência é também o que atravessa a presença dos próprios espantalhos em cena. Figuras forjadas para simular o humano e espantar aves de hortas ou plantações não parecem, de início, ser os melhores representantes de um mundo novo. Há algo de irônico, portanto, nessa dramaturgia de Martin Valdés-Stauber e na direção de Quesne, pois o imaginário em torno de espantalhos é tradicionalmente o da fantasmagoria. Isso é reforçado pelos rostos mascarados (técnica alemã ancestral de cobrir os rostos com um tecido), pelas feições disformes, inchadas e levemente atordoadas, pelos corpos que se assemelham inicialmente a marionetes sem vida e pelas vozes projetadas, distorcidas com um eco eletrônico, que sugerem um som vindo além e, desse modo, separado daqueles corpos. Por outro lado, se esses seres de pantomima excêntrica, de aparência assustadora e lunática geram inevitável estranhamento, eles ao mesmo tempo são os protagonistas de uma comunidade apartada e autônoma, verdadeiros hippies de palha que querem preservar o que o mundo ainda possui de belo. Espantalhos que se envolvem na saga de gravar sons da natureza ao redor e reproduzi-los na estação de rádio pirata que empreendem como forma de 76

4 A encenação estreou em 2019, em Munique, e reúne três atores da trupe permanente da companhia alemã e dois atores que tradicionalmente o acompanham nas montagens francesas.


tentar salvar o planeta. Utilizam toda a parafernália ali abandonada (o microfone para as gravações é preso em um grande garfo para a coleta de feno) para arquivar e ressignificar os sons de riachos, o chilrear de pássaros e o canto do galo – tudo aquilo que o capitalismo furioso do campo ignora e solapa em nome da produtividade. Esses seres bizarros se tornam, desse modo, inesperados arautos da poesia de um mundo possível. Cantam Stand by Me para uma abelha e entrevistam o último exemplar da espécie, conversam com uma cenoura que é vítima da estigmatização, fazem um rap ecológico para espantar o proprietário vizinho que quer colocar pesticidas no campo e tentam guardar os ovos de uma criatura estranha, pois neles se pode armazenar cheiros e sons da natureza... ...HÁ VIDA Fantasmagóricos, eles possuem inevitável parentesco com o teatro de objetos de Tadeuzs Kantor, e dirigem assim o nosso olhar para um mundo em desaparecimento. Mas, ao se envolverem nesta tarefa de início absurda, parecem se converter em arquivistas, artistas e militantes em busca de outro futuro possível, regando de lirismo aquelas vozes quase metálicas e o cenário asséptico. Por trás do seu gesto delicado e minúsculo, quase risível, mas não inocente, redimensionam o impacto da destruição e despertam em nós aquilo que Dipesh Chakrabarty explicou como um “senso do presente que separa o futuro do passado” (2013, p. 2). Afinal, é inevitável não pensar em como seria a vida no planeta após toda a catástrofe ambiental que promovemos – a mesma que pode ser capaz de eliminar os próprios seres humanos do planeta. Se estamos envoltos em um sistema que transforma a relação com o campo em fonte de lucro desmedido, é como se esses espantalhos expusessem, sem panfletarismo, o absurdo de convivermos com os campos repletos de agrotóxicos e pesticidas, com a produção agrícola em larga escala que expulsa camponeses das pequenas propriedades e aceita que milhões vivam na subnutrição, ao mesmo tempo em que há um mercado de orgânicos de preços exorbitantes e restrito a uma elite. Farm Fatale tem algo de realista, cáustico e fatal na mensagem, mas sua forma está longe de ser punitiva. O tradicional humor que Quesne busca na estranheza encontra aqui um refinado acabamento. Espantalhos símbolos do horror se tornam figuras quase convidativas. Nessa nova realidade, uma vez que não estão mais subordinados aos humanos, eles se emancipam da função de espantar. Parecem dizer que, diferentemente da espécie “evoluída” e “racional”, são eles os amigos dos pássaros e que, como abelhinhas, serão eles a se dedicar a um trabalho invisível no qual se forja a utopia. Parecem distantes de nós, mas nos convidam a fazer o mesmo, arrancando a REFERÊNCIA beleza de onde só parece CHAKRABARTY, Dipesh. O clima da história: quatro teses. In: Sopro, n. 91, 2013, p. 2-22. haver o feio. 77


MULTIDÃO [CROWD] Gisèle Vienne

FRANÇA, 2017 | 1h30min | CLASSIFICAÇÃO INDICATIVA 14 ANOS

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Na peça da artista franco-austríaca Gisèle Vienne, 15 jovens vivem uma montanharussa de emoções durante uma festa de techno. Guiados por uma seleção musical que reúne artistas de renome na história da dance music, como DJ Rolando, Global Communication e Jeff Mills, os dançarinos vivenciam situações intensas e alcançam estados alterados de seus sentidos. Fazem isso manipulando a velocidade dos movimentos de seus corpos em momentos predominantemente coletivos, sem excluir as narrativas individuais pelas quais cada um passa naquela noite. Vienne, cujos trabalhos investigam a relação entre o artístico e o religioso – esbarrando em questões complexas do comportamento humano, como o erotismo e a violência –, cria aqui um jogo de ritmos que provoca a impressão de distorção do tempo, remetendo a uma sensação alucinógena, hipnótica. 79


HISTÓRICO

Tendo suas raízes na experiência de Vienne com a noite berlinense dos anos 1990, e uma trilha sonora marcante de artistas como Jeff Mills, Global Communication e Underground Resistance, [Multidão (Crowd)] parece ao mesmo tempo uma festa particularmente selvagem e um tríptico sobre o tema do céu e do inferno feito por um pintor como Bosch. Também há algo de A Sagração da Primavera, de Pina Bausch. SARAH CROMPTON, The Guardian

Crowd [Multidão], de Gisèle Vienne, reúne uma quinzena de solistas para uma viagem interior e hedonista. O cenário, um simples tablado recoberto de terra e compostagem de lixo, poderia representar um fim de noite aqui ou em qualquer outro lugar. Um a um, quase recuando, os intérpretes vão habitar esse espaço, recortado pela luz magnífica de Patrick Riou. A coreógrafa e cenógrafa captura esses instantes da noite, membros sacudidos por convulsões, beijos fugazes, jogos de mão à beira de perder o controle (...) A minúcia com que Gisèle Vienne conduz esse grupo suscita ainda a questão: estamos diante de um “after” ou de um espetáculo contemporâneo? Bastam alguns efeitos de rara beleza – uma lata que “explode”, fumaças que envolvem os casacos – para se assegurar. Multidão (Crowd) é uma verdadeira criação. PHILIPPE NOISETTE, LES ÉCHOS

Gisèle Vienne é artista, coreógrafa e diretora franco-austríaca. Após se formar em filosofia, estudou na École Supérieure Nationale des Arts de la Marionnette, instituto francês voltado aos estudos de marionetes. Trabalha regularmente com o escritor Dennis Cooper, os músicos Peter Rehberg e Stephen O’Malley e o designer de luz Patrick Riou, entre outros artistas. Suas obras transitam entre linguagens (artes cênicas, plásticas, cinema) para dissecar as relações humanas, o artístico e o religioso. Vienne dirigiu e coreografou, com a colaboração de Dennis Cooper, vários trabalhos, entre eles I Apologize (2004), Kindertotenlieder (2007), Babaca ( Jerk, 2008), This Is How You Will Disappear (2010), The Pyre (2013), The Ventriloquists Convention (2015) e Multidão (Crowd, 2017). Ela também exibe regularmente seu trabalho fotográfico.

CONCEPÇÃO, COREOGRAFIA E CENOGRAFIA Gisèle Vienne ASSISTÊNCIA Anja Röttgerkamp e Nuria Guiu Sagarra DESIGN DE LUZ Patrick Riou DRAMATURGIA Gisèle Vienne e Denis Cooper SELEÇÃO MUSICAL DE Underground Resistance, KTL, Vapour Space, DJ Rolando, Drexciya, The Martian, Choice, Jeff Mills, Peter Rehberg, Manuel Göttsching, Sun Electric e Global Communication EDIÇÃO E SELEÇÃO DE PLAYLIST Peter Rehberg SUPERVISOR DE DIVULGAÇÃO DE SOM Stephen O’Malley PERFORMERS Lucas Bassereau, Philip Berlin, Marine Chesnais, Sylvain Decloitre, Sophie Demeyer, Vincent Dupuy, Massimo Fusco, Rehin Hollant, Georges Labbat, Theo Livesey, Katia Petrowick, Linn Ragnarsson, Jonathan Schatz, Henrietta Wallberg e Tyra Wigg

FOTO S M AT H I L D E DA R E L E E S T E L L E H A N A N I A

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FIGURINOS Gisèle Vienne em colaboração com Camille Queval e os performers ENGENHEIRO DE SOM Mareike Trillhaas DIREÇÃO TÉCNICA Richard Pierre DIREÇÃO DE PALCO Antoine Hordé OPERADOR DE LUZ Arnaud Lavisse AGRADECIMENTOS Louise Bentkowski, Dominique Brun, Patric Chiha, Zac Farley, Uta Gebert, Margret Sara Guðjónsdóttir, Isabelle Piechaczyk, Arco Renz, Jean-Paul Vienne e Dorothéa Vienne-Pollak PRODUÇÃO E AGENDAMENTO Alma Office, Anne-Lise Gobin, Alix Sarrade, Camille Queval & Andrea Kerr ADMINISTRAÇÃO Etienne Hunsinger & Giovanna Rua EXECUTIVE PRODUCER DACM COPRODUÇÃO Nanterre-Amandiers, Centre Dramatique National / Maillon, Théâtre de Strasbourg – Scène Européenne / Wiener Festwochen / Manège, Scène Nationale – Reims / Théâtre National de Bretagne / Centre Dramatique National Orléans/Loiret/Centre / La Filature, Scène Nationale – Mulhouse / BIT Teatergarasjen, Bergen. Support: CCN2 – Centre Chorégraphique National de Grenoble / CND Centre National de la Danse DEDICADO A Kerstin A COMPANHIA GISÈLE VIENNE É APOIADA PELO MINISTÉRIO DA CULTURA E DA COMUNICAÇÃO DA FRANÇA - DIREÇÃO REGIONAL DE ASSUNTOS CULTURAIS GRANDE LESTE, PELA REGIÃO GRANDE LESTE E PELA CIDADE DE ESTRASBURGO. PARA TURNÊS INTERNACIONAIS, O GRUPO TEM APOIO DO INSTITUT FRANÇAIS. GISÈLE VIENNE É ARTISTA ASSOCIADA NO NANTERRE-AMANDIERS, CENTRO DRAMÁTICO NACIONAL, E NO THÉÂTRE NATIONAL DE BRETAGNE, DIRIGIDO POR ARTHUR NAUZYCIEL. ESTE ESPETÁCULO É APOIADO PELO CONSULADO GERAL DA FRANÇA EM SÃO PAULO E PELO INSTITUT FRANÇAIS

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JERK [BABACA] Gisèle Vienne

FRANÇA, 2008 | 55min | CLASSIFICAÇÃO INDICATIVA 18 ANOS

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O solo, fruto da parceria entre o escritor americano Dennis Cooper e a diretora francoaustríaca Gisèle Vienne, é uma reconstrução imaginária, estranha e sombria dos crimes cometidos pelo serial killer Dean Corll (1939-1973), conhecido como “The Candy Man” (o homem dos doces). Com a ajuda dos adolescentes David Brooks e Elmer Wayne Henley, ele torturou, violentou e executou mais de 20 garotos na cidade de Houston, no Texas, em meados dos anos 1970. A peça, interpretada pelo ventríloquo francês Jonathan Capdevielle, mostra David Brooks cumprindo sua sentença de prisão perpétua. Na trama criada por Cooper, o criminoso aprendeu a arte dos fantoches e apresenta no presídio, para estudantes de psicologia, um show no qual reconstrói os assassinatos utilizando os bonecos. Com violência e humor, o espetáculo investiga as noções entre o fantástico e o real e questiona o que acontece quando a fantasia é de fato vivida. 83


Nossos sentidos são confundidos pelas visões horríveis e ridículas diante de nós: fantoches de mão em uma mistura de formas humanas e animais, cometendo atos grotescos de violência e sexo. GIANNI TRUZZI, Seattle Times

As alterações de voz e o manejo hábil dos bonecos, entre a distância e a crueldade, formam um ambiente sonoro e emocional muito perturbador. Um surpreendente multi-instrumentista, Jonathan Capdevielle incorpora um fenômeno esquizo tão desproporcional quanto seu assunto. ROSITA BOISSEAU, Le Monde

A PARTIR DO ROMANCE DE Dennis Cooper DIREÇÃO Gisèle Vienne DRAMATURGIA Dennis Cooper MÚSICA Peter Rehberg (música original) e El Mundo Frio of Corrupted DESIGN DE LUZ Patrick Riou INTERPRETADO POR E CRIADO EM COLABORAÇÃO COM Jonathan Capdevielle VOZES GRAVADAS Dennis Cooper e Paul P DESIGN DE FIGURINOS Stephen O’Malley e Jean-Luc Verna FANTOCHES Gisèle Vienne e Dorothéa Vienne Pollak MAQUIAGEM Jean-Luc Verna e Rebecca Flores FIGURINOS Dorothéa Vienne Polak, Marino Marchand e Babeth Martin PROFESSOR DE VENTRILOQUISMO Michel Dejeneffe COM O TIME TÉCNICO DO Quartz - Scène Nationale de Brest DIREÇÃO TÉCNICA PARA A CRIAÇÃO Nicolas Minssen TRADUÇÃO DE TEXTO DO INGLÊS PARA O FRANCÊS Emmelene Landon ILUSTRAÇÕES Jean-Luc Verna, Courtesy Air de Paris AGRADECIMENTOS Atelier de Création Radiophonique da France Culture, Philippe Langlois e Franck Smith. Para Sophie Bissantz pelos efeitos de som. Vozes e efeitos de som foram gravados no Atelier de Création Radiophonique. Também para Justin Bartlett, Nayland Blake, Alcinda Carreira-Marin, Florimon, Ludovic Poulet, Anne S - Villa Arson, Thomas Scimeca, Yury Smirnov, Scott Treleaven, a galeria Air de Paris, Tim/IRIS e Jean-Paul Vienne PRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO Anne-Lise Gobin, Alix Sarrade, Camille Queval e Andrea Kerr ADMINISTRAÇÃO Etienne Hunsinger e Giovanna Rua PRODUTOR ASSOCIADO DACM COPRODUÇÃO Le Quartz - Scène Nationale de Brest, Centre Chorégraphique National de Franche-Comté à Belfort dans le Cadre de l’Accueil-Studio e Centro ParragaMurcia. Com o apoio do Conselho Geral da Isère, Cidade de Grenoble e do Ménagerie de Verre no âmbito do Studiolab A COMPANHIA GISÈLE VIENNE É APOIADA PELO MINISTÉRIO DA CULTURA E DA COMUNICAÇÃO DA FRANÇA - DIREÇÃO REGIONAL DE ASSUNTOS CULTURAIS GRANDE LESTE, PELA REGIÃO GRANDE LESTE E PELA CIDADE DE ESTRASBURGO. PARA TURNÊS INTERNACIONAIS, O GRUPO TEM APOIO DO INSTITUT FRANÇAIS. GISÈLE VIENNE É ARTISTA ASSOCIADA NO NANTERRE-AMANDIERS, CENTRO DRAMÁTICO NACIONAL, E NO THÉÂTRE NATIONAL DE BRETAGNE, DIRIGIDO POR ARTHUR NAUZYCIEL ESTE ESPETÁCULO É APOIADO PELO CONSULADO GERAL DA FRANÇA EM SÃO PAULO E PELO INSTITUT FRANÇAIS. FOTO S A L A I N M O N OT

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ESTRANHOS (QUA SE ) FAMILIARES POR MICHELE BICCA ROLIM

GISÈLE VIENNE PODE SER CONSIDERADA UMA ARTISTA MULTIDISCIPLINAR. Na universidade, estudou Filosofia e depois cursou a escola de marionetes (École Nationale Supérieure des Arts de la Marionnette, de Charleville-Mézières). Já realizou espetáculos de teatro e dança, edição de discos, instalações artísticas, exposições de fotografia, filme (Brando, 2014) e livro (40 Portraits, publicado em 2008 pela Éditions P.O.L.). Em suas obras observa-se o estranhamento como importante procedimento na construção da experiência artística. O “estranhamento” é um conceito de Sigmund Freud desenvolvido no ensaio Das Unheimlich. Nele, o pai da psicanálise propõe um jogo dúbio com a palavra alemã “heimlich”, ampliando seu sentido original e dele desdobrando seu contraponto, o “unheimlich”. A palavra alemã unheimlich é evidentemente o oposto de heimlich, heimisch, vertraut [doméstico, autóctone, familiar], sendo natural concluir que algo é assustador justamente por não ser conhecido e familiar. Claro que não é assustador tudo o que é novo e não familiar; a relação não é reversível. Pode-se apenas dizer que algo novo torna-se facilmente assustador e inquietante; algumas coisas novas são assustadoras, certamente não todas. Algo tem de ser acrescentado ao novo e não familiar a fim de torná-lo inquietante. (FREUD, 2010, p. 331-332)

O estranho é uma experiência psíquica, vivida pelo eu que sofre um processo temporário de não reconhecimento daquilo que normalmente lhe é familiar. O desapontamento diante da privação do familiar é fonte de sofrimento, de atrito cognitivo. O estranho é percebido como um 86


deslocamento do sujeito diante de sua paisagem habitual, desloca-o de seu próprio habitat, exila-o dentro de casa. O conceito de estranhamento tem sido apropriado livremente pela teoria e crítica de arte desde o Modernismo, encontrando na sensibilidade estética um campo infinito de aplicações. É um conceito da ordem do desconforto e do desvio, da produção de sentimentos difíceis, mas que, ainda assim, nos levam à comoção estética quando orquestrados com habilidade poética. O efeito de estranheza na obra de Vienne é suscitado pelas relações de associação e dissociação que a encenadora estabelece no palco, que acaba por produzir um sentimento de distorção do tempo e dos sentidos. Michele Bicca Rolim é jornalista, pesquisadora e crítica teatral, doutoranda em Artes Cênicas pela UFRGS. É editora do site AGORA Crítica Teatral e autora do livro O que Pensam os Curadores de Artes Cênicas (editora Cobogó).

Essa metodologia de trabalho pode ser percebida em suas duas obras que chegam, pela primeira vez ao Brasil, na MITsp 2020. Os trabalhos são de épocas distintas: Babaca (Jerk) estreou em 2008 e Multidão (Crowd) é de 2017. Em ambos os espetáculos, ela está acompanhada do escritor Dennis Cooper e o do DJ britânico Peter Rehberg. Também foram creditadas pelo trio: Apologize (2004), Une Belle Enfant Blonde (2005) e Kindertotenlieder (2007). Em Babaca (Jerk), Vienne encena o texto de Dennis Cooper explorando a técnica do teatro de animação em montagem, com bonecos de luva para recontar a história do serial killer estadunidense Dean Corll, que em meados dos anos 1970 matou mais de vinte meninos no estado do Texas, com a ajuda de dois adolescentes, David Brooks e Wayne Henley – ambos condenados à prisão perpétua pelos crimes que cometeram. Em uma reconstituição imaginária, o performer Jonathan Capdevielle assume o papel de David Brooks, como se este encenasse sua própria história, reconstituindo os assassinatos de Dean Corll – utilizando bonecos ao interpretar todos os papéis – para uma plateia formada por um grupo de psicólogos no presídio onde cumpre pena. Os temas propostos na cena – a sexualidade e a violência – contrapõem-se às características que comumente ligamos ao teatro de animação, marcado pelo lúdico e pela fantasia. No nosso imaginário, o teatro de bonecos está relacionado a elementos do universo infantil, mas na peça eles estão ali para contar uma história de estupro e tortura. A familiaridade do universo imaginativo dos fantoches e das marionetes é deslocada para a narrativa linear e confessional das atrocidades cometidas. O estranhamento surge como produto desse paradoxo, em que ambos – a fantasia dos bonecos e a violência do relato factual – refiguram-se na percepção do espectador, demovendo suas expectativas. 87


A montagem de Gisele Viènne parece desconstruir o elemento sagrado subjacente ao teatro de animação. Esse é o resultado técnico e artístico de uma longa linhagem de rituais e práticas de cunho mágico-religioso. O teatro de sombras, por exemplo, já era feito nas cavernas, assim que o homem começou a dominar o fogo. O boneco muitas vezes era usado em rituais antigos, para “teatralizar” a caça e desejar assim o sucesso da mesma. Figuras esculpidas, entalhadas, acopladas ao corpo do homem ou projetadas em sombras, acompanham nossa civilização desde seu primórdio e deixam vestígios presentes não apenas em sítios arqueológicos, mas também na construção simbólica do mundo (...)”. Perdendo seu vínculo com o sagrado, pouco a pouco, a animação de bonecos foi adquirindo maior espaço como manifestação teatral, elaborando convenções sistêmicas, apropriando-se de conhecimentos oriundos das artes estáticas e dinâmicas e lutando por se consolidar como um gênero artístico (BALARDIM, 2015, p.187).

Atualmente, e em especial no Oriente, ainda persiste a animação de bonecos e de sombras como prática sagrada. No Ocidente, a prática foi se consolidando como um gênero artístico e, aos poucos, foi se atribuindo também uma visão limitante e preconceituosa de que o teatro de formas animadas era destinado apenas ao universo infantil e educacional. Muitos artistas vêm rompendo com essa leitura1 e Gisèle Vienne percorre esse caminho, friccionando esse universo considerado por um público não especialista como, majoritariamente, “infantil” com relatos da violência humana. Com isso, a diretora possibilita que olhemos com outros olhos para a violência que nos acompanha desde a origem primitiva do homem. TEMPO MÍTICO Praticamente uma década depois de encenar a violência extrema com seus bonecos em Babaca (Jerk), Viènne oferece uma visão diferenciada da violência em Multidão (Crowd). Estou interessada nos diferentes tipos de comportamento violento e em como o grupo sabe como administrá-lo, absorvê-lo ou não. (...) A questão mais essencial para mim não é como evitar a violência, mas sim como reconhecer as violências inerentes ao homem civilizado e como ele pode expressá-las sem comprometer a comunidade. (VIENNE, 2017; tradução nossa).

Multidão (Crowd) surge da tentativa de remontar Sagração da Primavera, peça que Nijinsky, Stravinsky e Roerich estrearam em 1913 no Théâtre des ChampsElysées. Segundo Vienne (2018), o que a interessava em Sagração da Primavera era a dimensão sociológica da peça – os vários elementos típicos da festa pagã e a estrutura dramatúrgica do ritual. E, quando o projeto não decolou, ela 88


percebeu que poderia encontrar esses elementos e essa estrutura, de certa forma, na raves contemporâneas. O tema proposto na obra traz referência ao sagrado nas sociedades contemporâneas – algo que tem sido uma característica recorrente nas suas produções, como vimos em Babaca (Jerk). Um dos teóricos com o qual a diretora dialogou na construção da cena é Bernard Rimé, psicólogo e investigador da Universidade de Lovaina, Bélgica, que, a partir da teoria dos rituais coletivos de Émile Durkheim (1912), tem analisado as consequências psicossociais da partilha de emoções em situações interpessoais e em rituais coletivos como as cerimônias religiosas, os eventos desportivos e as celebrações festivas. Particularmente importante no contexto da visão de Durkheim é a ideia de que, nestes contextos, a consciência de cada indivíduo ecoa a de um outro. Qualquer expressão de emoção entre os participantes desperta vividamente sentimentos análogos nas pessoas em seu redor, acontecendo assim um estímulo recíproco da emoção. Esse processo circular é particularmente propício a criar um estado colectivo de comunhão emocional, no qual a importância do self de cada indivíduo é diminuída, e a sua identidade colectiva é reforçada. Experimentam assim unidade e semelhança. É desta forma que, segundo Durkheim, os rituais sociais possuem a capacidade de aumentar o sentimento de pertença ao grupo e de integração social dos participantes. (RIMÉ, 2008, p. 6)

Multidão (Crowd) transpõe o público para a atmosfera de uma festa rave. Em cena, quinze jovens bailarinos, com roupa desportiva e latas de cerveja na mão, encontram-se para ouvir música, dançar e conviver. O palco remete a chácaras localizadas longe da cidade, com terreno arenoso, em grandes espaços descampados. Há copos de plástico e pacotes de comida espalhados pelo chão. O ambiente remonta às festas do início dos anos 1990 em Berlim. A coreógrafa, aos 16 anos, foi estudar na capital da Alemanha, em 1993, convivendo muito com a cultura do techno. A música eletrônica que se ouve na peça é um techno dos anos 1980 e 1990, composta por discos importantes de músicos reconhecidos no cenário de Detroit, entre outros, com Jeff Mills e outras pessoas da Underground Resistance, como Manuel Göttsching. A seleção é assinada pelo músico britânico Peter Rehberg. 1 Em Métamorphoses. La Marionnette au XXe siècle, Henryk Jurkowski já analisava que, na década de 1960, o teatro de animação buscava romper paradigmas, se repensar e alargar suas fronteiras.

Para dar sentido narrativo às movimentações no palco, Viènne chamou o escritor Dennis Cooper para escrever uma biografia para cada bailarino. Trata-se de um “subtexto” que a plateia não ouvirá, mas que é, em parte, inteligível pela movimentação cênica. Os quinze bailarinos estarão em cena encenando uma personagem acompanhada de sentimentos e um contexto biográfico específicos. 89


Dessa maneira, ela se vale dos fundamentos teóricos da montagem cinematográfica, que surge com a “libertação” da câmera no lugar do espectador. Ou seja, mesmo sentado nas poltronas, o espectador tem a mobilidade perceptiva de criar sua própria história a partir de uma edição pessoal do que está vendo, de modo que, dependendo de qual bailarino o espectador escolher para fixar mais o seu olhar, este vai interagir com o espetáculo por meio de uma determinada história, dado que as narrativas individuais de cada personagem são autossuficientes. O que mais chama a atenção nesse trabalho é a sensação de estranhamento que vem da tensão entre espaço e tempo. No momento em que os intérpretes entram em cena, seus movimentos estão desacelerados, em uma espécie de slow motion e em alguns momentos ficando até “congelados”, provocando uma dilatação do espaço-tempo. Esse jogo de ritmos provoca uma forte sensação de distorção temporal. Não se trata apenas de um efeito de câmara lenta ou de mimetizar a forma lenta de um movimento real, a ideia é dissecar as ações dos bailarinos e das situações em cena. A coreógrafa busca romper certos padrões rítmicos convencionais para com isso dilatar o tempo-espaço e aguçar a percepção do espectador, facilitando a contemplação dos bailarinos em relação à movimentação de seus corpos e à evolução de seus personagens. Através dos mesmos movimentos, são sobrepostas várias temporalidades, provocando a sensação para o espectador de um ambiente em que coabitam sonho e realidade. Essas sobreposições de temporalidades são decorrentes, novamente, de planos cinematográficos, como se o movimento fosse dissecado em frames. Podemos perceber a influência de Nijinsky (da Sagração da Primavera) na movimentação dos atores. Em 1924, ele dirigiu Le Train Bleu para os Ballets Russes de Diaghilev. Na obra, os bailarinos moviamse em câmara lenta. Naquele momento, a dança moderna estava ligada ao então recém-inventado cinema, com a dramaturgia da dança passando a ser construída a partir de procedimentos de edição, multiplicação de seus focos ou ainda velocidades alteradas (CALDAS, 2008). Esse efeito de estranhamento possibilita que os espectadores se relacionem com um outro tempo, um “tempo mítico”, de ordem não cronológica, que corresponde a uma espécie de ritual de retorno às origens. De fato, nas raves, há a instauração de uma realidade paralela, montada a partir de um lugar isolado repleto de natureza e com várias horas de duração, incentivando o público a se desvencilhar dos papéis e das obrigações sociais, imergindo no fluxo sensorial. Através da batida da música e com o auxílio das drogas, os participantes buscam a transcendência nesses ambientes. 90


O espectador acessa deliberadamente um outro tempo, é algo novo, “inquietante”2 , que nos assusta, mas também nos seduz. Somos envolvidos em uma atmosfera de choque, desorientação, desvio, inquietação, absurdo… São os elementos que extraímos do impacto daquilo que Freud nomeou como "o estranho". Esse conceito, uma vez apropriado pela estética do século XX, nunca mais saiu do roteiro de nossas reflexões sobre a arte, tampouco do horizonte de nosso juízo diante do artístico. O estranho dá nome a uma percepção da ordem do desconfortável, do desviante, do deslocamento de sentidos. Nas obras de Vienne vemos exemplos pródigos de como o estranhamento ainda é uma categoria fundamental para a experiência estética atual.

REFERÊNCIAS BALARDIM, Paulo. Teatro de Bonecos ou Teatro de Animação? Urdimento, v.2, n.25, p.165–175, dezembro de 2015. Disponível em <http:/dx.doi.org/10.5965/1414573102252015165>. Acesso em 20 jan. 2020. BERNARD, Rimé. Consequências Psicossociais na Partilha de Emoções em Situações Interpessoais e em Rituais Colectivos, Cadernos de Estudos Africanos. Cadernos de Estudos Africanos, n. 15, 2008, p. 15–30. Disponível em <http://journals.openedition.org/ cea/358>. Acesso em 20 jan. 2020. CALDAS, Paulo. Imagem e Memória: Breve Esboço Sobre a Dança e o Audiovisual. In: História em movimento: biografias e registros em dança (org). Instituto Festival de Dança de Joinville, Pereira R. Meyer S. Nora S. Joinville, 2008. FREUD, Sigmund. Além do Princípio do Prazer. In: FREUD, Sigmund. Obras Completas: História de uma neurose infantil (“o homem dos lobos”); Além do Princípio do Prazer e outros textos (1917–1920). v. 14. Tradução: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

2 “Inquietante” se refere à tradução de Das Unheimlich, de Freud da editora Cia das Letras de 2010. Uma edição mais nova da Autêntica Editora de 2019 traduz com o neologismo “infamiliar”.

VIENNE, Gisèle. Gisèle Vienne Dá-nos o Transe a que Temos Direito, Público, Dezembro, 2018. Disponível em <https://www. culturgest.pt/pt/programacao/crowd-gisele-vienne>. Acesso em 20 jan. 2020. _____________. Violence Positive et Rave Party... Comment Gisèle Vienne Électrise la Danse Contemporaine, Télérama, dezembro, 2017. Disponível em <https://www.telerama.fr/sortir/violencepositive-et-rave-party...-comment-gisele-vienne-electrise-ladanse-contemporaine,n5391055.php>. Acesso em 20 jan. 2020.

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O PEDIDO THE CLAIM

Mark Maughan e Tim Cowbury REINO UNIDO, 2017 | 1h15min | CLASSIFICAÇÃO INDICATIVA 12 ANOS

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Primeira parceria entre o diretor Mark Maughan e o dramaturgo Tim Cowbury, o espetáculo explora as falhas e injustiças dos sistemas de asilo para refugiados. A peça parte da história de Serge, exilado do Congo, que se depara com um oficial de imigração britânico. A conversa, de início simpática e acolhedora, logo se mostra um tanto truncada. Apesar de conhecer a língua do refugiado, o agente parece não compreendê-lo nem deixá-lo contar sua história. Os desentendimentos aumentam com a chegada de uma segunda oficial, que não fala o francês de Serge, e a entrevista do imigrante, com questionamentos burocráticos e interpretações equivocadas. Num tom cômico e absurdo, a narrativa investe na força do texto, repleto de jogos de palavras. Assim, questiona a funcionalidade dos organismos de asilo, presos a um sistema kafkiano – o título da peça, por sinal, é uma referência a O Processo, livro de Franz Kafka–, e discute a nossa falta de escuta do outro. 93


HISTÓRICO

The Claim [O Pedido] é uma aula magna sobre os abismos da língua, um tenso, engraçado e, mais do que tudo, inquietante trabalho, que nos lembra como a interpretação, os pontos de vista e nossos sistemas de “negro e branco” não dão espaço para pessoas vulneráveis. DAISY BOWIE-SELL, What’s on Stage

O viés de confirmação, a ignorância com questões básicas e as reações imediatistas garantem que o processo kafkiano ganhe força de forma terrível e memorável. DOMINIC CAVENDISH, The Telegraph

Cowbury apresenta várias questões. Uma é como a língua é sempre um campo minado: mesmo quando os dois oficiais se chamam de “partners” (parceiros), o termo fica aberto a várias interpretações. Cowbury também sugere que nenhuma autoridade de fato ouve o que as pessoas têm a dizer: enquanto a vida de Serge está em risco, os dois oficiais fazem seus próprios jogos de poder ou discutem sobre possíveis férias na ilha grega de Ios. E como, questiona a peça, eles podem medir a verdade sobre a história de Serge se eles admitem florear suas próprias narrativas?

Um dos fundadores da companhia Made in China, onde integrou produções como Get Stuff Break Free (National Theatre), Gym Party (Battersea Arts Centre) e Double Double Act (Unicorn Theatre), o dramaturgo Tim Cowbury estudou dramaturgia na Royal Court Theatre e coordenou grupos de escrita no Arcola Theatre e no Battersea Arts Centre. Cowbury tem mestrado em escrita dramática pela Goldsmiths University, onde recebeu uma bolsa de pesquisa na área de artes e humanidades. Já o diretor Mark Maughan estudou letras modernas e medievais na Universidade de Cambridge e tem mestrado em direção teatral pela Universidade de Londres. Ele encenou espetáculos como Unwritten Letters (Bush Theatre) e C’Est la Vie (The Coronet Theatre). A pesquisa de O Pedido, primeira colaboração entre Cowbury e Maughan, também se desdobrou na videoinstalação I Am Just My Words, série de entrevistas com imigrantes que buscaram asilo.

TEXTO Tim Cowbury DIREÇÃO Mark Maughan ELENCO Tonderai Munyevu, Nick Blakeley e Indra Ové CENOGRAFIA Emma Bailey DESIGN DE SOM Lewis Gibson DESIGN DE LUZ Joshua Pharo PRODUÇÃO Lauren Mooney ESTE ESPETÁCULO É APOIADO PELA CULTURA INGLESA

MICHAEL BILLINGTON, The Guardian

FOTO S J O H N H U N T E R

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O PEDIDO E O MURO SONORO

POR WELLINGTON JÚNIOR

"I am just my words." Fala da personagem Serge no texto O Pedido

A FORMAÇÃO ESCRAVAGISTA, PATRIARCAL E COLONIALISTA do nosso país, entre outras heranças, nos legou a cegueira funcional. As estruturas de poder hegemônicas que nos foram plantadas são enraizadas de tal modo que, frequentemente, sequer somos capazes de percebê-las com o estranhamento que lhes deveria ser cabido. Essas mesmas estruturas estão espalhadas pelo mundo europeu e estão explodindo cada vez mais a partir dos processos migratórios. O espetáculo O Pedido (The Claim), com dramaturgia de Tim Cowbury e direção de Mark Maughan, apresenta Serge, um congolês que deseja obter asilo no Reino Unido e tem de passar por uma entrevista para conseguir seu objetivo. O homem A e a mulher B fazem um verdadeiro interrogatório para compreender a história desse africano. Mas o que está realmente em jogo é o processo de poder da linguagem, como afirma o autor em uma entrevista sobre o processo de criação: Sempre me interessou como a linguagem e o poder se cruzam e as maneiras pelas quais a origem do falante pode afetar a forma como você pensa, sente e vê pessoas de outros lugares. Em 2014, Mark Maughan (diretor de O Pedido) me perguntou se eu estava interessado em escrever um texto teatral sobre migração. Na mesma época, eu estava em uma conferência na França, assistindo a alguém falar através de um tradutor. Eles estavam apenas me apresentando talvez uma ideia criativa, e esta ideia deve ter sido um pouco ruim porque meu cérebro fez algumas perambulações sérias! Afastei-me das palavras e fiquei impressionado com a textura interessante e o potencial dramático da tradução simultânea: o imediatismo, a pressão para ser preciso, a possibilidade de dar errado – e as medidas iguais de comédia e tragédia que poderiam ser produzidas a partir daquele processo. Logo depois, conversei com um amigo que trabalhava com refugiados, que enfatizou a centralidade da interpretação para o absurdo de falta de comunicação que pode ocorrer nas entrevistas de asilo no Reino Unido. Todos os refugiados passam por uma curta (entrevista de triagem), seguida por uma mais longa (entrevista substantiva) – então senti que era a única coisa a se escrever 1. (INTERVIEW ..., 2017, tradução minha)

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Wellington Júnior é bacharel em Estética e Teoria do Teatro pela Unirio, professor de teatro, crítico e encenador. Organizador do livro Memórias da Cena Pernambucana (Vol.1) e idealizador e organizador do Seminário Internacional de Crítica Teatral de Recife (ao lado da Renascer Produções Culturais).

O Pedido se dedica a revelar a estrutura de poder presente no jogo de linguagem destas entrevistas. Vemos uma perversa operação de apagamento das histórias desses refugiados a partir da tradução desse homem branco europeu. Tim Cowbury é um dramaturgo que estudou no Royal Court Theater e é também cofundador da Made In China, uma companhia de teatro que tem como fundamento ter o dramaturgo em seu processo de criação. O diretor Mark Maughan trabalhou no National Theatre, Forest Fringe and Soho Theatre. Dirigiu os espetáculos Petrification, How Was It for You, Pig e Address Unknown. Mark Maughan também privilegia em seus processos de criação a presença do dramaturgo contribuindo com a construção das cenas e nas investigações conceituais. Mark Maughan em outra entrevista apresenta seu processo de criação compartilhado com o autor Tim Cowbury e observamos como a forma da entrevista foi o foco da escrita cênica e dramatúrgica:

Então, de nossa pesquisa inicial, encontramos o sistema de asilo, mais especificamente a entrevista. Focamos na segunda entrevista pela qual passam os que procuram asilo no processo. Ela é uma bagunça hedionda, é a única maneira de descrever essa entrevista. É que, quanto mais descobrimos, mais percebemos o que acontece lá e a falta de informações que as pessoas têm, a falta de apoio em termos de apoio jurídico, apoio à saúde mental e física. As pessoas vão direto para a entrevista completamente inconscientes do que está prestes a acontecer com elas. Então eu acho que quando descobrimos o que acontecia, sabíamos que absolutamente tinha que ser o foco da peça. O que é singular em O Pedido é que o texto não se concentra tanto nas histórias das pessoas, mas no sistema que se aplica quando as pessoas chegam ao Reino Unido ou estão no Reino Unido há algum tempo e agora vão reivindicar asilo. Esse é o foco da peça, porque isso é algo que está acontecendo principalmente em residências do Croydon, escritório central desses asilos. E para nós, era importante focar, porque poucas pessoas sabem disso2. (SHERRINGTON, 2018, tradução minha)

O trabalho de Cowbury e Maughan evidencia como a privação da linguagem nesses processos de tradução são a construção de um muro de palavras que obriga tentativas de aproximação com o outro, mas também impõe um processo de afastamento e aprisionamento de grupos vulneráveis de refugiados. Toda uma grande população de migrantes sofre com essa ausência de referências de sua linguagem. E esse muro sonoro impõe negligências públicas com essas populações. O Pedido cria um painel que alude à crise desse sistema de asilo no Reino Unido, construindo-o simbolicamente por meio de figuras políticas transfiguradas nas linguagens das personagens dos entrevistadores. Enquanto a personagem Serge vai tentando criar atos efêmeros de fala como dúvidas, interrupções e novas narrativas sobre a África para ganhar uma 97


proporção significativa que resulte em ações concretas contra os discursos dos entrevistadores. Nesses momentos observamos como a interlocução entre o intra e o extra-estético evidencia-se na medida em que as dimensões sociais, políticas e artísticas interpenetram-se na elaboração dos questionamentos de Serge. Tais questionamentos são elaborados como uma reencenação do passado, na qual o congolês recorre à memória coletiva de seu país através de sua vivência familiar. Essas frestas produzidas por Serge envolvem uma interpretação particular da experiência coletiva que expõe o desafio de tensionar representações coloniais nas figuras desses entrevistadores que são normalmente brancos, heterossexuais e europeus. A intersecção dos discursos coloniais e suas rasuras são resultado de um cruzamento de dados históricos oriundos de contextos sociais distintos e uma explosão de narrativas decoloniais. A noção de uma identidade que se desloca contrapõe-se à naturalização dessas figuras políticas que representam o povo. As noções de raça, gênero e subalternidade são utilizadas como categorias relacionais, constituídas politicamente e que incidem no imaginário social, de acordo com o contexto histórico e as expectativas de cada sociedade, e assim podem trazer frestas nas narrativas dominantes. O Pedido manifesta questões como relações de poder, representações sociais, colonialismo, patriarcado e protagonismo. Essas questões também estão muito presentes na arte contemporânea de mulheres artistas ladino-amefricanas, quem vêm se atendo cada vez mais às suas próprias narrativas, buscando revistar sua ancestralidade e a opressão às quais foram submetidas no intuito de reescrever novas histórias, agora sob a perspectivas das próprias viventes. As falas ressignificadas de Serge atribuem aos discursos dos entrevistadores uma nova linguagem. A ironia é uma forma de se comunicar sob uma nova perspectiva, na qual a fala original, quase extinta, proporciona protagonismo à opinião e intervenção das pessoas, gerando um novo discurso com novos tensionamentos. O Pedido se utiliza de uma linguagem “agressiva”, “feia”, “maleducada”, “depredadora” para ecoar outras vozes: da rua, do povo. Pensando em uma língua fronteiriça como processo de tensionamento histórico dos discursos, vemos como a pesquisadora latina Glória Anzaldúa desmonta a ambiguidade e dá o lugar à língua mestiza.

1 I’ve always been interested in how language and power intersect, and the ways that where you’re from can impact on how you think, feel and see people from elsewhere. Way back in 2014, Mark Maughan (director of The Claim) asked me if I was interested in making a piece about migration. Around the same time, I was at a conference in France watching someone speak through an interpreter. They were just pitching a creative idea, and the idea must have sucked a bit because my brain did some serious wandering! I tuned out from the words and was struck by the interesting texture and dramatic potential of simultaneous translation: the immediacy, the pressure to be accurate, the scope for it to go wrong – and the equal measures of comedy and tragedy that might be wrought from that. Soon after, I spoke to a friend who works with refugees, who emphasised the centrality of interpreting to the absurdity of miscommunication that can occur in the UK asylum interviews. The more I heard about these – all refugees go through a shorter one (screening interview) followed eventually by a longer one (substantive interview) – the more I felt it was the only thing to write about.

Anzaldúa incorpora o spanglish como o código linguístico que a representa no grupo social. A língua chicana utilizada pela nova mestiça não é incorreta, como rotula a cultura dominante,

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mas uma língua viva que representa a hibridez do sujeito fronteiriço, seus pensamentos, sentimentos; além de ajudar a desconstruir as relações de poder ordenadas pela linguagem da cultura hegemônica. (A.C. DOS SANTOS, 2014, p.20)

2 Then from our initial research, we came across the asylum system, more specifically the interview. Which is the second interview those seeking asylum go through and the process. And that is sort of just a hideous mess, is the only way to describe that interview. It’s just, the more we found out about it, the more we realised what goes on there and the lack of information people have, the lack of support, in terms of legal support, mental and physical health support. People go straight into the interview completely unaware of what’s about to happen to them. So I think that when we discovered that happened, we knew that absolutely had to be the focus of the piece. What’s unique about The Claim is it doesn’t so much focus on people’s stories, it’s more about the system that clicks into place when people arrive into the UK or have been in the UK a while and are now going to claim asylum. That’s the focus of the piece because that is something that is happening mainly in housing in Croydon, the home office. And for us, that was important to focus on, because so few people know about it.

Esse processo é semelhante ao que acontece com a personagem de Serge no seu desejo de enfrentamento dos discursos dos entrevistadores a partir de sua produção de frestas nas narrativas dominantes. A reformulação de uma nova narrativa, modificando imagens e estigmas para criar novas narrativas dissidentes e uma outra forma de encarar as relações de poder, são frestas que as populações minorizadas encontraram de detonar os valores e sistemas hegemônicos. Assim esses muros sonoros são cada vez mais rasgados e quebrados. O Pedido é essa fresta que tenta fortemente deter o poder de decisão hegemônico sobre o destino de refugiados na Europa.

REFERÊNCIAS ANZALDÚA, Glória. La conciencia de la mestiza / rumo a uma nova consciência. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (Org.). Pensamento Feminista: Conceitos Fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019, p. 323-338. DOS SANTOS, Ana Cristina. Fronteiras da identidade: o texto híbrido de Glória Anzaldúa. Revista SURES. Paraná, n.1, 2013, p.1-22. INTERVIEW: Tim Cowbury, Writer of The Claim. Theatre Weekly Press. Londres, 29 de nov de 2017. Disponível em: <https:// theatreweekly.com/interview-tim-cowbury-writer-of-theclaim/>. Acesso em 29 jan. 2020. SHERRINGTON, B.L.. Interview: Mark Maughan on ‘The Claim’. Everything Theatre. Londres, 12 de jan de 2018. Disponível em: <http://everything-theatre.co.uk/2018/01/theclaim-mark-maughan-shoreditch-town-hall-interview.html>. Acesso em 29 jan. 2020.

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O QUE FAZER DAQUI PARA TRÁS João Fiadeiro

PORTUGAL, 2015 | 60min | CLASSIFICAÇÃO INDICATIVA 12 ANOS

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Em O que Fazer Daqui para Trás, João Fiadeiro explora o tempo – duracional, suspenso, intervalar – e foca a sua atenção naquilo que fica, no que foi esquecido, no “resto”. O resto cria o vazio: é a prova da ausência de uma presença – ou melhor, é a presença de uma ausência. É no resto que se encontram os traços e os rastros para dar início à impossível tarefa de reconstruir o mundo, uma e outra vez. O resto é também o que está entre o corpo e a presença do outro, uma fuga permanente para coisas que ainda não são, para o que as coisas podem ser. O espetáculo, que faz uma crítica à urgência e à rotina acelerada, se posiciona entre a dúvida e a possibilidade. Nele, o não dito é mais importante do que o que se diz, a ausência se sobrepõe à presença e o drama não vem do teatro, mas daquilo que os corpos – dos performers e dos espectadores – podem, têm e trazem. 101


HISTÓRICO

Em O que Fazer Daqui para Trás, há uma regra performativa, inteligente e constante, com implicações decisivas e valiosas (...) O palco despido, a rarefacção de objetos e o recurso a um só princípio coreográfico são indícios de um “tempo sem” – sem dinheiro, sem coisas, sem direitos... – e talvez do equilíbrio esgotante da corrida pela sobrevivência. PAULA VARANDA, Ípsilon

A exaustão genuína – os artistas estão realmente dando voltas pelo teatro – torna o discurso desprovido de enfeites ou artifícios. Com exceção do microfone, o palco está totalmente vazio. Sinto que estou assistindo a uma coreografia do tempo, um teatro físico da memória. KATE MATTINGLY, Baywatch

Performer, coreógrafo e pesquisador, João Fiadeiro integra a geração de coreógrafos lusitanos que emergiu no fim dos anos 1980 e deu origem à Nova Dança Portuguesa. Suas peças navegam entre áreas (performance, dança e teatro), contextos (teatros, museus ou site specific) e formatos (coreografias, eventos ou conferências) e são encenadas em diversos países. Entre 1990 e 2019, foi o diretor artístico do Atelier RE.AL. Colaborou intensamente com a companhia Artistas Unidos, tendo dirigido Esperando Godot, de Samuel Beckett, Psicose 4:48, de Sarah Kane, e Nightsongs, de Jon Fosse. Nos anos 1990, Fiadeiro desenvolveu e sistematizou a sua pesquisa sobre improvisação e composição, chamada Composição em Tempo Real, método que o notabilizou. Entre 2011 e 2014, dirigiu com a antropóloga Fernanda Eugénio o projeto AND_Lab. Em 2019, foi curador ao lado de Romain Bigé da exposição Esboços de Técnicas Interiores, primeiro olhar retrospectivo do trabalho de Steve Paxton.

CONCEPÇÃO E DIREÇÃO João Fiadeiro ASSISTÊNCIA DE DIREÇÃO Carolina Campos PERFORMANCE E COCRIAÇÃO Adaline Anobile, Carolina Campos, Márcia Lança, Iván Haidar e Daniel Pizamiglio DESENHO DE LUZ Colin Legran DIREÇÃO TÉCNICA Leticia Skrycky COPRODUÇÃO Teatro Maria Matos (Lisboa) e Teatro Rivoli (Porto) APOIO INSTITUCIONAL Câmara Municipal de Lisboa RESIDÊNCIAS ARTÍSTICAS Arquipélago / Centro de Artes Contemporâneas (Açores), Santarcangelo Dei Teatri (Itália) e Atelier Real (Lisboa) ESTE ESPETÁCULO É APOIADO PELO GOVERNO DE PORTUGAL | DGARTES FOTO S PAT R I C I A A L M E I DA

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IN A EMERGÊNCIA DAS

CERTEZAS

POR DANIEL TOLEDO

I

“Nos últimos 200 anos, o pensamento ortopédico, tanto à esquerda como à direita, e a razão indolente que lhe subjaz, atribuíram um sentido e uma direção à história assente numa concepção linear do tempo (progresso) e numa concepção evolucionista das sociedades (do subdesenvolvimento ao desenvolvimento). Com base nessa concepção, foi possível definir alternativas, determinar o movimento da história e também definir o seu fim, o estado final da evolução (...)”.1 II São muitas as formas possíveis de se aproximar do trabalho do artista português João Fiadeiro (1965). Bailarino, performer e coreógrafo, também professor, pesquisador e editor, além de agente cultural e diretor da Companhia RE.AL (1990-2019), Fiadeiro atuou ainda, ao longo de 15 anos, como gestor artístico de um importante espaço-plataforma cultural em Lisboa: o Atelier RE.AL (2005-2019). 2

1 SANTOS, 2009, p. 461

III

2 Site oficial: <re-al.org>. Acesso em12 fev. 2020.

José João Fiadeiro Nascimento nasceu em Paris, cidade onde seus pais estiveram exilados durante a ditadura fascista em Portugal. Quando criança, viveu na Argélia, em El Salvador e no Brasil, até que em 1972 regressou com a família ao país natal. 104

3 Site oficial: <arquipelagocentrodeartes. azores.gov.pt>. Acesso em 12 fev. 2020. 4 SANTOS, 2009, p. 459


IV É como se alguém pudesse viver e trabalhar em uma casa confortável, um bom espaço de trabalho que pudesse gerar encontros, receber público, oferecer cursos e abrigar apresentações artísticas. Como se alguém pudesse viver e trabalhar nesse espaço e, de repente, ainda que insistisse um tanto, algum tempo depois, já não pudesse mais. V Daniel Toledo é dramaturgo, pesquisador, professor e crítico em artes cênicas, performance e artes visuais. Mestre em Sociologia da Arte pela UFMG, é fundador do coletivo T.A.Z. e integrante do coletivo Piolho Nababo. Autor das peças Nossa Senhora, Fábrica de Nuvens e Clínica do Sono.

O ano é 2015. Pela primeira vez em sua extensa trajetória, o Ateliê RE.AL deixa de ganhar apoio financeiro estatal, reduzindo atividades de pesquisa e programas de residência artística. VIII Com proposta e direção de João Fiadeiro, o espetáculo O que Fazer Daqui para Trás (2015) tem origem em meio a uma atmosfera de emergentes incertezas. O trabalho se inicia com uma breve residência artística no centro de artes contemporâneas Arquipélago, 3 em Açores, e reúne cinco performers de diferentes origens, entre antigos e novos colaboradores. O título da obra está dado desde o começo, mas a estrutura e o conteúdo ainda precisam ser construídos. IX “Muito da realidade que não existe ou é impossível é ativamente produzida como não existente e impossível. Para captá-la, é necessário recorrer a uma racionalidade mais ampla que revele a disponibilidade de muita experiência social declarada inexistente (a sociologia das ausências) e a possibilidade de muita experiência social emergente, declarada impossível (a sociologia das emergências).”4 X Alternando-se em cena, os performers Adaline Anobile, Carolina Campos, Márcia Lança, Iván Haidar e Daniel Pizamiglio nos apresentam corpos distintos, mas nivelados pela progressiva exaustão, assim como por trajes que poderiam se confundir com as roupas de pedestres dos arredores de algum teatro. Não são os sujeitos que importam, mas os acontecimentos. XI O que Fazer Daqui para Trás coloca em prática pressupostos e procedimentos 105


relacionados ao chamado método de Composição em Tempo Real, fruto de extensa pesquisa desenvolvida, sistematizada e experimentada desde 1995 por João Fiadeiro, ao lado de colaboradoras e colaboradores. XIV Ao longo da obra, somente as primeiras entradas e saídas dos performers são fixas, sendo as demais alternadas segundo o fôlego dos próprios atores e atrizes a cada apresentação. A partir de composições imprevisíveis entre cenas que também variam internamente, a estrutura e o conteúdo do espetáculo jamais se repetem por inteiro. O que se tem é uma escrita dramatúrgica intencionalmente “involuntária, inconsequente e emergente”.5 XV É possível que aconteçam 80 entradas e saídas, no decorrer de aproximadamente 60 minutos, ao longo dos quais os performers compartilham com o público breves fábulas, reflexões, ações e até mesmo somente aparições, que podem ser retomadas ou se esvair no tempo-espaço, nem sempre alcançando algum fim. XVII Há palavras que tornam mais presentes os corpos. Outras buscam presentificar o público e a situação teatral. Há palavras reais e ficcionais sobre o entorno, assim como reflexões políticas e poéticas sobre o mundo e o invisível. XVIII Chegamos, nos sentamos e esperamos. Apenas um pedestal e um microfone no palco. Alguém aparece e respira diante do microfone, ofegante. Recebemos a notícia de que estamos ligados por um fio – quiçá um fio de incerta espera. Alguém sai de cena, algum tempo se passa, chega outra pessoa. Reconhecemos que algo sempre pode acontecer de um modo diferente do que se espera. Mas o que esperamos? XX A exaustão dos corpos emerge como estratégia para que o acontecimento se imponha aos sujeitos. A corrida, como recurso para alcançar a exaustão. A fala, um modo de compartilhar com o público o estado dos corpos. 106

5 Fragmento de depoimento de João Fiadeiro a documentário sobre o processo de criação de O que Fazer Daqui para Trás, realizado por Stephan Jürgens, Carla Fernandes e Francisco Henriques. Disponível em <vimeo. com/250864855>. Acesso em 12 fev. 2020. 6 CRARY, 2014, p.132


XXII Ao coletivo interessa experimentar tensões entre presente, passado e futuro, rompendo estruturas fixas e lineares; os deslizamentos entre real e ficcional, entre luzes e sombras, ausência e presença; as hesitações, os lapsos de memória e os modos como são preenchidos; as relações entre centro e periferia e os fenômenos que acontecem simultaneamente. XXIII Somos lembrados que habitamos nossos corpos, mas também o teatro. Que habitamos o teatro, mas também a cidade e o mundo. Habitamos o mundo, mas também nos comunicamos com o invisível. XXIV Habitamos o espaço, mas também o tempo. XXV Somos acúmulos de tempo e espaço, assim como partes do universo e também do vazio que o habita. Corpos que acumulam e compartilham informações, sensações e experiências. Um conjunto de corpos que, enquanto esperam e escutam, se converte em comunidade. XIX “Misturada às contrariedades e frustrações, está a dignidade humilde e trivial da espera, de ser paciente por respeito aos outros, pela aceitação tácita do tempo compartilhado por todos. O tempo suspenso, improdutivo da espera, de esperar a nossa vez, é inseparável de qualquer forma de cooperação ou reciprocidade.”6 XXVIII Entre tempos distendidos e comprimidos, testemunhamos a perda de sentido da ação e da palavra, assim como de um ritmo de existência que mal nos permite a efetiva comunicação. Experimentamos aceleração e vazio, faltas e excessos, a poesia e a concretude do tempo, do espaço, da vida. XXX Por que corremos? 107


XXXI Onde queremos chegar, afinal? XXXII Será que vamos juntos? XXXIII Incertezas e emergências. E incertezas e emergências. E incertezas. XXXIV E ausências. XXXV “Estamos perante fenômenos que me interessam: quando a atenção se dilata ao ponto de perceber o que se passa nas margens.”7 XXXVI “A ideia de que os brancos europeus podiam sair colonizando o resto do mundo estava sustentada na premissa de que havia uma humanidade esclarecida que precisava ir ao encontro da humanidade obscurecida, trazendo-a para essa luz incrível. Esse chamado para o seio da civilização sempre foi justificado pela noção de que existe um jeito de estar aqui na Terra, uma certa verdade, ou uma concepção de verdade, que guiou muitas das escolhas feitas em diferentes períodos da história.” 8 XXXVII “Em vez de escolher entre continuar e parar, há sempre a hipótese de andar para trás. Ainda se está a continuar, mas em outra direção...”9 XXXIX “Continuamos a correr, só que agora existe um lugar onde queremos chegar: àquele ponto em que o corpo deixa de poder (de ter, de trazer), apresentandose (oferecendo-se) vazio, aberto, presente. Numa palavra: potente.”10

7 FIADEIRO in: FIADEIRO; BIGÉ, 2017, p. 188 8 KRENAK, 2019, p. 8 9 Fragmento de texto do espetáculo O que Fazer Daqui para Trás (2015). 10 FIADEIRO, 2015, disponível em re-al. org/2015/08/o-que-fazerdaqui-para-tras/. 11 SANTOS, 2009, p. 462

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XLVII “Nas condições em que hoje pode ser pensada, a concepção de um Ocidente não ocidentalista traduz-se em reconhecer problemas, incertezas e perplexidades e transformá-los em oportunidades de criação política emancipatória.”11 XLVIII É como se o microfone estivesse ali, e alguém achasse que não deveria falar nada. Que deveria ceder a vez, abrir espaço, aguçar a escuta, criar silêncio, comunicar-se, quem sabe, de outras maneiras, talvez com ações. Talvez com a ação de recuar diante do microfone – de dar um passo de ali para trás. E estranhar a ordem.

REFERÊNCIAS BOLTANSKI, Luc e Chiapello, Éve. O Novo Espírito do Capitalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2009. CRARY, Jonathan. 24/7 Capitalismo Tardio e os Fins do Sono. São Paulo: Cosac Naify, 2014. FIADEIRO, João; Bigé, Romain. Se Não Sabe Porque É que Pergunta? Revista Científica/FAP, vol.17, n.2, jul-dez/2017, p.177-198. KRENAK, Ailton. Ideias para Adiar o Fim do Mundo. São Paulo: Cia. das Letras, 2019. SANTOS, Boaventura de Souza. Um Ocidente Não Ocidentalista?: A Filosofia à Venda, a Douta Ignorância e Aposta de Pascal. In: Santos, Boaventura de Sousa; Meneses, Maria Paula (orgs.). Epistemologias do Sul. Coimbra: Almedina, 2009, p.445-486.

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TENHA CUIDADO BE CAREFUL

Mallika Taneja ÍNDIA, 2013 | 35min | CLASSIFICAÇÃO INDICATIVA 14 ANOS

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No solo, a artista Mallika Taneja desafia a noção de segurança que permeia a vida de mulheres na Índia. Ser cuidadosa em relação ao seu comportamento e às suas atitudes é tido como fundamental: é algo prescrito, absorvido e praticado com rigor para que sobrevivam sem riscos – como se elas fossem as responsáveis por evitar as brutalidades que as acometem. Munida da raiva pela violência cotidiana contra as mulheres, como o caso da fotojornalista vítima de estupro coletivo em Mumbai em 2013, a artista expõe de forma irônica e provocativa uma cultura machista que se esconde por trás de tradições morais e identifica as contradições no coração do progresso social da Índia. Utilizando uma porção de roupas, Taneja apresenta uma peça satírica que confronta a discrepância entre a maneira como as mulheres se vestem e as atrocidades praticadas contra elas. 111


HISTÓRICO Mallika Taneja é uma artista de teatro de Nova Délhi, na Índia, cujo trabalho lida com questões de experiências de gênero da cidade, saúde mental e sexualidade. Ela integra coletivos como Women Walk at Midnight, Women for Theatre e Sex Chat Roo. A peça Tenha Cuidado (Be Careful) fez uma turnê pela Europa e foi apresentada em locais como Austrália, Japão, Sri Lanka e Inglaterra. A peça é sua escolha política – seu protesto, sua pergunta e sua resposta. E é arriscado. Tão arriscado que a performance na Índia ainda se limita a pequenas comunidades e festivais.

CONCEPÇÃO E PERFORMANCE Mallika Taneja

P ANIMA, Business Line

Ligne Directe

O monólogo, com tons cômicos, traz à tona conflitos reais e lutas enfrentadas por mulheres de todo o mundo. As responsabilidades, os medos, a atenção indesejada de homens e a atenção desejada de homens “certos”. As camadas e camadas de roupa que ela veste espelham finamente as camadas e camadas que compõem ser uma mulher.

TURNÊ E PRODUÇÃO Meghna Singh Bhadauria DIVULGAÇÃO INTERNACIONAL Judith Martin e

ESTA PEÇA FOI CRIADA NO TADPOLE REPERTORY EM 2013 COMO PARTE DE SEU SHOW NDLS

DIMPLE PAU, Asian Culture Vulture

FOTO S S I S S E L S T E YA E R T E DAV I D WO H L S C H L AG

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O RASGO NA

ARMADURA

POR LAÍS MACHADO

TENHA CUIDADO (BE CAREFUL) EXPÕE O ABSURDO na argumentação que tenta justificar a violência sexual infringida às mulheres. Alegações que vão desde a imutabilidade da natureza masculina, a responsabilidade das mulheres em relação a todas as pessoas de seu convívio, até suas roupas. A obra de Mallika Taneja, autora e performer deste solo, nos faz pensar sobre a importância de discutir, de maneira mais ampla, uma cultura que não apenas autoriza tal comportamento abusivo masculino, mas também o incentiva como parte da construção da masculinidade em si, na medida em que a culpa é direcionada para as suas vítimas. Mesmo abordando essa problemática sob a perspectiva do contexto indiano, é possível encontrar semelhanças com inúmeros aspectos acerca dessa questão em outros contextos – inclusive no contexto brasileiro. A primeira coisa com a qual o público se depara ao chegar para assistir ao solo é com o palco emoldurado por inúmeros lenços e peças de roupas. Esse espaço é ocupado por uma mulher. Um corpo nu que apenas encara a audiência como se a desafiasse. A performer começa a falar, enquanto compõem para si uma espécie de armadura com todos os tecidos disponíveis no palco. Ela se coloca como alguém que entende de maneira 114


literal todas as recomendações direcionadas às mulheres para que se evite um abuso sexual, e que deseja compartilhar com a audiência, de maneira pedagógica, sua expertise. O tom de sua fala é carregado de sarcasmo, o que evidencia os aspectos mais incoerentes de todas as propostas. Taneja vive em Délhi, onde nasceu, cresceu e hoje dirige a organização Lost & Found, ao lado da dançarina Manishika Bhaul, desenvolvendo ações que visam tornar as iniciativas em artes performativas mais acessíveis na Índia, transformando espaços diversos e não convencionais em espaços para performances de maneira simples e sustentável. Seu interesse no estudo de como os corpos ocupam, se aliam e desafiam a cidade individualmente e em comunidade a fez criar a Midnight Walks, onde mulheres se reúnem e caminham por Délhi à meia-noite, registrando de diversas formas suas impressões. Evento que também comporá a programação da MITsp deste ano.

Laís Machado é àlárìnjó, pesquisadora, crítica e produtora formada pela ETUFBA. É membro fundadora da ÀRÀKÁ – Plataforma de Criação em Arte e da Revista Barril. ExIntegrante do Teatro Base e idealizadora e coordenadora do Fórum Obìnrín – Mulheres Negras, Arte Contemporânea e América Latina.

Ao decidirem ocupar o espaço público desse modo, mulheres no contexto indiano são incentivadas a recuar diante da manifestação de cuidado (e controle): “seja cuidadosa” (be careful). No próprio solo, a artista fala sobre o enquadramento de horários socialmente reconhecido, em que mulheres adultas são recomendadas a chegarem em casa até às 18h e, caso precisem sair depois disso, irem acompanhadas de um homem, apenas por precaução. Entender esse quadro dimensiona o quão subversivo é o Midnight Walks enquanto experimento ético/estético. Taneja fala em seu solo sobre sua paixão por roupas e a variedade de estilos encontrada no mercado onde faz suas compras, mas nesse ponto ela também expõe o mito de que é possível fazer com que não pensem nada sobre você se você mesma não der nenhuma informação a seu respeito. E que esta é uma responsabilidade feminina. A impossibilidade da execução dessa demanda prova que a criação e manutenção deste “mito” servem apenas para desumanizar as mulheres ao retirar-lhes o direito à individualidade, que também se expressa a partir da relação com a própria estética. A histeria crescente na performance de Mallika denuncia também uma consequência deste estado de alerta constante ao qual as mulheres são submetidas. Se ser cuidadosa evitaria um abuso sexual, isso significa que determinada mulher que viveu essa experiência a viveu por não ter sido cuidadosa o suficiente. E neste ponto devemos concordar que não é possível que, apenas em 2016, 2.155 mulheres não tenham sido cuidadosas 115


em Délhi – porque este foi o número de estupros registrados nesse ano. Essa noção serve apenas à manutenção da culpabilização da vítima por seu entorno e por si própria. A artista tem usado este espetáculo para estudo da relação corpo/ cidade/gênero (relação propulsora de suas proposições poéticas) e acrescentado informações ao longo dos anos – o que tem alterado diversos elementos da peça, como o seu tempo de duração e o estado com o qual se apresenta inicialmente. Usa das conversas posteriores às apresentações, analisando perguntas que geralmente são feitas por homens e as que são feitas pelas mulheres, por exemplo. E tem experimentado dividir o público: apresentando um dia para uma audiência feminina e outro para uma audiência masculina. Dialogando com a diferença da reação em ambos os casos tanto por parte do público quanto sua. Em 2015, Taneja recebeu o prêmio ZKB em Zurich, por ter sido reconhecida como a jovem artista mais promissora do festival onde performou Tenha Cuidado. Mas, mesmo com reconhecimento internacional, e até mesmo por estar conseguindo circular o território da Índia com esse trabalho, Mallika ainda encontra dificuldades para tornar pública a peça, pois os organizadores de eventos dos quais participa precisam estar dispostos a assumir o risco de ofender a audiência tanto pela temática quanto pela nudez – ambos considerados tabus no contexto indiano (e mais recentemente também no Brasil). Outro aspecto dessa discussão trazida por Mallika é a relativização desta violência usando como pretexto a ideia da imutabilidade da natureza masculina. Como se os homens e a própria sociedade fossem eximidos de suas responsabilidades, sendo esta, também, uma atribuição feminina. Paradoxalmente, ao mesmo tempo em que as mulheres seriam responsáveis por todo o resto, são desprovidas de poder para modificação dos outros. Restando apenas a autoproteção. Neste ponto, a artista faz uma analogia com a diabetes, evidenciando o quão absurdo seria uma pessoa com diabetes ser responsável pela própria doença e por todos ao seu entorno em relação ao seu próprio sofrimento. No final da obra, Mallika está vestida como seria vestir-se literalmente de todas as recomendações. E é evidente que esta sua armadura disforme não a protegeria de nenhum tipo de abuso. Neste ponto a artista expõe que a própria sociedade sabe disso. Uma vez que concluindo esta etapa a fala de seus “cuidadores” muda para “se te acontecer algo, ao menos 116


poderá dizer que não foi sua culpa”. Então, isso é uma assunção de que ainda existe a possibilidade do abuso, independentemente de quaisquer precauções que sejam tomadas. Como uma próxima etapa desta pesquisa, Taneja está desenvolvendo seu próximo trabalho, intitulado Allegedly (Supostamente), que visa discutir o modo como o sistema judiciário e médico lida com os casos de violência sexual. Entendendo outra etapa dessa máquina violenta que faz com que Nova Délhi, infelizmente, seja considerada a capital do estupro.

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TU AMARÁS TÚ AMARÁS

Bonobo CHILE, 2018 | 1h15min | CLASSIFICAÇÃO INDICATIVA 16 ANOS

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Com o espetáculo Tu Amarás, o grupo chileno Bonobo dá continuidade à sua pesquisa sobre a violência cometida contra os “outros” em uma sociedade democrática – o título alude aos mandamentos cristãos. Nesta comédia irônica, um grupo de médicos chilenos se prepara para uma conferência internacional sobre o preconceito na medicina. O debate, permeado por questionamentos como quem é o inimigo e como ele se constrói, se torna mais complexo devido à recente chegada dos Amenitas, extraterrestres que se estabeleceram na Terra. Incompreendidos, marginalizados e temidos, esses seres oferecem a oportunidade para que o grupo reflita sobre o amor, a violência e o ódio implícitos na relação com os “forasteiros”. A peça, que recebeu prêmios no Chile e no Japão, foi desenvolvida em residências no Espacio Checoeslovaquia, em Santiago, e no Baryshnikov Arts Center, em Nova York. 119


HISTÓRICO

O maior acerto de Tu Amarás, além de seu bem pensado título de contornos bíblicos, é que deixa em uma zona incômoda e cinza nossa ideia de progresso, democracia e evolução. As pulsões mais baixas em relação aos outros (ódio, intolerância, medo) parecem ser assumidas como parte de nosso cotidiano e da ideia progressista de nos vermos como iguais. A obra desmonta essa noção e a expõe em uma dialética entre as esferas pública e privada em tempos em que o discurso oficial impõe uma visão monolítica do bem. JORGE LETELIER, Culturizarte

Bonobo é uma companhia de teatro fundada em 2012 pelos artistas Pablo Manzi e Andreina Olivari com o objetivo de levar ao palco novas obras que estimulem a reflexão crítica do espectador. Através de uma metodologia de criação coletiva com ênfase em pesquisa e improvisação, eles se tornaram um dos mais conceituados grupos jovens do teatro chileno. Integram seu repertório os espetáculos Amansadura (2012), Donde Viven los Bárbaros (2015) e Tu Amarás (2018), que participaram de festivais em países como Alemanha, Bélgica, Holanda, Espanha, Itália, Suécia, Japão, México, Brasil, Peru e Chile.

DRAMATURGIA Pablo Manzi DIREÇÃO Andreina Olivari e Pablo Manzi

Esta montagem é uma obra cuja densidade do conteúdo poderia ser sufocante, porém, a comicidade de seus diálogos inteligentes introduz o espectador pouco a pouco na reflexão crítica sobre os temas que o título coloca: a violência cotidiana sorrateira, os preconceitos que moldam nosso comportamento e nossas decisões, a incoerência entre ser e dever ser, as consequências não intencionais de nossas ações, entre outros assuntos. São falas ágeis, feitas por um elenco de atores bem dirigidos e cuja corporalidade complementa os pensamentos (des) velados nas palavras que usam.

ELENCO Gabriel Cañas, Carlos Donoso, Paulina Giglio, Guilherme Sepúlveda e Gabriel Urzúa DESIGN DE CENÁRIO, LUZ E FIGURINO Felipe Olivares e Juan Andrés Rivera MÚSICA ORIGINAL Camilo Catepillán COORDENAÇÃO TÉCNICA Raúl Donoso PRODUÇÃO Horacio Pérez COPRODUÇÃO Espaço Checoeslovaquia e Fundación Teatro a Mil ESTE ESPETÁCULO É APOIADO PELO DIRAC MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES DO CHILE

JESSENIA CHAMORRO SALAS, Cine y Literatura

FOTO S M A RC U S E X AV E R I U S

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a invenção do OUTRO e a idealização do EU POR GUILHERME DINIZ

TU AMARÁS, DA COMPANHIA CHILENA BONOBO, investiga os mecanismos psicossociais de discriminação e estigmatização, em uma sociedade chafurdada em violentas desigualdades, abordando crítica e ironicamente os processos de desumanização do outro, como aquele sobre o qual se depositam imaginários, signos e visões distorcidas e reducionistas. A invenção do "outro" assentada em estruturas coloniais torna-se o núcleo reflexivo desta montagem, cujos questionamentos dirigem-se aos paradigmas dominantes de exclusão e hierarquização de humanidades. Nesta senda, a manipulação dos medos e das visões de mundo, convencionados socialmente, afiguram-se como poderosos instrumentos de aniquilação de corpos, culturas e subjetividades, encaradas como ameaças à norma dominante. Tu Amarás, dirigida por Andreina Olivari e Pablo Manzi, que também assina a dramaturgia, dá continuidade e agudiza as pesquisas cênico-políticas do coletivo chileno acerca das violências imiscuídas nas noções de bárbaro, de estrangeiro e de outro. A encenação se desenvolve em uma sala de conferências, na qual cinco médicos preparam uma importante apresentação acadêmica sobre suas experiências profissionais ao lidarem com pacientes de uma comunidade extraterrestre, denominada Amenita. O contato com essa sociedade alienígena é marcado por fortíssimas tensões e animosidades que descortinam, sutilmente, os preconceitos mais recônditos das conflitantes personagens. Os entrechoques dramatúrgicos expõem as contradições daqueles indivíduos obrigados a enfrentar seus próprios valores e códigos culturais. Os diálogos, permeados por ambiguidades e sarcasmos, não ocultam o etnocentrismo dos cinco conferencistas. O espetáculo aponta ainda para as dimensões políticas da linguagem no que se refere à produção de sentidos e representações do mundo. Nas dinâmicas de estigmatização de outrem, a palavra se converte em um poderoso instrumento de subalternização. Aí reside a grande contradição das personagens, pois devem elaborar uma comunicação oral sobre o papel da medicina na garantia da dignidade humana e, paralelamente, mal conseguem resolver seus próprios prejulgamentos a respeito dos amenitas. Os amenitas, na conjuntura dramática de Tu Amarás, são o símbolo-mor da diferença: pertencem a outro planeta, arrasado, saqueado e destroçado por 122


Guilherme Diniz é ator, pesquisador e crítico teatral. Licenciado em Teatro pela UFMG e mestrando em Literatura Brasileira pela mesma instituição, estudou ainda Literaturas e Dramaturgias Africanas na Universidade de Coimbra (Portugal). Atua, como crítico, no site Horizonte da Cena.

invasores. Esta comunidade se converte em uma sintomática alegoria de povos, sociedades e sistemas culturais aviltados pelo colonialismo, estereotipados por caricaturas grosseiras e apequenados em sua fundamental humanidade. Em cena, não se vê sequer um amenita. Tudo o que sabemos sobre eles, incluindo suas características e histórias, é informado pelos médicos, em alegações no mínimo questionáveis. É possível reconhecer que o amenita é uma fantasia, uma idealização e uma deturpada projeção narcísica do eu sobre o outro, na qual este último é uma desfiguração incompleta de um eu absoluto e central. As dinâmicas de invenção do outro, no decurso histórico, fazem-se acompanhar por tecnologias de exploração econômica e subalternização de comunidades consideradas inferiores. Edward Said (1990) destaca a construção da imagem de um Oriente estático, exótico e derrotado como um sistema de verdades e de representações ideologizadas que se orientam por profundos interesses políticos. As figuras de linguagem e os instrumentos narrativos, formulados por nações e instituições hegemônicas, transformaram a noção de Oriente em um objeto perigoso, insólito e bárbaro. Do mesmo modo, V. Y. Mudimbe (2013) discute a invenção simbólica de uma África primitiva; invenção esta intimamente ligada a movimentos de expansão colonial. De acordo com o pensador, a participação do cristianismo e de seus missionários na criação de uma soberania ocidental superior a uma África animalesca foi extremamente significativa, posto que a associação estratégica entre os postulados teológicos, a catequização e as práticas violentas justificaram o extermínio e produziram uma ortodoxia epistemológica que visava estabelecer uma verdade única sobre o mundo. Igualmente, em Tu Amarás, a representação degradante do amenita é uma forma de dominação. Uma malha de termos, reproduzidos pelos conferencistas, é automaticamente associada aos amenitas, ora delimitando sua complexidade e diversidade, ora reduzindo sua dignidade, tais como: cachorro, violência, sexo e ódio; palavras que, ali, convertem-se em signos pejorativos. Com esses vocábulos, solidifica-se cada vez mais uma doxa naturalizada acerca daqueles chamados de amenitas. Nenhum dos médicos ali presentes consegue escapar dessas incongruências ético-profissionais. E as tensões se acirram quando eles esbarram não apenas nos preconceitos dos outros, mas nas suas próprias certezas irrefletidas. Construir um diálogo transformador e uma plena reestruturação das relações parece ser o principal desafio. Não se pode ignorar os possíveis diálogos entre Tu Amarás e os processos coloniais perpetrados nas Américas e suas ressonâncias contemporâneas. Como nos aduz Walter Mingonolo (2015), a descoberta e a invenção da “América” é uma narrativa fincada na racionalidade colonial europeia, desenvolvida especialmente a partir do séc. XVI, na esteira das expansões comerciais. A ideia de um Novo Mundo virginal e exótico, em contraposição a um Velho Mundo civilizado, está na base das práticas coloniais que 123


apropriaram e violentaram diversas culturas neste continente. Mignolo (2015) afirma ainda que modernidade e colonialidade são faces de uma mesma moeda para os desígnios imperialistas, sendo o racismo moderno um dos principais aparatos ideológicos da colonização. É impossível dimensionar as conquistas da modernidade sem considerar suas fundações coloniais. A noção mesma de latinidade, forjada em meados do século XIX, é atravessada pelas tensões coloniais, visto que a distinção entre América Latina e América Anglo-Saxônica carrega uma indisfarçável hierarquia (MIGNOLO, 2015). Em territórios pluriculturais como os da chamada América Latina, a imposição das identidades nacionais afigura-se espinhosa, porque unifica um vasto número de comunidades e saberes sob o manto monocultural da nacionalidade. Segundo a perspectiva decolonial de Mignolo (2015), a construção de uma identidade fixa para o outro é um dos pontos nodais da exploração econômica, da hegemonia política, do controle do gênero e da sexualidade, bem como da hierarquização das subjetividades e dos conhecimentos. Tais tecnologias de dominação se modernizam continuamente e se atualizam as estruturas coloniais, inclusive em regimes democráticos. Ora, é na democracia brasileira que os genocídios negro e indígena acontecem livremente, acomodando-se com assombrosa naturalidade. Sem considerar o arcabouço simbólico-ideológico que reproduz a ideia de seres humanos menores (ou subumanos), se compreenderá apenas parcialmente o extermínio dessas populações. O cenário histórico-cultural do Chile ostenta complexidades nesse sentido. A sistemática discriminação contra os povos indígenas mapuches, o desrespeito com sua língua e a constante invasão de suas terras são provas de uma política chilena embebida em seculares pressupostos coloniais. Além do mais, o ferrenho apagamento da escravidão e da presença cultural afro-chilena são algumas das mais graves mazelas do país. As contradições não cessam aí. Tu Amarás apresenta um elenco inteiramente branco em um país vastamente diverso étnicoculturalmente. Este ponto parece não estar tão problematizado na encenação, pois as personagens discorrem sobre a diferença presente nos corpos alheios e sobre a necessidade de enfrentar as estigmatizações sem questionarem o fato de serem brancos. Isto é, corpos racialmente dominantes em um Chile desigual. Debater a violência institucionalizada em regimes democráticos, bem como a construção ideológica de inimigos que colocam a ordem, o status quo em perigo são algumas das reflexões nevrálgicas propostas na peça. Nesse sentido, é importante ressaltar o fato de serem médicos acadêmicos brancos a discutir e definir a identidade dos outros, os amenitas. Historicamente, a medicina, as ciências e as letras tiveram um papel determinante na formulação de ideais racistas. O racismo científico do século XIX não se concretizaria sem o apoio substancial de discursos clínicos que decretavam a animalidade daqueles corpos. A academia e seus discursos de autoridade não estão alheios ao acirramento 124


dessas desigualdades, no campo teórico. Os conferencistas em Tu Amarás constantemente expõem ora a repulsa, ora a desconfiança pelos tais amenitas, em uma ambiência cênica fundamentalmente agridoce, em que o risco é mais sintoma de um desconforto que expressão de uma descontração. A presença do incômodo, em todas as suas dimensões, acompanha a encenação. Os corpos reticentes, por vezes rijos, os diálogos lacunares e vacilantes, repletos de interrogações, expressam um forte incômodo com a presença ou o imaginário do outro. Este é o terceiro trabalho da jovem e premiada Bonobo, fundada em 2012 por artistas formados pela Academia de Actuación Fernando González Mardones e pela Escuela de Teatro da Universidade do Chile. Desde seu nascimento, o grupo trabalha sob a direção de Pablo Manzi e Andreina Olivari. No epicentro de suas pesquisas cênicas estão a alteridades e suas tensões simbólico-sociais. Todas as encenações da companhia abordam algum aspecto dessas problemáticas, evidenciando a importância do conceito de "outro" nas dinâmicas políticas da contemporaneidade. Em Amansadura (2012), são investigados os meios violentos e excludentes que construíram a noção de democracia moderna, evidenciando como os valores éticos e culturais se atritam nos processos histórico-políticos. Donde Viven los Bárbaros (2015) discute os conceitos de civilização e barbárie, a partir de um conflituoso encontro entre amigos e familiares. Tu Amarás, por sua vez, estreou em 2018, após uma residência artística no Baryshnikov Arts Center (Nova York), em 2017, em que os atores aprofundaram as leituras e discussões, num processo criativo intensamente coletivo. O espetáculo realizou numerosas temporadas no Chile e em outros países. Em 2019, foi ao Tokyo Festival World Competition e levou o Critics’ Choice Award; o Award for Outstanding Performance; e o Audience Award. Ademais, Pablo Manzi recebeu, em 2018, o distinto prêmio José Nuez Martín, concedido pela Pontificia Universidad Católica de Chile, pela dramaturgia de Tu Amarás. As caudalosas ondas ultraconservadoras e neoliberais no espectro geopolítico do globo e, especialmente, da América Latina, encontram formas contemporâneas de subalternização e aniquilação da diversidade, em sua ampla acepção. As crises migratórias atuais e seus desesperados refugiados; a intensificação da opressão sócio-racial; o aumento das invasões imperialistas evidenciam o papel determinante das alteridades e de suas tensões no panorama REFERÊNCIAS presente. A questão do MIGNOLO, Walter. The Idea of Latin America. Oxford: “outro” é um elementoBlackwell, 2005. chave para pensarmos MUDIMBE, Valentin Yves. A Invenção da África: Gnose, filosofia as relações sociais e seus e a ordem do conhecimento. Mangualde, Luanda: Edições sistemas de violência. Tu Pedago; Edições Mulemba, 2013. Amarás é, diante disso, um SAID, Edward. Orientalismo: O Oriente como Invenção do sopro reflexivo. Ocidente. São Paulo, Companhia das Letras, 1990. 125


SÁBADO DESCONTRAÍDO SAMEDI DÉTENTE

Dorothée Munyaneza RUANDA/FRANÇA, 2014 | 1h15min | CLASSIFICAÇÃO INDICATIVA 16 ANOS

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Por meio de suas lembranças de infância, a ruandense Dorothée Munyaneza reconta a guerra civil que assolou seu país em 1994, levando ao genocídio de 800 mil pessoas. A artista estava prestes a completar 12 anos quando se viu em meio aos conflitos, e desde então não conseguiu mais ouvir Samedi Détente (algo como Sábado Descontraído, em francês), um programa de rádio que embalava toda a população do país, com músicas de várias partes do mundo. Mas as canções daquela época ainda hoje ressurgem na mente e no corpo da artista, trazendo à tona as lembranças de amigos e da família. No espetáculo, espécie de testemunho cênico, Munyaneza tenta dar conta dos horrores do conflito através dessas memórias afetivas. Narra as histórias de guerra mesclando linguagens do teatro, da dança e da música e trazendo elementos que remetem à jornada de conflitos, como mesas e lonas (que serviam de abrigos contra os tiroteios) e camadas diversas de roupas (seus escudos). 127


HISTÓRICO

Munyaneza fala e canta, eventualmente pulando sobre uma mesa, semelhante às que ela e os amigos costumavam usar como abrigo, e é acompanhada pela bailarina marfinesa Nadia Beugré e pelo compositor francês Alain Mahé. Seus esforços poderiam dar maior teatralidade ao espetáculo, traduzindo eventos reais em som e imagem viscerais. Em vez disso, mostram como a metáfora pode falhar diante de tamanha atrocidade (...) É quase impossível imaginar um som, um passo, um símbolo que consiga representar os horrores que Munyaneza detalha. ALEXIS SOLOSKI, The New York Times

Por essa sucessão de ações elegantes, somada a essa incrível cena de dança zouglou (uma coreografia louca e reconfortante), que Nadia Beugré (excelente bailarina marfinense) e Dorothée Munyaneza dissipam no palco, a peça propõe um contraponto íntimo aos livros de história.

Nascida em Ruanda, Dorothée Munyaneza deixou seu país aos 12 anos, durante a guerra civil de 1994. Estabeleceu-se com a família na Inglaterra, onde estudou música na Fundação Jonas e ciências sociais em Canterbury, e logo depois mudou-se para a França, onde desenvolve trabalhos como musicista, autora e coreógrafa. Suas obras partem de acontecimentos reais para capturar seus reflexos na memória e no corpo, no âmbito individual e no coletivo, para dar voz àqueles que foram silenciados. Em 2004, a artista compôs e interpretou a trilha sonora do filme Hotel Ruanda, de Terry George, e seis anos depois lançou seu primeiro álbum solo, gravado com o produtor Martin Russell. Com Sábado Descontraído, seu primeiro espetáculo teatral, fundou em 2013 a companhia Kadidi, e lançou sua segunda peça, Unwanted, no Festival de Avignon de 2017. Como artista associada do Théâtre de la Ville, em Paris, apresentou com os músicos Benjamin Colin e Daniel Ngarukiye o concerto-performance Woad, em 2019. O próximo trabalho de Munyaneza, MAILLES, irá reunir artistas afrodescendentes de várias partes do mundo e tem estreia prevista para outubro de 2020 em Chaleroi, na Bélgica.

ÈVE BEAUVALLET, Libération

FOTO S J O S É C A L D E I R A

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CONCEPÇÃO, COREOGRAFIA E DIREÇÃO Dorothée Munyaneza ELENCO Nadia Beugré, Kamal Hamadache e Dorothée Munyaneza PROVOCADOR Mathurin Bolze DESENHO DE LUZ Christian Dubet CENÁRIO Vincent Gadras FIGURINO Tifenn Morvan DIREÇÃO DE PALCO Frédérique Melin DIREÇÃO DE SOM Camille Frachet DIREÇÃO DE LUZ Nara Zocher de Sousa PRODUÇÃO Compagnie Kadidi, Anahi Production DIREÇÃO DE PRODUÇÃO Emmanuel Magis, Anahi ASSISTENTE DE PRODUÇÃO Leslie Fefeu COPRODUÇÃO Théâtre de Nîmes – Scène Conventionnée pour la Danse, Théâtre La Passerelle – Scène Nationale de Gap et des Alpes du Sud, Bois de l’Aune-Aix-en-Provence, Théâtre des Salins – Scène Nationale de Martigues, L’Onde – Théâtre Centre d’Art de Vélizy-Villacoublay, Pôle Sud – CDCN Strasbourg, Théâtre Jacques Prévert – Aulnaysous-Bois, Le Parvis – Scène Nationale de Tarbes, Théâtre Garonne – Toulouse, Réseau Open Latitudes 2 APOIO Cultural European Programme, Théâtre de Liège, Théâtre de la Ville – Paris, BIT Teatergarasjen – Bergen. Com apoio do Théâtre Le Monfort–Paris, do Friche Belle de Mai–Marseille, da Direção Regional de Assuntos Culturais PACA - Ministério da Cultura e Comunicação, do SACD, Association Beaumarchais, Arcadi Île-de-France, ADAMI e Prefeitura de Paris. ESTE ESPETÁCULO É APOIADO PELO CONSULADO GERAL DA FRANÇA EM SÃO PAULO E PELO INSTITUT FRANÇAIS.

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RECORDAR, REPETIR, ELABORAR DE UM LADO, O PRESIDENTE FRANCÊS, FRANÇOIS MITTERRAND, diz que “nesses países, o genocídio não é tão relevante”. De outro, um ruandês reconhece: “Agora, eu me arrependo de ter feito isso. Não entendo o que me fez matar meu vizinho.” Ambas as falas são facetas do mesmo acontecimento, o genocídio tutsi ocorrido em Ruanda, em abril de 1994, com 800 mil mortos em menos de cem dias. O recuo antecipado das forças de paz internacionais e a disputa política entre hutus e tutsis são apontados como razões para um dos acontecimentos mais sangrentos da história de Ruanda e do mundo. No entanto, as estatísticas e análises políticas não dão conta do testemunho da barbárie humana: esta se presentifica na voz distanciada e cínica de um líder político, e ao mesmo tempo na fala íntima de um participante direto do massacre. Por entre as diferentes perspectivas sobre o trauma histórico, devemos recuperar sua dimensão pessoal e perceber os momentos em que “os animais selvagens morrem, deixando-nos à mercê da selvageria humana”. Percebo tal proposta nestas e outras palavras de Sábado Descontraído (Samedi Détente, título original), espetáculo de Dorothée Munyaneza que estreou em 2014. Samedi Détente é o programa de rádio que a pequena Dorothée escutava em Kigali, ainda sem saber que uma das maiores guerras civis da história varreria a capital do país. Na peça, Munyaneza revisita sua infância e os terríveis acontecimentos da guerra que presenciou aos 12 anos, até emigrar para a Inglaterra com os remanescentes de sua família. Atualmente radicada em Marselha, Dorothée Munyaneza é cantora, compositora, coreógrafa e escritora. Em parceria com diversos artistas, atuou em trabalhos que combinam diferentes ritmos musicais, dança e poesia. Em 2013, funda sua própria companhia artística, a Kadidi, e vem desenvolvendo uma pesquisa estética voltada a contar e cantar histórias silenciadas pela opressão e pelo extermínio. Esse novo caminho autoral já produziu dois trabalhos: Sábado Descontraído (2014) e Unwanted (2017), já apresentados no Rio de Janeiro em 2018, no Festival Cena Brasil 130

POR RENAN JI


Internacional, quando tive oportunidade de conhecê-los. Unwanted também esteve no FIT, em Belo Horizonte, no mesmo ano. São trabalhos irmãos, no sentido de que Dorothée Munyaneza revisita as feridas da guerra civil, a partir de relatos pessoais dos sobreviventes de práticas e políticas de extermínio.

Renan Ji é doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor adjunto do Instituto de Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira (CAp-UERJ). Atua como crítico de teatro na Revista Questão de Crítica e escreve artigos e ensaios sobre teatro, literatura brasileira e literatura comparada.

Em Sábado Descontraído, Munyaneza mergulha na sua própria biografia para denunciar os horrores da guerra. As brincadeiras da infância aparecem no espetáculo cercadas de maus agouros. Quando relembra que imitava heróis vingadores do cinema, em meio a sons de tiros e rajadas, era repreendida pelos mais velhos que temiam o vaticínio do que estava por vir. Aos 12 anos, Dorothée não poderia imaginar que muito em breve milicianos armados com facões invadiriam a sua casa e a de muitos outros, trazendo a destruição que os mais velhos esconjuravam no faz de conta das crianças. Os grupos de extermínio da maioria hutu perseguiram e mataram qualquer um da etnia tutsi e todo hutu que se declarasse moderado. Dorothée narra que brandiam facões e falavam: “a voz do povo te condena à morte”, e a criança testemunhou como inúmeras pessoas do seu círculo familiar foram assassinadas pelas mãos de milicianos. Mesmo com seu pai sendo líder comunitário e pastor, a casa e a família de Dorothée não foram poupadas da depredação e da violência: padres e freiras pereceram na sanha coletiva, ao passo que representantes religiosos hutus participaram ativamente da matança, encurralando refugiados em suas igrejas. O que me toca na narrativa de Sábado Descontraído é sua capacidade de resgatar acontecimentos terríveis de maneira a nos tornar novamente sensíveis a eles. Trata-se de reiluminar a história pelo ângulo de visão da criança ou da mulher negra que sobreviveu ao extermínio, mostrando a cegueira coletiva no cotidiano e no cinismo das lideranças internacionais. “O genocídio de Ruanda aconteceu e onde estavam vocês?”, pergunta-nos Nadia Beugré, que acompanha Dorothée no palco. A pergunta deve continuar ecoando para que lembremos constantemente que o horror pode se instalar nas vivências mais comezinhas, e que governantes podem implementar, com naturalidade, desmontes institucionais, necropolíticas e discursos de ódio. Sábado Descontraído cria um espaço de resgate do passado e da afirmação da vida, no sentido de que consegue reabrir feridas históricas através da performance artística, possibilitando a constante refiguração no presente. Quando narra os eventos traumáticos da guerra civil, com seu canto ritmado, manejos de voz e torções corporais, Dorothée Munyaneza nos embala em um “poderoso rio sonoro”, no sentido que Eric Havelock (1963), em Preface do Plato, identificou como típico da narrativa homérica. A inspiração épicomusical de Samedi Détente, contudo, não apenas nos relembra dos extremos da violência humana, mas propõe uma reconstrução sensível que nos afeta 131


e intervém no agora. Trata-se de trazer à tona o passado furando o tecido do presente, utilizando a expressividade do som, do corpo e da palavra para nos relembrar da violência que parecemos herdar nos fascismos contemporâneos. Em Sábado Descontraído, participam em cena a artista de dança Nadia Beugré, da Costa do Marfim, e o compositor francês Alain Mahé. Movimento e som acumulam sentidos múltiplos à palavra de Dorothée, ou ainda exprimem aquilo que o próprio discurso do trauma não consegue acessar. A faca que se choca a um pedaço de madeira, em movimentos executados por Beugré ou Mahé ao longo do espetáculo, produzem um barulho cortante que quase sentimos nos ossos, submetendo-nos a uma impressão sensorial que o discurso verbal do trauma, por si só, não conseguiria expressar. Trata-se de uma operação estética que possibilita recordar o passado reintegrando-o à atualidade da nossa percepção sensível. Essa dinâmica torna o palco um lugar de elaboração do vivido, similar ao que Sigmund Freud expõe no pequeno ensaio Recordar, Repetir e Elaborar, de 1914. O processo psicanalítico referido por Freud nesse texto pressupõe que uma psique doente é levada à repetição de determinados padrões e comportamentos nocivos ao indivíduo, os quais replicam fatos primitivos fundamentais que o marcaram profundamente. Seria função do analista desmantelar esses mecanismos neuróticos de repetição, mostrando que eles estão atados a vivências desagradáveis do passado, proporcionando ao paciente a alternativa de reconhecer e se desvincular dos traumas de sua formação histórica. Nesse sentido, Sábado Descontraído opera de maneira psicanalítica na história de Ruanda: procura repetir e resgatar o trauma civilizatório, por mais doloroso que seja, recolocando-o na arena política de hoje e impedindo o recalque de uma herança de violência – que estaria fadada a retornar nos interstícios da história social. É necessário trazer à tona o trauma histórico, para que, relembrando-o, possamos perceber o quanto o fascismo genocida ainda persiste nos dias de hoje, sob as mais diversas – e subliminares – formas. Ao recordar acontecimentos reprimidos de sua infância, o analisando se conscientiza do liame que atitudes e sentimentos do presente estabelecem com aqueles acontecimentos, e se torna livre para refigurar suas práticas e seus desejos. Mas Freud, no ensaio de 1914, alerta-nos que nada é tão simples assim: ele menciona casos clínicos em que psicanalistas frustrados reportavam-lhe que, mesmo destrinchando os mecanismos psíquicos de recordar e repetir, não obtinham sucesso no tratamento. Freud contrapõe, no entanto, que é necessário paciência para que o doente possa, no seu ritmo, se empenhar no último dos verbos que intitulam seu ensaio: elaborar. Conscientes de que os traumas da história pessoal estão se repetindo em diferentes estruturas do presente, cabe ao analista e ao analisando recolocar 132


essas questões constantemente e, com isso, dar insumos para que a elaboração possa fortalecer o psiquismo do indivíduo. A elaboração é um processo que pressupõe a redramatização dos vários fios da memória, dando chance ao indivíduo de recobrar sua própria história, a despeito de o passado ter imprimido marcas tão definitivas em sua trajetória. Elaborar, nesse sentido, de acordo com Freud, é talvez o passo mais importante na modificação do mecanismo perverso de rememorar e repetir que mantém como reféns tantos pacientes marcados pelo sofrimento passado. Aos espectadores do teatro da memória que é Sábado Descontraído, fica a questão: o que conseguimos elaborar diante do indizível da barbárie? No palco em que, numa psicanálise coletiva, lembra a si mesma e à comunidade internacional do horror vivido, Dorothée Munyaneza recorda aquilo que a história busca, sempre sem sucesso, esquecer. Os liames entre o fascismo nosso de cada dia e a herança do massacre em Ruanda estão ali desnudados, evidentes. Mas como elaborar – ou seja, seguir em frente sem deixar de olhar pelo retrovisor a dor de 800 mil mortos? Nádia Beugré, num dado momento do espetáculo, diz que em 1994 os marfinenses não podiam dar atenção ao genocídio em Ruanda. Estavam dançando o zouglou, ritmo da moda; franceses, americanos, chineses, cada qual ocupado com seu zouglou. Convidando Dorothée a dançar o seu zouglou ruandês, Beugré parece lhe conceder a chance de participar do grande movimento de indiferença ao genocídio que massacrou Ruanda. A ironia histórica da situação pode nos paralisar. Porém, é ela que possibilita que, como afirma sua companheira de palco, Dorothée possa dançar como a adolescente ruandesa que nunca chegou a ser. Talvez elaborar o trauma histórico seja isso: ao vermos Dorothée Munyaneza dançando como a adolescente de Kigali que nunca existiu, vemos que as ruínas da história não produzem somente morte. É necessário buscar a inocência brutalmente negada a partir da criação e da refiguração. Mas sem nunca perder de vista os cortes – como o de um facão contra a pele e o osso – que ceifaram inúmeras vidas, identidades e culturas.

REFERÊNCIAS FREUD, S. Recordar, Repetir e Elaborar (1914). In: ______. Obras completas. Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia relatado em uma autobiografia (“o caso Schereber”), artigos sobre técnica e outros textos (19111913). v. 10. Tradução: Paulo César Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 193-209. HAVELOCK, Eric. Preface to Plato. Cambridge, MA: Belknap Press of Harvard University Press, 1963.

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INSTALAÇÃO VÍDEO-MUSICAL

ORLANDO

Julie Beauvais e Horace Lundd SUÍÇA/FRANÇA, 2017 | 60min | CLASSIFICAÇÃO INDICATIVA LIVRE

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Romance de Virginia Woolf sobre um personagem andrógino, que flui entre o feminino e o masculino, Orlando é o ponto de partida desta ópera-instalação, que combina coreografia, vídeos e música ao vivo dentro de um cenário imersivo, pelo qual o público pode circular. O trabalho, dirigido pela suíça Julie Beauvais e pelo francês Horace Lundd, investiga os temas tratados no livro, como gênero e identidade, e questiona quais seriam os Orlandos de hoje, habitantes de um mundo imerso no paradigma pós-binário. Sobre as sete telas que contornam a instalação, são projetados lado a lado personagens de Berlim, Kinshasa, Marfa, Londres, Belo Horizonte, Lisboa, Chandolin, Patagônia e Holanda, todos filmados em cenários externos e etéreos, conectando o horizonte de várias regiões do mundo. *Após a sessão, os artistas fazem uma conversa com o público 135


HISTÓRICO

No centro do poliedro formado pelos painéis, dois músicos alternam-se em tocar a composição sonora de Christophe Fellay. Se os espectadores que passeiam pelo lado de fora da estrutura projetam uma sombra que atravessa esses sete fantasmas perenes, aqueles que se agrupam no centro acabam contemplando uns aos outros como se contemplassem os embaixadores de uma humanidade enfim liberta de seus “estereótipos, preconceitos e estigmas”, como cita o programa do espetáculo. KATIA BERGER, Tribune de Genève

Efetivamente, a instalação foge dos códigos de um espetáculo tradicional. Cada um tem liberdade de se apropriar da narração, de viajar entre o interior e o exterior da estrutura, de se sentar e mergulhar na imagem e no som sobre a benevolente vigilância dessas sete figuras do “novo paradigma”. E ao fim dos 45 minutos que duram esses movimentos lentos, quase imperceptíveis ao primeiro olhar, a sensação que preenche os espíritos, o espaço, é a de uma grande paz interior JEAN-FRANÇOIS ALBELDA, Le Nouvelliste

A suíça Julie Beauvais transita entre a ópera, o teatro, a dança, intervenções arquitetônicas, vídeos e instalações performativas. Seus trabalhos exploram as experiências do corpo e a consciência humana. Desde 2013, dirige a BadNewsFromTheStars*, uma plataforma com sede em Valais, na Suíça, que reúne cantores de ópera, músicos, artistas multimídia, arquitetos, cenógrafos e coreógrafos para explorar as possibilidades da ópera. Já o artista plástico francês Horace Lundd trabalha com instalações imersivas e criações visuais para vídeos, performances e cenários.

DIREÇÃO ARTÍSTICA E COREOGRAFIA Julie Beauvais DIREÇÃO Julie Beauvais e Horace Lundd DIREÇÃO DE ARTE, DIREÇÃO DE FOTOGRAFIA E VÍDEOS Horace Lundd COMPOSIÇÃO MUSICAL E SONORA Christophe Fellay ARTISTA MUSICAL CONVIDADO Bartira CENÁRIO Sibylle Kössler e Wynd van der Woude CRIADO POR Michael John Harper, Orakle Ngoy, Winsome Brown, Carolyn Cowan, Nyima, Diego Bagagal, August Schaltenbrand, Natalia Chami, Valentina Bordenave e Frans W.M. Franssens PRODUÇÃO BadNewsFromTheStars* e Horace Lundd ASSOCIADOS: LAPIS/EPFL - Escola Politécnica Federal de Lausanne, Acelerador de Partículas de Estrasburgo APOIO Pro Helvetia - Fundação Suíça para a Cultura, Pro Helvetia COINCIDENCIA, CNC - Centro Nacional do Cinema e da Animação - dispositivo DICRéAM de fomento ao desenvolvimento e à produção, Loterie Romande Vaud, Loterie Romande Valais, Cantão de Valais - Serviço da Cultura, DRAC - Direção Regional de Assuntos Culturais do Grande Leste - fomento individual à criação, Região Grande Leste - fomento à criação do espetáculo e das artes visuais, Cidade de Genebra - Departamento de Finanças e Alojamento, HEAR - Haute École des Arts du Rhin APOIO À TURNÊ DA AMÉRICA DO SUL: COINCIDENCIA – PROGRAMA DE INTERCÂMBIOS CULTURAIS NA AMÉRICA DO SUL DA FUNDAÇÃO SUÍÇA PARA A CULTURA PRO HELVETIA FOTO S H O R AC E LU N D D

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E T E R N O S ORLANDOS POR RENAN JI

JULIE BEAUVAIS DIRIGE PROJETOS ARTÍSTICOS DE MÚLTIPLAS LINGUAGENS, voltados para as possibilidades do corpo em tensão com arquiteturas e paisagens diversas. O conceito de ópera é fundamental para o seu trabalho, na medida em que visa à junção de música, voz, poesia, teatro e artes visuais, proporcionando experiências de imersão profunda a partir de motes contemporâneos. Um dado que me parece central nos últimos trabalhos de Julie Beauvais é a pesquisa do corpo como forma de intervenção em dispositivos culturais e ideológicos, seja a partir da dança/performance no campo da encenação, seja a partir da experimentação sensorial junto ao espectador. No primeiro caso, Sunbathing in My Tears (2017) é um exemplo de como o corpo se expande dramaturgicamente, num solo em quatro movimentos em que uma única soprano encena todos os personagens de uma pequena ópera. No segundo caso, o seu projeto mais recente, The Witness (2019), parece ser sua investigação mais ousada no campo da experiência sensorial, propondo uma jornada imersiva de 40 dias, na qual os participantes interagem com cenários externos, naturais e urbanos, a partir de exercícios de concentração e consciência corporal. A intenção parece ser um aprofundamento do pacto com o espectador, pois o programa performático só é acessível àqueles que se candidatam à empreitada e pressupõe uma série de procedimentos interativos entre os participantes. A performance-instalação Orlando, cujo projeto se iniciou em 2017 e se desdobra até hoje, une essas duas frentes estéticas. Essa instalação operística parte do trabalho corporal com performers de vários países do mundo, assim 138

1 Conforme o material de divulgação do trabalho, disponível em: https:// b289a435-58c3-40388384-74d3b86d7971. filesusr.com/ugd/1f8af3 _c5bce24f2e4949a1b8a4 5c1b03d4b849.pdf, p. 1. 2 Christine Marsan (2016), disponível em: https:// b289a435-58c3-40388384-74d3b86d7971. filesusr.com/ugd/1f8af3 _c5bce24f2e4949a1b 8a45c1b03d4b849.pdf, p. 6. 3 Conforme State of intent, disponível em: https://b289a435-58c 3-4038-8384-74d3b86d7971. filesusr.com/ugd/1f8af3_ c5bce24f2e4949a1b8a 45c1b03d4b849.pdf, p. 4. 4 Conforme o texto de Sibylle Kössler, disponível em: https://b289a435 -58c34038-8384-74d3b86d7971. filesus r.com/ugd/1f8af3_ c5bce24f2e4949a1b8 a45c1b03d4b849.pdf, p. 8.


como a montagem de uma estrutura imersiva, que conta com elementos arquitetônicos e sonoros para a percepção ampliada do espectador. A proposta de Orlando é da ordem do visionário: o intento é abrir canais de percepção para uma nova ordem social, a partir de um novo paradigma não binário1.

Renan Ji é doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor adjunto do Instituto de Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira (CAp-UERJ). Atua como crítico de teatro na Revista Questão de Crítica e escreve artigos e ensaios sobre teatro, literatura brasileira e literatura comparada.

5 A equipe principal conta com a fotógrafa Horace Lundd, o diretor musical Christophe Fellay e os designers de cenografia Sibylle Kössler e Wynd van der Woude. 6 Com recursos e retórica distintos, os Video Portraits de Robert Wilson são um outro bom exemplo de trabalho que absorve o paradoxo da imagem explicado por Thierry de Duve. 7 As filmagens aconteceram nas cidades de Berlim, Kinshasa, Marfa, Londres, Varanasi, Belo Horizonte, Lisboa e Chandolin.

O não binarismo preconizado pelo trabalho de Beauvais é uma alternativa estética e existencial aos binarismos contemporâneos: homem versus mulher; branco versus negro; rico versus pobre, hetero versus homo. Orlando fala da possibilidade de união dos contrários, antevendo a conciliação em corpos complexos e andróginos, cujo caráter compósito representaria a nova fronteira do humano. A performance-instalação toma o romance Orlando, de Virginia Woolf, como ponto de partida temático. Orlando é um personagem alegórico, inspirado na amante de Woolf, Vita Sackville-West. Nasce homem e depois, subitamente, acorda num corpo feminino, vivendo uma trajetória épica de 300 anos de história da humanidade. O elemento fantástico de sua condição, somado a uma perspectiva dos dois gêneros – de alguém que abarca dois extremos da vida social –, possibilita uma crítica ampla dos movimentos espirituais da humanidade e de suas transposições sociais. A visão panorâmica das várias fases da história transforma Orlando em uma persona atemporal e anacrônica, capaz de radiografar as contradições da alma e da sociedade, antevendo em si mesmo(a) a vantagem de unir duas naturezas diversas numa relação de complementaridade. A partir do romance inaugural de Woolf, Julie Beauvais propõe com seu trabalho o que chama de “neorrenascença”2, novo movimento espiritual que impinge não só uma nova forma de enxergar os corpos e os costumes, mas de experimentar o mundo. Da mesma maneira que o narrador-biógrafo de Virginia Woolf – que relata as aventuras de Orlando por diferentes momentos da história humana –, Julie Beauvais de certa maneira também busca contar a vida de Orlandos contemporâneos. Esses sete “embaixadores” – precursores do não binarismo, segundo a diretora3 – representam um novo passo psicológico e antropológico para a humanidade, na medida em que, com seus costumes, vidas e crenças, conseguem estabelecer uma forma de resistência ao pensamento binário e de transformação das comunidades em que vivem hoje. No entanto, se esses Orlandos de hoje são porta-vozes de uma nova era, deve-se encontrar o dispositivo que demarque essa nova percepção, no mesmo sentido de que a Renascença do século XVI só foi possível com o advento cognitivo e expressivo da perspectiva 4 . Daí o investimento maciço da diretora suíça e de sua equipe5 em procedimentos técnicos respaldados na ciência cognitiva e na experimentação formal. O objetivo é uma dramaturgia 139


de imersão a partir da codependência entre os temas e os aspectos técnicos, garantindo uma experiência sensorial que possibilite testemunhar uma nova existencialidade. Julie Beauvais nos apresenta sete “Orlandos”, postos lado a lado em telas de projeção e tendo ao fundo paisagens vastas e etéreas. Embalados por uma peça musical criada ao vivo por um musicista convidado a cada apresentação, os personagens, cada um numa cidade do mundo, movimentam-se de acordo com uma partitura corporal criada por Beauvais, executando-a de forma concentrada e consciente. Com ajuda do trabalho musical e com o impacto perceptivo provocado pelas projeções, a intenção é que os Orlandos propaguem uma frequência meditativa a ser vibrada no e pelo espectador. As telas de projeção, com mais de dois metros de altura, possibilitam um exame minucioso dos corpos e da movimentação dos Orlandos. A partitura de movimentos, executada em câmera lenta, demanda um regime de atenção que provê o corpo do performer de imantações arquetípicas, ressaltando a atemporalidade daquelas figuras. O caráter trans-histórico é realçado pela diversidade e amplidão dos espaços de filmagem, criando enquadramentos que se alinham pelo horizonte crepuscular, formando um circuito de telões ao mesmo tempo ritual e tecnológico. É interessante perceber como, na teoria da imagem, o trabalho de Beauvais condensa o paradoxo da fotografia explicado por Thierry de Duve (1978). A foto, de acordo com o autor, oscila entre dois extremos de captação da realidade no tempo, entrevistos em dois gêneros da representação fotográfica: o snapshot e o retrato. O primeiro, registrando momentos espontâneos da vida, busca documentar a passagem do tempo a partir de um frame que poderia ser encaixado numa série cinemática (ou cinematográfica). Já o retrato, ao contrário do snapshot, exorciza o tempo corrente e adentra no tempo condensado da memória, congelando a temporalidade num imaginário fechado e opaco à passagem secular do tempo. Um contraponto interessante para captar esse paradoxo seria observar a natureza das fotos documentais de zonas de guerra, feitas para divulgação jornalística, em oposição a álbuns pessoais, feitos para recordação familiar. A captação fílmica de Orlando, a princípio, remete à passagem do tempo tradicionalmente concebida e conquistada pelo cinema. Cada performer se encontra na sua respectiva geografia e condição climática, isolado no seu contexto sociocomunitário, enfim, no seu espaço-tempo cotidiano. No entanto, a lentidão dos movimentos e a paisagem recuada e onírica ao fundo fazem irromper aspectos típicos da mise-en-scène do retrato, provocando o espessamento do tempo-espaço da projeção fílmica. Trata-se de um movimento vivo, mas que joga com elementos representativos que deslocam 140


o filme na direção de um imaginário interiorizado, alheio às intempéries locais, espécie de tempo fantasmagórico da imaginação ou da alucinação. Tais elementos – como o slow motion, a amplidão da paisagem, a harmonia musical e a coreografia – reverberam em todos os filmes, como se eles fossem “retratos vivos”6 unidos pelo mesmo círculo mágico-religioso, tornando possível que o filme transcenda o realismo documental e adquira uma cosmologia própria. Em tempos de secularização extrema, creio ser possível afirmar que Julie Beauvais nos convida a exercitar corpo e espírito numa chave pouco comum ao mundo técnico-científico em que vivemos. Por outro lado, é interessante perceber como a própria tecnologia concorre para descortinar esses novos limiares antropológicos, sem se desconectar dos dilemas políticos globais. Vale lembrar que Julie Beauvais, a cada laboratório feito nas cidades visitadas 7, realiza um trabalho de reconhecimento e de convivência com cada “embaixador”, delineando sua biografia e o que ele(a) representa como alternativa de vida em meio à comunidade local. A concepção grandiosa do projeto e o aparato técnico proporcionam o alento de que, em meio ao movimento geral de ascensão de discursos intolerantes e políticas conservadoras, há iniciativas no campo individual e coletivo – e quiçá espiritual – que oferecem uma alternativa à marcha tecnocrática do planeta. Basta saber achá-las e expandir sua voz sutil em meio ao barulho feroz das grandes cidades do mundo.

REFERÊNCIAS DUVE, Thierry de. Time Exposure and Snapshot: The Photograph as Paradox. In: October, vol. 5, Photography, 1978, p. 113-125. BEAUVAIS, Julie. Julie Beauvais. Página de divulgação da artista. Disponível em www.juliebeuvais.com. Acesso em fev. 2020.

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ESPECIAL RAINHA JESUS, DEZ ANOS

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O EVANGELHO SEGUNDO JESUS, RAINHA DO CÉU THE GOSPEL ACCORDING TO JESUS, QUEEN OF HEAVEN

com Jo Clifford

REINO UNIDO, 2009 | 60min | CLASSIFICAÇÃO INDICATIVA 16 ANOS Dez anos depois de sua estreia na Escócia, a atriz e dramaturga Jo Clifford apresenta pela primeira vez seu monólogo em São Paulo. Neste ritual queer revolucionário, o pão é compartilhado, o vinho é bebido e Jesus (vivido pela artista) é recriado como uma transexual. A peça, que causou rebuliço entre cristãos logo em sua estreia, numa igreja em Glasgow, foi criada pela artista britânica como forma de lidar com sua própria fé e sua transexualidade. Para isso, toma por base um dos pilares do discurso cristão: a aceitação. É, portanto, um dispositivo de reflexão a respeito das relações entre arte e sociedade, e sobre o poder das dramaturgias trans no confronto com mecanismos estruturais de exclusão. A obra de Clifford inspirou a montagem brasileira homônima, interpretada por Renata Carvalho, que também será apresentada na MITsp.

HISTÓRICO

O Evangelho de Clifford é como um abraço apertado. É um ato de comunhão e cura, mas também é raivoso. (…) O que ela transmite pode ser uma doutrina herege, mas é um momento profundamente espiritual, quase sagrado, que prega a bondade e a coragem diante da crueldade, da ignorância e do medo. STEWART PRINGLE, Fest Mag É preciso frisar que este não é um ataque à fé ou ao cristianismo. Pelo contrário, é um trabalho de celebração, quase de devoção. HUGH SIMPSON, All Edinburgh Theatre

A inglesa Jo Clifford é dramaturga e performer, autora de peças como Loosing Venice e The Taming of the Shrew. Em 2015, criou a Queen Jesus Productions para auxiliar a turnê do monólogo Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu. Nesse ano, a equipe fez uma temporada no Fringe do Festival de Edimburgo apoiada pelo Made in Scotland, depois a obra foi apresentada no festival Outburst, em Belfast; no Queer Contact, em Manchester; e, com o apoio do British Council, no FIT - Festival Internacional de Teatro de Belo Horizonte. O trabalho foi realizado em igrejas, bares, teatros e festivais em todo o Reino Unido. Em 2019, a companhia foi selecionada pela primeira vez pelo Made in Scotland Festival, em Bruxelas.

Um dos percursos mais marcantes da história recente do teatro JOYCE MCMILLAN, The Scotsman

TEXTO E ATUAÇÃO Jo Clifford DIREÇÃO Susan Worsfold PRODUÇÃO Annabel Cooper ESTE ESPETÁCULO É UMA COPRODUÇÃO DO CENTRO CULTURAL SÃO PAULO, FAROFFA E MITSP

FOTO A LY W I G H T

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ESPECIAL RAINHA JESUS, DEZ ANOS

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O EVANGELHO SEGUNDO JESUS, RAINHA DO CÉU com Renata Carvalho

BRASIL, 2016 | 60min | CLASSIFICAÇÃO INDICATIVA 16 ANOS A atriz e ativista santista Renata Carvalho interpreta Jesus e recria a história de Cristo como uma transexual nesta adaptação brasileira do texto da britânica Jo Clifford – que também apresenta a sua montagem de O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu na MITsp. A obra toma por base um dos pilares do discurso cristão, a aceitação, para refletir sobre as relações entre arte e sociedade, e sobre o poder das dramaturgias trans no confronto com mecanismos estruturais de exclusão. A versão nacional, que foi alvo de censura e teve sessões vetadas pela Justiça (foi acusada de desrespeito à religião), resgata um mundo underground das ruas. O desempenho cru da artista traz à tona sua identidade de travesti, desafiando o público a compreender o sofrimento causado pelo estigma e pela marginalização.

HISTÓRICO

Cristã, Clifford traduz, mas não reduz o Nazareno. Travesti e ativista LGBT, Renata apresenta exuberante 'transbordamento de amor fraterno'. Amor não só às vítimas da transfobia mas também em dimensão existencial, ao propor que somos todos um. CAIO LIUDVIK, Folha de S.Paulo A dramaturgia de Clifford é mais oração do que teatro, mantendo-se fiel à sua fonte bíblica e traduzindo-a na poesia mais esparsa feita à sua própria imagem. Ao compartilhar os sacramentos, ela reforça todo o significado físico da devoração do corpo e do sangue. É uma refeição servida com alegria, e nós a apreciamos maravilhados. NEIL COOPER, Herald Scotland

Renata Carvalho é atriz, dramaturga, diretora e transpóloga. Fundou o Coletivo T – formado integralmente por artistas trans – e o MONART (Movimento Nacional de Artistas Trans), que, em 2017, lançou o Manifesto Representatividade Trans. Em 2012, participou de ZONA!, Projeto Bispo e Nossa Vida Como Ela É, além de produções realizadas na televisão e no cinema. Atuou em O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu (alvo de diversas censuras no Brasil) e Domínio Público (que reuniu quatro artistas brasileiros alvos de ataques em 2017). Seu espetáculo Manifesto Transpofágico, uma coprodução entre o Risco Festival, a Corpo Rastreado e a MITsp, estreou na Mostra em 2019.

TEXTO Jo Clifford ATUAÇÃO Renata Carvalho TRADUÇÃO, ADAPTAÇÃO E DIREÇÃO Natalia Mallo PRODUÇÃO Corpo Rastreado DIREÇÃO TÉCNICA Juliana Augusta ESTE ESPETÁCULO É UMA COPRODUÇÃO DO CENTRO CULTURAL SÃO PAULO, FAROFFA E MITSP

FOTO LU C I A N E PI R E S FE R R E I R A

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PERFORMANCES

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Mallika Taneja

Lia GarcĂ­a [La Novia Sirena]

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Maria Galindo


CICATRIZ

Lia García [La Novia Sirena] MÉXICO | 60min A performance da mexicana Lia García dispara as seguintes perguntas: Qual é a história que conta nossa dor? Como se faz política desde a dor coletiva? As vidas trans* (devido à banalização da palavra, a artista grafa o termo com um asterisco ao final) nos doem? Diante do estado de emergência no qual nos encontramos, diz a performer, nós – vidas trans* – nos rebelamos, aparecemos com nossas cuerpas no espaço público e denunciamos todas as violências que mutilam nossa memória. Na sequência, há exibição do documentário de Matheus Parizi sobre as Ações Pedagógicas da MITsp.

CAMINHADA NOTURNA: MULHERES EM MARCHA À MEIA-NOITE Mallika Taneja ÍNDIA | 60min O que acontece quando se coloca(m) um corpo (ou corpos) no tempo e nos espaços aos quais ele (eles) não pertence(m)? Caminhar pelas ruas à noite, observar a urbe. A artista indiana Mallika Taneja convida todas as mulheres a se unirem à experiência conjunta de andar por São Paulo durante à noite a fim de tornar tangíveis as permissões, os privilégios e as contradições que cercam os direitos das mulheres a ocupar os espaços públicos da cidade, em especial à noite.

A JAULA INVISÍVEL Maria Galindo BOLÍVIA | 4h Apresentada pela primeira vez no evento El Parlamento de los Cuerpos: los Parlamentos Imposibles, em Bergen, Noruega, sob curadoria de Paul Preciado, Viktor Neumann e Andreas Angelidakis, a performance de Maria Galindo parte da reativação criativa do protesto social, da assembleia e do manifesto político para indagar os horizontes da luta feminista e o lugar em que nos situamos quando nomeamos nosso espaço de “feminista”. A performance integra o LABEXP3, atividade das Ações Pedagógicas. Na sequência da apresentação, os participantes do LABEXP3 exibem microperformances com os objetos criados durante a atividade. E, ao final, há um bate-papo entre o público e Maria Galindo, com mediação de Maria Fernanda Vomero. FOTO S A D I T YA K A P O O R , A RQ U I VO PE S S OA L E A RC H I VO CO L EC T I VO AY L LÚ

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PO/ÉTICAS INSURGENTES POR PAOLA LOPES ZAMARIOLA

“AY, DIOS! EN LA ALDEA MURIERON 95 HOMBRES, 41 MUJERES, 47 NIÑOS 1”. Estas são as primeiras palavras que a artista guatemalteca Regina Galindo diz na performance La Verdad (2013). Nesse mesmo ano, o ex-presidente Efraín Ríos Montt havia sido condenado por crime de genocídio. Porém, o responsável pela destruição de 448 aldeias e por, pelo menos, 1.771 assassinatos, poucos dias depois tem sua sentença anulada. Dez anos antes, quando o ex-militar tentava retornar à presidência, ao invés de se pronunciar, a criadora optou por caminhar. De maneira silenciosa, realizou com os pés descalços o percurso entre a Corte de Constitucionalidade e o Palácio Nacional da Guatemala, deixando pegadas compostas por sangue humano na intervenção ¿Quién Puede Borrar las Huellas? (2003). É o elevado grau de impunidade presente na história de seu país que motiva a performer a formular proposições que evidenciem as sequelas dos massacres realizados durante a Guerra Civil (1960-1996), que resultaram na morte de mais de 200 mil civis, na migração forçada para o sul do México de outros 50 mil, além das incomensuráveis violações sexuais cometidas pelo exército. As mais atingidas foram as mulheres da etnia ixil, e são delas os testemunhos lidos por Regina em La Verdad, às vezes suspensos por um dentista que aplica doses de um anestésico em sua boca. A sequência de interrupções contribui para que se potencialize o trauma daquelas que, mesmo sob o efeito de diferentes formas de silenciamento, permanecerão buscando modos de fazer ecoar denúncias que anseiam por reparações. Será por intermédio de uma performatividade composta por situações que destacam o iminente risco de vida das mulheres que a artista estrutura uma po/ética insurgente através de atos coletivos de reelaboração do luto, como é o caso de Las Escucharon Gritar e No Abrieron la Puerta (2017). Nessa ação, o ato de vociferar recorda as 41 meninas que morreram em um incêndio criminoso ocorrido naquele ano em um centro estatal de acolhimento a crianças e adolescentes vítimas de violência física, emocional e sexual. Os gritos proferidos na performance, como os de algumas das mães presentes, são o prolongamento do pedido de socorro daquelas que tentaram sobreviver ao encarceramento e ao fogo. Em sociedades historicamente estruturadas a 150

1 Trecho extraído do registro integral da obra disponível em: https:// www.youtube.com/ watch?v=aNMjcPVgXZM. Acesso em 18 jan. 2020. 2 América na língua do povo Kuna. 3 Nomenclatura dada pelo escritor cubano José Martí. 4 Expressão criada pela antropóloga brasileira Lélia Gonzalez. 5 Detido pela polícia em 03/09/2005, em Puerto Montt, é o primeiro desaparecido no período pós-ditadura. 6 Vítima da polícia em 03/01/2008 durante uma recuperação de terras em Vilcún. 7 Assassinada em 22/08/2016 por liderar a luta contra a instalação de uma hidroelétrica no rio Tranguil. 8 Agredido em 18/12/2016 por mais de 100 balas de chumbo na comunidade de Collipulli. 9 Baleado em 14/11/2018 durante uma operação policial na comunidade de Temucuicui.


partir do cerceamento de direitos, e em que o Estado é o principal violador, os elos entre as práticas artísticas e políticas têm a potencialidade de contribuir para que o esquecimento não seja a única saída possível.

Paola Lopes Zamariola é professora, pesquisadora e artista. No [pH2]: estado de teatro, exercitou as funções de diretora, diretora de arte e atriz. Desde 2010, investiga as especificidades das práticas artísticas e pedagógicas do contexto latinoamericano, temática de seu doutorado em curso.

Ao buscarem dar representatividade a histórias insistentemente negadas, arte e política se entrelaçam em iniciativas comprometidas com as cosmovisões gestadas nos territórios da Abya Ayala 2, da Nuestra América3 , da Améfrica Ladina 4 , entre outras nomenclaturas que sublinham a multiplicidade de narrativas que compõem esses contextos. É o caso da artista chilena Paula González, que junto ao grupo Kimvn recupera e atualiza, a partir da linguagem do teatro documentário, os repertórios vinculados à cultura mapuche. Na peça Ñuke: Una Mirada Íntima Hacia la Resistencia Mapuche (2016), as motivações apresentadas por diferentes personagens para justificar o direito ao protesto são entremeadas às indagações de Carmen, que desacredita que as manifestações possam gerar mudanças efetivas. A personagem tem seu filho mais velho preso e sofre constante pressão da polícia. O fato encontra ecos no desaparecimento forçado de José Huenante5 , na morte do estudante Matías Catrileo6, no assassinato da ativista Macarena Valdés7, na violência exercida contra Brandon Huentecol8 , no grave crime cometido contra Camilo Catrillanca9 , entre outros casos de violência do Estado chileno contra a população mapuche. Testemunhos relacionados a esses e outros tantos exemplos estão presentes nas encenações de Paula González, que destacam como as fortes discriminações sofridas podem contribuir para o apagamento de um povo. É a partir das rukas, tradicionais casas mapuches, que a criadora encontra forças e formas para dar vida às memórias daqueles que seguem submetidos a realidades autoritárias, seja na modalidade de documentário cênico, como em Trewa: Estado-Nação ou o Espectro da Traição (2019), ou na de conferência performativa, como em Nvtram (2019). Em ambas as proposições, a contribuição de profissionais de diferentes disciplinas impulsionam uma po/ética insurgente que busca se posicionar na contramão dos poderes estabelecidos em seu país. Ética e poética se fundem para que a chama do fogo presente nas rukas, ao redor do qual as tradições mapuches seguem vivas, possam fazer insurgir outras perspectivas para a arte e para a política. Por intermédio de estratégias aparentemente distintas, Regina Galindo e Paula González convocam uma profunda reparação histórica, seja quando a primeira performa junto a uma bandeira da Guatemala que deixa de ser celeste, em Bandera Negra (2018), ou quando a segunda documenta a necessidade da bandeira mapuche nas atuais manifestações artísticas e políticas chilenas. São experiências urgentes como essas, conectadas à po/ética da artista boliviana Maria Galindo e sua trajetória junto ao coletivo Mujeres Creando, bem como da artista mexicana Lia García [La Novia Sirena], que darão voz ao grito insurgente das ações pedagógicas da MITsp 2020. 151


CONTRA O COLONIALISMO PATRIARCAL

POR MARIA FERNANDA VOMERO

EM MEIO AOS PROTESTOS QUE TOMARAM AS RUAS DO CHILE em novembro de 2019, uma intervenção feminista tornou-se viral: o ato Um Estuprador em seu Caminho, do coletivo Las Tesis, denunciando o estupro como um ato de dominação patriarcal sobre o corpo das mulheres. Graças às redes sociais, a performance ganhou o planeta. Mulheres de vários países reproduziram a coreografia, afirmando que a violência física, moral e simbólica contra suas vidas e seus corpos, por parte dos homens e dos Estados, continuava a ser uma ameaça concreta no mundo. Naquele mesmo novembro de 2019, a Bolívia enfrentava as consequências um golpe de Estado perpetrado pelas elites brancas, patriarcais e urbanas do país, que tentaram simular o desmonte democrático ao confirmar como presidenta uma mulher oriunda das mesmas elites, contrária aos avanços feministas, indígenas e campesinos. No México, país com alto índice de feminicídios e transfeminicídios, milhares de mulheres marcharam contra a violência pelas ruas da capital do país, em 25 de novembro de 2019. Monumentos como o Hemiciclo Juaréz foram pichados e, em vez de discutir os assassinatos e desaparecimentos forçados de milhares de mexicanas, parte da sociedade preferiu condenar o “atentado ao bem público” realizado por um grupo de manifestantes. Nesses contextos espinhosos, é fundamental destacar as contribuições da performer e militante anarcofeminista boliviana Maria Galindo, co fundadora do coletivo Mujeres Creando, e da performer, pedagoga e transfeminista mexicana Lia Garcia [La Novia Sirena]. Crítica feroz do sistema institucional de arte e de seus ditames hegemônicos sobre a produção criativa, Maria Galindo descreve-se a si e às demais companheiras de coletivo como “agitadoras das ruas”, “índias, putas e lésbicas, juntas, revoltadas e irmanadas”. A proposta do Mujeres Creando tem sido, desde sua criação em 1992, promover um feminismo anarquista, heterogêneo e não racista que reúna mulheres de diferentes idades, afazeres, orientações sexuais e setores sociais. Desde 2005, o coletivo tem sua sede em um centro autogestionado de formação de pensamento em La Paz, e mantém a Rádio Deseo, com transmissão contínua por doze horas diárias. Autora de livros de pensamento feminista e anticolonial, com experiência na direção de séries de TV e documentários, Galindo tem quase quatro décadas de ativismo social na Bolívia e em espaços artísticos do mundo (esteve, inclusive, na 27ª Bienal de São Paulo, em 2006). Sua produção performática tem como inspiração e cenários os espaços públicos bolivianos, numa busca de produzir 152

1 Disponível em: https:// artreview.com/features/ jan_feb_2019_future_greats_ maria_galindo/ 2 Disponível em: https:// www.laizquierdadiario.mx/ Poesia-trans-contra-elcapital-entrevista-a-LiaGarcia 3 Disponível em: https://ojs. uv.es/index.php/extravio/ article/view/4537/6769


“linguagens de luta”, como ela diz, em diálogo com a sociedade e mobilizar sentidos sufocados, a exemplo da intervenção Pasarela Feminista (2014), em que mulheres desfilavam mensagens de desagravo pintadas nos corpos ou costuradas nos trajes, numa praça de Santa Cruz de la Sierra. Maria Fernanda Vomero é performer, jornalista e doutoranda em Pedagogia do Teatro pela Universidade de São Paulo (USP), com uma investigação sobre teatro e resistência política na América Latina. É curadora das Ações Pedagógicas da MITsp desde 2015.

Naquele novembro de 2019, enquanto La Paz vivia a convulsão social nas ruas, Galindo e suas companheiras do Mujeres Creando proporcionaram um espaço para que quaisquer mulheres pudessem compartilhar testemunhos e reflexões em alta voz e sem temor; batizaram-no de Parlamento de las Mujeres, tomando emprestada a ideia central do Parlamento de los Cuerpos, projeto do filósofo queer Paul B. Preciado pensado para a exposição de arte Documenta 14 (2017), na Grécia, do qual Galindo participou como convidada. Aliás, sobre a performer boliviana, Preciado escreve: “Contra a purificação racial e sexual do corpo, a obra de María Galindo exorciza o terror da história colonial mediante una bastarda teatralização iconoclasta de símbolos católicos e patriarcais”1. A visibilização das cuerpas dissidentes, de identidades fluidas e não submissas à ordem patriarcal de “purificação racial e sexual” também tem estado presente nas propostas pedagógico-performáticas da jovem artista trans* Lia García [La Novia Sirena], em seus dez anos de trajetória artística na cena mexicana. “Me interessa fazer de meu trabalho poético um diálogo íntimo e muito sacudidor entre a escritura e a pele; quero dizer, cruzar a poesia com as artes do corpo e a política afetiva, saltar do palco e me entregar à incerteza [...]2”, afirma ela, que também transita pelos poetry slams (campeonatos de poesia cênica) e pela contação de histórias para crianças. Mais que rotular seus trabalhos como performances ou intervenções artísticas, Lia prefere chamá-los de “encontros afetivos”. Em todos eles, há um arquétipo ou uma construção cultural sobre o feminino em xeque, como nos projetos Puede Besar la Novia (a mulher trans* como a prometida), Mis XXy Años (o machismo por trás do ritual de celebração dos 15 anos e de apresentação das jovens à sociedade) e Voz em Construcción (o mito da sereia e o canto proibido e perturbador). Dessas experiências, constituiu-se a figura performativa da Noiva Sereia [La Novia Sirena], a partir da performance Un Cuerpo en Construcción (2014). Com sua cauda de sereia, na entrada da Faculdade de Ciências da Universidade Nacional Autônoma do México, Lia mantinha a seu lado um cartaz em que informava características da sereia: gênero, nome científico, hábitat, distribuição e medidas3. E, ao falar, sem disfarçar o timbre de sua voz, revelava sua condição trans*. Os trabalhos de Lia García passam por uma tessitura amorosa, no entanto, deixar de ser crítica aos discursos e às estruturas patriarcais e coloniais. Ao apresentar seu corpo habitado e habitável por experiências de intimidade e festa, deslocado dos registros de abjeção e violência normalmente associados a ele, Lia desloca, ainda que de modo momentâneo, a estranheza e o preconceito alimentados pela sociedade diante de sua existência trans* e permite outras possibilidades de afeição, sem ocultar sua contínua transição e transformação. 153


QUARANTINE E A DEMOCRACIA POR VIR POR RODRIGO NASCIMENTO

RECONHECER A DEMOCRACIA COMO UM MODELO INCONCLUSO. Assumir dentro dela o risco do convívio com o conflito, com o contraditório e com as paixões. Reconhecer aquilo que a democracia liberal tentou neutralizar para se afirmar como único modelo possível. O gesto parece difícil, sobretudo, se levarmos em conta que o momento atual é de emergência de lideranças autoritárias e de discursos pautados pela aniquilação do Outro. Portanto, aderir a um modelo político racional, baseado na legitimidade de lideranças sensatas, “nem de esquerda nem de direita”, seria para muitos a única forma possível de combater lideranças de veio fascista e posições autoritárias assumidas por parcelas da população. No entanto, para a cientista política Chantal Mouffe, a base da crise atual é justamente a ideia de que a democracia liberal ocidental seria a única possível. Tal modelo, diferentemente do que anuncia, não dá conta de equilibrar democracia e igualdade.1 Em tempos de neoliberalismo e de crise econômica, as atuais formas de representação e deliberação são capturadas por elites que administram a crise fechando os olhos para o empobrecimento 154

1 Ver O Kirchnerismo É uma Fonte de Inspiração – entrevista com Chantal Mouffe. Disponível em: <http://www.ihu. unisinos.br/169-noticias/ noticias-2015/543867-okirchnerismo-e-uma-fontede-inspiracao-entrevistacom-chantal-mouffe>. Acesso em 14 jan. 2020. 2 Ver Quarantine: The Theatre Company Making Ordinary People Part of the Conversation. Disponível em: <https://www.thestage. co.uk/features/2018/ quarantine-theatrecompany-making-ordinary-


Rodrigo Nascimento é crítico teatral do portal Cena Aberta, professor, educador popular e tradutor. Tem graduação em Letras pela Unicamp e doutorado em Literatura e Cultura Russa pela USP. Há anos dedica-se à pesquisa dos teatros russo e brasileiro. É autor de Tchekhov e os Palcos Brasileiros (Ed. Perspectiva).

people-part-conversation/>. Acesso em 14 jan. 2020. 3 MOUFFE, Chantal. Le Politique et la Dynamique des Passions. In: Rue Descartes, 3/2004, n° 45-46, p. 179-192. 4 Para histórico das performances, ver site do grupo. Disponível em: <https://qtine.com/work/>. Acesso em 16 jan. 2020. 5 Entrevista de Richard Gregory para o site Cena Aberta, realizada em janeiro de 2020. Disponível em: <https://www.cenaaberta. com.br/2020/01/16/conflitoe-invisibilidade-britanicosdo-quarantine-convidamartistas-brasileiros-pararesidencia-na-mitsp/>. Acesso em 16 jan. 2020.

e o aumento da desigualdade, ao mesmo tempo que negam a divergência e a resistência. Daí a insatisfação crescente da população com os partidos tradicionais e com as instituições, e mesmo o cinismo em relação à política – sentimentos que, ao fim e ao cabo, são absorvidos por lideranças de extrema-direita – as únicas que parecem anunciar (pelo menos na fachada) uma crítica a um modelo em crise. O que o coletivo de artistas e produtores britânicos Quarantine tem feito ao longo dos seus mais de 20 anos de existência é justamente trabalhar com pessoas que, distantes da grande política tradicional, tiveram suas vozes de algum modo ignoradas ou capturadas. Todas as nuances de suas posições políticas e de suas impressões sobre o cotidiano são assim reconhecidas, sem a necessidade de serem enquadradas dentro dos antagonismos que transformam o Outro em inimigo – procedimento que, aliás, está na sustentação do discurso dos regimes autoritários e de religiões extremistas. Por meio do teatro e da performance, o grupo sediado em Manchester, na Inglaterra, faz uma investigação acurada da vida cotidiana. De início, seus projetos se pautavam pela mobilização de pessoas comuns como fonte de material dramático para um trabalho posterior. No entanto, com o passar dos anos, à medida que refletiam sobre as dimensões éticas e políticas desse tipo de procedimento, se interessaram de modo mais acentuado por “criar uma dramaturgia da realidade”, mais do que “dramatizar a realidade”2 – ou seja: alçar essas pessoas à cena na condição de sujeitos mais do que de objetos de pesquisa artística. Assumir a democracia, e seus riscos, no próprio processo teatral. PESSOAS COMUNS, CONFLITO O Quarantine tem estabelecido como eixo de seus projetos a criação de circunstâncias em que haja conversa entre pessoas estranhas umas às outras, que, devido à dinâmica da sociedade atual, talvez nunca saíssem de suas zonas de convívio pessoal e profissional. Assim, o grupo acaba por trabalhar em termos teatrais e performativos aquilo que Chantal Mouffe chama de “pluralismo agônico”. A expressão sintetiza a ideia de que o espaço político é essencialmente um espaço de confronto e conflito, e uma democracia radical e plural deve se basear não na atitude do antagonista, que parte de uma relação na qual não há pontos de contato com o Outro, mas na atitude do agonista, que reconhece a legitimidade de seu oponente e o trata como adversário, não como inimigo (MOUFFE, 2005, p. 144; p. 20). Para que se efetive, adversários precisam de estar de acordo com os princípios democráticos de igualdade e liberdade (MOUFFE, 2004, p. 179-92).3 155


O grupo inglês não parte necessariamente do desejo de alimentar o conflito, mas também não interdita sua emergência. O fundamental é o reconhecimento e a garantia do espaço para a diferença e para as nuances. Assim foi com White Trash (2004), um “balé sujo da realidade”, criado com e performado por sete jovens brancos da classe operária inglesa, que conversam ao redor de uma mesa de sinuca sobre “todos os seus lados, toda sua beleza e feiura”. Do mesmo modo, em Summer (2014), dezenas de pessoas (da mais tenra idade aos quase 80 anos) criam e performam ao serem colocadas no palco para responder a questões e receber instruções que nunca ouviram antes. E em No Such Thing, performance-evento que ocorre mensalmente desde 2012 em um Curry Café de Manchester, clientes das mais variadas origens e profissões falam sobre um assunto do momento em troca de um prato de curry. 4 Pessoas comuns colocadas em uma situação que borra as fronteiras entre o não artista e o artista, entre o performer e o público. Sujeitos cujas vozes raramente são ouvidas, trazidos para situações cotidianas (um jantar, um almoço, uma sala escura, uma sessão de karaokê ...) e para conversas aparentemente sem objetivo, nas quais se valorizam momentos de significação descobertos quase que por acidente. Ao agir dessa maneira, o grupo parece operar no sentido de desnaturalizar a própria prática cênica e tornar visível o que antes parecia invisível dentro do sistema democrático tradicional: as pessoas comuns, seus discursos e suas contradições. OLHO NO OLHO – O QUARANTINE EM SÃO PAULO A residência multidisciplinar que o Quarantine realiza em São Paulo como parte da programação do eixo pedagógico da MITsp Olho no Olho: Quem Consegue Ser Visível na São Paulo de Hoje? é inspirada em 12 Last Songs, projeto em desenvolvimento. Ela segue princípios parecidos com os dos trabalhos anteriores: não artistas e artistas de várias áreas, bem como pessoas não alinhadas ideologicamente, postas em uma situação cotidiana. A ideia, segundo Richard Gregory, diretor artístico da companhia, é estimular que elas saiam da zona educada, polida e cordial que costuma pautar o encontro entre desconhecidos.5 Discordâncias e conflitos podem ocorrer, e o objetivo é que cada um tenha espaço para discutir sua posição e seu modo de ver o problema. Somente a partir daí seria possível recuar e avaliar a situação, para captar todas as contradições e visões complementares que os binarismos se recusam a reconhecer. A apresentação pública ao final, uma instalação performativa, tentará enfatizar o caráter produtivo da divergência. A proposta é um desafio em muitas frentes, sobretudo no Brasil tomado pela censura de espetáculos artísticos, pelo estímulo à vigilância e à punição de educadores e pelos gestos cotidianos de legitimação da violência contra negros e pobres – práticas que, nas redes sociais, são alimentadas por um clima de antagonismo insolúvel e por uma interdição do diálogo e do 156


debate. Por isso mesmo, a proposta do Quarantine parece bem-vinda. Conduzida por aqueles que de algum modo vêm de fora, mas que estão atentos à realidade brasileira e com os ouvidos atentos às diferentes vozes, poderá forjar novas possibilidades de convivência e pontos de contato na divergência. Afinal, a vaga autoritária e conservadora que tomou conta do Brasil não implica que a maioria dos brasileiros acredite na censura, na intolerância e na violência. Há, como sempre, visões intermediárias que se movem no contexto. Tudo isso implica, necessariamente, aceitar que a forma artística adotada pelo Quarantine será forjada coletivamente, em um trabalho dialógico, que leva em conta as diferentes perspectivas no processo de produção. Desse modo, o grupo sedimenta em forma o caráter cambiante da própria sociabilidade almejada: uma democracia inconclusa, ou, como diria Jacques Derrida, uma democracia por vir.

REFERÊNCIAS MOUFFE, Chantal. Le Politique et la Dynamique des Passions. Rue Descartes, Paris, v. 3, n. 45-46, 2004, p.179-92. ________________. On the Political. Londres: Routledge, 2005.

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A iNqUiEtAçÃo DE LISANDRO RODRIGUEZ POR FERDINANDO MARTINS

ALGUÉM SOBE NA GARUPA DE UMA MOTOCICLETA e percorre as ruas de Buenos Aires. Em dado momento, o motorista estaciona e cobre os olhos de seu passageiro com um lenço. O percurso segue até que essa pessoa, ainda com os olhos vendados, é deixada pelo condutor em um lugar específico, com uma barra de cereais e uma garrafa de água. Essa união momentânea, ao mesmo tempo lúdica e angustiante, é a estrutura da experiência performática Estás Conduciendo un Dibujo [Você Está Conduzindo um Desenho], proposta Lisandro Rodriguez na Bienal de Performance de 2019 e repetida no Festival Internacional de Buenos Aires, em janeiro de 2020. Artista de múltiplas linguagens, mas devotado ao teatro, Lisandro aponta a necessidade de lidar com uma inquietação perceptível na superfície dos corpos, na interação entre as pessoas e na relação com o espaço. A arte é uma forma de suportar o incômodo da existência. Não por acaso, Um Encontro Agonizante é o título de sua residência artística na MITsp, na qual se propõe a desconstruir princípios naturalizados de representação para que encenador e participantes encontrem uma linguagem cênica única, poética e pessoal. Nascido em Quilmes, nos arredores de Buenos Aires, Lisandro teve uma banda de rock quando era adolescente. Com 20 e poucos anos, mudou-se para Almagro, bairro de classe média em Buenos Aires com intensa atividade 158


comercial. Em duas décadas, consolidou-se como um dos principais nomes das artes cênicas na Argentina, com destacada relevância no circuito independente. Ele, porém, diz que prefere ser chamado de autônomo, pois independente marcaria um momento já ultrapassado. Os artistas, hoje, são dependentes de subsídios que os obrigam a criar condições de interdependência que garantam sua liberdade. Dessa forma, seu teatro é político no sentido de explorar o convívio como forma privilegiada de ação. Autonomia é, portanto, diálogo com o outro.

Ferdinando Martins é jornalista, sociólogo e produtor cultural. É professor doutor da Escola de Comunicações e Artes da USP, jurado do Prêmio Shell de Teatro e professor visitante do Hemispheric Institute of Performance and Politics da Universidade de Nova York.

O convívio o leva a pensar a relação com os espaços que trabalha, ao mesmo tempo, histórica e contemporânea. Em 2018, quando montou Fassbinder no Centro Cultural General San Martín, lembrou que o espaço havia sido originalmente construído para abrigar conferências da ONU, depois foi alugado para empresas privadas e, sob a ditadura, artistas foram perseguidos ali. Na ocasião, disse a um jornal local: “Aceitei esse pouco dinheiro para fazer um teatro público porque sabia que também iria falar sobre isso: como o Estado nos fagocita como artistas e nos deixamos fagocitar”. Da mesma forma, sua montagem de Dios [Deus], no Centro Cultural Recoleta, ecoava a exposição de León Ferrari censurada por motivos religiosos no mesmo local, em 2004. Para Abnegación 3 [Abnegação 3], texto do brasileiro Alexandre Dal Farra que Lisandro dirigiu em 2018, as intrigas e conversas entrecortadas do texto ganharam uma nova materialidade com a proximidade entre os espectadores e os artistas e espectadores, sentados lado a lado em uma pequena sala do Estúdio Los Vidrios, seu atual local de trabalho. Trata-sede uma casa transformada em espaço, antes chamada Elefante Club de Teatro, com uma ampla janela que faz a interação de quem passa na rua com o lado de dentro. A antiga cozinha converteu-se no hall do teatro. Em tempos de polarizações e individualismos que coíbem o entendimento entre as pessoas, de apagamento da memória coletiva que desenraiza os indivíduos de sua herança, e de espaços que se convertem em não lugares, Lisandro mostra que a arte é capaz de converter o vazio inquietante de nossas angústias em algo mais leve, autônomo e partilhado. Um teatro necessário.

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MITbr | PLATAFORMA BRASIL

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ENTREVISTA

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ARTISTA EM FOCO

ANDRÉIA PIRES POR CLÓVIS DOMINGOS E FRANCIS WILKER

Em Pra Frente o Pior, a Inquieta Cia cria no espaço uma atmosfera distópica. Em outros trabalhos seus também podemos identificar esse “fim de festa” se inscrevendo em cena, como em Vagabundos ou Fortaleza 2040. Como você percebe o lugar da distopia no seu trabalho? Do que se passa pelas curvas desses trabalhos só se exibem na maioria das vezes os restos dos corpos, o que sobra do desgaste, o que se salva do acidente, o rascunho do plano ou a execução imprecisa de uma engenharia importante. Os desejos desses projetos vivem a poucos metros uns dos outros, partilham o mesmo enunciado por diferentes gestos, andar de um lado para o outro de mãos dadas, lançar uma trouxa de roupas para o alto, lançar entulhos para o alto, saltar em grupo até acabarem-se as forças, acelerar uma moto até acabar o tempo da cena, narrar um texto de palavras roubadas, narrar um texto de ações aleatórias, correr nu. Em Pra Frente o Pior, nós performers seguimos em frente, apesar da trincheira, preferimos que nada dali saia, e o mínimo que consentimos que saia, um olhar disperso ou uma mão solta, é pela curva que sai. O desvio é o lugar onde perdemos o ponto de referência, onde olhamos em frente e não achamos o fim, provavelmente, nós, desviados do centro, passamos a narrar algumas distopias, acentuamos algumas palavras, desordenamos conjuntos hierárquicos, reconfiguramos endereços, acionamos alarmes. É por esse motivo que esse movimento de trabalhos artísticos em que tenho me engajado, permanece uma ação torta, mal-educada, perto de ser uma sinalização que aponta outras direções. A imagem de seis pessoas de mãos dadas em Pra Frente o Pior evoca diferentes modos de organização coletiva. Se por um lado temos a atmosfera distópica, por outro, a ideia de um mundo que só é possível se pensado coletivamente é uma afirmação contínua nessa obra e também em outras criações suas. Em Vagabundos ou em Bando de Pássaros Gordos, a coralidade é um importante procedimento poético. Quais os sentidos éticos, políticos e estéticos que você atribui a coletividade no seu trabalho? Pronto, o bando que se inventa na cidade onde moro, em Fortaleza, fica entre a elite protagonista e os grupos miseráveis, esses que se interessam pelo reduto do acontecimento, mais do que seu anúncio solista. Penso: Como embalar para o alto um grupo de pessoas vorazes por suas buscas, e torná-las gigantes, não uma, mas todas em suas múltiplas dimensões? Talvez nesse sentido seja impulsionada aí 163


ENTREVISTA

uma ética diferente daquela escrita na constituição brasileira, mas a da existência das coisas comuns, dos pedaços de ação que se tornam possíveis de apresentar na coletividade, na multiplicação de hipóteses do que pode acontecer. No espetáculo Pra Frente o Pior, não há um protagonista. Em Bando de Pássaros Gordos e Vagabundos (trabalhos que fiz a direção) também não. Fortaleza 2040, apesar de um corpo grunhir sozinho no centro do palco, não há, ainda assim. Não há um, havendo vários. Essa dança de muitos embriões de ações comunitárias fazem sentido onde num desenho da história da arte, os diretores, atores principais, escritores, primeiros bailarinos e solistas protagonizam largos espaços que acabam confundido alguma especificidade com diferença de nível de poder. Me interessa a reunião de diferenças, o não se acostumar com aquilo que já se sabe, descobrir procedimentos de trabalho e aprender a inventar com o risco de não dar certo. Isso se dá em grupos grandes de pessoas, que é o formato esfumaçado que eu desejo continuar trabalhando como poética no teatro, na dança e no cinema. A Inquieta Cia mostra-se interessada em outros arranjos produtivos na sua forma de organização. Em Pra Frente o Pior, por exemplo, ninguém assina uma direção/encenação do trabalho. Nesse sentido, como você compreende a noção de autoria nas suas criações? A Inquieta Cia. reúne artistas engajados numa composição coreográfica cotidiana de assuntos ligados à vida, às imagens, aos diversos finais de mundos, aos procedimentos cênicos, à performance e à elaboração de planos estratégicos para aprender a dialogar. Esse grupo de pessoas não é liderado por um dos membros, mas pela situação que cada trabalho nos leva; quase sempre nosso caminho é construído de dúvida e observação, ação e pausa. Não somos um grupo 164

de teatro. Não somos também uma companhia de dança. Mas fazemos teatro e dança. Entendemos que os modos de operar da Inquieta vão surgindo como se fossem um texto metafórico que imagina, compara, inventa e compartilha. Em Pra Frente o Pior, assim como no grupo, não temos diretor e somos impulsionados a trabalhar num movimento constante de atenção, despreocupados com o criador ou proponente de cada coisa, o trabalho vai seguindo com seu projeto contra às convenções de respeitabilidade moral, exposto nas ações de insistência que geram a sua dramaturgia. Penso que a autoria tem a ver com parir, vários elementos formam uma gestação: interferências, memórias, conexões biológicas, invasões cognitivas, força, ajuntamento de pessoas; enquanto alguém se disponibiliza para ligar tudo isso, e nesse caso essa pessoa pode ser chamada de autora, não dona, afinal, muitas contribuições fazem parte dessa formação. Tenho atuado bastante como diretora, até mesmo como professora na universidade, e venho me posicionado num contexto de orientar, direcionar projetos. Nessas experiências, vou aprendendo a notar sinais que deformam os modelos de trabalho autoritário; formam-se outras texturas e vou me aproximando delas. Vocês iniciam o Pra Frente o Pior dizendo: “O que você vai ver é exatamente o que você vai ver”. A frase opera como um antídoto a qualquer expectativa de uma narrativa linear ou fábula para o trabalho. Essa operação se mostra presente em praticamente todas as suas obras. O que interessa a você é a presentificação da ação como eixo motriz de sua poética? Qual perspectiva ganha o corpo no seu fazer? Vivemos redundantemente o agora. Não tenho me interessado pelo esquema futurista para o lugar onde desenvolvemos nossos planos. Desejo a cena que segue seus ímpetos de urgência, seus rasgos de onde escorrem as palavras. Pelo presente conversamos para esticar os argumentos,


falar para notar que ainda estamos aprendendo, produzir ações que nos levantam dos nossos assentos, que nos fazem avançar. Nos projetos em que trabalho, os corpos vivos, subalternos, com seus latidos esganiçados e suas vozes sibilantes inarticuladas, gritam sob o controle de uma chefia ocidental, atuam com os ossos ressequidos, mas enriquecidos de vitalidade numa íntima relação com o confronto em todos. Assim pulsa a vida. A guerra se torna uma necessidade diante das diferenças, ela brota da carne, do diálogo, dos pensamentos possíveis e impossíveis, assim como no Poema Conjectural de Joge Luis Borges: "O Doutor Francisco Laprida, assassinado no dia 22 de setembro de 1829 pelos montoneros de Aldao, pensa antes de morrer". Aqui nessa pequena abertura de poema, na imaginação, na invenção imbuída de desejo, pensar antes de morrer se torna uma possibilidade, uma alternativa, radicalizando traços de pura realidade do corpo para possíveis multiplicidades. O corpo esquematiza encontros, produz inúmeras formas de vida e, então, trava batalha. Diferente da matança, ele regula contatos das potências heterogêneas. A concretude dos objetos e sua produção de presença também se mostram como traços que chamam atenção nos seus projetos. Vemos colchões, caixas de papelão, cones de sinalização de trânsito e até uma moto invadirem a cena de Vagabundos. Em Bando de Pássaros Gordos, de maneira inusitada, um carro irrompe no palco. Em Fortaleza 2040, somos surpreendidos com uma fanfarra em dado momento. Como você trabalha essa “invasão” das coisas do mundo nas suas obras e seus possíveis efeitos e leituras? A palavra invasão é muito precisa para encontrar uma reflexão do caos ressoante nos projetos que tenho atuado e as leituras são geralmente associadas aos significados das coisas, do que a própria materialidade delas. Não sei bem como falar disso, mas tem um tanto de imaginação cruzada com extrema absorção de tudo que

vejo, dos lugares que vivo e isso vai me fazendo rapidamente uma artista enlouquecida de narrativas em que o tudo pode ser, se torna uma hipótese. No espetáculo Vagabundos, existe uma cena que ajuda a aproximar essa ideia, segue uma das narrativas: De uma das saídas de emergência do teatro, uma atriz carrega um lustre achado no lixo dos fundos da casa do Senador Eunício Oliveira, localizada na rua Deputado Moreira da Rocha, 778. Abaixo do primeiro degrau da arquibancada, descem pneus girando sobre si mesmos, sendo carregados por Leonardo William e Milton Sobreira. Longos tapetes luminosos e duas cadeiras amarelas protegidos por plásticos transparentes, uma mesa de madeira pintada de branco, dois ventiladores com hélices imóveis, mangueiras de incêndio descartadas, uma enorme árvore de natal, um cofre, uma cama, uma geladeira azul quebrada decorada por adesivos do Grêmio Estudantil de 1989, um botijão de gás, duas sacas de cimento, sete bicicletas, três caixas de sabão Brilhante, um refletor de luz alaranjada, uma placa de trânsito roubada da avenida Treze de Maio, uma moldura de comprimento equivalente a altura de Sérgio Cavalcante, o ator mais baixo. No mais fundo da cena, há uma mudança de casa, um trânsito de grandes e pequenos objetos, uma viagem de um estado para outro, uma espécie de rebelião de materiais que cruzam de cima para baixo, da direita para a esquerda. Uma cena do filme Rei Leão interrompe esse cruzamento, piruetas nascem no centro do palco ao som de uma vinheta do programa do Silvio Santos. Todos aplaudem. Uma moto ilumina a cena com seus faróis acesos, sua buzina insistente expulsa todos os atores da cena. Explode mais uma bomba na calçada do teatro. Blackout. A sua carreira evidencia permanentes trânsitos e contaminações, as criações nascem desses deslizamentos entre as linguagens do teatro, da performance, da dança contemporânea, e, mais recentemente, do audiovisual. Por outro, a sua 165


ENTREVISTA

atuação profissional também é marcada por esse deslocar, temos a artista, a pesquisadora acadêmica e a docente, uma vez que atua pedagogicamente em oficinas, cursos de graduação e residências artísticas. Gostaríamos que falasse um pouco sobre o que te move, como se move e o que faz mover nesses trânsitos. O que me move é a soma do desejo com a revolta. Isso se move numa rebelião que acontece do modo mais simples: o encontro. Reunir para trabalhar, propor, pesquisar, executar, depravar e compartilhar. Isso move o olhar, move o corpo, os órgãos, as perspectivas do tempo e das ideias. Meu percurso nunca foi solitário e isso foi gerando trabalhos do mesmo modo, nada solitários, o que aos poucos foi me fazendo entender uma diversidade de produção que é atravessada pela amizade, pelas influências de pessoas próximas que me apresentam outros mundos que se cruzam de modo orgânico com meus percursos. Entendo que o movimento da criação, da composição, se espalha por todos os jeitos de trabalhar. Não é possível, por exemplo, mergulhar num processo pedagógico de troca e invenção, sem que seja produzida uma dramaturgia a partir dos elementos que o constituem. Torna-se difícil olhar para um título como Pra Frente o Pior e não criar alguma associação com o cenário político brasileiro dos últimos quatro anos. Você é uma artista, mulher, nordestina e de ascendência indígena. Como tem percebido os horizontes e limites para um corpo com a sua história e lugar de fala nos nossos dias e como essas questões atravessam a sua criação? Uma mulher chamada Andréia, assim como muitas outras, vive no Brasil. Ela olha para ele, e ele lhe escapa. Aos poucos, sua habitação se torna uma construção desesperada. Ela sou eu. Um corpo que pode ser chamado de doente e suas intervenções 166

acontecem sem anestesia, basta notar o quão bruta é a sua presença. Torna-se zona de fronteira, zona móvel de perigo, zona ilegal, zona clandestina. Este corpo cearense separa e une, une e separa sentidos, não como polaridades ou oposições, mas como invenção cultural feita de poderes, espaços, símbolos, diferenças. Obras artísticas coletivas. A subjetividade nordestina necessita mover interstícios e nesse movimento gerar outros fluxos num tempo de mudança contínua. Estamos aqui para escrever um tipo específico de relato, sem palavras. Algo que despiste os olhares fixos da nossa ação. O seu potencial de existência se dá, de alguma forma, no oferecimento desta presença, aos que pretendem pensar sobre o corpo enquanto bomba de propulsão às sociedades que estamos construindo ao viver. Por e para aqueles que vivem aqui, agora. Você defendeu sua dissertação de Mestrado intitulada Performances e Políticas de um Corpo Criminoso no Programa de Pós-Graduação em Artes da Universidade Federal do Ceará. Nesta pesquisa você pensa a especificidade em que o corpo, como política e materialidade do sensível, não concorda com a norma ou com as imposições opressoras. Como você analisa essa possibilidade de desobediência do corpo frente às estruturas de poder? Como se dá a relação entre pesquisa acadêmica e prática artística? E mais: quais seriam as estratégias para que o corpo, no campo artístico, não perdesse sua condição de cometer delitos e infrações? Desobedecer esses formatos é inventar relevos e descobrir outros modos de viver e se relacionar com as normatizações impostas pelo Estado. Hoje, é difícil pensar em crime sem pensar no projeto civilizacional da modernidade. Não que o exercício da punição sobre indivíduos desviantes já não tivesse existido, muito e de formas variadas, porém, é com a definição e refinação da jurisprudência no processo de instauração de repúblicas por todo o


mundo, incluindo a criação de um campo de direito internacional, que se dissemina também a política de regulação dos corpos e os valores pelos quais se medem e se julgam as suas conformações ou deformações em relação à ordem autoritária. Se crime é ato, criminoso é o corpo ao qual a ação é imputável. Definir um corpo como criminoso é defini-lo como punível, qual matéria de privação, tortura ou pena capital, qual matéria da punição não é outra, senão os corpos e as condições às quais estes são sujeitos. Não há nessa definição outro desígnio que não o da instauração e manutenção de uma ordem humanista, com toda a sua história de patriarcado, capitalismo e colonialismo. Fazer do crime resistência à punição é perturbar sem fuga nem antagonismo a autoridade dessas forças. É desenvolver no seu seio a irregularidade que tanto menosprezam e com isso potenciar a existência de vidas cujo modo está por dar. Crime pode potencializar a vida por vir, perturbação de uma humanidade que se pensa o centro de tudo. Então , produzir arte no corpo é produzir um corpo criminoso, desobediente ao que se espera dele. As práticas artísticas produzem motivos para gerar pesquisas, fomentar curiosidades, reinventar o ensino, descentralizar a escrita e colaborar com outros processos de construção cultural, social e histórico. Fico na torcida para que a academia e as artes passem a se compreender como vizinhas e que haja uma intimidade capaz de dissolver o que estiver endurecido de ambos os lados. Quanto às estratégias para que o corpo, no campo artístico, não perca sua condição criminosa, para mim estão na continuidade dos trabalhos, no transbordamento das ações, no potencial da poética. A lei continua rígida, a constituição da República Federativa do Brasil permanece no mesmo lugar, sendo assim, basta um sacolejo brusco e já estaremos fora delas. É assim que seguimos, depravados, desviados, destituídos.

Em vários trabalhos seus e com a Inquieta Cia há a busca permanente por experimentações estético-políticas nos espaços abertos da cidade. O que interessaria a vocês nesta relação entre corpo, arte e territórios urbanos? Há um trecho de um texto seu em que consta a seguinte afirmação: “As vértebras dessa Fortaleza estão visíveis, embora cobertas por camadas de uma massa cinzenta, que endurece e é capaz de permanecer ali por anos e anos”. O que poderia provocar a arte no concreto da cidade? Como a vivência na cidade reverbera nas suas criações? A arte pode martelar o concreto, se aproveitar dos seus equipamentos para saltar, escalar, deslizar, se esconder. Artistas e engenheiros, cronistas sociais e turistas ficam com frequência curiosos sobre o excesso de cimento que banha as cidades, com os viadutos e prédios cuja durabilidade é assegurada por cinco gerações. O chão cinza, que se propõe resistir, oferece sua materialidade opaca ao corpo que simplesmente repousa. Cresci em um bairro chamado Mondubim, na periferia da cidade, em frente à uma lagoa poluída e misteriosa. Todos os dias eu caminhava nas suas redondezas para pegar o ônibus até a escola, depois de um tempo, para o trabalho, e logo para o ensaio e então para as apresentações, enfim, outros caminhos. Mudei de endereço, mas esses percursos distantes pela cidade foram permanecendo nos projetos, nas obras, nas danças, nos contos. A cena expõe as incongruências da rua. As regras são dificilmente estabelecidas. O que importa, no caso, é que o acontecimento esteja à vista, ou aquele programa que alguém foi intimado a cometer. Todo um sistema de dramas, de natureza geralmente roubada da cidade. As invenções continuam, de modo que a representação jamais acabará. FOTO G A B R I E L M A RQ U E S

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FORTALEZA 2040 Andréia Pires

FORTALEZA/CE, 2019 | 50min | CLASSIFICAÇÃO INDICATIVA 16 ANOS

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Partindo de estudos sobre a Constituição da República Federativa do Brasil, o espetáculo é fruto da pesquisa Constituição Coreográfica Criminosa. A proposta é pensar de que modo o crime pode ser percebido como prática política discursiva, assegurado por certos regimes de controle, e como o corpo, na produção de coreografia, intervém nessa construção. A obra compreende que a questão do crime emerge de uma estrutura de poder e convivência de um determinado grupo de pessoas, de uma matéria que não é metafísica nem antropológica, mas histórica e civilizatória. O trabalho, que leva o nome de um plano de desenvolvimento para a cidade de Fortaleza, mostra um corpo sufocado que se movimenta de forma incessante e contundente junto a um som metálico. A “coreografia criminosa” se posiciona diante de regras de comportamento e de esquemas de ordem e de progresso levantados por meio da censura e do medo. 169


HISTÓRICO

Fortaleza 2040 é essa espécie de transe artístico, que não acontece somente diante dos meu olhos, mas que me inclui pelo simples fato de eu estar presente. O trabalho, me parece, é o de árdua e taticamente reduzir símbolos a materiais plásticos, que, uma vez concretizados, são experimentados através de suas texturas e sobreposições incoerentes. As relações tornam-se primordialmente sensoriais para que através delas outros acessos e discursos sejam construídos. Fato é que, na alegria, no delírio e no desgosto, estamos todos juntos e ninguém se salva! Andréia Pires não tenta purificar nada nem visiona qualquer futuro harmonizado. Do contrário, ela abdica da estratégia paternalista de saber mais do que a plateia e dizer como cada um deve se posicionar. Como espectador participo dessa dramaturgia do impasse, que, justo por não tirar o corpo fora, abre buracos numa trama de poderes que quanto mais representam suas forças, mais se tornam insustentáveis. FELIPE RIBEIRO, professor do DAC/UFRJ e diretor artístico do Festival Atos de Fala

Artista da dança e do teatro, Andréia Pires atua como professora dos cursos de bacharelado e licenciatura em Dança da Universidade Federal do Ceará e do Curso Técnico em Dança (Porto Iracema das Artes). O trabalho Fortaleza 2040 emerge da pesquisa de mestrado da artista, intitulada Performances e Políticas de um Corpo Criminoso, e encontra espaço para desenvolvimento artístico no Laboratório de Dança do Porto Iracema das Artes, em Fortaleza, com interlocução de Alejandro Ahmed, do grupo Cena 11. Tal pesquisa fez com que Pires e os artistas Geane Albuquerque e Honório Félix mergulhassem em um processo de criação artístico-coreográfico e realizassem uma investigação pelos movimentos de poder dos corpos nos espaços.

CONCEPÇÃO E PERFORMANCE Andréia Pires, Geane Albuquerque e Honório Félix INTERLOCUÇÃO, ILUMINAÇÃO E INTERVENÇÃO SONORA Alejandro Ahmed PRODUÇÃO Andrei Bessa

A performer nos encara de costas, o que é obviamente um paradoxo. É como estar diante para não ver. A posição articula tanto uma espécie de opressão em relação à parede quanto uma marcha cega sem sair do lugar. Encarar de costas quer dizer ver o avesso. Pires é um monstro que avança contra a parede e também alguém que resiste ao avanço de uma parede-monstro de concreto. BRUNO REIS, LabCrítica

FOTO S R E N ATO M A N GO L I N

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IMAGEM DO ESPETÁCULO

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PRA FRENTE O PIOR Inquieta Cia.

FORTALEZA/CE, 2016 | 50min | CLASSIFICAÇÃO INDICATIVA 16 ANOS

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PRA FRENTE O PIOR traça um percurso vertiginoso sobre o que significa conviver em sociedade, em especial no atual momento sócio-político do Brasil e do mundo. De mãos dadas, os seis intérpretes movimentam-se cada um a seu modo, formando uma massa amorfa, sempre unida, porém desorientada e desconexa. É como se quisessem caminhar adiante e juntos, mesmo que não cheguem a um destino ou não suportem mais o percurso. Uma espécie de fim de festa, um fim de esperança, mas que não causa paralisia, pelo contrário: no desespero, tenta-se sempre reagir, ainda que se esteja apenas cavando o próprio fim. Fruto do diálogo entre a Inquieta Cia. e os artistas Marcelo Evelin e Thereza Rocha, o espetáculo transita entre linguagens (teatro, dança e performance) e parte de estudos sobre a dramaturgia que nasce do corpo, de seus gestos e expressões, e ressoa além dele. 173


HISTÓRICO

O trabalho é de uma violência tocante, às vezes eufórica. Sempre contínua, e ainda que em momentos pareça amortecida, nunca é acalmada. Seguir em frente, mesmo que a gente se desfaça. É a metáfora máxima da condição humana como eles nos mostram. HENRIQUE ROCHELLE, crítico de dança

Pra Frente o Pior não comporta o fazer de conta. A obra está ali: viva e presente. A linguagem figurativa e o movimento demonstrativo não cabem e os seis performers sabem disso. A obra ganha força justamente pela repetição sincera, pelo movimento espontâneo. O espetáculo vale apenas o suor derramado em cena. E isso é tudo. RENATO ABÊ, O Povo

A cearense Inquieta Cia. não se atém a funções ou referências em suas pesquisas e atividades artísticas. Investe em criações coletivas e em trabalhos que mobilizem o meio artístico e a sociedade, que tratem da singularidade e da diversidade dos corpos. Entre seus espetáculos estão Metrópole, Esconderijo dos Gigantes e PRA FRENTE O PIOR. Desde 2016, a investigação em torno do PIOR tem gerado outros materiais, como a instalação performativa Derivações do PIOR, a exposição fotográfica \Ainda PIOR de Novo\ e o \arquivo do PIOR\, publicado na revista VAZANTES a convite da Universidade Federal do Ceará, que retoma a pesquisa e suas ações. O grupo também trabalha com ações formativas, ministrando cursos e oficinasperformances.

PERFORMERS Andréia Pires, Andrei Bessa, Geane Albuquerque, Gyl Giffony, Lucas Galvino, Wellington Fonseca INTERLOCUÇÃO Marcelo Evelin COLABORAÇÃO DRAMATÚRGICA Thereza Rocha

E fui me vendo daquele jeito: empurrada, adormecida, carregada, hipnotizada, esbagaçada, amordaçada, ajoelhada, muda, trancafiada, açoitada. E tem sido assim... E o pior de tudo é que não é só eu! Era tanta gente ali. A humanidade inteira, a vida inteira, a existência inteira. Quanto mais eu me via, mais via outros em mim. E o que resta? Se ver. Gratidão à Inquieta. Eis que a vida é. Imperdível.

SOM Uirá dos Reis CENOGRAFIA Inquieta Cia. e Caroline Holanda FIGURINO Isac Sobrinho e Mallkon Araújo ILUMINAÇÃO Inquieta Cia. e Walter Façanha PROJETO GRÁFICO Andrei Bessa FOTOS Chun, Igor Cavalcante Moura, Éden Barbosa, Rômulo Juracy e Thiago Sabino PRODUÇÃO Inquieta Cia.

ROSA PRIMO, bailarina e professora do curso de Dança da UFC

FOTO S É D E N B A R B O S A

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VIVER MELHOR NUM MUNDO PIOR

POR CLÓVIS DOMINGOS DOS SANTOS

ENCARAR DE FRENTE OS PROBLEMAS E AS MISÉRIAS DO MUNDO é algo extremamente doloroso e aterrorizante. Estamos diante de um nebuloso horizonte no qual presenciamos, em escala mundial, o aumento da barbárie em forma de pobreza e violência, as devastações e mudanças climáticas causadas pela destruição humana, a ascensão de governos fascistas, a criminalização dos direitos humanos, a velocidade da informação, a medicalização da sociedade, o culto ao individualismo, a xenofobia e o racismo, a depauperação da vida urbana etc. Para não enfrentar o abismo da realidade que nós mesmos construímos, preferimos o caminho da negação e criamos ficções de salvação que possam nos livrar não somente da angústia, mas da nossa responsabilidade. No confronto com o real, como abandonar uma visão e postura idealizadas e alimentadas por afetos tristes como o medo e a esperança? Como assumir que estamos vivendo num mundo pior? E mais: quais os possíveis que ainda hoje nos restam? Não será a crença num futuro distante e talvez harmonioso mais uma válvula de escape a nos alienar de nossas potências? Como sobreviver em meio a um mundo incompleto, despedaçado e injusto e ainda assim afirmar nossas existências e possibilidades de luta e criação? Tais questões se fazem presentes nas temáticas dos trabalhos PRA FRENTE O PIOR e Fortaleza 2040, que contam com a atuação da bailarina brasileira Andréia Pires, artista em foco na MITbr – Plataforma Brasil deste ano. Graduada em Artes Cênicas, Andréia exerce sua arte entre diferentes áreas e linguagens – dirige espetáculos, atua em tantos outros, coreografa obras e aventura-se também pelo audiovisual. Nesses dois experimentos, o corpo 176

1 Para saber mais sobre a companhia, acessar: https:// www.inquietacia.com/ inquietacia.


como campo de conhecimento trava um combate frente às opressões impostas não somente pela cultura, mas pelos poderes que ameaçam sua integridade e expressividade social, política e existencial.

Clóvis Domingos dos Santos é artista, pesquisador cênico e crítico no site Horizonte da Cena. Doutor em Artes pela Escola de Belas Artes da UFMG. Atualmente desenvolve estágio Pós-Doutoral em Artes Cênicas no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFOP, com pesquisa sobre crítica e cena contemporânea.

PRA FRENTE O PIOR é uma obra criada pela Inquieta Cia., de Fortaleza, em 2016, que coloca o corpo numa experiência de exaustão e desgaste, se vendo atravessado por momentos de encontro e violência. Seis performers se juntam para criar um aglomerado ou bloco humano que se movimenta num interminável vaivém e precisa estabelecer negociações temporárias e diferentes modos de se mexer para conseguirem permanecer unidos. O trabalho tem origem na pesquisa Um Corpo em Final de Festa, desenvolvida em diálogo com o coreógrafo Marcelo Evelin, de Teresina (PI), e com a dramaturga Thereza Rocha, professora do Instituto de Cultura e Arte da UFC - Universidade Federal do Ceará. A dramaturgia tem inspiração em autores e pensadores como Samuel Beckett, Eduardo Viveiros de Castro, David Lapoujade e Peter Handke. Nos trabalhos da referida companhia1, o corpo como agente propulsor é ativado na busca por estratégias compositivas que transitam por diversas linguagens, formas e conteúdos, borrando os limites e convenções mais estabelecidas. Interessa a fricção criativa, a emergência de questões, a produção de dramaturgias híbridas, o dissenso como gesto ético e político a afirmar as possíveis transformações ocorridas no contato com a diferença. Outrar aqui é verbo, ação, desejo, inquietação. A autoria se torna compartilhada em proposições cênicas como Metrópole (2012) e Esconderijo dos Gigantes (2015), através de trabalhos que se desviam da ideia de espetáculo e de narratividade para migrarem rumo a experiências marcadas pelo acontecimento e provocadoras de sinapses e curtos-circuitos. Como campo expandido, o lugar dos espectadores também se desloca a partir do convite para que esses possam inventar sentidos e visões outras que ampliem a recepção das obras. No caso de PRA FRENTE O PIOR podemos identificar a presença de elementos como a coralidade, a instância ritual, a dimensão mais performativa e menos figurativa dos corpos numa construção dramatúrgica que opera por passagens, justaposições, multiplicidades, duração temporal, intensidade e desestabilização. Provocar a experiência física no espectador e não uma categorização ou busca de entendimento parece ser um dos estímulos do trabalho. É possível perceber diálogos e contaminações dessa obra com trabalhos recentes de dança contemporânea como Pororoca, da Lia Rodrigues Cia de Danças (RJ), e Matadouro, do Núcleo do Dirceu (PI), com direção de Marcelo Evelin. Na trajetória de Andréia Pires também se destacam espetáculos como: Vagabundos (2014) e Bando de Pássaros Gordos (2015). São poéticas que tratam de questões emergentes como a relação 177


com o outro, a possibilidade de heterogeneidade no coletivo, de como aprendermos a viver juntos. Em PRA FRENTE O PIOR assistimos a uma massa disforme em constante movimentação, precisando suportar coletivamente o cansaço e a exigência de seguir adiante. Nessa oscilação vertiginosa e enlouquecedora, numa espécie de repetição (seria a ilusória busca de se alcançar o progresso?), os corpos sôfregos e entrelaçados colidem em placas metálicas instaladas de cada lado do palco, produzindo assim um ruído poderoso. São “corpos que não aguentam mais” (LAPOUJADE, 2002) serem puxados, conduzidos e forçados a se mexer. Seguindo para frente, “eles serpenteiam, se arrastam. Eles gritam, gemem, se agitam em todas as direções” (LAPOUJADE, 2002, p. 82). Será um grupo de amigos bêbados depois de uma festa ou vidas cavando seu fim? Está pior agora e amanhã estará mais ainda. E assim seguimos agonizando. FORTALEZA OU FRAGILIDADE? Da mesma forma agoniza nossa qualidade de vida na cidade, nosso direito de se sentir pertencente a um lugar, de poder habitar uma arquitetura na qual memória, corpo e história possam coexistir para falar de nossa presença no mundo. O corpo na cidade se tornou mercadoria, descarte, medo, produção de doença. Diante dos discursos neoliberais de acumulação e desenvolvimento com seus projetos de privatização e gentrificação, o espaço urbano se tornou meio de passagem, um não lugar, fracassando como arena de ocupação e sociabilidade. Andréia Pires, ao criar Fortaleza 2040, discute a violência urbana e o lugar da arte nas soluções, nem sempre pacíficas, do problema. A peça, que conta com a colaboração e orientação do coreógrafo Alejandro Ahmed (Grupo Cena 11), parte do plano diretor da cidade cearense, para justamente repensar a noção de cidadania, seus valores e símbolos. A performance integra o que a artista denomina de Constituição Coreográfica Criminosa realizada juntamente a Geane Albuquerque e Honório Félix. Numa dimensão universal, o trabalho problematiza certa ideia de progresso incessante, os impactos gerados pelos reordenamentos urbanos na vida da população, o afrouxamento dos vínculos afetivos e espaciais. Como afirma Kuster: A cidade se reduz: em vez de política, polícia; no lugar da negociação pelo discurso, a imposição pela força bruta; a relação dá lugar à justaposição; o pôr em relação cede à contenção das relações; a tensão da fricção dos encontros é neutralizada pela paz dos cemitérios; o indivíduo em vez do coletivo, a massa em vez da coletividade. (KUSTER, 2014, p. 23)

Em Fortaleza 2040, a artista permanece sozinha e encurralada numa quina de parede por um tempo considerável. Fica de costas para a audiência. 178


Corpo rendido. Ao som de batidas de uma marcha militar, o corpo se torna criminalizado. Corpo e pedra se avolumam e se debatem. Essa postura sugere a presença de uma existência anônima, sem singularidade reconhecida. Um corpo-massa. É também possível associar através dessa imagem a forma como os homens públicos “exercem seus podres poderes”: de costas para as necessidades e a dignidade dos mais desfavorecidos, de costas para as memórias tecidas na cidade, com desprezo pela história construída. Nesse trabalho se escancara o Brasil e seus horrores: a violência policial, a cordialidade mentirosa, a herança colonial, as desigualdades, a censura à arte, o retorno da ditadura, o genocídio da juventude negra, a alegria do carnaval, a bunda, esse clima de festa que a todo custo tentamos fazer durar. Parodiando o hino da bandeira, os artistas na performance, entre desespero e indignação, cantam: “Recebe no cu o que se espera/ De uma cidade que faliu”. Fortaleza 2040 e PRA FRENTE O PIOR nos convocam a agir no aqui e agora. Nessas performances e dramaturgias da tensão: Trata-se de abrir o real a todos os possíveis, no espaço e no tempo, trata-se de conjugar a experiência individual com o combate coletivo, e de levar o público a tomar a si estes possíveis e este combate. (DORT, 2010, p.274)

Ainda que a citação acima se refira a um contexto europeu, é possível estendêla à nossa realidade brasileira. Vivemos no país um clima de desesperança no qual a desorientação tem sido nossa companheira. Talvez ainda seja preciso assumirmos o pior para viver o presente tal como ele é, sem nos exilarmos nas ilhas da fantasia, mas reconhecendo os desafios e as dificuldades. Um combate que nos exige utilizar os possíveis que temos à mão. Como viver melhor num mundo pior? Talvez seja necessário “substituir um otimismo desencantado por um pessimismo alegre”, como afirma o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro. Em ambos os trabalhos artísticos aqui referidos, há um esforço coletivo, uma insistência em abrir caminhos, e precisamos fazer isso juntos. Somos todos interdependentes. Ainda que dentro do nevoeiro, podemos entrever outros desejos, valores novos e ensaiar insuspeitados movimentos.

REFERÊNCIAS DORT, Bernard. O Teatro e Sua Realidade. São Paulo: Perspectiva, 2010. KUSTER, Eliana. O Chamado da Cidade: Ensaios Sobre a Urbanidade. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2014. LAPOUJADE, David. O Corpo que Não Aguenta Mais. In: LINS, Daniel, GADELHA, Sylvio. (Orgs.). Nietzsche e Deleuze: que pode o corpo. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.

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O ÂNUS SOLAR Maikon K

CURITIBA/PR, 2017 | 1h30min | CLASSIFICAÇÃO INDICATIVA 18 ANOS

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Pequeno escrito surrealista do francês Georges Bataille, O Ânus Solar serve de inspiração para o trabalho de Maikon K, que cria uma espécie de ritual cênico a partir dos temas tratados no livro – como a crítica ao conceito de civilização e às regras sociais, além de um enfrentamento ao modo como lidamos com o prazer e a morte. O artista transita entre blocos performáticos, teatrais e musicais, trazendo à tona a pulsão erótica contida nos tabus e interdições. Durante a performance, discursos e objetos são utilizados e depois descartados: é como se o corpo, na impossibilidade de ser transcendido ou silenciado, se dividisse e se decompusesse em diferentes vozes e imagens. O performer evoca ainda a escrita surrealista e extática do texto de Bataille, combinando gestos e imagens que, postos lado a lado, perdem ou alteram seu significado original. 181


HISTÓRICO Artista da performance, Maikon K iniciou sua formação nas artes cênicas. Graduado em ciências sociais, com ênfase em antropologia do teatro, desde 2002 pesquisa formas de alterar a consciência através de ritos e movimento. Influenciado por práticas xamânicas, seu trabalho se centra no corpo e na sua capacidade de alterar percepções. Nas suas obras, o performer se desdobra em diversas realidades por meio de técnicas específicas e diferentes linguagens, como a canção, o som não verbal, a dança e atividades ritualizadas. Entre suas criações estão Corpo Ancestral, DNA de DAN e Neblina Canibal. A performance de Maikon K e o pensamento de Bataille nos lembram que não podemos nos esquivar diante de nossa finitude, com tudo aquilo que ela carrega de inquietante. Ao invés de tentar contorná-la ou domesticá-la, o pensamento batailliano e a arte de Maikon K promovem um encontro para com esta. Neste sentido, se quisermos tratar dessa questão em sua radicalidade, podemos dizer que o trabalho O Ânus Solar nos ensina a morrer. DANIEL VERGINELLI GALANTIN, Bocas Malditas

CONCEPÇÃO E PERFORMANCE Maikon K INTERLOCUÇÃO ARTÍSTICA Patrícia Saravy LUZ Fábia Regina SOM Beto Kloster FIGURINO Faetusa Tezelli CENOTÉCNICO André Baliú ORIENTAÇÃO SONORA Iria Braga VÍDEO Tathy Yazigi (captação) e Stephany Mattanó (edição) PRODUÇÃO Corpo Rastreado ESTE ESPETÁCULO FOI CRIADO COM APOIO DO PRÊMIO FUNARTE MYRIAM MUNIZ DE TEATRO 2015

FOTO S L AU RO B O RG E S

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O CORDEIRO IMOLADO

POR CLÓVIS DOMINGOS DOS SANTOS

O ÂNUS SOLAR, DE GEORGE BATAILLE, É UM TEXTO POÉTICO com fortes traços surrealistas, repleto de imagens oníricas como vulcões, a rotação terrestre, a vida vegetal, a fragilidade do corpo, além da busca pelo êxtase e pela morte, temas recorrentes na trajetória literária do autor. Nesse texto escrito em forma de aforismos, somos inundados por alegorias míticas que versam sobre a evolução humana, que abandona a primitiva horizontalidade (a passagem de quadrúpede ao Homo erectus) e assume a posição vertical, com a cabeça pesando sobre o corpo, numa pretensa fantasia de predomínio da razão. Segundo a cosmogonia batailliana, o preço foi caro para que a nossa coluna se tornasse ereta, já que foi preciso que o ânus se escondesse entre as nádegas, tornando-se um orifício abjeto. Como órgão relegado às atividades de excreção, o ânus passou a ser associado a noções de pecado e proibição. Desse modo, o homem perderia uma forma de conhecimento e iluminação. Numa espécie de filosofia marcada pela agressividade, pelo excesso e pelo anti-idealismo, o escritor francês centra seus escritos na materialidade do corpo em seus transbordamentos. Ao evocar imagens, palavras e símbolos presentes nessa obra, o performer Maikon K criou uma dramaturgia estilhaçada que se configura como uma “liturgia erótica”1 ao misturar elementos de missa, cabaré, programa de auditório, acontecimento confessional, apresentando formas diversas de se dirigir à plateia. No trabalho concebido para espaços alternativos e deteriorados, a proximidade com os participantes-testemunhas fortalece um combate coletivo para se abalar estruturas, formas e discursos, trazendo à tona a pulsão erótica negada e capturada por dogmas e normas sociais. Diversos materiais são manipulados: uma motosserra rasga um colchão e fura uma parede; taças de champanhe são ofertadas aos presentes; há balas de revólver, leite, martelo e pregos, além de plantas, sangue falso, velas e livro. O corpo é um altar a ser profanado e recriado, logo sacralizado, em estado permanente de crise e instabilidade, sempre à beira de sua decomposição. Um deslocamento entre o baixo e o alto, entre Céu e Terra, entre carne e espírito. 184

1 Referência encontrada no site do artista. Disponível em: https://www.maikonk. com/pt-br/o-anus-solar. Acesso em 8 jan. 2020. 2 Há a seguinte afirmação no texto inicial da performance: “Um corpo só é um corpo depois de ser dilacerado e ter seus pedaços entregues à multidão”. 3 Projeto ganhador do Prêmio Funarte de Dança Klauss Vianna 2012. Em 2015, a artista da performance Marina Abramovic convidou DNA de DAN a integrar a mostra Oito Performances, dentro da exposição Terra Comunal, no Sesc Pompeia (SP). Em 2016 e 2017, circulou por cidades brasileiras com incentivo do Prêmio Funarte de Dança Klauss Vianna 2014 e através do circuito Palco Giratório do Sesc. Em 2018 integrou a MITsp – Mostra Internacional de Teatro de São Paulo. 4 Para saber mais, veja: https://www.metropoles. com/tipo-assim/prisao-doartista-maikon-k-e-sintomade-uma-brasilia-careta-ecovarde/amp. Acesso em fev. 2020.


Num contraponto à ideologia religiosa, o corpo nessa performance não ressalta o Homo sapiens, mas o seu avesso: “o Homo vulnerabilis, essa pobre e exposta criatura, cujo corpo sofre o duplo trauma do nascimento e da morte”. (BERGER, apud GLUSBERG, 1998, p. 46)

Clóvis Domingos dos Santos é artista, pesquisador cênico e crítico no site Horizonte da Cena. Doutor em Artes pela Escola de Belas Artes da UFMG. Desenvolve estágio Pós-Doutoral em Artes Cênicas no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFOP, com pesquisa sobre crítica e cena contemporânea.

Feito um cordeiro imolado num gesto sacrificial2, o artista, em consonância com os escritos de Bataille, empreende um contra-ataque à moral cristã conservadora e repressiva que vem assolando o Brasil. Na impossibilidade de ser transcendido ou silenciado, o corpo se afirma aqui como campo de batalha em forma de rebeldia e arte inconformada. Maikon K teve a apresentação de DNA de DAN3 interrompida pela Polícia Militar em 2017, em Brasília, e acabou preso, acusado de praticar ato obsceno, já que a performance apresentava nudez. A censura ao seu trabalho levou a grande repercussão e protestos 4 . Em O Ânus Solar, evoca-se a cegueira coletiva, o medo do gozo, o horror da finitude, o mito do artista em busca da visão, as hecatombes e vertigens. Ao longo da performance, o artista questiona seu próprio fazer e nossa impossibilidade de olharmos diretamente para o sol, pois não aguentamos encarar a luz nem a escuridão. “Os olhos humanos não suportam o sol, nem o coito, nem o cadáver, nem o escuro, embora o façam com reações diferentes”, assim nos lembra Bataille (1985, p.14). Obsceno agora talvez não seja mais o ânus, mas a boca a propagar falsos moralismos, receitas de salvação e fake news, numa política nefasta forjada pelo espetáculo da mentira e do escândalo. Diante da cegueira atual, a arte em sua potência transformadora e ao mesmo tempo precária pode favorecer o desvelar de um corpo a “ser amado, beijado, acariciado, rejeitado, reprimido, cortado, operado, mas nunca transcendido. É dele a vitória final” (texto inicial da performance). Em O Ânus Solar, vemos o fracasso da crença absoluta na racionalidade. O humano se atualiza, convidado a abandonar nossa visão iluminista, já obscurecida. E, através de um rito pródigo e sem dispêndio, produz a dolorosa e libertadora consciência do fim de todos nós. Em sua trajetória, Maikon K vem testando nossas sensibilidades com trabalhos focados na potência do corpo em suas experimentações de estados alterados e práticas ancestrais. Se em Guilhotina (2007) o “corpo revoltado” denuncia as violências e humilhações da instituição acadêmica, em DNA de DAN (2012) uma dança animal celebra a possibilidade de criação de uma segunda pele. Há sempre a busca pelo êxtase numa tentativa de alcançar o sagrado pela transgressão e romper com os próprios limites. Não há descanso ou equilíbrio enquanto estivermos condenados a viver. Em O Ânus Solar, o incômodo ruído da motosserra não cessa de nos lembrar REFERÊNCIAS que a vida é cruel, BATAILLE, Georges. O Ânus Solar. Tradução de Anibal insaciável e há sempre Fernandes. Lisboa: Hiena Editora, 1985. o que destruir, libertar GLUSBERG, Jorge. A Arte da Performance. São Paulo: Editora e devorar. Perspectiva, 1998. 185


CANCIONEIRO TERMINAL Grupo MEXA

SÃO PAULO/SP, 2019 | 1h20min | CLASSIFICAÇÃO INDICATIVA 12 ANOS

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O MEXA é um coletivo artístico que trabalha com pessoas à margem. Em Cancioneiro Terminal, o grupo parte da investigação de fotografias e vídeos produzidos sobre si. Os performers se relacionam com as imagens gravadas e se perguntam com quais delas gostariam de contar a história do seu presente. O grupo atua desde 2015 e, ao longo desse tempo, algumas integrantes desapareceram, outras reapareceram, houve quem tentasse se matar, quem se transicionou, teve uma filha, foi presa, foi internada em um hospital, mudou de país, de profissão, de nome. Essas pequenas histórias, juntas, contam a narrativa sempre processual do grupo, que trabalha a partir de suas próprias vivências transformadas em cena. A cada performance, o MEXA reencena e edita em tempo real um novo filme, através de exercícios de tradução e dublagem. Ao fazer isso, os artistas pensam sobre o que significa ser uma imagem, o que fica quando tudo o mais desaparece e como, sendo um corpo coletivo, caminhar juntos. 187


HISTÓRICO

Esse tipo de perigo físico em potencial pode ser raro para mim, como homem branco, mas é uma característica da vida cotidiana dos performers do Grupo MEXA, coletivo formado em 2015 por artistas predominantemente negros, trans e LGB, artistas de teatro e ativistas. Não havia qualquer vitimismo na apresentação: em vez disso, à luz de neon, eles cantavam, se moviam e dançavam juntos e em solos. OLIVER BASCIANO, Art Review [sobre performance anterior apresentada na galeria Jaqueline Martins]

O MEXA foi criado em 2015 após episódios de violência em alguns centros de acolhida em São Paulo. O grupo realiza ações que transitam entre a arte e a política, assumindo lugares de fala e de falha de conceitos que procuram enquadrar corpos e estéticas. É formado por pessoas em situação de vulnerabilidade, em situação de rua e por membros da comunidade LGBTT que, a partir de derivas, performances, escritas e protestos, criam obras limítrofes, que não se encaixam em categorias precisas. O coletivo já se apresentou em espaços como Esponja, Casa do Povo, Pinacoteca e galeria Jaqueline Martins, além de ter participado de mostras como a VERBO, realizada pela Galeria Vermelho, e a 11ª Bienal Sesc de Dança. Em 2019, recebeu o Prêmio Denilto Gomes de Dança na categoria olhares para estéticas negras e de gênero.

DIREÇÃO GERAL Grupo MEXA O grupo trouxe um grito de raiva: todos nós temos que ver o mundo como ele é! Os corpos se levantam. Os corpos têm uma voz. Eles têm música. Eles têm nomes: Tatiane Dell Campobello, Barbara Brito, Anne Dourado, Patricia Borges, Yasmin Bispo e Anita Silvia. Eles têm vontades. Eles são trans. Eles usam alta-costura. Eles moram nas ruas, mas também frequentam galerias de arte. CAROLLINA LAURIANO, Terremoto [idem]

CONCEPÇÃO DO GRUPO Anita Silvia e Dudu Quintanilha DRAMATURGIA João Turchi DIREÇÃO AUDIOVISUAL Dudu Quintanilha BANDA Alessandro Lins dos Anjos, Dourado, Barbara Britto e Giulianna Nonato PRODUÇÃO Lu Mugayar PERFORMERS Daniela Pinheiro, Ivana Siqueira, Tatiane del Campobello, Patrícia Borges, Yasmin Bispo, Luiza Brunah Wunsch, Fabíola Dummont, Muniky Flor, Roberto Lima Miranda, Kristen Oliveira, Anita Silvia, Alessandro Lins dos Anjos, Barbara Britto, Dourado, Dudu Quintanilha, Giulianna Nonato, João Turchi, Laysa Elias e Lu Mugayar PROJETO GRÁFICO Celso Longo ILUMINAÇÃO Helo Duran CAPTAÇÃO DE IMAGENS Laysa Elias MAQUIAGEM Lavínia Favero e equipe GRUPO EM RESIDÊNCIA NA CASA DO POVO FOTO S L E V I FA N A N E B E TO A S S E M

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VIVER DE POR RENAN JI

COMO FALAR DE ARTE E POLÍTICA quando o próprio ato fundamental de ser é posto em questão? Com ameaças pelos discursos de extrema direita, mas também como vivência entranhada no dia a dia da cidade? Acordar sabendo que ontem o fim esteve próximo; sair de casa sabendo estar a um passo de perder a vida. Pessoas como Anita Silvia, travesti, negra e cadeirante, encarnam esse equilíbrio tênue – entre viver como artista no Grupo MEXA ou morrer por vício, violência ou transfobia da sociedade. Em outubro de 2015, após sofrer ameaças de morte num centro de acolhida de São Paulo, Anita fundou o Grupo MEXA, coletivo de criação formado por pessoas em situação de vulnerabilidade. Há quem pense estar diante de uma história de redenção pela arte. No entanto, a arte não é suficiente para superar uma biografia como a de Anita – marcada por rejeição familiar, abusos domésticos, condição trans, vício e a prostituição. Não há discurso identitário promovido pela arte que dê conta de vidas buscando a sobrevivência. Fazemos performances e inventamos discursos parecidos com um recorta e cola desesperançado, aniquilado sem território ou pertencimento. Nenhuma crença. Ilusões perdidas. Sonhos de consumo aniquilados. Economia do encolhimento do dinheiro.1

É difícil assumir qualquer tipo de coerência ideológica, institucional ou estética quando o corpo é atravessado por necessidades e riscos iminentes. Para o MEXA, declarar-se artista seria adquirir uma chancela social. Porém, o pessimismo criativo do grupo não espera por isso. Suas performances promovem um gesto estético que somente reverbera a precariedade social e psíquica de suas existências. Os membros do MEXA às vezes desaparecem por meses, cedendo a imperativos da repressão estatal, do vício, das intempéries afetivas ou de novos centros de tratamento. Os ausentes ora são substituídos, ora retornam com novas roupagens, sacudidos e renascidos das próprias tormentas. O trabalho cênico, portanto, não possui hierarquia ou divisão de funções, pois cada novo encontro ou projeto conta com uma configuração única, movida por uma vontade coletiva possível naquele momento da biografia de cada um. A vida de pessoas em vulnerabilidade social se torna errante em muitos sentidos, e a metamorfose às vezes é uma necessidade. Por isso a arte do encontro e da convivência é difícil, e deve ser aproveitada enquanto é tempo. 190


Renan Ji é doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor adjunto do Instituto de Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira (CAp-UERJ). Atua como crítico de teatro na Revista Questão de Crítica e escreve artigos e ensaios sobre teatro, literatura brasileira e literatura comparada.

E há muito que dizer. O discurso do MEXA é caótico como a cidade, incorporando a precariedade da fala do morador de rua, do motorista de ônibus, dos entorpecidos, das travestis. As referências e os clichês da vida nas ruas misturam alegria, closes, marginalização social e política, mas não se busca um arremate ou fatura para essa experiência. Afinal, “Como terminar quando a gente não sabe quem ainda tá vivo?”2. Há somente a constatação de que, a esta altura dos acontecimentos, no Brasil, não há possibilidade de viver sem ser estando junto. A performance Terminal 10mg, de 2017, é o testemunho de como a potência do MEXA surge neste preciso lugar de afirmação da vida, quando a sociedade e o Estado parecem afirmar o contrário. Partindo de diários pessoais, o coletivo encontrou trajetos que nem sempre aparecem nos mapas, com cada performer registrando cenas, afetos e resistências cotidianas. Ao longo de oito horas de percursos a pé e de ônibus, uma cidade semificcional surgiu como um espaço de fantasias e desejos, que emergem de um esforço deliberado de resistir ao descaso a que são relegados os deficientes, os LGBTQIA+, os negros, as trans e os viciados em drogas. As pessoas que fazem arte no MEXA sabem que suas histórias e confissões são imagens tão fugidias quanto suas próprias existências. Quem precisa se deslocar a todo tempo, trocar de vida, de vício, de marido, sabe que nada dura para sempre. O que resta é continuar a encenar, a sustentar a brincadeira de ser artista, enquanto o corpo aguenta.

1 Pra Começo de Conversa, disponível em <http:// www.grupomexa.com.br/ vacarme/>. Acesso em 12 fev. 2020. 2 E se Carlos Monroy Sumisse?, disponível em <https:// issuu.com/editora3/docs/ select38_ok/80>. Acesso em 12 fev. 2020.

O MEXA continua revisitando sua própria trajetória com o projeto Cancioneiro Terminal, em que revisita os vídeos das performances anteriores e propõe novas ações, novos textos e novas dinâmicas. Os performeres olham para si mesmos e revisitam seu testemunho de sobrevivência. Refiguram suas falas e criam novas fabulações. Trocam de pele e de fantasia a cada apresentação, assim como fazem para sobreviver na cidade que lhes nega o direito de existir e criar. Contrastando a imagem de 2017 NASCIMENTO, Caio. ‘ Transexual nunca foi ser humano no Brasil ’, com a de hoje, diz mulher trans com paralisia infantil. Entrevista com Anita Silvia. Disponível em: https://emais.estadao.com.br/noticias/ entendemos que as comportamento,transexual-nunca-foi-ser-humano-no-brasilvidas vulneráveis são diz-mulher-trans-com-paralisia-infantil,70002598195. Acesso como imagens: frágeis, 15 jan. 2020. mas fortes e potentes, MEXA. E se Carlos Monroy sumisse?. Trabalho visual publicado porque sempre na Revista Select. Disponível em: https://issuu.com/editora3/ podem, de algum jeito, docs/select38_ok/80, p.80. renascer das cinzas TURCHI, João. Quero uma Anita Silvia para presidente. da invisibilidade e da Disponível em: https://www.sp-arte.com/en/news/quero-umaanita-silvia-para-presidente/. Acesso: 15 jan. 2020. exclusão. 191


ENTRELINHAS Coletivo Ponto Art

SALVADOR/BA, 2012 | 35MIN | CLASSIFICAÇÃO INDICATIVA 18 ANOS

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Num diálogo entre o passado e o presente, o espetáculo discute a violência contra a mulher e evidencia como a voz da mulher negra é historicamente silenciada dentro de uma sociedade opressora, machista e de mentalidade escravocrata – e que, assim, fomenta a violência. A coreógrafa e intérprete Jaqueline Elesbão costura uma narrativa essencialmente visual, quase sem palavras, que apresenta uma série de imagens e referências históricas (símbolos determinantes à existência feminina). Em cena, a artista traz objetos como uma máscara de flandres – usada durante o período de escravidão brasileiro, para impedir que servos ingerissem alimentos e bebidas, e lembrada na imagem da serva Anastácia, submetida a sessões de tortura enquanto o artefato lhe cobria a boca. Alternando-se entre as figuras de vítima e algoz, Elesbão também expõe elementos religiosos e indumentárias femininas, como o sutiã e o salto alto, ícones de liberdade e amarra do corpo da mulher. 193


HISTÓRICO

A potência vem das imagens que denunciam a violação e o abuso desses corpos. Para isso, o espetáculo apresenta diversas partituras cujas imagens são tão potentes que qualquer fala só viria a sublinhar o que já está posto. A quase ausência de palavras durante o espetáculo também evidencia a tentativa de silenciamento das mulheres ao longo dos séculos. E, principalmente, das mulheres negras que, na hierarquia de gênero, são as que mais morrem e sofrem com a violência doméstica.

Este é o primeiro trabalho do Coletivo Ponto Art, que desde 2011 se debruça sobre ações culturais afirmativas. O coletivo é formado por Nai Meneses, Anderson Gavião e Jaqueline Elesbão, idealizadora do projeto, bailarina, negra, drag king, produtora e ativista das questões femininas, afrodiaspóricas e causas LGBTQI+. Desde sua estreia, em 2012, Entrelinhas passou por festivais como o Cena Brasil Internacional (RJ) e o FIT Festival Internacional de Teatro de São José do Rio Preto (SP). A pesquisa do espetáculo se desdobrou em outros trabalhos do grupo, como a websérie Vozes sem Medo e o workshop Resiliência do Corpo-História, uma investigação de como a violência histórica social afeta o corpo negro feminino.

COREÓGRAFA E INTÉRPRETE Jaqueline Elesbão PRODUÇÃO Nai Meneses SONOPLASTIA Anderson Gavião ILUMINAÇÃO Robson Poeta CONFECÇÃO DE FIGURINO Luiz Santana

MICHELE ROLIM, AGORA Crítica Teatral

FOTO S J OÃO F TAVA R E S K AWA S A K I E I V E S PA D I L H A

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SILÊNCIO A PROFANAÇÃO DO

POR LAÍS MACHADO

ENTRELINHAS, DA DANÇARINA JAQUELINE ELESBÃO, traz como temática a violência psicológica, emocional e sexual contra a mulher negra no Brasil, parte estruturante de nossa sociedade desde o passado escravocrata do país. A montagem apresenta a tensa relação entre o silenciamento ao qual esse sujeito é submetido e o que o corpo pode dizer a partir do reposicionamento de símbolos, estereótipos e exposição de suas marcas e de sua potência de vida. O solo, que estreou em 2012, é a primeira a ação do Coletivo Ponto Art. Idealizado pela própria artista, o coletivo busca desenvolver ações artísticas e culturais e colaborar com o fortalecimento artístico-social dos grupos dissidentes. Na obra, o palco nu, poucos e pequenos objetos de cena expostos, que se redimensionam ao serem acoplados e desacoplados do corpo de Elesbão. Um crucifixo, um código de barras e uma máscara de flandres, a partir de sua simbologia, evidenciam a abordagem de Entrelinhas em relação à problemática social posta: o silenciamento, a cristianização, a mercantilização e exploração econômica dos corpos de mulheres negras. Durante todo o acontecimento, Elesbão usa uma máscara que alude ao instrumento de tortura utilizado por senhores de escravos nas Américas e conhecido como máscara de flandres. Fabricada com folha de flandres, feitas de chapa de aço laminada, era trancada com um cadeado atrás da cabeça, com orifícios para os olhos e nariz, mas impedindo o acesso à boca. Evitando, desse modo, o consumo de alimentos e álcool, além do suicídio (por geofagia – ato de comer terra), “mas a sua função primária era implementar um senso de emudecimento dos discursos e medo, na medida em que a boca era o espaço tanto para o silenciamento quanto para a tortura”. (KILOMBA, 2013) Estereótipos e recortes de imagens perpetuadas sobre as mulheres negras apresentadas na performance, enquanto a máscara é usada, impedem o público de ouvir qualquer coisa que aquele corpo possa elaborar sobre o que o próprio corpo faz. Ao mesmo tempo, a vitalidade da performance e a intenção da comunicação, pactuada nos primeiros 15 minutos, criam um paradoxo que por vezes aproxima e confunde os espectadores, como nos momentos em que não se sabe se Elesbão ri ou chora por trás da máscara. Ao explorar incessantemente esse recurso, a peça nos coloca diante da tensão de um corpo para se comunicar – um corpo cuja experiência está fora da norma. Também questiona quais são os limites da própria comunicação. 196


Laís Machado é àlárìnjó, pesquisadora, crítica e produtora formada pela ETUFBA. É membro fundadora da ÀRÀKÁ – Plataforma de Criação em Arte e da Revista Barril. ExIntegrante do Teatro Base e idealizadora e coordenadora do Fórum Obìnrín – Mulheres Negras, Arte Contemporânea e América Latina.

Essa máscara tornou-se bastante conhecida não pelo requinte de crueldade nem pela frequência com que era usada. Mas por sua associação à Anastácia, uma mulher escravizada e santa brasileira reconhecida pela devoção popular, não pelo Vaticano. Esse aspecto põe o objeto em relação direta com o crucifixo, que em determinado momento é vestido sobre o sexo de Elesbão. A máscara é a cruz da mártir Anastácia. A santificação da resistência por parte dos negros “católicos” no Brasil. Ao se relacionar com o crucifixo, a dançarina passeia entre a santificação e a profanação do objeto – relação dual estabelecida historicamente pela ideologia cristã sobre os corpos negros no país. A profanação era a sua própria existência, e a santificação, a justificativa para seu “adestramento”. O cristianismo no Brasil, além de perseguir as deidades trazidas por povos escravizados, justificou inúmeros argumentos que animalizaram os sujeitos negros no país. Criando estereótipos (em vigor até hoje) que justificavam os abusos cometidos pelos brancos e que, ao mesmo tempo, “atestavam” sua superioridade. O código de barras é outro símbolo marcante em Entrelinhas. Também acoplado ao seu sexo, esse elemento é vestido em diversos momentos, sempre acompanhado de movimentações amplas e sensuais, expondo a exploração econômica da sexualidade da mulher negra, ao retirá-la do lugar de sujeito que sente prazer e colocá-la na posição de objeto mercantilizável. Nesses momentos, há um enfrentamento mais direto com o público, criando uma atmosfera constrangedora, mas sutilmente reposicionada se tomarmos como referência nossas relações sociais. Nesse espaço, o corpo negro não é aquele que é constrangido. Ele assume a posição do sujeito que constrange, devolvendo de maneira violenta as marcas em sua experiência. Em Entrelinhas, a artista expõe a perpetuação das violências às quais os corpos negros, em especial de mulheres negras, são submetidos na construção da sociedade brasileira, e a fragilidade das narrativas que sustentam tais padrões. Ainda sobre as questões levantadas pela máscara de flandres, Grada Kilomba nos diz que “existe uma apreensão (por parte do colonizador) de que, se o sujeito colonizado falasse, teriam que escutar” e que desse modo “seriam forçados à desconfortável confrontação com as verdades do Outro”. Em Entrelinhas, Elesbão força a plateia à desconfortável REFERÊNCIAS confrontação com KILOMBA, Grada. Plantation Memories: Episodes of Everyday as verdades do Racism. 3 ed. ed.Unrast Verlag: Munster, 2013. colonizador PINHEIRO, Diego. Silêncio: Crítica a partir de Entrelinhas, mediadas pela sua obra de Jack Elesbão, 2017. Disponível em: <https://www. revistabarril.com/silencio/> Acesso em 4 jan. 2020 potência de vida. 197


MEIA NOITE Orun Santana

RECIFE/PE, 2018 | 60MIN | CLASSIFICAÇÃO INDICATIVA LIVRE

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No espetáculo, a capoeira é tratada como elemento criador e motivador do movimento e também como um ponto de partida para se pensar a memória do corpo negro que dança. Para tanto, o bailarino Orun Santana se inspira na vivência com seu pai, o mestre Meia-Noite, cofundador do Centro de Educação e Cultura Daruê Malungo, na periferia do Recife, espaço onde o intérprete cresceu e onde desenvolve trabalhos. Em cena, Santana faz um paralelo entre dois universos. Um, pessoal, de sua relação familiar, entre pai e filho, mestre e discípulo. Outro, social e cultural, dos movimentos e do imaginário político-poético do corpo negro na cena. Dessa forma, o intérprete costura imagens e memórias da dança negra, de danças populares do Nordeste e do corpo brincante, assim como aspectos de sua própria ancestralidade. 199


HISTÓRICO

Orun dança com gestos femininos arrebatadores. Joga a cabeça para os lados, os cabelos aspergem a água que se guardaram neles, uma fonte inesgotável. No lugar dos lenços transparentes, uma masculina calça de capoeirista, branca, engomada, de linhagem. Depois, ele veste uma camisa branca imaculada. Gestos de sacerdote iniciado nos mistérios. RONALDO CORREIA DE BRITO, Revista Continente

Orun Santana é bailarino, capoeirista, professor, pesquisador em dança e cultura afro do Recife. Formado pelo Centro de Educação e Cultura Daruê Malungo, pelos mestres Meia-Noite e Vilma Carijós, o artista é brincador da cultura popular e faz das vivências com as danças e brinquedos o seu lugar de pesquisa corporal e de investigações artística para a cena. Ao longo de sua carreira, Santana passou pelo Grupo Grial, pela Compassos Cia. de Danças e pela Cláudio Lacerda Dança Amorfa. Atualmente, é diretor artístico da Cia. de Dança Daruê Malungo. De sua pesquisa Jogar a Dança - Corpo, Imagem e Ancestralidade Negra na Cena nasceu o espetáculo Meia Noite, com o qual recebeu o prêmio de melhor bailarino no festival Janeiro de Grandes Espetáculos (PE).

INTÉRPRETE-CRIADOR E DIRETOR Orun Santana CONSULTORIA ARTÍSTICA Gabriela Santana ASSISTENTE DE DIREÇÃO Domingos Júnior TRILHA SONORA Vitor Maia ILUMINAÇÃO Natalie Revorêdo CENOGRAFIA E FIGURINO Victor Lima PRODUÇÃO Danilo Carias (Criativo Soluções)

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POESIA, PEDAGOGIA

E POLÍTICAS DOS CORPOS NEGROS

POR WELLINGTON JÚNIOR

A TRAJETÓRIA DE ORUN SANTANA ESTÁ INTIMAMENTE LIGADA ao Daruê Malungo, seja através dos espetáculos, do espaço ou a partir das oficinas de formação dessa escola de artes. Meia Noite é sua estreia em um espetáculo solo, obra que relaciona dança, capoeira, música, culturas populares e dança/cultura afro, dimensionando a trajetória do artista-pesquisador e sua forte relação com seu pai, o Mestre Meia-Noite. A família de artistas participou de forma determinante no Balé Popular do Recife e fundou o Daruê Malungo, um centro de educação e cultura no bairro de Chão de Estrelas, no Recife. Orun Santana e a figura inspiradora de seu pai, brincantes e artistas, refletem sobre as relações de parentesco, de mestre e discípulo, redimensionando a capoeira como elemento criador, motivador do movimento e das políticas da corporeidade negra. A capoeira era utilizada e desenvolvida pelos escravizados como forma de luta entre si e de libertação. Ao relacionar a criação da capoeira com a fuga para os quilombos, “podemos afirmar que os negros, pela situação em que se encontravam, desenvolveram técnicas e meios de resistência ao sistema opressor escravagista” (YAHN, 2010, p.204). A manifestação é considerada uma herança afro-brasileira redimensionada por gerações e apresenta um saber decolonial dos antepassados, difundido por meio de cantos, de tradições e fundamentos. Estudando a vida social dos Ndembu, na África, o pesquisador Victor Turner viu que uma de suas qualidades mais impressionantes era a propensão para o conflito, algo comum nos grupos de mais ou menos duas dúzias de parentes que compunham a aldeia, manifestando-se em episódios públicos de irrupção tensional, que ele chamou de dramas sociais. Meia Noite traça relações com o conceito de drama social. Podemos ver uma unidade de um processo social não harmônico ou desarmônico, que surge em situação de conflito, compreendendo quatro fases principais: fenda, crise, ação reparadora e reintegração/cisma. Orun Santana desenha no chão uma espiral onde esses dramas sociais implodem as estruturas coloniais do corpo negro na capital pernambucana. 202


A fenda surge quando as relações sociais regulares se quebram. A crise vem na sequência e, nesse decorrer, a fenda tende a se alargar até que alcance a extensão de algum rompimento dominante no setor mais amplo das relações sociais daqueles grupos. A ação reparadora é uma resposta à crise, colocada em operação por membros destacados ou estruturalmente representativos do sistema social conturbado. A reintegração reagrupa os indivíduos em distúrbio ou reconhece e legitima o cisma irreparável entre os grupos contestadores. O espetáculo de Orun Santana tensiona essa estrutura do drama social com a relação artística com seu pai. A capoeira emerge como um espaço dessa confrontação desigual de poderes e de resistência às repressões de autoridades contra essa manifestação. Para combatê-la, o Estado brasileiro estabeleceu um código de 1890, através do decreto nº 847 intitulado Dos Vadios e da Capoeira: Art. 402. Fazer nas ruas ou praças públicas exercícios de destreza e agilidade corporal conhecido pela denominação de Capoeiragem. Pena - de prisão por dois a seis meses. Parágrafo Único: É considerado circunstância agravante pertencer o capoeira a alguma banda ou malta. Aos chefes ou cabeças impor-se-á pena em dobro. (BRASIL, 1890, nº. 847)

Wellington Júnior é bacharel em Estética e Teoria do Teatro pela Unirio, professor de teatro, crítico e encenador. Organizador do livro Memórias da Cena Pernambucana (Vol.1) e idealizador e organizador do Seminário Internacional de Crítica Teatral de Recife (ao lado da Renascer Produções Culturais).

Esses espaços de resistência da capoeira instituem novas formas de vida, são lugares de uma poesia, política e pedagogia confrontadoras da domesticação dos corpos diaspóricos. Ao mesmo tempo, a manifestação vai se transformando e revelando outras histórias através de outras identidades. Conforme indica Stuart Hall (2003, p.12), “o sujeito não é mais visto como composto de uma única identidade, mas, sim, de várias, algumas vezes contraditórias ou não resolvidas”. Para tal discussão, temos de submergir a relação entre o fixo e o mutável, e compreender ideias que amparam o conceito de identidade, já que ele está em processo de construção. Há um conjunto de semelhanças postas como referencial fixo, cujo papel é formatar a identidade cultural e a representação do coletivo. A identidade é compreendida como junções, representadas pelas diferenças sociais. As tensões identitárias são apresentadas por Orun Santana e reveladas na dissipação do pó branco que marca o chão como um espiral. No fim do espetáculo, o pó toma completamente o espaço, sem forma REFERÊNCIAS definida, mas sempre HALL, Stuart. Da Diáspora: Identidades e Mediações Culturais. presente. É desse Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003. pó que se faz o chão TURNER, Victor. Dramas, Fields and Metaphors. Ithaca: Cornell da política, poesia e University Press, 1994. pedagogia, um pó de YAHN, Carla Alves de Carvalho. SANTOS, Rubens Pereira dos. poesia e resistência Capoeira Angola e Literatura Popular: Diálogos da Tradição Oral. Miscelânea, Assis, vol.7, jan./jun. 2010. dos corpos. 203


GOTA D'ÁGUA {PRETA} Jé Oliveira

SÃO PAULO/SP, 2019 | 3H50MIN | CLASSIFICAÇÃO INDICATIVA 14 ANOS

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A adaptação de Gota d’Água, musical de Chico Buarque e Paulo Pontes, ressalta as questões raciais embutidas na obra de 1975, que transfere a tragédia de Medeia para o subúrbio do Rio de Janeiro. Se o original discute as implicações sociopolíticas do regime militar brasileiro, então vigente, a releitura do diretor Jé Oliveira enegrece e atualiza a obra: traz um elenco majoritariamente negro, evidenciando o contexto social e racial dos personagens (pobres, moradores de um conjunto habitacional), além de salientar alguns aspectos de religiões de matriz africana e a musicalidade negra – com instrumentos de percussão africana e elementos do hip-hop. Joana, a versão brasileira de Medeia, é uma mulher de meia-idade que se vê abandonada pelo marido, o jovem sambista Jasão, e prestes a ser despejada do apartamento em que vive com os dois filhos. Com a metáfora de uma traição conjugal, o espetáculo realça a discussão racial, social e de classes com base no atual momento político do país. 205


HISTÓRICO

Se a pergunta central de Gota d’Água investiga as possibilidades de resistência e de reação de Joana (vivida agora pela cantora Juçara Marçal) face ao esmagador poderio econômico dos opressores, a resposta oferecida por Gota d’Água {PRETA} é inequívoca e se inscreve materialmente na própria forma do espetáculo: trata-se de reparar os negros que foram por tanto tempo silenciados e invisibilizados (também nos palcos).

Um dos fundadores do Coletivo Negro, grupo que se debruça sobre questões raciais desde 2008, Jé Oliveira é ator, diretor e dramaturgo, formado pela Escola Livre de Teatro de Santo André, onde também deu aulas de dramaturgia. É autor das peças Farinha com Açúcar ou Sobre a Sustança de Meninos e Homens, {ENTRE}, Azar do Valdemar, Nóis, Taiô e Movimento Número 1: O Silêncio de Depois… Além do Coletivo Negro, contribuiu artisticamente com diversos grupos da cena brasileira. Com Gota d’Água {PRETA}, foi vencedor do Prêmio APCA de Melhor Direção em 2019.

PATRICK PESSOA, O Globo

O diretor Jé de Oliveira imprime à montagem a adjetivação racial imposta pela palavra, tornando, assim, o musical numa espécie de grito dos negros e pobres – “tratados como negros” – subjugados pela classe dominante forjada, em sua grande maioria, por brancos – “ou quase todos brancos” – e financeiramente abastados. Esbanjando talento, a encenação faz um retrato nu e cru de um problema social que, mais de 40 anos depois que foi escrita a peça, ainda não foi superado. MICHEL FERNANDES, Aplauso Brasil

Não vemos apenas personagens negras, mas outro pensamento sobre a trama e o teatro. Os corpos ali não são só objeto de uma narrativa popular. Eles integram uma estética que amplia o horizonte crítico da peça. Diria Edy Rock, nesta bela referência teatral: “Eu era a carne/ agora sou a própria navalha”. PAULO BIO DE TOLEDO, Folha de S.Paulo

DRAMATURGIA Chico Buarque e Paulo Pontes DIREÇÃO-GERAL, CONCEPÇÃO E IDEALIZAÇÃO Jé Oliveira ELENCO Aysha Nascimento, Dani Nega, Ícaro Rodrigues, Jé Oliveira, Juçara Marçal, Marina Esteves, Mateus Sousa, Rodrigo Mercadante e Salloma Salomão BANDA DJ Tano (pickups e bases), Fernando Alabê (percussão), Gabriel Longhitano (guitarra, violão e cavaco) e Suka Figueiredo (sax) ASSISTÊNCIA DE DIREÇÃO E FIGURINO Éder Lopes DIREÇÃO MUSICAL Jé Oliveira e William Guedes PREPARAÇÃO VOCAL William Guedes CONCEPÇÃO MUSICAL E SELEÇÃO DE CITAÇÕES Jé Oliveira CENÁRIO Julio Dojcsar MONTADOR DE CENÁRIO Jé Oliveira ARTISTA GRÁFICO Murilo Thaveira LIGHT DESIGN Camilo Bonfanti OPERAÇÃO DE LUZ Camilo Bonfanti e Lucas Gonçalves TÉCNICO DE SOM E OPERAÇÃO Alex Oliveira ASSESSORIA DE IMPRENSA Elcio Silva COORDENAÇÃO DE ESTUDOS TEÓRICOS Juçara Marçal, Jé Oliveira, Salloma Salomão e Walter Garcia PRODUÇÃO EXECUTIVA Janaína Grasso PRODUÇÃO GERAL Jé Oliveira FOTOS Evandro Macedo e Tide Gugliano VÍDEO E EDIÇÃO Marília Lino REALIZAÇÃO Itaú Cultural PRODUÇÃO Gira pro Sol Produções FOTO S E VA N D RO M AC E D O

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NEGRAS

vocalidades: uma crítica ao

PRESENTE

POR GUILHERME DINIZ

GOTA D’ÁGUA {PRETA}, ESPETÁCULO DIRIGIDO POR JÉ OLIVEIRA, efetua dois movimentos cênico-políticos: primeiramente, a montagem ressemantiza, em termos históricos, um dos mais aclamados textos teatrais do chamado moderno teatro brasileiro (MAGALDI, 2006), a saber, Gota d’Água, escrito por Chico Buarque e Paulo Pontes em 1975, construindo um pungente diálogo entre as problemáticas suscitadas pela dramaturgia e as contingências atuais da realidade política brasileira. Em segundo lugar, a encenação, com elenco predominantemente negro, confere ao texto dramático outras cargas semânticas, aprofundando as tensões sociorraciais, o racismo estrutural e o neoliberalismo selvagem que atravessam as relações sociais. Em Gota d’Água {PRETA}, a tríade mulher, raça e classe, tão debatida por Lélia Gonzalez e Angela Davis, afigura-se intensamente aguda, em uma tragédia social, sustentada por projetos políticoeconômicos excludentes, genocidas e desiguais. A dramaturgia translada a mitológica Medeia, do tragediógrafo grego Eurípedes, para um precário conjunto habitacional do subúrbio, em plena ditadura civilmilitar (1964-1985), período que assolou o país, cimentando um lastro de autoritarismo e perseguição política. Joana, abandonada pelo jovem e ambicioso sambista Jasão, após viverem juntos por dez anos, vê-se não apenas traída pelo homem que lhe prometeu felicidades, mas aviltada em sua dignidade, vivenciando, ao lado dos filhos, um enfeixe de violências que agridem sua humanidade. A vingança, prometida por Joana, não se dirige exclusivamente a Jasão, mas a toda sorte de opressões sistemáticas que apequenam a camada mais pobre do Brasil. O dilema conjugal afigura-se integrado a uma ampla problemática política que, em seu contexto histórico, denunciou o abismo social intensificado pela estrutura ditatorial, a exploração do trabalho e a fragilidade do direito básico à moradia, em um país cuja geografia social expõe suas históricas mazelas. As agruras sofridas pelas personagens, bem como seu contexto sociocultural são, majoritária e estatisticamente, experiências sociais enfrentadas pela população negra, no Brasil. Originalmente, contudo, o drama de Buarque e Pontes não indica o pertencimento racial daqueles indivíduos. Ao afirmar a negritude das personagens, tornando-a disparadora dos sentidos estéticopolíticos da encenação, Jé Oliveira expande as dimensões do texto e seus limites. 208


Gota d’Água {PRETA} aponta para a materialidade do racismo na estruturação de desigualdades, racionalidades e mecanismos de controle social.

Guilherme Diniz é ator, pesquisador e crítico teatral. Licenciado em Teatro pela UFMG e mestrando em Literatura Brasileira pela mesma instituição, estudou ainda Literaturas e Dramaturgias Africanas na Universidade de Coimbra (Portugal). Atua, como crítico, no site Horizonte da Cena.

A escritura cênica da peça incorpora diversos elementos rito-performáticos, musicais e míticos, fundamentalmente, afro-brasileiros e africanos, perfazendo uma intrincada simbologia histórico-cultural que afirma não apenas o caráter fundante das culturas negras no país, mas também seus modos de reatualização e transformação. O samba, o funk, o rap e o hip-hop rearranjam melodicamente o repertório de Chico Buarque, estabelecendo uma tensão entre as sonoridades negras e a MPB incrustada na dramaturgia. As músicas periféricas e negras adensam o discurso político da encenação, reafirmam um pertencimento racial e geográfico, bem como possibilitam desenhos de cena, em que as personagens ora se aproximam, ora se distanciam, relacionando-se na e pela música, como manifestação sonora de suas afetações. Um dos mais expressivos pilares de Gota d’Água {PRETA} encontra-se na dimensão da palavra poética, da textualidade dramatúrgica e da vocalidade cantada. Jé Oliveira, como encenador, toma o longo texto original em sua quase inteireza, realizando amiúde alterações, sem impedir que todo o lirismo do texto se projete pela voz das personagens. A presença dos coros, especialmente aqueles formados pelas mulheres da comunidade, evidencia a pujança das vozes a entoar cânticos, sambas e gritos, entre o desespero, o suplício e a alegria. Os microfones, dispostos em pedestais, abundantemente, pelo palco intensificam os efeitos vocais, ampliando a oralitura 1 (MARTINS, 1997) das personagens, isto é, seus atos de fala e de performance, em uma linguagem que gera e impulsiona o canto e a dança; uma fala que reinscreve, no corpo em movimento, suas memórias. O espetáculo estreou em fevereiro de 2019, plasmando um marco histórico: é a primeira encenação do texto, da qual se tem notícia, composta de uma equipe predominantemente negra. Jé Oliveira, diretor-geral e idealizador da peça, é uma inventiva força no teatro brasileiro contemporâneo, um premiado ator, diretor e dramaturgo, além de cofundador do Coletivo Negro – importante grupo, comprometido com as problemáticas étnico-raciais no Brasil.

1 Oralitura é um conceito desenvolvido pela poetisa, dramaturga e professora Leda Maria Martins.

O pensamento estético-político e a relevância histórica desse espetáculo revelam as profundas contradições, as hegemonias culturais e desigualdades sociorraciais cravadas no próprio teatro brasileiro. Gota d’Água {PRETA} questiona também os paradigmas historiográficos das artes teatrais no Brasil, suscitando, entre tantas outras, as questões: É possível um modelo teatral universal? Até REFERÊNCIAS quando a brancura será tomada como padrão MAGALDI, Sábato. Teatro Sempre. São Paulo: Perspectiva, 2006. de criação e reflexão MARTINS, Leda Maria. Afrografias da Memória. São Paulo: artísticas? Perspectiva; Belo Horizonte: Mazza Edições, 1997. 209


POR ONDE ANDAM OS PORCOS Kildery Iara

RECIFE/PE, 2019 | 1h20min | CLASSIFICAÇÃO INDICATIVA 18 ANOS

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A imagem do porco capitalista ganha uma releitura nesta performance. Em vez de pensar na figura centralizada do opressor, o trabalho apresenta o sistema como um organismo autorregulável, que impõe sua lógica a movimentos divergente. Os indivíduos são vistos como seres políticos, pessoas que vestem a máscara de porco e ajudam a sustentar a estrutura de mundo. A partir de obras como A Sociedade do Cansaço, de Byung Chul Han, o espetáculo questiona a lógica de desempenho superprodutivo da sociedade capitalista – com sistemas de autoexploração e monitoramento que disfarçam o custo humano para manter essa ordem. Em cena, os artistas propõem expressões e movimentos que questionam qual é o corpo desse estado hipnótico do desempenho e buscam não se apagar em meio ao excesso de individualização. O trabalho é feito de cenas improvisadas, e as intérpretes modificam seus gestos de acordo com estímulos do espaço. Tudo acontece como numa galeria de arte, onde o público tem livre circulação. 211


HISTÓRICO

A ideia de que até o repouso humano segue uma ordem de acordo com prioridades econômicas, e que um certo ostracismo humano são evidenciados no sistema capitalista são alguns dos tensionamentos importados pela coreógrafa pernambucana (...). Na medida em que vivemos a precarização do meio ambiente e da qualidade de vida humana, essa ideia coletiva de um fim de mundo parece retornar de forma latente em nossos temores. ANDRÉ SANTA ROSA, Diário de Pernambuco

Kildery Iara é integrante do CARNE (Coletivo de Arte Negra), no qual faz parte do corpo de curadoras do Palco Preto, festival independente de arte realizado no Recife e região metropolitana. Formada em dança pela UFPE, investe na integração de linguagens artísticas, tendo o corpo como disparador de questões. Durante sua carreira, já compôs os elencos do Grupo Experimental (PE) e da Cia. Municipal de Dança de Caxias do Sul (RS), foi professora da escola preparatória de dança em Caxias do Sul e atua, há oito anos, como arte-educadora em dança no estado de Pernambuco.

DIREÇÃO GERAL Kildery Iara DIREÇÃO DE ARTE Iagor Peres DIREÇÃO ARTÍSTICA Iagor Peres e Kildery Iara INTÉRPRETES-CRIADORAS Kildery Iara, Marcela Aragão, Meujael Gonzaga e Marcela Felipe FIGURINO E PRÓTESES Meujael Gonzaga ILUMINAÇÃO Iagor Peres OBJETOS DE CENA Iagor Peres e Meujael Gonzaga AMBIÊNCIA SONORA Hugo Coutinho PRODUÇÃO Kildery Iara OPERADOR DE DRONE Ricardo Moura

FOTO S R H A I Z A O L I V E I R A

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A EXISTÊNCIA FOSSILIZADA EM POR ONDE ANDAM OS PORCOS POR NATHALIA CATHARINA ALVES OLIVEIRA

POR ONDE ANDAM OS PORCOS É O PRIMEIRO TRABALHO da Possível Companhia de Recife, Pernambuco. Tendo como motor a alegoria do “porco capitalista”, a performance reflete sobre a condição do corpo em uma sociedade organizada a partir da lógica do desempenho, produtora de um estado hipnótico do indivíduo e de seu consequente isolamento e apagamento subjetivo. De acordo com a companhia, “com os corpos que somos-vivemos, não será possível suportar a ruína criada por nossa própria humanidade”. Faz-se necessário, assim, “um corpo outro, capaz de suportar as adversidades desse mundo”. Parece-me interessante assistir a Por onde Andam Os Porcos a partir da ideia de ensaio em sua melhor concepção, relacionada à pungência da experiência, em negação às formas prontas e acabadas: corpos que experimentam – ensaiam – a si mesmos a partir da relação com o outro e com o espaço. Larrossa (2004, p. 37) nos diz que “o ensaio, então, não é mais a expressão de um sujeito, mas o lugar no qual a subjetividade ensaia a si mesma, experimenta a si mesma, em relação à sua própria exterioridade, àquilo que lhe é estranho”. A performance se constrói em tempo real a partir de jogos e dispositivos compositivos reformulados a cada dia por seus criadores-intérpretes. Ao pensar que vivemos em uma hipermodernidade1, caracterizada por uma “privatização ampliada, erosão das identidades sociais, desgaste ideológico e político, desestabilização acelerada das personalidades” (LIPOVETSKY, 2004, p. 15), reconhecer em um trabalho regras que são partilhadas e que mobilizam um coletivo traz, sem dúvida, um pouco mais de esperança. O espetáculo constrói aos poucos graus de complexidade, desvelando o espaço e revelando pequenas alterações nos direcionamentos de movimento e nos compassos musicais, como se fossem “mudanças de rota” dos corpos. Os deslocamentos contínuos do início passam a ser interrompidos por pausas. Os corpos que em um primeiro momento andam de forma reconhecível, 214

1 “Hipercapitalismo, hiperclasse, hiperpotência, hiperterrorismo, hiperindividualismo, hipermercado, hipertexto – o que mais não é hiper? [...] a coruja de Minerva anunciava o nascimento do pós-moderno no momento mesmo em que se esboçava a hipermodernização do mundo. Longe de decretarse o óbito da modernidade, assiste-se a seu remate, concretizando-se no liberalismo globalizado, na mercantilização quase generalizada dos modos de vida, na exploração da razão instrumental até a ‘morte’ desta, numa individualização galopante” (LIPOVETSKY, 2004, p. 48).


fluida, passam a deflagrar suas quedas e desarticulações. Nos deparamos, assim, com um processo de arruinamento dos corpos em cena. Embora nossa hipermodernidade se caracterize pelo esgotamento da experiência, o trabalho parece abrir espaço para uma existência compartilhada que resiste à sua destruição. Didi-Huberman nos diz que [...] não se pode dizer que a experiência, em qualquer momento da história, tenha sido “destruída”. Ao contrário – e pouco importa a eficácia universal da “sociedade do espetáculo” – deve se afirmar que a experiência é indestrutível, ainda que se encontre reduzida às sobrevivências e às clandestinidades de simples raios luminosos na noite. (DIDI-HUBERMAN, 2012, p. 115).

Nathalia Catharina Alves Oliveira é doutoranda no Instituto de Artes da Unicamp e mestra em Teoria e Prática do Teatro pela ECA/ USP. É docente das faculdades de Teatro e Dança na Universidade Anhembi Morumbi.

Os corpos de Por onde Andam os Porcos podem ser lidos como esses “raios luminosos na noite”, tais como testemunhas da indestrutibilidade de uma experiência coletiva que resiste, apesar de tudo. Assim, embora parta da percepção de um mundo em desintegração, caracterizado por uma ruína subjetiva, a performance parece apontar para uma possível construção de corpos de resistência, a partir de dispositivos coletivos que façam face às relações de dissolução subjetiva e controle desse mundo. A performance revela como nossos corpos estão hipnotizados e mortificados, próximos a uma espécie de “natureza morta, fossilizada” (OTTE, 2012, p. 77). No entanto, é por uma outra natureza, contra uma existência fossilizada, que Por onde Andam os Porcos parece se mover. Essa natureza utópica se faria não a partir da pretensa onipotência – em ruínas – do indivíduo moderno diante de seu contexto, mas na relação horizontalizada entre corpo e espaço, entre os corpos e seus próprios dispositivos improvisacionais. No grande plano horizontal, que podemos ver como uma espécie de tela, os corpos dos criadores-intérpretes evidenciam a deformação de uma comunidade humana, mas também deixam rastros que operam talvez como índices contra a ruína subjetiva e territorial que caracteriza nossa civilização sul-americana REFERÊNCIAS colonizada. Podem DIDI-HUBERMAN, George. Supervivencia de las luciérnagas. esses rastros deixados Madri: Abada Editores, 2012. no espaço-tela nos dar LARROSSA, Jorge. A Operação ensaio: sobre o ensaiar e o fôlego para um possível ensaiar-se no pensamento, na escrita e na vida. Educação & outro mundo, no qual Realidade, v. 29. Porto Alegre, 2004. p o r c o s, a partir LIPOVETSKY, Gilles; CHARLES, Sébastien. Os Tempos de um anagrama da Hipermodernos. São Paulo: Barcarolla, 2004. própria palavra, se OTTE, George. Vestígios da experiência e índices da tornem c o r p o s?

modernidade. In: SEDLMAYER, Sabrina; GINZBURG, Jaime (Orgs.). Walter Benjamin: Rastro, aura e história. Belo Horizonte: UFMG, 2012.

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RECOLON

Coletivo Mona MANAUS/AM, 2016 | 50min | CLASSIFICAÇÃO INDICATIVA 12 ANOS

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Os impactos ambientais e humanos causados pelas construções de usinas hidrelétricas na bacia do Rio Madeira, em Rondônia, foram o ponto de partida para o artista manauara Leonardo Scantbelruy criar este solo, primeiro trabalho do Coletivo Mona. O performer manipula elementos simbólicos e regionais para investigar o risco da vida na Amazônia, marcada por ciclos de colonização. Inspirado pelo trabalho do pintor e escultor Olivier de Sagazan e da coreógrafa Elisa Schmidt, o intérprete utiliza uma pasta de mandioca para se desconfigurar gradativamente e investigar por meio de metáforas corporais o estado emocional e psicológico de um corpo atravessado por um choque ambiental que viola inúmeros direitos. 217


HISTÓRICO O Coletivo Mona é uma rede de artistas independentes manauaras que atualmente residem em Manaus, Portugal e França. Em comum, têm o interesse de descentralizar a arte e torná-la mais democrática. Recolon, o primeiro trabalho do grupo, foi contemplado com o Prêmio Funarte de Dança Klauss Vianna (2014) e circulou por Manaus, Rondônia, Florianópolis, Espanha e Bolívia. Também estão no repertório os espetáculos Transformação / Invisibilidade, A Ver Estrelas, Passarinho e Akangatu. O Mona participou do festival espanhol Emergentes e da Bienal Internacional do Circo, na França, e realizou o I Fest Rap, em Manaus.

Pretendo que essa narrativa, que observa e expõe a ação de barragens na Amazônia seja um dispositivo que possibilite acionar outras percepções de estruturas colonizadoras impregnadas na nossa vida. Perceber, conscientizar, é um pequeno passo para a revolução contra todo tipo de exploração.

CONCEPÇÃO, DIREÇÃO E PERFORMANCE

LEONARDO SCANTBELRUY, diretor e intérprete

FIGURINO Preta Scantbelruy

Leonardo Scantbelruy INTERLOCUÇÃO Gilca Lobo e Elisa Schmidt ASSISTÊNCIA DE DIREÇÃO Francisco Rider ILUMINAÇÃO E SONOPLASTIA Daniel Braz APOIO Coletivo Mona, Movimento Levante MAO e Coletivo Difusão

FOTO S FA B I E L E V I E I R A E E N L EO A LC I D E S

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GRITO-PAISAGEM POR WELLINGTON JÚNIOR

LEONARDO SCANTBELRUY FAZ PARTE DE UMA CENA EXPANDIDA em Manaus que dialoga constantemente com outras artes (dança, artes visuais e cinema). Sua passagem pela Universidade do Estado do Amazonas possibilitou ainda uma maior investigação sobre a cena performativa. Em Recolon, Scantbelruy nos coloca para ver as imagens poéticas contidas nos gritos de uma região amazônica destruída pela exploração dos recursos naturais e de seus povos. As imagens tornam-se outra realidade possível, uma dimensão subversiva desses lugares de meditação sobre as políticas públicas neoliberais e capitalistas contra o povo e a natureza. A travessia dessas imagens se contrapõe aos modelos dominantes e, mais especificamente, ao que é imposto pela publicidade sobre a “docilidade” dos povos amazônidas. O espetáculo revela a partir dessas imagens o conflito do corpo com a tragédia humana e ambiental, partindo de um grito artístico sobre os impactos das usinas hidrelétricas na bacia do Rio Madeira. Além disso, graças ao uso da câmera lenta, a encenação introduz a diferença entre as imagens, o performer e seus estados emocionais. De fato, seja qual for a natureza das imagens – trágicas, violentas, suaves – e, por esse mesmo fato, de seu estado emocional, o performer se move e executa cada um de seus movimentos em um ritmo ocioso. Seus gestos são precisos, cirúrgicos, às vezes até imperceptíveis. A discrepância entre o estado emocional indicado pela imagem e a natureza do movimento é uma maneira de transpor esse grito de resistência da floresta e de seus rios. As imagens ardem em contato com o real da cena e da região amazônica. São imagens que queimam, como afirma Georges Didi-Huberman em Quando as Imagens Tocam o Real: Nisto, pois, a imagem arde. Arde com o real do que, em um dado momento, se acercou (como se costuma dizer, nos jogos de adivinhações, “quente” quando “alguém se acerca do objeto escondido). Arde pelo desejo que a anima, pela intencionalidade que a estrutura, pela enunciação, inclusive a urgência que manifesta (como se costuma dizer “ardo de amor por você” ou “me consome a impaciência”). Arde pela destruição, pelo incêndio que quase a pulveriza, do qual escapou e cujo arquivo e possível imaginação é, por conseguinte, capaz de oferecer hoje. [...] Arde por seu intempestivo movimento, incapaz como é de deter-se no caminho (como se costuma dizer “queimar etapas”), capaz como é de bifurcar sempre, de ir bruscamente a outra parte (como se costuma dizer “queimar a cortesia”; despedir-se à francesa). Arde por sua audácia, quando faz com que todo retrocesso, toda retirada sejam

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impossíveis (como se costuma dizer “queimar os navios”). Arde pela dor da qual provém e que procura todo aquele que dedica tempo para que se importe. Finalmente, a imagem arde pela memória, quer dizer que de todo modo arde, quando já não é mais que cinza: uma forma de dizer sua essencial vocação para a sobrevivência, apesar de tudo (2012, p. 216).

Ao longo do espetáculo, as imagens vão revelando seu poder de incendiar e resistir através de seu caráter evanescente e estridente, como ruídos de máquinas-sonoras. Isso possibilita ao espectador perceber os espaços de silêncios, como nos momentos em que o performer vai construindo sua máscara feita de macaxeira, um vestígio do espaço de destruição do corpo ribeirinho pelas construções das hidrelétricas, como afirma a pesquisadora Elisa Schmidt (ESPETÁCULO ..., 2016): Macaxeira é uma raiz. Não foi escolhida à toa. Além disso, sua densidade permite a composição de máscaras e sua coloração é adequada para a sobreposição com tintas e cascas. A desfiguração com pasta de macaxeira é um campo de morte, posto que os traços do rosto sejam desfeitos, consequentemente são fragmentadas as noções de identidade. Cria-se e recria-se faces para o rosto. Faces que remetem às populações rondonienses dissolvidas à beira do Rio Madeira.

A imagem expressa um dilaceramento de um ideal, da vontade de revelar as imagens-vestígios como testemunhos dessas populações. As imagens produzidas por Recolon nos fazem lembrar dos desenhos de Antonin Artaud e seu poder de incendiar meditações:

Wellington Júnior é bacharel em Estética e Teoria do Teatro pela Unirio, professor de teatro, crítico e encenador. Organizador do livro Memórias da Cena Pernambucana (Vol.1) e idealizador e organizador do Seminário Internacional de Crítica Teatral de Recife (ao lado da Renascer Produções Culturais).

Com certeza, apenas um espectador totalmente insensível não teria um choque ao deparar-se, inesperadamente, com um desses rostos que Antonin Artaud projetou, no final de sua vida, no espaço de simples folhas de papel de desenho. Rostos separados do resto do corpo, pescoços cortados, cicatrizes expostas, marcadas na carne por uma vida passada ou ainda por vir, e de olhares tão intensos que vão muito além das pessoas que se encontram paradas diante deles. Haverá alguém que, atravessado por um destes olhares, tenha permanecido intacto? (THÉVENIN, 1999, p.109-121) A travessia do espetáculo é esse dilaceramento da imagem como um processo de decomposição. Uma região em decomposição. Um país dilacerado por seu desejo neoliberal deixando de não ver e não ouvir a queda do céu.

REFERÊNCIAS DIDI-HUBERMAN, Georges. Quando as imagens tocam o real. PÓS: Revista do Programa de Pós-Graduação em Artes da Escola de Belas Artes da UFMG, v. 2, n. 4, nov, 2012, p. 204–219. Disponível em: <http://www.eba.ufmg.br/revistapos/index. php/pos/article/view/60/62>. Acesso em 17 jan. 2020. ESPETÁCULO solo de dança Recolon se apresenta em Porto Velho. Rondônia ao Vivo. Porto Velho, 08 de agosto de 2016. Disponível em: <http://rondoniaovivo.com/cultura/ noticia/2016/08/08/espetaculo-solo-de-danca-recolon-seapresenta-em-porto-velho.html>. Acesso em 18 jan. 2020. TCHÉVENIN, Paule. Desenho, pintura, teatro. Tradução: Walder Virgulino de Souza. O Percevejo, n. 7, ano 7, 1999, p. 109–121.

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STABAT MATER Janaina Leite

SÃO PAULO/SP, 2019 | 1h50min | CLASSIFICAÇÃO INDICATIVA 18 ANOS

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O espetáculo, cuja abertura de processo foi apresentada na edição anterior da MITsp, é parte de uma pesquisa mais ampla de Janaina Leite sobre o real no teatro – agora sob a luz do obsceno. A partir do texto teórico Stabat Mater (em latim, estava a mãe), da filósofa e psicanalista Julia Kristeva, a artista e pesquisadora propõe o formato de uma palestra-performance sobre o feminino, remontando à história da Virgem Maria, ao mesmo tempo em que tenta dar conta do apagamento de sua mãe em sua peça anterior, Conversas com Meu Pai. Acompanhada por sua própria mãe e pela figura de Príapo, personagem para o qual buscou-se um ator pornô, ela articula de forma radical temas historicamente inconciliáveis como maternidade e sexualidade. Tendo o terror e a pornografia como bases estéticas, Leite investiga as origens de um arranjo histórico entre o feminino e o masculino, que o trabalho tenta desarmar não sem antes correr riscos e enfrentar os mecanismos de gozo e dor que fixam essas posições. 223


HISTÓRICO

O que aqui se quer destacar na encenação, que parte, aliás, de um texto autoralíssimo, é o embate que a autora propõe, sistemática, paciente e generosamente entre realidade e representação. De extremos simplórios, como o efeito mais potente do falso tapa na cara, a epistemológicos, como do real intangível, ou do trauma inextinguível, há um honesto e diligente empenho em expor a história de uma exploração vertical sobre o ser e o parecer da verdade. Sim, talvez isso não seja mais o teatro em muitos sentidos, mas é subversivo principalmente porque mesmo despido de qualquer pudor pessoal ou artístico, consegue representar o irrepresentável que desafia.

Janaina Leite é referência na pesquisa sobre o uso de documentário e autobiografia no teatro brasileiro. Atualmente desenvolve seu doutorado em artes cênicas apoiado pela Fapesp, na Escola de Comunicação e Artes (ECA/USP). Concebeu os espetáculos Festa da Separação: Um Documentário Cênico, Conversas com Meu Pai e Stabat Mater, pelo qual foi indicada, em 2019, ao Prêmio Shell de Teatro na categoria dramaturgia. Publicou o livro Autoescrituras Performativas: do Diário à Cena, consolidando sua pesquisa em teatro documental. Idealizou e coordenou os grupos de estudos Feminino Abjeto 1, Memórias, Arquivos e (Auto) Biografias e Feminino Abjeto 2. Também é cofundadora, atriz e diretora no Grupo XIX de Teatro, com quem criou e atuou em diversos espetáculos reconhecidos pelos principais prêmios e fundos de apoio do país.

LUIZ FERNANDO RAMOS, crítico e pesquisador teatral

A proposta de criação de uma cena de sexo explícito entre Janaina e um ator pornô endossa a evidente filiação de Stabat Mater com o teatro de Angélica Liddell. Tal como nas criações da multiartista catalã, a violência masculina contra as mulheres surge como tema e a forma performática convida a atriz a expor o corpo a situações-limite. A princípio, a proposição mira uma subversão de dois eixos: a vítima do estupro, o corpo antes supliciado, agora estará no controle. E a mãe, sempre silente, será instada a chocarse, a mover-se. MARIA EUGÊNIA DE MENEZES, Teatro Jornal

FOTO S A N D R É C H E R R I

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CONCEPÇÃO, DIREÇÃO E DRAMATURGIA Janaina Leite PERFORMANCE Janaina Leite, Amália Fontes Leite e Príapo PARTICIPAÇÕES ESPECIAIS Príapo amador (Lucas Asseituno) e Príapo profissional (Loupan) DRAMATURGISMO E ASSISTÊNCIA DE DIREÇÃO Lara Duarte e Ramilla Souza COLABORAÇÃO DRAMATÚRGICA Lillah Hallah ASSISTÊNCIA GERAL Luiza Moreira Salles DIREÇÃO DE ARTE, CENÁRIO E FIGURINO Melina Schleder ILUMINAÇÃO Paula Hemsi VIDEOINSTALAÇÃO E EDIÇÃO Laíza Dantas SONOPLASTIA E OPERAÇÃO DE SOM E VÍDEO Lana Scott OPERAÇÃO DE LUZ Maíra do Nascimento PREPARAÇÃO VOCAL Flavia Maria PROVOCAÇÃO CÊNICA Kenia Dias e Maria Amélia Farah CONCEPÇÃO AUDIOVISUAL E ROTEIRO Janaina Leite e Lillah Hallah DIREÇÃO DE FOTOGRAFIA Wilssa Esser PARTICIPAÇÃO EM VÍDEO Alex Ferraz, Hisak, Jota, Kaka Boy, Mike e Samuray Farias IDENTIDADE VISUAL, PROJEÇÕES E MÍDIAS SOCIAIS Juliana Piesco ASSESSORIA DE IMPRENSA Frederico Paula - Nossa Senhora da Pauta FOTOS E REGISTRO EM VÍDEO André Cherri DIREÇÃO DE PRODUÇÃO E CIRCULAÇÃO Carla Estefan GESTÃO DE PROJETO Metropolitana Gestão Cultural

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REAL E FICÇÃO FICÇÃO REAL COMO VALORES

COMPLEMENTARES POR MICHELE BICCA ROLIM

JANAINA LEITE É UMA DAS REFERÊNCIAS, NO BRASIL, na pesquisa do documentário cênico, em especial do teatro autobiográfico. Iniciou sua investigação com as peças Festa de Separação: Um Documentário Cênico (2009) e Conversas com Meu Pai (2014), base para o seu livro Autoescrituras Performativas – Do Diário à Cena (Editora Perspectiva, 2017). Naquela época, eram escassas, em espetáculos brasileiros, referências de obras explicitamente autobiográficas. A atriz, pesquisadora em foco desta edição da MITsp, é uma das fundadoras do Grupo XIX de Teatro, coletivo nascido no Departamento de Artes Cênicas da USP, a partir de pesquisas acadêmicas. Stabat Mater, em latim “estava a mãe”, é o nome de um poema (ou prece) da Idade Média sobre o martírio de Maria ao pé da cruz durante o calvário do filho Jesus. E é o título de um ensaio que serviu de base conceitual à peça homônima de Janaina. O texto referido é da filósofa e psicanalista Julia Kristeva, que aborda o mito da Virgem Maria, analisado como o protótipo de um feminino que se constrói entre a abnegação e o masoquismo. Kristeva é autora de um conceito norteador da pesquisa de Janaina, a “abjeção”, que remonta às tentativas de nos separarmos do corpo materno como processo de individuação, o que não se conclui inteiramente. É a partir dessa ideia que a atriz busca, na mãe, ou na tensão mãefilha, um caminho para problematizar as representações do feminino hoje. Ela também se inspira na linguagem da artista catalã Angélica Liddell – cujos trabalhos trazem referências à violência contra mulheres e levam o corpo a situações-limite. As obras de Liddell são objetos de pesquisa de Janaina no seu doutorado em andamento na USP, que já rendeu dois experimentos cênicos: Feminino Abjeto 1 (2017) e Feminino Abjeto 2 (2018). Stabat Mater é o primeiro trabalho de Janaina com uma equipe de mulheres em todas as funções. Com o formato de conferência, a peça percorre a história da Virgem Maria, que concebeu Jesus sem sexo ou pecado, passa pelas relações de uma mãe com o seu bebê, e de Janaina com a sua própria mãe, e chega aos filmes de terror em que uma mulher é fecundada por monstros enquanto dorme (sem prazer e, assim, sem pecado) e à pornografia. A artista questiona, portanto, os 226


discursos sobre o corpo feminino enquanto busca “ressignificar” a figura de sua mãe, “apagada” em Conversas com Meu Pai.

Michele Bicca Rolim é jornalista, pesquisadora e crítica teatral, doutoranda em artes cênicas pelo Programa de PósGraduação em Artes Cênicas da UFRGS. Trabalha na imprensa cultural desde 2009. É editora do site AGORA Crítica Teatral e autora do livro O que Pensam os Curadores de Artes Cênicas (editora Cobogó).

Stabat Mater pode ser considerada um desdobramento de Conversas com Meu Pai. Num cenário-instalação, a atriz/pesquisadora fala sobre sua relação incestuosa com o pai, construindo um jogo com o espectador sobre o limite tênue entre a memória e a imaginação. Mas, segundo Janaina, faltava uma “peça” naquela história. “Afinal, o incesto é uma situação onde há sempre três pessoas e somente dois lugares” (LEITE, 2019). Onde “estava a mãe”? Para “reparar” essa história, Janaina traz a presença da sua mãe, Amália Fontes Leite. E, para compor esse triângulo – mãe, filha e figura masculina –, inclui Príapo, para o qual buscou-se um ator pornô. O que se percebe é uma radicalização de procedimentos utilizados na criação de Conversas com Meu Pai e Festa de Separação. Nos três trabalhos, Janaina busca ressignificar experiências da sua vida, mas as obras não permanecem na esfera do individual, elas vão além: discutem questões sociais e políticas, sem perder a experiência estética. Em Festa de Separação, ela e o ex-marido fazem um jogo de adivinhação com o espectador acerca do que era real ou ficção nos relatos da montagem. Já em Conversas com Meu Pai, o conceito de “real” é posto em questão, uma vez que ela se questiona se houve ou não uma relação incestuosa com o pai. Por fim, em Stabat Mater, ela radicaliza esse jogo, pois não só busca o real como deflagra “uma ação real que produza consequências simbólicas ou uma ação simbólica que produza consequências reais” (LEITE, 2019, p. 18). Neste trabalho, real e ficção não são antagônicos. Eles se complementam. Quando um vídeo em que Janaina transa com o ator pornô é projetado na presença de sua mãe, o real origina consequências simbólicas, pois se trata de um “rito” em que ela assume o controle da situação, subvertendo a violência do estupro ocorrido na adolescência ou trazendo à tona a relação incestuosa. Diante do vídeo, à mãe resta o dilema de testemunhar ou não a reencenação do trauma: confirmando seu lugar de ausência e abandonando a cena ou permanecendo e tomando outra perspectiva acerca da narrativa. Esse denso e intrincado ritual pode ter consequências reais na vida da artista, uma vez que, reapropriando-se de uma memória traumática, abre-se a possibilidade de ressignificar a relação com a mãe. Nesse sentido, em Stabat Mater, a relação entre ficção e realidade REFERÊNCIAS atinge seu ápice: a vida KRISTEVA, Julia. Stabat Mater. In: KRISTEVA, Julia. Histórias de intervindo e criando amor. Tradução: Leda Tenório da Motta. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. no teatro; o teatro intervindo e criando LEITE, Janaina Fontes. Autoescrituras Performativas – Do Diário à Cena. São Paulo: Perspectiva, 2017. caminhos na vida. ______. Stabat Mater. São Paulo: Associação Centro Cultural, 2019.

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tReta

Original Bomber Crew TERESINA/PI, 2018 | 60min | CLASSIFICAÇÃO INDICATIVA 16 ANOS

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As várias "tretas" enfrentadas diariamente por jovens periféricos, refugiados e minorias em geral foram a base de trabalho do grupo Original Bomber Crew. “Tretas” da política, do patriarcado, do colonialismo e da batalha de breaking que geram embates pela sobrevivência. Os artistas criadores do espetáculo performam próximos ao público e acompanhados de uma sonoridade metálica, densa e urbana. A violência do Brasil e a realidade de corpos considerados descartáveis mundo afora são expressas nos movimentos com elementos do breaking e do hip-hop. A obra é um conflito, uma explosão, um ato premeditado para envolver o outro.

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HISTÓRICO

O que o Original Bomber Crew conquista é o fundamento que permanecerá na estrutura de cada instante, cena, performance: a expectativa do desconhecido, que, na ambiência urbana, assume a materialidade do medo que nos atinge a cada esquina, lâmpada queimada, estranho que não nos ignora. Dessa maneira, tReta – e o nome diz muito – reafirma o civilizatório destruído nas escolhas por essa sociabilidade agressiva em muitos níveis. Os performers, por serem apenas homens, trazem ao espetáculo a violência própria do masculino que se insiste afirmativo pelo corpo, gesto, pelo existir agressivo do dominador. RUY FILHO, Antro Positivo

Original Bomber Crew é uma organização de práticas, pesquisa e produção da cultura hip-hop. Ativo desde 2005, é referência no Piauí no trabalho de formação em dança de rua. Com participações em festivais, batalhas e encontros nacionais e internacionais, atualmente ocupa a Casa do Hip Hop, em Teresina, junto a outros artistas da cidade. O grupo desenvolve espetáculos, performances, batalhas, intervenções urbanas, festivais e oficinas de dança no Piauí e em estados vizinhos.

CONCEPÇÃO Allexandre Santos e Cesar Costa DIREÇÃO Allexandre Santos CRIAÇÃO E PERFORMANCE Allexandre Santos, Cesar Costa, Javé Montuchô, Malcom Jefferson, Maurício Pokemon e Phillip Marinho CONCEPÇÃO MUSICAL César Costa e Javé Montuchô COORDENAÇÃO TÉCNICA E DESENHO DE LUZ Javé Montuchô FOTOGRAFIA Maurício Pokemon ASSISTÊNCIA ADMINISTRATIVA Humilde Alves DIREÇÃO DE PRODUÇÃO Regina Veloso/CAMPO Arte Contemporânea AGRADECIMENTOS Artur, Cleydinha, Neném, Fedó, Jell, Pangu, Pangulim, WG, Gui Fontineles e Marcelo Evelin OBRA ELABORADA EM TERESINA (PI) DURANTE RESIDÊNCIAS DE PESQUISA E CRIAÇÃO NA CASA DE HIP HOP (2017 E 2018), ESPAÇO BALDE (2018) E CAMPO ARTE CONTEMPORÂNEA (2017 E 2018)

FOTO S M AU R Í C I O P O K E M O N

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O CHOQUE COMO ANTÍTESE À BARBÁRIE POR NATHALIA CATHARINA ALVES OLIVEIRA

“Não poderia toda a história da humanidade ser vista como uma normalização crescente da injustiça, trazendo consigo o sofrimento de milhões de seres humanos sem nome e sem rosto? Em algum lugar, [...] os erros são registrados, a tensão aumenta e torna-se cada vez mais insuportável, até o momento em que explode [...] numa cólera de retaliação devastadora.” ZIZEK, Violência

BRASIL. LATITUDE 05°05’20 SUL; LONGITUDE 42°48’07 OESTE. Teresina. Capital do estado do Piauí. Aproximadamente 864.845 pessoas habitam sua área, de 1.673 km². Teresina sofreu uma série de incêndios clandestinos entre 1937 e 1941, em vista da expansão de áreas nobres da cidade, deixando centenas de desabrigados.

tReta, trabalho do Original Bomber Crew (elemento breaking do grupo piauiense de hip-hop Interação Ralé) é uma performance de dança que parte dos inúmeros conflitos – “tretas” – vividos diariamente por aqueles vistos como minoria – em realidade, maioria –, que vivem à margem das “áreas nobres” das cidades. O OBC pesquisa a cultura hip-hop desde 2005, participando de festivais, batalhas e encontros nacionais e internacionais. – Atenção, senhor! Todo mundo com a mão na cabeça! Encostado na parede, agora! É só obedecer. Somente obedecer. Se nada for organizado, todo mundo vai ser deliberado, ok? O trecho acima, que integra o teaser de tReta, lembra-me Branco Sai, Preto Fica (2015), de Adirley Queirós. O filme se passa na Ceilândia/DF. Curiosamente, tanto tReta quanto o filme trabalham com a imagem e ação de descargas elétricas como carga revolucionária. Talvez seja mera coincidência, mas Teresina, sede do OBC, é a terceira cidade no mundo onde mais ocorrem descargas elétricas. O hip-hop é uma cultura das ruas e uma linguagem do limiar 1; um território social e estético no qual coabitam literatura, dança, grafite e música. Manifestando imagens do corpo cotidiano, tReta deflagra um limiar entre ação, gesto e dança: corpo social como corpo estético. E vice-versa. Embora incorpore imagens e objetos de uma realidade urbana, a dança não se configura como 232

1 O limiar pode ser entendido como um “estranhamento do estado habitual da teatralidade tradicional e como aproximação à esfera cotidiana.” (DIÉGUEZ, 2009, p. 6). A autora nos diz que “refletir sobre as teatralidades liminais não apenas implica considerar seu complexo hibridismo artístico, mas também considerar as articulações com o tecido social no qual se inserem.” (DIÉGUEZ, 2009, p. 7; tradução nossa). 2 “O rosto, por sua vez, é inviolável; [...] Ver um rosto já é ouvir, 'Não matarás', e ouvir, 'Não matarás', é ouvir ‘justiça social’.” (LÉVINAS apud BUTLER, 2017, p. 52). 3 Referência ao texto Minima Moralia: reflexões a partir da vida danificada (194447), de Theodor Adorno. A experiência na modernidade, reduzida à mera “relação de troca” do capitalismo, teria tornado a vida danificada.


representação do cotidiano. A ficção trava um embate com a realidade que a produz, contradizendo, “tretando”, com o seu próprio contexto.

Nathalia Catharina Alves Oliveira é doutoranda no Instituto de Artes da Unicamp e mestra em Teoria e Prática do Teatro pela ECA/ USP. Tem graduação em dança, teatro e performance pela faculdade de Comunicação das Artes do Corpo/ PUC-SP. É docente na Universidade Anhembi Morumbi nas faculdades de Teatro e Dança.

Em seu estudo sobre a violência, Judith Butler (2017, p. 61) retoma Lévinas, comentando que “embora o corpo possa ser morto, o rosto não é morto com ele. Lévinas não diz que o rosto é eterno e por isso não pode ser extinto. Antes, o rosto carrega uma interdição contra o assassínio [...] e se torna sujeito dessa interdição”. Essa reflexão me parece interessante, dado que o hip-hop expressa a vida e a morte de tantos habitantes da periferia e, no entanto, seus rostos – sujeito, identidade, território e cultura – não podem ser apagados, sobrevivem como linguagem, como dança. A autora considera que “não importa o que outro faça, ele continuará impondo sobre mim uma exigência ética, continuará tendo um ‘rosto’2 ao qual eu sou obrigado a responder.” (BUTLER, 2017, p. 51). O rosto impõe, portanto, uma proibição à violência. Parece-me que a dança em tReta pode ser vista como esse rosto sobrevivente, invocando uma reparação das injustiças sofridas por seus corpos. A fisicalidade de tReta revela os desvios que o corpo deve fazer face à violência, corpos cujos rostos se quer apagar. Poderíamos pensar nas “quebradas” do bairro do Dirceu, em Teresina, assim como nos sobreviventes em Gaza. Ao revelar ações e gestos de tantos “sem rostos” aos movimentos do hip-hop, o espetáculo constrói, simbolicamente, a “redenção” deles. Suspensão. Os corpos respiram exaustos, banhados por uma sonoridade em off que se assemelha ao chamado à oração muçulmana que dispara dos minaretes das mesquitas das cidades islâmicas. Embora estejam infiltrados na macroviolência dos dias, os corpos de tReta resistem com sua poesia explosiva, assimilando a barbárie não para afirmála, mas para fraturar sua continuidade. A violência diária se torna linguagem que, ao ser assumida em sua corporeidade, é contraditoriamente negada, dado que o vocabulário “do real” é reformulado e interrompido por quebras, suspensões, quedas e recuperação de movimento, abrindo espaço para a reescrita de uma realidade, para uma outra dramaturgia social. Os choques cinéticos dos performers podem ser vistos como antídoto incendiário contra a REFERÊNCIAS violência, um desvio da ADORNO, Theodor. Minima Moralia: reflexões a partir da vida narrativa dominante. lesada. Tradução: G. Cohn. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2008. Diante de muitas BUTLER, Judith. Caminhos divergentes: judaicidade e crítica ao quedas, esses corpos sionismo. São Paulo: Boitempo, 2017. não se abatem face 3 DIÉGUEZ, Ileana. Escenarios y teatralidades liminales: prácticas à vida danificada , artísticas y socioestéticas. Archivo virtual Artes Escénicas, mas transformam a 2009. Disponível em <http://archivoartea.uclm.es/textos/ deterioração cotidiana escenarios-y-teatralidades-liminales-practicas-artisticas-ysocioesteticas/>. Acesso em 19 jan. 2020. em dança incendiária. 233


violento.

Preto Amparo, Alexandre de Sena, Grazi Medrado, Pablo Bernardo BELO HORIZONTE/MG, 2017 | 60min | CLASSIFICAÇÃO INDICATIVA 16 ANOS

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O solo de Preto Amparo propõe a descolonização do olhar sobre corpo negro – isto é, uma mudança sobre essa leitura que, historicamente, ratifica violências. O espetáculo se apropria dessas violências como artifício estético e criativo para rasurá-las, perfurá-las e reconfigurá-las. Utilizando elementos como uma viatura policial de brinquedo, um saco de café e um pacote de pipoca, as cenas se desenham pelo percurso de um jovem negro na sociedade, atingido por abordagens policiais, pelo genocídio em curso e pela hipersexualização de seu corpo. Isso acrescido de elementos urbanos e ritos de passagens contemporâneos. Propondo um diálogo entre a ancestralidade e a vida do jovem negro urbano, o performer produz uma experiência que busca novas possibilidades de se pensar a estética negra no âmbito cênico, artístico e cultural. 235


HISTÓRICO

violento. é silenciosamente sinestésico… A gente sente fisicamente a presença daquele corpo negro nu. E aqui não estou falando desse olhar do fetiche, que só consegue ver e interpretar o corpo preto no lugar do desejo. Não estou falando do corpo masculino da negrura que só faz “oferecer” medo ou violência. Não. Pelo menos, não para mim. Estou falando de um corpo negro que refuta a história oficial e a hierarquização dos saberes, consequente da hierarquia social. De um corpo mapeado por práticas de identidade individual e coletiva racializadas e marcado pelo gênero. E, principalmente ali, de um corpo adornado, em performance e que é performance que resguarda, nutre e cria uma estética violenta e docemente contestatória.

Os artistas Preto Amparo, Alexandre de Sena, Grazi Medrado e Pablo Bernardo não se definem como um grupo ou uma companhia, mas como um aquilombamento que visa fortalecer nacionalmente redes pretas, como segundaPRETA (MG), Segunda Crespa (SP) e Segunda Black (RJ). A pesquisa que deu origem a violento. foi iniciada por Preto Amparo em uma cena curta apresentada na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), durante uma ocupação artística. Após alguns disparos, Alexandre de Sena assumiu a direção, Grazi Medrado se aproximou para a produção e Pablo Bernardo chegou para os registros. A peça foi apresentada em festivais de teatro e de dança em Minas Gerais, Bahia, São Paulo e Piauí. Em 2019, o solo foi contemplado pelo Prêmio Leda Maria Martins de Artes Cênicas Negras de Belo Horizonte como melhor peça de longa duração.

SORAYA MARTINS, Horizonte da Cena ATUAÇÃO Preto Amparo A peça vai no caminho inverso à verborragia dos “textões” das pautas identitárias nos últimos tempos, apostando na sutileza para um tema espinhento e, como diz seu título, violento: o racismo estrutural brasileiro. MIGUEL ARCANJO PRADO, UOL

DIREÇÃO Alexandre de Sena DRAMATURGIA Alexandre de Sena e Preto Amparo PRODUÇÃO Grazi Medrado REGISTRO EM FOTO E VÍDEO Pablo Bernardo ILUMINAÇÃO Preto Amparo PREPARAÇÃO CORPORAL Wallison Culu/Cia Fusion de Danças Urbanas ASSESSORIA DE TRILHA SONORA Barulhista

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CORPO/CORPUS

PAISAGENS : NEGRO DE SENTIDOS POR GUILHERME DINIZ

A CONFIGURAÇÃO CÊNICA DE VIOLENTO. desenha-se a partir dos contornos, sentidos e discursos do corpo negro, forjando imagens que deslocam e confrontam, poeticamente, imaginários racistas reprodutores de estereotipias. Nesse solo, do ator Preto Amparo, questiona-se agudamente o olhar objetificante que atribui um valor semântico negativo e reducionista a sujeitos negros. Ademais, ao desestabilizar as idealizações e os fetiches, violento. visa tecer pensamentos e dispositivos performáticos que construam outras possibilidades artístico-afetivas para as corporeidades negras. Os processos históricos de criminalização da população negra, no Brasil, instituíram uma imago perniciosa do homem negro, lido como a personificação do mal e do perigo que ameaçaria a harmonia social. violento. debruça-se sobre tais estigmatizações, provocando-nos a refletir sobre o que de fato constitui a violência em um país alicerçado no genocídio negro e nas mais diversas formas de desigualdade racial (NASCIMENTO,1978). Segundo a mais recente análise do Atlas da Violência, em 2017, 75,5 % das vítimas de homicídio no Brasil foram indivíduos negros, avolumando uma taxa de letalidade em ascensão (IPEA, 2019). violento., ao fissurar o imaginário branco dominante, que projeta o negro como arquétipo da violência, coloca em questão a linguagem como instrumento das práticas racistas. É do corpo nu, pulsante e denso, que toda a articulação dramatúrgica se instaura. A nudez de Preto Amparo se manifesta como um operador semiótico, por meio da qual as narrativas e os discursos contra-hegemônicos são tecidos. As imagens geradas pelo seu corpo dinâmico e deslizante desafiam a hipersexualização racista e engendram outras figurações para as subjetividades negras. Nesse processo, “o sujeito não é desenhado como uma unidade fixa, imutável, mas fazse, constitui-se e modifica-se sempre em relação a um outro” (MARTINS, 1995, p. 87). Os diversos objetos e elementos cênicos mobilizados por Preto Amparo remetem, em sua densidade semântica, ao cotidiano urbano, à violência policial e aos saberes culturais afro-brasileiros, inscrevendo uma cena que dialoga com a pluralidade de vivências dos sujeitos negros. violento. concebe uma profusão de temporalidades, em que pretérito e presente se conjugam, revelando uma corporeidade negra em constante estado de movência, 238


que ressemantiza sua sempre contemporânea memória ancestral. O palcoterreiro é território de múltiplas presenças, afetações e anseios, agenciados pela intrincada trilha sonora e pelas projeções que estruturam sua intermidialidade.

Guilherme Diniz é ator, pesquisador e crítico teatral. Licenciado em Teatro pela UFMG e mestrando em Literatura Brasileira pela mesma instituição, estudou ainda Literaturas e Dramaturgias Africanas na Universidade de Coimbra (Portugal). Atua, como crítico, no site Horizonte da Cena.

A violência, matizada poeticamente pelo espetáculo, recobre-se de outras significações, convertendo-se em artifício estético para romper relações e imaginários racistas; diz respeito à necessidade de um urgente diálogo sobre vidas negras e, especialmente, masculinidades negras, a um só tempo feridas e desejosas de habitar outras possibilidades de subjetivação. Ou como nos ensina Frantz Fanon (2005): a descolonização como um processo violento que rompe estruturas degradantes e reumaniza vidas outrora subalternizadas. violento. aponta caminhos poético-políticos de uma reconfiguração das imagens e dos significados em um mundo fortemente racializado. violento. originou-se como uma cena curta, em 2016, fruto das perquirições artísticas de Preto Amparo, ao refletir sobre a fetichização dos corpos negros masculinos. Com o tempo, o experimento cênico ganhou novas proposições críticas, feições performáticas e elementos dramatúrgicos, possibilitados pelos encontros com diversos parceiros, tornando-o um trabalho efetivamente coletivo. O espetáculo já circulou por alguns dos mais destacados espaços e eventos artístico-culturais do Brasil e foi agraciado com o Prêmio Leda Maria Martins de Artes Cênicas Negras de Belo Horizonte (MG). Alexandre de Sena, diretor do espetáculo, transita pela atuação, pela direção e pela criação de trilhas sonoras, realizando intervenções urbanas com foco nas discussões étnico-raciais; Preto Amparo, além de ator, é diretor e iluminador teatral, desenvolvendo há muito pesquisas sobre a arte marginal e a dramaturgia negra. Ambos integram ativamente um dos movimentos mais relevantes de produção e difusão das artes cênicas negras, em Belo Horizonte – a saber: o projeto segundaPRETA –, que vem se constituindo, na atualidade, como um fundamental espaço de experimentação e reflexão sobre as teatralidades e performatividades negras contemporâneas, aproximando artistas e intelectuais negros e negras de várias partes do Brasil. violento. se insere em um amplo contexto teatral, no qual inúmeros artistas, críticos e pesquisadores negros e negras vêm sulcando novos caminhos estéticos, a partir REFERÊNCIAS de outras bases filosófico-culturais, FANON, Frantz. Os Condenados da Terra. Juiz de fora: Ed. UFJF, 2005. notadamente IPEA. Atlas da Violência. Brasília: Fórum Brasileiro de Segurança africanas e afroPública, 2019. diaspóricas. MARTINS, Leda Maria. A Cena em Sombras. São Paulo: Perspectiva, 1995. NASCIMENTO, Abdias do. O Genocídio do Negro Brasileiro: Processo de um Racismo Mascarado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

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ZOO

Macaquinhos SÃO PAULO/SP, 2018 | 60MIN | CLASSIFICAÇÃO INDICATIVA 18 ANOS

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Uma festa mal-acabada, rastros de intimidade pelo espaço e trechos de uma suruba musical carregam o ambiente. O mais recente trabalho do Macaquinhos é uma instalação performativa que desencanta os zoológicos humanos realizados em países colonizadores da Europa durante o século 20. O coletivo continua sua pesquisa que fricciona corpo, política e os limites de linguagens estéticas contemporâneas e utiliza como provocação a pergunta “O que há de Norte em cada um de nós?”. Convidado a criar o trabalho pelo Künstlerhaus Mousonturm e pelo Festival I*mpossible Bodies, na Alemanha, o grupo propõe uma experiência de ressaca colonial compartilhada entre performers e visitantes. É um ambiente sensorial carregado de cheiros e sons, um lugar para expectativas que questiona o que é doméstico e o que é espetacular. 241


HISTÓRICO

O coletivo Macaquinhos tem uma disponibilidade única, criando possibilidades frágeis e construtivas, para novas possibilidades no presente e no futuro. Partindo do contexto brasileiro, esses artistas formulam questões urgentes do nosso tempo, combinam de forma exemplar criações colaborativas e novas linguagens, transitam de modo impressionante entre teoria e prática, que eles formulam em conjunto. Em um mundo violento, os Macaquinhos conseguem provocar usando táticas de ternura. Toda a sua vulnerabilidade radical irrompe em uma poesia corporal coreografada. Dessa forma, o coletivo nega hegemonias e produz uma diversidade que parte de baixo! ELISA LIEPSCH, dramaturgista alemã

Desde 2011, o grupo Macaquinhos opera como um espaço de criação colaborativa e horizontal. É formado por uma rotatividade de artistas transdisciplinares que têm a cidade de São Paulo como ponto de convergência. O eixo de pesquisa do grupo é o tensionamento entre corpo, política, dança e performance. Em 2014, a obra Macaquinhos, na qual os performers investigavam o ânus como a metáfora do Sul no corpo, viralizou nas redes sociais e gerou uma série de discussões sobre o papel da arte. Seu novo trabalho, ZOO, dá sequência à pesquisa, agora apontada para as relações com o Norte. O coletivo já participou de festivais no Brasil, Alemanha, Áustria e Bélgica.

CRIAÇÃO, DIREÇÃO E PERFORMANCE Andrez Lean Ghizze, Caio, Danib.a.r.r.a, Feliz, Kupalua, Luiz Gustavo, Marine Sigaut e Rosangela Sulidade ILUMINAÇÃO Helô Duran e Lucas Brandão COLABORAÇÃO ARTÍSTICA Carol Mendonça, Elisa Liepsch e Kontouriotis PRODUÇÃO EXECUTIVA Corpo Rastreado COPRODUÇÃO Künstlerhaus Mousonturm Frankfurt APOIO Programa de Residência Artística Obras em Construção, Casa das Caldeiras, Residência Artística Instituto Terra Luminous, Centro de Referência da Dança da Cidade de São Paulo e Frankfurt LAB AGRADECIMENTOS Alessandra Domingues, Guilherme Godoy, François Pisapia, José Fernando Peixoto, Marcelo Evelin, Teresa Moura Neves, Yuri Tripodi e todxs xs participantes do Experimento Milgrau

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ZOO E A RESSACA COLONIAL POR RODRIGO NASCIMENTO

NA CONTRAMÃO DA INSTITUCIONALIZAÇÃO DAS ARTES, que muitas vezes cristaliza formas, temas e a relação entre artista e público, o grupo Macaquinhos se propõe a uma desinstitucionalização da expressão artística. Apresenta-se como um coletivo que incorpora artistas das mais diferentes áreas, ocupa espaços não tradicionais, como ruas e galpões, e se debruça sobre uma prática de ativismo e modo de existência. Advém dessa disposição inicial sua capacidade de acender debates vivos em torno de nossos grandes mitos fundacionais, de nossa história e de nossos modos de vida. Em seu primeiro projeto, Macaquinhos, nascido em 2011 em intervenções no Museu do Piauí, o grupo investigou o lugar do cu no imaginário ocidental. Seja por nossa formação racional, que relega ao sexo e ao erótico o lugar do descontrole e do animalesco, seja por nossa formação judaico-cristã, que tem nas “partes baixas” o lugar do pecado e do interdito, o cu se transformou num grande tabu social – mesmo sendo, ironicamente, o grande ponto de encontro entre os humanos de todos os gêneros. Ao brincar com essa zona de interdição, o grupo sugeria colocar em debate as formas de relação com o corpo herdadas da colonização. O cu como “Sul do corpo” se tornava um enfrentamento das categorias e formas de subjetivação que reproduzem a exploração (afinal, não seria o ânus, assim como as minorias sociais, algo sempre inferior ou marginalizada pelo centro?). Na performance não há personagens nem narrativa, apenas um corpo coletivo que, ao longo de uma coreografia mínima, ritualística até, se envolve no toque, no cheiro e na observação do orifício. Aquela zona comum, a um só tempo entrada e saída, convida a uma aniquilação das hierarquias e das convenções. Nesse primeiro trabalho, o ânus é alçado à condição de dispositivo para uma redefinição política – portal para outras formas de percepção e escuta em uma sociedade heteronormativa, falocêntrica e moralista. Ele permite um acesso diverso ao outro, um Sul corporal que se apresenta como desestabilizador das imposições do Norte. Área de aprendizados inauditos, capaz de dar vazão e forjar novas epistemologias, em sentido semelhante àquele proposto por Boaventura de Sousa Santos em Epistemologias do Sul: parte de um movimento que permite ampliar nossa visão para além daquela que a Europa nos relegou e que possibilita forjar experiências sociais e utopias outras. 244


Rodrigo Nascimento é crítico teatral do portal Cena Aberta, professor, educador popular e tradutor. Tem graduação em Letras pela Unicamp e doutorado em Literatura e Cultura Russa pela USP. Há anos dedica-se à pesquisa dos teatros russo e brasileiro. É autor de Tchékhov e os Palcos Brasileiros (Ed. Perspectiva).

Em ZOO, instalação performativa que estreou em 2018 no Festival Im*possible Bodies, em coprodução com o Mousonturm (Alemanha), o grupo segue na problematização das heranças desse Norte político, econômico e epistemológico. Nessa performance continuam a investigação no campo da dança e da performance, tensionando as relações entre corpo e política, mas agora os corpos não mais têm aquela vitalidade convidativa, pois parecem tomados por um cansaço. O grupo envolve o público em uma teia de cheiros e sons para criar um ambiente sensorial no qual os performers são presença a ser sentida. A despeito dos sons em volume alto e do funk tocado incessantemente, parecem tomados pela ressaca de uma longa festa. Há muitas entradas possíveis no caleidoscópio temático de ZOO. De todo modo, interessa menos um discurso claro a respeito de cada um deles e mais o deslocamento pela presença dos corpos. O gesto efêmero de “estar presente” sugere uma problematização daquelas formas de relação com o outro que, nos zoológicos humanos produzidos pelas potências imperialistas ao longo dos séculos XIX e XX, transformaram os povos das nações ocupadas em figuras exóticas, postas ali para contemplação. Mas, se nesses zoológicos, africanos e indígenas eram colocados à distância, em áreas cercadas, em ZOO não há separação entre quem observa e quem é observado – pelo contrário: o outro está ao redor, se aproxima, insinua um toque, se faz sentir. Os zoológicos humanos não só edificavam o império colonial, como também reafirmavam teorias de hierarquia das raças e contribuíram para um imaginário sobre o outro repleto de hipersexualização, preconceitos e estigmatização (BANCEL, Nicolas; BLANCHAR, Pascal; LEMAIRE, Sandrine, 2000). No entanto, ZOO ensaia a criação de um novo território, no qual não há muito o que contemplar. Após a farra colonialista, resta a ressaca, o cansaço. Não há fetiche nem exotização dos corpos, pois sua presença parece “fracassar” como espetáculo. É a simples presença que provoca aquilo que Suely Rolnik chamou de “anestesia da vulnerabilidade do outro” (ROLNIK, 2006, p. 123-9). O outro agora se sugere menos como um objeto exótico e mais como um “corpo comum” que, ao colocar-se ao lado, pode abalar posições estáveis e expectativas. O tempo todo, mais do que respostas, pairam questões: O que está para acontecer? Será isso um espetáculo? O outro seria algo a ser visto ou parte de nós? Ao se colocar nessa zona movediça, REFERÊNCIAS ZOO coloca o BANCEL, Nicolas; BLANCHAR, Pascal; LEMAIRE, Sandrine. Os público dentro de Jardins Zoológicos Humanos. Disponível em: https://diplomatique. uma provocação org.br/os-jardins-zoologicos-humanos/. Acesso em 17 jan. 2020. artística que é, ao ROLNIK, Suely. Geopolítica da Cafetinagem. Ide, São Paulo, v. 29, mesmo tempo, uma 2006, p.123-129. experiência social. SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula. (Orgs.) Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez Editora, 2010.

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OLHARES CRÍTICOS | PROGRAMAÇÃO + DOSSIÊ

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OLHARES CRÍTICOS

O eixo reflexivo da MITsp convida a sociedade a pensar as artes cênicas e a contemporaneidade a partir da publicação de artigos, entrevistas e críticas e da realização de debates com pensadores e pesquisadores de diferentes áreas. CURADORIA Daniele Avila Small

e Luciana Eastwood Romagnolli

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REFLEXÕES ESTÉTICO-POLÍTICAS

A CULTURA COMO DIREITO CONSTITUCIONAL E BEM COMUM POLÍTICAS PÚBLICAS PARA CULTURA: CONFRONTAÇÕES IDEOLÓGICAS 8 de março, domingo, das 16h às 18h Itaú Cultural - Sala Vermelha Conversa com representantes de diferentes campos e posicionamentos políticos sobre a responsabilidade do poder público na garantia constitucional do acesso à cultura, à vista das diferenças ideológicas e das concepções moralizantes que embasam mecanismos de censura e exclusão. COM Pr. Alexandre Gonçalves (SC), Eduardo Gianetti (SP), Rosane Borges (SP) e Vladimir Safatle (SP) MEDIAÇÃO Patrick Pessoa (RJ)

CONTRADIÇÕES NO DEBATE DA CULTURA COMO BEM COMUM 14 de março, sábado, das 14h às 16h Itaú Cultural - Sala Vermelha A partir de uma perspectiva interseccional, artistas brasileiros de diferentes regiões debatem sobre práticas da cultura como bem comum no contexto capitalista de estruturação social classista, que naturaliza diferenças como as de classe, etnia e gênero, definindo complexas partilhas de privilégios e exclusões no campo da arte. COM Carla Akotirene (BA), Grazi Medrado (MG), Jaqueline Elesbão (BA), Jé Oliveira (SP) e Gyl Giffony (CE) MEDIAÇÃO Daniele Avila Small (RJ)

DEMOCRACIA EM FOCO: MECANISMOS DE CENSURA 14 de março, sábado, das 17h às 19h Itaú Cultural - Sala Vermelha Juristas abordam os complexos mecanismos de censura, a partir de crenças e valores ideológicos de uma sociedade capitalista de formação cristã, patriarcal e colonial. Isso em um contexto de uso da cultura como forma de instituir um regime de exceção, contrário à ordem constitucional de uma sociedade democrática pautada pela garantia das liberdades individuais, dentre as quais, a liberdade de expressão. COM Eduardo Dias de Souza Ferreira (SP), Eduardo Faria Santos (SP), Celso Curi (SP), Rodrigo Sérvulo (SP) e Kenarik Boujikian (SP) 249


CURADORIA NA ENCRUZILHADA 15 de março, domingo, das 14h às 16h Centro Cultural São Paulo - Sala Adoniran Barbosa Curadoras e curadores das diferentes frentes da MITsp conversam sobre os desafios e impasses do exercício da curadoria, considerando atravessamentos interseccionais entre categorias de etnia, gênero e classe, diante das relações de poder e das formas de silenciamento e exclusão institucionalizadas. COM Andreia Duarte (SP), Dodi Leal (SP/BA), Grace Passô (MG), Maria Fernanda Vomero (SP) e José Fernando Peixoto de Azevedo (SP) MEDIAÇÃO Daniele Avila Small (RJ)

MASTERCLASS CONTRA O TEATRO POLÍTICO 9 de março, segunda, das 16h às 18h Itaú Cultural - Sala Vermelha Autor dos livros Contre le Théâtre Politique (Contra o Teatro Político, 2019) e Politiques du Spectateur. Les Enjeux du Théâtre Politique Aujourd’hui (Políticas do Espectador. Os Desafios do Teatro Político Hoje, 2013) e professor de história e estética do teatro na ENS de Lyon, o pesquisador francês Olivier Neveux discorre sobre o tema: Contra o Teatro Político. COM Olivier Neveux (França) MEDIAÇÃO Maria Lucia Pupo (Brasil)

PESQUISADORA EM FOCO A Pesquisadora em Foco dos Olhares Críticos da 7ª edição da MITsp é Janaina Leite, atriz, dramaturga, diretora e pesquisadora de teatro de São Paulo. Integrante do Grupo XIX de Teatro desde a sua fundação e doutoranda pela USP, a artista desenvolve uma pesquisa prático-teórica sobre O Feminino Abjeto na (Ob)cena Contemporânea. É autora do livro Autoescrituras Performativas - Do Diário à Cena (Editora Perspectiva) e está na programação da MITbr - Plataforma Brasil com Stabat Mater, sua criação mais recente

DESMONTAGEM DE STABAT MATER 13 de março, sexta, das 13h30 às 15h30 Teatro Cacilda Becker

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Prática comum no teatro latino-americano, a desmontagem é uma desconstrução mais ou menos encenada do processo criativo de um espetáculo. Uma análise crítica, feita por dentro, que expõe questões relativas à criação, que podem ir desde as bases conceituais do projeto aos dispositivos que materializam as ideias em uma encenação. A artista e pesquisadora Janaina Leite propõe a desmontagem da peça Stabat Mater e, depois, conversa com o público.

O CORPO DA MULHER, SUAS REPRESENTAÇÕES E A CORAGEM DA VERDADE 13 de março, sexta, das 16h às 18h Teatro Cacilda Becker Conversa a partir da obra de Janaina Leite, entrecruzando perspectivas da psicanálise, filosofia, religião e arte. COM Ivone Gebara (SP), Vera Iaconelli (SP), Priscila Piazentini Vieira (PR) e Laís Machado (BA) MEDIAÇÃO Maria Luísa Barsanelli (SP)

ARTISTA EM FOCO ENTREVISTA PÚBLICA COM TIAGO RODRIGUES 9 de março, segunda, das 19h às 21h Itaú Cultural - Sala Vermelha O ator, dramaturgo e diretor Tiago Rodrigues, artista em foco da MITsp 2020, conversa com o jornalista e professor de literatura Welington Andrade (SP) e com o artista de teatro Felipe Rocha, do Foguetes Maravilha (RJ). O artista português, diretor artístico do Teatro D. Maria II, em Lisboa, está na programação com as peças By Heart e Sopro. ENTREVISTADORES Welington Andrade (SP) e Felipe Rocha (RJ)

ENTREVISTA PÚBLICA COM ANDRÉIA PIRES 12 de março, quinta, das 20h às 22h (após o espetáculo Fortaleza 2040) Itaú Cultural - Sala Multiuso Soraya Portela, artista da dança de Teresina, e a bailarina e coreógrafa Clarice Lima, cearense residente em São Paulo, entrevistam a artista em foco da MITbr - Plataforma Brasil. Andréia Pires, bailarina e coreógrafa da Inquieta Cia., de Fortaleza, apresenta dois espetáculos na mostra: PRA FRENTE O PIOR e Fortaleza 2040. ENTREVISTADORAS Soraya Portela (PI) e Clarice Lima (CE/SP)

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PENSAMENTO-EMPROCESSO Conversa com os criadores após uma apresentação de cada espetáculo, no próprio teatro e em diálogo com o público

CONTOS IMORAIS - PARTE 1: CASA MÃE 6 de março, sexta, 25 min. após o espetáculo Sesc Pinheiros - Teatro Paulo Autran

BURGUERZ 14 de março, sábado, após o espetáculo Centro Cultural São Paulo - Sala Jardel Filho Participação das convidadas do seminário Encontra, Ave Terrena Alves e Marina Mathey, com mediação de Dodi Leal.

MEIA NOITE 11 de março, quarta, após o espetáculo Teatro Alfredo Mesquita

ENTRELINHAS 15 de março, domingo, após o espetáculo Teatro Cacilda Becker

RESIDÊNCIA ARTÍSTICA GRUPO QUARANTINE 8 de março, domingo, das 16h às 17h Centro Cultural São Paulo

PRÁTICA DA CRÍTICA Grupo de trabalho reunido para a escrita de artigos sobre as peças para a Revista Cartografias e de textos críticos divulgados no dia seguinte às estreias das peças internacionais. Os críticos residentes também realizam dois debates abertos ao público ao longo da programação e, após o fim da mostra, escrevem textos reflexivos nos quais 252


propõem atravessamentos entre espetáculos, seminários, performances, debates e atividades pedagógicas

CRÍTICA DIÁRIA Produção diária de críticas sobre os espetáculos da mostra internacional para veiculação impressa e eletrônica (www.mitsp.org). COORDENAÇÃO Michele Rolim (RS) COM Clóvis Domingos (MG), Daniel Toledo (MG), Guilherme Diniz (MG), Laís Machado (BA), Nathalia Catharina (SP), Renan Ji (RJ), Rodrigo Nascimento (SP) e Wellington Júnior (PE/RJ) COLABORAÇÃO Dodi Leal (SP/BA)

CENA CONTEMPORÂNEA: PANORAMAS CRÍTICOS Os críticos convidados à Residência Prática da Crítica debaterão o conjunto de espetáculos apresentados na MITsp, sua repercussão e as questões sobre a cena teatral contemporânea suscitada por estes trabalhos.

DEBATE 1 8 de março, domingo, das 13h30 às 15h30 Itaú Cultural - Sala Vermelha

DEBATE 2 15 de março, domingo, das 16h30 às 18h30 Centro Cultural São Paulo - Sala Adoniran Barbosa

DIÁLOGOS TRANSVERSAIS Comentários críticos realizados logo após uma apresentação de um espetáculo, no próprio teatro e em diálogo com o público. Convidamos artistas e pensadores provenientes de outros campos do conhecimento para lançarem olhares transversais, cruzarem as fronteiras e ampliarem as leituras das obras em foco MEDIAÇÃO Maria Lucia Pupo (SP) e Luciane Ramos-Silva (SP)

BY HEART 12 de março, quinta, após o espetáculo Teatro da Faap COM Zahy Guajajara (MA)

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O QUE FAZER DAQUI PARA TRÁS 8 de março, domingo, após o espetáculo Teatro Cacilda Becker COM George Matsas (SP)

STABAT MATER 11 de março, quarta, após o espetáculo Teatro Cacilda Becker COM Eliane Robert Moraes (SP)

PRA FRENTE O PIOR 14 de março, sábado, após o espetáculo Centro Cultural São Paulo - Espaço Cênico Ademar Guerra COM Maria Homem (SP)

LANÇAMENTO DE LIVROS 8 de março, domingo, das 10h30 às 12h30 Itaú Cultural - Sala Vermelha

Conversa com os autores(as) e/ou organizadores(as) das seguintes publicações: FORÇAS DE UM CORPO VAZADO Editora 7Letras e PUC-Rio | Ana Kfouri AS ARTES DO COVER - PERFORMANCE PARA ALÉM DA CÓPIA E DO ORIGINAL Editora Circuito e POP LAB - Estudos em Filosofia Pop | Henrique Saidel ANATOMIA DE UMA DECISÃO João Fiadeiro OVELHA DOLLY E ZOOLÓGICO A CÉU ABERTO Editora Javali | Fernando Carvalho O TEATRO NEGRO DE CIDINHA DA SILVA Editora Aquilombô | Cidinha da Silva MATO CHEIO Editora Cobogó | Jhonny Salaberg COLEÇÃO DRAMATURGIA FRANCESA Editora Cobogó | Vários autores

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TEATRA DA OPRIMIDA: ÚLTIMAS FRONTEIRAS CÊNICAS DA PRÉ-TRANSIÇÃO DE GÊNERO Editora da UFSB | Dodi Leal PLANEJAMENTO ESTRATÉGICO DE PROJETOS E PROGRAMAS CULTURAIS Editora SENAC | Maria Helena Cunha AGENTES INVISÍVEIS E MODOS DE PRODUÇÃO NOS PRIMEIROS ANOS DO WORKCENTER OF JERZY GROTOWSKI Editora Javali | Daniele Sampaio

REVISTA CARTOGRAFIAS CURADORIA de Daniele Avila Small, Luciana Eastwood Romagnolli e Sílvia Fernandes ENTREVISTAS com Artistas em Foco, Pesquisadora em Foco e Pedagogo em Foco da 7ª MITsp, feitas por Clóvis Domingos, Daniele Avila Small, Francis Wilker, Maria Fernanda Vomero, Maria João Brilhante, Luciana Eastwood Romagnolli e Sílvia Fernandes. ARTIGOS escritos por pesquisadores e pesquisadoras de programas de pós-graduação de universidades brasileiras ou de outras instituições de ensino e pesquisa, bem como pelos críticos e artistas participantes da Residência Prática da Crítica sobre os espetáculos, residências e outros projetos apresentados na MITsp. AÇÕES PEDAGÓGICAS Textos de Dodi Leal, Maria Fernanda Vomero, Ana Harcha e Paola Lopes Zamariola. DOSSIÊ: INTERNACIONALIZAÇÃO DAS ARTES CÊNICAS NO BRASIL Textos de Christine Greiner, Lúcia Maciel, Maria Lucia Pupo e entrevista com Christiane Jatahy.

LABORATÓRIO DE JORNALISMO CULTURAL Em parceria com a MITsp, alunos de comunicação da PUC-SP farão a cobertura jornalística dos Olhares Críticos sob orientação do professor Fabio Cypriano. Os textos estarão disponíveis no site da PUC-SP.

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ENTREVISTA

PESQUISADORA EM FOCO

JANAINA LEITE

POR DANIELE AVILA SMALL, LUCIANA EASTWOOD ROMAGNOLLI E SÍLVIA FERNANDES

Ao menos desde Hysteria, com o Grupo XIX, os tabus em torno da sexualidade feminina fazem parte do seu trabalho. Em Conversas com Meu Pai, isso ganha uma pessoalidade, como um processo de elaboração e ressignificação de memórias. Como o projeto Feminino Abjeto radicaliza essa perspectiva e prepara o caminho até Stabat Mater? Tem mudanças importantes aí. O feminino que eu abordava em Hysteria (digo eu para não falar pelas outras, acho que cada processo ali foi bastante pessoal) era de certa forma um feminino em terceira pessoa, abstrato, sem me ver completamente implicada. Eu era muito jovem. Tinha 19 anos! A peça era para mim, naquele momento, uma tese, uma defesa, uma causa. E também, sobretudo, um encantamento com a história daquelas mulheres. O 256

que vai acontecer depois é uma curva de implicação total. Em Conversas com Meu Pai certamente, em termos biográficos, mas não ainda sobre a questão do feminino. O feminino ali está no avesso, está em negativo. Eu não fui capaz de perceber o seu significado. Não percebi porque ainda não era capaz. Foram os movimentos pessoais, virar mãe, revisitar questões do passado à luz do feminino que eu descobria em mim, que me fizeram perceber essa lacuna, esse ato falho. E todo o processo de Feminino Abjeto, o 1 e o 2, até chegar no Stabat, foi essa busca: trazer, lá das sombras, esse feminino. O que uma equipe formada por mulheres trouxe para a sua experiência de processo criativo? Essa necessidade foi se revelando aos poucos.


Comecei com duas parceiras, a Lara Duarte e a Ramilla Souza. Querendo, precisando de novas interlocuções. E nesse momento foi o interesse pela maneira como elas viam a cena, o teatro, que me atraiu, mas com o caminhar da história fui sentindo muita necessidade de que fosse uma conversa, uma troca entre mulheres. E aí os encontros foram se dando: coincidências, sintonias. Elas foram chegando aos poucos e cada uma contribuindo não só nas suas funções artísticas, mas com seus pontos de vista como mulheres, contribuições muito específicas. Flávia Maria, por exemplo, que seria uma preparadora de voz, foi na verdade quem primeiro abraçou minha mãe no processo a partir das aulas de canto. Essas aulas logo prescindiram da minha presença – na verdade, a Flávia me expulsou! (risos) – para que minha mãe fosse criando um espaço dela! As músicas que ela canta na peça surgiram ali, das longas conversas entre as duas. Penso na Lillah também que, mesmo à distância, ela em Berlim, foi uma interlocutora fundamental da dramaturgia como um todo. Uma provocadora super precisa, crítica. Eu estava colada demais ao material. Olhares como o dela, delas, me davam distância para enxergar várias coisas. Me lembro com emoção de vários momentos com todas. Experiências importantes que elas testemunharam. Quero registrar o nome de todas aqui: Paula Hemsi, Laíza Dantas, Lana Scott, Luiza Moreira Salles, Carla Estefan, Kênia Dias, Jhenny Santine, Maria Amélia Farah, Melina Schleder, Wilssa Esser e Ju Piesco. Sou muito grata a elas pela cumplicidade e contribuições artísticas. Stabat Mater tem um poder de afetação principalmente das espectadoras mulheres, que testemunham, relatam e escrevem sobre a experiência como um acontecimento que transformou suas vidas. Como você explica essa intensa ressonância de afetos? Fico muito tocada com as mensagens que recebo, relatos, sonhos, uma reverberação muito forte mesmo. Existe um movimento feminino, feminista muito intenso hoje. A peça tem isso também, mas

acho que seu lugar é mais o do inconsciente, das sombras, do não dito. Acho que para além dos discursos, daquilo que nós já sabemos sobre nós, tem tudo aquilo que nós não sabemos. Eu acho que no Stabat tem um curto circuito desses saberes e não saberes. Talvez seja por aí que a peça crie essa identificação, essa “afetação” como você disse. Há uma cultura de silenciamento da mulher acerca das violências sexuais, que aparece explicitamente em Stabat Mater, por exemplo, quando você informa que uma denúncia antes considerada “tentativa” de estupro passa a ser entendida como “estupro” e ponto. Como tem sido para você o processo de enfrentamento disso e que estratégias têm encontrado diante das instituições patriarcais? Me lembro de uma situação com umas seis amigas na qual começamos a falar de abuso. TODAS tinham passado por alguma situação séria de abuso e em mais de quinze anos de amizade NUNCA havíamos falado sobre isso. Pra gente perceber o quanto durante muito tempo a regra era guardar para si, superar. É uma negação total. Uma não permissão. A gente não falava sobre isso. Assim como não fala sobre aborto. Vamos empurrando tudo para baixo do tapete. Para mim, por exemplo, foi muito difícil dizer: fui estuprada. No dia seguinte do estupro, eu acordei, vesti a mesma roupa que eu estava no dia anterior e fui para a escola. Eu tinha 15 anos. Passei anos sem falar com ninguém sobre isso. Uma tentativa de passar por cima, “ser forte”, seguir a vida. Era esse o modelo de mulher que eu tinha: ser forte, aguentar tudo. O preço é alto... Foi muito bom revisitar tudo isso com a minha mãe. Nós nunca mais tínhamos falado sobre e só voltamos a falar no processo da peça. É um passo pessoal, mas não só. Existe um movimento enorme – uma onda! – desse trazer à tona, dialogar, reivindicar. Nesses anos, muita coisa aconteceu. A partir de 2012, o “abuso” que eu sofri passa a ser visto como “estupro”. O que é muito importante como avanço em relação ao entendimento sobre a violência contra a mulher. 257


ENTREVISTA

Sobre as “estratégias” que você pergunta… Bom, eu, por enquanto, tenho encontrado na arte e na academia esse lugar de “enfrentamento”. Meu caminho até aqui tem sido esse: primeiro, de uma visitação dessas sombras e fantasmas, segundo, uma elaboração artística, reflexiva e teórica que tem me acompanhado desde o processo do Conversas, e, por último, mas não menos importante, os encontros. Desde que comecei a pensar em tudo isso, encontrei muita gente, centenas de pessoas: nos núcleos de pesquisa Feminino Abjeto 1 e 2, nas oficinas que coordeno, mesas, palestras e a cada apresentação também. Essa troca com as pessoas, troca artística e pessoal, gerou uma rede incrível. Muita gente pensando esses temas, essas questões, mas sob uma ótica que não é maniqueísta, simplificadora. A gente precisa suportar as contradições, as nossas próprias contradições sobretudo! Do contrário, a gente fica fazendo discursos mágicos que pouco dizem desse território sombrio por onde se movem nossos desejos e pulsões. O experimento é uma performance crítica das representações do feminino que mantém o tensionamento na transmissão da feminilidade de mãe para filha. No processo de trabalho, como e quando surgiu a ideia de dividir a cena com sua mãe e de incluir a imagem do parto reverso de seu filho? Eu tenho dificuldade de lembrar em que ordem as coisas acontecem no processo! Mas lembro, por exemplo, que no primeiro encontro em 2017 do núcleo de pesquisa Feminino Abjeto (que naquela altura não sabia ainda que seria o 1), propus que cada participante procurasse saber e contasse ao grupo sobre seu nascimento. Naquele dia, eu também contei sobre meu nascimento, mas mostrando as imagens do parto do meu segundo filho. Ali, já havia essa relação entre ter me tornado mãe, mas precisar voltar ao meu nascimento ou à relação com minha mãe. Eu ainda não rebobinava tecnicamente a imagem, mas já estava fazendo isso de certa forma 258

conceitualmente, autobiograficamente. Já a minha mãe… Nossa, não tenho a menor ideia de quando isso ficou claro! Mas o fato é que eu só tive coragem de fazer o convite pra ela muito tempo depois de pensar isso “no papel”. Passei meses ensaiando com as minhas parceiras Lara e Ramilla “fazendo” a minha mãe. Certamente, convidá-la foi o passo mais difícil de todo o processo. Como a psicanálise e a arte se relacionam, para você, na elaboração de traumas relacionados ao feminino e na subversão dos enquadramentos de gênero? Eu sou apaixonada por psicanálise desde o processo do Conversas com Meu Pai. Mas lia muito Freud, Lacan, Winnicott, Gilberto Safra. Foi incrível. Meu mestrado, o Conversas e minhas questões pessoais se misturaram completamente nessas leituras! (risos). Mas aí descobri a Julia Kristeva, a Melanie Klein, a Maria Rita Kehl, mulheres psicanalistas… Não à toa. Tem a ver com esse feminino que foi saindo das sombras e procurando uma interlocução mais pessoal, por um lado, e por outro, social, na perspectiva de gênero. A psicanálise, em geral, ao contrário do que se pensa de forma muito preconceituosa, não trabalha com o fechamento, mas com a abertura. Não trabalha com a positivação, mas com a negatividade, ou seja, aquilo que permanece como “não ligado” no simbólico. Foi a psicanálise que me abriu a perspectiva de pensar o feminino via o abjeto. Em suas zonas de fronteira, de hesitação, de crise. Em Stabat Mater, ao mesmo tempo em que há a abordagem analítica e discursiva, vemos também a força do corpo em nudez, do corpo em ação. Para você, como essas duas dimensões, da linguagem e da materialidade da carne, se complementam ou contrapõem? Acho que é as duas coisas mesmo: complemento e contraponto. E aí volto para a psicanálise tomando as noções de simbólico e semiótico que a Kristeva


desenvolve brilhantemente. Em todo o processo de simbolização permanece essa “margem”, aquilo que não consegue ser domado pelo regime simbólico. Essa pressão na linguagem é feita pelo “real”, ou pelo semiótico como propõe a Kristeva. O real do corpo, da experiência do corpo, não totalmente legível, ou passível de elaboração pela linguagem entra aí. Eu tenho interesse justamente nessa tensão: a tentativa – desesperada – de entender, ao mesmo tempo, a noção desse fracasso quando as experiências do corpo, no corpo, geram consequências que o saber racional não acessa diretamente. Aparentemente, a intensificação da teatralidade no jogo com o real autobiográfico opera um certo deslocamento dos documentários cênicos que você realiza desde 2008. Se essa impressão é verdadeira, a que se deve essa mudança? Acho que se deve justamente ao ponto da questão anterior: o embate entre corpo e experiência versus elaboração intelectual, formal. Digamos que eu fui passando de um real “documental”, mais próximo da ideia de “memória”, do narrar, do registro, para um real “abjeto” ou o “real do trauma” como propõe o Lacan, que precisa encontrar uma forma de irromper, vazar, emergir, mas não se deixar organizar completamente pela via da narração ou teorização. O Conversas já anunciava isso, mas no plano literário. No Stabat a tentativa foi trazer para a materialidade cênica, corporal, esse transbordamento. Como você vê a relação de Stabat Mater com as peças da Angélica Liddell? Pode-se dizer que ela é uma referência para o seu trabalho? Que artistas de teatro você tem como referência neste momento? Referência total! Eu estava a um mês de estrear o Conversas com Meu Pai e assisti Eu Não Sou Bonita na MITsp. Foi um divisor de águas. Nem sei dizer o impacto que aquilo teve em mim. A Angélica faz essa operação de unir o simbólico e o semiótico de forma magistral. Um trabalho quase barroco na

linguagem, hiper construído, quase pictórico como cena e literário como dramaturgia, ao mesmo tempo que enfrenta o real do corpo, do encontro com o espectador, de forma muito arriscada. Violenta mesmo. Passei a estudar a Liddell dentro de um projeto de doutorado que, aos poucos, foi virando muito mais essa interlocução artística. Escrevo essas palavras aqui na França onde vim, com apoio da Fapesp, para ver os recém estreados As Costelas Sobre a Mesa: Padre e As Costelas Sobre a Mesa: Madre. Um díptico sobre seu pai e sua mãe! Sobre outras referências, me vêm Regina Galindo, Elfriede Jelinek, Romeo Castellucci, Christoph Schlingensief. Como se dá na sua metodologia de trabalho a relação entre pesquisa acadêmica e realização artística? Felizmente para mim é uma relação de muita organicidade. Só escolho, academicamente, temas que estão estreitamente relacionados com a prática. Na verdade, nem sei dizer o que puxa o quê! Eu tenho catarses e epifanias pessoais lendo teoria. Já chorei que nem criança assistindo palestra do Juliano Pessanha, por exemplo. Desenho coração e repetidas exclamações o tempo todo nos meus livros teóricos! (risos). Já tive pudor dessa mistura toda. Hoje aceito que é meu jeito de ir para a cena, para a dramaturgia: misturando coisas “pornograficamente” pessoais (citando Angélica aqui) e teoria pesada. Agora sobre metodologia… Não sei dizer. Nos femininos abjetos, trabalhei muito a ideia de “seminário cênico” e também “museus pessoais”. Daí surgiu a maioria das cenas. E de certa forma apliquei essas bases no Stabat. Mas é bem caótico, na verdade. Tenho cadernos e cadernos nos quais vou anotando imagens, frases, sonhos, e depois essas coisas vão decantando, saturando, e começam a encontrar uma estrutura possível. Mas nunca sei exatamente como cheguei ali. É bastante intuitivo no final e depende demais do processo. FOTO A N D R É C H E R R I

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A busca por autonomias in stá ve i s na MITsp 2020 POR JULIA GUIMARÃES

DESDE OS ANOS 1960, O CAMPO DAS ARTES CÊNICAS E DA PERFORMANCE tem buscado uma aproximação cada vez mais direta com a realidade e seus contextos, com o público e com a ideia de obra como acontecimento. Diversas vertentes do happening e da performance art surgidas no período guardavam consigo um claro projeto de opor-se à representação, a fim de testá-la em seus limites e questionar sua eficácia, tanto estética quanto política. Esse desvio para o real descrito acima adquire outros contornos no começo deste século XXI. Com o fortalecimento do teatro documentário, das autobiografias e da participação de pessoas externas ao mundo das artes nos espetáculos, a realidade se torna um horizonte referencial mais imediato, muitas vezes transposta à cena de modo quase literal. Na bibliografia sobre o assunto, é possível encontrar tanto autores que atribuem esse desvio a um descrédito na dimensão simbólica em sua capacidade de traduzir/ representar o mundo (SÁNCHEZ, 2007; SAISON, 1998) como outros que identificam na vertente contextual da arte uma postura de rejeição à sua autonomia (ARDENNE, 2006). No entanto, na medida em que essa realidade imediata surge cada vez mais ampliada e reiterada na cena atual, o que se percebe ali é a própria impossibilidade de preservá-la ontologicamente separada do campo da representação. Ao mesmo tempo, se no fim dos anos 1990 as motivações para o chamado “retorno do real” na arte estavam relacionadas a certo recalcamento desse mesmo real em décadas anteriores (SAISON, 1998; FOSTER, 2014), atualmente é possível dizer que experimentamos o oposto: 260

1 Usada inicialmente para refletir sobre os atentados de 11 de setembro, a expressão “deserto do real” faz referência ao vazio experimentado quando as “coordenadas simbólicas que determinam o que sentimos como realidade” (ŽIŽEK, 2003, p. 31) se desmoronam. O termo parece ter alcançado uma espantosa atualidade nos últimos anos, a considerar, por exemplo, a ascensão da extrema direita no mundo e o escancaramento de violências simbólicas e reais antes recalcadas no âmbito da realidade social diária. 2 Por “formalização instável”, Fernandes (2019, p. 236) entende trabalhos que defendem seu espaço enquanto “obra precária”, já que precisam “fincar-se no espaço de fora para se completar”, mas que assumem, simultaneamente, a busca por uma autonomia em sua linguagem artística.


uma espécie de “deserto do real”1 (ŽIŽEK, 2003), que agora se apresenta em suas dimensões mais violentas e traumáticas. A partir dessa perspectiva, conceitos como os de teatralidade, ficção e artifício surgem expandidos e ressignificados no vocabulário e na práxis cênica, desta vez vinculados não exatamente a categorias, e sim a operações específicas, ou modos de olhar, que podem associar-se a diferentes tipos de teatro, dos mais documentais aos mais abstratos.

Julia Guimarães é crítica teatral, pesquisadora, professora e jornalista. Fez pósdoutorado na Escola de Belas Artes da UFMG e doutorado na ECA-USP. É coorganizadora do livro O Teatro como Experiência Pública (ed. Hucitec) e colaborou com os sites de crítica Horizonte da Cena e Teatrojornal.

É também uma investigação sobre o realojamento de tais conceitos na cena contemporânea que poderia ser tomado como ponto de partida para pensar nos espetáculos da MITsp 2020. Em sua maioria, as obras desta edição seguem atreladas aos contextos e às realidades que as circundam. Porém, talvez com mais ênfase que nas derradeiras edições da Mostra, muitos desses trabalhos caracterizam-se justamente por intensificar sua preocupação com a forma e os materiais, por apostar na construção de uma “espessura teatral” (DA COSTA, 2019, p. 218) em suas linguagens e por trabalhar com temporalidades dilatadas e singulares. Diante dessas características, a pergunta a ser feita remeteria, então, aos sentidos produzidos nesta operação de revalorização e ressignificação desses conceitos, em diálogo com as questões da atualidade mencionadas acima. Que tipo de potência crítica e estética surge na “formalização instável”2 (FERNANDES, 2019, p. 236) proposta por essas obras? Como repensar o lugar da autonomia da arte nesse contexto, a considerar que já não se trata da mesma autonomia dos séculos anteriores, tendo em vista os muitos e diferentes atravessamentos do real na arte das últimas décadas? E quais são as formas que os campos da teatralidade e da ficção assumem na programação desta 7ª MITsp? A busca por “mundos autônomos” surge como aposta radical nos trabalhos do encenador francês Philippe Quesne. Em entrevista sobre o espetáculo Farm Fatale (2019), o diretor afirmou que enxerga no teatro um espaço privilegiado para a construção de “microcosmos artificiais” (QUESNE e VALDÉS-STAUBER, 2019, p. 10). Na obra, a cena é pensada como um livro em branco e povoada por estranhos espantalhos, isolados na utopia de um mundo rural prestes a desaparecer. Nesse ambiente abstrato e melancólico, a teatralidade dessas figuras não humanas é construída com a ajuda de máscaras, perucas e de um efeito sonoro que distorce suas vozes. Assim como em outros trabalhos de Quesne, o que aparece aqui é tanto uma reflexão sobre a lenta e persistente destruição da natureza quanto sobre o que resta para a arte e a vida em um cenário de esgotamento do horizonte de expectativas em relação ao futuro, nos seus mais diversos âmbitos. Pouco 261


a pouco, surge em cena uma fragilíssima comunidade imanente formada pelo coletivo dos espantalhos, que lembra a concepção de Jean-Luc Nancy sobre uma comunidade pautada, sobretudo, pelo ato de “estar juntos” (apud SÁNCHEZ, 2017, p. 40). Nessa operação, seria possível pensar na potência do teatro como construtor de mundos autônomos ante um futuro distópico, ou ante o “deserto do real”, mencionado anteriormente. Como se o deslocamento rumo a uma teatralidade do insólito colaborasse, de algum modo, para abrir novas possibilidade em relação ao porvir. É também a aproximação a uma teatralidade do insólito que poderia caracterizar a figura construída pela performer francesa Phia Ménard em sua obra Contos Imorais - Parte 1: Casa Mãe (2017). Vestida como uma versão de ficção científica da deusa Atena, a artista aposta em uma elaboração cênica simultaneamente metafórica e conceitual, no intuito de abordar temáticas que vão desde a situação dos sem-teto e refugiados na Europa até as preocupações com as mudanças climáticas, estando esta última também presente em Farm Fatale. A ação central de Ménard consiste em construir, passo a passo, uma enorme casa diante dos espectadores. É sobretudo ao dilatar ao máximo a duração desse ato que a artista propõe uma intensificação da reflexividade do público, em um gesto no qual a construção metafórica caminha lado a lado com a literalidade da ação. Assim como em Farm Fatale, a criação de um espaço suspenso e intermediário no palco surge acompanhada do desvelamento de sua própria fragilidade, o que acena para essa dimensão de instabilidade que acompanha o lugar da autonomia nas artes cênicas contemporâneas, seja em sua dimensão estética ou conceitual. É também um jogo dilatado com o tempo que caracteriza a espessura teatral presente em Multidão (Crowd, 2017), da diretora francesa Gisèle Vienne. Em cena, 15 bailarinos levam a lentidão do movimento à sua radicalidade, como se a encenação fosse pensada para existir em câmera lenta, com breves momento de mudança rítmica. Na obra, é o contexto das raves, com sua atmosfera urbana, hedonista e sinestésica, que surge aludido nos figurinos, na trilha sonora e na movimentação dos bailarinos. A pergunta que atravessa a obra, segundo Vienne (apud NADAIS, 2018), é sobre como comunidades que foram durante muito tempo governadas pela aliança entre Estado e religião se reorganizam quando são abruptamente secularizadas. Nesse modo de ser multitudinário proposto em Multidão (Crowd), o que surge é uma forma de ritual contemporâneo que também alude a um lugar de autonomia – tanto social quanto estética – efêmera, 262


frágil e de duração intensa, porém breve. Um ritual que parece apostar na potência do prazer e do erotismo como modo de desobstruir imaginários diante de contextos obscuros do presente. Já em Jerk (Babaca, 2008), também criado por Vienne, o uso de documentos e de uma história verídica surge contrastado com certa dimensão lúdica, pueril e artificial usualmente associada ao uso das marionetes – linguagem que acompanha diversos trabalhos da encenadora francesa. A teatralidade proposta e a metalinguagem da situação criam um contraponto à dimensão traumática e violenta dos episódios narrados. Ao contrário das obras analisadas anteriormente, haveria, em Jerk (Babaca), a construção de um espaço híbrido entre o documentário e a ficção que é também predominante em outros espetáculos desta edição da MITsp. Nessa conjugação, o que se evidencia é uma mirada cênica que busca problematizar a realidade com o uso da ficção e da teatralidade e vice-versa. Trata-se de uma discussão que dialoga com a perspectiva apresentada no início deste texto, na medida em que expande esses conceitos de modo a funcionarem como polos complementares e não mais opostos entre si. É também o que observa Small (2019) a respeito de outro espetáculo presente na programação, Stabat Mater (2019), criado por Janaina Leite, que é Pesquisadora em Foco desta edição na MITbr. “As oposições verdadeiro/falso e realidade/ficção enquanto valores que se excluem mutuamente já não parecem tão importantes. A noção de verdade neste trabalho é mais complexa e amadurecida”, observa. Seria possível mapear esse realojamento do lugar da ficção também nos trabalhos de outro artista em foco do festival, o português Tiago Rodrigues. Tanto em Sopro (2017) como em By Heart (2013), a ficção ressurge no interior de uma situação documental ou mesmo participativa, associada a lugares de uma memória afetiva que remete ao mundo das artes e ajuda a construir a história. No primeiro caso, ocorre uma homenagem ao teatro que se dá pelo testemunho de uma “personagem” emblemática dos bastidores do palco. Na obra, o encenador convida Cristina Vidal, ponto há mais de 25 anos do Teatro D. Maria II, de Lisboa (atualmente dirigido por Tiago Rodrigues), a deslocarse do anonimato aos holofotes. Em um dado momento, a ficção das peças já encenadas naquele teatro atravessa a narrativa testemunhal para impor-se como um jogo de cena. Nessa perspectiva, o deslocamento da ficção para o interior de uma situação documental chama atenção para as múltiplas permeabilidades e contaminações entre esses dois mundos. Ao mesmo tempo, a situação documental/testemunhal proposta é pensada como metáfora poética para refletir sobre o lugar da memória em nossas sociedades, operação que faz lembrar o conceito de ficção elaborado por 263


Rancière (2012, p. 64). Como alerta o filósofo, não se trata de dizer “que tudo é ficção”, mas de concebê-la como um “modelo de conexão”, o que permite uma imensa liberdade aos artistas para articular materiais provenientes de campos diversos, sejam esses da vida ou da arte, a fim de construírem formas de visibilidade, dizibilidade e pensabilidade dissensuais sobre os assuntos tratados. É uma operação semelhante que ocorre em By Heart. Nos dois casos, a valorização da transmissão da memória oral e a homenagem ao mundo da arte são trabalhadas teatralmente de modo a intercalar representação, documentação e poesia. Aqui, ainda que se trate de uma situação performativa com a plateia, seria possível identificar o jogo com a ficção sob sua forma expandida, sobretudo pela liberdade dramatúrgica para reunir e rearranjar materiais de origens diversas: entrevistas, poemas, memórias de infância, reflexões ensaísticas, dispositivos de participação. A partir de um jogo coletivamente consentido com a ficção e a imaginação, a plateia colabora na construção da cena de modo a ressaltar sua “formalização instável”, o que enfatiza a dimensão processual presente nos trabalhos de Rodrigues. Vista em diálogo com essa proposta de realocar os sentidos de termos caros à tradição cênica, seria possível pensar que a participação do público em By Heart não é apenas performativa, mas também teatral. Sob essa ótica, a fragilidade técnica daqueles “intérpretes” torna-se metáfora para aludir à fragilidade da memória, da história e, por que não, da própria arte. No caso específico das artes cênicas, o intento de construir no palco um espaço autônomo, um espaço intermediário quanto à realidade que o circunda, torna-se ainda mais precário, porque ontologicamente instável3 . E o que algumas obras fazem é explorar estética e conceitualmente essa fragilidade como modo de espelhar tais lugares na própria vida. A partir dessa reflexão sobre algumas obras presentes nesta 7ª MITsp, é possível pensar que a busca por autonomias instáveis nas artes cênicas contemporâneas remete a diferentes motivações. Ao contrário de correntes que percebem na contaminação da realidade pela arte um déficit de autonomia, é a própria ideia de autonomia que merece ser repensada nesse contexto, ao ser vista menos em uma dimensão unicamente atrelada à forma, mas sobretudo ao conceito. Ao mesmo tempo, o trabalho com a teatralidade e com o artifício, elementos que ajudaram a consolidar as artes cênicas como linguagem autônoma a partir de parâmetros modernistas, surgem retrabalhados agora como modo de lidar com o esgotamento de perspectivas e o próprio esgarçamento do real que caracterizam a atualidade. Situados como operações e não mais como categorias, ajudam a projetar “territórios instáveis em busca de 264

3 Por ontologicamente instável, entendo, em concordância com Lehmann (2007, p. 165), que “o teatro é uma prática artística que particularmente obriga a considerar que ‘não há qualquer limite seguro entre o campo estético e o não-estético’”, justamente por fundamentar-se em aspectos como presença e materialidade.


uma autonomia que só podemos descrever como poética”. (CORNAGO, FERNANDES e GUIMARÃES, 2019, p. 14) As hipóteses levantadas aqui foram pensadas como estímulo para uma reflexão compartilhada durante e após a REFERÊNCIAS MITsp 2020, a partir ARDENNE, Paul. Un Arte Contextual: Creación Artística en Medio do contato presencial Urbano, en Situación, de Intervención, de Participación. Murcia: com as obras desta Cendeac, D. L., 2006. edição. Nas entrelinhas CORNAGO, Óscar, FERNANDES, Sílvia e GUIMARÃES, Julia. da proposta reside Apresentação. In: CORNAGO, Óscar, FERNANDES, Sílvia e GUIMARÃES, Julia. O Teatro Como Experiência Pública. São o interesse em Paulo: Ed. Hucitec, 2019. compreender lugares DA COSTA, José. A Cena em Busca de Ar. cartografias. MITsp. possíveis para a Revista de Artes Cênicas, v. 7, s/n, p. 218-223, mar. 2019. política na arte Disponível em: <http://mitsp.org/2019/MITcatalogo.pdf>. contemporânea, em Acesso em 20 jan. 2020. um contexto no qual FERNANDES, Sílvia. Teatro Expandido em Contexto Brasileiro: seu aniquilamento se O Trabalho de Lia Rodrigues (2019). In: CORNAGO, Óscar, FERNANDES, Sílvia e GUIMARÃES, Julia. O Teatro Como avizinha. Experiência Pública. São Paulo: Ed. Hucitec, 2019.

FOSTER, Hal. O Retorno do Real. São Paulo: Cosac Naify, 2014. LEHMANN, Hans-Thies. Teatro Pós-dramático. São Paulo: Cosac Naify, 2007. NADAIS, Ines. Gisèle Vienne Dá-nos o Transe a que Temos Direito. O Público. Lisboa, 08 dez. 2018. QUESNE, Philippe e VALDÉS-STAUBER, Marten. Auf den spuren möglicher welten. In: Programa Farm Fatale. Direção de Philippe Quesne. Munique, Münchner Kammerspiele, 2019. RANCIÈRE, Jacques. O Espectador Emancipado. São Paulo: Ed. WMF Martins Fontes, 2012. SAISON, Maryvonne. Les Théâtres du Réel – Pratiques de la Représentation Dans le Théâtre Contemporain. Paris-Montreal: L’Harmattan, 1998. SÁNCHEZ, José A. Prácticas de lo Real en la Escena Contemporánea. Madrid: Visor, 2007. _______________. Nosotros: marcos para instituir el plural. In: ROYO, Victoria Pérez e AGULLÓ, Diego (orgs). Componer el Plural. Escena, Cuerpo, Política. Barcelona: Mercat de les Flors / Institut del Teatre / Ediciones Polígrafa, 2016. SMALL, Daniele Avila. A Profanação Fundamental. Questão de Crítica. Revista eletrônica de crítica e estudos teatrais, nov. 2019. Disponível em: <http://www.questaodecritica.com. br/2019/11/stabat-mater/>. Acesso em 20 jan. 2020. ŽIŽEK, Slavoj. Bem-vindo ao Deserto do Real!: Cinco Ensaios Sobre o 11 de Setembro e Datas Relacionadas. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003.

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TUDO O QUE LHE PEÇO PARA

EXISTE

IMAGINAR

POR RENAN MARCONDES

I AM HERE, UMA DAS PRINCIPAIS PEÇAS DE JOÃO FIADEIRO, começava com o coreógrafo de costas para o público; um único refletor o iluminava, projetando sobre o chão uma enorme sombra. A relação entre caixa preta, emissão de luz e sombra nessa cena remete-nos a uma das primeiras e mais recorrentes imagens da filosofia ocidental, descrita por Platão: uma plateia, presa em uma caverna, é obrigada a assistir a um teatro de sombras até ser convidada (ou forçada) a ver a verdade por alguém que foi libertado e viu, à luz do Sol, as formas reais das coisas. Samuel Weber aponta que, já nessa narrativa, o “desejo por autoidentidade” indica o teatro como um fenômeno suspeito, por impedir quem observa as sombras de “ocupar um lugar de onde se pode apreender tudo” (2004, p. 7; tradução nossa). Essa desconfiança com o teatro, enxergando-o como local que impede a emancipação humana por seu caráter de representação, reaparece com Rousseau, ou mesmo em artistas do teatro como Diderot, Brecht e Artaud. Em 1967, o americano Michael Fried adjetiva como “teatral” a presença de obras minimalistas a qual ele julgava inconstante, por comportarem-se como atrizes e atores que dependem de um público e por solicitarem demais a presença de observadores. É nessa mesma década que Guy Debord usa o termo “espetáculo” para criticar os mecanismos capitalistas de alienação e que o linguista John L. Austin descreve um modo “performativo” da linguagem, que transformaria efetivamente o mundo pela equivalência entre os atos de dizer e fazer. Fried e Austin também apresentam desconfianças em relação ao teatro: se para o primeiro ele é símbolo da impureza, por existir “entre as artes” (FRIED, 2002, p. 142), o segundo afirma que a linguagem é acometida por “males” quando um performativo, em vez de ser usado de forma “séria”, é “dito por um ator no palco [...] introduzido em um poema, ou falado em um solilóquio”, jogando a linguagem em um espaço tão “vazio” quanto as sombras de Platão (AUSTIN, 1990, p. 36). Note-se que é nessa época que a performance se firma como linguagem artística. Essas críticas que apontam o teatro como mera sombra ou espelho parecem sugerir que sair da caverna ou do escuro da plateia significaria o encontro com um objeto ou uma verdade não mediada pelas representações, enfim superando-as 266


Renan Marcondes é doutorando em Artes da cena pela USP. Sua formação interdisciplinar inclui graduação e mestrado em Artes Visuais e especialização em História da Arte. Seus projetos incluem Protetores de Proximidade Humana e Como um Jabuti Matou uma Onça e fez uma Gaita de um de Seus Ossos.

pela efetividade de um suposto real. Uma escolha comum tem sido o aumento do engajamento das artes em relação direta ao seu contexto social, político ou biográfico, nos quais se inscreve o giro performativo pelo qual as artes passaram nas últimas décadas: no teatro, intervenções urbanas, obras site specific, performances e formas de teatro documentário foram abarcadas pelos conceitos de “teatro performativo”, de Josette Féral, ou de “teatros do real”, de Maryvonne Saison. Informam também essa cena práticas engajadas como a “estética relacional” e o “artivismo”, aliadas a certa conservação do modelo épicodialético do teatro brechtiano. Se essas práticas performativas estabeleceram problemáticas hierarquias quantitativas e qualitativas de vivacidade em cena (ver RAMOS, 2011, p. 62), as engajadas por vezes colaboram com a ideia simplista de que há uma forma artística mais política que outras (ver KON, 2017). Note-se como a MITsp tem apresentado um panorama de obras que colaboram para a manutenção desse debate, sem recair em dualismos. Seu público encontrou peças cujo aspecto documental revelava tópicos diretamente políticos: em Campo Minado, Lola Arias unia, de forma amistosa, combatentes argentinos e ingleses da Guerra das Malvinas; em A Repetição. História(s) do Teatro (I), Milo Rau reencenava com precisão o assassinato de um jovem homossexual. Mas havia também obras marcadas por experimentações formais, que flertavam com o absurdo: King Size, de Christoph Marthaler, e Mágica de Verdade, do Forced Entertainment, distorciam os nexos entre ação, movimento e comunicação na estrutura convencional do drama burguês e do espetáculo americanizado; já os alemães Heiner Goebbels e Susanne Kennedy desafiavam a presença humana como elemento básico do teatro. Entre documento e experimentação formal, artistas como Nuno Ramos e Angélica Liddell torciam a televisão e a própria biografia em cena, desmontando seus estatutos de verdade. Nesta edição, percebe-se maior presença de obras que fogem da vertente do documento ou de temas claramente políticos, tratando de seus temas menos como verdades e mais como sombras. Em um momento de urgência política no Brasil, no qual sabemos que é urgente mostrar a realidade do horror de forma eficaz e transformadora, as obras selecionadas nos lançam uma desafiadora pergunta: como podemos ler ou pensar esses trabalhos, que desarticulam política e eficácia, como políticos? João Fiadeiro, pedagogo em foco nesta edição, parece ver no caráter duplo da representação teatral um caminho para responder a essa pergunta. Já em I Am Here, percepções de “verdadeiro” e “falso” eram desafiadas pelo acender de uma luz fria, revelando que a sombra que víamos estava pintada no chão, sendo ao mesmo tempo falsa (enquanto sombra) e (materialmente) mais verdadeira do que julgávamos. Esse descompasso entre coisa e signo, onde reside o “vazio” tanto negado, reaparece em uma de suas mais recentes obras, apresentada nesta edição da mostra: em O que Fazer Daqui para Trás, o coreógrafo já sugere no título que sua peça não se reporta a um futuro. Apesar de ter sido criada 267


enquanto era despejado de seu ateliê em Portugal, esse fato nunca é assunto da obra. Pelo contrário, vemos performers que se revezam correndo para dentro e fora do palco, apresentando reflexões e narrativas dispersas diante de um microfone. Sem progressão, o caráter cíclico e fragmentado da obra insiste em afirmar, como diz um dos performers, que “a sensação de vazio é normal”. Supostamente correndo ao redor do teatro, os performers aparecem cada vez mais suados e exaustos, mas também deixam o público por vários minutos sozinho no silêncio, diante de um microfone vazio. Se o documento geralmente comprova ou torna visível, aqui a opção é pela invisibilidade, pelos hiatos na cena e na memória, pela “fuga permanente” dos performers em direção às “coisas que ainda não existem, para o que as coisas podem” – como diz a sinopse da peça. Opera aqui o que a filósofa Juliane Rebentisch nomeia como central para uma autonomia da arte contemporânea: a própria duplicidade teatral que Fried buscou negar, ou seja, a oscilação entre o que está visível – mas apresentado de forma oblíqua ou indireta – e o que o público projeta sobre o que se vê. A identificação com algo verdadeiro cede então espaço para uma alteridade fundamentalmente teatral, que revela a “presença dupla da obra de arte como coisa e signo” (REBENSTISCH, 2019, p. 59; tradução nossa). Semelhante tensão está em Contos Imorais - Parte 1: Casa Mãe, onde Phia Ménard, vestindo uma roupa futurista da deusa Atena, constrói um Partenon de papelão. Aqui, a suposta falsidade da casa e da roupa nos lembra de que fantasias são também “conformações do desejo que constroem realidade”, como afirma a psicanalista Tania Rivera (2019). Nesse espaço incompleto entre desejo e realidade, o contraste entre o significado desse templo para a civilização europeia e a fragilidade do material faz de sua ação um projeto que, mesmo fracassado de antemão, escancara de forma tragicômica a ilusão de progresso emancipatório ocidental a partir de sua própria repetição e das variações que podem surgir dela. Já Tiago Rodrigues, em By Heart, parece se aproximar do autobiográfico ao iniciar a peça falando sobre as visitas a sua avó. Mas para o artista importa menos comprovar a veracidade das narrativas do que abrir espaço para uma reflexão formal sobre a memória, ao fazer com que dez espectadores decorem um soneto de Shakespeare. Transformando o teatro em uma espécie de aula pública, Rodrigues refuta a afirmação de Austin que diz que a linguagem seria parasitada quando em um poema. Aqui, o ensaio do mero poema revela a artificialidade daquilo que, de tão repetido, parece verdade, trocando sua enunciação certeira por uma cena de falhas e esquecimentos. Nela, os versos surgem como uma memória inútil, mas secretamente compartilhada por um grupo unido justamente pelo desejo de aprender algo novo. Nos hiatos do engajamento que essas obras sugerem, os corpos gastam energia física em círculos ou tentando decorar um poema, revelando uma dimensão patética do fazer artístico que performa, ao mesmo tempo, o desejo e a impotência de uma transformação direta no mundo. Se a tarefa de artistas, como sugere Eleonora Fabião (em coro com Hélio Oiticica e Yoko Ono), “não é criar”, mas “mudar o valor das coisas” (2016, p. 352), essas obras se arriscam a interromper atuais modos hegemônicos de produção dentro da própria arte – caracterizados pela 268


comprovação de seu grau de utilidade e aderência social futura. Recusando uma agenda prévia do fazer político “esclarecedor” (com toda a violência da expressão) e propondo ao público encontros sempre fora de sincronia com quaisquer expectativas, essas obras nos lembram de que o espelhamento político direto que afirma que estamos “do lado certo da história” se aproxima mais do que pretende da identificação burguesa alienante. Portanto, em vez de persuadir o público da veracidade de suas representações ou da contundência de seus temas, essas obras arriscam afetar indiretamente seu público, substituindo a “intenção de controle francamente autoritário das consequências da experiência estética” (KON, 2017, p. 288) por outro regime de imagens: aquele interrompido pelo esquecimento, destruído pela chuva e violado pelo bom humor. Nesse regime, o teatro é pensado não mais como uma ferramenta de produção dos futuros já desejados, mas sim como “interrupção do que é político” (LEHMANN, 2007, p. 8), agindo sobre o caráter afirmativo das imagens e ações que costumamos ler como políticas (Carla Freccero e Fred Moten têm investido esforços teóricos nesse sentido). O Partenon de Ménard, por exemplo, é ao mesmo tempo casa e violência, trabalho forte e material fraco, fruto do planejamento humano e sujeito à catástrofe natural, fantasma da xenofobia europeia e possível teto para seus refugiados. Com seu caráter duplo, ele se encontra livre de julgamentos da artista ou do público, habitando um espaço entre a eficácia do trabalho por um futuro melhor e um passado que nos assombra, fazendo-nos parar e olhar para outra direção que não a do futuro que já vislumbrávamos. REFERÊNCIAS

Afinal, para além de seu potencial de denúncia ou revelação, o que causa tanta repulsa da arte nas governanças totalitárias são esses meros espaços de autonomia da imaginação que Rodrigues sintetiza em By Heart ao afirmar que “tudo isto que lhe peço para imaginar existe realmente [...] mas embora diferente do que imagine”. Nessa oscilação, é possível que os espectadores vislumbrem novas imagens de liberdade, fora do campo da eficácia e do progresso. Imagens que são, justamente por isso, urgentes.

AUSTIN, John L. Quando Dizer É Fazer: palavras e ação. Artes Médicas, 1990. FABIÃO, Eleonora; ABREU, Marcio. Troca de e-mails entre Marcio Abreu e Eleonora Fabião. Sala Preta, v. 16, n. 2, 2016. FRECCERO, Carla. Queer spectrality: Haunting the past. The Spectralities Reader. New York/London: Bloomsbury, 2013. FRIED, Michael. Arte e objetidade. Arte & Ensaios, n. 9, 2002. KON, Artur Sartori. Da Teatrocracia: estética e política do teatro paulistano contemporâneo. São Paulo: Annablume, 2017. LEHMANN, Hans-Thies. Teatro Pós-Dramático. Cosac Naify, 2007. MOTEN, Fred. In the Break: The Aesthetics of the Black Radical Tradition. Minnesota Press, 2003. RAMOS, Luiz Fernando. Hierarquias do real na mímesis espetacular contemporânea. Revista Brasileira de Estudos da Presença, v. 1, n. 1, 2011. REBENTISCH, Juliane. Theatricality, Autonomy, Negativity. In: GARCIA, Tristan; NORMAND, Vincent. Theater, Garden, Bestiary: A Materialist History of Exhibitions. 2019. RIVERA, Tania. Subversões da Lógica Fálica. 2019. Disponível em: https://psicanalisedemocracia.com.br/category/artigos/ WEBER, Samuel. Theatricality as Medium. Fordham Univ Press, 2009

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DOSSIÊ DE INTERNACIONALIZAÇÃO

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INTERNACIONALIZAÇÃO EM TEMPOS DE DECOLONIZAÇÃO:

É POSSÍVEL?

POR CHRISTINE GREINER

HÁ PELO MENOS UMA DÉCADA, O TEMA DA INTERNACIONALIZAÇÃO tem rondado as nossas vidas em vários sentidos e cada vez com maior intensidade. Assim como acontece em outros países, ser internacional tornou-se um desafio e uma espécie de obrigação. As universidades costumam ser melhor avaliadas se construírem redes internacionais. Os artistas são mais reconhecidos se tiverem projeção internacional. E por aí seguem várias constatações genéricas que fazem parte de nosso cotidiano e, em diversos sentidos, apenas fortalecem nosso passado colonial. É evidente que criar redes de comunicação e interlocução fora dos locais onde vivemos pode trazer muitas compensações – inclusive, mas não apenas financeiras. Sabemos que alguns artistas brasileiros conseguem manter seus projetos locais a partir dos cachês e financiamentos internacionais; e que esse apoio é, evidentemente, mais do que bem-vindo, sobretudo quando a aliança internacional em questão apoia o viés político 272

1 ROLNIK, Suely. Esferas da Insurreição, Notas para uma Vida Não Cafetinada. Ed n-1, 2018. 2 GIELEN, Pascal and Nico Dockx (orgs). Commonism, a New Aesthetics of the Real. Amsterdan: Valiz, 2018. 3 Desenvolvi esta hipótese de que a arte lida com a alteridade como estado de criação em diversos artigos e no livro Fabulações do corpo japonês e seus microativismos. São Paulo: ed. N-1, 2017.


das ações e, portanto, alimenta a produção de subjetividades sem aguardar outras contrapartidas a não ser a própria criação artística. Há, no entanto, um aspecto tácito e ambíguo que insiste na maioria das ações de internacionalização e que está relacionado a uma certa subserviência (não raramente inconsciente) àquilo que se apresenta validado internacionalmente. No que diz respeito à arte, a expectativa dessa validação costuma ser norteada pela perspectiva de curadores, instituições, críticos, programadores e assim por diante. Em termos conceituais há muito que se refletir em torno destas situações. Em 2018, a psicanalista e filósofa Suely Rolnik reuniu alguns de seus ensaios em Esferas da Insurreição, Notas para uma Vida Não Cafetinada 1 lançando a seguinte provocação: Se as práticas artísticas teriam sem dúvida muito a nos ensinar para enfrentarmos a exigência de resistir no âmbito da produção de pensamento e suas ações – substituindo a perspectiva antropofalo-ego-logocêntrica por uma perspectiva ético-estético-clínica-política –, é também inegável que sob o atual regime essa potência própria da arte se enfraqueceu. (ROLNIK, 2018, p.93)

Christine Greiner é professora livre-docente do Departamento de Artes da PUC-SP e coordenadora do Centro de Estudos Orientais. Seus últimos livros, Leituras do Corpo no Japão e Fabulações do Corpo Japonês, foram recentemente publicados na Argentina.

Quando a crise financeira se aprofunda, as experiências artísticas e ativistas são inevitavelmente capturadas. Como pontua a própria Rolnik, é quando aflora o inconsciente colonial que nos acomete. Nestes casos, a internacionalização tem como ponto de partida o mercado de arte, por mais incipiente que este se apresente – como é o caso, por exemplo, da dança e do teatro – porque, ainda assim, trata-se de uma possibilidade real de viabilizar temporariamente projetos, a partir do financiamento externo, mesmo quando se trata apenas de um cachê pago em moeda estrangeira. Este tipo de armadilha faz artistas abandonarem seus projetos para se adequar a editais e programas curatoriais. A afirmação de supostos traços culturais específicos, também faz parte deste esforço para criar obras “tipicamente nacionais”, supostamente com mais apelo internacional pois estas estariam na mira de alguns programadores alinhados com o mercado. Há, entretanto, outras possibilidades de pensar a internacionalização mesmo em tempos de crise. Nestes casos, a proposta seria lidar com a estrangeiridade (e não apenas com os seus dispositivos de poder), por exemplo, a partir da lembrança de alguns artistas e filósofos radicais nos momentos mais difíceis. Neste caso, não se trata de reencenar estratégias coloniais para tecer novos modos de subserviência (e sobrevivência), mas de encontrar ressonâncias com o poder dinâmico que circula em outras redes, inclusive do passado, e se reapresenta como estratégia subversiva 273


do presente. Talvez seja neste sentido que grandes artistas como Antonin Artaud, Lygia Clark, Vaslav Nijinsky, Tatsumi Hijikata, Tadeusz Kantor e Francis Bacon não desapareçam nunca dos processos de criação que vivem em andamento pelo mundo. Nestas experiências, a busca pela internacionalização não representa, propriamente, uma busca deliberada, mas estaria mais para uma emergência, no sentido de algo que emerge a partir da empatia com aquilo que é diferente (outridade) e da abertura ao que desconhecemos. Isto pode ser justamente o que viabiliza a ação micropolítica que não se restringe às ações institucionais, partidárias, oficiais e economicamente viáveis. O principal desafio que enfrentamos é encontrar parcerias para coimaginar mundos possíveis, como afirma Pascal Gielen em Commonism, a New Aesthetics of the Real 2. Embora não discorde da afirmação de Rolnik e da ameaça constante dos processos de cafetinagem que fazem irromper de maneira abrupta o inconsciente colonial – inclusive na arte e a despeito de todos os esforços de decolonização –, é importante reconhecer o papel singular dos artistas no enfrentamento do poder e das alianças entre política e economia. Não se trata de afirmar as versões mais ingênuas do fazer artístico e dos artistas como se fossem pertencentes a esferas exteriores aos dispositivos de poder e imunes ao mercado. Mas, sim, de enfatizar a potência da arte em lidar com a alteridade como estado de criação, ou seja, justamente como aquilo que alimenta os processos 3 Para tanto, o problema do comum e das comunidades precisa ser abordado para além dos sentidos pejorativos que aparecem no dia a dia, especialmente no âmbito das redes sociais. Não se trataria de comunidades ocasionais mobilizadas por interesses pontuais comuns, mas, sim, daquelas que são acometidas por uma empatia de questões. Nestes casos, pode-se pensar no comum a partir da possibilidade de agir e criar junto. Em termos conceituais, faz-se necessário, antes de mais nada, um entendimento não substantivo das culturas e dos sujeitos. Isso significa deixar de lado a ideia de que a cultura é um conjunto de elementos típicos e admitir a cultura como uma complexidade de afetos. Também não se parte do pressuposto de sujeitos dados a priori, com suas identidades essenciais e permanentes. A visão substancial da cultura, assim como a visão substancial do corpo, do sexo, das raças e dos sujeitos, faz emergir dicotomias clássicas como natureza-cultura, sujeito-objeto, eu e o outro. Assim como os principais 274


debates políticos que vivemos – relacionados a parâmetros de normalidade e categorizações – têm combatido esses pontos de partida para buscar outras perspectivas; as discussões acerca da internacionalização precisam lidar com a multiplicidade de singularidades e suas ações performativas. Só assim poderão enfrentar as hierarquias que ainda se fazem presentes no âmbito geopolítico e em nossas próprias vizinhanças quando cedemos ao que Achille Mbembe tem chamado de “políticas da inimizade”.

REFERÊNCIAS GIELEN, Pascal e Dockx, Nico (orgs). Commonism, a New Aesthetics of the Real. Amsterdã: Valiz, 2018. GREINER, Christine. Fabulações do Corpo Japonês e Seus Microativismos. São Paulo: n-1, 2017. MBEMBE, Achille. Politiques de l’Inimitié. Paris: Éditions de la Découverte, 2016. ROLNIK, Suely. Esferas da Insurreição: Notas para uma Vida Não Cafetinada. São Paulo: ed. n-1, 2018.

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PLATAFORMAS DE LANÇAMENTO PARA NOSSAS ARTES CÊNICAS POR MARIA LUCIA PUPO

TENDO EM VISTA REUNIR INSTITUIÇÕES voltadas a estabelecer diálogos entre as culturas em um momento em que as produções artísticas passam por intensas mutações, a MITsp lançou no ano passado a Plataforma Brasil. É uma nova vertente da Mostra direcionada às Artes Cênicas em nosso país e à sua difusão no exterior, que reuniu 70 programadores de 20 países interessados nos trabalhos brasileiros. Paralelamente, a edição de 2019 iniciou um debate para elaborar modalidades de intercâmbio e colaboração internacional. No horizonte do diálogo, o que se vislumbrava eram passos iniciais da construção de estratégias de internacionalização da cultura, no âmbito da tão necessária e urgente aproximação entre os povos. Em 21 de março de 2019, representantes de instituições e organismos envolvidos nessa tarefa se reuniram em duas mesas de trabalho diante de um público participativo e entusiasta, visando traçar o panorama das modalidades já existentes de cooperação cultural no plano internacional, o que permitiria o esboço de iniciativas renovadas para a realização daquelas metas. Diplomacia Cultural e as Políticas Públicas de Internacionalização e Promoção da Economia Cultural e Programas e Projetos de Internacionalização das Artes Cênicas no Exterior foram alguns dos temas abordados. Duas questões pulsavam nos diálogos. Embora nem sempre explicitadas, elas se insinuavam nos interstícios das falas e, ao que parece, reverberavam na percepção do público: qual é, afinal, o Brasil que emerge das produções artísticas contemporâneas que saem do país? Como tentar assegurar que a força de obras artísticas de criadores não consagrados, mas carregadas de vigor e virulência, possam se fazer conhecer fora de nossas fronteiras? “O Brasil não conhece o Brasil” parece ser um mote a ser retomado. Em várias falas reiterou-se a ideia de que a ampliação e o fortalecimento de estratégias para programas de circulação dentro do país constituem um passo incontornável para a concepção de uma política externa. As notas que se seguem constituem uma síntese pessoal de informações valiosas, cuja vocação é a de subsidiar a construção 276


de políticas públicas de internacionalização das artes e, especialmente, das Artes Cênicas realizadas entre nós. Retomar o debate realizado naquela data deverá contribuir para um avanço. Aspectos comuns emergem das diretrizes do apoio oferecido pelos organismos europeus representados: Instituto Goethe, Instituto Francês, British Council e a Fundação Suíça para a Cultura Pro Helvetia. Se o Goethe ressalta sua missão inicial de restabelecer laços com países com os quais a relação estava desgastada no pós-guerra, o Instituto Francês enfatiza a diplomacia cultural que, sempre ligada à história política do país, orienta suas ações desde os anos 1950.

Maria Lucia Pupo é docente titular no Departamento de Artes Cênicas na ECA-USP e bolsista de pesquisa do CNPq. Atua especialmente em Pedagogia do Teatro. É autora de livros e artigos sobre o tema, tendo exercido atividades nesse âmbito em várias cidades brasileiras, assim como na França, Marrocos, México e Bélgica.

Dentro desse panorama, o Goethe atua em torno de três eixos: atualização da imagem da cultura alemã (debate sobre Karl Marx e a questão indígena foi o interessante exemplo citado); apresentação da cultura alemã contemporânea; e estabelecimento de vínculos entre a produção brasileira e a Alemanha. Manifestações artísticas emergentes na contemporaneidade merecem especial atenção daquele organismo. A noção de que a defesa da cultura e da educação é propulsora do desenvolvimento de um país é apontada pelo Instituto Francês como vetor de sua atuação. Outras três diretrizes orientam suas operações: difusão de criações contemporâneas; difusão da cultura francesa e da diversidade cultural (em eventos envolvendo cientistas, educadores e artistas, como o Ano do Brasil na França, em 2005); e o reforço das capacidades profissionais dos artistas e a estadia de estudantes na França, ou seja ações de formação. A relevância do apoio a festivais e residências, cujo potencial de diálogo entre artistas, curadores e gestores é altamente significativo, foi trazida à tona pela representante do British Council. A potência criativa de artistas brasileiros e os benefícios oriundos do estreitamento das relações entre eles e os artistas britânicos foram amplamente reiterados. Modalidades que escapem à lógica neocolonial e se desenvolvam a longo prazo são critérios norteadores da Pro Helvetia, que também promove a circulação de programadores e diretores de festivais de teatro. O exame das diretrizes desses quatro organismos revela nítidas convergências, tais como: - Apoios são concedidos a artistas que habitam e atuam nos países-sede dessas instituições, independentemente da sua nacionalidade; - Ênfase aos vínculos com parceiros locais, sejam provenientes do poder público, sejam originários da sociedade civil. A escuta e a observação acuradas daquilo que acontece na cena local são consideradas fundamentais para a concessão de apoios. Manter a colaboração estreita com artistas que habitam o país em questão é condição sine qua non para esse apoio; 277


- Festivais, residências, eventos, coproduções, modalidades de formação são algumas das ações mais frequentemente subsidiadas. Na esfera da política cultural brasileira – ou da precariedade dela –, o evento contou com a representação da Secretaria Nacional de Desenvolvimento e Competitividade do Turismo e do Departamento Cultural do Itamaraty. O primeiro representante ressaltou a riqueza da diversidade cultural brasileira, alavanca que, segundo ele, ainda não é suficientemente explorada no incentivo ao turismo. No âmbito do Itamaraty, foram mencionados aspectos como a importância da cultura como instrumento político externo e a escassez de recursos disponíveis para as missões que lhe são atribuídas, a saber: capacitação de artistas no exterior; envio de curadores estrangeiros para o país; e coprodução de eventos. Foram citadas, como exemplos mais recentes da atuação deste órgão, parcerias com o Itaú Cultural e com orquestras como a Osesp e a Sinfônica de Minas Gerais. Lamentavelmente evidenciou-se, na ocasião, a ausência de diretrizes e critérios suficientemente claros que norteiem os apoios outorgados; considerações de ordem genérica predominaram ao longo de ambos os discursos. Países da América Latina apontaram uma série de perspectivas relevantes a serem consideradas diante da empreitada de internacionalização que se deseja instaurar. O representante do Teatro de Manizales (Colômbia), do Festival de las Artes de Costa Rica e do Mapas de Tenerife (Espanha) trouxe à tona a necessidade de o Brasil enxergar a si mesmo como parte da América Latina, o que ainda está longe de se verificar. Segundo sua experiência, a forma consagrada dos festivais foi se diversificando e sendo gradativamente substituída por iniciativas como feiras e plataformas com programadores que promovem a circulação de produtos culturais. A Colômbia foi apontada como exemplo de organização coesa da sociedade civil em que plataformas e circuitos internacionais acabam influenciando iniciativas no setor público. O Instituto Nacional de Teatro da Argentina, organismo do Estado que funciona como autarquia, visa apoiar o desenvolvimento do chamado teatro independente no país – realizado por coletivos com vistas às transformações sociais –, mas atua também fortemente em políticas de internacionalização, editoração, bolsas e subsídios. Com o objetivo de contribuir para a descentralização do teatro argentino, altamente concentrado em Buenos Aires, o Instituto patrocina a circulação de espetáculos pelo país – e cabe destacar que essa faceta é ressaltada como especialmente relevante pelo atual diretor do instituto. A aspiração comum entre os artistas de viajar à Europa é colocada em xeque em prol de políticas do Estado que favoreçam a potência das artes no território latino-americano. Dentro das diretrizes do Plano Estratégico de Internacionalização Sul Americana, o INT vem fomentando o diálogo com países irmãos mediante assinatura de convênios de cooperação. É o caso de acordo estabelecido recentemente com o Intercena, em Porto Alegre. Entidade privada, a Fundação Santiago a Mil vem se dedicando desde 2004 a interpretar necessidades dos artistas e do público chilenos, formulando uma programação que responda a essas demandas em nível local, regional 278


e internacional. Mais uma vez observamos que a descentralização é uma das metas salientadas. A missão que norteia a Fundação é fazer com que as artes cênicas do Chile e da América Latina participem de modo ativo do diálogo global sobre as artes. Nesse sentido, além da criação, do acesso e da formação, uma vertente central é a internacionalização, com o intuito de que artistas chilenos contemporâneos participem de grandes festivais do mundo (como Avignon ou Edimburgo). Entre os exemplos, destacam-se convênios com centros de residência visando à formação, assim como programas de direção cênica, como a parceria com o Royal Court Theatre, via British Council. Coproduções e encontros de programadores compõem também suas atribuições. Chamou a nossa atenção um aspecto do apoio disponibilizado por diferentes instituições: a residência de artistas. Ao longo dos últimos anos, parece ter se perdido um importante aspecto da residência, as trocas com o público local. Até há alguns anos, fazia parte das condições de trabalho do artista residente a abertura do processo mediante exposições verbais, demonstrações, convite direto à experimentação, recurso a outras obras ou procedimentos similares, de modo que a pesquisa envolvida no engendramento da obra fosse trazida para o primeiro plano e tornada pública. De algum modo, o processo de criação gerava uma ação cultural indissociável da própria obra. No limite, além das expectativas de benefício para o contexto no qual o artista em residência se instalava provisoriamente, cogitava-se eventuais repercussões da estadia na própria trajetória do artista, o que viria a ser uma manifestação da qualidade do diálogo estabelecido. Com surpresa, observamos que esse compromisso da abertura do artista em direção ao meio que o acolhe não chegou a ser tematizado ao longo dos debates. O desafio lançado durante o II Seminário de Internacionalização das Artes Cênicas Brasileiras designa desde já a MITsp como parte de um grupo de festivais envolvido em uma complexa empreitada, a concepção de um Plano Nacional de Internacionalização das Artes. Para concretizar esse projeto, uma das primeiras medidas seria a constituição de um grupo de trabalho que resultaria em uma agenda propositiva. Múltiplos atores precisarão ser mobilizados nesse sentido. Uma primeira listagem aponta para a reunião de representantes do Itamaraty, do Ministério do Turismo, das esferas municipal, estadual, federal, das comissões de cultura do Senado e da Câmara dos Deputados. Os depoimentos apresentados naquela manhã, assim como os debates que se seguiram, com a plateia, apontaram para dois aspectos-chave para nortear essa construção. Um é a importância a ser atribuída à descentralização artística como preocupação contígua e complementar à internacionalização. Se, em países europeus, políticas de descentralização continuam sendo oportunas, o tema apresenta contornos bem mais desafiadores em contextos da América Latina. O segundo é a experiência acumulada pelos organismos presentes, evidenciando que iniciativas no sentido da internacionalização sempre implicam esforços coesos abraçando tanto a sociedade civil quanto o poder público. 279


INTERNACIONALIZAÇÃO, INTERCULTURALIDADE E INDICADORES: IDEIAS E

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(PARA INICIAR A CONVERSA) POR LÚCIA MACIEL BARBOSA DE OLIVEIRA E ANDRÉ DE ARAÚJO

REFLETIR DE MANEIRA CRÍTICA SOBRE AS ARTES CÊNICAS na perspectiva da internacionalização pressupõe uma miríade de possibilidades, dentre elas: qual o papel ocupado pelo Brasil no cenário de discussão e cooperação internacional; quais identidades brasileiras emergem das produções artísticas contemporâneas; quais sujeitos se apresentam, além de compreender como outros contextos permeiam essas produções e dialogam com o sistema produtivo e com a estrutura econômica do país. Questões fundamentais para refletir acerca da produção artística – em especial as artes cênicas – no contexto nacional compreendido de maneira inextricável do contexto global. Internacionalizar para quê? De que maneira? Com quais estratégias e táticas? Internacionalizar parece-nos perspectiva inseparável de um adensamento da profissionalização da gestão dos grupos, bem como da produção de informações que são parte do processo. Tais questionamentos ganham contornos mais fortes no contexto atual, quando a gestão presidencial no Brasil é caracterizada por uma perspectiva autoritária, conservadora, neoliberal, de desmonte de estruturas duramente consolidadas que atingem diretamente o setor artístico e cultural, além de posicionamentos bastante controversos no cenário global. A incerteza quanto ao grau de tensionamento da democracia e a abrangência da destruição em curso exige debate e posicionamento das forças que lutam pela permanência e pela consolidação democrática no país, demonstrando a relevância da abertura de espaços de discussão como este criado pela MITsp. Se o cenário que se descortina aponta para o enfraquecimento do setor artístico e cultural no país, com diminuição substancial de verbas e apoios, além da perspectiva simbólica de demonização da arte como esfera de exercício experimental da liberdade, o trabalho articulado, a profissionalização do setor, a avaliação das ações, com a criação de mecanismos que permitam medir seu impacto, a abertura para novos espaços de circulação das obras e a criação de diálogo entre diferentes atores são formas objetivas de fortalecê-lo, de mantê-lo 280


vivo a partir de uma compreensão alargada do papel fundamental que a arte e a cultura desempenham na contemporaneidade. Internacionalizar é ação de caráter interno e externo. Exige caminhar em direção a outros, conhecer-se para interatuar, interagir. Vai muito além da difusão e da circulação em outros países, mas está intrinsecamente ligada ao amplo desenvolvimento do campo artístico e cultural, das possibilidades de intercâmbios, de trocas interculturais que ampliem, rasurem, questionem, façam trincar o que está dado no cenário das artes cênicas brasileiras. DO CONTEXTO: ALGUMAS IDEIAS

Lúcia Maciel Barbosa de Oliveira é docente e pesquisadora no Departamento de Informação e Cultura da ECA-USP e no PPGCI-ECA-USP. Atua na área de ação cultural e política cultural. É também pesquisadora no IEA-USP. Atualmente é diretora do Centro MariAntonia. André Araújo é mestre em Cultura e Informação e bacharel em Artes Cênicas pela ECA-USP. Dirigiu, escreveu e atuou em trabalhos e grupos diversos, como Garbo & Co., CPT e Cia. Efêmera. É assistente do Projeto Ademar Guerra e programador do Sesc São Paulo.

Em La Sociedad sin Relato: Antropología y Estética de la Inminencia, o filósofo e antropólogo Néstor García Canclini sustenta a ideia de que nenhum relato organiza mais a diversidade em um mundo cuja interdependência faz com que muitos desejem que ele exista. Começamos o século XXI com dispersos relatos fragmentados e conflitos interculturais gerados por uma geopolítica global em que todas as sociedades se tornaram interdependentes. A impossibilidade de um amplo relato que organize o contexto contemporâneo dá à arte um novo estatuto, campo privilegiado para trabalhar com conceitos e metáforas em uma época que não sabe o que fazer com a discordância desses relatos. A reconfiguração das artes deve ser entendida em sua interdependência com esses processos sociais, como parte de uma geopolítica cultural globalizada. As obras de arte, como plataformas móveis para pensar, são experiências epistemológicas que renovam as formas de perguntar, de traduzir, de trabalhar com o incompreensível, com o surpreendente. À arte não cabe a tarefa de dar um relato à sociedade para organizar sua diversidade, mas de valorizar o iminente em que o dissenso é possível. “Las artes dramatizan la agonía de las utopías emancipadoras, renuevan experiencias sensibles comunes en un mundo tan interconectado como dividido y el deseo de vivir esas experiencias en pactos no catastróficos con la ficción” (CANCLINI, 2011, p.10). A arte trata os fatos como acontecimentos que estão a ponto de ser. Assumem, portanto, um importante papel na sociedade contemporânea, ao sugerir a potência do que está suspenso. As mudanças e tensões oriundas das interdependências desiguais do mundo globalizado, mundo cada vez mais diverso, mostram que estamos despreparados para elas e evidenciam que, a despeito das tentativas de interdição, construção de muros e fechamento de fronteiras, imigrantes continuam chegando aos diferentes países, e os livros, as músicas e as artes se comunicam mundialmente. Não é mais possível pensar o contexto das artes sem pensar os processos de intercâmbio e circulação, os processos de internacionalização. Ainda segundo Canclini, pensar a cultura e a arte hoje é pensar a partir dos cruzamentos interculturais. A interculturalidade é um conceito operativo para descrever o que sucede quando interatuam agentes sociais com formações culturais diversas. A relação entre cada cultura e um território específico, sem desaparecer, sustenta Canclini, está sendo alterada pelo deslocamento de enormes massas de 281


imigrantes, exilados, turistas e outros viajantes, assim como pela crescente interdependência de cada sociedade com muitas outras, próximas e distantes. A interculturalidade é o modo de produção do social que remete ao entrelaçamento, ao que sucede quando os grupos entram em relações e intercâmbios. Implica que os diferentes são o que são em relações de negociação, conflito e trocas. Os processos de interculturalidade são reconhecidos hoje entre sistemas econômicos, nos negócios globalizados, nas comunicações midiáticas e nas relações políticas internacionais (CANCLINI, 2007, p.104). SEM CONTEXTO: OUTRAS IDEIAS

Imagem 1 - Projeção de um indicador de polinização Fonte: Mapa Google e rasura dos autores.

Se tomamos, portanto, a interculturalidade como movimento em foco e em expansão nos processos contemporâneos, e se, como já dito, a fragmentação das narrativas abre campos privilegiados para o trabalho com conceitos e metáforas, como seria possível observar os processos, fluxos e desenvolvimentos do campo da internacionalização das artes cênicas? No âmbito das políticas sociais nas esferas da economia pública e privada, é comum o uso de indicadores para observação do desenvolvimento de processos e resultados de uma ação interventiva ao longo do tempo. Para Paulo Januzzi (2012, p.23), a partir da coleta e organização de informações subsidiárias, como dados censitários, estatísticas e/ou estimativas amostrais, no caso das políticas sociais, um indicador atribui “valor contextual” à informação, possibilitando sínteses que permitem avaliar tal ação e determinar as estratégias de continuidade de tais processos. Segundo Liliana Sousa e Silva, Um sistema de indicadores pode auxiliar, por exemplo, na avaliação de programas culturais, diante de objetivos e valores previamente estabelecidos; também ajuda a conhecer o universo no qual as políticas culturais estão inseridas, (…) tendências e potenciais a serem desenvolvidos, demandas a serem atendidas ou carências a serem supridas . (2007, p.134)

Por essa perspectiva, levando em conta os processos de gestão e avaliação das ações de internacionalização das artes cênicas, seria possível pensar a formulação de indicadores culturais capazes de “medir” tais fluxos e impactos? Ou ainda, seria possível refletir sobre a construção de indicadores interculturais? É muito provável que, diante dos olhares da interculturalidade, novas metodologias para a construção de indicadores sejam desenvolvidas. No bojo das teorias sobre os indicadores, os conceitos seriam, em posição análoga aos processos culturais, também matéria de novos cruzamentos e criações. Outras linguagens de indicadores surgiriam. O modelo muitas vezes importado das 282


áreas econômicas e sociais (os populares gráficos de linhas, de colunas, de pizza, as operações cartesianas oferecidas pelos planilhamentos de informações) talvez se abrisse para operações mais abstratas, como o uso das metáforas, de sentidos mais estetizados de representação, de outras nomenclaturas. Para além de “medir”, “perceberia”. Tratar-se-ia não apenas de “justapor”, mas de “aglutinar”. Eventuais indicadores interculturais teriam grande potencial para o desenvolvimento de novos léxicos, novas percepções dos fatos e dos caminhos percorridos ou a serem trilhados. Novas percepções para novas relações. A título de mero exercício, tomemos, por exemplo, uma metáfora que aglutine gestão cultural e biologia, em uma intersecção entre a percepção dos sentidos de circulação das obras brasileiras em territórios internacionais e a ação de polinização das flores. De início, seria importante nos debruçarmos sobre as escolhas metodológicas e as etapas dessa operação. Todavia, com a finalidade de síntese, partiremos do princípio de que cada pólen representa um “fragmento artístico”, sendo essa a unidade de percepção do indicador. O fragmento artístico poderia sintetizar uma série de fatores e escalas inerentes aos processos, como um grupo de teatro, um eixo temático, uma produtora, um integrante etc. Nesse exercício, o referencial será ainda mais diverso. Em uma seleção fictícia de grupos que teriam se apresentado internacionalmente, seus próprios integrantes definiriam o grau de influência de diferentes palavras-chave, dentre um banco de palavras, em suas próprias obras. Cada palavra-chave (tema, linguagem, natureza dramatúrgica etc.) é representada por uma cor, como na imagem da página ao lado. Diante de mapeamentos sobre os objetivos, dificuldades e urgências dos atores envolvidos nos processos, exercícios do gênero seriam, obviamente, mais complexos e difíceis de vislumbrar. Entretanto, se é cada vez maior o desejo de ampliação das relações interculturais, torna-se essencial a busca permanente por novas formas de representação das ações e seus impactos. Novas relações criam novas linguagens. Se o desejo de internacionalização se materializa em intercâmbios, criações colaborativas e residências, gerando novas tecnologias cênicas e processos híbridos, é importante que essas experiências reverberem também na percepção e na REFERÊNCIAS avaliação dos esforços CANCLINI, N.G. “De la diversidad a la interculturalidad”. In: empreendidos, gerando ______ (coord.). Conflictos Interculturales. Barcelona: Gedisa, novas formulações 2007, p.103-113. estratégicas. Como CANCLINI, N. G. La sociedad sin relato. Buenos Aires: Katz, 2010. se, para ser híbrida e JANUZZI, P.M. Indicadores Sociais no Brasil: conceitos, fontes de intercultural, a gestão dados e aplicações. 5ª ed. Campinas: Alínea, 2012. corresse apressada em SOUSA E SILVA, L. Indicadores para políticas culturais de direção às descobertas proximidade: o caso Prêmio Cultura Viva. 2007. 319f. Tese (Dout. em Ciência da Informação - ECA-USP, São Paulo, 2017. feitas pela arte em trânsito. 283


ENTREVISTA POR DANIELE AVILA SMALL, LUCIANA EASTWOOD ROMAGNOLLI E SÍLVIA FERNANDES

CHRISTIANE JATAHY

A realização do filme A Falta que nos Move contribuiu de algum modo para que o seu trabalho fosse mais conhecido no cenário internacional? A Falta que nos Move, ou Todas as Histórias São Ficção, a peça, viajou para festivais internacionais antes da filmagem do filme a partir do mesmo trabalho. Então, minha primeira experiência em festivais internacionais começou com o teatro e não com o cinema. A distribuição internacional de um filme é bastante diferente do teatro. O filme viaja por ele mesmo, claro que precisa ser visto, assim como uma peça, para vir a ser convidado pelas suas qualidades artísticas a participar de festivais internacionais, mas, a partir do momento em que essa seleção se dá, o filme pode viajar sozinho. Teatro não, a viagem de uma peça implica no envolvimento financeiro do festival que a convida, para pagar viagens, cachês, transporte do cenário, montagem etc. Com isso, as perspectivas de circulação de peças de teatro tendem a se afunilar ainda mais. Ou seja, primeiro o trabalho precisa ser visto pelos programadores. Nesse sentido a iniciativa da MITsp é muito importante ao propiciar o encontro entre as obras brasileiras e os programadores. Mas depois desse momento, no qual um trabalho pode vir a ser escolhido para participar de algum festival – e a concorrência é enorme considerando que esses mesmos programadores veem peças em muitos lugares do mundo – a próxima etapa é a viabilidade econômica para convidar esse 284

trabalho. No caso do Brasil, não existe nenhum apoio do governo aos artistas convidados, como existe em muitos lugares da Europa. Também não existe nenhum apoio continuado para que a companhia possa dispor de recursos para ajudar na distribuição do seu trabalho, logo o festival tem que arcar com todos os custos. Se for um festival na Europa isso implica o pagamento de todas as passagens internacionais e o transporte do cenário. Diante disso, muitas vezes, um trabalho artístico brasileiro que poderia circular perde essa oportunidade, principalmente se não houver um grupo de festivais no mesmo período que se interesse em levá-lo e dividir esse custo. Resumindo, o trabalho de internacionalização do teatro de maneira mais ampla precisa ser em conjunto entre os artistas e o governo, como acontece em muitos países do mundo. Dando visibilidade, com isso, para os artistas e também para a cultura do país. O movimento de internacionalização do seu trabalho começou realmente a partir da criação de Júlia, em 2011, com convites para apresentações em vários países e depois para dirigir espetáculos. Como foi esse processo e a recepção do público europeu? Na época da estreia do Julia, no Rio de Janeiro, houve uma plataforma de artes cênicas apoiada pela prefeitura em conjunto com o Festival Panorama. Foram convidados muitos programadores internacionais. Julia não estava


participando da plataforma, porque apenas peças já estreadas foram selecionadas, mas participamos com a peça Corte Seco. Alguns programadores foram assistir ao Corte Seco e se interessaram em ver o Julia, que estava em cartaz no Espaço Sesc Copacabana. A peça causou um grande impacto entre os programadores e todos foram assistir ao trabalho. Muitos convites surgiram e foi a junção de vários festivais que tornou possível a primeira turnê. A partir daí, outros programadores viram a peça na Europa, novos convites surgiram e seguimos viajando até hoje com esse trabalho. Depois vieram as outras peças, como E se Elas Fossem para Moscou? e A Floresta que Anda, que já estrearam com convites para as viagens, porque nesse circuito a pesquisa continuada é muito importante, e quando o artista ganha um espaço de visibilidade, tanto os programadores quanto o público querem continuar a seguir esse artista. Assim como acontece no cinema e nas artes plásticas. O espaço se abre não só para a apresentação, mas também para o apoio e a coprodução, que ajudam a viabilizar o próximo trabalho. No meu caso, além de festivais e teatros que me coproduzem, é muito importante também a relação que tenho com o CentQuatre de Paris, que guarda meus cenários e se responsabiliza pela difusão do meu trabalho. Depois se somaram também outros teatros europeus, como o Théâtre National Wallonie-Bruxelles e o Odéon Théâtre de l’Europe. O Sesc São Paulo também é muito importante, como coprodutor

de minha última criação, O Agora que Demora, e também com o apoio para o E se Elas Fossem para Moscou? e para a Floresta que Anda. Falo tudo isso porque esses apoios são fundamentais para que a circulação aconteça. Antes de tudo vêm o artístico, e a recepção que o trabalho tem, mas depois os esforços precisam se somar. Sobre a recepção do público europeu e também da crítica especializada, o trabalho toca profundamente. Emocionalmente e intelectualmente. A partir dessa recepção vieram os convites para ser artista associada de alguns teatros europeus e também dirigir companhias europeias. Em todos os convites que aceitei criei sem fazer concessões artísticas. A cada trabalho sigo aprofundando minha pesquisa e não repetindo as formas, mas assumindo o risco e me colocando novas questões. O Brasil está sempre presente, porque minhas questões pessoais e políticas sempre estão relacionadas ao Brasil. Mesmo quando falo sobre outras temáticas existe sempre a relação com o quem sou e de onde venho. É comum que se pense que espetáculos que têm muito texto (em uma língua pouco conhecida, como a nossa) não despertam interesse do público estrangeiro. Pela sua experiência, o que você pensa sobre isso? Não acho que o texto seja um problema. Ao contrário, acho que o texto pode aproximar. 285


O público dos festivais e dos grandes teatros está habituado a ler legendas em teatro. Com as turnês internacionais e a realização de espetáculos em instituições estrangeiras, imaginamos que você tenha experimentado modos de produção bastante diversos da realidade brasileira. Essas outras dinâmicas de realização interferiram no seu processo criativo ou no seu modo de conceber os projetos? É mesmo uma outra experiência, principalmente no processo de criação. No Brasil, estamos habituados a entrar na véspera de uma estreia no teatro para montar pela primeira vez o cenário, ensaiar e estrear. Nos teatros na Europa, nos quais dirigi espetáculos que estavam estreando, tive o cenário montado no palco um mês antes, podendo experimentar o espaço, a luz, o som e a encenação. O tempo de ensaio é muitas vezes menor no total, mas as condições são muito melhores. Percebemos como somos guerreiros e criativos. Nossos limites como artistas brasileiros são imensos, o que talvez nos faça tão criativos, mas sem dúvida também reduz as possibilidades de aprofundamento nas nossas pesquisas. Como as mudanças de contexto político, econômico e cultural interferem no seu trabalho? Essa é uma preocupação ao produzir e se apresentar em outros países? Teatro é sempre político, mesmo quando não fala de política. Estarmos coletivamente – artistas e público – no mesmo espaço construindo uma obra, mesmo que seja através do olhar e do pensamento, é em si um ato político. É sempre político e revolucionário, porque ali, mesmo que utopicamente, podemos mudar o mundo. Nos tempos sombrios em que vivemos hoje, o contexto político se torna ainda mais urgente e indissociável do que eu faço. Cultura e economia estão intrinsecamente ligadas à política e se 286

entrelaçam o tempo todo no meu trabalho. Quando penso a questão dos refugiados, dos exilados, por exemplo, estou pensando também na relação cultural que isso provoca, no como isso advém da questão econômica e de como eu, como pessoa e como artista, vivo e vejo isso. Ir para o mundo aumentou as minhas possibilidades e me permitiu olhar mais amplo, mas também aumentou a minha responsabilidade. Nesse momento, levar para o mundo, através da minha obra, o que acontece no Brasil, é parte disso. Ainda nessa via, você tem sentido que há uma expectativa estrangeira sobre uma ideia de Brasil a ser encontrada nos trabalhos que se internacionalizam, associada a processos de exotização ou outros? Acho que o mundo está olhando para o Brasil. O que está acontecendo aqui gera muita incredulidade: como podemos ter chegado a isso? Como podemos ter dado tantos passos atrás no pouco que havíamos avançado em alguns aspectos de direitos sociais? Onde dormia esse monstro fascista que, como uma onda, tomou o Brasil? A fala das mulheres, dos negros, dos índios, das pessoas da periferia, de todas as chamadas minorias – que na verdade são maioria – estão nessa expectativa estrangeira de serem ouvidas. Mas, com isso, algumas vezes se criam os processos de exotização, que se aproximam do olhar do bom colonizador – ver o outro com o olhar complacente e superior. Nesse momento, a escolha foge do aspecto artístico e se transforma na vaidade da exposição da obra escolhida. Como se lida com isso? Não desistindo e assumindo o lugar artístico de igual para igual, sem concessões nem aproveitamentos. As fronteiras móveis são uma característica recorrente de seu trabalho, que transita entre zonas artísticas, geográficas e culturais de


fronteira. Em O Agora que Demora, você reúne testemunhos de atores-refugiados vivendo em campos no Líbano, na Palestina, na África do Sul e na Grécia, além de indígenas da Amazônia brasileira. Como você vê esse movimento radical de internacionalização? As linhas de fronteiras sempre foram voláteis no meu trabalho. Explorar novos territórios, criar interseções, trabalhar relações em muitos aspectos, inclusive os geográficos e sociais, fazem parte, há mais de 15 anos, da minha pesquisa. Mesmo nos trabalhos anteriores as questões sociais estavam presentes. Em Julia, o ponto central é a relação entre uma menina branca e seu empregado negro. Em Moscou fizemos um documentário conversando com várias pessoas que tiveram que abandonar seus países pelas crises econômicas ou pelas guerras. Na Floresta que Anda entrevistamos pessoas que foram atropeladas de maneira violenta pelo sistema. Então, o Agora que Demora é uma continuidade dessa pesquisa, dessa necessidade de olhar para a realidade, nesse caso através da lente da ficção. Com as oportunidades que surgiram com o apoio ao meu trabalho, senti a responsabilidade de incluir e de dar a fala para mais pessoas em outros lugares do mundo. A questão do exílio, da perda do estado de direito, situação de milhões de pessoas no mundo, me mobilizou e segue me mobilizando. Então, é um processo de internacionalização – juntando ainda mais o cinema com o teatro – mas também é um processo de interiorização, porque isso me traz ainda mais profundamente para o Brasil e para as questões que me formam como pessoa e como artista. Sempre nessas linhas de fronteira entre lá e cá. Isso se amplifica também na relação entre as pessoas que encontrei nesse movimento de internacionalização, e que agora fazem parte da minha equipe de criação, e artistas brasileiros que seguem comigo nesses

muitos anos de trabalho… Porque se tem uma coisa que é exatamente igual no Brasil e em todos os lugares em que venho trabalhando é a certeza de que teatro não se faz sozinho. Muitas mãos seguram umas às outras. E eu tenho a sorte de ter colaboradores extraordinários, que viajam e criam comigo. Isso também faz parte do movimento de internacionalização, juntar as pessoas, as zonas artísticas, geográficas e culturais em todos os aspectos da criação.

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AÇÕES PEDAGÓGICAS | PROGRAMAÇÃO + DOSSIÊ


AÇÕES PEDAGÓGICAS

Após um ano convulsionado, permeado pelo rechaço social contra os aspectos mais agressivos e excludentes do neoliberalismo, o eixo busca propiciar a emergência de novos modos de produzir e partilhar conhecimento, de novos jeitos de habitar o presente e de possibilidades outras de conviver CURADORIA Maria Fernanda Vomero

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NOVAS PEDAGOGIAS: FISSURAS E EXPERIMENTAÇÕES RESIDÊNCIA ARTÍSTICA OLHO NO OLHO: QUEM CONSEGUE SER VISÍVEL NA SÃO PAULO DE HOJE? 13 de fevereiro a 8 de março, terça a sábado, das 14h às 19h. 7 e 8/3 apresentação da instalação performativa a partir das 14h. 8/3 Pensamento-em-Processo das 16h às 17h Centro Cultural São Paulo Diante da complexidade social de uma megalópole como São Paulo, com mais de 20 milhões de habitantes, os experientes e renomados artistas do coletivo britânico Quarantine estarão em residência artística na MITsp 2020, compartilhando suas práticas com artistas locais. A residência resultará numa instalação performativa com a participação de não artistas – pessoas comuns, sem experiência prévia com as artes cênicas, que tenham vivências e ideologias bastante diversas, contraditórias e até divergentes. Richard Gregory e Renny O’Shea, cofundadores e diretores artísticos do Quarantine, com apoio das parceiras Sarah Hunter e Kate Daley, buscaram artistas brasileiros de variadas áreas (artes cênicas, visuais e plásticas, dança, cinema, música etc.) para desenvolver juntos estratégias para pesquisa, diálogo e engajamento com a cidade e com sua população. Na primeira etapa de residência, os integrantes do Quarantine partilharam suas técnicas de criação e alguns dos dispositivos que usam para seus eventos públicos. Em seguida, os participantes buscam estabelecer um relacionamento próximo e direto com não artistas – indivíduos normalmente distantes da cena artística e sem voz na sociedade, em especial aqueles cujos posicionamentos políticos e ideias costumam ser rejeitados no meio progressista. Os participantes da atividade são convidados a identificar, encontrar e engajar os não artistas com os quais vão trabalhar e que mais tarde farão parte de uma instalação performativa. Ao reunir pessoas que usualmente não se encontrariam, a residência Olho no Olho: Quem Consegue Ser Visível na São Paulo de Hoje? criará as circunstâncias para o diálogo e o envolvimento com vozes dissidentes – aproximando-se daquilo que a teórica política belga Chantal Mouffe denomina de “pluralismo agonístico”. Para tanto, desenvolverá uma metodologia para a dissidência, que enfatize os aspectos positivos de certas formas de conflito político. A residência pretende estabelecer, assim, um espaço no qual performers, espectadores e demais presentes possam confrontar as questões: Como atuamos? (teatro). Como podemos agir? (política). Como deveríamos agir? (ética). Quem consegue atuar? (representação). As criações do Quarantine lidam com o cotidiano de gente comum; o coletivo, que atua há 21 anos no Reino Unido, trabalha com as pessoas para que apresentem suas próprias narrativas e experiências. No palco, elas não são intérpretes das ideias de outros, mas sujeitos com história própria. Por meio desse método artístico e criativo, o coletivo britânico busca desenterrar relatos e memórias pessoais não hegemônicos e dar espaço a vozes não oficiais e divergentes, que geralmente não são ouvidas. COM Quarantine (Reino Unido) 291


RESIDÊNCIA ARTÍSTICA TEATRO URGENTE: ENCONTRO AGONIZANTE 5 a 15 de março, todos os dias, das 10h às 18h (em dois grupos), com realização de experimento cênico no último dia, 15/3, a partir das 14h Centro Cultural São Paulo Lisandro Rodriguez pretende oferecer um espaço de abertura e questionamento, troca e reflexão, buscando a desconstrução constante dos princípios naturalizados de representação para que encenador e participantes encontrem uma linguagem cênica única, poética e pessoal. Dois grupos serão formados, um matutino e outro vespertino, e ambos trabalharão com temas e abordagens semelhantes. Nos encontros, com apresentação conjunta de um experimento cênico no último dia, o encenador argentino vai trabalhar questões relacionadas à prática do estar/atuar, a fim de desestabilizar as zonas habituais de interpretação e a ideia mesma de representação. Com base em elementos mínimos e num olhar íntimo e singular para o mundo, os participantes investigarão como construir o espaço cênico e habitá-lo desde outras premissas. Esse laboratório será um período de experimentação para o espetáculo que Lisandro Rodriguez criará, em conjunto com a MITsp, para a edição de 2021. O requisito mínimo é que os participantes tenham, ao menos, formação básica em teatro e alguma experiência artística. COM Lisandro Rodriguez (Argentina)

INTERCÂMBIO ARTÍSTICO COMO NÃO SABER JUNTOS: O QUE FAZER DAQUI PARA TRÁS_IN SITU 5 a 12 de março, todos os dias, das 10h às 13h, com pausa no domingo 8/3 e na segunda 9/3. Apresentação do experimento cênico: 12/3, qui., das 10h às 13h, com bate-papo na sequência. Oficina Cultural Oswald de Andrade A maioria de nós sabe que sabe. E isso nos torna rígidos e limitados (o saber não é plástico). Alguns de nós sabem que não sabem. Isso nos torna mais disponíveis e abertos ao mundo, mas pouco aventureiros. Menor é o número de pessoas que não sabem que sabem. Essa é uma qualidade rara que, quando (o)usada com precisão, no lugar e na hora certa, pode abrir brechas inesperadas. Mas a ferramenta mais rara e, por isso, mais potente, é quando conseguimos não saber que não sabemos. Quando conseguimos estar aqui e agora sem a influência das ansiedades geradas pelas experiências passadas ou expectativas futuras. Como explorar o corpo em perigo, os lugares de colisão e as fronteiras do colapso? A atividade conduzida por João Fiadeiro, pedagogo em foco, terá como enquadramento a performance O que Fazer Daqui para Trás (a ser apresentada na MITsp). Para isso, Fiadeiro – com apoio da bailarina brasileira Carolina Campos, performer na obra – vai trabalhar com os participantes a Composição em Tempo Real, ferramenta cênica que permite transformar os afetos que surgem do confronto com a rua (e com a lenta degradação do corpo) em 292


imagens e, em seguida, em formulações-situações. Haverá dois grupos de participantes concomitantes: 20 artistas com experiência em improvisação e composição das áreas da dança contemporânea, teatro e performance; e 10 pedagogos-observadores, que serão responsáveis pela tessitura narrativa (dramatúrgica, discursiva ou cênica) do processo. COM João Fiadeiro (Portugal)

LABORATÓRIO DE EXPERIMENTAÇÃO LABEXP1 – VOZES DESOBEDIENTES 29 de fevereiro a 2 de março, sábado a segunda., das 9h às 13h Tusp A performer e slammer trans Lia García [La Novia Sirena] e o músico Meno del Picchia trabalharão nesse laboratório o quebre da voz e seus fragmentos. A produção vocal das dissidências ganhará o centro do espaço desde o grito, o lamento, o choro e o eco que emana das histórias de resistência. A voz como vocabulário das resistências trans, como matéria de produção afetiva e como memória da dor coletiva. Em cada dia da atividade, será enfocado um conceito diferente: Dia 1: A ferida – A voz do corpo ferido; o alfabeto das feridas como vestígio da cidade contextualizada; Dia 2: A cicatriz – O vestígio da ferida (“aqui doeu, aqui curei”); a cicatriz como marca-pegada e como memória cuerpa-afetiva para tecer as resistências e as alianças entre nossas lutas; Dia 3: A trans/ deformação – A voz como ponta de lança para imaginar novas cuerpas, novos mundos e novas formas de falar nossa dor. As dinâmicas serão baseadas em elementos do spoken word/ poesia expandida, da performance, da perspectiva trans e de gênero e contarão com as provocações musicais de Meno del Picchia. COM Lia García [La Novia Sirena] (México) e Meno del Picchia (Brasil)

LABORATÓRIO DE EXPERIMENTAÇÃO LABEXP2 – MEMÓRIAS INSURGENTES 4 a 6 de março, quarta a sexta. Dias 4 e 6/3, das 9h às 13h, e dia 5/3, das 9h às 16h Oficina Cultural Oswald de Andrade e Ocupação 9 de Julho A encenadora e ativista chilena Paula González e o videomaker brasileiro Eduardo Perez propõem um laboratório de experimentação autobiográfica, no qual os participantes terão a possibilidade de investigar – por meio de entrevistas e do registro de depoimentos com moradores de uma ocupação – memórias, feridas e dores enraizadas em seus corpos. Isso a fim de buscar uma raiz, uma conexão com a terra, com seus ancestrais e as diversas problemáticas sociais e políticas, históricas e contingentes que atravessam seu território (o corporal e o geográfico), concebendo a arte como uma ferramenta profunda de transformação político-social do indivíduo e de seu contexto. O vídeo entra como uma tentativa de capturar o efêmero e transformar o relato em registro palpável e direto. COM Paula González Seguel (Chile) e Eduardo Chatagnier Perez (Brasil) 293


LABORATÓRIO DE EXPERIMENTAÇÃO LABEXP3 – PRESENÇAS INCÔMODAS: ONDE ESTÁ A REBELDIA? 10 a 13 de março, terça a sexta, das 9h às 13h. O último dia, 13/3, será aberto ao público Companhia de Teatro Heliópolis O laboratório visa provocar os participantes a repensar o processo criativo para além da institucionalidade da arte e dentro do imenso campo da política. A cada dia, a boliviana Maria Galindo (Mujeres Creando) conduzirá uma sessão teórica e uma parte prática, com apoio da performer e artista visual Fany Magalhães. Serão trabalhados os seguintes conteúdos: Dia 1 – Voz em primeira pessoa (testemunho; mudez; intermediação); Dia 2 – Ocupação do espaço público (a rua; o museu; o sistema de arte; a política); Dia 3 – Que é hoje o político? (construção de metáforas; análise do universo simbólico: quantas camadas têm os símbolos?; deslocamento simbólico; construção de linguagens) No segmento experimental, haverá tempo tanto para exercícios concretos quanto para preparar objetos criativos que serão expostos performativamente por cada participante no quarto dia da atividade (13/3), depois da performance A Jaula Invisível, de Maria Galindo. Para isso, é obrigatório que cada integrante do LABEXP traga uma Bíblia ou uma cadeira velha (de qualquer tipo e tamanho), que possa ser manuseada. COM Maria Galindo (Bolívia) e Fany Magalhães (Brasil)

OFICINA O FUTURO É FLUIDO 2 a 4 de março, segunda a quarta. Dias 2 e 3/3, das 9h às 13h; dia 4/3, das 7h às 11h Teatro Sérgio Cardoso e Parque Trianon A proposta de Julie Beauvais, artista e diretora atualmente baseada na Suíça, guia-se por uma abordagem que vai além das divisões tradicionais em especialidades (performance, ativismo ambiental), mídia (movimento, música, performance e novas mídias), temas (paradigmas antigos ou novos, espaços, temporalidades, performáticas e não formas performáticas) ou métodos (trabalhos de estúdio, experimentos ao ar livre, iniciativas coletivas ou individuais). Trata-se de um laboratório de experiências biocêntricas, em que se combinam escuta profunda, movimento consciente e vivência do crepúsculo. Julie propicia, primeiro em sala, depois ao ar livre, uma experiência de escuta profunda das composições de Pauline Oliveros com os participantes (humanos e não humanos). A Escuta Profunda permite a abertura para um estado elevado de consciência e se conecta a tudo o que existe. Permite que se instale uma troca consciente, na qual humanos e todas as outras espécies presentes encontram-se integradas a um sistema de interdependência e cooperação. COM Julie Beauvais (Suíça)

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OFICINA VAMOS CAMINHAR JUNTAS? 3 e 4 de março, terça e quarta, das 18h às 22h Oficina Cultural Oswald de Andrade O que significa andar? O que significa caminhar juntas? Em um mundo onde continuamos falando do feminismo global (como se fosse uma entidade), como o meu feminismo é diferente do seu? Estar presente em espaço público implica consentimento de um determinado tipo: de ser olhada, de ser assediada ou importunada? O consentimento também funciona passivamente? Que papel o olhar do outro desempenha em nossas vidas? Isso nos liberta? Isso nos aprisiona? A artista indiana Mallika Taneja propõe um espaço para a partilha de reflexões sobre a cidade que se permite às mulheres – seja Nova Délhi, seja São Paulo – e os testemunhos sobre os riscos e a vulnerabilidade de ser mulher e estar na rua, em especial à noite. A oficina será um momento de convívio, diálogo e criação de laços de confiança entre as participantes para a realização de um ato performativo de cuidado coletivo: uma marcha noturna, marcada para o dia 7 de março, em que mulheres acompanham outras mulheres e protegem umas às outras, pelas ruas de São Paulo. COM Mallika Taneja (Índia)

OFICINA AUTORIA EM JOGO: DO HEGEMÔNICO AO PARTICULAR 7 e 8 de março, sábado e domingo, das 10h a 13h Companhia de Teatro Heliópolis Nesta oficina, o dramaturgo chileno Pablo Manzi vai discutir e dialogar em torno a dois âmbitos fundamentais na criação da Companhia Bonobo: a autoria e a improvisação. Na primeira sessão, a proposta é conversar sobre o que compreendemos por autoria e como se relacionam o mundo hegemônico (“oficial”) e o mundo particular, íntimo. Na segunda sessão, integrantes da companhia criarão cenas improvisadas e, a partir disso, artistas e participantes discutirão sobre as possibilidades geradas pela improvisação como base para a criação dramatúrgica. COM Pablo Manzi e artistas da Cia. Bonobo (Chile)

OFICINA SOB OS ESCOMBROS: INTRODUÇÃO AO MATERIAL DE MULTIDÃO (CROWD) 10 de março, terça, das 10h às 13h Centro Cultural São Paulo Como reage o corpo e qual é sua disponibilidade depois de uma festa alucinante, guiada pela euforia coletiva e pelo desejo lancinante de romper barreiras físicas? Como sustentar uma fisicalidade líquida e ondulante? Nesta oficina intensiva, os participantes poderão experimentar o método da artista Gisèle Vienne por meio do trabalho com o material coreográfico de seu espetáculo Multidão (Crowd). COM Gisèle Vienne (França) 295


OFICINA UM TEATRO QUE SEJA NOSSO: ESCREVENDO PARA PESSOAS 13 e 14 de março, sexta e sábado, das 10h às 13h. Sesi São Paulo Colaborare, do latim, trabalhar juntos (mas também pode significar “sentir dor juntos” ou “estar cansado juntos”) sempre foi um exercício de empatia. O encenador português Tiago Rodrigues, artista em foco da MITsp 2020, propõe nesta oficina um exercício de encontrar a própria voz no teatro por meio da escritura para o outro. “Nunca apenas escrevo”, diz ele, “sempre escrevo para alguém. E mais do que escrever para atores, dançarinos ou intérpretes, tento escrever para Isabel, Pedro, Sofia, Vitor, Frank, Jolente.” Portanto, não se trata de se adaptar à estética ou à política de outra pessoa nem de cancelar a própria voz, mas, sim, de participar do mundo com os outros, tornando-se o outro enquanto ainda somos nós. Trata-se de um convite a todos artistas interessados em teatro de texto e trabalho colaborativo. COM Tiago Rodrigues (Portugal)

OFICINA INVESTIGAÇÕES PARA A SELVAGERIA DO CORPO 9 e 10 de março, segunda e terça, das 9h às 13h Oficina Cultural Oswald de Andrade No Brasil, enquanto os tucanos dançam, os cavalos correm e os macacos saltam, a flora grita. Aqui, todos agem. Selvageria abaporu nessa bossa do planalto central do país. Imitação ou fuga? Instinto ou plano? Vale entender os sinais e então seguir. Vale sabotar a armadilha e então avançar. Com base nas práticas de invenção e desgaste das técnicas corporais, os participantes reunirão procedimentos de ação, repetição e composição para então, descobrir enunciados para o trabalho que estão para além da superfície. COM Andréia Pires (Brasil)

MASTERCLASS ESCREVER COM O CENÁRIO 13 de março, sexta, das 10h30 às 13h30 Sesc Vila Mariana O encenador francês Philippe Quesne, ao usar um tipo de pesquisa mecânica, cria um laboratório técnico de teatro que modifica as convenções do gênero de maneira inteligente e gera um universo de forma ambígua no qual sonhos e matéria, sons e palavras, fumaça e luz, solidão e grupo misturam-se todos. Tudo converge para validar aquilo que não pode ser dominado, criando – junto com a evidente diversão e risadas – uma sensação de mal-estar, uma necessidade de fazer perguntas e distorcer nossa visão do mundo. Ao trabalhar com o realismo da presença cênica, os atores transbordam o que chama de estágio morto, adaptando-se ao espaço com o desapego e a concentração 296


de alguém preso em seu próprio universo particular. Estranho e perturbador, o trabalho de Quesne, em sua aparente facilidade no movimento e no sequenciamento, destaca as preocupações sobre nossa organização social, nossa capacidade de ser humanas e humanos. A conferência será a oportunidade de descobrir o trabalho do encenador francês e a importância do espaço e definir seu processo de criação por meio de discussões e observação de imagens. COM Philippe Quesne (França)

OFICINA SUSPEITO: COREOGRAFIAS PERFORMÁTICAS DE ENFRENTAMENTOS COTIDIANOS 10 e 11 de março, terça e quarta, das 10h às 14h Tendal da Lapa Corpo periférico, corpo índio, corpo quilombola, corpo marginal. Suspeita de desafiar o status quo e os privilégios instituídos. Tomando como inspiração a realidade dos povos invadidos, explorados, colonizados e assassinados no Brasil, no ontem e no hoje, a oficina propõe uma experiência de dança que é quase nada: espasmos que se coreografam por meio do olhar do outro e dos movimentos quebrados do breaking. SUSPEITO é o desdobramento da pesquisa iniciada com tReta, em sua investigação do corpo, do gesto e dos movimentos de enfrentamentos cotidianos das juventudes em condição de resistência. COM Original Bomber Crew (Piauí)

DOCUMENTÁRIO ENQUANTO FALÁVAMOS SOBRE PERFORMATIVIDADES POLÍTICAS EU OCASIONALMENTE FURTAVA VOZES E ROSTOS – UMA CRÍTICA AUDIOVISUAL DAS AÇÕES PEDAGÓGICAS DA MITsp 2 de março, segunda, a partir das 19h Casa do Povo Na sequência da apresentação da performance Cicatriz, de Lia García [La Novia Sirena], será exibido este documentário com roteiro, direção e montagem de Matheus Parizi e curadoria e ideia original de Maria Fernanda Vomero. Neste filme-ensaio sobre o eixo Ações Pedagógicas da MITsp 2019, reminiscências dos debates e experimentações ocorridas contaminam-se com a vivência em primeira pessoa do cineasta. Após a exibição do filme, um breve bate-papo com o diretor Matheus Parizi. DE Matheus Parizi (Brasil)

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RODAS DE CONVERSA CONVERSA PERFORMÁTICA O QUE EU SOU NÃO FUI SOZINHO 9 de março, segunda, das 11h às 13h. Oficina Cultural Oswald de Andrade Trata-se de uma conversa a dois, num formato que se assemelha ao talk-show, pontualmente interrompida por desvios que impedem a sua progressão e adiam sua conclusão. Esses desvios (esses shows), que se fazem e desfazem à medida que a conversa (a talk) se desenrola, geram novos espaços de percepção e relação com o fio condutor do acontecimento, obrigando o espectador a “ir e vir” entre o sentido da conversa e a direção da performance. COM João Fiadeiro (Portugal) e Maria Fernanda Vomero (Brasil)

TRANS*PEDAGOGIAS DO AFETO DIANTE DAS POLÍTICAS DE MORTE 3 de março, terça, das 11h às 13h Casa do Povo Neste diálogo performático, Lia García partilha como tem tecido, ao longo de uma década, seu projeto de pedagogia afetiva a partir da cuerpa trans* (devido à banalização da palavra, a artista grafa o termo com um asterisco ao final) no contexto de México, estabelecendo pontes com a situação do Brasil, como dois pontos de emergência nos quais assassinam a mais pessoas trans* em todo o mundo. Indagações que serão compartilhadas, cuerpa a cuerpa: os afetos são uma aposta política de trans*formação social? Quais poderiam ser as resistências trans* diante das políticas de morte? A experiência trans é uma experiência coletiva? COM Lia García [La Novia Sirena] (México) MEDIAÇÃO Maria Fernanda Vomero (Brasil)

MEMÓRIAS, RAÍZES E TEATRO MAPUCHE NO CHILE DE HOJE 7 de março, sábado, das 11h às 13h Oficina Cultural Oswald de Andrade Como bisneta da machi Rosa Marileo Inglés, autoridade ancestral do povo mapuche, Paula dedica-se ao resgate da memória, da oralidade, da linguagem, da cosmovisão e da cultura do povo mapuche e da defesa dos direitos humanos indígenas por meio das artes cênicas, da música e do cinema com o trabalho da companhia KIMVN Teatro, criada em 2008, da qual é fundadora e diretora artística. Nesse diálogo, Paula partilhará os desafios de fazer arte no convulsionado Chile atual, cujos casos de violações de direitos humanos têm aumentado de modo assustador, em especial os abusos contra o povo mapuche. COM Paula González Seguel (Chile) MEDIAÇÃO Maria Fernanda Vomero (Brasil) 298


ENCONTRA DE PEDAGOGIAS DA TEATRA: AFETIVIDADES DO SABER RISCAR E ARRISCAR CURADORIA Dodi Leal (SP/BA) COORDENAÇÃO Maria Fernanda Vomero (SP) A Encontra é um espaço para revitalizar as metodologias de criação teatral a partir das experiências disruptivas de saberes não hegemônicos. Serão realizadas trocas reflexivas e práticas nas quais as corporalidades se arriscam em novas possibilidades de encontrar: outras formas de riscar os fazeres de espaço e de cena. A combinação de rodas com oficinas, sarau e momentos de convívio pretende instigar os afetos vetoriados pela perspectiva transfeminista de transição de gênero da área teatral: do teatro para a teatra. Pretendemos instigar novas pedagogias baseadas nos saberes trans.

ABERTURA PERFORMÁTICA COM JO CLIFFORD 10 de março, terça, às 10h Centro Cultural São Paulo

OFICINA DE AFETOS #SEQUERCOMBINA 10 e 11 de março, terça e quarta, das 10h30 às 13h Centro Cultural São Paulo Serão dois encontros práticos com objetivo de desenvolver experimentos artísticos e corporais a partir da linguagem da performance. Partimos dos desafios sociais da vivência transgênera para buscarmos dialogicamente e cenicamente formas criativas de expansão e trocas subjetivas ligadas à afetividade. Sendo conduzida por duas travestis artistas, a oficina está desenhada em uma metodologia processual que contempla, também, o indicativo de realização de uma ação de conclusão no segundo dia, visando o diálogo com o espaço público. COM Marina Mathey (SP) e Ave Terrena Alves (SP)

RODA DE CONVERSA PEDAGOGIAS DE TRANSIÇÃO 10 de março, terça, das 14h às 17h Centro Cultural São Paulo Pretende-se refletir sobre os processos de criação e de troca disruptivos que arriscam novas afetividades como metodologia do conviver. Pedagogias que põe em transição e em 299


risco modos hegemônicos de saber e de existir. A roda de conversa será um espaço para questionamento das modificações estruturais possíveis a partir dos saberes trans e suas pedagogias. COM Vulcânica Pokaropa Costacurta (SP) e Amara Moira (SP) MEDIAÇÃO Dodi Leal (SP/BA)

PERFORMANCE AMAMENTA-SE ZEUS LEITE DE PICADURA; ZANGÃO NÃO FAZ MEL, MAS TAMBÉM NÃO MAMA 10 de março, terça, das 17h às 18h Centro Cultural São Paulo Amalteias, as más teias, as amas, as armas meladas, Melissas, ninfas que dão de comer, alimentam a divindade; mas de que “divino” se fala? É alimento a fala, o falo? Pensando nas que sempre foram negadas ao leite, mas que até aos deuses amamentaram esta performance intenc(s)iona inverter a luz sobre a mesa, as tetas, sobre a cama, sobre nossas corpas e no ato performático questionar o que é o leite, o que é o mel, o que se come, o que se goza, o que é prazer, o que é nutrição; o que é dar, dar sustento ao organismo, ao social, ao espírito? Através do contato direto com o público a performer dá e recebe os questionamentos que são sua fome e sua própria comida. Quem come? Quem alimenta? Quais corpos come? Quais nutre? A vivência performativa será desenvolvida por Caz Ångela Apolinário Rodrigues, estudante do Bacharelado Interdisciplinar em Artes do IHAC/UFSB. Trata-se de um programa concebido no quadro de uma série contínua nomeada Pacote de Performances de Autocuidado e de Proteção. COM Caz Ångela Apolinário Rodrigues (TO/BA)

ESQUETE DE TEATRA: GOTA TRAVA 11 de março, quarta, das 14h às 15h Centro Cultural São Paulo GOTA TRAVA é um projeto de montagem cênica do grupo ILUMILUTAS que articula a população transgênera de Porto Seguro (Bahia) em torno de seus próprios saberes, seus próprios afetos e protagonismo. A partir de uma invenção metodológica do olhar transgênero que propõe uma revisão para a obra de Augusto Boal (o Teatro do Oprimido), o projeto tem como suporte a Teatra da Oprimida como perspectiva de trabalho considerando os jogos, as técnicas e exercícios teatrais tendo em vista a luta transfeminista. O ponto de partida do processo são os estudos em equipe do texto Medeia, de Eurípedes, e da versão Gota d’Água, de Chico Buarque e Paulo Pontes, para a qual foi desenvolvida a adaptação dramatúrgica perspectivando a produção a partir do protagonismo de pessoas trans, a GOTA TRAVA. O esquete de 30 minutos conta com interpretação e dramaturgia de Caz Ångela Apolinário Rodrigues, direção de Vinicius Santos e sonoplastia de Jackie Chean. Após a apresentação, haverá um debate do grupo, conduzido por Vinicius Santos. 300


COM ILUMILUTAS / UFSB DEBATE Vinicius Santos (BA)

SARARÁ TRANS 11 de março, quarta, das 15h às 18h Centro Cultural São Paulo Trata-se de um espaço de reflexão e troca de práticas artísticas em torno das resistências de corpos não hegemônicos. Ao propor uma crítica aos padrões brancos e cisnormativos de produção de saberes, a roda de conversa e as apresentações artísticas do Sarará Trans apresentam novas metodologias de encontrar e dialogar. Nesta edição pocket, será realizada uma roda de conversa que põe em questão a encontra das pretitudes com as transgeneridades, tendo a participação de Erica Malunguinho e mediação de Khalil Piloto, mestrando em ensino e relações étnico-raciais pela UFSB e idealizador do Sarará Trans, que acontece em Porto Seguro (Bahia) na Abayomí Casa de Cultura, desde agosto de 2019. Além da roda, haverá a apresentação de números musicais com Jackie Chean, Rosa Luz e Danna Lisboa, além da exposição poética de Preto Téo e visual de Marina Silvério.

RODA DE CONVERSA A ENCONTRA DAS PRETITUDES COM AS TRANSGENERIDADES COM Erica Malunguinho (PE/SP) MEDIAÇÃO Khalil Piloto (BA)

NÚMEROS MUSICAIS COM Jackie Chean (BA), Rosa Luz (DF/SP) e Danna Lisboa (SP)

EXPOSIÇÃO POÉTICA E VISUAL (VIRTUAL) DE Preto Téo (BA/SP) e Marina Silvério (MG)

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ENTREVISTA

PEDAGOGO EM FOCO

JOÃO FIADEIRO POR JOÃO FIADEIRO E MARIA FERNANDA VOMERO

ROTAS DE COLISÃO COM O MUNDO: UM MODO DE EXPERIMENTAR O PRESENTE Esta conversa, descrita abaixo, tem início em um encontro. Uma colisão, como João costuma dizer – e eu gosto muito desse termo. Um encontro virtual, na verdade, mas não menos caloroso. Alguém já lhe havia comentado: “Ela é curadora das Ações Pedagógicas da MITsp”. Então, quando me apresentei, pude dizer-lhe apenas: “Oi, sou a Maria Fernanda”. Agora, sou eu quem lhe faço as vezes: — Este aqui é o João. João Fiadeiro, português, nascido em Paris (durante o exílio dos pais, ativistas políticos), coreógrafo e pesquisador através da arte. Sim, através da arte. O João costuma dizer que tudo o que faz como 302

artista serve para investigar o “estar vivo” e reconhecer as propriedades e as possibilidades que existem a cada momento de colisão com o mundo. Notem bem: de novo, o termo recorrente “colisão”. Pois o João é o pedagogo em foco da edição 2020 da MITsp. (João está à beira do texto, no canto da página. Súbito me olha e diz:) João: A pedagogia tem um lugar muito presente em meu trabalho artístico, porque considero a formação e investigação como plataformas para pensar junto, ou seja, todas as questões que me ocupam como artista são questões que tenho que confrontar com os outros, cá para fora. E só no ato do encontro, da colisão com outras pessoas e com colaboradores,


é que consigo realmente considerar o que estou a sentir, a pensar. Vejo o gesto de transmissão como um gesto de partilha e amplificação de um conjunto de afetos, inquietações e inclinações que me interessam. Essa postura mais pedagógica passou a ser inevitável no instante em que percebi que, nas primeiras semanas de trabalho em estúdio, no início de uma criação artística, eu era sempre confrontado com a expectativa natural dos bailarinos ou dos performers em querer saber qual a direção, o tema, a pergunta que aquela peça traria. Me sentia muito incapaz de fornecer essa informação, já que estava exatamente ali para que eu próprio descobrisse e identificasse o que me afetava e me fazia criar. Para lidar com essa pressão, comecei a desenvolver um método de trabalho que me permitisse estar com os demais, sem ter que explicar-lhes ou ilustrar o que faria. E isso começou a constituir-se como estratégia de encontro e transformou-se em modo de ensino ou de relação com os conteúdos e as questões que me afetam. — No entanto, eu lhe peço que explique seu método de Composição em Tempo Real... (João já mudou de lugar. Está nas entrelinhas, mas também nas aspas, nos pontos de exclamação que não querem aparecer no texto, nas reticências.) João: Composição em Tempo Real (CTR) foi uma designação que criei, uma estratégia de trabalho, um modo de me relacionar com o problema da composição e da improvisação. Esse termo – “composição em tempo real” – traduz exatamente o que se propõe a fazer: pinçar a decisão a partir de uma perspectiva organizada e composta, mas em confronto com o tempo real, o tempo presente – isto é, são dois princípios que se anulam ou que se contrapõem. A composição pressupõe um olhar de fora, um suspender prévio, e o tempo real impede esse olhar de fora, esse saber prévio. Nessa tensão que se cria entre essas duas forças, dá-se o gesto – que chamo de Composição em Tempo Real. É um gesto que emerge como consequência,

uma colisão entre esses dois conceitos, e não um gesto feito à medida de um desejo prévio. Ou seja, o acontecimento acaba por traduzir uma relação entre a força do que tenho para oferecer e a força daquilo que o tempo concreto real me obriga, me restringe. Proponho, assim, uma mudança de paradigma. Tendemos a reagir àquilo que nos interpela de modo habitual, ou seja, recorrendo a nosso repertório de saber, sejam eles culturais, genéticos ou biológicos. A CTR propõe uma suspensão das certezas para que a dúvida se instale, e o espaço de questionamento do desconhecido se transforme numa força de trabalho e num lugar de acolhimento. Esse movimento do “parar” (a fim de “re-parar”) é muito difícil porque nosso corpo está condicionado e desenhado para replicar modos de reação e relação pré-definidos, que foram sendo acumulados por nossa experiência de vida. Enquanto “compositores em tempo real”, não temos outra possibilidade a não ser aceitar que não sabemos, e essa aceitação cria um estado de disponibilidade. Passamos a identificar outras possibilidades que estavam anestesiadas ou camufladas por detrás de nossos hábitos. A prática da CTR, por ocorrer em estúdio, possibilita a repetição, a insistência e a persistência e, por isso, uma descoberta lenta daqueles que são os limites das nossas relações, das potências que nossas relações podem gerar. Isso permite-nos testar corpos e presenças que, de outra maneira, não seriam possíveis. (João agora dança entre as letras. Choca-se com elas. Fico no espaço em branco. Sinto que vamos desaparecer. Ou esparramar-nos. Ou ainda invadir todo o espaço de texto, virar texto, virar uma palavra gigante: colisão.) — João, me sinto em perigo, e a sensação é boa! Lembrei-me que há outra expressão que você adora: “corpos em perigo”. O que você entende por “corpos em perigo”? João: Um corpo em perigo é um corpo que não se acomoda e que se mantém atento, e essa atenção 303


ENTREVISTA

permite desenvolver uma sensibilidade diante do presente, daquilo que de fato está a acontecer. Estar em perigo é uma espécie de condição sine qua non de pensar o corpo na arte, como performer e como espectador. Não concebo uma arte que não me ponha em perigo no sentido, que não questione minhas convicções e minhas convenções. É, assim, uma posição artística, cívica e ética de não me deixar capturar por nenhum tipo de estrutura de poder (sobretudo aquelas que eu próprio carrego) que me impeça de ser sensível; essa parece-me ser uma condição necessária para nos mantermos lúcidos e atentos e presentes. Ser sensível. É claro que isso é difícil fazer em ambientes que estão domesticados ou protegidos como se fossem cápsulas higienizadas, mas nossa obrigação, como artistas e ativistas, é de deslocar, mesmo que por milímetros, nossas certezas. Pronto. E nesse sentido todo o trabalho que desenvolvo visa pôr-me em perigo, porque é o perigo que me mantém atento, presente e atual. Esse é o maior desafio que temos: manter-nos atualizados. Essa atualização é o que possibilita um reconhecimento do nosso entorno e do nosso “intorno” numa relação de ir e voltar, de dar e receber e retribuir, que se processa no encontro entre nós e nós mesmos, o meio ambiente e os sistemas (ecológicos, sociais, políticos) com que interagimos. O grande desafio é como permanecemos atentos e como a avalanche de informação, sensações, de forças que nos atravessam é acolhida como matéria de trabalho e não como formas de imposição ou de rejeição. Sintetizando: como encontrar, na nossa presença e participação no mundo, uma qualidade que não seja contra, mas com, de maneira que minhas posições possam com-por com outras posições em vez de contra-porem? — Você teve a experiência de com-por com outra Fernanda, a antropóloga Fernanda Eugénio, com quem fundou em 2011 a plataforma AND_Lab. E um dos resultados da colisão entre vocês foi o conceito “secalharidade” – a qualidade de acolher 304

o “se calhar...” –, que nomeia “o modo de operar e habitar paisagens comuns”, fonte de diversos projetos e textos1. João: Sim. O conceito “secalharidade” – que também deu origem a uma conferência performática em Lisboa, no ano de 2012 (e que se desdobrou em uma enorme passeata pública contra a austeridade e a crise em Portugal2) – propunha-se como prática de convivência assente na substituição do controlo e da manipulação por uma ética do manuseamento suficiente, com o objetivo último de transferir o protagonismo do sujeito para o acontecimento. O conectivo AND (e) resultou do encontro entre duas inquietações transversais – “como viver juntos?” e “como não ter uma ideia?” – e entre dois modos de pensar-fazer – a “minha” CTR e a “Etnografia como Performance Situada” da Fernanda Eugénio. A força desse encontro assentou na descoberta recíproca de que ambos vínhamos, há anos e em nossas respectivas áreas, partilhando uma mesma paisagem de inquietações acerca do problema da representação e da interpretação. Os conceitosferramenta que fui desenvolvendo com Fernanda, ao longo de nossa colaboração, estão ainda muito presentes, tendo sido absorvidos como léxico e vocabulário que enquadram a prática da Composição em Tempo Real atual, servindo como lugares de intermediação e mediação da experiência à escala-corpo (que sempre caracterizou a CTR) e à escala infinitesimal das “pensações” que desenvolvemos durante nossa colaboração. (Neste momento, caminhamos sobre nossos nomes na abertura deste texto.) — E veio a pertinente reflexão sobre a autoria. João: A questão da autoria na criação artística passou a ter outro peso depois da experiência com a Fernanda. Afinal, como posso assumir posição de autor perante uma consequência que, na verdade, não me pertence – porque é uma consequência de uma colisão, de um encontro entre diferentes


forças e que não controlo? O modo com que estou a lidar com isso agora é dizer que aquilo que está em causa não é a erradicação do autor mas a diluição da sua influência no acontecimento. Aquilo que me apercebi é que na criação artística a tradução e a circunscrição de um afeto (uma inquietação, um desassossego) é sempre singular, íntima e, de certa forma, intransmissível (no sentido que me ocupa de uma forma que não consigo nomear). Num processo de improvisação (mais próximo do que experimentamos na convivência quotidiana), é perfeitamente possível que diversos “afetos” e forças ocupem um mesmo espaçotempo. Mas no processo de escrita (coreográfica ou outra) não posso esperar que o outro se afete com o que eu me afeto. O que posso é encontrar modos de partilhar com o outro esse afeto (a CTR é um deles) de forma que se torne um território comum, permitindo assim que um grupo de pessoas trabalhe junto sem que a figura do autor se transforme em figura de autoridade. Em arte penso ser possível conviver com essa contradição entre tentativa de abdicação de controlo e assinatura de um trabalho. Esta é uma formulação que fui desenvolvendo a partir de 2015 (momento em que retomei a prática coreográfica depois de uma suspensão de sete anos) com Carolina Campos e Daniel Pizamiglio, dois artistas-investigadores muito próximos, com quem criei as peças O que Fazer daqui para Trás (2015) e Ça Va Exploser (2020).

João: Inquieto. Ou desassossegado, como diria o Pessoa, com o problema da relação que desenvolvo com o espectador: como posso, dentro daquilo que a arquitetura teatral me permite, colocar o espectador numa posição de testemunha ou de cúmplice e não de voyeur. E, sobretudo, como dar ao espectador um espaço-tempo menos impositivo e oferecer-lhe uma proposta que não o obrigue a uma interpretação, mas que sugira relações; uma proposta em que minha presença ou a presença dos performers com quem trabalho sirva, sobretudo, para o espectador imaginar, ativar seu imaginário. A arquitetura do teatro é bastante castradora, pois as cadeiras já estão à espera de uma maneira pré-definida de relação e fruição do espetáculo, condicionando muitíssimo as possibilidades de diálogo entre a proposta e quem a observa e a recebe. Por isso, sempre que posso, tento jogar com a elasticidade e a plasticidade das expectativas do espectador. Em alguns trabalhos, funciono exatamente com a estrutura que me é oferecida e olho para o teatro como se fosse um site-specific; noutros, preciso “destruir o teatro” e organizar o lugar do espectador. Inquietação muito constante e presente. Gosto da ideia de considerar o espectador um visitante, que tenha a possibilidade de se deslocar (como acontece em um museu ou galeria) e ser responsável pelo modo com que utiliza seu tempo e sua atenção. Seria este meu sonho: que o espectador se dilua no meu corpo. E inversamente.

— Essa combinação entre autoria e afeto partilhado me recordou o poeta Fernando Pessoa e seus heterônimos. Uma pergunta mais íntima, então: como você se sente agora, João?

(Colidimos, João e eu, com Alberto Caeiro, o guardador de rebanhos que habitava Fernando Pessoa. E Caeiro nos diz: “O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério!/ O único mistério é haver quem pense no mistério./ Quem está ao sol e fecha os olhos,/ Começa a não saber o que é o sol/ E a pensar muitas cousas cheias de calor./ Mas abre os olhos e vê o sol,/ E já não pode pensar em nada,/ Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos/ De todos os filósofos e de todos os poetas.”)

1 Eugénio, F., & Fiadeiro, J. (2016). AND_Lab – Centro de Investigação Artística e Criatividade Científica. A.Dnz, (1), pág. 116151. Dossiê com os textos: Dos modos de re-existência: um outro mundo possível, a secalharidade (2011); O encontro é uma ferida (2012) e O Jogo das Perguntas (2013). Em: https://adnz.uchile.cl/ index.php/ADNZ/article/view/38550. Acesso em 11 fev. 2020. 2 https://vimeo.com/145412780

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A TEATRA CONTRA A TUTELA: PEDAGOGIAS INDISCIPLINARES DA ARTE OU LA ESPERANZA ES LA MÁS GRANDE DE LAS PURAS

POR DODI TAVARES BORGES LEAL

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Querido Paul Preciado, Começo te dizendo que não nos conhecemos, ainda. Mas a sensação que tenho é que já temos uma longa relação. E temos. Me identifico? Sou também uranista. Nos despejaram há alguns séculos, como você nos conta relembrando Ullrichs, ao mesmo planeta Urano. Não sei se você já conseguiu o teu apartamento, mas se puder dividir um pequeno espaço de não lugar comigo, agradeço! O uranismo é nossa encruzilhada. Aliás, te escrevo daqui de Richelieu, da cidade com a qual você se disse casado, Paris. Por aqui, em meio ao movimento social contra a reforma da previdência da França, vejo uma inscrição de picho dizendo “grève ou crève”, que talvez poderíamos traduzir para o português como “greve ou morte”. Não há como não se entristecer com o fato de que não vingou uma greve na reforma da previdência (aprovada no Brasil em 2019), apenas a expectativa de morte. Quem paga a conta é a população mais pobre do país e de regiões distantes dos centros econômicos, como sempre.

Dodi Tavares Borges Leal é travesti educadora e pesquisadora em Artes Cênicas e Performance. Professora adjunta do Centro de Formação em Artes e do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências da UFSB. Doutora em Psicologia Social pela USP, com estágio doutoral na Universidade de Coimbra. Licenciada em Artes Cênicas pela ECA-USP. Habilitada em Cinema e Vídeo no Baccalauréat Interdisciplinaire en Arts da UQAC-Canadá.

Eu, proveniente da periferia da Zona Leste de São Paulo, hoje talvez possa me dizer casada com a Bahia. Desde que tive o primeiro contato com tua obra, Manifesto Contrassexual, que chegou ao Brasil em 2015, tenho aprendido que nosso deslocamento de fronteiras carregam fortes conteúdos de gênero. Ser a única professora trans na área de artes do ensino superior do país traz consigo muitas responsabilidades e pesos. Sei que você sabe o que é isso, razão pela qual vejo que sou mais tua conterrânea de Urano do que da Espanha (neste momento, procedo na nacionalidade espanhola, um direito que tem me sido interditado por décadas). A diáspora trans nos une no uranismo. Quero ecoar o tom de que talvez os deslocamentos de gênero que têm a América Latina como ponto de partida levem a incomparáveis redimensionamentos de saberes da arte. Em nosso continente, os confins do capitalismo tecnocientífico proseiam com os fazeres das artes em outros tons. Portanto, quero te precisar alguns questionamentos que tenho feito desde os estudos teatrais e performativos e apontar a emergência de novas pedagogias da cena e do corpo. Ao tomar a transgeneridade como epicentro epistêmico desobediente de gênero para esta reflexão, logo poderíamos formular a primeiríssima questão: estamos a tratar de pedagogias trans? Ou, proposta de outra maneira a pergunta, e talvez ousando a instigar o campo filosófico que você tem debulhado em tua obra nos últimos anos (para o nosso deleite): em que medida há saberes que poderíamos denominar como saberes trans? Se me permite, o radical trans está se banalizando. Esvaziado não de sentido, mas de fulminação. Transdisciplinar, transmídia, trans… Veja que grande parte das pessoas que incitam à exaustão esses “conceitos” é cisgênera. Com qual auspiciosidade se acessa a operação transmídia, por exemplo, de um 307


suporte/plataforma a outro sem desobedecer-se ao gênero? Ou, como querem, o esvaziamento está em retirar programaticamente o conteúdo desobediente de gênero do radical trans. Como que higienizá-lo para poder ser livremente explorado por pessoas cis. Não será à toa, te indico a seguir, que tenho convocado para os nossos debates atuais as perspectivas indisciplinares e de corpomídia: Para tratar do corpo, não basta o esforço de colar conhecimentos baseados em disciplinas aqui e ali. Nem trans nem interdisciplinaridade se mostram estratégias competentes para a tarefa. Por isso, a proposta de abolição da moldura da disciplina em favor da indisciplina que caracteriza o corpo. (GREINER e KATZ, 2005, p.126)

Ora, aventar novas pedagogias da cena e do corpo a partir de uma perspectiva indisciplinar requer efetivos redesenhos dos projetos de arte em questão. Quando criei o termo teatra, por exemplo, pretendi destacar fissuras ao modelo cispatriarcal do teatro. Longe de uma façanha monolítica, a teatra se interpõe como uma lancetada transfeminista atual (e portanto provisória temporalmente). Daqui temos já uma ação concreta que dialoga com a pergunta que te fiz antes (em que medida há saberes que poderíamos denominar como saberes trans?). A teatra é um modo de redimensionamento do saber teatral, uma transição de gênero do masculino para o feminino. E, veja, não me refiro aqui especificamente às pessoas, mas ao conjunto da área (LEAL, 2018). E partimos, então agora, para nos referir às pessoas. Pois, sim, precisamos conjecturar os processos nos quais se dão nossas investidas, considerando os passos que damos e os contextos em que vivemos. Já não apenas tratamos agora do rebentar de uma arte não institucionalizada, a teatra, que reclama crenar seu pária formal: o teatro. Me refiro, então, aos percursos pedagógicos em que as pessoas possam se encontrar e que nesses espaços possam reconfigurar seus fazeres e seus projetos de fazeres. Espero que você possa conferir a 7ª edição da Mostra Internacional de Teatra de São Paulo (MITsp), na qual atuo pela primeira vez como curadora; com a coordenação de Maria Fernanda Vomero, propusemos a Encontra de Pedagogias da Teatra. Prospectamos um espaço onde as pedagogias não tenham esvaziamento étnico-racial e de gênero e que possamos pensar, com base nos processos de resistência de pessoas transgêneras, como podem se dar os caminhos de repropor aquilo que um dia chamamos de teatro. Mas, mais importante ainda, como os saberes trans só podem se dar a partir do protagonismo de pessoas trans. Como disse em meu livro de poesias, De Trans pra Frente (LEAL, 2017), a partir do momento em que pessoas trans ocupam espaços pensados por e para pessoas cisgêneras, alfinetamos o futuro. Afinal, torna-se quase que inevitável que muitas pessoas cisgêneras pretendam-se mais conhecedoras sobre as desobediências de gênero do que pessoas transgêneras. Está aí um pouco a ideia da teatra contra a tutela. No Brasil somos muito tuteladas, sabe? É um tipo de violência pouco sutil; é cheia de exasperação. Você precisa ver como a objetificação tem sido, assim, o outro lado da moeda da abjeção. E retomo teus estudos sobre sexo, drogas e biopolítica (PRECIADO, 2018) para ensejar que o traço que liga abjeção e objetificação é de cunho farmacopornográfico. E por que não dizer que a tara que uma pessoa cisgênera tem pesquisando as transgeneridades é doentia? Praticar a teatra na América Latina atual não é tarefa simples. Um dos fatores: a tutela cis confere os limites de até onde podemos ir. Curiosidade pra que saibas: não é raro no Brasil pessoas cis pretenderem conhecer mais 308


sobre você do que nós, pessoas trans, veja só! O rebaixamento intelectual vivido por pessoas trans latinas é imbricado com a especulação que vivemos, a qual recai não apenas sobre nossos corpos e falares, mas principalmente sobre nossas atitudes. A censura que se dá no Brasil à cena trans, pela abjeção e pela objetificação, requer de nós ao menos algum vetor de esperança. Na ocasião da Encontra, fizemos então convites que deixam nítida nossa intenção: mostrar que a MITsp tem sido um pedaço do nosso Urano em São Paulo. Ah, e a propósito de tua crônica Beirut Mon Amour (PRECIADO, 2019), talvez o catálogo de arte de Ika Knezevic, la esperanza es la más grande de las putas, ganhasse em outros contextos (ou não contextos) de difusão teatral do Brasil atual alguma repaginação para não se referir literalmente à prostituição. Talvez recorresse ao senso de jogo de Amara Moira (2018) quando ela passou a perguntar “E se eu fosse pura?”, em provocação à pergunta anterior que intitulava seu livro: “E se eu fosse puta?”. É assim que te digo que a teatra é a mais pura das esperanças no Brasil de 2020. Paris, 13 de janeiro de 2020.

REFERÊNCIAS GREINER, Christine. KATZ, Helena. Por uma teoria do corpomídia. In: GREINER, Christine. O Corpo: Pistas para Estudos Indisciplinares. São Paulo: Annablume, 2005. LEAL, Dodi. De Trans pra Frente. São Paulo: Patuá, 2017. ________. LUZVESTI: Iluminação Cênica, Corpomídia e Desobediências de Gênero. Salvador: Devires, 2018. MOIRA, Amara. E se Eu Fosse Pura? São Paulo: Hoo Editora, 2018. PRECIADO, Paul B. Testo Junkie: Sexo, Drogas e Biopolítica na Era Farmacopornográfica. São Paulo: n-1 edições, 2018. ________. Un Apartamento en Urano. Crónicas del cruce. Anagrama: Barcelona, 2019.

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NAVEGAR

NA INCERTEZA

(ENSAIO SOBRE UNS POSSÍVEIS) POR ANA HARCHA

ME PROPONHO A MATERIALIZAR O CONVITE PARA ESCREVER ESTE TEXTO a partir de uma escritura implicada e, ao mesmo tempo, situada neste momento e num território estremecido pela emergência brutal da violência armada do Estado. Violência latente, que hoje não é latência mas ação, gerada pela Presidência de Governo, pelo Ministério do Interior, pelas Forças Armadas e de Ordem e por agentes do espectro político e institucional. Muertxs; centos de mutiladxs; feridxs; torturadxs; vítimas de abusos e violência sexuais; milhares de detidxs pelo exercício do direito a protestar são muito mais que a prova dessas práticas de cruel repressão. Que o Chile tenha sido um laboratório das mais radicais políticas neoliberais é uma questão já conhecida no marco ocidental e regional. Isso implicou e implica a permanente execução de necropolíticas (Achille Mbembe), nas quais sem armas se foram eliminando os excluídos, por meio da negação de direitos sociais fundamentais (saúde, educação, habitação e aposentadorias dignas). Negação que tira de jogo, silenciosa e cotidianamente, cada corpo que se torna improdutivo para um Estado controlado por holdings e conglomerados comerciais que privatizam esses direitos, convertendo-os em bens de consumo aos que se acede —ou não—, e fazem girar —ou não—, a roda do consumo, a dívida e o mercado. Nesse sistema, os corpos que habitam essas condições não são massacrados de forma evidente, mas são deixados a morrer em vida; ou tenta-se convencê-los de que a sobrevivência é o supremo estado de experiência vital ao qual se pode aspirar. Isso já acontecia, já o sabíamos, já o vivíamos. Qual é, então, a novidade, a diferença desse contexto? Qual é a convulsão ativa e presente hoje nesse 310


Ana Harcha é performer, pesquisadora e criadora cênica. Trabalha em torno de manifestações de teatralidades vinculadas às tradições locais. É parte do Departamento de Teatro da Facultad de Artes da Universidad de Chile e colaboradora do grupo de pesquisa ARTEA da Universidad de Castilla-La Mancha.

território? Por um lado, o exercício explícito da violência e do terrorismo de Estado – que, olhados atentamente, tampouco são novos, porque é a política de Estado exercida há mais de 25 anos, sobretudo em território mapuche, zona de resistência indígena, que vem articulando uma contundente crítica às políticas extrativistas do capitalismo, postas em prática por todos os governos chilenos desde 1990 até agora. E, de um modo mais expandido, a configuração de mundo do sistema moderno do progresso produtivista implantado a sangue e fogo, desde os tempos da Conquista e da Colônia. O novo dessa violência explícita de Estado é que decidiram insistir e irradiar essa estratégia de forma radical para além do território mapuche, declarando inimigo interno a todo aquele que ouse pôr o corpo no exercício crítico contra a necropolítica. Então, o que há um ano sucedia em torno às reivindicações do povo mapuche agora tem permissão de suceder não apenas aí, mas em todo o território, em repressão a outras demandas e sobre uma ampla diversidade de corpos: dirigentes sociais, dirigentes estudantis, ativistas ambientais, ativistas feministas, ativistas LGTBIQ+, dirigentes de outros povos originários etc. Por outro lado, a novidade fundamental dessa convulsão do status quo é que essa massa que se pretendia apenas sobrevivente e controlada pelo medo de perder – algo? nada? –, em um estado semi-zumbi, estava e está viva, e decidiu, soberana e miseravelmente, rebelar-se contra a anomia sistêmica e os poderes mortíferos do necrocapital. “Nos tiraram tanto que nos tiraram até o medo” e “Se meteram com a geração que não tem nada a perder” são algumas das premissas nas ruas. A queda do véu do pseudo bem-estar chileno, do discurso do êxito do modelo, exportado uma e outra vez pelos governos pós-Pinochet, evidencia algo que já vivíamos, mas não parecia concreto para a maioria: habitamos uma terra ferida, essa ferida está aberta, esta ferida está sangrando... Então, agora, o que vamos fazer? A rua elabora e reelabora suas propostas para essa constatação, dia a dia: marchas; ações performativas; assembleias; protestos; ocupação de espaços públicos; comissões de educação popular e direitos humanos; defensorias jurídicas; comitês de abastecimento territorial; assembleias de arte e cultura; greves etc. Resulta inescapável perguntar: como tudo isso que está acontecendo incide em nosso exercício pedagógico e acadêmico? O que muda nos modos e sentidos de proposição das práticas de aprendizagem? Que propostas críticas colaboram com as relações de trabalho que estabelecemos? De que modo docentes, pesquisadores e criadores cênicos geramos experiências de aprendizagem? O que estamos aprendendo hoje? 311


Quero sugerir aqui o que hoje tenho o impulso de chamar de “navegar na incerteza”. I. Navegar na incerteza tem a ver com des-ocidentalizar e descolonizar as práticas de ensino provenientes de currículos rígidos, que pouco ou nada de espaço deixam à emergência da potência escura, misteriosa ou imprevisível presente na maioria das experiências vitais. Trabalhar na incerteza implica trabalhar sem certezas absolutas, e assim gerar sistemas que permitam o surgimento de perguntas, propostas, modos de fazer ou relacionar-se que não venham pré-determinados como modelos a imitar ou a preencher a fim de garantir resultados, mas que acontecem da escuta e do trabalho comum entre um grupo de pessoas em relação a um problema, uma pergunta ou mesmo um projeto que não se terminou de elaborar antes desse presente de tempo e espaço compartilhados. Também – desde uma perspectiva expandida –, uma escuta em relação a outros seres vivos, a um território, a outras materialidades. O princípio da incerteza, na Física, refere-se à impossibilidade de determinar de maneira exata algumas questões sobre o estudo da natureza, admitindo que só é possível aproximar-se de probabilidades, onde existirá sempre um nível de erro porque as magnitudes conjugadas – posição, momento, energia, tempo etc. – variam. De que maneira incorporamos essa aceitação das condições flutuantes do vivo como uma condição de aprendizagem, considerando o erro, ou os momentos de não produtividade, de recolhimento, de não saber-o-quê ou contemplação, como uma parte mais do que se estuda ou trabalha, e não como um lugar definitivo do processo? Que sistemas de trabalho deveríamos gerar a fim de possibilitar que essas potências do vivo coabitem os processos de ensinoaprendizagem de tal forma que se ativem como forças emancipadoras e não atuem a partir de uma mortalidade? Segundo o budismo zen, atua-se não pelo buscar algo, mas pelo encontrar: não se busca, se encontra. Temos também a possibilidade de tecer essas lógicas de ação em nosso trabalho? Como fazer isso sem se perder num emaranhado infinito de derivas? Talvez tenha a ver com reconhecer que o pensamento está situado (Donna Haraway), que atuamos desde um lugar situado – problema, pergunta, relação com um grupo de seres vivos, relação com uns materiais ou técnicas –, mas não temos a palavra nem o caminho definitivo sobre ele, estamos também em um processo de investigação-criação co-laborativa a respeito. Não fechada, portanto. II. A reflexão anterior está diretamente relacionada com a aceitação metodológica da incorporação do princípio de improvisação nos processos 312


de aprendizagem. Isso poderia ser abordado ou entendido a partir da perspectiva da inclusão constante de jogos, exercícios e propostas de ação destinados a treinar e fortalecer essa prática do presente e, ao mesmo tempo, a possibilidade de aprender a aceitar aquilo que surge no processo de trabalho e que não está nos planos. A mobilização ativada nas ruas do Chile, desde outubro de 2019, não estava no programa de aulas e fomos aprendendo a trabalhar com ela. Com a força, a energia, o sentido de coletivo e a dor que implicou. Parece que tem sido possível. Perguntamo-nos sobre o que fazemos no tempo em que estamos juntos; o que fazemos no tempo em que não estamos juntos; o que tem sentido fazer junto. Isso nos permitiu ativar e aprofundar certas práticas para um presente com sentido e modificar outras. A condição de co-presença no processo de ensino-aprendizagem tem se mostrado violentamente evidente, intensificando a condição de performatividade (Erica Fischer-Lichte) da relação estudantes-professores. E da relação de co-presença com um contexto histórico, político, relacional, representacional, onde o real está também atravessado ou manipulado pela ficção; e onde a ficção às vezes parece emergir como legítimo lugar de insistência e resguardo do real invisibilizado por aqueles que controlam a hegemonia do discurso sobre o que oficialmente está passando. Abrir a experiência previamente acordada de aulas tornou-se um chamado a nos abrirmos às experiências de outras, de outros. O aprendizado tem acontecido, então, de forma coletiva, desde o fluxo de energias, da rua, dos corpos, do afeto e da violência manifestos. Nessa macroconstelação, aparecemos como um grãozinho dentro de um grande fluir, em que não temos autoridade nem capacidade de definir ou controlar o que vai passar. Esse poderia ser, de fato, um princípio a nos habitar diariamente, sem a necessidade de um presente convulsionado de forma extracotidiana. Porém, nos esquecemos, presos a um modo de percepção e projeção da imaginação que insiste em instalar como realidade que as coisas só valem a pena se têm um resultado produtivo, ou que “[...] as coisas realmente importam somente se funcionam” (Haraway, 2009:23). Deslocados desse modo de pensar cotidiano, atentos ao devir dos processos, temos também a possibilidade de aceitar que fracassamos, que vivemos coisas que não produzem receitas quantificáveis nas contas de nossos currículos acadêmicos – de estudantes ou docentes – e que o fracasso pode revelar-se também como lugar de aprendizado. III. Queria aprofundar-me no tema da intensificação da co-presença para a ativação de uma ação comum, situada, que se permita devir desde a incerteza e a improvisação. Temos que aceitar e aprender a trabalhar com a diversidade que nos constitui. Diversidade que nos faz pensar e atuar a partir de lugares específicos, que nos estremecem e não são iguais. Não há ninguém que se 313


estremeça com o mesmo. Como, então, ativar relacionalidades constitutivas que fortaleçam nossa ação comum desde a aceitação de um multiespecismo vital? A crença tradicional das elites na inferioridade da inteligência do povo ou das massas está em crise e é evidente. Um passeio pelas ruas de Santiago, pelas veredas próximas à atual Plaza de la Dignidad, evidencia a rotunda sabedoria de um povo e uma massa organizada na exigência de uma vida digna, de uma justiça multiespécies. Como ativar esses saberes em vínculo com as práticas docentes sem dogmáticas idealizações? IV. Especulo uma resposta a partir do que discute Donna Haraway especificamente quando insiste na simpoiesis, na ideia de um pensamento tentacular, que se gera-com. Simpoiesis significa “gerar-com”: “nada se faz a si mesmo, nada é realmente autopoético ou auto-organizado. Como diz o jogo de computador iñupiat, os terráqueos nunca estão sós. Essa é a implicação radical da simpoiesis. Simpoiesis é uma palavra apropriada para os sistemas históricos complexos, dinâmicos, receptivos, situados. É uma palavra para configurar mundos de maneira conjunta, em companhia. A simpoiesis abarca a autopoiesis, desdobrando-a e estendendo-a de maneira generativa” (Haraway, 2019: 99). Então, seria o caso de atrever-se a entrar em relação com outros saberes, de implicar-se em diálogos de aprendizagem, desde o estabelecimento de “[...] intimidade entre desconhecidos” (Lynn Margulis, em Haraway, 2019: 101), de uma forma recíproca e estável, em partes iguais, que não se traduza maniqueistamente como sinônimo de aproveitador. Proposta que se pode tecer com a perspectiva debatida por Silvia Rivera Cusicanqui, que nos convida a reconhecer, viver e acionar o ch’ixi, ou seja, permitir a convivência não subordinada de diversas epistemes – ela refere-se principalmente à europeia e à índia –, não buscando superar as contradições, mas, sim, modos de conviver com elas e habitá-las, criando “condições de pleno respeito à pessoa individual, sem por isso debilitar ou minguar a força do comum” (2018: 151). Meta que abarca também a dimensão estética, de maneira muito prática, e onde também seria importante incorporar “as vozes normalmente dissidentes das mulheres e lxs niñxs [...]” (2018: 151), sem "subalternizá-lxs" (2018: 152). Essas questões todas que podem não só suceder no plano do pensamento e da ação teórica, mas também no plano da ação prática, criativa, cênica. Eminentemente corporal. E relacional. V. Cansados da sociedade do menosprezo, do “é o que há”, milhões de pessoas se organizam em diversos lugares do globo para exigir e dar-se o mundo 314


que os corpos necessitam já não para sobreviver, mas para viver. Enquanto termino de escrever esse texto, me inclino a pensar que é necessário que nossas comunidades de aprendizagem respirem e, nesse respirar, tomem fôlego junto com esses movimentos e propostas a fim de ativar-se como comunidades vivas em vínculos-com. Acontece que não esqueço uma pergunta escrita nos muros da cidade e que agora não faço mais que enunciar: “Como a arte se responsabiliza por nossos mortos?” Por fim, persevero numa potência: insistir na ternura. Porque não tem havido nem haverá paz.

REFERÊNCIAS HARAWAY, Donna. Seguir con el Problema. Generar Parentesco en el Chthuluceno, Consonni: Bilbao, 2019. MBEMBE, Achille. Necropolítica, Melusina: España, 2011. RIVERA CUSICANQUI, Silvia. Un Mundo Chi’xi es Posible. Ensayos Desde un Presente en Crisis, Tinta Limón: Buenos Aires, 2018.

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EVENTOS ESPECIAIS

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SEMINÁRIO PERSPECTIVAS ANTICOLONIAIS CURADORIA Andreia Duarte, Christine Greiner e José Fernando Peixoto de Azevedo A proposta inicial deste seminário é instaurar alguns encontros entre pesquisadores que têm refletido sobre o processo de descolonização (ou decolonização). Cada qual a seu modo tem enfrentado os traumas, os silenciamentos, a pluralidade de mundos, a singularidade dos corpos. A ideia é provocar os atravessamentos, a possibilidade de conversar, de escutar.

ENSAIOS ANTICOLONIAIS ESTUDOS COMPARTILHADOS 2 de março, segunda, das 14h às 20h Goethe Institut Andréia Duarte, Christine Greiner e José Fernando Peixoto de Azevedo, curadores do Seminário Perspectivas Anticoloniais, realizam neste encontro uma conversa aberta sobre questões que permeiam suas pesquisas e que também atravessam esta curadoria.

ENCONTROS PERSPECTIVAS ANTICOLONIAIS Sesc Avenida Paulista Partindo da pergunta, “O que ainda podemos imaginar juntos?”, os debates reúnem pesquisadores, artistas e ativistas que atuam em áreas e contextos culturais distintos.

MESA 1 DO TEMPO 6 de março, sexta-feira, das 10h às 13h COM Ailton Krenak e Paulo Arantes

MESA 2 DAS AÇÕES 6 de março, sexta-feira, das 14h às 17h COM Grace Passô, Paula Gonzalez e Eleonora Fabião

MESA 3 PASSADO: PERMANÊNCIA E RUPTURA 7 de março, sábado, das 10h às 13h COM Peter Pál Pelbart e Luiz Felipe de Alencastro

MESA 4 DO COMUM 7 de março, sábado, das 14h às 17h COM Jean Tible e Ana Kieffer

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HOMENAGEM A FRANCISCO MEDEIROS 9 de março, das 13h30 às 15h30 Itaú Cultural - Sala Multiuso

O diretor de teatro Francisco Medeiros, morto em outubro de 2019, é homenageado neste encontro, que conta com depoimentos, leituras de peças e compartilhamento de memórias. ORGANIZAÇÃO Christine Greiner, Plínio Soares, José Rubens Siqueira e Lucienne Guedes Fahrer CONVIDADOS Ary França, Aimar Labaki, Bel Kowarick, Dinah Feldman, Dr. Morris, Elias Andreato, Eloisa Elena, Gabriela Rabelo, José Rubens Siqueira, Luciano Gatti, Lucienne Guedes Fahrer, Marcello Airoldi, Márcia Abujamra, Marcos Damigo, Marichilene Artisevskis, Plínio Soares, Tânia Bondezan e Tereza Menezes

O ESPECTADOR E A LEITURA DA CENA 11 de março, quarta-feira, das 17h às 19h Itaú Cultural - Sala Vermelha

De que modo elaborar políticas públicas e modos de operar que contribuam para que o espectador construa uma relação fértil com o espetáculo? Como pensar hoje o diálogo não sobre a cena, mas com a cena? A partir das tentativas de resposta a essas questões, o ator, diretor e cenógrafo francês Thomas Jolly, diretor do Centro Dramático Nacional Le Quai em Angers, e Flávio Desgranges, diretor do grupo INERTE e pesquisador das relações entre o espectador e a cena, expõem seus pensamentos acerca do tema e respondem a perguntas. COM Thomas Jolly e Flávio Desgranges COORDENAÇÃO Maria Lúcia Pupo

FISSURAS RÍTMICAS POR EMILY BEANEY + LOWRI EVANS 15 de março, domingo, das 10h às 13h Projeto Marieta

Inspirada no livro Invisible Woman (Mulheres Invisíveis), de Caroline Criado-Perez, a residência experimental, uma parceria com o British Council e Creative Scotland, reúne artistas brasileiras e britânicas numa oficina criativa. Explorando ideias a respeito da falta de dados sobre gêneros e de como o viés de gênero afeta a vida de performers, as participantes farão esculturas vestíveis, movimentos rítmicos e performances improvisadas. 319


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MINIBIOGRAFIAS

EQUIPE EDITORIAL Antonio Araujo é idealizador e diretor artístico da MITsp. É diretor artístico do Teatro da Vertigem e professor no Departamento de Artes Cênicas e no Programa de Pós-Graduação (PPGAC) da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). Encenou os seguintes espetáculos: O Paraíso Perdido (1992); O Livro de Jó (1995); Apocalipse 1,11 (2000); BR-3 (2006); História de Amor: Últimos Capítulos (2007); a ópera Dido e Enéas (2008); Bom Retiro 958 Metros (2012), a ópera Orfeu e Eurídice (2012), Dire Ce Qu’on ne Pense pas Dans des Langues Qu’on ne Parle Pas (2014); Patronato 999 Metros (2015), entre outros. Ganhador do prêmio Golden Medal (Medalha de Ouro) de Melhor Espetáculo pela peça BR-3, na Quadrienal de Praga 2011. Foi cocurador do Próximo Ato – Encontro Internacional de Teatro Contemporâneo; do Rumos Teatro e do Encontro Mundial de Artes Cênicas (ECUM). Daniele Avila Small é doutora em Artes Cênicas pela UNIRIO, autora do livro O Crítico Ignorante – Uma Negociação Teórica Meio Complicada (Editora 7Letras). Foi diretora artística do Teatro Gláucio Gill em 2011 e 2012, com Felipe Vidal na Ocupação Complexo Duplo, projeto indicado aos prêmios Shell e APTR. Em 2017, dirigiu Há Mais Futuro que Passado – Um Documentário de Ficção (Editora JavalI). É idealizadora e editora da revista Questão de Crítica, presidente da seção brasileira da Associação Internacional de Críticos de Teatro (IACTAICT) e editora da seção brasileira do The Theatre Times. É curadora de Olhares Críticos, eixo reflexivo da MITsp (2018 a 2020). Em 2018, integrou as equipes de curadoria do FIT BH 2018 – Festival Internacional de Teatro de Palco & Rua de Belo Horizonte, da 6ª edição da Janela de Dramaturgia (CCBB-BH) e da seleção local do FIAC – Festival Internacional de Artes Cênicas da Bahia. É uma das idealizadoras e curadoras da Complexo Sul – Plataforma de Intercâmbio Internacional. Guilherme Marques é idealizador e diretor de produção da MITsp. Produtor, gestor cultural e ator, é diretor-geral e idealizador do Centro Internacional de Teatro Ecum – CIT Ecum, coordenador-geral do Encontro Mundial das Artes Cênicas (ECUM) e do Centro Internacional de Pesquisa sobre a Formação em Artes Cênicas. Fez coordenação, produção e/ou consultoria artística para diversos festivais artísticos nacionais e internacionais, entre eles: Festival Internacional de Teatro Palco & Rua de Belo

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Horizonte (FIT/BH); Festival Internacional de Dança de Belo Horizonte (FID); 1ª Bienal Internacional de Grafite de Belo Horizonte; Festival de Arte Negra de Belo Horizonte (FAN); Festival Internacional de Teatro do Mercosul (Argentina); Festival Internacional de Teatro de Caracas (Venezuela); Inverno Cultural de São João del Rei; Projeto Imagem dos Povos e Encontro de Artes Cênicas em Araxá. Luciana Eastwood Romagnolli é jornalista, pesquisadora, crítica e curadora de teatro. Especialista em Literatura Dramática e Teatro (UTFPR), mestre em Artes (EBA-UFMG) e doutora em Artes Cênicas (ECAUSP). Fundadora do site Horizonte da Cena (BH). Foi repórter nos jornais O Tempo (MG) e Gazeta do Povo (PR). Fez a curadoria da ocupação Conexões na FunarteMG (Belo Horizonte, 2015); da 1ª Mostra DocumentaCena e do Idiomas – Fórum IberoAmericano de Crítica de Teatro (Curitiba, 2016); do BQ em Cena (Brusque, 2018); do Festival Internacional de Teatro Palco e Rua de Belo Horizonte – FITBH 2018; e do Festival Toni Cunha (Itajaí, 2019). É coordenadora de crítica do Janela de Dramaturgia desde 2012 e curadora do eixo reflexivo Olhares Críticos da MITsp desde 2017. Maria Fernanda Vomero é performer, jornalista e doutoranda em Pedagogia do Teatro pela Universidade de São Paulo (USP), com uma investigação sobre teatro, resistência política e direitos humanos na América Latina. Desde 2014, atua como provocadora cênica na Companhia de Teatro Heliópolis, em São Paulo. É autora e intérprete de conferências performáticas, tais como Poder da Palavra, Palavra de Poder (2017), Quero ser sua presidenta (2018) e Eres polvo y en polvo te convertirás – refexiones sobre derechos humanos en las Américas (2018), criada e apresentada exclusivamente no Chile. Entre agosto e novembro de 2018, participou de uma residência artística em performance com o Grupo Teatral Deciertopicante, de Tacna (Peru), e apoio do Iberescena – Fundo de Ajuda para as Artes Cênicas Ibero-Americanas. É curadora das Ações Pedagógicas da MITsp desde 2015; na primeira edição da mostra, foi pesquisadoraobservadora convidada para acompanhar o intercâmbio artístico com a companhia britânica Complicité. Maria Luísa Barsanelli é jornalista, formada pela Universidade de Brasília, e tem especialização em francês e cultura francesa pela Université Lumière Lyon II (França). Trabalhou em veículos como Correio Braziliense, G1 e Folha de S.Paulo. Na Folha, foi repórter


de teatro do Guia Folha e do caderno Ilustrada, onde também atuou como editora-assistente e editou a coluna Dramáticas, com conteúdo exclusivo sobre a cena teatral. É jurada de prêmios teatrais, como Shell-SP e Reverência, e responsável pela edição e redação do conteúdo editorial da MITsp 2020. Mariana Marinho é atriz, dramaturga e jornalista. Bacharel em Artes Cênicas pela Unesp e em Jornalismo pela Cásper Líbero. Integrou a 18ª turma do Núcleo Experimental de Artes Cênicas do SESI-SP e a 9ª turma do Núcleo de Dramaturgia SESI-British Council. Atuou recentemente nas peças Roda Morta (2018) e 11 Selvagens (2017) e foi assistente de direção dos cineastas e diretores Jean-Claude Bernardet e Rubens Rewald em A Procura de Emprego, texto de Michel Vinaver. Foi repórter do núcleo de cultura da Folha de S.Paulo e da Revista Cult. Redigiu e editou o catálogo da Bienal Sesc de Dança de 2019. É assistente de edição e redação do conteúdo editorial da MITsp 2020. Sílvia Fernandes é professora titular sênior do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da ECA-USP. Autora de diversos livros e artigos, suas últimas publicações são Teatro da Vertigem (organização; Cobogó) e O Teatro como Experiência Pública (organizado com Júlia Guimarães e Óscar Cornago; Hucitec). É pesquisadora do CNPq. CURADORIA DA MITbr – PLATAFORMA BRASIL Alejandro Ahmed é coreógrafo, diretor artístico e bailarino do Grupo Cena 11, junto ao qual promoveu o desenvolvimento de uma técnica que objetiva produzir uma dança em função do corpo. Essa técnica foi nomeada de percepção física e é um dos pontos que estrutura o seu trabalho. Suas novas proposições teórico-práticas estabelecem a tríade correlacional Emergência-Coerência-Ritual como guia de suas ações. Francis Wilker é artista da cena, pesquisador, curador e professor no curso de Teatro do Instituto de Cultura e Arte da Universidade Federal do Ceará. É um dos fundadores do grupo brasiliense Teatro do Concreto, onde encenou Diário do Maldito (2006), Entrepartidas (2010) e Festa de Inauguração (2019). Como curador, colaborou com os festivais Cena Contemporânea (DF); FIAC-BA (BA), Festival Nordestino de Teatro de Guaramiranga (CE), entre outros. Mestre e doutorando em Artes Cênicas pela ECA-USP. É autor do livro

Encenação no Espaço Urbano (Editora Horizonte) e tem artigos publicados em sites e revistas dedicados ao pensamento sobre o teatro brasileiro contemporâneo. Grace Passô é atriz com trabalhos autorais realizados em parceria com artistas e grupos teatrais. Possui uma série de prêmios e indicações no teatro e cinema, dentre eles Leda Maria Martins, Shell SP e RJ, APCA, Medalha da Inconfidência e Candango. Recebeu o prêmio de melhor atriz no Festival de Cinema de Turim, na Itália. No Brasil, seus textos teatrais estão publicados pelas editoras Cobogó e Javali e já foram traduzidos para o espanhol, polonês, francês, inglês e mandarim. COORDENAÇÃO DA MITsp André Boll é iluminador desde 1990, assinou mais de 200 projetos para teatro, música, dança e exposições. Como diretor técnico, atua em festivais nacionais e internacionais (Festival Contemporâneo de Dança, Panorama SESI de Dança, MITsp) e em turnês de companhias estrangeiras no Brasil (Jo Kanamori – Japão; Trisha Brown e Yvone Rainer – EUA; Xavier Leroy, Rodrigo Garcia – França; Robert Lepage – Canadá; Angélica Liddell – Espanha). Ministra cursos e palestras sobre iluminação a convite de instituições públicas e privadas. Andreia Duarte é atriz, ativista, curadora, diretora e educadora em teatro. No campo acadêmico é doutoranda pela ECA-USP, sobre o teatro e os povos indígenas em uma perspectiva descolonizadora. Como artista participou em diversos Festivais no Brasil e no exterior. É idealizadora e atriz do solo Gavião de Duas Cabeças. Coordenadora do Eixo Reflexivo e Pedagógico da MITsp. Diretora e curadora do TePI - Teatro e os Povos Indígenas, encontros de resistência. Carminha Fávero Góngora é formada em Teatro pela Fundação das Artes de São Caetano do Sul. Colaborou na edição de Ator e Método, de Eugênio Kusnet, publicado pelo SNT. De 1986 a 2010 foi coordenadora de Programação Cultural do Goethe-Institut São Paulo, com intercâmbio nas áreas de teatro, cinema, música, dança, artes visuais e pensamentos. Colaborou com a Interior Produções Artísticas/prod.art.br. Desde 2015 é coordenadora de relações públicas da MITsp. José Augusto Vieira de Aquino é sócio e titular do escritório Vieira de Aquino e Degani Sociedade de

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MINIBIOGRAFIAS

Advogados. É advogado militante desde 2004 e atua na área do Terceiro Setor e da Produção Cultural há vinte anos. Embora atue em todas as áreas do Direito, detém o título de especialista em Direito Empresarial, obtido na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. É responsável pela assessoria jurídica da MITsp desde a sua segunda edição. Márcia Marques é formada em Comunicação Social pela FAAP e diretora da Canal Aberto, empresa voltada a projetos na área cultural em suas diversas vertentes. Além de trabalhar com companhias e artistas importantes do cenário nacional e internacional, coordena a comunicação geral da MITsp e tem como colaboradoras diretas na assessoria de imprensa dessa edição Daniele Valério, Flávia Fontes e Kelly Santos. Marisa Riccitelli Sant’ana é produtora cultural, formada em Ciências Sociais e Economia pela PUC-SP. Sócia da empresa Santa Paciência Produções Artísticas e Culturais e membro fundador do Coletivo Phila7. Participa da MITsp desde 2016, primeiro como produtora e, desde 2017, como coordenadora da logística. Natália Machiaveli é multiartista, formada em audiovisual pela academia de arte Gerrit Rietveld, de Amsterdam. Atua no teatro, cinema e na música. Desde 2013 trabalha na MITsp como relações internacionais e na criação dos vídeos promocionais da Mostra. Patrícia Perez é formada em Administração de Empresas, diretora associada da Olhares Instituto Cultural e atua como coordenadora administrativa e financeira da MITsp, desde a terceira edição, e no TePI – Teatro e Povos Indígenas desde 2018, em que realiza o acompanhamento e a finalização das prestações de contas. Contribui também com a elaboração e o cadastro de projetos nas leis de incentivo à cultura, municipais, estaduais e federais. Rachel Brumana é produtora cultural, formada em Artes Cênicas pela Unicamp e em Língua e Literatura Italiana pela Università degli Studi de Florença. Realiza a concepção, curadoria e produção de projetos culturais, mostras, espetáculos teatrais e musicais, colaborando com diversas companhias, instituições e festivais. Coordena a produção executiva da MITsp desde 2016. OLHARES CRÍTICOS Andréia Pires é mestre em Artes pela Universidade

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Federal do Ceará, graduada em Artes Cênicas pelo IFCE e formada pelo Curso Técnico em Dança do Centro Cultural Dragão do Mar. Atuou como professora do Curso Técnico em Dança de 2014 a 2019 e atualmente é professora dos cursos de Licenciatura e Bacharelado em Dança da UFC. Pesquisa dramaturgias expandidas na relação com o corpo, se interessa por ações performáticas para reinventar o mundo e integra a Inquieta Cia. Carla Akotirene é mestra e doutoranda em Estudos sobre Mulheres, Gênero e Feminismo pela Universidade Federal da Bahia. Coordena a Opará Saberes, curso de extensão que prepara candidaturas negras ao ingresso no mestrado e doutorado em universidades públicas. É assistente social, em Salvador, onde atende mulheres vítimas de violências. Autora do livro O que É Interseccionalidade? (Coleção Feminismos Plurais) e Ò Paí Prezada: Racismo e Sexismo Institucionais Tomando Bonde nas Penitenciárias Femininas (Pólen). Celso Curi é produtor, administrador cultural, tradutor e jornalista. Desde 1968 atua na área cultural, é diretor da OFF Produções Culturais, criador e editor do Guia OFF de Teatro SP e RJ, presidente da APCA - Associação Paulista de Críticos de Arte e curador residente do FIT/PE. Clarice Lima é cearense. Coreógrafa e performer, estudou no Colégio de Dança do Ceará e se formou em dança no Modern Theater Dance/AHK em Amsterdam. Seus trabalhos transitam entre as linguagens da dança, performance e artes visuais. Foi cocriadora da residência artística Lote e é diretora da não-companhia de dança Clarice Lima & gente fina, elegante e sincera. Participou de mostras e festivais nacionais e internacionais. Hoje vive e trabalha em São Paulo. Clóvis Domingos é artista, pesquisador cênico e crítico no site Horizonte da Cena. Doutor em Artes pela Escola de Belas Artes da UFMG. Atualmente desenvolve estágio Pós-Doutoral em Artes Cênicas no Programa de PósGraduação em Artes Cênicas da UFOP, com pesquisa sobre crítica e cena contemporânea. Suas áreas de interesse são: as relações entre cena e processos de subjetivação, intervenção artística em espaços urbanos e arte da performance. Daniel Toledo é dramaturgo, pesquisador, professor e crítico em artes cênicas, performance e artes visuais. Mestre em Sociologia da Arte pela UFMG, desenvolve


pesquisa sobre site-specificity, descolonização e crítica da modernidade. É fundador do coletivo T.A.Z., integrante do coletivo Piolho Nababo e membroassociado do JA.CA – Centro de Arte e Tecnologia. Autor das peças Nossa Senhora (Ed. Javali), Fábrica de Nuvens e Clínica do Sono (Ed. Perspectiva), entre outros trabalhos. Eduardo Dias de Souza Ferreira é membro do Ministério Público do Estado de São Paulo. Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e doutorado em Direito pela mesma instituição, onde é professor na Graduação e na Pós Graduação na área de Direitos Humanos com ênfase em Infância e Juventude e chefe do Departamento de Direitos Difusos e Coletivos. É também professor da ESMP. Eduardo Faria Santos é advogado e consultor em Diversidade & Inclusão na Business For People. Mestre em Desenvolvimento - Dir. Humanos, Gênero e Conflito: Perspectivas de Justiça Social pelo International Institute of Social Studies (ISS) de Haia, na Holanda. Membro do coletivo A Revolta da Lâmpada, grupo interseccional que usa a arte como ferramenta de mobilização aliando ativistas de diferentes causas, tais como: mulheres, LGBTQIA+, pessoas negras, pessoas com deficiências, imigrantes, refugiados e demais agentes pertencentes a grupos minorizados. Membro do Conselho Diretor do coletivo Caneca na Mesa, grupo formado por profissionais LGBTQIA+ que querem atuar como agente de mudança e construir ambientes de trabalho mais inclusivos. Integrante da Frente Parlamentar de Defesa dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+ da ALESP. Eduardo Giannetti é graduado em Economia e em Ciências Sociais pela USP e é PhD em Economia pela Universidade de Cambridge, na Inglaterra. Lecionou na Universidade de Cambridge e na FEA-USP. Foi também professor do INSPER em São Paulo. Ganhador de dois Prêmios Jabuti com os livros Vícios Privados, Benefícios Públicos? e As Partes & O Todo. Autor de diversos livros, como O Auto-Engano, Felicidade, O Mercado das Crenças, O Valor do Amanhã e Trópicos Utópicos. Eliane Robert Moraes é professora de Literatura Brasileira na USP e pesquisadora do CNPq. Entre suas publicações destacam-se diversos ensaios sobre o imaginário erótico nas artes e na literatura, e a tradução da História do Olho, de Georges Bataille. Organizou a Antologia da Poesia Erótica Brasileira, também publicada em Portugal, e a coletânea

O Corpo Descoberto – Contos Eróticos Brasileiros. Fabio Cypriano é crítico de arte e professor na PUCSP, onde coordena o curso de Jornalismo. Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, tem pós-doutorado na USP com o tema A Elite Paulista e a Bienal de SP. É autor de Pina Bausch (Edições SESI/SESC), entre outros. Felipe Rocha é formado em Artes Cênicas pela Uni-Rio e fundador dos Foguetes Maravilha, onde atua como autor, ator e diretor. Vencedor dos prêmios Shell, Questão de Crítica e APTR de melhor dramaturgia. Como ator, trabalhou com diretores como Enrique Diaz, Christiane Jatahy, Felipe Hirsch, Tiago Rodrigues, Aderbal Freire-Filho, Antônio Abujamra, Fernando Meirelles, Tata Amaral e Laís Bodanzky. Foi membro da Intrépida Trupe e da banda Brasov. George Matsas é livre-docente pelo Instituto de Matemática da Unicamp, doutor pelo Instituto de Física Teórica da Unesp e bacharel pelo Instituto de Física da USP. Atualmente é professor titular do Instituto de Física Teórica da Unesp e membro titular da Academia de Ciências do Estado de São Paulo. Vários trabalhos seus foram destacados em fóruns como Science, Nature e Physical Review Focus. Em 2008 foi reconhecido pela American Physical Society como Outstanding Referee. Grazi Medrado é diretora criativa, ativista, atriz e produtora cultural. Realiza trabalhos com diversos artistas, grupos e coletivos de teatro, música, dança, arte urbana, audiovisual e performance. Integrou a curadoria do FANBH (2019), a comissão de seleção de espetáculos locais do FIT (2018) e participou do júri do Festival ¼ de Cena de Brasília (2017). Assina a criação, roteiro e direção das aberturas das Mostras de Cinema de Tiradentes, CineBH e CineOP desde 2016, e produz o espetáculo violento. Guilherme Diniz é ator, pesquisador e crítico teatral. Licenciado em Teatro pela UFMG e mestrando em Literatura Brasileira pela mesma instituição. Possui graduação-sanduíche pela Universidade de Coimbra (Portugal), na qual estudou as Literaturas e Dramaturgias Africanas de Língua Portuguesa, bem como Análise e Crítica do Espetáculo pelo programa Abdias Nascimento/CAPES. Atua, como crítico, no site Horizonte da Cena (BH). Investiga as teatralidades negras e suas dramaturgias.

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MINIBIOGRAFIAS

Gyl Giffony é artista da Inquieta Cia. e membro do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult). Doutorando em Artes da Cena pela Unicamp, onde desenvolve a pesquisa O LUGAR INVOCADO: Teatro, espaço e memória da violência política na América Latina contemporânea. Tem atuado nas áreas do teatro, performance, memória social, gestão, produção e direitos culturais. Ivone Gebara é filósofa e teóloga ecofeminista. Trabalhou como professora por mais de 30 anos no Nordeste do Brasil. Segue dando palestras e minicursos para diferentes movimentos sociais e populares. Tem vários artigos e livros publicados em diversas línguas. Jaqueline Elesbão é mulher, negra, mãe, performer, produtora cultural, gestora da Casa Charriot (um espaço cultural alternativo), idealizadora e fundadora do coletivo Ponto ART, coreógrafa e pesquisadora sobre corpos resilientes. Janaina Leite é atriz, diretora e dramaturgista. É uma das fundadoras do premiado Grupo XIX de Teatro e doutoranda na ECA-USP. Em 2008, deu início a sua pesquisa sobre o documentário e o uso de material autobiográfico em cena, resultando em diversos espetáculos e no livro Autoescrituras Performativas: do Diário à Cena (Editora Perspectiva). Em 2019, estreou o espetáculo Stabat Mater, contemplado pelo Edital de Dramaturgia do CCSP. Jé Oliveira é ator, diretor e dramaturgo. É formado pela Escola Livre de Teatro de Santo André, onde também deu aulas, e está graduando-se em Ciências Sociais na USP. É um dos fundadores do Coletivo Negro, grupo que se debruça sobre questões raciais desde 2008. Concebeu, idealizou e é o diretor geral de Gota D“Água {PRETA}, obra que lhe rendeu a contemplação como melhor diretor de 2019 pelo APCA. É autor de diversas obras com destaque para Farinha com Açúcar ou Sobre a Sustança de Meninos e Homens, obra semifinalista do Prêmio Oceanos de literatura portuguesa em 2019. Kenarik Boujikian é especialista em direitos humanos. Foi desembargadora do TJSP (1989-2019), é cofundadora da associação Juízes para a Democracia, da ABJD e do grupo de estudos e trabalho Mulheres Encarceradas, membro do Conselho do Fundo Brasil de Direitos Humanos, da Ouvidoria da Defensoria Pública de São Paulo e da Rede Social de Justiça. Militante feminista

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e de direitos humanos, recebeu diversos prêmios e homenagens por sua atuação. Laís Machado é àlárìnjó, pesquisadora, crítica e produtora formada pela ETUFBA. É membro fundadora da ÀRÀKÁ – Plataforma de Criação em Arte e da Revista Barril, na qual atuou como crítica teatral e designer. Ex-Integrante do Teatro Base e idealizadora e coordenadora do Fórum Obìnrín – Mulheres Negras, Arte Contemporânea e América Latina, desenvolve estudos sobre transe e fluxo como meio de produção de presenças e um estudo decolonial da cena experimental. Luciane Ramos-Silva é artista da dança, antropóloga e mediadora cultural. É doutora em Artes da Cena e mestre em antropologia pela Unicamp. Tem especialização em diáspora africana pelo David C. Driskell Center for the Study of the African Diaspora. É gestora do Acervo África, espaço de pesquisa sobre cultura material africana e codirige a revista O Menelick2Ato. É membro da Anikaya Dance Theater, cia de dança baseada em Boston, nos EUA. Maria Homem é psicanalista, pesquisadora do Núcleo Diversitas (FFLCH-USP) e professora da FAAP. Tem pósgraduação em Psicanálise e Estética pela Universidade de Paris VIII/Collège International de Philosophie e Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Autora de Coisa de Menina?, No Limiar do Silêncio e da Letra, entre outros. Michele Bicca Rolim é jornalista, pesquisadora e crítica teatral, doutoranda em Artes Cênicas pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFRGS. Trabalha na imprensa cultural desde 2009 – foi setorista de artes cênicas do Jornal do Comércio de 2009 a 2017. É editora do site AGORA Crítica Teatral e autora do livro O que Pensam os Curadores de Artes Cênicas (editora Cobogó). Nathalia Catharina Alves Oliveira é doutoranda no Instituto de Artes da Unicamp e mestra em Teoria e Prática do Teatro pela ECA-USP. Tem graduação em dança, teatro e performance pela faculdade de Comunicação das Artes do Corpo/PUC-SP. É docente na Universidade Anhembi Morumbi nas faculdades de Teatro e Dança. Atua como dramaturga, bailarina, diretora e tradutora francês-português. Seus últimos solos foram Estudos Sobre um Estado de Exceção (2017), Anatomia da Melancolia (2015) e Frágil (2012).


Olivier Neveux é professor e pesquisador de História e de Estética do Teatro e também responsável pelo Setor Artes na Escola Normal Superior de Lyon, na França. Suas pesquisas têm se voltado para a multiplicação contemporânea de espetáculos engajados nos quais vigora o imperativo político. O slogan “Todo teatro é político” é o ponto de partida que lhe permite examinar essas manifestações, desafiadas a contribuir para o “viver juntos” e falar do mundo, ao mesmo tempo em que se implicam na realidade, a documentam e a criticam.

do Instituto de Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira (CAp-UERJ). Atua como crítico de teatro na Revista Questão de Crítica e escreve artigos e ensaios sobre teatro, literatura brasileira e literatura comparada.

Seu mais recente livro, Contre le Théâtre Politique (Contra o Teatro Político; La Fabrique) obteve ampla repercussão na França. Anteriormente, já havia publicado Politiques du Spectateur. Les Enjeux du Théâtre Politique Aujourd’hui (Políticas do Espectador; La Découverte) e Théâtres en Lutte. Le théâtre Militant en France de 1960 à nos jours (Teatros em Luta. O Teatro Militante na França de 1960 aos Dias de Hoje; La Découverte), além de uma diversidade de artigos em revistas especializadas.

Tchékhov e os Palcos Brasileiros (Ed. Perspectiva).

Patrick Pessoa é doutor em Filosofia pela UFRJ/ Universität Potsdam (Alemanha), professor associado do Departamento de Filosofia e do Programa de PósGraduação em Filosofia da UFF. É também dramaturgo, crítico teatral do Jornal O Globo e da Revista Questão de Crítica, jurado dos prêmios Shell-RJ e Questão de Crítica e editor da Revista Viso: Cadernos de Estética Aplicada. Pr. Alexandre Gonçalves é agente missionário voluntário na agência Youth With a Mission, trabalhando em favelas no Brasil e em comunidades eclesiais em Cuba. Pastor há 25 anos da Igreja de Deus, denominação pentecostal tradicional criada em 1886 na Carolina do Norte (EUA). Bacharel em Teologia pelo SEMISUD em Quito, Equador. Mestre em teologia pela FATEID, em Goiânia, policial rodoviário federal há 15 anos e diretor do sindicato dos policiais rodoviários federais de Santa Catarina. Priscila Piazentini Vieira é professora de História Contemporânea na Universidade Federal do Paraná. É licenciada, bacharel, mestre e doutora em História pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp. Publicou o livro A Coragem da Verdade e a Ética do Intelectual em Michel Foucault. Atualmente, desenvolve a pesquisa Michel Foucault e Donna Haraway: Diagnósticos e Transformações do Presente (1976-2016). Renan Ji é doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense e professor adjunto

Rodrigo Nascimento é crítico teatral do portal Cena Aberta, professor, educador popular e tradutor. Tem graduação em Letras pela Unicamp e doutorado em Literatura e Cultura Russa pela USP. Há anos dedica-se à pesquisa dos teatros russo e brasileiro. É autor de

Rodrigo Sérvulo da Cunha Vieira Rios é advogado, cientista social, educador, membro efetivo da Comissão de Direitos Humanos da OAB/SP, presidente do Conselho da Comunidade da Comarca de São Paulo e membro efetivo da Comissão Justiça e Paz de São Paulo. É também integrante e cofundador do COADE (Coletivo Advogados para Democracia) e integrante do CNPCT (Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura). Rosane Borges é jornalista, professora pesquisadora do Colabor da ECA-USP, integrante do CORE (Conselho Reiventando a Educação), autora de diversos livros entre eles: Espelho Infiel: O Negro no Jornalismo Brasileiro, Mídia e Racismo e Esboços de um Tempo Presente. É articulista da Carta Capital Digital e do site Jornalistas Livres. Soraya Portela é artista e educadora. Pesquisa modos colaborativos de gestão, criação e aprendizagem em dança a partir da infância e velhice. Faz a direção e curadoria dos projetos do Canteiro, plataforma de criação e articulação de projetos culturais em THE/PI, como TRISCA – Festival de Arte com Criança e Dança das Antigas, invenções artísticas-pedagógicas com a velhice. Integrou o Projeto Núcleo do Dirceu/Galpão do Dirceu, plataforma de pesquisa e criação em arte contemporânea, concebido por Marcelo Evelin. Tiago Rodrigues é ator, diretor e dramaturgo. Aborda o teatro como uma assembleia: um local de encontro e partilha de ideias. Notabilizou-se por espetáculos que trafegam entre a realidade e a fantasia, com grande sofisticação poética e de pensamento. Quando ainda era estudante, em 1997, trabalhou com o grupo tg STAN e, em 2003, cofundou a companhia Mundo Perfeito com Magda Bizarro, na qual criou e apresentou cerca de 30 espetáculos em mais de 20 países. Algumas das suas obras mais notáveis são By Heart, Antônio e Cleópatra,

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MINIBIOGRAFIAS

Bovary, Como Ela Morre e Sopro, que estreou no Festival d’Avignon de 2017. Em 2018, ganhou o XV Prémio Europa Realidades Teatrais. No mesmo ano, foi distinguido pelo governo francês com o título Chevalier de l’Ordre des Arts et des Lettres (Cavaleiro da Ordem das Artes e Letras), e recentemente recebeu o Prêmio Pessoa 2019. Desde 2015, é o diretor artístico do Teatro Nacional D. Maria II, um dos principais teatros da Europa.

áreas da arte. Entre seus trabalhos como atriz estão a minissérie Dois Irmãos (TV Globo), com direção de Luiz Fernando Carvalho, o filme Não Devore Meu Coração, dirigido por Felipe Bragança, e a peça Macunaíma - Uma Rapsódia Musical, com encenação de Bia Lessa. AÇÕES PEDAGÓGICAS

Vera Iaconelli é psicanalista, mestre e doutora em

Amara Moira é travesti, feminista, doutora em teoria e crítica literária pela Unicamp (com tese sobre as

Psicologia pela USP, membro do Fórum do Campo Lacaniano, membro do Instituto Sedes Sapientiae, diretora do Instituto Gerar, autora do livro Mal-Estar na Maternidade (Annnablume) e colunista do jornal Folha de São Paulo.

indeterminações de sentido em Ulysses, de James Joyce) e autora do livro autobiográfico E Se Eu Fosse Puta (hoo editora) e do monólogo em pajubá Neca, publicado na antologia A Resistência dos Vagalumes (Nós).

Wellington Júnior é bacharel em Estética e Teoria do Teatro pela Unirio, professor de teatro, crítico e encenador. Organizador do livro Memórias da Cena Pernambucana (Vol.1) e idealizador e organizador do Seminário Internacional de Crítica Teatral de Recife (ao lado da Renascer Produções Culturais). Ganhou o prêmio Minidrama da SP Escola de Teatro em 2010. Dirigiu os espetáculos The Célio Cruz Show, 4.48 Psicose e A Morta.

Ave Terrena Alves é dramaturga, diretora, atriz e poeta. Professora da Escola Livre de Teatro e integrante do grupo Laboratório de Técnica Dramática, também participa de projetos independentes com outros grupos. Entre seus trabalhos recentes estão a peça As 3 Uiaras de SP City e o livro de poesia Segunda Queda, que gerou o espetáculo homônimo. Para 2020, prepara a estreia dos espetáculos a verdade atirada em seu rosto como 1 pano sujo, que escreveu, e Silêncios e Atos, que dirige.

Vladimir Safatle é filósofo, escritor e músico brasileiro nascido no Chile. É professor titular da cadeira de Teoria das Ciências Humanas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). Notabilizou-se ao grande público sobretudo por sua atividade como colunista no jornal Folha de S. Paulo. Sua produção intelectual centra-se nas áreas de epistemologia da psicanálise, psicologia, pensamento hegeliano na filosofia do século XX e filosofia da música. Welington Andrade é diretor da Faculdade Cásper Líbero, professor do curso de jornalismo da mesma instituição desde 1997 e crítico de teatro da revista Cult. É graduado em Artes Cênicas pela Uni-Rio e em Letras pela USP, onde também obteve os títulos de mestre e doutor em Literatura Brasileira, na área de Dramaturgia. É autor de um dos capítulos da História do Teatro Brasileiro: do Modernismo às Tendências Contemporâneas (Editora Perspectiva/Edições Sesc-SP). Zahy Guajajara é atriz e ativista pelas causas indígenas. Nascida na Aldeia Colônia (Maranhão), dos povos Tenetehara-Guajajara, fala tupi-guarani, português e um pouco de inglês. É autodidata e transita por diversas

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Caz Ångela Apolinário Rodrigues é bixa travesti, póétà, música, plásticas, performer, cantora, atriz, manequim e ventrelouca. Estudante do Bacharelado Interdisciplinar em Artes da Universidade Federal do Sul da Bahia e integrante do ILUMILUTAS, grupo de estudos em iluminação cênica e processos sociais. Danna Lisboa é compositora, cantora, dançarina e atriz. Lançou os EPs IDEAIS e REAL, além dos clipes Quebradeira, com Gloria Groove, Cidade Neon, Se Soul e Trinks. Atriz da peça As 3 Uiaras de SP City. Premiada melhor atriz pelo curta Cidade Neon no Festival Film Works. Indicada como melhor atuação pelo site Palco Paulistano 2019. Dodi Leal é travesti educadora e pesquisadora em Artes Cênicas e Performance. Professora adjunta do Centro de Formação em Artes e do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências da UFSB. Doutora em Psicologia Social pela USP, com estágio doutoral na Universidade de Coimbra, concentração na área de Estudos Teatrais e Performativos. Licenciada em Artes Cênicas pela ECAUSP. Habilitada em Cinema e Vídeo no Baccalauréat Interdisciplinaire en Arts da UQAC-Canadá.


Eduardo Chatagnier Perez é mestrando em Audiovisual pela USP, é formado pela mesma instituição com ênfase nas áreas de montagem e roteiro. Montador de diversos longas-metragens premiados nacional e internacionalmente, entre eles: Casa (2019), O Chalé É uma Ilha Batida de Vento e Chuva (2018) e Joaquim (2017). Dirigiu o curta-metragem Café (2011), escreveu a peça Além de Cada Solidão e dirigiu La Petit Mort. Leciona na Academia Internacional de Cinema.

Portuguesa. O seu trabalho é apresentado pela Europa, América do Norte e América do Sul. Entre 1990 e 2019, foi o diretor artístico do Atelier RE.AL. Nos anos 1990 desenvolveu e sistematizou a pesquisa sobre improvisação e composição sob a designação de Composição em Tempo Real que atravessa toda a sua atividade.

Erica Malunguinho é deputada estadual da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, mestra pelo Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da Universidade de São Paulo e graduada em Pedagogia pelo Instituto Superior de Educação de São Paulo. É educadora, idealizadora e gestora da Aparelha Luzia, centro cultural e espaço de resistência preta no centro da capital paulista.

performativas. Sua arte é dirigida por seus interesses em experiência incorporada, consciência e elevação e tem sido executada e exibida internacionalmente desde 2001.

Fany Magalhães é artista e pesquisadora nômade, experimentando deslocamentos geográficos e entre linguagens artísticas como elementos de sua ética e estética. Buscando processos criativos compartilhados, tem se dedicado à poéticas urbanas e sua interlocução com corpas femininas - em uma perspectiva expandida e interseccional, no enfrentamento do patriarcado e suas opressões derivadas. É mestre em teatro e, temporariamente, professora na Universidade Federal do Amapá. Gisèle Vienne é artista, coreógrafa e diretora francoaustríaca. Após estudar música, filosofia e marionetes, dirigiu e coreografou diversos espetáculos, entre eles I Apologize (2004), Kindertotenlieder (2007), Babaca ( Jerk, 2008), This Is How You Will Disappear (2010), The Pyre (2013), The Ventriloquists Convention (2015) e Multidão (Crowd, 2017). Ela também exibe regularmente seu trabalho fotográfico. Jackie Chean é trans, cantor, MC de rap, estudante de Licenciatura em Artes e Som, Imagem e Movimento pela UFSB e ogã de Umbanda. Produziu (letra, beat e produção sonora) e lançou o seu primeiro EP, Depoimentos. Garoto propaganda do Sarará Trans, se apresenta em todas edições na Abayomi Casa de Cultura, em Porto Seguro. João Fiadeiro é performer, coreógrafo e pesquisador. Integra a geração de coreógrafos que emergiu no final dos anos 1980 e deu origem à chamada Nova Dança

Julie Beauvais é uma artista suíça cujo trabalho varia de ópera, teatro e obras coreográficas, a intervenções arquitetônicas, trabalhos em vídeo e instalações

Khalil Piloto é monitor de turismo de aventura, pedagogo, mestrando em Ensino e Relações ÉtnicoRaciais na UFSB, integrante do ILUMINUTAS (grupo de Estudos Iluminação Cênica e Processos Sociais), produtor do Gota Trava e idealizador e produtor do Sarará Trans. Lia García [La Novia Sirena] é originária da Cidade do México. Artivista trans* e poeta. Através da performance, explora questões como memória, dor coletiva e afetos como aposta política. Seu trabalho é realizado em espaços públicos e educativos da cidade, conectando pedagogia e performance, além de narrativa e corporalidade dissidente. Ela busca que, com sua arte, surjam novas formas de aproximação da vida de pessoas trans* por meio da escuta radical e da ternura. Lisandro Rodriguez é artista multidisciplinar e diretor do Estudio Los Vidrios, seu espaço de pesquisa e produção cênica. Suas últimas criações são Dios, Duros, Fassbinder, todo es demasiado e Abnegación 3. Coordena laboratórios de direção, encenação, atuação e escrita para atores em Argentina, Uruguai, México, França e Chile, entre outros países. Apresenta, em 2020, no FIBA (Argentina), Você Está Realizando um Desenho e, em Santiago a Mil (Chile), A Condição Humana. Mallika Taneja é uma artista de teatro de Nova Délhi, na Índia, cujo trabalho lida com questões de experiências de gênero da cidade, saúde mental e sexualidade. Ela integra coletivos como Women Walk at Midnight, Women for Theatre e Sex Chat Roo. A peça Tenha Cuidado (Be Careful) fez uma turnê pela Europa e foi apresentada em locais como Austrália, Japão, Sri Lanka e Inglaterra.

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MINIBIOGRAFIAS

Maria Galindo é feminista, anarquista integrante de Mujeres Creando, agitadora de rua, radialista, grafiteira e cozinheira. Nos espaços artísticos, se reconhece como impostora. Foi convidada em duas ocasiões para a Bienal de Arte de São Paulo e para a Bienal de Veneza. Participou, convidada por Paul Preciado, do Parlamento dos Corpos. Foi criminalizada pelo Estado boliviano dezenas de vezes por suas intervenções públicas. Marina Mathey é performer e travesti. É formada como atriz pela Escola de Arte Dramática (EAD-ECA-USP) e fricciona em seu trabalho de pesquisa as linguagens da performance, da música, da dança e do audiovisual, visando os recortes da experiência de um corpo transvestigênere nos espaços públicos e privados. Atualmente circula com seu show TRAVA e integra o elenco da iNSAiO Cia. de Arte. Marina Silvério é atriz, cantora, artista de rua, performer e pesquisadora. Mestranda em Artes Cênicas pela UFU, onde pesquisa sua transexualidade e a arte que produz diante das relações interpessoais com a sociedade. Tem também se embrenhado no universo das artes visuais e através de Ilustrações Travestis denuncia e vomita a transfobia diária, estrutural e estruturante em vidas trans. Matheus Parizi é cineasta brasileiro com experiência prévia como encenador e dramaturgo. Seus filmes foram exibidos e premiados em festivais como Veneza, Toulouse, Havana, Aspen, Melbourne e Hong Kong e em instituições como o Museu de Belas Artes (Boston), Yale University, Instituto Moreira Salles e Cinemateca Uruguaia. Ex-participante do Torino Filme Lab, foi contemplado pelo Prêmio Estímulo ao curta-metragem 2015 e pelo Núcleos Criativos 2016. Seu novo curta, Primeiro Ato, estreou no Tiger Competition de Rotterdam. Meno del Picchia é músico e antropólogo, e atua no universo sonoro de múltiplas formas. Como instrumentista toca ao lado de artistas como Otto e Guizado. No universo das trilhas sonoras, foi indicado ao Prêmio Shell em 2019 pelo trabalho musical realizado no espetáculo Injustiça, da Cia de Teatro Heliópolis. Como compositor já lançou três discos, sendo que o mais recente, Barriga de 7 Janta recebeu o prêmio Proac. Na vertente acadêmica, realiza uma etnografia do funk em São Paulo, pela USP. Original Bomber Crew é uma organização de práticas, pesquisa e produção da cultura hip-hop.

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Ativo desde 2005, é referência no Piauí no trabalho de formação em dança de rua. Com participações em festivais, batalhas e encontros nacionais e internacionais, atualmente ocupa a Casa do Hip Hop, em Teresina, junto a outros artistas da cidade. O grupo desenvolve espetáculos, performances, batalhas, intervenções urbana, festivais e oficinas de dança no Piauí e em estados vizinhos. Os artistas do coletivo participam da MITsp com o espetáculo tReta e a oficina Suspeito: Coreografias Performáticas de Enfrentamentos Cotidianos. Pablo Manzi é dramaturgo e codiretor do grupo Bonobo, com quem escreveu Amansadura, Onde os Bárbaros Vivem e Você Vai Adorar. As obras que escreveu receberam vários prêmios e foram apresentadas em Chile, México, EUA, Espanha, Alemanha, Itália, Bélgica, Peru, Holanda, Brasil, Suécia e Japão. Este ano estreia a peça Una Lucha Contra... no Royal Court Theatre, dirigida por Sam Pritchard, e um novo projeto com o Bonobo. Paula González Seguel é diretora, dramaturga, docente, documentarista e gestora cultural. É bisneta da machi Rosa Marileo Inglés, autoridade ancestral do povo mapuche. Fundadora e diretora artística da Cía. KIMVNTeatro, dedicada ao resgate da memória, oralidade, linguagem, visão de mundo e cultura do povo mapuche e da defesa dos direitos humanos através das artes cênicas, da música e do cinema. Philippe Quesne é formado em Artes Visuais. Durante dez anos, desenhou cenários para teatro, óperas e exposições. Em 2003, criou o Vivarium Studio Company. Desde 2014, é codiretor do Nanterre-Amandiers, National Dramatic Center. Ele caça o maravilhoso, o pequeno, e os empurra para as experiências extremas da vida diária, bem como para o relacionamento entre a humanidade e a natureza. Preto Téo é transmasculino negro em trânsito nas artes da cena e escrita. Pesquisa a performance da poesia falada. Formado em Interpretação pelo Teatro Escola Célia Helena, atua como preparador de palco e performance desde 2017. Integra a organização do Slam Marginália, competição de poesia falada para pessoas trans, não binárias e sexo dissidentes que acontece em São Paulo. É autor do livro EP (Padê Editorial) e da zine Meia Noite (Móri Zines), e contribuiu com a Antologia Trans (Invisíveis).


Quarantine é um conjunto de artistas e produtores com base na cidade inglesa de Manchester. Formada em 1998 por Simon Banham, Richard Gregory e Renny O’Shea, a companhia trabalha com uma grande variedade de colaboradores, criando performances e outros eventos públicos inspirados no cotidiano de pessoas comuns. Nos seus 21 anos, o Quarantine foi pioneiro em metodologias de cocriação, trabalhando nos mais variados contextos e com os mais diversos tipos de pessoas: de artistas consagrados a indivíduos que nunca atuaram com arte,

Exchange Theatre, e apresentações em festivais como o Hamburg International Feminist Festival.

como eletricistas, filósofos, soldados, crianças e floristas. São essas pessoas comuns e suas realidades e experiências que dão a base para as performances da companhia. O resultado são trabalhos intimistas, em que artistas, performers, participantes e público se misturam. Já foram criadas festas de família, refeições compartilhadas, aulas de culinária, salas de karaokê, emissões de rádio e escolas pop-up – além de performances no palco. A companhia participa da MITsp com a residência artística Olho no Olho: Quem Consegue Ser Visível na São Paulo de Hoje?

Vulcânica Pokaropa Costacurta é byxa travesty degenerada, mestra em Teatra pela Udesc, performer, produtora da série Desaquenda pela Cucetas Produções, que está disponível no YouTube, integrante da Cia Fundo Mundo, companhia de circo formada exclusivamente por pessoas transexuais, travestis e não binárias, bambolista, iniciante em contorção e palhaçaria, punhetiza e artista plástica.

Rosa Luz é artista visual, produtora de vídeos online, cantora de rap e ativista travesti. Já se apresentou em festivais de música como Favela Sounds, SP na Rua, RedBull Music Festival, entre outros, além de integrar exposições no MAM, MASP, Museu da República etc. Já participou de uma residência artística no Reino Unido e fez cursos de formação em comunicação e social media como Creators Boost da Youpix, YouTube NextUp e o 1º time de influenciadores da Avon. Também integrou o IVLP em 2019.

Vinicius Santos é professor-artista, licenciado em Artes pela UFSB, estudante do bacharelado em Artes do Corpo em Cena (UFSB). É também performer atuando junto aos coletivos VemDesCer e SOMACORPO, investigando as fronteiras entre as linguagens da cena, processos de cura, resiliência e dissidência.

SEMINÁRIO PERSPECTIVAS ANTICOLONIAIS Ailton Krenak é ativista indígena dos direitos humanos. Jornalista, pesquisador e autor de textos publicados em coletâneas no Brasil e exterior, entre eles, Ideias para Adiar o Fim do Mundo, livro brasileiro mais vendido da FLIP 2019. Fundou o NCI (Núcleo de Cultura Indígena), ONG que promove e defende as culturas indígenas brasileiras desde 1985. Ganhou o Prêmio Aristóteles Onassis Homens e Sociedade (Grécia, 1990). É doutor honorário pela Universidade Federal de Juiz de Fora.

Sam Curtis Lindsay é cofundador e diretor coartístico da premiada organização de artes Hackney Showroom. É pesquisador honorário da Queen Mary University London. Como diretor, seus trabalhos incluem: Scottee: Class (Edinburgh Festival, Home Manchester), Thank You for Your Patience (Inkonst Suécia, Futurefest & Hackney Showroom), Waiting for Godot (Hackney Showroom / Culture Device) e Heartbreak Hotel (no Jetty, em North Greenwich).

Ana Kiffer é escritora, professora da pós-graduação em literatura, cultura e contemporaneidade da PUC-RIO, especialista na obra de Antonin Artaud, autora de Antonin Artaud (EDUERJ), A Perda de Si (Rocco) e Ódios Políticos e Políticas do Ódio, com Gabriel Giorgi (Bazar do Tempo). Cientista do estado pela FAPERJ, trabalha há muitos anos sobre as relações entre corpo e escrita, tendo vários artigos sobre o tema. Foi Diretora de Programa no Colégio Internacional de Filosofia em Paris de 2006 à 2012.

Travis Alabanza atua, escreve e realiza filmes em Londres. Como uma das vozes artísticas trans mais proeminentes do Reino Unido, nos últimos quatro anos Alabanza iniciou grande parte das conversas públicas sobre as interseções entre negritude, gênero, visibilidade trans e classe. Seu trabalho cruza meios e formas, incluindo performances realizadas em espaços como Tate, Victoria and Albert Museum, Southbank Center, ICA, Lyric Hammersmith, Transmission Gallery e Royal

Christine Greiner é professora livre-docente do Departamento de Artes da PUC-SP. Ensina no Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica e no curso de graduação em Artes do Corpo. É coordenadora do Centro de Estudos Orientais e autora de diversos livros e artigos sobre estudos do corpo, dança, performance e cultura japonesa. Seus últimos livros Leituras do Corpo no Japão e Fabulações do Corpo Japonês foram recentemente publicados na Argentina.

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MINIBIOGRAFIAS

Eleonora Fabião é performer e teórica da performance. Publica, leciona, realiza performances, exposições e palestras internacionalmente. Suas ações colaborativas acontecem sobretudo nas ruas. Série Coisas que Precisam Ser Feitas é o título de um trabalho e, também, um modo de referir-se à prática. Professora adjunta da Escola de Comunicação UFRJ. Doutora e mestre em Estudos da Performance NYU, mestre em História Social da Cultura PUC-RJ. Realizou pósdoutorado na NYU. Pesquisadora CNPq nível 2. Jean Tible é militante e professor de ciência política na Universidade de São Paulo. Autor de Marx Selvagem (Autonomia Literária) e do cordel marx indígena, preto, feminista, operário, camponês, cigano, palestino, trans. selvagem (n-1 edições). É também coorganizador de Junho: Potência das Ruas e das Redes (FES), Cartografias da Emergência: Novas Lutas no Brasil (FES) e Negri no Trópico 23°26’14” (Autonomia Literária, Editora da Cidade, n-1 edições). José Fernando Peixoto de Azevedo é doutor em filosofia pela USP, diretor, dramaturgo, curador e professor da Escola de Arte Dramática, do PPGAC e no Departamento de Cinema da ECA-USP. Entre suas encenações recentes estão As Mãos Sujas e Navalha na Carne Negra. Fundador do Teatro dos Narradores, colabora com grupos como Os Crespos. Dentre suas publicações destacam-se Eu, um Crioulo, na coleção Pandemia (n-1 edições), a co-organização de Maratona de Dramaturgia (Cobogó/SESC) e Próximo Ato: Teatro de Grupo (Itaú Cultural). Luiz Felipe de Alencastro é historiador e cientista político. Professor da Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas. Professor Emérito da Sorbonne Université. Membro da Academy of Europe. Membro da Comissão Arns. Paulo Arantes é professor sênior no Departamento de Filosofia da FFLCH USP, doutor pela Universidade de Paris X. É autor de vários livros, entre eles, Sentimento da Dialética (Paz e Terra), Um Departamento Francês de Ultramar (Paz e Terra), Extinção (Boitempo) e O Novo Tempo do Mundo (Boitempo).

Graduação em Psicologia Clínica da PUC-SP. Estudioso da obra de Gilles Deleuze, traduziu para o português Conversações, Crítica e Clínica e parte de Mil Platôs. Escreveu sobre a concepção de tempo em Deleuze (O Tempo Não Reconciliado, editora Perspectiva), sobre a relação entre filosofia e loucura (Da Clausura do Fora ao Fora da Clausura: Loucura e Desrazão, editora Brasiliense, e A Nau do Tempo-Rei, editora Imago) e sobre a relação entre política e subjetividade (A Vertigem por um Fio: Políticas da Subjetividade Contemporânea e Vida Capital, ambos pela Iluminuras). Também integra a Cia. Teatral Ueinzz. HOMENAGEM A FRANCISCO MEDEIROS José Rubens Siqueira é profissional das artes há mais de 50 anos. Dirigiu, escreveu e adaptou dezenas de espetáculos teatrais como Artaud: O Espírito do Teatro, traduziu Hamlet, de William Shakespeare, e adaptou Os Lusíadas, de Luís Vaz de Camões. Recebeu alguns prêmios importantes como APCA (melhor autor). Alternou a carreira teatral com a cinematográfica, participando de diversos festivais. Lucienne Guedes Fahrer é atriz, dramaturga, diretora e professora, graduada e doutora pela USP. Atriz fundadora do Teatro da Vertigem, realizou com o grupo os espetáculos O Paraíso Perdido, Apocalipse 1,11, A Última Palavra É a Penúltima 2.0 e Enquanto Ela Dormia. Foi artista colaboradora de vários grupos de São Paulo, entre eles o Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, o Teatro de Narradores, a Cia. Balagan e a Cia. Livre. Foi professora da UFOP e da ELT, e atualmente é professora do Instituto de Artes da Unicamp. Plínio Soares é ator, formado pela Escola de Arte Dramática da ECA - USP. Atuou no longa Domésticas, dirigido por Fernando Meirelles, Viva Voz, com direção Paulo Morelli, e Equilíbrio e Graça, com direção de Carlos Reichenbach. No teatro, esteve nas peças Bonita e Lampião, Hamlet, Coração dos Outros, Saravá Mário de Andrade e Esperando Godot. Participou dos trabalhos Mad Maria, Coração de Estudante e Esperança, na Rede Globo, e no programa Rá Tim Bum, da TV Cultura. O ESPECTADOR E A LEITURA DA CENA

Peter Pál Pelbart é filósofo, ensaísta, professor, tradutor e professor no Departamento de Filosofia e no Núcleo de Estudos da Subjetividade do Pós-

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Flávio Desgranges é professor do departamento de Artes Cênicas da Universidade de Santa Catarina e


professor do programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade de São Paulo. Coordenador do iNerTE - Instável Núcleo de Estudos de Recepção Teatral. Autor dos seguintes livros, entre outros: A Inversão da Olhadela: Alterações no Ato do Espectador Teatral; Pedagogia do Teatro: Provocação e Dialogismo e A Pedagogia do Espectador. Maria Lucia Pupo é docente titular no Departamento de Artes Cênicas na Escola de Comunicações e Artes da USP e bolsista de pesquisa do CNPq. Atua especialmente na formação em licenciatura em Artes Cênicas e orienta pesquisas de mestrado e doutorado em Pedagogia do Teatro. É autora de livros e artigos sobre o tema, tendo exercido atividades nesse âmbito em várias cidades brasileiras, assim como na França, Marrocos, México e Bélgica. Thomas Jolly é ator e diretor, transita entre o teatro e a ópera. De 2006 a 2019, dirigiu La Piccola Familia. Recebeu os maiores prêmios do teatro francês, incluindo um Molière de direção por Henry VI, de Shakespeare, espetáculo com 18 horas de duração. Em 2018, abriu com Thyeste de Sêneca a 72ª edição do Festival de Avignon. Dirigiu as óperas Eliogabalo de Cavalli, Fantasio de Offenbach e Macbeth Underworld. Desde janeiro de 2020 dirige Le Quai – Centro Dramático Nacional de Angers. ESPECIAL Emily Beaney é artista interdisciplinar e criadora de obras de arte vestíveis para performance. Trabalhou com companhias de teatro e grupos comunitários pela Escócia. Atualmente realiza pesquisa de pós-graduação em experiências imersivas e ativismo artístico no Edinburgh College of Art. Jo Clifford é dramaturga e performer, autora de peças como Loosing Venice e The Taming of the Shrew. Em 2015, criou a Queen Jesus Productions para auxiliar a turnê do monólogo Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu. Nesse ano, a equipe fez uma temporada no Fringe do Festival de Edimburgo apoiada pelo Made in Scotland, depois a obra foi apresentada no festival Outburst, em Belfast; no Queer Contact, em Manchester; e, com o apoio do British Council, no FIT - Festival Internacional de Teatro de Belo Horizonte. O trabalho foi realizado (em parte ou por completo) em igrejas, bares, teatros e festivais em todo o Reino Unido.

Lowri Evans é atriz e mora entre Manchester (Reino Unido) e São Paulo (Brasil). Tem formação em Artes Plásticas e cria performances, intervenções, objetos e cadernos. Em São Paulo, atuou como criadora e performer nos espetáculos Rózà e Revolta Lilith, de Martha Kiss Perrone, e na performance Coração do Espantalho, na 32ª Bienal de São Paulo. Apresentou seu solo A Vida Secreta de Você e Eu na Capital 35. Recentemente trabalhou com BBC TV, National Theatre of Scotland, Contact Theatre e The Lowry. Renata Carvalho é atriz, dramaturga, diretora e transpóloga. Fundou o Coletivo T – primeiro grupo a ser formado integralmente por artistas trans em São Paulo – e o MONART (Movimento Nacional de Artistas Trans), que, em 2017, lançou o Manifesto Representatividade Trans. Em 2012, participou dos trabalhos ZONA!, Projeto Bispo e Nossa Vida Como Ela É, além de produções realizadas na televisão e no cinema. Atuou em O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu (que foi alvo de diversas censuras no Brasil) e Domínio Público (montagem que reuniu no palco quatro artistas brasileiros alvos de ataques em 2017). Seu espetáculo Manifesto Transpofágico, uma coprodução entre o Risco Festival, a Corpo Rastreado e a MITsp, estreou na Mostra em 2019. Christiane Jatahy é autora, diretora de teatro e cineasta. Formada em teatro e jornalismo com pós-graduação em Arte e Filosofia. Seus trabalhos desde 2003 dialogam com distintas áreas artísticas. Montou diversas peças que transitam entre as fronteiras da realidade e da ficção, do ator e do personagem, do teatro e do cinema. Alguns de seus trabalhos são Julia, adaptação da obra Senhorita Julia, de August Strindberg; E Se Elas Fossem Para Moscou?, a partir da obra As Três Irmãs, de Anton Tchékhov; e A Floresta que Anda, uma livre adaptação de Macbeth, de William Shakespeare. Foi artista convidada na cidade de Lisboa em 2018, apresentando todos os seus trabalhos nos principais teatros e cinemas. Atualmente é artista associada do Odéon-Théâtre de L’Europe, do CentQuatre Paris, do Théâtre National Wallonie-Bruxelles, da Comédie de Genève e do Schauspielhaus Zürich.

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FICHA TÉCNICA – MITsp 2020

IDEALIZAÇÃO E DIREÇÃO ARTÍSTICA Antonio Araujo IDEALIZAÇÃO E DIREÇÃO GERAL DE PRODUÇÃO Guilherme Marques

COORDENAÇÃO, EDIÇÃO, REDAÇÃO E SUPERVISÃO DE CONTEÚDO EDITORIAL (REVISTA CARTOGRAFIAS, SITE, APP E GUIA DE PROGRAMAÇÃO) Maria Luísa Barsanelli

RELAÇÕES INTERNACIONAIS Jenia Kolesnikova

ASSESSORIA DE CAPTAÇÃO DE RECURSOS E APOIOS E PRODUÇÃO EXECUTIVA Anamaria Boschi

RELAÇÕES NACIONAIS E INTERNACIONAIS Natália Machiaveli

PRODUTORES EXECUTIVOS Giovanna Monteiro e Paulo Gircys

RELAÇÕES INTERNACIONAIS MITbr – PLATAFORMA BRASIL Fernando Ruiz Braul

PRODUÇÃO DAS ATIVIDADES PEDAGÓGICAS Luiz Sztutman

CURADORIA DOS OLHARES CRÍTICOS Daniele Avila Small e Luciana Eastwood Romagnolli

PRÉ-PRODUÇÃO DOS OLHARES CRÍTICOS Ericah Azeviche

CURADORIA DE AÇÕES PEDAGÓGICAS Maria Fernanda Vomero

PRODUÇÃO DO SEMINÁRIO PERSPECTIVAS ANTICOLONIAIS Luna Recaldes

CURADORIA ENCONTRA DE PEDAGOGIA DA TEATRA Dodi Leal

PRODUÇÃO DOS EIXOS REFLEXIVO E PEDAGÓGICO Lucas Pradino, Amanda Tavares, Michelle Barreto, Eliane Monteiro e Ana Paula Leandro

DIRETOR INSTITUCIONAL Rafael Steinhauser

CURADORIA MITbr - PLATAFORMA BRASIL Alejandro Ahmed, Francis Wilker e Grace Passô CURADORIA SEMINÁRIO PERSPECTIVAS ANTICOLONIAIS Andreia Duarte, Christine Greiner e José Fernando Azevedo COORDENAÇÃO GERAL DE PRODUÇÃO Rachel Brumana COORDENAÇÃO ADMINISTRATIVA E FINANCEIRA Patrícia Perez COORDENAÇÃO DE COMUNICAÇÃO Marcia Marques | Canal Aberto COORDENAÇÃO DE RELAÇÕES PÚBLICAS Carminha Gongora COORDENAÇÃO TÉCNICA André Boll e Grazi Vieira COORDENAÇÃO DE LOGÍSTICA Marisa Riccitelli Sant´ana COORDENAÇÃO DOS EIXOS REFLEXIVO E PEDAGÓGICO Andreia Duarte COORDENAÇÃO DE PRODUÇÃO MITbr – PLATAFORMA BRASIL Richard Santana 334

PRODUTORES LOCAIS DE MONTAGEM Dora Leão, Julia Gomes, Julio Cesarini, Patricia Souza Ceschi, Ney Wellington Bahia, Olivia Maia Barcellos, Paulo Mattos e Pedro de Freitas RESPONSÁVEIS TÉCNICOS DE MONTAGEM Cauê Gouveia, César Martini, Diego Francisco, Fernanda Guedella, Lara Bordin, Melissa Guimarães, Randal Juliano, Raquel Balekian e Ronaldo Zero ASSESSORIA JURÍDICA José Augusto Vieira de Aquino ASSESSORIA CONTÁBIL/TRIBUTÁRIA Carvalho Ramos Consultoria Contábil Tributária S/S ASSISTENTE DE DIREÇÃO Marina Watanabe ASSISTENTES DE COORDENAÇÃO ADMINISTRATIVA E FINANCEIRA Hiago Marques e Nathália Monteiro ASSISTENTE DE COORDENAÇÃO DE RELAÇÕES NACIONAIS E INTERNACIONAIS Paula Malfatti ASSISTENTES DE COMUNICAÇÃO Daniele


Valério, Flávia Fontes de Oliveira e Kelly Santos | Canal Aberto ASSISTENTES DE COORDENAÇÃO DE LOGÍSTICA Luiza Alves, Lipe Lima, Carol Vidotti e Wander Otoni Ferreira RECEPTIVOS Larissa Ballarotti e Carol Vidotti ASSISTENTE DE COORDENAÇÃO DOS EIXOS REFLEXIVO E PEDAGÓGICO Luna Recaldes ASSISTENTE DE COORDENAÇÃO DE PRODUÇÃO MITbr – PLATAFORMA BRASIL Leonardo Monteiro

TRADUÇÃO DOS EIXOS REFLEXIVO E PEDAGÓGICO Amanda Tavares, Bárbara Ferreira, Julianete Azevedo, Letícia Rodrigues, José Machado, Kevin Kraus e David Atencio TRADUÇÃO DE TEXTOS E LEGENDAGEM Casarini Produções REVISÃO DE CONTEÚDO EDITORIAL Grená Conteúdo Multiplataforma IDENTIDADE VISUAL E PROJETO GRÁFICO Casaplanta + Lila Botter PROJETO GRÁFICO DO SITE Marina Duca

ASSISTENTE DE COORDENAÇÃO TÉCNICA Luana Gouveia

DESENVOLVIMENTO DO APLICATIVO MITsp 2020 Nodo Digital

ASSISTENTES DE PRODUÇÃO LOCAL MITbr Alder Augusto, Ney Wellington Bahia, Cibelle Lima, Paulo Mattos, Vanise Carneiro, Alexandre Vasconcelos, Marcos Emanoel e Mariana Câmara

FOTOGRAFIA Guto Muniz, Nereu Jr. e Silvia Machado

ASSISTENTE DE EDIÇÃO, REDAÇÃO E SUPERVISÃO DE CONTEÚDO EDITORIAL Mariana Marinho INTERMEDIAÇÃO MITbr – PLATAFORMA BRASIL Ferdinando Martins CONSULTORIA PARA INTERNACIONALIZAÇÃO DOS GRUPOS DA PLATAFORMA BRASIL – MITbr Iva Horvat

ASSISTENTE DE FOTOGRAFIA Lucas Oliveira REGISTRO VIDEOGRÁFICO E TRANSMISSÃO SIMULTÂNEA ERA - Empório de Relacionamentos Artísticos ROTEIRO DOS VÍDEOS PROMOCIONAIS E INSTITUCIONAIS Flávia Fontes de Oliveira GRAVAÇÃO E EDIÇÃO DE ÁUDIOS (DOS VÍDEOS E DAS LOCUÇÕES) Fluxo Produções LOCUÇÕES Fernanda Ferreira de Moraes Zanchini

CONSULTORIA TÉCNICA E CENOGRÁFICA Carol Bucek

MESTRES DE CERIMÔNIAS Gabriel Lodi e Renata Carvalho

CONSULTORIA PARA EQUIPAMENTOS DE ÁUDIO Guilherme Ramos

DIRETORA DA CERIMÔNIA DE ABERTURA Luh Mazza

CONSULTORIA PARA EQUIPAMENTOS DE PROJEÇÃO E VÍDEO Marcos Santos

SERVIÇOS GERAIS Jair Nascimento

REDES SOCIAIS Ana Elisa Faria

ELABORAÇÃO DO BOOK DE CAPTAÇÃO DE RECURSOS Osvaldo Piva

PRÉ-PRODUÇÃO DE CONTEÚDO PARA REDES SOCIAIS Rafael Ventuna EDIÇÃO REVISTA CARTOGRAFIAS Daniele Avila Small, Luciana Eastwood Romagnolli e Silvia Fernandes TRADUÇÃO DE CONTEÚDO TÉCNICO E EDITORIAL Kevin Kraus

NUTRICIONISTA Cleria de Oliveira Moura

ASSISTÊNCIA TÉCNICA COMPUTADORES Worklook Tecnologia CRÉDITO DAS OBRAS QUE INTEGRAM A IDENTIDADE VISUAL DA MITsp 2020 Henrique Oliveira 335


AGRADECIMENTOS

Adolfo Barreto

Dulce Vivas

Biblioteca Mario de Andrade

Adriana Monteiro

ECAD Escritório Central de

Julian Christopher Fuchs

Alê Youssef

Arrecadação e Distribuição

Juliane Gomes

Alejandro Alberto Sfeir Tonsic

Edson Natale

Julio Cesar Doria Alves

Alexandra Pinho

Eduardo Dias de Souza Ferreira

Julius Calaminus

Álvaro Machado

Eduardo Fragoaz

Junia Saluh

Alexandre Pietro e equipe do

Eduardo Saron

Karine Legrand

Auditório Ibirapuera Oscar

Eduardo Suplicy

Kelly Adriano de Oliveira

Niemayer

Elodie Meunier

Kil Abreu

Alice Grisa

Emerson Pirola

Leandro Teodora Ferreira

Ana de Luna

Equipe das Leis Estadual e

Leslie Arias

Ana Marques

Federal de Incentivo à Cultura

Liliane Rebelo e equipe do

André Acioli

Equipe do Centro de Referência

Cultura Inglesa

André Carreira

da Dança da Cidade de São

Louis Logodin

André Cortez

Paulo

Lucas Bêda

André Fischer e equipe do

Erica Mourão Trindade e equipe

Luciene Cavalcante

Centro Cultural da Diversidade

do Sesc Vila Mariana

Maíra Pompeo

André Mendes

Erika Palomino e equipe do

Mamudo Djante

André Vilela

Centro Cultural São Paulo

Marcia M. Silva

Andrea Nogueira

Estela Silva

Marcio Gallacci e equipe do

Anna Helena da Costa Polistchuk

Eustáquio Gugliemelli

Teatro Sérgio Cardoso

Aurea Leszczynski Vieira

Fause Haten

Marcio Vidal Marinho

Gonçalves

Felipe Mancebo e equipe do

Marcos Bednarski

Bel Toledo e equipe do Centro

Sesc Avenida Paulista

Marcos Felipe e equipe da Cia.

Cultural Tendal da Lapa

Flavia Carvalho e equipe do Sesc

Mungunzá

Benjamin Seroussi e equipe da

Pinheiros

Maria Beatriz Costa Cardoso

Casa do Povo

Flavio Henrique

Maria Carolina Ribeiro

Bethe Ferreira

Frederico Mascarenhas

Marian Arbre

Carlos Eduardo Hashish

Gabriela Gonçalves e equipe da

Marília Bonas

Carlos Giannazi

Corpo Rastreado

Mario Rubio

Catarina Duncan

Gaelle Massicos Bitty

Martin Vilares e equipe de Feiras

Celso Giannazi

Galeria Millan

e Congressos

Claudia Hamra e equipe do

Galiana Brasil e equipe do Itaú

Mateus Furlanetto

Teatro Faap

Cultural

Matthias Makowski

Claudia Pedrozo

Grzegorz Mielec

Matthieu Branders

Cristina Becker

Heloisa Cuente Pisani

Mauricio Garcia

Daisaku Ikeda

Hugo Gravanita

Michel Huck

Danilo Santos de Miranda

Hugo Possolo

Michele Gialdroni e equipe do

Debora Hummel

In Sung Park (Jack)

Istituto Italiano di Cultura de Sao

Debora Viana

Ivan Gianinni

Paulo

Diogo Rios

Joel Naimayer Padula

Miguel Rocha e equipe da

Dorota Kwinta

Joselia Aguiar e equipe da

Companhia de Teatro Heliópolis

336


Milú Villela

Dorberto Carvalho e equipe

Miriam Rinaldi

do SATED/SP - Sindicato

Mônica Fernandes

dos Artistas e Técnicos em

Natália Aquino Cesário

Espetáculos de Diversões no

Natália Risovas

Estado de São Paulo

Nilton Cury e equipe do Teatro

Sérgio Dávila

Alfredo Mesquita

Sérgio de Carvalho e equipe do

Núcleo dos Festivais

TUSP

Internacionais de Artes Cênicas

Sérgio Luiz

do Brasil

Sérgio Sá Leitão

Pablo Moreira

Simone Malina

Paola de Marco

Sociedade Brasileira de Autores

Patricia Roggero e equipe do

- SBAT

Teatro Cacilda Becker

Sonia Regina Viveiros Brocca

Paulo Mazieri

Stephanie Genesini

Paulo Pina

Sulla Andreato e equipe do

Pedro Gomides

Centro de Referência da Dança

Pedro Granato

de São Paulo

Perrine Warme-Janville

Taís Lara

Professores do Departamento

Tatiana Lazarini Fonseca

de Artes Cênicas da ECA-USP

Telma Baliello

Puja Kausnik

Thais Zem

Rafael Espadine

Tião Soares

Rafael Ferro e equipe da

Urs Brönnimann e equipe do

Ocupação 9 de Julho

Consulado Geral da Suíça

Rafael Presto

Valdir de Jesus Rivaben e equipe

Raphaëlle Lapierre-Houssian

da Oficina Cultural Oswald de

Regina Varandas

Andrade

Ricardo G. Neuding

Vanessa Riquelme Carriel

Roberta Brum

Youngsang Kwon.

Rodrigo Maia de Lorena Pires,Rodrigo Mathias Rogério Ianelli Rosana Paulo da Cunha Rosangela Quaresma Rose Silveira Souza Rubens Carsoni Rudifran Almeida Pompeo e equipe da Cooperativa Paulista de Teatro Sandra Moreira 337




Š Tapumes Galerie Vallois, 2008 Henrique Oliveira


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