Produção do espaço, vida cotidiana e serviço social: diálogos com e além de Henri Lefebvre

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PRODUÇÃO DO ESPAÇO, VIDA COTIDIANA E SERVIÇO SOCIAL: DIÁLOGOS COM E ALÉM DE HENRI LEFEBVRE

Isabel Cristina da Costa Cardoso

Daniele Batista Brandt Organizadoras

PRODUÇÃO DO ESPAÇO, VIDA COTIDIANA E SERVIÇO SOCIAL: DIÁLOGOS COM E ALÉM DE HENRI LEFEBVRE 1a Edição Eletrônica

Uberlândia / Minas Gerais Navegando Publicações 2022

Navegando Publicações

www.editoranavegando.com editoranavegando@gmail.com Uberlândia – MG, Brasil

Direção Editorial: Navegando Projeto gráfico e diagramação : Lurdes Lucena Arte da Capa : Danilo Severino Foto Capa: Mônica Torres Alencar – Professora FSS/UERJ Revisão – Bruna Paschoal

Foto Capa: Mônica Alencar – professora aposentada da FSS/UERJ

Copyright © by autor, 2022.

P96428 – CARDOSO, I. C. da C.; Brandt, D. B. (Orgs.). Produção do espaço, vida cotidiana e serviço social: diálogos com e além de Henri Lefebvre . Uberlândia: Navegando Publicações, 2022.

ISBN: 978-65-81417-77-2 10.29388/978-65-81417-77-2-0

Vários Autores

1. Serviço Social 2. Vida Cotidiana 3. Henri Lefebvre I. Isabel Cristina da Costa Cardoso, Daniele Batista Brandt II. Navegando Publicações. Título. CDD – 360 Índice para catálogo sistemático Serviço Social 360

Navegando Publicações www.editoranavegando.com editoranavegando@gmail.com

Uberlândia – MG Brasil

Editores

Lurdes Lucena – Esamc – Brasil

Carlos Lucena – UFU, Brasil

José Claudinei Lombardi – Unicamp, Brasil José Carlos de Souza Araújo – Uniube/UFU, Brasil

Conselho Editorial Multidisciplinar

Pesquisadores Nacionais

Afrânio Mendes Catani – USP – Brasil

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Anselmo Alencar Colares – UFOPA – Brasil

Carlos Lucena – UFU – Brasil

Carlos Henrique de Carvalho – UFU, Brasil

Cílson César Fagiani – Uniube – Brasil

Dermeval Saviani – Unicamp – Brasil

Elmiro Santos Resende – UFU – Brasil

Fabiane Santana Previtali – UFU, Brasil

Gilberto Luiz Alves – UFMS – Brasil

Inez Stampa – PUCRJ – Brasil

João dos Reis Silva Júnior – UFSCar – Brasil

José Carlos de Souza Araújo – Uniube/UFU – Brasil

José Claudinei Lombardi – Unicamp – Brasil

Larissa Dahmer Pereira – UFF – Brasil

Lívia Diana Rocha Magalhães – UESB – Brasil

Mara Regina Martins Jacomeli – Unicamp, Brasil

Maria J. A. Rosário – UFPA – Brasil

Newton Antonio Paciulli Bryan – Unicamp, Brasil

Paulino José Orso – Unioeste – Brasil

Ricardo Antunes – Unicamp, Brasil

Robson Luiz de França – UFU, Brasil

Tatiana Dahmer Pereira – UFF - Brasil

Valdemar Sguissardi – UFSCar – (Apos.) – Brasil

Valeria Lucilia Forti – UERJ – Brasil Yolanda Guerra – UFRJ – Brasil

Pesquisadores Internacionais

Alberto L. Bialakowsky – Universidad de Buenos Aires – Argentina. Alcina Maria de Castro Martins – (I.S.M.T.), Coimbra – Portugal

Alexander Steffanell – Lee University – EUA Ángela A. Fernández – Univ. Aut. de St. Domingo – Rep. Dominicana

Antonino Vidal Ortega – Pont. Un. Cat. M. y Me – Rep. Dominicana

Armando Martinez Rosales - Universidad Popular de Cesar – Colômbia Artemis Torres Valenzuela – Universidad San Carlos de Guatemala – Guatemala

Carolina Crisorio – Universidad de Buenos Aires – Argentina

Christian Cwik – Universität Graz – Austria Christian Hausser – Universidad de Talca – Chile

Daniel Schugurensky – Arizona State University – EUA

Elizet Payne Iglesias – Universidad de Costa Rica – Costa Rica Elsa Capron – Université de Nimés / Univ. de la Reunión – France

Elvira Aballi Morell – Vanderbilt University – EUA. Fernando Camacho Padilla – Univ. Autónoma de Madrid – Espanha Francisco Javier Maza Avila – Universidad de Cartagena – Colômbia Hernán Venegas Delgado – Univ. Autónoma de Coahuila – México Iside Gjergji – Universidade de Coimbra – Portugal Iván Sánchez – Universidad del Magdalena –Colômbia Johanna von Grafenstein, Instituto Mora – México Lionel Muñoz Paz – Universidad Central de Venezuela – Venezuela Jorge Enrique Elías-Caro – Universidad del Magdalena – Colômbia José Jesus Borjón Nieto – El Colégio de Vera Cruz – México José Luis de los Reyes – Universidad Autónoma de Madrid – Espanha Juan Marchena Fernandez – Universidad Pablo de Olavide – Espanha Juan Paz y Miño Cepeda, Pont. Univ. Católica del Ecuador – Equador Lerber Dimas Vasquez – Universidad de La Guajira – Colômbia Marvin Barahona - Universidad Nacional Autónoma de Honduras - Honduras Michael Zeuske – Universität Zu Köln – Alemanha Miguel Perez – Universidade Nova Lisboa – Portugal Pilar Cagiao Vila – Universidad de Santiago de Compostela – Espanha Raul Roman Romero – Univ. Nacional de Colombia – Colômbia Roberto Gonzáles Aranas -Universidad del Norte – Colômbia Ronny Viales Hurtado – Universidad de Costa Rica – Costa Rica Rosana de Matos Silveira Santos – Universidad de Granada – Espanha Rosario Marquez Macias, Universidad de Huelva – Espanha Sérgio Guerra Vilaboy – Universidad de la Habana – Cuba Silvia Mancini – Université de Lausanne – Suíça Teresa Medina – Universidade do Minho – Portugal Tristan MacCoaw – Universit of London – Inglaterra Victor-Jacinto Flecha – Univ. Cat. N. Señora de la Asunción – Paraguai Yoel Cordoví Núñes – Instituto de História de Cuba v Cuba

Prefácio

Rosangela Dias Oliveira da Paz

Apresentação

Isabel Cristina da Costa Cardoso – Daniele Batista Brandt

A produção social do espaço e seus campos cegos: o desafio de seguir com e além de Lefebvre Isabel Cristina da Costa Cardoso

Transporte, mobilidade urbana e Serviço Social: quando o urbano extrapola a política urbana

Daniele Batista Brandt

“Desde o momento em que há movimento há utopia”: aportes do marxismo lefebvriano para pensar a práxis revolucionária na dimensão da vida cotidiana Mónica Brun Beveder

Movimentos sociais ambientais em Macaé e a questão urbana: a crítica no contexto de uma urbanização ecológica Matheus Thomaz da Silva

Resistências contra a privatização da água no Rio de Janeiro: aproximações necessárias ao debate dos comuns Caroline Rodrigues da Silva – Bruno Alves de França

Crime ambiental, participação popular e direitos humanos: uma análise da reprodução do capitalismo dependente a partir do plano de manejo de rejeito da Fundação Renova

Marina Rodrigues Corrêa dos Reis – Fábio Fraga dos Santos

SUMÁRIO 13 19 29 71 97 115 133 161

Apontamentos acerca da seca, da “questão social” e da formação da classe trabalhadora cearense Raphael Martins de Martins

A (re)produção social do espaço: contribuições a partir da perspectiva interseccional Daiane da Silva Pacheco

A Zona Oeste como eixo de expansão urbana para habitação de interesse social na cidade do Rio de Janeiro: considerações a partir da vida cotidiana dos moradores do Programa Minha Casa Minha Vida em Senador Camará . Patricia Nicola Menezes

Determinações contemporâneas do trabalho social na habitação Natália Coelho de Oliveira

A atuação profissional de assistentes sociais na “questão agrária”: uma experiência de assessoria junto a movimentos sociais Caroline Magalhães Lima

Operação urbana consorciada no Rio de Janeiro: luta e resistência pelo direito à moradia digna Maria Gorete da Gama e Silva – Maria Elvira Rocha de Sá –Sandra Helena Ribeiro Cruz

Sobre os autores

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PREFÁCIO1

(Em tempos de “desassossegos”)

Tudo em mim é a tendência para ser a seguir outra coisa; uma impaciência da alma consigo mesma, como uma criança inoportuna; um desassossego sempre crescente e sempre igual. Tudo me interessa e nada me prende. (Fernando Pessoa)2

O convite para prefaciar o livro Produção do espaço, vida cotidiana e Serviço Social: diálogos com e além de Henri Lefebvre provocou em mim um desassossego, no sentido de Fernando Pessoa, “[...] uma impaciência da alma consigo mesma [...]” (PESSOA, 2011, p. 55-56.

Ao receber e ler o livro, confesso que me acalmei com a riqueza, profundidade, densidade e ineditismo da produção coletiva, que reúne pesquisadoras e pesquisadores comprometidos. Mas, no momento seguinte, me “desassosseguei”, frente ao desafio de escrever algumas páginas, dialogando com um grupo de intelectuais críticos, consistentes e que ousam traçar um caminho coletivo, na reflexão e ação, em um “esperançar coletivo”, como nos ensinou Paulo Freire, em tempos tão duros na vida e na produção científica.

O UrbanoSS, inspirado nos pensamentos lefebvrianos, explicita na apresentação do livro sua definição de desassossego “[...] reconhecer as contradições da práxis, a partir das relações sociais capitalistas, para transformá-las em novas sínteses possíveis de práxis criadora”. Essa é a chave para os diálogos com e além de Henri Lefebvre, anunciados no título da obra. A centralidade da produção social do espaço implica olhar para a re-produção das relações sociais e da vida cotidiana, nos diferentes e diversos territórios habitados nas cidades, periferias, no campo e nas florestas.

Para dialogar com essa perspectiva, minha opção foi apresentar os desassossegos provocados pela leitura do livro.

A primeira inquietude quando se estuda e reflete sobre a produção capitalista do espaço é a constatação de que as políticas urbana, habitacional, agrária e ambiental não foram pensadas para quem vive do trabalho e

1DOI - 10.29388/978-65-81417-77-2-0-f.13-18

2 PESSOA, F. Livro do desassossego. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

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para quem habita os territórios do país. Essas políticas vêm determinando a reorganização territorial e interferindo no processo de sociabilidade coletiva, cultural e política, dos brasileiros. As cidades e suas políticas são do e para o capital e suas forças de mercado. Nesse sentido, reordenam as relações sociais de exploração e através do controle da terra urbana e dos recursos de infraestrutura das cidades, aprofundam as desigualdades sociais, de gênero, raça e classe, estruturantes da sociedade brasileira, naturalizando, para a grande maioria da população, o modo precário de viver.

As políticas públicas, entre elas a urbana e habitacional, enquanto intervenções estatais, trazem em si as contradições dos diferentes interesses em disputa, presentes na sociedade, em um jogo de alguns ganhos e muitas perdas. Resultam do confronto de diferentes projetos políticos que disputam em cada momento histórico na sociedade, servem ao capital e as necessidades dos setores populares; legitimam o poder político, mobilizam e desmobilizam; questionam o Estado e seus limites, são campos da luta de classes.

As cidades representam uma arena privilegiada no processo de acumulação capitalista, na qual as condições de urbanização são compradas no mercado, através da mercadorização dos serviços públicos e da consequente degradação da vida nas cidades. Nessa direção, a fragmentação e desarticulação das políticas sociais, sejam elas de emprego, previdência social, saúde, assistência social, educação, moradia, transporte, saneamento, interessam a acumulação capitalista, que transforma direitos em mercadorias, cidadãos de direitos em consumidores que possam pagar por serviços.

A ausência de inserção urbana dos conjuntos habitacionais, a segregação espacial, a baixa qualidade na oferta de serviços públicos nos territórios onde vivem a maioria da população trabalhadora, inviabilizam o direito à cidade e à moradia digna, a acessibilidade, liberdade de circulação e igualdade de acesso à serviços de cultura e lazer. Caldeira (2000)3 afirma que os valores estruturantes na nossa sociedade são a desigualdade, a separação e o controle de fronteiras.

A segunda inquietação é o enorme desafio posto para os trabalha-

3 CALDEIRA, T. P. do R. Cidades de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo: EDUSP, 2000.

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dores, suas organizações e movimentos sociais, em um contexto desfavorável de mudanças no mundo do trabalho, cada vez menor e precário, de desmonte de direitos e avanços conservadores.

O trabalho precário, a aceleração do desemprego, as exíguas moradias periféricas sem ventilação e infraestrutura urbana, o colapso do sistema de saúde, o transporte público insuficiente e superaglomerado, a presença nas ruas de um número ampliado de pessoas e famílias em situação de rua; enfim, o aumento exponencial da fome e da pobreza, resvalando para a miséria absoluta, deve ser tributado às contradições próprias do modo de produção capitalista. (RAICHELIS, PAZ, WANDERLEY, 2021)4.

Impõem-se radicalizar a pauta por uma política capaz de fazer com que a reprodução do espaço urbano atenda os interesses populares e construa projetos alternativos de sociedade, para isso é necessário adensar lutas pela cidade e por uma reforma urbana que viabilize a justiça e amplie os direitos sociais já conquistados. No entanto, o neoliberalismo, as transformações no mundo do trabalho, os avanços das tecnologias digitais têm impactado a organização dos trabalhadores e levado a reconfiguração dos sujeitos coletivos. Compreender essas mudanças na sociedade civil organizada, a pluralidade, diversidade, heterogeneidade do tecido associativo contemporâneo, é uma pauta fundamental para pensar o enfrentamento e as resistências a lógica do mercado. Temos que nos perguntar quem são os sujeitos coletivos, como se constituem e organizam pelos territórios, como resistem, se solidarizam e constroem saídas de subsistência e sociabilidade coletiva.

O terceiro desassossego, subjacente nos anteriores, é o da crise democrática que se acelerou com o golpe parlamentar em 2016 e colocou em curso uma pauta conservadora, de contrarreformas que atacou os direitos da classe trabalhadora a serviço dos interesses do grande capital transnacional, como a Lei de Terceirização (Lei 13.429/2017)5 que alterou

4 RAICHELIS, R.; PAZ, R. D. O.; WANDERLEY, M. B. Por que precisamos falar de desigualdade? Revista Serviço Social e Sociedade, São Paulo, n. 141, p. 157-163, maio/ago. 2021. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sssoc/a/qtqDw5YmcKqXDgnmNS9dQss/?lang=pt&format=pdf. Acesso em: 22 set. 2022.

5 BRASIL. Lei nº 13.429, de 31 de março de 2017. Altera dispositivos da Lei no 6.019, de 3 de janeiro de 1974, que dispõe sobre o trabalho temporário nas empresas urbanas e dá outras providências; e dispõe sobre as relações de trabalho na empresa de prestação de serviços a terceiros. Brasília, DF: Presidência da República, 2017. Disponível em:http://www.

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a Consolidação das Leis do Trabalho (Lei 13.467/2017)6 , criando as bases legais para a desconstrução da legislação trabalhista e a formalização da precarização do trabalho. A desconstrução de direitos sociais consolidou-se com a contrarreforma da Previdência Social (Emenda Constitucional - 103/2019)7 e os desmontes das políticas sociais através do desfinanciamento público, em curso, desde 2016. O desmonte dos direitos e o desfinanciamento das políticas sociais fazem parte de uma lógica ultraneoliberal, que, no contexto da pandemia e do desgoverno do presidente Jair Bolsonaro elevou a pobreza e a desigualdades a índices alarmantes.

Para Dardot e Laval (2016)8 , o ultraneoliberalismo representa uma nova racionalidade que corrói as relações sociais, transformando sujeitos sociais em concorrentes e produz a mercadorização da instituição pública, que é induzida a funcionar de acordo com a lógica gerencial e competitiva prevalecente no mundo empresarial.

Um contraponto a esse cenário, é de que apesar dos avanços da financeirização e da precarização das condições de vida e trabalho, nas diferentes áreas da política social, construíram-se sistemas ou um conjunto de regulações públicas, que, mesmo atacadas, tem resistido ao desmonte. E aqui reside uma questão importante. Após a Constituição de 1988, com todas as lutas, tivemos a impressão de que a democracia brasileira estava avançando, e de fato demos passos muito importantes, mas a democracia brasileira não se consolidou, não construímos uma cultura política democrática na sociedade, que defenda e valorize sobretudo uma agenda de direitos humanos, de respeito aos direitos básicos sociais, políticos e civis. planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13429.htm. Acesso em: 07 out. 2022.

6 BRASIL. Lei n° 13.467, de 13 de julho de 2017. Altera a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, e as Leis nº 6.019, de 3 de janeiro de 1974, 8.036, de 11 de maio de 1990, e 8.212, de 24 de julho de 1991, a fim de adequar a legislação às novas relações de trabalho. Brasília, DF: Presidência da República, 2017. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato20152018/2017/lei/l13467.htm. Acesso em: 07 out. 2022.

7 BRASIL. Emenda Constitucional nº 103, de 12 de novembro de 2019. Altera o sistema de previdência social e estabelece regras de transição e disposições transitórias. Brasília, DF: Presidência da República, 2019. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc103.htm. Acesso em: 07 out. 2022.

8 DARDOT, P.; LAVAL, C. A nova razão do mundo – Ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.

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Apesar dos avanços, permanece intacta a estrutura conservadora, patriarcal, machista e racista da formação sócio-histórica brasileira. Como nos ensinou Ianni (1992, p. 91)9, desde o período colonial, “[...] a prosperidade do capital e a força do Estado estão enraizadas na exploração dos trabalhadores do campo e da cidade.”. Contraditoriamente, a democracia no Brasil convive, estruturalmente, com as desigualdades sociais. Os avanços e conquistas do período pós Constituição de 1988 não chegaram à todas e todos brasileiros e brasileiras. Dependendo da classe, do gênero, da raça/etnia, ou mesmo da região do país ou do território das cidades que se vive e mora, não foram sentidas mudanças substantivas.

Os ataques e cerceamento aos direitos civis, a violação dos direitos humanos, o crescimento de intolerância e dos preconceitos contra negros, mulheres e a população LGBTQI+, o aumento da violência policial, novas formas de censura, ataques à imprensa, os discursos de ódio, as repressões violentas as manifestações populares, a militarização dos governos, a necropolítica são expressões do enfraquecimento da democracia brasileira. Aqui se configura nossa encruzilhada, para termos democracia precisamos enfrentar as desigualdades sociais, ampliar os acessos à direitos, construir justiça social, efetivar a participação, em especial daqueles e daquelas que estão na base da pirâmide social e que nunca tiveram voz ativa nos processos políticos.

Por fim, a preocupação com o papel dos profissionais do Serviço Social nesse conjunto de desassossegos. O trabalho dos assistentes sociais é também um campo de disputa de projetos, concepções e recursos nas gestões e políticas públicas. Historicamente, as convocações do trabalho respondem a diferentes interesses e em conjunturas autoritárias e antidemocráticas se sobressaem demandas, concepções e convocações conservadoras. A profissão está envolvida diretamente com a construção cotidiana das expressões da sociabilidade capitalista. Ao mesmo tempo, estamos confrontadas e confrontados pela realidade social, pelo aprofundamento das desigualdades sociais, pela manutenção de taxas elevadas de desemprego, insegurança e instabilidade nos empregos, crescimento do trabalho informal, pelo aumento da pobreza e da violência, vivenciada cotidianamente pela maioria da população, mas também pelos profissio -

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9 IANNI, O. A ideia de Brasil Moderno. São Paulo: Editora Brasiliense, 1992.

nais de Serviço Social, que como os demais trabalhadores assalariados, experimentam a precarização e insegurança do trabalho não protegido, o achatamento salarial, a desproteção social e trabalhista, o assédio moral, o sofrimento e o adoecimento decorrentes do trabalho, ou seja, a precarização do trabalho e da vida (RAICHELIS, 2018, p. 51-52)10 .

Só temos saídas políticas e profissionais se nos somarmos e alinharmos com a contracorrente dos trabalhadores e movimentos sociais que resistem e constroem o novo. É no cotidiano profissional que se expressam as requisições, desafios, impasses do trabalho, ao mesmo tempo, é nesse espaço da atuação profissional que se apresentam as possibilidades de superação e criação de um esperançar coletivo. Como nos diz Caetano Veloso e Gilberto Gil, em sua bela música Divino Maravilhoso (1968)11, “[...] é preciso estar atento e forte [...]”.

Para esses desassossegos, o livro traz muitas reflexões, pistas e caminhos, para estarmos “atentos e fortes”. Uma contribuição para o debate acadêmico, para a formação de trabalhadores sociais, leitura necessária para o enfrentamento qualificado das novas exigências do contexto social e político do país e para a construção de alternativas afinadas como os direitos humanos e a justiça social.

Um convite à leitura.

Rosangela Dias Oliveira da Paz Agosto de 2022.

10 RAICHELIS, R. Serviço Social: trabalho e profissão na trama do capitalismo contemporâneo. In: RAICHELIS, R.; VICENTE, D.; ALBUQUERQUE, V. (orgs.). A nova morfologia do trabalho no Serviço Social. São Paulo: Cortez, 2018.

11 DIVINO, Maravilhoso. Intérprete: Gal Costa. Compositores: Caetano Veloso e Gilberto Gil. In: Gal Costa. Intérprete: Gal Costa. Rio de Janeiro: Phonogram/Philips, 1968. Disco de Vinil (Long Play). Lado B. Faixa 2.

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APRESENTAÇÃO1

Apresentamos nosso livro Produção do espaço, vida cotidiana e Serviço Social: diálogos com e além de Henri Lefebvre com a alegria de quem construiu um caminho coletivo e, agora, compartilha seus saberes, fazeres, aprendizados e sistematizações. O ponto de convergência que agregou diferentes caminhos e pessoas foi a criação do UrbanoSS - Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Espaço Urbano, Vida Cotidiana e Serviço Social, na Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FSS/UERJ).

Nascido no ano de 2016, o UrbanoSS tem sua trajetória associada a uma prática coletiva de esperançar que convoca à experimentação e à construção de outras relações possíveis de ensino, ação-reflexão e de prática pedagógica de liberdade e de autonomia, de inspiração freiriana 2 na e da universidade. Relações comprometidas com o fazer e o pensar solidários, críticos e dialógicos entre os sujeitos da educação universitária que são, também, e de forma não menos importante, sujeitos da profissão do Serviço Social e da sociedade. Nesse espírito, foi realizado um convite às/aos estudantes de graduação e de pós-graduação na Faculdade de Serviço Social 3 , para construir e integrar um espaço coletivo de estudo e debate sobre seus objetos de investigação de trabalhos de conclusão de curso, dissertações e teses. Mas, também um espaço que contemplasse suas experiências de “saber feito”, como ensina Paulo Freire4 , a partir de suas trajetórias profissionais e/ou de militância social e política no âmbito das lutas sociais pelo direito à cidade, uma vez que, seus objetos de estudo nasceram como convocação da práxis crítica de ação-reflexão e transformação das relações sociais.

Assim, nasceu o UrbanoSS. Nos seis anos de sua existência, muitas/os das/os antigas/os orientandos permaneceram, mesmo após a de -

1 DOI - 10.29388/978-65-81417-77-2-0-f.19-28

2 FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011; FREIRE, P. Pedagogia da esperança. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014.

3 O convite foi feito pela professora Isabel Cristina da Costa Cardoso às/aos estudantes sob sua orientação.

4 FREIRE, P. Pedagogia da esperança. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014

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fesa de suas monografias, teses e dissertações, novas/os orientandas/os ingressaram e outros/as participantes chegaram, de diferentes lugares de formação e atuação em Serviço Social. Parte dessa trajetória se encontra sistematizada nos capítulos da coletânea. Neste percurso, uma de nós passou da condição de ex-orientanda e integrante do UrbanoSS, à condição de professora e companheira de trabalho na FSS/UERJ, dividindo a coordenação do grupo e, agora, a organização desta coletânea 5 . Parte dessa trajetória se encontra sistematizada nos capítulos da presente publicação.

A linha de costura proposta para entrelaçar diferentes objetos e acúmulos pessoais de saberes e de fazeres foi o pensamento de Henri Lefebvre e a centralidade da produção social do espaço para a ação-reflexão do Serviço Social sobre a dialética de produção e (re)produção das relações sociais. Este autor foi apresentado não como “solução” para as indagações e questões sobre objetos e processos de ação-reflexão sobre o mundo, a partir das relações sociais capitalistas de uma sociedade latino-americana como a brasileira, visceralmente marcada pelos processos tempo-espaciais do colonialismo e da colonialidade como forma-conteúdo da reprodução desigual e combinada do capitalismo na periferia. Mas como um caminho fecundo e desassossegado para a práxis, dimensão humana tão acalentada pelo autor na sua expressão trinitária e dialética do repetitivo, do mimético e da utopia como capacidade criadora humana e que mantém aberta a possibilidade da história como práxis do devir humano ou, em suas palavras, do projeto possível-impossível.

Mas é importante esclarecermos: a ideia de desassossego é aqui por nós acionada para acolher e expressar o que Lefebvre reflete no capítulo intitulado “Antropos ou cibernantropos: contribuição para a problemática do humanismo”, integrante do livro Contra os tecnocratas (1968), como o sofrimento que nasce da atitude que “[...] não hesita em tornar agudas as contradições, em dizê-las, em gritá-las sem dissimulá-las debaixo das flores da retórica.” (LEFEBVRE, 1968, p. 202)6 . Eis o desassossego que estimula e impele as reflexões e os escritos do UrbanoSS, aqui reunidos e apresentados na coletânea: reconhecer as contradições

5 Em 2017, Daniele Batista Brandt passou a integrar o corpo docente da FSS/UERJ.

6 Esta reflexão foi desenvolvida no capítulo intitulado “Antropos ou cibernantropos: contribuição para a problemática do humanismo”, integrante do livro Contra os tecnocratas (LEFEBVRE, 1968).

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da práxis, a partir das relações sociais capitalistas, para transformá-las em novas sínteses possíveis de práxis criadora. O possível baseado “[...] não na análise do atual, mas na crítica do atual [...]” enquanto ação estrategicamente orientada com alcance revolucionário do que, até então, era impossível (LEFEBVRE, 1968, p. 174).

Ao longo do tempo de nosso desenvolvimento como grupo de estudos, a leitura e o debate sobre a obra e o pensamento de Henri Lefebvre compôs o repertório formativo do UrbanoSS, notadamente a partir da tríade re-produção das relações sociais/produção social do espaço/vida cotidiana, com destaque para a problemática espacial como dimensão analítica e empírica das formas e conteúdos da relação natureza/sociedade/cultura. Mas um desafio assumido pelo grupo foi ir além de Lefebvre, colocando-o em diálogo com outras/os autoras/es, notadamente do pensamento social latinoamericano, a partir da escolha de temas e eixos problematizadores sobre as relações sociais e as diferentes problemáticas espaciais.

Assim, no ano de 2019, o UrbanoSS organizou o ciclo de estudos “[...] a produção social do espaço urbano e a interseccionalidade das relações sociais de raça, gênero e classe.”. No final de 2020 e ao longo do ano de 2021, já sob o contexto da pandemia de COVID-19 e das transformações decorrentes e aprofundadas pelo contexto pandêmico no cotidiano da vida social, em particular para o âmbito das relações e das práticas das instituições de educação, o UrbanoSS organizou o novo ciclo de estudos “Contradições e impactos do desenvolvimento capitalista sobre a re-produção socioambiental e fundiária do espaço: o que temos a aprender com as práxis anticapitalistas e suas pedagogias populares?” 7. Considerando a sua realização de forma remota através da mediação tecnológica, em razão da necessidade de distanciamento social, o ciclo foi aberto à participação de novas/os participantes, inclusive de grupos de estudos, pesquisa e extensão, para além do Rio de Janeiro.

7 Cabe aqui a menção importante desse novo ciclo de estudos ter contado, notadamente, com a participação, as trocas e aprendizagens propiciadas por professoras/es e alunos/as dos grupos de Pesquisa “Política Urbana e Movimentos Sociais” (GPPUMA) e “Sociedade, Territórios e Resistências na Amazônia (GESTERRA) do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Federal do Pará. Esses grupos guardam relação com a história de constituição e desenvolvimento das ações extensionistas do Programa de Apoio à Reforma Urbana (PARU), também da FSS/UFPA.

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Por último, cabe destacar que esta coletânea não se restringe à apresentação do percurso de ação-reflexão deste grupo de estudos e pesquisas, bem como de seus integrantes, o que por si já teria sua importância. Mas, até mesmo a elaboração da presente coletânea foi assumida pelo UrbanoSS como parte de um processo formativo, solidário e dialógico. Para tanto, os manuscritos foram socializados entre as/os integrantes do grupo e, em seguida, foram realizados dois encontros, em julho de 2021, para apresentação pelas/os suas/os autoras/es e discussão coletiva. Desse modo, mais do que uma coleção de diferentes obras individuais, a presente coletânea busca evocar o sentido de obra a partir do trabalho coletivo e das/os que vieram antes de nós, das/os que compartilharam desses espaços-tempos, com a esperança que venha a inspirar novas ações e reflexões sobre o espaço urbano, a vida cotidiana e o Serviço Social. O primeiro capítulo que abre a coletânea, intitulado “A Produção Social do Espaço e Seus Campos Cegos: o desafio de seguir com e além de Lefebvre”, de autoria de Isabel Cristina da Costa Cardoso, em consonância com as proposições metodológicas deste autor, busca alargar o campo de reflexão e atuação sobre as contradições do e no espaço e da vida cotidiana. A autora, inspirada em Lefebvre, chama atenção para a necessidade de reconhecer os campos cegos produzidos no interior dos debates da chamada “questão urbana” por uma miríade de campos disciplinares do conhecimento científico. Assim, interroga algumas “zonas estáveis” dos saberes acadêmicos, como condição e caminho para o desafio de não só reconhecer o exercício desse poder cegante, mas de desejar transformá-lo. Nessa direção, o capítulo dialoga com a obra e o pensamento de Henri Lefebvre e propõe ir além dos seus estudos da produção social do espaço, do urbano, da vida cotidiana e do direito à cidade, a partir das contribuições do pensamento social crítico Latino-Americano sobre neoextrativismo , expropriações, decolonialidade; das reflexões de Rosa Luxemburgo e Nancy Fraser sobre a violência espoliadora e opressora das condições de reprodução ampliada do capital; do “giro ecoterritorial” do pensamento latino-americano, a partir da articulação das lutas indígenas e novas militâncias territoriais/ecológicas e feministas; e das contribuições teórica e política dos pensamentos de Clóvis Moura, Abdias do Nascimento, Lélia Gonzalez sobre o racismo como práxis e relação social estruturante da

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formação brasileira e as lutas antirracistas.

O capítulo seguinte, “Transporte, Mobilidade Urbana e Serviço Social: quando o urbano extrapola a política urbana”, de Daniele Batista Brandt, enfatiza a importância do tema enquanto preocupação teórico-prática dos assistentes sociais presente em diferentes campos de atuação. Segundo a autora, o uso do transporte para deslocamento no espaço, apesar de uma das atividades mais presentes em nosso cotidiano, apresenta grandes desigualdades de acesso pela classe trabalhadora na atualidade, constituindo uma das expressões da questão social e da problemática urbana, com grande potencial para fomentar lutas por direitos sociais e pelo direito à cidade. A autora oferece uma inusitada leitura do transporte e da mobilidade urbana a partir da teoria social crítica, em especial da contribuição Henri Lefebvre, assim como da relação do tema com a saúde, tendo como referência o cotidiano de trabalho de assistentes sociais em serviços de saúde, frente à qual problematiza as respostas do Estado brasileiro, com base em levantamento das ações governamentais para transporte de pessoas com doença crônica e/ou deficiência na cidade do Rio de Janeiro.

O terceiro capítulo, “’Desde o momento em que há movimento há utopia’: aportes do marxismo lefebvriano para pensar a práxis revolucionária na dimensão da vida cotidiana”, de autoria de Mónica Brun Beveder, recuperar a importância da crítica da vida cotidiana em Lefebvre, entendendo-a como parte do projeto intelectual e político emancipador do autor, para analisar a relação entre práxis e utopia. Segundo Mónica a vida cotidiana, terreno sobre o qual se projeta o possível-impossível, é o lugar do hegemônico, da reprodução, da subordinação e das proibições, mas é também do novo, da contestação, da utopia de uma práxis revolucionária. Assim, a autora recupera a centralidade da teoria dos resíduos de Lefebvre que, nas brechas de uma vida cotidiana programada, se conecta à práxis criadora do novo, que pode mobilizar a utopia, enquanto expressão de esperança e de resistência.

Os três capítulos que se seguem elegem a dimensão ambiental da produção social do espaço e da vida social como eixo condutor das reflexões sobre as relações sociedade, natureza, cultura na sociedade capitalista a partir de cenas históricas e espaciais de conflitos socioambientais

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em distintos territórios e a partir de seus diferentes sujeitos. No capítulo quatro, sob o título “Movimentos sociais ambientais em Macaé e a questão urbana: a crítica no contexto de uma urbanização ecológica”, Matheus Thomaz da Silva volta sua atenção para as expressões da resistência à questão social e à problemática ambiental, a partir da atuação de movimentos sociais na cidade de Macaé-RJ, pequeno município com economia baseada em agricultura que, a partir de 1970, passou a cidade de porte médio, sede de um importante polo de prospecção de petróleo. Segundo o autor, houve um deslocamento da pauta dos movimentos ambientais, que aderiram à ideia de desenvolvimento sustentável, além de um processo de institucionalização em torno da Agenda 21. Cabe destacar que, além de apresentar um olhar crítico sobre o tema, orientado pela matriz teórico-metodológica marxiana, o autor dialoga com o pensamento decolonial, na perspectiva da ecologia política do Sul, ângulo pouco explorado pelo Serviço Social brasileiro.

O quinto capítulo, “Resistências contra a privatização da água no Rio de Janeiro: aproximações necessárias ao debate dos comuns, de Caroline Rodrigues da Silva e Bruno Alves de França, recuperar a experiência de luta contra a privatização da água no Rio de Janeiro, a partir da Campanha “Água Boa para Todos e Todas”, nos anos de 2020 e 2021. É resultado de um vigoroso esforço de sistematização dos autores, que apresenta o histórico do processo de mobilização da Campanha e enfatiza a diversidade entre os sujeitos políticos e as estratégias políticas adotadas no processo de resistência. Recupera os antecedentes do processo de privatização da Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro (CEDAE), colocando em evidência os fatos por trás dos argumentos da privatização como única saída para a universalização e a melhoria dos serviços de água e esgoto no estado. Além disso, traz importantes reflexões, informadas pelo paradigma dos comuns, para a construção de alternativas para a gestão das águas nas cidades.

Marina Rodrigues e Fábio Fraga abrem o sexto capítulo com o crime ambiental provocado pela empresa Samarco, no ano de 2015, há exatos sete anos, e elegem o plano de manejo de rejeito (PMR) implantado pela Fundação Renova, responsável pela execução das atividades de recuperação da bacia do Rio Doce, como objeto das reflexões. O

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objetivo do texto é analisar o documento guia de recuperação das áreas degradadas, o PMR, a partir da seguinte questão norteadora: a aplicação do PMR leva em consideração os aspectos da vida cotidiana, as particularidades do modo de vida de cada comunidade afetada, os prejuízos culturais, a pluralidade dos espaços e impactos na divisão do trabalho e na autonomia dos indivíduos? Um crime ambiental de tamanha proporção destruidora para as formas de vida humana e não humana, as populações urbanas e rurais, os ecossistemas e a sociobiodiversidade, mantenedoras de bacias hidrográficas e das terras indígenas, desnudou a violência que acompanha historicamente o capitalismo extrativista, e, em especial, a cadeia produtiva extrativista da mineração que, para existir, anda de mãos dadas com o Estado.

Raphael Martins de Martins, em seu capítulo “A propriedade fundiária e a ‘questão social’: em busca da particularidade comum de suas diversas dimensões relativas à terra”, nos chama a “desatar” o nó da terra que, segundo o autor, é a particularidade comum que, no movimento do real, relaciona diferentes dimensões da “questão social”. Para tanto, propõe uma hipótese: há uma particularidade comum às expressões da “questão social” que se relacionam à terra. O segredo para o desvelamento de tais expressões está na crítica da economia política. Contudo, apenas tal desvelamento não se mostra suficiente. Faz-se necessário compreender a formação da propriedade da terra no Brasil, apreender as contradições relacionadas à produção do espaço e a constituição de sujeitos sociais na luta de classes. Ciente de que a produção social do espaço é fundamento teórico e metodológico para “desatar” o nó da terra, o autor elege o semiárido nordestino cearense como território da análise a partir do qual é problematizada a dialética das contradições da transformação da terra em propriedade privada e mercadoria como fundamento das desigualdades sociais e da reprodução social.

Na sequência das veredas abertas pela coletânea , a autora Daiane da Silva Pacheco, interrompe o fluxo tradicional das reflexões sobre a problemática do espaço, particularmente do fenômeno urbano, para alertar as/os leitoras/es sobre o argumento central de seu texto: as relações sociais que (re)produzem o espaço são interseccionadas por desigualdades de gênero, raça e classe. Não é possível, assim, corroborar

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com as práticas de hierarquização cognitiva e política dessas relações sociais de opressão e exploração. Para a autora do capítulo “A (re)produção social do espaço: contribuições a partir da perspectiva interseccional”, nossa formação socioterritorial é atravessada interseccionalmente por desigualdades de gênero, raça e classe, reveladoras do grau de complexidades e contradições inerentes a relação trinitária capitalismo, patriarcado e racismo. Assim, os desafios para (re)apropriação das formas de habitar o espaço urbano e as estratégias de enfrentamento às desigualdades estruturais estão visceralmente relacionados a uma pauta ampla e plural, antirracista e anticapitalista. Adentrando as interligações entre o campo profissional do Serviço Social e da política pública de habitação de interesse social, a coletânea chega ao nono e ao décimo capítulos, de autoria de Patrícia Nicola Menezes e Natália Coelho de Oliveira, respectivamente. No capítulo intitulado “A Zona Oeste como eixo de expansão urbana para habitação de interesse social na cidade do Rio de Janeiro: considerações a partir do Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV) em Senador Camará”, Patrícia Nicola Menezes analisa a referida região enquanto eixo de expansão urbana de ocupação da cidade, notadamente dos usos sociais da terra para produção de habitação de interesse social, pela política pública municipal de habitação. Para tanto, parte do território do bairro de Senador Camará e de sua experiência profissional como Assistente Social junto à produção habitacional do referido Programa. Suas análises corroboram os estudos realizados no âmbito do Serviço Social e de outros campos disciplinares que problematizam o PMCMV como um vetor importante, ainda que relativamente recente, de expansão da cidade, a partir do clássico caminho de produção da moradia com urbanização rarefeita, tecido urbano socialmente fragmentado, com déficit de infraestrutura, de equipamentos, de serviços públicos e de empregos.

O décimo capítulo, “Determinações Contemporâneas do Trabalho Social na Habitação”, de autoria de Natália Coelho de Oliveira, adentra o universo do trabalho social na política de habitação e busca identificar e problematizar algumas de suas determinações contemporâneas, dando centralidade ao processo de precarização do trabalho do Assistente Social a partir das práticas de terceirização do trabalho social

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pelos poderes públicos municipais. Seguindo os caminhos de sua pesquisa, a autora identifica a disseminação e institucionalização de conteúdo conservador e padronizado no que tange ao atendimento da população usuária. Assim, ocorre a propagação das condições materiais e subjetivas de alienação do sujeito trabalhador, posto que a prática da terceirização estabelece a fragmentação entre os que planejam e os que executam, entre os que fazem e os que fiscalizam o trabalho, fracionando o trabalhador coletivo em diferentes “átomos” de trabalho, aparentemente desconexos e, por isso mesmo, menos conscientes de sua condição de criadores do trabalho social, imprimindo na prática profissional, funções de controle social relacionadas às origens históricas.

Os dois últimos capítulos que fecham a coletânea trazem o protagonismo dos movimentos sociais de luta pela terra no campo e na cidade para o centro do debate. Caroline Magalhães Lima, no décimo capítulo, intitulado “A atuação profissional de assistentes sociais na “questão agrária”: uma experiência de assessoria junto a movimentos sociais”, nos oferece uma chave interpretativa sobre a questão agrária no Ceará através da experiência de atuação profissional, como professora de Serviço Social, no município cearense de Aracati, realizada entre 2016 e 2018, junto à Brigada Bernardo Marín, do Movimento das Trabalhadoras e dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST). O exercício profissional, ao priorizar as dimensões investigativa e interventiva no âmbito da assessoria, contribuiu para aproximação e articulação entre as populações dos territórios acompanhados e a comunidade acadêmica, através da mediação importante da atividade de extensão universitária, vinculada a uma faculdade local. Dentre as diversas questões abordadas e problematizadas, cabe destacar a contribuição do texto para a compreensão do trabalho do Assistente Social junto aos movimentos sociais e para a implementação das diretrizes curriculares do Serviço Social, ao enfatizar: 1) a centralidade do ensino da questão agrária na compreensão do processo de desenvolvimento histórico-espacial da formação brasileira; e 2) a função social e popular da extensão universitária.

Ao partir de sua tese de doutoramento em Serviço Social, Maria Gorete da Gama e Silva escreve o capítulo “Operação urbana consorciada no Rio de Janeiro: luta e resistência pelo direito à moradia digna”, em

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colaboração com Sandra Helena Ribeiro Cruz e Maria Elvira Rocha de Sá, professoras de Serviço Social e importantes referências históricas e afetivas que a formaram como Assistente Social na Universidade Federal do Pará. Sandra e Maria Elvira iniciaram Maria Gorete nos trabalhos de extensão e pesquisa universitárias sobre a questão urbana e as lutas dos movimentos sociais por terra e moradia em Belém-PA, através do PARU (Programa de Apoio à Reforma Urbana), uma referência histórica da extensão universitária na profissão. O capítulo das três autoras analisa a Operação Urbana Consorciada do Porto do Rio de Janeiro (OUC do Porto), iniciada em 2009, pela Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro, através de parcerias público-privadas comandadas por consórcios entre capitais de grandes empresas do ramo da construção civil, e a subordinação da questão das necessidades habitacionais de interesse social às práticas rentistas, fundiárias e de transformação capitalista da terra urbana em finança, pela referida OUC.

Por fim, reiteramos nossa intenção e o esperançar coletivo que as reflexões aqui reunidas contribuam para reforçar e fundamentar a importância da dimensão do espaço ou da problemática espacial, no sentido lefebvriano, para o Serviço Social. A sincronia e a diacronia do tempo histórico não se realizam sem se tornarem realidades concretas e empíricas no espaço. Assim, defendemos que o espaço importa ao Serviço Social pois, uma vez socialmente e historicamente produzido e com ele as práticas materiais e simbólicas espaciais, torna-se meio, condição e produto, bem como possibilidade e/ou limite à própria existência e reprodução das formas de vida humana e não humana das sociedades, revelando que o espaço não é “inerte” e, muito menos “pano de fundo” da história.

Rio de Janeiro, julho de 2022. Isabel Cristina da Costa Cardoso e Daniele Batista Brandt (Organizadoras)

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A PRODUÇÃO SOCIAL DO ESPAÇO E SEUS CAMPOS

CEGOS: O DESAFIO DE SEGUIR COM E ALÉM DE LEFEBVRE1

O real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia. (Guimarães Rosa)

I. Considerações metodológicas sobre os campos cegos dos estudos urbanos e do UrbanoSS: a ousadia de ir com e além de Henri Lefebvre

O estudo sobre o espaço como dimensão analítica e empírica das formas e conteúdos da relação natureza/sociedade/cultura, tão fundamental quanto a dimensão histórica da realidade, compõe o repertório dos processos formativos do UrbanoSS - Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Espaço Urbano, Vida Cotidiana e Serviço Social 2 , da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FSS/ UERJ), notadamente influenciado pela obra e o pensamento de Henri Lefebvre a partir da tríade re-produção das relações sociais/ produção social do espaço/vida cotidiana.

Contudo, a partir de 2018, o UrbanoSS decidiu sair da sua “zona de conforto” com a qual se acostumou a pensar e a agir sobre o espaço urbano. O grupo partiu do reconhecimento de que a produção teórica crítica da tradição marxista sobre produção social do espaço, em especial a produção do Serviço Social sobre questões agrária, urbana ou ambien-

1DOI - 10.29388/978-65-81417-77-2-0-f.29-70

2 O UrbanoSS foi criado em 2016, como estratégia de formação coletiva e de estudos dos/ as alunos/as da graduação e da pós-graduação em Serviço Social, da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Rio de Janeiro, que, em algum momento de suas trajetórias acadêmicas, estiveram sob minha orientação. Seu objetivo original foi criar estratégia coletiva e solidária para estudo da obra de Henri Lefebvre e compartilhamento dos objetos particulares de pesquisa, visando a interlocução e o aprendizado compartilhados. Assim, nasceu e cresceu o UrbanoSS. A citação à obra de Guimarães Rosa sintetiza o caminho até aqui: o aprendizado ocorre é na travessia.

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tal, privilegia as relações sociais de classe. São residuais as análises que se pautam na direção do estudo e da investigação das relações interseccionais de classe, raça e gênero enquanto dinâmicas estruturadoras e qualificadoras da produção e reprodução social do espaço da sociedade brasileira, nas diferentes e heterogêneas escalas territoriais (local, regional, nacional, internacional) e de sua articulação desigual, dependente e periférica frente às escalas mundial e latino-americana das relações sociais capitalistas. Da mesma forma, o contrário também é verdadeiro. Estudos sobre relações sociais de raça, gênero e classe, de forma interseccional ou não, também não costumam tomar o espaço como dimensão estruturadora da vida social ou o fazem de forma mais pontual, reproduzindo uma compreensão do espaço como “pano de fundo” da história e das relações sociais. Assim, do conjunto dessas reflexões nasceu a formação do ciclo de estudos intitulado “a produção social do espaço urbano e a interseccional idade das relações sociais de raça, gênero e classe”, no primeiro semestre de 2019.

Entre os anos de 2020 e 2021, visando aprofundar seu percurso formador, o UrbanoSS estabeleceu um novo desafio: debater as práxis anticapitalistas e suas pedagogias populares para a produção social do espaço a partir do movimento dialético das contradições nascidas da reprodução expandida do capital, sobre os alicerces de uma produção capitalista cada vez mais espoliadora e destruidora do espaço nas sociedades latino-americanas. Nasceu, assim, o ciclo de estudos intitulado “contradições e impactos do Desenvolvimento capitalista sobre a (re)produção socioambiental e fundiária do espaço: o que temos a aprender com as práxis anticapitalistas e suas pedagogias populares?”.

Ao seguir as veredas abertas por essa trajetória de estudo e debate, o capítulo pretende dialogar com o público leitor sobre algumas reflexões nascidas desses dois campos de estudos do UrbanoSS sobre a produção social do espaço na sociedade capitalista brasileira, enquanto legado de um processo de ação-reflexão de ousadia de ir com e além de Henri Lefebvre, nossa raiz teórica e política central e inspiradora. Para tanto, o texto propõe uma cena de convergência entre três elementos.

Primeiro, o referido legado de reflexão e estudo do UrbanoSS a partir da enunciação de algumas questões inspiradoras e propositivas para o alarga-

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mento da análise da “problemática espacial”3, nos termos lefebvrianos.

Segundo a obra Manifesto Diferencialista, de Henri Lefebvre (1975), notadamente a enunciação do direito à diferença, a crítica às atitudes intelectuais e práticas redutoras que negam as diferenças, a sua crítica à anulação das diferenças entre crescimento e desenvolvimento pelas sociedades capitalistas e do chamado socialismo real e a consequente concepção de progresso como crescimento acelerado e sem limites, a partir de modelos e política homogeneizadoras de dominação socioespacial ancoradas no produtivíssimo, no crescimento ilimitado, no emprego da técnica e da ciência esvaziadas de sentido de apropriação humana e nos modos de vida do consumo dirigido.

Nas palavras do autor, o primeiro objetivo do manifesto diferencia lista é se contrapor à indiferença que existe no plano teórico e prático entre crescimento e desenvolvimento e, em particular, da subordinação mecânica do momento qualitativo do desenvolvimento às promessas e projetos de crescimento exponencial e sem limites (momento quantitativo onde predominam modelos a seguir). Assim, Lefebvre se contrapõe tanto ao pensamento liberal quanto à dogmática stalinista. Essa última foi responsável por produzir a mesma indiferença, ao esvaziar a dialética materialista do pensamento de Marx e desconsiderar a contribuição da teoria do desenvolvimento desigual de Lenin. Caberia acrescentar a contribuição de Trotsky e sua teoria do desenvolvimento desigual e combinado a essa lista de banimentos intelectuais e militantes marxistas pelo stalinismo e a vulgarização estruturalista do materialismo dialético. Para

3 Segundo Lefebvre, “Há nas nossas sociedades uma ‘problemática do espaço – conceitual, teórica –, e uma prática, observável empiricamente. Esta ‘problemática’, para empregar a linguagem da filosofia, compõe-se de interrogações sobre o espaço mental e social, sobre suas conexões, sua ligação com a natureza e a lógica etc. A prática espacial, constatável, na Arquitetura, no ‘Urbanismo’ (para empregar a linguagem oficial), no ordenamento efetivo dos percursos e dos lugares, na vida cotidiana, ou seja, na realidade urbana, distingue-se da problemática, mas não pode evidentemente dela se separar. [...] a interrogação a respeito do espaço, tomada por fora da prática e sobre o plano de um ‘puro’ saber que se imagina ‘produtivo’, esta interrogação, ainda filosofante pode, ela também, degenerar. Em que? Em consideração sobre o espaço intelectual, sobre ‘a escritura’ como espaço espiritual de um povo, como espaço mental de uma época etc. A prova do espaço não pode se separar de outra prova: aquela do corpo (da relação do conhecimento teórico com o corpo, fundamento da prática).”. (LEFEBVRE, 2015, p. 442-443).

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Lefebvre a análise dialética de Marx e Lênin introduz uma diferença entre crescimento e desenvolvimento, entre quantidade e qualidade, entre o crescimento gradual e o salto (através de uma fase crítica e um momento negativo). Lênin esclarece a desigualdade do desenvolvimento, demonstrando “[...] que os diferentes níveis (base, estrutura e superestrutura) não se modificam simultaneamente, nem da mesma forma [...]. As contradições não atuam e não se resolvem simultaneamente em todos os níveis.”. (LEFEBVRE, 1975, p. 18).

Contudo, nessa direção da problemática metodológica da sincronicidade e da diacronia do tempo histórico e de sua empiricização na constituição espacial das diferentes formações sociais, cabe destacar a contribuição seminal, mas não incorporada por Lefebvre, de Rosa Luxemburgo, através de sua obra A Acunulação do Capital (2021), a partir da polêmica aberta com a suposição de Marx, no primeiro e no segundo volumes de O Capital, “[...] de que a produção capitalista é a forma única e exclusiva da produção.”4 (LUXEMBURGO, 2021, p. 487). Assume-se aqui que a contribuição marxista de Rosa Luxemburgo, assim como as de Lenin e de Trotsky, vem ao encontro das preocupações lefebvriana com modelos redutores, homogeneizadores da vida social, ao trazer para o primeiro plano da análise que a pretensão de universalização das relações capitalistas não ocorre sobre um tempo-espaço “alisado” de diferenças, mas sim a partir do “[...] intercâmbio entre o capital e o meio histórico que o rodeia [...]” (LUXEMBURGO, p. 493) das realidades espaciais, sociais,

4 Segundo as palavras de Luxemburgo (2021, p. 492), “Era aqui que entrava a minha crítica. Admitir, teoricamente, uma sociedade exclusivamente composta por capitalistas e trabalhadores é uma suposição perfeitamente lícita e natural quando se tem em vista determinados fins de investigação – como acontece no primeiro volume de O Capital, com a análise dos capitais individuais e de suas práticas de exploração na fábrica, mas eu achava que era inoportuno e perturbador ao focalizar o problema da acumulação do capital social em conjunto. Como esse fenômeno reflete o verdadeiro processo histórico da evolução capitalista, acreditei ser impossível estuda-lo sem ter presente todas as condições dessa realidade histórica.”). Para Luxemburgo (p. 475), o que caracteriza a produção capitalista e seu processo de acumulação “[...] não é somente a obtenção de lucros em moeda sonante, mas a obtenção de lucros em uma progressão cada vez maior.”, a acumulação e a reprodução expandida do capital só pode ocorrer através do “[...] intercâmbio do capital com os meios não capitalistas. [...] Nos países de ultramar, sua primeira ação foi o ato histórico com que surge o capital e que, desde então, não deixa de acompanhar nem por um só momento a acumulação, ato que consiste na dominação e no aniquilamento da comunidade tradicional.” (p. 489).

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econômicas e culturais de diferentes modos de vida não capitalistas. Muitos já foram extintos, outros tantos persistem subordinada mente até a sua invisibilização, que subjaz à lógica assimilacionista de um único “tempo histórico”, o do capital, e outros ainda persistem sob a forma de saberes e práticas tradicionais e ancestrais. As lutas pela autodeterminação e direitos das populações tradicionais indígenas e não indígenas, como o direito à terra e seus modos de vida e relação humanidade-natureza, no Brasil, é uma expressão do que podemos interpretar como luta pelo direito à diferença em relação à (e no interior da) sociabilidade capitalista. Nesse sentido, tais lutas expressam a práxis poiética criadora/sustentadora das formas de ser e de viver não capitalistas e/ou que colidem com essas formas de ser e de viver da ordem do capital, revelando, também, que a modernidade (LEFEBVRE, 1969) pressupõe dialeticamente a tradição. Mas não a tradição sob a forma do “mito da vida nova” que nos fala Lefebvre, na obra Introdução à modernidade, reduzida ao simulacro da fuga da tecnicidade, da reivindicação da “pura natureza” ou de uma perspectiva nostálgica que “[...] traga de volta do longínquo passado da inocência cósmica e ressuscite em nós o mundo perdido e esquecido.” (LEFEBVRE, 1969, p. 157), e pronto para ser consumido. Ao contrário, trata-se da relação dialética modernidade-tradição a partir das sínteses de suas contradições, como campo do “possível-impossível” à práxis de apropriação.

A partir do direito à diferença, das capacidades criadoras diferenciais dos resíduos, conceito fundamental através do qual, como afirma Martins (2021, p. 27) é possível flagrar “[...] a brecha residual no socialmente reprodutivo e repetitivo [...]”, pode-se, por exemplo, melhor compreender o sentido criador e emancipador do espaço diferencial no pensamento lefebvriano e a sua crítica enfática à reprodução das relações sociais de produção capitalistas baseadas na homogeneização das práticas socioespaciais da segregação e na transformação redutora, normalizadora e empobrecedora da vida cotidiana em cotidianidade programada do consumo dirigido (no e do espaço). Assim, o Manifesto Diferencialista oferece uma chave interpretativa potente para a compreensão da reprodução das relações sociais.

Fechando a cena de convergência fundadora dos argumentos do texto, destaca-se o terceiro elemento: a proposição metodológica lefeb -

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vriana dos “campos cegos” e de sua dialética cegante/cegado como analisada na obra A Revolução Urbana (LEFEBVRE, 2002). A dinâmica que movimenta e constitui os campos cegos, notadamente o urbano como campo cego, é assim explicada por Lefebvre:

[...] os campos cegos são, ao mesmo tempo, mentais e sociais. Para compreender sua existência, é preciso reportar-se ao poder das ideologias (que iluminam outros campos ou fazem surgir campos fictícios) e, por outro lado, ao poder da linguagem. [...] Voltemos ao contraste entre cegante e o cegado. O cegante é a fonte luminosa (conhecimento e/ou ideologia) que projeta o facho de luz, que ilumina alhures. O cegado é o olhar ofuscado; é também a zona deixada na sombra. De um lado uma via se abre à exploração; de outro, há uma barreira a romper, uma sansão a transgredir. (LEFEBVRE, 2002, p. 40).

A proposta metodológica do “campo cego” articula-se à compreensão de Lefebvre sobre a “fase crítica” que fundamenta o urbano ou a sociedade urbana como campo novo, uma virtualidade dialética e utópica do “possível-impossível”, mas ainda tensionada e encapsulada pelas forças, os conflitos e as contradições constitutivas da transição “[...] entre duas épocas, no meio, no corte, ou nas dobras [...] entre o industrial e o urbano.” (LEFEBVRE, 2002, p. 37). Assim, Lefebvre designa o rural, o industrial e o urbano como três campos, camadas ou épocas

[...] não apenas de fenômenos sociais, mas de sensações e de percepções, de espaços e de tempos, de imagens e de conceitos, de linguagem e de racionalidade, de teorias e de práticas sociais [...] com emergências, interferências, desencontros, avanços e atrasos, desigualdades de desenvolvimento e, sobretudo, transições dolorosas, fases críticas.

[...] Entre os campos, que não são aprazíveis, mas campos de forças e conflitos, existem campos cegos. Não somente obscuros, incertos, mal explorados, mas cegos no sentido em que há, na retina, um ponto cego, centro da visão e, contudo, sua negação. Paradoxos.

[...] Esses paradoxos não se estendem ao pensamento, à consciência, ao conhecimento? Assim, ontem, entre o rural e o industrial; hoje, entre o industrial e o urbano, não existe campo que não se vê?

Em que consiste tal cegueira? No fato de olharmos atentamente o campo novo – o urbano- vendo-o, porém, com os olhos, com os conceitos, formados pela prática e teoria da industrialização, com um pensamento analítico fragmentário e especializado no curso desse período industrial, logo, redutor da realidade em formação. Desde

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então, não vemos essa realidade. Opomo-nos a ela, a afastamos, a combatemos; impedimo-la de nascer e de se desenvolver. O urbano (o espaço urbano, a paisagem urbana) não o vemos. Nós ainda não o vemos. [...] Não se trata somente de uma ausência de educação, mas de uma ocultação. O que olhamos, na verdade, não enxergamos. (LEFEBVRE, 2002, p. 37-38).

A partir dessa proposição metodológica, o texto compreende que a dimensão racial e o racismo estrutural ocupam o lugar do “insignificante”, no sentido lefebvriano (2002), deixada no campo cego da compreensão teórica, prática e política tanto da questão urbana - ou, de forma mais ampla, do fenômeno urbano na dinâmica da produção social do espaço - quanto da vida cotidiana. Argumenta-se, portanto, ser necessário reconhecer e romper com essa trajetória para atribuir sentido e significado centrais à perspectiva teórica e prático-política antirracista como fundamento crítico necessário da problemática espacial, da crítica da vida cotidiana encapsulada pela cotidianidade e da proposição teórica da produção social do espaço. A práxis antirracista inscreve-se, assim, como heterotopia, síntese poiética de uma nova práxis urbana como obra, criadora do direito à cidade (2002). Para tanto, as contribuições da perspectiva analítica da interseccionalidade, bem como os estudos de teoria social crítica do pensamento negro são veredas teóricas e metodológicas importantes capazes de auxiliar tanto os processos investigativos quanto fortalecer a formação e o reconhecimento de práxis socioespaciais criadoras e articuladoras das dimensões de raça, gênero e classe sociais, na perspectivas anticapitalista, antirracista e generificada das lutas sociais e de classe, como possibilidades disruptivas, . Ao fortalecer essa direção da práxis dos saberes e das lutas o texto abre-se também ao diálogo com algumas contribuição de diferentes obras e pensadores latino-americanos dedicados à investigação e à resistência sobre os processos violentos e expropriadores sofridos pelas sociedades latino-americanas e seus povos originários ameríndios, especialmente pelos projetos de dominação imperialista baseados nas práticas extrativistas e neoextrativistas, até hoje, e seu modus operandi violento da despossessão das terras, dos meios e modos de vida, do genocídio étnico-racial e da integração subordinada e dependente às práticas de poder e dominação da colonialidade5 .

5 Aqui se destacam as contribuições do pensamento latino-americano sobre neoextrativis-

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Parte-se do argumento que os dois campos reflexivos que estruturaram os ciclos de estudos do UrbanoSS contribuem para: 1) pensar e agir sobre os limites civilizatórios e planetários da reprodução da acumulação e valorização capitalistas que, para atender sua necessidade de expansão crescente, ocorre sob a expansão também das práticas de violência, da despossessão e destruição dos meios e modos de vida humanos, da destruição da natureza e sua sociobiodiversidade de formas de vida; 2) impulsionar o debate com Lefebvre e para além de Lefebvre acerca da articulação entre re-produção das relações sociais, a produção social do espaço, a vida cotidiana e a dimensão emancipadora da práxis a partir da incorporação de perspectivas analíticas classistas, antirracistas e feministas 6 .

O sentido de ir com e além de Lefebvre aponta na direção de alargar o campo teórico-metodológico crítico e político para a identificação e compreensão das contradições tanto do e no espaço quanto da vida cotidiana; assim como para o reconhecimento, o estudo e o fortalecimento sobre a aquilo que Lefebvre nos ensina como o residual da práxis (os resíduos), seu momento poiético7, criador, que resiste às pretensões domimo, bem comum, bem viver e modernidade-colonialidade. Algumas contribuições teóricas desses campos teóricos e políticos serão abordados ao longo do texto. 6 Nos limites do capítulo não será possível dar ênfase ao pensamento feminista e às lutas das mulheres a partir de uma perspectiva interseccionada de gênero, classe e raça, o que exigiria o aprofundamento do estudo bibliográfico. Não obstante, o texto cotejará algumas das contribuições do pensamento crítico de autoras que se debruçam sobre os processos da acumulação capitalista e da expropriação violenta da reprodução expandida do capital nas sociedades periféricas, como Luxemburgo (2021) e Fraser e Jaeggi (2020), Fraser (2015) e sobre a contribuição do pensamento feminista negro de Lélia Gonzalez (2020). Também será incorporada a contribuição de pensamento social de intelectuais negros como Clóvis Moura (2019, 2020), Abdias Nascimento (2019) para problematizar o racismo na constituição e desenvolvimento da formação brasileira e das relações sociais capitalistas.

7 Como Lefebvre (1967) afirma, a poiésis, como parte criadora da práxis, reúne os resíduos, os irredutíveis, parte do residual. Contudo, para Lefebvre a práxis é triádica, composta dialeticamente pelos momentos contraditórios do repetitivo, do mimético e da criação. Assim, tanto os resíduos como a passagem dos resíduos à práxis revolucionária, na dimensão da práxis poiética, ocorrem historicamente como luta contra a dimensão mimética da práxis que, na sociedade capitalista, persegue o fechamento da história na temporalidade do capital e busca transformar o ser humano em autômato subordinado à mercadoria, à técnica, ao Estado e à tecnocracia, ao espaço dominado em detrimento do espaço apropriado, além de submeter a vida cotidiana à cotidianidade do consumo dirigido e do consequente “terrorismo” (LEFEBVRE, 1991) estruturador de um coti-

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nantes e opressoras tanto dos poderes homogeneizantes do produtivismo e do crescimento ilimitado (LEFEBVRE, 1975) quanto de fechamento e controle sistêmico sobre os diferentes saberes, as práticas, os comportamentos, os desejos e os corpos (LEFEBVRE, 1968).

Não há como ir ao encontro dos resíduos, no sentido como nos ensina Lefebvre, sem uma certa deriva do pensamento e dos sentidos para deixar se surpreender pelo que estava no campo cego (LEFEBVRE, 2002) do (e produzido pelo) conhecimento científico e das formas normativas e disciplinadoras da cotidianidade (LEFEBVRE, 1991). É necessário, assim, reconhecer nossos campos cegos e cegantes no interior dos debates da chamada “questão urbana”, profundamente fragmentados (e fragmentadores do real) pelos diferentes objetos e saberes disciplinares e científicos que invisibilizam, escanteiam, hierarquizam ou mesmo negam outros sujeitos, saberes, práticas e perspectivas analíticas e políticas, notadamente latino-americanas, de adentrar o debate. Tal reconhecimento pressupõe interrogar nossas “zonas estáveis” dos saberes acadêmico e profissional, fundadas sobre relações de poder que também definem hierarquias e desigualdades entre sujeitos racializados, generificados, a partir dos seus lugares de classe e dos territórios que ocupam e reproduzem em nossa sociedade. Nesse sentido, nosso desafio é não só reconhecer o exercício de nosso poder cegante, mas de desejar transformá-lo. Seguindo essas veredas o texto busca dialogar com as contribuições teóricas de Henri Lefebvre, mas, para isso, propõe ampliar criticamente os estudos sobre produção social do espaço, do urbano, da vida cotidiana e do direito à cidade a partir das contribuições: 1) dos estudos e das lutas sociais latino-americanas, de forte tradição ameríndia, sobre neoextrativismo, decrescimento, o comum, o bem comum, o bem viver e sobre o princípio político do comum; 2) das reflexões e proposições teórico-metodológicas de Rosa Luxemburgo (2021) e de Fraser e Jaeggi (2020) e Fraser (2015) sobre a violência espoliadora e estrutural das condições de reprodução ampliada do capital, que ocorre sobre a subordinação violenta e espacial de outras sociedades não capitalistas, seus territórios, modos de vida e sujeitos – contribuição que será também diano programado, normalizado, naturalizado.

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continuada e aprofundada a partir de Harvey e seu conceito de acumulação por espoliação; 3) das contribuições teóricas do pensamento latino-americano referenciado no chamado “giro ecoterritorial”, com destaque para autores e autoras que articulam, como Maristela Svampa (2019, p. 81), “[...] lutas indígenas e novas militâncias territoriais/ecológicas e feministas [...]”; 4) do legado teórico e político de autores como Clóvis Moura, Abdias do Nascimento, Lélia Gonzales sobre as relações raciais, o racismo e as lutas antirracistas para a compreensão histórica e espacial das relações sociais, notadamente das sociedades capitalistas periféricas e submetidas ainda ao poder da colonialidade .

II. “Desestabilizando” as referências para reconhecer os campos cegos.

“É preciso trazer o espaço para dentro da história e deixa-lo falar.” (WALTER-PORTO, 2006, p. 42). Essa frase expõe uma provocativa afirmação de Walter-Porto (2006). Através de outras palavras e a partir da tradição marxista, Lefebvre também produziu forte provocação ao reivindicar ser necessária uma estratégia do conhecimento e da ação revolucionária que expandisse a perspectiva epistemológica marxista e da sua práxis para dar centralidade à problemática urbana, tanto para a compreensão das condições de re-produção das relações sociais quanto da capacidade criadora de uma nova práxis societária emancipadora. Lefebvre sintetiza seu argumento sobre a “problemática urbana”, na obra A revolução Urbana, da seguinte forma: Não deixemos de salientar, mais uma vez, a inversão ou a completa reviravolta das perspectivas habituais. Com efeito, a possibilidade de uma estratégia vincula-se a essa inversão. [...] Geralmente, representase a urbanização como uma consequência da industrialização, fenômeno dominante. A cidade ou a aglomeração (megalópolis) entram, por conseguinte, no exame do processo de industrialização, e o espaço urbano entra no espaço do planejamento geral. Utilizandose da terminologia marxista, considera-se o urbano e o processo de urbanização como simples superestrutura do modo de produção (capitalista e socialista). Pensa-se, muito levianamente, que não há interação entre fenômenos urbanos, as relações de produção, as forças produtivas. A inversão da perspectiva consiste justamente em considerar a industrialização como uma etapa da urbanização, como

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um momento, um intermediário, um instrumento. De maneira que no duplo processo (industrialização-urbanização) o segundo termo torna-se dominante após um período no qual o primeiro prevalecia. (LEFEBVRE, 2002, p. 128).

Assim, Lefebvre propõe a análise sobre a reprodução das relações sociais da sociedade capitalista contemporânea, notadamente através de dois níveis fundamentais: 1) o espaço, a partir do fenômeno urbano ou da problemática urbana como marcador de um novo momento crítico, no sentido de ser portador de uma nova temporalidade histórica do capitalismo e na formulação de perspectivas; 2) a vida cotidiana e a crítica à sua redução à cotidianidade. A partir desses dois níveis da análise Lefebvre desenvolve a perspectiva emancipadora da práxis na forma da abertura histórica revolucionária do direito à cidade e da defesa do direito à diferença 8 .

As características espaciais de simultaneidade, de apropriação, de reunião, de centralidade e da diferença definem conceitualmente as potencialidades emancipadoras do fenômeno urbano na dinâmica da produção do espaço e da formação do projeto do direito à cidade. Assim, Lefebvre destaca as qualidades do espaço, nascidas do urbano, como virtualidades possíveis-impossíveis e que dependem, para seu desenvolvimento, de serem sustentadas em uma nova práxis urbana “[...] suplantando, com sua racionalidade própria, a práxis industrial atualmente realizada [...]” (LEFEBVRE, 2002, p. 128). Ou seja, para Lefebvre é necessária uma estratégia do conhecimento que inverta a perspectiva epistemológica para dar centralidade à problemática urbana, reconhecendo o momento histórico da transição (transição como momento crítico) entre sociedade industrial e sociedade urbana e, nesse sentido, da virtualidade do urbano sob a forma do possível-impossível. Isso significa que, No nível teórico mais elevado, é preciso conceber a mutação (ou transformação) ou revolução) pela qual a sociedade dita industrial se transforma em sociedade urbana. [...]. Pode-se afirmar que os fenômenos ligados à industrialização em determinado quadro global (institucional, ideológico) cederam lugar completamente aos fenômenos urbanos? Que a partir de agora estes subordinam

8 Para aprofundamento da ideia de “diferença” e de direito à diferença recomenda-se a leitura do livro de Lefebvre El manifesto diferencialista (1975).

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aqueles? Certamente que não. Não confundamos a tendência com o realizado. A sociedade atual situa-se na transição, e é nela que se pode compreendê-la. (LEFEBVRE, 2002, p. 127).

Por isso, não se trata de uma estratégia encerrada ao conhecimento, mas de uma nova práxis urbana. Como afirma Lefebvre, A estratégia do conhecimento não pode ficar isolada. Ela visa a prática, ou seja, em primeiro lugar, uma confrontação incessante com a experiência, e , em segundo lugar, visa a constituição de uma prática global, coerente, a prática da sociedade urbana (a prática da apropriação, pelo ser humano, do tempo e do espaço, modalidade superior da liberdade. (LEFEBVRE, 2002, p. 131).

Vivemos essa transição, portanto é no movimento dialético das contradições, que devemos analisar a relação conflituosa entre sociedade industrial e sociedade urbana, entre espaço fragmentado e a dimensão criadora da práxis contida na convocação do direito à cidade. E esses diversos lugares de contradição não são apenas ocupados, exercidos pelos representantes do capital e do Estado na produção de sínteses que impulsionem a reprodução da própria ordem burguesa. Esses lugares de contradição são também ocupados por diferentes segmentos da classe trabalhadora, do campesinato, por movimentos sociais e experiências coletivas, grupos sociais e étnico-raciais que constituem as populações tradicionais, como a população indígena originária de nossa formação social, territorial e histórica milenar, para muito além das fronteiras geopolíticas da modernidade-colonialidade e onde se enraíza o que conhecemos como Amazônia legal. As cosmologias e mitos das populações indígenas, expressam, por exemplo, formas de saber, de narrativas e de práticas da relação sociedade-natureza que não são capitalistas porque não almejam ser tal qual “o povo da mercadoria”, como sintetizou Davi Kopenawa no livro A queda do céu (KOPENAWA; ALBERT, 2015), através do que Bruce Albert descreveu como uma “[...] crítica xamânica da economia política da natureza [...]” (KOPENAWA; ALBERT, 2015, p. 27). Ainda nesses lugares de contradição também estão inseridas outros tantos grupos e segmentos das chamadas populações tradicionais e seus modos de vida, de existência e suas visões de mundo ancestrais, não capitalistas praticantes de sistemas alimentares, de economias, de conhecimentos, de relações natureza-sociedade mediadas por outras formas de

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trabalho também não capitalistas.

Sob tal perspectiva o espaço é social e, ainda que a lógica da mercadoria o fragmente aos pedaços, sob a forma do espaço abstrato, subsumindo-o ao valor de troca de uma mercadoria a ser vendida pelo capital imobiliário e consumida, o fenômeno urbano ou a problemática espacial não é redutível à industrialização ou à sociedade industrial. Aliás, tal redução tem como consequência a apresentação do urbanismo como simulacro do urbano. Da mesma forma, o direito à cidade é uma utopia animada pela dialética lefebvriana do “possível-impossível”, que movimenta a dimensão criadora da práxis espacial urbana, não redutível estrategicamente a um conjunto de reformas e direitos, ainda que o contenha taticamente enquanto expressão de reivindicações e contestações necessárias que politizam as questões urbanas9 e produzem experiências e práticas de democracia concreta. Como afirma Lefebvre (2002, p. 126), Na contestação manifestam-se as ideologias próprias aos grupos e às classes que intervêm, aí compreendidas a ideologia ou as ideologias dos que contribuíram para a elaboração dos projetos, o urbanismo ideológico. A intervenção dos contestadores introduz conflitos nas lógicas sociais [...]. A possibilidade de contestação faz essas lógicas aparecerem enquanto ideológicas e permite sua confrontação, o que mensura o grau de democracia urbana. A passividade dos interessados, seu silencio, sua prudência reticente quanto ao que lhes concerne, dão a medida da ausência de democracia urbana, isto é de democracia concreta. [...] Só por essa via [...] a contestação se transforma em reivindicação.

Se o espaço abriu o texto com uma chave interpretativa provocadora trazendo-o para o centro da análise da realidade social e da própria história e seu devir, há que se reconhecer que são muitos os desafios para o desenvolvimento dessa perspectiva nos processos formativos e interventivos, com destaque para o campo da profissão do Serviço Social. Um dos principais desafios teórico-metodológicos e políticos para a compreensão história e espacial das relações sociais é a adoção de perspectivas

9 É importante acompanhar de perto o pensamento lefebvriano sobre o sentido estratégico da politização das questões urbanas, pois, para o autor, isso envolve tanto a transformação da escala dos “problemas urbanos”, crescentemente nacional e mundial, logo de suas lutas e também da organização dos sujeitos, quanto a transformação da cotidianidade que implica a crítica e a transformação da práxis do “urbanismo repressivo e banal” e do “planejamento coercitivo do território.” (LEFEBVRE, 2002, p. 136).

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analíticas não fragmentadoras da vida social e do ser social, sem, com isso, se confundir uma totalidade concreta como o “total” das relações do real. Da mesma forma, pode-se destacar o desafio de consideração do papel e da diversidade dos sujeitos concretos na dinâmica social, histórica e espacial da vida em sociedade. Isso significa que pensar sobre determinados fatos do real e intervir na dinâmica desses, buscando-se compreendê-los enquanto totalidades concretas, nem sempre explicita um dos principais desafios da práxis que é caminhar no “fio da navalha” dos riscos sempre abertos das reduções e simplificações abstratas da razão, quando o movimento dialético das contradições e de suas sínteses é esvaziado, ofuscando a capacidade de compreensão relacional sobre algumas das dinâmicas fundamentais da vida social. Ou, ainda, reproduzir outro movimento de esvaziamento da dialética, através da concepção metodológica do real como totalidade passível da pretensão ingênua de “[...] conhecer todos os aspectos da realidade, sem exceções, e oferecer um quadro ‘total’ da realidade na infinidade de seus aspectos e propriedades.” (COSTA, 2017, p. 84). A esse respeito, vale a referência às advertências de Costa (2017) em seu diálogo com Kosik e Lefebvre. Para o materialismo histórico e dialético, nada é isolado. ‘Isolar um fato, um fenômeno, e depois conservá-lo nesse isolamento, é priválo de sentido, de conteúdo, e imobilizá-lo artificialmente, matá-lo’ (LEFEBVRE, 1987, p. 238). Não que o ato de isolamento não seja necessário para o conhecimento científico. O materialismo dialético não nega que a metodologia científica deva arrancar os fatos do contexto originário. No entanto, ele entende que os fatos são partes de uma totalidade concreta e que só no interior dela eles adquirem sentido. Tal separação, portanto, é apenas um primeiro momento de um movimento de pensamento que deve voltar ao concreto, ou seja, reinserir o fato isolado na totalidade complexa. (COSTA, 2017, p. 86).

Insistindo na questão metodológica do movimento dialético das contradições do real que impulsionam o devir histórico como obra humana criadora10 , destaca-se a contribuição de Lefebvre e Guterman (2011).

10 O que não exclui ou nega como possibilidade a produção de sínteses históricas da relação sociedade-natureza-cultura cada vez mais complexas que, no limite, podem ameaçar a reprodução da própria vida, tornando ainda mais atual, assim, a advertência de Benjamin de que “[...] nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie [...]” (BENJAMIN, 1994, p. 225).

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A contradição é, pois, real, está nas coisas mesmas. Ela não é uma transposição conceitual do movimento, nem tão somente uma expressão limitada e provisória das coisas, resultado de uma análise incompleta e fragmentada. A essência das relações reais é, sendo relações, ser luta e choque. [...] Não é a contradição que é fecunda –fecundo é o movimento. E o movimento implica simultaneamente a unidade (a identidade) e a contradição: a identidade que se restabelece em um nível superior, a contradição sempre renascente na identidade. A contradição como tal é intolerável. As contradições estão em luta e em movimento até que elas próprias se superem a si mesmas. A vida de um ser ou de um espírito não consiste em ser dilacerado pela contradição, mas sim em superá-la, em manter em si, depois de havêla vencido, os elementos reais da contradição. [...] A contradição, como tal, é destrutiva; ela é criadora enquanto obriga a encontrar uma solução e uma emancipação, reconquistada num nível superior. A vida é esta superação. Constantemente, a contradição reaparece na vida. Constantemente, ela deve ser vencida. (LEFEBVRE; GUTERMAN, 2011, p. 25-26).

A ênfase sobre os riscos das reduções e simplificações abstratas da razão serve como alerta para demarcar que não há nenhum automatismo de superação das contradições pelo pensamento, nem por formas de “ativismo” do sujeito ou mesmo pelo suposto determinismo do desenvolvimento das forças produtivas. O movimento das contradições na direção da produção de sínteses de superação emancipadora é um ato da práxis de sujeitos históricos e espaciais concretos, que exige mediações das relações sociais, do conhecimento, da formação das consciências, dos desejos e da potência criadora da práxis humana. É nesse movimento de contradições e mediações que se inserem as experiências da vida cotidiana e da capacidade de reconhecimento individual e coletivo do que há de particular, comum, solidariamente compartilhado e também desigual nessas experiências das relações sociais e que possibilitam aos homens e às mulheres simples da vida cotidiana - nos seus diferentes lugares e territórios de experiências sociais, como a moradia, o trabalho, a relação com a terra, o tempo livre, a cultura, o consumo, o transporte e a mobilidade, a (in)visibilidade e a expressão do corpo no espaço e as reações a esse “corpo-território” - se reconhecerem como sujeitos explorados, oprimidos, dominados, injustiçados, portadores de modos de vida determinados desigualmente a depender das intersecções de suas condições de classe,

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de etnia, de raça, de gênero, de diversidade sexual.

O conjunto dessas relações e experiências revela, assim, que “[...] a cidade, mais do que arquitetura, é presença [...]” (CARLOS, 2020, p. 1), e que não há como separar a experiência da cidade da dimensão espacial e temporal do corpo.

[...] o corpo é a expressão de relações sociais assentadas na dialética subordinação/subversão. O homem se relaciona com o espaço através do corpo, este é a mediação necessária a partir da qual nos relacionamos com o mundo e com os outros – uma relação com os espaços-tempos definidos no cotidiano. Desse modo, o corpo transita por diferentes escalas, ligando-as. Em primeiro o lugar, a casa (a partir de onde o sujeito começa a construir suas relações familiares e primeiras referências); depois a rua, na qual se vê em relação com o outro, instituindo tramas identitárias; depois a escala do bairro, que vai ganhando dimensão como relação de vários espaços-tempos mediados pela troca social (de todos os tipos); e, articulando essas escalas, o corpo depara-se com a cidade, multifacetada e múltipla, de ações simultâneas e imagens que seduzem e orientam. (...). O uso dos lugares da realização da vida por meio do corpo corresponde à ação humana produzindo um mundo real e concreto, delimitando e imprimindo os “rastros” da civilização com seus conteúdos históricos. Portanto a partir do corpo, mas superado o corpo e a materialidade do espaço, contempla a cultura, bem como uma forma de consciência sobre a atividade realizada. Desse modo, a cidade, como prática social, é espaço-tempo da ação que funda a vida humana em sua objetividade/subjetividade, superando-a como simples campo de experiência. Como produto social, lugar da vida humana, condição da reprodução, envolve dois planos: o individual (que se revela, em sua plenitude, no ato de habitar) e o coletivo (plano da realização da sociedade), como história. (CARLOS, 2014, p. 474-75).

Tal perspectiva espacial e histórica da cidade pressupõe considerar a indissociabilidade da relação entre condições materiais de vida e condições subjetivas de vida, entre produção e reprodução das relações sociais capitalistas. A esse respeito, é importante voltar à afirmação de Marx, quando da escrita do capítulo inédito do livro O Capital, “A produção capitalista é produção e reprodução das relações de produção especificamente capitalistas” (MARX, 2004, p. 133). Isso significa dizer que: Não são apenas as condições objetivas do processo de produção que

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se apresentam como resultado dele; o mesmo acontece com o caráter especificamente social das mesmas; as próprias relações de produção são produzidas, são resultado sem cessar renovado do processo [...] é ao mesmo tempo produção de capital e reprodução da totalidade da relação capitalista numa escala cada vez mais extensa (alargada). (MARX, 2004, p. 138-139).

Sobre essas duas dimensões distintas e articuladas (produção e reprodução) das relações sociais, Lefebvre enfatiza a dimensão da reprodução para a compreensão do que Marx denomina o caráter especificamente social das relações de produção, e, para tanto, afirma, a partir de Marx, que

A questão das relações de produção e da sua reprodução não coincide com a da reprodução, segundo Marx, dos meios de produção (força de trabalho, maquinaria), nem com a da reprodução alargada (crescimento da produção). Está fora de dúvida que, para Marx, a reprodução dos meios de produção e a continuidade da produção material vão a par com a reprodução das relações sociais, tal e qual como a própria vida vai a par com a repetição de gestos e dos actos quotidianos. [...] É isso que o Capítulo do Capital, que permanecerá inédito durante muito tempo e que recentemente foi publicado, vem testemunhar. (LEFEBVRE, 1973, p. 8-9). Logo, “Não há reprodução das relações sociais sem uma certa produção de relações.” (LEFEBVRE, 1973, p. 11). Segundo Lefebvre (1973), a produção de relações sociais capitalistas, a partir do século XX, ocorre em um novo “front”, cada vez mais central para a re-produção: 1) a produção social do espaço de forma fragmentada, vendendo-o, explorando-o intensivamente e acumulando-o através da propriedade privada e a consequente subordinação do sentido do valor de uso ao valor de troca da terra, mas também dos ecossistemas sustentadores dos seres vivos e seus ambientes, com destaque, por exemplo, para a transformação da água, do subsolo e da biodiversidade em mercadoria. A natureza passa, assim, à condição alienada das relações sociais, tornando-a uma externalidade, sinônimo de tudo o que não é humano e que está disponível de forma utilitária, como recurso a ser explorado para o desenvolvimento da própria vida humana e, em particular, da sociabilidade do modo de vida capitalista; 2) a transformação da vida cotidiana em cotidianidade programada para o consumo e a reprodução material e simbólica da mercadoria como

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lógica organizadora das relações sociais em toda a sua complexidade e variação, como os gostos, os desejos, os valores e as referências de comportamento, o lazer e o tempo livre, os estilos de vida, a forma de produção, distribuição e de consumo do alimento, as necessidades individuais e sociais, notadamente as necessidades desnecessárias que alimentam o ciclo de aceleração do tempo de rotação da mercadoria e da realização do valor.

O desenvolvimento de relações capitalistas de extremo impacto violento, espoliador e destruidor das relações natureza-sociedade e de intensos conflitos fundiários e socioambientais, exige capacidade de reflexão sobre as condições concretas de transformação das formas e dos modos do viver, o que inclui uma reflexão sobre as condições de possibilidade de um devir histórico emancipador não capitalista dessas relações. Assim, o texto passa a destacar um conjunto diverso e complexo de considerações, relações e experiências que compõe a agenda histórica e socioespacial de nosso tempo, iluminando alguns “campos cegos” dos estudos da produção social do espaço e da problemática urbana no contexto da sociedade brasileira como formação latino-americana.

Primeira consideração. O tratamento teórico-metodológico das relações sociais e da produção social do espaço deve orientar-se pela articulação dialética entre as diferentes temporalidades sincrônicas e diacrônicas da universalidade das determinações das relações sociais e das particularidades históricas e espaciais das relações sociais constituidoras da formação brasileira. Do ponto de vista do pensamento lefebvriano, estamos diante da proposição de seu método regressivo-progressivo (LEFEBVRE, 1981) que possibilita compreender a totalidade histórica como desenvolvimento desigual e combinado de temporalidades diversas no/ do espaço. Como sintetiza Martins, O método de decompor o real a partir da superfície do que o cientista observa à primeira vista, mesmo com os métodos de investigação que já lhe permitam constatações lógicas e verificáveis – ainda que insuficientes para desvendar as tensões que explicam o que é singular na realidade social, seu vir a ser, sua historicidade, seu devir, as bases de seu possível. E, então, descontruir-lhe a linearidade e a horizontalidade, datar cada uma de suas diferenças pela identificação da respectiva gênese histórica, o respectivo pertencimento histórico, o que lhe dá sentido como antagonismo e revelação potencial do que a sociedade poderá ser mas ainda não é, do que a práxis

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transformadora poderá desvendar, compreender e realizar. E, assim, voltar á superfície como lugar das ilusões do aparente e dos acobertamentos das tensões do desenvolvimento desigual, o da historicidade social, o passo transdutivo da metodologia lefebvriana. [...] a sociedade como movimento e não como mera e única estrutura. (MARTINS, 2021, p. 38-39).

Nessa direção teórica e metodológica, mas indo além de Lefebvre, há que se destacar a contribuição inestimável da autora marxista Rosa Luxemburgo, a “[...] menos eurocêntrica de todos [...]”, no dizer de Isabel Loureiro (2015, p. 97), acerca da acumulação capitalista, em especial do processo de sua reprodução ampliada. A autora abre um rico campo de problematização sobre a práxis de violência, não como momento originário, mas estrutural, que torna possível historicamente o capital como relação social se reproduzir e a acumulação capitalista se desenvolver a partir da contradição dialética histórica e espacial entre sociedades capitalistas e não capitalistas. Mais precisamente são a pilhagem e a dominação tempo-espacial dessas últimas que operam como condição da acumulação e da reprodução capitalista. Nas palavras de Luxemburgo (2021, p. 362-363), Todo o capítulo XXVII do primeiro volume de O Capital está consagrado à descrição do nascimento do proletariado inglês, da classe dos colonos agrícolas capitalistas, assim como do capital industrial. No último processo, a descrição marxista do saque dos países coloniais pelo capital europeu é sumamente valiosa. Mas tudo isso, note-se, apenas do ponto de vista da “acumulação primitiva”. Os processos indicados só servem em Marx para ilustrar a génese, o momento em que nasce o capital. Descrevem as dores do parto, no momento em que a produção capitalista surge do seio da sociedade feudal. [...]. Percebemos, não obstante, que o capitalismo está ligado, em seu pleno amadurecimento, à existência coetânea de camadas e sociedades não-capitalistas. [...] A acumulação do capital, porém, não pode ser explanada sob a hipótese do domínio exclusivo e absoluto da forma de produção capitalista, já que, sem os meios nãocapitalistas, torna-se inconcebível em qualquer sentido. [...] O capital não pode desenvolver-se sem os meios de produção e forças de trabalho existentes no mundo inteiro. Para estender, sem obstáculos, o movimento da acumulação, necessita dos tesouros naturais e das forças de trabalho existentes na superfície terrestre. (grifo do autor)

Ainda seguindo as veredas abertas pela ação-reflexão de Luxemburgo (2021), importa continuar a observar a direção a que nos leva seus

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escritos sobre a luta do capital contra as barreiras oferecias pela economia natural das sociedades não capitalistas e a violência como método permanente e estrutural da acumulação do capital. Seguir essa contribuição permite pensar a violência estruturadora original e contínua como particularidade importante da formação brasileira e de sua dinâmica histórica de produção capitalista do espaço, através das formas de pilhagem, expropriação e destruição, subordinação da natureza, da vida humana e da diversidade de sua cultura e da escravização/desumanização do “outro/a” (indígena e negro/a), que não se expressa e se auto reflete na figura humana do homem branco colonizador e nas suas relações de mando, poder e dominação. A reflexão de Luxemburgo, permite, assim, conectar dialeticamente as contradições das nossas particularidades às contradições dos processos globais da reprodução e expansão do capital.

A dificuldade nesse ponto consiste em que, nas grandes zonas da superfície terrestre, as forças produtivas estão em poder de formações sociais que ou não se encontram inclinadas ao comércio de mercadorias ou não oferecem os meios de produção mais importantes para o capital porque as formas económicas ou estrutura social constituem um obstáculo.

Por isso é que o capitalismo considera, como uma questão vital, a apropriação violenta dos meios de produção mais importantes dos países coloniais. Como os laços tradicionais dos indígenas constituem a muralha mais forte de sua organização social e a base de suas condições materiais de existência, o método inicial do capital é a destruição e o aniquilamento sistemáticos das estruturas sociais não capitalistas, com que tropeça em sua expansão. Isso já não se trata da acumulação primitiva, mas da continuação de seu processo até hoje. Cada nova expansão colonial é acompanhada, naturalmente, dessa luta encarniçada do capital contra a situação social e económica dos indígenas que compreende a apropriação violenta de seus meios de produção e de suas forças de trabalho. (LUXEMBURGO, 2021, p. 366-367).

A compreensão acerca da dialética universalidade/particularidade, acumulação capitalista e expansão territorial internacional das relações sociais capitalistas possibilita corroborar e acolher também a contribuição de Fraser, inspirada em Marx - e nos avanços reflexivos de Luxemburgo e Harvey -, que afirma e define que “[...] a exploração repousa sobre o terreno mais oculto da expropriação [...]”, mas também sobre a raciali-

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zação desse processo (FRASER e JAEGGI, 2020, p. 60). Seguindo pelo “terreno mais oculto” iluminado por Fraser, destacam-se dois marcos de compreensão que a autora define como avanços e diferenciações do seu pensamento em relação à contribuição de Marx sobre a acumulação primitiva (MARX, 1987, 2017) e que revelam a centralidade do racismo para a compreensão da reprodução da dinâmica exploração/expropriação, além de demarcarem implicações teóricas e metodológicas importantes para a dialética universalidade-particularidade da reprodução ampliada do capital e suas formas históricas e concretas.

Eu já disse que minha visão – a de que a exploração repousa sobre o terreno mais oculto da expropriação – é inspirada na concepção de Marx de ‘acumulação original’ ou ‘primitiva’, com a qual tem afinidades claras. O que defendo aqui, no entanto, é diferente em dois aspectos. Em primeiro lugar, a acumulação primitiva denota o processo ‘sangrento’ por meio do qual o capital foi estocado no início do sistema. A expropriação, em contraposição, designa um processo confiscatório contínuo essencial à manutenção da acumulação num sistema propenso à crise. Estou mais próxima nesse aspecto de Rosa Luxemburgo e Harvey, que também enfatizam o caráter contínuo da assim chamada acumulação primitiva. Há, todavia, um segundo aspecto em que me diferencio de Marx, que introduziu a acumulação primitiva para explicar a gênese histórica da divisão de classe entre trabalhadores sem propriedade e proprietários capitalistas dos meios de produção. A expropriação explica esse ponto, mas também traz à tona outra divisão social, igualmente profunda e plena de consequências, mas que não é sistematicamente teorizada por Marx –ou, no que diz respeito a isso, por Luxemburgo ou Harvey. Refiro-me à divisão social entre ‘trabalhadores livres’, explorados pelo capital no trabalho assalariado, e sujeitos não livres ou dependentes, os quais ele canibaliza por outros meios. Historicamente, a segunda divisão se correlaciona, de maneira aproximada, mas inequívoca, com a linha de cor. A meu ver, a expropriação de ‘outros’ racializados constitui uma condição necessária de fundo à exploração de ‘trabalhadores’. De fato, eu diria que ‘raça’ é justamente a marca que distingue os sujeitos livres da exploração daqueles dependentes da expropriação. (FRASER e JAEGGI, 2020, p. 60-61).

Segunda consideração. A produção social do espaço produz também a natureza como parte de um complexo de relações metabólicas e de crise metabólica que movimenta de forma dialética as contradições das

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relações ambiente-sociedade; sociedade-natureza-cultura; vida humana e vida não-humana. Assim, trata-se de uma perspectiva que interdita a separação de qualquer análise ambiental apartada da forma como a sociedade produz e reproduz historicamente as suas práticas espaciais, a partir de dinâmicas materiais e subjetivas de reprodução das formas de vida em diferentes escalas, inclusive a planetária, e que tornam híbridas as fronteiras natureza-cultura, natureza-sociedade, espaço natural/espaço social. Há que se ultrapassar criticamente o paradigma biocêntrico e suas políticas conservacionistas, mas também a redução da natureza a uma visão de estoque e fonte de recursos a serem explorados que legitima e produz práticas seculares de espoliação e destruição socioambiental nos campo, na cidade e na floresta.

A análise de Lefebvre sobre as novas raridades11 é um caminho interpretativo importante sobre as contradições do espaço (re)produzido como espaço instrumental para o capital.

As ‘novas raridades’ se estendem e ameaçam provocar uma crise (ou crises) de um caráter inverso, as novas raridades de um caráter original. Bens outrora abundantes porque naturais, que não tinham valor porque não eram produtos, tornam-se raros. Eles se valorizam. É necessário os produzir; eles adquirem estão, com o valor de uso, um valor de troca. [...] O espaço urbano se destaca do espaço natural, mas recria um espaço a partir das capacidades produtivas. O espaço natural se torna um bem raro, ao menos em certas condições sócioeconômicas. Inversamente a raridade se espacializa, se localiza. O que se rarefaz tem uma relação estreita com a Terra: os recursos do solo, do subsolo (petróleo), do sobre-solo (ar, luz, volumes, etc.) e o que disso depende, produções vegetais e animais, energia. [...] A finitude da natureza e da terra modifica a crença cega (ideológica) na potência infinita da abstração, do pensamento e da técnica, do poder político e do espaço que ele secreta-decreta. (LEFEBVRE, 2006, p. 217).

A partir da dialética sociedade-natureza-cultura destaca-se a importância histórica e espacial da reprodução da matriz extrativista e neo -

11 Contudo, ainda seguindo as veredas do pensamento de Lefebvre (2006, p. 217), é importante destacar sua advertência para que não se coloquem temas e situações como “[...] danos, poluições, ‘ambiente’, ecossistemas, destruição da natureza, esgotamento dos recursos, etc.” à frente do que é o verdadeiro movimento e choque dialético das contradições: a “[...] nova abundância (relativa) dos produtos industriais na sociedade de consumo é acompanhada de (e produz ) um fenômeno inverso: as novas raridades.” (2006, p. 217).

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extrativista dos processos de colonização e desenvolvimento do capitalismo na América Latina e, particularmente, no Brasil12 , fundada sobre o uso intensivo, extensivo e predatório da natureza, principalmente da terra, do subsolo e da água, crescentemente destruidora da vida e intensificadora dos conflitos fundiários e ambientais para acesso à terra e para o direito de permanência nela. Tais processos ocorrem sobre (e reproduzem) os fundamentos históricos das contradições entre lógica capitalista global de acumulação e reprodução expandida por espoliação, analisados por Luxemburgo (2021), Harvey (2004) e Fraser (2015). Cabe observar que a práxis neoextrativista está fundada sob o discurso e as práticas da modernidade, do progresso e do desenvolvimento, sob o invólucro, inclusive, das “boas práticas” ambientalmente sustentáveis, mesmo em governos e períodos históricos considerados representantes do progressismo na América Latina, como analisam Svampa (2019), Acosta e Brand (2018), Aráoz (2020) e Walsh (2017). De acordo com Lang (2016, p. 34-35), [...] desde o princípio, os governos progressistas latino-americanos apostaram, na prática, no neodesenvolvimentismo e aprofundaram o modelo extrativista argumentando com a necessidade de financiar o investimento social com os royalties obtidos com a exportação de commodities. Muitas organizações sociais tiveram de organizar – ou seguir com – a resistência aos impactos sociais e ambientais do extrativismo das maneiras mais diversas, em todos os países do continente [...] Na verdade, em toda a região, aproveitando o que hoje se chama de superciclo de alta dos preços das commodities (petróleo, minerais, soja etc.) no mercado internacional, as economias se reprimarizaram e se desindustrializaram – ou seja, o extrativismo foi aprofundado em detrimento de uma diversificação das economias.

Subjacente a esse processo espoliador, a reprodução ampliada do capital ocorre sob as condições de expansão da mercantilização de dimensões variadas da vida, como sinônimo de desenvolvimento indutor de concentração de riqueza e de poder. Esses movimentos e processos de

12 Pode-se relacionar, sem pretender esgotar, uma lista de contribuições intelectuais relevantes para análise do tema a partir da consideração do neoextrativismo na formação brasileira e no desenvolvimento espoliador da acumulação e da valorização do capital, com destaque para o campo dos impactos socioambientais e das práticas de violência como componente estruturador da reprodução das relações sociais capitalistas nas sociedades periféricas: Milanez e Santos (2013), Fase/Poemas (2019), Malerba, Milanez e Wanderley (2012).

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reprodução do capital operam a partir de bases e relações sociais contraditórias, surgidas e movidas nas diferentes escalas macro e micro social, a partir de lógicas socioculturais e político-organizativas territorializadas de luta e transformação social, contra as trajetórias de exploração, espoliação e opressão dos regimes de dominação/acumulação sustentados estruturalmente na tríade patriarcado/racismo/capitalismo, seculares na América Latina13 , acentuando, assim, diferentes conflitos e lutas sociais, étnico-raciais e de classe.

Os impactos mais regulares e destruidores sobre as condições do clima do planeta e também a propagação, em escala mundial, de vetores endêmicos e epidêmicos cada vez mais cotidianos, como a pandemia do Covid-19, causada pelo coronavírus (SARS-CoV-2), são também expressões concretas e cada vez mais regulares das contradições contemporâneas do desenvolvimento da sociabilidade capitalista antivida. Contudo, tais processos socioambientais e de saúde, quando flagrados, por exemplo, a partir da vida nas cidades, ocorrem reproduzindo e aprofundando exponencialmente as desigualdades socioespaciais das condições urbanas segregadoras e espoliadoras da vida nos territórios populares das favelas, cortiços, vilas e mocambos, conjuntos habitacionais, ocupações e nos espaços públicos das ruas das cidades como lugares de permanência e desalento da população adulta e infanto-juvenil sem moradia. Isso significa que a produção social e ambiental do espaço deve ser analisada e compreendida interseccionando-se a produção do espaço urbano com as dimensões de raça, classe e gênero dos que habitam tais territórios. Assim, pode-se compreender que a situação da pandemia, desde março de

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A esse respeito, vale a observação de Maristela Svampa (2019, p. 59) acerca das matrizes político-ideológicas organizadoras dos modos de pensar a política, o poder, as lutas e a transformação social: “[...] vale esclarecer que existem pelo menos quatro matrizes político-ideológicas diferentes que atravessam as transformações do campo contestatório latino-americano: a camponesa, a classista tradicional e, mais recentemente, a narrativa autonomista.”. Contudo, Svampa esclarece que tais matrizes, ao contrário de se constituírem como tipos ideias, se mesclam na sua historicidade e concreticidade. Assim, “não se encontram em estado puro, porque as diferentes dinâmicas políticas deram passagem a diversos entrecruzamentos e conjunções (entre indianismo e marxismo, entre indianismo e matriz populista, entre indianismo e narrativa autonômica, entre marxismo e autonomismo, para dar alguns exemplos), e também a um processo de conflito e colisão, que pode acabar acentuando as diferenças em termos de concepções, modos de fazer política e conceber mudança social.” (SVAMPA, 2019, p. 59).

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2020, nos referidos territórios populares, revela a face cotidiana da necropolítica territorializada (MBEMBE, 2018) da desumanização de “corpos matáveis” de negros e negras pobres, que se somam aos tantos outros corpos negros já mortos pela necropolítica de segurança14 .

Terceira consideração. O aprofundamento do modelo agroquímico, monocultor e latifundiário da revolução verde, para a produção, distribuição e consumo de alimentos, subordina a centralidade da soberania e da segurança alimentar do país e aprofunda a alienação subjacente à divisão territorial do trabalho, que opõe campo-cidade-floresta como realidades territoriais, populacionais e ambientais autônomas que pouco se comunicam. Assim, a questão da produção de alimentos aparece como uma “problemática” do campo, passível de ser resolvida por políticas agrícolas que incentivem e viabilizem o avanço da mecanização industrial agrícola e do emprego de tecnologias bioquímicas e genéticas de manejo agropecuário, mantendo-se a estrutura agrária e fundiária de concentração e centralização da terra, no Brasil. A produção de alimentos como questão técnica e neutra, símbolo virtuoso do progresso e da “comoditização” da economia, tem como correlato o esvaziamento das relações sociais e dos seus conflitos, especialmente os conflitos fundiários decorrentes da transformação da terra em mercadoria e propriedade privada, que tornam a terra cativa do processo de acumulação e valorização do capital, mas em especial da lógica do “rentismo à brasileira”, como analisada nos termos de Prieto (2017, p. 2).

[...] a terra transformada em propriedade privada promoveu o desenvolvimento capitalista, tanto em sua faceta produtiva, quanto em sua forma e conteúdo rentistas, concretizadas no duplo caráter da terra no capitalismo, ou seja, realizar-se como reserva de valor e como reserva patrimonial. Como reserva de valor, a terra quando vendida, permite a seu proprietário a apropriação de uma fração da massa de mais valia global expressa no preço pago por ela. Por isso, sua gênese na circulação. Mas essa qualidade da renda da terra só pode ser realizada uma vez, quando a terra é vendida/comprada. No capitalismo brasileiro, o que geralmente ocorre é a retenção

14 Para aprofundamento das representações sociais e das políticas de redução da favela à questão da violência urbana, assim como da questão da organização da política de violência armada de Estado sistemática, dirigida ao extermínio notadamente da população jovem negra moradora de favelas do Rio de Janeiro, indica-se a leitura: Franco (2018) e Silva (2016).

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da propriedade privada da terra, por isso a sua concentração, isto é, a centralização no seu caráter rentista e patrimonialista - que denominamos de “rentismo à brasileira” – (Prieto, 2016). Neste caso, no Brasil, prevalece a condição de reserva patrimonial, quando a propriedade privada da terra é tomada com garantia financeira para acesso ao mercado de capitais, através de sua hipoteca.

Sob tais práticas e lógicas de dominação, o sistema produtivo alimentar capitalista e seu uso e ocupação da terra, baseado na propriedade privada e na violência do latifúndio, invisibiliza a existência de diferentes sistemas produtivos e culturais alimentares e de manejo da natureza, distintos da lógica do capital, baseados em modos tradicionais e comunitários de vida e de usos da terra e dos territórios, não redutíveis à lógica da mercadoria e da propriedade privada.

Como informa material produzido pela Articulação Nacional de Agroecologia e Terra de Direitos (SILVA; SOLDATI; DALLAGNOL, 2020, p. 7), se por um lado o “[...] Brasil possui, em seu território, cerca de 25% (vinte e cinco por cento) da diversidade biológica (biodiversidade) do planeta, bem como 20% (vinte por cento) de toda a água potável existente.”, por outro “A ciência ainda não conhece - ou desconhece a totalidade da biodiversidade brasileira, mas as populações que vivem na floresta, no campo, nas águas conhecem bem, e ainda conservam esse conhecimento.”

Isso significa compreender que o Brasil é rico não apenas em biodiversidade, mas em sociobiodiversidade. E diria com Lefebvre, a partir do ensinamento do seu método regressivo-progressivo: rico em diferentes temporalidades de modos de vida que, sob relações sociais capitalistas, entram historicamente em conflito com a sociabilidade do capital, à exemplo das disputas históricas e notadamente atuais do capital para dominação e exploração econômica da referida sociobiodiversidade. Assim, é importante enfatizar que:

Associado a esta alta diversidade temos também diversidade cultural: há uma diversidade de identidades e formas como a população brasileira estabelece relações com o ambiente. A diversidade de identidades é caracterizada pelo modo de viver, pelo modo de se relacionar com a natureza e com outros grupos sociais, por meio do uso que se faz da natureza, expressos pela música, pelas danças, hábitos alimentares e comidas típicas, pela mística e religiosidade,

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pelo jeito de produzir e de cuidar da terra.

A terra e o território são locais de reprodução e cuidado da vida. As sociedades e comunidades tradicionais, nas quais se inserem os povos originários, os quilombolas, os sertanejos, os caiçaras, os caboclos, os extrativistas, o campesinato em toda sua sociodiversidade, caracterizam-se pela sua interdependência em relação aos recursos naturais. É na observação cotidiana dos ciclos da natureza, de quando chove ou faz seca, sobre as plantas que ali crescem ou os animais que por ali vivem, que nascem e se desenvolvem os conhecimentos sobre essa diversidade, tradicionalmente repassados entre gerações. Assim se constrói o modo de vida de cada povo ou comunidade tradicional e também são definidos os seus territórios, espaços onde cada grupo reproduz suas dimensões histórica, econômica e política. É a partir do território que surge a autoidentificação coletiva e a relação dos sujeitos como guardiões e guardiãs do patrimônio genético e dos conhecimentos tradicionais associados. A guarda portanto, não só protege os saberes tradicionais das ameaças inerentes, como promove a partilha e o cultivo entre as famílias e comunidades nos territórios. (SILVA; SOLDATI; DALLAGNOL, 2020, p. 7).

A produção capitalista do espaço, como ensina Lefebvre, é também produção e reprodução expandida das suas contradições, como as que se manifestam no choque da diacronia e da sincronia entre as diferentes temporalidades da vida social e das práticas espaciais, à exemplo das temporalidades em conflito da sociabilidade do capital e as dos modos e meios de vida acima descritos. E é importante observar que tais conflitos se expressam através da histórica e sempre reatualizada situação de violência armada contra à vida de lideranças indígenas, populações tradicionais não indígenas, camponeses, ambientalistas, trabalhadores e movimentos sociais urbanos. Ainda sobre a gramática da violência, mas ampliando o foco da relação com a produção social do espaço, há que se considerar os processos de destruição e de expropriação, de injustiça ambiental (ACSELRAD, 2009, 2014) e de racismo ambiental (HERCULANO; PACHECO, 2006) causados por cadeias produtivas extrativistas, como a cadeia produtiva da mineração, de alto impacto ambiental sobre territórios e suas formas de vida humana e não humana. Sobre a questão do racismo ambiental, cabe destacar que:

Um estudo sobre características de raça e renda da população afetada pelos rompimentos das barragens da Vale tem indicado dados

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significativos sobre uma maior presença de população negra, bem como de baixa renda, no caminho imediato da devastação produzida pela lama. 84.5% das vítimas imediatas do rompimento barragem de Fundão, em 2015, que viviam no distrito de Bento Rodrigues, em Mariana, eram não brancas. No Córrego do Feijão e em Parque da Cachoeira, localidades mais atingidas pelo rompimento da barragem em Brumadinho, 58,8 % e 70,3% da população, respectivamente, se declara como não branca, segundo o último censo do IBGE de 2010. A renda média em Córrego era de menos de 2 salários mínimos. Essa aparente “coincidência” entre os dois desastres reflete a lógica racista, classista e irresponsável do Estado nos licenciamentos e controle ambiental para favorecer projetos econômicos causadores de injustiças ambientais. [...] São áreas desvalorizadas pelo mercado imobiliário, onde vivem comunidades negras e pobres, ou de barragens que foram impostas próximas a territórios historicamente ocupados por povos indígenas, quilombolas, agricultores familiares e demais populações tradicionais, não representadas nas esferas decisórias e permanentemente invisibilizadas quando da realização desses grandes projetos. (FASE-POEMAS, 2019, p. 23).

Como enfatiza Aráoz (2020, p. 46), ao refletir sobre a “voracidade extrativista” que estrutura nossa acumulação primitiva não como processo originário do capitalismo, mas como processo de expropriação contínuo e estrutural, Fantasias desenvolvimentistas, de um lado, e fantasmas do horror, do outro, expõem a condição inevitável de dominação ecobiopolítica que se projeta sobre corpos e territórios. O particular cenário neocolonial da mineração transnacional contemporânea conjuga misteriosamente as contradições de um novo ciclo desenvolvimentista em expansão. Se um lado, o furor do consumo e o crescimento em tempos de apogeu; a febre do ouro que, mais uma vez, invade solos e subsolos, corpos e almas, as fontes de água, os sonhos e os céus. Do outro lado, já no mundo soterrado do invisível, essa febre é dor e sofrimento; é violência ancestral que retorna com renovadas forças e modalidades, com táticas e estratégias modernizadoras, aperfeiçoadas na arte de esgotar a riqueza em suas fontes, em perfurar e erodir o solo da vida. É agora, uma violência pós-moderna, mais brutal e mais sutil, tecnologicamente evoluída em sua eficácia expropriadora.

Quarta consideração. O debate aberto pela perspectiva crítica à colonialidade epistemológica e cultural das formas de conhecimento e dos modos de vida capitalista, sobre as sociedades periféricas

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latino-americanas, fundadas sobre a práxis violenta e racista do colonialismo15 , contribui para a identificação e a crítica à produção de pedagogias da subalternização e da invisibilização, como ensina Arroyo (2014), das formas de conhecimento, das práticas e culturas de resistência de negros e negras, das populações originárias indígenas e dos diversos grupos de populações tradicionais produtoras da sociobiodiversidade dos biomas brasileiros.

Assim, o racismo que é também epistêmico, invisibiliza ou desconsidera, por exemplo, o quilombismo urbano e rural de populações tradicionais (MOURA, 2020), como ocorrido na história urbana das favelas, vilas e mocambos das cidades, na contramão do que pensadores/as e militantes negros/as vêm problematizando e revelando, à exemplo dos estudos de Nascimento (2019) sobre o “quilombismo” e dos estudos urbanos de Campos (2005) sobre as favelas no Rio de Janeiro. Ainda sobre a pedagogia da subalternidade e da invisibilização produzida pelo racismo estrutural, pode-se acrescentar as reflexões de Lélia Gonzales acerca da ideologia do branqueamento e seus efeitos sobre populações indígenas e negras, no Brasil e na América Latina.

[...] a chamada América Latina, que, na verdade, é muito mais ameríndia e amefricana do que outra coisa, apresenta-se como o melhor exemplo de racismo por denegação. [...] Por isso mesmo, a afirmação de que todos são iguais perante a lei assume um caráter nitidamente formalista em nossa sociedade. O racismo latinoamericano é suficientemente sofisticado para manter negros e índios na condição de segmentos subordinados no interior das classes mais exploradas, graças à sua forma ideológica mais eficaz: a ideologia do branqueamento. (GONZALEZ, 2020, p. 130-131).

Assim, os povos originários ameríndios e as demais populações e modos de vida não capitalistas ou que não podem ser compreendidas apenas a partir da sociabilidade e modernidade burguesa, sem a análise dialética da relação modernidade/tradição, como as populações tradicionais não indígenas16 , à exemplo dos caboclos ribeirinhos e/ou extrativistas da

15 Citamos aqui a contribuição de Casanova (2002), Quijano (2005), Dussel (1993), Walsh (2017).

16 BRASIL, artigo 3º, 2007. No decreto nº 6.040, de 07 de fevereiro de 2007, que instituiu a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, consta a seguinte definição: “Povos e Comunidades Tradicionais: grupos culturalmente di-

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Amazônia e de outros biomas, as populações e comunidades tradicionais sertanejas da caatinga e do cerrado, as comunidades quilombolas que habitam os diferentes territórios dos biomas brasileiros, também foram e permanecem sendo subalternizados, invisibilizados, desterritorialziados e também extintos. Por isso, é importante o conhecimento, a investigação e a aprendizagem das experiências de (r)existência dessas populações - dos resíduos, diria Lefebvre - como a práxis andina e ameríndia do “bem viver”17 (ACOSTA, 2016). Segundo Acosta, [...] o Bem Viver se transforma em ponto de partida, caminho e horizonte para desconstruir a matriz colonial que desconhece a diversidade cultural, ecológica e política. Nesta linha de reflexão, a proposta do Bem Viver critica o Estado monocultural; a deterioração da qualidade de vida, que se materializa em crises econômicas e ambientais; a economia capitalista de mercado; a perda de soberania em todos os âmbitos; a marginalização, a discriminação, a pobreza, as deploráveis condições de vida da maioria da população, as iniquidades. Igualmente, questiona visões ideológicas que se nutrem das matrizes coloniais do extrativismo e da evangelização imposta a sangue e fogo. (ACOSTA, 2016, p. 83).

Trata-se, assim, “[...] de questionar a tentativa falida de impulsionar ‘ desenvolvimento’ como imperativo global e caminho unilinear, procurando não mais propor alternativas de desenvolvimento, mas alternativas ao desenvolvimento.”. (ACOSTA, 2016, p. 85).

ferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição”. Há uma diversidade significativa dos segmentos que compõem os povos e comunidades tradicionais, como a população indígena, os pescadores artesanais, remanescentes de quilombos, os ribeirinhos, os povos ciganos, o povo de terreiro entre outros.

17 Como esclarece Acosta (2016, p. 23), quanto à origem ameríndia do bem viver, “Na América Latna, nas últimas décadas, surgiram profundas propostas de mudança que se apresentam como caminhos de transformação civilizatória. As mobilizações e rebeliões populares – especialmente a partir dos mundos indígenas equatoriano e boliviano, caldeirões de longos processos históricos, culturais e sociais – formam a base do que conhecemos como Buem Vivir, no Equador, ou Vivir Bien, na Bolívia. Nestes países andinos e amazônicos, propostas revolucionárias ganharam força política e se moldaram em suas constituições, sem que, por isso, tenham se cristalizado em ações concretas. [...] o Bem Viber, Buen Vivir ou Vivir Bien também pode ser interpretado como sumak kawsay (Kíchwa), suma qamaña (aymara) ou nhandereko (guarani) e se apresenta como uma oportunidade para construir coletivamente uma nova forma de vida”.

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Nessa mesma direção situam-se as inúmeras práticas e os diversos saberes que Walsh designa como “pedagogias decoloniais” (WALSH, 2017), sob inspiração profunda do campo da educação popular de Paulo Freire, com quem trabalhou, e a práxis que reivindica a lógica dos comuns ou comum como princípio político organizador de projetos societários emancipadores, nos tempos propostos por Dardot e Laval (2017). A identificação, o estudo e a aprendizagem dessa práxis, como “[...] brecha residual no socialmente reprodutivo e repetitivo [...]” (MARTINS, 2021, p. 27), num sentido lefebvriano, vem ao encontro dos questionamentos sociológicos de Martins (2021, p. 71)

[...] relativos à suposição do primado da racionalização crescente do mundo, da emergência de uma sociedade centrada no valor de troca e na submersão dos modos de viver e de pensar tradicionais, baseados no valor de uso. Porque, e não obstante, silenciosamente persistentes nas sociedades e modos de vida das margens, como ocorre em boa parte da América Latina e da sociedade brasileira. Quinta consideração. A adoção da perspectiva analítica e política interseccional, notadamente através das contribuições de pensadoras feministas negras (GONZALEZ, 2020; COLLINS; BILGE, 2021; DAVIS, 1997, 2016) das relações sociais de classe, de raça e de gênero constitui referência crítica importante para a problematização das condições e os modos de vida da classe trabalhadora, dos povos originários indígenas e das populações tradicionais, seus sujeitos concretos e históricos e a consideração territorial das relações sociais e das lutas produzidas, assim como o tratamento das diversidades regionais e locais. Contudo, como enfatiza Collins e Bilge (2021), a interseccionalidade é aqui compreendida e praticada como investigação e práxis crítica, comprometida tanto com os processos investigativos quanto com a transformação das relações de poder sustentadoras das práticas de dominação e opressão.

Sobre o conceito de interseccionalidade, destacamos também a contribuição de Davis (1997):

As organizações de esquerda têm argumentado dentro de uma visão marxista e ortodoxa que a classe é a coisa mais importante. Claro que classe é importante. É preciso compreender que classe informa a raça. Mas raça, também, informa a classe. E gênero informa a classe. Raça é a maneira como a classe é vivida. Da mesma forma que gênero é a maneira como a raça é vivida. A gente precisa refletir bastante

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para perceber as intersecções entre raça, classe e gênero, de forma a perceber que entre essas categorias existem relações que são mutuas e outras que são cruzadas. Ninguém pode assumir a primazia de uma categoria sobre as outras. (DAVIS, 1997, s/p).

Também cabe destacar a possibilidade de se pensar a perspectiva interseccional a partir do que Fraser define como uma compreensão alargada de luta de classes e da relação entre lutas de fronteiras e lutas de classes, nas fronteiras onde produção e reprodução social se encontram. Nos termos de Fraser e Jaeggi (2020, p. 186-187), Concebido de forma ampla, o capitalismo abarca uma visão expandida da ‘classe trabalhadora’ e uma compreensão alargada de ‘luta de classes’. Minha visão também alarga, de um terceiro modo, nossa visão da luta de classes na sociedade capitalista. Inspirada em parte pelo pensamento de Karl Polany, ela trata as fronteiras institucionais constitutivas do capitalismo como prováveis lugares e tema de luta. O que denominei de ‘lutas de fronteira’ não emerge de ‘dentro’ da economia, mas nos pontos em que a produção encontra a reprodução, a economia encontra a política e a sociedade humana encontra a natureza não humana. Como focos de contradição e potencial crise, essas fronteiras são tanto lugares como temas de lutas; são, ao mesmo tempo, localizações onde o conflito emerge e objetos de contestação. Não é surpresa, então, que lutas em torno da natureza, da reprodução social e do poder público surjam tão regularmente no curso do desenvolvimento capitalista. Longe de serem um constrangimento teórico, estão ancoradas na estrutura institucional da sociedade capitalista – tão profundamente ancoradas quanto as lutas de classes em sentido limitado, de modo que não podem ser negligenciadas como secundárias ou supersestruturais. [...] portanto, uma visão expandida do capitalismo implica uma visão expandida da luta social na sociedade capitalista.

Como escrevi em outro texto (CARDOSO, 2020, p. 72-73): Pensamos, por exemplo, na necessária crítica à invisibilização das formas de opressão de gênero e raça pelas análises urbanas das práticas socioespaciais e pelas práticas profissionais que atuam diretamente sobre a regulação da vida nos territórios, especialmente nos territórios da moradia. Torna-se, assim, importante a construção de processos de investigação, formação e intervenção profissionais que sejam capazes de analisar de forma interseccional as relações sociais que produzem o espaço e a vida cotidiana e construir de forma coletiva e dialógica repertórios de ação comprometidos com

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a não reprodução de práticas opressoras nos territórios de vida. Contudo, assim como o espaço não é mero “pano de fundo” do real, a interseccionalidade também não é mero campo temático a partir do qual se posicionam relações de gênero, raça e classe no espaço, mas sim uma perspectiva analítica de compreensão dos processos de produção e reprodução das relações sociais, das práticas espaciais, das contradições no e do espaço e na relação entre cotidianidade e vida cotidiana.

A perspectiva histórica interseccional territorializada é particularmente importante para a consideração da produção social do espaço e da crítica da vida cotidiana, considerando-se que a América Latina é majoritariamente índia, negra e mestiça e que a constituição do trabalho, do campesinato e da classe trabalhadora no campo e na cidade, nas formações latino-americanas, foi (e permanece a ser) um processo histórico violento, expropriador, desumanizador, desterritorializador e diaspórico de dominação, opressão e acumulação. Tal processo foi marcado por uma tríade dialética: 1) eixo fundiário e territorial , através dos processos de dominação colonizadora do território, da terra, da natureza e dos modos de vida e das sociedades a eles associados. Tais processos fundaram a matriz de exploração predatória extrativista, renovada pelo desenvolvimento das relações sociais capitalistas sob a forma-conteúdo do neoextrativismo; 2) eixo étnico-racial , representado pelo povos indígenas escravizados, subjugados, muitos dizimados, que tiveram suas terras usurpadas pelo Estado e os diferentes projetos de ocupação econômica e territorial do Brasil, sob as formas colonial, monárquica e republicana do Estado, e que resistem culturalmente como povos originários, através de um processo que Ribeiro (2015) denomina de “transfiguração étnica”, até os dias de hoje, na luta pelo direito à autodeterminação, à terra e aos modos de vida materiais e imateriais indígenas. Sob esse mesmo fundamento étnico-racial, mas particularizando-se nas práticas da escravização de negros e negras africanos/as pelo imperialismo colonial europeu, destaca-se a formação de uma diáspora africana, no Brasil, erguida sobre processos de desterritorialização e reterritorialização dos corpos e das vidas de negros e negras, nas senzalas, quilombos, pequenas propriedades rurais, florestas, favelas e periferias. Subjacente a esse longo processo histórico e territorial da formação brasileira e também das sociedades latino-ame -

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ricana, encontram-se estruturalmente firmados os pilares do racismo e da ideologia da democracia racial (GONZALEZ, 2020) que sustentam estruturalmente as relações sociais, até os dias de hoje, reproduzindo e metamorfoseando a colonização como colonialidade; 3) eixo patriarcal e sexista que produz socialmente e ideologicamente (e naturaliza) a separação entre a exploração dos trabalhos produtivo e improdutivo de homens e mulheres para e pelo capital e a esfera do trabalho reprodutivo não pago, exercido no âmbito doméstica pelas mulheres, como se a exploração do trabalho e a acumulação capitalista não dependessem das inúmeras atividades e redes de cuidado da reprodução social.

Se a tríade acima é importante para a compreensão de nossa formação histórica e espacial brasileira, contudo, está incompleta, quando considerado o sentido metodológico do movimento dialético materialista. Não há movimento sem o choque dos contrários, das contradições encarnadas nos sujeitos concretos das relações sociais. Portanto, as contradições estão no real e nas suas relações sociais. Quais são as contradições e as sínteses produzidas a partir do processo originário e permanentemente violento da acumulação, da expropriação e da desumanização em nossa sociedade e encarnadas em sujeitos e relações concretas? Destaco a síntese manifesta na “insistência” de permanecerem vivos aqueles que se quer matar, subjugar, disciplinar, explorar, desumanizar. Essa é a condição histórica de negros e negras no campo, na cidade e nas florestas, das populações tradicionais indígenas e não indígenas no Brasil. Não apenas sobreviventes ao processo colonizador e ao poder da colonialidade, mas praticantes e criadores de cultura e de formas de (re)existências nas diferentes dimensões da vida, notadamente da vida cotidiana e dos lugares onde se enraízam a moradia, o trabalho e seus corpos-territórios, produzindo saberes e linguagens ancestrais, tradicionais, populares, de classe e científicas que reivindicam aparecimento, reconhecimento e autonomia na cena pública do conhecimento, da arte, da política e das concepções e projetos de desenvolvimento, de mundo e de sociedade. Diria com Lefebvre e seu Manifesto Diferencialista, trata-se da reivindicação do direito à diferença, à passagem do residual ao essencial, da construção da práxis poiética do espaço diferencial, da vida cotidiana e do espaço como obras. E se foi e ainda é necessário o silêncio, em diferentes tempos e

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lugares da trajetória da vida resistente de tantos sujeitos individual e coletivamente, é porque, assim como Conceição Evaristo (2019) nos adverte poeticamente sobre a resistência negra, é porque era o “ tempo de caminhar em fugidio silêncio, e buscar o tempo certo do grito”, mantendo erguidas as pontes da memória e da experiência das diferentes formas de resistência coletiva praticadas sob nomes e formas plurais, como aquilombamento e diferentes formas e experiências de lutas e organizações como as dos movimentos negro, sindical, feminista, indígena, quilombolas, LGBTQI+, trabalhadores sem-terra e trabalhadores sem teto e de diferentes coletivos e coletivas que habitam, trabalham e produzem cultura no campo, na cidade e nos diferentes espaços/ambientes dos biomas brasileiros, como a floresta, as águas, as várzeas.

São esses sujeitos individuais e coletivos que praticam historicamente e no plano da vida cotidiana - tensionada pela redução à cotidianidade - a triplicidade do espaço percebido (prática espacial), da representação do espaço (concebido) e dos espaços de representação (vivido), que ensina Lefebvre. E são também esses mesmos sujeitos, tomados a partir das suas contradições sociais e não a despeito delas, que podem ser compreendidos e investigados a partir do ensinamento de Martins (2000, p. 12): “[...] o homem comum fragmentado, divorciado de si mesmo e de sua obra, mas obstinado no seu propósito de mudar a vida, de fazer História, ainda que pelos tortuosos caminhos de sua alienação e de seus desencontros, os difíceis caminhos cotidianos da vida.”.

O conjunto das reflexões aqui realizado costurou um caminho teórico e metodológico percorrido pelo grupo UrbanoSS, como esforço realizado para buscar interlocuções teóricas críticas, a partir e além do pensamento lefebvriano, capazes de abrirem veredas para o reconhecimento e a superação de seus próprios “campos cegos” no estudo das (e na intervenção sobre as) problemáticas espacial e urbana. Por isso, o final do texto retoma o seu começo, com Guimarães Rosa (2019, p. 53): “[...] o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia [...]”. Que a leitura do texto propicie boas e inquietantes travessias!

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Referências

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TRANSPORTE, MOBILIDADE URBANA E SERVIÇO SOCIAL:

QUANDO O URBANO EXTRAPOLA A POLÍTICA URBANA1

Introdução

O uso do transporte para deslocamento no espaço é uma das atividades mais presentes em nosso cotidiano. Esse uso se realiza pelo consumo de mercadorias que satisfazem necessidades humanas “do estômago ou da fantasia” para a reprodução social, como também na circulação entre moradia-trabalho-moradia e outros destinos, conforme as condições de vida e de trabalho dos sujeitos. Em que pese as condições desse uso sejam profundamente diminuídas, ao ser subordinado pela troca na dinâmica de valorização do capital e, consequentemente, ao reiterar diferenças e desigualdades socioespaciais, essa relação mercantil no uso do transporte e do espaço aparece como fato quase natural, em um cotidiano programado para o consumo.

Segundo a Pesquisa de Orçamentos Familiares 2017-2018 (IBGE, 2019), as despesas com transporte correspondem a 18,1% da despesa de consumo média mensal das famílias brasileiras, mas esse dado cai para 9,4%, ao observar a distribuição de gastos das famílias com menores rendimentos. Isso, considerando aqueles que possuem alguma renda para financiar tal despesa pois, segundo o Relatório 2018 do Sistema de Informações da Mobilidade Urbana da Associação Nacional de Transportes Público (ANTP, 2020), a maior parte das viagens foi realizada em transporte não motorizado, ou seja, por bicicleta ou a pé (42%) e as demais em transporte individual motorizado (30%), em transporte coletivo motorizado (24%), e uma menor quantidade em transporte coletivo sobre trilhos (4%).

A re-produção das relações sociais de produção que incidem sobre o espaço e que o espaço re-produz vão repercutir no maior ou menor

1DOI- 10.29388/978-65-81417-77-2-0-f.71-96

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acesso à riqueza socialmente produzida, incluindo o acesso à moradia, aos equipamentos e aos serviços públicos, tais como as políticas públicas e sociais, territorialmente localizadas e que envolvem deslocamentos no espaço. Dessa maneira, expressão da questão social e da problemática urbana e, portanto, matéria do Serviço Social, a desigualdade no acesso ao transporte pela classe trabalhadora na atualidade merece nossa atenção. Entretanto, tal discussão ainda é tímida na profissão, seja porque, na divisão do trabalho teórico, está tradicionalmente circunscrita em campos disciplinares do conhecimento e da prática, como a Engenharia, a Arquitetura e Urbanismo e o Planejamento Urbano, com pouca interlocução entre os saberes de outras áreas do conhecimento, como o Serviço Social. Como adverte Lefebvre (1999), o fenômeno urbano não pertence a uma ciência especializada, sendo, portanto, um campo diferencial e um objeto virtual, cuja complexidade torna indispensável superação do imperialismo científico, rumo à cooperação interdisciplinar que vise a totalidade e à construção de uma estratégia urbana contra hegemônica, A partir das lutas pela redução das tarifas do transporte coletivo protagonizadas pelo Movimento Passe Livre e outros sujeitos coletivos nas duas últimas décadas, que deram origem às Jornadas de Junho de 2013, e do reconhecimento do transporte como direito social na Constituição Federal em 2015, observa-se uma tendência de indissociabilidade dos temas transporte e mobilidade urbana, processo que vem contribuindo para a uma tentativa de superação do racionalismo tecnicista recorrente, rumo à construção de um saber crítico e uma prática social inovadora sobre a questão. Não obstante estes avanços, a importância do transporte e da mobilidade urbana é pouco tematizada através de análises críticas, sobretudo a partir dos conceitos de produção do espaço, re-produção das relações sociais de produção, vida cotidiana e direito à cidade, presentes na obra do filósofo marxista francês Henri Lefebvre.

É notório que a inserção dos assistentes sociais em postos de trabalho no âmbito das políticas urbanas ainda se dá, majoritariamente, na habitação. Ainda que, historicamente, não se observe a atuação direta da categoria na política de transporte e mobilidade urbana, o uso do transporte, enquanto expressão da questão social e da problemática urbana, está absolutamente presente no cotidiano de trabalho dos assistentes so -

ciais, nos mais distintos espaços sociocupacionais, e que extrapolam a política urbana. Afinal, o acesso dos trabalhadores usuários dos serviços nos quais atuamos, seja na saúde, na assistência social, na educação e em tantas outras políticas setoriais, está, necessariamente, mediado pelo acesso ao serviço de transporte para deslocamento disponível, atravessado por diferentes marcadores de diferenças e desigualdades, como classe social, raça, gênero, geração, deficiência, capacidade etc. Assim, o presente capítulo apresenta uma reflexão sobre o transporte e a mobilidade urbana no atual estágio da sociedade urbana, dando visibilidade ao tema no trabalho do assistente social nos seus distintos espaços sociocupacionais e em diferentes políticas públicas, dentre os quais, serviços que integram a política de saúde. Para tanto, pretende: 1) compreender o transporte e a mobilidade urbana a partir da teoria social crítica, em especial da contribuição de Henri Lefebvre sobre a re-produção das relações sociais de produção e sua incidência na produção social do espaço e da vida cotidiana sob o capitalismo, como também nas lutas contra hegemônicas pelo direito à cidade; 2) abordar os nexos entre o transporte e a mobilidade urbana e a saúde, que possibilitam compreender as necessidades sociais e demandas que se expressam no cotidiano do trabalho do assistente social no campo da saúde; 3) problematizar as respostas do Estado brasileiro às necessidades sociais e demandas de transporte e mobilidade urbana da população com doença crônica e/ou deficiência, através dos programas de gratuidade no transporte coletivo e de transporte sanitário existentes na cidade do Rio de Janeiro.

Considerando esse caráter transetorial do tema, o presente capítulo consiste em um convite à imaginação, ao convocar os assistentes sociais a pensarem as repercussões da questão social e da problemática urbana e as formas de enfrentamento dessa realidade em seu trabalho no cotidiano, que não se encerra nos limites das políticas setoriais estatais, mas, ao contrário, as extravasam. Como também, um convite à utopia, ao socializar conhecimentos que poderão contribuir para o estímulo de práticas que apoiem e defendam interesses, necessidades e demandas da classe trabalhadora, tal como previsto em nosso projeto ético-político profissional.

Cabe esclarecer que o capítulo apresenta os resultados da minha

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tese de doutorado defendida em 20182 , fruto das inquietações oriundas do meu cotidiano de atuação como assistente social em uma unidade do Sistema Único de Saúde (SUS) nos últimos dez anos. Mas também encontra inspiração na atuação de uma aguerrida assistente social que, em sua trajetória política, apresentou a proposta da tarifa zero, em seu mandato como prefeita da cidade de São Paulo, em 19903 , como também a proposta de inclusão do transporte como direito social no artigo 6º da Constituição Federal, em seu mandato como deputada federal, em 20114 , promulgada em 2015.

I. O transporte e a mobilidade urbana a partir da teoria social crítica Marx, durante seus estudos sobre o modo de produção capitalista e as relações de produção e de circulação, bem como de re-produção dessas relações, que deram origem a’O Capital em 1867, testemunhou a generalização do processo de industrialização e o consequente surgimento da sociedade industrial, que já revelava diversas expressões do fenômeno urbano. Apesar de atribuir maior importância ao tempo que ao espaço, na dinâmica de valorização do capital, como destacado por Harvey (2006), é possível observar o espaço enquanto uma dimensão presente nos seus estudos, ainda que de forma superficial e fragmentária. Nota-se tal dimensão, por exemplo, nos seus escritos sobre o processo de circulação do capital (Livro II) quando, no capítulo sobre os custos de circulação, analisa os custos do transporte.

Segundo Marx, as metamorfoses da mercadoria, em sua conversão de uma forma a outra, custam força de trabalho e tempo de trabalho que não criam valor. Trata-se de um momento necessário do processo capitalista de produção em sua totalidade, que implica também a circulação

2 A tese “Produção social do espaço e mobilidade urbana das pessoas com deficiência e doença crônica na cidade do Rio de Janeiro”, requisito para a conclusão do curso de Doutorado do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

3 O Projeto de Lei nº 342/1990, de 2 de outubro de 1990, apresentado pela Prefeita Luiza Erundina de Sousa (PT), nunca entrou em votação, sendo, posteriormente, arquivado.

4 A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 90/2011, de 29 de setembro de 2011 (BRASIL, 2011a), apresentado pela Deputada Federal Luiza Erundina de Sousa (PSB) foi transformado na Emenda Constitucional nº 90/2015, em 15 de setembro de 2015 (BRASIL, 2015a).

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(ou é implicado por ela). Dessa maneira, os custos de circulação que derivam da mudança de forma do valor não entram no valor das mercadorias, constituindo deduções do capital gasto produtivamente pelo capitalista:

A lei geral é que todos os custos de circulação que só se originam da transformação formal da mercadoria não lhe agregam valor. São apenas custos para a realização do valor ou para sua conversão de uma forma em outra. O capital despendido nesses custos (inclusive o trabalho por ele comandado) pertence ao faux frais da produção capitalista. A reposição dos mesmos tem de se dar a partir do maisproduto e, considerando-se a classe capitalista como um todo, constitui uma dedução da mais-valia ou do mais-produto, exatamente como, para um trabalhador, o tempo de que precisa para comprar seus meios de subsistência é tempo perdido. (MARX, 1985, p. 108, grifo do autor).

Porém, destaca que há custos de circulação que podem se originar de processos de produção, cujo caráter produtivo é apenas ocultado pela forma circulação, como por exemplo, os custos de transporte. Dentro do ciclo do capital e da metamorfose da mercadoria ocorre o metabolismo do trabalho social, que pode exigir a mudança espacial dos produtos, seu movimento do lugar da produção para o lugar do consumo, e dar origem ao processo de produção adicional da indústria de transportes:

O capital produtivo nela investido agrega, pois, valor aos produtos transportados, em parte pela transferência de valor dos meios de transporte, em parte pelo acréscimo de valor pelo trabalho de transportar. Como ocorre com toda a produção capitalista, este último acréscimo de valor se divide em reposição de salário e maisvalia. (MARX, 1985, p.109).

Marx chama atenção para as numerosas circunstâncias modificadoras dos custos do transporte, já naquela época, utilizadas por representantes da indústria de transporte para “[...] transmutar as diversificadas propriedades naturais dos bens em outras tantas dificuldades para transportá-los e pretextos rotineiros para fraudes.” (MARX, 1985, p. 109). Embora o modo de produção capitalista diminua os custos do transporte da mercadoria com o desenvolvimento dos meios de transporte, ele multiplica a parte do trabalho social (do vivo r do objetivado) despendida no transporte pela generalização da forma mercadoria e pela substituição de mercados locais por outros distantes. Nesse sentido, a

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indústria de transporte constitui um ramo autônomo da produção e uma esfera especial de investimento do capital produtivo, que se diferencia por aparecer como continuação do processo de produção “[...] dentro do processo de circulação e para o processo de circulação [...]” (MARX, 1985, p. 110, grifo do autor).

Assim, uma leitura sobre o transporte e a mobilidade urbana a partir da teoria social crítica requer a sua compreensão como atividade produtora de valor e de mais valia em uma indústria particular que, brevemente analisada por Marx no século XIX, se expande e dá origem ao automóvel no século XX. Ao mesmo tempo, requer a sua apreensão não apenas do ponto de vista das relações de produção, mas também da reprodução dessas relações. Não se trata aqui daquela leitura limitada à reprodução dos meios de produção (que inclui a força de trabalho), pela qual o fenômeno urbano é analisado como um de seus componentes, tais como nos estudos marxistas de inspiração estruturalista sobre a problemática urbana (CASTELLS, 2009)5 . Mas que, a partir da retomada dos apontamentos do Marx, considere que “[...] a questão das relações de produção e da sua reprodução não coincide com a da reprodução dos meios de produção (força de trabalho, maquinaria), nem com a da reprodução alargada.” (LEFEBVRE, 1973, p. 8).

Nessa direção, Lefebvre toma como ponto de partida a compreensão da industrialização e da urbanização enquanto um duplo processo, tendo em vista que seu caráter essencial é o desenvolvimento da sociedade urbana. A produção industrial produz a urbanização da sociedade, fornecendo suas condições e lhe abrindo possibilidades. Mas esse duplo processo perdeu sentido quando a vida urbana passou a ser subordinada ao crescimento econômico sem desenvolvimento social, dando origem aos problemas da cidade e da sociedade urbana. Dessa maneira, na sociedade atual, a urbanização e sua problemática dominaram o processo de industrialização e, portando, há uma tendência de declínio dos fenômenos industriais, que cedem lugar aos fenômenos urbanos.

Para Lefebvre, a retomada dos apontamentos sobre a reprodução das relações sociais de produção, presentes no Capítulo VI Inédito d’O

“A Questão Urbana”, de Manuel Castells, publicado em 1972, é a principal obra de referência desse pensamento estruturalista sobre o espaço e o urbano. Para maior aprofundamento, indica-se a leitura de Castells (2009) e Véras (2000).

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Capital (MARX, 2004), contém a chave para a compreensão do processo de produção do espaço social e da vida cotidiana, e da estratégia contra hegemônica de construção de um espaço diferencial e de conquista da cotidianidade que materializem a vida urbana, através da luta pelo direito à cidade. O conceito de re-produção das relações sociais de produção trata do capitalismo como modo de produção enquanto totalidade aberta, nunca sistematizada e acabada.

Mas destaca a resistência do marxismo estruturalista em superar a centralidade das relações de produção, bem como da reprodução restrita aos meios de produção, pois considera a sociedade capitalista como uma totalidade fechada. Nessa perspectiva, os fenômenos urbanos são tomados como parte do modo de produção (capitalista), cuja estrutura define-se como uma relação entre dois grupos: as unidades de produção (as empresas) e as unidades de consumo (as cidades), complementares das unidades de produção onde “[...] reproduz-se a força de trabalho necessária às empresas. O consumo não tem outro sentido nem outro alcance: reproduzir a força de trabalho.” (LEFEBVRE, 1973, p. 74).

As relações de produção encerram contradições, nomeadamente as contradições de classe (capital/salário) que se amplificam em contradições sociais (burguesia-proletariado) e políticas (governantesgovernados). Mostrar como se reproduzem as relações de produção não significa que se sublinhe uma coesão interna ao capitalismo; isso quer dizer, também e sobretudo, que se mostra como se amplificam e aprofundam, à escala mundial, as suas contradições. Sobrepor o modo de produção às relações de produção como a coerência à contradição, essa atitude de uma prática teórica tomada em separado tem apenas um sentido: liquidar as contradições, excluir os conflitos (ou pelo menos certos conflitos essenciais), camuflando o que sucede e o que procede desses conflitos. (LEFEBVRE, 1973, p. 72).

Para Lefebvre, tal análise reduz os fenômenos urbanos a um esquema pobre, onde o problema da reprodução das relações sociais é um componente da reprodução dos meios de produção (especialmente da força de trabalho). Em contraposição a tal perspectiva, compreende que o lugar da reprodução das relações sociais não pode se localizar na empresa, no local de trabalho e nas relações de trabalho, pois o capitalismo produziu setores novos pela transformação dos elementos da sociedade preexistentes, como a arte, o saber, os lazeres, a realidade urbana e a

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realidade cotidiana, apropriando-os para o seu uso. Logo: “[...] o espaço inteiro torna-se o lugar da reprodução das relações sociais de produção.” (LEFEBVRE, 2016, p. 52).

Para ele, o capitalismo encontrou no espaço as formas de “superação” das suas crises: atenuou seus efeitos sem resolver suas contradições internas, ocupando e produzindo um espaço e um cotidiano. Na fase neocapitalista6 , a produção do espaço ganhou centralidade e a re-produção das relações sociais de produção deu um caráter mais complexo ao cotidiano. Dessa maneira, Lefebvre desloca o debate sobre a contradição clássica entre capital e trabalho para o debate sobre as novas contradições no cotidiano da sociedade urbana, superando aquela contradição fundamental sem, no entanto, negá-la.

Nesse contexto, a vida cotidiana, passa a ser dividida em momentos (trabalho, vida privada, lazer) que simbolizam sua extrema fragmentação, dominada por instituições da sociedade burocrática de consumo dirigido. Esse controle ocorre mediante subsistemas7, determinados por atos ou atividades sociais específicas relacionadas a objetos (e que passam a corresponder a essa atividade), instituições que organizam tal atividade, e textos que garantem a comunicação da atividade, a participação nas medidas que a organizam, bem como a influência e a autoridade das instituições correspondentes, que permitem organizar funcionalmente a cotidianidade, em um espaço homogêneo adaptado para esse fim.

Na análise de Lefebvre sobre a vida cotidiana, o automóvel é um exemplo de como um objeto passa a reger comportamentos e conceber espaço sob uma pretensa racionalidade técnica, onde “[...] o Circular substitui o Habitar [...]” (LEFEBVRE, 1991, p. 110). Para o autor, “[...] a existência prática do Automóvel, enquanto instrumento de circulação e utensílio de transporte, é apenas uma porção da sua existência social.” (LEFEBVRE, 1991, p. 112); ou seja, mais do que um produto, o automó -

6 O conceito de neocapitalismo em Lefebvre refere-se ao capital em sua etapa monopolista. Mas há leituras não marxistas do conceito, especialmente de weberianos e pós-weberianos, nas quais a ótica das classes sociais em disputa é deformada em favor de uma concepção idealista de Estado (COVRE, 1980).

7 Lefebvre (1991) também expressa sua crítica ao estruturalismo ao rejeitar o termo “sistema” por considera-lo fechado e, em seu lugar, compreende que há vários subsistemas como, por exemplo, a publicidade, a moda, a cultura, o turismo e o automóvel.

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vel torna-se um subsistema teórico e prático que invade a cotidianidade e intervém nela. Tal análise permite compreender a ênfase no crescimento dos meios de deslocamento motorizados para transporte individual e coletivo, bem como a constituição de um padrão rodoviarista em diversos países, como o Brasil.

Para Lefebvre, o conceito de habitar inclui não somente o morar, mas o uso de uma vida urbana plena, em contraposição ao conceito de habitat, que se caracteriza pela espacialização da função de morar, segregada das outras funções da vida urbana. Contudo, a ideologia do urbanismo, ao substituir o conceito de habitar pelo de habitat, provocou a perda da centralidade do sentido da obra, da consciência social sobre a produção e, em seu lugar emergiu a cotidianidade do consumo e, consequentemente, da própria consciência urbana. Ao mesmo tempo, ao penetrar na vida cotidiana, a generalização do deslocamento pelo transporte alterou comportamentos, estilhaçando a cidade como local de encontro, criando uma oposição entre o habitar e o circular. Cabe destacar que tal oposição não consiste em uma visão negativa do autor sobre o transporte e a mobilidade urbana, mas do papel desempenhado pelo automóvel enquanto um subsistema que tende à destruição e à imobilidade, pois “[...] ele chegará, mais cedo ou mais tarde, ao ponto de saturação. Ele caminha para esse limite, terror dos especialistas de trânsito: o congelamento final, a imobilidade coagulada do inextricável.” (LEFEBVRE, 1991, p. 114).

Mas, se por um lado, as forças do capital produzem um espaço homogêneo e um cotidiano programado, por outro, dialeticamente, permitem a formação de um espaço diferencial e a conquista de uma cotidianidade, enquanto negação do capitalismo, que contém uma virtualidade que aponta o horizonte do direito à cidade. Para Lefebvre (2008), o direito à cidade busca a realização da vida urbana como “reino do uso” (da troca e do encontro separados do valor de troca), que exige o domínio econômico (do valor de troca, do mercado e da mercadoria). Ele pressupõe o conhecimento baseado em uma teoria integral da cidade e da sociedade urbana que utilize os recursos da ciência, da filosofia e da arte, bem como a prática social conduzida pela classe operária na perspectiva de uma revolução urbana e cultural permanente que venha a materializar uma nova sociedade urbana.

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II. Transporte, mobilidade urbana e saúde

Em sintonia com a perspectiva lefebvriana, a análise de Iamamoto e Carvalho de 1982 (1998) considera o Serviço Social uma especialização do trabalho coletivo na divisão social e técnica do trabalho peculiar à sociedade industrial e urbana que, ao responder às necessidades sociais oriundas das práticas sociais das classes, no ato de reproduzir os meios de vida e de trabalho, participa do processo de re-produção das relações sociais de produção: […] a reprodução das relações sociais é a reprodução da totalidade do processo social, a reprodução de determinado modo de vida que envolve o cotidiano da vida em sociedade: o modo de viver e de trabalhar, de forma socialmente determinada, dos indivíduos em sociedade. Envolve a reprodução do modo de produção, entendido na linha de interpretação que Lefebvre faz da noção […]

Trata-se, portanto, de uma totalidade concreta em movimento, em processo de estruturação permanente. Entendida dessa maneira, a reprodução das relações sociais atinge a totalidade da vida cotidiana, expressando-se tanto no trabalho, na família, no lazer, na escola, no poder, etc., como também na profissão. (IAMAMOTO; CARVALHO, 1998, p. 72).

Dessa maneira, trata-se da re-produção de um modo de vida, historicamente determinado, que envolve um cotidiano, mas que, como acrescenta Lefebvre, também envolve um espaço que “[...] é a inscrição no mundo de um tempo [...]” (LEFEBVRE, 1978, p. 211). Esse movimento de reprodução domina as relações em todos os níveis de realidade humana, ao mesmo tempo que expressa a contradição entre as necessidades sociais dos trabalhadores e a realização do capital para seus detentores:

A partir do acesso inicial do indivíduo ao habitar (condição de sua reprodução) como ponto de fixação no espaço, articulam-se e constroem-se outros lugares capazes de responder à satisfação imperativa da relação do sujeito: as relações casa/rua, espaço privado/público, lugar de trabalho e lugar de lazer, e, num plano mais vasto, o bairro e a metrópole etc. É nesse sentido que o espaço criado enquanto condição, meio e produto da reprodução social revela uma prática que é socioespacial (incluindo o tempo da ação).

Nessa perspectiva, os diferentes momentos da vida – promovidos em lugares determinados como espaço tempo da ação que reproduz o indivíduo – submetem-se à lógica do valor de troca como extensão do

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mundo da mercadoria [...] Assim, a generalização da troca se impõe na vida cotidiana através das formas de acesso do cidadão à cidade como condição de realização da vida urbana. Essa situação preenche cada momento da vida invadindo e subsumindo os espaços-tempos da vida cotidiana com seus constrangimentos. (CARLOS, 2017, p. 34-35).

Uma das necessidades sociais mais presentes na vida cotidiana, que se expressa em demandas dirigidas aos assistentes sociais em seu trabalho profissional nos distintos espaços sociocupacionais, é o acesso ao transporte pela classe trabalhadora. Ainda que formalmente previsto na Constituição Federal (CF) de 1988, o direito ao transporte não vem sendo plenamente garantido a todos os brasileiros, ainda limitados à função de “cidadão consumidor” 8 . Tal fato tem repercussões diretas no acesso a outros tantos direitos como, por exemplo, o direito à saúde. Nesse sentido, há que se considerar o alcance do padrão de proteção social vigente frente às determinações históricas da questão social e da problemática urbana na sociedade brasileira que, somada à conjuntura regressiva atual, incidem sobre a atuação dos sujeitos, incluindo o assistente social, circunscrevendo limites ou abrindo possibilidades.

A atuação dos movimentos sociais em defesa de reformas (sanitária, psiquiátrica, urbana etc), no processo de redemocratização do país, permitiu a convergência de um conjunto de bandeiras históricas, influenciando decisivamente no texto final da CF de 1988. Uma das principais conquistas foi a construção da noção de seguridade social enquanto uma primeira tentativa de superação dos limites setoriais, ao prever ações integradas para assegurar direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social.

Dentre esses, o direito à saúde foi o que acumulou conquistas mais significativas, incorporando diversas proposições do Movimento da Reforma Sanitária (MRS) brasileiro9, tais como a concepção ampliada de

8 Conforme destacado por Mota (1995), em sua análise sobre a cultura de crise da seguridade social brasileira.

9 O Movimento da Reforma Sanitária Brasileiro teve origem na década de 1970 através da articulação de trabalhadores de saúde e intelectuais progressistas no aparelho de Estado, nas universidades e em organizações da sociedade civil, com o propósito de democratizar a saúde como parte de uma estratégia maior para democratizar a sociedade, através da formulação de reformas no setor, tendo como ações políticas estratégicas a disputa dos

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saúde, a organização do sistema de saúde através do Sistema Único de Saúde (SUS) e o efetivo financiamento do Estado (BRAVO, 2006). A CF de 1988 (art. 196 a 200) e a Lei Orgânica da Saúde (LOS) de 1990 expressam o conceito ampliado de saúde construído pelo MRS, que reconhece a produção desigual do espaço urbano das cidades, ao compreender que os níveis de saúde expressam a organização social e econômica do país e ao prever ações e serviços de saúde integrados em uma rede regionalizada e hierarquizada, de acordo com as diretrizes de descentralização, integralidade e participação social. Além disso, inauguram a noção de intersetorialidade, ao relacionar como determinantes e condicionantes, dentre outros, moradia, saneamento básico, meio ambiente, transporte, acesso aos bens e serviços essenciais tradicionalmente inscritos na política urbana. Cabe destacar que as relações entre saúde e saneamento, saúde e meio ambiente e saúde e moradia são bastante presentes no conhecimento e na prática social produzidos no campo da saúde coletiva, influenciando a elaboração de políticas públicas nos referidos setores. Contudo, o nexo entre saúde e transporte e mobilidade urbana não vem recebendo a mesma atenção, o que pode ser percebido, por exemplo, no lapso temporal que separa o texto constitucional da criação dos programas para atendimento às necessidades sociais e demandas de transporte das pessoas com doença crônica e/ou deficiência10 .

Muito embora o marco legal da saúde estabeleça como um de seus princípios a regionalização, há desigualdades socioespaciais na oferta de serviços de assistência à saúde do SUS, com consequências diretas para acesso da população aos mesmos. O padrão de urbanização brasileiro resultou na concentração de infraestrutura, equipamentos e serviços urbanos nas áreas mais centrais das cidades e, consequentemente, a maioria dos serviços de saúde está localizada nessas áreas, exigindo longos e demorados deslocamentos entre local de tratamento e de moradia da popusentidos e da política de saúde (DÂMASO, 2011; TEIXEIRA; MENDONÇA, 2011; BRAVO; MATOS, 2001).

10 Há um lapso de 15 anos entre a CF de 1988 e a criação do transporte sanitário interestadual intermunicipal (Tratamento Fora de Domicílio) e de 30 anos entre a CF e a criação dos transportes sanitário intramunicipal para pessoas com doença crônica e deficiência (Transporte Sanitário Eletivo e Transporte Adaptado Acessível), que serão abordados na próxima seção.

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lação usuária11. Essa questão assume grande relevância, tendo em vista que o tratamento de muitas doenças, especialmente as crônicas, envolve diferentes propostas terapêuticas conduzidas por equipes multiprofissionais, com frequência sistemática e, em alguns casos, diária aos serviços de saúde. E, por mais que o tratamento seja realizado em uma única unidade de saúde, mesmo que pública, os custos agregados ao tratamento, dentre os quais os gastos com transporte, inclusive de acompanhante/cuidador, reduzem a disponibilidade de recursos para as necessidades básicas e contribuem para o empobrecimento dos adoecidos e de suas famílias.

Umas das estratégias no âmbito do SUS para o enfrentamento dessa realidade foi a criação do Sistema Nacional de Regulação. Desde os anos 2000, o acesso aos serviços de saúde de média e alta complexidade no Estado do Rio de Janeiro está sujeito à regulação da assistência, estratégia de gestão implementada através de redes regionais, protocolos clínicos e uso da tecnologia da informação para atendimento oportuno às necessidades de saúde da população. Contudo, tal regulação não vem sendo devidamente acompanhada pela ampliação dos serviços e equipamentos de saúde, com recursos materiais e humanos necessários para o atendimento das necessidades da população; logo tem se resumido à gestão do possível em uma rede já socialmente insuficiente e espacialmente concentrada. Um quadro que, no contexto da contrarreforma do Estado, reduz a probabilidade de recuperação da saúde e aumenta o risco de agravos resultantes das doenças ou dos seus tratamentos, como a deficiência e a mobilidade reduzida, seja ela temporária ou permanente.

A escassez de recursos para arcar com o transporte restringe a capacidade de buscar assistência médica, que por ser especializada, raramente está disponível nos hospitais e postos de saúde próximos à residência. Um ciclo vicioso se forma, já que a falta de tratamento adequado e preventivo gera maiores complicações clínicas, aumentando a necessidade de ir ao médico. (ELIAS; MONTEIRO; CHAVES, 2008, p .1046).

Do ponto de vista do direito ao transporte e à mobilidade urbana, as conquistas são tardias e tímidas: a criação da Política Nacional de

11

A cidade do Rio de Janeiro foi capital federal (1763-1960), Estado da Guanabara (19601974), e capital do Estado do Rio de Janeiro (1974 aos dias atuais), fatos que justificam a grande concentração de serviços de média e alta complexidade, em comparação com o restante do Estado.

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Mobilidade Urbana (PNMU)12 , em 2012 e, como já citado, a inclusão do transporte como direito social na CF de 1988, em 2015. A PNMU foi criada enquanto um instrumento de desenvolvimento urbano, correspondendo ao conjunto organizado e coordenado dos modos de transporte, de serviços e de infraestruturas voltadas à garantia dos deslocamentos de pessoas e cargas no território do município. Dentre seus princípios, estão a acessibilidade13 universal e a equidade no acesso dos cidadãos ao transporte público coletivo e no uso do espaço público de circulação, vias e logradouros.

Cabe destacar que a acessibilidade pode ser constrangida por barreiras físicas, sociais e econômicas que, em geral, atingem de forma mais contundente a população pobre, evidenciando seu caráter de classe. Uma das principais estratégias para promoção da acessibilidade tem sido a difusão do conceito de desenho universal14 no planejamento de sistemas de transportes e equipamentos públicos. Contudo, as ações e instrumentos têm sido centrados na eliminação de barreiras arquitetônicas e de comunicação e, portanto, ainda fortemente restritos ao aspecto físico da questão. Neste sentido, há que se avançar para além do desenho universal, rumo a um desenho urbano que favoreça relações socioespaciais mais democráticas que permitam uma política de transporte e mobilidade urbana voltada às necessidades sociais e demandas de deslocamento da população, em sua maioria oriunda da classe trabalhadora, incluindo as pessoas com doença crônica e/ou deficiência.

A questão social e a problemática urbana se manifestam na totalidade aberta da vida social, expressando isotopias e heterotopias, somatórios e resíduos (LEFEBVRE, 1999, 2006), com potencial de manutenção ou transformação da realidade. Contudo, as respostas do Estado através dos seus agentes (incluindo os assistentes sociais) encontram-se fechadas

12

Lei nº 12.587, de 3 de janeiro de 2012 (BRASIL, 2012).

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A acessibilidade consiste na capacidade de se deslocar de maneira independente pela cidade, através dos vários meios de transporte disponíveis na rede de serviços e por todos os espaços públicos (BRASIL, 2006).

14

De acordo com seus defensores, o desenho universal supera o pensamento da eliminação de barreiras ao já evitar a produção das mesmas na concepção de produtos, ambientes, programas e serviços a serem usados por todas as pessoas, sem necessidade de adaptação ou de projeto específico, incluindo os recursos de tecnologia assistiva (BRASIL, 2006; 2015a).

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nos limites da abordagem setorial das políticas públicas, que ao fragmentar a vida social, assumem um caráter homogeneizador das diferenças e integrador à sociedade burocrática de consumo dirigido. Neste sentido, há que se refletir sobre a importância da articulação entre as políticas econômicas (como, por exemplo, a política urbana) e as políticas sociais, como também, entre as próprias políticas urbanas. A intersetorialidade pode ser um paradigma orientador para essas respostas, enquanto uma contratendência a esse modo de intervir na vida social, ainda que insuficiente, ao justificar “reformas” das relações sociais, por meio de políticas públicas contraditórias e reiterar a participação dos sujeitos na “gestão democrática” da vida cotidiana e do espaço no capitalismo. Há um longo caminho a ser percorrido para a articulação entre políticas econômicas e sociais que materializem respostas que atendam às necessidades sociais e demandas da classe trabalhadora, como o transporte e a mobilidade urbana, nesse “[...] modelo de desenvolvimento que despreza a vida e adora as coisas [...]” (GALEANO, 1993, p. 9). No Brasil, pressupõe superar o modelo de proteção social restrito ao tripé da Seguridade Social: Saúde, Assistência Social e Previdência Social, rumo a um conceito mais abrangente, de seguridade pública e universal, que inclua todos os direitos sociais inscritos no art. 6º da CF de 1988, conforme defendido na Carta de Maceió (CFESS, 2000), que constitua um amplo sistema de proteção social que articule as políticas setoriais, incluindo a Política Urbana em seu conjunto: Habitação, Mobilidade Urbana e Saneamento Ambiental.

III. As respostas do Estado para transporte e mobilidade urbana das pessoas com doença crônica e/ou deficiência Grande parte da população brasileira possui deficiência ou mobilidade reduzida, condição que pode afetar a relação da pessoa com o seu corpo, com as outras pessoas, com o espaço e com a cidade: 31,3% têm uma doença crônica, das quais 7,6% apresentam dificuldade em andar 100 metros (IBGE, 2010); 7,4% são idosas (IBGE, 2011); e 6,7% declaram deficiência (IBGE, 2018). Ademais, as doenças crônicas não transmissíveis (DCNT) foram responsáveis por 54,7% do total de mortes do país em 2018 (BRASIL, 2020) e afetam de forma mais intensa

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os trabalhadores mais pobres, por estarem mais expostos aos fatores de risco e por terem menor acesso aos serviços de saúde (BRASIL, 2011b). Esses dados demonstram que as condições de uso do transporte podem ser facilitadoras, dificultadoras ou mesmo impeditivas para o exercício dos direitos sociais e para a construção de novos direitos. E reforçam a importância do transporte e da mobilidade urbana para o exercício dos direitos sociais, dentre os quais do direito à saúde, como também, para as lutas pelo direito à cidade.

Os usuários dos serviços de saúde no país, em especial as pessoas com doença crônica e/ou deficiência, conquistaram direitos sociais e políticas públicas para a garantia do uso do transporte, que materializam respostas do Estado diante das necessidades sociais e demandas desses sujeitos e conformam ações de proteção social fundamentais para o acesso e continuidade da assistência à saúde, sobretudo aquelas de longa duração e, consequentemente, de grande impacto nas suas condições de vida e trabalho. Em linhas gerais, tais ações têm sido a oferta de programas das políticas de transporte e de saúde, pelas diferentes esferas de governo, mediante dois tipos de recursos: carteira ou bilhete eletrônico para gratuidade no transporte coletivo; e veículo para transporte. Estas ações têm sido implementadas na cidade do Rio de Janeiro, conforme o quadro a seguir:

Tabela 1 - Modalidades de transporte para pessoas com doença crônica e/ou deficiência

Recurso Serviço Órgão Modal / Veículo Usuário Legislação

Pessoa com deficiência; Pessoa com doença crônica

Carteira ou bilhete eletrônico para gratuidade no transporte coletivo

Lei Federal nº 8.899/1994; Dec. Fed. nº 3.691/2000; Port. MT nº 261/2012

Rodoviário / Ônibus Ferroviário / Trem e Metrô Hidroviário / Barca

Pessoa com deficiência; Pessoa com doença crônica

Pessoa com deficiência; Pessoa com doença crônica

Constituição do Est. RJ; Lei Est. Compl. nº 74/1991; Lei Est. nº 4.510/2005; Dec. Est. nº 36.99/2005; e Dec. Est. nº 45.820/2016.

Lei Org. Mun. RJ/1990; Lei Mun. nº 3.167/2000; Lei Mun. nº 5.211/2010; e Dec. Mun. nº 44.728/2018.

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Passe Livre Interestadual MT Rodoviário / Ônibus Vale Social SETRANS Riocard Especial SMTR Rodoviário / Ônibus

Veículo para transporte

Tratamento Fora de Domicílio (TFD)

MS SES SMS

Rodoviário / Ônibus e Carro Hidroviário / Barca Aeroviário / Avião

Transporte Sanitário Eletivo (TSE)

Transporte Adaptado Acessível (TAA)

Pessoa com doença crônica

Port. MS nº 55/1999; Res. SES-RJ nº 171/2011.

MS SES SMS Rodoviário / Carro Pessoa com doença crônica

MS SES SMS Rodoviário / Carro Pessoa com deficiência

Pacto pela Saúde/2006; Port. MS nº 4.279/2010; Res. CIT nº 13/2017; Port. MS nº 788/2017; Port. MS nº 2.563/2017; Port. MS nº 3.458/2017; Portaria MS nº 565/2018; Del. CIB-RJ nº 5.420/2018; Dec. Rio nº45.716/2019.

Port. MS nº 835/2012; Port. MS nº 788/2017; Port. MS nº 565/2018.

Fonte: elaboração da autora baseada em BRANDT, 2018. Observa-se a prioridade dada à oferta de programas de concessão de carteira ou bilhete eletrônico para gratuidade no transporte coletivo, há muito mais tempo regulamentadas que os programas de veículo para transporte. Cabe destacar que os serviços de transporte coletivo, ainda que adaptados ao conceito de desenho universal, não garantem a acessibilidade de todos os usuários, tendo em vista que as pessoas com deficiência e/ou com mobilidade reduzida apresentam diferentes condições de mobilidade urbana e acessibilidade que podem acarretar restrições ao acesso e uso desses serviços.

Verifica-se a diferenciação entre os usuários para a definição do número de viagens; grosso modo, pessoas com deficiência possuem passes sem limites de viagens, enquanto pessoas com doença crônica possuem número limitado, variável conforme a patologia. Esta diferenciação existe porque, segundo o modelo biomédico, a doença crônica não é considerada deficiência, mas diminuição temporária de capacidades (MEDEIROS; DINIZ, 2004). Por outro lado, reitera a hipótese de estudos anteriores (PIRES, 2009; BRANDT, 2017), pelo qual as doenças crônicas contempladas são aquelas com usuários organizados em entidades representativas de defesa dos seus direitos e, portanto, a garantia da gratuidade tem sido fruto da pressão dos movimentos sociais.

Além disso, nota-se a prevalência de um modelo biomédico de deficiência, enquanto incapacidade resultante de doença ou acidente, em detrimento do modelo social da deficiência, enquanto condição re -

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sultante da interação entre os impedimentos nas funções e estruturas corporais; os fatores socioambientais, psicológicos e pessoais; a limitação no desempenho de atividades; e a restrição de participação na sociedade. Nessa perspectiva, o acesso a esses programas ocorre mediante avaliação por laudo médico fundamentado pela Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID), em lugar de avaliação por equipe multiprofissional e interdisciplinar fundamentado pela Classificação Internacional da Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF).

Desse modelo, desdobra-se uma concepção médico-curativa de saúde, entendida como ausência de doença e centrada no tratamento da patologia, pois todos os programas para as pessoas com deficiência e/ou doença crônica consideram apenas para o deslocamento até a unidade de saúde, inclusive para reabilitação. Assim, o direito à saúde vem sendo compreendido de forma restrita e a produção da saúde em espaços-tempos funcionalmente especializados, dissociados da vida cotidiana dos sujeitos.

Por outro lado, os programas de concessão de veículo para transporte revelam-se enquanto recursos com potencial para promover a garantia do direito à saúde das pessoas com doença crônica e/ou deficiência, sobretudo ao considerar as desigualdades espaciais e regionais que perpassam o SUS. A esse respeito, cabe destacar as observações de Azevedo (2016) sobre o Tratamento Fora de Domicílio (TFD) que, adequada à escala intramunicipal, também se aplica ao Transporte Sanitário Eletivo (TSE) e ao Transporte Adaptado Acessível (TAA):

O Programa de Tratamento Fora de Domicílio (TFD) é um instrumento legal que visa garantir, por meio da rede pública de saúde, o atendimento médico a pacientes portadores de doenças não tratáveis em seus municípios de origem por falta de condições técnicas ou profissionais, mediante o custeio das passagens e diárias necessárias para o deslocamento e estada desses pacientes, enquanto durar o tratamento. Dessa forma, constitui-se elo entre o paciente usuário do Sistema Único de Saúde (SUS) e o prestador do serviço de saúde, funciona como instrumento de cidadania e inclusão social, e colabora para o efetivo funcionamento de outras políticas de saúde.

A importância do TFD torna-se mais explícita quando se verifica que muitos usuários do SUS não possuem por vezes condições

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financeiras para deslocarem-se dos municípios de suas residências, em razão de não encontrarem mais ali, possibilidades para o tratamento adequado do qual necessitam para a conservação ou promoção de sua saúde. Visto dessa forma, não é difícil perceber que o TFD, em muitos casos, pode significar até mesmo a sobrevivência de muitos cidadãos. (AZEVEDO, 2016, p. 2).

Contudo, a observação oriunda do meu cotidiano de trabalho profissional, em um serviço de assistência à saúde, reitera a percepção sobre a secundariedade dada a esses programas, tendo em vista as recorrentes queixas dos usuários dos serviços de TFD, relativas aos trâmites burocráticos para cadastro e agendamento, à qualidade questionável dos veículos, que não são devidamente adaptados às necessidades dos usuários (em geral, veículos utilitários, como kombis e vans), bem como às poucas vagas e os inúmeros atrasos. Como também, o caráter residual do TSE e do TAA que, apesar de atender a uma antiga reivindicação dos usuários do SUS e apresentar avanços na sua regulamentação, ainda não constitui em um programa em efetivo funcionamento, cujo acesso vem ocorrendo mediante judicialização. Assim, é necessário planejamento e financiamento pelo Estado e, principalmente, controle social pela população, para que apresentem as mesmas limitações do TFD.

Dessa maneira, compreende-se que os recursos e serviços de transporte para pessoas com doença crônica e deficiência na cidade do Rio de Janeiro, nos três níveis de governo, não tem levado em consideração as necessidades sociais e demandas desses sujeitos. As pessoas com doença crônica e/ou deficiência vêm encontrando grandes dificuldades no acesso aos seus direitos sociais e às políticas públicas, em razão das contrarreformas neoliberais e medidas de ajuste fiscal dos últimos governos brasileiros, desde a década de 1990. Tais processos vêm resultando no aumento dos critérios de elegibilidade cada vez mais rígidos, tais como grau de deficiência, incapacidade15 e dependência, renda ou hipossuficiência financeira, entre outros, variáveis em função do nível e da estrutura de poder responsável; dos trâmites burocráticos morosos, cada vez mais

15 No que diz respeito às doenças crônicas, nota-se a prevalência do modelo biomédico de deficiência nas avaliações para acesso a benefícios, pois há uma tendência a se considerar apenas as consequências da doença de base ou do seu tratamento, em detrimento das condições de interação das pessoas com limitações funcionais frente às barreiras físicas, sociais e culturais.

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condicionado à necessidade de cadastros específicos, tais como o Cadastro Único do Governo Federal (CADÚNICO); e das relações clientelistas para requerimento e concessão desses recursos16 . Também tem em sido recorrente a garantia do acesso a tais direitos por iniciativas individuais com a mediação do poder judiciário, em lugar de iniciativas coletivas pela atuação dos movimentos sociais e populares para pressão junto ao executivo e/ou ao parlamento, fato que demonstra o atual estágio de fragilidade da sociedade civil no exercício dos seus direitos de cidadania.

Para a reversão desse quadro, o assistente social, em seu trabalho cotidiano, pode contribuir para a visibilidade dessa necessidade social, por exemplo, através da realização de pesquisas sobre o perfil dos usuários e suas demandas de transporte, da socialização de informações sobre acesso aos direitos e às políticas públicas de transporte e mobilidade urbana, bem como aos mecanismos para controle social sobre elas. E, principalmente, através do apoio e estímulo à mobilização e à participação social dos cidadãos usuários dos serviços, para que exerçam seu papel político na defesa dos seus direitos sociais e coletivos, bem como na luta pela ampliação desses direitos e pela materialização do direito à cidade.

Considerações finais

A “questão urbana” vem se tornando, cada vez mais, objeto de preocupação, dos assistentes sociais. Há muito que os efeitos da industrialização e da urbanização sobre as condições de vida e trabalho da população vêm sendo abordados pela categoria. Mas, em geral, a questão urbana tem sido compreendida enquanto uma das expressões da questão social, ou seja, a face urbana das desigualdades resultantes do conflito entre a produção social e a apropriação privada pelas classes sociais.

No entanto, cabe chamar atenção sobre os limites em pensar a problemática urbana apenas sob o ponto de vista do modo de produção e da reprodução da força de trabalho. Esta perspectiva de análise tem levado a uma leitura do espaço enquanto suporte do modo de produção capitalista e “terreno” sobre o qual se desenvolvem as condições de vida da classe trabalhadora e as respostas do Estado através das políticas

16 Mediante controle de órgãos ou setores da administração pública por representantes de grupos de interesses corporativos ou partidários e, no presente caso, religiosos em algumas prefeituras.

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sociais e urbanas, nas quais atuam os assistentes sociais. Tal leitura tem se mostrado limitada, ao não considerar os efeitos da re-produção das relações sociais de produção capitalistas sobre o espaço e a vida cotidiana. Além disso, cada vez mais o conceito de direito à cidade vem sendo utilizado pelo Serviço Social, em análises que vão desde as expressões urbanas da questão social e as políticas públicas para seu enfrentamento, até a discussão sobre a problemática urbana (espacial) contemporânea e as práticas socioespaciais. Apesar de formulado por Henri Lefebvre em 1968, o conceito de direito à cidade ganhou grande visibilidade com a Carta Mundial do Direito à Cidade de 2004 e, nos últimos anos, vem sendo largamente utilizado a partir da leitura de David Harvey (2014). Porém, há que se advertir sobre o risco que tais interpretações contemporâneas, envoltas na armadilha do urbanismo enquanto ideologia, em um projeto de “gestão democrática da cidade” através de políticas públicas conduzidas pelo Estado. Um quadro que, ao ocultar a segregação através da integração à sociedade burocrática de consumo dirigido, sugere a perda de seu status de utopia experimental, tão caro ao pensamento de Lefebvre.

Considerando que as condições de saúde da população expressam a organização socioespacial desigual do país, sendo também determinada e condicionada pelo transporte e mobilidade urbana, compreende-se que o aprofundamento da relação entre a política de saúde e a política urbana pode contribuir para a construção de um diálogo cada vez mais integral, intersetorial e interdisciplinar rumo à garantia do direito ao transporte e à saúde garantidos na CF de 1988 e, quiçá, para a construção de relações socioespaciais mais democráticas necessárias ao processo de construção do direito à cidade como tarefa do tempo presente e do devir histórico. Neste sentido, discutir o transporte e a mobilidade urbana das pessoas com doença crônica e/ou deficiência busca estabelecer os nexos entre a questão social e a problemática urbana na atualidade, ao articular as macrodeterminações que vão condensar a cotidianidade da luta pelo acesso à saúde e inspirar as lutas pela realização do direito à cidade. Trata-se de um empenho voltado para a construção de uma estratégia do conhecimento que visa a prática global da sociedade urbana, bem como uma estratégia política que relacione dialeticamente o real, o

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possível e o impossível. Assim, recupera os apontamentos de Lefebvre, quanto à necessidade de uma crítica radical que abra caminho ao pensamento e à ação, na construção de estratégias urbanas contra-hegemônicas (LEFEBVRE, 1999).

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“DESDE O MOMENTO EM QUE HÁ MOVIMENTO HÁ

UTOPIA”: APORTES DO MARXISMO LEFEBVRIANO PARA PENSAR A PRÁXIS REVOLUCIONÁRIA NA DIMENSÃO DA VIDA COTIDIANA1

Mas a vida, a vida, a vida só é possível reinventada. (Cecília Meireles)

Introdução

Ao longo de sua trajetória intelectual e política, Henri Lefebvre sustentou que a transformação da vida cotidiana é um ineludível objetivo do projeto revolucionário. Em suas reflexões sobre os desdobramentos históricos da União Soviética, numa postura crítica e nada confortável com relação a essa experiência e no marco de seu embate com o “marxismo vulgar” (LUKÁCS, 2012, p. 308), Lefebvre (2002) remarca que, no chamado “socialismo real”, a vida cotidiana das massas não foi transformada de maneira significativa. Desse modo, para Lefebvre, um dos grandes problemas do “socialismo realmente existente” teria sido sua incapacidade de produzir uma vida cotidiana para a re-produção e efetivação de uma nova sociabilidade, acabando por reproduzir as relações sociais capitalistas.

A crítica lefebvriana da vida cotidiana é atravessada pelos dois eixos do projeto que unificou sua obra (MARTINS, 1996): por um lado, no plano teórico, a preocupação em prolongar e atualizar o pensamento de Marx, mantendo-se fiel ao método dialético e ao caráter aberto e vivo do complexo teórico marxiano; por outro, no campo prático-político, o propósito de manter e renovar a proposta da revolução, contribuindo para a superação das relações sociais capitalistas, retomando a centralidade da categoria da práxis no movimento dialético entre o possível e o impossível.

1DOI- 10.29388/978-65-81417-77-2-0-f.97-114

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Passados as duas primeiras décadas do século XXI, as reflexões de Lefebvre sobre a miséria do cotidiano, ou seja, sobre a subordinação da vida cotidiana à lógica destrutiva do capital (MESZÁROS, 2011), se mostram alarmantemente atuais. No marco das concepções romantizadoras de um passado idílico pré-capitalista ou com base na requentada falácia de um capitalismo “mais humano”, assistimos na primeira metade do ano 2020 a uma espécie de fetichização da pandemia pela Covid 19 e do que seriam seus desdobramentos na forma como a vida é vivida e, portanto, da relação dos seres humanos com a natureza. No entanto, como o capitalismo só é capaz de gerar mais capitalismo, em pouco tempo não só as sociedades retomaram seu cotidiano destrutivo, sob os impactos nocivos e mortais da “pandemia do capital” (ANTUNES, 2020). O capital aproveitou as condições da chamada “nova normalidade” para novas e sofisticadas estratégias para avançar sobre a vida da classe trabalhadora. Sendo terreno sobre o qual se projeta o possível-impossível, a vida cotidiana é imprescindível para a realização do hegemônico, da reprodução como repetição, da subordinação e das privações, mas é também lugar do novo, da contestação, da utopia de uma práxis humana potencialmente transformadora, lugar da realidade residual. A exigência da práxis revolucionária para a criação do novo num cotidiano marcado pelo elemento do repetitivo - ainda mais no docilizado cotidiano pandêmico - requer a recuperação e valorização da função política de uma utopia concreta - com raízes no “chão do vivido”, os pés no presente, aberta ao devir histórico e com o olhar para o futuro - que se encontra nos resíduos que resistem numa vida cotidiana programada, forjados nas brechas que podem ser abertas por práticas sociais orientadas à subversão do cotidiano.

Num contexto em que o caráter essencialmente destrutivo do capitalismo explode na forma de uma pandemia letal, se renova a necessidade de retomar a categoria da práxis, ressaltando e compreendendo a dimensão utópica que ela necessariamente carrega. Este texto, sendo fruto da interlocução com o UrbanoSS assim como resultado das pesquisas para a elaboração de minha tese de doutorado, tem como objetivo explorar alguns elementos do pensamento lefebvriano para o fortalecimento de um projeto emancipador que explore o campo dos possíveis e carregue a potência das “práxis do território”.

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I. Por que a vida cotidiana importa? Algumas considerações sobre a crítica da vida cotidiana em Lefebvre Embora mais conhecido pelas elaborações sobre o direito à cidade, uma das grandes contribuições de Lefebvre é sua crítica da vida cotidiana, que consideramos central para a compreensão e explicação acerca dos conteúdos e sentidos que assume a reprodução social capitalista no capitalismo contemporâneo. Nesse sentido, o projeto de enfrentar a temática da vida cotidiana como valioso campo de reflexões dentro da tradição marxista responde à necessidade de realizar novas aproximações à realidade entendida como uma totalidade concreta, considerando novos elementos de problematização para a compreensão desse “continente” tardiamente descoberto2 . No entanto, a incorporação da problemática da vida cotidiana nos estudos sobre a reprodução capitalista também responde à exigência (hoje mais urgente em função da crise estrutural do capital) de uma atualização e prolongamento da teoria da revolução de Marx com o resgate da categoria da práxis, do campo dos possíveis como virtualidade realizável através da práxis. Desse modo, se trata de destacar a importância da dimensão prático-sensível, do vivido, já que “[...] transformar o mundo é, acima de tudo, transformar a forma como a vida cotidiana, a vida real é vivida [...]” (LEFEBVRE, 2002, p. 35).

Na fase tardia do capitalismo (MANDEL, 1982) a dinâmica de reprodução das relações sociais se efetiva privilegiadamente em três dimensões: a vida cotidiana, o urbano e a produção do espaço (LEFEBVRE, 1991). No nível da vida cotidiana, a reprodução das relações sociais capitalistas opera pela colonização dessa dimensão da vida social, programando e organizando a vida vivida, fragmentando-a em horas, dias, semanas. Como parte da estratégia global de sobrevivência do capitalismo, após os abalos do século XX e em meio a uma crise estrutural (MESZÁROS, 2011), a violenta instauração de uma cotidianidade programada, controlada e manipulada se insere num processo específico, “[...] cuja instituição na vida cotidiana se relaciona à generalização da mercadoria, impondo modos de viver, sentir e pensar que determinam normas e regras racionalizadas de uso do tempo e do espaço cotidianos.” (BEVEDER,

2Para um debate sobre a reprodução social capitalista a partir da noção lefebvriana de re-produção das relações sociais de produção, ver Lefebvre (1973).

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2019, p. 160-161).

Para entender as particularidades sócio-históricas através das quais o capital organiza e aplica sua ofensiva sobre a vida cotidiana, Lefebvre formula a noção de sociedade burocrática do consumo dirigido (LEFEBVRE, 1991), que se desenvolve, se perpetua e se fortalece através do conjunto de pressões, repressões e constrangimentos aos quais a vida cotidiana é submetida pelas instituições e práticas de poder do Estado e pelas forças de disputa de hegemonia das classes dominantes. O termo “terrorismo” foi formulado por Lefebvre para pensar e explicar a forma particular através da qual se estabelece a reprodução da vida cotidiana – e, portanto, a reprodução da totalidade da vida social – na sociedade contemporânea (CUNHA et al ., 2003).

No “mundo moderno”, o terror penetra na vida cotidiana de maneira difusa e progressiva, sem ser percebido ou reconhecido enquanto repressão, infiltrando-se em todos seus níveis: “[...] a todos os instantes, sobre todos os planos, até mesmo a vida sexual e afetiva, a vida privada e familiar, a infância, a adolescência, a juventude, em resumo, o que aparentemente escapa à repressão social, porque está próximo da espontaneidade e da natureza.” (LEFEBVRE, 1991, p. 156-157). Através de mecanismos de dominação que operam também sobre o consumo, a violência exercida para manter os sujeitos “[...] nos marcos do cotidiano e retirar-lhe a consciência de seu avassalamento [...]” (LEFEBVRE, 1972, p. 53) chega a ser internalizada, justificada e até mesmo naturalizada.

Transformada em terreno de “[...] necessidades programadas, práticas modeladas por manipulações [...]” (LEFEBVRE, 1978, p. 9, tradução nossa), a vida cotidiana no capitalismo contemporâneo parece reduzida à miséria do cotidiano, isto é, [...] aos trabalhos enfadonhos, às humilhações, à vida da classe operária, à vida das mulheres sobre as quais pesa a cotidianidade. A criança e a infância sempre recomeçadas. As relações elementares com as coisas, com as necessidades e o dinheiro, assim como com os comerciantes e as mercadorias. É o reino do número. A relação imediata com o setor não dominado do real (a saúde, o desejo, a espontaneidade, a vitalidade). O repetitivo. A sobrevivência da penúria e o prolongamento da escassez: o domínio da economia, da abstinência, da privação, da repressão dos desejos, da mesquinha avareza. (LEFEBVRE, 1991, p. 42).

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Sendo assim, a ofensiva geral do capital, que se particulariza também através da instauração do cotidiano miserável, é uma ofensiva brutal sobre a vida, esvaziando-a de sentido: “[...] o sentido da vida é a vida desprovida de sentido; realizar-se é ter uma vida sem história, a cotidianidade perfeita. Mas é também não vê-la e fugir dela assim que for possível.” (LEFEBVRE, 1991, p. 133). O desejo de fuga do cotidiano é redirecionado por dispositivos orientados ao consumo - com destaque para a publicidade, a indústria do entretenimento e do turismo -, gerando a ilusão de que existe uma oposição absoluta entre cotidianidade e diversão/dispersão quando, na verdade, ambos momentos são parte do cotidiano racionalmente organizado. É assim que na sociedade dominada pelo “[...] espetáculo do consumo [...]” (LEFEBVRE, 1991, p. 133) e o “[...] consumo do espetáculo [...]” (LEFEBVRE, 1991, p. 133), as práticas sociais se deslizam da produção de obras para a produção de produtos destinados ao consumo3. A organização e programação do consumo, pelas ações racionalizantes do Estado no âmbito do cotidiano, são parte da estratégia das forças dominantes que pretende homogeneizar os modos de vida e os processos sociais, separando, fragmentando e hierarquizando seus momentos, tempos e espaços.

Em suma, o cotidiano se constituiu como uma das instâncias nas quais o Estado, a serviço do capital, lança estratégias para “equivalizar”, homogeneizar a vida cotidiana, por meio da “[...] ordem, pelos modelos, por meio das instituições sociais, do poder político, das forças armadas e da burocracia (mediação geral).” (NASSER; FUMAGALLI, 1996, p. 34).

3 Com a consolidação do capitalismo e a generalização da mercadoria, o “reino da cotidianidade” se instaura e se espraia pela vida social. Enquanto antes a produção de obras superava a de produtos, no reino do cotidiano programado a obra tende a desaparecer. Obra, no sentido lefebvriano, se refere à atividade criadora, é o resultado da ação poiética. O termo “obra”, portanto, é tomado por Lefebvre em toda sua amplidão (LEFEBVRE, 1983). “Se tratará das obras de arte? Sim, porém não somente das artes plásticas, mas também da poesia, da música, da dança e o teatro […] a pintura, a escultura e a arquitetura. Também se tratará de obras mais vastas: a cidade, o urbano e o monumental.” (LEFEBVRE, 1983, p. 27, tradução nossa). Cabe aqui, rapidamente, apresentar a distinção lefebvriana entre obra e produto, baseada no conceito de produção na amplitude que assume na noção de re-produção das relações de produção (BEVEDER, 2019). A obra é, em princípio, única, original. O produto é reprodutivo, é repetitivo. Nas palavras de Lefebvre, “[...] a obra possui algo de insubstituível e único, enquanto que o produto pode se repetir e de fato resulta de gestos e atos repetitivos.” (LEFEBVRE, 2013, p. 127, tradução nossa).

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Ademais, ao mesmo tempo em que o Estado assume um poder homogeneizante, exerce uma pressão identitária sobre os sujeitos, isto é, “[...] produz indivíduos reduzidos ao status de signo e sinal4 [...] Efetivamente o Estado pode gerir e dominar vidas inteiras, reduzindo-as a simulacros do cotidiano.” (NASSER; FUMAGALLI, 1996, p. 34, grifo nosso).

No marco da sociedade burocrática do consumo dirigido, os “simulacros do cotidiano” tem como finalidade “[...] entreter a quotidianidade reduzida à obediência passiva [...]” (LEFEBVRE, 1968, p. 125) pela dissociação das atividades cotidianas dentro do próprio cotidiano e dessas atividades com as de outros níveis da vida social, reduzindo-as a meras atividades rotineiras sem conexões que as qualifiquem.

Contudo, vida cotidiana é um dos níveis da vida social, forma parte da realidade entendida como totalidade concreta; não é, portanto, um “momento” meramente trivial da vida social. Portanto, embora contenha o que se entende por “rotina”, engloba mais que as atividades rotineiras e repetitivas, há na vida cotidiana mais do que as ações de todos os dias que resultam de hábitos e costumes desprovidos de reflexão e sentido.

A compreensão da vida cotidiana apenas como o lugar no qual se reproduz a rotina leva ao equívoco de apreender o todo pela parte, conduzindo a uma imobilização e liquidação da potência que a vida cotidiana carrega. Uma interpretação dialética da vida cotidiana necessariamente deve estar ancorada na perspectiva de totalidade, sendo compreendida como nível constituinte de um processo em movimento, em constante mudança e aberto ao devir. Destarte, é “[...] impossível

4 Segundo Lefebvre, há transformações consideráveis quando se concebe a sociedade como campo de significações. Estas transformações se expressam na passagem do símbolo ao signo e do signo ao sinal. “Durante longos períodos históricos, os símbolos dominaram esse campo (símbolos provenientes da natureza, mas dotados de uma força social considerável). Já no início da nossa civilização, e notadamente após a invenção da imprensa, o campo semântico inteiro desliza do símbolo para o signo. No período considerado [entre 1950 e 1960], um outro deslizamento se configura, ou melhor, se confirma: do signo para o sinal.” (LEFEBVRE, 1991, p. 70). O sinal, diz Lefebvre, “[...] comanda, ordena comportamentos e os regulariza [...]” (idem, ibidem). Assim, “[...] o deslizamento do campo em direção ao sinal implica a predominância das imposições sobre os sentidos, a generalização do condicionamento na vida cotidiana, a redução do cotidiano a uma dimensão (a disposição dos elementos recortados), afastando-se as outras dimensões da linguagem e do sentido, os símbolos, as oposições significantes. O sinal e o sistema de sinais fornecem um modelo cômodo de manipulação das pessoas e das consciências, o que não exclui outros meios mais sutis.” (LEFEBVRE, 1991, p. 71).

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captar o cotidiano como tal, aceitando, vivendo-o passivamente [...]” (LEFEBVRE, 1991, p. 34).

A perspectiva de totalidade orienta a pesquisa dos processos sociais em curso, em seus aspectos dominantes, evidenciando a lógica que preside o caráter das relações sociais e, por conseguinte, as práxis repetitiva e mimética; no entanto, a perspectiva de totalidade também orienta o estudo para o novo, orienta o olhar para a práxis inovadora, transformadora, revolucionária 5 . Portanto, o reconhecimento da dimensão da utopia como parte constitutiva da práxis revolucionária é um dos desdobramentos teórico-metodológicos mais importantes de um pensamento assentado na perspectiva de totalidade.

II. A dialética do possível-impossível e a dimensão da utopia na práxis

Assim como Marx, Lefebvre foi um pensador do possível, da utopia. Não de uma utopia inalcançável ou resultado de um movimento puramente abstrato do pensar, uma utopia pré-determinada ou profeticamente anunciada. O arcabouço que Lefebvre construiu e deixou como legado envereda, expressamente, pelo caminho da exploração das possibilidades.

Hoje, mais que nunca, não existe pensamento sem utopia. [...] se nos contentarmos em constatar, ratificar o que temos sob os olhos, não iremos longe, permaneceremos com os olhos fixados no real. Como se diz: seremos realistas... mas não pensaremos! Não existe pensamento que não explore uma possibilidade, que não tente encontrar uma orientação. (LEFEBVRE, 2008, p. 73).

A utopia não é uma dimensão separada, distinta e distante da realidade, pois “[...] o real não é imóvel, dado de uma só vez, pronto

“A práxis existe em três níveis: o repetitivo e o inovador, nos dois polos e, entre os dois, o mimético. A práxis repetitiva recomeça os mesmos gestos, os mesmos atos em ciclos determinados. A práxis mimética segue modelos; pode suceder que, imitando, ela chegue a criar, mas sem saber como nem por quê; mais frequentemente ela imita sem criar. Quanto à práxis inventiva e criadora, ela atinge seu nível mais elevado na atividade revolucionária [...] A práxis revolucionária introduz descontinuidades no processo global sócio-histórico.” (LEFEBVRE, 1968, p. 37). A tríade proposta por Lefebvre para pensar a complexidade da práxis tem correspondência com sua noção de re-produção das relações sociais. Nesse sentido, a práxis (triádica) é contraditória: reproduz relações sociais, produzindo, no mesmo processo, novas relações sociais.

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e acabado. Trata-se de um devir; portanto, de uma possibilidade [...]” (LEFEBVRE, 1962, p. 16, tradução nossa). Tampouco pode a utopia ser reduzida ao sonho impossível, ao irrealizável, mas deve ser assumida e tratada como parte insuprimível do pensamento que se abre para apreender o elemento subordinado pela sociabilidade dominante, aquilo que resiste à dominação e controle, existindo como virtualidade e potência. É por isto que o processo de construção de conhecimento deve basear-se na existência (virtual) do possível no real, apreciando a relação entre os dois, analisando o real em função do possível e vice-versa (LEFEBVRE, 1962).

A abertura para o possível está no presente, as brechas que evidenciam a negação do “existente” que domina e predomina estão nesta realidade, reino da barbárie que se estabelece também no e através do cotidiano, organizado e constrangido pela burocracia centrada no consumo programado e o terrorismo naturalizado. O ponto de partida para o conhecimento sobre a sociedade é a vida real, a vida “vivida”. Para Lefebvre, que compartilha da premissa de que “[...] a vida social é essencialmente prática [...]” (MARX; ENGELS, 2007, p. 539), o ponto de partida é a vida cotidiana, aquilo que por tanto tempo fora considerado indigno de investigação. Dessa forma, o conhecimento que “[...] se eleva da terra ao céu [...]” (MARX; ENGELS, 2007) não parte daquilo que os homens pensam, dizem, imaginam e representam sobre si; ele parte da vida real de homens concretos. Destarte, o processo de conhecimento se origina na atividade humana concreta, para depois expor o “[...] desenvolvimento dos reflexos ideológicos e dos ecos desse processo de vida [...]” (MARX; ENGELS, 2007, p. 94).

Assim, a utopia se produz no presente, na experiência vivida, não no plano ideal, na dimensão do concebido. O vivido importa, o vivido precisa ser flagrado, conhecido e reconhecido, explorado 6 . Daí a preocupação de “[...] conservar a força do conhecimento crítico animando-o com o ardor da vivência [...]” (LEFEBVRE, 1983, p. 107, tradução nossa). No entanto, é também necessário reconhecer a fragilidade da vivência, 6 José de Souza Martins situa no centro da obra lefebvriana “[...] a crescente importância do vivido, da transgressão, da insurreição que no silêncio dos subterrâneos da sociedade convulsiona a vida moderna capilarmente, nos detalhes da vida social.” (MARTINS, 1996, p. 10).

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não desprezar que “[...] o conhecimento comporta uma crítica do ‘vivido’, o que não significa sua eliminação, mas um esforço por compreendê-lo [...]” (LEFEBVRE, 1972, p. 104, tradução nossa), apreendendo seu conteúdo, isto é, as relações e práticas sociais que nele se realizam. Diante disso, se o conhecimento da realidade não pode desprezar o vivido, tampouco pode operar pela substituição do “conceito sem vida” pelo “vivido sem conceito” (LEFEBVRE, 1973).

Não se trata de menosprezar o concebido, mas de conectar estas duas dimensões da vida social, discernindo-as e unindo-as numa relação dialética.

É meu propósito tirar das sombras, alumbrar ao máximo. Em particular através do movimento dialético do vivido e o concebido, que considero fundamental e que a maioria rechaça e oculta tomando partido sem refletir uns pelo vivido, cego e informe, os outros pelo concebido, abstrato e mortal [...]. Tenho tentado manter-me simultaneamente entre ambos extremos. Meu objetivo vital está na linha filosófica, embora não se trate exatamente de filosofia, já que pretendo misturar o vivido e o concebido. Os filósofos têm apostado sobre o concebido e o conceitual, enquanto que eu tento fazer aflorar a multiforme relação entre o vivido e o concebido. (LEFEBVRE, 1976, p. 125, tradução nossa).

O vivido não é um círculo fechado e estanque, passível de ser apreendido com as “pinças dos conceitos” ou pela atividade sensível isolada. É por isso que a ciência, afirma Lefebvre “[...] deve aprender a respeitar a vivência, por menor, por mais humilde que seja, ante a enorme massa de saber acumulado [...]” (LEFEBVRE, 1983, p. 223, tradução nossa).

No plano do vivido e do cotidiano a obra é integrada ao saber (LEFEBVRE, 1983). “O criador de obras encontra na vivência a inspiração inicial, o impulso original e vital. Retorna a ela, a ‘ex-pressa’ com as contradições e conflitos subjacentes, mas necessita emergir e ainda mais assimilar o saber.” (LEFEBVRE, 1983, p. 224, tradução nossa). A distinção entre obra e produto, imbricada à noção ampla de produção, contribui para pensar a práxis como “ferramenta” de abertura de brechas, de exploração e potenciação do residual. O pensamento deve, assim, elucidar uma prática social criadora, envolvida por “[...] relações de criação que não coincidem com as relações econômicas e/ou políticas [...]” (LEFEBVRE, 1983, p. 217, tradução nossa). Nesse processo, descobrem-se tam-

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bém outras contradições, distintas das contradições inerentes às relações de produção, reprodução, propriedade e dominação.

Destarte, não é pelo concebido – especialmente quando corresponde ao saber, às ciências e aos conhecimentos hegemônicos que elevam os conceitos ao absoluto – que essas relações “criadoras de obras” podem ser apreendidas e potencializadas de maneira a mobilizar a utopia.

O vivido para Lefebvre não apenas importa, mas é também autêntico e revelador e, portanto, não pode ser secundarizado em nome do estudo de experiências humanas “superiores”, estas últimas consideradas verdadeiramente merecedoras de estudo pela filosofia e por saberes orientados para a construção de um “conhecimento total” e coerente. A propósito, vale salientar que esta separação mecânica e definitiva entre as atividades cotidianas e as atividades superiores ou elevadas é falsa, somente pode ser produto de um pensamento que permanece no abstrato e pretende discorrer sobre a vida sem considerar o plano da experiência do vivido. (BEVEDER, 2019, p. 176).

Em favor do concebido, o desdém pelo vivido tem relação com a ideia de um saber “puro” que estaria supostamente desligado dos circuitos de poder, decantado de ideologia, fetichizado. Essa separação tem se mostrado funcional à reprodução das relações sociais de produção no capitalismo.

A noção geral de sociedade burocrática do consumo dirigido não exclui o possível, a grandeza que o cotidiano carrega, a potência que a vida cotidiana retém. É premissa dessa noção a concepção da sociedade não como sistema fechado e total, coerente e coeso; esta é apenas a pretensão das forças dominantes que também procuram homogeneizar os elementos e processos da vida social, ao mesmo tempo em que a fraturam e fragmentam, para melhor organizá-la, controla-la e mercantiliza-la. A definição da sociedade como “burocrática do consumo dirigido” é uma definição explicitamente aberta e não dogmática; permite vislumbrar aberturas e identificar o irredutível, isto é, os “[...] conflitos, contestações que impedem o fechamento e causam rachaduras nas muralhas [...]” (LEFEBVRE, 1991, p. 84).

A exigência de adoção da totalidade está conectada ao caráter cambiante e vivo da realidade social, construída pelas complexas e contraditórias relações sociais e pela práxis. Sendo assim, “fechar” a totalida-

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de ou conceber a sociedade como um sistema ou círculo leva à simplificação da práxis, encapsulada nas práticas e concepções dominantes, isto é, das classes dominantes. Pelo exposto, na análise somente o ponto de vista de totalidade dialética, concreta, contraditória, aberta e viva é o que permite captar o “mundo do possível-impossível”, que diz respeito à relação entre o dominante e o dominado, que joga luz sobre a interação entre o que rege e predomina e o que é obstaculizado, ocultado, esmagado. Em suma, é através dessa perspectiva e perseguindo sempre o que ela pressupõe (a exigência da análise do real como totalidade) que se identificam os resíduos, para depois decifrá-los, reuni-los e potencia-los.

III. A teoria dos resíduos

Na proposta global de Lefebvre, a teoria dos resíduos ocupa um lugar central para a construção de um pensamento e uma práxis revolucionários. Desse modo, a ênfase no elemento do residual, lócus sobre o qual é possível a ação poiética, põe em destaque aquilo que pressiona, questiona, tensiona e nega o estabelecido e dominante, mantendo as aberturas para a subversão da lógica dominante e suas práticas, aquilo que escapa à programação do cotidiano. Para conhecer e reconhecer o que foi subordinado, invisibilizado, aviltado nas relações sociais, é necessário questionar o cotidiano, realizar uma análise dialética da vida cotidiana, torná-la objeto de conhecimento, negar a aparência com a qual a cotidianidade a esconde e, ao mesmo tempo, revela.

A crítica da vida cotidiana construída por Lefebvre integra o esforço intelectual e a tarefa de elucidar parte da estratégia global de reprodução social capitalista na contemporaneidade, compreendendo que há elementos que escapam ao poder. Há no cotidiano algo que não se deixa encapsular e reduzir pelas forças dominantes, algo que resiste à programação, organização e controle. A este “algo”, Lefebvre chamou de “resíduo”. O residual é o que resta porque resiste, é o remanescente do projeto hegemônico do capital que se lança sobre a vida impondo um cotidiano homogeneizador que organiza e programa as relações e práticas sociais no sentido de dominar o modo de vida. Portanto, “[...] as grandes formas de poder que desejam a homogeneidade, uma sociedade fechada e a consolidação das estruturas de equilíbrio (o Estado, as Igrejas, etc.) en-

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frentam e suscitam a resistência dos elementos residuais.” (LEFEBVRE, 1972, p. 34, tradução nossa).

Os resíduos correspondem a defasagens, atrasos acumulados, resultado de simultaneidade de tempos, de transições, de continuidades e descontinuidades, da combinação entre novas e velhas contradições (antigas, ocultas, atenuadas, reduzidas, nunca resolvidas) (LEFEBVRE, 1968). No cotidiano, os resíduos se formam pelas contradições geradas na coexistência tensa e simultaneidade de tempos históricos distintos num mesmo espaço-tempo. Nesse sentido, como afirma Martins, [...] as contradições são históricas e não se reduzem a confrontos de interesses entre diferentes categorias sociais. Ao contrário, na concepção lefebvriana de contradição, os desencontros são também desencontros de tempos e, portanto, de possibilidades. Na descoberta da gênese contraditória de relações e concepções que persistem está a descoberta de contradições não resolvidas, de alternativas não consumadas, necessidades insuficientemente atendidas, virtualidades não realizadas. Na gênese dessas contradições está de fato a gestação de virtualidades e possibilidades que ainda não se cumpriram. Porque é o desencontro das temporalidades dessas relações que faz de uma relação social em oposição a outra a indicação de que um possível está adiante do real e realizado. (MARTINS, 1996, p. 22).

Os desencontros entre as relações sociais de distintas temporalidades – que, contudo, coexistem – é o que confere sentido à práxis, ou seja, o que a introduz no nível repetitivo, inovador ou mimético (MARTINS, 1996). Há, portanto, uma “efervescência”, uma ebulição de mundos, tempos, relações. Segundo Martins, É desta tensão que nasce a possibilidade da práxis revolucionária. Práxis que se funda no resgate e na unificação política dos resíduos –concepções e relações residuais que não foram capturadas pelo poder, que permaneceram nos subterrâneos da vida social, virtualidades bloqueadas. [...] Nos resíduos e no virtual estão as necessidades radicais, necessidades que não podem ser resolvidas sem mudar a sociedade, necessidades insuportáveis, que agem em favor das transformações sociais, que anunciam as possibilidades contidas nas utopias, no tempo que ainda não é, mas pode ser. Para isso é preciso juntar os fragmentos, dar sentido ao residual, descobrir o que ele contém como possibilidade não realizada. (MARTINS, 1996, p. 23).

O resíduo está conectado à práxis criadora, ao poder e à força

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criadora do ser humano em suas relações; sendo assim, os resíduos podem motivar e inspirar a práxis a criar o novo. O irredutível, o residual, está no Desejo, que não é previsível, como as necessidades satisfeitas no cotidiano; está no prazer e no sexo, que escapam ao controle dos corpos; na Festa7 e sua restituição; no sonho; na espontaneidade e na imaginação; no afeto. Os resíduos são expressão de esperança e resistência, apontam para o possível e para a criação do novo.

A incorporação da utopia na análise da realidade social adquire um sentido experimental, como momento de uma leitura da dialética entre o possível e o impossível, que tem como ponto de partida a realidade concreta, tal como é (com suas contradições, níveis, nexos, etc.), para descobrir os “resíduos”, abafados e reprimidos pela cotidianidade, com o objetivo de pensar e criar o “novo” a partir das práticas e experiências vividas no âmbito do cotidiano.

Considerações finais

A crítica da vida cotidiana no pensamento de Lefebvre é parte de seu projeto intelectual e de um projeto político de caráter emancipador. Em outras palavras, a crítica da vida cotidiana é uma crítica radical da totalidade da sociedade burguesa contemporânea, com o objetivo de transformar a vida cotidiana, começando por alumbrar o caminho para enxergar as possiblidades contidas em potência num cotidiano programado, organizado e moldado para a reprodução capitalista.

A Festa se refere à apropriação, ao consumo improdutivo, “[...] sem nenhuma outra vantagem além do prazer e do prestígio, […] enormes riquezas em objetos e dinheiro.” (LEFEBVRE, 1969, p. 10-11). Pensando na re-produção das relações sociais, nas contradições que por elas se gestam e nos antagonismos que se manifestam nas esferas “superiores” (institucionais, de poder), emerge a questão da Festa e a distinção entre estilo e cultura. Uma das implicações da instauração do cotidiano refere-se à “[...] degenerescência simultânea do Estilo e da Festa na sociedade onde o cotidiano se estabeleceu [...]” (LEFEBVRE, 1991, p. 43). O Estilo passa a ser reduzido à cultura, que se divide em cultura das massas (cultura cotidiana) e alta cultura. O Estilo na sociedade do cotidiano consolidado se fragmenta e se decompõe. A arte passa a ser uma “[...] atividade cada vez mais especializada [...] uma paródia da festa [...] um ornamento do cotidiano [...]” (LEFEBVRE, 1991, p. 43). A cultura se consolida como bem de consumo ao mesmo tempo em que intervém, organiza, normatiza e regula a vida de todos os dias; a cultura é “[...] ativa e específica, ligada a um modo de vida [...]” (LEFEBVRE, 1991, p. 39), à organização de um modo de vida. No entanto, a Festa não desaparece totalmente do cotidiano, manifesta-se em “agradáveis miniaturas” do que constituiu antigamente a Festa.

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Convocar a pensar o cotidiano e validá-lo como objeto de conhecimento e campo de ação significa considerar, acentuar e potencializar os resíduos, aquilo que as instituições, entidades e ideologias do poder desvalorizam, depreciam, inferiorizam. Aquilo que é irredutível, que escapa e carrega o possível. É “[...] o misterioso e o admirável que escapam aos sistemas elaborados [...]” (LEFEBVRE, 1991, p. 23). Nesse sentido, a postura crítica na interpretação da vida cotidiana e seu lugar na sociedade contemporânea envolve, portanto, significar o (aparentemente) insignificante, o que tem sido desprezado e tratado com desdém. Segundo Remi Hess, sociólogo francês, o principal editor de suas obras e um de seus mais importantes biógrafos, “[...] Henri Lefebvre reintroduz o trivial na filosofia [...] o cotidiano é dispersão, é fragmento! E resulta que, para Henri Lefebvre, para pensar é necessário o fragmento, o mesmo que o resíduo. Inclusive há que partir do resíduo para pensar o mundo.” (HESS, 2012, p. 20-21, tradução nossa). O residual resiste às repressões da cotidianidade imposta pelos homens para exercer “seus podres poderes” 8; contendo o desejo, os resíduos pulsam em meio a (e apesar de) um cotidiano brutalmente contraditório.

Como imposição ou recomendação, a quarentena tem servido como uma luva aos homens que exercem seus podres poderes. Embora não se negue a gravidade e a ameaça, é necessário enxergar as manifestações e atos que tem tomado as ruas de muitas cidades do mundo desde que foi declarada a pandemia em 2020. O residual resiste e o novo insiste em renascer. O clandestino, o subterrâneo, (re)emerge e se faz presente mais uma vez perturbando o cotidiano, contestando a cotidianidade, desenvolvendo uma práxis ativamente contrária à programação e organização da vida das pessoas. A vida cotidiana pode ser um “[...] trampolim para ações sublimes [...]” (LEFEBVRE, 2002, p. 42, tradução nossa) quando conectada com o devir, com a história (com o “fazer história”!), com a práxis que convoca e explora o possível-impossível. O movimento dialético do possível-impossível se desenvolve

8 Expressão tomada da composição musical de Caetano Veloso. “Enquanto os homens exercem / Seus podres poderes / Morrer e matar de fome / De raiva e de sede / São tantas vezes / Gestos naturais [...] Eu quero aproximar o meu cantar vagabundo / Daqueles que velam pela alegria do mundo / Indo e mais fundo / Tins e bens e tais” (VELOSO, 1984, s/p).

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quando a nova totalidade que deve ser construída implica uma transformação da vida cotidiana. Para isso, “[...] é preciso reencontrar o senso do virtual, do possível. E a ideia de que o possível também pode ser conhecido, procurado, explorado. Não há pensamento político que não inclua o pensamento do possível.” (LEFEBVRE, 1980, p. 103).

Marx, diz Lefebvre, reivindicava uma sociedade na qual todos os seres humanos pudessem redescobrir a “[...] espontaneidade da vida natural e seu impulso criativo inicial, e percebam o mundo através dos olhos de um artista, apreciem o sensorial através dos olhos de um pintor, os ouvidos de um músico e a linguagem de um artista, de um poeta.” (LEFEBVRE, 2002, p. 37). O reino da liberdade, como utopia concreta possível, requer a transformação da vida cotidiana do presente histórico. Nos parece significativo encerrar este texto com um fragmento de um dos escritos de José Luis Rebellato, filósofo uruguaio imprescindível, profundamente comprometido com o estudo da realidade lationamericana, que em uma de suas reflexões sobre a importância da educação popular nos processos de transformação social escreveu:

La utopía está en el corazón mismo de la construcción de una nueva sociedad; no la utopía entendida como un mundo ideal e inalcanzable, puesto por encima de las condiciones históricas, sino la utopía como proyecto que desafía, convirtiéndose así en una fuerza propulsora que empuja a hacer real el proyecto histórico de liberación de los pueblos. (REBELLATO, 2009, p. 47-48).

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MOVIMENTOS SOCIAIS AMBIENTAIS EM MACAÉ E A QUESTÃO URBANA:

A CRÍTICA NO CONTEXTO DE UMA URBANIZAÇÃO ECOLÓGICA1

Introdução

O conteúdo desenvolvido nesse trabalho é uma parte da pesquisa de doutorado em Ciências Ambientais e Conservação, pelo Instituto de Biodiversidade e Sustentabilidade da UFRJ, aprovada no comitê de ética em pesquisa CAAE: 47053320.7.0000.5699. O objeto da pesquisa são movimentos sociais com pautas ambientais, na cidade de Macaé. O objetivo da de doutorado é compreender as relações estabelecidas entre movimentos sociais com pautas ambientais e contradições do desenvolvimento local centrado na indústria do petróleo.

Foi realizado um mapeamento dos movimentos sociais ambientais que ocorreram no munícipio de Macaé/RJ, após a Petrobrás iniciar as operações de exploração e prospecção de petróleo em alto mar e a subsequente chegada da indústria do petróleo, a partir de meados dos anos 1970. Dentre os movimentos identificados, a Associação Macaense de Defesa Ambiental (AMDA) foi o movimento escolhido para análise mais aprofundada. Foram trabalhadas três fontes de dados, análise documental do livro ata e outros materiais da Associação Macaense de Defesa Ambiental, pesquisa hemerográfica e entrevistas com sujeitos da história, na elaboração deste artigo as entrevistas ainda não haviam sido realizadas. A pesquisa se insere na área das Ciências Ambientais, criada no âmbito da CAPES, em 2011, em que a abordagem interdisciplinar é elemento primordial em sua existência. A área surge a partir da necessidade de enfrentar a questão ambiental, analisando a interação entre sistemas antrópicos e naturais que emergem no mundo contemporâneo, combinando o campo das ciências da natureza com às ciências sociais.

O texto se divide em três partes, a primeira apresenta uma lei-

1 DOI - 10.29388/978-65-81417-77-2-0-f.115-132

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tura sobre movimentos sociais ambientais, situando no tempo espaço o recorte da pesquisa. No segundo tópico, uma contextualização histórica da estratégia local no processo que revelou uma urbanização com características ecológicas no município, a partir da Agenda 21 e a perspectiva do desenvolvimento sustentável. Por fim, uma análise crítica de todo o processo, com realce para a questão social e a indissociabilidade entre as questões urbana e ambiental.

I. Movimentos Sociais Ambientais em Macaé

É comum que seja destacado o ano de 1968 como um marco para os movimentos sociais ambientais. As manifestações pela Europa e EUA foram reconhecidas de tal maneira que se ampliou o campo de analítico dos movimentos, superando em muito a ideia de que movimento social se limitava aos movimentos sindical e operário. Vieram à tona debates e mobilizações pelos direitos humanos, direitos LGBT’s, a defesa do meio ambiente, o movimento de mulheres, enfim, uma gama de novas possibilidades. Essa literatura classificou esses movimentos ficaram conhecidos como os novos movimentos sociais.

Entretanto, há que se refletir sobre esse marco histórico, que não considera que tantas lutas por direitos anteriores ao marco teve tinham como objeto/pauta questões ligadas ao ambiente, apesar de não serem reconhecidos como tal. Conforme indica Alier (2017). Por isso, apesar de ser importante considerar as leituras que demarcam a segunda metade do século XX como ponto de partida para os movimentos sociais com pautas ambientais, urge revisar esses e outros paradigmas constituídos a partir da perspectiva eurocêntrica de desenvolvimento da sociedade e reconhecer que as expressões de lutas que conformaram a questão social desde sua gênese já envolviam expressões ambientais.

O conceito de movimentos sociais será entendido como ações sociais coletivas de caráter sociopolítico e cultural que viabilizam formas distintas de a população se organizar e expressar suas demandas. Definições já clássicas sobre os movimentos sociais citam como suas características básicas: possuem identidade, tem opositor e articulam ou fundamentam-se em um projeto de vida e de sociedade (GOHN, 2011). A análise produzida aqui agrega ao conceito de Gonh quatro características de lutas

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ecológicas, que foram identificadas e construídas ao longo da pesquisa: a) urbanização ecológica, em que as pautas e as ações dos movimentos são no sentido de demandas de urbanização, como a conservação dos entornos das lagoas urbanas e das regiões de restinga, questões relacionadas aos gabaritos de altura dos prédios na orla e a criação de parques naturais na área urbana do município; b) Conservação da Mata Atlântica, em que as pautas e ações focam na conservação da Mata Atlântica na região serrana do município; c) Governança da questão hídrica, em que as pautas e ações se organizam nas questões relacionadas à bacia hidrográfica do Rio Macaé; e d) Agroecologia e Consumo, em que as pautas e ações se direcionam para a produção de alimentos limpos, feiras agroecológicas e a questão do consumo consciente.

O contexto da pesquisa se desenrola no território do município de Macaé. Local escolhido, na década de 1970, para ser a base de operações off-shore 2 da Petrobrás na Bacia de Campos. O município tem uma vasta área territorial que vai da costa, com uma grande faixa de praia que adentra o continente até uma região de serra. É o terceiro maior município do Estado do Rio de Janeiro. O desenho geográfico compreende uma extensa faixa de grandes restingas e lagoas litorâneas, na região sede do munícipio. Por outro lado, há toda uma região serrana, de características rurais, coberta por Mata Atlântica. Todo esse território é banhado pela bacia hidrográfica do Rio Macaé, cuja foz é bem no centro da cidade3

As características naturais do município, contrastada com o impacto poluente da indústria do petróleo formou elementos que favoreceram o aparecimento de mobilizações e movimentos com preocupação ecológica no âmbito local. Foram identificados 12 movimentos que ocorreram no munícipio de Macaé até os dias de hoje, esses movimentos apresentam as quatro características apresentadas aqui, seja de forma isolada ou combinadas entre si. Das ocorrências identificadas, o foco da pesquisa foi direcionado para a Associação Macaense de Defesa Ambiental (AMDA), o movimento mais antigo identificado, que combina todas as características. A AMDA forma uma espécie de raiz do movimento

2 Operações off-shore na indústria do petróleo são operações de extração e prospecção de petróleo em alto mar.

3 Ver: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/rj/macae/panorama. Acesso em: 11 maio 2021.

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ambiental local, no contexto em que quase todos os movimentos identificados que nasceram após a AMDA derivam deste primeiro movimento.

As primeiras mobilizações com ativa participação da AMDA acontecem na década de 1980 em oposição às consequências da indústria do petróleo, são duas mobilizações que tem repercussão direta no desenvolvimento do município de Macaé. A primeira contrária à construção de um Polo Petroquímico e a segunda contra a instalação de uma monobóia4 na região costeira. Outro município acabou sendo escolhido para sede do Polo, a monobóia não foi instalada e criou-se uma área de proteção na região costeira de Macaé com o Parque Natural do Arquipélago de Santana (Lei n. 1216/1989) no local onde seria instalada a monobóia. Essa combinação tem uma ativa participação da AMDA tanto nas mobilizações quanto na elaboração da lei que criou o parque no Arquipélago de Santana.

O movimento se fortalece na cidade e tem algumas pautas diretamente atendidas como a criação da secretaria municipal de meio ambiente, além disso, a AMDA lidera a elaboração do capítulo de Meio Ambiente na Lei Orgânica do município, que conforme identificado nas pesquisas documentais consegue êxito e aprova o texto quase na íntegra.

A partir desse ponto, as pautas, no desenrolar dos anos 1990, começam a ganhar uma perspectiva urbana, com destaque para questões na região sul da cidade, parte mais valorizada, com a proposta de conservação da região que compreende a Lagoa de Imboassica e a Praia do Pecado, mas também surgem debates sobre ciclovias para diminuir uso do automóvel, ações de educação ambiental e mutirão de limpeza de praias. É também nesse processo dos anos 1990 que as pautas se ampliam para questões de conservação da Mata Atlântica, questões hídricas e a produção alimentar. Duas unidades de conservação são criadas, a APA do Morro de Sant’Anna (Lei n. 1463/1993) na região do centro urbano da cidade e o Parque Natural Municipal do Atalaia (Lei n. 1596/1995) na região serrana do município.

A partir dos anos 2000 há uma mudança significativa do munícipio com a criação da Lei do Petróleo, em 1997. É por essa lei que é aberta a possibilidade de outras empresas, nacionais ou multinacionais

4 Um equipamento em que navios atracam e fazem transferência de petróleo.

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explorarem o petróleo ao mesmo tempo em que os munícipios da região produtora de petróleo têm um aumento significativos dos royalties que recebem, desde os anos 1980. Macaé recebe as grandes multinacionais do petróleo, o orçamento vai às alturas e há uma explosão demográfica com a chegada dos migrantes atrás do Eldorado do petróleo.

Há que se contextualizar a instalação e desenvolvimento da indústria do petróleo, podemos dividir em três momentos: a primeira fase, que vai das primeiras operações de prospecção e extração de petróleo em alto mar, nas operações offshore até a criação da lei do petróleo, em 1997 e o último período após o início de operações no Pré-sal. No período, imediatamente após a lei do petróleo, em há um gigantesco aporte de recursos nas economias dos munícipios os resultados alcançados com o desenvolvimento não foi muito positivo, em que apesar da abundância de riqueza a questão social se avolumou em Macaé e por toda região (CRUZ, 2016).

No entanto, na primeira década dos anos 2000 década há conquistas importantes relacionadas à questão ambiental, são criadas algumas unidades de conservação como, a APA do Sana (Lei n. 2172, novembro de 2001), região serrana de Mata Atlântica e o Parque Natural Municipal do Estuário do Rio Macaé (Lei n. 3146/2008). Há a importante criação de espaços de participação e controle social como Conselho Municipal de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Lei Complementar n. 027/2001), Conselho Gestor da APA do Sana (Decreto Municipal 035/2002) e o Comitê de Bacias Hidrográficas dos Rios Macaé e das Ostras.

No período, a ideia de desenvolvimento sustentável, tal qual construído pelos organismos internacionais ligados às Nações Unidas, como via para um futuro ambientalmente sustentável, se espalha e é abraçada por muitos movimentos ambientais. Em que a ferramenta institucional, para o desenvolvimento sustentável, seria a Agenda 21, processo construído a partir da Conferência Ambiental, Rio-92. Uma parte significativa do que formou e fez a AMDA por grande parte da história adere à ideia do desenvolvimento sustentável e aposta nessas ferramentas para media a questão ambiental.

Localmente a Agenda 21 é criada em 2001 e em 2006 se torna

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um Fórum Permanente, que congrega instituições do mercado, do poder público municipal e da sociedade civil organizada, esse fórum vai ficar à frente dos processos de elaboração do plano diretor em Macaé. É nesse âmbito que se desenvolve uma urbanização ecológica, como expressões de um ambientalismo citadino que canaliza as reivindicações para organização do espaço urbano e pautas ambientais.

II. A estratégia da Agenda 21 e Desenvolvimento Sustentável

A população urbana de Macaé saltou de 55.152 em 1980 para 202.859 habitantes em 2010, segundo o Anuário de Macaé 2012, produzido pela prefeitura municipal. Há que se considerar a migração como um fenômeno essencial desse processo.

“Dizer que os novos migrantes chegaram, ou que novas gerações então nasceram num mundo de indústria e tecnologia é bastante obvio, mas não esclarecedor.” (HOBSBAWM, 2014, p. 217). Assim se inicia o décimo-segundo capítulo de a Era do Capital: 1848-1875, dedicado ao processo de formação da cidade, indústria e classe trabalhadora. A assertiva de Hobsbawm também pode ser colocada para as transformações que ocorrem em Macaé. A chegada dos migrantes e da indústria vai alterar as bases das desigualdades sociais existentes no município, especialmente no contexto urbano.

Conforme nos aponta Paganoto (2008), é possível perceber o aparecimento de dois tipos de migrantes em Macaé. Uma parcela recebe altos salários e se encontram empregados no setor petrolífero, estes vão habitar áreas mais nobres ao sul da cidade. Muitas vezes em um processo de autossegregação no interior de condomínios fechados. A outra parcela dos migrantes são aqueles atraídos por propagandas que apontam Macaé como um novo eldorado, estes muitas vezes sem condição de ingressar no mercado do petróleo. Irão ocupar a periferia ao norte do município, locais com péssima infraestrutura, formando assim um conjunto de expressões da questão social.

Com isso a questão urbana se manifesta nos fenômenos da favelização, uso predatório dos recursos naturais do litoral, congestionamentos, aumento da violência, falta d’água e enchentes constantes, além de um crônico problema de infraestrutura e carência de serviços públicos.

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Esse processo vai impactar no direito à cidade, na sobrecarga dos serviços públicos, na segregação do território e na degradação ambiental. Destacando que em essência parte dessas expressões da questão urbana são diretamente relacionadas com o ambiente e consequência direta da instalação e expansão da indústria do petróleo. Assim, a questão social toma forma urbana e ambiental.

Como uma herança das mobilizações e pautas levantadas pela AMDA a questão urbana em Macaé vai ser tratada privilegiando um prisma ambiental, alguns dos sujeitos da história da AMDA seguem esse caminho e por se alinharem com a perspectiva que vai emergir da conferência Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, a Eco92, no Rio de Janeiro, em 1992. São os partidários do desenvolvimento sustentável, em seu sentido hegemônico e globalizado.

Nesse encontro foi a apresentado o relatório “Nosso Futuro Comum”, da Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e desenvolvimento. O relatório afirma que “[...] o desenvolvimento sustentável é aquele que atende às necessidades do presente sem comprometer a possibilidade gerações futuras atenderem a suas próprias necessidades.” (NOSSO FUTURO COMUM, 1991, p. 46). Segundo o documento dois conceitos são chaves para a compreensão, “necessidades essenciais” e “limitações” para o uso do meio ambiente.

O relatório representa a natureza como uma fonte de recursos para a humanidade. A forma como é expressa a relação ambiente e sociedade, numa linguagem técnica corporativa, não compreende humanidade como natureza. Parece a reafirmação dos paradigmas do progresso que foi cunhado da natureza como algo a ser dominado e posto a serviço da sociedade. Em torno desses eixos os movimentos ambientais vão se orientar globalmente, chancelando e impulsionando no contexto das ideias neoliberais que se tornavam hegemônicas entre as décadas de 1980 e 1990.

A sustentabilidade que parte desse contexto vai relacionar desenvolvimento, eficiência e ajuste. Como o Relatório Nosso Futuro comum é apresentado num contexto das ideias neoliberais e consensuado com as principais instituições globais, o conceito de desenvolvimento sustentável que daí deriva e vai entrar em fase de implementação, será impregnado

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pelas recomendações de ajuste dos organismos internacionais.

Uma das principais elaborações do encontro foi a Agenda 21, um programa de ação para se alcançar o desenvolvimento sustentável. Que como é uma metodologia que tem como base a preservação da preservação da “[...] biodiversidade, manejo dos recursos naturais, justiça econômica e social e participação dos diferentes segmentos sociais.” (LOUREIRO, 2006, p. 39), cabendo a cada localidade instituir como forma de lei, desde a União, passando por Estados e municípios.

O documento da Agenda 21 global reforça a perspectiva colocada no relatório “Nosso futuro comum” de que o crescimento econômico é um fator preponderante para se alcançar o desenvolvimento sustentável. Da mesma forma, os ajustes econômicos são recomendados pela Agenda 21 global em total acordo com as propostas neoliberais. Assim, a questão ambiental vai criando identificações com a perspectiva neoliberal e a Agenda 21 brasileira se faz dessa mesma forma.

É com todo esse conteúdo que se cria a Agenda 21 em Macaé, uma estratégia de mobilização em que egressos do movimento social ambiental local se organizam ocupam esses espaços institucionais, compondo com os governos da ocasião, e concentram suas energias na elaboração do Plano Diretor da Cidade, com a transformação da Agenda 21 local em Fórum permanente. Esses sujeitos da história foram parte daqueles que escreveram o capítulo do Meio Ambiente na ocasião da elaboração da Lei Orgânica do município.

A Agenda 21, em Macaé, começou a ser constituída em 1997, vinculada à secretaria municipal de meio ambiente e com ênfase na educação ambiental. Foi criada legalmente em 2002. A partir de 2006, se tornou um Fórum Permanente congregando instituições do mercado, do poder público municipal e da sociedade civil organizada. Em 2010 passa a integrar a Câmara Permanente de Gestão da Prefeitura. Esse Fórum Permanente da Agenda 21 teve participação decisiva na elaboração do plano diretor da cidade, deixando uma marca ambiental positiva no documento, garantindo um processo participativo na implementação e fiscalização do plano diretor.

A Agenda 21 local de Macaé elaborou alguns projetos como: controle social dos fóruns participativos às previsões orçamentárias;

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revitalizando o Rio Macaé; fomento à produção de mudas nativas; fiscalização ambiental; Agenda 21 nas escolas; revisão do plano diretor municipal; oficinas para a sustentabilidade; diálogos com a agenda 21. Ponto fundamental do fórum foi a realização das conferências municipais, sempre levando um olhar ambiental. A Conferência da Cidade, a criação do conselho da Cidade e a elaboração do Plano diretor foram centralmente construídos a partir da Agenda 21 e do Fórum Permanente. (TAVARES, 2015)

Entretanto, mesmo com todas essas construções da Agenda 21, ainda assim o município não conseguiu avançar em proposições de planos para aliviar a economia municipal da dependência do petróleo. A reflexão desse trabalho se ergue a partir dessa contradição, com um olhar crítico acerca da questão social, e as respostas no campo do desenvolvimento sustentável. Observar essa contradição é passo relevante para compreender os limites da perspectiva do desenvolvimento sustentável e dos movimentos que se limitam à essa noção.

O desenvolvimento sustentável é em essência a mesma noção de ecodesenvolvimento que sobressaiu na Conferência de Estocolmo, “[...] todavia, a retirada do radical eco permitiu que a palavra sustentabilidade fosse apropriada pelos governos, banqueiros e empresários com significados mais distintos, de acordo com seus interesses.” (SOFFIATI, 2016, p. 25). Para o autor os governantes querem o mesmo desenvolvimento de sempre com outro nome, os banqueiros querem créditos sustentáveis sem se importar que sejam gastos com atividades produtivas poluentes e o industrial compreende a sustentabilidade como a estabilidade de seus lucros.

Para o economista Joan Martinez Alier, a busca do desenvolvimento sustentável é por conciliar o crescimento econômico com a “capacidade de sustento”5 . O autor também destaca a centralidade que o relatório Nosso Futuro Comum, também conhecido como Informe Brundland, dá a pobreza, tanto como grande mal do mundo, quanto principal fonte

5 A “capacidade de sustento” de um território concreto significa o máximo de população de uma espécie dada que pode ser mantido indefinidamente, sem que se produza uma degradação na base de recursos que possa significar uma redução da população no futuro (KISRCHNER; LEDEC; GOOGLAND; DRAKE; 1985, p. 45 apud ALIER, 1998, p. 108).

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da degradação ambiental. O relatório aponta uma culpa dos pobres pela pobreza e pela destruição da natureza.

Nesse contexto, Alier (1998) vai problematizar o crescimento econômico baseado na exportação, que causa uma pressão da produção sobre os recursos. A partir de um olhar sobre a América Latina, o autor demonstra que muito mais que o crescimento da população, a política latina baseada nas exportações e com fonte de produção no extrativismo é a grande causa da degradação ambiental.

No que tange a problematização da relação pobreza como causa da degradação ambiental, o autor faz observações importantes, como de fato a pobreza pode causar danos à natureza e de como podemos pensar em superar essas questões. Um primeiro ponto destaca que, quanto mais pobre o indivíduo acaba por utilizar lenha ou carvão vegetal como combustível doméstico e que esses itens são trocados por eletricidade e gás com incremento da renda familiar. Pontos em que, por exemplo, o aprofundamento da pobreza no Brasil está fazendo retroceder.

Por fim, como o Relatório Nosso Futuro comum é apresentado num contexto das ideias neoliberais, o conceito de desenvolvimento sustentável que daí deriva e vai entrar em fase de implementação, será impregnado pelas recomendações de ajuste dos organismos internacionais e terá forte marcas do neoliberalismo em sua essência.

Aos movimentos que se alinham nessa perspectiva do desenvolvimento sustentável, Alier (2017) vai classificar como parte de um “evangelho da ecoeficiência”, que seriam movimentos cuja característica relevante seria a ausência de perspectivas para além do capitalismo. Na situação observada no trabalho sobre a Associação Macaense de Defesa Ambiental, é nítido que, embora em muitos momentos se veja uma oposição frontal às medidas e iniciativas da indústria do petróleo e até mesmo algumas posturas mais radicais, não há elementos que formem uma crítica radical ao modo de produção capitalista.

O autor destaca que estão sendo reconhecidos movimentos ambientais que tem em sua essência a crítica ao modo de produção capitalista que Alier (2017) vai classificar como ecologismo dos pobres. Essa outra linha de movimento ecológico vai problematizar a relação do sistema mundo, os países do norte cada vez dependem mais de importações do

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sul para atender as demandas de commodities como soja, minério e petróleo. Aprofundando o extrativismo, causando impactos ambientais e ameaçando a vida nos países mais pobres, nesse sentido o “ecologismo dos pobres” antes de ser um enfrentamento pelo meio ambiente é uma luta pela sobrevivência daqueles sujeitos integrados àquele ambiente.

Um claro limite que se apresenta na perspectiva do desenvolvimento sustentável é a ausência de menção às sequelas da colonização nos países periféricos, são justamente essas sequelas que muitas vezes formam esses sujeitos que Alier se refere como praticantes de um ecologismo dos pobres. Por isso uma urgência de olhares que decomponham as consequências deixadas pela colonização, movimentos ambientais que sejam também decoloniais.

Aí reside a contradição e os limites dos movimentos alinhados ao desenvolvimento sustentável, ao não expressar e enfrentar as forças do capitalismo de uma maneira geral e ignorar o significado da colonialidade (QUIJANO, 2005), existente em terras latinas, permite a exploração da natureza via extrativismo nos países que foram colônias em outros tempos seja permanentemente reforçada, tanto no contexto dos governos progressistas da América Latina, quanto o ultraliberalismo de características fascistas que se estabeleceu no governo brasileiro desde os processos da lava-jato e do golpe em forma de impeachment que abreviou o segundo governo de Dilma Rousseff.

Como o ataque da Lava-Jato foi via indústria do petróleo, Petrobrás e empresas prestadoras de serviço, o município de Macaé sentiu diretamente as ações do golpe. Primeiro grande impacto com a retração do emprego, cerca de 10 mil postos da indústria do petróleo foram fechados. Seguido por uma diminuição dos espaços ocupados e operações realizadas pela Petrobrás e uma mudança do perfil dos prestadores de serviço, saindo de cena empreiteiras nacionais e chegando empresas transnacionais.

Localmente, nesse mesmo tempo, as conquistas começam a ser ameaçadas e a Agenda 21, mesmo com seus limites e contradições, é encerrada num processo de desmonte da participação social, que inclui o esvaziamento do Conselho Municipal de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável.

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Há uma aposta do poder municipal em um novo ciclo de crescimento da indústria do petróleo no município, com uma nova promessa de crescimento acelerado. Dentre os empreendimentos de infraestrutura para o novo ciclo está a construção três usinas termoelétricas, um porto e um terminal de processamento de gás natural. Um combo bem parecido de quando a indústria do petróleo chegou em Macaé e que motivou os primeiros movimentos ambientais e ações da AMDA. Atualmente há uma movimentação para reativar a AMDA por parte de alguns de seus membros fundadores e que estiveram à frente dos processos nos anos 1980 e 1990. Motivada essencialmente por esse prenúncio de novo boom da indústria do petróleo, essa reorganização, ainda embrionária, se encontra diante de grandes desafios. Na primeira vez, a tragédia, observada nos limites do movimento. Para que a segunda vez não seja uma farsa (MARX, 2011) os objetivos do movimento devem mirar para além de um desenvolvimento sustentável e se enxergar como um ecologismo dos pobres, imprimindo um viés de classe que ponha em xeque a lógica de acumulação capitalista.

III. A questão social e a urbanização ecológica

Nesse sentido, a partir do trabalho da pesquisa é possível tecer algumas reflexões acerca da questão social. A questão social se origina e se desenvolve no fulcro das contradições sociais produzidas no desenvolvimento do capitalismo e, indissociavelmente, na emersão do proletariado na dimensão política, se constituindo enquanto classe para si (IAMAMOTO, 2008). Cabe ainda ressaltar que, assentar a “questão social” nas bases fundamentais do modo de produção capitalista implica afirmar que “[...] não se suprime a primeira conservando-se o segundo [...]” (NETTO, 2001, p. 45).

Em conformidade com as formulações marxianas, Netto (2011) localiza historicamente a expressão “questão social” se remetendo à terceira década do século XIX. A expressão nasce para dar conta do fenômeno do pauperismo, fenômeno este que se torna evidente a partir dos impactos da primeira onda industrializante na Europa Ocidental.

É explícito na “lei de acumulação” essa contradição fundante materializada no surgimento do pauperismo como uma das expressões reais

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produzidas pela dinâmica do capital . Na medida em que a lei de acumulação: “[...] se expressa, na órbita capitalista, às avessas: no fato de que parcela da população trabalhadora sempre cresce mais rapidamente do que a necessidade do seu emprego para os fins de valorização do capital.” (MARX, 2013, p. 690). Assim, ocorre um crescimento exponencial do proletariado, conformando o chamado exército industrial de reserva “A acumulação do capital é, portanto, multiplicação do proletariado [...]” (MARX, 2013, p. 690).

Para além das categorias diretamente ligadas ao processo de acumulação de capital, outro conceito de extrema importância que é extraído das formulações marxianas é o conceito de luta de classes. Obviamente, que é algo fora da leitura simplória e caricata que se resume a um proletariado e uma burguesia industrial.

Luta de classes consiste na essência do exposto na lei geral da acumulação, que vão se formando polos opostos e antagônicos no sentido em que uma ponta acumula a riqueza socialmente produzida, à medida que no outro extremo seres humanos sofrem com a violência, miséria e fome. Sem jamais desconsiderar toda diversidade e conjunto de contradições que compõe essa totalidade.

Em relação às formas urbanas da questão social, destacamos Lefebvre (2001) que afirma que a industrialização caracteriza a sociedade moderna e por isso fornece o ponto de partida da reflexão sobre nossa época. É importante destacar que quando inicia a industrialização, com o nascimento do capitalismo concorrencial, a Cidade já existe como realidade concreta.

Seriam essas cidades “[...] centros de vida social e política onde se acumulam não apenas as riquezas como também os conhecimentos, as técnicas e as obras (obras de arte, monumentos)”. (LEFEBVRE, 2001, p. 12). Para o autor, essa mesma Cidade é uma obra, fruto do trabalho humano, e nesse sentido consiste em um valor de uso. O que a torna contraditória, há um curso que se forma na direção do dinheiro e das trocas, o que impulsiona a Cidade na direção dos produtos e faz dela própria um valor de troca.

Essas ponderações são muito pertinentes para se pensar na situação de Macaé, no recorte da pesquisa. Pois o munícipio passa por um pro -

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cesso particular de industrialização e urbanização diretamente associado ao início das operações de prospecção e extração de petróleo na Bacia de Campos. Ao ser escolhido Macaé como local de instalação de um porto, uma base de operações e de um terminal de processamento de petróleo e gás da Petrobrás, toda organização social e urbana do município vá sofrer transformações decorrentes desse processo.

Aqui cabe ponderar as características que assumem as expressões da questão social nesta situação, o processo de industrialização e urbanização é atravessado e confrontado por movimentos que tem a pauta ambiental como centro. A dialética que embala o processo estudado reflete aspectos particulares que auxiliam na compreensão de que são indissociáveis da questão social a esfera urbana e ambiental. Os movimentos de luta alcançam conquistas de unidades de conservação tanto de expressões mais “tipicamente” ecológicas, como a conservação da Mata Atlântica, quanto unidades de conservação em espaço urbano.

Lefebvre (2001), apresenta características para as cidades no que ele chama de países em “vias de desenvolvimento”, que se aproximam das perspectivas de análises aqui pretendidas, onde a decomposição da estrutura agrária impulsiona para as cidades camponeses despossuídos e expropriados de seus meios de produção, onde serão acolhidos pelas favelas, que se consolida como um meio genérico de vida, expressa no pauperismo, já categorizado como questão social. A esses problemas, e sua resposta pelo urbanismo, se fez com uma subordinação à organização geral da indústria, como no caso estudado acontece em relação à indústria do petróleo.

Necessário tecer a crítica aos limites da urbanização ecológica que se forma em Macaé, pressionada por movimentos ambientais. O primeiro limite se constitui na crença de que um desenvolvimento sustentável construído nos padrões do evangelho da ecoeficiência seria o caminho para construir novas sociabilidades. O que se vivenciou na verdade foi um processo de desenvolvimento insustentável que se assemelha ao trabalho de Sísifo (LEAL; SILVA, 2020b).

É essencial considerar o passado colonial e na formação social brasileira, essas marcas permanecem em nossa sociedade. No sentido de buscar fontes que destaquem as particularidades latinas, enquanto terri-

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tório constituído como colônia de extrativismo de minérios, alimentos e outros produtos naturais. Há concordância com Ibanez (2016), quando descreve a cidade colonial e as motivações para que os colonizadores fundassem às cidades, sua proximidade com um “recurso natural” passível de exploração e fonte abundante de água. Essa cidade colonial que descreve Ibañez tem em Macaé um exemplar com características bem similares (LEAL; SILVA, 2020a).

Para uma perspectiva analítica que se proponha descolonizar o imaginário é preciso reconhecer as marcas que colonialidade deixa na cidade, sua organização e influência em sua formação econômica. Nesse sentido as heranças coloniais deixaram marcas que evidenciam todo esse processo e que se fazem presentes no recorte estudado. Os limites dos movimentos que creem em um desenvolvimento sustentável capitalista perspectiva de crescimento infinito ficam evidentes quando se percebe a ausência da crítica decolonial. A crítica ao processo de urbanização deve considerar os aspectos ecológicos e as características forjadas pela colonização.

Considerações finais

Dessa maneira, o estudo traz elementos que permitam uma análise da questão social, que no processo histórico local deriva dos conflitos ambientais como arena de luta política que interfere na urbanização do município, dando a esse processo, primeiro, via elaboração da Lei orgânica do Município, e, em momento posterior, na elaboração do plano diretor, uma característica ecológica, com legislações que favoreciam a conservação ambiental em espaços cobiçados pela especulação imobiliária.

O olhar construído na pesquisa acerca desse processo vai ter sua lente apontada para os conflitos entre as políticas de desenvolvimento via aumento da produção do petróleo e as organizações locais que se opuseram as instalações da Petrobrás em Macaé. Por isso os movimentos sociais que lutaram pelas pautas ambientais ao longo desse tempo no munícipio se tornam elementos centrais para compreender as expressões da questão social em sua totalidade que abarca a questão urbana e a questão ambiental.

Importante destacar que os movimentos identificados não são

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movimentos com uma perspectiva classista, apesar de críticos e até radicalizados no primeiro momento, ainda nos anos 1980. Há que se ressaltar a centralidade de movimentos sociais que tenham um viés de classe e que mirem em outras sociabilidades para além das balizas estabelecidas pelo modo de produção capitalista. Que contenham expressões de todos os oprimidos pelo sistema, dos movimentos antirracistas, feministas, indígenas, operários, camponeses, entre outros.

Apesar dos limites dos movimentos estudados, não há como desconsiderar que se hoje o município de Macaé tem legislações importantes e ainda uma parte significativa de sua natureza conservada se deve às ações desses movimentos. Nesse sentido que classificamos aqui os caminhos que foram tomados na cidade, dentro das limitações contextualizadas, que sob a influência dos movimentos identificados em conjunto com as ações governamentais por parte dos sujeitos da história quando ocuparam espaços de gestão, o urbano que foi se formando em Macaé se constituiu com uma pegada ecológica.

A perspectiva trabalhada é que a questão ambiental não seja um algo à parte ou uma externalidade, como é classificado na economia. É o ambiente que compõe a totalidade, dessa maneira, há que se construir uma formulação que contemple a questão social como uma unidade do diverso e que possamos dessa forma contribuir para uma melhor reflexão por parte do serviço social. De forma que permita ao estudar o urbano seja considerada como um fator indissociável as questões ambientais. Em que, seja possível observar e elaborar uma leitura crítica dos processos de urbanização contextualizando suas características ecológicas.

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RESISTÊNCIAS CONTRA A PRIVATIZAÇÃO DA ÁGUA NO RIO DE JANEIRO:

APROXIMAÇÕES NECESSÁRIAS AO DEBATE DOS COMUNS1

Caroline Rodrigues da Silva Bruno Alves de França

O ano de 2020 começou e terminou com sérios problemas no abastecimento de água na região metropolitana do Rio de Janeiro. Em janeiro, pleno verão, a água que saía das torneiras tinha cor, odor e gosto de barro; os noticiários informavam que a má qualidade da água se devia à presença, em quantidades elevadas, de geosmina, uma substância produzida por algas que se alimentam do esgoto lançado nos rios antes do ponto de captação da Estação Guandu, principal estação tratamento da Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro (CEDAE). A Cedae é responsável pelo abastecimento de 70% da população da região metropolitana do Rio de Janeiro. À época, devido ao aumento da demanda por água potável, o preço da água engarrafada e dos caminhões pipa subiu vertiginosamente. Grande parte da população que não possui renda para comprar água passou a conviver, para além péssimo serviço, com problemas de saúde como diarreias, doenças de pele e dores de cabeça. Passados alguns meses, em novembro de 2020, mais uma vez, a população enfrentou o desabastecimento de água devido a um reparo emergencial em um dos motores da Elevatória do Lameirão, que fica no bairro de Senador Vasconcelos, zona oeste da capital fluminense, e faz parte do Sistema Guandu de abastecimento. Se estivéssemos em um momento “normal” o problema já seria grave, mas com a pandemia provocada pelo novo coronavírus (COVID-19) a ausência de abastecimento de água regular e de qualidade tornou-se um problema gravíssimo de saúde pública, haja vista que a higienização das mãos e a limpeza dos ambientes são medidas de prevenção fundamentais para evitar a transmissão da Covid-19. Dada a gravidade do ocorrido, tanto a Defensoria Pública como 1DOI- 10.29388/978-65-81417-77-2-0-f.133-160

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o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro perpetraram ações judiciais para que a Cedae entregasse água regular e adequada à população, bem como assegurasse desconto nas contas correspondentes ao período em que os consumidores ficaram sem o serviço (DPRJ, 2020).

As constantes crises no abastecimento de água têm reforçado os discursos e narrativas que legitimam e justificam a privatização da Cedae como o único caminho possível para a universalização e a melhoria dos serviços de abastecimento e tratamento de esgoto no estado2 . Contudo, a privatização da Cedae se encaixa em um contexto mais amplo de financeirização da natureza, que inclui, entre outros pilares, a apropriação privada e comercialização de bens e recursos públicos, como é o caso da própria água. De acordo com o Relatório de Conflitos no Campo de 20203 , produzido pela Comissão Pastoral da Terra (CPT, 2020) essa é uma tendência que tem ampliado os conflitos envolvendo água. A água tem sido colocada como umas das questões centrais para a sociedade no século XXI. A perspectiva da escassez absoluta e relativa da água, agravadas na atualidade, desmistifica o entendimento desse recurso como renovável e revaloriza suas acepções estratégica e monetária junto aos Estados e corporações. Os agentes capitalistas vêm de maneira indiscriminada se apropriando e comercializando a água, tornando-a mercadoria no processo de acumulação primitiva (MARX, 2011), ou por espoliação (HARVEY, 2004). Um marco da crescente mercantilização, agora financeirizada, foi em 2020, quando se comercializou a água pela primeira vez como commodity na bolsa de futuros Nasdaq nos Estados Unidos da América –Nasdaq Velez California Water Index (ALVAR ÉZ, 2020). (CPT, 2020, p. 159, grifo do autor).

No Brasil, no âmbito federal, o ano de 2020 foi marcado pela

2 Vale lembrar que, em março de 2019, ocorreu a demissão de 54 funcionários da Cedae sob a justificativa de terem altos salários. No grupo havia engenheiros, analistas de qualidade de água e outros técnicos com vasta experiência operacional que representavam a memória técnica da empresa. Utilizada como justificativa, a questão salarial foi apenas uma desculpa, pois o fato central era político: o então presidente da Cedae, Hélio Cabral, que ocupara a diretoria financeira na gestão de 2015-2018, foi o responsável pelas demissões que cumpriram o papel de fragilizar a empresa, desprezando inclusive os riscos advindos de tal ação.

3 De acordo com a metodologia da CPT, são considerados conflitos as ações de resistência e enfrentamento que acontecem no âmbito rural, envolvendo a luta pela terra, a luta pela água e a luta pelos meios de trabalho ou produção.

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aprovação da Lei n. 14.026/2020, que alterou a Política Nacional de Saneamento (Lei n. 11.445/2007) e aprofundou o processo de mercadorização das águas no Brasil.

De toda forma, na contramão da privatização, já se verificam experiências de reestatização dos serviços de saneamento como ocorreu em Paris, Berlim, Atlanta, Joanesburgo, Buenos Aires, Jacarta e outros, assim como as experiências boliviana e equatoriana que ousaram ir além, reconhecendo constitucionalmente a água como um bem comum. Tal feito não foi alcançado por benesse do Estado, mas graças às resistências populares organizadas nestes países.

Considerando este contexto, o artigo se propõe a sistematizar a experiência de luta contra a privatização da água no Rio de Janeiro nos anos de 2020 e 2021, a partir da análise crítica sobre a Campanha “Água Boa para Todos e Todas”, um espaço de articulação da sociedade civil que se mobilizou ao longo do período. Para tanto apresentaremos uma sistematização sobre o processo de mobilização da Campanha, enfatizando a diversidade entre os sujeitos políticos envolvidos e as estratégias políticas adotadas no processo de resistência. Por fim, refletiremos sobre como o debate dos comuns4 (DARDOT; LAVAL, 2017) pode nos ajudar a construir outros horizontes políticos para a gestão pública, principalmente para a gestão das águas nas cidades. Dado que os fatos analisados ainda se desenrolam, nosso exercício é o de sistematização, que segundo Holliday (2006, p. 36, grifo do autor)

[...] é um exercício claramente teórico; é um rico esforço rigoroso que formula categorias, classifica e ordena elementos empíricos; faz

4 Neste artigo o comum é compreendido como um princípio político conforme propõem os Dardot e Laval (2017). “Para nós é um princípio político, o que nos leva a não nos satisfazermos com concepções técnicas, jurídicas e econômicas existentes, todas mais ou menos marcadas por uma marca reificadora e naturalista. O comum não depende da consideração de uma essência ou da natureza da coisa a pôr e a gerir em comum. Para nós, o comum não é uma coisa, não é um bem; é tudo o que, em um dado momento, uma coletividade decide compartilhar. Ele não deve ser buscado nem na condição humana, nem na natureza dos bens, nem em uma criação social espontânea ou econômica. O comum é uma questão de instituição. Ou, em outras palavras, ele não é um dado, ele é objeto da atividade política tal qual nós a entendemos. Não é aquilo que é naturalmente comum, mas o que fazemos com que seja comum por um ato político, por um ato instituinte” (ANDRADE; OTA, 2015, p. 313, grifo do autor).

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análise e síntese, indução e dedução; obtém conclusões e as formula como pautas para sua verificação prática. A sistematização relaciona os processos imediatos com seus contextos, confronta o fazer prático com os pressupostos teóricos que o inspiram. Assim, o processo de sistematização se sustenta em uma fundamentação teórica e filosófica sobre o conhecimento e sobre a realidade histórico-social. A sistematização cria novos conhecimentos, mas, na medida que seu objeto de conhecimento são os processos e sua dinâmica, permite trazer à teoria algo que lhe é próprio: explicações sobre a mudança dos processos.

A Campanha “Água Boa para Todos e Todas” não foi o único espaço de articulação e resistência da sociedade civil mobilizado entre 2020 e 2021. A partir da experiência dos autores como educadores da FASE – “Solidariedade e Educação” e como pesquisadores do tema identificamos, pelos menos, outros dois espaços, a saber: o “Coletivo Água é Vida, Não Mercadoria”5 , que se formou a partir de novembro 2020, e o “Fórum Estadual em Defesa da Água e Contra a Privatização da CEDAE”6 , que se formou em janeiro de 2021. Entre esses três espaços definimos analisar apenas a experiência da Campanha, na medida em que ela se manteve atuante durante maior espaço de tempo – de maio de 2020 até o momento de escrita deste artigo (junho de 2021) – e, também, porque os autores participaram da articulação deste espaço por meio da FASE. Isso posto, ressaltamos que a escolha por sistematizar a experiência de resistência contra a privatização da água no Rio de Janeiro se apoia metodologicamente nos ensinamentos da educação popular sobre a importância do registro dos processos já vividos para subsidiar a refle -

5 O Coletivo se articulou a partir das ações promovidas pela Frente Parlamentar contra as Privatizações e em Defesa da Economia do Rio de Janeiro da ALERJ para reivindicar esclarecimentos do poder público sobre o acesso à água e ao saneamento nas favelas e periferias durante a pandemia de Covid-19. Em relação à sua composição era formado majoritariamente por jovens, organizações de favela e periferia, sendo a maior parte moradores da cidade do Rio de Janeiro. Para maiores informações consultar: Direito...(2020).

6 A Frente se articulou a partir do campo sindical e partidário para defesa da CEDAE pública, com protagonismo dos sindicatos vinculados aos trabalhadores da CEDAE como o Sindicato dos Trabalhadores nas Empresas de Saneamento Básico e Meio Ambiente do Rio de Janeiro e Região (SINTSAMA) e o Sindicato dos Trabalhadores nas indústrias da Purificação e Distribuição de Água e em Serviços de Esgotos de Niterói e Região (SINDÁGUA-RJ), assim como da Central Sindical dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB) a qual o SINTSAMA-RJ é filiado. Para maiores informações consultar: SINTSAMA-RJ (2021).

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xão crítica coletiva no presente, e a construção de ações políticas futuras. Nesse sentido, este artigo se inspira nos ensinamentos de Holliday (2006) sobre como estamos implicados politicamente em todo o conhecimento que produzimos.

Esta visão de “conhecimento científico do social”, que separa o sujeito que conhece, do objeto por conhecer; que isola uma parte do todo; que pretende eliminar qualquer juízo de valor, sensibilidade ou emoção da análise, porque lhe tirariam “objetividade” e “cientificidade”, não é exclusiva dos cientistas positivistas: muita gente pensa que essa é a única forma de conhecer válida e aceitável. [...] A partir da perspectiva dialética, ao contrário, aproximamonos da compreensão dos fenômenos sociais desde o interior de sua dinâmica, como sujeitos participantes na construção da história, totalmente implicados de uma forma ativa em seu processo. Nossa prática particular, como indivíduos ou grupos sociais (com nossas ações, sentimentos e interpretações), faz parte dessa prática social e histórica da humanidade. Somos protagonistas ou vítimas de suas mudanças e movimentos; somos, em última instância, responsáveis por seu devir. (HOLLIDAY, 2006, p. 46-47, grifo do autor).

I. Antecedentes da privatização da CEDAE

Enquanto no ano de 2020 a região metropolitana passava por severos problemas de abastecimento de água, os governantes estavam preocupados em acelerar o processo de concessão da Cedae à iniciativa privada, que se iniciou em 2016, com a entrada da Companhia no Programa de Parcerias de Investimentos (PPI)7, e ganhou novos contornos quando, em 2017, o estado do Rio de Janeiro ingressou no Regime de Recuperação Fiscal. Em função do “Estado de Calamidade Financeira” decretado naquele ano, a Cedae foi incluída como garantia do Plano de Ajuste Fiscal firmado entre o governo do estado do Rio de Janeiro e o governo federal. Desde então, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) passou a desenhar a modelagem financeira de concessão da Companhia, que ficaria responsável pela produção de água e as concessionárias privadas prestando os serviços de coleta, tratamento e disposição final de esgoto, distribuição de água e comercialização. Dentro deste Pla-

7 Criado pela Lei nº. 13.334, de 2016, durante o governo de Michel Temer (MDB), o PPI tem a “[...] finalidade de ampliar e fortalecer a interação entre o Estado e a iniciativa privada por meio da celebração de contratos de parceria e de outras medidas de desestatização”.

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no, as ações da Cedae serviram de fiança - ou melhor, de garantia - para o empréstimo de cerca de R$ 2,9 bilhões8 do banco francês BNP Paribas ao estado para pagamento da folha de servidores que, à época, estava atrasada em 4 meses.

Embora o agora ex-governador Wilson Witzel (PSC) tenha se eleito para gestão 2019-2022 comprometendo-se com a não privatização da Cedae, logo mostrou-se comprometido com a lógica neoliberal de gestão pública, assim como seus antecessores, os ex-governadores Sérgio Cabral Filho (PMDB) e Luiz Fernando Pezão (PMDB), que governaram o estado no período de 2007-2014 e 2015-2018 respectivamente. Merece destacar que estes dois últimos se tornaram réus e foram presos por crimes9 cometidos contra o patrimônio público durante o exercício de suas funções, e que Witzel se tornou o primeiro governador a ser cassado em um processo de impeachment, desde a redemocratização do país, sob a acusação de corrupção na área da Saúde durante a pandemia de Covid-19.

Cláudio Castro (PSC), eleito vice-governador na chapa de Witzel, assim que assumiu o governo do estado chegou a colocar em dúvida o processo de privatização da Cedae, afirmando que “[...] o Rio, com pressa, já fez maus negócios simplesmente pela questão financeira, isso não se repetirá [...]” (MEDEIROS, 2020). No entanto, o que se viu na sequência foi a continuidade do compromisso com a agenda privatista, conforme expressa o Decreto nº. 47.422/2020, que autorizou a abertura do Leilão da Cedae no apagar das luzes do ano legislativo de 2020.

Desde então, o que se viu sobre o leilão da Cedae foi uma queda de braços entre legislativo e executivo, somada a diversos questionamentos técnicos, jurídicos e sociais.

A Fiocruz, por exemplo, publicou uma Nota Técnica10 analisando os potenciais impactos do edital de concessão à saúde e aos Direitos Humanos; o Departamento de Recursos Hídricos e Meio Ambiente da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) publicou

8 O valor atualizado do empréstimo no ano de 2020 é de R$ 4,5 bilhões.

9 Sérgio Cabral Filho foi acusado por corrupção passiva, lavagem de dinheiro e evasão de divisas e por chefiar organização criminosa, somados os anos de suas condenações ultrapassam 280 anos. Luiz Fernando Pezão foi acusado de corrupção e de desviar verbas públicas para financiamento de campanha eleitoral, ficou preso entre 2018 e 2019 em unidade penitenciária e posteriormente passou a cumprir prisão domiciliar.

10 Fiocruz (2020).

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outro estudo11 com apontamentos na área da engenharia sanitária e ambiental. No campo jurídico, o Tribunal de Contas do Estado apontou irregularidades no edital12 e a própria Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ) chegou a aprovar o Projeto de Decreto Legislativo nº. 16/2021 suspendendo os efeitos do Decreto nº. 47.422/2020 e, por conseguinte, o próprio leilão13. No campo social diversas manifestações foram feitas, com destaque para as denúncias da sociedade civil sobre os riscos da concessão aumentar a injustiça hídrica na região metropolitana do Rio de Janeiro, já que as áreas de favelas e periferias não serão priorizadas para os investimentos das concessionárias privadas. Nas vésperas do leilão a Campanha Água Boa para Todos e Todas articulou a assinatura de uma carta com 140 entidades da sociedade civil14, que foi enviada aos parlamentares da ALERJ solicitando o cancelamento do leilão. (SILVA et al., 2020, p. 2).

Apesar destes questionamentos, o leilão da Cedae, maior empresa pública do estado do Rio de Janeiro e única lucrativa15 , ocorreu no dia 30 de abril de 2021 na Bolsa de Valores de São Paulo (B3), com a presença do presidente da República, Jair Bolsonaro (sem partido), do Ministro de Economia Paulo Guedes e do governador Claudio Castro. No leilão, o estado foi dividido em quatro grandes blocos formados por bairros da capital fluminense, municípios da região metropolitana e municípios do interior16 , divisão que não respeitou regras de planejamento urbano e, tão pouco, as dinâmicas locais. Dos quatro consórcios interessados no leilão, todos fortemente ligados ao mercado financeiro, dois arremataram 3 dos

11 Volschan Junior e Figueiredo (2020).

12 Souza (2021).

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A tentativa da Alerj de evitar o leilão esbarrou no entendimento técnico e jurídico de que o assunto não seria de competência dos deputados, mas uma decisão que caberia aos prefeitos dos 22 municípios e ao Conselho Consultivo da Região Metropolitana do Rio. Conselho este que passou por um desmonte ainda durante o mandato de Witzel (SAMPAIO, 2021).

14 Carta... (2021).

15 O lucro líquido obtido pela Companhia, entre 2012 e 2016, foi de R$ 4 bilhões

16

O bloco 1 é composto pelos bairros da zona sul do município do Rio, o município de São Gonçalo e mais 16 municípios do interior do estado. O bloco 2 inclui os bairros da Barra da Tijuca e Jacarepaguá da capital e os municípios de Miguel Pereira e Paty do Alferes. O bloco 3 inclui os bairros da zona oeste do Rio e seis municípios do interior e da região metropolitana. O bloco 4 é composto pelos bairros do centro e da zona norte da capital e oito municípios da Baixada Fluminense.

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4 blocos: o consórcio AEGEA Saneamento e Participações S.A., que tem entre seus controladores o Fundo Soberano de Cingapura, a Corporação Financeira Internacional (do Banco Mundial) e o grupo Itaú, arrematou os blocos 1 e 4; e o consórcio Iguá Saneamento S.A.17, que tem entre seus controladores o Canada Pension Plan Investment Board e o BNDES Participações S.A, uma subsidiária do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), responsável pelo modelo de concessão, levou o bloco 2. Para o bloco 3 não houve oferta. Prevendo inicialmente a outorga mínima de R$ 10,6 bilhões, a operação finalizou com a outorga de R$ 22,6 bilhões, com ágio médio de 140% entre os blocos leiloados. Considerando que o estado do Rio de Janeiro encontra-se no vermelho, pelo menos, desde 2017, esse valor pode parecer um êxito, contudo, as aparências enganam: i) cerca de R$ 17 bilhões do total da outorga poderão ser financiados por recursos públicos do BNDES, ou seja, vende-se o patrimônio público e ainda paga-se a conta; ii) apenas 85% desse valor (R$ 9 bilhões) irão para o estado e 15% para os municípios, que não têm obrigatoriedade de aplicar estes recursos no setor de saneamento; iii) destes R$ 9 bilhões do estado, R$ 4,5 bilhões já estão comprometidos com o pagamento da dívida contraída junto ao banco BNP Paribas; iv) com o lucro anual de aproximadamente R$ 1,3 bilhão, em poucos anos a própria Cedae já retornaria aos cofres públicos o valor pela qual foi alienada. (SILVA et al., 2021, s.p.).

Dessa forma, a ânsia privatista que fincou suas garras em mais um bem constituído por recursos públicos, através do leilão da Cedae, exemplifica o oportunismo predatório das empresas privadas e a lógica do mercado financeiro na busca pela ampliação dos lucros (RAMOS; BRITTO, 2021). Não causa surpresa, nesse processo, que diversos indícios de fraude, cartelização e relações escusas entre os consórcios, empresas, instituições financeiras e políticos tenham vindo à tona (FASE, 2021)

Portanto, na contramão da narrativa governamental que, reiteradamente, afirma que “O Rio de Janeiro foi tomado por um clima de

17 Tanto o AEGEA quanto o Iguá Saneamento integram o seleto grupo de cinco empresas que controlam 85,3% dos contratos de privatização já existentes e estão em 87,8% dos municípios onde o serviço é privatizado, de acordo com a pesquisa “Quem São os Donos do Saneamento no Brasil?”, realizada pelo Instituto Mais Democracia no ano de 2018 (IMD, 2018).

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positividade em relação a essa concessão [...]”18 , o que a experiência da Campanha “Água Boa para Todos e Todas” mostra é que houve intensas disputas na sociedade e muitas dúvidas quanto aos riscos deste modelo para a garantia das necessidades da população fluminenses.

II. Contexto do surgimento da campanha água boa para todos e todas

Em artigo, Silva, França e Souza (2020) registraram três processos de resistência organizados pela sociedade civil entre os anos de 2017 e 2019, os quais articularam diferentes sujeitos coletivos das lutas urbanas contra a privatização da água e do saneamento no período: o “Fórum Alternativo Mundial da Água”, a “Assembleia Popular da Água do Rio de Janeiro” e o “Conselho Consultivo da Região Metropolitana do Rio de Janeiro”.

Com a desmobilização desses três espaços de articulação da sociedade civil no fim de 2019, alguns sujeitos coletivos que estavam vinculados à pauta do saneamento tinham aproximações entre si e, de certo modo, estabeleciam diálogo com as instâncias institucionais de participação social da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ), passaram a construir um novo espaço de ação política. Assim, no início de 2020 surgiu a Campanha “Água Boa para Todos e Todas”. Formada por organizações populares, pesquisadores/as, cidadãos e mandatos parlamentares, a Campanha estabeleceu como objetivo estratégico “lutar unidos em todas as trincheiras, seja nas ruas ou no campo institucional, contra a mercantilização da água e do saneamento e pelo seu reconhecimento como um Direito Humano e Bem Comum!” (CAMPANHA..., 2020b).

Cabe observar que a Campanha se organizou desde o início em diálogo com a agenda institucional. A composição da live de lançamento19 , ocorrida em 3 de junho de 2020, exemplifica esse caráter, já que participaram da mesa um representante do legislativo, um do campo sindical, um dos movimentos sociais, um de Ong e dois representantes da Academia.

18 Fala do governador do estado do Rio de Janeiro, Claudio Casto (PL), na oportunidade da “4ª Semana BNDES de Saneamento”, realizada de modo online entre os dias 28 de junho e 2 de julho de 2021, na mesa “O que esperar do Setor do Saneamento?”.

19 Campanha... (2020a).

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Outro fator que evidencia essa proximidade entre Estado e sociedade civil é que um dos motes mobilizadores da Campanha foi a decisão do governo estadual – à época governado por Wilson Witzel (PSC) – de retomar o Programa de Desestatização oriundo dos anos 1990, materializado no Projeto de Lei nº. 2.419/2020.

Portanto, o surgimento da Campanha não ocorre de forma desvinculada da agenda institucional, tão pouco a partir de demandas exclusivas dos usuários dos serviços da Cedae. Ao contrário, nasce a partir da mobilização de uma parte da sociedade civil que acompanha as disputas políticas internas do parlamento e que haviam perdido espaço nas instâncias de controle social devido ao seu desmonte20 no início do governo de Jair Bolsonaro (sem partido).

Ao apostar nesse canal de diálogo com a institucionalidade democrática a Campanha fez incidência política no âmbito do legislativo, atuando como um braço de uma campanha mais ampla, chamada “Rio não se Vende”, e participando das audiências públicas promovidas pelas Comissões Temáticas da Alerj. Já no âmbito do executivo, participou do processo de Consulta Pública do Edital nº. 01/2020, elaborado pelo BNDES para regulamentar o processo de concessão da Cedae. Conforme publicado no Diário Oficial do estado do Rio de Janeiro de 8 de junho de 2020, o então vice-governador Claudio Castro (PSC) autorizou a realização de uma Consulta Pública online dos documentos da modelagem financeira, a partir da qual foram realizadas 3 audiências públicas nos dias 25/06/2020, 06/07/2020 e 04/08/2020 (CARTA..., 2021). Estes foram alguns dos questionamentos dos representantes da Campanha durante as Audiências21:

É importante ressaltar que esse projeto, elaborado pelos técnicos do BNDES e encomendado pelo governo do estado, lamentavelmente não foi planejado por uma equipe que pense o Estado do Rio de Janeiro como um todo, que contemple a questão metropolitana. Este é um projeto financiado por interesses outros que não o da sociedade civil.

Fala de Ary Gabriel Girota de Souza (presidente do Sindicato dos

20 Destacamos aqui o Decreto Presidencial nº. 9.759/2019 que extinguiu e limitou a criação de órgãos colegiados na Administração Pública Federal.

21 Para ver audiência: Governo RJ (2020a, 2020b e 2020c).

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Trabalhadores das Indústrias da Purificação e Distribuição de Água e em Serviços de Esgoto do Leste Fluminense - SINDÁGUA-RJ). (GOVERNO RJ, 2020a).

A universalização do saneamento em nenhum lugar do mundo se deu através de investimentos privados, a universalização, onde ela ocorreu, se deu através de investimentos públicos que depois, nas décadas de 1980 e 1990, acabaram sendo privatizados em alguns lugares. Então, eu acho que essa afirmação que está sendo colocada aqui de que é o investimento privado que vai levar a universalização carece de comprovação. E além disso, muitos locais onde o saneamento foi privatizado hoje em dia estão sendo municipalizados, ou seja, trazendo de volta o serviço para o setor público, já são mais de trezentas cidades que remunicipalizaram os seus serviços pelos mais diversos motivos.

Fala de Suyá Quintlrs (professora do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional - IPPUR/UFRJ e membro do Laboratório de Estudos de Águas Urbanas - LEAU/UFRJ). (GOVERNO RJ, 2020a).

Não podemos desconsiderar que estamos em uma pandemia, e esse processo de consulta pública se iniciou em plena emergência em saúde pública de importância nacional e internacional. Outro aspecto, que já foi colocado por diversos senhores aqui, inclusive do próprio Ministério Público Estadual, é que há um fator limitante na realização de audiência pública somente na forma virtual, então, o direito ao contraditório é um princípio democrático que não está assegurado. Minha pergunta se refere ao final do processo, pois várias críticas e lacunas foram devidamente expressas pela UFRJ, pela ABES, pelos Comitês de Bacia, pelo MPE-RJ, pela Rio Águas, e pela própria Fundação Oswaldo Cruz. Eu fico me perguntando como essas considerações serão contempladas? Por que não é uma questão de dúvida somente, tem diferenças de concepção…. Então a minha pergunta é quando acaba a Consulta Pública? E se as diversas questões colocadas gerar uma mudança substantiva do processo? Não caberia uma nova Consulta? Novas Audiências?

Fala de Alexandre Pessoa Dias (engenheiro civil sanitarista, coordenador do Grupo de Trabalho Água e Saneamento da Fundação Oswaldo Cruz - Fiocruz). (GOVERNO RJ, 2020c).

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III. Sujeitos, ações e estratégias políticas da campanha “água boa para todos e todas”

A pluralidade e heterogeneidade que caracteriza o tecido associativo contemporâneo e as várias vertentes possíveis para defesa do direito à água e ao saneamento22 são fatores que ajudam a entender a dinâmica de mobilização e desmobilização que marcou a Campanha. A depender das expectativas que cada sujeito político envolvido na Campanha tinha sobre aquele espaço e da capacidade coletiva para dialogar, acolher ou rechaçar tais expectativas, a Campanha foi desenhando seu caminho.

Sendo os anos de 2020 e 2021 marcados pelas consequências da pandemia de Covid-19 e pelo risco de contágio pelo coronavírus, as estratégias de mobilização adotadas pela Campanha foram majoritariamente virtuais. As principais ferramentas utilizadas foram: reuniões quinzenais por plataforma online, troca de informações via grupo de aplicativo de mensagens, participação em lives temáticas - promovidas pela própria Campanha ou por terceiros -, participação em audiências públicas, produção de matérias jornalísticas e conteúdos audiovisuais. Mesmo reconhecendo a importância da comunicação para formação da opinião pública, a Campanha teve dificuldade de manter um canal de comunicação via redes, haja vista que nunca houve profissionais da área na Campanha.

O papel da internet e das redes sociais na ação coletiva dos movimentos sociais contemporâneos é objeto de estudo de autores como Players (2018), para quem não há um determinismo tecnológico, ou seja, a internet e as redes sociais não são capazes de transformar a sociedade ou de desenvolver-se à parte dela, elas são “[...] una herramienta fundamental para conectar la escala local, en donde tienen lugar las luchas, con los significados globales.” (PLAYERS, 2018, p. 84). Como ferramentas, a internet e as redes sociais contribuem para a conexão entre as dimensões digital e territorial na ação coletiva.

No caso da Campanha, a conexão entre a dimensão virtual e territorial da ação coletiva ocorreu poucas vezes devido à gravidade da pandemia. No entanto, nessas poucas vezes, deu-se de forma articulada à agenda de lutas sociais mais amplas da cidade - não necessariamente

22

As lutas pela água e pelo saneamento são lutas que convergem como lutas por saúde, meio ambiente, clima, trabalho, soberania alimentar, espiritualidade e bem comum.

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vinculadas à pauta da água ou do saneamento. Todas as ações territoriais da Campanha concentraram-se em 2021. Em 7 de fevereiro, a Campanha apoiou o “Coletivo Água é Vida, Não Mercadoria” num ato simbólico nas escadarias da Alerj para denunciar a falta de água nas favelas e periferias da região metropolitana durante a pandemia. Em 7 de março, a Campanha realizou uma “Bicicleata em Defesa das Águas”, junto com a “Carreata de Luta das Mulheres do 8M” organizada pelos movimentos de mulheres e feministas. Já no dia 29 de abril de 2021, um dia antes do leilão da Cedae e data da votação do PDL nº. 57/2021 na Alerj, a Campanha se somou aos trabalhadores da Cedae organizados nos três sindicatos23 e ao “Fórum Estadual em Defesa da Água e Contra a Privatização da Cedae” em ato de massa realizado na Alerj.

Fonte: arquivo da Campanha Água Boa para Todos e Todas.

Fonte: arquivo da Campanha Água Boa para Todos e Todas.

Fonte: arquivo da Campanha Água Boa para Todos e Todas.

Fonte: arquivo da Campanha Água Boa para Todos e Todas.

23 SINDÁGUA-RJ - Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da Purificação e Distribuição de Água e em Serviços de Esgotos de Niterói e região; SINTSAMA - Sindicato dos Trabalhadores nas Empresas de Saneamento Básico e Meio Ambiente do Rio de Janeiro e Região e o STECNON-RJ - Sindicato dos Trabalhadores em Saneamento do Norte e Nordeste do Estado do Rio de Janeiro.

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Para além da disputa no âmbito da institucionalidade, a Campanha adotou como estratégia incidir sobre as corporações privadas do mercado das águas. Considerando que há um consenso na sociedade de que “o serviço privado é melhor que o serviço público” e que, no caso do Rio de Janeiro, estávamos enfrentando severas críticas à Cedae devido às sucessivas crises de desabastecimento ocorridas em 2020 e 2021, a Campanha buscou mostrar para sociedade “Quem vai ganhar e quem perde com a privatização da Cedae” por meio de ações de comunicação24 . Essas ações ocorreram no período entre janeiro e abril de 2021.

A partir da comparação com outras experiências de concessões não exitosas, da comparação dos preços de tarifas públicas e tarifas privada, da produção de informações sobre quem são as corporações privadas do setor de saneamento25 que já atuam no Brasil e como se vinculam ao sistema financeiro de capitais26 , as ações de comunicação da Campanha contribuíram para demonstrar a dinâmica neoliberal de expropriação do patrimônio público que está por trás da concessão da Cedae e a relação do governo de Jair Bolsonaro (sem partido) com esta dinâmica.

Note-se que as supostas concorrentes no leilão da Cedae, a Iguá Saneamento e a Aegea possuem controladores comuns aos controladores do Consórcio Redentor [concorrente não contemplado no certame], como o CPPIB [Canada Pension Plan Investment Board ], GIC [Fundo Soberano de Cingapura] e Itaú, respectivamente. O entrelaçamento entre os proprietários dos três consórcios põe em questão a ocorrência de uma efetiva concorrência no leilão, sugerindo que possa ter havido acordo prévio entre os ditos consórcios, o que configuraria fraude. (SILVA et al., 2021, p. 3, grifo do autor).

Assim, após o leilão da Cedae, a Campanha buscou compreender quem são as corporações ganhadoras do leilão que, nos próximos 35 anos, prestarão serviços no estado do Rio de Janeiro. A partir de uma investigação sobre estruturas acionárias das empresas participantes do certame, de

24

Ver materiais disponíveis no Instagram da Campanha, em @aguaboaparatodos.

25

Ver artigo “Mercado das águas e o suspeito leilão da CEDAE” produzido por membros da Campanha sobre indícios de fraude no leilão da CEDAE (SILVA et al., 2021).

26

Ver artigo “As águas do Brasil nas mãos do cassino financeiro”, produzido por membros da Campanha sobre a relação entre o estado do Rio de Janeiro e o banco francês BNP Paribas, no qual problematizam os riscos dessa relação para a Cedae e para o Rio Previdência, autarquia criada para gerir o Fundo de Previdência dos Trabalhadores do Estado (SILVA; RIBEIRO, 2020).

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matérias veiculadas na grande mídia e de comunicados das corporações feitos ao mercado, pesquisadores27 vinculados à Campanha produziram o material audiovisual “Fraude no Leilão da CEDAE?” (FASE, 2021).

Ainda dentro dessa estratégia de incidência sobre as corporações privadas a Campanha se articulou com outras organizações brasileiras28 e internacionais29 para denunciar que o Canada Pension Plan Investment Board (CPPIB) - fundo de pensão dos servidores públicos canadenses -, é um dos controladores financeiros da Iguá Saneamento S.A., que levou o bloco 2, e também da Equatorial Energia, que concorreu, mas não ganhou. Ou seja, são recursos oriundos dos trabalhadores canadenses que estão financiando a concessão da Cedae e, ao mesmo tempo, promovendo a demissão de cerca de 4 mil trabalhadores da Companhia. Nesse sentido, a Campanha contribuiu para a realização de um “twitaço” nas redes sociais com as hashtags #SuspendeLeilaoCedae, #ACedaeEdoPovo, #HandsOffOurWater e #CPPViolatesHumanRights, bem como com a mobilização para a realização de um ato na sede do Consulado Canadense, localizado no Rio de Janeiro, outro na sede brasileira do CPPIB, que se localiza na cidade de São Paulo, e um terceiro ato na sede do próprio CPPIB, que fica na cidade de Montreal, no Canadá. Na ocasião foi protocolado um documento subscrito por mais de 100 entidades brasileiras e 20 internacionais que reivindicava, entre outros pontos, o cancelamento imediato do leilão da Cedae.

27 Ver artigo “Mercado das águas e o suspeito leilão da CEDAE” produzido por membros da Campanha sobre indícios de fraude no leilão da CEDAE (SILVA et al., 2021).

28 Internacional dos Serviços Públicos (ISP), Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento (ONDAS), Federação Nacional dos Urbanitários (FNU).

29 Sindicato dos Servidores Públicos do Canadá (CUPE), Frente de Brasileiros Contra o Golpe no Brasil (FIBRA), Coletivo Brasil-Montreal.

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Cabe mencionar que a existência de instâncias de controle social sobre o Conselho de Administração da Cedae e o próprio envolvimento de trabalhadores da Cedae na Campanha são fatores importantes para entender porque a Campanha não adotou como estratégia política realizar ações de incidência política voltadas diretamente à Cedae. Entendemos que tais ações poderiam ter questionado a histórica ingerência política nos altos cargos de gestão da Cedae ou a cultura política institucional que se caracteriza pelo forte corporativismo profissional e pela ausência de diálogo com a sociedade civil.

IV. Contribuições do debate dos comuns para a construção de outros horizontes políticos para a gestão pública das águas Segundo Dardot e Laval (2017 p. 103), os comuns30 estão para

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Há outros autores e iniciativas que tratam do tema do comum e do bem-viver que não utilizamos neste artigo. Para maior aprofundamento sobre o comuns destacamos a contribuição de autoras feministas como a italiana Silvia Federici nas obras O Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva (FEDERICI, 2017), Ponto zero da revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista (FEDERICI, 2019), Reencantar el mundo: el feminismo y la política de los comunes (FEDERICI, 2020) e a mexicana Raquel Guitierez Aguilar na obra Horizontes comunitario-populares: producción de lo comum más allá de las políticas estado-céntricas (AGUILAR, 2017). Para aprofundamento do tema do bem-viver destacamos a experiência equatoriana que incorporou a concepção do bem-viver à sua constituição, a luta do movimento indígena equatoriano que criou a Universidad de los Pueblos y Nacionalidades del Ecuador Amawtay Wasi (Casa de Sabedoria) a fim de produzir conhecimento a partir da cosmovisão indígena, a contribuição de Alberto Acosta no livro O bem-viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos (ACOSTA, 2016) e de Aníbal Quijano no texto Bien vivir: entre el desarrollo y la descolonialidad del poder (QUIJANO, 2011), assim como a contribuição boliviana sobre o tema do bem-viver e dos comuns, produzida por mulheres vinculadas ao feminismo comunitário, como as pensadoras Aymara Julieta Paredes, membro do movimento Mujeres Creando Comunidad e autora dos livros Hilando fino desde el feminismo comunitario (PAREDES,

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Figura 5 - Ato de 11 de junho de 2021 na sede do Consulado Canadense no Rio de Janeiro Figura 6 - Ato de 11 de junho de 2021 na sede do CPPIB em São Paulo Fonte: arquivo da Campanha Água Boa para Todos e Todas. Fonte: arquivo da Campanha Água Boa para Todos e Todas.

além do público porque “[...] abrangem dois tipos de bens que a tradição jurídica de origem romana tendia a separar: as ‘coisas comuns’ e as ‘coisas públicas’ [...]”. Como ambos estão cada vez mais ameaçados pelo sistema capitalista de acumulação - que destrói as “coisas comuns” utilizando-se de extrema violência contra os povos que se levantam contra este modelo predatório, e que se apropria das “coisas públicas” para fins privados -, parece não fazer mais sentido a separação original entre ambos. Assim, não é que a propriedade pública tenha perdido seu sentido por completo, mas o que o debate dos comuns nos propõe é que sozinha ela já não dá conta dos desafios impostos pelo domínio do Estado pelas corporações econômico-financeiras.

O que dá sentido à junção desses diferentes aspectos dos comuns numa designação única é a exigência de uma nova forma, mais responsável, duradoura e justa, de gestão comunitária, e democrática dos recursos comuns. Para alguns autores, essa é uma mudança importante na maneira de conceber a ação política, tanto em seus fins como em seus meios, em suma, uma nova revolução na revolução. Embora não sejam excluídas das políticas desejadas pelas mobilizações populares – como na nacionalização do gás na Bolívia – as antigas soluções estatizantes que faziam da propriedade pública a solução necessária e suficiente para os problemas econômicos e sociais de uma população nacional já não são vistas da mesma maneira, depois que governos de todo mundo venderam as empresas públicas a preço de banana e estabeleceram alianças estreitas com as grandes multinacionais. (DARDOT; LAVAL, 2017, p. 103).

Vale destacar que a perspectiva dos comuns defendida por Dardot e Laval (2016, 2017) não prescinde do Estado, mas o reposiciona. Hoje, o Estado social é atacado pelas forças conjuntas da direita e da esquerda “socialista”, que aderiram ao novo princípio da competitividade. A luta contra essas forças é uma oportunidade de apresentar de maneira diferente a exigência do comum no campo social. O princípio do comum não leva à mera defesa das conquistas do Estado social, porque envolve um sentido do social que é diferente do solidarismo de Estado. Por acaso se trata de consolidar um conjunto de dispositivos seguridade, assistência ou mesmo

2013) e El desafio de la despatriarcalización (PAREDES, 2016), e Silvia Rivera Cusicanqui, membro da Colectivx Ch’ixi e professora de sociologia aposentada que organiza a Catedra da Sociologia da Imagem a partir da perspectiva decolonial que é também autora do livro Um mundo Ch’xi es posible: ensayos desde um presente em crisis (RIVERA CUSICANQUI, 2018).

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beneficência queridos por técnicos estatais que distribuem bens individualizados? Ou se trata de compreender a “democracia social” –de forma mais fundamental do ponto de vista político e mais original sob o aspecto histórico – como um conjunto de instituições adotadas pelos membros de uma sociedade para repartir entre si uma parte do que produzem, em função das necessidades que consideram mais importantes? Isso pressupõe que eles sejam democraticamente seus governantes e tenham controle das grandes orientações estratégicas, assim como, num nível mais local e limitado, das questões relativas à gestão cotidiana dos serviços. É claro que a dimensão burocrática da gestão do social é uma parte inevitável. Cada grupo de assalariados não pode inventar de governar seu próprio “comum social”, no mínimo porque as técnicas securitárias pressupõem escalas imensas. Mas as instituições sociais não são necessariamente propriedades do Estado geridas por oligarquias dominantes subordinadas aos imperativos mundiais de “competitividade” […]. (DARDOT; LAVAL, 2017, p. 542).

A necessidade desse reposicionamento do Estado deve-se a diversos fatores, entre os quais Dardot e Laval (2017) destacam a perda de legitimidade política dos governantes e a crise da democracia liberal na qual estamos imersos. Buscando alternativas para os problemas gerados pela gestão estatal à serviço do mercado, Dardot e Laval (2017) propõe a criação de práticas instituintes de autogoverno, as quais tenham a política do comum como referência - que não significa o mesmo que instituições de autogestão. Cientes das reivindicações dos movimentos e lutas populares por mais democracia, os autores argumentam que “[...] as mobilizações e insurreições contra as ditaduras e o capitalismo neoliberal somente terão alcance histórico duradouro se refundarem na intervenção de novas instituições, como aconteceu no fim do século XIX e início do XX.” (DARDOT; LAVAL, 2017, p. 481-482). Para eles as instituições de autogoverno são formas de “[...] instituir politicamente a própria sociedade [...]” (DARDOT; LAVAL, 2017, p. 488), que sofre com a dissolução da política na economia e com a estatização burocrática e tirânica da economia política. O comum é uma construção política, ou melhor, uma instituição da política neste momento de perigo que ameaça a humanidade. Dizer que o comum, como indica sua etimologia, é político já de imediato significa que ele obriga a conceber uma nova instituição da sociedade. Ele não é “anarquista”, no sentido de incitar à negação pura e simples do poder, de se traduzir – de forma contraditória,

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aliás – em rejeição a toda e qualquer autoridade. Ao contrário, o comum leva à introdução em toda parte, de maneira mais profunda e sistemática, da forma institucional do autogoverno, esta, se formos fiéis, que convirá distinguir daquilo que na história do século XX de autogestão; esta, se formos fiéis ao significado de gestão, limitase à dimensão da organização e só diz respeito à administração das coisas. O comum, tal como entendemos aqui, significa antes de tudo o governo dos homens, das regras, das instituições e das regras que eles adotam para organizar suas relações. Por isso, tem raízes na tradição política da democracia, em especial na experiência grega. (DARDOT; LAVAL, 2017, p. 485).

No caso específico das resistências sociais contra a mercantilização da água, Dardot e Laval (2017) relatam duas experiências que contribuíram para a criação dessas “novas instituições da sociedade”: trata-se da Batalha da Água de Cochabamba, na Bolívia (DARDOT; LAVAL, 2017, p. 103-109), e a remunicipalização da gestão da água em Nápoles, na Itália (DARDOT; LAVAL, 2017, p. 554-558). Estudando essa última experiência, Melo e Gatto (2014) analisam a contribuição do jurista italiano Alberto Lucarelli para a governança democrática da água e para o a ampliação do Direito Público. Considerando os limites do direito público no atual estágio do capitalismo, haja vista que ele tem atendido os interesses privados em detrimento dos interesses sociais, Lucarelli defende que o direito público precisa estar apto a se relacionar com uma nova categoria de bens comuns e com as novas categorias da participação democrática. Nesse sentido, propõem que criemos sinergias entre diferentes setores da sociedade para garantia dos direitos fundamentais. Uma mudança de rumos, neste sentido, envolve a decisão de construir um direito público efetivo, capaz de regular “público” e “comum”, que saiba impedir ou neutralizar os abusos do sujeito público (o chamado “abuso do direito”, ou da burocracia) e as suas tendências negociais sobre bens coletivos e públicos. Um direito público que, em mérito à gestão dos bens comuns e dos bens sociais, estreitamente funcionais à satisfação dos direitos sociais e não orientados ao mercado e ao lucro, saiba atribuir ao sujeito público as oportunas responsabilidades de gestão e de controle. Enfim, a exigência, em mérito aos bens comuns, de um governo público participativo, que compreenda, portanto, a dimensão do “comum” compartilhado. (MELO; GATTO, 2014, p. 114).

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Portanto, a perspectiva dos comuns, como defendido por Dardot e Laval (2017), busca a construção de novas sínteses, novas práxis que alterem os caminhos impostos pelo atual modelo hegemônico da sociedade capitalista, que desumaniza grande parte da população do globo e destrói a natureza e seus recursos. Aqui, essa práxis nos remete às resistências cotidianas, residuais aos sistemas constituídos, que segundo Cardoso (2020, p. 55-56)

[...] se move pelas necessidades do dia a dia, pela luta dos homens e mulheres simples da vida cotidiana por apropriação do espaço [e dos bens comuns], a partir da significação e representação do seu valor de uso, e que vivem as formas de controle e subordinação da lógica do valor de uso à lógica do valor de troca da mercadoria invadindo progressivamente as atividades, os lugares e os tempos da vida cotidiana e pressionando para a sua redução à cotidianidade”.

Esses resíduos, para Lefebvre (1969), são os irredutíveis ao controle capitalista, contraforças deste sistema e de suas instituições (a sociedade burocrática de consumo dirigido), potências constituídas no mundo que buscam se reunir, se fortalecer, forjar caminhos para afirmar na e pela práxis uma outra forma de sociabilidade, alternativa que não a ditada pelas restrições neoliberais. Assim como os comuns, os resíduos funcionam como um dispositivo político indispensável, já que trazem em latência a capacidade da transformação (poièsis) que motiva a ação (práxis) e a possibilidade da substituição dos poderes e do instituído. Ambos têm a capacidade de corroer, destruir por dentro os sistemas que querem absorvê-los. E é nesse caminho que as práticas e experiências de lutas e resistências representadas e apresentadas pela Campanha “Água Boa para Todos e Todas” buscou trilhar. Por meio dos resíduos e brechas, estão sendo construídas ações políticas afinadas com princípios democráticos que ora são mais institucionais, ora mais autonomistas; ora conseguem grandes mobilizações, ora se fragmentam. Enfim, é nesse vai e vem das águas e das lutas que se apostam as fichas, na contramão de um cenário político brasileiro que aponta para tempos sombrios.

Considerações finais

Cientes da importância de conhecermos a realidade para transfor-

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má-la, este artigo buscou sistematizar a experiência de resistência à privatização da água no Rio de Janeiro a partir da experiência da Campanha “Água Boa para Todos e Todas”.

A partir do que apresentamos, concluímos que a aproximação entre Estado e sociedade civil que caracteriza a trajetória de resistência da Campanha “Água Boa para Todos e Todas” deve-se aos diferentes perfis políticos dos sujeitos coletivos que integram a Campanha e a própria heterogeneidade da sociedade civil brasileira (DAGNINO, 1994, 2002). Por outro lado, tal aproximação deve-se à interdependência entre a sociedade civil e o Estado, tão conhecida no campo dos estudos sobre os movimentos sociais no Brasil, que teve origens no processo de democratização dos anos 1980, na implementação de políticas públicas e na criação de formas de controle público sobre o Estado (AVRITZER, 2012).

Conforme problematizamos no último tópico do artigo, esse imbricamento entre Estado e sociedade civil é um ponto que merece atenção, já que, sendo o comum um princípio político, ele nos propõe que sejam construídos outros horizontes políticos que não se limitem à esfera do Estado (irredutíveis ao poder das instituições), que sejam experimentados outros paradigmas de gestão pública e de direito público, os quais não se pautem pelo arcabouço institucional imposto pelo mercado e naturalizado pela sociedade, como sugere a perspectiva dos comuns. No caso específico de gestão das águas, isso significa compreendermos em primeiro lugar que o arcabouço institucional existente está profundamente determinado pela racionalidade neoliberal de gestão pública. Por isso, infelizmente, garantir que os serviços continuem públicos não garantirá qualidade e de universalização.

Ao mesmo tempo, nesse cenário de amplo retrocesso democrático, nos parece importante defender os serviços públicos como instituições da sociedade e, portanto, entender os comuns como um princípio político que ajuda na luta pelo e contra o estado: pelo estado, quando lutamos para que ele cumpra uma função social; contra o estado, quando lutamos para que ele não se iguale ao mercado.

Por fim, ressaltamos que a luta pela água e pelo saneamento no âmbito urbano precisa estar associada a outras agendas como a da segurança alimentar e nutricional, da saúde coletiva ou a do enfrentamento às

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mudanças climáticas e seus impactos sobre os grandes centros urbanos. É preciso ainda valorizar outras formas de captação, tratamento e distribuição da água, além de considerar como possíveis as experiências sociais de gestão comunitária das águas que utilizam tecnologias sociais.

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CRIME AMBIENTAL, PARTICIPAÇÃO POPULAR

E DIREITOS HUMANOS: UMA ANÁLISE DA REPRODUÇÃO DO CAPITALISMO DEPENDENTE A PARTIR DO PLANO DE MANEJO DE REJEITO DA FUNDAÇÃO RENOVA.1

Marina Rodrigues Corrêa dos Reis Fábio Fraga dos Santos

Os estudos das diversas áreas do conhecimento sobre as atividades da mineração, seus impactos, contradições e riscos são fundamentais. Nesse sentindo as reflexões acerca das medidas realizadas para recuperação de áreas atingidas por crimes ambientais e, no caso, a torna-se elementar, como parte desse conjunto de reflexões a que se dirige essa análise2 . No caso do crime ambiental provocado pela empresa Samarco, as análises sobre o plano de rejeito implantado pela Fundação Renova, que é responsável pela execução das atividades de recuperação da bacia do Rio Doce, ainda são incipientes.

É notório que a participação popular nas instâncias decisórias do pós-rompimento das barragens da Samarco, têm sido suprimidas ou sufocadas, exigindo, dos movimentos sociais e de alguns setores da sociedade, um esforço para estabelecer medidas que vão ao encontro da população atingida e da recuperação efetiva da bacia do Rio Doce. Mas, como se estabelece, do ponto de vista da reflexão, a participação democrática das comunidades atingidas em um cenário que, historicamente, a lógica do capitalismo dependente na era da radicalização da mundialização prevalece? No caso do plano de manejo de rejeito da Fundação Renova, existem prerrogativas de participação democrática, de diálogo nas tomadas de decisão com os atingidos? Há de fato uma perspectiva técnica e humana que 1DOI- 10.29388/978-65-81417-77-2-0-f.161-178

2Uma versão circunscrita deste capítulo foi publicada nos anais do VI Seminário Internacional - IV Simpósio Internacional de Pesquisadores/as – Lutas Sociais e perspectiva histórico-crítica no Serviço Social: Memória e Debate Contemporâneo (América Latina, América do Norte e Europa), realizado na Faculdade de Serviço Social/UFJF em 2019.

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leve em consideração soluções efetivas tanto para o meio ambiente quanto para as populações no que tange às dimensões da cultura, do trabalho e das economias locais?

O Termo de Transação e de Ajustamento de Conduta (TTAC) foi assinado em 02 de março de 2016 entre o Governado Federal, os Governos do Estado de Minas Gerais e Espírito Santo e a Samarco Mineração S.A. (Samarco), além das suas acionistas, Vale S.A. (Vale) e BHP Billiton Brasil Ltda. No TTAC está prevista, através das cláusulas 150 a 157, as ações específicas e compromissos, entre elas o Programa de Manejo de Rejeitos.

O Plano de Manejo de Rejeito (PMR), aprovado em 13 junho de 2017, elaborado pela Fundação Renova e validado pelos órgãos ambientais que constituem a Câmara Técnica de Gestão de Rejeitos, entre eles o IBAMA (Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), SEMAD-MG (Secretaria Estadual de Meio Ambiente de Minas Gerais) e IEMA-ES (Instituto Estadual de Meio Ambiente do Espírito Santo), prevê soluções para todos os rios e seus afluentes, que envolve a extensão de 670 quilômetros de cursos d’água entre a barragem de Fundão (Município de Mariana/MG) e a foz do Rio Doce (na Vila de Regência, pertencente ao município de Linhares/ES), que foram impactados. O plano foi concebido levando em consideração aspectos formais que descrevem a objetividade das ações, a legislação utilizada e aplicável ao contexto, segundo a Política Nacional do Meio Ambiente3 , Lei Federal nº 6.938, de 31/08/1981. Foi estruturada em tópicos que explicam cada etapa do processo e sua fundamentação. Em uma leitura preliminar destacam-se as diretrizes que foram definidas para a tomada de decisão a respeito do manejo dos rejeitos. Dividiram em 5 fases, a saber: Fase 1, dividida em duas etapas, (A) em que se desenvolve a caracterização ambiental da área afetada, levando em consideração os aspectos físicos dos detritos e a quantificação dos volumes dos materiais e (B) a complementação da caracterização ambiental da área afetada, que procura, em tese, detectar eventuais riscos à saúde humana e ecológicos analisados; Fase 2, tomada de decisão e seleção das alternativas de manejo; Fase 3, avaliação governamental da proposta apresentada; Fase 4, comunicação

RENOVA, 2017, p.17

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aos proprietários; Fase 5, Implementação e monitoramento da alternativa selecionada (RENOVA, 2017).

O PMR dividiu a região impactada em 17 trechos, tendo como escopo o nível de impacto (físico) dos resíduos em cada local, de acordo com o grau de assoreamento, das mudanças no curso d´água e das biodiversidades afetadas. Entre as diretrizes do plano de manejo, se prevê a possibilidade de não remoção dos rejeitos, uma vez que cada trecho deve ser analisado para “minimizar” outros possíveis impactos, já que, para a Renova, fazer manejo do rejeito não significa necessariamente retirar o produto de onde ele está depositado. O PMR destaca ainda que a decisão final para cada trecho tem como diretriz buscar soluções com menor impacto ao meio ambiente e às comunidades, já que, segundo a operadora do plano de manejo, os compostos minerais depositados ao longo da área afetada mostram resultados de concentração de metais que ficaram bem abaixo dos valores estabelecidos pela legislação de áreas contaminadas4 (FORUM MUNDIAL DA ÁGUA, 2018).

Duas questões iniciais nos orientam nesse momento, já que existe sempre um norteador que assombra a dinâmica da sociedade, que é a necessidade de crescimento econômico, especialmente diante de um contexto de crise ambiental. A primeira questão é saber se a aplicação do PMR leva em consideração os aspectos da vida cotidiana, as particularidades do modo de vida de cada comunidade afetada, os prejuízos culturais, a pluralidade dos espaços e os impactos na divisão do trabalho e na autonomia dos indivíduos? A segunda questão é se o PMR serviria apenas como mera formalidade para a justificar a retomada das atividades mineradoras da Samarco e como modelo de serviço prestado pela Fundação Renova, que justificaria a sua implantação em outras áreas afetadas pela mineração?

O processo produtivo desenfreado exige soluções rápidas e continuidade para a ampliação da lucratividade. Existe uma contínua pres -

4 Cabe ressaltar que existem muitas divergências entre os dados apresentados pela Fundação Renova e outros órgãos de pesquisa e monitoramento, que questionam as concentrações dos metais no Rio Doce, além dos pontos amostrais. CARVALHO, M. S.de et al. Concentração de metais no rio Doce em Mariana. Acta Brasiliensis, Minas Gerais, v. 1, n. 3, p. 37-41, set. 2017. Disponível em: http://revistas.ufcg.edu.br/ActaBra/index.php/ actabra/article/view/58. Acesso em: 21 jan. 2019.

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são sobre a sociedade e a natureza provocados pelo modo de produção, sob a justificativa de desenvolvimento que se apropria do meio ambiente e reforça a necessidade de ampliação produtiva para suprir as necessidades sociais.

O “desenvolvimento” é, com efeito, apresentado como bom para todos – a nação, os empresários e o povo. Mas a desconsideração do ponto de vista dos que são atingidos negativamente pelos impactos do desenvolvimento supõe uma hierarquização de direitos e culturas, a cultura desenvolvimentista tendo precedência sobre as demais. (ACSELRAD, 2014, p.84).

Diante de um cenário de crise, que foi resultado de ingerências e das necessidades corporativas, em detrimento da real necessidade social e sem levar em consideração os possíveis impactos do processo produtivo (no caso a mineração) no meio ambiente, fica extremamente difícil acreditar que haja um interesse na recuperação das áreas atingidas, ou apenas a necessidade de legitimar a retomada produtiva.

Um ponto importante, a priori, é discutir sob qual prisma o PMR procura realizar as ações, se é a partir de uma objetividade expressa em ações pontuais, pautadas em diagnósticos técnicos para quantificar o prejuízo do ponto de vista monetário, mensurado apenas pelo dano material, tendo como base a propriedade privada. Como subterfugio dessa afirmação, nos pautamos nas análises de Milanez e Santos (2013) que destacam que, no Brasil, a exploração intensificada da extração mineral dos recursos energéticos, além da produção agropecuária voltada à exportação, tornaram-se característicos da nossa economia, assumindo modelo de expropriação e isolamento das populações camponesas, tradicionais, de povos originários, entre outros. Tudo isso vem acompanhado do papel ativo do Estado, que tem desempenhado no âmbito legal elementos favoráveis aos empreendimentos intensivos e corporativos, especialmente as transnacionais.

Podemos relacionar esse processo à ideia desenvolvimentista que está ligada aos esforços dos projetos de privatização e mercantilização dos recursos naturais (especialmente a água, terra, recursos minerais), que visam a apropriação cada vez mais intensa dos espaços de extração de matérias primas, configurando aquilo que David Harvey (2012) designa de acumulação por espoliação, que é materializado nos ambientes construí-

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dos para a acumulação do capital. Torna-se evidente que existe na atividade extrativa mineral uma apropriação e um controle dos recursos naturais que levam a uma territorialização do modo de produção capitalista, que tem como objetivo a garantia contínua dos recursos locais para sustentar o funcionamento de sua estrutura. Desse modo, os que exercem um controle local o fazem condicionando a dinâmica política, social e econômica de uma região, pois quem controla o espaço pode sempre controlar as outras instâncias da vida social (HARVEY, 1992).

Portanto, quanto se trata do conjunto das ações para a recuperação das áreas atingidas pelo rejeito da Samarco, percebemos apenas o cumprimento de normativas, que são pautadas em critérios objetivos que mensuram os impactos com base no aspecto instrumental econômico. Podemos identificar estas questões ao abordar os aspectos “metodológicos” do PMR. Atentaremos para os aspectos ligados a questão social. Quando se trata das avaliações sobre o risco à saúde humana, o plano de manejo prevê apenas a utilização da aplicação da norma técnica da ABNT (16.290/2014) para que haja um gerenciamento de áreas contaminadas, não especificando as ações e compensações. De modo que o risco a saúde humana não é considerado de forma determinante, uma vez que “[...] a análise de risco não será um impeditivo para o andamento da aplicação do Plano de Manejo de Rejeito. As ações ocorrerão simultaneamente [...]” (RENOVA, 2017, p. 138).

No que se refere a avaliação de “risco ecológico”, reforça que não existem documentos aprovados pelas agências oficiais e, portanto, aguarda definição dos órgãos competentes para definir a metodologia e abordagem a serem aplicadas. O plano indica neste tópico, o lento processo de diagnóstico dos desdobramentos do rompimento, “A condução de estudos específicos é um desafio, dado o tamanho da área impactada.” (RENOVA, 2017, p. 139). E sugere como solução para essa questão a “[...] realização de um fórum para a discussão da avaliação de risco ecológico considerando as incertezas da metodologia e a falta de dados específicos da região [...]” (RENOVA, 2017, p.139).

No entanto, de modo geral, o PMR se estrutura metodologicamente a partir da premissa da “Análise de Custo-Benefício” (ACB), como parâmetro para as ações nos respectivos trechos de atuação de -

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limitados, que define “[...] um modelo econômico para quantificar as mudanças em serviços ambientais avaliados usando uma métrica ecológica.” (RENOVA, 2017, p.164). Ou seja, defendem a criação de um instrumento que tenha objetividade no que se refere ao conjunto de procedimentos que possam ser utilizados para “[...] definir e comparar os benefícios e custos (econômicos, sociais e ambientais) associados às decisões de implementar um projeto ou de realizar um investimento específico.” (RENOVA, 2017, p.163).

Diante dessa diretriz, o PMR interpreta que na metodologia para tratar da crise provocada pelo rompimento da barragem de rejeitos, o elemento “custo” deve ser o fator determinante para garantir benefício definido, que no caso, está ligado ao interesse corporativo. O´Connor (2002) destaca em suas análises que, independentemente do tipo de crise ligado aos custos de produção do capital, este atua conjuntamente com o Estado na buscar por uma “racionalização” que possa permitir a superação daquilo que se apresenta como impedimento ou limites (custos) ao seu desenvolvimento.

Existem outros pontos de contradição descritos no plano de manejo, especificamente quando reforçam que a “[...] metodologia da ACB é flexível na medida em que o nível de rigor é adaptado para satisfazer o objetivo de apoiar a decisão dentro das limitações de tempo e recursos do contexto de decisão.” (RENOVA, 2017, p.164). Ora, a flexibilidade e a adaptabilidade estão ligadas a um “rigor” que satisfaça o objetivo dentro das “limitações” de tempo e “recursos”? As diretrizes metodológicas do PMR deixam claro que o ponto não é a escassez de força de trabalho, de infraestrutura, de recursos materiais, mas o tempo de retorno do investimento aplicado. Como se trata de retorno de investimento, a questão do tempo está atrelada ao investimento e não às demandas sociais e ambientais do impacto. Como existe uma necessidade de retorno do alto custo da força de trabalho, dos recursos e da infraestrutura aplicada para retomada do que se investiu, ou seja, da necessidade iminente da lucratividade, isso leva o Estado e o Capital à busca incessante pela racionalização de suas ações (O´CONNOR, 2002), e neste caso o PMR é tratado como uma extensão das atividades da indústria mineradora.

A racionalização capitalista está sempre vinculada à lógica da re -

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dução dos custos, e carrega consigo dinâmicas contraditórias. Entre elas, a contradição de que os impactos resultantes do processo produtivo são onerosos e que elevam os custos do capital. Dito de outra maneira, a crise ambiental é tratada pelo capital como uma crise de custos das condições de produção (O´CONNOR, 2002). Podemos identificar no PMR que uma das orientações metodológicas está atrelada a essa perspectiva, em que existe um custo e uma necessidade de racionalização em suas atividades, especialmente quando a diretriz afirma que é necessário “[...] identificar as tecnologias de remoção/recuperação que proporcionem o maior valor por real gasto.” (RENOVA, 2017, p.29).

O “desastre” socioambiental em Mariana-MG gerou uma série de violações de direitos, dentre esses destacamos: “[...] o direito ao meio ambiente equilibrado e o direito a propriedade daqueles que perderam suas casas destruídas pela onda de lama, sem falar no direito à vida e a integridade física, até direitos menos evidentes [...], como o direito à saúde mental daqueles que vivenciaram momentos de terror durante o rompimento da barragem.” (SENRA, 2016, p. 43).

É importante analisar o contexto de violação de direitos, que não se reduz de fato, a uma dinâmica restrita ao âmbito nacional. Uma vez inscrito na ordem econômica mundial, o Brasil desempenha o papel chave da economia dependente no âmbito da mundialização do capital. Uma economia que se utiliza da superexploração do trabalho5 para garantir a reprodução ampliada do capital, a acumulação está, portanto, combinada a violação de direitos. Nesse sentido, se coloca a funcionalidade da violação de direitos na ordem vigente.

A burguesia mineradora ao se pautar no uso de recursos naturais para extração de lucros predadores se apropria do território de modo privado. Na contramão dessa tendência, a partir da compreensão e defesa dos recursos naturais como bens coletivos, somos todos atingidos!

A mineração em grande escala no Brasil tem apresentado um padrão de apropriação extensiva da natureza e dos territórios. o aumento da produção mineral no Brasil nos últimos 15 anos teve

5 De acordo com Marini (2000), a superexploração da força de trabalho, procura orientar as análises das especificidades da lógica capitalista dependente, ou seja, àqueles países que estão emaranhados na estrutura de relações desiguais e contraditórias com as potências imperialistas e que tiveram suas estruturas produtivas internas modificadas nesse processo.

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como uma de suas consequências a ampliação de um quadro de conflitos socioambientais e de violações aos direitos humanos onde a mineração se estabeleceu. A dinâmica predatória que essa atividade impõe ao meio ambiente e às comunidades do seu entorno tende a provocar a perda das bases de reprodução socioeconômica dos grupos que vivem e trabalham nos locais onde os empreendimentos são instalados. (MILANEZ; LOSEKANN, 2016, p. 26).

Nessa perspectiva se impõe aprofundar reflexões acerca do desastre, sobre as medidas propostas pela Fundação Renova, tendo em vista o complexo processo de reparação das violações de direitos. Um preceito chave para se analisar as propostas de reparação, diz respeito a garantia da participação popular nos processos de construção das medidas reparadoras e definição das mesmas, uma vez que os sujeitos sociais diretamente atingidos, são os maiores interessados nos desdobramentos de reparação do “desastre”.

Mais do que a perda material que possam ser quantificadas a partir do “desastre” e equacionadas através de indenizações financeiras, os processos de reabilitação propostos pelo transgressor normalmente são repletos de violências que sujeitam os atingidos em condições ainda mais precárias, levando a situações de perda de autonomia e aceitação de condições materiais ainda mais precárias. A reparação do “desastre”, nesse sentido e no caso em questão, não se limita à situação caótica do rompimento da barragem, mas tem se desdobrado num constante processo de crise social, estimulado pelos ditames institucionais que legitimam as ações propostas e efetivadas (ZHOURI, 2018).

Nesse sentido, analisaremos a premissa da participação popular no Plano de Manejo de Rejeito 6 (PMR), que foi elaborado a partir de três encontros, como descrito nas fontes da Fundação Renova: Workshops foram realizados com a participação de cerca de 80 especialistas com objetivo de alcançar qualidade técnica devido à complexidade do tema, bem como de ter representatividade da sociedade. A construção desse documento é fruto da participação de aproximadamente 30 instituições, especialistas, professores universitários de notório saber e partes interessadas, que, por meio

6O Plano adota a seguinte definição de “rejeitos”: “[...] a fração estéril produzida pelo beneficiamento de minério, depositada nas barragens em formato de polpa, após a redução da umidade por meio dos processos de deslamagem, na forma de rejeito grosseiro (arenoso) e fino (lama).” (RENOVA, 2017, p.11).

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de uma dinâmica de grupos de trabalho, contribuíram com temas prioritários a serem incorporados objetivos, metodologias, técnicas de manejo e ressalvas, dentre outros. (RENOVA, 2017, p.1).

A priori cabe indicar que o processo de formulação do PMR não elenca entre seus participantes centrais, a população atingida. Questão contrária à perspectiva aqui defendida, de “centralidade do sofrimento da vítima”, ou seja, “[...] deve vigorar a primazia da norma mais favorável às vítimas, ou seja, deve se priorizar a norma que melhor as proteja, seja ela norma de direito internacional ou de direito interno.” (HOMA, 2018, p. 22).

Uma vez que o PMR se orienta pelas prerrogativas legais consolidadas no TTAC7, elencamos os parâmetros concernentes à participação popular definidos no termo e referenciados no plano em questão: CLÁUSULA 60: A população impactada e os INDIRETAMENTE IMPACTADOS terão acesso à informação ampla, transparente, completa e pública, em linguagem acessível, adequada e compreensível a todos os interessados, como condição necessária à participação social esclarecida.

CLÁUSULA 61: Fica reconhecida a multiplicidade de formas e procedimentos de divulgação e efetiva participação social, desde audiências públicas até o uso de múltiplas mídias de modo a favorecer uma participação esclarecida.

CLÁUSULA 62: O presente programa deverá promover a participação das pessoas físicas e jurídicas, comunidades e movimentos sociais organizados.

CLÁUSULA64: Deverão ser criados canais permanentes de comunicação e interação com a sociedade em espaços fixos ou itinerantes, se necessário. (TTAC, 2016, p.44-45).

Nesse sentido, cabe indicar que o próprio processo de construção

As Cláusulas 150 a 157 do TTAC detalham as ações e compromissos específicos quanto ao manejo de rejeito, as quais foram incorporados no Programa de Manejo de Rejeitos (“PG23”), cujo objetivo é realizar estudos de identificação e de avaliação detalhada da Área Ambiental 1 (áreas abrangidas pela deposição de rejeitos nas calhas e margens dos rios Gualaxo do Norte, Carmo e Doce, considerando os respectivos trechos de seus formadores e tributários, bem como as regiões estuarinas, costeiras e marinha na porção impactada pelo rompimento), e realizar o manejo de rejeitos decorrentes do rompimento da barragem de Fundão, conforme resultados dos estudos previstos neste programa, bem como considerando os fatores ambientais, sociais e econômicos da região (RENOVA, 2017).

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do PMR não se pautou nas prerrogativas acima elencadas do TTAC, principalmente do que diz respeito a instrumentalização dos afetados, com a transposição dos conhecimentos e informações, de modo a garantir a participação efetiva da população atingida.

As prerrogativas do TTAC orientam por sua vez os programas implementados pela Renova, programas que acontecem de forma conjunta com o PMR. Destacamos dentre os programas elencados no plano, aquele concernente a participação popular: “Programa de Comunicação, Participação, Diálogo e Controle Social.” (RENOVA, 2017, p.12).

Em publicação da Fundação Renova, o programa de Participação e Diálogo Social é descrito da seguinte forma:

Devemos assegurar a participação da população impactada e dos indiretamente impactados na definição dos programas. O diálogo está no centro da nossa forma de atuar para garantir que se tenha acesso à informação ampla, transparente, completa e pública, em linguagem acessível, adequada e compreensível a todos os interessados, como condição necessária à participação social esclarecida. Temos uma série de canais de comunicação: Central de Atendimento 0800, 12 Postos de Atendimento, Ouvidoria, e-mail, Facebook (a partir de maio de 2017), Fale Conosco no site da Fundação e informativos. Em 2016, foram recebidos 64.245 contatos. A equipe de Diálogo realizou, até março de 2017, 918 eventos de diálogo, com a presença de 31.547 pessoas8.(RENOVA, 2019).

Em consonância com o referido programa, como anunciado no PMR, este prevê que a aplicação do plano promoverá: Mobilização e engajamento da sociedade objetivando a legitimidade das ações a serem desenvolvidas; [...] Transformação das áreas atingidas com vistas a uma recuperação da qualidade socioeconômica, humana e ambiental da área impactada. (RENOVA, 2017, p. 15).

E possui como “[...] pilares para alcance dos objetivos e resultados do Plano, Atores sociais engajados: Usuários das águas na área afetada; Órgãos ambientais; Proprietários e Comunidades impactadas; Prefeituras; Comitês de Bacias.” (RENOVA, 2017, p.16). Cabe ressaltar a não menção aos movimentos sociais, ator social central no processo de articulação e

8Disponível em: https://www.fundacaorenova.org/relato-de-atividades/programas/ Acesso em: 19 jan.2019.

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manifestação popular. No contexto do crime promovido pela Samarco9, o Movimento dos Atingidos por Barragem (MAB) fomentou a mobilização e organização da população afetada, em outras palavras, se constitui em “ator social engajado”.

No que diz respeito à população afetada, a fundação reconhece como atingidos os proprietários, aqueles que perderam suas respectivas propriedades com o “desastre”. O plano prevê que a comunicação aos proprietários acontecerá “Após validação do Plano de Manejo de Rejeito por parte dos órgãos ambientais e aprovação da CT-Rejeitos.” (RENOVA, 2017, p.30). Nesse sentido, a participação social é tomada no plano em uma perspectiva consultiva, de autorização para o manejo de rejeito anteriormente elaborado e aprovado pelos devidos órgãos públicos.

Fundação Renova propõe dois Planos de Comunicação:

• Plano de Comunicação e consulta específicos para proprietários das áreas alvo de manejo (com modelo para assinatura de termo de anuência para intervenção proposta); e

• Plano de comunicação social para a sociedade em geral. Esses planos de comunicação estão em elaboração e serão discutidos previamente na CT-Rejeitos. (RENOVA, 2017, p. 31, grifo nosso).

Ao final do processo, o proprietário, e não o atingido, é comunicado, o que indica a ausência de reconhecimento da totalidade de atingidos pelo desastre, do não reconhecimento da natureza como um bem coletivo, mas setorizado dividido em propriedades, conforme estabelecido pela lógica capitalista vigente.

Conforme definido em Nota Técnica, a consulta às partes interessadas, no que se refere à aprovação do plano de ações, se restringe ao corpo técnico dos órgãos ambientais, Câmaras Técnicas e outros envolvidos deste grupo da Fase 3 – Avaliação governamental da proposta apresentada. O diálogo com agentes externos, como os proprietários e comunidades afetadas, será realizado após a aprovação técnica da melhor alternativa de solução. (RENOVA, 2017, p. 200).

A questão que se coloca é como a população atingida terá condições objetivas de decisão, no momento em que é consultada, se não

9 Os acionistas da joint venture Samarco são a australiana BHP Billiton e a Vale, sendo esta considerada sua controladora efetiva. Configura assim, como uma joint venture (acordo de empreendimento e gestão compartilhada) não operada.

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foi incluída no processo de formulação das propostas de intervenção construídas? Ao serem considerados “agentes externos” pela fundação, a participação social prevista no PMR cumpre a exigência burocrática de concordância dos atingidos com as ações de reparação a serem implementadas pela Renova.

Nesse sentido, cabe ressaltar as análises de Zhouri (2018) sobre a realização do cadastramento das populações afetadas, a qual foi contratada uma empresa de consultoria socioambiental denominada Synergia10 , que por meio de um formulário eletrônico (Cadastro Integrado), realiza um questionário complexo e amplo para ser utilizado como “instrumento único” no que se refere ao levantamento de danos sobre as perdas das comunidades atingidas ao longo da Bacia do Rio Doce. A autora destaca que existe um problema estrutural, de ordem metodológica que fundamentam o instrumento cadastral, a saber:

[...] ele possui uma perspectiva urbana e também empresarial agroindustrial alheia às dimensões próprias do universo rural, composto, sobretudo, por pequenos produtores, agricultores familiares, camponeses, pescadores artesanais, grupos tradicionais e étnicos localizados ao longo da bacia do Rio Doce. Esse aspecto limita o instrumento à aferição de dados majoritariamente patrimoniais e censitários subsumidos a uma lógica estranha ao modo de vida da maioria da população à qual o questionário se dirige. (ZHOURI, 2018, p.50).

Outra questão a se destacar é a nomenclatura utilizada no PMR ao fazer referência ao “desastre” em Mariana-MG como “evento”11, semântica que no nosso entendimento, remete a ideia de casualidade, de acidente ocorrido de modo imprevisível. O poder simbólico12 e efetivo de dar nome as coisas se mostra de extrema relevância ao caso, em que houve a tentativa de naturalizar o acontecido. O rompimento da barragem de

10 SYNERGIA, 2016.Versão de Julho de 2016.

11 Destaca-se o trecho do PMR que correlaciona o crime a um evento de ordem natural: Ressalta-se que tais questões não estão relacionadas ao evento do rompimento da barragem, mas sim à condição posterior, na qual há presença de rejeitos no ambiente. Além disto, precisam ser considerados os impactos atuais decorrentes do evento principal (i.e., a ruptura da barragem do Fundão no mês de novembro de 2015) e/ou de eventos posteriores ao evento principal (ex.: a segunda época chuvosa após o evento principal) (RENOVA, 2017).

12 Conceito esclarecido pelo livro de Pierre Bourdieu (2001), “O poder simbólico”.

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Fundão não foi um acidente, não foi algo imprevisível e nem fruto trágico de um conjunto de fatores incontroláveis, uma vez que há uma relação estrutural entre mineração e rompimento de barragens. Onde houver atividade de mineração haverá, intrinsecamente, altos riscos de ocorrência de rompimento de barragens.

Em síntese, usamos como pressuposto a correlação entre o aumento do risco de rompimento de barragens de rejeitos e o ciclo pósboom do preço dos minérios. Dessa forma, os diversos episódios de rompimento das barragens de rejeitos ocorridos não deveriam ser vistos como eventos fortuitos, mas como elementos inerentes à dinâmica econômica do setor mineral. Portanto, se a volatilidade dos preços é uma característica intrínseca ao mercado de minérios, assim também seria o rompimento das barragens. (WANDERLEY; MANSUR; PINTO,2016, p.41).

No que diz respeito a delimitação da área de abrangência do PMR, esta é baseada em critérios de ordem técnica, embasados cientificamente, conforme descrito no Plano (RENOVA, 2017, p.74):

A delimitação da região adjacente às áreas diretamente impactadas deve ser determinada pelo cruzamento dos limites destas com a base hidrográfica ottocodificada. A construção da base ottocodificada consiste de um conjunto de processos para tratamento topológico da rede hidrográfica com base na codificação de Otto Pfafstetter (1989) e que permite associar e extrair informações a jusante e a montante de cada trecho da rede de drenagem. (AGÊNCIA NACIONAL DE ÁGUAS - ANA, 2006, s/p).

Cabe ressaltar que a participação da população afetada direta e indiretamente se faz essencial nesse tópico. Uma vez que o processo de reparação de direitos por parte da Fundação se pauta nos proprietários diretamente atingidos, não reconhecendo povos e comunidades tradicionais que foram desprovidos dos seus meios de sobrevivência e convívio social. Em outras palavras, embora a delimitação da área de abrangência do PMR seja concebida como uma questão de ordem técnica, fato que impossibilita a compreensão e consequentemente a participação efetiva dos atingidos, defende-se que esta delimitação se constitui, sobretudo, em uma decisão de ordem política!

Como exemplo, reforçamos às análises de Milanez (2018) que destaca, como estratégia instrumental, o TAC (Termos de Ajustamento de

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Conduta), que tem sido compreendido muito mais como um instrumento de “apartar” o Estado das decisões, se apresentando como solução extrajudicial para evitar penalizações jurídicas mais severas. Lembrando que a Fundação Renova é resultado do TTAC (Termo de Transação e de Ajustamento de Conduta) que tem como diretriz ações de “[...] privatização da aplicação da legislação ambiental [...]” (SANTOS; MILANEZ, 2017, p.80). Cabe indicar o restrito rol de questões socioeconômicas presente no PMR, conforme demonstrado na imagem da tabela extraída do PMR: Tabela – Avaliação dos potenciais riscos futuros decorrentes da presença de rejeitos e de impactos decorrentes de eventos passado.

Fonte: Fundação Renova (2017).

Ao desconsiderar fatores socioeconômicos essenciais, como a destruição do modo de vida, reprodução social, e convívio social de agricultores, comunidades ribeirinhas, povos e comunidades tradicionais, o PMR indica o tratamento residual das questões elencadas que se relacionam a fatores de ordem econômica, ao uso produtivo da área, e não se pauta dessa forma no princípio de centralidade do sofrimento da vítima. A simplificação, a padronização e a redução da experiência das perdas e do sofrimento a uma ‘matriz de danos’ cujas categorias estão limitadas e previstas não só “aplanam e delimitam” as possibilidades e caminhos da subjetivação, mas revelam um poderoso mecanismo de sujeição, capaz de instituir sujeitos com direitos inelegíveis e vítimas ilegítimas.(APPADURAI, 2004, p.179 apud ZHOURI, 2018,

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p.59).

Neste sentido, o “atingido” se torna um elemento quantitativo, pressuposto ao formato estatístico empresarial para mensurar o custo monetário atrelado à propriedade. No tópico de aplicação do PMR, se prevê que,

As ações de manejo poderão impactar de forma negativa as populações ribeirinhas e próximas das áreas de disposição previstas. Impactos na qualidade do ar, ruídos e aumento de tráfego estão associados às atividades de remoção, transporte por via terrestre e descarga em áreas de disposição. (RENOVA, 2017, p.195).

Caso gerem reclamações por parte dos moradores atingidos, a Fundação estabelece um instrumento para comunicação de reclamações, de modo que “A utilização destes registros servirá como um indicador da gestão inadequada das ações.” (RENOVA, 2017, p.195). A participação social é tomada nesse sentido como um indicador de ordem técnica, ou seja, é colocado como variável, como elemento incisivo para as ações empresariais. Esse tema é abordado por Milanez (2018) quando destaca a estratégia corporativa da Vale S/A e ressalta a influência exercida pela corporação e seus tentáculos diante da necessidade de exercer controle sobre as comunidades, coletivos, movimentos sociais, comunidades indígenas, entre outros através das ações de responsabilidades social corporativa (RSC), culturais, científicas e educacionais, judiciais e policiais.

Outro ponto essencial a destacar é que em todo o texto do PMR, a expressão morte é usada apenas para indicar a morte de árvores. Não é feita menção a morte das 19 pessoas na data do rompimento, a morte de peixes, a morte dos meios de sobrevivência de populações tradicionais. Para além do adoecimento físico e mental incalculáveis dos sujeitos sociais que seguem suas vidas sem a vida do rio, sem a independência, autonomia e modo de vida anteriormente conquistado. Como explicitado na fala de uma atingida13:“eu estou viva, mas me sinto morta”.

O processo de formulação do PMR, realizado fundamentalmente por especialistas, já indica a perspectiva de não inclusão dos principais

13 Fala de atingida no evento de “Balanço de 3 anos do Rompimento da Barragem do Fundão”, realizado em Ouro Preto-MG, em 06/11/2018.

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interessados. Verifica-se que princípios básicos do TTAC, norteadores do PMR não foram cumpridos já no processo de formulação do PMR, com a relegada participação de atingidos nesses espaços. A cultura e saber popular daqueles que viviam as margens do Rio Doce, e deste extraiam sua sobrevivência foram negligenciados já no processo de construção do plano. Lembrando que o TTAC consiste em instrumentos já criados como solução extrajudicial de conflitos e “[...] vem sendo repetidamente utilizado pela Vale para evitar penalizações pelo Estado.”(MILANEZ, 2018, p.110) e que criou a Fundação Renova, tornando-a responsável pela “[...] recuperação, mitigação e compensação dos impactos socioeconômicos e socioambientais do rompimento da barragem do Fundão.”(MILANEZ, 2018, p.111). Portanto, legitimando a Renova e as suas representadas como executoras de um processo de “[...] privatização da aplicação da legislação ambiental [...]” (MILANEZ, 2018, p.112). Assim como se corrobora em todo linguajar do PMR, o “evento” é diagnosticado pelo rejeito, pela produção restrita da empresa, ou seja, não é diagnosticada detalhadamente a destruição nas áreas degradadas e principalmente das pessoas que ali habitavam. O manejo de rejeito demonstra o corte de responsabilização parcial das empresas violadoras de direitos envolvidas.

A estrutura do PMR e a forma como foi constituído demonstram os mecanismos para realização de controle sobre as áreas atingidas e suas comunidades, além de expressar de maneira pontual as contradições e os conflitos inerentes aos interesses da empresa mineradora. Esse modelo de ação a partir do PMR, destaca o fortalecimento das estratégias de domínio das localidades e sugere muito mais a utilização de artifício para reverter a situação de crise em prol do Capital do que a real promoção da recuperação ambiental e social das áreas afetadas.

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APONTAMENTOS ACERCA DA SECA, DA “QUESTÃO SOCIAL” E DA

FORMAÇÃO DA CLASSE TRABALHADORA CEARENSE1

Introdução

A segunda metade do século de XIX e o início do século XX podem ser entendidos como um período de transição, de passagem entre a economia colonial escravista voltada para abastecer o mercado capitalista europeu e a introdução das relações sociais capitalistas no momento mesmo da produção2 . Anteriormente tais relações se encontravam, em território nacional, restritas aos momentos da circulação e da distribuição3 .

A análise de alguns documentários que tratam dos chamados campos de concentração 4 nos períodos de estiagem e de determinada bibliografia 5 nos oferecem elementos para compreender tal processo histórico no Ceará. As grandes secas, sem dúvida, desempenharam um papel incontornável no processo de modernização capitalista do Ceará. E, juntamente com esta, na formação da classe trabalhadora e da “questão social”.

As grandes secas se constituem em fenômenos naturais de tamanha grandiosidade que modificam radicalmente as paisagens rural e urbana do Estado. A miséria e a fome levam às migrações. Destas resultam a movimentação das grandes massas do campo para as cidades, especial-

1DOI- 10.29388/978-65-81417-77-2-0-f.179-198

2 Internamente ao processo de produção da vida material, o momento propriamente da produção (ou seja, o modo como os homens se relacionam no processo produtivo) determina os outros momentos (consumo, circulação, distribuição). Em verdade, os diferentes momentos determinam-se mutuamente, contudo, o momento da produção se apresenta como o determinante do processo de produção da vida material (MARX, 2012).

3 Daí toda a dificuldade em caracterizar o período colonial e mesmo este momento de transição ao capitalismo.

4 Medida de controle estatal sobre os corpos dos retirantes da seca que foi apagada da memória coletiva de nossa República, os campos de concentração ou “currais do governo” marcaram as iniciativas estatais na primeira metade do século XX.

5 Indicados nas referências.

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mente à capital.

A “questão social”, latente6 (SILVA, 2013) ou já estabelecida (a depender do grau de desenvolvimento das forças produtivas e das relações de produção), se agudiza, alcança uma dimensão que as instituições constituídas não podem ignorar. Assim, a organização societária revela-se, em toda sua crueza: a sua não vocação para a solução dos mais candentes problemas humanos. Trata-se, portanto, de um modo de organizar a produção material cujo objetivo passa distante da resolução dos problemas sociais que atingem grande contingente humano. Tanto o sistema colonial, como a transição e o modo propriamente capitalista, buscam um único objetivo: a acumulação de capital. Esta é central para que se possa compreender a “questão social”, eixo fundante do serviço social . Entendendo a reprodução social como sendo o âmbito privilegiado de intervenção da profissão (ABESS/CEDEPSS, 2010).

I. “Questão Social” na Europa Capitalista

A expressão “questão social” é utilizada para designar o fenômeno da pauperização (absoluta ou relativa) massiva da classe trabalhadora justamente no momento em que há um salto gigantesco da capacidade produtiva devido ao desenvolvimento da indústria. A expressão “questão social” surgiu na terceira década do século XIX, na Europa, para caracterizar o fenômeno do pauperismo (neste caso, absoluto) no momento mesmo em que houve um desenvolvimento sem precedentes das forças produtivas, ou seja, “[...] a pobreza crescia na razão direta em que aumentava a capacidade social de produzir riquezas.” (NETTO, 2001, p. 42). Daí sua novidade em relação às desigualdades existentes em “[...] formas de sociedade precedentes à sociedade burguesa [...]” (NETTO, 2001, p. 43). No decurso do século XIX, a pobreza se expressa como “questão social”. Foi da revolta dos trabalhadores com suas condições de reprodução social, em contraste com a riqueza inédita que produziam no interior das

6 Talvez seja mais preciso falar em “raízes latentes” da “questão social”, como indica a própria autora ao apontar seu insight, tendo como base a leitura de Caio Prado Júnior (SILVA, 2013). A professora Cristina Nobre aponta as determinações fundamentais deste momento histórico, a saber, “[...] economia colonial escravista produtora de bens primários em sistema de plantation articulava-se à economia capitalista mundial em sua fase mercantilista [...]” (NOBRE, 2010, p. 02).

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fábricas (e não só), que se impôs à pauta pública a chamada “[...] questão social [...]” (MOTA, 2010, p. 25). Sem tal politização, sem que se tomasse consciência de que a miséria se reproduzia em relação direta com a riqueza, a pobreza, ou melhor, a pauperização não teria sido expressa como “questão social”.

Deve-se ter nítido que o processo de tomada de consciência, de organização e de ação pública foi fundamental para que emergisse a “questão social”. Sem luta, consciência e organização, o pauperismo jamais se teria tornado uma questão. Neste passo, também foi fundamental a tomada de consciência de que outro modo de organizar a produção social da riqueza era não somente desejável como possível e necessário para que a reprodução contínua da pauperização pudesse ser superada (NETTO, 2001).

Com a organização da classe trabalhadora, sua constituição em sujeito político, em uma das duas classes fundamentais, a partir de 1848, não mais foi possível reduzir a ação estatal, já na fase monopolista, à “[...] borduna policialesca [...]” (NETTO, 2011, p. 60). O proletariado ao ascender à luta política de massas, ao disputar a direção da sociedade (classe para si) impele à burguesia, por meio de seu Estado, a assegurar tanto as condições de reprodução da força de trabalho (ocupada e excedente) como sua consciência, organizando um consenso imprescindível à reprodução das relações sociais de produção. Daí o surgimento das políticas sociais e de uma profissão que tem, originalmente, como função, em meio à divisão social e técnica do trabalho na sociedade burguesa, a execução de tais políticas (NETTO, 2011). Quando não houve tal força política por parte da classe trabalhadora, “[...] a burguesia monopolista jogou em sistemas políticos desprovidos de qualquer flexibilidade e inclusividade.” (NETTO, 2011, p. 28). Suas alternativas sócio-políticas foram “[...] do Welfare State ao fascismo [...]” (NETTO, 2011, p. 28). Desse modo, a “questão social” é posta por meio de lutas travadas pelas frações pauperizadas (MOTA, 2010). Tais lutas têm nas determinantes da “questão social” suas causas primeiras, são expressões da “questão social” (NETTO, 2011). Contudo, estas expressões precisam ser assumidas, “personificadas” por uma das “[...] classes fundamentais em luta [...]” (IASI, 2018, p. 143), ou seja, que se ofereçam tanto interpretações como

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“[...] respostas [...]” (NETTO, 2011, p. 60). No interior do Estado burguês, tais expressões “[...] são recortadas como problemáticas particulares (o desemprego, a fome, a carência habitacional, o acidente de trabalho, a falta de escolas, a incapacidade física etc.) e assim enfrentadas.” (NETTO, 2011, p. 32, grifo do autor).

Desse modo, ao se buscar apreender o conjunto expresso pela chamada “questão social”, não se pode olvidar também os projetos, a correlação de forças e os momentos históricos. A expressão “questão social”, portanto, designa a pauperização das massas não proprietárias dos meios de produção em contraposição à crescente capacidade produtiva. Trata-se de uma situação objetiva. No entanto, sua interpretação e enfrentamento são mediatizados por concepções teóricas, profissionais e políticas que podem velar ou não suas determinações.

Vale destacar que “questão social” não é uma categoria, posto não exprimir “[...] formas de modo de ser, determinações de existência [...]” (MARX, 2012, p. 261). Ela é desprovida de existência real, concreta. O que existe realmente são suas expressões . Daí poder referir-se à “questão social” como conceito, “[...] cuja natureza é reflexiva, intelectiva [...]” (PONTES, 1995, apud SANTOS, 2012, p. 18).

A “Questão social” é determinada pela lei geral da acumulação capitalista .

Quanto maiores a riqueza social, o capital em função, a dimensão e energia de seu crescimento e, consequentemente, a magnitude absoluta do proletariado e da força produtiva de seu trabalho, tanto maior o exército industrial de reserva. A força de trabalho disponível é ampliada pelas mesmas causas que aumentam a força expansiva do capital. A magnitude relativa do exército industrial de reserva cresce, portanto, com as potências da riqueza, mas, quanto maior esse exército de reserva em relação ao exército ativo, tanto maior a massa da superpopulação consolidada, cuja miséria está na razão inversa do suplício de seu trabalho. E, ainda, quanto maiores essa camada de lázaros da classe trabalhadora e o exército industrial de reserva, tanto maior, usando-se a terminologia oficial, o pauperismo. Esta é a lei geral, absoluta, da acumulação capitalista. (MARX, 2002, p. 748, grifo do autor).

Evidencia-se, assim, como nota Marx (2002, p. 763), que não é possível apreender a conexão entre os tormentos vividos pelas massas trabalhadoras e a pujança da vida dos ricos sem relacioná-la a acumulação

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de capital, sem conhecer as leis tendenciais que regem a organização econômica da sociedade, o modo de produção capitalista. Sem conhecer suas “ [...] legalidades objetivas [...]”, ou seja, o conjunto de tendências constitutivas do movimento da vida social não é possível desvelar as determinações da “questão social”, alcançar a “ [...] dinâmica da totalidade social [...]” (NETTO; BRAZ, 2011, p. 161, grifos dos autores).

Vale ressaltar: se a lei geral é uma determinante universal onde vigoram as relações sociais de produção capitalistas, seu estudo, apesar de necessário, é insuficiente para dar conta das diversas expressões da “questão social”. A análise do concreto exige que não se perca de vista as diversas particularidades, assim como o devir do processo histórico, o qual pode apresentar a combinação de tradicionais e novas expressões da “questão social”, como também novas e antigas formas de enfrentá-las. Sendo assim, em absoluto se trata de restringir-se ao universal: Isto significa que o desafio teórico acima salientado envolve, ainda, a pesquisa das diferencialidades histórico-culturais (que entrelaçam elementos de relações de classe, geracionais, de gênero e de etnia constituídos em formações sociais específicas) que se cruzam e tensionam na efetividade social. Em poucas palavras: a caracterização da ‘questão social’, em suas manifestações já conhecidas e em suas expressões novas, tem de considerar as particularidades históricoculturais e nacionais. (NETTO, 2001, p. 48-49).

Desse modo, compreender as particularidades nacionais e do semiárido nordestino se faz necessário. O período de estiagem exerce nesta região um papel determinante.

II. Secas, Campos de Concentração e Expropriação da Força de Trabalho

Na seca de 1932, no Ceará (RIOS, 2014), as massas retirantes iniciaram, como fizeram nas grandes estiagens precedentes, seus deslocamentos no sentido da capital do Estado. Receoso deste movimento, o Governo proibiu a distribuição de passagens, nas estações, ao longo das duas linhas férreas que cortavam o Estado em direção à sua capital. A revolta popular logo se fez presente, com saques de vagões e invasões de trens no intuito de chegar à Fortaleza (RIOS, 2014).

O Estado, como resposta, construiu sete Campos de Concentra-

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ção7 (todos ao lado ou muito próximos de estações). A burguesia comercial e industrial da capital, empenhada na modernização da cidade, não queria as massas pauperizadas e famintas vagando pelas ruas, ocupando as sombras das árvores no afã de proteger-se do calor extasiante ou a pedir esmolas nas portas dos comércios e das casas abastadas (RIOS, 2014). Contudo, não foram poucos aqueles que conseguiram nela chegar. Na capital, dois campos de concentração foram construídos, cuja finalidade não era outra que abrigar as multidões advindas por meio das duas linhas férreas. Os retirantes8 , individualmente, buscavam também as redações dos jornais, almejavam publicizar suas condições miseráveis de vida na esperança de serem atendidas suas necessidades (RIOS, 2014).

O conteúdo político das ações de resistência dos retirantes foi esvaziado (RIOS, 2014). O instinto de sobrevivência, a necessidade natural de manter a vida foi apontado como único fator desencadeador. Desse modo, esvaziadas as ações coletivas, as medidas resolutivas foram apontadas na direção das frentes de trabalho, da caridade, das medidas assistenciais e da emigração forçada, mediadas pelo empreendimento “disciplinador”, o campo de concentração, aquele que permitia um maior controle

7 Os campos se localizavam em: Ipu, Quixeramobim, Patu em Senador Pompeu, Cariús em São Mateus, Burity no Crato, Urubu e Otávio Bonfim em Fortaleza (nesta cidade, eram dois) (RIOS, 2014).

8 Diversos autores utilizam a palavra flagelado para designar seres humanos nesta situação, contudo, por acreditarmos que as palavras não são neutras e que a utilização desta advém de um ponto de vista interpretativo conservador, preferimos utilizar a palavra retirante. Frederico de Castro Neves aponta que a palavra flagelado começou a ser empregada a partir da seca de 1915. Buscava-se assim caracterizar esta situação como algo ocasional, resultante de eventuais alterações naturais, jamais como a imposição da propriedade privada como uma relação social que dificultava sobremaneira a sobrevivência dos seres sociais: “Ao mesmo tempo, uma concepção de que a seca é acontecimento extemporâneo à organização social e política ficou marcada na opinião pública e se reproduz até hoje como fundamento das políticas públicas. Apesar de fazer parte da configuração climática e definitivamente incorporada às estruturas sociais estabelecidas no semiárido, a irregularidade de chuvas era vista como um ‘flagelo’ que periodicamente açoita a sociedade cearense. Daí, porque, a partir de 1915, os retirantes transformam-se em ‘flagelados’.” (NEVES, 2015, p. 89). Não se busca negar a dimensão natural do fenômeno, nem interditar o uso de termos como flagelo ou flagelado, mas evita-se designar os retirantes como flagelados para não se encobrir a determinação social do fenômeno, destacando-se apenas, como o faz o pensamento conservador, sua dimensão natural. Trata-se de uma escolha discursiva que consideramos relevante.

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sobre os corpos, o tempo, a mobilidade do retirante9 (RIOS, 2014).

Os campos de concentração possibilitam melhor controlar os retirantes, evitar suas desesperadas iniciativas (RIOS, 2014). Nas palavras do próprio Interventor do Estado de então, o Capitão Roberto Carneiro de Mendonça, em Relatório dirigido ao Presidente da República: Para attender com efficiencia os serviços de socorro aos flagelados, e evitar o deslocamento deveras temível para a saúde e a tranquilidade publicas das populações sertanejas que emigravam para diversos pontos, principalmente para a capital, a interventoria tomou urgentes providências. Tratou o governo de concentrar os flagellados em pontos diversos, afim de socorre-los com efficiencia e no tempo opportuno. (MENDONÇA apud RIOS, 2014, p. 82).

Logo, contudo, a burguesia percebeu que podia mobilizar toda esta força de trabalho quase gratuita para realizar melhorias urbanas10 , desde a reforma de ruas à construção de prédios públicos majestosos (como o dos Correios e Telégrafos). A justificativa seria amenizar o sofri-

9 A utilização do campo de concentração como instrumento disciplinador e de controle da massa retirante, cujo objetivo era evitar uma “invasão da cidade”, foi utilizado, em sua “[...] primeira versão [...]” (RIOS, 2014, p. 81), na seca de 1915. O campo de concentração do Alagadiço (próximo a estação de trem do Otávio Bonfim) reunia, em média, 8000 pessoas. Anteriormente ao ano de 1915, devem-se ser destacados dois fenômenos importantes de rebelião popular. Em 1912, a massa popular urbana de Fortaleza depôs Nogueira Accioly da presidência do estado após 20 anos de exercício no exercício do poder. Nesta revolta, “[...] as massas urbanas, revoltadas, dirigem sua ira contra todos os símbolos do poder despótico do oligarca, inclusive os equipamentos modernos construídos no período de ‘aformoseamento’ de Fortaleza: bondes, postes de iluminação, calçamento das ruas, relógios públicos e até mesmo fábricas e lojas.” (NEVES, 2015, p. 86). Isso revela que as massas não se identificavam com tais obras, não as compreendiam como sendo construídas por elas para o seu usufruto comum. O segundo fato foi a chamada “Sedição de Juazeiro” na qual as massas sertanejas, sob a tutela de Padre Cícero, marcharam para a capital do Estado. Após um acordo, não invadiram à cidade, mas saquearam duas cidades vizinhas: Maranguape e Pacajus. A população de Fortaleza, ou talvez seja mais preciso afirmar sua classe dominante, ficou aterrorizada. Daí ter sido utilizado, na seca de 1915, o campo de concentração como medida cujo objetivo era evitar uma “[...] nova invasão [...]” da cidade (NEVES, 2015, p. 86). Contudo, na seca de 1915 foi organizado apenas um campo em Fortaleza; na seca de 1932, foram sete campos. Destes, cinco no interior do Estado, objetivando-se, assim, evitar que a massa se deslocasse à capital.

10 Desde a seca de 1877-79, imortalizada no impactante livro A fome, de Rodolfo Teófilo (2011), que se utiliza, nas obras públicas, massivamente a força de trabalho, a preço ínfimo, dos retirantes desesperados (RIOS, 2014).

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mento do povo por meio das frentes de trabalho11. Anteriormente já se vinha ampliando as redes férreas12 (com o objetivo de facilitar o transporte das mercadorias), o número de barragens e estradas. Assim, almejava consolidar o capitalismo na capital do Estado (RIOS, 2014). Também não se furtou, a burguesia, em empregar esta força de trabalho extremamente pauperizada no próprio processo de produção fabril (RIOS, 2014).

Eis uma “oportunidade” de superlucro, de aumento do trabalho excedente (em relação ao necessário) e, também, de aceleração das obras públicas que não se vislumbra em períodos sem estiagem, tanto em relação ao uso, a custos extremamente baixos da força de trabalho, como em obter vultosos recursos junto ao governo federal (RIOS, 2014).

A pauta das massas pauperizadas, uma vez mais, foi capturada pelas classes dominantes. Estas ofereceram às repostas que lhes convinham, dentro das condições de extrema pressão imposta pelas massas desesperadas.

Este processo de máxima exploração e expropriação das massas retirantes rurais resultou na expansão da periferia urbana da capital. O fluxo migratório desencadeado pela chamada seca de 1932 se constitui em seu marco. Como os trens passaram a despejar a massa retirante nas últimas estações, já próximas da praia, esta começou a construir seus casebres nestas áreas. Daí o desinteresse, por parte do capital investido no setor imobiliário, naquele período, pelas faixas de praia13 . A cidade se forma de costas para o mar (RIOS, 2014). Igualmente, a massa retirante ocupou as glebas que se encontravam no entorno das linhas férreas. Abandonou, assim, sua condição de flagelo, passou a de favelada (RIOS, 2014). Durante a seca, a periferia de Fortaleza teve multiplicada por quatro sua

11 Daí a polêmica, nas secas de 1915 e de 1932 – diferentemente de 1877 –, se era oportuna ou não a emigração da força de trabalho, perdiam-se braços e possíveis recursos do governo federal (RIOS, 2014).

12 No movimento contraditório do real, contudo, as mesmas estradas de ferro facilitaram a chegada dos retirantes à capital.

13 O professor Borzachiello destaca também (afirmação acima tem como base a obra deste professor) as características naturais destas áreas: “O crescimento da cidade para a Zona Oeste, [...], não privilegiou a orla marítima; ao contrário, ocorreu na faixa mais interna que recebe popularmente na cidade o nome de ‘sertão’. Provavelmente a ocupação deve ter sido orientada para essa faixa mais interna devido às dificuldades de fixação nas áreas de dunas que margeiam toda a costa.” (SILVA, 1992, p. 48).

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população14 (RIOS, 2014).

Um ponto que merece destaque é que os retirantes, ao chegarem à Fortaleza, se dirigiram aos bairros centrais da capital, e não à sua periferia. Eram naqueles bairros que sua população “[...] se mobilizava em torno dos problemas e das vantagens com a seca [...]” (RIOS, 2014, p. 79). Sendo assim, pode-se perceber que esta expressão particular da “questão social” se coloca pela resistência dos retirantes diante da morte. Emigram, forçam o socorro público. Contudo, parecem não encontrar nas outras frações pauperizadas do povo força para oferecer outra resolução do problema imediato. As camadas dirigentes é que o fazem.

Vale destacar que as secas do século XIX e XX trouxeram mudanças fundamentais quanto à assistência ao sertanejo nestes momentos de extrema adversidade. Até então, cabia ao fazendeiro (ao “padim”) assegurar a subsistência da massa sertaneja que se encontrava no interior e nos arredores de suas terras. Muitas vezes estas massas eram alocadas nos currais das fazendas. Contudo, com o volume de necessitados alcançado nas secas a partir de 1877, não mais foi possível aos coronéis atenderem tão grandiosa demanda, a proteção antes encontrada na “[...] caridade do coronel [...]” tornou-se absolutamente insuficiente, “[...] deixando sem alternativas de sobrevivência uma população de centenas de milhares de pessoas [...]” (NEVES, 2015, p. 80). Coube então ao Estado fazê-lo. Os antigos laços de apadrinhamento começam a ser quebrados. Tal fato se deu porque a produção tradicional foi interrompida15 (NEVES, 2015, p. 78).

De certa forma, era um dever do proprietário proteger os ‘seus’ moradores durante um infortúnio.

A falta de chuvas no período regular, no entanto, destruía imediatamente essas pequenas colheitas e ameaçava o gado, desfazendo o círculo da produção tradicional. O proprietário da fazenda destacava alguns homens e deslocava seus bois para outras áreas onde o pasto podia ter-se preservado.

14 Na primeira grande seca após o “fechamento” das terras úmidas, a seca de 1877-79, a capital recebeu cerca de 100 mil pessoas, sua população nativa não ultrapassava 27 mil pessoas (NEVES, 2015).

15 Produção está baseada na criação do gado do proprietário e na pequena colheita de subsistência nas terras daquele (NEVES, 2015).

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Os homens que ficavam tinham duas alternativas: ou migravam para as áreas úmidas e resistentes à irregularidade de chuvas, sendo permitida a sua presença provisória por um beneplácito do proprietário, ou eram acolhidos pelo dono das próprias terras em que trabalhavam, muitas vezes habitando os currais abandonados e esperando sobreviver às custas da caridade do ‘coronel’ de sua esposa. (NEVES, 2015, p. 78-79).

Modifica-se assim a forma e o conteúdo da assistência aos sertanejos acossados pelas secas. Daí emergir tal situação enquanto “questão social” e se estabelecerem uma série de políticas que visavam enfrentá-la.

Não se pode deixar de destacar que a ideologia liberal orientou a formulação das políticas neste período. Exigiu-se do retirante a contrapartida do trabalho, não só objetivando a superexploração da sua força de trabalho, mas também sob a justificativa meramente ideológica de que não se devia promover a ociosidade. Como denunciado no romance de Rodolfo Teófilo, carregar pedras por longas distâncias foi uma contrapartida não poucas vezes requisitada:

Ao mesmo tempo, o corpo definha, mal alimentado, à falta de ordem na distribuição dos víveres do governo. Os socorros são mal distribuídos. Trocam a ração pelo trabalho, mas por um trabalho penoso, superior às forças dos famintos. Um pobre homem cansado de uma longa viagem, enfraquecido de fome, pode caminhar todos os dias doze quilômetros com uma pedra às costas, para receber uma ração de um litro de farinha e quinhentos gramas de carne do Sul?! Se é só, poderá escapar à fome, mas se têm, como na maioria deles, oito e mais pessoas de família, qual o seu fim? A morte [...]. (TEÓFILO, 2011, p. 161).

A fim de que se compreenda a “questão social” no Ceará, cujo flagelo é uma expressão, é imprescindível analisar a conjunção de duas determinações (dentre outras): a cerca e a seca. Esta combinação “[...] torna difícil a sua permanência [da massa sertaneja] no campo nos períodos de estiagem, acarretando migrações e inúmeros conflitos sociais tanto no campo como nos centros urbanos.” (NOBRE, 2010, p. 01).

Para que as adversidades decorrentes do período de estiagem atingissem tal grau de dramaticidade e se constituísse, ainda no século XIX, em “questão social” latente, no Ceará, ocorreu um momento prévio de

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expropriação16 , a saber, o fechamento “[...] das áreas devolutas que historicamente abrigavam os sertanejos [...]” (NOBRE, 2010, p. 02) em tais períodos17. Tal fechamento ocorreu com o objetivo de que nessas terras fossem realizados plantios “[...] de algodão em grande escala [...]” (NOBRE, 2010, p. 02), evidentemente para abastecer o mercado externo. A agricultura comercial ocupou as terras úmidas (NEVES, 2015).

O avanço das relações sociais propriamente capitalistas no Brasil (visto que o país se encontrava num período de transição ao capitalismo) e o avanço da produção de algodão, a partir de meados do século XIX, foram determinantes, por conseguinte, para que ocorresse o fechamento das terras úmidas.

A cotonicultura foi a atividade agrícola que impulsionou o avanço da agricultura de tipo comercial no interior do Ceará. Antes dela, basicamente a economia do interior estava restrita a produção de subsistência e a pecuária extensiva (NEVES, 2015). A produção de algodão transformou este quadro:

Esse avanço de uma agricultura comercial, sedentária, que buscava

16 Expropriação, entendida por Marx (1996, p. 99 apud FONTES, 2018, p. 21) como “[...] processos históricos que resultaram na decomposição da unidade originária existente entre o homem trabalhador e seus instrumentos de trabalho.”. Contudo, como esclarece Fontes, a expropriação, em Marx, não se restringe a um momento de acumulação prévia, ela se perpetua, pois assegura uma condição básica para a reprodução do capital. Por meio dela, transformam-se “[...] os meios sociais de subsistência e de produção em capital [...]” (MARX apud FONTES, 2018, p. 31). Desse modo, entende-se que a chave analítica da expropriação é fundamental para se compreender este processo histórico, o modo de produção capitalista tem como pressuposto a separação entre trabalhadores e condições de reprodução social: “O processo que cria a relação capitalista não pode ser senão o processo de separação entre o trabalhador e a propriedade das condições de realização de seu trabalho, processo que, por um lado, transforma em capital os meios sociais de subsistência e de produção, por outro, converte os produtores diretos em trabalhadores assalariados.” (MARX, 2017, p. 786).

17 Não se deve esquecer que o sentido de terras devolutas em Portugal e no Brasil é diverso. Em Portugal, no período anterior as grandes navegações, terras devolutas significavam aquelas terras que eram devolvidas à Coroa porque aqueles senhores que receberam suas respectivas sesmarias não conseguiram atingir o nível de produtividade previsto. No Brasil, a partir da espoliação das terras dos povos originários, todas as terras passaram a ser do Estado. Ou seja, todas as terras que não foram concedidas (por meio das sesmarias) ou simplesmente apossadas (modo reconhecido, a partir de determinado momento, como legítimo) ou compradas (a partir da publicação da Lei de Terras em 1850) eram terras devolutas, ou seja, terras do Estado nas quais não tinham sido desenvolvidas atividades produtivas. Para maiores informações, conferir Silva (1996).

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um excedente mercantil, tornou subitamente impossível a ‘retirada’ dos moradores para terras mais úmidas durante os períodos de irregularidade de chuvas, pois elas não estavam mais ‘disponíveis’ para isso, ocupadas agora com a cultura do algodão e valorizadas monetariamente. (NEVES, 2015, p. 79).

Destaquemos, então, o avanço das relações sociais de produção capitalistas (LEFEBVRE, 1977). Em meados do século XIX, o Brasil encontra-se em transição ao capitalismo propriamente. A produção deixaria de ser baseada no trabalho escravo e passaria, no final do século, a ter no trabalho livre sua fonte de excedente. No campo, uma mudança na legislação foi fundamental, a aprovação da Lei de Terras (1850) (NEVES, 2015). A partir daquele momento, para se adquirir terras no Brasil seria necessário pagar por elas. Não mais seria possível acessar à terra por meio de concessões (sesmarias) ou pela simples posse. A terra passou a ser uma mercadoria, foi transformada em propriedade privada18 . A legislação, deve-se evitar a confusão, não é sujeito da transformação, ela possibilita institucionalizar uma relação social real.

Por conseguinte, a transformação da terra em propriedade privada e o avanço da cotonicultura resultaram no fechamento das terras úmidas. Terras estas para onde migravam sertanejos em períodos de estiagem. Eis o processo histórico que leva a formação da “questão social” no Ceará. Vale destacar que as comunidades indígenas também foram prejudicas neste processo. Estabelecidas em aldeamentos, estas tribos foram novamente expropriadas em meados do século XIX19 (NEVES, 2015). Ressalte-se também que anteriormente a chegada do colonizador europeu, as tribos apresentavam significativa mobilidade em relação ao espaço justamente em face das dificuldades resultantes da irregularida-

18 Não se está afirmando que antes as terras úmidas eram “coletivas”, mas que nelas eram permitidas a prática da agricultura de subsistência, assim como ocorria nas terras do sertão (NEVES, 2015).

19 Conforme a Lei de Terras (1850), em seu art. 12, “O governo reservará das terras devolutas as que julgar necessárias: 1º, para a colonização dos indígenas”. Assim seriam destinadas terras para “[...] aculturação dos povos indígenas [...]” (ou seja, não seriam disponibilizadas para a venda pelo Estado). Com o intuito de colocar as terras anteriormente cedidas aos indígenas (em aldeamentos) à disposição dos latifundiários, o presidente da Província do Ceará declarou, no ano de 1863, que não havia mais índios no território cearense (FARIAS, 2007). Por conseguinte, as terras antes reconhecidas como de uso indígena (ainda que na forma de aldeamento) passaram a ser consideradas devolutas (sujeitas à compra).

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de de chuvas:

Há registros de escassez de chuvas desde os mais remotos documentos sobre o território onde hoje se localiza o Ceará. As tribos que habitavam essas terras, periodicamente transferiam suas aldeias para áreas mais úmidas ou próximas à orla marítima, muitas vezes, provocando conflitos com outras tribos. (NEVES, 2015, p. 77) 20 .

Vale enfatizar que, neste período, não houve significativa irregularidade de chuvas: “[...] entre 1845 e 1877, anos em que as mudanças se intensificavam velozmente, os invernos regulares se sucediam, amenizando ou ocultando os efeitos perniciosos que essas transformações iriam ter sobre as populações do sertão.” (NEVES, 2015, p. 79). O conjunto da população sertaneja não sentiu os efeitos do “fechamento” das terras úmidas. Eis porque a seca de 1877-79 tornou-se um marco da “questão social” no Ceará. A partir dela, “[...] a seca passa a fazer parte permanente da história do Ceará, determinando novas relações políticas e sociais e mobilizando a cultura e as manifestações da arte.” (NEVES, 2015, p. 84). A estiagem não mais pode ser interpretada como sendo unicamente uma eventualidade climática, ela impulsiona a “questão social” no Ceará. Repartido em propriedade parcelares (LEFEBVRE, 1977), o território cearense não mais é capaz de assegurar as mínimas condições de sobrevivência de sua população:

Por isso, o ano de 1877 se tornou um marco na compreensão do problema da seca e o impacto causado pelas cenas que então se desenrolam fixou-se profundamente na cultura. Neste momento, a irregularidade de chuvas deixa de ser ‘apenas’ uma questão climática para se tornar uma questão social, que a todos afeta e que o Estado brasileiro não poderá mais ignorar.

De fato, inaugura-se neste instante a seca tal qual a entendemos hoje: miséria, fome, destruição da produção, dispersão da mão de obra, migrações, invasões às cidades, corrupção, saques... (NEVES, 2015, p. 79).

Neste período, também surgem os primeiros grupos cangaceiros.

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Foi em razão dessa adversidade climática que a pecuária se estabeleceu como principal atividade econômica: “Os primeiros colonizadores, pouco adaptados ao clima, viam-se em dificuldades quando ousavam atravessar o sertão em épocas de poucas chuvas. Mesmo assim, a ocupação do território se efetivou, especialmente com base na pecuária, que permitia uma certa mobilidade da ‘produção’ durante as secas.” (NEVES, 2015, p. 77).

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A “questão social” no semiárido nordestino se expressa de diversos modos, um deles é por meio de grupos armados que aterrorizam os sertões, gerando medo e admiração:

O interior da província ficou entregue aos bandos de criminosos, que agiam impunemente, disputando entre si as melhores áreas para a pilhagem. Bandos como os Calangros, os Matheus e os Pellados foram formados a partir de crimes cometidos por vinganças pessoais e familiares e podem ser apontados como os primeiros grupos de cangaceiros que passaram a percorrer o sertão, semeando o pânico entre as populações interioranas e, ao mesmo tempo, transformandose em heróis que subvertem as hierarquias sociais, submetendo até mesmo os poderosos a seus caprichos e necessidades. As vilas do interior, muitas vezes abandonadas pelos moradores pela falta d’água, eram presas fáceis para os bandidos armados. As carroças de mantimentos, enviadas pelo governo para as comunidades famintas, eram assaltadas com frequência. (NEVES, 2015, p. 83).

Outra expressão da “questão social” é a proliferação de doenças. Na grande seca de 1877-79, houve uma pandemia de varíola. A aglomeração dos retirantes combinada com as péssimas condições de higiene facilitou em muito a disseminação da doença. Rodolfo Teófilo (2011), farmacêutico que lutou bravamente contra diversas pandemias na capital do Estado, relatou o drama humano em seu já citado A fome:

As condições da população proporcionaram ao mal os meios seguros de um ataque súbito e terrível. A elevação da temperatura a 33º centígrados, a falta de vacina, o nenhum asseio nas habitações, a aglomeração dos emigrantes nos abarracamentos abriram mais o campo ao inimigo. E que repugnância tinham eles à vacina... Entre milhares, um ou outro entregava os braços ao médico para ser preservado do mal; mas quase todos fugiam espavoridos, dizendo a uma voz: - Deus me livre de meter a peste no corpo! (TEÓFILO, 2011, p. 243).

O dia 10 de dezembro de 1878 ficou conhecido como a “noite dos mil mortos” (1004 cadáveres). Nosso bravo sanitarista calculou em 80 mil o número de indivíduos infectados (NEVES, 2015).

Assim, o que em meados do século XIX poderia ser considerado como “questão social latente” passa, no início do século XX, a assumir o papel de determinação e expressão da “questão social”. Esta antiga raiz latente da “questão social” se impõe à pauta pública por meio desta ex-

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pressão particular.

É justamente o “fechamento” das terras úmidas21 às massas sertanejas e a entrada em período de estiagem, numa conjuntura de produção interna para abastecer o mercado externo, que podemos compreender o devir deste particular determinante da “questão social” no Ceará. Eis a origem do desespero do flagelo22 , da formação das favelas e periferias (tanto na capital cearense como, em parte, nas cidades do Norte e do Sudeste), como a formação de todo um proletariado rural e urbano, inclusive daquela fatia que não se fixou fora do interior do nordeste, que, até hoje, se desloca pelas estradas do país em busca de trabalho, cujas famílias continuam residindo no semiárido nordestino23 . Toda esta força de trabalho se colocou em movimento. A produção de algodão, no século XIX, é um marco no desenvolvimento socioeconômico do Ceará 24 . Seu

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A professora Cristina Nobre destaca, sem obliterar que grandes fazendeiros também possuíam terras nestas regiões (NOBRE, 2010), a importância das terras devolutas nestes períodos. Estas terras devolutas, que eram decisivas para evitar catástrofes sociais nos momentos de estiagem, se encontravam também em territórios úmidos: na Chapada do Araripe, no vale do Cariri e nas regiões serranas de Baturité, Meruoca e Serra Grande, assim como na Chapada do Araripe (NOBRE, 2010). O desenvolvimento da cotonicultura em território cearense, em função da necessidade da indústria europeia e dos conflitos no interior dos EUA, foi decisivo para o avanço das relações sociais capitalistas (propriedade privada) sobre as terras devolutas (de uso comum) (NOBRE, 2010).

22 Descrito em toda sua dramaticidade por Rodolfo Teófilo (2011) e pelos documentários indicados nas referências.

23 Fato perceptível para aqueles que frequentam as estações e linhas rodoviárias que interligam especialmente o nordeste e sudeste do país. Um proletariado que se põe em movimento, que, muitas vezes, não tem somente uma atividade profissional, mas que certamente não tem um local de trabalho fixo. São trabalhadores da construção civil e pesada, gente que trabalha na manutenção de fornos das indústrias, nas colheitas e plantios, na manutenção da rede elétrica, embarcado nas plataformas de petróleo. Um proletariado que não tem um local fixo de trabalho, mas tem num pedaço de chão no interior do nordeste uma casa para chamar de lar.

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A cotonicultura não representou apenas a modernização capitalista da agricultura cearense. Ela teve um papel fundamental em toda a economia do Ceará, possibilitou sua inserção destacada na economia Nordestina: “Aliás, a ausência de uma economia canavieira alijou o Ceará do processo histórico que envolveu o Nordeste da Zona da Mata, o ‘Nordeste Canavieiro’. O Ceará, com enorme superfície sertaneja, só vai despontar significativamente no contexto histórico do Nordeste a partir do interesse do mercado externo pelo algodão nordestino, especialmente o cearense de fibra longa.” (SILVA, 1992, p. 22). Por meio da cotonicultura, a produção cearense integra-se definitivamente à economia mundial (produção fabril inglesa), não mais se restringe a produzir, majoritariamente, de modo subsidiário para

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crescimento leva ao fechamento das terras relativamente úmidas (utilizadas pela massa sertaneja nas secas) e ao crescimento e fortalecimento da burguesia comercial situada em Fortaleza (não só por seu papel na exportação do produto, mas também porque financiou a própria produção)25 . Com a crise da produção, em 1870, em função do retorno das condições normais de produção nos EUA (fim da Guerra de Secessão, 1861-5), e da seca de 1877-79, a massa se encontra impedida de acessar as terras úmidas26 , a burguesia comercial atinge nova posição em relação aos proprietários de terras no que diz respeito ao poder político27 e o Estado passa a ser o responsável por oferecer respostas (não mais é possível aos senhores de terra manter as relações de apadrinhamento) a esta expressão particular (urgente e incontornável) da “questão social”: A partir daquele momento, as secas se inscreviam na história do Ceará não mais apenas como adversidades climáticas periódicas que alteravam o modo de viver dos sertanejos, mas passaram a gerar o flagelo de populações inteiras e provocaram inúmeros descontentamentos e formas diversas de conflitos sociais, desde manifestações religiosas, formação de grupos cangaceiros, até invasões e saques às cidades pelas levas de famintos. Esta última atender o consumo de carne de boi por outros estados (FARIAS, 2007).

25 É também neste momento histórico que Fortaleza desponta como a principal cidade do Estado: “A lavoura algodoeira, à proporção que se expandia, provocava a projeção de Fortaleza como centro urbano.” (SILVA, 1992, p. 22). Ela vence a “concorrência” das demais, torna-se o centro político e econômico. Vale destacar que o Ceará se torna independente da Capitania de Pernambuco apenas em 1799: “Fortaleza, a partir de então, intensifica a atividade exportadora de algodão. Esta atividade assume um papel de destaque para a Vila, constituindo a base de sustentação do grande empório comercial. Elevada a categoria de cidade em 1823 [...]” (SILVA, 1992, p. 23).

26 Que não restem dúvidas, a massa desprovida de meios de sobrevivência em períodos de estiagem é um fenômeno social do século XIX: “Até meados do século XIX, contudo, a irregularidade de chuvas que caracteriza o sertão não havia significado um problema tão grande para os setores dominantes. Pelo menos, as cidades e as instituições modernas do poder, estruturadas neste mesmo período, estavam a salvo das agruras da seca. As terras úmidas da periferia do semiárido, abundantes e pouco povoadas, podiam ser ocupadas pelos grupos de sertanejos que perdiam as suas colheitas de subsistência e também pelo gado dos grandes proprietários. O Piauí e o Cariri eram as áreas mais procuradas por estas migrações periódicas. Muitos grandes proprietários possuíam terras nestas áreas como ‘reserva’ para os tempos de escassez, quando o gado – bem mais valiosos – poderia estar protegido.” (NEVES, 2015, p. 77).

27 Na década de 1870, os fazendeiros se encontravam em posição subalterna em relação à burguesia comercial. Além do mais, aqueles estavam endividados (NEVES, 2015).

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manifestação social será recorrente durante todo o século XX, quando o Ceará viveu outras inúmeras secas. (NOBRE, 2010, p. 05).

O fechamento das terras úmidas foi determinante para que a seca se apresentasse como determinação e expressão da “questão social” no Ceará, a seca de 1877-79 foi seu marco. A análise da “questão social” no Ceará não pode ser compreendida, portanto, se não como resultante de um processo particular de desenvolvimento do capitalismo. Deste processo, surgiram as favelas, as migrações, a força de trabalho disponível em massa e diversos outros fenômenos (sem olvidar muitas outras determinantes particulares não tratadas neste texto) que marcaram a “questão social” no Brasil durante todo o século XX.

Considerações Finais

O estudo da “questão social” evidencia que o fechamento das terras úmidas tem um papel decisivo no seu surgimento. Sem que se compreenda o papel desta expropriação prévia das massas sertanejas não é possível alcançar a gênese da “questão social”. Os retirantes, a fome, a sede, a enorme mortandade, a migração para os centros urbanos do Sudeste e para a região amazônica, o crescimento exponencial de Fortaleza, a formação das favelas, enfim, boa parte das expressões da “questão social” que explicitam as condições de vida da massa que vive do trabalho tem sua origem neste ato prévio de expropriação que impossibilita que a reprodução social da vida possa ocorrer como antes.

O Serviço Social, como espaço também de produção de conhecimento, tem o que contribuir com o desvelamento da história. Suas categorias analíticas se constituem em preciosas ferramentas de análise que possibilitam compreender não somente as expressões da “questão social” como também sua origem. Como destaca Mota (2013) e Netto (2018, p. 152), dentre outros, o serviço social não se constitui apenas em profissão, inserida na divisão sociotécnica do trabalho, mas também em área de produção de conhecimento. O desenvolvimento teórico do serviço social lhe permite oferecer ao conjunto das ciências sociais e humanas novas chaves analíticas que possibilitam aproximações ainda mais precisas do real, representações ideais do real. O Serviço Social tem muito a dizer sobre a formação da “questão social” no Ceará, se constitui, como aqui

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foi demonstrado, em área de produção do conhecimento.

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A (RE)PRODUÇÃO SOCIAL DO ESPAÇO: CONTRIBUIÇÕES A PARTIR DA PERSPECTIVA INTERSECCIONAL1

Introdução

No processo de formação socioespacial brasileiro, a produção socioespacial tem sido marcada por profundas desigualdades atribuídas a uma herança colonial que se mantêm atrelada simbioticamente a tríade capitalismo-patriarcalismo-racismo, tendo suas raízes históricas fundadas na desapropriação capitalista da terra que transformou/converteu os meios de vida em capital por meio da expropriação, dominação, controle dos corpos, da identidade e da cultura, e das formas de apropriação e sociabilidade no espaço urbano.

Apoiado na propriedade privada do solo urbano, enquanto mercadoria, a produção social do espaço passa a ser marcada prioritariamente pelo sentido de realização do capital, servindo aos interesses do capital fundiário e imobiliário, expresso, por exemplo, através das empresas empreiteiras e das elites burguesas que a todo o momento asfixiam a locomoção, segregam o espaço físico e a utilização da cidade pelas classes subalternas. Neste sentido, o processo de urbanização provoca problemas complexos ao submeter à cidade inteira à uma lógica mercadológica – o que significa que, para usufruir de determinados atributos do lugar é preciso que se realize, antes de tudo, seu valor de troca.

Na jovem república ou no Brasil industrial, o acesso à cidade urbanizada só foi possível, em suma, para aqueles que pudessem pagar por ela, ou que tivessem um razoável poder de influência dentro da máquina pública. As relações de poder se estabeleciam no âmbito urbano por um lado, em torno do privilégio dado às elites no direcionamento dos recursos públicos e na construção de bairros de elite, e do outro pela exclusão que atingia invariavelmente a população urbana mais pobre. (FERREIRA, 2005, p.7).

É notório que as configurações engendradas pelo modo de produção capitalista do espaço impõem contradições que se expressam no 1DOI- 10.29388/978-65-81417-77-2-0-f.199-218

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cotidiano da vida social em um conjunto de desigualdades que se ampliam, alcançando um patamar elevado da produção de precárias condições de moradia e de vida. Esse quadro de precarização é evidenciado por Iamamoto e Carvalho (2014, p. 137), [...] parcela da população urbana vivia em condições angustiantes. Amontoam- se em bairros insalubres junto às aglomerações industriais, em casas infectadas, sendo muito frequente â carência –ou mesmo falta absoluta – de água, esgoto e luz [...] o poder aquisitivo dos salários é de tal forma ínfimo que para uma família média, mesmo com o trabalho extenuante da maioria de seus membros, a renda obtida fica em nível insuficiente para a subsistência.

O empobrecimento progressivo da população, o crescimento do padrão periférico urbano e as desigualdades no acesso à moradia digna são intensificados através da remoção/expulsão das áreas de especulação imobiliária, de revitalização e reestruturação urbana que não causaram apenas impactos sob as moradias coletivas, mas também e fundamentalmente sob os regramentos e disciplinamentos violentos, inclusive, dos usos e formas de ocupação dos espaços urbanos da cidade pelas mulheres. Entretanto, é importante evidenciar que esse processo não ocorreu sem conflitos, resistências e lutas sociais dos grupos subalternizados diante das virtualidades abertas ao devir da ação humana que caminham na direção contrária desta realidade capitalista que é hostil à grande parte da população brasileira.

Do ponto de vista da realidade estrutural e social, importa sinalizar algumas das consequências específicas da relação trinitária capitalismo, patriarcado e racismo na produção do espaço urbano: 1) a figura masculina, branca e elitizada, historicamente, vem impondo e definindo uma distribuição socioespacial desigual; 2) são as mulheres, principalmente, as mulheres negras; que ocupam a pior posição na estrutura social; 3) Segundo Franco et al. (2017), a maioria das mulheres ocupam os espaços de pobreza, marcados por ausência de políticas públicas de habitação, de infraestrutura urbana precárias e residem em habitações nas favelas e/ou em periferias distantes das áreas centrais em assentamentos clandestinos e irregulares; 4) são as mulheres negras que estão expostas de forma mais significativa às condições inadequadas e precárias de moradia.

Desde modo, pretende-se promover uma reflexão sobre a (re)pro -

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dução social do espaço urbano tendo como base o acúmulo teórico-metodológico da teoria marxista e feminista interseccional, buscando questionar a produção do espaço capitalista-patriarcal-racista, que privilegia o interesse da supremacia branca e reforça ideologias opressoras de gênero, raça e classe, mantendo e reproduzindo as relações sociais de dominação e exploração.

I. Redefinindo o debate da produção do espaço sob as lentes da perspectiva intersecional

O que há em um nome? O que é interseccionalidade? Qual a contribuição da interseccionalidade em seu duplo movimento, como perspectiva analítica e prática política, à análise da produção social do espaço urbano? Na contemporaneidade, a perspectiva interseccional é considerada uma das contribuições mais importantes para o campo dos estudos feministas, e, particularmente na realidade brasileira, se tornou fundamental aos estudos que assumem compromisso com o campo dos direitos humanos e da justiça social, buscando nomear e combater o sexismo, o racismo e a exploração de classe que, interseccionados, subordinam e põe em desvantagens as mulheres no âmbito da produção e reprodução social. Nas contribuições de Patrícia Hill Collins (2017), a autora demarca que a emergência das intersecções entre gênero, classe e raça foram formuladas no século XX, pelo movimento das feministas negras dos Estados Unidos ao assumir “[...] uma postura implicitamente interseccional em relação à emancipação de mulheres afro-americanas.” (COLLINS, 2017, p. 8), e, especificamente, na década 1990 o termo interseccionalidade é noticiado e nomeado no campo acadêmico. Portanto, para a autora o termo “[...] emergiu nos limites entre movimentos sociais e a academia.” (COLLINS, 2017, p. 11).

Partindo da leitura de sua emergência no campo dos movimentos sociais, Collins (2017) destaca que a interseccionalidade não é um projeto ou uma variante exclusivamente da teoria feminista, é muito mais ampla que isso, ela se propõe como uma política emancipatória que se realiza na prática concreta da vida cotidiana. Neste sentido, a autora ao lançar mão da noção de interseccionalidade, sinaliza que entender e perceber as variadas formas que se experimentam punições e privilégios de um

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sistema de opressão múltiplo é essencial para estar em condição de ver a necessidade de novas formas de pensamento e ação. No campo acadêmico, Collins (2017) destaca que a definição da interseccionalidade, enquanto conceito, teve significativo destaque a partir das contribuições da teórica Kimberlé Crenshaw. É propriamente no artigo publicado em 1989, Demarginalizing the Intersection of Race and Sex: A Black Feminist Critique of Antidiscrimination Doctrine, Feminist Theory and Antiracist Politics, e posteriormente, em 1991, através do artigo Mapping the Margins: Intersectionality, Identity Politics, and Violence against Women of Color, que Crenshaw apresenta, de maneira inaugural, o conceito de interseccionalidade em uma dimensão nacional e internacional. Deste modo, para a autora a interseccionalidade, [...] é uma conceituação do problema que busca capturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subordinação. Ela trata especificamente da forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras. Além disso, a interseccionalidade trata da forma como ações e políticas específicas geram opressões que fluem ao longo de tais eixos, constituindo aspectos dinâmicos ou ativos do desempoderamento. (CRENSHAW, 2002, p. 177)

Assim, para a autora, a partir de dois ou mais eixos de diferença em articulação é possível explicar como a matriz de opressão e de dominação criam desigualdades estruturais, e como “[...] interagem para moldar as múltiplas dimensões das experiências de empregação das mulheres negras.” (CRENSHAW, 2002, p. 179). A partir das suas contribuições, Crenshaw (2002, p. 183), lança luz à alguns desafios e recomendações, sinalizando que, “[...] se plantado em solo fértil, o protocolo sugerido pode constituir uma intervenção efetiva contra a invisibilidade da subordinação interseccional.”, isso porque também contém uma dimensão política que desafia as práticas discriminatórias que as posicionam em condições de vida bastante precárias.

No Brasil, as contribuições do conceito de interseccionalidade no âmbito acadêmico passaram a ser amplamente difundido na década de 2000. Dentre as várias autoras que se debruçam sobre o tema, Carla Akotirene (2019), em seu livro Interseccionalidade, destaca que a interseccionali-

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dade nos coloca na encruzilhada do feminismo negro, abrindo caminho a novas utopias e novas agendas feministas ao reposicionar sua luta contra as formas estruturais de uma sociedade que, historicamente, oculta ou naturalizada a violência, o racismo, o sexismo, a pobreza, buscando alcançar a “[...] liberdade, equidade, justiça social e democracia participativa [...]” (COLLINS, 2017, p. 7).

Partindo desses elementos, consideramos que a perspectiva interseccional nos permite a aproximação e a captura da complexidade e da contradição da vida urbana, ao desvelar, no conjunto das relações sociais, como a desigualdade, a segregação, a opressão e a violência marcam a vida cotidiana das mulheres que lutam pelo direto à cidade, à moradia, entre outros direitos que são essenciais para a reprodução social. Possibilita ainda, no campo da práxis política, criar estratégias de resistências e rupturas à lógica estruturadora capitalista, patriarcal e racista.

Portanto, como ponto de partida, é preciso compreender que o conjunto de opressões e desigualdades interseccionados não apenas atravessam a práticas socioespaciais, mas, acima de tudo, “[...] são, por princípio, elementos constituintes [...] estruturadores e dinamizadores das mesmas.” (GOUVEIA, 2005, p. 56). Para confrontar essa lógica patriarcal e produção capitalista do espaço, é preciso ponderar que o espaço urbano é “[...] central para a manutenção e a reprodução das relações sociais de dominação e exploração.” (ALVAREZ, 2019, p.4 98). Nesta perspectiva, a produção do espaço não emerge fora das relações sociais, do contrário, “[...] como produto social e histórico é fundamentalmente o lugar da reprodução da sociedade como um todo.” (PÁDUA, 2018, p.4 0).

Lefebvre (2006) afirma que sobre as exigências do modo de produção capitalista, tanto a produção do espaço quanto a produção da vida humana passam a ser subordinadas à lógica da acumulação capitalista, revelando as contradições do espaço entre a propriedade privada dos meios de produção e o caráter social das forças produtivas. Deste modo, o espaço, enquanto uma categoria histórica, adquire um novo sentido, aprofundando as contradições entre o processo de produção social do espaço e sua apropriação privada, fazendo surgir outras determinações como categorias indissociáveis e contraditórias: o valor de uso e troca, o sentido de habitar e habitat, apropriação e dominação, que estão na base

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da condição e meio de realização da vida cotidiana.

Isso significa que a égide do capitalismo, estrategicamente através da burguesia capitalista, força hegemônica e dominadora do espaço, entende-se que de um lado, o espaço é produzido e reproduzido enquanto mercadoria reprodutível, e do outro, assume a forma de consumo reduzindo-o a dominação, fragmentação, hierarquização e homogeneização, tanto do espaço quanto do indivíduo. Logo conclui-se que o espaço não é neutro, pelo contrário, contém uma dimensão política e ideológica por meio das forças capazes de intervir e de se apropriar do espaço para geri-lo e explorá-lo.

O espaço apropriado pela burguesia e organizado segundo as relações de produção capitalista preenche a vida cotidiana por relações sociais de dominação, exploração, opressão, violência e controle dos corpos se estendendo as relações de reprodução, como a família. Neste sentido, os signos da modernidade, a colonização da vida cotidiana, obviamente, pesa mais para as mulheres, pois nesta lógica “são ao mesmo tempo sujeitos na cotidianidade e vítima da vida cotidiana [...] são compradoras e consumidoras e mercadoria e símbolo da mercadoria” (ibidem, p.83).

Silvia Camurça (2012), em nosso corpo, nosso primeiro território!, sintetiza o que significa essa dupla relação (alvo estratégico do consumismo e mercadoria) do corpo feminino na globalização econômica: [...] pela mercantilização dos corpos femininos, a indústria da medicina estética mercantiliza e transforma em mercadoria as próprias mulheres. De consumidoras de produtos de beleza passamos a ser consumidas pela indústria que enriquece às custas dessa exploração. Vamos mais além, nosso corpo, nosso território, é também explorado pela indústria farmacêutica, que acumula milhões pelo consumo de remédios, dos quais nós mulheres somos as principais usuárias. Entre eles estão tranquilizantes, antidepressivos e afins, medicamentos que no final das contas apenas são paliativos, mas nos ajudam a enfrentar os efeitos e dores que a situação de opressão nos impõe ao longo da vida. Somos também exploradas pela indústria de turismo de massa: pela venda e mercantilização das mulheres negras, vendidas como mulatas, “produto de exportação”, ou a “mulher brasileira”, apresentada ao consumidor de turismo sexual como muito “caliente” e disponível. Explora-nos no trabalho sexual, mas nos explora também nos serviços hoteleiros, restaurantes e casas de diversão, mediante contratos de trabalho precários e

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desvalorizados. E ainda como “nativas” – indígenas ou não -, nas florestas, no pantanal ou nas praias do Nordeste e do Sul, sempre vendidas como prendas fáceis e disponíveis para a conquista do visitante. (CAMURÇA, 2012, p. 144-145).

Em complemento, como expõe Lefebvre (2006), no espaço abstrato, o espaço subsumido à forma valor, o corpo é representado de forma simbólica e concreta. Do corpo feminino em particular, mudado em valor de troca, signo de mercadorias e mercadoria ele próprio. Sendo assim, o corpo, como lugar da práxis social e como construção social é considerado o lugar direto de controle social através das relações de poder que combinam capitalismo, patriarcado e racismo, e é pelo corpo que a mulher é duplamente explorada, condição que vai além do trabalho e estende à vida social, controlando a sexualidade e fecundidade, as formas de usos do espaço – por exemplo, a casa e a rua, o espaço público e o espaço privado – e de construção de sociabilidade, de laços afetivos e de solidariedade.

Para Lefebvre (2006), essas são consequências históricas oriundas das sociedades que tem dado menos importância para as mulheres e que limitam a influência da feminilidade a uma pequena parte do espaço voltado a reprodução da vida. Assim, subjugada ao princípio macho, masculino e viril, as mulheres permanecem invisibilizadas diante de uma ditadura do espaço dominante. Lefebvre (2006, p. 14) então questiona: “[...] de onde vêm as diferenças? Como acontece de as sociedades chegarem a estatutos diversos, a expressão e formulação variadas do princípio masculino e de sua dominante?”

Nas análises realizadas por Lefebvre (2006, p. 11) podemos verificar que, historicamente, essas diferenças não são produzidas apenas por causa do capitalismo, mas pelo patriarcado – ambos dominam “[...] o solo, os bens, as crianças, os servidores e os escravos, as mulheres, introduz a abstração e a supõe [...]” – e concede privilégios masculinos, como a dominação e o poder. Neste sentido, o autor reconhece e afirma que o espaço é marcado pela predominância masculina, cuja consequência foi produzir um espaço dominador, repressivo e opressivo, que controla e produz diferenças em todos os níveis da vida, seja público ou privado.

O espaço foi marcado e mais do que marcado: formado pela predominância macha (combatente, violenta, militar) ela própria

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valorizada pelas virtudes ditas viris, difundidas pelas normas inerentes ao espaço dominado-dominante [...] as virtudes masculinas que produziram o espaço dominador, sabemos bastante, chegaram à privação generalizada: da propriedade “privada” à grande castração. (LEFEBVRE, 2006, p. 5).

Podemos inferir que o espaço abstrato, repressivo por essência e por excelência, apropriado e produzido pela supremacia branca masculina representa a sociedade terrorista – marcada por um jogo complexo de repressão, persuasão, opressão, violência e de apropriação “[...] que preenche a história da vida cotidiana [...]” (LEFEBVRE, 1991, p. 156) –, que é caracterizada por suas contradições, desigualdades, que tendem a controlar o espaço se estendendo a todos os níveis da vida e, em particular, subordina as mulheres, associada à fragilidade e disponibilidade permanente. Portanto, se configura por definição, “[...] a origem da opressão de gênero [...] está entranhado em sua própria estrutura.” (ARRUZZA, 2019, p. 51).

Segundo Lefebvre (1991, p. 156-157), se existe tal sociedade é porque a repressão é uma construção social que ao longo do tempo-espaço exerce relações de poder e opressão para além dos mecanismos institucionais se estendendo a todos os níveis da vida cotidiana, “[...] até mesmo a vida sexual e afetiva, a vida privada e familiar.”. Assim, caracterizada por manter-se pelo uso da persuasão (ideologia) e da opressão, a sociedade terrorista, no mundo moderno, instaura uma estrutura social, econômica, política e cultural que normaliza e naturaliza a violência nas relações de produção e reprodução do urbano.

Deste modo, conforme afirma Lefebvre (1991, p. 162) “[...] a falta de habitação faz parte do terrorismo [...]”. Isso porque, a realização da violência estrutural da reprodução do capital se expressa no e pelo espaço por meio da acumulação capitalista, expropriação e capitalização da renda da terra que se desdobram no processo de urbanização fundada na propriedade privada capitalista e na privatização de bens, equipamentos, infraestruturas e serviços públicos. Portanto, a produção do espaço urbano não escapa a esta lógica, “[...] como meio, condição e produto da reprodução da vida e do capitalismo também é – e fundamentalmente o é – reprodução da violência.” (PETRELLA; PRIETO, 2020, p. 577).

Todavia, Lefebvre (2006) destaca que é inevitável que diante desse

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tipo de sociedade haja revoltas e revanches da feminilidade em busca de se apropriar do espaço protagonizando e produzindo formas de uso do espaço que possibilite construir de uma vida possível de ser vivida – um espaço diferencial que “[...] se opõe à produção de um espaço homogêneo, fragmentado e hierarquizado e que contempla o uso como ponto de partida, ou seja, considerando o vivido enquanto obra que incorpora a utopia.” (CARLOS, 2018, p. 21). Mas, para que isso ocorra, seria necessária uma revolução urbana em sua totalidade, levando em consideração os aspectos econômicos, políticos e culturais articulados a uma reforma e revolução sexual, ou seja, “[...] que a sociedade repressiva e terrorista sexual sejam rechaçados e abatidos por todos os meios da teoria e da práxis.” (LEFEBVRE, 1991, p. 215).

Nesta direção, Lefebvre (2006) tece a seguinte questão: abater a sociedade repressiva e terrorista significa destruir um espaço fálico (próprio ao masculino – simbolizando a força, a fecundidade macha, a violência masculina) e o substituir por um espaço uterino? Certamente que não. Recorrendo a bell hooks (2019, p. 30), no livro O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras, a autora expõe que o feminismo é um movimento para acabar com sexismo, exploração sexista e opressão, definição que não implícita os homens como inimigos. Sendo enfática, afirma que o feminismo não é anti-homem, e que a “[...] conscientização feminista para homens é tão essencial para o movimento revolucionário quanto os grupos para mulheres.”. Portanto, para que haja transformação e revolução é preciso questionar o patriarcado e à dominação capitalista e racista, inclusive sua internalização nas mulheres.

Deste modo, importa ressaltar que um dos pontos determinantes para o processo de transformação societária é a luta pelo reconhecimento como cidadãs e pela apropriação igualitária do espaço em torno da reprodução social, diante da histórica e desigual divisão sexual, racial e de classe do espaço: espaço público como masculino, espaço doméstico como feminino, espaços mais valorizados e equipados por serviços públicos para a classe dominante, espaços segregados, espoliados, desvalorizados e distantes das áreas centrais, para a classe trabalhadora e subalterna.

Portanto, afirma-se que esse tem sido o horizonte de luta perseguido pelo movimento feminista em suas diversas vertentes, notadamen-

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te do feminismo negro. Através de revoltas, revanches e resistência, as mulheres têm protagonizando a luta urbana pelo direito à cidade e pelo direito à moradia, colocando o seu corpo inteiro na luta por meio de um ato performático em disputa pela apropriação do espaço, seja público ou privado, denunciando as desigualdades estruturais em que a figura masculina é reconhecida como produtor e dominador do espaço, e as precárias condições de vida que enfrentam cotidianamente em decorrência do machismo, sexismo e racismo.

II. Entre a força histórica da segregação urbana e as possibilidades da (re)apropriação do espaço

A segregação urbana não é um fenômeno novo, sempre foi uma característica comum das cidades brasileiras, entretanto, conforme aponta Carlos (2018), no cenário moderno essa forma de vida urbana alcança novas magnitudes que é imposta pelas feições renovadas de acumulação do capital que invadem a vida cotidiana. Neste sentido, como expressão da colonização do cotidiano pela produção capitalista, a segregação corresponde as contradições que se manifestam como desigualdades, não apenas de classe, mas também de raça e gênero produzidos no espaço urbano.

Neste sentido, a produção capitalista do espaço organizada por meio da dominação, exploração e hierarquização “[...] estipula a segregação (para alguns) e a integração para outros [...]” (LEFEBVRE, 2006, p. 40), que explodem no nível da vida cotidiana impondo um novo padrão de diferenciação social, separação e fragmentação no espaço urbano. Portanto, [...] a segregação assim redimensionada aparece com um duplo papel, o de ser um meio de manutenção dos privilégios por parte da classe dominante e o de um meio de controle social por esta mesma classe sobre outros grupos sociais, especialmente a classe operária e o exército industrial de reserva. Este controle está diretamente vinculado à necessidade de se manter grupos sociais desempenhado determinados papeis que lhes são destinados dentro da divisão social do trabalho, papeis que implicam em relações antagônicas de classe, papeis impostos pela classe dominante que precisa controlar um grande segmento da sociedade, não apenas no presente, mas também no futuro, pois se torna necessário que se reproduzam as relações

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sociais de produção. (CORREA, 1999, p. 64).

Assim, a segregação revela novas contradições, conflitos e desigualdades no espaço urbano mercantilizado, “[...] transformando o espaço em raridade, em função da existência da propriedade privada do solo urbano [...]” (CARLOS, 2017, p. 73) e como condição necessária a reprodução ampliada do capital. Mas, a partir das práticas segregadas de produção do espaço, quem habita uma dada localização do território não o faz a partir apenas do espaço, mas também de uma determinada experiência do tempo que Lefebvre denominará como um tempo imposto. Por exemplo, um tempo imposto se expressa no tempo retido pelos deslocamentos para percorrer distâncias que separam os territórios onde se processam as práticas cotidianas, como os territórios do trabalho, do estudo e da moradia. Tais deslocamentos, que precisam ser realizados diariamente e com longos tempos imobilizados pelos engarrafamentos, pela insuficiência ou baixa qualidade dos meios de transporte.

Segundo Pádua (2011, p. 135), o novo conteúdo da segregação nos permite situá-la em dois sentidos que detêm unidade dialética entre si: como resultado e como processo que “[...] se realiza no dia-a-dia, na vida cotidiana; como conteúdo, como espaços/momentos de privação e de perda do uso diante do processo avassalador.”. Temos, no primeiro sentido, a intrínseca relação da segregação com a colonização capitalista, onde o espaço é reproduzido como mercadoria estendendo-se a todas as dimensões da vida cotidiana; o segundo, resulta na “[...] deterioração das condições de vida, a ausência do direito, as situações de exclusão, o aprofundamento da realidade mercantil que molda comportamentos, a abstração concreta do mundo da mercadoria e de suas formas arbitrárias.” (CARLOS, 2018, p. 31).

Para compreendermos como a segregação se materializa no espaço urbano contemporâneo, partirmos da exemplificação dada por Rolnik (1995, p. 40), “[...] é como se a cidade fosse uma imenso quebra-cabeça, feita de peças diferenciadas onde cada qual conhece seu lugar e se sente estrangeiro nos demais.”. Portanto, para a autora, o fundamento da segregação está assentado na existência da propriedade privada do solo urbano, na repartição e fragmentação da cidade em pedaços para compra e venda de determinados lugares de realização da vida, repartida por mu-

ros visíveis e invisíveis que se manifesta desde os condomínios fechados à separação dos locais de trabalho e de moradia, tendo claro recorte de classe, raça ou faixa etária.

Diante do exposto, para Campos (2012, p. 98-100), “[...] o estigma, a discriminação, o preconceito criam impactos negativos na apropriação do espaço urbano e na vida da população pobre.”, revelando que a dimensão étnico-racial da segregação socioespacial se expressa para além da questão econômica. Deste modo, o processo de “apartheid social e racial”, sob a égide do capitalismo assume, então, novas dimensões espaciais, na qual a segregação é compreendida como “[...] a mais importante manifestação espacial urbana da desigualdade que impera em nossa sociedade.” (VILLAÇA, 2011, p. 37).

Segundo Correia, Coelho e Salles (2018), a sociedade moderna após a abolição é marcada por um conjunto de ações que mantém privilégios, naturaliza e reforça a exploração e opressões de gênero, raça e classe, em decorrência do desenvolvimento das cidades conformada e pensada por homens, brancos, cis, heterossexuais, de renda média/alta. Para as autoras, esse padrão de sociedade capitalista-patriarcal-racista é um dos grandes responsáveis pela segregação socioespacial e exclusão social, que se traduz hoje na marginalização, periferização e criminalização das populações de baixa renda levando a associação entre população pobre, negra, moradora de territórios mais precários e vulneráveis à desigualdades social e urbana - como as favelas, loteamentos e conjuntos habitacionais populares – como segmento social suspeito e necessário de ser contido, junto com o seu território de moradia, pela ação violenta das forças de segurança do Estado.

Deste modo, a segregação socioespacial evidencia, no plano do vivido, diferenças traduzidas como desigualdades no acesso de determinados grupos à cidade através do acesso diferenciado à habitação e se expande aos demais lugares de realização da vida urbana. Portanto, se as formas de apropriação da cidade e do acesso à moradia são atravessadas por relações sociais desiguais, as relações de poder/dominação masculina e a mercantilização do espaço urbano também expressarão, sob mediações específicas, as desigualdades entre homens e mulheres, que são visíveis no plano da localização:

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[...] espaço doméstico, nos conjuntos habitacionais e loteamentos periféricos, nas favelas. Entre seus efeitos podemos destacar: isolamento no espaço público (nos bairros) e privado (em casa), restrição/controle sobre o direito de ir e vir (vigilância e moralidade; dificuldade de acesso ao transporte público e andar a pé como “alternativa”), vulnerabilidade física e psicológica (assédio, violência doméstica e urbana, depressão). (FRANCO et al., 2017, p. 10-11).

A partir desses elementos verifica-se que o processo de segregação urbana impõe uma lógica perversa as mulheres nas relações sociais de reprodução da vida cotidiana que tem consequência específica em relação aos homens. Isso porque as desigualdades urbanas decorrentes da segregação “[...] estão ligadas à lógica de dominação do espaço urbano [...]” (BRANDÃO, 2008, p. 16), delimitando, normatizando e/ou mesmo naturalizando os lugares que determinados grupos ocupam na cidade, que são, em sua maioria, em bairros precários, distantes dos locais de trabalho, sem infraestrutura urbana, saneamento ambiental, serviços e equipamentos públicos. Neste sentido, como destaca Rolnik (2015, p. 15), [...] as mulheres são mais afetadas que os homens quando estes serviços não estão disponíveis porque são elas que dedicam mais tempo às tarefas domésticas, mesmo quando trabalham fora de casa. Em muitas comunidades onde falta água, por exemplo, são as mulheres que caminham vários quilômetros diariamente carregando baldes ou latas. São elas também que dedicam várias horas de seus dias para levar filhos à escola ou idosos a postos de saúde. A ausência destes e de outros itens, portanto, reduz o tempo disponível das mulheres para se dedicarem a outras atividades que garantam sua independência, além de impor maior desgaste físico, afetando sua saúde.

Esses elementos somados a muitos outros revelam a precarização da vida das mulheres na cidade, marcadas pelo descaso do poder público, pelas expropriações e explorações cotidianas e das constantes violações de direitos. As mulheres pobres e negras que foram invisibilizadas nos diferentes espaços público ou privado, mesmo diante das suas lutas e resistências, continuam experimentando a segregação no cotidiano a partir de múltiplas opressões que se interseccionam afetando todos os âmbitos da vida.

Diante dessas condições, fica óbvio quais são as vidas que interessam para o Estado garantir o acesso à moradia adequada, e aquelas que

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são abandonadas à sua própria sorte, nas autoconstruções e diferentes formas de sobrevivência em condições precárias. Deste modo, o processo de segregação urbana faz repetir a história sob novas feições mantendo privilégios que interferem no modo de vida, moradia e apropriação do direito à cidade, aprofundando as desigualdades nas relações de gênero, raça e classe, sobretudo, por operar na lógica da estrutura da necropolítica neoliberal – que reside no poder e capacidade do Estado em “[...] ditar quem pode viver quem deve morrer [...]” (MBEMBE, 2018, p. 5) e, no caso da segregação urbana, se realiza por meio de remoções violentas, expulsões e de um conjunto de políticas públicas que não asseguram condições de vida e de acesso à moradia adequada, em especial ao impor os lugares simbólicos racistas que a população pobre e negra ocupará na cidade.

Diante dessa realidade, o que não falta são relatos, dos mais perversos, sobre o que é ser mulher, negra e pobre, mas também uma narrativa de resistências e de luta pela construção de uma subjetividade política e radical que confrontam o racismo e o sexismo. Carolina Maria de Jesus, por exemplo, que tinha muito a dizer da sua vida e obra, especialmente, em o quarto de despejo: diário de uma favelada (1960), provocou a compreensão complexa e crítica, por meio de uma “Literatura Marginal”, sobre o que é ser uma mulher negra, responsável pela unidade familiar, pobre e moradora da favela que reinventa um cotidiano marcado pela espoliação e segregação urbana, pela fome, pela miséria e pela invisibilidade do território favelado e do corpo negro.

A indignação reside em constatar que, desde o quarto de despejo, publicado em 1960, o processo de segregação e de desigualdades continuam a se reproduzir indefinidamente na história urbana capitalista, e as mulheres negras continuam sendo as mais afetadas. Isso porque, considerando que a população brasileira é, predominantemente, feminina, negra e pobre, acaba sendo inevitável que o conjunto de consequências de uma formação territorial supremacia branca capitalista não recaia com mais intensidade sobre este público.

Lélia Gonzalez (2019) na obra Racismo e Sexismo na cultura brasileira, levanta a seguinte indagação: Por que será que acha natural que o lugar do negro seja nas favelas, nos cortiços e alagados? Obviamente, o sentido da

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questão é problematizar e criticar a naturalização da divisão social, racial e sexual do espaço como uma realidade experimentada há longos anos que, atrelada ao mito da democracia racial, define o lugar dos dominadores e dos trabalhadores pobres e negros subalternizados.

Para a autora, é inaceitável tratar com naturalidade que os dominadores ocupam as áreas mais valorizadas, seja no campo ou na cidade, com moradias belas e saudáveis e, do outro lado, os dominados enfrentam desde “[...] da senzala às favelas, cortiços, invasões, alagados e conjuntos habitacionais [...]” (GONZALEZ, 2019, p. 246) as mais precárias condições de vida em sua totalidade, que são acentuadas quando se referem às mulheres negras.

O Dossiê sobre a Situação dos Direitos Humanos das Mulheres Negras no Brasil (2016) aponta que as mulheres negras representam o principal grupo em situação de pobreza, são a maioria em precárias condições habitacionais e as mais afetadas pelo déficit brasileiro em saneamento básico (sem acesso a água encanada, esgotamento sanitário e coleta regular de lixo. Esse quadro expressivo transborda racismo e, ao mesmo tempo, denuncia que as políticas urbanas implantadas tem sido pouco eficientes na alteração das desigualdades no acesso aos serviços públicos essenciais à reprodução da vida.

Do exposto até aqui, é importante reconhecer que a luta das mulheres, atravessa séculos de enfrentamentos às precárias condições de vida protagonizando a luta para tornar comuns os bens materiais de reprodução da vida bem como contra uma nova ordem patriarcal indissociável do sistema capitalista de produção e do seu fundamento na propriedade da terra e no trabalho livre que, ainda na contemporaneidade – estágio do capitalismo em que há uma globalização mercantil e privatização generalizada – continua a se reproduzir de forma ampliada.

A luta das mulheres é inevitável diante da ampliação perversa do capital sobre os bens comuns necessários à reprodução da vida, pois todas as consequências deste sistema, principalmente, as privatizações, recaem com mais peso sobre as mulheres aprofundando as condições precárias da vida cotidiana. Portanto, podemos identificar que a pauta comum está em garantir uma vida possível de ser vivida, com acesso à moradia digna e à cidade sem opressão, exploração e violência dos seus

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corpos e de sua família.

Considerações Finais

Eleger a perspectiva interseccional proporcionou desvelar como as diferentes faces das desigualdades e das opressões persistem em atravessar as relações sociais de gênero, raça e classe. Mais que desvelar as diversas opressões e desigualdades que condicionam as mulheres a uma vida precária, a perspectiva interseccional permite como uma ferramenta teórica e prática política contribuir tanto na análise do conjunto de opressões estruturais relacionadas a privilégios e vantagens, quanto na importância de construir novas formas de sociabilidade mais humana, justa e igualitária por meio de uma política emancipatória. Portanto, podemos considerar que a perspectiva interseccional é indispensável para “[...] descortinar as desigualdades e opressões que estruturam a nossa sociedade a fim de buscarmos a sua superação e transformação.” (PASSOS; NOGUEIRA, 2018, p. 490).

Portanto, diante das precárias condições de vida e habitabilidade vivenciadas por diferenciados grupos de mulheres, um dos desafios é enfrentar o atual cenário, travar lutas em defesa da permanência dos direitos sociais e políticos conquistados pelas mulheres e estabelecer relações de resistências coletivas contra a normatização e instrumentalização do espaço da vida cotidiana. É preciso erguer a voz e escrever sobre o direito das mulheres à moradia e a cidade, evidenciando a sua importância sem cair na armadilha de reproduzir o papel tradicional da mulher condicionados pela relação família/reprodução/cuidado, sobretudo, considerar a necessidade do reconhecimento de sua relação simbiótica e interseccionada e do significativo papel que as mulheres têm na reconstrução do tecido da organização social e de mobilizações sociais por seus direitos em todas as esferas, almejando a construção de um outro espaço vivido.

Mesmo diante dos profundos retrocessos no acesso aos direitos básicos, é importante evidenciar que há as subversões à lógica. A noção de apropriação significa retomar o sentido pleno da vida cotidiana, resgatar a festa reencontrada nas ruas, nos diversos movimentos sociais, é conduzir o pensamento para uma prática revolucionária que subverta a lógica dominadora e opressora do espaço realizada por meio da disputa

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antagônica pela apropriação hegemônica do espaço. E é na vida cotidiana que a restituição da obra e o sentido da obra se tornam possíveis, “[...] exatamente porque a expropriação atinge o seio da reprodução da vida na escala da vida cotidiana, alcança os limites da sobrevivência.” (RIBEIRO, 2018, p. 54).

Assim, a apropriação coletiva dos bens comuns exige “[...] a luta pelo espaço como eixo central na construção de uma nova práxis [...] a resistência, considerada uma prática socioespacial, torna-se obrigatória.” (RIBEIRO, 2018, p. 54). Em um contexto em que os sistemas da supremacia branca estão intactos e se perpetuam, a resistência torna-se uma brecha dentro da cotidianidade para aqueles que lutam no e pelo espaço para continuar a serem habitantes do lugar, portanto, “[...] a resistência emerge como sobrevivência [...]” (RIBEIRO, 2018, p. 56), e surge em diversas formas.

Por fim, o cenário atual do Brasil nos coloca a tarefa de repensar e levar em consideração uma pauta ampla e plural, feminista, antirracista e anticapitalista para que possa “[...] contribuir para o alargamento dos sentidos de democracia, igualdade e justiça social, noções sobre as quais gênero e raça impõem-se como parâmetros inegociáveis para a construção do novo mundo.” (CARNEIRO, 2019, p. 288). Assim, espera-se ter contribuído para a compreensão de que a questão do acesso à terra, à moradia e à cidade não pode ser uma pauta secundária nos diversos movimentos sociais, mas, também, deve ser analisada, pesquisada, desejada e construída a partir de uma perspectiva teórica e política interseccional.

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A ZONA OESTE COMO EIXO DE EXPANSÃO URBANA

PARA HABITAÇÃO DE INTERESSE SOCIAL NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO: CONSIDERAÇÕES A PARTIR DA VIDA COTIDIANA DOS MORADORES DO PROGRAMA MINHA CASA MINHA VIDA EM SENADOR CAMARÁ1

Introdução

O presente artigo abordou a zona oeste da cidade do Rio de Janeiro como eixo de expansão urbana para habitação de interesse social a partir das considerações do Programa Minha Casa Minha Vida- PMCMV, em Senador Camará. A relevância do tema surgiu a partir das inquietações do cotidiano de atuação profissional pela Prefeitura Municipal da Cidade do Rio de Janeiro como Assistente Social na etapa pós-ocupação (etapa essa em que os moradores já residem nas unidades habitacionais) do PMCMV nos condomínios Destri (moradores oriundos via sorteio) e Speranza (moradores oriundos via assentamento), tendo como recorte temporal o período de 2011 a 2013.

O presente artigo fez a opção pelo método materialista dialético de Marx, por se propor a ir além da realidade apresentada buscando desvendar as diversas contradições que se encontram para além das aparências fenomênicas, sem negá-las como dimensão do real. Dentro da tradição marxista, a dissertação elegeu as contribuições de Harvey e Lefebvre enquanto pensadores que defendem o espaço como dimensão estruturada da realidade social e o analisam a partir do pensamento de Marx, autores estes os quais o grupo de pesquisa UrbanoSS - Grupo de Estudos e Pesquisas Marxistas-Lefebvrianos sobre Espaço Urbano, Vida Cotidiana e Serviço Social se debruça em pesquisa.

Importante salientar que minha investigação e posterior análise foram mediadas pela minha experiência e convivência profissional junto

1DOI- 10.29388/978-65-81417-77-2-0-f.219-240

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aos moradores a partir de diversas situações em ambos os empreendimentos, pois nosso trabalho acontecia no local de residência dessas pessoas; ou seja, eu estava imersa na vida cotidiana dos moradores desses dois condomínios.

I. Do Sertão Carioca a Zona Oeste

A cidade do Rio de Janeiro sofreu um processo de urbanização intenso, sobretudo na zona oeste, a qual possuía características rurais até mesmo por volta de 1970. Contudo, a expansão da malha viária, do crescimento demográfico e a descentralização da atividade produtiva, permitiu uma progressiva expansão da cidade em direção as suas áreas periféricas.

A zona oeste, chamada então de “sertão carioca” 2 pelo pesquisador e escritor Magalhães Corrêa, no livro de mesmo nome sobre Jacarepaguá, desde seu início foi uma terra de latifúndios, de senhores e senhoras de engenho e fazendas, cujos limites, muitas vezes imprecisos, davam origem a conflitos.

Em 1673, é criada a Freguesia de Campo Grande, denominação atribuída no período do sistema de Sesmarias. A mesma era dotada de variados tipos de solo, o que favorecia diversos usos e distintas lavouras, estando sob o controle dos Jesuítas. Atualmente, não mais chamada de Freguesia de Campo Grande, mas sim de zona oeste, estão incluídos os bairros de Deodoro, Realengo, Padre Miguel, Bangu, Senador Camará, Campo Grande, Santíssimo, Inhoaíba e Cosmos.

Importante destacar que os Jesuítas tiveram um papel importante na cidade do Rio de Janeiro e também na zona oeste, sendo os principais responsáveis pelo desenvolvimento da engenharia como a construção de estradas, pontes, canais de irrigação, contenção de encostas e barragens para a prevenção de cheias, além da abertura de canais e a construção de diques e pontes para a regularização do rio Guandu. Os mesmos foram expulsos em 1759 por ordem do Marquês de Pombal e todas as suas propriedades foram confiscadas pela Coroa Portuguesa.

A região da zona oeste, passa a se integrar de fato à cidade do Rio de Janeiro, com os limites de hoje, a partir do Ato Adicional de 1834, que

2 Sertão era a terra que ficava ao longe e começava no limite suburbano das cidades e vilas, nos lugares por onde passavam afastados lagos, rios, florestas espessas, vales cercados por montanhas. Era o desconhecido.

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criava o Município Neutro ou da Corte, o que na prática separava a capital da Província do Rio de Janeiro. Com a Proclamação da República, a região se tornou a zona rural do Distrito Federal, até que em 1960, com a transferência da capital para Brasília, ela passa a ser a zona oeste da cidade do Rio de Janeiro passando por diversas transformações e tendo como principais eixos de expansão: a chegada da malha ferroviária, das fábricas, dos setores de serviço militar, além da remoção de diversas favelas.

A partir da década de 60, no governo de Carlos Frederico Werneck Lacerda( 1960-1965), dá-se o início do programa de remoção das favelas e reassentamento de famílias faveladas em projeto que ora reurbanizava e recuperava algumas favelas, ora determinava a remoção para áreas próximas dos empregos e/ou para regiões servidas por linhas de transporte ou trem; ocasionando protestos e descontentamentos por parte dos moradores removidos além do surgimento de conjuntos habitacionais na zona norte e zona oeste da cidade.

Por meio do Decreto de nº 263 de 29 de dezembro de 1962, é criada a Companhia Estadual de Habitação do Rio de Janeiro - CEHAB3 , com o objetivo de desenvolver a política habitacional e principalmente a erradicação de favelas, iniciando suas atividades com a construção de grandes conjuntos: Vila Aliança, em Bangu (com 2.183 unidades), Vila Esperança, em Vigário Geral (464 unidades) e Vila Kenedy em Senador Camará. Juntos, os três receberam 37 mil moradores (dos 42 mil removidos por Lacerda), vindos de 32 favelas erradicadas parcial ou totalmente.

A zona oeste, dessa forma, se transforma em um dos vetores de expansão da cidade para assentamento da população de baixa renda, recebendo camadas da população de outros bairros oriundos dos diversos processos de remoção de favelas existentes, passando a exercer um papel importante no processo de ocupação e urbanização dessa parte da cidade. Senador Camará

Após a Proclamação da República no Brasil, o atual bairro de Senador Camará permaneceu o mesmo desde 1870 até 1920. De acordo com o censo demográfico de 1872, a população na região de influência da paróquia de Nossa Senhora de Campo Grande, que incluía Senador Camará, era de 9.686 almas. Desse total, 6.882 eram

3 Maiores informações sobre a Companhia Estadual de Habitação do Rio de Janeiro. Disponível em: http://www.cehab.rj.gov.br/empresa/. Acesso em: 13 maio 2021.

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livres e 2.804 eram escravos. Homens eram 4.797 e mulheres 4.889. Na região, grande parte da economia ainda era voltada para o cultivo de café, laranja, mandioca, frutas diversas e outros cultiváveis, além da criação de animais.4

O bairro de Senador Camará surge no final do século XIX, a partir da fragmentação da Fazenda dos Coqueiros, atual favela da Coréia), e da Fazenda do Viegas (onde encontra-se o condomínio do MCMV e o sub bairro Jabour), sendo as famílias Viegas, Antunes Suzano e Barcelos Domingues seus primeiros fundadores.

A Fazenda do Viegas, foi sede do antigo Engenho da Lapa, fundado pelo colonizador Manuel de Souza Viegas, além de ter sido uma importante produtora de cana de açúcar e de aguardente, sendo considerada a segunda em importância na freguesia de Campo Grande; até que na virada para o século XIX começou a se destacar na produção de café. Suas lavouras se estendiam até o Lameirão (atual bairro do Santíssimo) e a Serra do Viegas, sendo atravessada pela Estrada Real de Santa Cruz (atual Avenida de Santa Cruz).

O último membro da família Viegas a ser proprietário da fazenda foi Francisco Viegas de Azevedo Teles Barreto, sendo depois vendida para a família Antunes Suzano, tendo como proprietário o Barão de Campo Grande. Na década de 1930, a antiga fazenda foi vendida em parcelas à Construtora Imobiliária Bangu, a qual loteou e urbanizou terrenos para o lado de Senador Camará, ao longo da Avenida de Santa Cruz e Estrada do Viegas, com grande parte de suas terras sendo vendidas aos irmãos Jabour, donos na época da maior exportadora de café do Brasil. No que tange a Fazenda dos Coqueiros, em 1720 o então capitão Manuel Antunes Suzano recebeu uma Sesmaria na Freguesia de Nossa Senhora do Desterro de Campo Grande, fundando assim a então Fazenda dos Coqueiros e a do Lameirão. Após a Abolição da Escravatura e com a Proclamação da República, a fazenda foi desmembrada por meio de lotes entre os herdeiros de Manuel Antunes Suzano, seus escravos e moradores/posseiros que trabalhavam para a família. Com o passar do tempo, diversas disputas envolvendo políticos, polícia, grileiros e muita

4 Blog Café com laranja, o qual relata o processo histórico de construção do bairro de Senador Camará. Disponível em: https://cafecomlaranja.wixsite.com/cafecomlaranja/ do-fim-do-imperio-a-republica-atual. Acesso em: 13 maio 2021.

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violência fez parte do processo de ocupação desse terreno. Atualmente com uma população de aproximadamente 2.614.728 de moradores, a zona oeste da cidade correspondente a 41% do total da população carioca, distribuída por aproximadamente 40 bairros, que representam 70% da área territorial do município. No que tange a população, Senador Camará é composta de uma população de 105.515 mil pessoas, destas 55.093 mil mulheres e 50.422 mil homens; com uma variação de crescimento de média anual de 0,5 % (IBGE, Censo 2010).

II. A (re)produção desigual do espaço urbano: uma análise a partir da vida cotidiana dos moradores do PMCMV no bairro de Senador Camará

O território também representa o chão do exercício da cidadania, pois cidadania significa vida ativa no território, onde se concretizam as relações sociais, as relações de vizinhança e solidariedade, as relações de poder. É no território que as desigualdades sociais tornam-se evidentes entre os cidadãos, as condições de vida entre moradores de uma mesma cidade mostram-se diferenciadas, a presença\ausência dos serviços públicos se faz sentir e a qualidade destes mesmos serviços apresentam-se iguais. (KOGA, 2011, p. 33).

Segundo KOGA (2011), a noção de território ultrapassa o campo da geografia, sendo também utilizada pelas ciências sociais, políticas e econômicas. Assim, a noção de território se constrói a partir da relação entre o território e as pessoas que dele se utilizam, pela mediação da vida cotidiana que articula diferentes escalas da ação social e do espaço, no lugar.

O conceito de território, para Milton Santos, não é organizado somente pelo Estado, como também não está restrito às dimensões normativas e legais que delimitam fronteiras físicas, relações de poder e hierarquia entre porções do território, governos e mecanismos de gestão e planejamento do Estado. Há também o uso e apropriação do território por outros agentes, englobando relações sociais, econômicas e simbólicas, além das tensões e contradições dessas relações.

A discussão do conceito de território usado em Milton Santos terá como ponto de partida a realidade vivida por mim, enquanto uma agente do Estado experenciando a Política de Habitação por meio do PMCMV,

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inserida no território de Senador Camará, por meio da relação e da participação na vida cotidiana dos moradores; cotidiano este que para Lefebvre é o lugar onde as relações sociais acontecem em seus mais variados aspectos e sentidos.

O cotidiano é um conceito chave em Lefebvre5 , pois é na esfera do cotidiano que as relações sociais acontecem em seus mais variados aspectos e sentidos. A vida cotidiana se realiza de uma forma concreta a partir de um conjunto de relações que contemplam diversas ações que acontecem em espaços (a casa e a rua), em tempos determinados, onde as pessoas com sua corporeidade, sensualidade, sensibilidade, imaginação, pensamentos e ideologias, relacionam-se entre si por meio de suas atividades e práticas.

O conceito de território não será restrito a partir do Estado como agente transformador do território, mas também a partir da apropriação contraditória e desigual pelos moradores dos empreendimentos Destri e Speranza, do PMCMV, em um território já contraditório e desigual.

De acordo com a Lei 10.257 de 10 de julho de 2001 (Governo FHC), conhecida como Estatuto da Cidade, são adotados alguns instrumentos como a criação da Zona Especial de Interesse Social - ZEIS de vazios urbanos definido pelo Plano Diretor como estratégia de redução do preço do terreno e de viabilização da produção de HIS. Por meio das ZEIS, os municípios passam a reservar e a doar terrenos para as construções destinadas a população mais pobre.

Por meio de Emenda Aditiva nº 199 de 20076 do vereador Jorge Felippe (Câmara Municipal do Rio de Janeiro), foi incluso no Artigo no Título V no Capítulo II das Disposições Transitórias, a seguinte redação:

Art. – O Poder Executivo desapropriará o terreno abandonado pela Fábrica de Telhas Brasilit e dará uma finalidade social àquele vazio urbano, localizado em Senador Camará, com a implantação de um complexo social, cultural, esportivo e de lazer.

Em 18 de dezembro de 2011, sob a gestão do Secretário Municipal de Habitação Jorge Bittar, o município do Rio de Janeiro sob o

5 Para aprofundamento indica-se a sua obra A Vida Cotidiana no Mundo Moderno

6 Emenda Aditiva de vereador municipal. Disponível em: http://www.camara.rj.gov.br/ planodiretor/pd2009/emendas_anteriores/195-234_emendas_jfelippe.pdf. Acesso em: 15 fev. 2020.

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comando do então Prefeito Eduardo Paes inaugura em Senador Camará um complexo do Programa Minha Casa Minha Vida, apelidado ironicamente de “Perereca” pelos moradores residentes no “Sapo”, conjunto habitacional também localizado na Avenida Santa Cruz de frente para o complexo do MCMV.

O complexo é formado por seis empreendimentos edificados em um terreno da antiga fábrica de telhas Brasilit, do Grupo Saint Goban, que produzia ali derivados da indústria cimentícia como telhas e caixas d’água de fibrocimento, que, após decretar falência, foi desativada. Aspecto importante a ser mencionado em relação a esse complexo diz respeito a contaminação em parte do solo do complexo fabril, sobretudo devido ao uso de insumos nocivos à saúde, como o amianto. A solução adotada pela Prefeitura, contemplou um traçado viário interligando as ruas Corte Real e Albino Paiva, ambas transversais à Avenida Santa Cruz, que permitem o acesso às escolas, praças e à reserva de arborização, sem que se faça necessário passar pelo terreno contaminado. A área contaminada não foi edificada.

O complexo formado pelos seis empreendimentos possui uma área de 100 mil m² e composto pelos condomínios: Vidal com 308 UH- Unidades Habitacionais, Taroni com 243 UH, Destri com 421 UH (ambos seleção por meio de sorteio); Speranza com 388 UH, Vaccari com 388 UH e Ayres com 453 UH (ambos seleção por meio de reassentamento) e todos contratados na primeira fase do programa.

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Figura 1- Empreendimento Bairro Senador Camará

Fonte: Disponível em: https://www.google.com/maps/d/ viewer?mid=1hOhTFcn04hv0oG5uMFUjeF3Llcg&ie=UTF8&oe=UTF8&msa=0&ll=-22.87987773114507%2C-43.48853310495031&z=17. Acesso em: 13 maio 2021.

A partir do momento em que o poder público constrói um complexo condominial composto de 2.201 unidades habitacionais, onde cada UH em média é ocupada por uma família composta de 04 membros (média de acordo com cadastro social preenchido pela equipe social nos empreendimentos no período de 2011 a 2013), há a alteração e/ou construção de um novo território em Senador Camará.

O MCMV fora construído para uma vida normatizada e controlada, com os moradores inseridos em espaços abstratos, homogêneos e dominados como forma de redução da diferença existente. A partir do momento em que diversas famílias oriundas de diversos territórios de todo o município ocupam com seus corpos, suas identidades, histórias e culturas esses espaços, eles assumem suas contradições e são transformados por meio das relações sociais, produzindo assim, segundo Lefebvre, um novo espaço: o habitar.

O habitar transcende a moradia, pois significa viver a cidade em toda sua complexidade, significa ter acesso as políticas sociais tradicionais dedicadas a promoção do bem-estar, redução da pobreza e das desigualdades. Todas essas políticas como: educação, saúde, assistência, cultura,

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lazer dentre outras; a localização de seus equipamentos, a condição de acesso, além da importância e da qualidade desses serviços ofertados criam e transformam o espaço social como possibilidade do território a ser apropriado por essas pessoas.

Figura 2 - Pátio externo do Condomínio Destri

Assim que os moradores se mudaram de ambos os condomínios, durante um bom tempo conversavam conosco dizendo sobre a felicidade de estarem morando em um lugar bonito, limpo, diferente de uma realidade em que viviam como morar com parentes, ou de favor, em barracos de madeira e agora moravam em um condomínio. (Relato da autora- Diário de Campo, 2011).

Segundo Koga (2011), o território traz uma carga presente marcada pela história de uma sociedade em que valores culturais, institucionais se configuram como elementos significantes na vida das pessoas. É no território que os sonhos e as ideias se concretizam. Foi no território de Senador Camará que os sonhos de muitos dos moradores oriundos de diversos bairros se tornou realidade. Esse novo espaço no condomínio Destri assume diversas formas com nomes, sobrenomes, histórias, sonhos e famílias vindas de diversos lugares da cidade, sob condições diversas, para dessa forma escrever uma nova história e/ou continuar a que já existia. Para ser mais precisa, os moradores são oriundos exatamente de 83 bairros da cidade do Rio de Janeiro e também da Baixada Fluminense. A relação com os moradores do Speranza, foi uma relação de

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Fonte: Acervo pessoal da autora, 2011.

mais proximidade, de calmaria e de mais afeto por parte deles. Me chamavam pelo nome, me chamavam para almoçar em suas casas e sempre havia um cafezinho fresco. Me viam como uma pessoa e não como uma profissional que representava simplesmente o Município. Penso que esse foi um dos fatores que facilitou as diversas atividades que realizamos juntos, que pensamos juntos e melhor, que eles realizaram sem a necessidade da minha intervenção. (Relato da autora- Diário de Campo, 2011)

Figura 3 - Pátio externo do Condomínio Speranza

O condomínio Speranza foi concebido para acolher famílias cujo local de moradia estava situado em áreas de risco em diversas regiões da cidade e/ou para obras de infraestrutura em exatamente 19 comunidades espalhadas pela cidade do Rio de Janeiro.

No cenário urbano territorial, existe uma tensão cada vez mais evidente entre a dinâmica da metrópole e as respostas das políticas públicas; onde nessa tensão, não há um diálogo com a dimensão cotidiana do lugar e dos lugares como uma tentativa de melhor compreender como se dá a relação entre os territórios de vivência (KOGA,2013 ) e a operacionalidade das políticas sociais.

Habitação é moradia, mas também é o seu entorno. A disponibilidade de serviços públicos e infraestrutura estão inseridas dentro dos preceitos do direito à cidade e do direito à moradia. A casa ou o

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Fonte: Acervo pessoal da autora, 2013.

apartamento, devem estar ligados à rede de água, saneamento básico e de eletricidade; além dos serviços de saúde, educação, esporte, lazer, coleta de lixo. Todos devem estar disponíveis no bairro onde as unidades habitacionais estão localizadas.

O programa MCMV define que a infraestrutura é uma condição para se conseguir um contrato com a Caixa Econômica Federal (UN-HABITAT, 2013). O projeto é priorizado se houver existência prévia de infraestrutura na região ou se houver oferta pelos governos locais de provisão de infraestrutura para o empreendimento. A Lei n. 12.424/2011, acrescentou ao art. 5º-A da Lei n. 11.977/2009, os seguintes tópicos: Art. 5º-A. Para a implantação de empreendimentos no âmbito do PNHU, deverão ser observados: [...] III - infraestrutura básica que inclua vias de acesso, iluminação pública e solução de esgotamento sanitário e de drenagem de águas pluviais e permita ligações domiciliares de abastecimento de água e energia elétrica; e IV - a existência ou compromisso do poder público local de instalação ou de ampliação dos equipamentos e serviços relacionados a educação, saúde, lazer e transporte público.

A zona oeste é tratada e percebida como um imenso campo a ser loteado e receber camadas da população de outras partes da cidade oriundas dos diversos processos de remoção de favelas. Em meio a esse processo de urbanização, que revela uma política de adequação da zona oeste as necessidades de outras regiões; o Estado se apresenta como um potente agente na produção do espaço urbano e de sua infraestrutura no que tange os serviços oferecidos ou não oferecidos a essa população.

A Política de Habitação não deve ser olhada de forma isolada das demais políticas e muito menos apartada da população usuária marcada por significativas desigualdades sociais e realidades contrastantes.

Os indicadores sociais exercem um papel importante na construção de instrumentos de leitura da realidade, porém ao mesmo tempo possui os seus limites quanto à representação dessa realidade, especialmente quanto à sua dinâmica interna, o seu cotidiano repleto de variações que tendem a ser homogeneizadas sob a forma de índices.

Em meio a isso, Koga (2013, p. 124) verbaliza que há um descompasso entre atores sociais e também entre as políticas sociais:

[...] a primeira evidência desse descompasso está no modo tradicional

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de planejamento e gestão, já naturalizado em nossa sociedade, que é o das respostas ex post: primeiro se ocupa o lugar para que depois o lugar se torne habitável; primeiro se constitui em morador para depois se tornar cidadão. Esse processo ex post exige uma mobilização popular constante para que o direito de morar e acessar aos serviços sociais se torne uma realidade.

Abaixo seguem alguns indicadores sociais do território que reforçam a perspectiva de desigualdade a partir da história de vida e a análise de trajetórias da narrativa de indivíduos e trajetórias urbanas por meio do olhar específico sobre o território de Senador Camará e as relações que seus habitantes estabeleceram com ele. A precariedade de alguns serviços públicos ofertados a essa população, rebatia de forma direta no trabalho social.

O trajeto entre os condomínios e a principal avenida que cortava o bairro, avenida Santa Cruz, durava em média de 10 a 15 minutos de caminhada debaixo de um sol forte, pois a arborização ao redor dos condomínios, eram árvores recém-plantadas. Em menos de dois meses, já havia em funcionamento ao redor dos condomínios o serviço de transporte como: moto táxi e vans que transportavam os moradores. (Relato da Autora- Diário de Campo, 2011).

Um dos principais objetivos das políticas de transporte é o de justamente facilitar o acesso das pessoas a atividades e destinos diversos, tornando dessa forma a acessibilidade como central para se planejar e avaliar tal política por esta perpassar e articular com questões econômicas, sociais e ambientais.

Muitos dos moradores do Destri e Speranza mantiveram seus espaços de trabalho nos lugares que já exerciam suas atividades laborativas independente da mudança de endereço e a grande maioria utilizava o trem como meio de transporte mais ágil e barato para locomoção para o campo de trabalho.

Durante entrevista com os moradores oriundos do Sítio do Nera, os mesmos relatavam que viviam em barracos, sem saneamento básico, sem água encanada, muitos em barracos de madeira com roedores transitando livremente pelo local, sem contar a violência. Mesmo em meio a essa situação, muitos desses moradores venderam, trocaram ou alugaram suas UH e retornaram para suas comunidades de origem, alegando que devido à proximidade com o CEASA, podiam pegar leguminosas, hortaliças, verduras e frutas do lixo, além de não

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pagarem contas de luz, água e taxa de condomínio. (Relato da autoraDiário de Campo, 2011).

Segundo dados do Instituto Pereira Passos (2010), Senador Camará apresenta uma renda per capita no valor de R$ 251,09. Segundo dados do Ministério do Trabalho e Emprego (2017), Senador Camará apresenta 3.352 empregos formais, dentre os quais a maioria encontra-se no comércio varejista, seguido pelo setor de serviços e alimentação, administração de imóveis, setor de ensino, transporte e comunicação.

Em uma visita realizada a uma moradora do Destri, me deparei com a casa sem nenhum móvel, havendo apenas um colchão. No momento da visita, a moradora estava cozinhando arroz em uma lata com um fogaréu improvisado. (Relato da autora – Diário de Campo, 2011).

A partir da convivência com os moradores que vieram de diversos bairros pobres, localizados e/ ou próximos a favelas, pude observar que muitos destes já residiam em bairros com uma total ausência de infraestrutura e de serviços básicos por parte do Estado e que agora residiam em um novo bairro, mas também com precariedades de infraestrutura e serviços.

A pobreza metropolitana é um fenômeno crescente na América Latina. Além disso, deve-se destacar que a pobreza urbana possui características específicas, uma vez que a população nesses locais tem menor acesso a renda para o autoconsumo, além do custo de vida metropolitano ser mais elevado. Para isso, as políticas públicas, como as políticas sociais e urbanas, que acontecem no território têm um caráter primordial a desempenhar em termos de proteção social à vida, notadamente dos segmentos mais empobrecidos da classe trabalhadora que misturam as fronteiras entre superpopulação relativa e pauperismo crescente.

O que se quer destacar é que o processo de reprodução ampliada do capital, estudado e conceituado por Marx, e que é responsável também por reproduzir de forma ampliada a força de trabalho, o faz a partir do aprofundamento exponencial da precarização, da insegurança e do empobrecimento das condições de vida da classe trabalhadora. Ou seja, é no marco explicativo e histórico da produção social da riqueza e de sua apropriação privada e transformada cada vez mais em finança, que se deve compreender os conteúdos das formas fenomênicas da pobreza.

Da mesma forma, tal processo só existe a partir da sua mani-

festação espacial (território) e temporal (história). Por isso, a dimensão histórico-territorial da desigualdade social é de extrema importância para a análise das políticas sociais e habitacionais, como também para a análise das expressões urbanas da questão social.

A partir do momento em que as famílias começaram a residir nos condomínios e a levantar diversas demandas acerca das políticas públicas fragmentadas, sem intersetorialidade, sem corpo técnico suficiente, mas ali já existentes, flagram os limites da própria fragmentação da vida social subjacente às ações do Estado através do PMVMV. Nesse contexto, os usos do território de Senador Camará pelos moradores dos conjuntos habitacionais analisados, a partir de suas necessidades, concepções de mundo, desejos e desigualdades profundas manifestadas no corpo e na subjetividade, observando os termos de Koga (2011), devem passar a ser compreendidos pelas políticas públicas como elementos centrais que definem o próprio sentido vivo do território.

Nesse sentido, famílias ou indivíduos da população agora residente nessa localidade, através das cotidianas ações e insatisfações manifestadas a partir do seu lugar da moradia, expõe a importância de não serem reduzidas apenas às “necessidades básicas” saciadas ou reprimidas. Sua fala e sua ação evidenciam a importância de pensá-las como formas concretas e cotidianas do território usado a partir das suas contradições, conflitos e horizontes possíveis de justiça.

Evidencia-se que o PMCMV se afastou de diretrizes urbanísticas constantes na política habitacional, instituídas pela Lei 11.124/2005 - Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social (SNHIS) - e pelo Plano Nacional de Habitação (PlanHab), lançado em 2009 (BONDUKI, 2009). As normas que orientam sua implementação não foram pautadas pelas estratégias de enfrentamento do déficit habitacional contidas na política de habitação, mas sim por uma lógica atrelada por meio de relações de mercado entendida como uma oportunidade de negócio para empresas privadas.

Considerações Finais

De um total de 286.890 UH contratadas em todo o Estado do Rio de Janeiro, para todas as faixas, foram entregues um total de 180.168

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UH (a faixa 1,5 não foi contabilizada nesse total, pois contabiliza apenas 4.797 unidades entregues) distribuídas pelas faixas I, II e III. Foram entregues na faixa I 88.462 UH, na faixa II 64.233 UH e na faixa III 27.473 UH; tendo no ano de 2013 (segundo mandato do governo Lula) o ápice de contratações com 50.867 UH. E também com um ápice de entregas em 2016(governo Dilma) com 34.413 UH entregues no Estado do Rio de Janeiro.

Tais dados apresentados convergem para o que a literatura já nos apresenta: que o PMCMV foi pensado incialmente pelo governo federal como uma decisão política de apoio à produção imobiliária para faixas salariais que historicamente encontravam-se “fora do mercado” sendo uma população com renda de até três salários-mínimos (Faixa I), responsável por grande parte do déficit habitacional brasileiro segundo a Fundação João Pinheiro.

Se faz importante salientar que o Município do Rio de Janeiro foi o que mais recebeu UH em todo o Estado. Segundo dados da Assessoria de Comunicação do Ministério do Desenvolvimento Regional, no período de 2009 a 2019, foram contratadas pelo Estado do Rio de Janeiro um total de 286.890 UH (57%). Desse total, 109.100 UH (22%) foram contratadas para o município do RJ e apenas 71. 100 UH (14%) foram entregues. Dessas 32.729 UH (7%) foram entregues para faixa I.

A expansão da cidade rumo à zona oeste “líder absoluta da cobiça das empreiteiras” representa um modelo exaurido e insustentável de desenvolvimento. Segundo o presidente regional do Instituto de Arquitetos do Brasil7, de 1960 a 2000, a população do Rio de Janeiro cresceu 83%, passando de 3 milhões para 5,6 milhões, enquanto a área urbanizada cresceu 222 %, passando de 180 para 580 quilômetros quadrados, gerando dessa forma alguns problemas de acesso para seus moradores como a dificuldade de universalização de serviços como o saneamento básico e infraestrutura.

A disponibilidade de terrenos nesta área, vetor de expansão para setores populares, e a precariedade de serviços, com impacto no preço da terra, justificam o grande número de unidades construídas nesta parte da 7 Reportagem online acerca da expansão urbana para a zona oeste da cidade do Rio de Janeiro. Disponível em: https://oglobo.globo.com/rio/modelo-de-expansao-urbana-para-zona-oeste-criticado-por-especialistas-10351609. Acesso em 14 maio 2021.

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cidade pelo PMCMV, além dos benefícios concedidos pelo poder público municipal incentivarem a produção de habitação de interesse social neste local da cidade.

Dessa forma, o PMCMV reitera uma série de características do processo de urbanização marcado historicamente pela segregação socioespacial, reforçando a lógica de que o lugar dos pobres e da população de baixa renda é nos lugares afastados, com um tecido urbano fragmentado, com carência de infraestrutura, de equipamentos, de serviços públicos e de empregos.

A política habitacional desempenhou historicamente um papel central na consolidação do modelo urbano dessas regiões metropolitanas, assim como na reprodução de seu padrão de segregação socioespacial. A construção de grandes conjuntos habitacionais em áreas periféricas onde a terra é mais barata, contribuiu substancialmente para impulsionar o estabelecimento de uma divisão territorial entre ricos e pobres.

Importante destacar que esse crescimento da cidade para a região da zona oeste segue acompanhada da ausência de infraestrutura adequada e equipamentos públicos de Interesse Social, além de investimentos por parte do Estado em serviços e infraestrutura, resultando na desigualdade do acesso à direitos básicos de serviços públicos, no acesso à cidade, na forma como dela se apropria e dela participa.

Tal afirmação, pode ser constatada a partir do levantamento dos equipamentos públicos existentes no território de Senador Camará.

Figura 4 - Equipamentos Públicos na Zona Oeste

Fonte: Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro. Elaborado pelo autor, 2020.

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Tais dados nos apresentam que a zona oeste da cidade do Rio de Janeiro é uma área que apesar de ter 41 % da população nela residindo, apresenta grandes déficits de serviços públicos e infraestrutura conforme nos apresenta a figura acima com uma disparidade nos serviços públicos. Se tomarmos como exemplo a população de Senador Camará a qual é composta por 105.515 mil e que destes 55.093 são mulheres, nos causa estranheza pensar que nessa região não há uma Delegacia voltada para atendimento à mulher vítima de violência.

Se pensarmos que uma parcela das UH são voltadas para pessoas portadoras de algum tipo de transtorno físico ou mental, além de todo o primeiro andar dessas UH serem destinadas a população maior de 60 anos, os equipamentos públicos compilados na figura acima nos causam estranheza, já que no território de Senador Camará não há nenhum serviço/equipamento que atenda a essa população específica.

Segundo Koga (2013), no território existe cada vez mais uma tensão clara e evidente entre a dinâmica da metrópole e as respostas das políticas públicas, associadas aos diferentes agenciamentos presentes nesses territórios e ainda, com um não diálogo com a dimensão cotidiana com a população residente naquele lugar, pois a vida cotidiana possui um ritmo e a vida institucional possui outro ritmo.

Uma das primeiras reuniões no condomínio foi marcada em um dia de semana na parte da manhã. Para meu espanto, ao menos na época, ninguém compareceu. Ao me questionar, percebi que os moradores ali residentes possuíam uma vida cotidiana dinâmica na qual eu precisaria entrar nesse ritmo. Passamos a nos encontrar aos sábados a partir das 10:00 horas. (Relato da autora – Diário de Campo, 2011) .

Koga (2013) nos ressalta a importância da (re)construção de uma topografia social dos territórios de vida capaz de evidenciar distâncias, desconexões, fragilidades, diferenças, desigualdades físicas e sociais. A topografia física (descrição minuciosa de um local) se faz importante, mas ela não corresponde à grandiosidade de uma topografia social de um território.

A topografia social vai muito além de sua superfície a qual se apresenta como um território de vida onde este se expressa na vida cotidiana das pessoas: possuem corpos racializados, generificados e vinculados às experiências do empobrecimento e da precarização da classe trabalhadora

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em suas trajetórias biográficas, em suas contradições e em suas práticas de criação.

Por meio da topografia social, conseguimos vislumbrar a segregação das UH do PMMV dos empreendimentos Destri e Speranza, voltados para a faixa I em Senador Camará, a qual “toma fôlego” como principal expressão dessa desigualdade, no plano dos territórios vividos / usados, onde ganha importância as práticas e demandas da vida cotidiana. Senador Camará é um bairro já segregado urbanisticamente, socialmente, economicamente e com vulnerabilidades antigas como violência e pobreza; com isso se faz importante pensar que a cidade precisa ser cidade em todos os seus territórios com o fácil acesso a todas as suas políticas públicas.

É bem verdade que o Estado pode produzir políticas públicas no intuito de combater a desigualdade socioespacial, transformando a cidade mais “misturada” e menos desigual. Habitar é apropriar-se de algo, é uma atividade referente a apropriação. Significa também fazer do espaço sua obra, se apropriar dele, o entendendo também como o lugar do conflito, pois ele é um produto social que interfere no cotidiano das pessoas. A forma como ele é construída precisa ser questionada com objetivos que não priorizem a dominação e a especulação. O habitar transcende a moradia, pois significa viver a cidade em toda sua complexidade, significa ter acesso as políticas sociais tradicionais dedicadas a promoção do bem-estar, redução da pobreza e das desigualdades. Todas essas políticas como: educação, saúde, assistência, cultura, lazer dentre outras; a localização de seus equipamentos, a condição de acesso, além da importância e da qualidade desses serviços ofertados criam e transformam o espaço social como possibilidade do território a ser apropriado por essas pessoas.

Com isto, a velocidade do incremento de habitações em áreas com pouca infraestrutura urbana, associada a escassa disponibilidade de equipamentos comunitários, compromete os níveis de habitabilidade destas moradias visto que estes serviços públicos, já insuficientes para atender à população local, não suporta o acréscimo de demanda. Dessa forma, não se trata apenas de condições de vida precárias e empobrecidas, mas de práticas socioespaciais desiguais que produzem territórios de vida precários com uma expansão urbana excludente e de risco, sendo heterogêneos

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em suas dinâmicas e que não se reduzem a precariedade, ou a ausência e/ ou vulnerabilidade, mesmo sendo territórios de vida que anseiam melhores e mais justas condições de vida.

Fico a pensar que talvez o território de Senador Camará, e tantos outros que compõem a zona oeste da cidade e estão de forma especial na área programática 5, não possuam investimentos por parte do poder público no que tange à infraestrutura e serviços públicos, para que assim, essa lógica da valorização imobiliária e valorização da terra não aconteça nesses espaços. A permanecer o vetor de ocupação e utilização da terra e da moradia, nessa parte da cidade, através da expansão urbana da habitação de interesse social para as camadas mais pobres da população, por meio de programas de habitação de interesse social, como o Minha Casa Minha Vida faixa I; continuaremos a observar a criação de construções, mas não de cidade, de urbanidade, de múltiplas de diferentes centralidades da e na cidade. Permanecerá uma lógica de mercado, com nomes diferentes: revitalização, renovação urbana, reabilitação do espaço, requalificação de áreas, dentre outras como uma forma de vender a cidade para atrair investimentos de capitais.

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DETERMINAÇÕES CONTEMPORÂNEAS DO TRABALHO SOCIAL NA HABITAÇÃO1

Natália Coelho de Oliveira

Introdução

Tal artigo parte da hipótese de trabalho que, não obstante a crítica teórico-prática e ideopolítica da profissão, desenvolvida em sua trajetória histórica, acerca da dimensão de controle social do exercício profissional, as requisições socioinstitucionais atuais do PMCMV (Programa Minha Casa, Minha Vida) sobre o trabalho do assistente social expressam o movimento contraditório de reatualização das funções de controle social das famílias trabalhadoras pobres urbanas, no contexto social da moradia e da reprodução social da força de trabalho. Ressaltamos que tal movimento contraditório é especialmente determinado por quatro processos: 1) O aprofundamento do padrão histórico de produção segregada e em larga escala da moradia social; 2) O desenvolvimento de estratégias de normatização, controle e burocratização do trabalho social para a garantia da função de integração social da população às regras e normas do PMCMV; 3) A focalização dos critérios de seleção e hierarquização de demanda social por moradia e; 4) o processo de terceirização e precarização das relações de trabalho que impactam o trabalho dos assistentes sociais nesta política social. 2

No que se refere ao trabalho social desenvolvido nos condomínios do PMCMV, o Ministério das Cidades, com o excesso de normatização e mudanças na legislação sobre o trabalho social, vêm apresentando estratégias de padronização e codificação da prática profissional que permitam à CEF “medir” o trabalho social para, então, aprová-lo ou não, pa-

1DOI- 10.29388/978-65-81417-77-2-0-f.241-264

Cabe informar que tais reflexões baseiam-se nas experiências de trabalho desenvolvidas, enquanto assistente social em programas habitacionais, ocupações profissionais em empresas terceirizadas e órgão público municipal, sendo assim, parto deste lugar profissional e fundamentação teórica-metodológica desenvolvida por meio de análise histórica da ação profissional neste campo, apresentada na Dissertação de Mestrado defendida em maio de 2016, na qual se intitula “Habitação e Serviço Social: das origens ao trabalho social no Programa Minha Casa Minha Vida, UERJ, Rio de Janeiro, 2016.”

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gá-lo ou não. Isto repercute na restrição da autonomia e criatividade nas metodologias e propostas de trabalho das equipes sociais das prefeituras e empresas que se tornam limitadas, enfatizando processos de trabalho mais burocráticos e tecnificados, diferentemente do que fora experimentado em outros momentos da nossa trajetória histórica neste campo. Contudo, inscrevemos esta contradição como um processo político, no qual o assistente social é sujeito da história e a transformação dessa condição perpassa um processo organizativo da categoria profissional.

Cabe ressaltar que estamos analisando o período histórico entre 2014-2016, anterior ao golpe político-institucional do governo Temer, no qual as políticas de habitação ainda tinham recursos previstos no orçamento, contudo no que tange ao trabalho social observa-se o mesmo nível de precariedade das condições de trabalho, agora de forma mais intensa, com a redução de verbas para as políticas habitacionais e urbanas. Deve ser esclarecido que no tempo histórico de 2016 a meados de 2021, observa-se um retrocesso no que se refere à implementação das ações de habitação, à medida que, a maior parte das obras foram paralisadas, devido ao corte de 98,5% dos recursos do PMCMV, impactando nas entregas das unidades habitacionais e, consequentemente, nas condições de vida da população que vivem em situação de precariedade habitacional. (PEREIRA & OLIVEIRA, 2021).

Observa-se que as ações atuais do programa habitacional Casa Verde e Amarela, criado pelo Governo Bolsonaro este ano tem ação bem tímida e focalizada. Analisando o quesito participação popular e controle social, por parte da população público alvo do programa, verificamos um desmantelamento dos mecanismos democráticos desta política pública, pois os conselhos foram extintos e esvaziados, bem como os de política urbana e habitação, assim como os fundos municipais, estaduais e federais de habitação de interesse social (FNHIS) não têm mais recursos destinados, o que nos mostra um desmonte da política de habitação de interesse social no país, situando um cenário de descaso e descompromisso com os interesses públicos e conquistas jurídico-institucionais, fruto da luta de diversos movimentos sociais urbanos e das populações periféricas. Sendo assim, observa-se um palco de intensos conflitos e acirramento de classe no que tange à disputa pelo uso da terra urbana para fins de inte -

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resse social no cenário atual.

I. Estratégias de normatização e controle do trabalho social

Partimos do pressuposto de que o excesso de normatizações, prescrições e parâmetros de atuação profissional, exigidas pela Caixa Econômica Federal objetiva dotar o trabalho social de formas e conteúdos homogêneos, possíveis de serem medidos e controlados pelo banco, além de imprimir um papel socioeducativo controlador ao trabalho social na perspectiva de adaptação/integração social da classe trabalhadora.

Essas requisições ao trabalho do Assistente Social solicitam um conteúdo do trabalho social com a finalidade de adequação dos moradores residentes em condomínios do Programa Minha Casa Minha Vida às condicionalidades do mesmo, imprimindo um modo de vida em condomínios diferente daquele já vivenciado pelos moradores em seus antigos locais de origem.

Esses conflitos entre o modelo arquitetônico do PMCMV e o modo de vida dos moradores dos condomínios são expressos por Lopes e Shimbo (2015) quando se referem à utilização das áreas privativas, equipamentos coletivos e áreas comuns que se diferenciam do modo de vida já experimentado por estes moradores.

Os espaços de uso comum se restringem a uma quadra esportiva, nem sempre adequadamente localizada, desrespeitando inclusive sua orientação solar, um parquinho com brinquedos não atraentes, e um centro comunitário pouco ou mal utilizado pela fraca infraestrutura oferecida e pelas regras impostas pelo síndico, maximizando as dificuldades de se viver em condomínio. Os espaços residuais, consequentes desse raciocínio de projeto genérico, são preenchidos por vagas de estacionamentos e equipamentos nomeados “para lazer”. (LOPES; SHIMBO, 2015, p. 213).

Neste sentido, cabe ao trabalho social “ensinar” os moradores a viver em condomínios por meio de oficinas de educação sanitária, educação ambiental, educação patrimonial, planejamento familiar e orçamento familiar com o objetivo de integração comunitária, implantação, gestão do condomínio para o estabelecimento de regras de convivência coletiva. Dessa forma, mesmo transcorridas algumas décadas entre o trabalho do Serviço Social em favelas, quando do início da profissão, ou do trabalho do Serviço Social em programas propriamente de provisão habitacional,

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como o BNH e as COHABs, ou de urbanização e/ou erradicação de favelas, dos anos 50 ao final do século XX, é possível verificar a presença e recorrência estrutural, e não apenas conjuntural ou episódica, do trabalho social como um componente de controle social da vida das famílias trabalhadoras pobres urbanas.

Algumas regras de convivência violam direitos que possibilitam o acesso ao trabalho e a garantia da permanência dos moradores no condomínio; outras regras fragilizam relações sociais que poderiam desenvolver uma ideia de pertencimento ao lugar e espaço construído pelos moradores a fim de atribuir sentido às relações construídas. Dessa maneira, são estabelecidas determinadas regulamentações para utilização do espaço público e privado, ambos anteriormente desconhecidos pelos moradores, como por exemplo:

Alterar a fachada do Condomínio; instalar no Condomínio ou mesmo na residência atividade comercial; estender ou secar roupas, tapetes, toalhas ou qualquer outro pertence nas janelas e partes externas da residência; violar de qualquer forma a lei do silêncio, usando aparelhos de rádio, televisão, buzinas, instrumentos musicais com som elevado de modo a perturbar o sossego dos moradores; jogar papel, cinzas, pontas de cigarro ou lixo em locais que não sejam os de destinação final destes materiais, inclusive pelas janelas; usar nas pias, ralos, vasos e demais instalações sanitárias das residências produtos que provoquem entupimentos ou que contenham agentes corrosivos; gritar e discutir em voz alta, pronunciar palavras de baixo calão nas dependências do Condomínio, entre outros esclarecimentos de prestação de contas e conservação do condomínio. (BRASIL, PORTARIA Nº 163, 2016, p. 10).

Essas cartilhas são distribuídas nas reuniões de esclarecimento pela coordenação do trabalho social. Neste momento, são reafirmados valores, culturas e impressões sobre uma visão de mundo que reforçam um lugar socialmente construído pela classe trabalhadora, em geral, um lugar subalternizado, enfraquecendo um olhar mais crítico dos moradores sobre o processo de ocupação dos empreendimentos do PMCMV. Dessa maneira, os conceitos de participação social e conscientização popular, antes atribuído à prática profissional numa perspectiva social crítica de modo a contribuir para a organização e mobilização comunitária dos moradores, vem perdendo espaço para este caráter de

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controle exercido pelos assistentes sociais no contato direto com os moradores, reatualizando essas funções sociais já ressignificadas criticamente pela reconceituação da profissão. Tal dinâmica expressa uma contradição quando analisamos o movimento construído, historicamente, pela categoria profissional associado às lutas e conquistas dos movimentos sociais urbanos, principalmente ligados à luta pela moradia.

Estas funções de controle social sobre os hábitos, costumes e comportamentos da classe trabalhadora para fins de integração social remetem às antigas funções já exercidas por assistentes sociais, na década de 1930, 1940 e início de 1950. Na Fundação Leão XIII, o “problema da favela” era visto como uma necessidade da burguesia de educar o proletariado urbano da época, considerados ignorantes e despossuídos de cultura, como salienta Iamamoto (2008); bem como este olhar discriminatório influenciou as primeiras iniciativas dos assistentes sociais nas favelas, como retrata Honorato (2012).

Quando verificamos a história do Serviço Social na habitação, observamos que na década de 1940, os assistentes sociais eram chamados para intervir com o trabalho social em comunidades de forma disciplinadora para corrigir comportamentos, a partir de uma ação educativa com implantação de serviços de assistência e infraestrutura mínima às favelas, como relata Gomes (2004).

Já no começo do Estado Novo, com a construção dos primeiros parques proletários, existia uma ação social voltada à reprodução da força de trabalho que contribuía no processo de adaptação dos antigos moradores de favelas ao novo local de moradia a fim de utilizar a moradia adequadamente. Sendo assim, o papel do assistente social, nesta época, era promover informações sobre regras de conduta e conscientização sobre uso da moradia.

Além desta ação dos assistentes sociais em favelas e parques proletários, que se destacam como as primeiras iniciativas do trabalho social na habitação, na mesma década, o papel das visitadoras sociais também foi marcado por este lugar profissional para o enquadramento dos trabalhadores e normas e condutas sociais consideradas próprias socialmente. Os cortiços e habitações insalubres eram focos de ações higienistas e as visitadoras contribuíram para fornecer informações sobre saúde e higie -

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ne, bem como regular o uso da moradia, pois os moradores, conforme literatura de Ana Lúcia Vieira (2013) e Abreu (2008 apud VIEIRA, 2013) tinham comportamentos, costumes e hábitos considerados impróprios e inoportunos. Não somente o trabalho social contribuía para construir novos hábitos, mas estas ações constituíam um processo de recomposição do espaço urbano, como mostra Vieira (2013). Então, podemos afirmar que as ações de habitação de interesse social atualmente se remetem às antigas funções de controle que o trabalho social desenvolvia nas décadas de 1940 e 1950, imprimindo uma concepção de vida e regras sociais à classe trabalhadora, na qual é enfatizada uma ação do Estado que vincula ações de higiene e moralização; contudo, naquela época tal ação era influenciada pelas bases confeccionais, psicossociais e/ou funcionalistas. Desta maneira, Jeannine Verdés-Lenoux (1986), que retrata a realidade do trabalho social na França no final do século XIX, nos subsidia de contribuições que demonstram esse olhar de disciplinamento nas ações sociais da época, visando o enquadramento dos trabalhadores aos comportamentos próprios de uma sociedade industrial, moderna e civilizada. Os assistentes sociais desta época, bem como na realidade brasileira, sugeriam cursos de qualificação no qual reforçavam estigmas do lugar da mulher na sociedade e serviço de orientação social. Portanto, esta mudança do discurso profissional de readequação social para educação popular no trato da questão social é verificada no final da década de 1940 para 1950, quando o tema de mobilização comunitária ganhou força nas ações do trabalho social com comunidades, a partir do projeto de desenvolvimento urbano nacional e permanece até hoje como um dos eixos do trabalho social no PMCMV.

O trabalho social vem sendo desenvolvido nos projetos de habitação de interesse social na contemporaneidade, tanto no que tange à produção de novas moradias e recuperação das moradias já existentes, quanto através de ações em urbanização e regularização fundiária nos assentamentos precários brasileiros, desde 2003, como afirma Paz e Taboada (2010). A exigência do trabalho social estendeu-se a todos os programas em que o Ministério das Cidades concedesse recursos através do repasse aos estados e municípios, a partir deste período. Neste momento histórico, o trabalho social adquiriu o seguinte sentido:

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A partir de então a orientação para o trabalho social vem sendo desenvolvida em diversos organismos públicos, nos mais diferentes programas de habitação, onde se destacam: o respeito às conquistas importantes dos movimentos sociais de moradia, como o direito das famílias em permanecerem na área ocupada, minimizando ao máximo o número de famílias a serem removidas, a necessária infraestrutura urbana e a participação durante a execução do empreendimento. (PAZ; TABOADA, 2010, p. 50).

Deste modo, o trabalho social foi regulamentado pela Instrução Normativa nº 8/2009 do Ministério das Cidades para o desenvolvimento do trabalho social em intervenções de provisão habitacional, como é o caso de ações de apoio à provisão habitacional por meio do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social – HIS/FNHIS – e de ações do programa de atendimento habitacional, com incentivo do poder público, como a execução do PRÓ-MORAR, na modalidade de produção de conjuntos habitacionais e na modalidade urbanização de Assentamentos Precários (AP).

Tal instrução normativa também estende a execução do trabalho social nas ações em urbanização de assentamentos precários por meio dos programas de Urbanização, Regularização e Integração de AP (PPI), através da intervenção em favelas, em municípios com mais de 150 mil habitantes e nas ações de apoio à implantação de saneamento integrado em AP. Além disso, o trabalho social também é requisitado nas ações de melhoria das condições de habitabilidade, com recursos do FNHIS, mais conhecidas como ações de melhorias habitacionais, associadas aos programas de urbanização, regularização e integração de AP. (BRASIL, 2009)

Nos Projetos Multisetoriais Integrados – PMI, o desenvolvimento do trabalho social se dá por meio das intervenções que dotam de infraestrutura básica o entorno dos empreendimentos do PMCMV, assim como a criação de equipamentos sociais, lazer e cultura para os beneficiários dos programas habitacionais. Essas experiências foram concebidas a partir do Programa Habitar Brasil – BID (HBB) na década de 1990, que, mais recentemente, foram incorporadas nas linhas de financiamento do BNDES (BRASIL, MINISTÉRIO DAS CIDADES, 2009).

No Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV), ele é exigido

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no acompanhamento das obras físicas dos empreendimentos do programa, desde 2011. Contudo, desde a criação do PMCMV, observamos que o trabalho social tem sido desenvolvido principalmente nas ações de provisão habitacional em detrimento das ações de urbanização e regularização fundiária em assentamentos precários, como analisam os estudos de Cardoso e Pinto (2015), Pimentel (2011).

É a partir do decreto nº 7, de 2011, que se regulamenta a execução do trabalho social como responsabilidade do poder público municipal, e não mais da CEF. No artigo 23 do referido decreto, define-se que o trabalho social deve:

[...] executar o trabalho técnico e social pós-ocupação dos empreendimentos implantados, definido como um conjunto de ações que visam promover o desenvolvimento da população beneficiária, de forma a favorecer a sustentabilidade do empreendimento, mediante a abordagem dos temas mobilização e organização comunitária, educação sanitária e ambiental, e geração de trabalho e renda. (BRASIL, 2011, p. 3).

É importante salientar que, somente em 2011, o trabalho social passou a ser obrigatório incluindo um recurso fixo a partir do cronograma físico financeiro nas ações em habitação, urbanização e saneamento ambiental 3. De modo que, nos projetos de produção de novas moradias fi-

3 Segundo a normatização mais recente do TS, a portaria nº21, do Ministério das Cidades, do ano de 2014, os recursos destinados ao TS são em média de 2.5% do valor de investimento do instrumento de repasse/financiamento ao projeto habitacional contratado pela CEF: “Na composição de investimento das intervenções devem ser assegurados recursos para execução do Trabalho Social, observando-se, os seguintes percentuais de investimento: a) obrigatoriamente, para os projetos de habitação: no mínimo 2,5 % (dois e meio por cento) do valor de investimento, do instrumento de repasse/financiamento, sem limite máximo; b) nos casos de saneamento integrado e drenagem urbana em que estiver previsto remanejamento/reassentamento de famílias: 2,5% (dois e meio por cento) a 3% (três por cento) do valor de investimento do instrumento de repasse/financiamento; c) para as intervenções de saneamento das modalidades de abastecimento de água e esgotamento sanitário, drenagem urbana e saneamento integrado sem remanejamento/reassentamento de famílias, projetos de manejo de resíduos sólidos que envolverem ações com catadores: de 1% (um por cento) a 3% (três por cento) do valor de investimento do instrumento de repasse/financiamento; e d) nos projetos de saneamento integrado conjugados com operações do Programa Minha Casa Minha Vida - MCMV: de 2,5% (dois e meio por cento) a 3% (três por cento) do valor de investimento do instrumento de repasse/financiamento de saneamento”. (BRASIL,

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nanciados pelo PMCMV, entre 2009 e 2011, a execução do trabalho social era realizada pela Caixa Econômica Federal e não se constituía como uma obrigatoriedade nos projetos de habitação de interesse social. Trataremos com mais detalhes sobre o papel do trabalho social dentro da Política Nacional de Habitação, no próximo item. Neste item, cabe fazermos uma retrospectiva histórica, a partir do marco regulatório, contextualizando a criação do PMCMV e a execução do trabalho social nos projetos de habitação de interesse social, a partir do surgimento dos Projetos de Trabalho Técnico Social (PTTS) em andamento de acordo com as obras físicas dos empreendimentos.

Com a reformulação da Instrução Normativa n. 8, no ano de 2009, Cardoso e Barbosa (2015, p. 11) salientam que essas mudanças de cunho normativo ao trabalho social trouxeram para a categoria algumas questões que se referem à “[...] tendência à desprofissionalização do trabalho social, já ensaiada pelo Ministério das Cidades em2011 e 2012, e limitada por interferência do Conselho Federal de Serviço Social, após audiência com a secretaria nacional de habitação.”. As autoras contribuem na perspectiva de problematizar que essas mudanças nas normativas vieram acompanhadas de perdas no conteúdo e na forma do trabalho social, particularmente na definição de sua característica profissional.

Em 2012, houve uma mudança no caráter profissional do trabalho social e a Portaria 21/2014 retoma a requisição do trabalho do assistente social para a coordenação do trabalho social, mas perde o caráter obrigatório de definição “[...] de assistentes sociais e sociólogos como coordenadores e responsáveis técnicos pelo trabalho social, que passa apenas à condição de elemento indicativo, preferencial.” (CARDOSO; BARBOSA, 2015, p. 10).

Dessa forma, esse lugar socialmente construído pelos assistentes sociais passou a ser requisitado de outra forma pela Caixa Econômica Federal e o Ministério das Cidades, como pode ser percebido na mudança também da linha teórica e política-ideológica adotada pela coordenação dos cursos de capacitação para o trabalho social, via Ensino à Distância (EAD), promovido por este Ministério nas edições de 2010 e 2014. Tal mudança expressa à transformação nas requisições socioinstitucionais ao 2014, p. 23).

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trabalho do assistente social neste campo.

O material produzido como livro básico do EAD do trabalho social de 2010 expressa a necessidade de pensar o trabalho social, na sua perspectiva história; analisa as experiências de trabalho, focando na socialização das metodologias de trabalho social para pensar as questões urbanas e a execução da política habitacional, não perdendo a dimensão do território; assim como busca entender os diversos atores envolvidos nesta política habitacional.

Já o documento do curso à distância de 2014 traz um conteúdo mais operativo da prática profissional no sentido de adequar o trabalho social à nova normatização da Portaria nº 21/2014 do Ministério das Cidades. O foco da questão está assentado nas demandas inerentes à implantação e sustentabilidade do empreendimento do PMCMV, situando novas temporalidades criadas pelo descompasso entre a implantação do projeto físico das unidades habitacionais e a entrada do trabalho social na área para mobilização dos moradores. O tempo para as fases de diagnóstico social participativo e discussão do projeto físico com os moradores, durante a chamada fase de pré-obras, é corrido ou não acontece quando há atrasos nas obras. Assim, a segunda edição do EAD Trabalho Social é praticamente uma aplicação das portarias nº 21 do Ministério das Cidades que regulamenta e institui o “manual do trabalho social”.

Há de se observar que a centralidade do PMCMV nas ações governamentais e a prioridade no repasse de recursos financeiros para as ações em provisão habitacional, com vistas à estratégia econômica de utilização deste programa como um meio de aquecer a economia, a partir do incremento no investimento público para o ramo da construção civil, mudou de maneira significativa as ações do trabalho social nos projetos de provisão habitacional. Com essa ênfase nos projetos de trabalho social no PMCMV, a ação do trabalho social desenvolvida junto aos projetos de urbanização e regularização fundiária de assentamentos precários, no bojo das ações de habitação de interesse social deixou de ser prioridade em todas as esferas de governo, esvaziando-se, assim, o conhecimento e as experiências gerados em diferentes escalas do país no tocante às ações habitacionais. Da mesma forma, a construção de relações profissionais com os territórios das cidades, a partir do conhecimento das caracterís-

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ticas e das demandas habitacionais dos municípios, a construção de correlações de forças ao longo do tempo que favoreçam uma visão mais estruturante da política habitacional e da questão da moradia, no interior da gestão pública local, o conjunto dessas experiências se subordinam e chegam a se desfazer frente à avassaladora centralização dos recursos públicos no PMCMV.

Com a Portaria do Ministério das Cidades, 168/2013, 12 de abril de 2013, o trabalho social passa a ser executado com os recursos do Termo de Compromisso ou Contrato de Financiamento que os municípios assinam com a união e CEF nas operações de aquisições das unidades habitacionais e intervenções vinculadas ao PAC, devendo ser notificado ao ente público quando o empreendimento atingir 40% das obras executadas para início das ações do trabalho social no território e com as famílias selecionadas.

Nesta portaria, o Ministério das Cidades amplia o sentido do trabalho social, traçando o seguinte objetivo:

[...] proporcionar a execução de um conjunto de ações de caráter informativo e educativo junto aos beneficiários, que promova o exercício da participação cidadã, favoreça a organização da população e a gestão comunitária dos espaços comuns; na perspectiva de contribuir para fortalecer a melhoria da qualidade de vida das famílias e a sustentabilidade dos empreendimentos. (BRASIL, 2013, p. 18).

Dentre as diretrizes previstas nos Projetos de Trabalho Social (PTS) estavam, a) estímulo ao exercício da participação cidadã; b) formação de entidades representativas dos beneficiários, estimulando a sua participação e exercício do controle social; c) intersetorialidade na abordagem do Trabalho Social; d) disponibilização de informações sobre as políticas de proteção social; e) articulação com outras políticas públicas de inclusão social e; desenvolvimento de ações visando à elevação socioeconômica e à qualidade de vida das famílias e sustentabilidade dos empreendimentos.

Com a mudança desta portaria para a Portaria 021/2014 4 de 22

4 Nesta mesma portaria, são estabelecidas duas etapas para execução do PTTS, a etapa pré-contratual e pós-contratual. A pré-contratual compreende as ações no espaço de tempo de 90 dias antes do término das obras, contemplando o estabelecimento de critérios e seleção de beneficiários, participação de reuniões de esclarecimento sobre regras do programa e condições de entrega dos imóveis, bem como vistoria dos apartamentos, acompanhamen-

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de janeiro de 2014, são modificadas algumas questões que se relacionam à operacionalização do Trabalho Social no PMCMV (FAR), entre tais mudanças estão: a fixação de obrigatoriedade de mínimo de 2,5% do investimento da obra para o TS, sem teto máximo; redefinição de prazo e escopo do projeto; mudança no acesso aos recursos mediante formalização de Convênio e centraliza as ações do trabalho social com foco na sustentabilidade do empreendimento.

Dessa maneira, além dessas mudanças salientadas pela CEF, o Projeto de Trabalho Técnico Social (PTTS), adquire outras fases como: o Projeto do Trabalho Social Preliminar PTS-P, que consiste no projeto preliminar, tornando-se obrigatório somente quando a demanda não é fechada na seleção e fase de contratação pelo ente público municipal e Plano de Desenvolvimento Socioterritorial – PDST, conhecido na fase do pós-obra, após o remanejamento dos moradores e operacionalizado a partir de ações e articulações intersetoriais, visando à inclusão social, desenvolvimento econômico e a integração territorial dos beneficiários.5

Apesar dessas mudanças regulatórias, verificamos a difusão de um modelo de trabalho social no Brasil. Modelo este difundido através de manuais técnicos produzidos pelo Ministério das Cidades, por meio da Secretaria Nacional de Habitação e Caixa Econômica Federal e após as recomendações das agências multilaterais. A partir da pesquisa realizada por Pimentel (2012), somente referente ao trabalho social, entre os anos de 2007 e 2011, foram publicados pelo Ministério das Cidades 15 atos administrativos (portarias, orientações operacionais etc.). Dessa maneira, podemos apontar que o trabalho social, atualmente, vem apresentando estratégias de excessiva normatização e codificação da prática profissioto dos beneficiários para acesso às tarifas sociais; socialização de informações sobre oferta e localização dos serviços públicos existentes no território, além de noções básicas de organização comunitária, representação dos beneficiários e informações de gestão condominial. A etapa pós-contratual consiste no desenvolvimento de ações que visam atender os seguintes eixos e conteúdos do trabalho social: A) Organização Comunitária, B) Educação Ambiental; C) Educação Patrimonial; D) Planejamento e Gestão do Orçamento Familiar e E) Geração de Trabalho e Renda (BRASIL, 2014).

5 Deve ser apresentado pelo Ente Público e aprovado pela Instituição Financeira, conforme indicado no cronograma do PTS até, no máximo, o final da Fase de Obras. Deve ser iniciado após a assinatura do contrato ou a mudança das famílias e ter duração de até 12 (doze) meses. (BRASIL, 2014).

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nal, no sentido de retirar a autonomia dos profissionais responsáveis pelo TS e das secretarias municipais responsáveis por pensar e planejar a política habitacional.

As narrativas do discurso de “participação popular”, “controle Social”, “democracia” são reeditadas, a partir de uma política de intervenção social para população de baixa renda, como ressalta Pimentel (2012), desenvolvendo uma prática profissional baseada em valores conservadoras, dando ênfase, basicamente, na dimensão de “ensinar aos moradores de periferias a viver em condomínios fechados”, de forma engessada.

“O perfil ideológico do trabalho social em vigor sugere uma governabilidade que prioriza uma disposição da sociedade civil trabalhar em parceria com o Estado”, conforme salienta Lima e Martins (2004, p. 30) apud PIMENTEL, 2012, p. 5); para o incentivo à auto-organização por grupos de interesse, o incentivo ao potencial das comunidades na resolução de seus próprios problemas. Visto isso, se modifica a noção de coletividade que o trabalho social tinha como pressuposto na sua metodologia de trabalho, nos anos 1980, ressaltando uma proposta de trabalho que tinha como diretriz trabalhar com a população os direitos necessários à vida urbana, a partir da organização e do protagonismo da sociedade civil, responsabilizando o Estado enquanto mediação necessária das lutas sociais pela moradia. A partir dessa compreensão, o assistente social seria um mediador importante e estratégico no processo de “saturar” as contradições existentes na relação entre Estado/política pública/sociedade, no sentido do fortalecimento dos direitos sociais e urbanos.

Dessa maneira, a construção das diversas normativas e orientações técnicas “[...] foram conduzidas através de um processo verticalizado, imposto de ‘cima para baixo’, sem discussão com o conjunto de entidades representativas das categorias profissionais envolvidas no trabalho.” (PIMENTEL, 2012, p. 5), especialmente, o conjunto CFESS/ CRESS (Conselho Federal de Serviço Social e Conselho Regional de Serviço Social).

Mesmo assim, a categoria profissional se organizou e construiu uma rede pelo direito à cidade e serviço social, Rede QUESS, na qual elaborou uma série de proposições ao Ministério das Cidades para revisão de portarias que, naquele momento, ameaçava o exercício profissional

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no que tange a “desprofissionalização do trabalho social”. 6 Em 28 de outubro de 2011, o CFESS também lançou um “CFESS Manifesta” com estratégias de luta na pauta urbana para o Serviço Social Brasileiro. Como exemplo deste modelo interventivo homogeneizado por todo o país, os cursos à distância para técnicos sociais, promovido pelo Ministério das Cidades funcionam como meios propagadores do manual da Caixa Econômica Federal para as atividades do TS. Na primeira edição em 2010 reuniu 1.977 participantes no curso do EAD Trabalho Social. A segunda edição, do ano de 2014 capacitou 5 mil profissionais entre técnicos sociais responsáveis diretos pela supervisão e execução do trabalho social, tanto dos empreendimentos do PAC – Urbanização de Assentamentos Precários e do Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV). (BRASIL, 2014).

Nesse sentido, de acordo com Pimentel (2012) e Oliveira (2015) há um controle rígido dos produtos do TS pela CEF, a partir da entrega das medições, conhecidas como relatórios mensais sobre as atividades desenvolvidas pelo trabalho social. O que deve ser questionado é a necessidade da quantidade massiva de relatórios e ritos burocráticos que a coordenação do trabalho técnico social deve entregar junto à Caixa Econômica. Isso pode limitar o trabalho social com as famílias beneficiárias do Programa Minha Casa Minha Vida no que se refere à mecanização das atividades do trabalho do Assistente Social. Essas são questões que os municípios, CEF e Ministério das Cidades devem rever.

II. Terceirização engessa práticas de trabalho social

Raichelis (2013) identifica que o processo de reestruturação produtiva também afeta os processos de trabalho do assistente social, com as requisições de novas demandas postas ao trabalho ou a reatualização de antigas demandas. Inclusive, isso ocorre no Serviço Social, à medida que a dinâmica institucional transforma a própria natureza da profissão de Serviço Social e pode modificar o caráter interventivo e relacional da profissão. E isso, incide “[...] na vida dos indivíduos e grupos das classes subalternas, fragilizando a ação direta com segmentos populares e o desenvolvimento de trabalho socioeducativo numa perspectiva emancipató -

6 Ver Cardoso e Pinto (2015).

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ria.” (RAICHELIS, 2013, p. 624).

Na habitação social, a precarização é concreta e a terceirização é não só regulada, como incentivada. Sendo assim, esse modelo de gestão do trabalho social vem se conformando nesta área, a partir da execução do trabalho social por diferentes profissionais ou empresas que “[...] passam a ser contratados por meio de processos licitatórios de que participam escritórios e empresas gerenciadoras, sem que, no entanto, a administração pública consiga regular e manter o controle estratégico deste processo.” (RAICHELIS, 2013, p. 626).

Esse processo de terceirização das atividades de responsabilidade do Estado se apresenta como uma das novas modalidades de trabalho do Assistente Social no campo da política de habitação. Essa segmentação do trabalho que ocorre durante os momentos que compreendem as fases chamadas como o “pré-morar” e o “pós-morar” nos condomínios do PMCMV se colocam como um fenômeno recorrente do processo de reestruturação produtiva.

As empresas podem executar apenas uma etapa deste trabalho ou podem realizar todo o trabalho social, a ser estabelecido no edital de licitação. O contrato de trabalho estabelecido entre a empresas e os assistentes sociais, geralmente é regido por RPA (Recibo de Pagamento de Autônomo)7, quando este não for contratado via CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas). O salário do técnico social é apresentado para a Caixa Econômica Federal no Cronograma Físico-Financeiro, conforme descrição das atividades e equipe técnica contratada pelas empresas. Nota-se que o trabalho social que é desenvolvido via terceirização é mais impactado por essa forma de “enxugamento” das políticas sociais, tendo em mente que quando a relação de trabalho é estabelecida via RPA, o trabalhador fica mais vulnerável às desregulamentações das leis trabalhistas. Um exemplo claro desses impactos de precarização seria o rebaixamento do salário, diferente do que foi estipulado no cronograma físico-financeiro. Dessa forma, podemos concluir que a terceirização na política habitacional também promove uma precarização social nas relações de trabalho, como apontam Antunes e Druck (2014)

7 O RPA deve ser emitido pela fonte pagadora, ou seja, por quem contratou o serviço de trabalho social. Esta forma de pagamento serve para aqueles profissionais não cobertos pela CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas).

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e Raichelis (2013).

A Portaria 21/2014 já prevê como ato facultativo o estabelecimento de convênios de cooperação técnica com instituições. Contudo, o município que apresentar dificuldades de gestão, poucos recursos humanos e falta de equipe técnica para desenvolver o trabalho pode seguir essa orientação da portaria e assim terceirizar este trabalho social. Essa orientação à terceirização e a busca por parceiros para o desenvolvimento de determinadas ações do Projeto do Trabalho Técnico Social (PTTS) estão previstas: “[...] as licitações do Trabalho Social poderão admitir a contratação de consórcio de empresas e instituições sem fins lucrativos, nos termos das normas legais vigentes.” (BRASIL, MINISTÉRIO DAS CIDADES, 2014). A terceirização não desobriga que o ente público municipal execute o trabalho Social. Contudo, há uma tendência à terceirização, considerando a precarização do trabalho nas equipes contratadas e não concursadas que compõe o TTS, visto isso, a gestão utiliza a terceirização para execução dos serviços de trabalho social.

Este processo de transformação do mundo do trabalho associado ao espraiamento das políticas neoliberais na sociedade brasileira, desde os anos 90, promove uma desarticulação da organização da categoria, com repercussões para a fragmentação e desestruturação da prática profissional. Tendo em vista que a precarização das relações de trabalho fragiliza o processo de luta contra esta realidade, acaba-se fragilizando-se também a capacidade de resistir à chamada padronização e normatização do trabalho social e a possibilidade de construção de propostas de trabalho mais amplas.

III. A dimensão pedagógica como um campo de possibilidades profissionais

O trabalho social realizado com moradores dos condomínios do PMCMV é organizado para a criação de mecanismos capazes de viabilizar a participação dos beneficiários nos processos de decisão, implantação e manutenção dos bens/serviços, a fim de adequá-los às necessidades e à realidade dos grupos sociais atendidos, bem como incentivar a gestão participativa, garantindo a sustentabilidade do empreendimento (CAIXA, 2014). Dessa forma, os assistentes sociais nos projetos de Trabalho

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Técnico Social (TTS) se inserem no limiar destas contradições da realidade, considerando que o fio condutor do seu trabalho é o papel educativo a ser desenvolvido com as famílias. Nesse sentido, esses impasses se inscrevem no campo político, econômico e social.

As atividades da equipe social compreendem as ações que são conhecidas como pré-morar, dentre elas estão os eventos das reuniões de esclarecimento; sorteio das unidades habitacionais; vistoria dos apartamentos; assinatura dos contratos; reuniões de organização do condomínio e eleição do síndico e do pós-morar que estão as atividades de mobilização e organização comunitária, educação sanitária, ambiental e patrimonial, geração de trabalho e renda e o acompanhamento social das famílias que é realizado por meio do plantão social nos condomínios. (PREFEITURA MUNICIPAL DE DUQUE DE CAXIAS, Folder Reunião de Esclarecimento, elaborado pela Equipe do TTS, Duque de Caxias, julho de 2014).

O plantão social é uma das atividades mais ricas do trabalho técnico social no que se refere ao contato direto com as famílias, contudo é desenvolvido com poucos recursos financeiros e infraestrutura limitada. Esta atividade prevê o “[...] acolhimento e escuta da população; onde são dadas informações e esclarecimentos sobre o andamento das obras e do projeto como um todo, sobre os direitos e deveres de cada morador; encaminhamento de demandas, entre outros.” 8(CEF, 2014, p. 24). É no plantão social que se conhece o tamanho do problema a ser enfrentado pelos municípios ou mesmo pela CEF, no que confere aos problemas do pós-ocupação e a manutenção do condomínio ou, mesmo, nos projetos de urbanização, quando as satisfações e insatisfações dos moradores no território são expostas aos profissionais, com o andamento das obras e, perante, ao trabalho informativo de esclarecer à população local das melhorias urbanas a serem desenvolvidas.

Visto isso, podemos verificar que o papel social e institucional do trabalho social não é somente “promover a sustentabilidade do empreendimento”; “esclarecer o projeto habitacional aos moradores”; “encaminhar demandas dos moradores”; “ensinar aos moradores como é a vida

8 As atividades do PTTS (Projeto de Trabalho Técnico Social) devem iniciar pelo menos 90 dias antes da conclusão das obras, e continuar por pelo menos 180 dias após a assinatura do contrato com o último beneficiário do empreendimento (COTS, 2013).

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em condomínio”, como consta no Caderno de Orientação do Trabalho Social (2014) da CEF. Mas também influir na correlação de forças institucionais e políticas do município para estabelecer diretrizes profissionais que contribuam para a formação de uma equipe de trabalho que atue considerando a participação ativa dos sujeitos neste processo e para pensar na sua ação profissional inserida também nas relações do Estado com a sociedade civil organizada. Essa metodologia pode ser considerada, como “ uma técnica de mobilização comunitária que possibilita ampliar o conhecimento do espaço.”

Neste sentido, a dimensão pedagógica do assistente social neste campo socioprofissional que é na habitação, pode representar um campo de possibilidades, quando colocamos o nosso papel profissional, vinculado às representações do espaço e às necessidades territoriais e dos sujeitos coletivos que lá já constroem seu espaço urbano, ou seja, quando consideramos os diversos atores presentes e potentes no território, podemos atuar, conjuntamente, através das oficinas, atividades, atendimentos, palestras e cursos, reorientando a nossa prática profissional a serviço da população usuária e não, ao contrário, a partir de requisição institucional, apenas. Assim, ampliar estes vieses socializador e educativo pode ser capaz de ampliar e multiplicar informações, fortalecendo a dinâmica local, e, considerando que o (a) profissional deve redimensionar a sua escuta ativa para os anseios populares e, com isso, transformar tais demandas, muitas vezes reprimidas, em possibilidade de ação e mobilização comunitária, ampliando vozes e forças locais para o trabalho coletivo.

Conclusão

Desta maneira, podemos concluir que, o que vem acontecendo, recorrentemente, é que os municípios ou por falta de estrutura ou de equipe técnica terceirizam o trabalho social para empresas de assessoria e consultoria e fiscalizam este trabalho. Esta dinâmica de execução do trabalho social acontece diferente dessas temporalidades propostas pela portaria 21/2014. Pois a Caixa Econômica Federal demora a aprovar os PTTS; logo, as prefeituras demoram a receber e as empresas terceirizadas, como ganham a licitação para executar o serviço, executam as atividades prioritárias que constam no termo de referência e entregam o trabalho de

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forma precária, visto que demoram a pagar os técnicos sociais contratados. As prefeituras municipais criam inúmeras exigências na entrega do relatório, assim como a Caixa Econômica Federal parece desconhecer a realidade vivenciada pelas equipes do TTS, o que causa uma distância e falta de entendimento dos órgãos formuladores e fiscalizadores do programa com as temporalidades e rotinas na execução do TTS por parte dos órgãos públicos e empresas que desenvolvem estas ações. Por conseguinte, este processo descontínuo promove interrupções nas atividades realizadas no território.

Verificamos que há processos de descontinuidades que reafirmam uma visão e codificação abstrata do trabalho social, como se as regras e as normas fundassem a realidade social, e não o contrário. Assim, o TS é visto como um processo linear, segmentado, etapista e de “produtos” a serem padronizadamente produzidos como relatórios, atividades estandartizadas, tipo reunião de moradores, etc. Devido à situação relatada acima e também pela pressa na entrega das unidades habitacionais para inauguração dos empreendimentos, quando a demanda é selecionada, a partir dos critérios estabelecidos entre o Ministério das Cidades e as prefeituras, o empreendimento já está com mais de 50% de conclusão e, por vezes, quase chegando a 100% do projeto físico executado. Essa situação pode ser justificada também pelo grande número de projetos do PMCMV sendo implementados no município, alterando a dinâmica da estrutura urbana dos municípios, considerando que esta demanda habitacional requer equipe técnica capacitada para atuar nesta área. Esta falta de temporalidade entre o projeto físico e o projeto social, pode ocasionar o desconhecimento do perfil das famílias pela equipe do TS que executa o pós-ocupação, pois é recorrente a licitação do trabalho social para executar essas atividades de levantamento do perfil, diagnóstico social do entorno, entre outras, quando, na realidade, as equipes terceirizadas só iniciam seus contratos e atividades quando o empreendimento já está ocupado. Apesar disso, estas ações constam na fase de elaboração do PTTS. Dessa forma, verificamos também que há necessidade de incremento de pessoal concursado nas equipes técnicas dos municípios, bem como identificamos que a terceirização do TS não se apresenta como uma forma mais comprometida de executar o trabalho

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social, por conta dessa dinâmica de produção em série baseada na lógica do mercado, que altera a dinâmica de elaboração, planejamento e execução do TS e vem a comprometer a qualidade do trabalho social prestada aos beneficiários do programa.

A lógica da participação e da mobilização comunitárias presente nas normativas do MICidades cria um lugar para o trabalho social, que remete o Serviço Social às antigas funções de controle da classe trabalhadora por meio da moradia, experimentadas no trabalho social com comunidades nas nossas origens profissionais. As experiências mais progressistas e criativas de trabalho social não são medidas pelos bancos que financiam os programas habitacionais, como CEF e BID. Não casualmente que as listas de presença de reunião e fotografias de atividades realizadas pelo TS são parte do ritual necessário de “comprovação” e “quantificação” da participação tão exigida pela CEF. Para sair da “caixa”, se faz necessário repensar os modelos e formatos do trabalho social já definidos pelas cartilhas institucionais que vêm sendo delimitados por meio de propostas de atuação para o trabalho social, apresentando para os técnicos sociais “o que fazer” e o que apresentar à Caixa Econômica Federal em forma de relatório, para que o município ganhe o recurso destinado ao trabalho social. É necessário, pensar nossas estratégias de trabalho que estejam ligadas as potencialidades e significados do território, para que a nossa atuação ganhe amplitude, criatividade e conscientização coletiva na particularidade espacial local. Assim, os conteúdos de organização comunitária do trabalho social devem promover o sentido de coletividade e, priorizar, cada vez mais os sujeitos coletivos, diversos e conectados, buscando a sintonia com as suas necessidades individuais e coletivas, a partir do fortalecimento dos espaços democráticos e da noção de direitos sociais.

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A ATUAÇÃO PROFISSIONAL DE ASSISTENTES SOCIAIS NA “QUESTÃO AGRÁRIA”:

UMA EXPERIÊNCIA DE ASSESSORIA JUNTO A MOVIMENTOS SOCIAIS1

Caroline Magalhães Lima

Introdução

No debate profissional há certa compreensão de que, sob o modo de produção capitalista, a “questão agrária” é tomada como uma expressão da “questão social” que contém e transpõe uma multiplicidade de outras expressões. Relacionada intrinsecamente à particularidade do processo de formação social do espaço, a “questão agrária” no Brasil contém elementos que a partir de seu imbricamento com a “questão regional” e com o próprio racismo estrutural, perpassam o cotidiano da vida no campo, em que a autocracia burguesa, constituída historicamente nesse processo, reforça os elementos de dominação a partir da busca por hegemonia, operada com ofensivas materiais e ideológicas contra as classes subalternas. Essa hegemonia construída historicamente à “sangue e fogo”, encontra na classe trabalhadora e campesina e em seus ascendentes uma história de resistência. Rebeliões de escravos, ataques indígenas, fugas, formação de quilombos, o enfrentamento à grilagem, formas possíveis de resistência atravessam a história do Brasil e revelam a luta de classes como elemento que marca o cotidiano2 .

Historicamente, o campesinato tem lutado por formas de garantir as condições de sua reprodução social, o que também envolve o reconhecimento de direitos por parte do Estado. Uma das formas possíveis de atendimento às necessidades, transformadas em bandeiras de luta por alguns movimentos, são as políticas sociais, implementadas pelo Estado e objeto de atuação de assistentes sociais, cuja prática assume contornos diferenciados no campo e na cidade, demandando que no momento de formação profissional, as particularidades e a relação entre esses espaços 1DOI- 10.29388/978-65-81417-77-2-0-f.265-280

2 Recomendamos aqui o estudo da obra de Clóvis Moura, autor de grande referência para a autora, em especial seu livro Rebeliões de Senzala.

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sejam reconhecidas, identificadas e trabalhadas, a fim de qualificar a atuação profissional 3 , debate apresentado e contido nas Diretrizes Curriculares do Serviço Social concebidas pela Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social (ABEPSS, 1996).

Uma forma possível de organização do campesinato são os movimentos sociais, a exemplo do Movimento dos Trabalhadores e das Trabalhadoras Rurais Sem Terra (MST). A discussão sobre os movimentos sociais do campo perpassa a formação e o exercício profissional em Serviço Social, e aqui, destacamos o MST, tendo em vista sua atuação histórica relacionada às lutas gerais dos trabalhadores e das trabalhadoras4 , além da luta desse movimento no reforço à democracia, equidade, e justiça social – valores que fundamentam o Código de Ética da/o Assistente Social (CFESS, 1996).

Cada vez mais se faz importante destacar a questão da luta pela terra e da luta de classes no processo de constituição do espaço social brasileiro no processo de formação profissional, como se apresenta nas Diretrizes Curriculares formuladas pela ABEPSS, uma vez que assim, compreendendo as contradições no campo brasileiro e suas repercussões nas cidades e florestas, a prática profissional se subsidia de elementos para pensar a própria implementação das políticas sociais na particularidade

3 Um dos motivos que estimula a autora à redação desse artigo é justamente a identificação de carência de espaços de debate sobre a prática profissional de assistentes sociais no campo brasileiro. Ministrando aulas a pouco mais de quatro anos, muitas foram as vezes que estudantes perguntaram qual a necessidade de estudar, no processo de formação profissional, a “questão agrária”. Por vezes sequer compreendiam a relevância dos estudos sobre os processos de formação socio-histórica de nosso espaço. Destacar a importância desse debate para a formação profissional é uma das intensões desse artigo, uma vez que o campo brasileiro concentra um volume de assistentes sociais atuantes que necessitam subsidiar sua intervenção a partir das especificidades do cotidiano de vida no campo, da compreensão histórica dos conflitos por terra no Brasil, da transversalidade com outras disciplinas, temáticas e expressões da “questão social”, buscando visualizar as possibilidades e os campos de atuação que se constituem, afirmando nossa profissão nesse gigantesco campo.

4 Combatendo a exploração do trabalho análogo ao escravo, denunciando o descaso público em relação à apropriação indiscriminada da água e a insuficiente política de convivência com o semiárido e com as secas, denunciando e combatendo o uso indiscriminado de agrotóxicos e a produção de alimentos transgênicos, a insegurança no trabalho do campo, a degradação socioambiental, o desmatamento, a desertificação, o racismo socioambiental, a violência contra as mulheres e a população LGBTTTIQ+s, pautando a luta pela Reforma Agrária Popular, pela Agroecologia, pela agricultura familiar, pela Segurança Alimentar, etc.

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que lhe cabe e as formas de enfrentamento às expressões da “questão social” nele manifestas.

No âmbito da “questão agrária” as/os assistentes sociais encontram espaços de atuação profissional que possibilitam uma articulação direta com pautas vinculadas à luta por terra e pela permanência nela. Espaços institucionais como INCRA, EMATER, além de espaços que transitam e enfrentam a “questão agrária” de forma direta e indireta no cotidiano da prática, como a atuação em CRAS e CREAS, em NASF, Hospitais, Conselhos Tutelares etc. de municípios em que as expressões da “questão agrária” se manifestam de forma mais conspícua, além de atuações em escolas do campo. Porém, outra via de atuação é possível, no âmbito da assessoria, consultoria e formação (via associações, cooperativas agrícolas e movimentos sociais), em que a/o assistente social poderá contribuir com a formulação de Planos de Desenvolvimento do Assentamento (PDA), com a Assessoria Técnica, Social e Ambiental à Reforma Agrária (ATES), com a assistência técnica e extensão rural, com a formulação e/ou implementação de projetos sociais, com a mobilização comunitária, a resolução de conflitos e a formação (política, de direitos) dentre outras possibilidades.

Esse artigo visa compartilhar uma experiência profissional junto ao MST na cidade de Aracati, município localizado no interior do Estado do Ceará, realizada entre 2016 e 2018. O trabalho profissional se deu vinculado à Brigada Bernardo Marín, do Movimento das Trabalhadoras e dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST), visando à assessoria e ao apoio político, com o fortalecimento de suas pautas nos processos de luta pela terra, de disputa de hegemonia no município e de reconhecimento de territórios, mesmo aqueles já consolidados com Projetos de Assentamentos aprovados pelo INCRA, que, no entanto, passavam por processos de esvaziamento das políticas sociais direcionadas para sua população, bem como por situações de desmobilização.

I. Breves considerações sobre o processo de desenvolvimento histórico-espacial da formação brasileira e a luta pela construção da hegemonia

O processo de formação do espaço social brasileiro tem a marca

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da colonização, do racismo, do patriarcado e da produção baseada no latifúndio monocultor como formador de relações sociais em que a dominação e a direção societária estruturaram uma hegemonia atrelada às oligarquias agrárias. Desde o início do processo de colonização brasileiro, a exportação de produtos para o mercado europeu seguia a exigências dos países em que a indústria se desenvolvia (PRADO JR., 2011), revelando uma integração ao processo de acumulação primitiva. O sistema de organização das terras em sesmarias (grandes extensões territoriais sob o domínio de um possessor) e o escravismo5 , cujo suporte ideológico era o racismo, garantiram as condições necessárias à instalação e ao sucesso da plantation.

Com a revogação da lei das sesmarias, em 1822, a posse direta tornou-se o meio de “apropriação” do solo, com uso da força e do poder político-econômico como mediador, resultando em inúmeros conflitos territoriais que pouco constam nos anais da história. Tal modelo concorreu ainda para a consolidação do latifúndio agroexportador, cuja origem está na própria organização colonial. Cerca de 20 anos depois, a “Lei das Terras” (1850) inaugura o “mercado de terras” no Brasil (MARICATO, 2003), em que aqueles que não possuíam meios de compra e registro de terras, ocupavam-na na ilegalidade, como seria o caso de pessoas recém-libertas e de trabalhadores livres e pobres.

A “Lei das Terras” não surge de forma espontânea, mas num determinado contexto: o de desenvolvimento do modo de produção capitalista, em que se ampliavam as pressões – principalmente inglesas – à coroa brasileira pela abolição da escravidão no país, visando à implantação também de um mercado de trabalho, em que ocorresse a livre comercialização da força de trabalho, uma vez que o assalariamento custava menos e aceleraria o processo de produção de capital (MOURA, 1959). O mercado de terras se fazia necessário à obtenção de renda fundiária (rural

5 De início, a força de trabalho escrava indígena foi a mais utilizada, perdurando por cerca de um século, porém, não sem resistências. Confederação dos Tamoios (1562-1563), “Guerra dos Bárbaros”, ou Confederação dos Cariris (1683-1713), e Guerra dos Guaranis (1753-1756) são apenas os exemplos mais conhecidos da história brasileira, segundo Morissawa (2001). E foi a resistência indígena, junto ao choque cultural em relação ao exercício do trabalho, que levou à substituição de sua força de trabalho pela africana, principalmente oriunda de Angola, que já possuía um “mercado de escravos” consolidado (MOURA, 1959).

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e urbana), uma vez que o trabalho – livre – incorporado à terra acumularia valor, em um processo de valorização do próprio capital6

Para a nascente indústria, a criação do mercado de trabalho era fundamental (OLIVEIRA, 1980), apontando desde sua origem o imbricamento entre a raiz da questão agrária e da questão urbana. Com o fim da escravidão legal no Brasil, uma enorme massa de trabalhadores se torna livre, porém, despossuída, sem-terra, sem condições de plantar, já que não possuía os meios para aquisição da terra (MORISSAWA, 2001), e ainda viviam sobre relações sociais que reproduziam ideologias racistas e segregadoras. Naquele contexto, a terra passou a ser o centro de disputas, enquanto principal meio de produção e riqueza, ampliando-se os conflitos por esta em todo o país e exigindo uma maior intervenção do Estado (MORISSAWA, 2001).

No processo de transição do Império à Primeira República (18891930), o Brasil vivenciou profundas transformações em suas relações sociais de produção e em sua configuração socioespacial, iniciando-se, ainda que timidamente, um processo de urbanização (OLIVEIRA, 1980). O processo de desenvolvimento do modo de produção capitalista no Brasil se deu de forma subordinada, em que a produção nacional estava voltada à exportação de matérias primas e alimentos para a indústria europeia, os conflitos pela terra já se expressavam como conflitos entre duas classes: a dos capitalistas, proprietários de terra e de demais meios de produção, e de trabalhadores, do campo e da cidade, possuidores apenas de sua força de trabalho. Nesse período se mantêm e ampliam as relações de propriedade da terra e o modelo de produção do latifúndio agroexportador (OLIVEIRA, 1980).

A partir de 1930, observam-se alterações significativas nas relações entre capital e trabalho no campo e na cidade. Com a chamada Revolução de 1930, o Estado intervém declarada e concretamente no processo de industrialização e urbanização do país, iniciando-se seu processo de “modernização” e de tentativa de quebra de hegemonia dos setores da oligarquia agrária, que ainda concentrava riqueza e terra, mas perdia poder político. Porém, como afirma Iamamoto (2011, p. 135) “[...] a ve -

6 Recomendamos o estudo do livro III de O Capital. Crítica à Economia Política., de Karl Marx.

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lha oligarquia agrária recompõe-se, moderniza-se economicamente, refaz alianças para se manter no bloco do poder, influenciando decisivamente as bases conservadoras da dominação burguesa no Brasil.”.

A questão agrária se expressa de forma cada vez mais concreta nesse cenário de transformações nas relações sociais de produção. Se nesse período a classe trabalhadora se reorganiza e intensifica sua luta por melhores condições de trabalho e direitos no campo e na cidade, se o próprio Estado se moderniza, buscando no nacional-desenvolvimentismo a quebra da hegemonia da oligarquia agrária, esta também se reorganizará, com a formação de e investimento em novos aparelhos privados de hegemonia, que disputarão o domínio e a direção política da sociedade, principais elementos de constituição de hegemonia.

A produção agrícola se voltava não apenas à exportação de matérias primas para os países de capitalismo central, mas tinha a tarefa de produzir alimentos a baixo custo, para o mercado interno, a fim de garantir um barateamento do custo da força de trabalho urbana. Mantinha-se então uma política cambial que auxiliava na transferência de excedentes do setor agrícola para o setor industrial, garantindo a produtividade da indústria. Por outro lado, tal modelo político-econômico acarretava um crescente endividamento externo, além de um rebaixamento salarial da força de trabalho (OLIVEIRA, 1980), acirrando-se a “questão social” e suas diversas expressões. Diante desse cenário, surgirão diversos movimentos camponeses e de trabalhadores urbanos.

No campo os conflitos se acirram, ampliando a necessidade de organização dos trabalhadores e posseiros, que culminariam em três grandes organizações: as Ligas Camponesas7 (1945), a União de Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil – ULTAB8 (1954) e o Movimento dos

7 As Ligas Camponesas surgem da necessidade de resistência às expropriações e desocupações forçadas, e à expulsão ilegal de trabalhadores e pequenos proprietários de suas terras, denunciando o monopólio de classe sobre a terra e a necessidade de sua socialização. Agitadas pelo Partido Comunista Brasileiro – PCB, as Ligas Camponesas atuavam em quase todos os estados brasileiros, até serem declaras ilegais (assim como o PCB), em 1947, por Eurico Gaspar Dutra, sofrendo seus militantes forte repressão, perseguição e assassinatos (MORISSAWA, 2001). Com sua retomada na década de 1950, no estado de Pernambuco, retoma-se mais uma vez a pauta da Reforma Agrária radical como necessidade nacional e urgente.

8 Outro movimento, também fundado pelo PCB, foi a União de Lavradores e Trabalha-

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Agricultores Sem Terra - MASTER 9 (1950) (MORISSAWA, 2001). Tais movimentos travavam a luta no campo, mas buscavam também a construção de contra-hegemonia, não apenas com o combate e a denúncia à oligarquia agrária, mas também com uma prática política diferenciada, de combate ao coronelismo vigente.

O avanço das lutas no campo e na cidade, em um contexto internacional de Guerra Fria, em que o socialismo se apresentava como alternativa à classe trabalhadora impactou o cenário político nacional, marcado por tensionamentos e diversas tentativas de golpes antidemocráticos. Segundo José Paulo Netto (2014), com a conjuntura política instável, constantemente ameaçada por golpes, e uma recessão econômica persistente, “Jango” propõe como saída à crise um amplo projeto de reformas de base, que compreendia propostas de reforma agrária, reforma urbana, reforma tributária e fiscal, reforma bancária, dentre outras. Com a reforma agrária, haveria uma quebra no monopólio oligárquico e a socialização da terra, visando à ampliação da oferta alimentar e diminuição do êxodo rural (NETTO, 2014). Tais propostas nunca chegaram a ser concretizadas devido ao golpe Civil Militar instaurado em 1° de abril de 1964, que marca a derrota das reformas de base.

O hiato de mais de 300 anos nas legislações que regulamentavam a posse e a propriedade de terras brasileiras (MARICATO, 2003) incentivou a prática de grilagem e a violência das expropriações, que buscaram garantir a propriedade privada de largas extensões do solo no campo. O “Estatuto da Terra”, aprovado em 30 de novembro de 1964, reforçava o modelo do grande latifúndio monocultor, com uma proposta de modernização baseada no uso intensivo de maquinário e de agroquímicos, apesar de indicar em sua redação a regulação de uma Reforma Agrária, pautada em um projeto de colonização, que intensificava os confrontos entre camponeses e povos originários (SANTANA, 2014) e reforçava a dores Agrícolas do Brasil – ULTAB, com caráter que se aproximava do sindicalismo, tendo como objetivo a coordenação das associações camponesas e a criação de uma aliança operária-camponesa. A ULTAB se espalhou pelo Brasil, ganhando força expressiva em diversos estados (MORISSAWA, 2001).

9 Já o Movimento dos Agricultores Sem Terra – MASTER surgiu no Rio Grande do Sul como necessidade de organização da luta de cerca de 300 famílias de posseiros, no município de Encruzilhada do Sul, crescendo em todo o estado através da ocupação de grandes latifúndios.

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hegemonia dos setores já dominantes. Em 1970, com a criação do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA (FONSECA, 2006), ocorre o fortalecimento de grupos econômicos que controlavam projetos de colonização da região Amazônica10 e agropecuarista, reforçando as expropriações, o modelo latifundiário e a degradação ambiental e configurando-se como tentativa de apassivamento da luta da classe trabalhadora no campo, com o terrorismo estatal do período ditatorial combatendo duramente as organizações da classe trabalhadora, buscando enfraquecê-la e despolitizá-la (NETTO, 2014).

Com o processo de reorganização da classe trabalhadora no campo e na cidade, no final da década de 1970, com a crise que assolava a ditadura militar brasileira e o próprio desgaste do governo militar, ganha força o movimento de luta pela redemocratização do país (NETTO, 2014). Em 1981, começam a ocorrer reuniões, puxadas pela Comissão Pastoral da Terra com lideranças camponesas, culminando no I Encontro Nacional dos Sem Terra, em 1984, onde é fundado o MST (MST, 2009).

O MST é reconhecido como o principal movimento social atuante sobre a questão agrária, por sua luta pela Reforma Agrária Popular, pela problematização das contradições entre capital e trabalho no campo brasileiro, pelas ações diretas de denúncia e combate às injustiças sociais, pelas práticas transformadoras de educação e defesa dos direitos humanos, pelas discussões e elaborações acerca da poluição e destruição ambiental causada pelo agronegócio e a necessidade de práticas agroecológicas e luta pela soberania alimentar, fortalecendo a agricultura familiar, dentre tantas contribuições que a coletividade massiva desse movimento é capaz de construir em comum.

II. O trabalho da/do assistente social com movimentos sociais na luta pela terra Podemos afirmar que o projeto político do MST encontra aproximações no Projeto Ético-Político do Serviço Social brasileiro. Ambos possuem raízes no movimento pela redemocratização do país, momento de ascenso da luta de classes no campo e na cidade, durante a década de

10 Lembrando que nesse período inicia-se a corrida pelo ouro e pelo diamante no Pará, particularmente na região da Serra Pelada, com um grande volume de migrações para a região, principalmente de nordestinos.

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1980 e que amadurece nas décadas seguintes, ganhando cada vez mais corpo. Porém, é preciso entender que uma atuação junto a um movimento social pautada em um projeto profissional não pode ser confundida com uma militância política. Este é um desafio a que a/o assistente social que trabalha com movimentos sociais está submetido.

Um desafio apontado por Iamamoto (2000) que cabe ser mencionado é a diferenciação entre a prática profissional e a prática militante. A fim de que a prática não se comprometa, é preciso avaliar e dimensionar a relação profissional – militância. Para isso, é preciso diferenciar o objetivo do movimento e o objetivo do trabalho profissional, ainda que estes se conectem no resultado. Por isso, a/o assistente social deve utilizar de sua criatividade e de seus instrumentos técnicos para racionalizar o processo de planejamento de sua intervenção a fim de mediar as demandas postas com a realidade de seu trabalho.

As contradições vivenciadas no campo estarão presentes em todo o processo de elaboração e implementação do trabalho da/do assistente social junto aos movimentos sociais, em alguns casos, com um maior peso. Além do processo de precarização, que dificulta a articulação com profissionais de equipamentos públicos, muitas vezes necessários para o alcance dos objetivos do trabalho desenvolvido junto aos movimentos sociais, as práticas do compadrio, do coronelismo, do assistencialismo e do clientelismo perpassam a operacionalidade das políticas sociais. Tais contradições afetam diretamente a relação entre assistente social que atua com o movimento social e assistente social ou outros profissionais de equipamentos públicos que viabilizam direitos e políticas sociais, necessários para se alcançar determinados objetivos de trabalho. Assim, a articulação deve ser buscada com estratégias que contornem ou minimizem tais elementos, que compõem até hoje a realidade de diversos municípios do Brasil.

A/O assistente social deve buscar criar estratégias que visibilizem e viabilizem a demanda posta pelo movimento, como problemática social, coletiva, que deve ser compreendida e debatida pelo conjunto da sociedade, criando então condições para a constituição de espaços de contra hegemonia. Para isso é preciso articulação e divulgação de ações que gerem reflexões e ampliem a visibilidade das questões trazidas pelos

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movimentos, utilizando desde as ferramentas de comunicação disponíveis, até o domínio teórico-metodológico da questão a fim de qualificar e legitimar não apenas o discurso, como as formas de enfrentamento à “questão agrária” e suas expressões.

A partir das demandas colocadas pelos movimentos sociais, associações, cooperativas, populações do campo, é possível à/ao assistente social delinear um objetivo de trabalho que a/o leve à elaboração de seu plano de trabalho, instrumento indispensável à sua ação. Nesse, as dimensões ético-política e técnico-operativa devem permanecer casadas, a fim de que a elaboração da metodologia de atuação profissional cumpra com nossos princípios éticos e se realize de forma coerente e competente. Algumas possibilidades de atividades a serem desenvolvidas:

• Organizar, assessorar e acompanhar grupos produtivos, coletivos e culturais;

• Servir de suporte na mobilização, organização e formação política e técnica de grupos que venham a incentivar o desenvolvimento de espaços de socialização;

• Prestar assessoria técnica a grupos, organizações e movimentos sociais, equipes multidisciplinares, no sentindo de possibilitar a articulação, orientação e preparação de seu projeto de intervenção;

• Atuar na formação mediante o desenvolvimento de ações e projetos junto às escolas e equipamentos coletivos (EJA, cursos profissionalizantes e de capacitação etc.);

• Articulação com demais profissionais que atuam no local (médicos, educadores, agentes de saúde, agrônomos etc.) para o desenvolvimento de projetos e garantia de efetivação das políticas e programas sociais;

• Elaboração de Diagnósticos, Estudos de Situação e Pesquisas Sociais;

• Colaboração nos processos de planejamento coletivos e participativos no âmbito da produção ou/e no âmbito da formação e organização;

• Formação e assessoria técnica no âmbito da produção (perspectiva de Cooperação agrícola e gestão coletiva);

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• Formação e assessoria no âmbito do acesso aos direitos sociais (inclusive com encaminhamento aos órgãos públicos responsáveis);

• Coordenação das equipes multidisciplinares; dentre outras.

III. A experiência em Aracati (CE)

O trabalho ora relatado ocorreu entre os anos de 2016 e 2018, no munícipio de Aracati, interior do Ceará, a partir de uma demanda da Brigada Bernardo Marín, vinculada ao MST, em que se buscava enfrentar os ataques deferidos contra sua luta no município, a partir da construção de uma contra hegemonia, que aproximasse cada vez mais pessoas para apoiar o movimento, criminalizado no contexto do processo de construção do golpe jurídico-midiático-parlamentar que marca nossa história recente. A partir da constituição de um convênio entre uma associação de moradores de um dos assentamentos acompanhados pelo movimento na região e uma faculdade privada, foi coletivamente construído um projeto em que se buscava estimular a participação e aproximação de estudantes a movimentos sociais atuantes em toda a macrorregião e realizar um trabalho de mobilização e identificação de demandas juntos aos camponeses residentes em assentamentos, no acampamento rural e na ocupação urbana acompanhada pelo movimento no município.

A metodologia elencada exigia um exercício de atendimento às demandas institucionais da faculdade em questão - operado através da elaboração de um projeto de Extensão e da preceptoria no acompanhamento ao médico popular do movimento, que realizava atendimentos e visitas aos assentamentos na região, através de planejamento e articulação do MST – bem como às demandas do próprio movimento, representado pela Brigada Bernardo Marín. Após uma série de reuniões conjuntas com representantes da associação de moradores do assentamento responsável pelo convênio, com a direção da Brigada Bernardo Marín, para escutar seus objetivos de curto, médio e longo prazo, foi possível a realização de um planejamento que embasou a construção do projeto de extensão e do plano de trabalho da assistente social.

O desdobramento do trabalho se deu nestas duas frentes. A primeira envolvia a atuação direta com o movimento, em que foram reali-

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zadas: 1) Visitas domiciliares em assentamentos junto ao médico popular no sentido de informar e incentivar os cuidados com a saúde e de levantar as demandas de assentados/as a serem apresentadas às instituições municipais; 2) Conversas com assentados(as) para mobilização e incentivo à participação em atividades organizadas pelo movimento, no sentido de fortalecer a coletividade e a vida em comum nos assentamentos, constantemente assediados por políticos locais; 3) Escutas qualificadas para apuração de demandas e encaminhamento para a rede socioassistencial do munícipio; 4) Apresentação de informações relevantes para a garantia e efetivação de direitos sociais; 5) Elaboração de questionários para execução de um diagnóstico social, com a análise dos dados, apresentação de resultados para a Brigada em reunião e em formato de relatório; 6) Realização de espaços de formação política voltados aos dirigentes do movimento sobre a “questão agrária” no Brasil e a conjuntura etc.

A segunda envolvia a única faculdade (até então) com curso de Serviço Social em modalidade presencial da região, em que foram realizados: 1) Um projeto de extensão envolvendo quatro estudantes do curso, que desenvolveram atividades de formação em Direitos Humanos junto ao Acampamento Araguaia e à Ocupação Jacinta Sousa, além de participarem da pesquisa para elaboração do diagnóstico social; 2) Aulas de campo com estudantes em assentamentos, comunidades quilombolas e acampamento com participação de moradores e da direção da Brigada; 3) Realização de mesas de debates e palestras na faculdade com membros da Brigada e de outros movimentos sociais atuantes na macrorregião; 4) Oferta de um minicurso sobre “questão agrária” e Serviço Social voltada a discentes e profissionais; 5) Oferta de um minicurso sobre Marxismo e Serviço Social; 6) Realização de palestra sobre as diversas lutas sociais em comemoração ao Dia do/da assistente social com representação do Conselho Federal de Serviço Social (CFESS); 7) Grupo de estudos sobre Serviço Social e movimentos sociais; enfim, foram realizadas diversas atividades, que se apoiaram em um instrumental técnico desenvolvido pela assistente social de acordo com a particularidade da demanda levantada pelo movimento e pela instituição conveniada, o que exigia criatividade, diálogo e transparência. Observou-se a ampliação do interesse de estudantes do Curso de

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Serviço Social da instituição em conhecer e articular assuntos concernentes à formação profissional com os movimentos sociais, em especial ao Movimento das Trabalhadoras e dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), à Organização Popular de Aracati (OPA) e à Pastoral da Juventude do Meio Popular (PJMP), movimentos que sempre estiveram nas lutas desenvolvidas na macrorregião em que se localiza o município. Também se observou a partir de diálogos e dúvidas apresentadas por estudantes um interesse de aproximação com a realidade de pessoas que de alguma forma participam de movimentos, e em discussões sobre os temas: “Democracia”, “Participação”, “Questão Agrária”, “Questão Ambiental”, “Questão Social”, e “Atuação Profissional do Serviço Social e Movimentos Sociais”, o que pode ser constatado pela demanda por aulas de campo, cursos, grupos de estudos, aumento da participação de estudantes em atos e greves realizados no município, além do interesse de pessoas da própria cidade, com convites para entrevistas em programa de televisão local, palestras em escolas secundaristas, dentre outros.

Em relação aos assentados, observou-se um maior nível de engajamento e de organização das pautas, levantadas a partir do exercício de escuta, sistematizadas e apresentadas pela assistente social em reunião com esses. Também foi possível vislumbrar maior apoio ao movimento na região, com a participação de mais jovens em atos e atividades puxadas pelo MST, além de uma campanha de solidariedade ao Acampamento Araguaia, com arrecadação de alimentos, roupas e materiais para a escola improvisada. Também foi fortalecido o vínculo entre assentados/ acampados/ocupantes e membros da Brigada Bernardo Marín na região. O respaldo do movimento na região também foi ampliado com o fato de que este passou a ser chamado para participar e contribuir com a organização de outras lutas não apenas no município de Aracati, mas em toda a região, como no caso da resistência à carcinicultura no município de Fortim-CE, na denúncia à produção de energia eólica que desapropriava a comunidade quilombola e destruía o patrimônio histórico indígena da região, na luta dos movimentos feministas da região contra o alto índice de violência contra a mulher, dentre outros exemplos.

Por outro lado, diante da conjuntura de golpe e ascensão do conservadorismo, com o acirramento da disputa eleitoral que levou Jair Bol-

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sonaro à presidência da república em 2018, observou-se uma tendência à maior tentativa de criminalização dos movimentos sociais localizados no espectro político da esquerda, em especial ao MST. Essa tendência também foi observada no município de Aracati, onde os militantes da Brigada passaram por uma tentativa de desmoralização a partir do levantamento de fake news, associando a ocupação urbana Jacinta Sousa à elevação da criminalidade no município, além de constantes ameaças à integridade física e à própria vida de seus e suas militantes, levando à suspensão do projeto de extensão até então exercido e em fase de ação.

Isso aponta desafios para a realização efetiva do exercício profissional junto a movimentos sociais diante dessa conjuntura, em que o capital, além de capturar o fundo público, realizar um desmonte dos direitos e das políticas sociais, com a constante tentativa de mercantilização destes, também possui setores que financiam os constantes ataques da extrema-direita à organização e a direitos historicamente conquistados pelos movimentos sociais.

Considerações Finais

Além dos limites próprios da política econômica neoliberal, que opera contrarreformas e um ajuste fiscal permanente, retirando e reduzindo direitos sociais, com o assalto ao fundo público impactando o cotidiano de vida da classe trabalhadora da cidade e do campo, a/o assistente social se defronta em seu exercício profissional com todo um processo de precarização de sua prática, com o desmonte das políticas sociais e das instituições que a/o empregam. Além disso, enfrentamos como desafio as repercussões das reconfigurações na relação entre Estado e Sociedade civil: com a flexibilização; o caráter público da ação cada vez mais comprometido, com a retomada de práticas populistas, focalistas, clientelistas e reforço do gerencialismo; além da instabilidade nos empregos, na saúde, na vida. Outro desafio, que se conecta aos anteriormente mencionados, mas que merece ser sublinhado é a troca contínua de profissionais, a insegurança e instabilidade nos empregos, que atrapalha a continuidade do vínculo e do trabalho construído com usuários/as e comunidades, além do elevado grau de captulação e reforço ao clientelismo, inclusive em relação à empregabilidade, com a prática das indicações políticas em cargos

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comissionados.

Outro limite que se delineia no horizonte da prática de assistentes sociais com movimentos sociais do campo está no próprio âmbito da formação que necessita de uma ampliação da discussão da literatura que identifique as particularidades da “questão agrária” e a atuação do/a profissional. É preciso ir além, retomar a discussão sobre a relação entre terra e trabalho, buscando evitar a compartimentação das questões agrária, urbana e ambiental, tendo em vista a relação intrínseca constituída entre estas expressões da “questão social”. Assim, o processo de sistematização e compartilhamento de experiências profissionais que buscam reforçar as práticas comuns de uso e ocupação dos territórios por povos e comunidades tradicionais, e da diversidade existente em sua relação com a terra, seu uso e os modos de vida a ela associados, seja através de artigos em livros, revistas, ou mesmo workshops devem perpassar a dimensão teórico-metodológica da formação profissional e contribuir no sentido de enriquecer o trabalho coletivo do conjunto da categoria.

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OPERAÇÃO URBANA CONSORCIADA NO RIO DE

JANEIRO: LUTA E RESISTÊNCIA PELO DIREITO À MORADIA DIGNA1

Maria Gorete da Gama e Silva Maria Elvira Rocha de Sá Sandra Helena Ribeiro Cruz

Introdução

Dentre as necessidades gerais indispensáveis à (re)produção humana, a habitação ocupa lugar de destaque no histórico das lutas populares da região portuária do Rio de Janeiro. Portanto, tratar dessa questão aqui significa fazer o contraponto ao discurso da Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro ao apresentar a Operação Urbana Consorciada do Porto do Rio de Janeiro (OUC do Porto)2 à população, quando afirma ser a região um espaço abandonado e decadente. Ora, é exatamente o contrário. A luta pelo uso do espaço para fins de moradia demonstra que esse lugar tem vidas, logo, não é um grande vazio demográfico, tão pouco decadente. É um lugar singular e real, que reivindica sua cotidianidade e sua particularidade histórica, comportando a oposição e a convergência na condição de espaço dominado e apropriado.

Logo, podemos então considerar, que a prática social, advinda da dinâmica cotidiana daqueles que reivindicam o espaço como valor de uso para morar, trabalhar e viver, contradiz a lógica de produção capitalista do espaço que atua de forma voraz e que conta com a anuência do Estado, de modo a garantir ao capital o poder sobre a terra. De forma contraditória, nega moradia digna e o direito à vida urbana às frações da classe

1DOI- 10.29388/978-65-81417-77-2-0-f.281-308

2 Ressalta-se que a Operação Urbana Consorciada (OUC) do Porto é um instrumento urbanístico previsto no Estatuto da Cidade (Lei n. 10.257/2001). Segundo o Art. 32, a OUC consiste em um conjunto de intervenções e medidas executadas pelo município, com a participação de empresas, sociedade civil e tem como objetivo transformações urbanísticas de grandes complexidades, melhorias sociais e valorização ambiental em áreas da cidade. No município do Rio de Janeiro, esta Operação por desenvolver-se na região portuária, é conhecida como Operação Urbana Consorciada do Porto (BRASIL, 2001).

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trabalhadora.

O Estado é, portanto, agente fundamental na dinâmica do desenvolvimento do capitalismo em sua forma de dominação global (HARVEY, 2004). Essa atuação do poder público é marcada por dupla característica: subordinado à lógica do valor e como “outro” espaço. O “outro”, o “novo” espaço é revelado pela urbanização da terra sob o comando dos princípios da geração de mais-valia marcada pela crescente segregação socioeconômica e cultural (LEFEBRE, 2006). A dinâmica da “renovação urbana” não consegue eliminar antigos conteúdos do espaço modificado, que insistem em permanecer, por meio das lutas populares, como os signos e os significados outrora criados.

Quando nos referimos à área portuária do Rio de Janeiro falamos de espaço que concentra 75% dos imóveis de domínio público, com um número considerável de imóveis localizados na Área de Especial Interesse Urbanístico (AEIU do Porto)3 , numa extensão de 5 milhões de m². Logo, falamos de uma parte da cidade onde o parcelamento do solo, em outras palavras, o seu fatiamento, vem produzindo um ambiente favorável à exploração econômica por diversas frações de capitais. Com a OUC do Porto, esse espaço passou a ter o seu valor de troca elevado e, portanto, favorável ao processo de extração da renda da terra.

É este contexto de produção do espaço urbano da região portuária da cidade do Rio de Janeiro, onde ocorre a relação dialética e complexa da disputa entre diferentes sujeitos, seja para usufruir de seu valor de uso, seja para dele extrair lucro e renda, que o presente artigo 4 desenvolve reflexões analítico-críticas. Para tanto, os procedimentos investigativos/ expositivos foram orientados pelo método regressivo-progressivo lefe -

3A Área de Especial Interesse Urbanístico da Região Portuária do Rio de Janeiro (AEIU) foi criada pela Lei Complementar Municipal nº 101, de 23 de novembro de 2009 (LC 101/2009), lei que também institucionaliza a Operação Consorciada da Região Portuária do Rio de Janeiro, na qual está incluída a Operação Urbana Consorciada do Porto do Rio de Janeiro (OUC do Porto) (RIO DE JANEIRO, 2009).

4Fragmento da tese de Doutorado intitulada “O uso da terra para fins de moradia de interesse social na região portuária do Rio de Janeiro: da Operação Urbana Consorciada do Porto às necessidades habitacionais” de Maria Gorete da Gama e Silva, defendida em 2020 no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

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bvriano5 , alinhado ao materialismo histórico-dialético, que possibilita a apreensão e compreensão das “[...] implicações e imbricações lógicas que se compreendem [e que] não excluem (ao contrário), os conflitos, as lutas, as contradições.” (LEFEBVRE, 2006, p. 07), incorporadas no espaço que “[...] não estão nem ausentes, nem eliminadas [...]” (LEFEBVRE, 2006, p. 07)6

No caso da intervenção urbanística na área portuária da cidade do Rio de Janeiro ficou evidente que essas imbricações foram determinantes para a eclosão de lutas e agudização de conflitos gerados pela execução da OUC do Porto, com deslocamentos compulsórios, remanejamentos e expropriações. Situação que se tornou mais grave com a crise sanitária provocada pela pandemia da COVID-19, na qual o globo terrestre encontra-se desde o final de 2019. É notório que a pandemia vem agravando o quadro de precarização das condições de vida da população brasileira em condições de pauperização, no campo e nas cidades. Essas pessoas têm cor, classe social e endereço, ou seja, são os/as moradores/moradoras de favelas e das áreas periféricas das cidades brasileiras, onde os serviços públicos são insuficientes para o atendimento de necessidades humanas básicas. Diversos contingentes de famílias, nem o Código de Endereçamento Postal (CEP) têm, como os trabalhadores/as sem teto, os/as ocupantes de imóveis antes vazios, os/as que se encontram na situação limite de estarem na rua.

5O método regressivo-progressivo utilizado por Henri Lefebvre não difere/não se distancia do método dialético de Marx, mas segue dele. Para Lefebvre analisar o real, a atualidade, a concretude, resultado das contradições, frutos de relações sociais historicamente determinadas, o método deveria constituir-se do momento descritivo, o analítico-regressivo e o histórico-genético. Pois esse método é capaz de apreender as diferentes temporalidades e possibilita a articulação entre passado-presente-futuro, que coexistem no processo analisado, ou seja, a simultaneidade de espaço e tempo. Este método elaborado por Lefebvre que “[...] permite identificar extensões de tempo, ritmos históricos e distintas temporalidades coexistindo, o que não seria possível por um proceder metodológico assentado numa visão etapista do processo histórico.” (BEVEDER, 2019, p. 98), tornou-se orientação metodológica para muitos teóricos marxianos, como José de Souza Martins que faz a difusão do termo.

6 A pesquisa documental teve o Plano de Habitação de Interesse Social da Região Portuária do Rio de Janeiro (PHIS-Porto) como referência e delimitador deste tempo por ser o principal instrumento urbanístico criado para responder a demanda habitacional da região. Todos os documentos relacionados à OUC do Porto, à questão habitacional e à realidade pesquisada (Rio de Janeiro, 2015).

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Por fim, não podemos concluir sem deixar de falarmos sobre a partilha da produção desse artigo por 3 (três) mulheres amazônicas, coautoras, que possuem histórias que se cruzaram em momentos diferentes de suas vidas, mas, que desde sempre, trocam experiências de vida, saberes e aprendizados. Apesar do artigo abordar parte de uma Tese de Doutorado onde o chão empírico-material é a cidade do Rio de Janeiro, localizada na Região Sudeste do país e, sendo as 3 (três) autoras naturais da Região Norte do Brasil, escrevê-lo a seis mãos é somar esforços para compreender as determinações que envolvem e direcionam a produção e uso do espaço urbano nas diferentes regiões brasileiras. O esforço empreendido coletivamente é do desvendamento de processos de (re)produção do capital, entendendo que a atual lógica de gestão de cidades está assentada na concepção do “empresariamento urbano” e global. Esta lógica orienta o processo de gestão de cidades brasileiras em direção à sua mercantilização, que, de forma contraditória, expõe as frações da classe trabalhadora aos mais altos graus de vulnerabilidades, como o infortúnio gerado por graves violações de direitos, dentre eles, processos de despejos de suas casas e a falta de alternativas relacionadas à provisão habitacional pelo poder público.

Partilhar esse artigo - produzido a partir de uma Tese de Doutorado, resultante, muitas vezes, do trabalho individual (socializado, quase sempre, apenas com o/a orientador/a) - com essas duas mulheres é um ato de homenageá-las, pois, com elas dividi aprendizados, saberes, trocas no campo intelectual, na luta pelos direitos humanos, na prática profissional de Serviço Social e no chão da vida cotidiana sempre regado por afetos e compartilhamento de Utopia transformadora. Um outro motivo para essa construção é o de fortalecer laços institucionais entre grupos de estudos, como o Grupo de Estudos Marxistas-Lefebvrianos sobre Espaço Urbano, Vida Cotidiana e Serviço Social (UrbanoSS) da Faculdade de Serviço Social (FASS) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e o Grupo de Pesquisa em Políticas Urbanas e Movimentos Sociais (GPPUMA)/Programa de Apoio à Reforma Urbana (PARU) da Faculdade de Serviço Social (FASS) da Universidade Federal do Pará (UFPA).

O horizonte e o desejo dessa troca de saberes estão relacionados à capacidade de fecundar e transformar práticas de intervenção profissional

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de Assistentes Sociais viabilizadoras do compromisso assumido com a construção de processos emancipatórios daqueles/as que vivem da venda de sua força trabalho e do autorreconhecimento desses profissionais como classe trabalhadora, portanto, sujeitos protagonistas de lutas libertárias do jugo do capital em conluio com o Estado brasileiro, em suas diferentes esferas de poder (Executivo, Legislativo e Judiciário).

I. Operação Urbana Consorciada do Porto do Rio de Janeiro (OUC do Porto): contextualizando

alguns parâmetros

A baixa densidade demográfica constitui o principal argumento utilizado pelas equipes técnicas de sucessivas gestões municipais e, mais recentemente, da atual gestão do prefeito Eduardo Paes para justificar intervenções urbanísticas de renovação urbana na zona portuária do Rio de Janeiro. O referido argumento é endossado pela grande mídia, objetivando incentivar o adensamento da região portuária por novos moradores e moradoras, como também atrair investidores imobiliários. Porém, a zona portuária é uma região onde a vida pulsa, logo nunca foi um “vazio demográfico”. De acordo com o Diagnóstico Habitacional do Porto (2016, p. 22)7, com base no Censo de 2010/IBGE, nesta região estão concentrados 29.953 habitantes, sendo 14.609 homens e 15.344 mulheres, em 10.098 Domicílios Particulares Permanentes (DPP) - dos quais 5.261 têm homens como responsáveis e 4.799 dos domicílios estão sob responsabilidade de mulheres (RIO DE JANEIRO, 2016).

A área também concentra grande percentual de famílias sem renda e com renda de até 3 (três) salários-mínimos. Do total de 10.098 DPPs da AEIU, 8.869 (87,8%), possuem renda de até três salários-mínimos e, 579 (5,7%) não possuem renda nenhuma. Na área do entorno, 21.764, (62,1%) da população vive com até três salários-mínimos, e a considerada sem renda corresponde a 1.099 (3,1%). Portanto, conclui-se que o maior percentual da renda per capta da região está em torno de ½ a 1SM (meio

7 Chama a nossa atenção a data de construção do Diagnostico de Habitação de Interesse Social da Região Portuária do Rio de Janeiro ser um ano depois da data de publicação do Plano de Habitação de Interesse Social da Região Portuária. O próprio documento afirma ter como objetivo elencar e analisar as informações sobre a AEIU do Porto e de seu entorno com o propósito de “[...] contribuir para a formulação do Plano de Habitação de Interesse Social – PHIS do Porto.” (RIO DE JANEIRO, 2016, p. 03).

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a um salário-mínimo). Ou seja, quando somado os percentuais de até ¼ SM, de mais de 1/4 e 1/2 SM, de 1/2 a 1SM, têm-se 59% da população da área sobrevivendo com R$ 1.045,00 (salário-mínimo no Brasil em 2020).

A pesquisa do Observatório das Metrópoles intitulada “Prata Preta – Projeto Morar, Trabalhar e Viver no Centro”, desenvolvida em 2019, identificou 150 (cento e cinquenta) cortiços na região, revelando que o perfil prevalente de moradoras e moradores dessas moradias é caracterizado pela baixa escolaridade e quando se trata da geração de trabalho e renda, de um modo geral, as ocupações estão fortemente voltadas para o comércio ambulante, para serviços de cozinha e pequenos restaurantes, para o comércio e para atividades marítimas (OBSERVATÓRIO DAS METRÓPOLES, 2019)8 . Essa realidade é confirmada, quando observamos as principais atividades laborais dos moradores e moradoras das ocupações, sejam essas ocupações espontâneas ou as organizadas por movimentos populares, nas quais a maioria dessa população desenvolve trabalhos como ambulantes, como empregados/as domésticos/as, na construção civil (pedreiro) e nas portarias de prédios, prevalecendo alto grau de informalidade.

É na Área de Especial Interesse Urbanístico da Região Portuária do Rio de Janeiro (AEIU), que possui uma extensão territorial de 5 milhões de metros quadrados (5milhões de m²) que o projeto Operação Urbana Consorciada do Porto (OUC do Porto) está sendo desenvolvido, conforme se verifica na Figura 1.

8 É importante destacar que a Pesquisa de Extensão Prata Preta, desenvolvida pelo Observatório das Metrópoles, abrangeu a área central da cidade, ou seja, para além da poligonal definida como AEIU.

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Figura 1 - Delimitação da Área de Especial Interesse Urbanístico (AEIU) do Porto

Fonte: Rio de Janeiro, 2009.

A divisão administrativa da AEIU do Porto compreende a 1ª Região Administrativa – Portuária (RA-P), uma pequena parte da 2ª RA – Centro (RA-C), partes da 3ª RA – Rio Comprido (RA-RC) e da 7ª RA - São Cristóvão (RA-SC) e obedece a uma divisão setorial e subsetorial assim definida: 14 (quatorze) setores de A ao N e subsetores correspondentes: A1 - A5; B1 - B6; C1 - C5; D1 - D4; E1 - E4; F1; J1; I1; M1M3. Esta divisão administrativa foi proposta pelo grupo gestor/executor como a melhor forma para administrar e comercializar os Certificados de Potencial Adicional Construtivo (CEPAC)9 (RIO DE JANEIRO, 2015). Nessa área que o projeto OUC do Porto recebeu autorização para acontecer num prazo de 15 anos para sua execução e possibilidade de reprogramação em igual período; a OUC do Porto foi viabilizada pela

9 O Coeficiente de Aproveitamento Básico (CAB), por exemplo, representa a área com potencial para construção em lotes, sem a necessidade de realização do pagamento de outorga à Prefeitura. Este pagamento faz-se necessário para a construção em áreas que ultrapasse o CAB até o limite de área construída determinado pelo Coeficiente de Aproveitamento Máximo (CAM). Em outros termos, “[...] a área adicional contida na diferença entre o CAB e o CAM é a área vinculada ao pagamento de outorga, que no contexto da Operação Urbana Consorciada da Região do Porto do Rio de Janeiro, é feita através dos Certificados de Potencial Adicional de Construção.” (CARVALHO, 2017, p. 77).

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Parceria Público-Privada (PPP) firmada entre a Prefeitura-Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região Portuária do Rio de Janeiro (CDURP) e a concessionária Porto Novo S/A, formada pelas construtoras OAS LTDA, Norberto Odebrecht Brasil S.A. e Carioca Christiani-Nielsen Engenharia S.A, com um orçamento inicial de 8 bilhões de reais.

Para garantir a exequibilidade operacional da OUC do Porto, o poder público municipal concentrou esforços na mudança e na criação de novos aparatos legais e urbanísticos. Neste sentido, foi proposta uma estrutura de modelagens: institucional, jurídica e financeira, envolvendo as instituições responsáveis por sua execução, no caso a Prefeitura por meio da Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região Portuária do Rio de Janeiro (CDURP) e a Caixa Econômica Federal (CAIXA).

A modelagem institucional está baseada na criação da própria Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região Portuária do Rio de Janeiro (CDURP)10 , que se tornou o órgão municipal coordenador e gestor da Operação. A modelagem Jurídica corresponde ao conjunto de leis, normas, decretos e as necessárias modificações do Plano Diretor do Município de 1992 para atender as prerrogativas da Operação, como também todo procedimento jurídico de aprovação dos CEPAC’s, pilar financeiro e núcleo central da modelagem financeira. A modelagem Financeira refere-se à garantia do bom funcionamento do fluxo dos recursos que financiariam a Operação. Assim, foram criados 2 (dois) Fundos de Investimentos: o Fundo de Investimento Imobiliário do Porto Maravilha (FII PM), que

10

A Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto do Rio (CDURP), instituída pela Lei Complementar nº 102, de 23 de novembro de 2009 e regulamentada pelo Decreto nº 31.620, de 21 de dezembro do mesmo ano, é uma sociedade de economia mista, constituída sob a forma de sociedade anônima, com personalidade jurídica de direito privado e patrimônio próprio, cujo controle é exercido pelo Município do Rio de Janeiro. Possui como objeto, “[...] promover direta ou indiretamente, o desenvolvimento da Área de Especial Interesse Urbanístico - AEIU da Região do Porto do Rio de Janeiro; coordenar, colaborar, viabilizar ou executar, no âmbito de competência do Município do Rio de Janeiro a implementação de concessões, em quaisquer das modalidades previstas nas Leis Federais n.º 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, e n.º 11.079, de 30 de dezembro de 2004, ou outras formas de associação, parcerias, ações e regimes legais que contribuam ao desenvolvimento da AEIU da Região do Porto do Rio de Janeiro, em conformidade com os estudos de viabilidade técnica, legal, ambiental e urbanística aprovados pela CDURP e pelos demais órgãos e autoridades públicas competentes [...]. Gerir os ativos patrimoniais a ela transferidos pelo Município ou por seus demais acionistas, ou que tenham sido adquiridos a qualquer título” (RIO DE JANEIRO, 2009, p. 01).

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tem como cotista o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) e o Fundo de Investimento Imobiliário da Região Portuária (FII RP), cujos cotistas são a CDURP e o Fundo Caixa FII Porto Maravilha. Este último (FII RP) deve garantir o aporte, em troca de cotas, dos CEPAC’s e dos imóveis adquiridos pelo município de modo a integralizá-los como capital social da CDURP. Essas mudanças e proposições também foram previstas na Lei Complementar nº 101 de 2009.

A divisão administrativa por setores e subsetores da AEIU também teve como propósito manter o controle sobre os recursos arquitetônicos – imóveis e terrenos – da área, os quais serviriam como ativo para atrair empreendedores para o local. Esta divisão, para a OUC do Porto, obedece às propriedades da morfologia urbana existente na região, como grau de potencial para construção e os coeficientes de aproveitamento básico e máximo estabelecidos por setores e gabaritos, consolidando os usos predominantes da referida área (RIO DE JANEIRO, 2010).

Nos termos da CAIXA:

Cada setor tem um índice de aproveitamento máximo do terreno que limita seu potencial construtivo de forma a evitar o adensamento desordenado; as faixas de equivalência referem-se ao potencial de valorização econômica de cada sub-região, definindo a quantidade de Certificados de Potencial Adicional de Construção (CEPAC’s) necessários para a implantação de empreendimentos imobiliários. (BRASIL, 2017, p. 8).

Carvalho (2017) analisa que as áreas mais próximas da Baia de Guanabara são aquelas com lotes maiores e onde estão localizadas grandes edificações11. Assim, esse “fatiamento” ocorreu de acordo com os parâmetros de valorização do solo definidos pelo mercado, o que significa dispor para o mercado corporativo, financeiro e imobiliário, as localizações com maior oferta de infraestrutura e, ainda, com generosos benefícios fiscais que amortecem as despesas dos compradores/locatários ao

11

Carvalho (2017, p. 75-76), entende que “[...] essas características são mais evidentes nos setores ao longo da Av. Rodrigues Alves, nos setores A, B, C e N e também nos setores D e M, localizados no eixo da Av. Francisco Bicalho. Nestes seis setores estão registradas das mais baixas densidades demográficas da AEIU. Devido à morfologia dos lotes, aos seus usos e características de posse e ao seu baixo número de moradores, estes são os setores com maior disponibilidade de terrenos e, por sua vez, com maior potencial para absorver área adicional com CEPACs – exceto o setor N, onde não é exigido CEPAC.”.

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adquirirem terrenos e imóveis na região.

Nesse sentido, são as grandes empreiteiras que lucram com contratos bilionários firmados entre o poder público municipal e o setor privado por meio de PPPs, como se observou sobre a dinâmica que se estabeleceu entre o “Projeto Olímpico” e a OUC do Porto, que ocorreu sobre as formas de uso e ocupação do espaço urbano mais valorizadas da região (CARDOSO, 2013).

Quando se trata de apropriação da terra com potenciais adicionais de construção valorizada pela OUC do Porto, todo processo de financeirização e de compra na AEIU, todo o processo de captação de recurso realizado pela Prefeitura, via Bolsa de Valores, corresponde à transação de um objeto-mercadoria fictício, “terra-virtual”. Isso significa que todos os recursos como “os terrenos públicos e aqueles obtidos com a sua venda, integralizam o FII Porto Maravilha junto com os CEPAC’s.

Quando se trata, portanto, da OUC do Porto, falamos de 4 milhões de área adicional de construção transformados em título mobiliário a ser comercializado na Bolsa de Valores, envolvendo a apropriação de recursos do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) gerados pela força de trabalho. Isso significa que, “[...] no final, a expropriação fecha seu círculo sobre a terra urbana e, em especial, sobre a expulsão da população pobre que ocupa os cortiços, favelas, imóveis abandonados/ vazios da região.” (CARDOSO, 2013, p. 187).

As vantagens, propiciadas pelo poder público aos diferentes grupos capitalistas, intensificam a capacidade desses grupos de se apropriarem, privadamente, das benfeitorias públicas que qualificam e diferenciam a terra e os bens imóveis em termos do seu valor de uso e de valor de troca. Com isso, elevam o valor da terra, dos imóveis e/ou dos aluguéis, permitindo ganhos diferenciados no processo de apropriação da renda fundiária. Como renda absoluta, os grupos que lucram com a extração da renda da terra na região, atuam no processo de estocagem de terrenos, tornando-os um tipo de mercadoria valiosa com a qual podem auferir maiores lucros nas transações comerciais imobiliárias e hipotecárias12 .

12 Nos limites da discussão sobre renda da terra desenvolvida na Tese de Doutorado e que não difere deste trabalho, apresentamos o entendimento de renda absoluta de Botelho, cuja compreensão advém de Marx para o qual renda fundiária do capitalismo se divide em

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Qualquer discurso oficial em torno da provisão de habitação de interesse social nessa região, cai por terra. Cai por terra não apenas pelos limites que se impõem aos mecanismos institucionais da prefeitura e do mercado, mas, também porque na dinâmica do capital não há lugar para “habitação interesse social”, haja vista que a questão da distribuição da terra, do território e da habitação não são determinantes do modo capitalista de produção, conforme apontou Engels no século XIX (ENGELS, 1988).

II. Da produção capitalista do espaço, às necessidades de habitação de interesse social

A produção capitalista do espaço e as contradições impostas pela lógica do “empresariamento urbano” provocam a valorização e a mercantilização do espaço, transformando a cidade em mercadoria, de acordo com o pensamento lefebvriano. Esse modelo contemporâneo de acumulação capitalista possui incondicionalmente o apoio do Estado, o qual atua por meio de um modelo de gestão e gerenciamento do espaço que direciona o capital acumulado aos investimentos na produção e reprodução do espaço e na empregabilidade de uma parte da força de trabalho fora do mercado “formal” de trabalho.

Como afirma Harvey (2018, p. 28), com base na teoria marxiana, “[...] o Estado é invocado como agente e elemento ativo na garantia da continuidade e da ampliação da circulação do capital.”. Para discutir a produção do espaço na era contemporânea é preciso, segundo Lefebvre, enfrentar a sua complexidade a partir da relação entre os conceitos de produção e reprodução das relações sociais. Mais precisamente, deve-se partir da crítica a uma forma restrita, estruturalista e economicista da compreensão do conceito de produção. Desta forma, para Lefebvre (1973) a produção pode ser compreendida no âmbito da acepção do conceito ampliado do termo reprodução, pois este conceito:

três rendas: renda absoluta, renda diferencial I e II, e renda monopolista. No referente a renda absoluta, esta se constitui ao tributo pago a classe dos proprietários de terras que controlam essa fatia de produção. Segundo Botelho, essa renda pode ser absorvida pelo proprietário em períodos determinados ou de uma só vez com a venda da terra. Em outros termos, apresenta duas condições de existência: “[...] a) o domínio do modo de produção capitalista e o desenvolvimento desigual entre os seus setores (agricultura e indústria) e, b) a resistência da propriedade fundiária frente ao capita.” (BOTELHO, 2007, p. 71).

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Restitui ao conceito de ‘produção’ um conteúdo definido, um referencial prático. Ele permite compreender a perda de sentido e de identidade no tocante ao conceito de ‘produção’ e talvez também a alguns outros conceitos e termos, desejos, práticas etc. (LEFEBVRE, 1973, p. 23).

Para Lefebvre, o conceito ampliado de produção não está descolado do pensamento de Marx, para quem, o conceito não pode ser reduzido a um sistema filosófico ou simplesmente a uma teoria da economia política13 , mas compreendido na produção da vida em sociedade e na sua totalidade. Isso significa que o termo comporta processos de transformações e mudanças na paisagem dos lugares ao imprimir o novo. Dito isso, Lefebvre entende que a produção do espaço ocorre a partir de um duplo aspecto: desintegração e integração. Em outros termos, a organização anterior, ao se desintegrar, dá lugar ao novo modo de produção e de organização do espaço. Contudo ocorrem sob temporalidades que não são apenas sincrônicas, mas também diacrônicas, pois carregam os processos tensos, conflituosos e até mesmo violentos da relação entre desintegração/criação do novo/persistência de formas-conteúdo anteriores. Assim, a nova paisagem e o novo modo de organização do espaço, segundo Milton Santos (2006), não eliminam por completo as marcas anteriores que resistem como rugosidades14 deixadas pelas práticas espaciais, sociais e culturais nos espaços.

Assim, podemos considerar que analisar o uso da terra como mercadoria, ou seja, como meio para a extração de mais-valia e renda fundiária na área urbana, mas também por aqueles que a disputam como valor de uso, é uma determinação de grande influência na disputa pelo solo. A contribuição de Marx, no campo da renda fundiária urbana, incidiu,

13 Lefebvre (1999) se reporta à obra Introduction à la critique de la vie cotidianne, escrita em 1946 após o fim da ocupação da França pela Alemanha.

14

Para Milton Santos (2006, p. 91-92), o conceito de rugosidade está relacionado à divisão territorial do trabalho. Para ele, a rugosidade consiste “[...] ao que fica do passado como forma, espaço construído, paisagem, o que resta do processo de supressão, acumulação, superposição, com que as coisas se substituem e acumulam em todos os lugares. As rugosidades se apresentam como formas isoladas ou como arranjos. É dessa forma que elas são uma parte desse espaço -fator. Ainda que sem tradução imediata, as rugosidades nos trazem os restos de divisões do trabalho já passadas (todas as escalas da divisão do trabalho), os restos dos tipos de capital utilizados e suas combinações técnicas e sociais com o trabalho.”.

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segundo Botelho (2007), sobre papel desempenhado na esfera da construção em terrenos urbanos formulado a partir da identificação de 3 (três) aspectos: a) influência decisiva da localização sobre a renda diferencial; b) exploração pelo proprietário dos avanços do processo de desenvolvimento social para o qual nada contribui e no qual nada arrisca; c) predomínio de preço do monopólio.

Sob a lógica do “empresariamento urbano”, - para a qual a parceria público privada, onde o “[...] investimento e o desenvolvimento econômico através de empreendimentos imobiliários pontuais e especulativos” (HARVEY, 1996, p. 36), é a sua principal característica - , a renovação urbana consiste em um dispositivo que atua para lidar com “[...] os problemas cotidianos de coordenação na produção, uso, transformação e abandono de elementos particulares dentro do ambiente construído [...]” (HARVEY, 2013, p. 575), o propósito é “[...] estabelecer meios independentes e formas de circulação independentes que podem moldar as configurações espaciais do ambiente construído segundo as variadas exigências do capital e do trabalho em geral.” (HARVEY, 2013, p. 575).

Deste modo, quando se indaga sobre “[...] o lugar que a necessidade habitacional de interesse social ocupa na OUC do Porto do Rio de Janeiro [...]” (SILVA, 2020, p. 154) parte-se do pressuposto que o Estado possui papel fundamental na produção do espaço, não medindo esforços para responder aos interesses do mercado, mesmo que tais processos ocorram às custas de reiteradas negações de direitos sociais. Isso significa que a atuação do Estado, em seus diferentes poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário –, sobre o espaço é uma chave da análise crítica para entender como se dá, por quem se dá e de que forma se dá a apropriação e a dominação do espaço urbano, tendo como pressuposto que o espaço é expressão de um movimento dialético entre processos de dominação e apropriação. Na atualidade, quando falamos de necessidade de moradia de interesse social, a entendemos nas dimensões objetiva e subjetiva. Em relação à dimensão subjetiva, esta necessidade é revelada na vida cotidiana, enquanto a dimensão objetiva é constituída pelas contradições entre as lógicas do habitar e do habitat, o que será explicitado, por aproximação neste artigo, pelo esforço analítico do processo histórico, em diferentes temporalidades, das diversas alterações às quais a região portuária do Rio

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de janeiro foi submetida.

III. Temporalidades urbanas da região portuária do Rio de Janeiro e a questão da habitação de interesse social

O Rio de Janeiro, como uma cidade que sempre ocupou um lugar de destaque, desde a colonização, passando pelo período do Estado Imperial e, posteriormente, a república, é um exemplo de como os projetos de reforma urbana provocam processos de gentrificação, além da segregação de camadas sociais empobrecidas que não podem arcar com as novas taxas/impostos do “novo” lugar. Segundo Abreu (1997), a cidade do Rio de Janeiro, no início do século XX, vivia as grandes transformações promovidas principalmente pelo crescimento da economia do país que se intensificava com as atividades exportadoras, por conseguinte, integrava o Brasil ao contexto capitalista internacional.

Conforme mencionamos anteriormente, no Rio de Janeiro no século passado, foram realizadas destacadas reformas urbanísticas, atingindo sobretudo a região central, incluindo a portuária, bem como espaços mais elitizados. Se verificarmos, as principais transformações ocorridas na história do espaço urbano da zona portuária da cidade, percebemos a forte influência oriunda das transformações ocorridas na economia mundial a partir da segunda metade do século XIX15 . Para Cardoso (2013, p. 175) “[...] em termos territoriais, a Região Portuária foi alterada ao longo do tempo com mudanças profundas em sua paisagem.”.

As mudanças vinculam-se a um conjunto de fatores, entre os quais destacam principalmente dois: a) o desenvolvimento das atividades econômicas portuárias da região e o papel de destaque do porto do Rio

15

O mundo em meados do século XIX passava pelas mudanças radicais da era do capital imperialista clássico, na qual toda a estrutura de acumulação e reprodução nas economias não capitalizadas foram submetidas ao domínio da reprodução do grande capital do Ocidente, cuja racionalidade determinou o desenvolvimento econômico do que mais tarde seria denominado de “Terceiro Mundo”. Esse modelo de reprodução do capital baseado na exportação de capital dos países imperialistas e não mais na acumulação primária conduzidas pelas classes dominantes locais, sufocou o desenvolvimento dos países do “Terceiro Mundo” ao absorver, por meio de um escoamento qualitativamente crescido, os recursos nacionais. Este escoamento assumiu, a forma de “[...] expropriação sucessiva de produto excedente social local pelo capital estrangeiro [...]” (MANDEL, 1982, p. 36), reduzindo de forma drástica os recursos que serviriam para os proprietários interno a continuidade a acumulação de seus capitais.

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nos fluxos internos e externos de circulação das mercadorias demandado pela agroexportação cafeeira e pelo crescimento das importações de mercadorias e recursos variados; b) os impactos socioespaciais das reformas urbanas em curso desde o final do século XIX e intensificadas nas primeiras décadas do século XX, notadamente o impacto sobre a moradia decorrente da remoção da população trabalhadora das freguesias centrais atingidas pelas grandes obras viárias de saneamento e das campanhas sanitárias e higienistas (CARDOSO, 2013).

À medida em que a área portuária se torna a principal área de movimentação da economia, por onde circulavam (e circulam) as principais mercadorias e produtos importados e exportados para abastecer a cidade, torna-se também o lugar onde se concentra o maior contingente de moradias das frações pauperizadas da classe trabalhadora. Essa população que sempre esteve submetida a todos os males provocados pelas crises cíclicas econômicas e sociais, também foi a mais atingida com a crise habitacional do final do século XIX e início do século XX.

Para Lamarão (2006), a crise habitacional instalada na área urbana da cidade, nos finais do século XIX e conhecida como “penúria e carestia de habitação para a grande massa dos pobres” se agravou com a reforma urbanística de Pereira Passo e a ação higienista que difundia a ideia de que a situação sanitária da região se tornava um perigo para a cidade, como nos mostra Benchimol: Matadouros, açougues, mercado de peixes, armazéns de carne seca, toucinho, queijos, depósitos de azeite de peixe são perigosos tanto do ponto de vista da integridade dos alimentos como por serem potenciais corruptores do ar. Fábricas, hospitais e prisões se igualam na ausência de regras higiênicas e disciplinares [...] as ruas são estreitas e tortuosas, dificultando a renovação do ar e a circulação dos veículos, além de serem utilizadas como lugares de despejo de lixo. As praias são imundos depósitos de fezes e lixo. As praças são poucas e malcuidadas, sem árvores, cheias de poças, lama, imundícies, atestando o desconhecimento de que a relação entre uma praça e uma cidade devia ser idêntica a relação do pulmão com o corpo. (BENCHIMOL, 1992, p. 118).

Seu agravamento ocorreu sobremaneira “[...] com as demolições maciças ocorridas na área central da cidade [...]” (LAMARÃO, 2006, p. 95) que acabaram, “[...] sem dúvida, com um sem-número de cor -

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tiços e habitações anti-higiênicas, tão condenadas pelas autoridades e abandonadas pelas elites [...]” (LAMARÃO, 2006, p. 95), “[...] limparam literalmente o terreno para a livre atuação do capital [...]” (LAMARÃO, 2006, p. 95).

Foi assim nos séculos XIX e XX e está sendo no século XXI. As configurações espaciais e territoriais dessa área portuária, na atualidade, mostram que processos vem provocando o aumento dos protagonistas interessados na apropriação do espaço como valor de uso. Esta área é um espaço onde as múltiplas camadas o formam e o constitui. Segundo, Carlos, são “[...] camadas que o tempo condensa no espaço, dando-lhe significado [...]” (CARLOS, 2017, p. 201).

Para Rolnik (2015), não parece existir dúvidas entre os estudiosos e formuladores de políticas habitacionais no Brasil e no mundo de que a terra é um dos componentes necessários para a sua efetivação. Aqui, o termo terra é utilizado em seu sentido amplo, ou seja, urbano e rural considerando que o campo também é atingido pelo problema de falta de habitação, em virtude, principalmente, da ausência da política fundiária. A terra deve possuir todas as condições necessárias para a promoção dessa política essencial, inclusive a regularização fundiária. É necessário desatar “o nó da terra”, revelado por Maricato (2008).

Na zona portuária da cidade são identificados programas que também serão atravessados pelas contradições e os conflitos dessa lógica capitalista quando confrontada com as demandas e necessidades sociais cotidianas de quem vive e trabalha na região. Entre esses programas destacamos 2 (duas) ações municipais importantes no âmbito da urbanização de assentamentos precários da cidade: a) o Programa Favela Bairro (séculos XX e XXI) e b) Programa Morar Carioca (século XXI). A articulação entre ações do governo federal e municipal, também para urbanização de assentamentos precários por meio do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) (século XXI), e, por último a OUC do Porto também neste mesmo século.

Como grandes projetos de renovação urbana, foram atravessados por diferentes processos institucionais, legais e políticos que conformaram a gradativa delegação à iniciativa privada, até chegar ao formato atual da PPP, de boa parte da execução dos projetos e políticas públicas ur-

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banas, sob responsabilidade do Estado. Tal processo, quando atravessado pela lógica do “empresariamento urbano”, aprofunda ainda mais os mecanismos utilizados para a valorização, concentração e reprodução do capital ao reproduzir as contradições do espaço e os conflitos urbanos em uma escala exponencial.

Nesse sentido, todas essas experiências de atuação governamental no espaço urbano da área central da cidade, significa uma relação direta com a questão da moradia na zona portuária e com a complexidade que envolve tanto o ambiente construído quanto a necessidade habitacional historicamente existente na região. Nos últimos projetos de renovação urbana da zona portuária, mais precisamente Morar Carioca e OUC do Porto, a questão da moradia tem o sentido de resolver os entraves ao avanço das obras, ou melhor dizendo, ao fluxo do capital que só pode ocorrer, com o avanço da obra.

Neste caso, a questão da moradia se expressa como “problema a ser resolvido” para o andamento das obras e, por isso, se expressa sob a forma de “remoção” de moradoras e moradores. Por isso as alternativas apresentadas são para intervir sobre situações já de conflito, pois, pressupõe a instauração prévia de cenários de remoção. As propostas apresentadas para os moradores/as e/ou comerciantes, pequenos empresários locais, se apresentam, sob as formas de indenização, a partir de parâmetros legais municipais e não de valores de mercado ou de outros parâmetros imateriais, ou para realocação de algumas famílias em um certo número de unidades habitacionais a serem construídas. Sem respostas as suas demandas por moradia digna, muitas famílias encontram nas ocupações de prédios e terrenos vazios o alento e a proteção de um teto para proteger seus corpos, tornando assim ato de resistência pelo direito à moradia e à cidade.

IV. Lutas e resistências pelo direito à moradia digna na Região Portuária do Rio de Janeiro

Quando se trata da região portuária do Rio de Janeiro que concentra 75% dos imóveis públicos, onde grande parte encontra-se em condição de abandono, vazio e subutilizado, é injustificável a existência de uma grande parcela da sua população vivendo em situação de precariza-

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ção habitacional, a não ser pela lógica do capital, para a qual a casa é uma mercadoria e seu acesso dá-se via mercado, como analisa Villaça (1986).

Nesse sentido, mesmo estando prevista na Lei Complementar nº 101/2009 (RIO DE JANEIRO, 2009) a provisão de Habitação de Interesse Social (HIS) em qualquer setor da AEIU, não há qualquer ação concreta neste sentido nos 12 (doze) anos de existência da OUC do Porto, a não ser a elaboração, em 2015, do Plano de Habitação de Interesse Social da Região Portuária (PHIS do Porto), ou seja, cinco anos após o início da referida Operação.

O Plano indica como alternativas para provisão de habitação de interesse social, imóveis e terrenos vazios, aqueles com dívidas tributárias e adquiridos através de acordos entre a prefeitura e proprietários e a permuta ou compra de imóveis que podem integrar o Programa de Locação Social e Cota Solidária16 , a exemplo do que ocorreu em São Paulo (CARVALHO et al., 2015). O referido Plano aponta um estoque de terrenos desapropriados com potencial para a construção de cerca de 500 (quinhentas) unidades habitacionais. Vale destacar que esses dados são de 2015, ou seja, de seis anos atrás.

Como metas, o PHIS do Porto prevê: a) produzir pelo menos 5000 mil unidades de Habitação de Interesse Social; b) disponibilizar no mínimo 1500 unidades de habitação de interesse social e 250 espaços comerciais para o Programa de Locação Social; c) atender a pelo menos 2500 imóveis de proprietários de baixa renda dentro da AEIU por meio do Programa de Melhorias Habitacionais; d) regulamentar e definir Programa de Urbanização para as Área de Espacial Interesse Social (AEIS) do Morro da Providência e Pedra Lisa, como também para os morros São Diogo e Moreira Pinto; e) prover equipamentos de educação e saúde em consonância com o crescimento da população. No âmbito do Programa Minha Casa, Minha vida, o PHIS do Porto apresenta a previsão de um total de 1.436 Unidades Habitacionais17

16A adoção da Cota Solidária de Habitação de Interesse Social na Área Central, determina que a construção de empreendimentos habitacionais na cidade do Rio de Janeiro, acima de 300 unidades, esteja vinculada à construção de 20% do total produzido para habitação de interesse social, em imóveis próprios da Prefeitura do Rio de Janeiro, na área central da cidade.

17Dados extraídos da apresentação em PowerPoint do Diagnóstico Habitacional do Porto

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A OUC do Porto não veio para atender as demandas da população da região, como por exemplo prover habitação de interesse social e outros serviços básicos essenciais. A oferta de produção de HIS prevista no Plano é irrisória, quando se observa que na região portuária, no período entre 2000 e 2010, o “adensamento de uma população precarizada, marcada por um grande número de trabalhadores manuais”, elevou-se, como analisa Soares Et all (2015, p. 5). O próprio PHIS aponta um percentual de 60% dos moradores/as dos bairros Gamboa, Santo Cristo e Saúde, vivendo com renda de até R$ 1.600,00 e um “déficit habitacional” de 16,32% que corresponde mais de 50% do total de moradores/as (29.953) da área (RIO DE JANEIRO, 2015).

Essa realidade de pauperização avilta-se quando somente na região do projeto SAGAS18 , há um total de 2.981 (duas mil novecentos e oitenta e um) pessoas morando em imóveis alugados, cedidos e naquelas “enquadrados” nas categorias “outras condições” e “não aplicáveis”, conforme categorização do IBGE, número este que se eleva para 8.429 quando somado ao número de moradores/as na faixa de R$ 3.275 a 5.000,00.

O Índice de Desenvolvimento Social (IDS), composto por fatores de acesso a saneamento básico, qualidade habitacional, escolaridade e renda, é outro indicador social presente nos bairros da região portuária que pode medir essa desigualdade. Estes apresentam rebaixamento do IDS (variando de 0.57 a 0.58), ficando em último lugar na Área de Planejamento 1 (AP1), que possui IDS de 0.60, abaixo do IDS do município do Rio de Janeiro (0.61) (RIO DE JANEIRO, 2016). Portanto, observa-se que o quadro de negação e violação de direitos humanos ao povo das (RIO DE JANEIRO, 2016).

18 Decreto 7351 de 01 de janeiro de 1988, regulamenta a Lei 971 que criou a APA do SAGAS. O decreto, delimita a área e suas subáreas, nas quais existem imóveis que devem ser preservados, como ainda aperfeiçoa outras normas urbanísticas para os bairros que o Santo Cristo, Gamboa e Saúde, cujas as letras iniciais formam a sigla SAGAS. Este projeto O Projeto SAGAS seguiu a mesma diretriz dos outros projetos criados com o objetivo atuar na preservação do patrimônio histórico-cultural da região central da cidade. Destaca-se por concentrar-se na definição de parâmetros para ocupação e, em termos de extensão territorial, avançou para a zona portuária abarcando os bairros da Saúde, Gamboa e Santo Cristo e foi resultado da mobilização e organização dos moradores e moradoras preocupados com as transformações pelas quais a área vinha passando (RIO DE JANEIRO, 1988).

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favelas é reiterado a cada ação do poder público na região19.

A OUC do Porto ao negar o atendimento pleno de serviços públicos básicos na região, como saúde, educação, habitação, alimentação, transportes, fornecimento de água, entre outros, que já se apresentavam insuficientes e que estão relacionados à realidade material da vida social, só agravou o rebaixamento do grau de bem-estar dos moradores e moradoras da região. A proposta de renovação urbana, por meio da OUC do Porto, torna-se um atrativo aos capitais que auferem vultosos lucros com o encarecimento do solo e a consequente disputa. Dentre esses capitais, o mercado imobiliário especula e atua no sentido de atrair para a região um consumidor solvável, ou seja, aquele que pode consumir “o novo”. Sem investimento em habitação de interesse social e diante da incapacidade financeira de continuar arcando com as despesas de aluguel e outros serviços que também encareceram, reflexo da renovação urbana, encontram nas ocupações de prédios e imóveis vazios e abandonados na área central da cidade, a “alternativa” para garantir um teto e um abrigo. Assim, observamos que o número de ocupações espontâneas de imóveis vazios vem crescendo na área central da cidade do Rio de Janeiro, colocada como uma estratégia de resistência das famílias que lutam pela permanência na região e, que, ao serem forjadas no movimento da vida cotidiana, passam quase sempre desapercebidas20 .

As formas de resistência e luta pelo direito à moradia digna e à

Para Gomes e Fernandes (2016), a condição de Área de Espacial Interesse Social (AEIS) do Morro da Providência, por exemplo, não foi impeditivo para a Prefeitura Municipal tentaram remover mais 800 (oitocentas) famílias do referido morro por ocasião do programa Morar Carioca.

19

20 Ximenes (2017), nos apresenta um levantamento das Ocupações ocorridas na área central da cidade desde 2003, como: Chiquinha Gonzaga, prédio do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), em 2003; Zumbi dos Palmares, 2005 Avenida Venezuela, 53, prédio do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS); Flor do Asfalto, 2005, rua Rodrigues Alves SNPU; Quilombo das Guerreiras, 2006 na Av. Francisco Bicalho, 49 Companhia Docas do Rio de Janeiro; Casarão Azul Rua, 2006 na rua Rodrigues Alves, 143; Carlos Marighela, 2007, na rua Riachuelo, 48, prédio do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS); Machado de Assis, 2008, rua Machado de Assis Antiga propriedade da empresa Unilever, desapropriado em nome da prefeitura do município do Rio de Janeiro; Manuel Congo, 2008, rua Alcindo Guanabara, 20, prédio do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS); Mariana Crioula, 2011, rua Pedro Ernesto, 125 Antigo armazém do porto; Quilombo da Gamboa, 2013, Via Binário, Porto SPU e Prefeitura; Vito Giannotti, 2016, rua Sara, 85, bairro Santo Cristo. Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).

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cidade se expressam também por meio da arte de rua, do grafite que fazem dos muros e paredes das casas suas telas e trazem, nesses símbolos, múltiplos significados, dentre quais o sentimento de pertencente ao território e instrumento de denúncia das violações de direitos reiteradas a cada renovação urbana ocorrida na região, como revela Rolnik (2015, p. 257): Enquanto subo a escadaria do morro da Providência, área portuária do Rio de Janeiro, o olhar dos moradores espantados em retratos gigantes colocados nos muros das casas, me acompanha. Era a denúncia de que, em pouco tempo, elas iriam desaparecer. Todos os moradores das casas lindeiras à escadaria, que por mais de cem anos foi o principal acesso à comunidade, teriam de sair para dar lugar a um teleférico que levaria até o alto do morro, onde mais casas desapareceriam para que a área se transformasse num mirante [...].

Diante de um Estado, alheio às demandas da população pauperizada da região e que a joga à própria sorte, cabe a essa população, achar soluções para os problemas que lhes afligem, como por exemplo, encontrar alternativas para a falta de moradia (WERNECK, 2017). O movimento de ocupar e resistir na área central da cidade do Rio de Janeiro está no campo da correlação de forças, no qual os/as moradores/as colocam-se como obstáculos à tentativa do capital em mercantilizar o espaço e esvaziá-lo das relações sociais, tornando-se potência transformadora e irredutível à cotidianidade.

As manifestações de resistência forjadas, portanto, na dinâmica da vida cotidiana impõem-se à lógica da apropriação do espaço unicamente para dele extrair mais-valia. Como enfatiza Lefebvre (1991), o espaço não é um simples reflexo da dinâmica econômica, mas é o lugar da luta política. Nesse sentido, mesmo sendo a OUC do Porto mecanismo propagador de processos expropriativos, encontra na outra ponta do campo político, processos históricos de resistências que se contrapõem às violações de direitos humanos produzidas pelo Estado brasileiro em simbiose com diferentes frações do capital e reivindicam o direito ao “habitar” na zona portuária.

Considerações Finais

O cenário de extrema desigualdade socioeconômica no Rio de Janeiro é mostrado em levantamento realizado pela Secretaria Munici-

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pal de Assistência Social e Direitos Humanos (SMASDH) / Subsecretaria de Integração e Promoção da Cidadania (SUBIPC)21, em 2017, que identificou cerca de 15.000 (quinze mil) pessoas em situação de rua. Sem qualquer perspectiva, uma parte da população desabrigada encontra na ocupação de imóveis abandonados na cidade a alternativa para se abrigar, como também por meio deste processo passa a exercer pressão popular para o cumprimento da função social da propriedade. É nesse contexto que ocorrem, no campo e na cidade, processos de despejos e reintegração violenta de posse durante o enfrentamento e a disputa pelo valor de uso desses espaços.

O Rio de Janeiro, como as demais metrópoles do país, segue a mesma lógica das grandes cidades globais, onde as transformações urbanas atendem a lógica mundial do movimento de reprodução/acumulação, concentração/centralização do capital. As grandes transformações urbanísticas transformam a paisagem da região e invocam a imagem da cidade empreendedora, turística e de belezas naturais, com potencialidade competitiva no mercado nacional e internacional.

Quando voltamos à análise da região portuária, observamos que das transformações urbanísticas pelas quais a região já passou na sua história, a OUC do Porto do Rio de Janeiro pode ser caracterizada como a mais moderna renovação urbana do ponto de vista da lógica neoliberal de transformação do espaço em produto e da cidade em mercadoria. Mas, a região, como espaço de reprodução da vida, nega-se a transformar-se em mercadoria de forma irreversível, como também se nega ao controle das condições impostas pela superficialidade do habitat, cuja ação urbanística é verticalizada. A produção do espaço, entendida de forma horizontalizada, revela o espaço produzido a partir do e no cotidiano. Um espaço que reivindica o seu uso como espaço do usuário, que, segundo Lefebvre (2006, p. 6), configura-se no “[...] conflito entre a inevitável maturação,

21 MENDES. André T. CAMINHOS PARA POLÍT ICAS PÚBLICAS PARA POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA (INTRODUÇÃO) In: População em situação de rua: direitos humanos, políticas públicas e programas de housing first. Cadernos FGVDIREITORIO Série Clinicas. - Educação e Direito - Volume 09, Rio de Janeiro, 2017. Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/19931/ Cadernos%20FGV%20Direito%20Rio%20-%20S%c3%a9rie%20Cl%c3%adnicas%20 -%20Volume%209.pdf?sequence=6&isAllowed=y. Acesso em: 30 set. 2022.

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longa e difícil, e a imaturação que deixa intactas as fontes e reservas iniciais, marcas do espaço vivido.”. Desse conflito afloram manifestações reveladoras de uma tendência potencializadora da construção de uma nova realidade sempre aberta para o devir.

A OUC do Porto articula os movimentos do lugar às suas temporalidades produzindo/transformando o cotidiano da região, principalmente as formas de uso do espaço urbano portuário, que provocam, ao mesmo tempo, processos (in)tensos de estratificação social e intensificam processos de resistência e luta pela moradia digna. Estes processos são materializados no cotidiano do lugar e possibilitam aos sujeitos (re) produzirem o espaço com base na utopia urbana, entendida como espaço apropriado e como potência de um devir reivindicado por aqueles e aquelas que o desejam para nele trabalhar, morar, viver com dignidade e exercerem o direito de serem felizes.

A volta de Eduardo Paes à Prefeitura do Rio de Janeiro (20212024) não deixa dúvidas de que sua forma de gerenciar o espaço urbano ancora-se na lógica do “empresariamento urbano”. O velho discurso do abandono e do vazio urbano fundamenta a lógica de “revitalização” da zona portuária, mantendo o propósito de atrair para a região novos capitais, seja das frações do capital imobiliário ou do mercado financeiro, o que passa a exigir novos arranjos urbanísticos e jurídicos para tal propósito. Enquanto escrevíamos este artigo era aprovado na Câmara Municipal do Rio de Janeiro o mais novo “Plano de Requalificação do Centro do Rio de Janeiro” (RIO DE JANEIRO, 2016a), em 22 de junho de 2021, com o título “Reviver Centro”. O referido Plano deve continuar sendo financiado com recursos do Fundo Público oriundos de incentivos fiscais oferecidos às grandes empresas da construção civil, que construirão na região para segmentos sociais com capacidade de compra dos bens produzidos, enquanto pouco ou nada serão atendidas as necessidades sociais de moradia digna que persistem na região portuária.

O “Plano Reviver Centro” prevê a produção de Habitação de Interesse Social vinculada ao “Programa Casa Verde e Amarela (PCVA)”, proposto pelo atual governo federal (Jair Messias Bolsonaro – 2019/2022). Com o referido vínculo, ficarão fora de atendimento as famílias cuja faixa de renda é de até (3) três salários-mínimos, o que corresponde ao maior

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percentual do déficit habitacional da região. Somando-se a esse quadro ocorre a retirada do subsídio de até 90% do governo às famílias com renda até R$ 1.800,00, oferecido no antigo “Programa Minha Casa, Minha Vida (PMCMV)” e mais a elevação da menor faixa de renda para R$ 2.000,01.

O que refletimos nesse artigo nos leva a constatar que ocorre, de forma reincidente, o “não lugar”, a “não priorização” de projetos de “Habitação de Interesse Social” nas intervenções urbanísticas de “renovação urbana” localizadas na zona portuária do Rio de Janeiro. É um modus operandi gerador da violação do direito universal à moradia digna que é replicado em outras regiões brasileiras, como por exemplo, na Amazônia brasileira, universo de investigação das coautoras agregadas ao processo de elaboração do presente artigo.

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SOBRE OS AUTORES

Bruno Alves de França

Assistente Social. Professor Substituto da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ESS/UFRJ) e Educador Popular da FASE - Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional. Doutorando em Serviço Social pelo Programa de Pós-graduação em Serviço Social (PPGSS/ESS/UFRJ) e mestre em Planejamento Urbano e Regional pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ). E-mail: bruno.seso@gmail.com

Caroline Magalhães Lima

Doutoranda em Serviço Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Mestre em Serviço Social pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Bacharel em Serviço Social pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). Militante de movimentos de luta por moradia e pelo direito à cidade. E-mail: carol_pds@hotmail.com

Caroline Rodrigues da Silva

Assistente Social. Doutoranda em Serviço Social pelo Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Mestre em Serviço Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Integrante do Núcleo de Pesquisa sobre Movimentos Sociais (Nemos/PUC-SP). Educadora da Fase – Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional. E-mail: cora_rs@ hotmail.com

Daiane da Silva Pacheco Assistente Social. Mestre em Serviço Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); Especialista em Atendimento a Criança e Adolescente em Situação de Violência Doméstica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio); Coordenadora do Projeto de Trabalho Técnico Social pela Método Assessoria e Consultoria Ltda, no âmbito do PRO Sustentável – CAF/Niterói. Integrante do Grupo de estudos sobre espaço urbano, vida cotidiana e Serviço Social

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(UrbanoSS), da Faculdade de Serviço Social da UERJ. E-mail: daianepacheco.adm@gmail.com

Daniele Batista Brandt

Assistente Social. Doutora em Serviço Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Especialista em Política e Planejamento Urbano pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e em Gênero e Sexualidade pelo Instituto de Medicina Social (IMS) da UERJ. Professora Adjunta do Departamento de Fundamentos Teórico-Práticos do Serviço Social na FSS/UERJ. E-mail: daniele.brandt@uerj.br

Fábio Fraga dos Santos

Graduado em Ciências Sociais pela UEL. Doutor em Serviço Social pelo Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da UERJ. Professor do Departamento de Ciências Humanas e Sociais da UFVJM. E-mail: fabio.fraga@ufvjm.edu.br

Isabel Cristina da Costa Cardoso

Assistente Social. Doutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP) e Pós-Doutora em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Professora Associada dos Cursos de Graduação e Pós-Graduação em Serviço Social da Faculdade de Serviço Social (FSS) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Coordenadora do UrbanoSS – Grupo de Estudos e Pesquisas sobre o Espaço Urbano, Vida Cotidiana e Serviço Social da FSS/UERJ. E-mail: icostac2010@gmail.com

Maria Elvira Rocha de Sá

Assistente Social, Doutora em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Docente Aposentada do Instituto de Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Federal do Pará (UFPA). E-mail: marel.rdsa@gmail.com

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Maria Gorete da Gama e Silva Assistente Social. Doutora em Serviço Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Técnica no Instituto Rede Jubileu Sul Brasil (Instituto JSB), onde atua como Articuladora Local do Projeto Sinergia para prevenção e mediação de conflitos urbanos no Brasil. E-mail: ggama.slv2005@gmail.com

Marina Rodrigues Corrêa dos Reis Assistente Social. Doutoranda em Serviço Social pelo Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da UERJ. Mestra em Serviço Social pelo Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da UFJF. Especialista em Política e Pesquisa em Saúde Coletiva e Especialista na Modalidade Residência Saúde da Família pela UFJF. E-mail: marinarreis@hotmail. com

Matheus Thomaz da Silva Assistente Social. Doutorando em Ciências Ambientais e Conservação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Mestre em Serviço Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professor Assistente do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense (UFF), em Campos dos Goytacazes. E-mail: mattseso@gmail.com

Mónica Brun Beveder

Assistente Social. Doutora e Mestre em Serviço Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Docente do Departamento de Trabajo Social, Facultad de Ciencias Sociales, Universidad de la República (Udelar), Uruguay. Integrante do UrbanoSS – Grupo de estudos sobre espaço urbano, vida cotidiana e Serviço Social, da Faculdade de Serviço Social da UERJ, e do Grupo de Estudios del Trabajo (GET), da Facultad de Ciencias Sociales da UDELAR. E-mail: mbrunb@hotmail.com

Natália Coelho de Oliveira Assistente Social. Doutoranda em Serviço Social pela UFRJ. Mes-

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tre em Serviço Social pela UERJ. Especialista em Política e Planejamento Urbano pelo IPPUR/UFRJ e em Dinâmicas Urbano-ambientais e Gestão do Território pela Faculdade de Formação de Professores (FFP)/UERJ. E-mail: nataliacoelho2014@gmail.com

Patricia Nicola Menezes

Assistente Social. Mestre em Serviço Social pela UERJ. Especialista em Políticas Sociais pela Universidade do Grande Rio (Unigranrio) e Responsabilidade Social e Elaboração de Projetos Sociais pela Universidade Veiga de Almeida (UVA). Pesquisadora do Grupo de Estudos UrbanoSS-Grupo de Estudos Marxistas-Lefebvrianos sobre Espaço Urano, Vida Cotidiana e Serviço Social da FSS/UERJ. E-mail: patricianicola7@ gmail.com

Raphael Martins de Martins

Graduado em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). Doutorando pelo Programa de Pós-graduação em Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Atua na luta pelo Direito à Cidade em Fortaleza/CE. E-mail: raphael.martins.martins2@ gmail.com

Sandra Helena Ribeiro Cruz

Assistente Social. Doutora em Ciência Socioambiental pela UFPA. Professora Associada do Instituto de Ciências Sociais Aplicadas da UFPA e Assessora Técnica e Parlamentar na Assembleia Legislativa do Pará. E-mail: cruz.sandra761@gmail.com

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