Imagens escriturais de Cristóvão Colombo: um oceano entre nós – vozes das diferentes margens

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IMAGENS ESCRITURAIS DE CRISTÓVÃO COLOMBO: um oceano entre nós vozes das diferentes margens Gilmei Francisco Fleck



IMAGENS ESCRITURAIS DE CRISTÓVÃO COLOMBO: UM OCEANO ENTRE NÓS – VOZES DAS DIFERENTES MARGENS



Gilmei Francisco Fleck

IMAGENS ESCRITURAIS DE CRISTÓVÃO COLOMBO: UM OCEANO ENTRE NÓS – VOZES DAS DIFERENTES MARGENS 1a Edição Eletrônica

Uberlândia / Minas Gerais Navegando Publicações 2021


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www.editoranavegando.com editoranavegando@gmail.com Uberlândia – MG, Brasil Direção Editorial: Navegando Projeto gráfico e diagramação: Lurdes Lucena Revisão: Marcio da Silva Oliveira Arte da Capa: Cristian Javier Lopez Capa: 1492 – o ano crucial

Copyright © by autor, 2021.

G487 – FLECK, G. F. Imagens escriturais de Cristóvão Colombo: um oceano entre nós – vozes das diferentes margens. Uberlândia: Navegando Publicações, 2021. ISBN: 978-65-86678-94-9 DOI: 10.29388/978-65-86678-94-9 1. História 2. Cristóvão Colombo. 3. América I. Gilmei Francisco Fleck II. Navegando Publicações. Título. CDD – 900 CDU – 94 Índice para catálogo sistemático História 900


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Editores Carlos Lucena – UFU, Brasil José Claudinei Lombardi – Unicamp, Brasil José Carlos de Souza Araújo – Uniube/UFU, Brasil

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Conselho Editorial Multidisciplinar Pesquisadores Nacionais

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Esta é uma prática reflexiva inserida nos estudos do Grupo de Pesquisa “Ressignificações do passado na América: processos de leitura, escrita e tradução de gêneros híbridos de história e ficção – vias para a descolonização”. Mondaí, SC, 2021.



Esta obra é resultado de alguns anos de estudos ao longo dos quais convivi com pessoas que me foram inspiração para que algum dia eu me dedicasse às ressignificações do passado possíveis a partir da arte literária. Entre eles estão meus filhos, meus mestres, amigos, colegas e vários orientandos que, com seu esforço e dedicação, expandiram essas iniciativas a patamares muito mais significativos que meus próprios esforços poderiam alcançar. A todos eles deixo registrado o meu sincero agradecimento. Sejamos ressignificações... Mondaí-SC, março de 2021.



La historia se vive hacia delante, pero se escribe de manera retrospectiva. Conocemos el final antes de considerar los comienzos y nunca llegamos a reaprehender cabalmente esa sensación de estar al tanto únicamente de los comienzos. C.V. Weedgewood A própria arte comporta verdade. Verdade de respeito e verdade de dúvidas. Paul Ricoeur



SUMÁRIO APRESENTAÇÃO

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INTRODUÇÃO

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PRIMEIRA PARTE

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1 - LITERATURA E HISTÓRIA

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DISCURSOS À INTELIGIBILIDADE SOBRE O PASSADO NO PRESENTE

1.1 ENTRE A CIÊNCIA E A ARTE: ATRAVESSANDO O

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OCEANO – A PROJEÇÃO DO PASSADO AMERICANO AOS NOSSOS DIAS

1.2 O ROMANCE HISTÓRICO: DAS HISTÓRIAS

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1.3 A AMÉRICA DE COLOMBO: UM OCEANO DE

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ROMÂNTICAS SCOTTIANAS ÀS RESSIGNIFICAÇÕES CRÍTICAS DO OUTRO LADO DO ATLÂNTICO CONTRASTES E FRONTEIRAS SEGUNDA PARTE

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2. CRISTÓVÃO COLOMBO: CONSTRUÇÕES

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DISCURSIVAS

2.1 UM OCEANO ENTRE NÓS: COLOMBO NA

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HISTÓRIA

2.2 MARES DANTES NAVEGADOS: COLOMBO – A

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PERSONAGEM LITERÁRIA TERCEIRA PARTE

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3 - A TRAVESSIA DE CRISTÓVÃO COLOMBO: 1492 – DO

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OCEANO AINDA TENEBROSO DA EUROPA ÀS PROMISSORAS TERRAS AMERICANAS

3.1 O BERÇO FICCIONAL ANGLO-SAXÔNICO

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3.2 DAS ONDAS EXALTADORAS ÀS MARÉS

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AMERICANO DE COLOMBO: VOZES SCOTTIANAS ATRAVESSANDO OCEANOS MEDIADORAS: COLOMBO NA LITERATURA ESPANHOLA

3.3 O REVOLTOSO OCEANO FICCIONAL DOS

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3.4 MANIFESTAÇÕES LITERÁRIAS SOBRE COLOMBO

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COLONIZADOS – COLOMBO EM IMAGENS ROMANESCAS CRÍTICAS HISPANO-AMERICANAS NA LITERATURA BRASILEIRA: O NOVO ESPAÇO DA HEROICIDADE

3.5 EM MARES DE ONDAS FEMININAS: COLOMBO

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PALAVRAS FINAIS

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REFERÊNCIAS

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SOBRE O AUTOR

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SOBRE O REVISOR

297

SOBRE O ILUSTRADOR

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ESCRITO POR MULHERES – DA EXALTAÇÃO À MEDIAÇÃO


APRESENTAÇÃO Estabelecer, nesta obra, um panorama das imagens ficcionais de Cristóvão Colombo nas literaturas da América e da Espanha – contextualizadas dentro da trajetória do gênero romance histórico – compreendeu um empreendimento de pesquisa que se estendeu por quase duas décadas de estudos. Das personagens de extração histórica, no contexto das literaturas ocidentais, Colombo, seguramente, é aquela que mais frequentemente foi recriada pela arte literária. Essas recriações artísticas abrangem todas as etapas que conseguimos formalizar dentro da trajetória do gênero híbrido de história e ficção que se estabeleceu com as produções iniciais do escocês Walter Scott, nas primeiras décadas do século XIX, conhecido como romance histórico. Desse modo, encontramos imagens de Cristóvão Colombo já na fase acrítica primeira do romance histórico, nas produções estadunidenses, inauguradas pelo “Scott americano”, James Fenimore Cooper. Essa fase acrítica primeira estendeu-se como majoritária de 1814 até 1949. Nela, desenvolveramse duas modalidades representativas dessas escritas híbridas: o romance histórico clássico scottiano e o romance histórico tradicional. O último deles – o romance histórico tradicional – segue sendo produzido na contemporaneidade concomitantemente às produções críticas das novas fases que se instauraram a partir de 1949, com o romance El reino de este mundo, do cubano Alejo Carpentier, obra que deu início a um frutífero ramo crítico/desconstrucionista no âmbito das escritas híbridas de história e ficção. A escrita romanesca inaugural das imagens ficcionais de Colombo, seja de autoria masculina ou feminina, que compõem esse oceano de imagens colombinas que aqui vamos conhecer, deu-se na literatura estadunidense do século XIX, mais precisamente no ano de 1840. Desse contexto estadunidense primeiro – campo de exaltação e mitificação do marinheiro –, a “poética do descobrimento”, em suas expressões romanescas, chega à Espanha do início do século XX – com a mesma intenção apologética e laudatória do espaço estadunidense inaugural da temática na prosa romanesca – para, no período do Boom da literatura latino-americano, entre as décadas de 1960 e 1970, tornar-se recorrente, também, na literatura hispanoamericana, contudo, sob outro olhar: o crítico/desconstrucionista. No período do Boom – inserido, por sua vez, no auge do contexto de renovação da narrativa na América Latina, iniciado por volta da década de 1940 –, o gênero híbrido de história e ficção conheceu a escrita experimentalista dos narradores hispano-americanos. Essas produções ocorreram já no contexto da segunda fase da trajetória do gênero – iniciado, como mencionamos acima, em 1949, por Alejo Carpentier, com a obra El reino de este mundo –, a que denominamos de crítica/desconstrucionista.

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Por meio da literatura, a América hispânica, a partir da década de 1970 até nossos dias, enfrenta-se com as precedentes imagens escriturais de Colombo – oriundas tanto do discurso historiográfico hegemônico e tradicional, sob o qual se registrou o passado do nosso continente, quanto do âmbito literário laudatório e exaltador das imagens e das ações do navegante – para refutá-las aberta e criticamente. Duas são as modalidades que acolhem essas imagens paródicas, carnavalizadas, grotescas e intertextualizadas de Colombo: o novo romance histórico latino-americano e a metaficção historiográfica. Essas modalidades desconstrucionistas, cultivadas, a princípio, na literatura latino-americana, encontraram interlocutores, também, na conservadora literatura estadunidense que, até o final da década de 1980, era nicho de exaltação e louvor ao marinheiro e suas ações. As reações dos narradores latino-americanos mais jovens – já manifestadas nos anos finais da década de 1970 – aos experimentalismos linguísticos e formais característicos das produções do Boom – que tornaram as obras hispano-americanas, produzidas nesse contexto, altamente complexas em ternos de linguagem e estrutura, elitizando, assim, de forma acentuada, a camada leitora do romance histórico crítico – provocaram, também, alterações na fase crítica/desconstrucionista do romance histórico Esse, ao abandonar os experimentalismos e ao optar por produzir relatos híbridos com estruturas lineares, linguagem fluída e amena e perspectivas mais fixadas em sujeitos alijados dos registros historiográficos tradicionais, inicia, então, por volta da década de 1980, no contexto da poética do descobrimento, a sua mais recente e atual fase: a crítica/mediadora. Essa tendência atual mediadora presente nas escritas híbridas de história e ficção, ao conciliar algumas das características da fase acrítica – como a linearidade narrativa e o emprego de uma linguagem fluída – com outras da fase crítica/desconstrucionista – como o uso da paródia e da ironia, da polifonia e dialogia, bem como das intertextualidades –, constrói um relato que, ideologicamente, enfrenta-se com o discurso historiográfico tradicional e com as modalidades acríticas do gênero romance histórico, porém abandona os objetivos desconstrucionistas da segunda fase do romance histórico em detrimento da exposição de vivências do passado a partir da “história vista de baixo” (SHARPE, 992). É nessa atual terceira fase da trajetória do romance histórico – a fase crítica/mediadora – que encontramos, na “poética do descobrimento”, ressignificações críticas do passado em todos os espaços históricos e geográfico-culturais que este estudo contempla. Forma-se, assim, o oceano de imagens de Colombo entre nós, organizado, na sequência, para a sua leitura. Conscientizar-se, pela leitura do romance histórico em todas as suas fases e modalidades, das transformações que lhe são inerentes como expressão política e social, além de cultural e artística, para, assim, dar-se conta de como a 18


escrita sempre foi instrumento eficiente e operante ao longo do processo de colonização – especialmente nos relatos referentes ao “descobrimento”, conquista e colonização da América – é recuperar, sob perspectivas múltiplas que revogam a ideia de uma “verdade única”, os acontecimentos do passado. Acompanhar a trajetória escritural das imagens do sujeito “descobridor” – Cristóvão Colombo –, que se tornou símbolo de todos os enfrentamentos entre europeus conquistadores e colonizadores e as muitas comunidades autóctones das terras por ele encontradas em sua rota à China e ao Japão, em 1492, é, sem dúvidas, uma forma privilegiada de conceber como a história e a literatura são construtos de linguagem altamente ideológicos. Ler, compreender e analisar tais produções híbridas de história e ficção que exibem contrastantes imagens escriturais de Colombo – um verdadeiro oceano entre nós –, e nelas identificar as diretrizes ideológicas, os recursos e estratégias escriturais empregados, as nuances do discurso produzido e, desse modo, entender o entremeado da tessitura discursiva, elaborado a partir da manipulação dos signos linguísticos pela arte literária, é encaminhar-se a versões outras do passado, é reconhecer-se, também, como sujeito latino-americano ativo no transcurso histórico. Esses são passos à descolonização...

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INTRODUÇÃO O ser humano sempre buscou, de forma relevante, desenvolver a sua capacidade comunicativa, valendo-se, para tanto, das formas de linguagem que lhe eram conhecidas, empregando-as num processo contínuo de aperfeiçoamento de suas expressões, a fim de alcançar a compreensão do mundo que o cerca pelo entendimento dos fatos do passado que geraram o entorno do qual participa no presente. Tal compreensão do passado, no presente vivido, garante ao indivíduo possibilidades de melhor planejar ações do futuro em prol de melhorias em sua existência. Isso lhe é possível uma vez que, ao longo do processo evolutivo da comunicação humana, também se chegou ao conhecimento necessário para registrar o que se fala, aquilo que se pensa e o que se inventa e se descobre, pelo emprego de meios que garantam o acesso a essas informações no presente experienciado pelo sujeito. Esses registros permitem um constante fluir de informações ao longo do tempo. Como resultado desse processo cumulativo de experiências culturais, surge na consciência humana um senso de passado e de futuro, não somente de presente, para ampliar a visão e o entendimento do mundo. Essa tríplice visão permite ao sujeito a interpretação da realidade em suas múltiplas dimensões. Tal interpretação dá-se por meio de um processo crítico de leitura do mundo que, juntamente com a capacidade inerente ao homem de transformar o meio socioeconômico, político e cultural no qual está inserido, possibilita-lhe uma adaptação à realidade que vise às transformações para o seu bem-estar. Baseada no conhecimento e compreensão do passado, que leva à análise, ao entendimento e à confrontação do presente, essa adaptação do sujeito ao entorno, por sua vez, induz-lhe a se posicionar e, consequentemente, a buscar alternativas para efetuar as mudanças necessárias à satisfação de suas necessidades. Tais mudanças implicarão em transformações em seu futuro – a partir de suas ações no espaço em que vive e atua –, o que gera um constante processo de aperfeiçoamento, tanto individual quanto coletivo, já que o ser humano é social por natureza. O desejo de manter vivas as conquistas, as descobertas e as tantas outras experiências vivenciadas e transmitidas oralmente de geração a geração levou nossos antepassados a encontrarem meios de registrá-las de diversas formas. Essas foram evoluindo até que se chegou a um complexo sistema chamado escrita que, sempre calcado na base oral como fonte de qualquer possibilidade de representação gráfica da fala humana, possibilitou um acúmulo maior e uma sistematização mais precisa de informações, facilitando o acesso a elas, tal qual concebidas em sua época, por indivíduos distanciados no tempo. Tal feito marcou o limite entre a pré-história e o início da história, pois se gerou, a partir dos registros escriturais, novas fontes e diversas possibilidades 21


de tornar o passado inteligível no presente. À história tem-se atribuído, desde então, a responsabilidade de efetuar os registros dos eventos ocorridos que passaram a ser considerados históricos, ou seja, que tiveram uma importância fundamental no passado de certa comunidade, influenciando, de certa forma, a própria história da humanidade e, portanto, esses marcos foram vitais nesse processo de busca de identidade individual e coletiva da espécie humana. Nesse sentido e numa perspectiva histórica, a escrita tornou-se um instrumento, um meio, uma ferramenta pela qual os homens passaram, ao lado da oralidade, a cultivar e registrar a sua visão dos acontecimentos, especialmente aqueles que julgaram mais relevantes, expondo, assim, a sua leitura de mundo. Essa leitura, ou seja, a visão, a concepção e o entendimento da realidade impregnada pela ideologia vigente em certa comunidade e em certa época, a compreensão de um fato passado por um ou mais indivíduos dessa coletividade, é submetida aos valores e às concepções de um número reduzido de indivíduos que possuem a habilidade da escrita e observam a evolução da realidade para, então, registrá-la mediante tal destreza. Esses registros, por sua vez, passaram a ser fontes, junto a outras materialidades referenciais, das quais hoje nos servimos para realizar a leitura de nosso passado, para entender nossa realidade, consequência, em boa parte, dessas vivências passadas. Os registros feitos desde então, bem como as descobertas anteriores a eles, são os elos que conectam povos, espaços e fatos ao longo do tempo, permitindo-nos, hoje, por meio do acesso às informações neles contidas, saber como viviam nossos ancestrais, quais eram seus anseios, necessidades, suas prováveis procedências, hábitos e costumes. Ao se dominar e aperfeiçoar cada vez mais o sistema da escrita, passouse a efetuar tais registros com uma múltipla riqueza de nuances, empregando um maior e mais diversificado conjunto de técnicas escriturais, ao longo de sua própria evolução. O controle dessa ferramenta sempre foi de interesse das classes dominantes, uma vez que a escrita, logo de sua criação, [...] assumiu um caráter distintivo, conferindo aos que dominavam a técnica de escrever […] um lugar de destaque na sociedade. […]. O escriba foi […] um indivíduo privilegiado, pois, embora proviesse das massas populares livres ou dos escravos, tinha acesso à vida palaciana, circulava entre a aristocracia e estava próximo da realeza. (ZILBERMAN; SILVA, 1995, p. 11).

Desse modo, a história revela que as habilidades de ler e escrever sempre estiveram irmanadas com as camadas mais altas da sociedade, sempre foram utilizadas como meio de controle e seleção para a ascensão social. Esse fato levou o indivíduo escriturário, em certo momento, a optar por distintas formas de registros, separando aqueles que se propunham a ser objetivos, mais calcados em realidades materializadas e passíveis de comprovação, daqueles 22


mais subjetivos, voltados para a exploração do potencial da própria linguagem e sua capacidade autorreflexiva. Sendo, todavia, composta por seres em constante desenvolvimento, a humanidade não poderia, por um longo tempo, conformar-se com uma visão única e tradicional dos fatos e, em tais circunstâncias, passou-se a registrar, também, certas “possibilidades” acerca dos acontecimentos, ancoradas em probabilidades vistas a partir de outras perspectivas e contingentes diversos daqueles regidos pela ideologia dominante. Surgiram, por exemplo, visões diferentes de um mesmo acontecimento do passado com base em experiências ou suposições de vivências de distintas personagens actantes nos eventos. Isso possibilita ao homem contemporâneo revisitar a história, relê-la, bem como reescrevê-la, resultando daí a possibilidade da formação de uma consciência crítica, proporcionada pela leitura em seu mais amplo e profundo sentido, que está inserido no contexto da compreensão da criação e da manipulação discursiva da linguagem, pois [...] a leitura é vista como um ato de se colocar em relação um discurso (texto) com outros discursos anteriores a ele, emaranhados nele e posteriores a ele, como possibilidades infinitas de réplica, gerando novos discursos/textos. O discurso/texto é visto como conjunto de sentidos e apreciações de valor das pessoas e coisas do mundo, dependentes do lugar social do autor e do leitor e da situação de interação entre eles – finalidades da leitura e da produção do texto, esfera social de comunicação em que o ato da leitura se dá. Nesta vertente teórica, capacidades discursivas e linguísticas estão crucialmente envolvidas. (ROJO, 2004, p. 3).

Essa é uma das mais importantes possibilidades, entre as múltiplas leituras da realidade, que a contemporaneidade oferece ao homem: a leitura crítica. No contexto das escritas híbridas de história e ficção, os distintos discursos são postos lado a lado, numa relação bastante intrigante, mas com algo em comum: sua constituição discursiva, que é baseada em material de linguagem, o qual pode ser interpretado de forma diversa, permeado pela realidade subjetiva de cada falante. Assim, ambas as narrativas, a fatual da história e a imaginativa da ficção, podem oferecer ao homem uma visão mais ampla e englobadora desses diferentes discursos. Seguindo esse raciocínio, como afirma o escritor argentino Tomás Eloy Martínez (1996), poucas dúvidas restam, na atualidade, de que ambas, história e literatura, não são mais escritas no intuito de “modificar o passado”, como já se chegou a acreditar. Hoje, elas são escritas para “corrigir o futuro”. Desvelar, em um romance híbrido de história e ficção, por exemplo, as citadas relações é o que consideramos “prática de leitura crítica”, ou então o citado “senso dos três tempos”, ou ainda, a formação de uma “consciência histórica”. Tais conceitos apresentam-se como perspectivas teóricas que perseguimos ao longo das 23


reflexões expostas nesta obra, na análise das múltiplas imagens escriturais de Cristóvão Colombo, seja no campo da historiografia, seja no da literatura. Esse intento é apoiado em aspectos teóricos e críticos que abordam o tema do romance histórico contemporâneo em suas distintas vertentes de expressão linguística e ideológica. Também discutimos o secular relacionamento entre a história e a literatura que, em 1814, possibilitaram o surgimento da escrita híbrida de história e ficção consciente e harmoniosamente planejada pela produção romanesca do escocês Walter Scott. A presença das diferentes características que marcaram a trajetória da evolução dessa escrita híbrida, as quais serão explicitadas ao longo do texto em obras contemporâneas, instiga-nos a aprofundar estudos de aspectos teóricos que denunciam a existência da dicotomia da tradição e da renovação presente, por exemplo, nas obras de romancistas que reproduzem, ficcionalmente, as ações de Cristóvão Colombo. Essas levaram ao encontro, enfrentamento e dominação, por parte dos europeus, dos autóctones habitantes das terras com as quais se deparou Colombo em sua tentativa de chegar, em 1492, à China e ao Japão, por uma, então, desconhecida rota da Europa via oeste às Índias. Ao nos aproximarmos das imagens escriturais de Cristóvão Colombo, em especial na literatura, buscarmos dar destaque às características presentes nos romances que se ocuparam, ao longo da trajetória do gênero híbrido de história e ficção, em criar expressões romanescas incluídas em um conjunto maior de produção literária a qual a crítica chama de “poética do descobrimento da América”, que reúne as obras da temática em suas mais diversas vertentes da lírica, do drama e da prosa ao redor do mundo. Não nos fixamos no Romantismo, Realismo ou Modernismo, embora obras desses períodos sejam também mencionadas ou brevemente referidas a fim de dar uma visão mais panorâmica da personagem como protagonista de romances. O panorama literário das imagens escriturais de Colombo elaborado para este texto se fixa em publicações que estabelecem a trajetória das imagens de Colombo na literatura romanesca desde sua primeira configuração, em 1840, até as mais recentes, já inseridas no século XXI. Essas imagens escriturais sobre a personagem e suas ações, por sua vez, conduzem-nos à reflexão sobre a visão que se tem sobre os registros históricos hoje, a liberdade criadora da literatura no tratamento do material histórico e a busca de identidade na renarrativização ou ressignificação do passado, além, é claro, de revelar semelhanças e diferenças no fazer literário de romancistas dos dois continentes envolvidos nas ações de Colombo: a Europa (Espanha, em especial) e a América. Desse modo, nosso estudo volta-se à “poética do descobrimento”, centrada nas figurações de Cristóvão Colombo, para revelar as múltiplas expressões, dicotomizadas entre tradição e renovação, existentes na prática escritural do romance histórico que tem como eixo diegético as ações que colidiram nos enfrentamentos entre os dois continentes. Trata-se de um intento 24


que será abordado de forma panorâmica quando buscarmos analisar o tratamento dispensado à personagem Colombo na literatura romanesca e na história, porém, mais especificamente, em algumas obras e autores que selecionamos para tal fim. As distintas posturas adotadas por romancistas históricos espanhóis e das três Américas diante dos registros efetuados sobre o encontro e enfrentamento dos europeus com os nativos de nosso continente e o uso dos materiais históricos na elaboração das diegeses ficcionais dos romances de acentuado caráter laudatório, por um lado, e crítico, por outro, são aspectos que, encontrados nas obras que compõem o panorama de romances da temática em questão que selecionamos para evidenciar o tratamento literário ao qual a personagem Cristóvão Colombo é submetido pela ficção, constituem questionamentos para os quais buscamos justificativas plausíveis. Aspectos que, quando presentes, buscamos destacar também nas obras que abordamos ao longo deste estudo. A presença de Colombo como protagonista de romances históricos nos chama a atenção em obras que vão desde a gênese do tema na narrativa, em 1840, até as produções mais recentes do século XXI e, nelas, nosso interesse volta-se para as estratégias e recursos que o romance histórico utiliza para efetuar a sua releitura da personagem e da história por ela gerada, com destaque para as posturas adotadas por seus narradores diante dos registros históricos oficiais; o aproveitamento estético das imagens pré-concebidas de Cristóvão Colombo por meio da intertextualidade (tanto pelo discurso histórico oficial quanto pelo ficcional); bem como os procedimentos narrativos que edificam a criação poética voltada ao passado da América e os choques causados pela dominação europeia. Para tanto, selecionamos, entre as correntes teóricas, obras que discutem as principais características do gênero romance histórico na ficção, para fins de exemplificar a utilização da personagem Cristóvão Colombo em romances históricos que ora exaltam, ora desmistificam o marinheiro e suas ações. Entre os estudiosos do tema, destacamos, entre outros, Fernando Aínsa (1991), que registrou as características inovadoras encontradas em obras hispano-americanas do gênero a partir da década de oitenta, do século XX, bem como Seymour Menton (1993), que reclassifica essas características, destacando os procedimentos formais na elaboração das obras híbridas de história e ficção. Abordamos, também, os aspectos teóricos apontados por Célia Fernández Prieto (1998 [2003]), a respeito da existência, na atualidade, de uma linha de romances históricos que mantêm, de modo geral, as características mais tradicionais do gênero e de outra que se coloca em aberta confrontação com tais pilares, assim como os estudos de Carlos García Gual (2002), entre outros, sobre o romance histórico e sua relação com a história. Os aspectos referentes à metaficção historiográfica e suas características mais marcantes 25


ficam por conta das reflexões de Linda Hutcheon (1991; 2013) e Amalia Pulgarín (1995). Por outro lado, destacamos, da mesma forma, algumas das imagens escriturais bem conhecidas de Colombo no universo não ficcional, com abordagens às biografias consagradas do marinheiro, com escritas, por um lado, voltadas à consagração de um herói e suas ações, e, por outro, tentativas de questionamento sobre os registros já efetuados a respeito do homem que produziu, escrituralmente, as primeiras imagens da terra e das gentes que habitavam as terras além do “mar tenebroso” no imaginário europeu. Necessitamos, para tanto, proceder a uma breve investigação que abarque os registros não ficcionais sobre a personagem histórica aqui abordada, incluindo, pois, as imagens geradas por alguns de seus vários biógrafos e estudiosos. Em momento algum julgamos seus feitos históricos, pois buscamos compreender a sua recriação no nível escritural pelos procedimentos formais utilizados para a estruturação dos discursos que consignam imagens do sujeito histórico e de suas realizações. Esta obra encontra-se dividida em três partes. A primeira, que trata das relações entre a literatura e a história, consiste em uma breve revisão bibliográfica crítica, de caráter interdisciplinar, abrangendo as distintas áreas que se ocuparam do assunto. Inclui-se ainda nesta parte, já mais especificamente na área da literatura (história, teoria e crítica), uma rápida revisão bibliográfica sobre o romance histórico, com um breve painel evolutivo das principais inovações acrescidas ao romance histórico romântico europeu de Scott e seus seguidores até a sua configuração atual, revelando seu caráter dicotomizado entre tradição e renovação. A segunda abrange o mundo escritural das imagens da personagem. Nela, abordamos, primeiramente, algumas das imagens geradas por diferentes biógrafos na reconstrução da vida desse sujeito que alterou o curso da história. Buscamos verificar como o seu caráter e a sua personalidade são expostos, juntamente com a valorização que os seus biógrafos atribuem aos escritos deixados por Colombo. A partir daí, apontamos o modo como os seus próprios registros contribuem para os romancistas na elaboração, reconstrução e ressignificação, em nível ficcional, da personagem romanesca que habita um mar de produções dicotômicas, plurais, caleidoscópicas. Utilizamos, para tal, as imagens literárias de Cristóvão Colombo presentes nas obras de alguns romancistas históricos, selecionados a partir de um panorama de obras que aponta as principais recriações ficcionais da “poética do descobrimento” no gênero romanesco. Nesta parte do nosso estudo, o intento é o de constatar as dicotomias que as renarrativizações (acríticas) e as ressignificações (críticas) dessa personagem ocasionam na literatura e os distintos discursos que daí resultam, contribuindo, assim, para ampliar o campo de conhecimento dos “retratos literários de Cristóvão Colombo” (MILTON, 1992). Assim, revela-se uma vasta 26


rede de relações transtextuais (GENETTE, 1982), que reelaboram imagens de Colombo na arte romanesca, pela reescrita de outros discursos ficcionais ou históricos. Na terceira parte, procuramos, por meio de quadros representativos da produção literária sobre as ações que colocaram frente a frente os distintos universos culturais da América e da Europa, em 1492, evidenciar as diversas modalidades nas quais a personagem Colombo já foi configurada, ficcionalmente, nas literaturas dos Estados Unidos da América, da Espanha, da América Hispânica e do Brasil e, por fim, uma síntese desse universo restrito à produção de autoria feminina, um espaço amplo e instigador para novas pesquisas. Nosso estudo traça a trajetória das imagens escriturais da personagem Colombo ao longo de toda a diversidade de produções que o gênero romance histórico foi amalgamando ao longo dos séculos. Torna-se, assim, um referente para conhecer e entender o processo evolutivo da própria diversidade literária híbrida de história e ficção desde as escritas clássicas do gênero, seguindo os paradigmas primeiros da escrita de Walter Scott, passando pela fase crítica/desconstrucionista, inaugurada na literatura hispano-americana, até os profícuos diálogos críticos da modalidade mais atual do romance histórico contemporâneo de mediação, que, como este estudo evidencia, apresenta exemplares em quase todo o universo geográfico, histórico e cultural abrangido pela nossa proposição.

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PRIMEIRA PARTE “El 12 de Octubre de 1492 fue descubierta Europa y los europeos por los animales y hombres de los reinos selváticos. Desde entonces fueron de desilusión en pena ante el paso de estos seres blanquiñosos, más fuertes por astucia que por don. Se los veía como una angustiada pero peligrosa congregación de expulsados del Paraíso, de la Unidad primordial de la que ningún hombre o animal tiene porqué alejarse. [...]. Con increíble tenacidad fundaban lo que ellos mismos – inexplicablemente – llamarían “el valle de lágrimas” (POSSE, 1989, p. 28-30). “Jueves, 11 de octubre [...] A las dos horas después de media noche pareçió la tierra, de la cual estarían dos leguas. Amainaron todas las velas, y quedaron con el treo que es la vela grande, sin bonetas, y pusiéronse a la corda, temporizando hasta el día viernes que llegaron a una isleta de los lucayos, que se llamava en lengua de indios Guanahaní. Luego vieron gente desnuda, y el Almirante salió a tierra en la barca armada [...]. El Almirante llamó a los dos capitanes y a los demás que saltaron en tierra, y a Rodrigo d’Escobedo escribano de toda el armada, y a Rodrigo Sánchez de Segovia, y dixo que le diesen por fe y testimonio cómo él por ante todos tomava, como de hecho tomó, posesión de la dicha isla por el Rey e por la Reina, sus señores, haciendo las prestaciones que se requerían, [...]. Luego se ayuntó allí mucha gente de la isla: [...]. (CRISTÓVÃO COLOMBO apud VARELA, 1986, p. 61).

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1 - LITERATURA E HISTÓRIA DISCURSOS À INTELIGIBILIDADE SOBRE O PASSADO NO PRESENTE O ano de 1492 é, na opinião de muitos estudiosos, o marco definitivo que separa o mundo medieval e o início da era moderna. Tal transformação no modo de conceber a evolução humana ao longo do tempo deve-se às importantes mudanças ocorridas na história de vários territórios europeus, que, além de se consolidarem como unidades político-religiosas, passaram a expandir seus domínios por meio dos grandes projetos de navegação rumo à terra das especiarias, a domínios até então desconhecidos, ampliando, assim, várias visões medievalistas daquilo que se supunha ser a dimensão da terra até então. O descortinar dos horizontes geográficos ocorrido nesse período conduziu à superação de barreiras e medos profundamente arraigados em relação ao desconhecido, como a crença na existência de monstros marítimos no Atlântico e a suposição do fim da Terra na linha do horizonte, que sempre estiveram presentes no imaginário medievalista do povo ocidental. Entre os acontecimentos mais importantes desse ano está a chegada de europeus à América, registrada em 12 de outubro de 1492, pela expedição espanhola comandada por Cristóvão Colombo, que buscava uma rota alternativa, via oeste, para as exóticas terras de Cipango e Catay. Tzvetan Todorov é um dos vários pesquisadores a afirmar que “é a conquista da América que anuncia e funda nossa identidade presente. [...] Nenhuma [data] é mais indicada para marcar o início da era moderna do que o ano de 1492, o ano em que Colombo atravessa o Oceano Atlântico” (1983, p. 6). Do mesmo modo pensa Ilan Stavans (2001) ao registrar que, quando Colombo, pela primeira vez, atingiu Guanahaní (Watlings Island), depois Cuba, Haiti, República Dominicana e Porto Rico, uma nova era se iniciou. Observamos, pois, a importância dos feitos de Colombo em 1492 nas palavras dos estudiosos contemporâneos. A realização de Colombo é o evento que mais intensamente afetou a própria concepção do homem como indivíduo naquele momento histórico, pois, no encontro com o “outro” desconhecido, questionou-se a própria essência do que é ser humano, do “eu” que não conseguia se ver no “outro”. A alteridade, embora não reconhecida nesse primeiro encontro, mais do que em relação a qualquer outro aspecto, atinge as concepções mais enraizadas dos valores e sentidos da vida ao longo da história humana, fundamentados, nas sociedades ocidentais dominadoras, principalmente nos princípios do patriarcalismo e dos dogmas da religião católica. Nessa busca de identidades, não foram poucas as atrocidades cometidas, os limites ultrapassados. Do encontro entre o que mais tarde seria chamado de “Velho Mundo” e o “Novo Mundo” – embora alguns estudiosos 31


prefiram usar a expressão “mundos diferentes” ao referirem-se à Europa e à América no contexto de suas primeiras relações –, novas nações surgiram no decorrer de alguns séculos. Esses primeiros tempos após o encontro inicial, do final do século XV, foram marcados pelos atos de conquista e colonização, por parte dos europeus que aqui chegaram e buscaram implantar nas terras e gentes o seu modo de conceber o mundo, e de lutas, primeiramente como resistência, por parte dos povos autóctones que viram suas terras e vidas sendo brutalmente invadidas, e, logo, novos enfrentamentos pela independência, por parte dos povos mestiços que se originaram na América. Povos híbridos, transculturais, mestiços que já não mais estavam dispostos a carregar o peso da colonialidade nos seus moldes mais primitivos. Esses enfrentamentos, muitos deles bélicos como foram os primeiros, colocaram no poder, conforme ressalta Fuentes (1992), apenas os descendentes diretos dos europeus que antes colonizaram o território, excluindo desse âmbito político a grande maioria dos nativos e dos escravos que aqui geraram filhos e mão de obra para a construção dessas nações emergentes. Os mestiços mais proeminentes do inegável sistema cultural híbrido que aqui se formou buscaram, pelas mais diversas vias, ocultar sua origem “impura” ao longo de muitos anos, negando, assim, o que de mais original tinham. Nesse contexto, segundo expõe o romancista e crítico literário venezuelano Arturo Uslar Pietri (1990, p. 348), […] por un absurdo y antehistórico concepto de pureza, los hispanoamericanos han tenido a mirar como una marca de inferioridad la condición de su mestizaje. Han llegado a creer que no hay otro mestizajeque el de la sangre y se han inhibido en buena parte para mirar y comprender lo más valioso y original de su propia condición.1

Nesses intentos de assimilação e aproximação máxima aos modelos europeus em terras latino-americanas, e entre seus mais notáveis representantes intelectuais dessas nossas terras, segundo comenta Uslar Pietri (1990, p. 345346), ocorreu que […] sucesiva y hasta simultáneamente muchos hombres representativos de la América de lengua castellana y portuguesa creyeron ingenuamente, o pretendieron, ser lo que obviamente no eran ni podían ser […]. Culturalmente no eran europeos, ni mucho menos podían ser indios o africanos.2 1

Nossa tradução: [...] por um absurdo e anti-histórico conceito de pureza, os hispano-americanos foram levados a olhar como uma marca de inferioridade a condição de sua mestiçagem. Chegaram a crer que não há outra mestiçagem que aquela sanguínea e se inibiram, em boa parte, para vislumbrar e compreender o que há de mais valioso e original em sua própria condição. 2 Nossa tradução: [...] sucessiva e até simultaneamente muitos homens representativos da América de língua castelhana e portuguesa acreditaram ingenuamente, ou pretenderam, ser aquilo que obviamente não eram nem poderiam ser […]. Culturalmente não eram europeus, nem muito menos poderiam ser índios ou africanos.

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As configurações escriturais, seja na história, seja na literatura, são fundamentais para entender esse processo cuja materialidade pode ser verificada, por um lado, por exemplo, nas imagens escriturais históricas do “libertador das Américas”, Simón Bolívar e, por outro, na metaforização e simbolização representacional da literatura, nas personagens do romance Viva o povo Brasileiro (1984), de João Ubaldo Ribeiro. Essas nações latino-americanas são, ainda hoje, marcadas pelas essências culturais dos povos que as fundaram. Diferentes culturas que contribuíram à constituição de novos países no mapa ocidental, porém, ao longo dos séculos, foram se mesclando, imbricando-se num processo de simbiose que gerou comunidades estratificadas pelas questões étnicas. O entrecruzamento das distintas etnias foi produzindo novas vertentes culturais, o que resultou na formação de sociedades mestiças cujas marcas híbridas alcançam a contemporaneidade. Conforme registra Carlos Fuentes (1992, p. 11), a crise que nos empobreceu também “puso en nuestras manos la riqueza de la cultura, y nos obligó a darnos cuenta de que no existe un solo latinoamericano, desde el río Bravo hasta el Cabo de Hornos, que no sea heredero legítimo de todos y cada uno de los aspectos de nuestra tradición cultural3”. Tal processo, no entanto, nunca deixou de ser conflitante, gerador de diferenças e preconceitos e, por isso, a emblemática figura de Cristóvão Colombo, considerado o europeu “descobridor” da América, é, ainda hoje, uma das fontes nas quais as nações americanas revisam e questionam suas próprias raízes, numa intensa busca de autoconhecimento. Tal processo de autoconhecimento e estabelecimento de identidades foi, especialmente, mediado por um modo próprio de expressão literária que, a princípio atrelada aos ditames da metrópole colonizadora, busca, gradativamente, libertar-se das imposições e influências sofridas durante todos os séculos que nos separam daquele dia 12 de outubro de 1492. Um dia histórico, considerado fatídico por uns e glorioso por outros, segundo as diferentes vertentes críticas que analisam os efeitos de tal evento sobre as nações descobridoras e os povos descobertos. Esse fato histórico é fonte de inúmeras reelaborações pela arte romanesca que procura ressignificar, nas diferentes nações latino-americanas, em especial, os registros outrora feitos, exclusivamente, pela parcela colonizadora do continente e, assim, oportunizar, pela narrativa imaginativa e criativa da ficção, um espaço de enunciação àquelas vozes silenciadas pelo discurso do colonizador. Nelas, a figura de Cristóvão Colombo recebe os mais diferentes tipos de tratamento figurativo, revelando, desse modo, a ideologia sob a qual as diversas nações do continente americano revisitam a história do

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Nossa tradução livre: [...] pôs em nossas mãos a riqueza da cultura, e nos obrigou a nos dar conta de que não existe um só latino-americano, desde o rio Bravo até o Cabo de Hornos, que não seja herdeiro legítimo de todos e cada um dos aspectos de nossa tradição cultural.

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marinheiro que, em 1492, sem ao menos saber, realizou a grande façanha que marca o início da era moderna. O modo como cada uma das frações do continente “descoberto” concebe a figura e os atos do seu “descobridor” 4, em nossa concepção, revela também traços das dicotomias estabelecidas entre as ex-colônias europeias da América, fato que, entre outros, é instigante para a escrita desta obra. As realizações de Cristóvão Colombo têm sido tema de inúmeras formas de expressão poética romanesca nas Américas, nas quais é possível observar tratamentos divergentes, em que imagens bastante díspares acabaram surgindo. Uma vez que a América foi colonizada por várias nações europeias, com diferentes propósitos, é compreensível a presença de modos distintos de conceber tal passado em nosso continente, mas, também, lemos a exaltação hodierna de Colombo como marca singular de manutenção de aspectos colonizadores por meio de uma ideologia de exaltação e mitificação da personagem e seus feitos, sem reflexões críticas sobre as consequências desses feitos às nações autóctones antes prevalecentes nesse nosso território. Os eventos históricos de 1492, protagonizados, de um lado, por Cristóvão Colombo – cuja real identidade ainda intriga as principais nações europeias desde então envolvidas com o mistério que circunda a vida dessa personagem histórica –, e, de outro, pelas nações autóctones de nosso continente, serviram, sem qualquer dúvida, já naquela época, como detonadores de uma série de conflitos que punham em relevo aspectos como a individualidade e a coletividade, a liberdade e a escravidão, o público e o privado, o sagrado e o profano. Trata-se de uma infinidade de dicotomias que foram sendo tratadas e retratadas ao longo dos séculos pelas diferentes modalidades de se registrar o passado. Entre elas, destaca-se, ao lado da história, a literatura em sua vertente das escritas híbridas de história e ficção e as ressignificações do passado que ela propõe. Com o aparecimento do romance histórico, em meados do século XIX, amplia-se, de forma significativa, o papel da literatura como possível leitora da história. Como se verá ao longo desta obra, a “poética do descobrimento” – uma categoria que se habilitou a fim de reunir as muitas leituras ficcionais centradas especialmente nas configurações discursivas de Cristóvão Colombo – esteve presente em todos os momentos que marcaram as reflexões dos povos americanos em busca de suas identidades, das manifestações mais românticas às realistas de caráter mais mimético, passando por aquelas essencialmente críticas/desconstrucionistas e experimentalistas, inseridas no contexto da nova nar4

Utilizamos, ao longo das nossas reflexões neste texto, a denominação “descobrimento”, “descobridor” ou “Almirante” – sempre marcadas pelo uso das aspas – para demarcar nossa ideologia descolonialista em relação a estas afirmações de cunho etnocêntrico. Do nosso ponto de vista, o navegante Cristóvão Colombo nunca “descobriu” a América, pois ela já existia milhões de anos antes dele, por desconhecimento, aportar nas ilhas do Caribe, em 1492, e registrar, em várias ocasiões, que havia chegado às proximidades de Cipango e Cathay (Japão e China), destino para o qual a sua frota, essencialmente comercial, encaminhava-se.

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rativa latino-americana – iniciada em 1940 –, com especial destaque à produção de romances históricos no boom5 da literatura hispano-americana e suas reconfigurações no período do pós-boom, alcançando nossos dias. Colombo e suas aventuras foram inspiração à produção poética tanto para os americanos, que, por um lado, tratam-no como grande vilão e, por outro, tomam-no como figura a ser imitada – como procuramos evidenciar ao longo desta obra –, quanto para vários nomes expressivos da literatura mundial. As imagens heroicas de Colombo, celebradas em certas partes da América e também pelas nações europeias, tornaram-se especialmente fecundas para o processo de “desvio de normas” ocorrido na fase crítica da antropofagia cultural e da transculturação latino-americana (SANTIAGO, 2000; RAMA, 2008), para desmistificar a “verdade única” dos colonizadores, a fim de transfigurar os elementos feitos e imutáveis cultivados pelo discurso dos conquistadores em produções romanescas postas em prática, especialmente, pela porção hispano-americana de nosso continente. As grandes diferenças que se originaram ao longo da formação das nações americanas, que hoje dividem o continente em dois blocos – um ao norte e outro ao sul, separados, segundo registram Fuentes (1992) e Stavans (2001), pelas águas barrentas do Rio Grande –, passam também pela literatura, com seu modo de tratar a “poética do descobrimento” e com seus meios particulares de configurar artisticamente o mentor da primeira travessia historicamente registrada do Atlântico, Cristóvão Colombo. A arte hispano-americana, presa, de certa forma, às condições sociais, políticas e econômicas que, ao longo dos séculos, ainda se mantinham vinculadas ao jugo dos países dominantes, embora – segundo expõe Eduardo Galeano (1970), em Las venas abiertas de América Latina –, esses tenham se alternado em certos momentos históricos, segue buscando na contemporaneidade seus modos próprios de expressão, incorporando as influências como substâncias mesmas de sua expressividade num intenso processo de antropofagia cultural. 5

O fenômeno do Boom, que projetou, internacionalmente, a literatura latino-americana – nas décadas de 1960 e 1970 –, ocorre no ápice do que se denominou de “nova narrativa latinoamericana”. Esse movimento de união e cooperação, inciado em 1940, entre reconhecidos narrados hispano-americanos, teve como propósito renovar o gênero da prosa em consequência das múltiplas alterações produzidas pelos representantes do Modernismo hispano-americano – instituído pelas produções do nicaraguense Rubén Darío, em 1808, com sua obra Azul. O objetivo do grupo foi libertar a nossa narrativa das premissas do Romantismo e do Realismo/Naturalismo que impediam o gênero de alcançar, no espaço latino-americano, a necessária universalização. Para uma compreensão mais ampla do que foi o Boom, recomendamos a leitura da tese O romance histórico no contexto da nova narrativa latinoamericana (1940): dos experimentalismos do boom à mediação do pós-boom – histórias da outra margem, de Ana Maria Klock, defendida no ano de 2021, no Programa de Pós-graduação em Letras da Unioeste/Cascavel-PR, inserida nos estudos do Grupo de Pesquisa “Ressignificações do passado na América: processos de leitura, escrita e tradução de gêneros híbridos de história e ficção – vias para a descolonização”.

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Já a porção anglo-saxônica da América conseguiu, como nenhuma outra nesse contexto, ocupar, com o passar dos séculos, uma posição de destaque tanto no campo político quanto no econômico e cultural, o que, na atualidade, confere-lhe marcas do que se tem denominado imperialismo cultural. Tal dicotomia estabelece uma clara separação, um limite bem marcado entre o hegemônico e o subalterno, transplantado do “Velho Mundo” para dentro dos limites daquilo que se convencionou chamar de “Novo Mundo”. Essa divisão tem origem já no processo de colonização e é marcada por extremos, conforme registra Stavans em sua obra Imagining Columbus: the literary voyage (2001). E é nessa perspectiva que assentamos os objetivos deste estudo, no qual abordamos, sob diferentes prismas, algumas das origens desses antagonismos, que se revelam também em modos particulares de reconfigurar discursivamente as ações de Cristóvão Colombo nesses dois distintos blocos mencionados por Stavans (2001). Trata-se do espaço no qual investigamos o universo ficcional de Cristóvão Colombo e no qual se encontra a essência da dialética que buscamos revelar e que constitui o eixo central desta obra. As leituras do evento histórico protagonizado, de um lado, por Colombo e, de outro, pelas gentes nativas das terras com as quais se deparou do outro lado do Atlântico em 1492, empreendidas pela ficção, apresentam-se, muitas vezes, dicotomizadas. São produções que vão da exaltação e glorificação dessas ações e de seus agentes – em obras que se irmanam com certo discurso histórico mais convencional – às produções paródicas e carnavalizadas, que põem em circulação outras possibilidades de leitura da história. Embora se observe uma tendência à apologia do “descobrimento” da América, principalmente nas letras espanholas e estadunidenses, procuramos, ao longo desta obra, demonstrar que a linha romanesca exaltadora se edifica, também, nas produções de tom apologético e exaltador presentes na literatura brasileira. Em diversas narrativas, o discurso apologético levado a cabo por romancistas estadunidenses, desde o Romantismo até meados do século XX, reproduz o modelo canônico europeu de romance histórico romântico (nas modalidades clássicas scottianas e tradicionais), com poucas alterações, elevando a figura histórica de Colombo ao universo mítico e exaltando sua chegada à América como ação benéfica à cristianização e à aculturação das nações politeístas originárias dessas nossas terras. Nesse contexto, a “visão de mundo e o modo de figuração tem muito em comum com o solo original do Romantismo, com a luta ideológica contra a Revolução Francesa, mas representa, sobre essa base contraditória e oscilante, a ideologia de um progresso moderado.” (LUKÁCS, 2011, p. 84). As diferentes figurações de Cristóvão Colombo ao longo dos séculos revelam, também, essa dinâmica do romance histórico de adaptar-se às realidades nas quais as representações do marinheiro foram efetuadas. A literatura hispano-americana, ao contrário da estadunidense e da brasileira, passou a explorar a temática colombina, principalmente, por volta da 36


década de 1970, com obras inseridas já no contexto do chamado novo romance histórico hispano-americano. Cristóvão Colombo, a partir de então, passa a ser, nessas expressões literárias, uma personagem histórica narrada por meio de recursos como a paródia, a carnavalização, a ironia, a metaficcionalidade, as múltiplas intertextualidades, procedimentos que ensejaram instigantes ressignificações ficcionais do passado centrado nas ações conquistadoras de Colombo. O fato a se destacar nessa produção crítica hispano-americana é que a modalidade do novo romance histórico latino-americano (AÍNSA, 1991; MENTON, 1993) deu início ao que consideramos a segunda fase das escritas híbridas de história e ficção – a fase crítica/desconstrucionista –, que acabou influenciando as produções com a temática do “descobrimento” em todo o território americano, levando determinados romancistas estadunidenses e canadenses – como é o caso de Stephen Marlowe (1987) e Gerald Vizenor (1991) – a se alinharem com os logros estéticos da literatura hispano-americana. Como consequência desse processo revisionista da literatura frente à história tradicional, temos, na literatura contemporânea dos países da América do norte, um conjunto de obras que revela a dialética da apologia e da paródia em relação às escritas híbridas de história e ficção que renarrativizam ou ressignificam a personagem Cristóvão Colombo na ficção. Essas ressignificações do passado histórico nas literaturas da América são evidências de um longo trajeto percorrido pela escrita híbrida, pois a relação entre a literatura e a história remonta à Antiguidade – as epopeias são bons exemplos dessa relação – e esse milenar diálogo tem suscitado calorosas desavenças, em defesa daquilo em que cada qual crê, defende e tem como próprio e certo, como certos acordos de compatibilidade, ao se considerar, nos dias atuais, que tanto a história como a literatura são elaborações de linguagem que se situam em um mesmo plano, o representacional, já que são compostas por palavras e sua organização dá-se a posteriori, não chegando, de forma alguma, a materializar o passado, apenas a simbolizá-lo; sintetizá-lo em expressões linguísticas que, uma vez lidas, passam a ser inteligíveis no presente. No âmbito literário, uma das aproximações mais significativas entre a arte poética e os registros factuais da história iniciou-se em 1814, a partir de uma escrita consciente e deliberadamente híbrida, planejada pelo escocês Walter Scott, a quem se atribui a elaboração da obra inaugural da modalidade romanesca conhecida como romance histórico: Waverley (1814 [1981]). Desde essa incursão híbrida primeira, segundo os paradigmas de Scott, essa hibridazação entre os discursos no âmbito da arte literária só tem se intensificado. Um crescimento e, consequentemente, as mais intensas transformações nos princípios scottianos têm ocorrido, especialmente, em nosso continente que, em 1949, altera completamente as representações escriturais romanescas apologéticas do passado histórico e instaura uma nova fase na trajetória dessas expressões híbridas. 37


Nas nações latino-americanas, em parte ainda colonizadas pelas metrópoles europeias em princípios do século XIX, a fórmula do escritor escocês, seguida, copiada e imitada pela maioria das nações europeias, adotou novos olhares ao voltar-se ao passado da conquista e colonização. Dessa maneira, a escrita híbrida de história e ficção na América Latina faz-se crítica já na sua primeira expressão – realizada por um autor anônimo, provavelmente mexicano, em 1826. Nela, o espírito de luta pela independência do México é o fluído vital das ressignificações propostas na diegese de Xicoténcatl (1826)6, obra que se volta à conquista do Império Asteca, por Hernán Cortés, em 1519, cujo protagonismo é desenvolvido pela resistente personagem de extração histórica Xicoténcatl, um jovem nativo da tribo tlaxcalteca que procurou enfrentar os conquistadores e defender seu povo e sua cultura. Uma crítica claramente visível se expressa em Xicoténcatl (1826) pela inversão que se propõe na construção comum dos polos: herói conquistador europeu – Hernán Cortés – e anti-herói autóctone americano – Xicoténcatl. Nesse primeiro romance histórico latino-americano, o nativo é o grande herói que luta para impedir o avanço da conquista espanhola, materializada na personagem histórica de Hernán Cortés, figurado na ficção como cruel e injusto, manipulador e sanguinário. Com o passar do tempo, esse gênero conquistou, também, a simpatia de vários de nossos grandes escritores, os quais souberam torná-la uma de nossas expressões artísticas mais fecundas, gerando obras críticas/desconstrucionistas que, além de outras importantes ressignificações do passado, reelaboram as imagens de Cristóvão Colombo cristalizadas pela historiografia tradicional e revitalizadas pelas renarrativizações acríticas ficcionais do romance histórico clássico scottiano e, em especial, pela modalidade do romance histórico tradicional, abundantemente produzido nos Estados Unidos da América, na Espanha e com as únicas ocorrências da temática na literatura brasileira. De acordo com Linda Hutcheon (1991) – e vários outros estudiosos da ficção e alguns da história também, como é o caso de Hayden White –, ambas, 6

O teor crítico do primeiro romance histórico produzido na América Latina – Xicoténcatl – é, ainda, desconhecido da grande maioria do público leitor brasileiro, pois essa obra, produzida em 1826, não havia sido traduzida ao nosso idioma até o ano de 2020, quando publicamos, pela editora CRV/Curitiba-PR, a primeira tradução à língua portuguesa desse romance de autoria anônima. Nele se rompem os paradigmas scottianos tanto no que diz respeito ao fato do romance histórico contar uma história de amor fictícia – ambientada em um plano histórico rigorosamente reconstruído – quanto no plano ideológico de se reafirmar na ficção a versão hegemônica da historiografia tradicional sobre os eventos que ambientalizam as ações dos heróis ficcionais da diegese amorosa, já que em Xicoténcatl (1826) os fatos históricos referentes à conquista do México pela tropa comandada pelo consquistador espanhol Hernán Cortés e a resistência que esta sofreu liderada pelo nativo Xicoténcatl são o cerne mesmo da diegese romanesca. Desse modo, o primeiro romance histórico escrito na América Latina – ao exaltar a bravura de um nativo que luta pela manutenção de sua liberdade até a morte e desmoralizar as imagens heroificadas dos conquistadores europeus – rompe com todos os padrões scottianos da época para a escrita do gênero híbrido de história e ficção.

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história e literatura, são construções discursivas. Em relação às escritas híbridas, como é o caso do romance histórico, tanto a história quanto a literatura voltamse ao passado, o qual buscam registrar por meio de seus discursos próprios. Podem ser consideradas, portanto, na hipótese da inexistência de uma completa imparcialidade e objetividade, conforme Barthes (1988), como sendo frutos da interpretação particular dos fatos desse passado que é revisitado pelo historiador ou pelo romancista que, condicionado por uma série de fatores socioeconômicos, políticos, sociais e culturais, filtram o material disponível e, a partir disso, elaboram o seu discurso de inteligibilidade para o passado no presente. Esses discursos são construções de linguagem, vistas sob óticas diferentes, com finalidades e objetivos distintos, mas que cooperam para tornar o passado mais próximo e compreensível no presente. Frente a elas, há que se considerar que “todas as formas de resgate do passado são permeadas pela consciência de que a construção verbal não é o fato e não é ingênua.” (WEINHARDT, 1994, p. 49). Valemo-nos dessa premissa de que a história e a literatura são construtos de linguagem, em concordância também com os estudos de Fernández Prieto (2003), entre outros, que registram que a narração histórica e a narração ficcional obedecem aos mesmos mecanismos estruturais e só se diferenciam pragmaticamente. Assim, pautamo-nos, ainda, nos pressupostos de que a narrativa histórica e a ficcional, conforme Benedito Nunes (1988), interagem como formas de linguagem, sendo ambas sintéticas e recapitulativas para trazer aos leitores distintas formas de figuração das imagens de Cristóvão Colombo e as dicotomias que essas elaborações discursivas elucidam. Assim, história e romance histórico projetam visões particularizadas sobre o passado – condicionadas pela situação vivenciada por quem as formula –, sendo elas dependentes de fatores, como: o locus enunciativo de quem as elabora; a posição política, social e econômica que esse sujeito ocupa na sociedade; a ideologia a que se alinham as suas visões; o tempo histórico no ato da formulação da sua visão e a intenção que move a particular representação do passado. Essas construções discursivas que ajudam a compreender o passado – impregnadas dos condicionantes de quem as gerou – precisam encontrar o leitor, a quem, finalmente, cabe a tarefa de interpretá-las. O romance histórico é, sem dúvida, um dos importantes campos nos quais tais discussões são estabelecidas, um terreno propício e fértil para a análise da coexistência de diferentes pontos de vista sobre o navegador e seus feitos. Destacamos, desse modo, textos e obras que discutem o impacto causado pela chegada de Colombo no mundo americano e as consequências daí advindas. Tais produções relevam alguns pontos de vista divergentes que os estudos sobre a figura e os feitos de Cristóvão Colombo suscitam, o que nos auxilia no intento de revelar a prática da escrita dialética dos eventos 39


vivenciados por Colombo na contemporaneidade, uma vez que essas divergências sobre as ações de Colombo são materiais discursivos que alimentam as produções ficcionais sobre a “poética do descobrimento”, originando as diferentes configurações do evento na literatura. Embora não seja o único, o romance histórico é o espaço no qual, com bastante frequência, história e literatura contracenam. A leitura dos romances históricos que integram a “poética do descobrimento” nem sempre é uma experiência prazerosa, fácil e confortante, uma vez que tal prática das leituras da história pela ficção, voltadas para os eventos de 1492 e os anos seguintes do processo de conquista da América pelas diferentes nações europeias que se lançam ao projeto colonizador e disputam entre si os territórios, pode ser um dos meios mais eficientes de nos entendermos mais semelhantes aos nossos opostos, ou mais distintos de nossos iguais. Contudo, a leitura dos romances históricos sobre as ações de Colombo e dos demais conquistadores que seguiram sua rota à América pode nos deixar mais dispostos a vermos o outro em nós mesmos, já que, como afirma Todorov (1983, p. 6), “somos todos descendentes diretos de Colombo, é nele que começa nossa genealogia [...]”. É essa experiência que o romance histórico busca ler a partir dos registros da história, sob as divergentes perspectivas que englobam a diversidade daqueles que vivenciaram tais experiências desde sua origem. Desse modo, na contemporaneidade, segundo registra Fernández Prieto (2003), aquilo que no passado se julgou ser o maior defeito dos romances históricos, seu caráter de escrita híbrida, converteu-se, nas últimas décadas do século XX, em seu maior atrativo, possibilitando-lhe dar aos fatos e às personagens do passado novos tons e novas perspectivas. Isso contribui para a ampliação da visão de mundo daqueles que buscam na leitura dos romances históricos não apenas informação e prazer. Ao nos referirmos ao romance histórico como escrita híbrida, remetemo-nos ao conceito já utilizado por Bakhtin (1978), em Esthétique et théorie du roman, obra na qual o autor se refere ao hibridismo, segundo analisa Zilá Bernd (1998, p. 18), como sendo um processo pelo qual “duas vozes caminham juntas e lutam no território do discurso. Dois pontos de vista não se misturam, mas se cruzam dialogicamente. Ou seja, as vozes heterogêneas ficam separadas: estamos lidando com uma mistura não no sentido de fusão, mas no de justaposição”. É, justamente, nos romances da “poética do descobrimento” que, com mais frequência, encontramos o choque e os enfrentamentos entre os discursos das vozes vitoriosas dos conquistadores e colonizadores e as expressões resilientes dos conquistados e colonizados. Bakhtin (1990, p. 110-111) menciona que “as construções híbridas têm uma importância capital para o estilo romanesco”, uma vez que essa tessitura, no romance, “pertence a um único falante, mas onde, na realidade, estão confundidos dois enunciados, dois modos de falar, dois estilos, duas 40


‘linguagens’, duas perspectivas semânticas e axiológicas.” Uma escrita híbrida, na concepção de Bakhtin (1990), consiste, pois num pluridiscurso no qual não há nenhuma fronteira formal, sintática ou composicional entre os componentes díspares: “a divisão das vozes e das linguagens ocorre nos limites de um único conjunto sintático [...] as duas perspectivas se cruzam numa construção híbrida, e, por conseguinte, têm dois sentidos divergentes, dois tons.” (BAKHTIN, 1990, p. 110). O romance histórico contemporâneo, especialmente aquele de caráter crítico/desconstrucionista, apresenta essa dubiedade que se manifesta nas tensões que se geram nas obras, exatamente pela justaposição do discurso histórico científico mais assertivo, oriundo da historiografia tradicional que cristalizou imagens heroicas dos europeus que atuaram na conquista e colonização da América e o discurso ficcional artístico de caráter polissêmico, crítico e revisionista que gera espaços de manifestação de vozes subalternas, negligenciadas ou silenciadas pelo poder da escrita oficializada. Em relação ao tema dos eventos protagonizados por Cristóvão Colombo, tal característica torna-se um aspecto relevante, pois, de acordo com a análise de Bernd (1998, p. 18) a respeito dos conceitos de hibridismo de Bahktin (1990), ela evidencia vários dos processos de elaboração dessas obras, uma vez que se entende hibridismo como “os processos de desterritorialização de processos simbólicos que engendram culturas híbridas, processo de conversão e reciclagem de aportes da modernidade que são adaptados ao meio ambiente.” Essa “conversão”, muitas vezes, é operada pelo antropofagismo cultural, pela escrita crítica/desconstrucionista ancorada em técnicas como a paródia, a carnavalização, o grotesco, a ironia, as intertextualidades, a heteroglossia, que rompem as imagens estáveis dos heróis, entre eles Cristóvão Colombo, e corrompem os discursos hegemônicos de louvor à colonização, entre eles o de considerar os autóctones bárbaros e necessitados da salvação cristã. Bernd (1998, p. 18) expõe ainda que o conceito de hibridismo exige que se reconsidere a usual distinção entre o que é hegemônico e o que é subalterno, um aspecto conflitante que se evidencia na escrita de romancistas que se propõem a recriar os eventos do passado histórico comum que uniu a América à Europa pelas ações desencadeadas, principalmente, pelos sonhos, crenças e ambições de Cristóvão Colombo, acolhidos pelos ideais de cristianização dos Reis Católicos, Fernando e Isabel, em sua empreitada de unificação política, religiosa e linguística, instaurada com a expulsão dos últimos mouros da Península Ibérica em 1492. A arte literária, especialmente no que se refere a essa escrita de aspecto híbrido na qual se constitui o romance histórico, deve conservar sua essência, ou seja, o caráter ficcional que a rege, pois, segundo comenta Mata Induráin (1995, p. 18),

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[…] esta es una piedra de toque fundamental a la hora de decidir si una determinada obra es una novela histórica o no: la ficcionalidad, ya que el resultado final de esa mezcla de elementos históricos y literarios no es una obra correspondiente a la historia, sino a la literatura, es decir, una obra de ficción. 7

Por se tratar, justamente, de um gênero narrativo híbrido no qual os discursos da historiografia são recuperados e ressignificados pela ficção – assim como o são as personagens atuantes nos eventos reconfigurados pela escrita romanesca –, muitas vezes, os leitores menos experientes na leitura de romances históricos podem iludir-se em seu pacto de leitura. Nesse caso, devemos ressaltar algumas diferenças que existem entre essas escritas. A começar pelo fato de que [...] a narrativa histórica se constrói sobre fatos reais, a narrativa ficcional sobre fatos imaginários, mas as duas são construções verbais. Quanto ao caráter de ambas enquanto construções verbais, não há o que questionar. Mas no caso da ficção de caráter histórico, também a distinção de conteúdo tende a se atenuar e até a desaparecer de vez, a ponto de muitas vezes o leitor comprometido com catalogações hesitar, se lhe exigem uma resposta imediata à pergunta se está lendo ficção ou história. (WEINHARDT, 2011, p. 14).

Ainda nesse sentido, conforme aponta Milton (1992, p. 183), embora ambas sejam construções de linguagem que possuem a categoria do tempo como eixo organizacional, o romance histórico não pode e nem quer, certamente, ser história, pois [...] o romance histórico não compete com a história na apreensão dos acontecimentos. [...]. O romance, portanto, não invade as dependências alheias. Antes, apresenta-se muitas vezes como um especial colaborador que, ao conferir dimensão simbólica à história, enseja novas formas de reflexão, outras verdades, inesperadas iluminações. Por outro lado, ele também vai de encontro às inquietudes e indagações, recobrindo as excelências do passado e projetando dali os seus sentidos.

Como “leitor da história”, o romance, como expressa Milton (1992), torna-se um “colaborador” em potencial para revelar aquelas “inquietudes” dos contingentes marginalizados pelo poder que instituiu, no passado, a legitimidade dos registros e sua sobrevivência. Desse modo, pela arte que explora o potencial representativo, metafórico, simbólico e polissêmico dos signos, o passado perpetrado pelas 7

Nossa tradução: E esta é uma pedra de toque fundamental na hora de decidir se uma determinada obra é um romance histórico ou não: a ficcionalidade, já que o resultado final dessa mistura de elementos históricos e literários não é uma obra correspondente à história, mas à literatura, ou seja, uma obra de ficção.

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escritas do poder, hoje, pode ser ressignificado nas escritas híbridas. Nelas, contudo, o equilíbrio entre o material histórico e os elementos ficcionais é parâmetro que faz com que um romance seja qualificado como “histórico” e não como história romanceada. Mata Induráin (1995, p. 45) registra que, da conveniente proporção de ambos os materiais, histórico e ficcional, e da obtenção de um equilíbrio adequado entre eles, depende a qualidade da obra resultante. Essa obra, uma vez alcançado tal equilíbrio, que a faz ser um romance histórico e nenhuma das outras possíveis escritas híbridas de história e ficção, terá que ser julgada, não pelo seu rigor histórico, mas pela sua adequação ao caráter de ficção que constitui o cerne e a razão de sua existência. Assim, “la novela histórica supone, en efecto, que el novelista trabaje con un material histórico, con hechos reales, veraces, ocurridos en la realidad, y con personajes que han sido parte de esos hechos.8” (MÁRQUEZ RODRÍGUEZ, 1991, p. 24). Hoje, fatos e personagens bem conhecidos nos registros historiográficos acabaram ganhando, principalmente no manejo da linguagem dos romancistas históricos, dimensões, formas e características bastante distintas, senão opostas, àquelas registradas no passado pelos historiadores e que, em sua quase totalidade, eram consideradas definitivas pela visão bastante tradicional da história, quando essa punha muito zelo em perseguir a objetividade nos seus registros. Essa etapa da história tradicional, como registra Fernández Prieto (2003), vem cedendo, especialmente nos últimos anos, espaço a outras visões que concebem, dentro da perspectiva da Nova História 9, outras funções aos historiadores; uma vez que hoje admitem a perda do que a autora (1998, p. 146) chama de “fés unificantes”, pois também os historiadores já passam da “voz da história” – dotada de poder para instaurar a “verdade” – para as “vozes da história”, já que “la voz monolítica y monológica de la Historia, que ocultaba sus dependencias ideológicas, sus servidumbres hacia el Poder, bajo la coartada de la objetividad de datos y documentos, ha sido sustituida por múltiplas voces y diversos enfoques 10.” (FERNÁNDEZ 8

Nossa tradução: O romance histórico supõe, com efeito, que o romancista trabalhe com um material histórico, com fatos reais, verídicos, ocorridos na realidade, e com personagens que fizeram parte desses fatos. 9 Quando nos remetemos aos princípios da nova história, referimo-nos aos movimentos de renovação que se iniciaram por volta de 1970 nesta ciência, especialmente na França, os quais estão associados diretamente à chamada École de Annales, que se agrega em torno da revista Annales: économies, sociétés, civilisations. Com relação às inovações na proposta da Nova História, seus objetivos e proposições, sugerimos consultar também: COLLINGWOOD, R.G. The Idea of History. Oxford: Oxford University Press, 1946.; BURKE, P. The French Historical revolution. Cambridge: Cambridge University Press, 1990.; HUNT, L. (Ed.) The New Cultural History, Berkeley, 1989.; WHITE, H. Tropics of discourse, Batimore: The Johns Hopkins University Press, 1978. 10 Nossa tradução: A voz monolítica e monológica da História, que escondia suas dependências ideológicas, suas subserviências ao Poder, sob o álibi da objetividade de dados e documentos, foi substituída por múltiplas vozes e diversas perspectivas.

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PRIETO, 2003, p. 147). A autora aponta ainda que, na nova concepção de história que hoje já está consolidada, também se considera o problema da narração. Essa é avaliada não somente como um tipo de discurso que apresenta características particulares, mas, fundamentalmente, como uma forma de inteligibilidade, como uma estrutura sem a qual não seria possível apreender o caráter temporal da existência humana, nem compreender a ação dos indivíduos, configurados também sob formas narrativas. Estabelecem-se, pois, pontos de aproximação entre história e literatura que se podem comprovar nas palavras da teórica: […] el hecho de que la historia se configure en estructuras narrativas implica que los hechos realmente sucedidos han sido seleccionados por el historiador e inscritos en una trama que los ordena, los jerarquiza y les confiere un sentido (ideológico, político, moral). La narración no copia la realidad, sino que la vuelve inteligible. De este modo la narración histórica y la narración ficcional obedecen a los mismos mecanismos estructurales y sólo se diferencian pragmáticamente. En los dos casos estamos ante construcciones de realidad, elaboraciones discursivas, cuya definición no se plantea ya en el nivel ontológico sino pragmático, es decir, en los territorios de los pactos y de las funciones atribuidas culturalmente a los discursos 11. (FERNÁNDEZ PRIETO, 2003, p. 148).

A história, nesse sentido e conforme o que registra Peter Burke (1991), advoga, pelos princípios da Nova História, por uma conciliação entre os dois métodos – o narrativo e o estrutural – em razão da dificuldade de se estabelecer uma distinção clara entre acontecimentos do passado e estruturas de linguagem quando se trata de recuperar eventos e personagens do passado. Dessa nova proposição surge, na historiografia atual, uma perspectiva que considera e valoriza o relativismo cultural. Segundo Burke (1992, p. 11), “a base filosófica da nova história é a ideia de que a realidade é social ou culturalmente constituída.” Entre os muitos princípios da Nova História, destacamos, pela sua importante relação com o romance histórico, o fato de esse percurso, segundo Le Goff (1978, p. 262), “estar atento às relações do presente e passado, isto é, compreender o presente pelo passado, mas também, compreender o passado pelo presente”. Nela, adquire também uma importância singular na relação com a literatura a proposição de Jim Sharpe (1992, p. 42) da “história vista de baixo”, pois 11

Nossa tradução livre: [...] o fato de que a história se configure em estruturas narrativas implica que os fatos realmente sucedidos foram selecionados pelo historiador e inscritos em uma trama que os ordena, hierarquiza-os e lhes confere um sentido (ideológico, político, moral). A narração não copia a realidade, senão que a faz se tornar inteligível. Desse modo, a narração histórica e a narração ficcional obedecem aos mesmos mecanismos estruturais e somente se diferenciam pragmaticamente. Nos dois casos, estamos diante de construções de realidade, elaborações discursivas, cuja definição não se estabelece já em nível ontológico, mas, sim, no pragmático, quer dizer, nos territórios dos pactos e das funções atribuídas culturalmente aos discursos.

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[...] aqueles que escrevem a história vista de baixo não apenas proporcionaram um campo de trabalho que nos permite conhecer mais sobre o passado: também tornaram claro que existe muito mais, que grande parte de seus segredos, que poderiam ser conhecidos, ainda estão encobertos por evidências inexploradas. Desse modo, a história vista de baixo mantém sua aura subversiva. (SHARPE, 1992, p. 62).

Na Nova História, evidencia-se, também, a busca de aproximações com outras áreas, desejo expresso nas palavras de Le Goff e Chartier (1978, p. 262) ao mencionarem a importância que adquire, para o historiador contemporâneo, o “olhar lançado sobre o vizinho, na esperança de levar a dialogar os ‘irmãos que se ignoram’.” O romance histórico, como resultado de um processo de combinação entre o material histórico inserido na tessitura e as premissas da arte literária, manifesta-se como um produto híbrido que desperta um interesse muito maior no homem contemporâneo do que em quaisquer outras formas de linguagem mais objetivas e assertivas. Além disso, o uso de elementos históricos nas narrativas ficcionais sempre representou o interesse do homem em resgatar, conservar ou transmitir os eventos do passado, com a diferença de que, com o decorrer dos anos, a posição do homem frente ao transmitido é que mudou. Esse aspecto também deve ser considerado no que diz respeito à leitura de romances históricos. A história do “descobrimento” do “Novo Mundo” pelos europeus, sua libertação e a subsequente formação das nações americanas independentes possibilitam a representação de um mundo riquíssimo em fatos e personagens que têm alimentado um número extraordinário de romancistas de um e do outro lado do Atlântico. Os escritores mais contemporâneos, baseando-se nos registros feitos pelos conquistadores, revelam, pela arte literária e a liberdade que esta lhes proporciona, novas perspectivas aos relatos oficiais, inovando, inclusive, as concepções do próprio romance histórico e estabelecendo rupturas em sua trajetória que evidenciam novas fases no transcurso dessa escrita híbrida e o surgimento de novas modalidades de expressão além daquelas já estabelecidas pela crítica e pela história literária. A visão histórica científica e tradicional tem sido desmistificada por esses romancistas, que buscam, entre outros aspectos, mostrar como o processo de “descobrimento”, colonização, exploração e libertação das terras americanas pode ser visto sob outras perspectivas além daquelas registradas pelos historiadores da linha mais conservadora. Esses, em seus discursos e baseados em seus métodos científicos, tentam transmitir a idéia de veracidade em suas interpretações e reconstruções, dando ênfase à empresa salvacionista da fé cristã, supostamente trazida por Colombo à América, e não às consequências desastrosas e irreversíveis que sofreram as populações 45


autóctones nas ações de subjugação, escravização e exploração impostas pelos invasores. Essa visão unívoca, centrada na perspectiva do colonizador, inclusive, já está superada pela Nova História, que tem, também, considerado a possibilidade de reconfigurar o passado sob outros ângulos e segmentos, dando prioridade às leituras do passado pela perspectiva da “história vista de baixo” (SHARPE, 1992). A união entre a literatura e a história permite-nos revisitar o passado de nosso continente com possibilidades de olharmos para ele não somente pela perspectiva do “descobridor” ou dos colonizadores que o seguiram, mas, também, pensar, imaginar e refletir a existência de outras vias pelas quais esses fatos poderiam ser transmitidos, a partir de uma experiência imaginativa que dá protagonismo aos excluídos: nativos, escravos, mulheres, servos, subalternos, degradados e todo um contingente que foi silenciado ao longo da história. O resultado desse exercício imaginativo é uma reflexão profunda sobre nossa existência como indivíduos, frutos de toda essa complexa cadeia de fatos que permitiu o encontro e os enfrentamentos entre o “Novo” e o “Velho Mundo”: um olhar à alteridade. Essa reflexão encontra na personagem Cristóvão Colombo uma de suas bases primordiais. Seus registros são a fonte primeira que projetou a nossa história oficial. Revelar neles a existência de terras e gentes na rota oeste às Índias faz-nos figurar, pela primeira vez, nos registros do mundo conhecido da época. A viagem de Colombo em busca da rota à Índia via oeste, e o consequente encontro com o, então, ainda desconhecido continente americano, são considerados como grandes feitos da humanidade. No marinheiro e em sua própria história – cheia de mistérios e contradições, registrada em partes no Diário de bordo (1492-1493) e em inúmeros estudos biográficos que se deparam com a falta de provas para estabelecer afirmações exatas acerca dessa personagem – está a origem do processo que desencadeou a formação dos povos mestiços da América, sua cultura, sua essência híbrida, suas identidades múltiplas. De Walter Scott e seus seguidores até as escritas críticas atuais, muitas e profundas mudanças ocorreram no âmago do romance histórico. Da mesma forma, das proposições iniciais do historiador alemão Leopold Ranke (1795 – 1886) que instituíram os paradigmas da história tradicional, a Jacques Le Goff, Peter Burke e Hayden White, que representam já uma nova fase na ciência histórica, muita coisa mudou no âmbito da coleta de informações e do posicionamento do historiador frente aos resultados obtidos. Conforme já enunciamos, a Nova História vem valorizando, inclusive, aspectos que tangem à questão da “visão dos vencidos”, tão celebrada na literatura crítica/desconstrucionista e, também, mediadora, das modalidades mais atuais de romances históricos.

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A história ou a literatura, quiçá ambas, ao captarem essa necessidade do homem de, sensivelmente, refletir sobre esse processo que engendrou as sociedades americanas, serão sempre fontes de buscas e pesquisas em se tratando das múltiplas identidades que a América desenvolveu ao longo dos últimos 5 séculos. Entre as leituras possíveis do passado, não há como negar a importância das escritas híbridas de história e ficção, pois Márquez Rodríguez (1991, p. 21) comenta que “durante el siglo XIX se produce un importante movimiento de admiración y de ejercicio de la novela histórica. En el siglo XX tal interés no desaparece. En algunos momentos puede decirse que decae, pero en otros repunta con gran fuerza, incluso innovadora.12” Essa trajetória evolutiva do próprio gênero alcança nossos dias com a mesma sistemática de aceitação por parte do público leitor. Entre as mudanças mais significativas no âmbito do romance histórico, apontadas por Aínsa (1991), reorganizadas e sintetizadas por Menton (1993), estudadas e comentadas por Fernández Prieto (2003), destacamos aqui o fato de que o “histórico” deixou de ser pano de fundo, ambiente apenas – como era nas primeiras escritas híbridas do gênero romanesco –, e vem se tornando o cerne mesmo dos romances históricos desde as últimas décadas do século XX. Isso é fundamental às reescritas híbridas, embora toda essa produção seja ainda, nos dias atuais, dicotomizada, com a presença de dois grupos de escritas bem diferenciadas: aquelas que se irmanam ao discurso historiográfico para louvar as ações do passado colonizador e aquelas que, abertamente, enfrentam-se com esse discurso para impugná-lo por meio das possíveis vias que a ficção oferece. A visão romântica de mundo, da modalidade de romance histórico clássico de Scott – importante para a Europa do século XIX, após as invasões napoleônicas e para as nações recém-formadas na América, na fundação de suas identidades –, cedeu lugar a um profundo questionamento e busca de identidades no fato histórico em si, que, sob a ótica do romancista, é reconstruído ficcionalmente. Essa mudança, além de enriquecer o teor artístico das obras, pode auxiliar no surgimento de uma consciência crítica, bem como contribuir com a afirmação das múltiplas identidades latino-americanas. Márquez Rodríguez (1991, p. 47) advoga essa reconstrução ficcional como direito conquistado pelo romancista de reinterpretar os fatos, os acontecimentos e as personagens históricas, independentemente dos julgamentos anteriormente a eles atribuídos pelos historiadores oficiais, cronistas pagos pelas coroas europeias para registrarem as ações de conquista e colonização, efetivadas por seus súditos, em nosso continente. O êxito que ainda goza o romance histórico na atualidade, não só em nosso continente, mas no mundo todo, também encontra na história parte de sua origem. Isso se deve ao fato de que o romance histórico ainda cumpre com 12

Nossa tradução: Ao longo dos séculos, produz-se um importante movimento de admiração e de exercício do romance histórico. No século XX, aquele interesse desaparece. Em alguns momentos, pode-se dizer que declina, mas em outros desponta com grande força, inclusive inovadora.

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uma de suas mais importantes funções, tão bem explicitada por Mata Induráin (1995), quando registra ser ele um dos meios essenciais para a recuperação de nossa memória coletiva e fonte de aprofundamento de nossa liberdade. Isso nos possibilita saber que as ações humanas no tempo e no espaço podem ser registradas sob diferentes visões, numa concepção, também, da Nova História, apontando para “verdades” diferentes. É nesse oceano de produções díspares que vamos encontrar as inúmeras imagens escriturais de Cristóvão Colombo, seja no âmbito da historiografia, seja no da literatura. Uma mostra disso é exposta na sequência desta obra.

1.1 ENTRE A CIÊNCIA E A ARTE: ATRAVESSANDO O OCEANO – A PROJEÇÃO DO PASSADO AMERICANO AOS NOSSOS DIAS A superstição que afirma ser possível a verdade absoluta deu origem a opressivos sistemas políticos e religiosos, dos quais nunca conseguimos nos libertar: e jamais podemos fazê-lo enquanto aceitarmos a condição prévia que habilitou todos eles, isto é, a possibilidade de alguma verdade que seja absoluta. (CLARK; HOLQUIST, 1998, p. 363).

As questões que envolvem as relações entre a literatura e a história têm, na atualidade, suscitado o interesse, inclusive, de outras áreas do conhecimento humano. Na área dos estudos da linguagem, as proposições realizadas por Roland Barthes, entre outras, no campo de estudos da análise do discurso, têm contribuído significativamente para a questão. O mesmo se dá com os estudos em hermenêutica, semiótica e semântica do francês Paul Ricoeur a respeito da medida da temporalidade que a literatura e a história elaboram. Suas reflexões sobre a questão da narração têm sido de grande auxílio também, pois, segundo registra Vicente Balaguer (2002), apesar de não acrescentar nada essencialmente novo nas taxonomias da análise da narração, o seu pensamento “constituye en la actualidad el intento más logrado de una hermenéutica de la función existencial del relato.13” (BALAGUER, 2002, p. 12). Podemos, nesse sentido, mencionar grandes inovações, tanto no campo da história, a partir da chamada Nova História – cujos representantes mais conhecidos entre nós são Peter Burke, Hayden White e Jacques Le Goff, bem como no da crítica e teoria literária que tratam da narrativa, que contam com os pressupostos de Lukács, Todorov, Bakhtin e os próprios escritores de romances históricos que atuam como críticos, entre eles Vargas Llosa, García Márquez, Eloy Martínez e vários outros que, juntos, têm buscado analisar os entrecruzamentos que se dão entre a história e a ficção nas ressignificações 13

Nossa tradução: […] constitui na atualidade o intento mais prodigioso de uma hermenêutica da função existencial do relato.

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ficcionais do passado, elaboradas a partir da fusão dos discursos sobre os acontecimentos que marcaram época na América, em especial em suas fases crítica/desconstrucionista e mediadora. Roland Barthes (1988), ao analisar a narrativa de ficção e a narrativa histórica no âmbito do discurso, aponta que, sob a ótica da linguística e da psicanálise, a ausência de signos de enunciação no discurso histórico, em busca da objetividade, é, na verdade, bastante significativa. O autor afirma que o discurso histórico é uniformemente assertivo e praticamente desconhece a negação ou a dúvida. O historiador busca, assim, contar sempre o que foi, não o que não foi ou aquilo que deixou dúvidas. Para tanto, nesse discurso faz-se uso contínuo do “aconteceu”, para criar um “efeito de real”, o que torna a sua narrativa bastante prestigiada. Esse efeito discursivo que leva o leitor menos preparado a construir um pacto de “veracidade”, vinculado às ressignificações ficcionais do passado, também está presente, da mesma forma, nas modalidades de romances históricos que prezam pela verossimilhança – como é o caso da clássica scottiana e da tradicional, que constituem a primeira fase da trajetória do gênero e são consideradas as suas modalidades acríticas – e na terceira fase do gênero: a crítica/mediadora, em sua modalidade mais atual do romance histórico contemporâneo de mediação. Esses aspectos inerentes à trajetória do gênero híbrido de história e ficção conhecido como romance histórico têm sido a nossa matéria investigativa essencial desde 200714 quando destacamos, à época, a existência de uma nova fase nas escritas híbridas de história e ficção. Dessa época aos nossos dias, conseguimos traçar um percurso do gênero, desde 1814 às produções mais recentes. Tal percurso foi dividido nos estudos que realizamos desde então em diferentes grupos (apologético e crítico), fases (acrítica, crítica/desconstrucionista e crítica/mediadora) e modalidades (clássica scottiana, tradicional, novo romance histórico latino-americano, metaficção historiográfica e romance histórico contemporâneo de mediação) de romances históricos. A trajetória do gênero está exposta em nossa obra O romance histórico contemporâneo de mediação: entre a tradição e o desconstrucionismo – releituras críticas da história pela ficção, publicada em 2017. A tais estudos – atualmente inseridos no contexto das pesquisas efetivadas pela equipe que integra o Grupo “Ressignificações do passado na América: 14

Nesse ano de 2007, publicamos o artigo “A Conquista do “entre-lugar”: a trajetória do romance histórico na América”, na Revista Gragoatá, Niterói, n. 23, p. 149-167, jul./dez. 2007. No referido texto, mencionamos a presença constante na atualidade de obras híbridas de história e ficção críticas, mas que não seguiam as diretrizes estabelecidas por Aínsa (1991), por Menton (1993) e por Hutcheon (1991) como marcas evidentes do novo romance histórico latinoamericano ou da metaficção historiográfica, pois essas obras abandonaram o experimentalismo linguístico e formal comuns a essas duas modalidades críticas de escritas híbridas e moderaram bastante também o uso de técnicas escriturais mais desconstrucionistas. Essas características comuns às obras mais atuais do romance histórico levaram-nos a apontar uma nova modalidade do gênero: o romance histórico contemporâneo de mediação. Esse, por sua fez, institui, também, a fase mais recente das produções do gênero: a terceira fase – a crítica/mediadora.

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processos de leitura, escrita e tradução de gêneros híbridos de história e ficção vias para a descolonização” – também nos reportamos nesta obra. A trajetória do romance histórico que traçamos em nossos estudos revela que, com a evolução da sociedade, também se vai transformando a visão da tarefa do historiador e a do romancista. A esse respeito, cabe lembrar os estudos de Vicente Balaguer (2002) a respeito da interpretação da narração, considerando-se a teoria de Paul Ricoeur como base para efetivá-la. Balaguer (2002) registra que Ricoeur, ao considerar a história como “representação” ou como “reconstrução” do passado, frente à ficção que busca a construção de um mundo próprio, assinala que […] desde este punto de vista la fórmula de Leopold Rank – wie es eigentlich war, las cosas tal como sucedieron – se hace presente en todas las memorias. Cuando se quiere marcar la diferencia entre la historia y la ficción se invoca enseguida la idea de una cierta correspondencia entre el relato y aquello que realmente ha sucedido. Al mismo tiempo se es fuertemente consciente de que esta reconstrucción es una construcción diferente del curso de los acontecimientos contados. Por esto, muchos autores rechazan el término representación que les parece demasiado asociado al mito de una reduplicación término a término de la realidad en la imagen que se hace.15 (RICOUER apud BALAGUER, 2002, p. 219).

Com relação ao trabalho do romancista, desde as primeiras escritas híbridas de Walter Scott – na fase acrítica do gênero e na modalidade do romance histórico clássico – até as configurações da metaficção historiográfica – produções proeminentes a partir da década de 1960 – e aos romances históricos contemporâneos de mediação, a tarefa de renarrativizar (acriticamente) ou ressignificar (criticamente) o passado perpassou pela adoção de ideologias distintas, de técnicas escriturais diversas e de modos diferenciados de inserir no tecido ficcional os elementos oriundos do discurso historiográfico. Isso ocasionou a passagem de uma fase das escritas híbridas de história e ficção a outra: da acrítica primeira à crítica/desconstrucionista segunda e, na atualidade, a uma dinâmica de mediação entre os extremos dessas duas fases anteriores que evidencia, a partir do final da década de 1970 até nossos dias, a constituição de uma terceira fase na trajetória do gênero: a fase crítica/mediadora. Somente a partir da segunda metade do século XIX, quando se dá início ao processo de tomada de consciência da autonomia entre a literatura e a história, segundo Mata Induráin (1995, p. 14), “habrá una progresiva reducción de la 15

Nossa tradução: desde este ponto de vista, a fórmula de Leopold Rank – wie es eigentlich war – as coisas tal qual elas se sucederam – faz-se presente em todas as memórias. Quando se quer marcar a diferença entre a história e a ficção invoca-se, em seguida, a ideia de certa correspondência entre o relato e aquilo que realmente aconteceu. Ao mesmo tempo, está-se fortemente consciente de que esta reconstrução é uma construção diferente do percurso dos acontecimentos contados. Por isso, muitos autores rechaçam o termo representação, que lhes parece demasiadamente associado ao mito de uma reduplicação termo a termo de realidade na imagem que se faz.

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dimensión épica, mítica y dramática de la historia, pasando a predominar la explicación e interpretación sobre el mero relato de los hechos 16.” Dessa forma, as fronteiras que separam a ficção e a história têm sido permeáveis ao longo dos tempos. Das discussões que daí surgem, colocam-se, na atualidade, a história e a literatura como leituras possíveis de uma recriação imaginária do real que o passado foi, pois a representação do mundo social, realizada por meio do discurso – criado pela manipulação da linguagem – não é medida por critérios de veracidade ou autenticidade, mas, sim, pela credibilidade que a construção discursiva oferece. Assim, o ser humano tem se questionado sobre a tarefa que lhe compete como leitor de ambos os discursos: se aquelas interpretações dos acontecimentos históricos perpetrados ao longo dos séculos, dos quais temos conhecimento, seriam as únicas ou se outras ainda seriam possíveis. Isso não significa que o discurso do historiador tenha perdido sua credibilidade, mas evidencia que os sujeitos passaram a ler de forma mais crítica as representações sobre o passado. Seus registros, como bem se sabe, são a leitura daquilo que, na sua opinião, foi o “real” acontecido. Se considerarmos, porém, o caráter científico que esse ato de interpretação do historiador supõe, e as normas que o orientam, devemos levar em conta que seu discurso deve manter-se dentro de limites que possibilitem uma averiguação e comprovação do passado por ele reconstruído. Importante é ressaltar que, na atualidade, o historiador está mais consciente de que sua tarefa consiste numa leitura “plausível e convincente” do passado e sua enunciação, como sempre, embora seja uma representação, possui o respaldo da ciência autorizada a emitir juízos sobre o passado. Essa mesma tarefa vista da perspectiva do romancista adquire outra dimensão, pois, segundo registra Ricoeur (s/d, p. 18), “a poesia não pretende provar nada; o seu projeto é mimético: [...] o seu objetivo é o de compor uma representação mais essencial das ações humanas; o seu modo próprio é o de dizer a verdade através da ficção, da fábula, do mithos trágico.” Dessa forma, a literatura, como outras artes, buscando na história grande parte de seus elementos, não tem por objetivo negá-la, destruí-la ou anulá-la. Pelo contrário, busca, na verdade, uma cooperação, “solidariza-se com ela”, como aponta Milton (1992), para revelar outras tantas possíveis “verdades” oriundas de perspectivas não consideradas por quem detinha, no passado, o conhecimento e a autorização para registrar os acontecimentos que seriam inseridos na história da humanidade. Entre eles, estão os acontecimentos que levaram aos enfrentamentos entre europeus – que viviam o início de sua era renascentista no final do século XV – e os autóctones das terras

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Nossa tradução: haverá uma progressiva redução da dimensão épica, mítica e dramática da história, passando a predominar a explicação e a interpretação sobre o mero relato dos acontecimentos.

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encontradas por Colombo em sua viagem rumo a Cipango e Cathay pela via oeste. Esses, como hoje sabemos, viviam em diferentes estágios de evolução. O artista, na concepção de Ricoeur (1994, p. 76), como “artesão da palavra”, não cria coisas, somente “quase-coisas”; ele inventa o “como se” com a liberdade que a arte lhe outorga. As teorias de Ricoeur têm chamado a atenção para vários aspectos que aproximam a narrativa ficcional da narrativa científica da história. Segundo as suas teorias, o artista, quando pretende recriar o comportamento, o ambiente, a época, o contexto no qual os eventos do passado por ele ficcionalizado se deram, não tem nenhum compromisso com a veracidade, mas, sim, com a verossimilhança, caso esse seja o seu desejo. O romancista, ao fazer sua interpretação do passado, utilizando-se de meios e técnicas que a arte lhe proporciona, efetua, na maioria das vezes, uma desmistificação da história hegemônica e eurocêntrica sob a qual grande parte do passado da América foi consignada nos anais da história. Dessa forma, aparecem, por intermédio da perspectiva por ele escolhida e das vozes que em sua obra se manifestam, novas visões da personagem, do acontecimento recriado e do contexto no qual o fato está inserido. Já outros romancistas preferem abandonar o próprio intento da verossimilhança ao ressignificar um acontecimento passado e optam pela desconstrução dos discursos edificadores da historiografia e das imagens exaltadoras das personagens atuantes no evento ressignificado pela ficção. Tais romancistas guiam-se pelas premissas de que tanto história como ficção são discursos e que a linguagem é manipulável, evidenciando tais aspectos na superfície da tessitura narrativa. Isso é comum nas modalidades que constituem a segunda fase do gênero romance histórico: o novo romance histórico latinoamericano e a metaficção historiográfica. Como resultado das ações do romancista, segundo Larios (1997), o romance histórico da fase mais crítica/desconstrucionista da trajetória do gênero tem facilitado a criação de novas linguagens fundadas em paradoxos, na ironia, na impugnação da história, na alteridade, na simultaneidade, nos anacronismos, na heteroglossia, recursos que acabam por construir discursos inovadores do tipo religioso-místico, filológico, de aventura, pseudorrealista, pseudo-cotidiano, anti-purista etc. Isso acaba causando as perceptíveis rupturas dessas expressões híbridas com os modelos tradicionais – como os de costume ou realistas, comuns nas modalidades clássica scottiana e tradicional do romance histórico –, baseados mais na arte mimética, na tentativa objetiva de reprodução da realidade, na linearidade temporal. Essas características de ruptura da contemporaneidade com os paradigmas da linguagem romântica e realista/naturalista precedentes geram, na “poética do descobrimento”, obras como El harpa y la sombra (1979), de Alejo Carpentier; Los perros del paraíso (1983), de Abel Posse; Cristóbal Nonato (1987), de Carlos Fuentes; The memoirs of Christopher Columbus (1987), de Stephen 52


Marlowe; The Heirs of Columbus (1991), de Gerald Vizenor; Vigilia del Almirante (1992), de Augusto Roa Bastos, entre outras ressignificações de Colombo e suas ações, em parte mencionadas por Menton (1993) e classificadas por ele como modelos do novo romance histórico latino-americano, outras constituindo-se em verdadeiras metaficções historiográficas. Daí a existência de duas vertentes bem distintas de escritas híbridas de história e ficção – ou grupos dicotômicos, como nós costumamos dividir, num primeiro momento, a grande quantidade de romances históricos, de características muito diferentes, que coexistem na atualidade. Como aponta Fernández Prieto (2003), uma das vertentes é aquela que mantém em suas características básicas os traços essenciais das modalidades acríticas: a clássica scottiana e a tradicional, que dela derivou, apesar de a última agregar à primeira uma série de mudanças. A outra vertente é a que altera, radicalmente, esses traços, pois, conforme Larios (1997, p. 135), “[...] de esta manera descreyendo en la forma literaria de la vieja novela, atributada por el costumbrismo y el realismo, se descree también en la legitimación del metarrelato llamado historia.17” Assim, de acordo com Fernández Prieto (2003, p. 150-163), […] las novelas históricas que continúan el trayecto iniciado por Scott mantienen el respecto a los datos de las versiones historiográficas en que se basan, la verosimilitud en la configuración de la diégesis, y la intención de enseñar historia al lector. Pero aportan interesantes innovaciones formales y temáticas que las separan del modelo clásico y que se concretan en la subjetivación de la historia y en la disolución de las fronteras temporales entre el pasado de la historia y el presente de la enunciación. [...]. La nueva novela histórica propone, en cambio, un modelo genérico en abierta confrontación con los pilares básicos de la tradición [...]18.

Esta revisitação da história pela literatura, em ambas as vertentes ou grupos de romances históricos acima citados, tem, entre o afã de sucesso e a busca de um público consumidor já consagrado desde os romances históricos românticos de Walter Scott, outras razões de cunho mais amplo e profundo, que abrangem aspectos referentes à própria busca do homem pela sua identidade e por tudo o que a literatura pode representar nessa busca. A função catártica da literatura também retoma toda a sua significação e importância nas escritas híbridas de história e ficção, especialmente quando a temática envolve aspectos cujas visões são, em si, já dicotomizadas, como 17

Nossa tradução: [...] dessa maneira, descrendo da forma literária do antigo romance, atrelada ao costumbrismo e ao realismo, descrê-se também da legitimação do metarrelato chamado história. 18 Nossa tradução: […] os romances históricos que continuam a trajetória iniciada por Scott mantêm o respeito aos dados das versões historiográficas em que se baseiam, a verossimilhança na configuração da diegese, e a intenção de ensinar história ao leitor. Contudo, instauram importantes inovações formais e temáticas que as separam do modelo clássico e que se concretizam na subjetivação da história e na dissolução das fronteiras temporais entre o passado da história e o presente da enunciação. [...]. O novo romance histórico propõe, em troca, um modelo genérico em aberta confrontação com os pilares básicos da tradição [...].

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ocorre na “poética do descobrimento” da América, cujos registros históricos foram realizados unicamente pela parcela colonizadora, dominadora e exploradora do contingente americano, de suas terras e suas gentes. A ressignificação do passado pela ficção, que outorga espaço de voz para as parcelas marginalizadas da população, não altera esse passado cruel e violento da América, mas alivia as angústias de quem busca compreender, também, o lado dos conquistados, dos explorados, dos oprimidos e vencidos. Nesse sentido, na América Latina, […] los escritores buscaron las vías para dar voz a esa memoria viva de sus pueblos y para exponer no sólo lo que significó para ellos la llegada de los españoles y los europeos, sino también lo que pensaban de aquella civilización que destruyó su mundo y su cultura. Y una de estas vías la encontraron en la novela histórica. 19 (FERNÁNDEZ PRIETO, 2003, p. 156).

A função catártica da literatura já foi apontada por Aristóteles na Poética ao registrar, segundo a tradução de Maria Helena Rocha da Silva (1963, p. 405): “a tragédia é uma imitação da ação, elevada e completa, dotada de extensão, numa linguagem temperada, com formas diferentes em cada parte, que se serve da ação e não da narração, e que, por meio da comiseração e do temor, provoca a purificação de tais paixões.” Essa função, presente na tragédia, estende-se naturalmente, ao longo dos séculos, a toda a expressão literária. No século XVIII, a catarse, além de seu conceito moralístico, adquire uma perspectiva mais sentimentalista, que lhe assegura, segundo aponta Aguiar e Silva (1976, p. 115-117), uma dupla interpretação: a-) moralística: interpretação que busca mostrar que Aristóteles “pretendia significar que a poesia trágica não só purifica a piedade e o terror, mas também outras paixões, como a ira, a luxúria e a avareza, obstáculos a uma vida virtuosa.” ; b-) mitridática: que interpreta a proposição de Aristóteles sob o ângulo de que “ao comover estas paixões, a tragédia tira-lhes o que elas têm de excessivo e de vicioso e leva-as a um estado moderado e conforme a razão.” Com relação aos eventos do passado que uniu a Europa à América, ainda imperam, entre os habitantes da metrópole colonizadora e os colonizados dos territórios americanos, sentimentos que deixam transparecer as dicotomias típicas oriundas de processos históricos que deixaram profundas sequelas, por um lado, pelo uso do poder e, por outro, pelo processo de dominação sofrido. Fatos que aparecem plasmados nos romances históricos dessa temática em ambos os continentes e que, a nosso ver, são meios salutares de catarse que podem, se não resolver muitas questões ainda problemáticas, ao menos 19

Nossa tradução: […] os escritores buscaram as vias para dar voz a essa memória viva de seus povos e para expor não somente o que significou para eles a chegada dos espanhóis e dos europeus, mas, também, o que pensavam daquela civilização que destruiu seu mundo e sua cultura. Uma dessas vias eles encontraram no romance histórico.

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instaurar um processo no qual as diferenças podem ser exteriorizadas, analisadas, rechaçadas, aceitas ou, ao menos, reconhecidas. Além dessa, outras razões se destacam na temática do “descobrimento”, entre as quais podemos mencionar o que expressou Márquez Rodríguez (1991, p. 9): El interés del hombre por el pasado es constante. Y en materia literaria, la novela se ha distinguido desde sus inicios por su carácter épico en el más amplio sentido del vocablo. La hazaña humana, la hazaña de vivir es y ha sido siempre, y seguramente lo seguirá siendo su tema fundamental.20

Como afirma Mata Induráin (1995, p. 37), se, na história, o homem pode buscar sua própria identidade, o romance histórico vem contribuir para evitar uma amnésia do passado em uma época em que o homem necessita igualmente de raízes e de esperanças e, nesse contexto, a literatura segue cumprindo com as suas funções de proporcionar prazer pelo seu teor artístico, poético, estético e também pelo seu lado catártico, sendo um processo depurativo de emoções e sentimentos exacerbados, como os que se têm manifestado entre colonizadores e colonizados ainda na contemporaneidade. García Gual (2002, p. 24-25) chama, nesse aspecto, a atenção para o fato de que o romance histórico tem uma clara vocação popular, já que, nele, parece existir um acordo entre autores e público que compartilham jogos de fantasia, vacilando entre testemunhos de caráter verídico e a ficção fantástica. Essas narrações de caráter híbrido, segundo o autor, impulsionam o público a olhar para o passado com uma nova simpatia, pois, nelas, podem ser vistos aspectos obscuros ou ignorados pelas crônicas oficiais, imagens mais coloridas e uma grande vivificação de figuras solenes e, também, daquelas marginalizadas pelos relatos precedentes. O passado, na leitura de um romance histórico tradicional e mesmo mediador, torna-se, assim, exótico, e as regras de ação mais claras e mais propícias a uma espécie de aventura pessoal, pois proporcionam um maior envolvimento do leitor com a matéria narrada ou, por outro lado, levam-no a enfrentar-se com a realidade da construção discursiva, abertamente exposta nas linhas escriturais dos romances críticos/desconstrucionistas. O registro de fatos históricos sob visões que não sejam exclusivamente aquelas consideradas tradicionais é, também, uma realidade presente nas características da Nova História mencionadas por Peter Burke (1992). Isso faz com que esse aspecto da busca de novas visões dos fatos históricos seja, na contemporaneidade, já um marco de aproximação entre a literatura e a Nova História. 20

Nossa tradução: O interesse do homem pelo passado é constante. E em matéria literária, o romance se distinguiu desde o início pelo seu caráter épico no mais amplo sentido da palavra. A façanha humana, a façanha de viver é e sempre foi, e certamente continuará a ser, seu tema fundamental.

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Contrastando as mudanças que ambas as áreas sofreram nos últimos tempos e que acabaram também influenciando, diretamente, a formação de seus discursos hoje vistos sob óticas mais liberais, García Gual (2002, p. 25) comenta que […] la nueva historiografía ha advertido la necesidad de flexibilizar sus relatos y aprovechar los testimonios más diversos para construir una narración más atenta a aspectos de la vida cotidiana, la vida privada, o el mundo marginal, a los que ya antes, y a su manera más frívola, había prestado su atención la novela. A su vez, la novela se ha hecho más irónica, más crítica, más distante del realismo ingenuo del siglo pasado – y del tipo preferido por G. Lukács.21

Essa é uma discussão que nunca conheceu as fronteiras da temporalidade. No intento de resolver algumas das diferenças que afloraram ao longo dos anos, surgem importantes representantes de ambas as áreas. Na teoria da literatura, destaca-se, entre outros, Tzvetan Todorov. O crítico, em relação às mesmas questões expostas por Cervantes em seu clássico Dom Quixote com respeito ao registro da “verdade”, lança um novo desafio em sua obra Las Morales de la historia (1993). Na obra, Todorov (1993), ao buscar uma solução plausível para a questão, afirma que seria necessário que se aceitasse, antes de tudo, uma análise mais profunda daquilo que parece ser, para ele, o âmago mesmo do problema, ou seja, a noção de “verdade”. Para o crítico búlgaro, deveriam distinguir-se pelo menos dois significados dessa palavra: a verdade-adequação e a verdade-revelação. A primeira não conhece outra medida que o tudo e o nada; a segunda, o mais e o menos. Tal distinção poderia ser de grande importância e valia para caracterizar melhor os resultados obtidos nas análises dos discursos históricos e literários, o próprio trabalho interpretativo, pois, de acordo com a visão exposta pelo crítico, é ingênuo ausentar o autor, o escritor de sua obra, de seu texto, para recorrer apenas às entidades ficcionais como o narrador ou autor implícito, afirmação que nem sempre encontra o respaldo dos demais críticos literários, que defendem a diferença entre autor e narrador sem considerar, nesse ato, a possível análise em nível discursivo. Assim, Todorov (1993, p. 146) menciona que […] los textos literarios deben interpretarse precisamente para saber lo que “quieren decir” sus autores – puesto que éstos no nos lo dicen nunca directamente. También podemos renunciar a esta búsqueda, diciendo que el autor no tiene ninguna idea, y que tan sólo ha querido gustar a los lectores, presentándoles un bello objeto. Pero demasiados testimonios como argumentos indirectos abogan contra semejante decisión, 21

Nossa tradução: a nova historiografia reparou na necessidade de flexibilizar seus relatos e de aproveitar as mais diversas testemunhas para construir uma narrativa mais atenta aos aspectos da vida cotidiana, da vida privada, ou o mundo das margens, aos quais o romance já prestara atenção antes, e da maneira mais frívola. Por sua vez, o romance se tornou mais irônico, mais crítico, mais distante do realismo ingênuo do século passado - e do tipo escolhido por G. Lukács.

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así pues, desde hace mucho tiempo, nos hemos interrogado también acerca del pensamiento de los escritores (y no solamente sobre su arte), segundo diversas modalidades que nos interesan en este momento.22

Sobre a mesma questão, um dos mais expressivos nomes da literatura hispano-americana, o escritor peruano Mario Vargas Llosa (2002, p. 16), posicionou-se da seguinte forma, em seu livro, não por acaso, chamado La verdad de las mentiras: “en el embrión de toda novela bulle una inconformidad, late un deseo insatisfecho.23”. Ou seja, o que move a produção da ficção é a vontade consciente de um ser não ficcional, o escritor/autor, a expressar sua visão de mundo que se opõe, de algum modo, a uma “verdade” terminante que se deseja mudar. Para tanto, ele se vale dos artifícios que lhe são oferecidos pela arte da ficção. Sua inconformidade e seu desejo ficam, desse modo, ocultos, encobertos e disfarçados na rede do tecido narrativo. Segundo a posição de Todorov, essa realidade não deveria ser isolada, ou ignorada, no momento da interpretação da obra literária. A respeito de “verdade” e “mentira” na literatura, o escritor Vargas Llosa, corroborando a teoria de Todorov, afirma, na obra citada, que, de fato, os romances mentem, e não pode ser de outra forma. Essa, no entanto, é apenas uma parte da verdade: ao mentir, a obra de ficção revela uma curiosa verdade que só se pode expressar de modo dissimulado e encoberto, disfarçada do que não é; uma visão de mundo, elaborada segundo os critérios da arte poética e transmitida por um ser ficcional, o narrador, mas que pode encontrar sentidos e significações nos leitores, receptores capazes de percebê-la em todas as suas heterogeneidades. Essa peculiar “verdade disfarçada”, presente nas obras de ficção, parece ser o que Todorov (1993) aponta, no trecho citado na página 44, como sendo um dos elementos importantes e necessários a ser analisado para se chegar a conhecer o pensamento dos escritores e não apenas a sua arte. Teríamos, nesse sentido, presente nas obras de ficção uma “verdade”, cuja revelação fica velada ao narrador que não a pode transmitir em nome de sua função artística e entidade ficcional condutora da narração, já que essa “inconformidade” ou “desejo” se manifesta na vontade consciente da figura não ficcional do autor e se revela somente pela atuação da figura real do leitor em sua tarefa de interpretação da obra ao longo do processo de construção do sentido do texto que esse efetua. 22

Nossa tradução: os textos literários devem ser interpretados precisamente para saber o que “querem dizer” seus autores – já que eles nunca nos dizem diretamente. Também podemos desistir desta busca, ao dizer que o autor não tem ideia, e que somente queria fazer o gosto dos leitores, apresentando-lhes um belo objeto. Mas muitas são as testemunhas, tais como argumentos indiretos, as que advogam contra semelhante decisão, portanto, já faz muito tempo, nós também nos questionamos a respeito do pensamento dos escritores (e não somente sobre sua arte), de acordo com as diversas modalidades que são de nosso interesse neste momento. 23 Nossa tradução: no embrião de todo romance ferve uma inconformidade, bate um desejo não satisfeito.

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Esse constante desejo da busca da “verdade” manifesta-se, principalmente, no empenho, tanto de romancistas como de historiadores, em documentar-se, investigar fontes, para produzir suas obras. Esse árduo e cansativo trabalho de coleta e análise de dados e informações é uma constante no trabalho dos historiadores. Ele constitui parte relevante e indispensável de seu trabalho e, nem por isso, fica estampado, explicitado, mencionado em suas obras. Já entre os romancistas históricos, essa tarefa, algumas vezes, é um ponto de discordância. O conhecimento do fato histórico a ser ficcionalizado é um pressuposto óbvio; porém, a busca de informações e as técnicas para obtêlas constituem-se em um procedimento particular de cada romancista. Da mesma forma, isso se dá com o modo de inseri-las nas escritas híbridas de história e ficção. Não é essa a questão que leva a certa discordância, mas, sim, o fato de explicitar ou não ao leitor as fontes históricas e as técnicas empregadas para obtê-las ao longo do relato ficcional. Entre os romancistas, existem formas distintas de lidar com o fato da necessidade da coleta do material histórico incluído na diegese, bem como modos diferentes de transmiti-lo ao leitor. Esses modos podem variar desde a sua menção pelo narrador autoral ao longo da narrativa, ou adquirir formas de notas de agradecimento a cooperadores, ou simplesmente aparecem como dedicatórias singelas àqueles que os forneceram ou possibilitaram acesso a eles. Importante, no entanto, é o fato de que são esses materiais, juntamente com técnicas narrativas como o emprego da paródia, da polifonia, das relações transtextuais, entre outras, que asseguram o caráter de verossimilhança que certos romances históricos carregam em seu âmago ou mesmo apoiam as técnicas de impugnação das versões oficializadas, empreendidas por outras modalidades romanescas híbridas de história e ficção de caráter crítico/desconstrucionista. O exame das fontes, a pesquisa em registros documentais, a coleta de dados, a atitude arqueológica, a reunião de um arsenal de materiais que servirão para imprimir verossimilhança ou mesmo evidenciar o caráter discursivo sobre o passado, dependendo do propósito adotado, são procedimentos que, entre outros já mencionados, aproximam historiadores e romancistas. Para os historiadores, tal aspecto constitui o cerne de sua atividade científica, enquanto para os romancistas, segundo Mata Induráin (1995, p. 18), “la presencia en la novela histórica de este andamiaje histórico servirá para mostrarnos los modos de vida, las costumbres y, mejor comprensión de aquel ayer [...], todo ese elemento histórico es lo adjetivo, y lo sustantivo es la novela.24” Embora história e literatura sejam construções discursivas, representações ou recriações de fatos, ambientes, contextos, linguagem 24

Nossa tradução: a presença no romance histórico deste andaime histórico servirá para nos mostrar os modos de vida, os costumes e provê uma melhor compreensão daquele passado [...], todo esse elemento histórico é o adjetivo, e o substantivo é o romance.

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elaborada segundo as interpretações particulares de cada indivíduo, ambas expressam, a seu modo, as “possíveis representações do real”, que instigam o homem em seu papel de sujeito histórico, tanto no que o deleita como no que o inquieta. Essas características, unidas ao caráter autorreflexivo da linguagem que as constitui, contribuem para que ambas acompanhem as evoluções e transformações do homem no seu modo de pensar e ver o mundo. O passado, reiteramos, sempre exerceu forte fascínio sobre o homem, que nele busca as origens de tudo que levou o mundo a ser como é. A existên cia humana vai adquirindo um sentido mais completo à medida que o homem vai se descobrindo como agente dos processos evolutivos dos quais é fruto. Nesse contexto de busca do conhecimento sobre o passado, o “sucesso” do romance histórico junto ao público receptor, bem como do lado dos escritores e editores, é inegável. As “verdades” diferentes que a literatura, bem como a Nova História, evidencia podem ser, de fato, uma das causas desse êxito. História e literatura necessitam encontrar, nesse contexto, meios e modos de lidar com essa visão na qual não cabem mais “verdades absolutas”, como já vem ocorrendo, segundo menciona Fernández Prieto (2003), por um lado, nas novas proposições da história e, por outro, pelas renovações instauradas pelos romancistas contemporâneos para o gênero romance histórico. Mesmo nos dias de hoje, segundo Aínsa (1997), a complexidade histórica aparece melhor refletida na mímese narrativa que num discurso unicamente assertivo, como era propósito da história rankeana. A literatura, ao tolerar as contradições, a riqueza e a polivalência em que se traduz a complexidade social e psicológica de povos e indivíduos, aproxima-se dessas posições. A história acompanha essa evolução ao admitir novas possibilidades, novas visões, uma nova base filosófica, segundo Burke (1992, p. 11), para a sua importante tarefa de vivificar o passado no presente. A trajetória dessa vertente do romance, que tem seu início marcado em 1814, com a referida obra, Waverley, de Walter Scott, e as mais importantes transformações que nela se deram ao longo desse tempo até aos nossos dias, são o assunto de que tratamos a seguir, a fim de obtermos uma visão mais abrangente das características que se encontram presentes nas obras romanescas da “poética do descobrimento” que procuramos abordar nesta obra.

1.2 O ROMANCE HISTÓRICO: DAS HISTÓRIAS ROMÂNTICAS SCOTTIANAS ÀS RESSIGNIFICAÇÕES CRÍTICAS DO OUTRO LADO DO ATLÂNTICO La historia siempre ha ejercido una fuerte atracción para los narradores porque en ella ya está inscrito el drama humano: no hace falta la invención de situaciones y personajes, porque la historia misma los da. (LARIOS, 1997, p. 130).

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Na obra O romance histórico contemporâneo de mediação: entre a tradição e o desconstrucionismo – releituras críticas da história pela ficção, publicado em 2017, estabelecemos, como já comentamos, a trajetória das escritas híbridas de história e ficção a partir de sua obra inaugural – Waverley (1814 [1981]) – de Walter Scott até as produções dos dias atuais. Nesse estudo, evidenciamos uma trajetória do gênero que demonstra as transformações e adequações que essas escritas empreenderam, constituindo um percurso no qual se podem, segundo nossas pesquisas, estabelecer dois grupos majoritários de expressões ficcionais sobre os eventos do passado. Um desses conjuntos de produções é aquele em que reunimos as obras “nas quais a ficção se une à história para a exaltação do passado e dos sujeitos já consagrados pela historiografia” (FLECK, 2017, p. 21) em sua vertente tradicional, subserviente ao poder estabelecido. O outro grupo procura ressignificar esses discursos apologéticos da historiografia tradicional e da própria produção acrítica ficcional ao reler criticamente os discursos de heroificação dos sujeitos e a louvação das vitórias conquistadas por grupos pertencentes ao poder reinante na época dos eventos renarrativizados. Tais obras, além de ressignificarem as produções apologéticas das escritas híbridas de história e ficção acríticas, “enfrentam-se com o discurso hegemônico da história e buscam a desconstrução da verdade única e absoluta com a qual o passado foi registrado [...], atuando sobre as imagens consagradas dos heróis e sobre o discurso enaltecedor das ações por eles realizadas.” (FLECK, 2017, p. 21). Dentro desses dois grandes grupos dicotômicos de romances históricos, foi-nos possível identificar e dividir essa trajetória em três fases distintas que revelam, primeiro, a passagem de uma atitude harmônica entre os discursos histórico e ficcional a um franco e claro enfrentamento entre eles para, em seguida, alcançar uma fase de relações dialógicas e mediadoras. Nesse sentido, as fases da trajetória do romance histórico foram classificadas por nós como: 1- A fase acrítica; 2- A crítica/desconstrucionista e; 3- A fase mais atual que chamamos de crítica/mediadora. Essas fases, embora tenham surgido cronologicamente, nos dias atuais, apresentam produções concomitantes. Elas, no entanto, empreendem releituras do passado que se materializam em conjuntos díspares de romances históricos que revelam características distintas entre si. Essa diversidade de produções dentro de uma mesma fase foi o que nos levou a estabelecer uma metodologia de agrupamento que pudesse didatizar essa produção numa tentativa de agregar romances que apresentam o maior número de características semelhantes entre si. Daí surgiu a possibilidade de estabelecermos as modalidades de romances históricos, organizando conjuntos de obras híbridas de história e ficção que “se diferenciam pelo tratamento dispensado ao material histórico inserido na tessitura do romance, pela ideologia que as move, pelas estratégias 60


escriturais empregadas e pela intenção que move a releitura do passado pela ficção.” (FLECK, 2017, p. 10). Desse modo, a fase acrítica está composta por duas modalidades: a clássica scottiana e a tradicional que dela derivou; a fase crítica/desconstrucionista também conta com duas modalidades distintas: o novo romance histórico latino-americano e a metaficção historiográfica; já a terceira e mais atual fase do gênero, a crítica/mediadora, está composta, até a atualidade, por apenas uma modalidade – o romance histórico contemporâneo de mediação. Embora tanto a segunda como a terceira fase englobem obras literárias cujo discurso se revela crítico frente às escritas historiográficas hegemônicas que perpetraram visões únicas dos eventos do passado da América pelo viés da perspectiva eurocêntrica colonizadora, elas se diferenciam em vários aspectos que dizem respeito à inserção do material histórico na tessitura narrativa híbrida e aos recursos escriturais empregados na produção romanesca. As peculiaridades de cada uma dessas modalidades são especificadas na obra mencionada a partir da revisão bibliográfica que efetuamos e dos aportes de nossa própria reflexão sobre a diversidade das expressões híbridas de história e ficção e sua trajetória. Esse conjunto de possibilidades para didatizar a produção híbrida de história e ficção fica sintetizado no Quadro I, apresentado abaixo, embora recomendamos, também, a leitura da obra O romance histórico contemporâneo de mediação: entre a tradição e o desconstrucionismo – releituras críticas da história pela ficção (FLECK, 2017). Quadro I – Trajetória do gênero romance histórico: do Romantismo aos dias atuais 2 GRUPOS DE ROMANCES HISTÓRICOS: Primeiro Grupo: Segundo grupo: Romances que buscam, pela ficção, Produções que, pela ficção, enfrentamampliar e corroborar o discurso se ao discurso hegemônico tradicional historiográfico tradicional e hegemônico, da história e buscam desconstruir a que, no passado, erigiu heróis e modelos verdade única e absoluta com que o de homens e atitudes louváveis para o passado foi registrado pela indivíduo no tempo presente. Produções historiografia positivista, atuando sobre nas quais a ficção se une à história para a as imagens consagradas dos heróis e exaltação do passado e dos sujeitos já sobre o discurso enaltecedor, ações consagrados pela historiografia. que se realizam com técnicas escriturais desconstrucionistas. 3 FASES DO ROMANCE HISTÓRICO 1- Fase: 2- Fase: 3- Fase: acrítica crítica/desconstrucionista crítica/mediadora De 1814, com Waverley, De 1949, com El reino de este Desde a década de de Scott, até os nossos mundo, de Alejo Carpentier, 1980, com as reações dias até os nossos dias do pós-boom, até os

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nossos dias 5 MODALIDADES DE ROMANCES HISTÓRICOS 1- Romance 2- Romance 3- Novo ro4- Metaficção 5- Rohistórico histórico tramance hishistoriográfica mance clássico scotdicional tórico latinohistórico tiano americano Narrativas que contemRenarrativizase apoiam na es- porâneo Uma história ção verossímil Ressignificação crita autorrefe- de medide amor entre de um aconte- paródica, car- rencial, nas quais ação personagens cimento his- navalizada – as opções escripuramente fic- tórico de modo quando não turais para re- Renarraticionais, narra- subjetivado, grotesca –, in- contar o passado vização da em nível ex- em possível ní- tertextualizada, – evidenciadas crítica e tradiegético, vel intradiegéti- multiperspecti- no plano narrati- verossímil com um pano co, com inten- vista, experi- vo – são tão ou de um de fundo his- ções de ensinar mentalista e mais importan- fato do tórico detalha- a versão oficial anacrônica de tes que o em- passado damente re- da história ao um episódio preendimento de de forma constituído e leitor. passado, a fim renarrativizar o linear e com personade impugnar acontecimento com uma gens de extrasua versão ofi- em si. linguagem ção histórica cial e revelar amena e bem conhecioutras possibicoloquial, das em papéis lidades de seu centrada secundários. registro. em uma perspectiva silenciada, excluída, esquecida ou ignorada pela versão oficial. VIGÊNCIA DAS MODALIDADES Final da Desde Do De 1949 até os A partir da década de 1814/1819 até Romantismo dias atuais. chamada Pós1970 e meados do até os dias modernidade até início de século XX. atuais. nossos dias. 1980 até os dias atuais. Fonte: Fleck (2017, p. 131), ampliado pelo autor para esta obra.

Cristóvão Colombo e os eventos históricos que vivenciou no final do século XV, especificamente no ano de 1492 e nos seguintes – nos quais realizou mais três viagens às terras encontradas por ele em outubro de 1492 –, são, até 62


esse momento de nossas pesquisas, as únicas ocorrências de personagem de extração histórica e suas ações que foram configuradas em todas as possibilidades presentes no Quadro I, exposto acima, que sintetiza a trajetória do gênero romance histórico desde 1814 até nossos dias. Por isso, o marinheiro torna-se, ao longo dos tempos, uma personagem emblemática e detentora de uma enorme complexidade na arte literária. Sua primeira configuração romanesca dá-se em 1840, na obra Mercedes of Castile: or the Voyage to Cathay25, do estadunidense James Fenimore Cooper, e dela aos nossos dias produziram-se dezenas de representações literárias de Colombo que evidenciam o olhar de distintos romancistas para esse passado. Tais imagens escriturais do homem que cruzou o Atlântico, em 1492, em busca de uma rota às Índias para o comércio de especiarias, abastecem a imaginação de muitos leitores ao redor do mundo. O fato da recriação ficcional dos eventos de 1492, que levaram ao encontro oficializado entre Europa e América – centrado nas ações da figura histórica de Cristóvão Colombo –, perpassar a totalidade da trajetória do gênero romance histórico oferece-nos a possibilidade de, nessas configurações, também encontrarmos as diferentes nuances, as distintas ideologias que sustentam as escritas híbridas e as inúmeras estratégias escriturais que estabeleceram as diversas modalidades que o gênero alcançou ao longo dos séculos. A vida de Colombo segue cheia de mistérios e enigmas até os dias de hoje e esse é um campo fértil para a imaginação literária e as ressignificações de suas ações pela arte romanesca. Desse modo, na sequência, buscamos reunir algumas das facetas que marcam discursos de enfrentamentos sobre as ações do navegador europeu e a importância delas à constituição das sociedades americanas.

1.3 A AMÉRICA DE COLOMBO: CONTRASTES E FRONTEIRAS

UM

OCEANO

DE

Es fácil cruzar la frontera ahí donde el río se ha secado o los montes son solitarios. Pero es difícil llegar al otro lado. [...] en realidad no es una frontera sino una cicatriz. ¿Se habrá cerrado para siempre?, ¿o volverá a sangrar un día? (FUENTES, 1992, p. 371).

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Esse romance de James Fenimore Cooper – no qual se produz a primeira representação literária romanesca de Cristóvão Colombo, em 1840 – é o corpus de estudo de Jorge Antonio Berndt, integrante do Grupo de pesquisa “Ressignificações do passado na América: processos de leitura escrita e tradução de gêneros híbridos de história e ficção – vias para a descolonização”. As reflexões sobre a importância dessa obra e o fato dela fazer dos Estados Unidos da América o berço no qual nasce a expressão romanesca primeira no contexto da “poética do descobrimento” constituem o seu texto de dissertação, ainda em construção, no âmbito do Programa de Pósgraduação em Letras da Unioeste/Cascavel-PR.

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Os divergentes propósitos, expectativas e atitudes que diferenciaram os empreendimentos colonizadores na América, levados a cabo pelos ibéricos (espanhóis e portugueses) e pelos anglo-saxões, são expostos por Ilan Stavans como se tivessem sido dois projetos antagônicos, marcados pela destruição daquilo que Colombo chamou de “paraíso terreal” por parte dos latinos e, de outro lado, pela busca desse “paraíso” por parte dos anglo-saxões. Stavans descreve a empresa anglo-saxônica, referindo-se aos passageiros do Mayflower – embarcação que trouxe os primeiros colonizadores ingleses à América –, como os herdeiros da tradição puritana, nos seguintes termos: [...] their dream was to begin anew far away from England, to create an improved version of their motherland based on the manners, laws, and reason of their forefathers. Not only were these Calvinist fortunate enough not to find a huge Indian empire ready to oppose them, but their contact with another race did not extend to miscegenation […].26 (2001, p. 7).

Assim, as condições nas quais se deram os processos de domínio e posse dos territórios antes pertencentes às tribos nativas pelos colonizadores britânicos na porção norte do continente são descritas por Ilan Stavans como frutos desse processo de desenvolvimento empreendido pelos conquistadores, que superaram, com seus esforços, as condições existentes na própria metrópole da qual partiram. A descrição idealizada do processo de colonização da América do Norte feita por Ilan Stavans é concluída com a síntese: “[...] their dream became a success”27 (2001, p. 7). Sabe-se, contudo, que tal processo, sob as implicações de um discurso edificador como o visto acima, evidencia, como costuma ocorrer na maioria das vezes, apenas a visão dos colonizadores ou seus descendentes diretos, uma vez que não se faz segredo algum, nem mesmo na história tradicional, dos conflitos e massacres perpetrados pelos europeus colonizadores na América do Norte. Stavans empenha-se em estabelecer antagonias, sempre num discurso crítico em relação às ações dos ibéricos, e laudatório em relação aos empreendimentos anglo-saxônicos. Nesse sentido, seria interessante contrapor esse discurso a algumas das informações reunidas por Eduardo Galeano, que menciona o surgimento no Brasil, por volta de 1850, das primeiras leis que regularizavam a repartição das terras, mas a legislação estadunidense “de la misma época se propuso el objetivo opuesto, para promover la colonización interna de los Estados Unidos. Crujían las carretas de los pioneros que iban extendiendo la frontera, a 26

Nossa tradução livre: [...] o sonho deles era recomeçar longe da Inglaterra, para criar uma versão mais desenvolvida de sua terra natal, baseados nos modos, leis e motivações de seus ancestrais. Estes Calvinistas não apenas foram afortunados o suficiente por não encontrarem um imenso império indígena pronto a se opor a eles, mas seu contato com outra raça não se estendeu à miscigenação [...]. 27 Nossa tradução livre: [...] o sonho deles tornou-se um sucesso.

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costa de la matanza de los indios, hacia las tierras vírgenes del oeste 28” (1970, p. 192). Tal empreitada, executada em nome da fé que animava os colonizadores protestantes fervorosos, resultou tão eficiente que muitas das tribos indígenas foram completamente dizimadas, enquanto outras foram obrigadas a se transferir para zonas menos favoráveis, regiões nas quais vieram, mais tarde, a morrer de frio e fome. Ao referir-se aos processos de conquista e de colonização empreendidos pelos espanhóis, Stavans (2001) é bastante severo: descreve os conflitos entre os hispânicos e os nativos de modo a evidenciar os propósitos exploratórios dos povos ibéricos. Ante o idealismo puritano religioso que marca, em sua opinião, as atitudes colonizadoras dos anglo-saxões – aspectos que enaltece –, o autor registra que […] the conquerors whether sexually abusing or simply ‘buying’ native females, fathered bastard mestizo children of mixed ethnic background – half-Spanish, halfnative. The Genoese and his successors traveled across the Atlantic to find wealth and, perhaps, to discover another facet of themselves, though not a self different from their own. They massacred, destroyed, and burned because power could not be shared. Had they acknowledged the inherent difference between Europe and the Americas, their attitude […] would have been totally different.29 (STAVANS, 2001, p. 7-8).

Ao expor as atitudes dos hispânicos, o escritor estadunidense automaticamente as contrapõe àquelas dos anglo-saxões, num discurso que tenta passar a ideia de que, no Norte, nenhum desses traços marcantes das atitudes dos conquistadores foi efetivado. As dualidades e dicotomias que marcam o caráter, a personalidade, as ações e os registros, em suma, a vida de Cristóvão Colombo, encontram no vasto território americano um espaço propício para se expandir e, como registra Stavans, logo após os marcantes e decisivos eventos de 1492, emergem nas terras descobertas pelo navegante europeu “two very distinct, almost antagonistic realities [...] north and south of the Rio Grande.30” (STAVANS, 2001, p. 7). Realidades antagônicas que se reafirmam na contemporaneidade nos próprios discursos que buscam evidenciar, estudar e analisar os legados de Colombo neste continente. Um dos mais amplos estudos feitos sobre os impactos causados pela 28

Nossa tradução livre: [...] da mesma época propôs o objetivo oposto, para promover a colonização interna dos Estados Unidos. Rangiam as carruagens dos pioneiros que iam estendendo a fronteira, à custa da matança dos índios, até as terras virgens do oeste. 29 Nossa tradução livre: [...] os conquistadores, seja abusando sexualmente ou simplesmente “comprando” mulheres nativas, tornaram-se pais de filhos bastardos mestiços, de uma origem étnica mista: meio espanhóis, meio nativos. O genovês e seus sucessores cruzaram o oceano Atlântico para encontrar fortuna e, talvez, para descobrir outra faceta deles mesmos, embora essa não fosse diferente deles. Eles massacraram, destruíram e queimaram porque o poder não podia ser compartilhado. Tivessem eles reconhecido a diferença inerente entre a Europa e as Américas, sua atitude poderia ter sido totalmente diferente. 30 Nossa tradução livre: [...] duas realidades muito diferentes, quase antagônicas surgem [...] ao norte e ao sul do Rio Grande.

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chegada dos europeus às terras da América é o do escritor mexicano Carlos Fuentes em sua obra El espejo enterrado (1992). Em seu texto, impregnado de um forte lirismo, o ensaísta e romancista faz uma coerente mescla de elementos da história, cultura, economia, política, antropologia, sociologia e outras áreas, em que se integram aspectos do passado e do presente dos povos da metrópole colonizadora e das várias tribos de autóctones em diferentes estágios de desenvolvimento nas terras colonizadas. Levantados esses aspectos, Fuentes projeta tais imagens para a contemporaneidade. Esse paralelo comparativo possibilita vislumbrar uma série de aspectos e fatos ainda hoje conflitantes, assim como suas relações de causa e consequência. Isso possibilita ao leitor uma visão crítica de todo o processo de enfrentamento entre os nativos dessas terras e dos estranhos homens barbudos que aqui chegaram. Carlos Fuentes afirma: La España que llegó al Nuevo Mundo en los barcos de los descubridores y conquistadores nos dio, por lo menos, la mitad de nuestro ser. […] un dolor magnífico funda la relación de Iberia con el Nuevo Mundo: un parto que ocurre con el conocimiento de todo aquello que hubo de morir para que nosotros naciésemos: el esplendor de las antiguas culturas indígenas. 31 (1992, p. 15-17).

Com base em tal realidade é que a releitura do passado vivenciado por Colombo constituiu-se em um dos aspectos centrais da busca de identidade dos povos americanos. Reviver, pela arte da ficção, outros modos de se conceber tal processo histórico, e que não sejam apenas aqueles nos quais imperam as visões e ideologias dos conquistadores, tem-se revelado um meio importante de garantir aos povos oriundos do processo de mestiçagem a manifestação de suas vozes ignoradas e de algumas de suas prováveis visões. Ao referir-se a Colombo, Carlos Fuentes opina que, “en muchos aspectos, el hombre era personalmente menos impresionante que sus trabajos o sus ideas: afiebrado, a veces sin control de sí mismo, sospechoso de ser un mitómano. Pero lo que le sobraba era coraje y determinación32”. Em sua visão, Colombo era movido pela “coraje, el valor renacentista de la fama, el placer del descubrimiento, el afán de oro y el deber de evangelizar 33” (1992, p. 94). Essas imagens, confrontadas com outras já evidenciadas, ora se irmanam e ora se opõem, o que realça ainda mais o caráter pluridimensional das lei turas do passado do navegador pelas diversas manifestações do romance his31

Nossa tradução livre: A Espanha que chegou ao Novo Mundo nos barcos dos descobridores e conquistadores nos deu, ao menos, a metade do nosso ser. [...] uma dor magnífica funda a relação da Ibéria com o Novo Mundo: um parto que ocorre com o conhecimento de tudo aquilo que teve de morrer para que nós nascêssemos: o esplendor das antigas culturas indígenas. 32 Nossa tradução livre: Em muitos aspectos, o homem era pessoalmente menos impressionante que seus trabalhos ou suas ideias: febril, às vezes, sem controle próprio, suspeito de ser um mitomaníaco. Mas o que lhe sobrava eram coragem e determinação. 33 [...] coragem, o valor renascentista da fama, o prazer do descobrimento, a ambição pelo ouro e o dever de evangelizar.

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tórico na contemporaneidade. Em relação aos espanhóis que acompanharam Colombo em suas travessias do Atlântico, assim como os que o sucederam, Fuentes comenta: La conquista del Nuevo Mundo era el evento que tocaba el corazón de sus existencias […]. Ellos traerían al Nuevo Mundo todos los conflictos del carácter español, su imagen de sol y sombra dividiendo el alma como dividen a la plaza de toros. […] Dividirían a los mundos hispánicos, en Europa y en las Américas, durante muchos siglos. Mucha sangre sería derramada luchando en favor o en contra de estas ideas y solo en nuestro tiempo se llegaría a un consenso conciliador de la necesidad de continuar la tradición dentro del cambio y de efectuar el cambio sin violentar la tradición.34 (1992, p. 95-96).

Ilan Stavans (2001), contudo, defende a ideia de que, para os anglosaxões, o espaço “descoberto” por Colombo representou, desde a origem do processo, uma oportunidade para o novo recomeço que buscava a sociedade britânica da época. Foi um empreendimento que se baseou nos princípios do trabalho honesto, na religião e, sobretudo, na pureza da raça, pois, segundo registra Stavans, o contato dos anglo-saxões com as outras raças não se estendeu à miscigenação; seus ancestrais étnicos permaneceram puros e a sua religião protestante se manteve intacta. Depreende-se, do discurso de Stavans (2001), uma falsa ideia de que a relação entre conquistadores anglo-saxões e nativos norte-americanos se baseou nos princípios de liberdade, igualdade e fraternidade, os quais o autor proclama já aparentes em terras britânicas, na França e na Alemanha daquela época, mas ainda embrionárias nos espaços ibéricos – e levariam séculos até se instalarem neste território. Desse modo, conforme menciona Stavans (2001), enquanto os anglosaxões esforçavam-se para realizar seus sonhos, ou seja, fazer nascer o mito de um novo Israel, o povo escolhido do “Novo Mundo”, os ibéricos, em sua fúria conquistadora, davam origem às tantas comunidades mestiças que resultaram do envolvimento entre espanhóis e autóctones americanos. Ocorre, pois, um intenso processo de miscigenação racial que, como mencionamos, é visto por parte de intelectuais como Arturo Uslar Pietri (1990), Silviano Santiago (2000) e Carlos Fuentes (1992) como sendo um dos mais representativos e fecundos traços culturais dos povos americanos. De acordo com a análise de Stavans (2001), que aponta a não miscigenação dos anglo-saxões como um dos fatores favoráveis à instalação das 34

Nossa tradução livre: A conquista do Novo Mundo era um evento que tocava o coração de suas existências [...]. Eles trariam para o Novo Mundo todos os conflitos do caráter espanhol, sua imagem de sol e sombra dividindo a alma como dividem a arena dos touros. [...] Dividiriam os mundos hispânicos, na Europa e nas Américas, durante muitos séculos. Muito sangue seria derramado, lutando-se a favor ou contra essas ideias e somente em nossos dias se chegaria a um consenso conciliador da necessidade de continuar a tradição dentro da mudança e de efetuar a mudança sem violentar a tradição.

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prósperas comunidades nos territórios do norte, esse fato representa um dos principais elementos que constituíram as imensas diferenças na evolução das distintas nações que se originaram no continente “descoberto” por Colombo. Na visão de Stavans, que contrapõe a experiência dos conquistadores ibéricos e anglo-saxões, as diferenças sociais, políticas e econômicas da América atual se originaram já nesse processo inicial de colonização, pois, enquanto as terras colonizadas pelos anglo-saxões […] became successful new societies, México, Peru, Argentina, the Caribbean nations, and other parts of the region were unable to find political, military, and financial stability. Theirs is the legacy of what Las Casas called the ‘black legend’, his account of the disasters and massacres perpetrated by the Spaniards in the newly explored lands. Probably nowhere in the world do two civilizations as dissonant and contrasting live side by side, divided only by the muddly flow of the Rio Grande. Distant neighbors, indeed.35 (STAVANS, 2001, p. 7-8).

As diferenças que fazem da região norte (acima do Rio Grande) e da região sul (abaixo dele) do continente americano realidades tão contrastantes podem até ter sua origem nessas empresas colonizadoras; porém, não são realidades divididas apenas pelas águas turvas do Rio Grande, como expõe Stavans. O pensador estadunidense faz um discurso às avessas do pronunciamento que fez José Martí na Conferencia Internacional Americana de Washington, em 19 de dezembro de 1889. Nessa ocasião, o cubano, ao referir-se aos mesmos fatos do passado histórico, declarou: “Con mujeres y con hijos se fían al mar y sobre la mesa de roble del camarín fundan su comunidad, los cuarenta de la ‘Flor de Mayo’. Cargan mosquetes, para defender las siembras, el trigo que comen, lo aran; suelo sin tiranos es lo que buscan, para el alma sin tiranos36” (1974, p. 33). Nesse mesmo discurso – Madre América –, José Martí também se refere à mestiçagem que se instaurou na América já com a chegada de Colombo, e esse autêntico e produtivo traço das sociedades mestiças da América é ardentemente defendido ao longo de toda a sua carreira literária. Na opinião de Eduardo Galeano (1970), o sucesso das colônias do norte tem uma origem bastante diferente daquela que defende Ilan Stavans. O 35

Nossa tradução livre: [...] tornavam-se novas sociedades bem-sucedidas, o México, o Peru, a Argentina e as nações do Caribe, assim como outras partes da região, foram incapazes de encontrar estabilidade política, militar e financeira. Deles é o legado daquilo que Las Casas chamou de ‘lenda negra’ – seu testemunho dos desastrosos massacres perpetrados pelos espanhóis nas novas terras exploradas. Provavelmente em nenhum outro lugar do mundo duas civilizações tão dissonantes e contrastantes vivam lado a lado, divididas apenas pelas barrentas correntezas do Rio Grande. Distantes vizinhos, de fato. 36 Nossa tradução livre: Com mulheres e com crianças lançam-se ao mar e sobre a mesa de carvalho do camarim fundam sua comunidade, os quarenta da ‘Flor de Maio’. Carregam mosquetes, para defender as semeaduras, o trigo que comem são eles quem produzem; terra sem tiranos é o que procuram, para a alma sem tiranos.

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escritor uruguaio, ao comparar o processo de formação e consolidação das economias das nações americanas e confrontá-las com o que se sucedeu com as ibéricas, aponta que, nas treze colônias britânicas do norte, [...] la naturaleza se había mostrado avara y también la historia: faltaban los metales y la mano de obra esclava para arrancar los metales del vientre de la tierra. […] Las colonias del norte producían, en virtud del clima y por características de los suelos, exactamente lo mismo que la agricultura británica, es decir, que no ofrecían a la metrópoli [...] una producción complementaria. […]. Muy distinta era la situación de las Antillas y de las colonias ibéricas de tierra firme. De las tierras tropicales brotaban el azúcar, el tabaco, el algodón, el añil, la trementina; una pequeña isla del Caribe resultaba más importante para la Inglaterra, desde el punto de vista económico, que las trece colonias matrices de los Estados Unidos. Estas circunstancias explican el ascenso y la consolidación de los Estados Unidos, como un sistema económico autónomo, que no drenaba hacia fuera la riqueza generada en su seno. Eran muy flojos los lazos que ataban la colonia a la metrópoli.37 (GALEANO, 1970, p. 94-96).

Como vemos, os discursos são opostos nessas duas zonas que se originaram na América após o “descobrimento”. Separadas por pouco mais de três décadas, as obras de Stavans (2001) e Galeano (1970) estabelecem o paralelo perfeito para essas dicotomias, ao dialogarem sobre os mais importantes aspectos que, para um e outro, são as causas dessas tão acentuadas diferenças. Galeano, em seu discurso, que se agrega aos demais que vêem a chegada de Colombo com maus olhos, registra: No fueron factores raciales, como se ve, los que decidieron el desarrollo de unos y el subdesarrollo de otros: las islas británicas de las Antillas no tenían nada de españolas ni de portuguesas. La verdad es que la insignificación económica de las trece colonias permitió la temprana diversificación de sus exportaciones y alumbró el prematuro, impetuoso desarrollo de las manufacturas. La industrialización norteamericana contó, desde antes de la independencia, con estímulos y protecciones oficiales. Inglaterra se mostraba tolerante, al mismo tiempo que prohibía estrictamente que sus islas antillanas fabricasen siquiera un alfiler.38 (GALEANO, 1970, p. 196). 37

Nossa tradução livre: [...] a natureza havia se mostrado avara e também a história: faltavam os metais e a mão-de-obra escrava para arrancar os metais das profundezas da terra. [...]. As colônias do norte produziam, em virtude do clima e de características do solo, exatamente o mesmo que a agricultura britânica, ou seja, que não ofereciam à metrópole [...] uma produção complementária. [...] Muito diferente era a situação das Antilhas e das colônias ibéricas de terra firme. Das terras tropicais brotavam o açúcar, o tabaco, o algodão, o anil, a terebintina; uma pequena ilha do Caribe resultava mais importante para a Inglaterra, do ponto de vista econômico, do que as treze colônias matrizes dos Estados Unidos. Essas circunstâncias explicam a ascensão e consolidação dos Estados Unidos, como um sistema econômico autônomo, que levava para fora a riqueza produzida em seu seio. Eram muito fracos os laços que atavam a colônia à metrópole. 38 Nossa tradução livre: Não foram fatores raciais, como se pode ver, os que decidiram o desenvolvimento de uns e o subdesenvolvimento de outros: as ilhas britânicas das Antilhas não tinham nada de espanholas nem de portuguesas. A verdade é que a insignificância econômica das

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Ao registrar suas leituras sobre o passado que uniu europeus e nativos das terras americanas, Stephen Greenblatt (1991), por sua vez, volta-se para um dos mais intrigantes aspectos anteriormente mencionados por Tzvetan Todorov (1983), ao lembrar que uma das maiores consequências das ações de Colombo em 1492 para a cultura dos povos americanos não foi a sua perda do passado, mas, sim, a perda fatal da manipulação do poder no presente. Tal fato se justifica pela soberania, em terras americanas, da cultura oral. A preservação das experiências passadas na cultura autóctone era baseada na oralidade e, consequentemente, na memória, pois, conforme registra Fuentes, nesse sistema de cultura presente na América antes mesmo da chegada de Colombo, “los viejos son los que recuerdan las historias, los que poseen el don de la memoria. Se puede decir que cada vez que se muere un hombre o una mujer viejos en el mundo hispánico, toda una biblioteca muere con ellos 39” (1992, p. 378). Os ibéricos, por sua vez, na época da chegada de Colombo ao Caribe, já se deleitavam com as maravilhas da invenção de Gutenberg e consumiam avidamente os romances de cavalaria, tão em moda na Europa de então. Esse aspecto leva Greenblatt (1991) a analisar os efeitos do confronto entre essas duas modalidades de registrar as experiências vividas no momento em que se enfrentaram autóctones e europeus. O alcance da disparidade entre elas é visto como um dos fatores, dentre outros, que possibilitou o domínio dos europeus sobre as nações indígenas. Assim, o autor, em consonância com as análises anteriormente feitas por Todorov (1983), registra: The absence of writing determined the predominance of ritual over improvisation and cyclical time over linear time […]. The unlettered peoples of the New World could not bring the strangers into focus; conceptual inadequacy severely impeded, indeed virtually precluded, an accurate perception of the other. […] That led to disastrous misperceptions and miscalculations in the face of the conquistadores. That culture that possessed writing could accurately represent to itself (and hence strategically manipulate) the culture without writing, but the reverse was not true. For in possessing the ability to write, The Europeans possessed […] an unmistakably superior representational technology. 40 (GREENBLATT, 1991, p. 11). treze colônias permitiu a precoce diversificação das suas exportações e iluminou o prematuro, impetuoso desenvolvimento das manufaturas. A industrialização norte-americana contou, desde antes da independência, com estímulos e proteções oficiais. A Inglaterra mostrava-se tolerante, ao mesmo tempo em que proibia estritamente que suas ilhas das Antilhas fabricassem sequer um alfinete. 39 Nossa tradução livre: Os velhos são os que se lembram das histórias, os que possuem o dom da memória. Pode-se dizer que cada vez que morre um homem ou uma mulher idosos no mundo hispânico, toda uma biblioteca morre com eles. 40 Nossa tradução livre: A ausência da escrita determinou a predominância do ritual sobre a improvisação e do tempo cíclico sobre o tempo linear [...]. Os povos iletrados do Novo Mundo não conseguiram focalizar os estranhos; a inadequação conceitual severamente impediu, de fato, virtualmente excluiu uma percepção precisa do outro. [...] Isso conduziu a percepções desastrosas e inadequadas e cálculos equivocados em face dos conquistadores. Aquela cultura que possuía um sistema de escrita pode, de forma adequada, representar para si (e, portanto, estrategicamente

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Stephen Greenblatt destaca, além dessa “ferramenta” – a habilidade da escrita, que possibilitou aos conquistadores imporem-se e triunfarem sobre os nativos –, outra vantagem dos espanhóis, ou seja, a presença de bons tradutores. O papel relevante dos competentes tradutores a serviço dos europeus deu-lhes acesso ao conhecimento daquilo que se passava na América e, a partir daí, conduziu-lhes, também, à elaboração de estratégias de dominação. Greenblatt comenta, por exemplo, que “Montezuma had no one who was even remotely the equivalent of Cortés’s loyal bilingual informants and go-betweens, Geronimo Aguilar and the indispensable Doña Marina 41” (1991, p. 12). Pautando-se no fato de que os rituais se impuseram sobre as improvisações, quando europeus e nativos americanos confrontam-se nas viagens de Colombo, Stephen Greenblatt42 destaca que Columbus took possession of the New World with a legal ritual performed in Spanish and that, after 1513, conquistadores were supposed to read to all newly encountered peoples the Requerimiento, a document in Spanish that informed these peoples of their rights and obligations as vassals of the King and Queen of Spain. Prompt obedience, the text declares, will be rewarded; refusal or malicious delay will be harshly punished: ‘and we protest that the deaths and losses which shall accure from this are your fault, and not of their Highnesses, or ours, or of these cavaliers who come with us. And that we have said this to you and made this Requisition, we request the notary here present to give us his testimony in writing, and we ask the rest who are present that they should be witnesses of this Requisitions’.43 (1991, p. 97).

O autor não deixa de avaliar os efeitos do Requerimiento, comentando que tal documento contém, em sua essência, a convicção de que não há sérias barreiras linguísticas entre os autóctones e os europeus, o que torna o conteúdo, na opinião de Greenblatt, um ritual misto estranho de cinismo, ficção legalizada e idealismo perverso. manipular) a cultura que não o possuía, mas o processo inverso não se deu. Por possuírem a habilidade da escrita, os europeus possuíam também uma inequívoca tecnologia representacional superior. 41 Nossa tradução livre: Montezuma não tinha ninguém que fosse, ainda que remotamente, o equivalente aos leais informantes e intercessores bilíngues de Cortés, Geronimo Aguilar e a indispensável Doña Marina. 42 Texto mencionado por Stephen Greenblat, extraído de: CERTEAU, M. The writings of History. Trad. Tom Conley. New York: Columbia University Press, 1988, p. 213. 43 Nossa tradução livre: Colombo tomou posse do Novo Mundo com um ritual legalizado, o qual foi realizado em espanhol e que, após 1513, os conquistadores deveriam ler a todos os povos recém-encontrados o Requerimiento, um documento em espanhol que informava a esses povos sobre os seus direitos e obrigações de vassalos do rei e da rainha da Espanha. A pronta obediência, o texto declarava, seria recompensada, recusa ou demora maliciosa seriam severamente punidos: ‘e nós damos fé de que as mortes e perdas que venham por essa causa a ocorrer serão vossa culpa e não de suas Majestades, ou nossas, ou ainda dos cavalheiros que nos acompanham. E de que temos dito isso para todos e feito esse Requerimento, nós rogamos ao notário aqui presente que nos dê seu testemunho por escrito, assim como pedimos aos demais presentes que sejam testemunhas desse Requerimento’.

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Eduardo Galeano também se refere ao Requerimiento e ao modo de nele se exortar os nativos para se converterem ao Cristianismo, mencionando as possíveis ações dos conquistadores diante de uma atitude contrária por parte dos autóctones: “[...] tomaré vuestras mujeres y hijos y los haré esclavos, y como tales los vendré y dispondré de ellos como su Majestad mandare, y os tomaré vuestros bienes y os haré todos los males y daños que pudiere [...]44” (1970, p. 24). A história oficial não registra, porém, quantas vezes isso foi levado a efeito. A ausência do sistema de escrita em terras americanas quando da chegada dos conquistadores é uma questão instigante que se torna outro relevante eixo temático da “poética do descobrimento”, especialmente na escrita ficcional hispano-americana, que, no passado, devido ao fato de os autóctones não dominarem os mecanismos da escrita, não efetuou os registros dessa experiência com base em suas próprias vivências. Compreender o intrincado processo de leitura das imagens de Colombo propostas pelos discursos histórico e ficcional, nas distintas correntes historiográficas e, também, nas diferentes expressões do romance histórico, nas modalidades contemporâneas, é o eixo ao qual nos dedicamos à continuação para revelar que, quando se trata de Colombo, há, de fato, um oceano entre nós.

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Nossa tradução livre: [...] tomarei vossas mulheres e filhos e os farei escravos, e os venderei e disporei deles como sua Majestade mandar, e tomarei os vossos bens e os farei todos os males e danos que puder [...].

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SEGUNDA PARTE […] porque sobre las aguas del Océano también llevó, como la paloma de Noé, oliva, y el óleo del Bautismo, por la unión y paz que aquellas gentes con la Iglesia habían de tener, pues estaban encerrados en el arca de las tinieblas y confusión […]. Pues es bien de creer que muchas almas, las cuales Satanás esperaba haber de gozar, no habiendo quien las pasase por aquella agua del Bautismo, hayan sido hechas por él colonos o ciudadanos y moradores de la eterna gloria del Paraíso (COLÓN, 1992, p. 5051).

A Colón ¡Desgraciado Almirante! Tu pobre América, tu india virgen y hermosa de sangre cálida, la perla de tus sueños, es una histérica de convulsivos nervios y frente pálida. Un desastroso espíritu posee tu tierra: donde la tribu unida blandió sus mazas, hoy se enciende entre hermanos perpetua guerra…, se hieren y destrozan las mismas razas. Al ídolo de piedra reemplaza ahora el ídolo de carne que se entroniza, y cada día alumbra la blanca aurora en los campos fraternos sangre y ceniza.

Cuando en vientres de América cayó semilla de la raza de hierro que fue de España, mezcló su fuerza heroica la gran Castilla con la fuerza del indio de la montaña. ¡Pluguiera a Dios las aguas antes intactas no reflejaran nunca las blancas velas; ni vieran las estrellas estupefactas arribar a la orilla tus carabelas! Libre como las águilas, vieran los montes pasar los aborígenes por los boscajes, persiguiendo los pumas y los bisontes con el dardo certero de sus carcajes.

Desdeñando a los reyes nos dimos leyes al son de los cañones y los clarines, y hoy al favor siniestro de negros reyes fraternizan los Judas con los Caínes. Bebiendo la esparcida savia francesa con nuestra boca indígena semiespañola, día a día cantamos la Marsellesa para acabar danzando la Carmañola. Las ambiciones pérfidas no tienen diques, soñadas libertades yacen deshechas: ¡Eso no hicieron nunca nuestros caciques, a quienes las montañas daban las flechas!

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Que más valiera el jefe rudo y bizarro que el soldado que en fango sus glorias finca, que ha hecho gemir al zipa bajo su carro o temblar las heladas momias del Inca.


Ellos eran soberbios, leales y francos, ceñidas las cabezas de raras plumas; ¡ojalá hubieran sido los hombres blancos como los Atahualpas y Moctezumas!

La cruz que nos llevaste padece mengua, y tras encanalladas revoluciones, la canalla escritora mancha la lengua que escribieron Cervantes y Calderones. Cristo va por las calles flaco y enclenque, Barrabás tiene esclavos y charreteras, y en las tierras de Chibcha, Cuzco y Palenque han visto engalanadas a las panteras. Duelos, espantos, guerras, fiebre constante en nuestra senda ha puesto la suerte triste: ¡Cristóforo Colombo, pobre Almirante, ruega a Dios por el mundo que descubriste! (DARÍO, 1990, p. 223-224).

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2. CRISTÓVÃO COLOMBO: CONSTRUÇÕES DISCURSIVAS A reconstrução de uma personagem histórica e de suas realizações para compor a diegese de um romance implica, necessariamente, a releitura das imagens que dela já se projetaram em discursos anteriores. As novas imagens resultantes desse processo, originadas a partir das relações transtextuais mencionadas por Genette (1982), especialmente a hipertextualidade, caracterizam-se por ser ressignificações que carregam consigo uma amálgama de outras construções escriturais. Tais aspectos, quando restritos ao nosso objeto de estudo – imagens de Cristóvão Colombo – geram, pela grande incidência de reconstruções, uma questão que nos leva a fazer a necessária delimitação. Assim, alguns textos da historiografia, como biografias e estudos sobre a existência da personagem, suas origens e realizações, serão abordados, bem como uma série de romances das distintas fases e modalidades de expressão do gênero, com destaque para as ressignificações críticas da personagem e seus feitos, enquanto outros textos, com certeza existentes, não serão, neste nosso intento, incorporados devido à amplitude que um estudo como este consegue abarcar. Nesse contexto, os romances de metaficção historiográfica, não apenas de ficção híbrida de história e ficção – diferenciam-se pela sua maneira peculiar de narrar o passado. Essa maneira singular, como aponta Hutcheon (1991), ao elaborar um discurso que busca explicitar os modos de narrar o passado, identifica as causas para os fatos sucedidos e investiga como essas causas geraram efeitos. Essa concepção vai ao encontro de Umberto Eco (1985, p. 6566), ao mencionar que um romance histórico deve “[...] não apenas identificar no passado as causas do que aconteceu depois, mas também desenhar o processo pelo qual essas causas foram lentamente produzindo seus efeitos.” Ao “desenhar o processo” de narração na superfície da tessitura narrativa, a metaficção historiográfica, conforme Hutcheon (1991, p. 150), também explicita seu caráter ficcional, “[...] com sua intensa autoconsciência em relação à maneira como tudo isso é realizado.” A questão metaficcional passa, assim, dos comentários do narrador a um dos elementos que se incorpora à própria trama, como ocorre, por exemplo, em The memoirs of Christopher Columbus (1987), de Stephen Marlowe e em Vigilia del Almirante (1992), de Augusto Roa Bastos. A constituição discursiva das imagens de Cristóvão Colombo que hoje estudamos tem início com seus próprios registros: algumas cartas, alguns recibos, as anotações que costumava fazer às margens de seus livros, mapas, projetos, suas assinaturas – que são verdadeiros criptogramas –, o Diário de Bordo (1492), o Livro das Profecias (1501) e seu testamento. Quanto ao último 75


material, é necessário considerarmos o que registrou, entre outros, a estudiosa espanhola Celia Fernández Prieto (2003) sobre a peculiar prática discursiva dos descobridores e conquistadores. Ao citar o caso de Colombo, a autora escreve: “[…] los conquistadores españoles contaban la historia de acuerdo con sus intereses políticos, silenciando cuanto podía acarrearles desprestigio ante sus superiores. 45” (FERNÁNDEZ PRIETO, 2003, p. 156). Essa não é, porém, a única dificuldade que se encontra quando se busca analisar os registros autográficos de Colombo, que são as fontes principais para essas reelaborações. Tais documentos, em sua maioria, foram reconstituídos e, nesse processo, sofreram uma série de interferências. Aproveitando os estudos de Costa Milton (1992, p. 47), temos uma ideia mais precisa do conjunto: “[...] trata-se de um material difuso, complexo e muitas vezes contraditório: é reunião de dados de caráter científico, muitos deles equivocados, com expressão de intuição, desejos em tom profético e sonhos incomuns, alicerçados por um suposto aval divino, que dá sentido messiânico às intenções”. Especificamente a respeito do Diário de bordo, um dos escritos de Colombo mais utilizados pela ficção híbrida, Costa Milton (1992) registra que esse documento é um [...] espaço de cerimônia otimista e exaltadora, o Diário se edifica sob o signo de uma qualificação estética maximalista, isto é, a ‘maravilha’ marcada no plano linguístico por uma profusão de adjetivos e advérbios de intensidade, além de metáforas e imagens que designam e comparam, tornando o desconhecido ‘legível’. (MILTON, 1992, p. 177).

Os romancistas encontram nesses registros numerosas possibilidades de interpretação e criação. O exercício da liberdade artística e da capacidade de imaginação alia-se à vontade consciente de questionar aspectos relevantes desses registros primeiros, feitos pelo próprio marinheiro, possibilita o surgimento de uma série de hipertextos que recontam as suas ações sob outras perspectivas, nas quais o aproveitamento estético das informações das fontes históricas cria novas imagens tanto dos fatos como daqueles que neles estiveram envolvidos. Assim, tais textos caracterizam-se como reescrita de discursos que têm em comum o desejo de desmistificar o passado, apoiados, em parte, pela subjetividade contida nos documentos autográficos de Cristóvão Colombo. Historiadores como Salvador de Madariaga e Jacob Wassermann, entre outros, também apontam o teor subjetivo dos escritos colombinos, além de analisar sua posição em relação à nobreza e o Estado espanhol, o que, muitas vezes, leva os próprios estudiosos a interpretações errôneas em relação aos fatos neles mencionados. Madariaga (1947, p. 329), tratando desse assunto, 45

Nossa tradução: os conquistadores espanhóis narravam a história de acordo com seus interesses políticos, silenciando quando isto podia lhes trazer desprestígio diante dos seus superiores.

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registra: “[…] las más de las veces, Colón no escribe hechos sino emociones cuyo fuego, alimenta con hechos reales o imaginarios que le sirven de mero combustible.”46. Wassermann (1930, p. 94) também se refere ao modo de Colombo registrar as impressões que lhe causavam as novidades encontradas no “Novo Mundo” e menciona que Colombo “[...] pone manos a la obra y su pluma se desborda en descripciones embelesadas.”47. O autor compara-o com um comerciante que busca realçar as qualidades de um produto novo e inédito para que o cliente encontre alguma razão para comprá-lo, sem inteirar-se da realidade presente e palpável que o circunda: “[...] un comerciante lleno de imaginación que exagera su crédito y a quien la espera de la ganancia quita el sueño.48” (WASSERMANN, 1930, p. 95). Beatriz Pastor (1983), em sua análise dos discursos do “descobrimento” da América, registra a respeito da escrita de Colombo que, desde o primeiro instante, Colón no dedicó sus facultades a ver y conocer la realidad concreta del Nuevo Mundo sino a seleccionar e interpretar cada uno de sus elementos de modo que le fuera posible identificar las tierras recién descubiertas con el modelo imaginario de las que él estaba destinado a descubrir.49 (PASTOR, 1983, p. 47).

Podemos ver nessas palavras certa vocação literária que Cristóvão Colombo carregava consigo. Diante das adversidades, fantasiava a realidade, reelaborando-a para servir aos seus propósitos, imaginando com tanta convicção, para que os fatos fossem como ele os queria e necessitava, que acabava acreditando nas próprias invenções. Como não bastava para ele apenas crer em suas invenções, era necessário também registrá-las, pois, segundo Madariaga (1947, p. 154), Colombo foi “[...] hombre ante todo de carácter contemplativo, en la quietud de su contemplación, la imaginación se le inflama. Esta luz de fuego interno no tarda en oscurecer la luz de los meros hechos de afuera. La realidad se transfigura al influjo de los valores subjetivos. 50”. Assim, temos no Diário de Cristóvão Colombo o “discurso da maravilha americana”, como menciona Milton (1992, p. 177), que é, no parecer de Rentería Mantilla (1979), a obra inaugural do realismo mágico latino-americano: 46

Nossa tradução: na maioria das vezes, Colombo não escreve fatos, mas emoções cujo fogo ele alimenta com fatos reais ou imaginários que lhe servem de mero combustível. 47 Nossa tradução: põe mãos à obra e sua pena transborda em descrições cativantes aos sentidos. 48 Nossa tradução: um comerciante cheio de imaginação que exagera seu crédito e a quem aguardar pelos lucros lhe tira o sono. 49 Nossa tradução: Colombo não dedicou suas faculdades para ver e conhecer a realidade concreta do Novo Mundo, mas para selecionar e interpretar cada um dos seus elementos de modo que lhe fosse possível identificar nas terras recém-descobertas o modelo imaginário daquelas que ele estava destinado a descobrir. 50 Nossa tradução: acima de tudo, um homem de caráter contemplativo, na quietude de sua contemplação, sua imaginação se acende. Essa luz de fogo interior não demora em obscurecer a luz dos meros fatos do exterior. A realidade é transfigurada pelo influxo dos valores subjetivos.

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La llamada literatura mágica de América Latina, que es tal vez la literatura más realista del mundo, está circunscrita a un área cultural muy concreta, el Caribe y Brasil. Se piensa que su carga mágica se debe al elemento negro. Pero en realidad es anterior. La primera obra maestra de la literatura mágica es el Diario de Cristóbal Colón. Y ya estaba tan contaminado de la magia del Caribe que la propia historia del libro es inverosímil.51 (RENTERÍA MANTILLA, 1979, p. 196).

O teor inventivo dos escritos de Colombo é fato ressaltado pelos estudiosos em geral. O brasileiro Alcibíades Delamare (1936, p. 72), analisando a vida e os feitos do navegador europeu e buscando traçar um perfil psicológico do marinheiro, afirma que, sensibilizado pela exuberância da paisagem, “[...] Colombo deixou impregnadas de um requintado senso estético, de uma poesia espontânea, de um lirismo tocante as descrições que fez das viagens realizadas, das terras percorridas, dos mares navegados, dos horizontes que devassara, da natureza que contemplara, na visão luminosa do futuro.” Reconstruir uma imagem “real” de Colombo tem sido dificuldade, inclusive, para os historiadores que, ao buscar interpretar esses registros feitos pelo marinheiro, deparam-se com discursos que, longe de serem registros objetivos e imparciais, estão impregnados de subjetivismo, fantasia e imaginação, revelando-se um verdadeiro quebra-cabeças para aqueles que buscam deles se aproximar com o intuito de obter respostas assertivas. Tanto é que, muitas vezes, só o conseguem comparar com a magnitude de um ser ficcional como o Quixote. Uma passagem da biografia de Colombo, escrita por Madariaga (1940 [1947]), é bastante ilustrativa a esse respeito: Colón estaba en sus glorias. Vivía de errores, y cuanto más fantástica era la situación mejor navegaba en ella a la brújula de la fantasía. Siempre que se equivocaba a fondo, le venía naturalmente el mismo lenguaje de certidumbre apasionada que Cervantes iba más tarde a inmortalizar, hasta el punto de que parece haberse inspirado en Don Cristóbal de Cipango para su Don Quijote de la Mancha.52 (MADARIAGA, 1947, p. 312).

Essa semelhança de perfil entre o homem Colombo e a personagem ficcional Quixote, de Cervantes, que serve de base para a criação literária e também para o trabalho de análise de historiadores, é uma das inúmeras leituras 51

Nossa tradução: A chamada literatura mágica da América Latina, que é talvez a literatura mais realista do mundo, está circunscrita a uma área cultural muito específica, ao Caribe e ao Brasil. Pensa-se que sua carga mágica se deve ao elemento negro. Mas, na realidade, isto é anterior. A primeira obra-prima da literatura mágica é o Diário de Cristóvão Colombo. E já estava tão contaminada pela magia do Caribe que a própria história do livro não é verossímil. 52 Nossa tradução: Colombo estava em sua glória. Vivia dos erros, e, quanto mais fantástica a situação, melhor navegava nela a bússola da fantasia. Sempre que errava profundamente, vinhalhe naturalmente a mesma linguagem de certezas apaixonadas que Cervantes imortalizaria mais tarde, até o ponto de que este parece ter-se inspirado no Dom Cristóvão de Cipango para seu Dom Quixote da Mancha.

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que o passado desse misterioso marinheiro pode provocar, pois, conforme aponta Jacob Wassermann (1930, p. 31), “[…] tanto los panegiristas como los adversarios de este hombre eminente se han esmerado en borrar la pista, y él mismo, a partir de un momento dado, se resolvió renunciar a su vida anterior, como Don Quijote renunciara a la suya.53”. Essa comparação entre Colombo e Quixote leva-nos a pensar em duas considerações importantes sobre a construção discursiva de uma personagem. A primeira diz respeito ao fato de que ela é uma criação linguística, cuja existência está subordinada às leis que regem a produção textual, já que tal ser não existe fora do mundo das palavras. A segunda remete-se à Poética de Aristóteles, pois, segundo se registra, as personagens representam as pessoas, são reflexos dos seres humanos, elaboradas segundo as convenções e as propriedades específicas da ficção. Assim, também as personagens históricas são, pois, reflexos dos seres humanos distantes no tempo, embora sua construção discursiva esteja imbuída de todo um discurso de veracidade. A construção discursiva de uma personagem pelo romancista histórico parte das imagens já elaboradas pelo discurso histórico. O romancista, ao eleger como protagonista de sua ficção uma personagem histórica de relevo como Cristóvão Colombo, há de considerar que essa personagem já tem, mesmo na mente do leitor menos especializado, traços e características preestabelecidos pelo discurso histórico. Tais traços que antecederam o discurso ficcional já consagraram a personagem e a nova construção discursiva será, inevitavelmente, hipertextual, bem como seu discurso será desmistificador. A construção artística do romance histórico, mesmo sendo paródica, polifônica ou carnavalizada, numa elaboração que chegue à caricaturização ou ao grotesco, não pode eliminar por completo tais imagens preconcebidas pelo discurso histórico, uma vez que isso impediria a identificação preexistente entre a personagem e o leitor. A estranheza de tal fato levaria, muito provavelmente, à rejeição, por parte do leitor, das novas imagens produzidas no romance e, consequentemente, à não aceitação do discurso artístico pela falta de coerência no ato de reconstrução do sentido dos eventos históricos. A sobreposição das imagens ficcionais, criadas a partir das prerrogativas artísticas (aquelas históricas preexistentes), as quais foram elaboradas segundo os critérios que regem a historiografia e seu discurso assertivo, acaba por gerar outras imagens dessa personagem. Isso ocorre durante o processo de reconstrução dos sentidos feito pelo leitor ao longo de sua leitura. As novas imagens, porém, não podem ser tão raras e estranhas para o leitor que esse não encontre nelas outra semelhança com as primeiras que não

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Nossa tradução: tanto os panegeristas quanto os adversários deste homem eminente esforçaram-se para apagar a pista, e ele mesmo, a partir de um certo momento, resolveu desistir da sua vida anterior, como Dom Quixote renunciara à sua.

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seja o nome próprio da personagem. Como se constrói, discursivamente, então, imagens ficcionais dos heróis da história, como Colombo, por exemplo? Sobre essa questão, Lukács (1977) registra que se torna evidente que nenhuma persona literariamente configurada pode conter toda a imensurável e inesgotável riqueza de características e expressões que a própria vida contém. A essência da configuração artística consiste, porém, precisamente, no fato de que essa representação relativa e incompleta deve causar o efeito que a própria vida dá, e, inclusive, o de uma vida intensificada, acrescentada e mais viva do que a vida real em si possa ser. Vale recordar nesse ponto, também, as posições de García Gual (2002), que registra que o romancista histórico se apoia num pacto de confiança com o leitor. Tal pacto possibilita ao romancista conduzir o leitor a âmbitos privados da personagem histórica. Assim, a interpretação da psicologia da personagem que se faz num romance histórico pode ir muito além dos limites de veracidade e austeridade daquela feita, por exemplo, por um biógrafo. Segundo as prerrogativas da ficção apontadas, entre outros, por Lukács (1977) e García Gual (2002), a reconstrução das personagens históricas pelo discurso artístico é mais intensificada que a vida objetiva, pois o romancista pode enriquecer, colorir e acentuar as cenas com toques emotivos e psicológicos com mais frequência, intensidade e auxílio de técnicas escriturais diversas do que é permitido ao historiador fazê-lo, já que esse deve manter-se dentro dos limites que seu método científico lhe possibilita. Desse modo, a personagem literariamente construída está imbuída de uma enorme complexidade, abarcadora de imagens múltiplas e detentora de discursos que, não raras vezes, são emblemáticos, opostos ou contraditórios aos historiográficos. Na ficção, como em uma espécie de jogo de máscaras, a dubiedade na focalização do interior e do exterior, do público e do privado, do passado e do presente, aliada à polissemia e à ambiguidade características dos textos poéticos, acaba por desmistificar a personagem que fora imortalizada pelo discurso histórico, mas que, sob essa nova perspectiva, acaba por lograr os mais representativos traços de humanidade. Ou, como prefere Larios (1997), o discurso histórico metaficcional outorga aos grandes heróis sacralizados uma existência imaginativa, o diálogo e a humanidade que lhes foi negada pelo antigo discurso edificador da história. Colombo, com seu projeto de navegação via oeste, continua sendo uma figura tão polêmica na atualidade que ocasiona, inclusive, tentativas de estudos de seu DNA, a fim de verificar o paradeiro de seus restos mortais, outra questão geradora de intrigas. História e ficção se irmanam, com outras áreas de conhecimento, na busca de respostas a tantos mistérios. Buscamos, agora, examinar algumas das obras mais significativas que já se propuseram a investigar a vida e os feitos de Cristóvão Colombo, para, adiante, confrontar as imagens que daí resultam com aquelas contidas no universo ficcional, espaço rico em ressignificações múltiplas do marinheiro. 80


2.1 UM OCEANO ENTRE NÓS: COLOMBO NA HISTÓRIA Tudo na vida deste homem tem qualquer coisa de misterioso. Tudo nela é incerteza. Tudo objeto de discussão. Tudo motivo para polêmicas, divergências, debates. Até mesmo a sua personalidade é um enigma para muitos historiadores. (DELAMARE, 1936, p.75).

Quando Washington Irving escreveu, em 1827, enquanto vivia na Espanha, a sua romântica biografia de Cristóvão Colombo – Vida del Almirante Cristobal Colón (1992)54 – não poderia imaginar que desencadearia uma verdadeira avalanche de estudos, que, durante os séculos XIX e XX, incrementariam as polêmicas em torno da personagem histórica. Ao buscar lançar algumas luzes sobre o passado e o presente da personagem Colombo, inúmeros investigadores, de distintas áreas, têm revisado, ao longo do tempo, empoeirados arquivos na tentativa de esclarecer as dúvidas e lacunas que envolvem a passagem desse marinheiro pelos reinos de Portugal e Espanha nas décadas finais do século XV e início do XVI. Grande parte da sua vida ficou oculta nos registros oficiais de sua época, apesar de haver sido, junto a reis e alguns outros navegantes, uma das personagens mais celebradas pelas suas viagens marítimas. Colombo revolucionou, com seus planos e realizações, todas as áreas do conhecimento existentes em sua época quando deu a conhecer ao mundo a existência de terras além do Atlântico, pela via oeste. A história de Colombo obedece a uma sucessão de fatos que poderíamos resumir da seguinte maneira: do seu nascimento – um dos dados que sempre gerou grandes controvérsias, mas que, segundo Madariaga (1947), convencionou-se aceitar, como mais provável, o período entre 26 de agosto a 31 de outubro de 1451 e, como local, a cidade italiana de Gênova, outra questão até hoje polêmica – à sua incrível chegada a Portugal. Esse último fato Madariaga (1947) aponta como ocorrido em 13 de agosto de 1476. Nessa ocasião, Colombo teria alcançado terras lusitanas como náufrago da batalha de São Vicente55. A primeira fase é a mais misteriosa, já que não há registros fidedignos sobre suas vivências nessa época. Tal fato dá margem a uma série de especulações, tanto no campo artístico quanto no histórico, que buscam vincular essas omissões a uma possível ascendência judia.

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Utilizamos, para este estudo a tradução Vida del Almirante Cristóbal Colón, feita por José García Villata e N. Fernández Cuesta, publicada em Madrid, pela Istmo, em 1992. 55 A história registra uma série de batalhas navais travadas no espaço entre o Cabo de São Vicente e o Estreito de Gibraltar. A batalha mencionada por Madariaga, de 13 de agosto de 1476, marcou uma vitória da frota franco-portuguesa no âmbito da Guerra de Sucessão de Castela. Esse episódio, aludido por vários historiadores como o marco da chegada de Colombo a Portugal, é incorporado à ficção híbrida, por exemplo, no romance The Memoirs of Christopher Columbus (1987), de Stephen Marlowe, que faz dele uma releitura paródica, satírica e carnavalizada.

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Em terras portuguesas, sabe-se de seu casamento com Felipa Moniz Perestrelo, do nascimento de seu filho Diego Colombo e de suas andanças pela corte em busca de apoio para seu raro projeto de navegação às Índias pelo oeste. Projeto que foi, supostamente, posto em prática a partir de 1478. As negativas recebidas em Portugal levam-no à Espanha, em 1484. Inicia-se, então, uma terceira parte de sua história. Trata-se de uma fase que já está mais documentada e descreve seu ferrenho empenho em obter dos Reis Católicos o que lhe fora negado no reino lusitano. Sua perseverança conduz à realização da inusitada viagem, saindo do porto de Palos em 3 de agosto de 1492 e, em consequência, a sua chegada à região do Caribe, na América, oficializada em seu Diário de bordo em 12 de outubro de 1492. Dessa viagem às glórias do regresso, em 15 de março de 1493, inicia-se uma nova fase na qual Colombo recebe as mais altas honras, novos investimentos para outras viagens às terras por ele encontradas e títulos nunca antes conferidos a um plebeu pelos Reis Fernando e Isabel. Logo, porém, defronta-se, novamente, com a desgraça. A sequência de mais três viagens às terras encontradas não resulta nas riquezas esperadas. As relações de Colombo com os detentores do poder, tanto na América quanto na Europa, foram se tornando cada vez mais delicadas até que se chegou ao extremo de negar-lhe os direitos anteriormente concedidos. Sua morte, em estado de pobreza e abandono, deu-se em Valladolid, em 20 de maio de 1506. Ao longo dessas fases não se passaram tantos anos, mas, em seu decorrer, cheio de extremos, multiplicaram-se as omissões e os enganos, tanto da parte do próprio navegador quanto daqueles encarregados de efetuar os registros oficiais da época. Com o passar dos tempos, o que não deveria cair no esquecimento foi sendo deixado de lado por ser um tanto incômodo, enterrado junto aos descendentes e herdeiros, abandonado nos arquivos históricos das torres de palácios medievais ou em bibliotecas espalhadas pelo mundo, destruído, perdido ou ignorado. Assim, o homem foi se tornando lenda e a lenda, mito, o que fez com que sua trajetória sobrevivesse a todos esses percalços, pois, embora o tempo passasse, ela nunca foi realmente esquecida, e, desse modo, ressurge junto com cada enfrentamento travado entre os “dois mundos” e, às vezes, surpreendendo a todos em casos extraordinários, como, por exemplo, nos pedidos de beatificação de Colombo encaminhados à Santa Congregação dos Ritos, pelo Papa Pio IX, no século XIX ou nos atuais estudos de seu DNA que suscitam novas possibilidades para questões históricas que sempre deixaram dúvidas, especialmente sobre sua ascendência e procedência 56. 56

A antiga polêmica da ascendência e procedência de Colombo ganha, na atualidade, novos contornos. A genética alia-se à história para desvendar esse mistério ao utilizar as mais modernas tecnologias a fim de esclarecer alguns dos enigmas sobre Cristóvão Colombo. Exemplo disso é o programa “Enigma Colombo”, exibido na Discovery Channel no dia 12 de outubro de 2004. Nessa mesma data, aparece, na Folha de São Paulo, uma página dupla, anunciando o programa

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A respeito da saga de Colombo e de sua conturbada história, algo, todavia, nunca pode ser questionado ou negado: o fato de ter sido a coroa espanhola que ousou financiar seu projeto tantas vezes rejeitado pelas autoridades da época por o considerarem impraticável e descabido. A partir de sua chegada à Espanha, ao Mosteiro de La Rábida, em 1484, os dados a seu respeito passam a ser mais precisos, o que possibilita aos pesquisadores acompanhá-lo em sua longa e persistente trajetória de anos até o dia em que, cruzando a ponte de Pinos, nas proximidades de Granada, foi alcançado pelo emissário da rainha com a nova de que aquela havia mudado de planos e o aguardava para uma nova e definitiva entrevista. O encontro resultou na decisão favorável da soberana de Castela ao seu projeto e a todas as suas exigências, que ficaram registradas no documento conhecido como Capitulaciones de Santa Fe. O apoio de que necessitava chegou justamente num período em que aquele reino passava por uma de suas mais decisivas e importantes fases: o último soberano mouro havia acabado de deixar Granada e sua expulsão, projeto que já levava mais de uma década, durante a qual se deram inúmeras batalhas, estava, por fim, consolidando-se. Os cofres do Estado, no entanto, estavam vazios. Outra questão crucial da história da Espanha estava em plena evidência: a decisão da expulsão dos judeus não convertidos ao catolicismo, bem como a implacável perseguição a esses, já iniciada, de fato, em 1391, conforme Madariaga (1947), e logo legitimada pela Inquisição, estavam apenas começando. O fato de Colombo ter conseguido o empenho e o apoio dos monarcas espanhóis, especialmente da rainha Isabel – a Católica –, nesse momento histórico e com todas as exigências que o navegante fazia, quando os Reis sonhavam em estender seu reino e religião pela África em novas lutas contra os mouros, é motivo que gera, por sua vez, especulações e, sem dúvida, reforça o misticismo ao seu redor. Um homem que sai do anonimato, de uma existência medíocre, comum, de posições subalternas e afazeres corriqueiros, passa a gozar do privilégio de ostentar o título de Dom e Almirante. Colombo assumiu, assim, o comando do que se pode classificar como uma das maiores missões marítimas com um chamamento bastante significativo: “Enigma de Colombo – Dedicou a sua vida a descobrir o mundo... e a impedir que o mundo o descobrisse”. Sobre a polêmica do paradeiro dos restos mortais do navegador, que alguns afirmam estarem ainda em Santo Domingo e outros asseguram que se encontram na Catedral de Sevilha, o jornal Folha de São Paulo registra: “Quem, de fato foi Cristóvão Colombo e por que existe tanto mistério sobre sua verdadeira origem? Em uma missão tão ambiciosa quanto descobrir o Novo Mundo, uma equipe de especialistas forenses utiliza-se de sequências de DNA para estudar os supostos restos mortais do navegador, que permaneceram durante séculos em Sevilha, na Espanha.” Ao longo da exibição do programa, levado ao ar no dia 12 de outubro de 2004 e várias vezes repetido na semana seguinte, busca-se afirmar a tese de que Colombo era de ascendência judia e que procedia da Catalunha, na Espanha. Tese que, se comprovada, derruba todas as suposições anteriores, que buscavam sustentar a ideia de que Colombo era genovês.

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da época. Isso causa, sem dúvida, a inveja e fere o orgulho de grande parte da corte, que o via como lunático e embusteiro. Tanta determinação deveria ter origem no passado no qual seu caráter fora forjado, mas esse sempre permaneceu oculto. Madariaga lança algumas luzes sobre os mistérios da vida de Colombo, embora esse tenha vivido cercado de cronistas e outros homens ligados aos registros da época, que, inclusive, acompanharam-no em grande parte de sua trajetória histórica. O biógrafo não desvenda todos os mistérios, mas busca esclarecer o porquê de eles existirem. […] en primer lugar, por razones de orgullo y prejuicio nacional que viene a tergiversar los hechos y a impedir una interpretación templada e imparcial de los datos más evidentes. Y como si no bastasen las negras honrillas de españoles, portugueses e italianos, la historia colombina adolece además de la oscuridad y del enrevesamiento que los prejuicios religiosos e históricos inflingen a la historia de España más que a la de ninguna otra nación. Las parcialidades protestante, católica, judía, reaccionaria, mística y racionalista florecen en el fértil suelo histórico del descubrimiento de América, de modo que el mero enunciado de los hechos más patentes y sencillos suena a horrenda herejía y fantástica elucubración. 57 (MADARIAGA, 1947, p. 55).

Os registros históricos da época, sejam as crônicas do “descobrimento” ou as biografias sobre a personagem, foram escritos com o intento de, primeiro, garantir a posse do território e, logo, erigir a imagem do homem, do ser humano “real”, Cristóvão Colombo, autor de feitos memoráveis que mudaram as perspectivas de toda uma época histórica. Embora os resultados do que se tem escrito até o momento sejam apenas uma interpretação daquilo que ele foi e fez, a intenção da maioria desses registros é a de representar o “existente”, condizente com a realidade factual. Os historiadores e biógrafos utilizam técnicas de investigação científica para abordar registros de épocas passadas, legados nos quais se apoiam para elaborar as imagens daqueles homens cujos feitos merecem tal distinção. Colombo, como exemplo de um desses homens, no entanto, sempre soube apagar muito bem os rastros de seu passado, e deixou registrado somente aquilo que de fato lhe interessava, como se pode ver, principalmente, nas omissões de informações existentes no Diário, nas cartas e demais escritos seus. Os cronistas contemporâneos do navegador, cujos textos são fontes imprescindíveis para qualquer estudo sobre Colombo, efetuaram seus registros 57

Nossa tradução: em primeiro lugar, por razões de orgulho e preconceito nacional que vêm a deturpar os fatos e a impedir uma interpretação moderada e imparcial dos dados mais evidentes. E se não fosse o suficiente as negras honras de araque de espanhóis, portugueses e italianos, a história colombiana adoece também com a obscuridade e as complicações que os preconceitos religiosos e históricos infingem à história da Espanha mais do que à outra nação. As parcialidades protestante, católica, judia, reacionária, mística e racionalista florescem no fértil solo histórico da descoberta da América, de modo que a mera enunciação dos fatos mais óbvios e simples soa como horrorosa heresia e fantástica elucubração.

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sob as condições vigentes em sua época, segundo os rituais discursivos de então e, especialmente, sob as leis e ordens que regiam a sua própria situação e posições perante as autoridades políticas, econômicas e eclesiásticas a quem serviam, e, sem dúvida, em função de seus interesses pessoais. Tais condições, segundo analisa Fernández Prieto (2003), levaram muitos dos cronistas e conquistadores a registrar os eventos da “descoberta” e conquista da América sob perspectivas edificantes de suas próprias imagens. Exemplo disso são as muitas diferenças que se encontram, por exemplo, nas narrativas da conquista do reino Asteca feitas, por um lado, pelo próprio conquistador, Hernán Cortés (1485 – 1547), em suas Cartas de Relacción (1519, 1520, 1522, 1524, 1526), enviadas ao Imperador Carlos V, informando o soberano sobre seus planos e façanhas; e, por outro, pelo cronista Bernal Díaz del Castillo (1495 – 1584), que o acompanhou em toda a aventura. Gómez-Gil (1972, p. 43) registra em relação à escritura de Díaz del Castillo 58, que o cronista reage negativamente ao “endeusamento” do conquistador “[…] y con toda honestidad lo presenta como el héroe máximo de la jornada, pero rodeado de sus compañeros de lucha y siempre dando a entender que su indiscutible genio militar y político no hubiese podido lograr nada sin la ayuda valiente y decisiva de aquéllos.59” À parte os registros autográficos, a história de Colombo foi, em primeira instância, escrita por ele mesmo e pelos cronistas das “Índias”, dentre os quais destacamos, por suas obras monumentais e seu relacionamento com o próprio marinheiro, o frei Bartolomé de las Casas, com sua Historia de las Indias (1527 [1947]), e todos os seus trabalhos de recompilação e reconstituição de originais, e o historiador oficial do Imperador Carlos V, Gonzalo Fernández de Oviedo, com sua Historia general y natural de las Indias (1535-1547). Las Casas foi amigo e defensor de Colombo. Seus registros mostram a grande estima que nutria por aquele que acreditava ser um enviado especial de Deus, com uma missão única e extraordinária aqui na terra. Seus trabalhos de recompilação do Diário de bordo, por exemplo, revelam muito mais do que simples arranjos de ordem morfossintática. Como aponta Costa Milton (1992, p. 48), o Diário recompilado por Las Casas, com “suas imagens paradisíacas e as figurações de bons selvagens aptos a se transformarem em cristãos”, serviram58

A obra mais importante deste cronista é: Verdadera historia de la conquista de la Nueva España. (Madrid: Biblioteca de Autores Españoles, tomo 26, 1947), na qual relata, como testemunha ocular, as aventuras do grupo de espanhóis comandados por Hernán Cortés em suas aventuras militares para a conquista do reino asteca dirigido por Moctezuma. Ao contrário do que faz Hernán Cortés em seus próprios escritos, o cronista busca dar em seu relato destaque, não somente às qualidades de bom militar do comandante, mas ressaltar a participação do grupo, pois, do conjunto, é que resultou a vitória espanhola, não somente da astúcia e perspicácia do comandante Cortés. 59 Nossa tradução: e com toda honestidade o apresenta como o herói máximo da jornada, que, no entanto, encontra-se rodeado dos seus colegas de luta e sempre dando a impressão de que seu indiscutível gênio militar e político não teria conseguido nada sem a ajuda corajosa e decisiva daqueles.

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lhe como argumentação em defesa de sua política de proteção ao índio, de sua causa religiosa. Oviedo, por sua vez, também era um dos admiradores incondicionais do “almirante” dos Reis Católicos. Embora aponte, em seus registros, alguns fatos e circunstâncias que vêm realçar a participação dos irmãos Pinzón na empresa do “descobrimento”, seus louvores são sempre dirigidos a Colombo, a quem atribui a primazia do “descobrimento” das terras além-mar. Os demais cronistas da época, como Andrés Bernáldez, João de Barros, Pedro Mártir de Anglería e outros também merecem a atenção daqueles que se inclinam a estudar essa nossa personagem. Entre os muitos biógrafos que já se lançaram à difícil tarefa de registrar a vida do marinheiro, destacamos, primeiramente e em ordem cronológica, seu filho Fernando Colombo, com Historie della vita e dei fatti dell’Ammiraglio D. Cristoforo Colombo60, editada em Veneza no ano de 1571, obra cujo objetivo claro e específico é o de enaltecer a personagem, a fim de garantir, além de uma memória respeitável, outros bens em questão na época, uma vez que ainda estavam em pleito as vantagens que os reis católicos haviam outorgado a Cristóvão Colombo nas Capitulaciones de Santa Fe. Além dessas outras disputas por posses e direitos entre os descendentes de Colombo, a coroa espanhola e a família Pinzón, por exemplo, não haviam chegado a um fim. A cada tentativa de elucidar dúvidas, novas versões dos fatos e outras tantas disputas principiavam, como expõe Madariaga (1947). Desde a discussão sobre a sua nacionalidade e a disputa envolvendo italianos, portugueses e espanhóis, até os detalhes mais sutis da sua vida privada, como seu casamento com a portuguesa Filipa Moniz Perestrelo e, mais tarde, já viúvo, seu envolvimento com Beatriz Enríquez de Harana, mãe de seu filho e biógrafo, Fernando Colombo. Colombo nunca se casou com essa humilde jovem judia que conheceu em Córdoba, apesar de não haver, aparentemente, nada que o impedisse de fazê-lo, a não ser suas ambições. Embora Beatriz estivesse tão presente na vida do navegante, nem sequer é mencionada na biografia que Fernando Colombo, seu próprio filho, escreveu do pai. Em estudos posteriores, essa obra recebe severas críticas, e, na maioria das vezes, é desacreditada, como o faz, por exemplo, Wassermann (1930), quando afirma que esse é um livro frequentemente posto em dúvida por seu caudal de erros e falsidades pitorescas. Ainda segundo Wassermann, tal obra é comparável a uma má capa de tinta que destruiu para sempre o quadro por ela retocado. As evidentes omissões cometidas por Fernando Colombo na biografia – cujo original desapareceu, sobrevivendo uma tradução que fora feita do italiano –, objetivam o enaltecimento do navegador. Escrita em um momento em que ainda se disputavam honras e favores, direitos e riquezas, entre vários 60

Utilizamos, para consulta de La historia della vita e dei fatti di Cristoforo Colombo (editada em Veneza no ano de 1571), a edição espanhola de Luis Arranz Márquez (Madrid: Promo Libro, 2003).

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outros motivos, essa obra também contribuiu para criar a aura misteriosa que envolve a figura de Cristóvão Colombo. O autor deixa velado muito daquilo que, na qualidade de filho predileto, sabia. Entre as muitas omissões estão, especialmente, as informações que precedem a chegada de Cristóvão a Castela, em 1484, quando tem início a fase documentada do “descobrimento”. Essas informações são de fundamental importância e significação porque, como registra Madariaga (1947), somente nesses primeiros anos da vida de Colombo, sua formação e, sobretudo, as circunstâncias de seu nascimento, etnia, natureza e ambiente social, podemos encontrar a chave dessa personagem, uma das mais enigmáticas da história. Contudo, Fernando Colombo menciona não dispor de dados precisos para fazer revelações ou confirmações, e deixa, assim, em suspense, inclusive, a questão que envolve Gênova como a cidade natal de seu pai. O biógrafo, porém, não deixa de registrar qualidades encontradas em Cristóvão Colombo ao descrevê-lo, como podemos ver no trecho a seguir: L’Ammiraglio fu uom di bem formata e più che mediocre statura, di volto lungo e di guance un poco alte, senza che declinasse a grasso o macilento. Aveva il naso aquilino e gli occhi bianchi, bianco e acesso di vivo il colore. E se alcuna cosa aveva da scrivere, non provava la penna, senza prima scrivere queste parole. Jesus cum Maria sit nobis in via61. (FERNANDO COLOMBO, 1571, apud DELAMARE, 1936, p. 12).

A partir desses registros primeiros, daremos um salto até 1827, ano em que Washington Irving escreveu uma biografia de Cristóvão Colombo, que, em castelhano, intitula-se Vida del Almirante Don Cristóbal Colón. Trata-se de uma obra de cunho romântico a qual estimulou a pesquisa colombina do século XIX, pois impulsionou a projeção de novas luzes sobre a tão discutida e enigmática personagem. O tom geral da obra enaltece o espírito empreendedor do marinheiro e louva suas ações, como podemos comprovar no trecho que segue: Fue uno de aquellos hombres de alto y robusto ingenio, que parece que se forman ellos mismos: uno de aquellos que habiendo tenido privaciones y obstáculos que combatir desde los umbrales de la vida, adquieren intrepidez para atacar, y facilidad para vencer inconvenientes durante toda ella. En todas sus empresas la ruindad y visible insuficiencia de los medios dan a la ejecución lustre y realce eminentes. Así, un ánimo

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Nossa tradução: O Almirante era um homem bem formado e de estatura média, com o rosto longo e as bochechas um pouco salientes, sem ser gordo ou macilento. Seu nariz era aquilino e seus olhos eram brancos, brancos e sua cor estava viva. E se ele tivesse algo para escrever, ele não usaria a pena, sem antes escrever estas palavras: Jesus e Maria sentam juntos conosco no caminho.

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aspirador y un ingenio vigoroso convierten en saludable alimento los amargos frutos de la experiencia.62 (IRVING, 1992, p. 12-13).

Vale destacar, também, a obra já mencionada de Jacob Wassermann, Cristoph Kolumbus, der Don Quijotes des Ozeans, escrita em 1829 e traduzida ao castelhano por Eugenio Asensio, em 1930, com o título de Cristóbal Colón el Quijote del Océano. Wassermann (1930, p. 40) destaca, entre vários outros, a inquietude como um dos traços marcantes na vida do marinheiro: “[...] El eje de su existencia fue la inquietud. Hasta que muere, su vida es una perpetua fuga. Sin cesar, va errante de tierra en tierra, recorre los mares y muestra ser una de las figuras más inquietas que registra la historia.63”. Trata-se de uma biografia que, segundo opina Salvador de Madariaga, falha na análise e interpretação que faz das ações dos Reis Católicos, mas, no tocante a Colombo, pela primeira vez, estabelece um paralelo entre essa personagem histórica e a famosa personagem romanesca de Miguel de Cervantes, o imortal Don Quijote de la Mancha. O autor consegue mostrar, ao longo de sua análise da vida do navegador, o quão idênticos são o caráter e o comportamento entre o ser real, personagem histórico – Cristóvão Colombo – e o ser ficcional – Dom Quixote –, uma invenção e construção discursiva. Essa ideia foi, mais tarde, abraçada e ampliada consideravelmente pelo próprio Salvador de Madariaga (1947, p. 154), que registra: “[...] Colón es la preencarnación de Don Quijote [...]. Colón, como Don Quijote, se siente llamado a llevar a cabo una empresa, a cumplir una misión. 64”. Tal comparação foi utilizada também na esfera da ficção por Augusto Roa Bastos em seu Vigilia del Almirante (1992). Todorov, em A conquista da América: a questão do outro (1983, p. 10), apoia-se nessa comparação ao analisar as intenções do projeto de Colombo: “[...] Qual um Dom Quixote atrasado de vários séculos em relação a seu tempo, Colombo queria partir em cruzada e liberar Jerusalém.” Jacob Wassermann (1930, p. 131-132) justifica a sua comparação entre a personagem histórica e a ficcional nos seguintes termos: Cuando le veo como un Don Quijote histórico, grandioso, como un dechado de Don Quijote, me apoyo en su romántica concepción de los indios, la cual nos le revela como 62

Nossa tradução: Ele foi um daqueles homens de alta e robusta inteligência, que parecem erigir a si mesmos: um daqueles que tendo tido privações e obstáculos para combater desde os alvores da vida, adquirem destemor para atacar, e facilidade para superar inconvenientes ao longo dela. Em todos os seus empreendimentos a ruína e a visível insuficiência dos meios dão à execução um brilho e destaque eminentes. Assim, um espírito aspirante e um ingênuo vigoroso transformam em saudável alimento os amargos frutos da experiência. 63 Nossa tradução: O eixo da sua existência era a inquietude. Até sua morte, sua vida é um fugir perpétuo. Sem cessar, ele vaga errante de terra em terra, viaja pelos mares e ele mostra ser uma das figuras mais inquietas registradas pela história. 64 Nossa tradução: Colombo é a pré-encarnação do Dom Quixote [...]. Colombo, como Dom Quixote, sente-se chamado a levar a efeito um empreendimento, a cumprir uma missão.

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una especie de Caballero de la Triste Figura; la escena tragicómica en que el Ingenioso Hidalgo arremete contra un rebaño de carneros, haciendo una matanza absurda en los animales asustados, puede servir de símbolo central para el Don Quijote del Océano. No sabía adónde cabalgaba ni con quién peleaba. No veía, no comprendía. Cuando comprendió por fin, cayó en aquella incurable melancolía que le acechaba de antaño como una enfermedad mortal.65.

Assim, pautando-nos pela proposição de Wassermann, chegamos à obra que lhe dá continuidade, considerada base fundamental para nossos estudos, Vida del muy magnífico señor Don Cristóbal Colón, de Salvador de Madariaga, publicada pela primeira vez em 1940. Essa biografia, além de revisar criticamente muito daquilo que já se escreveu sobre Cristóvão Colombo, busca abordar a personagem por meio de um verdadeiro exercício de análise de hipóteses e inserções de estudos sobre a época, sem desconsiderar a imaginação como meio de se chegar às respostas buscadas. O estudioso espanhol, diante de tudo o que já se havia publicado sobre o “descobridor” da América, questiona: ¿Quién era aquel hombre misterioso que con su solo espíritu cambió el curso de la historia, desvió a una nación poderosa de su camino natural, dobló es espacio del mundo físico abierto al hombre y ensanchó sus horizontes mentales allende las esperanzas más extravagantes de aquella edad, creando así el ambiente para la atrevida concepción humanista a cuyo señuelo el hombre, super-mono, se ha soñado a sí mismo desde entonces como una especie de vice-Dios? 66 (MADARIAGA, 1947, p. 35).

Frente a essas perguntas, aparecem novas dúvidas na mente do biógrafo, que as lança no papel como num dilema íntimo de quem busca respostas para tantas e tão distintas interrogações, como num monólogo interior ininterrupto: ¿Cuándo nació? ¿Dónde nació? ¿Cómo se llama? ¿Dónde había estudiado? ¿Qué viajes había hecho? ¿Qué sabía de la tierra y de la mar? ¿Cuál era su plan de 65

Nossa tradução: Quando o vejo como um Dom Quixote histórico, grandioso, como um modelo de Dom Quixote, eu me apoio em sua romântica concepção dos índios, que nos revela como uma espécie de Cavaleiro da Triste Figura; a cena tragicômica no qual o Engenhoso Fidalgo arremete contra um rebanho de carneiros, provocando uma matança absurda entre os animais assustados, pode servir como um símbolo central para o Dom Quixote do Oceano. Ele não sabia para onde estava cavalgando nem contra quem estava lutando. Ele não conseguia ver, não entendia. Quando finalmente compreendeu, caiu naquela melancolia incurável que lhe assombrava desde outrora como uma doença mortal. 66 Nossa tradução: Quem era aquele homem misterioso, que unicamente com seu espírito, mudou o curso da história, desviou uma nação poderosa do seu caminho natural, dobrou o espaço do mundo físico aberto para o homem e ampliou seus horizontes mentais para além das esperanças mais extravagantes daquela época, criando, assim, um ambiente para a ousada concepção humanista sob cujo sinal o homem, super-macaco, sonhou a si mesmo, desde então, como uma espécie de vice-Deus?

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descubrimiento? ¿Hasta qué punto lo había definido cuando lo propuso primero al Rey de Portugal y luego a los Reyes Católicos? [...] ¿Cómo es que tenía aspecto tan autorizado? ¿Por qué guardaba tanto secreto sobre su cuna? ¿Por qué no hablaba nunca italiano, ni lo escribía, ni siquiera al dirigirse a sus compatriotas? ¿Y por qué hablaba castellano con acento portugués? Y si era tan buen cristiano como parecía a juzgar por sus frecuentes devociones ¿Por qué era tan aficionado a moros y judíos, y cómo es que se había enredado con una cordobesa de quien tenía un bastardo? 67 (MADARIAGA, 1947, p. 41-42).

Expostas tais indagações que dizem respeito aos pontos difusos da biografia de Colombo, o historiador estabelece, por fim, seu método de abordagem às questões: Establezcamos, pues, primero los puntos de acuerdo entre una y otra serie de datos: examinemos después las diferencias: finalmente, tratemos de resolver el enigma que sigue siendo fundamental en la vida de Colón: ¿Quién era Colón? 68 (MADARIAGA, 1947, p. 43).

Essa questão crucial, feita pelo biógrafo, e presente sempre que o nome do marinheiro é apontado, estabelece o seu método de investigação do passado, que considera as várias hipóteses acerca da vida e das ações de Colombo, corroboradas por análises e interpretações que possam auxiliar na inserção do homem e suas ações na época em que viveu para, então, estabelecer uma visão de seu modo de agir e pensar. Uma das obras biográficas mais recentes sobre Colombo é Christophe Colomb, de 1981, do francês Jacques Heers, traduzida ao castelhano por José Esteban Calderón e Ortiz Monastério, em 1992. Nessa biografia, o autor faz uma nova tentativa de compreensão do homem e suas realizações ao buscar inseri-lo no contexto histórico de sua época. Segundo aponta Heers, é no contexto histórico que estão as chaves da maior parte dos mistérios que envolvem a personagem. Em sua abordagem, destaca que a evocação de uma grande figura do passado consiste, antes de tudo, em falar de sua época. Assim, Heers (1992, p. 7-8) registra: 67

Nossa tradução: Quando nasceu? Onde nasceu? Qual era seu nome? Onde estudou? Que viagens ele fez? O que sabia sobre a terra e o mar? Qual seu plano para o descobrimento? Até que ponto tinha ele definido quando o propôs para o Rei de Portugal e depois para os Reis Católicos? [...] Por que ele tinha aquele aspecto de autoridade? Por que guardava tanto sigilo sobre sua origem? Por que nunca nem falava nem escrevia em italiano, nem sequer para se comunicar com seus compatriotas? E, por que falava em catelhano com sotaque em português? E se ele era tão bom cristão, como aparentava a julgar pelas frequentes demostrações de devoção, por que ele gostava tanto de moros e judeus, e, como é que ele se envolveu com uma cordobesa com quem teve um bastardo? 68 Nossa tradução: Vamos estabelecer, pois, primeiro os pontos de concordância entre uma e outra série de dados: examinaremos depois as diferenças: finalmente, tratemos de resolver o enigma que continua a ser fundamental na vida de Colombo: Quem era Colombo?

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[…] Es muy cierto que, desde este punto de vista, Cristóbal Colón responde por entero a lo que esperábamos. Jamás fue ni un ‘genio’ ni un excéntrico, ni un rebelde, ni un incomprendido. Fue, por el contrario, el héroe de su época y de su sociedad a la cual se integró con asombrosa facilidad.69

A tentativa de inserção de Colombo na realidade sócio-histórica, cultural e econômica do final do século XV e início do XVI pode ser vista ao longo de toda a obra de Heers. Nota-se um esforço imaginativo e interpretativo em busca da confirmação de sua tese que, em determinados momentos, enfrenta-se com imagens já concebidas do navegador. Um desses casos, por exemplo, dá-se quando Heers registra sua opinião diante das imagens românticas de Colombo encontradas na obra de Washington Irving: “[...] Un oscuro marino, un hombre sin instrucción, desprovisto de todo lo que a veces permite triunfar mediante la palabra y que sólo contaba con su talento natural. 70” (IRVING apud HEERS, 1992, p. 139). Em aberta oposição, o biógrafo francês declara: “[...] Colón distaba mucho de ser ignorante. Sabía latín, había leído mucho, todo el mundo estaba de acuerdo en decir con viva admiración y quizá con un poco de irritación que sabía expresarse y defender su causa.71” (HEERS, 1992, p. 139). Essa posição contestadora de Heers não se restringe apenas aos registros de Irving, mas, também, aos de vários outros biógrafos, inclusive a algumas das proposições de Madariaga. Heers persegue uma personagem livre de mitos que, segundo analisa, foi obscurecida pela grandiosidade de seus feitos e acabou desaparecendo entre as dimensões que suas realizações alcançaram. Nesse ponto, o biógrafo francês se harmoniza com o alemão Wassermann (1930, p. 111), pois este, do mesmo modo, registra: “[...] porque su hazaña era tan grandiosa que sólo había hecho de su autor una imagen de sombra. 72” Todas essas obras, e muitas outras não mencionadas, mostram o empenho de estudiosos de várias partes do mundo em decifrar alguns dos enigmas que cercam a figura do navegador responsável por “descobrir” o “Novo Mundo”. Colombo, pelo alcance inesperado de sua viagem às Índias via oeste, figura, desde uma perspectiva historiográfica eurocêntrica, tradicional e exaltadora dos projetos de colonização europeia, entre as mais célebres personagens históricas de todos os tempos. Inúmeras são as áreas que têm se ocupado do estu69

Nossa tradução: É muito certo que a partir desse ponto de vista, Cristóvão Colombo responde inteiramente ao que esperávamos. Jamais foi nem um ‘gênio’ nem um excêntrico, nem um rebelde, nem um incompreendido. Foi, pelo contrário, o herói de sua época e de sua sociedade, à qual se integrou com assombrosa facilidade. 70 Nossa tradução: [...] Um obscuro marinheiro, um homem sem instrução, desprovido de tudo o que, às vezes, permite triunfar mediante a palavra e que somente contava com seu talento natural. 71 Nossa tradução: [...] Colombo destoava muito de ser ignorante. Sabia latim, havia lido muito, todo o mundo estava de acordo em dizer com viva admiração e quiçá com um pouco de irritação que sabia expressar-se e defender sua causa. 72 Nossa tradução: [...] porque sua façanha era tão grandiosa que somente havia feito de seu autor uma imagem de sombra.

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do de sua época, de seu caráter e sua personalidade, de seu passado e suas ori gens, e da veracidade de seus registros autográficos, entre tantos outros aspectos ainda desconhecidos de sua vida. São polêmicas as suposições, hipóteses e resultados mais relevantes a que se tem chegado durante esses cinco séculos que nos separam daqueles momentos cruciais de nossa história, quando as três embarcações – Pinta, Niña e Santa María – comandadas pelo ainda anônimo marinheiro Cristóvão Colombo, aportaram nas ilhas do Caribe, pertencentes ao continente americano. Muitos são os paralelos que se pode estabelecer entre o que se conhece da vida do navegador e a do continente por ele encontrado em sua rota rumo à China e ao Japão. A América, em 1492, era desconhecida pelo mundo europeu, assim como também o era o suposto marinheiro genovês, que partiu de Portugal com um filho pequeno e acabou pedindo auxílio às portas do convento de La Rábida, na Espanha, em 1487. Como a verdadeira América aos olhos dos “descobridores”, Colombo passou praticamente despercebido na efervescente Espanha daquela época, envolvida nas lutas de reconquista. Ele veio a chamar a atenção apenas pela exorbitância daquilo que poderia oferecer, sem qualquer garantia ou respaldo que não fossem as suas intuições e sonhos. Da mesma forma ocorreu com a América, que se viu transformada em Ásia, portal das terras de Cipango, na imaginação ou necessidade dos marujos espanhóis e do próprio “Almirante de la Mar Océano”, que, diante da realidade das novas terras e gentes encontradas, preferiu configurá-las em seus escritos nos moldes das ricas e promissoras terras orientais descritas por Marco Polo. A volta de Colombo à Europa, em 15 de março de 1493, com as novas de que a rota via oeste conduzia às Índias, juntamente com a carga exótica que daqui levou, causou frenesi em todas as cortes importantes da Europa. Dessa forma, a América, assim como Colombo, passou a ser o centro de todas as atenções, o foco para o qual se voltaram todos os olhares, esperanças e investimentos. As disputas que se instauraram pela posse do território “descoberto” não consideraram apenas a rota inaugurada com a viagem de 1492, mas, principalmente, as maravilhas descritas por Colombo. Essas, sim, acrescentadas à rota das especiarias, que não foi, de fato, encontrada, porém, idealizada e fantasiada por Colombo, levaram as mais importantes coroas europeias a investirem esforços e economias na nova possibilidade de expansão. Colombo insistia nas maravilhas de suas Índias Ocidentais. Foi perseverante a ponto de empreender quatro travessias ao Atlântico, embora os sinais de fracasso dos primeiros objetivos da empresa já fossem mais do que evidentes. Em nenhum momento ele abandonou seus sonhos, seus ideais, e, já completamente desacreditado – da mesma forma como o estava sendo o seu “paraíso terrestre” –, escreveu ao Rei Fernando, em 1505, afirmando: “[...] hoje, minha empresa abre novos horizontes. Ela crescerá sem cessar, como eu 92


predissera [...] e sinto, com certeza, que minha obra terá cem vezes mais brilho no futuro do que tem no presente” (MAHN-LOT, 1992, p. 152). Por fim, veio o abandono: Colombo passou a ser ignorado pelos poderosos, que lhe deram as costas. O navegador, contudo, persistiu até o fim de suas forças para obter o reconhecimento de seu trabalho, mas morreu solitário num quarto em Valladolid, em 1506, reclamando os direitos que outrora lhe haviam sido concedidos. Na América, por sua vez, os autóctones persistiam em manter suas culturas. Enfrentaram os colonizadores europeus: foram escravizados por eles e forçados a executar tarefas que, no seu sistema cultural, não faziam sentido, mas lutaram contra aquele desconhecido sistema de produção que os escravizava. A América, após ser espoliada e saqueada e ter sua população autóctone quase que completamente dizimada, lutou pela sua independência política e, ao consegui-la, foi entregue à sua própria sorte, mas continua, até hoje, reclamando seu espaço, conforme registra Wright, especialmente referindo-se à população autóctone: “many survive, captive within white settler states built on their lands and on their backs73” (1992, p. 4). Essa é uma realidade presente em todas as nações americanas que aprenderam, com o passar do tempo, a dar as costas àqueles que eram os legítimos donos dessas terras “desbravadas” pelos colonos europeus. Os fatos relacionados ao encontro entre os europeus que rumavam às Índias e os povos nativos das ilhas encontradas foram registrados, em primeira instância, pelo próprio Colombo e pelos escrivães de sua armada. Suas são as impressões que ficaram assinaladas nas fontes históricas e, à medida que o processo de conquista e colonização ia avançando, apontaram-se também as impressões de outros cronistas coloniais, designados pelos reis para documentarem as ações das expedições espanholas ao que viria a se chamar “Novo Mundo”. Os nativos, no entanto, não contavam com tais ferramentas ou instrumentos referenciais que lhes possibilitassem o direito à voz e ao registro de suas percepções referentes a esses eventos – que atropelavam o curso normal de desenvolvimento de suas instituições – nos compêndios oficiais da história baseada na revisão das fontes. Os feitos de Colombo, assim como seus registros, sempre foram motivos de discórdia entre vários estudiosos, que, por um lado, ressaltam o caráter empreendedor do navegante, louvando sua coragem, audácia, constância, apego religioso, bondade, além de seus conhecimentos marítimos, e, por outro, criticam severamente suas ações com relação ao mundo “descoberto” e ao povo que o habitava. 73

Nossa tradução livre: [...] muitos sobrevivem, cativos em meio a estados de população branca, construídos em suas terras e nas suas costas.

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A ele se atribui a responsabilidade pelo fracasso de muitas nações indígenas, que pereceram sob o jugo da servidão imposta pelos colonizadores europeus e que, desse modo, não tiveram a oportunidade de se desenvolver. O curso da história dessas nações foi violentamente atropelado pelos colonizadores, que se encontravam em estágios mais avançados em muitos setores quando se deu o primeiro enfrentamento entre os europeus e os autóctones das tribos por eles encontrados. A utilização de armas de fogo pelos espanhóis para, em um primeiro momento, impressionar os nativos e, quando em batalhas, combatê-los, é um dos muitos exemplos que podem ilustrar o que acabamos de mencionar. Historiadores, bem como pesquisadores de outras áreas do conhecimento, por muito tempo têm se dedicado aos estudos das fontes deixadas por Colombo. Contudo, seus registros, longe da objetividade buscada e desejada em uma fonte histórica, estão impregnados de subjetivismo, de ricas mostras de pluridiscursividade, de figuras de linguagem – entre elas, especialmente, as hipérboles –, além de inúmeras contradições e ambiguidades. São muitas as tentativas de reconstrução da trajetória de vida de Cristóvão Colombo com base em seus registros. Biografias de Colombo podem ser encontradas em praticamente todas as línguas e nações ocidentais, pois suas ações expandiram as expectativas daquele contexto histórico em que se deu o “descobrimento”. Foram suas ações que revelaram as verdadeiras proporções da terra e a existência de outros seres humanos além dos limites do imaginário de sua época. O marinheiro soube, porém, apagar suas pegadas no percurso da história, deixando nela apenas algumas marcas indeléveis daquilo que lhe convinha que se soubesse sobre ele no futuro. Cristóvão Colombo foi, em primeira instância, o próprio criador das imagens discursivas sobre sua figura, cuja ferramenta essencial – o domínio do uso dos signos de linguagem, inclusive com seu plurilinguismo – manipulava muito bem. Muitas das biografias de Colombo referem-se à sua capacidade de persuasão pelo uso de uma linguagem eloquente. As imagens de Colombo presentes em muitas biografias de autores consagrados, como é o caso de Fernando Colombo (1571), Washington Irving (1827)74, Jacob Wassermann (1829)75, Salvador de Madariaga (1940 [1947]) 76, Samuel Eliot Morison (1942) e Jacques Heers (1982 [1992]) 77, embora 74

Utilizamos a edição comemorativa da obra de Washington Irving publicada no quinto centenário do descobrimento da América (1992), na versão íntegra da tradução feita por José García de Villata (1833-1834) e N. Fernández Cuesta (1854), corrigida e atualizada segundo as normas ortográficas e sintáticas contemporâneas. 75 Utilizamos, para consulta de Cristoph Kolumbus, der Don Quijotes des Ozeans, escrita em 1829, a tradução ao espanhol, por Eugenio Asensio, feita em 1930. 76 Utilizamos, para consulta de Vida del muy magnífico señor Don Cristóbal Colón (1940), a edição da Editorial Sudamericana, publicada em 1947. 77 Utilizamos a tradução da obra de Jacques Heers para o espanhol feita por José Esteban Calderón e Ortiz Monasterio, publicada pela Fondo de Cultura Económica, no quinto centenário

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estivessem estes imbuídos do caráter científico, são exemplos raros de oposições centradas em uma mesma personagem. Ilan Stavans (2001), diante da imensa produção literária sobre Colombo, comenta, entretanto, que “after numerous biographies and innumerable academic studies and research papers, Columbus the man remains a mirage of memory.78” (2001, p. 30). Tal afirmação também dá uma ideia do alcance das configurações discursivas do navegador na contemporaneidade. Na obra de Irving (1827 [19992]), que enaltece o espírito empreendedor de Colombo, verifica-se um esforço do autor em demonstrar que o navegante estava convicto de haver encontrado a rota oeste para as Índias, acreditando ter chegado às regiões não exploradas da Ásia. Irving, contudo, não oculta sua opinião de que, pelo fato de Colombo ter chegado à ilha de Guanahaní, no arquipélago das Bahamas, a “descoberta” da América deve ser atribuída ao marinheiro, embora ele nunca tenha se apercebido disso, defendendo sempre a ideia de que havia encontrado o caminho que levava às Índias via oeste. Com as imagens de Colombo projetadas por Jacques Heers, renovamse também algumas daquelas já consagradas, em décadas passadas, nas escritas de Samuel Eliot Morison, que apostam na dualidade de seu caráter para explicar os aspectos mais intrigantes de sua existência. A obra de Morison (1942) estabelece, com muita precisão, a rota seguida por Colombo em 1492 e a relaciona com a identificação geográfica atual. Morison afirma que o navegante nunca chegou a pensar que havia “descoberto” um novo continente. Segundo Morison, ele esteve sempre seguro de estar na Ásia, fato também assegurado por Martín Fernández de Navarrete (1825 [1925]). Todavia, esse é um aspecto polêmico, causador de várias releituras ficcionais, tema que abordaremos mais adiante ao nos determos mais especificamente nos romances da “poética do descobrimento” da América. Segundo registra Morison, “Christopher Columbus belonged to an age that was past, yet he became the sign and symbol of this new age of hope, glory and accomplishment. His medieval faith impelled him to a modern solution: expansion 79” (1942, p. 5). Em sua consagrada obra, o dualismo está sempre presente quando o assunto é Cristóvão Colombo e o “descobrimento” da América. Tal imagem é explicitada nas seguintes palavras: In his faith, his deductive methods of reasoning, his unquestioning acceptance of the current ethics, Columbus was a man of the Middle Ages, and in the best sense. In his readiness to translate thought into action, in lively curiosity and accurate observation of do descobrimento da América. 78 Nossa tradução livre: [...] após numerosas biografias e inumeráveis trabalhos acadêmicos, estudos e pesquisas, Colombo – o homem – permanece uma miragem da memória. 79 Nossa tradução livre: Cristóvão Colombo pertencia a uma era já passada, embora ele tenha sido o sinal e símbolo de uma nova era da esperança, glória e realizações. Sua fé medieval o impelia para uma solução moderna: o expansionismo.

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natural phenomena, in his joyous sense of adventure and desire to win wealth and recognition, he was a modern man. This dualism makes the character and career of Columbus a puzzle to the dull-witted, a delight to the discerning . 80 (MORISON, 1942, p. 6).

Essas considerações de Morison ecoam fortes nas palavras de Paulo Emilio Taviana81 ao se manifestar a respeito das dualidades encontradas por muitos estudiosos na busca de compreender melhor as atitudes de Colombo. Taviana declara as causas das dualidades de Colombo, que registramos abaixo, pois refletem, em resumo, muito daquilo que grande parte dos defensores das imagens heroicas do marinheiro pensam sobre sua trajetória: Su planteamiento teórico es medieval, así como su visión filosófica y teológica, e incluso las suposiciones de sus concepciones científicas; siendo renacentista su espíritu investigador, su desarrollado amor por la naturaleza, su capacidad, llegado el momento, de enfrentarse con la explicación de los hechos y los fenómenos no observados ni explicados antes. Renacentista […] su concepción y metodología económicas, típicamente mercantilistas y capitalistas: por lo menos hasta los confusos acontecimientos del tercer viaje a Santo Domingo. En estos aspectos tuvo la psicología típica del hombre moderno, concreto y práctico hasta la cominería: sólo confiaba en la experiencia directa, que procuraba adquirir de todas las formas posibles. De ellas partía para trazar sus propósitos, de ella brotó la concepción de su gran proyecto. Una psicología moderna, por lo tanto, de base medieval. Aunque de formación medieval, Colombo fue cristiano en sentido moderno. Tuvo una fe fuerte, sincera, inagotable. Libre – en todo momento, a pesar de las dificultades y los peligros – de supersticiones o hipocresías.82 (TAVIANA, 1990, p. 163). 80

Nossa tradução livre: Em sua fé, em seus métodos dedutivos de argumentação, na sua inquestionável aceitação dos preceitos éticos correntes, Colombo foi um homem da Idade Média, no melhor dos sentidos. Em sua prontidão em transformar o pensamento em ações, na vívida curiosidade e adequada observação dos fenômenos da natureza, em seu alegre senso de aventura e seu desejo de conseguir fortuna e reconhecimento, ele foi um homem moderno. Esse dualismo faz do caráter e da carreira de Colombo um enigma para os parvos, um encanto para os perspicazes. 81 Paulo Emilio Taviana era vice-presidente do senado italiano na ocasião em que se realizou o Primer Encuentro Internacional Colombino, celebrado em Sevilha, em 1988, no qual teve oportunidade de manifestar suas opiniões sobre o histórico navegador. Seu pronunciamento encontra-se registrado nos anais desse congresso, cuja edição ficou ao encargo de Consuelo Varela. 82 Nossa tradução livre: Sua proposta teórica é medieval, assim como a sua visão filosófica e teológica, incluindo as suposições contidas em suas concepções científicas; sendo renascentista o seu espírito pesquisador, seu desenvolvido amor pela natureza, sua capacidade, chegando ao ponto de se enfrentar com a explicação dos feitos e fenômenos não observados nem explicados até então. Renascentista [...] sua concepção e metodologia econômicas, tipicamente mercantilistas e capitalistas: pelo menos até os confusos acontecimentos da terceira viagem a Santo Domingo. Nesses aspectos teve a típica psicologia do homem moderno, concreto e prático: confiava somente na experiência direta, que buscava adquirir de todas as formas possíveis. Partia delas para traçar seus propósitos, dela brotou a concepção de seu grande projeto. Uma psicologia moderna, contudo, de base medieval. Mesmo sendo de formação medieval, Colombo foi cristão no sentido moderno. Teve uma fé forte, sincera, inesgotável. Livre – em todo momento, apesar

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Essas conjunções de opostos, aliadas à natureza subjetiva de Colombo, tornam ainda mais intrigante a sua história. O caráter dual de sua personalidade também foi lembrado por Morison ao descrever o marinheiro como um homem que “had a Hellenic sense of wonder at the new and strange, combined with an artist’s appreciation on natural beauty 83” (1942, p. 76). Trata-se de um dos aspectos mais importantes da personalidade de Colombo quando se pensa nos conteúdos dos seus registros oficiais, que buscavam ser objetivos, mas acabavam sempre impregnados desse “senso de apreciação do belo”. Tal aspecto foi evidenciado também pelo brasileiro Alcibíades Delamare (1936, p. 72), que, como comentamos, aprecia a habilidade poética do marinheiro nas descrições que faz da natureza inusitada que contemplara. Parece, pois, ser senso comum entre os estudiosos de Colombo a sua visão subjetiva e exaltadora das “maravilhas” do “Novo Mundo”. Roberto Mares (2002), por sua vez, ao descrever a vida e as empresas de Colombo, registra: “es claro que Cristóbal estaba decidido a ser un gran aventurero, aunque comenzó creando artificiosamente esa imagen en la mente de los demás, pero más tarde sus hazañas rebasaron lo que él mismo hubiera podido imaginar 84” (2002, p. 16). Ao ultrapassar as dimensões comuns da época, Colombo acabou por superar as suas próprias expectativas – embora possa não se ter dado conta desse fato, de acordo com o que se registra em alguns dos estudos sobre o navegante – e suas aventuras tornaram-se únicas pelo próprio alcance que o equívoco em seu projeto marítimo conseguiu atingir. Apesar do grande engano de ter pensado, a princípio, que havia encontrado uma rota para as ricas terras das Índias via oeste – objetivo declarado de toda a empreitada –, a saga de Colombo seria vista, no futuro, pela perspectiva colonizadora europeia, como uma das maiores realizações de todos os séculos. Tanto ele quanto todos os europeus que entraram em contato com o dito “Novo Mundo”, direta ou indiretamente, acabaram sendo surpreendidos pela grandiosidade e exotismo que sua viagem revelou aos olhos europeus. Daí o fato de, frente à figura e aos feitos de Cristóvão Colombo, estar-se sempre a um passo entre o homem e o mito, a lenda e o extraordinário legado de suas ações que proporcionaram um inegável enriquecimento a toda a Europa. O importante estudo de Tzvetan Todorov sobre a primeira viagem de Colombo à América e a questão da alteridade/não-alteridade presente nesse evento histórico revela, de certo modo, a dimensão das pesquisas e investigações sobre essa personagem, ao mencionar que “existem três esferas das dificuldades e perigos – de superstições ou hipocrisias. 83 Nossa tradução livre: [...] tinha um senso helênico de maravilha em relação ao novo e ao estranho, combinado a uma apreciação artística da beleza natural. 84 Nossa tradução livre: É claro que Cristóvão estava decidido a ser um grande aventureiro, mesmo que tenha começado a criar, de forma artificial, essa imagem na mente dos demais, embora, mais tarde, seus feitos tenham ultrapassado tudo o que ele mesmo pudesse ter imaginado.

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que dividem o mundo de Colombo: uma é natural, a outra divina, a terceira humana” (1983, p. 10-11). Esse aspecto constitui-se em um valioso eixo ficcional da temática da “poética do descobrimento”, o qual evidenciaremos, mais adiante, nas análises de alguns dos romances que recriam as ações do marinheiro. Edmundo O’Gorman (1984), diante da realidade de que o feito de Colombo acabou por se sobrepor a tudo o que se esperava ou se havia planejado a princípio, lança uma nova questão, bastante interessante nesse jogo de dualidades, referente à especulação sobre o “descobrimento” da América ser atribuído a Colombo ou de ser apenas uma “invenção” feita a posteriori pela necessidade de configurar, na história oficial, o aparecimento do então “Novo Mundo”. Suas reflexões estão registradas na obra La invención de América – publicado pela primeira vez em 1958 –, em que o autor expõe a sua tese: “[...] al llegar Colón el 12 de octubre a una pequeña isla que él creyó pertenecía a un archipélogo adyacente al Japón fue como descubrió a América. Bien, pero preguntemos si eso fue en verdad lo que él, Colón, hizo o si eso es lo que se dice que hizo85” (1984, p. 15). Em seu texto, o autor trabalha com os dois conceitos que se contrapõem – o de descoberta e o de invenção –, ressaltando as várias dualidades que se estabeleceram ao longo dos tempos ao se configurar a América nos registros históricos. O’Gorman faz um passeio pelas principais ideias acerca da empresa de Colombo em relação à dualidade do conhecimento/desconhecimento da existência da América no seu projeto original. Ao longo de sua obra, O’Gorman esboça sua interpretação dessa dualidade para explicar como se “inventou” a América no cenário das ideias europeias na época que se sucedeu ao período conhecido como o “descobrimento” – um feito que, segundo defende o historiador, era desconhecido do próprio “descobridor”, Cristóvão Colombo. Nesse intento, o autor vale-se de uma série de registros que abordam o assunto, destacando-se, entre eles: os do historiador oficial do Imperador Carlos V, Gonzalo Fernández de Oviedo, com sua Historia general y natural de las Indias (1535-1547), que se referem à lenda do Piloto Anônimo e, desse modo, expressam que Colombo sabia o que encontraria; os de Fernando Colombo, com Historie della vita e dei fatti dell’Ammiraglio D. Cristoforo Colombo, editada em Veneza no ano de 1571, que deixa transparecer que o navegador intuía, por seus conhecimentos científicos, erudição e observações da natureza, a existência de terras não-asiáticas além do Atlântico; e os do frei Bartolomé de las Casas, com sua Historia de las Indias (1527 [1947]), que compartilha da ideia de 85

Nossa tradução livre: [...] ao chegar Colombo em 12 de outubro a uma pequena ilha que ele acreditou ser pertencente a um arquipélago adjacente ao Japão, foi como descobriu a América. Bem, mas perguntemos se isso foi de fato o que ele, Colombo, fez ou se isso é o que dizem que ele fez.

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Fernando Colombo, com a diferença de que Las Casas dá ao projeto de Colombo uma perspectiva transcendentalista, fazendo do marinheiro apenas um instrumento das intenções divinas, um homem predestinado a realizar as profecias do Antigo Testamento, já mencionadas por Platão, Sêneca e outros. Assim, O’Gorman relaciona uma série de textos que expõem a intuição de Colombo quanto à existência de um vasto território ainda não explorado na rota que traçara e os contrapõem a outros registros: os de Antonio Herrera y Tordesillas86, que apontam que, inicialmente, o navegador intuía a existência de terras, mas, ao chegar a Guanahaní, realmente pensou haver chegado à Ásia, suposição que só foi de fato corrigida pelo marinheiro nas suas terceira e quarta viagens; e os de Pablo de la Concepción Beaumont 87, que informam que a empresa de Colombo, desde sua concepção primeira, previa dois objetivos: descobrir uma grande massa de terras cuja existência, de um ou outro modo, o marinheiro conhecia, e abrir uma rota via oeste para as Índias. Segundo os registros de Beaumont (1932), consultados por O’Gorman, foi assim que Colombo “descobriu” a América: ao dar-se conta de seu equívoco de pensar estar em terras asiáticas, confirma a hipótese inicial da existência de outro continente. A interessante visão de O’Gorman acaba fazendo referência aos escritos de Irving (1827), Humboldt (1866-67)88, Martín Fernández de Navarrete, em Colección de los viajes y descubrimientos (1825 [1925]), entre outros, nos quais as hipóteses anteriores defendidas não são referidas, pois só se menciona a empresa única da busca pela rota oeste rumo a Cathay e a Cipango. Nesses registros, enfocam-se as afirmações de que Colombo jamais se deu conta de haver “descoberto” um novo continente, o que também é afirmado por Morison (1942). O’ Gorman considera que, “para poder afirmar que Colón reveló la existencia de dicho continente, será indispensable mostrar que tuvo conciencia del ser de eso cuya existencia se dice que reveló, pues de lo contrario no podría atribuirse a Colón el descubrimiento89” (1984, p. 22). Moses M. Nagy, na introdução de sua obra Christopher Columbus in world literature: an annotated bibliography, ao se referir a esse mesmo tópico polêmico, expressa suas ideias nas seguintes palavras: Today it is common knowledge that Columbus brought in himself, as in a synthesis, all those forces which made the voyage to the Indies possible and the discovery of the 86

HERRERA Y TORDESILLAS, A. Historia general de los hechos de los castellanos en las islas y tierras firmes del Mar Océano. Madrid, 1601-1615. 87 BEAUMONT. P. C. Aparato para la inteligencia de la crónica seráfica de la Santa Providencia de San Pedro y San Pablo de Michoacán de esta Nueva España. Archivo General de la Nación: México, 1932. 88 VON HUMBOLDT, A. Cosmos: essai d’une description physique du monde. Paris, 1866-67, p. 267. 89 Nossa tradução livre: Para poder afirmar que Colombo revelou a existência do dito continente, será indispensável mostrar que teve consciência da realidade daquilo cuja existência diz-se que ele revelou, porém, do contrário, não se poderia atribuir a Colombo o descobrimento.

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New World a reality. Now, if he had known, from any possible source, that America was there, he could not have discovered it; he would have made it known to Europeans that there was an 'otro mundo'. Not having an infallible knowledge about the size of the Globe [...] Columbus arrived at San Salvador with the firm conviction that he found himself in Asia. Was then his arrival at the Antilles an encounter between Europe and America? Or again, should we refer to it, as some people like to put it, as 'the arrival of Columbus in America'? This latter solution, however felicitous it may sound, does not offer a satisfactory 'denomination'. For the consciousness of Europe, America did not exist before Columbus: it was the world that Columbus discovered which was named such. Philosophically speaking, America became aware of itself in the consciousness that Europe brought to it.90 (NAGY, 1994, p. 20-21).

As ideas de O’Gorman ecoam fortes também nas palavras de Carlos Fuentes, em seu texto Valiente Mundo Nuevo, no qual o romancista e ensaísta mexicano menciona: “América, pues, no fue descubierta: fue inventada. Todo descubrimiento es un deseo, y todo deseo, una necesidad. Inventamos lo que descubrimos, descubrimos lo que imaginamos. Nuestra recompensa es el asombro.91” (1990, p. 59). Colombo, segundo defende Fuentes, assim como Vespúcio, contribuíram de forma relevante, com seus escritos, para lançar as raízes utópicas na América: um espaço mágico no qual os homens viviam ainda como na inocência do paraíso, em comunidades harmônicas, sem reis e sem qualquer soberania, sendo cada qual seu próprio dono, e nas quais os bens eram comuns e o ouro não tinha valor. Desse modo, inventou-se um espaço real – a América, o “Novo Mundo” –, para que, nele, se pudesse realizar a volta à “idade de ouro”, uma oportunidade para todo o europeu que desejasse se esquecer das sangrentas guerras religiosas que haviam assolado o “Velho Mundo” durante tanto tempo e adentrar o paraíso terrestre no qual habitavam os “bons selvagens”. Respostas opostas às imagens idealizadas do marinheiro, no campo da historiografia, chegaram ainda no século XIX, com a obra Christopher Columbus and how he received and imparted the Spirit of Discovery, de Justin Winsor (1892). O 90

Nossa tradução livre: Hoje já é do conhecimento comum que Colombo trazia em si, como uma síntese, todas aquelas forças que tornaram a viagem às Índias possível e o descobrimento do Novo Mundo uma realidade. Agora, se ele tivesse sabido, por qualquer fonte possível, que a América estava lá, ele não a poderia ter descoberto; ele teria divulgado a existência de um “outro mundo” para os europeus. Não tendo um conhecimento infalível do tamanho do globo [...] Colombo chegou a São Salvador com a firme convicção que se achava na Ásia. A sua chegada às Antilhas foi, então, um encontro entre a Europa e a América? Ou deveríamos nos referir a ela, como algumas pessoas preferem fazê-lo, como a “chegada de Colombo na América?”. Essa solução tardia, embora soe afortunada, não oferece uma “denominação” satisfatória. Para a consciência europeia, a América nunca existiu antes de Colombo: foi o mundo que Colombo descobriu que assim foi denominado. Filosoficamente falando, a América se conscientizou de sua existência pela consciência que a Europa lhe trouxe. 91 Nossa tradução livre: A América, portanto, não foi descoberta: foi inventada. Todo descobrimento é um desejo, e todo desejo, uma necessidade. Inventamos o que descobrimos, descobrimos o que imaginamos. Nossa recompensa é o assombro.

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autor refere-se à atitude laudatória da obra de Irving (1827), conforme registra Mary Ellen Jones, comentando que o biógrafo empenhou esforços para salvar um exemplo a ser admirado por todo o mundo, “and more for the world’s sake than for Columbus”. Jones acrescenta, ainda, que “the Admiral was certainly not destitute of keen observation of nature, but unfortunately this quality was not infrequently prostituted to ignoble purposes […]. It would have been better for the fame of Columbus if he had kept this scientific survey in its purity92” (1992, p. 26). Mais uma vez, revela-se a dualidade da personalidade de Colombo, que, inclusive nos momentos em que ele mesmo se punha a registrar suas experiências, transitava constantemente entre seu intento de ser objetivo e a sua incapacidade de efetuar registros imparciais, impregnando-os com sua essência subjetiva, marcada pela apreciação do belo e dos desígnios divinos. Ao longo do processo de conquista e colonização dessas terras, porém, um fato apontado por Uslar Pietri (1990) não pode ser contestado: quando se efetiva o convívio entre as três vertentes étnicas que deram origem às sociedades mestiças da América, nem o europeu, nem o indígena e nem o africano puderam continuar sendo os mesmos, pois, desde o primeiro instante dessa convivência, abre-se um vasto processo de inter-relações, mesclas, sincretismos e simbioses. Tal processo forjou um fenômeno diferente, ainda vigente na contemporaneidade e que não está completamente reconhecido nem definido. Nesse complexo processo que teve início com a chegada de Colombo e sua expedição comercial, não houve muito espaço para os intercâmbios culturais, pois não se cogitou, em momento algum, a possibilidade da igualdade entre as distintas instituições, homens e etnias que se depararam uns com os outros pela primeira vez; houve, sim, a certeza da superioridade de uns e da inferioridade dos outros. A “ideia do descobrimento” é, ao mesmo tempo, de acordo com o grupo de intelectuais que veem as ações de Colombo como elementos detonadores da ruína dos grandes impérios autóctones, o princípio da dominação e imposição de novos códigos linguísticos e de conduta, de valores, do apagamento da memória coletiva cultivada pela tradição oral e da substituição de múltiplas crenças e manifestações religiosas pelos dogmas do catolicismo hispânico ou do puritanismo anglo-saxônico. Dualidades como essas não se restringem ao âmbito da história, pois se encontram presentes em praticamente todos os campos que buscam recriar as aventuras do marinheiro. O alcance de suas realizações gera imagens díspares, que vão desde o de herói exaltado e comemorado por sua coragem, determinação e valentia, ao de vilão, mesquinho e oportunista. O jogo que se estabelece 92

Nossa tradução livre: [...] e mais pela causa do mundo do que pela de Colombo. [...] o Almirante certamente não era destituído de uma perspicaz observação da natureza, mas infelizmente essa qualidade não raro foi prostituída em prol de propósitos ignóbeis. […]. Teria sido melhor para a fama de Colombo se ele tivesse mantido esta fonte científica em sua pureza.

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entre as mais divergentes posições adotadas com relação a sua pessoa e feitos produz, na literatura de diferentes áreas, uma tensão que ainda não se esgotou na contemporaneidade. Abordamos, a seguir, algumas das tentativas da arte literária em resgatar essa personagem em suas múltiplas facetas por meio do aproveitamento estético dos eventos históricos ocorridos em 1492 e de vários dos estudos acima mencionados. Se por um lado são muitas as questões sem uma resposta definitiva para a história, por outro, inúmeras são as possibilidades inventivas para a arte. As considerações acima referidas adquirem importância para o trabalho de análise que segue, já que o conjunto dos discursos de Colombo, considerado um dos mais poéticos registros efetuados sobre as viagens de exploração ao “Novo Mundo”, constitui-se em elemento básico e de presença constante nas narrativas por nós selecionadas.

2.2 MARES DANTES NAVEGADOS: PERSONAGEM LITERÁRIA

COLOMBO

A

La literatura nos permite vivir en un mundo cuyas leyes transgreden las leyes inflexibles por las que transcurre nuestra vida real, emancipados de la cárcel del espacio y del tiempo, en la impunidad para el exceso y dueños de una soberanía que no conoce límites. (VARGAS LLOSA, 2002, p. 394).

Um homem, uma existência conturbada, grandes projetos, muitos nomes: Cristóvão Colombo, Cristóbal Colón, Cristoforo Colombo, Joan Colóm, Christopher Columbus. Esses são alguns dos diferentes nomes com os quais a história registra a passagem de Colombo pelo tempo das grandes navegações, dos projetos audaciosos, das disputas pelas rotas mais lucrativas para o oriente, das descobertas de novos territórios e da ampliação de domínios marítimos, no contexto da Renascença europeia. Poucas personagens apresentam uma historiografia tão abundante e heterogênea como esse marinheiro conhecido como o “descobridor” da América, gerando, ao longo de cinco séculos, distintas imagens e interpretações. A confirmação da dualidade de Colombo como um homem dividido entre as amarras do medievalismo e os impulsos individualistas da modernidade está presente também nos registros autográficos que deixou à posterioridade. Como menciona Carlos Fuentes, percebe-se, nos primeiros registros no Diário de bordo, após haver chegado à América, que Colombo deu um passo atrás “hacia la edad dorada. Pero muy pronto, a través de sus propios actos, el paraíso terrenal fue destruido y los buenos salvajes de la víspera fueron vistos como ‘buenos para les mandar y les

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hazer trabajar y sembrar y hazer todo lo otro que fuera menester’ 93” (FUENTES, 1992, p. 10). Essas mudanças de opinião do próprio navegador, registradas em diversas ocasiões ao longo de seu Diário de bordo, sobre a natureza, o caráter e os costumes dos habitantes das terras encontradas, é, na opinião de Fuentes, o princípio de todas as dicotomias que marcam a história dos povos americanos: “desde entonces, el continente americano ha vivido entre el sueño y la realidad, ha vivido el divorcio entre la buena sociedad que deseamos y la sociedad imperfecta en la que realmente vivimos.94” (1992, p. 10). Nenhuma sociedade constituída em território americano consegue se isentar dos legados de Colombo. Ainda que alguns séculos separem as ações desse navegante europeu e as dicotomias que se estabeleceram nos países do continente americano desde que ele aqui aportou, as relações que se estabelecem entre as causas do passado e as consequências do presente são recorrentes, inclusive no campo da literatura. Elas, como veremos mais adiante, dão origem às diferentes correntes discursivas da apologia e da paródia que caracterizam as escritas romanescas contemporâneas, as quais assumem diferentes perspectivas para elaborar seu discurso poético ancorado nos pressupostos da verossimilhança. Esse amplo universo constitui, juntamente com expressões líricas e dramáticas, o que se denomina “poética do descobrimento” 95, sendo que nossa atenção se volta para suas manifestações no território da prosa romanesca. Uslar Pietri vê, no evento histórico vivenciado por Colombo, certa circularidade temporal quando expressa que as bases culturais e históricas da Europa e da América acabaram, pelas ações do navegador, por se assemelhar, primeiramente, pelo contato entre os homens de Colombo e as diversas tribos nativas dessas terras e, a seguir, por todo o processo de mestiçagem que daí resultou. O ensaísta e romancista venezuelano destaca:

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Nossa tradução livre: [...] até a idade dourada. Mas imediatamente, através de seus próprios atos, o paraíso terreno foi destruído e os bons selvagens da véspera foram vistos como ‘bons para lhes mandar e lhes fazer trabalhar e semear e fazer tudo o que fosse necessário’. 94 Nossa tradução livre: Desde então, o continente americano tem vivido entre o sonho e a realidade, tem vivido o divórcio entre a boa sociedade que desejamos e a sociedade imperfeita na qual realmente vivemos. 95 No processo de estudo das imagens ficcionais de Colombo, deparamo-nos com um conjunto de obras tão vasto e rico em torno da personagem e de suas ações que, num primeiro momento, decidimos trabalhar apenas com a narrativa romanesca. Essa, porém, constitui, ainda, um universo tão amplo, no qual diversos temas são abordados, que, finalmente, optamos por nos referir a esse múltiplo universo ficcional que recria as ações de Colombo pela ficção como sendo a “poética do descobrimento”: um sistema de organização do signo poético no qual se veiculam múltiplos temas relacionados ao evento histórico em parte protagonizado por Colombo em 1492. A todo esse conjunto, passamos a nos referir, portanto, como “poética do descobrimento”, e quando nos limitamos ao recorte estabelecido para esta obra, restringimos o termo com a expressão “em suas manifestações romanescas”, ou outra equivalente.

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En cierto modo, la historia de las civilizaciones es la historia de los encuentros. […]. Las zonas críticas de los encuentros han sido precisamente los grandes centros creadores e irradiadores de civilización. […]. Mientras más se penetra en los orígenes griegos, más surge la rica y todavía en gran parte inextricable variedad de extirpes, invasores, migraciones, mezclas y aportes de muchas gentes venidas por las rutas guerreras de la masa continental y por las rutas piratas del Egeo. […]. Roma es una de las más evidentes muestras de la originalidad creadora del mestizaje cultural. Todas las culturas del mundo conocido trajeron su aporte a ella. […]. La historia del Occidente cristiano es del más extraordinario y aluvional experimento del mestizaje cultural. Las lenguas modernas son el archivo viviente y el mejor testimonio de esa caótica mezcla.96 (1990, p. 346-347).

Uslar Pietri, contudo, comenta que “la gran época creadora del mestizaje en Europa ha terminado desde hace mucho tiempo. Los mitos de su superioridad racial, del pasado histórico, de la pureza de la herencia nacional actuaron como frenos y diques empobrecedores97” (USLAR PIETRI, 1990, p. 346). Ao ver esse processo de interação entre as diferentes etnias e culturas como elemento essencial na formação do povo europeu, o estudioso sugere que a miscigenação da qual hoje somos resultado, desencadeada a partir das ações de Colombo, é o que nos aproxima desse passado europeu: “nuestro quehacer histórico, nuestra originalidad histórica, tiene que ver esencialmente con ese proceso consciente e inconsciente de creación de formas, de concepciones y de actitudes por medio del mestizaje 98” (USLAR PIETRI, 1990, p. 102). Muitos dos intelectuais hispano-americanos voltam-se para o passado histórico de Colombo para aí apontar a gênese desse processo caracterizador das sociedades que aqui se constituíram. Diante da constatação de que tal processo de conjunções de culturas na Europa, por questões também históricas, foi, de certo modo, interrompido, Uslar Pietri declara que, “en cambio, la América Hispánica es tal vez la única gran zona abierta en el mundo actual al proceso de mestizaje cultural creador 99” (USLAR PIETRI, 1990, p. 346-347). A mensagem otimista e confiante do escritor se irmana com 96

Nossa tradução livre: De certo modo, a história das civilizações é a história dos encontros. [...]. As zonas críticas dos encontros formam precisamente os grandes centros criadores e irradiadores de civilização. [...]. Quanto mais nos aprofundamos nas origens gregas, mais surge a rica e inextrincável variedade de extirpes, invasores, migrações, mestiçagem e contribuições de muitas pessoas que vieram pelas rotas guerreiras da massa continental e pelas rotas piratas do Egeu. [...]. Roma é uma das mais evidentes mostras da originalidade criadora da mestiçagem cultural. Todas as culturas do mundo conhecido trouxeram sua contribuição a ela. A história do Ocidente cristão é um dos mais extraordinários experimentos de mestiçagem cultural. As línguas modernas são arquivos vivos e o melhor testemunho dessa caótica mistura. 97 Nossa tradução livre: A grande época criadora da mestiçagem na Europa já terminou há muito tempo. Os mitos de sua superioridade racial, do passado histórico, da pureza da herança nacional atuaram como freios e diques empobrecedores. 98 Nossa tradução livre: Nosso fazer histórico, nossa originalidade histórica, tem a ver essencialmente com esse processo consciente e inconsciente de criação de formas, de concepções e atitudes por meio da miscigenação. 99 Nossa tradução livre: Em troca, a América Hispânica é talvez a única grande zona ainda aberta no mundo atual ao processo de mestiçagem cultural criador.

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o discurso de Silviano Santiago (2000) quando ressalta esse traço histórico da mestiçagem como aspecto relevante e legado das tensões geradas pelos eventos de 1492 para a formação de uma cultura essencialmente latino-americana. O pensador brasileiro aponta a mestiçagem como uma das fontes mais preciosas para a eclosão de uma literatura peculiar para as diferentes nações americanas na contemporaneidade. Sobre esse processo de mestiçagem, Uslar Pietri assinala ainda: Es sobre la base de ese mestizaje fecundo y poderoso donde puede afirmarse la personalidad de la América Hispánica, su originalidad y su tarea creadora. […]. Su vocación y su oportunidad es la de realizar la nueva etapa de mestizaje cultural que va a ser la de su hora en la historia de la cultura. Todo lo que se aparte de eso será desviar a la América Latina de su vía natural y negarle su destino manifiesto. 100 (1990, p. 356-357).

Constatamos, pois, que a história do “descobrimento” da América abre, no percurso da humanidade, a oportunidade para a realização desse fenômeno de constituição de sociedades mestiças, híbridas, transculturais, pela conjunção dos mais variados aspectos que integram a cultura de distintos povos. Esse fenômeno se manifesta em praticamente todos os segmentos das sociedades constituídas na América. Entre os muitos frutos que daí resultam, em particular na literatura, pode-se destacar as escritas híbridas e, entre essas, as leituras do passado histórico pela ficção. Nesse ponto, Colombo, entre outras personagens históricas, apresentase em uma infinidade de facetas, pois, conforme comenta Marco Aurelio Larios, “la novela histórica los recupera en una multitud de relatos como es el caso, por usar un ejemplo, de la figura de Cristóbal Colón recreada por Carpentier (El arpa y la sombra), Abel Posse (Los perros del paraíso), Augusto Roa Bastos (Vigilia del Almirante) 101” (1997, p. 134), entre muitos outros que, ao longo desta obra, serão mencionados. Cada uma dessas leituras constitui, por sua vez, uma forma única de reelaborar, no presente, os eventos históricos, com o intuito de reinventar as conjunturas do passado. A história do “descobrimento” da América revela, contudo, aspectos intrigantes que fazem com que esse evento apresente, desde seu princípio, alguns traços díspares. Segundo a análise que dele faz Tzvetan Todorov, Cristóvão Colombo, em 12 de outubro de 1492, “descobriu a América, mas não os americanos” (1983, p. 47-48). Toda a história das ações de Colombo é 100

Nossa tradução livre: É sobre a base dessa mestiçagem fecunda e poderosa que se pode afirmar a personalidade da América Hispânica, sua originalidade e sua tarefa criadora. [...]. Sua vocação e sua oportunidade é a de realizar a nova etapa de mestiçagem cultural, que se dará a seu tempo na história da cultura. Tudo o que se distancia disso significará desviar a América Latina de sua via natural e lhe negar seu destino manifesto. 101 Nossa tradução livre: O romance histórico recupera-os em uma multidão de relatos, como é o caso, por exemplo, da figura de Cristóvão Colombo recriada por Alejo Carpentier (A harpa e a sombra), Abel Posse (Os cães do Paraíso), Augusto Roa Bastos (Vigília do Almirante).

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marcada por essa ambiguidade: a alteridade humana é simultaneamente revelada e recusada. Colombo não percebe o outro e lhe impõe seus próprios valores. Os nativos, levados pelos princípios de sua cosmovisão, não conseguem configurar de modo adequado os europeus que às suas terras chegaram, confundindo-os com divindades integrantes de sua cultura de base oral. A alteridade, sentida ou despercebida, passa a ser, desse modo, um dos muitos eixos da temática do “descobrimento” da América. Tal aspecto da empresa – e as muitas divergências que dela se originaram – é uma das razões que levam os especialistas, tanto da América como de fora dela, a diferentes posicionamentos críticos frente às realizações de Cristóvão Colombo. Resulta daí uma dialética que pode ser sintetizada nas atitudes daqueles que concebem a chegada dos europeus no continente americano como um “encontro”, um embate ou enfrentamento, entre diferentes povos e culturas e daqueles que defendem o ponto de vista de que os feitos de Colombo devem ser vistos como a “descoberta” de um “Novo Mundo”. Esses últimos veem nas realizações de Colombo uma expansão das possibilidades de realização da humanidade. Já os primeiros, não admitindo a existência da alteridade, do olhar para o “outro” nesse fato histórico, concebem a base dele apenas como o processo de “encobrimento” da realidade americana. Segundo defendem os partidários das imagens não sacralizadas de Colombo, esse ato de “encobrimento” da realidade americana foi efetuado desde o princípio, registrado já nas escritas autográficas do navegador e perpetuado na história por muitos cronistas coloniais, os quais seguiram registrando os eventos de conquista e colonização das terras “descobertas”. Do grupo dos que consideram os feitos de Colombo uma “descoberta”, surgem imagens, de acordo com os registros de Ilan Stavans, de que “it was a benign event, a true beginning that enlarged the material and spiritual resources of humankind102” (STAVANS, 2001, p. 8). Entretanto, no grupo dos que defendem a tese de que a América foi “encoberta”, já que sua realidade jamais foi evidenciada nos registros então feitos, defende-se que “Columbus opened the door to tragedy103” (STAVANS, 2001, p. 8). Essas oposições encontram espaço privilegiado, da mesma forma, na produção ficcional que busca renarrativizar ou ressignificar os eventos marcantes de 1492 e seus agentes mais diretos, entre eles, o marinheiro Cristóvão Colombo. Poucas são as tentativas já realizadas de se congregar o universo das expressões literárias que se concentram na figura de Cristóvão Colombo. Os estudiosos Calixto Oyuela (1893), Gárate Córdoba (1977) e Moses M. Nagy (1994) são alguns dos poucos que levaram a término tal propósito. Todos eles registram, porém, que, nesse intento, deparam-se com um volume imenso de 102

Nossa tradução livre: […] foi um evento benigno, um verdadeiro recomeço que ampliou o universo material e espiritual da humanidade. 103 Nossa tradução livre: […] Colombo abriu as portas para a tragédia.

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escritas, de modo que, ao concluírem seus compêndios, admitem a necessidade da adoção de um recorte na seleção realizada. Em nossos estudos, que incluem essas tentativas dos autores mecionados, verificamos, contudo, que esses diferentes autores desconhecem, entre si mesmos, as poucas propostas já realizadas nesse sentido, ou as ignoram, já que não há, por parte de cada um deles, a intenção de ampliar aquelas seleções que já haviam sido publicadas anteriormente. Isso representa um entrave à constituição de um conjunto de obras que possa servir como referencial e que permita dar uma ideia da dimensão de tal universo literário, já que uma reunião total parece ser de difícil alcance. Abordar esse universo literário, restringindo-se, a princípio, apenas à sua porção ficcional, sem, de antemão, estabelecer mais algumas delimitações é encontrar-se diante de um desafio cuja magnitude abarca obras que abrangem uma literatura destinada às mais diferentes faixas etárias, com expressões em lírica, prosa e drama, em uma infinidade de idiomas e nos mais variados gêneros. A tais categorias de escrita ficcional juntam-se outras definitivamente não ficcionais para compor o universo literário sobre Colombo. Sem estabelecer critérios rígidos entre as categorias de escrita, Moses M. Nagy lançou-se ao objetivo de buscar estabelecer uma relação de obras que abordam Colombo na poesia, no teatro, na ficção narrativa, em ensaios e estudos, biografias, bibliografias e óperas. O resultado desse trabalho encontra-se em sua obra Christopher Columbus in world literature: an annotated bibliography, publicada em 1994. Essas amplas divisões dão à obra de Nagy uma dimensão abrangente, embora isso também leve o autor a incorrer no mais comum dos problemas: muitas obras relevantes não aparecem listadas nas categorias propostas pelo pesquisador, já que ele não delimita, adequadamente, o seu campo de ação. Essa expectativa de abranger o máximo possível do mundo literário sobre Colombo revelada por Nagy já se havia manifestado anteriormente, de certa forma, nas ambições de José María Gárate Córdoba, em 1977, quando publicou a obra La poesía del descubrimiento, resultado de suas pesquisas sobre as manifestações poéticas de temas colombinos desde as suas primeiras manifestações até a atualidade do pesquisador. Gárate Córdoba explica que, impulsionado por um grande desejo de reunir as expressões poéticas do tema do “descobrimento”, pensou que realizaria algo inusitado, “[...] un tema inédito, virgen en su planteamiento. 104” Contudo, ao dar os primeiros passos significativos em sua busca nesse universo literário, deparou-se com a obra Colón y la poesía, do argentino Calixto

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Nossa tradução livre: […] um tema inédito, virgem em seus propósitos (1977, p. 11).

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Oyuela105 (1893), que já havia sido editada por três vezes. Gárate Córdoba registra, a respeito da obra de Oyuela, que, “[…] de acuerdo con la preceptiva de su tiempo, el crítico estudiaba la poesía colombina clasificándola en tres órdenes: narrativa, dramática y lírica.106” (GÁRATE CÓRDOBA, 1977, p. 12). Tal sistemática, vista sob uma perspectiva contemporânea, leva o pesquisador a ponderar que, se ela constituísse parâmetro para seu intento, os resultados seriam inexpressivos, já que tal método, hoje, é “[…] inaplicable a épocas de poemas dramáticos, narraciones líricas y las más extrañas e indefinibles combinaciones de géneros.” (GÁRATE CÓRDOBA, 1977, p. 12)107 O estudioso procede à organização de sua obra adotando outra sistemática, agregando lírica em um conjunto e drama em outro, com poucos comentários sobre a narrativa, especialmente a que se refere aos romances históricos, praticamente inexistentes em sua compilação. Essa obra, ao ser analisada por Milton (1992, p. 61-68), é vista pela pesquisadora como mais uma tentativa de louvar o “descobrimento” da América sob a ótica espanhola exaltadora das ações do Estado espanhol, confirmando uma das tendências de seleção que acima mencionamos. Contudo, vale lembrar que, nesses dois trabalhos, o de Oyuela e o de Gárate Córdoba, encontra-se reunida, especialmente, a grande maioria das realizações poéticas acerca da temática colombina na lírica e no teatro até a primeira metade do século XX. Elas são, pois, consultas obrigatórias aos que buscam as imagens de Colombo nesses dois gêneros literários que foram, no âmbito dessa temática, os de maior repercussão antes do século XX, quando o romance histórico passou a ser a forma mais expressiva da “poética do descobrimento”. É importante ressaltar que as manifestações literárias líricas e dramáticas sobre Cristóvão Colombo mencionadas nessas obras foram significativamente ampliadas pela pesquisa de Milton (1992), que agregou à listagem já feita várias obras de autores latino-americanos e deu um passo adiante: reuniu romances que versavam sobre essa temática, uma categoria literária praticamente ausente nas obras de Oyuela e Gárate Córdoba. Lírica e drama estabeleceram, portanto, no nosso entender, uma primeira fase das expressões ficcionais sobre o “descobrimento” da América, que, em palavras de Milton, “constitui uma tradição poética que se inaugura já em tempos do navegador. Ela alcança a poesia e o teatro fundamentalmente, e 105

O texto “Colón y la poesía” foi publicado primeiramente na Revista El Centenario, tomo IV, Madrid, 1893; a segunda edição, em Estudios literarios del autor, tomo IV dos “Anales de la Academia de Filosofía y Letras de Buenos Aires”, 1915; a terceira edição, em Estudios Literarios, tomo II, prólogo de Álvaro Melián Lafinur, Buenos Aires: Edição da Academia Argentina de Letras, 1943. 106 Nossa tradução livre: […] de acordo com a preceptiva de seu tempo, o crítico estudava a poesia colombina classificando-a em três ordens: narrativa, drama e lírica (GÁRATE CÓRDOBA, 1977, p. 12). 107 Nossa tradução livre: […] inaplicável a épocas de poemas dramáticos, narrações líricas e as mais estranhas e indefiníveis combinações de gêneros. (GÁRATE CÓRDOBA, 1977, p. 12).

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em menor escala o romance e a prosa em geral” (1992, p. 58). Essa tradição poética tem sido, ao longo dos anos, constante alvo de estudos da crítica literária. Ao referir-se à primeira fase das produções ficcionais sobre Colombo – lírica e teatro –, o crítico Marcelino Menéndez Pelayo (1949, p. 310), por exemplo, aponta nela certa deficiência, já que, em sua opinião, nem grandes nomes da literatura espanhola, como Lope de Vega, que se dedicou à temática, conseguiram dar-lhe um tratamento que celebrasse o tema do “descobrimento” em obras de significativo valor literário. Bem antes de Menéndez Pelayo (1949), pode-se recorrer aos estudos do crítico Lasso de la Vega (1890), que lamenta não ter havido, na poesia espanhola dos séculos XV e XVI, um poeta como Camões para celebrar os quadros dramáticos que a aventura de Colombo poderia inspirar. Menéndez Pelayo resume suas críticas à poesía do “descobrimento”, mencionando que “ni en la lírica, ni en el teatro, ni en la epopeya, se ha logrado la glorificación del Descubrimiento, el mayor hecho desde la Redención, pese a grandes esfuerzos y proyectos muy felices108” (1949, p. 310-311). Ele manifesta, por outro lado, a possibilidade de tal alcance pelo romance, modalidade literária que, em sua época, ainda não produzia obras de significativa expressão sobre Colombo. São, pois, proféticas as suas palavras ao comentar: “[…] sólo la novela – que escrita en cierto modo puede ser comentario e interpretación de la historia – sería capaz de expresarlos.109” (MENÉNDEZ PELAYO, 1949, p. 310-311). Acertados são esses pensamentos do crítico espanhol, já que, desde seus comentários até nossos dias, a produção de romances históricos voltados para o “descobrimento” da América tem sido profícua, ao menos nas literaturas hispânicas. São exemplos que comprovam as previsões de Menéndez Pelayo, as menções feitas na obra já citada de Moses M. Nagy (1994) e, também, nos estudos de Ilan Stavans (2001). Essa última obra é bastante seletiva com relação à produção romanesca, pois são mencionados apenas os romances El arpa y la sombra, de Alejo Carpentier (1979), Los perros del paraíso, de Abel Posse (1983), The memoirs of Cristopher Columbus, de Stephen Marlowe (1987), Cristóbal Nonato, de Carlos Fuentes (1987), e The crown of Columbus, de Michel Dorris e Louise Erdrich (1991). Como se pode constatar nesta nossa obra, a lista de romances que se configuram como releituras do passado de Colombo é muito mais expressiva e abrange um universo muito mais amplo do que esse apresentado nas obras já mencionadas. A figura de Colombo integra a galeria dos nomes mais comentados da história da humanidade, razão pela qual sua presença na literatura não é nenhum fato que cause estranheza. Muitas obras, em várias partes do mundo, 108

Nossa tradução livre: [...] nem na lírica, nem no teatro, nem na epopeia, conseguiu-se a glorificação do Descobrimento, o maior feito desde a Redenção, apesar dos grandes esforços e projetos muito felizes. 109 Nossa tradução livre: […] somente o romance – que escrito em certo modo pode ser comentário e interpretação da história – seria capaz de expressá-los.

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recriam ou aludem ao marinheiro e suas aventuras. Esse acervo poético inclui realizações dentro dos mais variados gêneros, como a lírica, o teatro, a ópera – e em todas as possíveis confluências dessas em obras híbridas – e, mais recentemente, a narrativa novelesca. Nela, podemos observar inúmeras posturas no tratamento poético dado ao fato e sua personagem principal. Essas posturas vão desde a intensa exaltação e louvação do “herói” Colombo e suas realizações até as severas críticas e a tons de pessimismo e desencanto. A evolução poética do tema do “descobrimento” da América apresenta diversas fases nas quais se destacam, a princípio – como já mencionamos –, a lírica e o teatro; porém, é ao próprio Colombo que se atribui seu início, pois o valor poético do Diário é reconhecido tanto pela história, como apontamos anteriormente, como pela crítica literária. O crítico Marcelino Menéndez Pelayo (1925), em seus estudos sobre o teatro de Lope de Vega – o qual inclui a obra dramática intitulada El Nuevo Mundo descubierto por Cristóbal Colón – registra, a respeito do navegante, o fato de […] haber sido él mismo su primer historiador en su diario y sus cartas, donde no sólo se admira la espontánea elocuencia de un alma inculta, a quien grandes cosas dictan grandes palabras, levantándola a alturas superiores a toda retórica por el poder de la emoción sincera, sino que aparece el hombre entero, con los complejísimos rasgos de su personalidad110. (MENÉNDEZ PELAYO, 1949, p. 310).

Quanto à qualidade dessa primeira fase da “poética do descobrimento” – lírica e teatro –, o crítico aponta certa deficiência, já que nem Lope de Vega conseguiu dar ao tema um tratamento poético sobressalente. Essa fase da poética colombina foi analisada, também, pelo crítico Angel Lasso de la Vega, em 1890, quando buscou resumir a principal bibliografia sobre o tema. Em relação à qualidade das obras que compõem as primerias expressões literárias da “poética do descobrimento” os dois críticos são unânimes. Lasso de la Vega (1890) lamenta que Colombo não tenha sido celebrado em versos como os de Camões e Menéndez Pelayo (1949, p. 310311) registra que, em relação a essa poética, ocorre “[…] uno de los casos en que la sublime realidad histórica oprime y anonada la invención poética, sin que la fantasía pueda refugiarse en la penumbra de la leyenda, a la cual sólo convienen los tiempos remotos, porque la Historia es de ayer.111” 110

Nossa tradução: […] haver sido ele mesmo seu primeiro historiador em seu Diário e suas cartas, onde não somente se admira a espontânea eloquência de uma alma inculta, a quem grandes coisas ditam grandes palavras, levantando-a a alturas superiores a toda retórica pelo poder da emoção sincera, mas, sim, que aparece o homem inteiro, com os complexíssimos traços de sua personalidade. 111 Nossa tradução: […] um dos casos em que a sublime realidade histórica oprime e anula a invenção poética, sem que a fantasia possa refugiar-se na penumbra da lenda, à qual só convêm os tempos remotos, porque a História é do passado.

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Esse último crítico, entretanto, faz também algumas conjecturas sobre as possíveis causas que possam ter limitado o alcance poético do tema que envolve o “gran poeta”, como chama a Colombo. Em suas palavras: “[…] el conflicto fue con la naturaleza y no con los hombres y ese género de luchas no sirven para el teatro. Pueden reflejarse de algún modo en los raptos y visiones de la poesía lírica y lograr condensar la visión en un momento de la vida del gran poeta. 112” (MENÉNDEZ PELAYO, 1949, p. 311). Ao estabelecer um quadro sumário de algumas das realizações poéticas a respeito de Cristóvão Colombo, Heloisa Costa Milton (1992, p. 61-68), em sua tese As histórias da História: retratos literários de Cristóvão Colombo, utiliza-se do acervo de Gárate Córdoba – basicamente obras de poesia e teatro da literatura europeia, com raras exceções – e amplia as manifestações literárias em torno da figura de Colombo, alcançando o ano de 1992. Nesses dois trabalhos, que intrinsecamente remetem ao de Oyuela (1892), encontram-se reunidos, especialmente, a grande maioria das realizações poéticas acerca da temática colombina na lírica e no teatro, sendo consultas obrigatórias aos que buscam as imagens de Colombo nesses dois gêneros literários. Aos quadros reunidos por Gárate Córdoba (1977) e Heloísa Costa Milton (1992), agregaríamos apenas as referências aos conquistadores que faz Pablo Neruda (1950) em sua obra Canto General; a obra La comedia española, de Jaime Silva (1982), representada em 1992, nas comemorações dos 500 anos de “descobrimento” da América; o conto escrito por Salman Rushdie em sua obra East. West. (1994) intitulado “Cristóvão Colombo e rainha Isabel de Espanha consumam seu relacionamento”, e a peça Gesta descubridora (2003), de Francisco Carrasco. Nesse sentido é que, nesta obra, buscamos, em relação a essa primeira fase da poética colombina, somente apontar fontes referenciais que possam auxiliar a outros pesquisadores que se interessam por manifestações poéticas a respeito de Colombo nesses gêneros literários. Justificamos a opção por dois motivos principais: o primeiro refere-se à extensão e abrangência que esta obra almeja, ou seja, buscamos retratar algumas imagens ficcionais do marinheiro em romances híbridos de história e ficção – romances históricos –, não querendo ser definitivos em nenhum momento ou aspecto. Para tanto, necessitamos de um método de abordagem do texto e de uma teoria que o sustente, que difere daquelas que parecem mais apropriadas para a análise do texto lírico e do texto dramático. O segundo é porque essa primeira fase – compreenda-se, aqui, as manifestações artísticas de temas colombinos dentro do campo da poesia e da arte dramática – já possui estudos relevantes que, não só os reúnem, mas, também, comentam-nos e os analisam, 112

Nossa tradução: […] o conflito foi com a natureza e não com os homens e esse gênero de lutas não servem para o teatro. Podem refletir-se de algum modo nos raptos e visões da poesia lírica e lograr condensar a visão em um momento da vida do grande poeta.

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dos quais nos valemos, a seguir, para indicar caminhos e outras possibilidades de aproximação ao tema da “poética do descobrimento”. Gárate Córdoba, em seus estudos de 1977, aponta, no gênero romanesco, apenas a existência da obra Cristóbal Colón, de Ximénez de Sandoval, de 1963. O autor ainda faz a ressalva de que essa será incluída em seus estudos pelo que apresenta de lírico e não de biografia romanceada. A obra de Ximénez de Sandoval está incluída, também, nos comentários da tese de Heloísa Costa Milton (1992), juntamente com outros romances hispânicos listados, dos quais a autora selecionou quatro para compor seu corpus de análise sem, porém, deter-se nos demais. Assim, além dos romances analisados na tese de Milton (1992), interessa-nos um estudo específico e mais abrangente sobre as manifestações de Cristóvão Colombo como personagem romanesca. Baseado nesses registros de pesquisas já realizadas é que consideramos importante que se faça também um estudo mais detalhado das manifestações da poética do “descobrimento” no gênero romesco, incluindo-se nele obras que tomam como matéria essencial para a diegese os eventos vivenciados por Colombo em 1492, sem se deter naquelas que remetem ao “descobrimento” da América e a seus protagonistas de forma aleatória, secundária ou só alusiva. Os trabalhos aqui reunidos, circunscritos ao universo romanesco que relê o passado de Colombo, voltam-se, de uma ou outra forma, para as dicotomias que constituem o emblemático universo literário que trata do “descobrimento” da América, cujas ocorrências mais significativas registramos nesta obra. Ao nos limitarmos às expressões no campo do romance sobre a temática do enfrentamento da Europa com a América e sobre Cristóvão Colombo, estabelecemos um recorte significativo dentro desse universo poético, no qual todos os gêneros e formas literárias podem ser encontrados. Contudo, a delimitação proposta neste livro leva-nos a um conjunto de obras que, necessariamente, deve ser novamente restringido, pela variedade que o romance apresenta quanto à exploração das múltiplas possibilidades de criação ficcional envolvendo os eventos históricos de 1492, a que se denomina “poética do descobrimento”. Dentro dessa nova perspectiva, adotamos, como critério básico de seleção, os estudos de Mata Induráin (1995, p. 45): narrativas nas quais se evidencia uma conveniente proporção de ambos os materiais, histórico e ficcional, e nas quais a obtenção desse equilíbrio faz com que sejam um romance histórico e nenhuma das outras categorias de escritas híbridas de história e ficção. Valemo-nos, para tanto, também das obras de Moses M. Nagy (1994) e Ilan Stavans (2001) que, em parte, já mencionamos, pois nelas há referências a alguns dos romances que aqui reunimos. Seguimos os critérios de abordagem ao mundo ficcional referente ao “descobrimento” da América e seu agente europeu mais direto, Cristóvão Colombo, apontados na introdução deste estudo, e as delimitações acima referidas, para chegarmos ao conjunto de obras que elencamos adiante. 112


Elas, quando não enfocam diretamente a viagem iniciada em 3 de agosto de 1492 e concluída em 15 de março de 1493, voltam-se para as circunstâncias imediatamente anteriores ou posteriores a esse período. Cristóvão Colombo, quando não é protagonista, é presença marcante que promove, por seus atos, as demais ações narradas nas obras. Assim, romances nos quais o encontro, o enfrentamento e os embates entre os continentes, em 1492, e Colombo são apenas mencionados não se encontram listados. Cabe, também, ressaltar que se encontram contempladas, nessas listagens, romances oriundos das três Américas e que abarcam as mais variadas modalidades de romances históricos em torno da temática, bem como as produções espanholas nesse contexto. Seguramente, esses conjuntos de obras romanescas não são totalizadores, nem temos a pretensão de que o sejam; porém, ao abordá-los, consideramos possível atingir nossos objetivos. Nesse intento, faz-se necessário, outra vez, estabelecer um limite de abrangência, pois, tais realizações se dão na literatura de vários países de diferentes línguas, e sua reunião total tornar-se-ia um novo desafio, um novo trabalho. Apontamos, assim, para nos manter restritos aos propósitos primeiros, que somente abordamos romances que, pelo teor e forma com que tratam os eventos históricos referentes às ações desenvolvidas em 1492 em relação à viagem de Colombo às Índias ocidentais e seus protagonistas, revelam-se manifestações exemplares das tendências ideológicas e discursivas da tradição, desconstrução e mediação. Essas tendências constituem a própria trajetória do romance histórico do Romantismo até nossos dias. As múltiplas imagens que se depreendem do marinheiro, bem como as distintas visões a respeito de seu empreendimento – tanto na literatura hispanoamericana, estadunidense, brasileira e espanhola – em cada uma dessas manifestações romanescas, mostra a importância que o tema adquiriu nas últimas décadas, bem como o tratamento estético diferenciado dado à “poética do descobrimento” por seus distintos expositores. Aqui, procuramos mostrar que a “poética do descobrimento” é um espaço exemplar para revelar expressões artísticas que buscam, por um lado, renarrativizar os eventos e seus agentes de forma laudatória (tradição) – constituindo-se no que classificamos como o primeiro grupo de romances históricos – ou, por outro lado, ressignificar esses eventos e seus agentes (desconstrução e mediação) – conformando o segundo grupo de romances históricos de cunho crítico. Ambos os grupos de imagens escriturais de Cristóvão Colombo voltam-se aos aspectos anteriormente registrados no discurso historiográfico sobre as ações que geraram os enfrentamentos entre autóctones das terras americanas e os europeus que, juntos e após as ações de Colombo, empreenderam a conquista e a colonização do território, anexando parte dele às diferentes monarquias europeias a quem eles serviam.

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Valemo-nos, para tanto, de alguns dos romances sobre a “poética do descobrimento” já elencados na tese de Heloisa Costa Milton (1992) e outros relacionados em nossos estudos sobre o romance histórico para destacar uma seleção de obras que recriam, sob distintas óticas e perspectivas, os fatos relacionados aos eventos protagonizados nos registros da história por Cristóvão Colombo. Para termos uma ideia mais precisa das ocorrências escriturais na ficção em contextos geográficos, históricos e culturais distintos, vamos abordar esse universo congregando as expressões romanescas da temática em questão no âmbito estadunidense, no hispano-americano, no brasileiro e no espanhol. Essa separação não é desinteressada, pois nossa intenção é mostrar a intensidade com que a temática se faz presente em cada um desses espaços e a ideologia que perpassa essa produção literária. Isso nos é possível, uma vez que, para alcançarmos a visualização desses aspectos da produção, adotamos a sistematização de classificar essas ocorrências segundo a trajetória das fases e modalidades do romance histórico em geral. Para fechar esta nossa obra, abrimos um novo oceano de pesquisa e reflexões: o universo ficcional de autoria feminina sobre a “poética do descobrimento”, como se pode averiguar na sequência.

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TERCEIRA PARTE 14 de fevereiro de 1493. Um ponto qualquer do oceano Atlântico, na altura das Ilhas Canárias. 18h30m. Findas as manobras de ancoragem para o pernoite e alimentado, o Almirante se dirige, sisudo e pensativo, para sua cabine, no alto do castelo da popa. Já no convés, uma lufada da fria brisa marinha, própria a esta época do ano no hemisfério norte, faz com que, instintivamente, aconchegue o abrigo a seu corpo. A lua cheia surgindo no horizonte vai cobrindo o mar de prata e espalha miríades de espelhos multipartidos por sua superfície serena. A claridade vacilante da lamparina produz um contínuo jogo de luz e sombra sempre renovado, projetando-se pelo exíguo espaço de seu aposento, criando e recriando formas, fantasmas e imagens, entrecruzam-se, aproximam-se e se repelem as ideias, as lembranças e as preocupações que assaltam o Almirante, sentado diante do pergaminho em branco. A desafiá-lo, duas tarefas distintas e complementares: informar o destino de sua expedição e justificar o fracasso total de sua missão de chegar às Índias, minimizando-o pelo relato das novidades encontradas. Duas tarefas eminentemente verbais... As ricas e ativas cidades, com seus navios carregados de tesouros, os palácios de telhados de ouro, os mantos ornados de seda e cetim, os hábitos exóticos e as demais maravilhas lidas e relidas nos relatos das viagens de Marco Pólo e em outras obras que tratavam da China, do Japão e da Índia, os feitos heroicos e maravilhosos das novelas de cavalaria e as descrições eloquentes e hiperbólicas, características das crônicas historiográficas do século XV, povoam seu imaginário, constituem-se em sua referência imediata e se configuram como instrumento perfeito para o enfrentamento de seu desafio. Por sua mente, desfilam a ansiedade e a tranquilidade dos primeiros dias da partida de Palos. As reclamações e o medo crescente da tripulação, à medida que se aprofundavam em sua incursão pelo Atlântico. Os claros sinais de que se aproximavam de terra firme, o choque e o deslumbramento provocado pelo contato com terras tão aprazíveis e férteis, habitadas por povo tão estranho, com hábitos tão exóticos, como o da nudez, e uma língua desconhecida pelos intérpretes da expedição – conhecedores das línguas dos outros índios que esperava encontrar. E é deste cadinho – formado totalmente no âmbito exclusivo da visão europeia, balizada pela retórica do maravilhoso, própria à crônica historiográfica renascentista – que, com sua letra firme e desigual, começa a construir a imagem e a identidade americana. (TROUCHE, 2006, p. 17-18).

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3 - A TRAVESSIA DE CRISTÓVÃO COLOMBO: 1492 – DO OCEANO AINDA TENEBROSO DA EUROPA ÀS PROMISSORAS TERRAS AMERICANAS O contato inesperado de Colombo com uma desconhecida terra, na madrugada de 12 de outubro de 1492, com sua natureza exuberante em espécies de fauna e flora e seus habitantes, vivendo em estado natural, quando imaginava haver atingido seu grande objetivo de chegar a Cipango ou Cathay, foi, seguramente, marcado pelo signo dos equívocos. Equívocos que se multiplicaram em uma escala sem dimensões, uma vez que os nativos, da mesma forma como os europeus, passaram a ver os estranhos seres vindos do mar sob configurações distanciadas da realidade que os cercava. Essas impressões equivocadas de um e outro acabaram se perpetrando sob diferentes formas e gerando novas incoerências na percepção do outro: Colombo registra as suas em seu Diário de bordo – escrito durante todo o trajeto de travessia do Atlântico e retorno à Europa, bem como em uma extensa carta113 redigida logo de seu retorno, endereçada aos Reis Católicos. Essa carta na qual, pela primeira vez, mencionava-se, oficialmente, a existência de terras além do Atlântico, via oeste, foi impressa em 1493 e se espalhou pelos reinos europeus, noticiando os feitos de Colombo e garantindo à Espanha a posse do território. Assim, Colombo torna-se o primeiro cronista das Índias. Foi ele, desse modo, o responsável pela configuração primordial – no imaginário do povo europeu do final do século XV – das terras e gentes com as quais ele e sua tripulação contataram em sua primeira travessia ao Atlântico. Segundo analisa Imbert (1964, p. 18), “el genovés Colón se puso a describir desgarbadamente lo que veía. Pero apenas vio América: creía estar navegando frente Ásia; además, la codicia del oro lo enceguecía. Debió de sentirse desencantado ante su propio descubrimiento: islas pobres, pobladas de hombres desnudos.114” A tais descrições, Colombo teve de dar um acentuado tom de entusiasmo, para garantir o sucesso de sua expedição, embora tudo lhe provasse o contrário do que buscava, pois, de acordo com Alcibíades Delamare (1936, p. 72), Colombo mais parecia um mercador destacando, com cores e paisagens exuberantes, o “produto” de sua empresa. A figura, os feitos e os registros do 113

O conteúdo dessa Carta encontra-se disponível, entre outros vários sites, em: https://jornalggn.com.br/noticia/carta-de-colombo-anunciando-o-descobrimento-da-america/ Acesso em: 27 dez. 2020. 114 Nossa tradução: O genovês Colombo pôs-se a descrever desalinhadamente o que via. Mas mal via a América: acreditava navegar frente à Ásia; além disso, a cobiça do ouro enceguecia-o. Deve ter se sentido desencantado diante de seu próprio descobrimento: ilhas pobres, povoadas de homens nus.

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navegante têm essa característica peculiar de proliferar imagens paradisíacas do espaço novo que tinha a sua frente. Não nos é difícil imaginar que a notícia da chegada de homens estranhos às praias caribenhas tenha ocorrido da mesma forma entre as tribos autóctones das ilhas por ele contatadas. Imagens dos europeus devem ter atravessado águas e montanhas, de pirágua em pirágua, de boca em boca, de ilha em ilha, nas vozes dos mensageiros, até chegar aos mais inusitados recônditos das terras firmes do continente, espaço que Colombo só atingirá em sua terceira viagem à América115. 115

Colombo realizou, ao longo dos anos de 1492 a 1504, quatro viagens de travessia ao Atlântico sem conseguir, em qualquer uma delas, atingir seus objetivos concentrados na busca pela via de acesso às terras de Cathay e Cipango e a exploração do ouro, das pedras preciosas ou mesmo das especiarias anunciadas desde a primeira viagem. Resumidamente temos: Primeira viagem (14921493): saída do Porto de Palos, em 3 de agosto de 1492, e chegada à ilha de Guanahaní (São Salvador), em 12 de outubro de 1492. Retorno à Espanha em 15 de março de 1493, com o pleno reconhecimento de sua proeza pelos Reis Católicos. Segunda viagem (1493-1496): Colombo saiu da Espanha, em setembro de 1493, com uma frota de 17 naus e mais de 1000 homens. Nessa expedição, cuja finalidade era iniciar a colonização, também se trouxeram à América os primeiros animais domésticos da Europa para o nosso continente. Fundaram-se os dois primeiros assentamentos espanhóis: Navidad e Isabela, na Hispaniola (República Dominicana). Nessa viagem se exploraram as costas de São João Batista (Porto Rico) e Santiago (Jamaica). Para garantir algum lucro dessa viagem, Colombo decidiu escravizar indígenas e comercializá-los na Europa. Isso desagradou, profundamente, a rainha Isabel, em 1496. Terceira viagem (14981500): Iniciada em maio de 1498, essa viagem de Colombo encontrou os colonos da ilha Hispaniola (República Dominicana) em estado de penúria e em guerra contra os nativos. As incursões de Colombo pela área levaram-no, nessa viagem, a atingir, pela primeira vez, as terras firmes do continente, chegando às costas da Venezuela, à ilha de Trinidad e à foz do rio Orinoco. Ao retornar à Hispaniola, a insatisfação no assentamento era generalizada: a abundância do ouro não existia, a escravização dos nativos era problemática, a conversão ao cristianismo não era a esperada. Tudo isso levou a coroa espanhola a enviar à ilha um inquisidor real: Francisco de Bobadilla. Esse, no exercício de seu poder, prendeu Colombo e o enviou, algemado, de volta à Espanha, como prisioneiro, sendo ele libertado, algum tempo depois da chegada, pelos Reis Católicos. Quarta viagem (1502-1504): nessa última viagem do marinheiro à América, Colombo explorou as costas dos atuais territórios de Honduras, Nicarágua, Costa Rica e Panamá. Ao regressar à Espanha, em 1500, sem haver atingido os objetivos propostos, depara-se, ainda, com a morte da rainha Isabel (26/11/1504), ficando, assim, totalmente, desprotegido. Colombo, abandonado por toda a corte e outras pessoas influentes da época, faleceu, em 20 de maio de 1506, na cidade de Valladolid. Informações sobre esses eventos podem ser facilmente encontrados na internet. Destacamos aqui alguns sites consultados para reunir as informações expostas: https://ensinarhistoriajoelza.com.br/linha-do-tempo/cristovao-colombo-chega-a-america/ Acesso em: 27 dez. 2020. https://mundoeducacao.uol.com.br/historia-america/cristovao-colombo.htm Acesso em: 27 dez. 2020. https://www.ricardoorlandini.net/hoje_historia/ver/792/cristovao-colombo-deixa-a-espanhaem-sua-terceira-viagem-de-exploracao-as-americas Acesso em: 27 dez. 2020. SILVA, Daniel Neves. "Descobrimento da América"; Brasil Escola. Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/historia-da-america/descobrimento-da-america.htm. Acesso em: 27 dez. 2020.

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Ao contrário do que se deu na Europa, dessas experiências dos autóctones, não há registros escritos que perduram pelos séculos que nos separam desse episódio. Ao revés do que se deu nas terras europeias, nas quais, conforme assinala Imbert (1964, p. 18-19), “al leer el relato de Colón los europeos confirmaron viejos sueños utópicos y pudieron dar sustancia a dos de los grandes temas renacentistas: el hombre natural, feliz y virtuoso, y la naturaleza, pródiga como un paraíso116”, sabe-se que nas terras do nosso continente, a chegada dos europeus significava o advento de um mau presságio. Esses são, portanto, os aspectos presentes na “poética do descobrimento” desde suas primeiras manifestações no final do século XV – com as imagens escriturais autográficas de Colombo – e do século XVI em diante – em formas dramáticas e líricas – bem como nas produções romanescas do século XIX, que se estendem à contemporaneidade, como temos apontado ao longo desta obra. As primeiras manifestações romanescas da temática na América são, conforme expusemos anteriormente, transposições do modelo canônico romântico de romance histórico cultivado na Europa no início do século XIX. A primeira delas está ancorada nos parâmetros clássicos scottianos que deram forma à primeira modalidade do romance histórico. Em seguida, as mesmas alterações na modalidade clássica scottiana que ocorreram gradativamente na Europa – e que deram origem à segunda modalidade do romance histórico, a tradicional – encontraram em solo americano fertilidade e ampla aceitação. Suas manifestações primeiras em solo americano restringem-se à porção norte, anglo-saxônica, inserindo-se numa tradição que busca, à imitação do discurso histórico europeu, louvar as ações do idealizador do projeto de travessia do Atlântico, assim como os que o apoiaram para concretizá-lo. Desse modo, os Estados Unidos da América tornam-se o berço no qual nascem as modalidades americanas acríticas do romance histórico – a clássica e a tradicional – voltado aos eventos que levaram os europeus e os nativos americanos ao primeiro encontro, em 1492, e aos consequentes enfrentamentos daí em diante ao longo dos processos de conquista e colonização do território pelas coroas europeias. Tais imagens escriturais primeiras de Colombo na ficção americana dão-se, pois, sob as premissas do Romantismo, inseridas no primeiro grupo de obras híbridas de história e ficção que conformam as modalidades acríticas do romance histórico. Nesse sentido, cabe, porém, esclarecer que o Romantismo, em suas bases, não é, de forma alguma, um movimento de conformismo e submissão; pelo contrário, nasce como reação de rebeldia e inconformidade contra a mecanização do mundo e a exploração do homem – consequências da 116

Nossa tradução: […] ao ler o relato de Colombo os europeus confirmaram velhos sonhos utópicos e puderam dar sustância a dois dos grandes temas renascentistas: o homem natural, feliz e virtuoso, e a natureza, pródiga como um paraíso.

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Revolução Francesa (1789-1799) e da Revolução Industrial Inglesa, que vai de meados do século XVII e chega a alcançar o período do final da Segunda Guerra Mundial (1945) – e é um dos pontos de partida para profundos questionamentos dos povos que haviam sido dominados nas terras em que chegou Colombo em 1492. Sem restrições a campos específicos, os ideais românticos, que se rebelavam contra os novos moldes da sociedade capitalista emergente e contra o tecnicismo que dela surgia, multiplicaram-se nas mais distintas áreas como as artes, as ciências, a política, a filosofia, a religião etc. das nações europeias, contexto no qual seu aparecimento se deu em primeira instância, às longínquas extensões americanas, nas quais seus reflexos também propunham profundas transformações nas nações latino-americanas recém-independentes ou, no caso dos Estados Unidos, em processo de estabelecimento das raízes identitárias. Essas transformações históricas, ao se tornarem substratos da ficção híbrida, ou seja, do romance histórico, foram evoluindo de tal modo que – ao passarem pelas distintas fases literárias vinculadas à periodização europeia, especialmente dos países latino-americanos, cujos produtos culturais sempre foram considerados periféricos – acabaram por se constituir, em terras antes colonizadas, modelos de escrita literária até mesmo para os países considerados mais adiantados nos processos independentistas. As nações americanas valem-se, até hoje, do discurso híbrido do romance histórico para resgatar grande parte de sua própria cultura, baseada na transmissão oral, nas lendas, nos vestígios culturais, nas lembranças e memórias dos mais velhos – fontes desde o princípio de sua expressão literária romanesca. A partir da metade do século XX, muitos escritores latino-americanos utilizaram-se das estratégias desconstrucionistas e mediadoras pelas quais se verifica a “destruição sistemática dos conceitos de unidade e pureza”, conforme registra Silviano Santiago (2000, p. 16) ao mencionar que a “América Latina institui seu lugar no mapa da civilização ocidental graças ao movimento de desvio da norma, ativo e destruidor, que transfigura os elementos feitos e imutáveis que os europeus exportavam para o Novo Mundo”. Entre as ações mais atuais empregadas para tal ação estão as estratégias de mediação enquanto forma de resistência capaz de produzir mudanças significativas nas condições existentes de poder e dominação ao enunciar o passado pela ficção por meio de perspectivas antes marginalizadas. As culturas periféricas, condenadas a sobreviverem em uma dimensão de fronteiras entre dominantes e dominados, acabam por produzir, na atualidade, práticas culturais de mediação para seguir garantindo seu processo de descolonização. Já entre as estratégias desconstrucionistas, destacam-se a de deslocamento, a da assimilação voraz – de forma criativa e com liberdade de escolha –, de tantas tradições literárias, culturais ou artísticas quanto possível, e pelo ritual antropófago e o jogo lúdico com o signo alheio, num processo de ressignificação paródico, carnavalizado e irônico. 120


Conforme registra Sommer (1990, p. 146), a estratégia do deslocamento já havia sido posta em prática na Argentina pela escrita de Domingo Faustino Sarmiento (1811-1888) pela inversão das polaridades entre centro e periferia. A autora relata a experiência de leitura de Sarmiento da obra The Prarie: a tale (1827), de James Fenimore Cooper (1789-1851). O autor argentino não absorve, simplesmente, de forma passiva e não crítica as imagens e representações presentes na obra de Cooper. Seu conhecimento prévio da realidade descrita pelo “mestre” possibilita-lhe uma inversão que garante ao que sofre a angústia da influência a sensação de uma experiência anterior ao do próprio imitado. Assim, na leitura de Cooper, feita por Sarmiento, esse ato mediador/deslocador, corresponde a um dilaceramento característico de autores nacionalistas latino-americanos que têm certa resistência às questões de autoria. No caso exemplar de Sarmiento, Cooper é tanto uma oportunidade para melhorar o modelo como para melhorar a si mesmo. O escritor cubano José Lezama Lima é, para Peres Firmat (1990), um exemplo de escritor que põe em prática o discurso da mediação pela assimilação voraz – de forma criativa e com liberdade de escolha – de tantas tradições literárias, culturais ou artísticas quanto possível. Desse modo, na visão do cubano, o artista latino-americano constitui o seu discurso mediador pela fusão de formas culturais nativas e estrangeiras. Lezama Lima enfrenta a angústia da influência na fronteira – não tanto pela utilização pouco convincente de um deslocamento que nega a autoridade, mas antes por um exercício de apropriação que tenta absorver e integrar o que, na cultura do outro, é-lhe útil e valioso. O discurso da mediação, para o brasileiro Silviano Santiago, efetiva-se pelo ritual antropófago e pelo jogo lúdico com o signo alheio, efetuado, entre outros meios, pelo uso da paródia e da intertextualidade. Tais empreendimentos descolonizadores da literatura latino-americana em geral integram, da mesma forma, aqueles empregados na escrita híbrida de história e ficção para garantir ao romance histórico da segunda fase – a crítica/desconstrucionista – e da terceira fase – a crítica/mediadora – as possibilidades de ressignificação do passado pela ficção na América. Assim, a reescrita carnavalizada e paródica dos eventos protagonizados por Colombo, em 1492 e nos anos seguintes, por parte dos escritores latinoamericanos, consiste, também, em reivindicar um espaço próprio nessa história. Tal intento se manifesta de forma única, singular, nas palavras de Santiago (2000), ao revelar que o escritor latino-americano já encontrou o meio e o modo de fazê-lo: Entre o sacrifício e o jogo, entre a prisão e a transgressão, entre a submissão ao código e a transgressão, entre a obediência e a rebelião, entre a assimilação e a expressão – ali, nesse lugar aparentemente vazio, seu templo e seu lugar de clandestinidade, ali, se realiza o ritual antropófago da literatura latino-americana. (SANTIAGO, 2000, p. 26). 121


Esse “ritual antropófago” vale-se, dentre outros meios, da carnavalização e da paródia. A carnavalização é - conforme o conceito que Mikhail Bakhtin (1895-1975) desenvolveu ao longo de sua obra A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais (1987) – marcada pelo riso, pela subversão dos valores oficiais, pelas exagerações humorísticas, pelo caráter renovador e contestador da ordem vigente, pela ênfase nas funções do corpo, desde o sexo às necessidades fisiológicas que, em determinados momentos, chega a confundir-se com o grotesco e com a caricaturização. A paródia, como forma de apropriação do discurso alheio, converte-se na retomada de textos anteriores, como uma relação transtextual, porém, diferenciando-se à medida que esta retomada tem como objetivo não apenas estabelecer as relações com textos precedentes, mas, como comenta Hutcheon (1991), reinterpretá-los pela sua reescrita crítica. Essa reelaboração paródica pode inverter padrões, desestabilizar, desconstruir, distorcer, ridicularizar ou simplesmente dar aos textos primeiros uma nova e surpreendente versão, efeito alcançado pela cuidadosa seleção dos signos linguísticos e pela dimensão simbólica das palavras. Segundo Hutcheon (1991), essa forma de repetição com distância crítica, que enfatiza mais a diferença do que a semelhança, apresenta como componente estrutural a ironia, gerando um texto portador, paradoxalmente, de repetição e diferença, de admiração e distanciamento, cujo objetivo é dessacralizar um texto anterior. Em muitas obras, esses recursos ainda se aliam à polifonia, à dialogia e à intertextualidade, que também se tornam traços marcantes desse tipo de escritura de caráter metaficcional, presentes na segunda fase do romance histórico, instituída pela escrita crítica/desconstrucionista latino-americana. O romance, como leitor da história, em nosso caso, a das ações de Colombo em especial, apresenta manifestações que alcançam, além da Espanha e Portugal, as três Américas em expressões que contemplam as cinco distintas modalidades de romances históricos. Conhecer algumas dessas produções é, pois, a próxima tarefa à qual nos lançamos. Abarcamos, nas abordagens à arte literária que seguem, diferentes dimensões sob as quais as ações de Colombo são ficcionalmente reconfiguradas. Começamos nossa exploração desse vasto oceano de imagens ficcionais pelo espaço no qual nasce, antes da metade do século XIX, a primeira expressão romanesca que tematiza o encontro entre América e Europa: a literatura romântica dos Estados Unidos da América. Em seguida, passamos ao espaço da, então, à época dos acontecimentos celebrados na ficção de 1492, metrópole colonizadora: a Espanha, para onde se estendeu a temática a partir de sua gênese e cultivo estadunidense. Isso, contudo, ocorre apenas no final da segunda década do século XX, com celebrações ficcionais que exaltaram o empreendimento dos Reis Católicos, Isabel e Fernando, e as ações colonizadoras dele resultantes.

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Uma vez que cruzamos o oceano, devemos regressar ao continente colonizado para, nele, também conhecermos algumas das manifestações latinoamericanas das expressões romanescas no contexto da temática que ressignifica a chegada dos europeus e a posse do território habitado pelos autóctones de diferentes etnias, línguas, crenças e tradições. As produções romanescas que a seguir abordamos se dão dentro do universo linguístico de língua inglesa, castelhana e portuguesa. Tal variedade leva em considerações as palavras de Stavans (2001, p. 50), que menciona, em relação às obras da “poética do descobrimento”, que “three essential elements of these fictions are the tongue, time, and country in which they were written. The scope, ideology, and aesthetic components of each of these titles ultimately depend on these elements. 117” Dessa maneira, vamos navegar pelo oceano que há entre nós. Abrangemos, assim, um período que vai das primeiras produções romanescas da “poética do descobrimento” no âmbito estadunidense – inserido no auge do Romantismo –, passando, em seguida, às expressões da literatura espanhola do século XX nesse universo colombino para, então, expormos as ressignificações mais conhecidas da literatura hispano-americana – inseridas no contexto de aparecimento, em 1949, do novo romance histórico latino-americano –, estendendo-se até as produções que se seguiram às comemorações dos 500 anos da empresa de Colombo e, finalmente, pomos os pés na literatura brasileira que, paradoxalmente, reaviva, no século XXI, as exaltações a Colombo, como fizeram os escritores estadunidenses do século XIX, no Romantismo. Nossa última ancoragem será na literatura romanesca da “poética do descobrimento” efetuada na escrita de autoria feminina, porque consideramos essa parcela da ficção sobre os eventos de 1492 a menos conhecida e explorada na crítica que se volta à temática. Isso contribui para se obter uma visão ampla das leituras da história pela ficção e para conferir como a temática colombina revela-se circular: da renarrativização acrítica do passado pelo romance histórico clássico e tradicional às suas ressignificações possíveis na ficção pelas modalidades críticas do gênero, mas, também, com o retorno constante da celebração do “herói” e seus feitos.

3.1 O BERÇO FICCIONAL ANGLO-SAXÔNICO AMERICANO DE COLOMBO: VOZES SCOTTIANAS ATRAVESSANDO OCEANOS PRAYER OF COLUMBUS All my emprises have been fill’d with Thee, 117

Nossa tradução: três são os elementos essenciais dessa ficção: a língua, o tempo e o país no qual a obra foi escrita. O conteúdo, a ideologia e os componentes estéticos de cada um desses títulos são, ultimamente, dependentes desses elementos.

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My speculations, plans, begun and carried on in thought of Thee. Sailing the deep or journeying the land for Thee; Intentions, purports, aspirations mine, leaving results to Thee. O I am sure they really came from Thee; The urge, the ardor, the unconquerable will, The potent, felt, interior command, stronger than words, A message from the Heavens whispering to me even in sleep, These sped me on. (WHITMAN, 1980, p. 328-330).

Traçar uma trajetória das imagens escriturais romanescas de Colombo, inseridas na “poética do descobrimento”, na América é, também, voltar-se para o próprio passado de Colombo, cuja história, de acordo com Moses M. Nagy (1994), vai do esquecimento à ascensão, do século XVI aos nossos dias. O pesquisador sumariza essa trajetória ao expor que a história oficial do século XVI preferiu ficar em silêncio com relação ao navegante, fato que se intensificou no século seguinte, no qual Colombo foi praticamente esquecido. Já no século XVIII, houve uma grande ascensão dos temas colombinos e as ações do navegador foram promovidas em todas as partes. Especialmente nos Estados Unidos, ele foi, nessa época, proclamado o “pai fundador da nação”, conforme atesta Ilan Stavans (2001). Colombo, nesse sentido, foi exaltado pelos filósofos franceses como o “descobridor” dos indígenas americanos, protótipos do bon sauvage, do homem da natureza. E, finalmente, essas imagens conseguiram despertar a consciência dos espanhóis, quando os historiadores se deram conta de que foi Colombo quem abriu o primeiro capítulo da história moderna da Espanha. O século XIX foi o momento em que Colombo foi posto no mais alto pedestal em imagens escriturais que geraram o que, hoje, podemos denominar “um oceano entre nós”, resultando num conjunto imenso de imagens contraditórias e intrigantes. Enquanto nos séculos XVI e XVII a travessia de Colombo ao Atlântico constituía tema de poetas e dramaturgos, especialmente os europeus, no século XVIII, os estadunidenses fazem do marinheiro o protagonista de seus versos. Entre esses está Philip Morin Freneau 118, para quem, de acordo com os registros de Stavans (2001, p. 59), Colombo foi a figura histórica favorita, pois Freneau o celebrou em seus versos como o “pai fundador da República”. 118

Philip Freneau dedicou a Colombo vários poemas e, entre os mais famosos, estão Columbus to Ferdinand (1770), Discovery (1772), The rising glory (1786), The picture of Columbus: the Genoese (1788), os quais retratam Colombo como o máximo herói, uma ponte entre o “Velho” e “Novo Mundo”; um homem íntegro e de apurado raciocínio, a quem o poeta confere atributos quase divinos. Os poemas podem ser encontrados em FRENEAU, P. The poems of Philip Freneau, poet of the American Revolution. Ed. Fred Lewis Pattee. Princeton. N. J.: The N. J. University Library, 1902-1907.

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Nos séculos seguintes, com a maior importância que a efeméride passa a ter para americanos e europeus e pelo surgimento do romance histórico, cresce o interesse de romancistas pelas experiências de Colombo. Esses se lançam à aventura de reviver, sob as novas perspectivas que o romance histórico incute às narrativas romanescas, a primeira travessia dos europeus ao Atlântico registrada à posterioridade. Assim, a figura de Colombo faz-se um “herói”, imagem perfeita para a criação ficcional dentro dos padrões estéticos vigentes no momento. Envolta em uma atmosfera de mistério e segredos, a vida de Colombo permite ao romancista uma série de liberdades em sua configuração de “herói/modelo” sem incorrer em contradições históricas. Na poesia anglosaxônica da América do Norte desse período, a imagem de Colombo é cultivada, entre outros, por Walt Whitman 119, com o mesmo entusiasmo do século anterior, alinhando-se ao romance histórico em seu discurso enaltecedor e apologético. Outro elemento essencial à criação literária da “poética do descobrimento” é o fato de as ações de Colombo estarem situadas em um dos momentos históricos europeus mais ricos em aventuras, peripécias e “descobrimentos”. Esses aspectos criam um contexto atraente para as produções de romances históricos atrelados às características fundadoras da modalidade narrativa mista de história e ficção de Scott. Por um lado, esse contexto fornece um excelente pano de fundo, além de personagens marcantes, como os Reis Católicos e o marinheiro de origem incerta, com as quais os leitores podem se identificar; por outro, ele oferece totais condições para o desenvolvimento de uma diegese ficcional em que jovens apaixonados lutam para realizar seu desejo de união, tendo, para isso, de passar por uma série de provas para merecer tal sorte. Ao se aproximar o período das comemorações do quarto centenário da primeira viagem de Colombo à América, os romancistas estadunidenses, em especial, utilizaram-se desse passado histórico como pano de fundo para narrar suas histórias românticas. Nem na Espanha, nem em outros países da América tal tipo de produção romanesca – voltada à celebração das ações de Colombo – ocorre nesse período. Assim, são os romancistas estadunidenses que consagram, na narrativa do romance histórico tradicional acrítico, a figura do “herói”, a partir das décadas que antecipam o quarto centenário do “descobrimento” da América e, em especial, no ano da efeméride. Consolida-se, pois, o espaço privilegiado da ficção voltado às renarrativizações ficcionais dos acontecimentos vivenciados por Colombo e sua frota na primeira travessia ao Atlântico, que ocasionou o 119

Walt Whitman dedicou a Colombo, em sua obra Leaves of grass, o poema “Prayer of Columbus”, no qual o marinheiro, já velho e cansado, declama seu próprio sermão ante a face de Deus. A primeira edição dessa obra se deu em 1855, pela editora New American Library, de Nova York.

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encontro inicial entre europeus e nativos das terras desconhecidas do continente americano. Essas imagens escriturais primeiras de Colombo no romance romântico estadunidense geram a tradição da configuração heroica de Cristóvão Colombo nas narrativas híbridas de história e ficção. A corrente apologética das ações de Colombo surge, portanto, no romance histórico dos Estados Unidos, influenciada pelas obras líricas de Freneau120 (1772), Barlow (1807) e Whitman (1855), que, desde o século XVIII, celebraram a temática do “descobrimento” em seus versos dedicados ao marinheiro. Parte da produção desses autores foi inspirada, também, pela entusiástica biografia de Colombo escrita por Washington Irving, em 1827. Unidos, eles exploram a temática e o herói a fim de consolidar sentimentos de apreço ao marinheiro que abriu as portas à formação de novas nações. Tal processo se dá a partir da imigração dos europeus à América, iniciada já nas primeiras décadas após a travessia ao Atlântico realizada por Colombo em 1492 e registrada na história ocidental. No período realista, quando o romance histórico é concebido como crônica pretensa e fiel da história, Colombo, nesse contexto apologético de suas ações, é visto como exemplo de coragem e superação em obras romanescas que celebram a sua bravura e determinação. Tais modalidades de romances aparecem tanto nos Estados Unidos, na Espanha como no Brasil e se irmanam com o discurso histórico oficial que exalta e glorifica a imagem de Colombo como homem sábio, eloquente, temente a Deus, servo fiel dos grandes monarcas espanhóis. A América Hispânica, contudo, mantém-se reservada com relação à recriação das aventuras de Colombo nesse período. Buscamos, aqui, demonstrar que o sucesso alcançado pelos novos paradigmas de Scott na Europa ecoou também em nosso continente, especificamente na América do Norte anglo-saxônica, tendo como seu grande representante James Fenimore Cooper. O romancista estadunidense inaugurou, em 1840, segundo nosso parecer, a linha narrativa exaltadora da “poética do descobrimento” no que se refere às suas composições romanescas, ao configurar sua obra Mercedes of Castile: or, the voayage to Cathay segundo os paradigmas estabelecidos pelas produções clássicas do gênero, inauguradas por Walter Scott. Origina-se, a partir daí, toda uma produção apologética na tradição romanesca voltada à ficcionalização das ações de Colombo. Ela se instaura nas letras anglo-saxônicas norte-americanas e cria uma tendência que, segundo vimos, dá sequência ao discurso exaltador da lírica estadunidense do século XVIII e estende-se a outras literaturas e épocas, como é o caso da Espanha e do Brasil do século XXI. 120

Jorge Luis Borges, em colaboração com Esther Zemborian Torres, menciona, em An introduction to American Literature (Trad/Ed. L. C. Keating; R. O. Evans. Lexington: University Press of Kentucky, 1971), que este tema é o legado de Freneau para a literatura norte-americana.

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No universo das produções anglo-saxônicas que abaixo listamos, em nosso Quadro II, constata-se a abordagem à temática do “descobrimento” em romances já na primeira metade do século XIX. Tais imagens escriturais de Colombo empenharam-se na construção de uma identidade nacional, erigindo imagens heroicas de Colombo como modelo de homem para a nova sociedade, constituída a partir das suas ações. Essas imagens idealizadas, mitificadas e exaltadoras das ações realizadas pelo marinheiro, que possibilitou os primeiros contatos entre a Europa e a América, integram-se ao imaginário romântico estadunidense ao celebrarem o self-made man como o sujeito ideal para alavancar o crescimento e a imposição de uma nação próspera e soberana, já que, nessas imagens do marinheiro ficcionalizado, encontravam-se todos os traços do “destino manifesto” para a ascensão da nação estadunidense. Essa linha edificadora das ações de Colombo estende-se às produções contemporâneas, nas quais essas visões sacralizadas passam a conviver com outras desmistificadoras dessas imagens heroico-místicas do navegador. Vejamos, pois, à continuação, a lista de romances estadunidenses sobre o “descobrimento” da América. Quadro 2 - Romances estadunidenses que inauguram a “poética do descobrimento” na prosa. 3 FASES DO ROMANCE HISTÓRICO 1- Fase: acrítica De 1814, com Waverley, de Scott, até os nossos dias

2- Fase: crítica/desconstrucionista De 1949, com El reino de este mundo, de Alejo Carpentier, até os nossos dias

3- Fase: crítica/mediadora Desde a década de 1980, com as reações do pósboom, até os nossos dias

5 MODALIDADES DE ROMANCES HISTÓRICOS FASE ACRÍTICIA FASE CRÍTICA 1- Romance 2- Romance 3- Novo ro4- Metafic- 5- Romance hishistórico histórico tradimance hisção historio- tórico contemclássico scotticional tórico latinográfica porâneo de meano americano diação “IMAGENS ESCRITURAIS DE COLOMBO”: OCORRÊNCIAS NA LITERATURA ESTADUNIDENSE Romance histórico clássico scot- - Mercedes of Castile: or, the voyage to Cathay (1840), tiano de James Fenimore Cooper; Romance histórico tradicional Novo romanMetaficção Romance hisce histórico historiográfi- tórico contemlatino-america porâneo de mecano diação -Columbia: a story of the discovery of -The Aztec The memoirs -1492: a novel of America (1892), de John R. Muchronicles: the of Christopher Christopher sick; true history of Columbus Columbus and his 127


-Columbus and Beatriz (1892), de Christopher Constance Goddard DuBois; Columbus as -Columbus: or discovery day, de narrated by John Kenton (1892); Quilaztli of -Columbus, de Martin F. Morris Texcoco (1995), (1893); de Joseph P. -Christopher Columbus, de Henry Sánchez; Peterson (1893); - Pastwatch: the -The catholic, de George Barton redemption of (1904); Christopher -Christopher Columbus, de Joachim Columbus Campe (1911); (1996), de -The road to Granada: a story of adScott Card venture in the days of the Moorish Orson; wars in Spain (1931), de Arthur - Encounters Strawn; Unforseen: -The son of Dolores (1945), de Ida 1492 Retold Mills Wilhelm; (2017), de - To the Indies (1949), de Cecil Andrew Scout Forester; Rowen. -The velvet doublet (1953), de James Street. Fonte: Elaborado pelo autor em 2020.

(1987), de Stephen Marlowe.

world (1990), de Newton Frohlich; -The crown of Columbus (1991), de Michael Dorris e Louise Erdrich; -Bay of arrows (1992), de Jay Parini; -The discoveries of Mrs. Christopher Columbus: his wife’s version (1994), de Paula DiPerna.

Os parâmetros scottianos foram seguidos à risca por James Fenimore Cooper, em 1840, para gerar as primeiras imagens escriturais de Colombo na prosa estadunidense e nas literaturas ocidentais em geral. Em seguida, como podemos observar no quadro acima, foram as transformações no modelo clássico que originaram a segunda modalidade dentro do contexto acrítico de produção de romances híbridos de história e ficção que renarrativizam o passado vivenciado por Colombo e os conquistadores que, em seguida, lançaram-se à conquista e colonização da América. Essas produções constituem grande parte das produções no âmbito da temática do “descobrimento” na América anglo-saxônica no período áureo do Romantismo. Nesse período em que a literatura, especialmente o romance, tem uma função primordial para as nações emergentes no continente americano, voltarse para o passado – especialmente para esse momento em que a Europa se expande pelas grandes navegações, levando Colombo a se deparar com o “Novo Mundo” – é bastante representativo para se compreender a ideologia que perpassa essa produção. Enquanto a porção anglo-saxônica do norte do continente celebra Colombo como grande “herói”, configuração já “lugar-comum” na poesia do século XVIII, que se afirma na narrativa romanesca do século XIX, os povos hispano-americanos só passam a explorar essa temática nas décadas que

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antecedem o advento do quinto centenário da primeira viagem de Colombo, já sob as perspectivas transgressoras do modelo canônico europeu. Essas produções hispano-americanas, como veremos adiante, revelam configurações bastante distintas daquelas românticas, idealizadoras das imagens e ações de Colombo, cultivadas pela literatura norte-americana anglo-saxônica desde o século XVIII. Tais produções literárias críticas/desconstrucionistas garantem aos povos silenciados no passado a conquista de um espaço ficcional no qual as múltiplas vozes emudecidas podem enunciar, em tons desmistificadores, suas visões desse mesmo passado celebrado com louvores pelos romancistas estadunidenses no período romântico. Por outro lado, como também veremos na sequência, essas vozes americanas exaltadoras da empresa colonizadora foram acolhidas, quase um século depois, na literatura espanhola que, valendo-se da tradição já instituída na prosa romanesca, viu nela a possibilidade de seguir cultivando, no século XX, a imagem laudatória dos Reis Católicos – Isabel e Fernando – do final do século XV e início do XVI. Assim, em 1840, publica-se, nos Estados Unidos da América, a obra Mercedes of Castile: or, the voyage to Cathay, de James Fenimore Cooper (15/09/1789-14/09/1851), inaugurando uma tradição romanesca de teor exaltador das ações de Colombo nesse universo literário. Essa atinge a contemporaneidade com o mesmo teor acrítico e exaltador em obras que celebram a “grandeza” do “herói” e seus feitos. Cooper, na obra inaugural das imagens escriturais de Colombo no romance, elege como pano de fundo para as ações de seus heróis os bem conhecidos eventos que levaram à consolidação do Estado espanhol. Nesse contexto, o romancista insere na tessitura artística personagens de extração histórica bem conhecidas, como Cristóvão Colombo e os Reis Católicos, Isabel e Fernando. Na diegese arquitetada por Cooper, o passado histórico que levou ao casamento de Isabel e Fernando – originando o processo de unificação dos reinos de Castela e Aragão –, as lutas dos monarcas para a expulsão dos mouros e a consequente unificação do território e as circunstâncias vividas por Colombo, nesse contexto, até conseguir o apoio necessário da coroa espanhola para a sua primeira travessia ao Atlântico – levando-o aos acontecimentos do “descobrimento” da América registrados em seu Diário de bordo (1491-1493) – são o material histórico inserido em Mercedes of Castile: or; the Voyage to Cathay (1840) como contextualização para uma história de amor. Desse modo, Cooper segue os padrões primeiros de Walter Scott na escrita híbrida de história e ficção que constitui um romance histórico. As personagens protagônicas, puramente ficcionais, da obra de Cooper são os jovens europeus Luis de Bobadilla e Mercedes de Valverde. Como empecilho à união do apaixonado casal, cria-se outra personagem puramente ficcional: uma nativa, Ozema, das terras encontradas por Colombo. O esquema 129


scottiano de inserir personagens protagonistas puramente ficcionais na diegese e personagens de extração histórica como secundárias, reproduz-se fielmente na obra de Cooper. Sobre a configuração dessas personagens ficcionais dentro de uma narrativa híbrida de história e ficção, o autor comenta, no prefácio da obra: “Some may refer to history, with a view to prove that there never were such persons as our hero and heroine, and fancy that by establishing these facts they completely destroy the authenticity of the whole book121” (1840, p. II). As palavras de Cooper no prefácio da obra mostram o quanto os autores de romances históricos dessa época estavam conscientes do processo de leitura a que suas obras eram submetidas. A construção da verossimilhança é fator fundamental para o pacto de leitura das modalidades acríticas do romance histórico, ancorada numa mímese realista que procura envolver, conquistar e eludir o leitor menos experiente a vivenciar a leitura da ficção como real possibilidade, levando-o a buscar referentes da ficção na realidade circundante. Diante da possibilidade de os leitores averiguarem os eventos nos registros históricos e neles encontrarem enunciados que pudessem colocar em jogo esse pacto de leitura, o autor revela as suas estratégias e fontes, a fim de assegurar sua relação de confiança com o leitor: [...] after carefully perusing several of the Spanish writers from Cervantes to the translator of the journal of Columbus, [...] and after having read both Irving and Prescott from beginning to end, we do not find a syllable in either of them that we understand to be conclusive evidence, or indeed to be any evidence at all, on the portion of our subject that are likely to be disputed.122 (COOPER, 1840, p. II).

As palavras de Cooper, no prefácio de sua obra Mercedes of Castile: or the voyage to Cathay (1840), conduzem ao que afirmou García Gual (2002, p. 134): o romancista histórico se apoia num pacto de confiança com o leitor. Este pacto possibilita conduzi-lo a âmbitos privados das personagens históricas, onde o ficcional e o histórico assumem, de certa forma, na mente do leitor, a mesma significação – são possibilidades de um passado recriado. Essa menção às fontes biográficas e documentos históricos que se referem a Colombo, ainda no prefácio da obra, ou seja, na voz enunciadora do próprio autor, deixam claro a intenção apologética com a qual o romance se escreve e a ideologia que nele se insere. 121

Nossa tradução livre: Alguns podem buscar referências na história, com a intenção de provar que nosso herói e heroína nunca existiram, e vangloriar-se de que, por encontrarem registrados esses fatos, destruíram completamente a autenticidade do livro todo. 122 Nossa tradução livre: [...] após ler atenta e meticulosamente vários dos escritores espanhóis, de Cervantes ao tradutor do diário de Colombo, [...] e após ter lido tanto Irving quanto Prescott do início ao fim, não encontramos uma sílaba em nenhum deles que entendamos como sendo evidência contundente, ou como sendo qualquer tipo de evidência, no tocante ao nosso tema, que o torne questionável.

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O crítico norte-americano Robert D. Madison (1984), em seu artigo “Cooper's Columbus”123, procura didatizar a abordagem ao texto de Cooper e, assim, divide a obra Mercedes of Castile: or, the voyage to Cathay em sete partes: (1) “The Ferdinand and Isabella introduction”; (2) “The petition of Columbus”; (3) “The voyage to the New World”; (4) “Haiti”; (5) “The return voyage”; (6) “Spain after the voyage”; e (7) “Luis and Mercedes live happily ever after” 124. Tal divisão feita por Madison serve, também, como síntese da própria obra. Na primeira parte, como contextualização histórica dos eventos a serem relatados, o narrador nos apresenta as personagens Fernando de Aragão e Isabel de Castela e descreve o processo de união de suas terras e o reinado que eles estabelecem, concentrando-se no período em que Colombo chega de Portugal à Espanha. Logo após, são introduzidos os protagonistas da narrativa, Luis de Bobadilla e Mercedes de Valverde, além do visionário Cristóvão Colombo. Essas serão as personagens de maior destaque na sequência do relato. Cooper segue, pois, o esquema clássico dos romances inaugurais do gênero na escrita de Scott: como foco imediato, narra-se uma história de amor, vivenciada por personagens puramente fictícias; como pano de fundo, são retratadas as figuras históricas que agem de acordo com os registros oficiais, mantendo a essência da configuração que lhes fora atribuída pelo discurso histórico. Na visão extradiegética da voz enunciadora do discurso romanesco narra-se que Colombo, financiado pela coroa espanhola, inicia sua travessia seguindo seu plano de estabelecer um caminho inusitado para chegar, pelo Ocidente, via oeste, às terras descritas por Marco Polo, em especial à China e ao Japão, chamados, à época, de Cathay e Cipango. Nessa inédita empresa navegadora, Colombo leva entre os tripulantes das embarcações o jovem Luis de Bobadilla. Este necessita provar ser um homem valente e merecedor da mão de sua amada, Mercedes, uma jovem da nobreza espanhola destinada a acompanhar a rainha Isabel em sua corte itinerante. Após muito tempo navegando, Colombo finalmente encontra terra firme, mas, ao aportar e entrar em contato com o povo daquelas terras, ao contrário do que se registra na história, percebe que não chegara à China. Os nativos que encontra possuem características físicas diferentes da dos povos orientais, além de falarem um idioma “estranho”. Vendo que aquelas terras eram ainda “inexploradas”, Colombo e seus companheiros vão em busca de minas de ouro e outros metais preciosos, que pensavam ser abundantes naquele território. 123

Disponível em: http://external.oneonta.edu/cooper/articles/suny/1984suny-madison2.html. Acesso em: 27 dez. 2020. 124 Nossa tradução livre: (1) A apresentação de Fernando e Isabel; (2) A petição de Colombo; (3) A viagem ao Novo Mundo; (4) Haiti; (5) A viagem de regresso; (6) A Espanha após a viagem; e (7) Luis e Mercedes vivem felizes para sempre.

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Ao longo da exploração dessas terras pelos tripulantes, Luis de Bobadilla conhece uma nativa muito bonita chamada Ozema. Essa moça é bastante parecida com Mercedes. Após salvar Ozema de diversos perigos, o protagonista decide levá-la para a Espanha. Ela fará parte, assim, do grupo de nativos que foram escolhidos para serem mostrados à corte, no regresso de uma parte da tripulação. Ao retornar à Espanha, o relato evidencia como se espalhou a notícia da existência de terra via oeste, cruzando o Atlântico e a calorosa recepção dos reis aos tripulantes, em especial a Colombo e ao jovem Luis. O fato de Luis de Bobadilla ter levado Ozema para a Espanha gera comentários que se constituem em entraves à possibilidade de sua união com Mercedes. Ao vê-lo tão atencioso com a jovem nativa, pensam e falam que ele certamente havia esquecido seu amor pela nobre Mercedes e nutria, agora, uma nova paixão por Ozema. Esse mal-entendido, contudo, desfaz-se e, ao final do relato, Luis e Mercedes vencem todos os obstáculos, conseguem ficar juntos e alcançam o objetivo de se unirem dali em diante. As personagens Luis de Bobadilla e Mercedes de Valverde assumem o papel de protagonistas e heróis da diegese, enquanto Ozema contribui para a formação do triângulo amoroso e se torna motivo de discórdias entre os jovens amantes, embora, no final, todos os mal-entendidos sejam resolvidos e reine a felicidade geral. As ações dessas personagens são as que movem a narrativa, sempre contextualizada por episódios históricos bem conhecidos, enquanto Fernando de Aragão, Isabel de Castela e Cristóvão Colombo, além de outras figuras históricas presentes na ficção, servem para imprimir a necessária verossimilhança às ações dessas personagens. James Fenimore Cooper buscou criar uma imagem heroica de Cristóvão Colombo, demonstrando a determinação e a persistência do “Almirante” em realizar seu objetivo de cruzar o Oceano Atlântico à procura de uma nova rota para a China. Destaca-se o seu pensamento avançado e visionário para a época em que vivia. Já o capítulo IV de Mercedes of Castile: or the voyage to Cathay, expõe, por meio de diálogos entre Luis de Bobadilla e o Padre Pedro, a visão de Colombo, que nega a ideia de a Terra ser plana. Nesses diálogos, pode-se ver que Colombo prova a esfericidade da Terra através da observação dos fenômenos naturais. Assim, o romance apresenta Colombo como um tenaz estudioso da natureza. Ainda no capítulo IV, é-nos apresentada a descrição de Colombo. Esta não é, porém, uma descrição física detalhada. Por meio de diálogos, faz-se uma descrição física superficial da personagem e evidenciam-se traços de sua personalidade e seus valores, na voz da personagem do Padre Pedro: – ‘Dost see yonder person of high and commanding stature, and in whom gravity and dignity are so singularly mingled with an air of poverty; or, if not absolutely of poverty – for he is better clad, and seemingly in more prosperity now, than I remember ever to have seen him – still, evidently not of the rich and noble; while his bearing and 132


carriage would seem to bespeak him at least a monarch?’125 (COOPER, 1840, p. 57).

O discurso busca, sempre, focalizar as qualidades morais e intelectuais de Colombo, dando relevância à sua humildade e ao seu caráter firme e nobre. A constância desses aspectos de sua personalidade e caráter ao longo dos altos e baixos que sua passagem pela corte espanhola sofreu merece a atenção das personagens Luis de Bobadilla e do Padre Pedro, que dialogam sobre o marinheiro. Ao analisarem a situação de Colombo, expressam as suas ideias a respeito dele e sua empresa, conforme podemos ver no trecho que segue: – ‘[…] a man of very grave and reverend appearance, though of simple deportment. I see nothing extravagant, or ill placed, either in his attire, or in his bearing.’ – ‘[…] but there is a loftiness in his dignified countenance that one is not accustomed to meet in those who are unused to power’.126 (COOPER, 1840, p. 57).

As qualidades de Colombo como grande marinheiro são da mesma forma destacadas no diálogo entre as duas personagens. O narrador extradiegético confere às opiniões emitidas uma carga mais acentuada de verossimilhança ao valer-se do recurso do discurso direto, em forma de diálogo. Por meio da voz de outrem, formam-se as imagens heroicas do que poderíamos chamar de self-made man. Assim, as imagens de Colombo são, primeiramente, as de um visionário, empenhado em realizar a todo custo o seu ideal – um projeto ousado de navegação nunca antes imaginado –, para, em seguida, converter-se em louvores pela plena realização do seu grande sonho. O romance, nesse sentido, valendo-se da voz de Don Luis de Bobadilla e de Padre Pedro, destaca: – ‘To me he hath the air and dress of a superior navigator, or pilot – of a man accustomed to the seas – ay, he hath sundry symbols about him that bespeak such a pursuit.’ – ‘Thou art right, Don Luis, for such is his calling. He cometh of Genoa, and his name is Christoval Colon – or, as they term it in Italy – Christoforo Colombo.’ – ‘I remember to have heard of an admiral of that name, who did good service in the wars of the south, and who formerly led a fleet into the far east’. 127 (COOPER, 1840, p. 58). 125

Nossa tradução: Vedes tal pessoa de altiva e imperiosa estatura, em quem gravidade e dignidade estão tão particularmente mesclados com um ar de pobreza; ou, se não de absoluta pobreza – pois está melhor vestido e aparentemente mais próspero agora do que me recordo já tê-lo visto –, pelo menos, não evidentemente o [ar] de rico e nobre; embora sua postura e sua carruagem demonstrem ser no mínimo as de um monarca? 126 Nossa tradução: ‘[…] um homem de gravíssima e respeitosa aparência, ainda que de comportamento simples. Não vejo nada de extravagante ou deslocado, nem em suas roupas, nem em seus modos. – ‘[…] mas há certa altivez em seu digno semblante que não se costuma ver em quem não é familiarizado com o poder.

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Podemos afirmar, assim, que o discurso romanesco, ao construir a imagem de Cristóvão Colombo, busca revelá-lo como tipo de homem forte e determinado que, mesmo sem o apoio das demais pessoas, conseguiu alcançar seu objetivo. Pela manipulação do discurso, objetiva-se fazer com que o leitor se convença de uma imagem de Colombo como sendo ele um homem que lutou sozinho e incansavelmente para vencer todas as barreiras que lhe foram impostas. Barreiras como a falta de apoio das cortes espanhola e francesa para seu projeto de navegação e a incredulidade dos próprios marinheiros que o acompanharam em sua viagem não deixam de ser mencionadas no discurso do narrador. Para conseguir manter os marinheiros na rota desejada, Colombo, conforme relata o narrador, chegou até mesmo a enganá-los em relação ao número de dias que já haviam navegado e em relação à distância que estavam de terra firme, pois ele não fazia ideia de quando, ou se encontrariam essas terras. É também por meio da voz de outras personagens que se formam as imagens escriturais primeiras de Colombo no romance de Cooper. Tais discursos estão alinhados àqueles que procuraram criar a imagem do self-made man cultivada e admirada pela sociedade americana anglo-saxônica. Tais imagens são, em grande parte, ecos da biografia de Colombo que Cooper anunciou no prólogo ter lido, escrita por Washington Irving, em 1827, que, em linhas gerais, pode ser considerada padrão do discurso de louvor às qualidades do marinheiro, como se pode ver no fragmento abaixo: Tales hombres aprenden a efectuar grandes proyectos con escasos medios, supliendo la falta de éstos los abundantes recursos de su invención y su energía propia. Esta es una de las particularidades que caracterizan la historia de Colón, desde la cuna hasta el sepulcro. En todas sus empresas la ruindad y visible insuficiencia de los medios dan a la ejecución lustre y realce eminentes.128 (IRVING, 1992, p. 12).

O relato ficcional de Cooper gera, da mesma forma que a biografia de Irving, a imagem do marinheiro que, a princípio de sua empreitada, não dispõe de qualquer meio para concretizá-la. Sobra-lhe, contudo, determinação e, por meio de seu próprio esforço, luta para a consecução de um objetivo. 127

Nossa tradução: – ‘Para mim ele tinha o ar e as vestes de um exímio navegador, ou piloto – de um homem acostumado aos mares – ah, ele tinha vários sinais que demonstravam tal busca.’ – ‘Estás correto, Don Luis, pois este é seu destino. Ele veio de Gênova, e seu nome é Christóvão Colombo – ou, como eles o chamam na Itália – Christoforo Colombo.’ – ‘Eu me lembro de ter ouvido sobre um almirante com este nome, que prestou bons serviços nas guerras do sul, e que anteriormente liderou uma frota ao extremo leste’. 128 Nossa tradução livre: Tais homens aprendem a efetuar grandes projetos com escassos meios, suprindo a falta desses os abundantes recursos de sua invenção e sua energia própria. Essa é uma das particularidades que caracterizam a história de Colombo, desde o berço até o túmulo. Em todas suas empreitadas a precariedade e visível insuficiência dos meios dão à execução prestígio e realce eminentes.

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Após os enfrentamentos impostos pela jornada, essa personagem destaca-se socialmente e torna-se modelo de persistência, em primeira instância, para o protagonista do relato, Luiz de Bobadilla, e, numa dimensão mais ampla e ideológica, para o próprio leitor do romance, pois esse vê, nessa configuração laudatória, todos os atributos de um vencedor. O relato ficcional também se vale da voz do povo simples da Espanha da época para exaltar a imagem celebrada de Colombo. Essa se revela presente nas conversas amenas entre vizinhos. Assim, o relato narra o enunciado de uma senhora e sua vizinha, cujo marido esteve engajado no projeto de travessia ao Atlântico desde o princípio e que se prepara já para uma nova viagem. Na voz da personagem anônima, comenta-se: “You are to be envied neighbor, that he is in so good repute with so great a man. – How could he be otherwise, seeing that he was with him before, when few had courage to be his companions, and was ever faithful to his orders 129” (COOPER, 1840, p. 537). O relato idealizado das ações de Colombo e a contextualização da época em que viveu o marinheiro, elaborado por Cooper, contempla, entretanto, somente o período anterior e imediatamente posterior à primeira travessia ao Atlântico. Nele, o marinheiro é apresentando como modelo de persistência e como homem que é recompensado com os mais altos títulos e riquezas pelo esforço empreendido para superar dificuldades e realizar grandes feitos. Essa, contudo, é uma imagem transitória de Colombo na história da Espanha, pois, como os registros historiográficos mesmos revelam, ela irá se dissipar da mente dos próprios espanhóis após os fracassos da empreitada nas seguintes viagens do navegante já que elas não trouxeram as riquezas estimadas e sonhadas pelo marinheiro e pela corte espanhola. Nesse ambiente da seleta nobreza espanhola – já considerada “unida e pura” após a expulsão dos mouros e judeus do território unificado por Isabel e Fernando –, o navegante sempre sofreu os ataques da alta casta preconceituosa de uma sociedade estratificada, típica das monarquias europeias do período das grandes navegações. O romance de Cooper termina fazendo referência às três personagens do triângulo amoroso: At a late day, there were other Luis de Bobadillas, in Spain, among the gallant and noble, and other Mercedes’, to cause the hearts of the gay and aspiring to ache; but there was only one Ozema. She appeared at court, in the succeeding reign, and, for a time, blazed like a star that had just risen in a pure atmosphere. Her career, however, was short, dying young and lamented; since which time, the name itself has perished. It is, in part, owing to these circumstances, that we have been obligated to drag so much

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Nossa tradução livre: Serás uma vizinha invejada, estando seu marido em tão boa reputação com tão grandioso homem. – Como poderia ser de outra forma, se ele já esteve a seu lado antes, quando poucos tiveram coragem de ser seus companheiros e foi sempre tão fiel às suas ordens.

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of our legend from the lost records of the eventful period. 130 (COOPER, 1840, p. 538).

Assim, o discurso romanesco, agora, irmana-se com o autoral para reafirmar, se não garantir, o pacto de leitura estabelecido entre autor e leitores já no prefácio da obra, algo comum e recorrente na modalidade clássica scottiana do romance histórico. Tal discurso serve, da mesma forma, para imprimir a necessária verossimilhança na configuração das personagens, sejam elas puramente ficcionais – como é o caso das protagonistas – ou as secundárias, que servem para estabelecer o pano de fundo, o ambiente e a época na qual as ações da diegese se desenvolvem. É assim que nascem, na ficção romanesca, as primeiras imagens escriturais de Colombo. São elas que começam a gerar o oceano de discursos e configurações que se coloca entre nós. Embora as primeiras rupturas com os parâmetros de Scott para a produção de romances históricos tenham ocorrido já no próprio Romantismo, tanto na Europa como na América, sua influência estende-se, sob diferentes formas e com algumas transformações na estrutura, em várias obras, até os dias de hoje. O propósito dos romancistas de estabelecer uma relação de identificação dos leitores tanto com os heróis ficcionais de suas obras como com os modelos históricos de homens neles recriados, presente e evidenciado nos prefácios, prólogos e na própria diegese dos romances românticos, persiste, sob diferentes formas, até a contemporaneidade. Tais criações ficcionais convivem, hoje, com outras muito mais experimentalistas em suas estruturas e no uso da linguagem no contexto das leituras ficcionais das ações de Colombo em terras americanas. Essas alterações no modelo primeiro de romance histórico – que segue os parâmetros scottianos – é, da mesma forma, intensivamente cultivado na literatura estadunidense. Configurar Cristóvão Colombo como “herói”, com todos os atributos de bravura, coragem e honra, que vive aventuras extraordinárias e vence todas as dificuldades que lhe são impostas, são objetivos alcançados por Cooper em Mercedes of Castile: or, the voyage to Cathay e essa ideologia exaltadora das ações do marinheiro segue, nesse contexto, uma trajetória que se converte em diferentes perspectivas de olhar para o passado pela ficção, produzindo obras em distintas modalidades do gênero que alcançam a atualidade.

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Nossa tradução livre: Com o passar do tempo, houve outros Luis de Bobadillas na Espanha, entre os galantes e nobres, e outras Mercedes, para causar dor nos corações dos alegres e promissores jovens; mas houve apenas uma Ozema. Ela apareceu na corte, no reinado que se sucedeu, e, por um tempo, brilhou como uma estrela que acabara de ascender em uma atmosfera pura. Sua carreira, contudo, foi breve, morrendo jovem, deixando tristeza; desde então, o seu próprio nome se esvaneceu. É, em parte, devido a essas circunstâncias que fomos obrigados a aprofundar-nos tanto em busca da nossa história nos registros perdidos desse tempo cheio de acontecimentos.

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No romance inaugural de Cooper, a figura do “Almirante” é a de um ser capaz de despertar o desejo do leitor de se assemelhar a ele. Tal fato ocorre, primeiramente, no universo diegético quando se realçam determinadas características de Colombo, as quais passam a ser modelos de conduta para o seu admirador, o protagonista Luis de Bobadilla. Essa personagem, a fim de cumprir com seus nobres propósitos de revelar bravura e determinação, procura assemelhar-se ao marinheiro em sua persistência e tenacidade. Isso gera, no relato, uma espécie de espelho que reflete os ideais de Colombo na formação do jovem Bobadilla. Como “recompensa”, ambas as personagens alcançam seus objetivos no final do relato. Essa aproximação de ambas as personagens – o herói ficcional e o modelo histórico de homem a ser seguido – busca a empatia com o próprio leitor. Estratégias discursivas presentes na obra de James Fenimore Cooper tendem a refletir no leitor esse jogo de espelhos entre o herói ficcional e o modelo histórico da personagem de extração histórica pelo processo de leitura evasiva que os romances históricos da linha genérica acrítica provocam. Tal processo é parte integrante do próprio intento de mitificação de Colombo presente na obra. Cultivar uma imagem heroica de Colombo e suas ações estava já instituído como tradição na literatura norte-americana anglo-saxônica nos períodos anteriores a Cooper. Segundo expõe Stavans (2001, p. 53), “around 1776 it was fashionable among poets and artists in the British colonies to perceive the admiral as an inaugurator of the patriotic experience, an indirect founding father of the Republic 131”. Essa visão, nos anos seguintes, ainda segundo as palavras de Stavans, só veio a se ampliar, pois, “during the attempt to shape an independent collective identity in the British colonies; as an attractive historical figure, he became instrumental in the shaping on the national past. […] They also saw him as a bridge, a link with the civilization of the Old World.132” (STAVANS, 2001, p. 53). Cooper, no século XIX – inserido no movimento romântico –, segue, pois, as tendências exaltadoras da lírica estadunidense do século XVIII e coopera para que tais configurações laudatórias de Colombo se estendam até o século XX no universo da “poética do descobrimento” em sua forma romanesca mais recorrente. A partir da obra de Cooper, que aqui abordamos, a produção romanesca da temática colombina na porção norte anglo-saxônica do continente americano instaura-se como prática de muitos romancistas. Inseridas 131

Nossa tradução livre: [...] por volta de 1776 era moda entre poetas e artistas nas colônias britânicas ver o Almirante como o inaugurador da experiência patriótica, um fundador indireto da República. 132 Nossa tradução livre: [...] durante as tentativas de se moldar uma identidade coletiva independente nas colônias britânicas; como uma figura histórica atrativa, ele se tornou figura fundamental na formação de um passado nacional. [...] Eles também o viam como uma ponte, uma ligação com a civilização do Velho Mundo.

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no contexto do Romantismo, tais obras apresentam, conforme descreve Stavans (2001), intenções bem claras herdadas ainda dos poetas estadunidenses do século XVIII, como Joel Barlow, Jeremy Belknap, Philip Freneau, entre outros, que exaltavam as ações do marinheiro e viam na figura de Cristóvão Colombo “an originator of the United States [...], a precursor of modernity, a prophet, a man of invaluable talent133” (STAVANS, 2001, p. 53-54). Transferem-se tais atitudes impregnadas na lírica dos poetas mais expressivos do século XVIII ao romance histórico estadunidense dos séculos XIX e XX, nos padrões estéticos do Romantismo e do Realismo. Inserida nesses contextos, a produção híbrida de história e ficção, segundo Aínsa (1991, p. 82), resulta num romance forjador e legitimador de nacionalidades, crônica fiel da história. Quando o romance histórico já havia cumprido, junto às demais formas literárias, sua tarefa de formar identidades nacionais, e o Romantismo começou a ceder espaço ao Realismo/Naturalismo, surgiram romances que, ao lerem o passado de Colombo e suas ações, buscavam fazer uma reprodução mimética do discurso edificador sob o qual a personagem e suas ações foram configuradas. Nesses romances, ocorre a fusão do herói ficcional e do modelo de homem presente no pano de fundo histórico que caracterizou a fase tradicional do romance histórico. Tal modalidade romanesca passa também a repercutir na temática do “descobrimento” em solo americano, como se pode observar na relação de romances americanos anglo-saxônicos da modalidade tradicional exposto em nosso Quadro II. A característica essencial para a produção de romances históricos nesse período relaciona-se com a recriação meticulosa da diegese espaço-temporal na qual as ações narradas ocorrem. Isso faz com que a ordenação e a sucessão dos acontecimentos arrolados na diegese sigam a sequência dada pelo discurso histórico que as precedeu, gerando uma imagem do “real” em toda a sua multiplicidade e fragmentação, comandadas por um narrador quase sempre extradiegético. Segundo expõe Fernández Prieto (2003, p. 132), “la temporalidad diegética se ajustaba o intentaba ajustarse a la temporalidad horizontal y cronológica del acontecer histórico. El tiempo de la historia se proyectaba metonímicamente en el tiempo del discurso en la articulación lineal de los acontecimientos diegéticos 134”. Tal manipulação temporal garante o efeito de mímesis buscado por tais produções romanescas. Desse modo, celebra-se, pela arte romanesca da “poética do descobrimento” no norte da América anglo-saxônica, o heroísmo de Cristóvão Colombo, o modelo de self-made man que a sociedade preza e necessita ao longo 133

Nossa tradução livre: [...] um inaugurador dos Estados Unidos [...], um precursor da modernidade, um profeta, um homem de incalculável talento. 134 Nossa tradução livre: [...] a temporalidade diegética se ajustava ou tentava ajustar-se à temporalidade horizontal e cronológica do acontecer histórico. O tempo da história se projetava metonimicamente no tempo do discurso na articulação linear dos acontecimentos diegéticos.

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de seu processo de formação. Exemplar, nesse sentido e contexto, é, ainda, a obra Columbia (1892), de John R. Musick, dentro da segunda modalidade dos romances históricos acríticos: a tradicional, que derivou da clássica primeira, ao eliminar o pano de fundo e tratar de renarrativizar, no centro da diegese, o próprio fato histórico e por subjetivizar o material histórico inserido na tessitura romanesca com possíveis perspectivas intradiegéticas, em vozes auto ou homodiegéticas. O romance dá continuidade às intenções apologéticas da obra de Cooper ao configurar, antes e durante as comemorações do quarto centenário da viagem primeira de Colombo, imagens escriturais que buscam transformar o sujeito histórico do século XVI em mito e modelo aos cidadãos estadunidenses do final do século XIX. Na obra de John R. Musick já é empregada a primeira alteração importante nos parâmetros formais de Scott: as ações das personagens históricas ficcionalizadas transformam-se no centro mesmo da narrativa. Essa mudança nos ditames do romance histórico scottiano realizou-se, em primeira instância, pelo francês Alfred de Vigny (27/03/1797-17/09/1863), em sua obra Cinq Mars (1826) e, também, no mesmo ano de 1826, pelo autor anônimo de Xicoténcatl, na América, passando a ser gradativamente empregada a partir de então, como se pode observar também na literatura anglo-saxônica norteamericana. O contexto no qual se publica a obra de John R. Musick, Columbia: a story of the discovery of America (1892), é o das comemorações do quarto centenário da viagem de Colombo. Na obra, o “descobridor” é apresentado sob matizes dignificantes. Colombo é descrito pela voz e visão da personagem Hernando Estevan, jovem órfão cujo pai fora injustiçado primeiro pelo irmão e depois pelos mouros, por quem nutre um ódio ardente como bom cristão e nobre espanhol que é. Em um dos diálogos entre o jovem e sua avó, a figura de Colombo ganha os contornos que a obra lhe atribui: “ – ‘What is he like?’ – ‘Like a saint. Ah, good granddame, I never saw such a face, so full of kindness and love! His grey eyes and snow white hair and beard give him a saint-like look. 135” (MUSICK, 1992, p. 12). A imagem idealizada de Colombo se constrói nessa obra, primeiramente, a partir dos aspectos externos da personagem que chamam a atenção do garoto para, em seguida, passar a evidenciar, também, características da personalidade e do caráter desse homem. Nessa configuração, Colombo torna-se modelo e inspiração para o jovem que sonha um dia cruzar o oceano para salvar seu pai, que, segundo crê, está refugiado além do horizonte. A dimensão heroica de Colombo vê-se ainda maior quando o já estimado estranho acaba salvando a vida de Estevan numa corrida de touros. O 135

Nossa tradução livre: – ‘Como ele é?’ – ‘Como um santo. Ah, vovó, nunca vi um rosto como o dele, tão cheio de bondade e amor! Seus olhos cinzentos e seus cabelos e barbas brancos de neve lhe dão um aspecto de santo.

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narrador, contudo, previamente anuncia o enlace dessas duas vidas: “his light grey eyes watched Hernando [...]. Did his prophetic soul read something in the bright lad, which told him that the destiny of the child and the man was henceforth to be closely linked? 136” (MUSICK, 1892, p. 19). Após Colombo ter salvado o garoto da morte, novas dimensões do herói são descritas pelos olhos gratos de quem ganha uma nova vida: “Never had he heard tones more gentle, at the same time deep and firm, as if the speaker was one for kings and princes to obey [...]. Realizing that he was in the presence of a superior being, he became abashed and silent.137” (MUSICK, 1892, p. 24-25). Assim, novamente, ao se unirem as duas personagens numa relação de pai e filho, guiada por um sentimento superior, a modalidade tradicional do romance histórico norte-americano anglo-saxônico que segue os parâmetros tradicionais do romance histórico é celebrada nesse ano especial da efeméride do quarto centenário da travessia ao Atlântico. Na obra de John R. Musick (1892), ambas as personagens, o valente, corajoso e fiel Hernando Estevan e o heroico Colombo – síntese de todas as virtudes humanas e divinas –, são configurados como exemplos de self-made man. Assim, Colombo é festejado e glorificado na Europa e no norte da América anglo-saxônica, por um lado, como o homem que expandiu todas as possibilidades de realizações humanas e, por outro, como o precursor da modernidade, o modelo ideal de homem que se constrói a partir das dificuldades, tornando-se um vencedor. Ainda no significativo ano de 1892, destaca-se a obra Columbus and Beatriz, de Constance Goddard DuBois, à qual nos referimos com mais detalhes na última subseção desta obra, já que ela é a que, segundo nossa pesquisa, inaugura a escrita de autoria feminina no tocante à temática colombina – aspecto da “poética do descobrimento” que incluímos na parte final de nosso texto como nova rota aos oceanos entre nós ainda a serem conquistados pelas leituras críticas de pesquisadores da produção literária híbrida de história e ficção. O período em torno das comemorações do quarto centenário da primeira viagem de Colombo à América revela, pois, que o espaço simbólico do universo ficcional da “poética do descobrimento”, valendo-se da representação discursiva, pelo emprego da potencialidade dos signos linguísticos para gerar imagens do passado vivenciado por Colombo, foi dominado pela corrente daqueles que concebem as ações de Colombo como benéficas 138 136

Nossa tradução livre: Seus claros olhos cinzentos observavam Hernando [...]. Sua alma profética leu algo no brilhante garoto que lhe anunciasse que o destino do menino e o do homem estaria doravante marcado a permanecerem fortemente ligados? 137 Nossa tradução livre: Nunca ouvira ele tons mais gentis, ao mesmo tempo profundos e firmes, como se o falante fosse alguém que devesse ser obedecido por reis e príncipes [...]. Percebendo estar na presença de um ser superior, ele se envergonhou e se calou. 138 Nesse sentido, devemos destacar, neste nosso estudo, também, uma obra exemplar dessa ideologia e modalidade, contudo escrita fora do âmbito a que nos restringimos: trata-se do

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aos povos americanos. Isso se deu ao se estabelecer, na literatura estadunidense – tanto na lírica quanto na prosa –, uma tradição de exaltação ao passado histórico vivenciado pelo navegante, convalidado pelo discurso poético de tantos romances que evocam imagens heroicas de Colombo e suas ações, bem como pela ausência de uma tradição mais crítica voltada às leituras do passado que uniu europeus e autóctones americanos nas letras hispano-americanas daquela época139. romance Columbus, publicado em 1875, e escrito pelo romancista ítalo-inglês Rafael Sabatini. Na obra de Sabatini (1875), aparece já empregada a alteração mais importante nos parâmetros formais de Scott: as ações das personagens históricas ficcionalizadas transformam-se no centro mesmo da narrativa. O romancista lança mão da estratégia da descrição para, desde a primeira página do seu romance, distinguir Colombo dentre os demais: “the man was well above the common height, broad shouldered and long-limbed, fashioned in lines of great athletic vigour ” [O homem era muito acima da estatura mediana, ombros largos e membros longos, moldado em formas de grande vigor atlético.] (SABATINI, 1875, p. 7). O percurso da história de Colombo, no relato de Sabatini, inicia-se com sua chegada ao mosteiro de La Rábida, onde, desde o primeiro contato com Frey Juan de Marchena, o marinheiro revela-se um predestinado: “How can your paternity assert that there is a Heaven and a Hell, never having seen them? – ‘By faith and revelation’, was the grave answer. ‘Just so. And in my case, to faith and revelation I may add cosmography and mathematics ” [Como pode Vossa Reverência afirmar haver um Paraíso e um Inferno, nunca os tendo visto? – ‘Pela fé e pelas Escrituras’, foi sua grave resposta. ‘Simples assim. E no meu caso, à fé e às Escrituras eu posso adicionar a cosmografia e a matemática.] (SABATINI, 1875, p. 10). Essa jornada é, porém, marcada por uma série de tormentos e dificuldades que, uma vez vencidas, revelam a grandiosidade do caráter do “herói”, e o valor da recompensa pela sua firme determinação é revelada pelo narrador ao descrever a volta triunfante de Colombo de sua primeira viagem de travessia ao Atlântico. O caloroso recebimento dos Reis Católicos, em público reconhecimento, é a maior recompensa pelas ações louváveis do navegador, que é convidado a sentar-se ao lado dos soberanos, conforme é descrito: “King Ferdinand smiled, as warm today as Colon had ever known him frosty. ‘Too great for any but the greatest. Be seated, my Lord Viceroy’. He sat, and his glance, spuriously calm, swept round the semi-circle of standing nobles.” [O Rei Fernando sorriu de um modo acalentador como Colombo nunca vira antes. ‘Grande demais para qualquer um, menos para o melhor. ‘Sente-se, Senhor Vice-Rei’. Ele sentou-se, e seu olhar, superiormente calmo, moveu-se sobre o semicírculo de nobres em pé.] (SABATINI, 1875, p. 290). Nesse clima de louvor e reconhecimento, na antevisão de um futuro ainda mais glorioso para o “herói”, para os soberanos espanhóis e para toda a cristandade, Sabatini (1875) encerra seu romance. A narrativa deixa o leitor deslumbrado ante as realizações do navegador, que vive intensamente os momentos de glória que sua primeira viagem ao “Novo Mundo” proporcionou-lhe, enquanto já se fazem preparativos e promessas para a segunda viagem. 139 Nesse período, em aberta confrontação com os louvores dos europeus e dos estadunidenses, destacam-se, dentro das obras ficcionais voltadas ao “descobrimento” nas letras hispanoamericanas, os versos do poema “A Colón”, de Rubén Darío (escolhido para abrir a segunda parte desta nossa obra). Trata-se de um poema escrito para servir de discurso a Darío como representante hispano-americano nas comemorações feitas na Espanha por ocasião do “IV Centenário do Descobrimento da América”. Seus versos manifestam os dolorosos choques e consequências trágicas da viagem de Colombo para o mundo americano pré-colombiano. O poema de Darío (1977) trata, especialmente, das consequências das ações de Colombo para o mundo indígena americano. Utilizando-se da figura de Colombo, a quem interpela em seus versos, o poeta condena o massacre perpetrado pelos espanhóis em terras americanas, enquanto

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Nenhum outro país americano apresenta mais produções romanescas dentro do universo da “poética do descobrimento”, antes da metade do século XX, do que os Estados Unidos. Muitas dessas são, com poucas transformações, produções que seguem as tendências da modalidade tradicional, a exemplo da obra de Musick (1892) e de DuBois (1892). Nessa mesma modalidade tradicional exaltadora, mitificadora e apologética, encontramos imagens escriturais de Cristóvão Colombo nas obras: Columbus: or discovery day (1892), de John Kenton; Columbus (1893), de Martin F. Morris; Christopher Columbus (1893), de Henry Peterson; The catholic (1904), de George Barton; Christopher Columbus (1911), de Joachim Campe; The road to Granada: a story of adventure in the days of the Moorish wars in Spain (1931), de Arthur Strawn; The son of Dolores (1945), de Ida Mills Wilhelm; To the Indies (1949), de Cecil Scout Forester; The velvet doublet (1953), de James Street. Essa trajetória cronológica dos romances da modalidade tradicional, produzidos nos Estados Unida da América, seguramente, não é totalizadora, mas serve, perfeitamente, à nossa intenção de revelar que, décadas após décadas, essa tradição seguiu seu percurso, instituindo toda uma linha apologética romanesca na “poética do descobrimento”. Tal corrente apologética, instaurada e fortemente cultivada nas letras estadunidenses, sofre, contudo, nesse espaço geo-cultural, um abalo significativo no ano de 1987, como consequência das já imagens escriturais críticas/desconstrucionistas de Colombo produzidas no universo literário hispano-americano e traduzidas ao inglês, como defendemos em nossa tese O romance, leituras da história: a saga de Cristóvão Colombo em terras americanas140 (2008). o eu-lírico se dirige ao feitor primeiro, Colombo, relatando-lhe a vida harmoniosa dos nativos que fora destruída pelas suas ações. Ao comparar as ações historicamente conhecidas de figuras ilustres do mundo indígena, o eu-lírico revela que suas atitudes eram menos “bárbaras” do que aquelas realizadas pelos conquistadores. O referido poema encontra-se em: Dario, R. Canto errante. México: Nueva Visión, 1977, p. 27-29. 140 Ao longo desta tese, procuramos revelar que a linha romanesca exaltadora e glorificadora do “descobrimento” da América e de seu mentor – Cristóvão Colombo – nasce, de fato, no continente descoberto, na literatura estadunidense. Tais manifestações narrativas surgem como prática “exaltadora” dos feitos de Colombo, por romancistas norte-americanos anglo-saxônicos ainda em pleno Romantismo, sempre reproduzindo o modelo canônico europeu do romance histórico scottiano ou tradicional. Nessas obras, a configuração discursiva de Colombo e seus feitos serviram de modelo para o que hoje conhecemos como o self-made-man da sociedade norte-americana anglo-saxônica: homem que se constrói um vencedor a partir do enfrentamento e superação das necessidades e entraves que lhe são impostos. A literatura hispano-americana, ao contrário da norte-americana anglo-saxônica, passou a explorar a temática do encontro entre europeus e nativos americanos em obras romanescas, com pouquíssimas exceções, somente por volta do final da década de 1970, já como consequência do que Fernando Aínsa (1988) denominou de novo romance histórico latino-americano. Cristóvão Colombo, a partir de então, passa a ser um personagem histórico recriado com bastante frequência na ficção hispanoamericana. O sucesso das narrativas hispano-americanas, e sua consequente tradução a vários idiomas, entre eles o inglês, e o surgimento de obras canônicas na temática colombina dentro desta dessa linha contestadora, nas últimas décadas do século XX, acabou rompendo o sistema de reprodução de modelos canônicos europeus em solo americano. A modalidade do novo romance

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Desse modo, conseguimos estabelecer o momento de ruptura dessa tradição nas letras estadunidenses com a publicação da obra The memoirs of Christopher Columbus (1987), de Stephen Marlowe. Tal romance constitui-se no que nós classificamos como “metaficção historiográfica plena” – a escrita híbrida mais crítica/desconstrucionista que se desenvolveu no âmbito das produções híbridas de história e ficção. Menton compara esse romance de Marlowe ao excepcional Los perros del paraíso (1983), de Abel Posse, e comenta: “[...] la novela de Marlowe es una autobiografía ficticia de Colón muy divertida que subvierte todos los detalles conocidos y desconocidos de la vida del Almirante. La subversión proviene del cuestionamiento filosófico del narrador […]141” (1993, p. 63). Este questionamento – “What’s the purpose of history” (MARLOWE, 1987, p. 462) – atinge diretamente o âmago do fazer da história, cujos propósitos o narrador discute ao longo de toda a obra. Para isso, utiliza-se de uma linguagem que, segundo a análise de Seymour Menton, “es un delicioso tour de force lingüístico en que Colón se expresa en la jerga de los ochenta […] de acuerdo con la irreverencia de esa época [...]142” (1993, p. 64). A presentificação do passado, vista como um dos elementos essenciais dos novos romances históricos e das metaficções historiográficas, é alcançada em The memoirs of Christopher Columbus (1987), entre outras várias estratégias narrativas, pelo uso especial da linguagem pela qual o narrador autodiegético – que assume a identidade e voz de Colombo – se expressa ao longo da narrativa e da qual teremos, a seguir, ao adentrarmos o universo ficcional de Marlowe, exemplos bastante significativos. Na opinião de Ilan Stavans, “The Memoirs of Christopher Columbus is a rambunctious, 569-page travesty, an offering of metaficcional eccentricities set in seventeenthcentury Spain but with the admiral speaking in a contemporary Brooklyn accent 143” (STAVANS, 2001, p. 75). A opinião do crítico denota a estranheza que uma produção de tal natureza “subversiva” causou no universo em que as produções de romances históricos sobre Colombo sempre seguiram os moldes tradicionais do cânone europeu, com discursos voltados ainda à glorificação do evento histórico e à aclamação de seu protagonista. histórico hispano-americano e da metaficção historiográfica acabaram, desse modo, influenciando as produções da temática em todo o território americano, levando romancistas norte-americanos anglo-saxões a questionar a exaltação comum em romances históricos que celebravam os feitos de Colombo e suas ações para produzir, também, obras que buscam reler esse passado sob novas perspectivas. 141 Nossa tradução livre: [...] o romance de Marlowe é uma autobiografia fictícia de Colombo, muito divertida, que subverte todos os detalhes conhecidos e desconhecidos da vida do Almirante. A subversão provém do questionamento filosófico do narrador […]. 142 Nossa tradução livre: […] é um delicioso tour de force linguístico em que Colombo se expressa na gíria dos anos oitenta [...] de acordo com a irreverência dessa época. 143 Nossa tradução livre: The Memoirs of Christopher Columbus (As memórias de Cristóvão Colombo) é uma paródia rebelde de 569 páginas, uma oferta de excentricidades metaficcionais ambientadas na Espanha do século XVII, mas com o Almirante falando com um sotaque contemporâneo do Brooklyn.

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Já no princípio da narrativa, a voz enunciadora revela-se transgressora das tipologias convencionais: “I hate the sort of biography that goes: At the age of eight the future Prime Minister (or Whoremonger, or Admiral of the Ocean Sea) had already turned his thoughts to the strife of nations (or sexual intercourse, or sea routes to the Indies.144” (MARLOWE, 1987, p. 6). Vemos que a voz que se manifesta, ao parodiar a escrita autobiográfica tradicional, posiciona-se contrária a esta prática institucionalizada, deixando marcas de sua posição no discurso irônico e no signo “odeio”, que resume seu sentimento em relação a tais escritas. Sugerimos a leitura de nossa análise do romance de Marlowe incluída em nossa obra O romance histórico contemporâneo de mediação – entre a tradição e o desconstrucionismo – leituras da história pela ficção (2017)145. Tomaremos, aqui, apenas um fragmento bem conhecido da história de Colombo, registrada em seu diário de bordo (1492-1493), que trata do momento em que o marinheiro se vê salvo do motim dos marujos por haver, finalmente, ouvido o grito de “terra à vista”. O teor inovador do discurso metaficcional de Marlowe (1987) frente a toda a tradição exaltadora e apologética da Literatura estadunidense com relação à “poética do descobrimento” fica bem evidente nesse episódio do romance que narra o momento do encontro com a terra desconhecida. Sua chegada à ilha de Guanahaní, em 12 de outubro de 1492, é comparada à aventura de Neil Armstrong e seu pouso na lua. Por meio das reflexões do protagonista, podemos verificar tais relações, como ocorre, por exemplo, no fragmento abaixo: Do I perhaps say, as I plant the royal banner on the beach, ‘One small step for a Christian, one giant step for Christendom’, thus beating Neil Armstrong by almost 500 years? No, there are no half-billion T.V. viewers around the world to watch me, no periodical has purchased the serial rights to my adventures for a king’s ransom, no publisher has advanced an even greater fortune for Columbus’s journal (so called), no mission control exists to monitor my very move. Only the citizens of Palo, and a few 144

Nossa tradução livre: Detesto o tipo de biografia que diz assim: Aos oito anos de idade o futuro primeiro-ministro (ou traficante de prostitutas, ou almirante do Mar Oceânico) já conduzia seus pensamentos para os conflitos entre as nações (ou para o ato sexual, ou para as rotas marítimas para as Índias). 145 Nessa obra teórico-crítica sobre a trajetória do gênero romance histórico, publicada pela Editora CRV, de Curitiba-PR, analisamos modelos representativos de romances históricos da temática colombina que foram produzidos segundo os parâmetros que utilizamos para classificar a produção romanesca híbrida de história e ficção em cinco diferentes modalidades, das quais quatro seguem em vigência na contemporaneidade: a tradicional, o novo romance histórico latino-americano, a metaficção historiográfica e o romance histórico contemporâneo de mediação. O romance de Marlowe (1987) é exemplar para a modalidade da metaficção historiográfica, no segmento que denominamos “pleno”, ou seja: uma narrativa altamente autorreferencial, constituída de um único fio narrativo no qual os recursos metaficcionais – que explicitam ao leitor os procedimentos de coleta, seleção e manipulação do material histórico inserido na tessitura escritural – sobrepõem-se, inclusive, à renarrativização dos fatos passados mencionados na ficção.

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score people at that Peripatetic Royal Court visiting God-knows-where in Spain right now, even suspect we have crossed the vastness on the Indian archipelago; I am convinced, with fable gold-roofed Cipango just over the horizon. 146 (MARLOWE,1987, p. 199).

As anacronias são a marca preponderante do discurso paródico no qual a nova versão da chegada à ilha de Guanahaní é relatada na voz de Colombo, que remete à contemporaneidade, com menção aos meios de comunicação de massa como a televisão e os periódicos e às ações comerciais que este evento poderia render-lhe hoje em dia. A metaficção historiográfica plena de Marlowe (1987) produziu efeitos na estrutura geral da temática em terras americanas anglo-saxônicas, pois, após sua publicação, podemos encontrar outros romances, no espaço estadunidense, que se alinharam às imagens escriturais críticas/desconstrucionistas de Colombo, cultivadas na literatura hispano-americana a partir do final da década de 1970, como adiante veremos. Entre essas produções críticas estadunidenses da “poética do descobrimento”, podemos citar, como consta em nosso Quadro II, as obras The Aztec chronicles: the true history of Christopher Columbus as narrated by Quilaztli of Texcoco (1995), de Joseph P. Sánchez; Pastwatch: the redemption of Christopher Columbus (1996), de Scott Card Orson, como representantes exemplares da segunda fase da trajetória do romance histórico: a crítica/desconstrucionista. Nesse contexto estadunidense de escritas críticas/desconstrucionistas, a obra The Aztec chronicles: the true History of Christopher Columbus, as narrated by Quilaztli of Texcoco147, publicada em 1995, do professor historiador Joseph P. Sánchez, incorpora as mais significativas características do que a crítica designou como “o novo romance histórico latino-americano”, modalidade de escrita híbrida inaugurada pelo cubano Alejo Carpentier, em 1949, que deu início à segunda fase da trajetória do romance histórico. 146

Nossa tradução livre: Por acaso eu digo, ao plantar o estandarte real na praia, “Um pequeno passo para um cristão, um grande passo para o Cristianismo”, passando a perna em Neil Armstrong em quase quinhentos anos? Não, eu não tenho meio bilhão de telespectadores no mundo inteiro assistindo ao meu feito, nenhum jornal adquiriu os direitos para publicar minhas aventuras em troca de uma enorme soma em dinheiro, nenhum editor me fez qualquer adiantamento milionário para o chamado Diário de Colombo, não existe nenhum centro de controle para monitorar todos os meus movimentos. Apenas os cidadãos de Palos e umas poucas pessoas daquela corte real peripatética que deverão estar em algum lugar da Espanha neste momento suspeitam que eu atravessei a vastidão do oceano até chegar a esta pequena e adorável ilha tropical, que deve fazer parte do arquipélago das Índias, pelo que imagino, com a fabulosa Cipango e suas casas de tetos de ouro logo após o horizonte. 147 Para mais informações sobre esse romance, sugerimos a leitura do artigo de CELLA, T. N.; KLOCK, A. M. “Ressignificação do discurso histórico sobre Cristóvão Colombo sob a ótica de Joseph Sánchez em The aztec chronicles: the true history of Christopher Columbus, as narrated by Quilaztli of Texcoco (1995)”, publicado na Revista Rascunhos Culturais, v. 10, p. 31-52, 2019. Disponível em: https://revistarascunhos.ufms.br/files/2020/01/Rascunhos_v_10_n_19.pdf . Acesso em: 20 fev 2021.

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Na obra de Joseph P. Sánchez, busca-se a subversão da visão hegemônica da história ao privilegiar, segundo a focalização adotada no relato, a visão do autóctone sobre como foi construída a narrativa do “descobrimento”. Na diegese, por meio de um enigmático julgamento, a história de Cristóvão Colombo é confrontada e interpelada: a representação de Colombo como um “herói”, um “salvador” que trouxe a civilização para a América é contestada e suas supostas conquistas e empreendimentos são desmistificados pelo discurso ficcional, o qual revela as consequências dessa ação civilizatória e o resultado da herança colonial às comunidades nativas. Na composição romanesca, acompanhamos o julgamento póstumo de Cristóvão Colombo que, logo após a sua morte, em 1506, na cidade espanhola de Valladolid, é imediatamente conduzido por três espíritos gigantes, Tilini, Tleume e Caudi, para ser julgado por suas ações durante o transcurso da conquista e da colonização da América. Seus inquisidores são três sacerdotes astecas, Tlacaellel, Yoanizi e Copil, que interrogam Colombo em busca da verdade, conflito dramático que permeia toda a extensão do eixo narrativo. O romance The Aztec chronicles: the true history of Christopher Columbus as narrated by Quilaztli of Texcoco (1995), de Joseph P. Sánchez, relata a trajetória das ações de Colombo pela voz de Quilaztli, um historiador asteca nascido no ano de Ce-Acatl, ou 1467, servo do imperador Monctezuma I e Monctezuma II. Este jovem, que constitui personagem histórica ficcionalizada no romance, relata, em primeiro plano e em voz homodiegética, o trânsito de Colombo entre a vida e a morte. Nesse estado, Colombo é obrigado a comparecer diante do juízo final, um tribunal composto pelas divindades do universo cultural do povo asteca. Como recurso discursivo, a voz enunciadora revela: “[...] the gods Tilini, Tleume and Caudi gave me the power to see 500 years into the future. My burden is to keep alive the history of my people. That is my lot...148” (SÁNCHEZ, 1995, p. 12). Ante tal desafio, já cumprido no presente da narrativa, o jovem historiador relata como foi possível escrever sua crônica – o romance que se tem em mãos – e fazê-la sobreviver até chegar ao leitor: “I learned it, in an out-ofbody experience, for I was rended unconscious by the Azteca high priests [...]. It was they who put me in contact with the spirits [...]. I wrote the history you are about to read, all of the words and images in it are nothing than the spirit world’s views of man’s inhumanity to man149” (SÁNCHEZ, 1995, p. 12-13). Nesse estado de transe, o jovem Quilaztli é transportado para junto de Colombo e passa a acompanhá-lo em todas as suas aventuras. 148

Nossa tradução livre: [...] os deuses Tilini, Tleume e Caudi deram-me o poder de ver 500 anos no futuro. Meu dever é manter viva a história do meu povo. Esse é o meu quinhão... 149 Nossa tradução livre: Escrevo minha história enquanto aprendo-a, em uma experiência fora do corpo, pois eu fui privado de consciência pelos altos sacerdotes Astecas [...]. Foram eles que me puseram em contato com os espíritos [...]. Eu escrevi a história que estás prestes a ler, todas as palavras e imagens aqui registradas nada mais são que a visão do mundo espiritual da falta de humanidade do homem contra o homem.

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Sua enunciação manifesta-se em nível intradiegético e em voz homodiegética, revelando a sua missão: “[…] write the history of the past, present and future of the encounter between the Discoverer’s people and Indian America 150” (SÁNCHEZ, 1995, p. 27), sendo o registro dessa crônica o livro que o leitor dispõe em mãos. O relato volta-se ora para o presente da narrativa, revelando o que se passa no julgamento de Colombo, e ora acompanha o transe do historiador, que segue os passos do navegante em seus anos de peregrinação em busca de apoio a seu projeto de navegação. Em um dos eixos, constroem-se imagens do passado europeu da época das grandes navegações, das intrigas e guerras em que viveu Colombo; em outro eixo, estas experiências são confrontadas com aquelas vivenciadas pelo povo asteca ao longo dos séculos. Essa organização nem sempre é totalmente clara e fusões entre os dois mundos percorridos pela mente do narrador ocorrem com frequência devido ao estado em que este se encontra, imprimindo ao romance um teor experimentalista bastante semelhante às produções hispano-americanas. Quando a “experiência fora do corpo” vivenciada pelo narrador atinge o ano de 1506 e este presencia os momentos finais de Colombo em Valladolid, os diferentes tempos narrativos se conjugam e o jovem historiador concentra-se na visão do julgamento do descobridor no tribunal a-histórico presidido pelos deuses astecas. A intertextualidade com El arpa y la sombra (1979) é clara: na obra de Carpentier, contudo, é a Santa Congregação dos Ritos, no Vaticano, que preside o processo de pedido de canonização de Colombo, enquanto na obra de Joseph P. Sánchez, as ações do “Almirante” são julgadas pelas divindades astecas, no meio de uma clareira na selva americana, a fim de permitir-lhe ou não o repouso eterno. Os recursos da paródia e da carnavalização utilizados por Carpentier para narrar o fato histórico do julgamento da causa de Colombo são, da mesma forma, instaurados no relato puramente ficcional do romance norte-americano que dialoga com a obra de Carpentier: “The Colombianistas created and hero and they have attemped do deify him [...]. They wanted do make him a Saint because his Discovery of us began the spread of Christianity to the New World 151” (SÁNCHEZ, 1995, p. 131), relata o jovem historiador ante o tribunal. Da mesma forma como no relato de El arpa y la sombra, nesse momento da narrativa, ouve-se um coro de vozes dissonantes, pois a esse tribunal comparecem as mais relevantes personagens do “Velho” e do “Novo Mundo” que, na aventura do “descobrimento” e mesmo depois dela, estiveram ao lado do marinheiro, ou sofreram as consequências de suas ações. Entre eles, figuram 150

Nossa tradução: […] escrever a história do passado, presente e futuro do encontro entre os povos descobridores e os indígenas americanos. 151 Nossa tradução livre: Os Colombistas criaram um herói e tentaram divinizá-lo [...]. Eles tentaram fazer dele um santo porque o seu descobrimento acerca de nossa existência expandiu o Cristianismo para o Novo Mundo.

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as personagens Diego e Fernando Colombo, Martin Alonso Pinzón, Alonso Sánchez, Bartolomé de las Casas, Rodrigo de Triana, a rainha Isabel, entre outras personagens do universo americano. Visões antagônicas das ações de Colombo e seus seguidores são expostas nas falas intercaladas e sobrepostas das personagens em defesa ou acusação do “descobridor”. O discurso polifônico reina absoluto e, como na história, um veredicto conclusivo sobre as questões levantadas acerca das ações de Colombo e suas implicações para a humanidade não chega a ocorrer. O navegador vaga sem destino, sempre sujeito a novas acusações e sempre alvo de interesses de diferentes grupos. The Aztec Chronicles é elaborado para um público juvenil, entretanto, a obra ultrapassa tais limitações ao revelar um primoroso trabalho de análise, leitura e interpretação documental e bibliográfica dos registros históricos do contexto do “descobrimento”, com ênfase no Diário de Bordo (1492-1493), de Cristóvão Colombo, no qual consta o primeiro registro escrito do contato do homem europeu com a América e seus habitantes. Além disso, a obra é caracterizada por um profundo trabalho de experimentação formal e linguística, em que a postura crítica permeia o trabalho de manipulação do material histórico inserido na diegese que passa por um processo aberto de contestação e desconstrução, assemelhando-se às escritas críticas da literatura hispano-americana nesse contexto da “poética do descobrimento”. Cabe mencionar ainda que, com relação às escritas críticas sobre Colombo, a porção anglo-saxônica da literatura americana produziu, também no Canadá, a partir da década de 1990, obras críticas com relação à temática colombina, sendo os romances The heirs of Columbus152 (1991), de Gerald Vizenor e The Accidental Indies (2000), de Robert Finley bons exemplares dessas imagens escriturais de Colombo ressignificadas pela ficção. O universo cultural dos autóctones americanos é também enfocado na obra do mestiço Gerald Vizenor – descendente de imigrantes franceses do Quebec e dos nativos Chippewa. Em sua obra The heirs of Columbus (1991), o romancista cria, na ficção, um espaço para a manifestação da voz dos descendentes mestiços de Colombo, concebidos, segundo relata o narrador, de sua relação com Samana, uma divindade nativa com quem Colombo relacionou-se na sua primeira viagem à América. 152

Para uma compreensão mais ampla desse romance sugerimos a leitura da dissertação de Rubelize da Cunha (2001), Rewriting forgotten histories: the heirs of Columbus and “a coyote Columbus story, defendida na Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Nela, a pesquisadora concentra-se, especificamente, nas teorias contemporâneas do descontruccionismo de Derrida e nas teorias pós-colonialistas de Edward Said (1993), Homi K. Bhabha (1994) entre outros, na intenção de revelar como tais teorias, empregadas como suporte para a análise literária, auxiliam no entendimento de formas alternativas de resistência e de enfrentamento aos discursos imperialistas. Tais intenções se revelam ao longo da análise do corpus selecionado para a realização da sua pesquisa: o romance The heirs of Columbus (1991), de Gerald Vizenor e a narrativa de tradição ameríndia oral “A coyote Columbus story” (1992), de Thomas King.

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Os descendentes dessa relação são tricksters153, e carregam em seu sangue os genes das velhas histórias e uma “irradiação azul” que os torna capazes de grandes prodígios. Essas figuras híbridas tornam-se a grande nação mestiça, que resulta do encontro entre representantes do “Velho” e do “Novo Mundo”: são eles os “herdeiros” de Colombo. Em The heirs of Columbus (1991), Gerald Vizenor apresenta aspectos como a mestiçagem, a hibridização e a fusão das culturas ameríndias desde a “aventura descobridora” de Cristóvão Colombo até a contemporaneidade. Na ficção de Vizenor, as personagens tricksters, ou herdeiros de Colombo, reúnem-se anualmente para celebrar o encontro entre os mundos e contar as histórias que levam no sangue, mantendo as tradições orais da tribo de sua primeira mãe e manter ativos os genes que herdaram do “descobridor”, os quais lhes garantem a irradiação azul que deles emana e que os faz capazes de realizar façanhas. Seu valor mais supremo é a memória que resgata suas histórias do passado e os faz sobreviver, pois a cada encontro “[...] there were more stories to remember in the blood 154” (VIZENOR, 1991, p. 27), conforme se relata no início do romance. A obra de Vizenor compreende duas ações distintas e cada uma delas compõe uma parte da narrativa: a primeira concentra-se nas ações dos “herdeiros” em recobrar a sua identidade. Nesse sentido, eles partem em busca do passado, pelos apelos à memória para, segundo mostra a análise de Cunha, “retell the story of the admiral and resurrect their past 155” (2001, p. 30). Além desta preservação da memória coletiva pela oralidade, os herdeiros de Colombo também vão em busca das fontes de sua identidade. Assim, Felipa Flowers, uma das tricksters, é assassinada quando busca reaver os restos mortais de Colombo e os de Pocahontas. Esse acontecimento provoca uma mudança de estratégia nas ações dos herdeiros de Colombo, que se dão conta de que “[...] recovering their origins was not a successful strategy. […] instead of recovering their past, the heirs invent their origins by creating the crossblood nation on a hybrid tribal identity156” (VIZENOR, 1991, p. 31). Desse modo, na segunda ação, sem abandonar as tradições orais da cultura autóctone americana de Samana – mãe dos herdeiros – nem deixar de valorizar as “fontes” históricas tão importantes no universo de Colombo – o 153

Segundo os registros de Cunha (2001, p. 9), os tricksters são figuras anormais e ambíguas que integram o universo do folclore ameríndio. Eles são capazes de fazer truques e de assumir tanto uma forma humana quanto animal, podendo ser criador ou destruidor, herói ou anti-herói. Contudo, podem ser vítimas de seus próprios truques. Estas figuras míticas do mundo ameríndio possuem a característica especial de existir fora da dicotomia binária e hierárquica de heróis e anti-heróis, da linguagem imperialista de bons/maus, sagrado/profano, podendo, assim, ser inseridos no contexto contemporâneo das noções de desconstrutivismo. 154 Nossa tradução livre: [...] havia mais histórias a serem lembradas no sangue. 155 Nossa tradução livre: [...] recontar a história do Almirante e ressuscitar seu passado. 156 Nossa tradução livre: [...] recobrar suas origens não foi uma estratégia bem-sucedida. [...] ao invés de recobrar seu passado, os herdeiros passam a inventar suas origens, criando uma nação mestiça, de uma identidade tribal híbrida.

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pai dos tricksters –, os mestiços decidem abrir-se para a realidade contemporânea, constituindo um povo consciente de seu passado e apto às ações de resistência no presente, baseados no fato de que não há uma identidade pura e única e que qualquer indivíduo que compartilha dos valores da comunidade possui uma identidade híbrida. Tal fato os torna integrantes da grande nação mestiça constituída pelos herdeiros de Colombo. Em The heirs of Columbus (1991), Vizenor cria uma narrativa paródica do discurso europeu católico ao reinventar a tradição bíblica da criação do homem, fazendo com que os pais da raça humana deixem de ser Adão e Eva para serem as figuras de uma divindade tribal americana e o marinheiro Cristóvão Colombo, para abordar o tema da busca da identidade por parte das nações mestiças americanas no âmbito da “poética do descobrimento”. O discurso ficcional, ao mesmo tempo em que estabelece intertextualidade com o bíblico, subverte concepções e revela outras possibilidades ao mencionar que “‘Jesus Christ and Columbus are Mayan’, said Felipa157” (VIZENOR, 1991, p. 26). Imagens mitificadas do navegante europeu são, pois, reelaboradas pela ficção, gerando, inclusive, a hibridização dessas com as novas possibilidades que o discurso paródico evidencia. Colombo é, na ficção de Vizenor, um integrante da nova comunidade, “a crossblood; a descendant of Mayan and Jewish peoples 158” (VIZENOR, 1991, p. 31), que pode, desse modo, compartilhar da identidade “inventada” por seus herdeiros, pelo sincretismo que suas novas imagens congregam. As estratégias narrativas empregadas por Vizenor apoiam-se na paródia, na intertextualidade, na heteroglossia, nas anacronias deliberadas, na linguagem irônica e no discurso polifônico – que dá espaço à manifestação da voz de inúmeros tricksters ao longo da narrativa. Tais estratégias aproximam o romance canadense das obras hispano-americanas da “poética do descobrimento” produzidas nas décadas de 70 e 80, do século XX, em seu intento de produzir leituras alternativas do passado, acrescentando-lhe novas perspectivas e discutindo o tema da identidade dos povos americanos com base no processo de mestiçagem. Nessa segunda etapa da história dos trikcters, há uma abertura para a vivência da transculturalidade, necessária às comunidades mestiças de nosso continente. The heirs of Columbus (1991) pode ser visto como modelo de obra na qual prevalece a confluência de ficção, história e cultura dos ameríndios num processo de ressignificação do passado pela ficção. Já na obra de Robert Finley, The accidental Indies (2000), busca-se retratar desde a infância de Colombo até os tempos após sua primeira viagem ao novo continente. Contudo, a narrativa se constrói a partir de determinados recortes da vida do marinheiro. Assim, ao passar de um evento para o próximo, realiza 157 158

Tradução nossa livre: ‘Jesus Cristo e Colombo são maias’, disse Felipa. Nossa tradução livre: [...] alguém de sangue mestiço; um descendente dos povos maia e judeu.

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um salto repentino no tempo: é a elipse, estratégia recorrente na obra de Finley e que serve como base para a estruturação do relato. Notamos, nessa obra, que a elipse se inter-relaciona com o “pacto” de leitura almejado, evidenciado pelo intenso diálogo que ocorre entre o narrador e o narratário – responsável pelo preenchimento das lacunas deixadas pelo narrador sobre o que poderia ter ocorrido nesse espaço temporal não aludido, evidenciando o aspecto metaficcional do romance. As primeiras frases do romance são o canto da babá, que busca fazer adormecer o bebê Colombo. Por meio da alegoria, os versos do canto descrevem a chegada de Cristóvão Colombo à América. Este capítulo inicial se chama “Departure”, pois se relaciona, diretamente, com o sonho de Colombo e com a despedida da babá que, ao sair de cena, fica na porta das incertezas. Ocorre, então, a primeira elipse da obra, que transfere as ações da narrativa para anos mais tarde. Aparece um Colombo já adulto, morando com seu irmão Bartolomeu, em Lisboa. Assim, sucedem-se inúmeras elipses, que possibilitam ao narrador jamais aludir a qualquer episódio da vida de Colombo que não tenha respaldo histórico. Em inúmeras ocasiões, a história é narrada a partir da própria visão do protagonista, Colombo. Relatam-se, nessas ocasiões, questionamentos, em diálogo com o leitor, sobre qual seria a dimensão da Terra. O assunto se estende também para questões relativas ao Atlântico: “How wide is the Ocean Sea?159” (FINLEY, 2000, p. 13). Nesse assunto se debruça Colombo, lendo, fazendo anotações e marcando, com a pointing hand [mão que aponta], pontos de seu Imago Mundi. O local já não é mais Porto Santo, onde se encontrava o protagonista no início da reflexão, mas, sim, a ilha da Madeira. As anotações com a pointing hand não são apenas apontamentos que devem ser lembrados mais tarde, mas, segundo o narrador, é o próprio Colombo “dismembering himself into marginal notes160” (FINLEY, 2000, p. 15). Ou seja, é o seu “eu” sendo associado aos escritos, são suas vontades filtrando as informações. Nesse jogo de perspectivas, o narrador revela que essa pointing hand ainda é mais: uma sociedade, uma cultura que cria e se engendra a partir de um mundo de fantasias, de tabus e mentiras criadas para manipular segundo seus desejos de riquezas, levando o “Novo Mundo” à marginalidade. Nesses trechos, são descritas “monstruosidades” que habitariam todo o além-Atlântico, sob o viés da fantasia e da imaginação. Colombo, cansado de seus estudos, ainda persiste neles, e o narrador continua filosofando sobre a pointing hand: “no less a thing than the constellation under which Columbus will greet the unknown Other on the shores of the New World 161” (FINLEY, 2000, p. 18). São os sonhos de Colombo que se mesclam com os anseios de um mundo e, num 159

Nossa tradução livre: Quão vasto é o Mar Oceano? Nossa tradução livre: [...] decompondo a si mesmo em anotações marginais. 161 Nossa tradução livre: [...] não é nada menos que a constelação sob a qual Colombo saudará o Outro desconhecido na costa do Novo Mundo. 160

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fluxo desconexo de visões, aparece Colombo ainda trabalhando sobre seus livros, já tarde, na mesma atividade, contudo, em um novo local. A narrativa, nesse jogo intenso entre a realidade vivida pela personagem e os seus próprios sonhos e ambições, sofre nova progressão elíptica: a cena passa a ter como ambiente a Santa Fé, e o tempo é o crucial ano de 1492. Nas instâncias narrativas seguintes, são apresentados novos momentos em que a realidade se mescla com o sonho: revelam-se, então, imagens que preconizam o futuro. Descreve-se um sonho de Colombo, no qual ele já está iniciando sua viagem para o “descobrimento” das novas terras, misturando-se com a narração das ações que, por outra elipse, presentifica os momentos da viagem do “Almirante” rumo ao oeste, já em andamento nesse novo avanço na narrativa. O discurso presente no romance de Finley desconstrói a história da vida de Colombo e a reescreve, calcando-se nos fatos, locais e datas registradas pelo discurso histórico, narrando-os de modo que o leitor se dê conta de que sua imagem heroica é uma construção ficcional. À primeira vista, a narrativa de Finley irmana-se com o discurso de glorificação do herói presente em grande parte do discurso histórico tradicional; mas, pela estrutura do romance, inserem-se nele, meticulosamente e pelo emprego de estratégias metanarrativas, características que tornam o herói mais humano, talvez até, em certo ponto, cruel, e, sobretudo, voltado para seu próprio “eu”, para seus próprios sonhos e desejos – um fanatismo que o fez deixar para trás aqueles que passaram por sua vida. Assim, no romance, por um lado, busca-se humanizar o herói e, por outro, mantém-se as imagens instituídas pela cultura e pelos discursos da história oficial, revelando-se a presença da dialética da celebração do herói contraposta a alguns dos elementos dessacralizadores dessas imagens no mesmo romance. Tal efeito é alcançado pela conjunção da narrativa de ações bem conhecidas da vida de Colombo com a inserção, nesse relato, sem qualquer marca textual visível, de seus sonhos, suas alucinações, seus delírios: um jogo de focos narrativos que consegue evidenciar a conjunção dessas dicotomias. O fortalecimento das modalidades críticas que ressignificam o passado vivenciado por Colombo na literatura, cultivadas, em primeiro lugar, no contexto da América Hispânica – no final da década de 1970 e que, no final da década de 1980, como vemos no Quadro II anteriormente exposto, estenderam-se ao âmbito anglo-saxônico da América – levam essa porção do continente colonizado a vivenciar, da mesma forma que a hispano-americana, a terceira fase da trajetória do romance histórico: a crítica/mediadora.

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Tal fase, na literatura hispano-americana, instaura-se em 1980 162, mas, na anglo-saxônica norte-americana, tem suas primeiras evidências com as obras 1492: a novel of Christopher Columbus and his world (1990), de Newton Frohlich; The crown of Columbus (1991), de Michael Dorris e Louise Erdrich; Bay of arrows (1992), de Jay Parini; e The discoveries of Mrs. Christopher Columbus: his wife’s version (1994), de Paula DiPerna. Comentamos mais sobre a obra de DiPerna na seção final desta obra, revelando-a como escrita romanesca exemplar dessa modalidade mais atual das escritas híbridas de história e ficção na literatura estadunidense. A obra estadunidense mais recente que se volta à ressignificação dos eventos que marcaram os primeiros encontros e enfrentamentos entre europeus e tribos autóctones da América é Encounters Unforeseen: 1492 Retold, escrita em 2017, por Andrew Rowen. Esse romance apresenta uma narrativa híbrida de história e ficção a partir da ficcionalização da viagem de Cristóvão Colombo e seus primeiros contatos com os nativos americanos. Os eventos ressignificados pela ficção são revelados ao leitor a partir de uma perspectiva bicultural, apresentando as crenças, pensamentos e ações, tanto dos nativos quanto de Colombo e outros europeus reconfigurados na ficção. Sua escrita é baseada em fontes históricas e estudos antropológicos. A diegese alterna perspectivas ao focalizar alternadamente três chefes taínos (Caonabó, Guacanagarí e Guarionex), um jovem taíno capturado por Colombo, a rainha Isabel e o rei Fernando da Espanha, e o próprio Colombo. A narrativa aborda a educação, os amores, os casamentos e outras experiências de vida que cada personagem trouxe a esses “encontros imprevistos”, assim como seus medos, surpresas e objetivos nos anos de 1492 e 1493. A diegese proposta inclui, também, as visões da “descoberta” da Europa pelos nativos taínos, quando Colombo leva prisioneiros da tribo taína em sua viagem de regresso à Espanha. Ao longo da narrativa, as personagens autóctones taínos não são meras vítimas ou apenas números, mas, sim, personalidades e atores comparáveis aos europeus. A obra amalgama cenas e diálogos de registros históricos, frequentemente incorporando textos de fontes primárias. Assim, o leitor depara-se com a rainha Isabel que trama seu casamento, discute com Fernando sobre quem tem mais poder e cria guerras para expandir seus reinos. Os chefes taínos têm várias esposas para consolidar seu poder, batalham pela mão da linda autóctone Anacaona e combatem invasores no Caribe. Um desconhecido, Colombo, realiza uma importante viagem, casa-se por interesse, sofre uma década de rejeição e ridicularização e ensina o cristianismo aos nativos, dando início à rixa entre a religião cristã e os espíritos e crenças dos nativos. 162

Nossa pesquisa centrada na temática da produção romanesca da “poética do descobrimento” aponta como obra inaugural dessa modalidade mais atual do romance histórico, cujas produções vinculam-se à temática por nós estudada, o romance uruguaio Crónica del descubrimiento (1980), de Alejandro Paternain.

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Andrew Rowen é formado em Direito, pela universidade de Harvard, e trabalhou durante quase 30 anos em um dos maiores escritórios de advocacia de Nova Iorque, até se aposentar para escrever Encounters Unforeseen: 1492 Retold (2017). Durante seis anos, Andrew pesquisou sobre os registros históricos do passado de 1492 e visitou as localidades do Caribe, Europa e do Atlântico, territórios onde os eventos sobre os quais narra aconteceram no passado. Assim, esteve, inclusive, em sítios arqueológicos onde viviam as tribos taíno, no Haiti e na República Dominicana. Sua obra dá, assim, seguimento às produções da segunda fase do romance histórico: a crítica/desconstrucionista, inaugurada, nos Estados Unidos da América, em 1987, por Stephen Marlowe. Pelo exposto nesta subseção, observamos que a literatura estadunidense contempla, pois, todos os tipos, fases e modalidades de romances históricos dentro do contexto da “poética do descobrimento”. Essa é uma excepcionalidade, pois, em nenhuma outra literatura nacional, as imagens escriturais de Cristóvão Colombo produzem esse oceano imenso de produções entre nós. Tal fato nos possibilita estudar a própria trajetória na história do gênero romance histórico nesse contexto geográfico restrito. A literatura estadunidense é, dessa maneira, o espaço escritural mais amplo e variado das imagens escriturais de Colombo do qual temos conhecimento e constitui-se, assim, num campo frutífero de estudos da trajetória do gênero e das imagens do marinheiro que aqui procuramos sintetizar. Na sequência, vejamos como essas imagens laudatórias primeiras – das modalidades clássica scottiana e tradicional – das escritas estadunidenses refletiram-se, quase um século depois, na literatura espanhola. Esse é o espaço geográfico que proporcionou os eventos históricos tantas vezes já recriados na ficção. Também observaremos, nesse espaço geográfico, histórico e cultural, como – da mesma forma que na porção anglo-saxônica americana –, aos poucos, essas visões ficcionais laudatórias que tratam dos primeiros encontros e enfrentamentos entre espanhóis e nativos americanos começam a alinhar-se com perspectivas críticas que ressignificam esses eventos de 1492, pelo emprego da mediação.

3.2 DAS ONDAS EXALTADORAS ÀS MARÉS MEDIADORAS: COLOMBO NA LITERATURA ESPANHOLA A tradição exaltadora e apologética estadunidense, voltada às leituras da história pela ficção sobre o contexto dos primeiros contatos entre nativos americanos e a tripulação espanhola comandada por Cristóvão Colombo, em sua primeira travessia ao Atlântico, realizada em outubro de 1492, estende-se às obras produzidas na Espanha do começo do século XX, conforme nossas pesquisas têm mostrado. (FLECK, 2005, 2008, 2017). 154


Na literatura espanhola contemporânea, conforme os estudos que temos realizado no âmbito das leituras do “descobrimento” da América na ficção desde 2003 – seguindo aquela já efetuada por Heloisa Costa Milton, que resultou em sua tese Histórias da história: retratos literários de Cristóvão Colombo, defendida na USP, em 1992 –, a exaltação e a apologia, típicas nas produções estadunidenses que se voltam ao marinheiro Cristóvão Colombo e suas ações, incidem, no contexto europeu, sobre o estado espanhol, na figura dos Reis Católicos. Desse modo, essas produções romanescas espanholas consagram, na escrita híbrida de história e ficção, as ações dos Reis Católicos, Isabel e Fernando, e toda a sua empresa de unificação política, religiosa e linguística do território espanhol, cuja empresa é, em seguida, também, levada aos contextos de conquista e colonização da América. No Quadro III, que expomos abaixo, sintetizamos algumas das mais significativas ocorrências da produção de imagens escriturais de Cristóvão Colombo no contexto do romance histórico espanhol no qual reverberam, a princípio, os ecos exaltadores, mitificadores e apologéticos das produções estadunidenses do século XIX para, gradativamente, no final do século XX, aparecerem obras na modalidade crítica/mediadora. No contexto espanhol, contudo, a diversidade de expressões romanescas sobre as ações do marinheiro que cruzou o Atlântico a serviço dos Reis Católicos em 1492 é bem mais restrita, conforme podemos observar nas modalidades do romance histórico que essa literatura nacional tem cultivado ao longo de décadas. Quadro 3 – Produções romanescas sobre Cristóvão Colombo na Literatura Espanhola 3 FASES DO ROMANCE HISTÓRICO 1- Fase: acrítica 2- Fase: 3- Fase: De 1814, com crítica/desconstrucionista crítica/mediadora Waverley, de Scott, até De 1949, com El reino de este Desde a década de 1980, os nossos dias mundo, de Alejo Carpentier, até com as reações do pósos nossos dias boom, até os nossos dias 5 MODALIDADES DE ROMANCES HISTÓRICOS 1- Romance 2- Romance 3- Novo 4- Metaficção 5- Romance histórico histórico romance historiográfica histórico clássico tradicional histórico contemporâne scottiano latinoo de mediação americano “IMAGENS ESCRITURAIS DE COLOMBO”: OCORRÊNCIAS NA LITERATURA ESPANHOLA Romances históricos tradicionais Romances históricos contemporâneos de mediação - En Busca del Gran Kan (1928), de - El manuscrito Carmesí (1990), de

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Vicente Blasco Ibáñez; - El caballero de la virgen (1929); de Vicente Blasco Ibáñez - Cristóbal Colón (1940), de J. Poch y Noguer; - Colón nació en América (1948), de J. M. Zuloaga e Y. de Marroquín; - Cristóbal Colón. Evocación del Almirante de la Mar Océana (1963), de Felipe Ximénez de Sandoval; - El enigma de Cristóbal Colón (1964), de Renato Llanas de Niubo; - No serán las Indias (1988), de Luisa López Vergara; - Yo, Colón (1991), de Vicente Muñoz; - Isabel, reina de América (1999), de Sorkunde Frances Vidal; - Cristóbal Colón – Rumbo a Cipango (2002), de Edward Rosset.

Antonio Gala; - Cristóbal Colón Llora por ti la tierra (1992), de Hernández Ramón; - El último manuscrito de Hernando Colón (1992), de Vicente Muñoz Puelles; - El secreto de Colón (1994), de Luís María Carrero; - Carta del fin del mundo (1998), de José Manuel Fajardo; - Colón a los ojos de Beatriz (2000), de Pedro Piqueras; - La pérdida del paraíso – trilogía – (I- Guanahaní, II- El fuerte Navidad, IIICaribe) (2002), de José Luis Muñoz; - La ruta de las tormentas: diario de a bordo de Hernando Colón (2005), de Paula Cifuentes; - La Tumba de Colón (2006), de Miguel Ruiz Montañez*1; - Colón, el Impostor (2006), de Luis Melero; - Anacaona: la última princesa del Caribe (2017), de Jordi Díez Rojas*2.

Fonte: Elaborado pelo autor em 2020. *1: Escritor espanhol radicado na República Dominicana. *2: Romancista espanhol residente na República Dominicana desde 2006.

Ao observarmos o Quadro III sobre a produção espanhola das imagens escriturais de Colombo e dos eventos de 1492 ficcionalizados, notamos que a produção de romances nesse espaço histórico-cultural da Espanha revela uma produção dicotômica de retratos do marinheiro num processo que se iniciou em 1928, na escrita de Vicente Blasco Ibáñez, e que se estende até a produção do século XXI, numa escrita de romances históricos contemporâneos que se ajustam às premissas da modalidade mais atual de escritas híbridas de história e ficção que nomeamos de romance histórico contemporâneo de mediação. Pelas ocorrências da produção de imagens escriturais de Colombo encontradas em nossas pesquisas, que não pretendem ser totalizadoras, e certamente não o são, constatamos que a figura do marinheiro, ao ser recriada na prosa espanhola da segunda década do século XX, conquistou, como se poderia esperar, um espaço prestigiado de configurações entre os literatos das letras espanholas dessa época. A entrada de Colombo na produção romanesca espanhola deu-se de forma semelhante ao que passou na literatura estadunidense. A personagem his156


tórica Cristóvão Colombo contava já com produções literárias – líricas e dramáticas – antes de 1928, literatura espanhola, quando se produz o primeiro romance que renarrativiza suas ações. Não podemos deixar de mencionar, também, que a Espanha é o espaço inaugural das imagens autoescriturais do marinheiro – produzidas desde o seu Diário de bordo (1492-1493) às demais escritas colombinas consideradas fontes históricas – bem como o berço das produções autobiográficas da personagem, com a primeira biografia de Colombo, escrita por seu filho Fernando Colombo. Dessa maneira, como evidencia a recorrência de romancistas a esse tema, essas produções chegaram a se constituir em uma tradição como ocorreu nos Estados Unidos, espaço no qual os poetas do século XVII já instituíram a consagração da figura enaltecida do marinheiro em obras que se estenderam, naturalmente, à prosa do século XIX e, nela, instauraram-se como uma das expressões mais recorrentes do Romantismo e do Realismo. As pesquisas acadêmicas de Heloisa Costa Milton (1992) – que abrangem a produção literária espanhola e hispano-americana sobre Colombo até o ano de 1989 – não chegaram a contemplar o período no qual há uma transformação sensível na rota incerta dessas produções romanescas. O estudo de Milton, assim, revela a dialética da paródia – acentuada no espaço hispanoamericano – e da exaltação – cultivado no âmbito espanhol – existente nas produções da temática no universo hispânico dos dois lados do Atlântico. Hoje, pela análise das produções expostas no Quadro III, já podemos afirmar que essa dialética da exaltação e renovação 163 encontrou seu espaço de expressão dentro da própria literatura nacional espanhola. Nele, vemos que, desde a década de 1990, tem-se apresentado, com certa recorrência, escritas críticas/mediadoras com relação ao tema aqui exposto. Na tese de Milton (1992), a dualidade do discurso ficcional produzido, de um lado, pelos romancistas espanhóis que exaltam o mentor do projeto marítimo e aqueles que o apoiaram, e de outro, pelas obras hispano-americanas que desmistificam a figura “heroica” de Colombo, é efetivamente comprovada nos estudos de 1992. 163

Nossa dissertação, Imagens metaficcionais de Cristóvão Colombo: uma poética da hipertextualidade – defendida na UNESP-Assis/SP, no ano de 2005 –, dá seguimento aos estudos da tese de Milton (1992), ao traçar um panorama dessas produções híbridas da temática que se volta aos eventos históricos de 1492 – agora estudadas por nós sob a dicotomia da exaltação e renovação presentes, respectivamente, na literatura espanhola e na hispano-americana. Nosso corpus de estudo nessa pesquisa – efetuada entre 2003 e 2005 – são os romances: Colón a los ojos de Beatriz (2000), do espanhol Pedro Piqueras e El último crimen de Colón (2001), do argentino Marcelo Leornardo Levinas. Já em nossa tese, O romance, leituras da história: a saga de Cristóvão Colombo em terras americanas, defendida na mesma instituição, em 2008, abrangemos, também, o espaço americano anglo-saxônico, da “poética do descobrimento” para comprovar que a produção hispano-americana crítica/desconstrucionista, iniciada já na década de 1970, conseguiu influenciar a tradição exaltadora e apologética, instituída na literatura estadunidense, levando escritores desse contexto a produzirem, no final da década de 1980, as primeiras escritas críticas sobre as ações de Colombo na América.

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Contudo, o discurso apologético sobre Colombo e suas ações, no romance histórico, não tem sua origem no universo da literatura espanhola, como se poderia depreender da pesquisa de Milton (1992), já que a produção de romances históricos voltados aos eventos do “descobrimento” da América na literatura norte-americana anglo-saxônica – universo ficcional não contemplado no contexto de investigação da pesquisadora – é, como aqui mostramos, muito anterior à espanhola. Milton (1992), em sua tese, menciona que as obras espanholas por ela analisadas – En busca del Gran Kan (1928), de Blasco Ibánez, que inaugura a fase acrítica da produção espanhola sobre Colombo; e No serán las Indias (1988), de Luiza Lopes Vergara, que, à época da pesquisa realizada, ainda evidenciava o espaço acrítico unívoco da ficção espanhola em relação às ações de Colombo – “são realizações dos cânones tradicionais do romance histórico. Neles, a história ocupa o primeiro plano, enquanto os componentes ficcionais servem de substrato que deflagra a reconstituição da verdade dos acontecimentos” (MILTON, 1992, p. 184). A tese de Milton (1992) apresenta os resultados de uma extensa pesquisa sobre romances históricos hispânicos que contemplam a figura e os feitos de Colombo, traçando uma comparação entre as imagens desse, geradas por romancistas hispano-americanos – cuja escrita se mostra mais paródica – e os escritores espanhóis – que, por sua vez, buscam, no romance histórico, uma forma de exaltação do Estado espanhol e seus agentes mais diretos, entre eles os Reis Católicos, Isabel e Fernando. Os romances que proclamam a “exaltação” da empresa descobridora – En busca del Gran Kan (1958), de Blasco Ibáñez e No serán las Indias (1988), de Luisa Lópes Vergara – são os primeiros a serem abordados pela pesquisadora, cujos resultados sintetizamos à continuação. Conforme a análise de Milton (1992), todo o teor de exaltação da obra de Blasco Ibáñez (1958) já se revela no prefácio da obra. Tal exaltação, confor me comenta a pesquisadora (1992), encontra no teor do romance a sua continuação. Contudo, a construção do estatuto heroico de Colombo é corroborada por aspectos desestabilizadores, marcando, assim, a necessidade desse em apoiar-se na firmeza do heroísmo dos soberanos espanhóis, no Estado que o financia. A diegese do romance envolve a vida de dois jovens apaixonados em fuga (Cuevas e Lucero), que são socorridos por Colombo e que passam a acompanhá-lo em todas as suas vivências. Esses jovens passam a ser modelos dos colonizadores que desbravarão as terras americanas e que darão origem aos “criollos”, que constituíram a camada “ilustrada” das sociedades do “Novo Mundo”. De acordo com os registros de Milton (1992), a trama é várias vezes interrompida e as ações estagnam-se porque o narrador instaura digressões para dar conta das explicações históricas. Grandes panoramas histórico-sociais 158


interrompem as ações das personagens, porém, possibilitam à narrativa ficcional ancorar-se firmemente no discurso histórico. Dessa forma, “o romance chega a padecer de insuficiência poética [...], em certa medida deixa de ser cativante [...] e perde em originalidade e novidade [...].” (MILTON, 1992, p. 75). A crítica brasileira registra, ainda, que “o narrador, fonte fictícia da enunciação, solidariza-se no texto com o autor – fonte não fictícia, formando ambos um híbrido consistente neste processo de fazer da invenção literária um monumento historiográfico.” (MILTON, 1992, p. 75). Nesse contexto, a pesquisadora, em seu trabalho analítico, registra: “[...] o romance, descontadas as suas excelências, torna-se um ardil discursivo, faz-se trama de encaixe da explanação exaltadora. Colombo é o seu pré-texto histórico e novelesco, o elogio da Espanha o seu texto final.” (MILTON, 1992, p. 82). A análise desenvolvida revela que as intenções do narrador consistem em criar uma imagem de Colombo que só pode ser heroica a partir de sua vassalagem aos Reis Católicos e engrandecida com a participação dos espanhóis na “empresa descobridora”, pois “nele se desestabilizam a figura de Colombo (e os mitos que o moveram) para engrandecimento dos seus coadjuvantes e a consequente ocupação, pelos mesmos, da cena principal.” (MILTON, 1992, p. 74-75). As constatações resultantes da análise da obra, confrontadas com as bases teóricas anteriormente evidenciadas, levam a pesquisadora a registrar: “Com Blasco Ibáñez, portanto, a narrativa ficcional e a história já não guardam solidariedade, já não exercem mútua cooperação: conjugam-se num todo único.” (MILTON, 1992, p. 98). A abordagem a esse romance se encera com uma leitura do posfácio, no qual o autor manifesta suas opiniões sobre o tema e o “herói”. Essas revelam irmanar-se com o discurso ficcional de sua obra, que desconstrói e reconstrói as imagens de Colombo. A obra de Luisa López Vergara (1988) – No serán las Indias -, analisada também por Milton será por nós comentada na última subseção deste estudo. Ao concluir a análise do romance de Lopez Vergara (1988), a pesquisadora registra ainda que, embora a obra busque trabalhar o passado com isenção, o fato de nela se transformar a lenda do Piloto Anônimo em tese, revela a opção histórica da autora. A tese, ao analisar também os romances hispano-americanos do corpus eleito pela pesquisadora – El arpa y la sombra (1970), de Alejo Carpentier, e Los perros del paraíso (1983), de Abel Posse – alcança seu objetivo de comprovar que os romances hispânicos da “poética do descobrimento” – produzidos até o ano de 1989 em contextos de países de fala castelhana, dos dois lados do Atlântico –, apresentam duas vertentes de escrita: uma exaltadora dos fatos e personagens, praticada mais pelos romancistas espanhóis, e outra mais paródica, típica das escritas críticas dos romancistas hispano-americanos. A modalidade tradicional do romance histórico, acrítico e exaltador de heróis e feitos do passado – primeira a se manifestar no espaço da literatura 159


espanhola – sofre uma considerável reviravolta com as aproximações do quinto centenário da primeira travessia ao Atlântico, empreendida por Colombo, no fim do século XV. Nessa época, um número considerável de obras críticas/desconstrucionistas sobre a temática colombina já havia aparecido com certa recorrência no espaço colonizado da América que, diante das “comemorações” dos feitos históricos de 1492, revela sua postura descolonizadora. Cremos que essas imagens escriturais de Cristóvão Colombo – produzidas em territórios antes colonizados – provocaram, também no solo espanhol, na última década do século XX, uma revisão do passado que levou alguns romancistas a olharem para os acontecimentos de 1492 com novas percepções. A prática escritural desses romancistas espanhóis do final do século XX passou a seguir, assim, certa tendência que impactou, da mesma forma, a literatura canônica exaltadora e apologética instituída desde o século XVII nas letras estadunidenses. Sem alinhar-se às modalidades críticas/desconstrucionistas da segunda fase, mas aproximando-se muito das prerrogativas do romance histórico de mediação – já dentro da terceira fase da trajetória do gênero – Antonio Gala escreve, em 1990, uma obra renovadora da temática colombina no contexto espanhol. O autor deixa-se guiar pelas características essenciais da modalidade crítica/mediadora do romance histórico ao configurar a diegese de El manuscrito Carmesí, inaugurando um novo oceano de imagens escriturais das personagens de extração histórica mais expressivas que compõem o cenário e o contingente das ações relevantes de 1492, desde um lócus enunciativo de dentro do espaço da antiga metrópole colonizadora. No romance El manuscrito carmesí (1990), Antonio Gala emprega, ao estilo de Cervantes, o recurso do manuscrito perdido que, encontrado, revela o passado desconhecido até então. Conforme explicita García Gual (2002), essa estratégia é bastante recorrente no romance histórico e serve como construto de verossimilhança. Na “Introducción” da obra, por meio de uma voz extradiegética, narra-se uma suposta pesquisa realizada por arquitetos franceses que, em 1931, encontram, na mesquita de Karauín, em Fez (Marrocos), um inusitado e incrivelmente conservado manuscrito, que, pela cor carmesim, reservada à chancelaria real do Alhambra, e pela caligrafia, pertenceriam ao último sultão nasrida de Granada, Boabdil. Esse sultão, de ascendência marroquina – personagem de extração histórica –, foi quem entregou as chaves da cidade de Granada aos Reis Católicos – Isabel e Fernando –, na histórica rendição dos mouros, em 1492, acontecimento marcante na história da unificação do território que hoje constitui a Espanha e que extinguiu o Islã da Península Ibérica. Tal personagem histórica, reconfigurada na ficção, assume o papel de voz enunciadora do discurso no relato de Antonio Gala, contemplando uma das premissas

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essenciais do romance histórico contemporâneo de mediação: um foco narrativo ex-cêntrico. Na diegese, já aos sessenta e quatro anos, Boabdil dá testemunho de sua vida, promovendo uma retrospectiva, desde sua relativa infância feliz, até a maturidade conturbada. Nessa rememoração, a personagem protagonista detalha aspectos de sua juventude, como seu treinamento como um príncipe culto e refinado que, posteriormente, não serviu para as tarefas do governo, levando-o a uma épica derrota. A voz enunciadora autodiegética relata, ainda, os pormenores das discussões entre os pais, as paixões e afetos que viveu, a desconfiança nutrida para com seus conselheiros políticos, bem como a aversão que nutria pelos Reis Católicos, Isabel e Fernando. Ao narrar eventos significativos do período da Reconquista, empreendida por parte dos Reis Católicos, desvelam-se seus fanatismos, crueldades, traições e injustiças. Temos, assim, uma linguagem dotada de criticidade e melancolia, de um pai que se explica aos filhos, ou a de um homem à deriva, falando consigo mesmo, em seu último refúgio. O desamparo do homem diante do destino, por conseguinte, torna-se um símbolo constante da obra. A qualidade desse romance híbrido de história e ficção – que rompe a voz exaltadora, unívoca da Espanha, sobre os eventos passados de 1492 – confere a Antonio Gala o “Prêmio Planeta”, em 1990. Ceder na ficção um espaço de expressão a uma visão e voz expostas como derrotada pela escrita da historiografia, dando condições de expressão ao rei que foi expulso da Espanha, no contexto da Reconquista da Península Ibérica, configura a obra de Gala (1990) como sendo um romance histórico contemporâneo de mediação, de acordo com as características da modalidade que foram estabelecidas em nossa obra de 2017. A personagem Boabdil, como foco narrativo ex-cêntrico, cujos enunciados manifestam-se em nível intradiegético e em voz autodiegética, subjetiva o material histórico sob a perspectiva do vencido, promovendo a desmistificação dos “grandes heróis” da historiografia, uma das premissas da mais atual modalidade do romance histórico, e, no caso, do romance de Gala (1990). Isso ocorre com os consagrados nomes da Espanha do século XV. Além dessa característica, verificamos, também, o emprego de recursos metaficcionais, uma vez que, partindo de uma idade bem avançada, o protagonista decide contar, antes que suas memórias se apaguem, os momentos mais marcantes de sua vida. Para isso, o relato vale-se de certa manipulação da linguagem, do tempo e do espaço que, de forma sutil, servem, muitas vezes, para localizar seu narratário/leitor no tempo-espaço recriado na ressignificação do passado pela ficção. A estratégia de encontrar um manuscrito há muitos séculos perdido garante ao romance de Gala (1990) a construção da verossimilhança, primeira 161


premissa do romance histórico de mediação, além de seguir, no decorrer da diegese, uma leitura ficcional do passado de modo linear, com relatos que vão da infância para a fase adulta do narrador-protagonista que exibe, frente ao leitor, perspectivas não expostas no discurso historiográfico tradicional. A fase crítica/mediadora das imagens escriturais de Colombo e de outras personagens históricas relevantes no cenário da Espanha de 1492 encontra acolhida na produção romanesca de outros romancistas espanhóis que escrevem dentro da modalidade do romance histórico contemporâneo de mediação uma série de romances, tanto de autoria feminina como de masculina, que projetam, dentro da realidade literária europeia em geral, novos olhares sobre o passado que nos uniu e, ao mesmo tempo, distanciou-nos na perspectiva da alteridade. As produções primeiras de romances históricos contemporâneos de mediação, da fase crítica/mediadora – que concilia certas características da fase tradicional com outras críticas da fase mais desconstrucionista – ganham forças no espaço espanhol após o quinto centenário da primeira viagem de Colombo ao Oriente, pela via oeste. Nessa modalidade crítica/mediadora de escritas híbridas de história e ficção, no contexto da literatura espanhola da década de 1990, são representativas, como exposto no Quadro III, as obras Cristóbal Colón Llora por ti la tierra (1992), de Hernández Ramón; El último manuscrito de Hernando Colón (1992), de Vicente Muñoz Puelles; El secreto de Colón (1994), de Luís María Carrero; Carta del fin del mundo (1998), de José Manuel Fajardo; a trilogia La pérdida del paraíso (2002) – composta pelos romances I- Guanahaní, II- El fuerte Navidad, III- Caribe –, de José Luis Muñoz; o romance La ruta de las tormentas: diario de a bordo de Hernando Colón (2005), de Paula Cifuentes e Colón, el Impostor (2007), de Luis Melero. Como produções espanholas da “poética do descobrimento”, destacamos, também no Quadro III, dois romances de escritores de nacionalidade espanhola, porém há bastante tempo residentes na República Dominicana: La Tumba de Colón (2006), de Miguel Ruiz Montañez e Anacaona: la última princesa del Caribe (2017), de Jordi Díez Rojas. Parte desse contexto de produção romanesca híbrida de história e ficção sobre imagens escriturais de Colombo na década de 1990 está contemplado no estudo de Bernardo Antonio Gasparotto, Diálogos entre o Velho e o Novo Mundo: uma leitura de Vigilia del Almirante (1992) e Carta del fin del mundo (1998)164, que constitui sua dissertação na área de Literatura Comparada, defendida em 2011, na Unioeste de Cascavel-PR. Ao tomar como corpus de análise a metaficção historiográfica, Vigilia del Almirante (1992), do paraguaio Augusto Roas Bastos e o romance espanhol Carta del fin del mundo (1998), do espanhol Manuel Fajardo, a pesquisa realizada estabelece a obra de Roa Bastos como um “divisor de águas” nas imagens 164

Essa foi a primeira dissertação que orientamos no contexto das produções híbridas de história e ficção que se voltam às imagens escriturais de Cristóvão Colombo nas literaturas hispânicas.

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escriturais de Colombo, pois, segundo Gasparotto (2011), a partir dessa relevante publicação hispano-americana, no contexto da “poética do descobrimento”, passou-se a publicar apenas romances alinhados à modalidade mediadora nos diferentes espaços geográficos e histórico-culturais abordados em nossas pesquisas. Com relação ao romance Carta del fin del mundo (1998), de José Manuel Fajardo, o pesquisador aponta que se trata de uma narrativa que apresenta um discurso que busca revelar uma nova faceta do encontro entre os dois mundos, produzida sob a perspectiva do colonizador. Desse modo, a leitura que Gasparotto (2011) faz do romance espanhol em questão é a de que ela é uma obra na qual se prima pela invenção e criatividade na reconstrução que procura fazer dos possíveis fatos ocorridos com o grupo de trinta e nove espanhóis deixados na ilha “La Española”, por Cristóvão Colombo, em janeiro de 1493, quando esse retorna à Espanha para comunicar aos Reis Católicos o sucesso de sua “empresa descobridora”. A criatividade na ressignificação ficcional desses eventos evocados na diegese de Carta del Fin del mundo (1998) dá-se devido ao fato de que não há registros oficiais daquilo que passou a esse grupo de espanhóis deixados na ilha “La Española” que não pode regressar à Espanha na ocasião da primeira viagem de Colombo. Isso ocorreu por dois motivos: a perda da nau Santa María, que chocou contra um arrecife e afundou no dia 24 de dezembro de 1492, e o abandono da tripulação de uma das caravelas comandadas pelos irmãos Pinzón da empresa de Colombo, em plena execução nas ilhas do Caribe, não havendo, na única caravela à disposição do marinheiro, espaço para todos regressarem. Quando a segunda expedição de Colombo retorna ao Fuerte Navidad, construído com os restos de madeira da nau Santa María, não há qualquer sobrevivente desse contingente espanhol deixado na ilha e, da mesma forma, nenhum registro do que poderia haver ocorrido com eles foi encontrado. Livre dos registros históricos aos quais os romancistas espanhóis se atinham com grande afinco na fase acrítica da produção de imagens escriturais de Colombo na literatura espanhola, a diegese pode primar pela criatividade e a invenção, privilegiando, de forma especial, aspectos não consignados nas escritas oficializadas. Frente a esse contexto de renovação na produção de imagens escriturais de Colombo na literatura espanhola contemporânea, Gasparotto (2011, p. 10-11) destaca: Da mesma forma como a anglo-saxônica, que, segundo a tese de Fleck (2008), faz-se crítica a partir das leituras hispano-americanas no fim da década de 80, do século XX –, a espanhola revela, pois, a partir do fim da década de 90, uma proposição de diálogos, presentes na obra de Fajardo (1998), bem como no início do século XXI, com a trilogia La

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pérdida del paraíso (2002) – (I-Guanahaní; II-El Fuerte Navidad; III-Caribe –, de José Muñoz.

A diegese de Carta del fin del mundo (1998) está exposta em formato epistolar, sem a divisão em capítulos ou partes, num relato contínuo, supostamente escrito por um dos sobreviventes espanhóis deixados na ilha “La Española” em 1493, por Cristóvao Colombo. Nessa “carta”, o protagonista relata a seu irmão que ficou na Espanha as suas impressões de um espaço totalmente novo e os acontecimentos que o levaram a se separar do grupo de espanhóis que permaneceu no Fuerte Navidad à espera do regresso de Colombo. A verossimilhança do relato é assegurada, igual como faz Antonio Gala na diegese de El manuscrito Carmesí (1990), pelo truque do manuscrito perdido que, uma vez encontrado, é organizado por um recompilador, como podemos observar no fragmento a seguir: Hasta aquí, […] la copia, enmendada por obra del escribano, de la carta de que me hizo llegar, entre otros muchos escritos, […] Hace ya seis años, y que según dicen fue escrita por uno de los nombres que dejó el Almirante Don Cristóbal Colón en la isla La Española al término de su primer viaje a las Indias. […] La carta encontró la una partida de gente de armas que acudió recién a apaciguar a los indios de la tierra que llaman del Cibao, […] encontró la carta en una de las grandes cabañas que habitan, los indios, guardada con otras cosas que mostraban ser también de cristianos […] Os ruego, pues, que destruyáis esta carta o la guardéis celosamente, de manera que de cuanto en ella se dice se haga silencio165. (FAJARDO, 1998, p. 167-169).

Essa forma de escrita epistolar, que no romance se assemelha a um diário, possibilita à voz enunciadora do discurso expor, livremente, o fluxo de suas ideias e percepções sem preocupar-se com aspectos relativos à escrita historiográfica ou às questões de ordem cronológica bem delimitadas, numa linguagem fluída e amena. José Manuel Fajardo (1998), ao reconstruir, em seu romance Cartas del fin del mundo, as aventuras vividas pelo grupo de espanhóis recém-chegados ao “Novo Mundo”, toma a perspectiva de um desses aventureiros. Desse modo, a voz do narrador é a do toneleiro Domingo Pérez, natural de Bermeo – tripulante da nau Santa María, que havia naufragado naquela ilha, personagem de extração histórica. Na recriação literária do acontecimento histórico impossível de ser recuperado objetivamente por não haver nenhum registro dos fatos ocorridos, 165

Nossa tradução livre: Até aqui, […] a cópia, organizada por obra do escrivão, da carta que me foi entregue, entre muitos outros escritos, [...] Faz já seis anos, e que segundo dizem foi escrita por um dos homens que deixou o Almirante Don Cristóvão Colombo na ilha La Española ao término de sua primeira viagem às Índias. [...] A carta foi encontrada por um grupo armado que partiu numa missão para pacificar os índios da terra que chamam de Cibao, [...] encontrou a carta em uma das grandes cabanas que habitam os índios, guardada com outras coisas que mostravam ser também de cristãos [...] Peço, pois, que destruas esta carta ou a guardes cuidadosamente, de maneira que tudo que nela consta seja silenciado.

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o narrador do romance, além de justificar a sua aventura em busca de melhores condições de vida, manifesta o desejo de contar ao irmão – que ficou cuidando do pai doente na Espanha –, a quem destina as cartas que escreve, o que acontece no dia a dia nesse “Novo Mundo” e a razão que os move nessa aventura. Segundo a voz enunciadora: “[...] el brillo del oro ha sido la poderosa razón que a todos nos ha animado a quedarnos en esta tierra incógnita mientras el Almirante vuelve a Castilla a dar razón de cuanto hemos visto e descubierto.166” (FAJARDO, 1998, p. 21). Em Cartas del fin del mundo, ao se utilizar o gênero epistolar, dá-se vazão ao subjetivismo, aspecto verificável em vários pontos da obra, especialmente nos momentos em que o narrador, primeiramente, oferece uma ideia geral sobre o que ocorreu em determinado momento, para, apenas depois, especificála, detalhando como se deu a ação relatada, quem se envolveu nela e os resultados menores que podem ter influenciado no desfecho das ações. Ao levarmos essa característica da obra em consideração, constatamos que ela se constitui, por um lado, em uma narração intradiegética, uma vez que o narrador vive os fatos que estão sendo descritos e ficam explicitados os sentimentos vividos por ele nas situações que relata ao narratário. Podemos observar, por outro lado, que se materializa, também, ao longo da narrativa a presença de um narrador em nível extradiegético, pelo fato de se revelar na diegese fatos ocorridos com outras personagens alheias ao universo conhecido do protagonista. Essas poderiam ser as intervenções do recompilador dos materiais perdidos que lhe foram entregues. Observamos, ainda, que a obra tem caráter tanto autodiegético, já que um dos narradores presentes é o escritor das cartas que retrata fatos vividos por ele; assim como há um narrador heterodiegético, pois, ao final, somos informados de que as cartas não chegaram ao seu destinatário (narratário), mas, sim, às mãos da igreja. Nesse momento, o narrador deixa de ser autodiegético e passa a ser heterodiegético. Assim, a obra desenvolve uma narrativa polifônica em relação às ações dos primeiros espanhóis em terras americanas. O romance de Fajardo abrange tanto uma dimensão intra quanto extradiegética, com a presença de uma voz enunciadora autodiegética e outra heterodiegética, de forma evidente, marcando a presença da dialogia que estabelece um intenso diálogo entre os diferentes discursos sobre as ações dos europeus nas terras encontradas por Colombo em sua rota a Cipango e Cathay em 1492. Na diegese de Cartas del fin del mundo, revela-se um discurso em tom nostálgico e confidencial, no qual se enumeram as atrocidades, as intrigas, as discórdias, os desmandos, a cobiça, a inveja, a matança de que a história não se

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Nossa tradução: [...] o brilho do ouro tem sido a razão poderosa que tem nos animado a todos a permanecer nesta terra desconhecida enquanto o Almirante retorna a Castela para dar razão de tudo quanto temos visto e descoberto.

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exime pelo fato de que não houve sobreviventes para relatar alguma outra versão dos fatos. O discurso empregado na obra busca revelar uma nova faceta do encontro entre os dois mundos, ou seja, a percepção do “outro”. Se Cristóvão Colombo, conforme registra Todorov (1983), em toda sua experiência de descoberta, não chegou a dar-se conta da existência do “outro”, as narrativas ficcionais buscam, na contemporaneidade, exercitar-se em escritas que procuram dar a esse passado uma visão do “eu” e do “outro” que não chegaram, de fato, a se encontrar naquele momento histórico. Desse modo, a obra de Fajardo cria uma diegese na qual se revela que, logo após a chegada dos espanhóis na América, o seu contato com a população nativa foi agradável e desprovido de receios, ao contrário de como poderia se esperar por parte dos nativos, cujo território estava sendo ocupado por seres estranhos. Com a maior interação das relações sociais entre autóctones e espanhóis, elucida-se o motivo pelo qual os nativos tratavam de forma tão amistosa os estranhos homens brancos: eles eram tidos como “enviados do céu”, deuses. Devido a essa espécie de temor, misturada com devoção, os europeus eram tratados de forma tão benevolente. A voz enunciadora revela o modo como os espanhóis desfrutavam dessa crença dos nativos: El señor Moguacainambó dijo que ya sabía el gran valor que dábamos al oro y que sin duda sería por ser este cosa turey, que en su lengua quiere decir cosa que viene del cielo, y nada había más natural que nosotros, que también éramos turey, amásemos los dones celestiales. Y es que estas gentes creen sinceramente que somos enviados del cielo y nos miran como si fuésemos dioses. Puedes creerlo? Te imaginas a tu hermano convertido en un dios? Yo también me río y tanta credulidad hace que estos indios se me representen como niños temerosos. Muchas veces hemos de contener la risa para no dar al traste con un equívoco que tanto nos beneficia.167 (FAJARDO, 1998, p. 28).

Entre outras demonstrações de agressividade e violência desnecessárias por parte dos espanhóis com relação a esse povo “dócil e ingênuo”, é narrada no romance de Fajardo aquela na qual o narrador menciona que os espanhóis estavam instalados em uma aldeia, mantendo boas relações com os índios, e acabam por invadir a cabana do cacique para obter informações acerca da morada de Yucemí (Deus branco que se alimentava de ouro) e do paradeiro da mina de ouro. Na invasão, os espanhóis acabam por ferir uma série de índios, inclusive levando um à morte. Para obter as informações desejadas, a 167

Nossa tradução: O senhor Moguacainambó disse que já sabia do grande valor que nós dávamos ao ouro e que, sem dúvida, seria por ser isto coisa turey, que em sua língua significa coisa que vem do céu, e nada era mais natural do que nós, porque também nós éramos turey, amarmos os dons celestiais. E é que essa gente acredita sinceramente que somos enviados do céu e nos olham como se nós fôssemos deuses. Dá para acreditar nisso? Imagina teu irmão se tornando um deus? Eu também acho engraçado tanta credulidade destes índios que parecem crianças medrosas. Muitas vezes temos que segurar a risada para não cometer um erro que tanto nos beneficia.

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personagem Chanchu esquenta a lâmina de sua espada no fogo e a utiliza para queimar a planta dos pés do cacique, que não resiste muito e acaba por entregar a informação desejada. Para garantir sua saída em segurança da aldeia, levam o cacique e suas esposas como reféns (FAJARDO, 1998, p. 132-135). Nesse mesmo viés, apresenta-se na versão ficcional dos eventos outro momento no qual se pode confirmar a maldade e o sadismo do povo do “Velho Mundo”, jamais mencionados nos registros oficiais, como se pode observar no fragmento: “Una chiquilla apareció muerta en uno de los caminos que llevaban a la aldea. Había sido violada tantas veces y con tal brutalidad que la habían desgarrado. Cuando la muchacha fue llevada al poblado, la ira se encendió. 168” (MUÑOZ, 2002, p. 300). Nesses momentos, é possível observar uma espécie de reprodução do ambiente violento, autoritário e sádico possível de ter existido na Europa daquela época da reconquista e que veio a se materializar, também, nas ações dos conquistadores em solo americano. Tais possibilidades são explicitadas em diversas figurações grotescas como essa da garota estuprada e, desse modo, várias cenas de violência para com os nativos espalham-se em muitos momentos da narrativa da obra de Fajardo. Podemos, na ficção que recria as imagens escriturais de Colombo, imaginar que os homens que seguiam a doutrina cristã não eram tão fiéis a seus princípios quanto o eram na hora de pregá-los ou impô-los a outros povos, uma vez que não foi muito difícil se habituarem aos costumes pagãos, estranhos a sua cultura, como dormir em redes: “[...] cada cual acostado en su hamaca, que son redes de algodón que se cuelgan entre dos árboles o dos ganchos, si es dentro de una cabaña, y es el lecho que usan los indios y que ahora usamos también los cristianos.169” (FAJARDO, 1998, p. 52) e tantas outras novas formas culturais com as quais entraram em contato em solo americano e que, com grande entusiasmo, os espanhóis absorveram e passaram a praticar. Tal debilidade nos valores cristãos pode ser observada no relato ficcional em momentos como quando os espanhóis compactuam de rituais de dança, que seriam tidos como pagãos por qualquer inquisidor, com os nativos. A configuração dada aos espanhóis na obra de Fajardo permite que esses criem laços com a cultura local, possibilitando-lhes que se encontrem, também, nas ações dos outros para descobrir um lado deles até então amarrado por laços morais e sociais. Assim, mediante a cultura do outro, os espanhóis se dão conta do quão distantes encontram-se de seus próprios princípios sociais e religiosos, que até então eram tão sólidos. 168

Nossa tradução: Uma jovenzinha apareceu morta em uma das estradas que levam ao vilarejo. Ela tinha sido estuprada tantas vezes e com tal brutalidade que a desgarraram. Quando a jovem foi levada ao povoado, acendeu-se a ira. 169 Nossa tradução: cada um deitado em sua rede, as quais sao feitas de algodão e que são penduradas entre duas árvores ou dois ganchos, se for dentro de uma cabana, e é um leito que usam os índios e que agora usamos também nós os cristãos.

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Outra característica fundamental da obra de Fajardo é a forte carga de descrição do ambiente e de costumes dos nativos, bem como a visão dos espanhóis que tudo viam com estranheza, desde a falta de roupa e, consequentemente, de pudor, até a forma de trabalho, não visando ao lucro. Essa estranheza fica clara em certos momentos como quando os europeus confundem dois peixes-boi com as figuras mitológicas conhecidas por sereias (FAJARDO, 1998, p. 64-75). Nesses momentos do relato, muitas vezes, constatamos a tendência de o narrador chamar, ou dar a entender, que o ambiente em que se encontravam os marinheiros deixados ali por Colombo poderia ser considerado como sendo o próprio paraíso, contrastando com o ambiente “sufocado” do qual eles haviam saído meses antes. As difíceis decisões que o narrador-personagem teve que tomar para apartar-se desse grupo de marinheiros e as situações inusitadas pelas quais passou ao longo de seu tempo nesse “paraíso” constituem os relatos que compõem a diegese de Cartas del fin del Mundo (1998). No século XXI, a literatura espanhola segue investindo em produções romanescas da “poética do descobrimento” sob o signo da mediação, privilegiando perspectivas marginalizadas ou negligenciadas pelo discurso historiográfico hegemônico tradicional e, também, pela produção, à época, das fontes escriturais sobre os eventos que precederam os que vivenciaram e os que se segui ram à travessia do Atlântico de 1492 pela frota espanhola rumo a Cipango e Cathay, comandada por Cristóvão Colombo. Entre essas obras, destacam-se os romances Colón a los ojos de Beatriz (2000), de Pedro Piqueras e a trilogia La pérdida del paraíso, composta pelas obras: Guanahaní, El fuerte Navidad, Caribe (2002), de José Luis Muñoz. Piqueras, no prólogo de seu romance, informa que “[…] a modo de novela en primera persona, y con un respeto profundo por la Historia y los historiadores 170” (PIQUERAS, 2000, p. 14) o relato romanesco busca resgatar a memória de Beatriz Enríquez de Harana, a mulher que viveu ao lado de Colombo ao longo de sua estadia na Espanha, quando buscava apoio à sua empresa marítima às Índias, via oeste. Segundo comenta a personagem Colombo à sua companheira, “[...] desde entonces me he convertido en la sombra de los reyes. Les he seguido a todos aquellos lugares a los que con su corte fueron.171” (PIQUERAS, 2000, p. 54). Assim, na diegese de Piqueras, narram-se fatos relativos à história da personagem Colombo, sob a perspectiva de Beatriz, antes e depois do encontro do marinheiro com as terras além do Atlântico. O relato é feito por um narrador que assume a visão e a voz de Beatriz Enríquez de Harana, numa enunciação autodiegética. Beatriz será a protagonista que dividirá o espaço ficcional com o marinheiro que 170

Nossa tradução: [...] a modo de romance em primeira pessoa, e com um respeito profundo pela História e pelos historiadores. 171 Nossa tradução: Desde então eu me tornei a sombra dos reis. Eu os segui por todos aqueles lugares onde eles foram com sua corte.

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incansavelmente busca seguir os Reis Católicos para alcançar o apoio necessário a seu projeto de navegação. Assim, Colombo será presença constante em suas memórias, embora ausente muitas vezes de sua vida. Na voz enunciadora de Beatriz, Colombo era um sujeito “[...] obstinado hasta la impertinencia.” (PIQUERAS, 2000, p. 41)172. Beatriz narra do leito de morte, na agonia final à espera do confessor e no ininterrupto fluxo de suas memórias – que se estenderá até o capítulo final da obra. Também nos é dada a primeira descrição, cheia de antagonismos, de Colombo: “He sido la mujer, que no esposa, de un hombre grande, tenaz, ambicioso, bondadoso, cruel, esquivo y cariñoso a veces.173” (PIQUERAS, 2000, p. 17). Revela-se, também, nessas lembranças da protagonista, o papel que ela desempenhou na vida de Colombo: Le di un hijo y campaña, cuando no sosiego y ánimos. Le di caricias y desvelos y me sentí de sobra pagada con una mirada, con una sonrisa, con un gesto. Fui prudente como un cuerpo etéreo al que se llama y viene, al que se despide y va. Estuve cuando fui deseada y desaparecí cuando así él lo quiso, no pudo pedir más el navegante. 174 (PIQUERAS, 2000, p. 17).

A personagem de Piqueras, apesar de romantizada e conformada, lança olhares críticos sobre a situação que vivenciava ao lado do marinheiro, sendo mãe de seu filho Fernando e cuidadora do filho que ele teve em Portugal com Felipa Moniz Perestrelo. O olhar dessa mulher sofredora revela o quanto conhecia o homem com quem havia imaginado casar-se algum dia: Por supuesto que le conocía y que sabía cuál era el orden que ocupaba en el mundo personal del navegante. Primero su aventura, después sus hijos y hermanos y seguidamente los reyes y quienes ayuda pudieran prestarle. Y más atrás, yo misma. Hablamos acaloradamente de ello, dio un portazo y se fue. Unas horas más tarde volvió. Ni hablamos ni nos miramos. Al día siguiente las cosas se sucedieron como si nada hubiera pasado, como si no hubiéramos discutido. Fue como si el navegante hubiera arrancado una página amarga de cualquiera de los libros que solía leer. Preferí no hablar nunca más de aquello que nos enfrentó, pero tampoco perdí la

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Nossa tradução: teimoso até o ponto de ser impertinente. Nossa tradução: Eu tenho sido a mulher, não a esposa, de um homem grande, persistente, determinado, ambicioso, bondoso, cruel, esquivo e carinhoso às vezes. 174 Nossa tradução: Dei-lhe um filho e uma campanha, e também sossego e ânimos. Dei-lhe carícias e noites em vela e senti-me paga em abundância com um olhar, um sorriso, um gesto. Fui prudente como um corpo etéreo ao qual se for chamado este aparece, se for dispensado este vai embora. Estive presente quando fui desejada e sumi quando ele não me quis mais, não pode se queixar o navegante. 173

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esperanza de que al final las cosas fueran como yo deseaba.175 (PIQUERAS, 2000, p. 101).

Desse modo, a perspectiva marginalizada de Beatriz Enríquez de Harana, que sustenta a visão do romance de Piqueras (2000), ressignifica muitas das imagens escriturais exaltadoras e apologéticas do marinheiro oriundas da historiografia tradicional e da ficção acrítica dos romances históricos clássico e tradicional que o configuraram ao longo dos séculos e evidenciam as características da nova modalidade crítica/mediadora na qual a ficção espanhola mais atual revisita o passado que uniu os dois continentes. Isso também ocorre na trilogia de Muñoz, La pérdida del paraíso (2002), na qual apresenta-se a visão do primeiro encontro entre os expedicionários da frota de Colombo e os nativos americanos e das principais aventuras dos espanhóis no “Novo Mundo”. Na primeira obra que compõe a trilogia, intitulada Guanahaní, sob o foco narrativo da personagem espanhola Marín de Urtubia, um ex-preso, poeta, que servirá de escrevente ao “Almirante” e do autóctone Camani, que servirá de intérprete entre os nativos e os europeus recém-chegados a sua terra, os primeiros contatos e enfrentamentos entre as culturas que se chocaram em 1492 serão revelados. Na diegese, a amizade que se estabelece entre o escrevente e o nativo possibilita uma visão bilateral do encontro entre os dois mundos e essa perspectiva é vista, por nós, como uma tentativa de construção da alteridade pela arte literária espanhola mais recente no contexto da “poética do descobrimento”. O caráter crítico/mediador da narrativa de Muñoz aparece logo no princípio, ainda no relato da viagem de travessia, quando, ao ser requisitado por Colombo para escrever seu Diário, o poeta Marín de Urtubia toma certas liberdades na execução da tarefa de escrever o que Colombo lhe dita. Isso se dá na ficção devido ao pouco conhecimento da língua espanhola que o marinheiro demonstrava ter. O narrador aponta as impressões do comandante da frota sobre a atuação do escrevente: “[…] licencia que irritaba frecuentemente al Almirante cuando, tras el dictado, le hacía repetir lo escrito. ‘- No he dicho eso.’ ‘- Pero lo habéis intentado’. ‘- Dudo entre castigaros o premiaros, insolente escribano.’ 176” (MUÑOZ, 2002, 175

Nossa tradução: Mas claro que eu o conhecia e que sabia qual era a ordem que eu ocupava no mundo pessoal do navegante. Primeiro, sua aventura, depois seus filhos e irmãos e em seguida os reis e quem puder lhe servir de ajuda. E bem lá atrás, eu mesma. Discutimos acaloradamente a respeito, e ele foi embora batendo com força a porta. Algumas horas depois voltou. Nem falamos, nem olhamos um para o outro. No dia seguinte, as coisas ocorreram como se nada tivesse acontecido, como se não tivéssemos discutido no dia anterior. Foi como se o navegante tivesse arrancado uma página amarga de qualquer dos livros que costumava ler. Preferi não falar nunca mais daquilo que nos fez brigar, mas também não perdi a esperança de ter, no final das coisas, o que eu desejava. 176 Nossa tradução: licenças [tomadas] que irritavam com frequência o Almirante quando, depois do ditado, ele lhe fazia repetir o escrito. ‘-Eu não disse isso.’ ‘-Mas tentou dizer’. ‘-Não sei se

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p. 29). Vemos, pois, que os registros, outrora zelosamente feitos pelo “Almirante”, ganham, na ficção, o auxílio da visão de um poeta, o qual contribuirá com novos olhares sobre os eventos desse fato histórico tão significativo para americanos e europeus de todos os tempos. Dessa maneira, vemos que, no primeiro tomo da trilogia de Muñoz – Guanahaní –, relatam-se, sob a ótica do escrivão e do indígena intérprete, os primeiros meses do encontro entre os nativos americanos e os europeus em suas explorações ao “Novo Mundo”, uma experiência que vai ganhando contornos diferenciados daqueles conhecidos por meio do discurso historiográfico hegemônico. No segundo tomo – El Fuerte Navidad – narram-se, sob os mesmos pontos de vista, as aventuras dos homens deixados por Colombo na ilha “La Española” ao regressar à Espanha, dialogando, assim, de forma muito profícua, com a obra de Fajardo (1998) que recria esse mesmo período temporal e as possíveis ações do primeiro grupo de conquistadores espanhóis em terras americanas. Conforme se evidencia no relato, a construção do Fuerte Navidad, símbolo da instalação colonizadora na América, logo se transforma em um impulso aos desmandos e à anarquia. A personagem-narradora, Marín de Urtubia, acompanha as lutas desordenadas dos espanhóis pelo poder, a busca incansável dos tesouros, que despertam uma ambição desenfreada em seus compatriotas e a lascívia ante as mulheres taínas. Entre todas as belas mulheres, é Canayma que lhe arrebata o coração. A seu lado e de seu amigo Camani, ele se torna testemunha de todas as atrocidades cometidas pelos espanhóis e decide abandonar seu povo para juntar-se ao de sua amada. Assiste, porém, aos desastres que aniquilam todos os seus. Pelo discurso ficcional da obra de Muñoz (2002), evidencia-se que os nativos viam os espanhóis como seres vindos do céu. No entanto, os nativos aí configurados, rapidamente, dão-se conta desse equívoco na configuração dos estranhos seres que chegaram às suas terras, devido às ações pouco hábeis executadas pelos europeus, e, assim, os espanhóis passam a ser vistos sob outras nuances. Portanto, a visão divinizada primeira dos nativos a respeito dos invasores foi sendo descaracterizada, não ficando tão marcante o caráter mítico nas relações entre autóctones e europeus, como se pode ver nas palavras do narrador: Armados con ballestas, lanzas y cuchillos y arrastrando apostados en escondidos lugares a que algún infortunado pájaro aleteara por su lado o alguna carnosa bestia se dejara aflechar. En sus diarias partidas de caza eran observados por los impertérritos taínos, que podían menos que sonreír ante la torpeza como cazadores de esos dioses que cada vez lo eran menos a sus ojos.177 (MUÑOZ, 2002, p. 19-20). puni-lo ou recompensá-lo, escriba insolente’. 177 Nossa tradução: Armados com balestras, lanças e facas e arrastando-se prontos por lugares escondidos para nenhum pássaro desafortunado bater assas ao seu lado ou alguma besta carnuda

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Revelar a percepção do nativo em relação às ações dos europeus também mostra o intento da construção da alteridade nas narrativas aqui enfocadas. A traição e a covardia eram outros elementos constatados pelos nativos nos espanhóis descritos na obra de Muñoz. Tal fato se evidencia quando o narrador descreve a cena de um espanhol assassinando um compatriota: “‘- ¡Viva el gobernador don Juan de la Plaza!’ – gritó y, casi al mismo tiempo, hundía la daga en el pecho del notario, entre las costillas, con certera puntería, dañándole el corazón, la sacaba y le segaba la garganta a continuación.178” (MUÑOZ, 2002, p. 189). Essas características estão presentes nas obras de Munõz (2000) e Fajardo (1998) e remetem, novamente, à questão do outro, quando os espanhóis consideravam os nativos covardes e ingênuos. A covardia era um reflexo interior de sua forma de vida, sua insegurança frente ao desconhecido, enquanto que a ingenuidade era reforçada frente à excessiva ambição e ganância espanhola. A sede de poder e riquezas desses tornaria qualquer ação distinta deveras ingênua, “prestativa” e “condescendente”. No último tomo da trilogia – Caribe – relatam-se as experiências de Marín e Camani como prisioneiros de uma tribo de canibais e o desfecho trágico da amizade entre o europeu e seu amigo autóctone, feita pela visão já bastante híbrida de Marín de Urtubia após toda uma caminhada ao lado de seu fiel amigo Camani que soube lhe impregnar com muitos valores da cultura oral dos pacíficos taínos, habitantes nativos da ilha de Guanahaní. Muñoz, da mesma forma como já o havia feito Fajardo, em 1998, dá, dessa forma, um destaque especial à liberdade de criação já que não há registros oficiais de cronistas sobre esses eventos. Diferentemente da postura de muitos de seus compatriotas que, em relação ao “descobrimento” da América por Colombo e sua frota, buscam manter-se dentro dos limites do que já foi dito pela historiografia oficial, como é o caso de todos os romances acríticos, expostos no nosso Quadro III – com discursos que, antes de questionar os fatos do passado sob uma visão crítica, acabam sendo um metarrelato de legitimação desses fatos. Na trilogia La pérdida del paraíso (2000), de Muñoz, prima-se pela invenção e criatividade na ressignificação que busca fazer dos possíveis fatos ocorridos com o grupo de trinta e nove espanhóis deixados em “La Española” por Cristóvão Colombo – em janeiro de 1493, quando esse retorna à Espanha para comunicar aos Reis Católicos o sucesso de sua empresa descobridora – uma reflexão crítica sobre a atuação colonizadora espanhola na América. Já a tentativa de Edward Rosset (2002), em sua obra Cristóbal Colón rumbo a Cipango, busca retratar Colombo como um ser humano comum, deixar ser atingida pelas suas flechas. Nas caçadas diárias eles eram observados pelos destemidos taínos, que não podiam menos do que sorrir diante do jeito desajeitado dos caçadores, daqueles deuses, que cada vez perdiam seu status divino diante dos seus olhos. 178 Nossa tradução: ‘-Vivas para o governador dom Juan de la Plaza!’ – gritou e, quase ao mesmo tempo, apunhalou com a adaga o peito do escrivão, entre as costelas, com pontaria precisa, danificando o coração, arrancou-a e lhe cortou a garganta em seguida.

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apontando suas virtudes e seus defeitos, as grandezas e as misérias desse homem que, pela configuração de sua obra, acaba sendo um “herói” mítico. Tais retratos literários do marinheiro resgatam, no século XXI, as imagens escriturais exaltadoras de Colombo na literatura espanhola, confirmando nossa afirmação da existência dessas duas linhas distintas de abordagem aos eventos de 1492 no espaço geográfico, histórico-cultural da Espanha contemporânea. A narrativa começa com o salvamento de Colombo do naufrágio de 13 de agosto de 1476 e sua chegada a Portugal, país no qual busca apoio dos judeus, amigos de seu pai. Suas origens são assim apontadas: “[…] respondió Cristóforo en el español sefardita que, al fin y al cabo, era su lengua materna. 179” (ROSSET, 2002, p. 15). O judeu Juan Piastro, que o recebeu em sua casa, torna-se o mentor das ações e planos de Colombo, pois primeiro lhe apresenta sua futura esposa, como se denota quando esse anuncia “[...] el tal Perestrelo también dejó una hija, que es, por cierto, una joven muy atractiva.180” (ROSSET, 2002, p. 17). Depois, essa mesma personagem lhe proporciona informações que, sabemos, foram essenciais para seus planos, como se nota em uma de suas conversas quando o marinheiro lhe pergunta: “¿quién es Toscanelli? – preguntó Cristóforo. [...] – Paolo del Pozzo Toscanelli es un conocido matemático y físico florentino 181” (ROSSET, 2002, p. 21). Dessa conversa, resulta, também, o grande plano da vida de Colombo, revelado pelo narrador na voz da personagem judia: “[…] y parece ser que este le hizo la observación de que, ya que la tierra es redonda, ¿por qué no ir a las Indias por el poniente? – ¡Ir a las Indias por el Poniente! ¡Qué gran idea! – exclamó Cristóforo.182” (ROSSET, 2002, p. 21). A influência desse judeu anônimo vai mais longe ainda se observarmos a sutileza das informações do narrador ao pôr em sua boca questões que, mais tarde, seriam essenciais na trajetória histórica do “Almirante”, como por exemplo: “Me imagino que no habrás leído la Medea de Séneca. Cristóforo negó con la cabeza.183” (ROSSET, 2002, p. 24). Assim, é da boca de Juan Piastro que Colombo ouve uma das informações que mais presentes estiveram em seus futuros escritos, crenças e ambições “[...] –¿Eso dice Séneca, eh? Me gustaría saber quién será ese descubridor – dijo Cristóforo pensativo.184” (ROSSET, p. 2002, p. 25). 179

Nossa tradução: respondeu Cristóforo em espanhol sefardita que, no final das contas, era sua língua materna. 180 Nossa tradução: o tal de Perestrelo também deixou uma filha, que, aliás, é uma jovem muito atraente. 181 Nossa tradução: quem é Toscanelli? - perguntou Cristóforo. [...] - Paolo del Pozzo Toscanelli é um conhecido matemático e físico florentino. 182 Nossa tradução: [...] e parece que ele lhe fez a observação de que, já que a terra é redonda, por que não ir para as Índias pelo poente? – Ir para as Índias pelo Poente! Que grande ideia! – exclamou Cristóforo 183 Nossa tradução: – Suponho que não tenha lido a Medeia do Sêneca. Cristóforo balançou a cabeça. 184 Nossa tradução: [...] – Então, o Sêneca disse isso, hein? Gostaria de saber quem será esse descobridor –, disse Cristóforo pensativo.

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Dessa forma, constatamos, ao longo da obra de Edward Rosset, muitos dos mistérios da vida do genovês serem preenchidos com a imaginação criadora de um experiente escritor de assuntos marítimos, suas viagens às terras “descobertas” e seus difíceis relacionamentos com os superiores, sendo repassados sob o ponto de vista de um narrador heterodiegético, além dos amores que despertaram as belas indígenas nos espanhóis recém-chegados ao “Novo Mundo”. Em seguida, é a escrita crítica/mediadora de La ruta de las tormentas: diario de a bordo de Hernando Colón (2005), de Paula Cifuentes, que apresenta novas perspectivas das travessias ao Atlântico, empreendidas por Colombo ao longo de sua vida. Na última seção deste estudo, daremos atenção ao título mencionado. Essa obra de autoria feminina é seguida pelo romance Colón, el Impostor (2006), de José Melero. No relato de Melero são narradas as polêmicas que envolvem a figura histórica de Colombo, aspectos sobre as personalidades importantes que o protegeram, incluindo a igreja, a polêmica sobre sua ascensão social, as mulheres que o cercaram, as supostas histórias de sua juventude promíscua nos diversos portos da época, suas diversas identidades, juntamente com seus sucessos e fracassos. Nesse sentido, são elencadas várias possibilidades, mas nenhuma afirmação é absoluta, tal qual se dá em sua história oficial. O que se pode notar ao longo da obra é que as imagens do “Almirante” são constantemente desestabilizadas e, assim, outras personagens tomam uma dimensão maior, como os irmãos Pinzón, que acabam aparecendo como “heróis” injustiçados. Dessa forma, Luis Melero vai descortinando ao longo de sua obra uma série de hipóteses sobre alguns dos enigmas que, até hoje, cercam a figura de Cristóvão Colombo. A obra mais recente no contexto da “poética do descobrimento”, escrita por um romancista espanhol, é Anacaona: la última princesa del Caribe. Essa narrativa híbrida de história e ficção é do romancista Jordi Díez Rojas, que nasceu na Catalunha e reside na República Dominicana desde 2006. Na diegese dessa narrativa híbrida, a personagem de extração histórica Fray Ramón Paner, após permanecer por 26 anos como catequizador nas terras encontradas por Colombo em sua primeira travessia ao Atlântico, retorna a Barcelona. A voz enunciadora, diante da visão conhecida do seu lugar de partida para o “Novo Mundo” enuncia: “hacía veintiséis años que había salido de ese mismo lugar, un cuarto de siglo que había cambiado su vida y la de toda la gente que había amado. Veintiséis años que habían secado su piel y su alma. Veintiséis años acumulados en la joroba soberbia que avergonzaba su hábito de fraile.185” (DÍEZ ROJAS, 2017, p. 8). 185

Nossa tradução: fazia vinte e seis anos que ele tinha saído daquele mesmo lugar, um quarto de século que mudou sua ida e a de todas as pessoas a quem ele amou. Vinte e seis anos que secaram sua pele e alma. Vinte e seis anos acumulados na corcunda magnífica que envergonhava seu

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Essa personagem traz na memória o testemunho de sua chegada à ilha de Ahíti, junto a um grupo de espanhóis, sob o comando de Cristóvão Colombo, enviados à América para conquistar e colonizar esse “Novo mundo”. Parte dessa sua experiência o Frei traz na memória, porém, outra mantém escrita em seus fólios e “agarró con las dos manos temblorosas el estuche de madera que colgaba em su pecho186” (DÍEZ ROJAS, 2017, p. 9), os quais pretendia entregar ao prior, antes de que fosse tarde demais, já que estava muito enfermo, sem forças e certo do fim. Assim, a personagem só pede: “– Dios, concédeme un poco más de tempo187” (DÍEZ ROJAS, 2017, p. 9), para chegar ao Mosteiro de São Jerônimo de la Murtra onde “la llegada del monje enfermo había revolucionado el monastério casi tanto como la llegada inminente del imperador188” (DÍEZ ROJAS, 2017, p. 11). Uma vez em mãos do prior do Mosteiro – antigo conhecido e amigo da personagem – os registros de Fray Ramón Paner zelosamente guardados no estojo que carregava no peito, o Frei inicia sua confissão ao prior: – Bien, en él encontraréis lo que debéis saber. Actuad como Dios os dicte. – Así lo Haré – le respondió el prior también en el idioma catalán – Empezad, hermano. – Padre, he pecado, soy un asesino – el prior Fray pere Benejan lo miró con más curiosidad que reproche, – ¿Cómo podéis decir eso, hermano Ramón? – Padre, soy culpable de haber destruido la obra de Dios, de haber profanado su gran creación, de haber derramado la sangre de sus hijos en el éden de nuestros ancestros – y fray Ramón Paner comenzó la confesión por la que había cruzado medio mundo.189 (DÍEZ ROJAS, 2017, p. 13).

Após sua morte, os escritos de frei Ramón ficam em posse do prior e tornam-se o prisma pelo qual ele passa a conhecer o universo de choques que presenciou e vivenciou seu colega no “Novo Mundo”. As ações conquistadoras dos espanhóis são narradas na diegese ao lado dos momentos que o frei havia compartilhado junto aos nativos que, unidos em torno da figura de seu líder, Caonabó, e de sua bela esposa, Anacaona, tentam se defender de um choque de mundos e culturas, enfrentando as barbáries cometidas pelos invasores que buscam insanamente por ouro na América. hábito de frade. 186 Nossa tradução: segurou com as duas mãos trêmulas o estojo de madeira que pendurava no seu peito. 187 Nossa tradução: - Deus, concedei-me um pouco mais de tempo. 188 Nossa tradução: a chegada de um monge doente tinha causado uma revolução no monastério, quase tanto quanto a chegada iminente do imperador. 189 Nossa tradução: - Bem, nele encontrará o que deve saber. Agir como Deus manda. - Assim farei - respondeu o prior também em língua catalana - Pode começar, irmão. -Padre, eu pequei, sou um assassino - o prior, Irmão Pere Benejan, olhou para ele mais com curiosidade do que com repreensão. -Como pode dizer isso, irmão Ramón? -Padre, sou culpado de ter destruído a obra de Deus, de ter profanado sua grande criação, de ter derramado o sangue dos seus filhos no Éden dos nossos antepassados - e o padre Ramón Aner começou a confissão pela que tinha atravessado a metade do mundo.

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Na diegese de Anacaona: la útima princesa del caribe (2017), entrecruzam-se perspectivas do relato em primeira pessoa de frei Ramón, com outros relatos em nível extradiegético, que vão trazendo imagens que revelam ações de ambas as culturas que se enfrentam, chocam-se, atritam-se e lutam, desesperadamente, para defender os valores que mantêm cada uma delas em suas distintas naturezas. As distintas formas de abordar a “poética do descobrimento” pelos romancistas espanhóis e as múltiplas imagens escriturais que se depreendem da personagem Cristóvão Colombo nas obras acima mencionadas fazem parte de uma grande galeria de possíveis releituras e ressignificações do passado que busca evidenciar o encontro entre o “Velho” e o “Novo Mundo”. A dimensão dessas imagens do “descobridor” transcende aquelas consagradas pelo discurso histórico hegemônico, de cunho positivista. Por um lado, elas se aliam a esse discurso exaltador e apologético e, por outro, confirmam as tendências desmistificadoras das fases críticas das escritas híbridas de história e ficção mais contemporâneas e ressignificam esse passado de forma polifônica. Dá-se, desse modo, a reinvenção do discurso histórico pela ficção, Europa e América foram unidas pelas ações de um homem que se imaginava um enviado especial de Deus, com uma grande missão a cumprir em seu tempo. Embora seus sonhos e desejos não tenham se realizado segundo a sua vontade, somos todos descendentes de seus projetos. A significação de suas ações, porém, é inegável e segue intrigando os homens de ambos os lados do Atlântico. Nesse oceano de imagens escriturais de Cristóvão Colombo, ora pacífico, ora revoltoso é que, agora, encaminhamonos, novamente, ao outro lado do Atlântico, onde as imagens escriturais de Colombo foram produzidas sob o signo da crítica desconstrucionista, em primeira instância, para, depois, passar aos paradigmas que marcam as produções mais atuais que denominamos de romances históricos contemporâneos de mediação. Dessa maneira, na sequência, abordamos aquelas imagens escriturais oriundas do lócus enunciativo das nações colonizadas, espaços geográficos e histórico-culturais que se enfrentaram com os invasores europeus desde os seus primeiros contatos, ainda no final do século XV, e que buscam, na atualidade, produzir na escrita híbrida de história e ficção efeitos discursivos que levem os povos pós-coloniais à, ainda, necessária descolonização efetiva em muitos setores de suas recentes nações.

3.3 O REVOLTOSO OCEANO FICCIONAL DOS COLONIZADOS – COLOMBO EM IMAGENS ROMANESCAS CRÍTICAS HISPANO-AMERICANAS Ao longo desta obra, temos visto que as escritas híbridas de história e ficção que se constituem como romances históricos passaram por uma série de 176


transformações estruturais, ideológicas e discursivas ao longo de sua ainda curta trajetória, adaptando-se às mudanças ocorridas na sociedade e, em especial, às formas que elas desenvolveram para conceber o passado no presente. Nesse percurso, iniciado em 1814, será no espaço hispano-americano – inserido num intenso processo de renovação da narrativa latino-americana, iniciado em 1940 – que as tradicionais releituras do passado pela ficção, desenvolvidas nas modalidades acríticas do primeiro grupo de romances históricos a surgir desde o Romantismo europeu, serão mais profundamente alteradas. No espaço das ex-colônias da Espanha na América, o cultivo das escritas híbridas de história e ficção do primeiro grupo de romances históricos – que constituem as duas modalidades acríticas do gênero: a clássica scottiana e a tradicional – não poderiam seguir vigentes como único meio de diálogo entre ficção e história no contexto do século XX, após estarem, de certo modo, mais consolidadas as múltiplas identidades no contexto híbrido e mestiço das Américas. Conscientes de que “não é exagero dizer que não há tradição, cultura, língua e raça que não tenha contribuído para esse fosforescente turbilhão de misturas e alianças que acontece em todos os aspectos da vida na América Latina” (VARGAS LLOSA, 2006, p. 9), os escritores latino-americanos, em especial, procederam às ressignificações do passado, mais livres da busca por uma identidade nacional, para revelar que a América já pode “ser um continente que carece de identidade porque têm todas elas” (VARGAS LLOSA, 2006, p. 9). Até a metade do século XX, o Ocidente chegou a conhecer grandes obras híbridas de história e ficção, saídas das plumas de reconhecidos escritores de diferentes nações que, diante dos problemas sociais vivenciados no período do Romantismo e do Realismo, em especial, empenharam-se em se aliar à historiografia e, pela ficção, reavivar antigas propostas de mudanças pela exaltação a personagens consideradas modelos de fortaleza, determinação e heroísmo. Esse imenso grupo de produções acríticas frente ao discurso historiográfico hegemônico tradicional, de bases escriturais eurocêntricas, positivistas, vinculadas ao exercício do poder, estabeleceu-se, como parâmetro, para a grande maioria das produções híbridas que resgatavam do passado os modelos de homens e as heroicas ações que pudessem, no momento da leitura, ativar, na consciência do sujeito-leitor, as mesmas sensações que moveram as “grandes” ações do passado nacional, num processo de empatia que funcionava como um espelho no qual se reproduziam, como ideologias e discursos, os mesmos propósitos conquistadores e colonizadores dos séculos passados. Nesse contexto das escritas – seja da historiografia ou da ficção –, os heróis-modelos sempre atuavam em favor das forças conquistadoras e colonizadoras – às quais prestavam reverência e submissão – e, pela configuração exaltadora e mistificadora da escrita literária, instituíam-se como exemplos a serem seguidos pelos cidadãos do presente. 177


Com a propagação dos estudos sobre historicismo e a popularização do gênero romance histórico, este é modificado consciente e inconscientemente pelos romancistas que se valem dele para renarrativizar o passado pela ficção. Um dos exemplos principais de romance histórico tradicional, apresentado também em Márquez Rodríguez (1991, p. 13), é Guerra e Paz, de Leon Tolstoi. Nesse romance, notamos como as características principais dos romances de Scott, de algum modo e em algum grau, já foram modificadas. Na referida obra, vemos um teor histórico bastante relevante, que já não mais representa apenas um método de possibilitar a diegese de se desenvolver. Nessa construção discursiva, a história agora passa a ter motivos e razões para ser apresentada em determinada obra, inclusive com versões que diferem daquela oficializada historicamente. No contexto da expansão do gênero a muitas outras nações além daquela scottiana primeira, o gênero passa, inevitavelmente, às terras americanas. No espaço histórico-cultural da América Latina, a primeira ocorrência dessa escrita híbrida dá-se em 1826, por um autor anônimo – supostamente mexicano –, que se volta ao passado da conquista do Império Asteca, pela tropa espanhola comandada por Hernán Cortés, em 1519, para, no presente da escrita do romance – inserido no momento das lutas pela independência do México da metrópole espanhola –, ressignificar esse processo de subjugação como evidência da necessidade de lutar pela liberdade que, naquela ocasião do passado, não havia sido entendido pela massa autóctone que se deixou iludir pelos invasores. Desse modo, no romance anônimo Xicoténcatl (1826) – o primeiro romance histórico escrito em território latino-americano 190, – invertem-se os polos costumeiros da tradição escritural híbrida. Essa, por um lado, sempre buscou exaltar as figuras de conquistadores europeus e louvar suas ações de subjugação da população autóctone americana, para conquistar seus territórios e anexá-los às coroas europeias e, assim, iniciar o ciclo de explorações em todos os sentidos e, por outro, justificar – pela “barbárie” e politeísmo dos nativos, considerados, na escrita historiográfica e ficcional tradicional, como sujeitos sem alma, sem lei, sem religião – toda e qualquer ação dos europeus para submetê-los às leis do conquistador, à sua religião e ao seu modo de vida. Nesse processo europeu de conquista da América – não somente do território geográfico, mas, também, do espaço imaginário e existencial das populações nativas –, ignorava-se e menosprezava-se qualquer manifestação do universo cultural, religioso e social advindo das populações conquistadas, pois a grande maioria dos agentes diretos da conquista e colonização não foram intelectuais ou sujeitos com formação renascentista primorosa, mas, sim, soldados pagos, remanescentes da Reconquista, aventureiros gananciosos, arrivistas, condenados e desterrados que, nesse espaço propício ao exercício do poder e da 190

Esse primeiro romance histórico escrito no espaço latino-americano foi, finalmente, traduzido, por nós, ao português, em 2020, publicado pela Editora CRV, de Curitiba-PR.

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força, ganhavam, pela violência e crueldade de suas ações, um status de cidadãos do “Novo Mundo”. Diante dessa inegável realidade, o nascimento do romance histórico em terras conquistadas da América Latina – com Xicoténcatl (1826), de autoria anônima – apresenta como herói-protagonista o jovem autóctone tlaxcalteca Xicoténcatl. Esse, ao compreender o perigo que representavam os invasores de seu território, luta, incansavelmente, no campo intelectual. Nesse sentido, o protagonista, personagem de extração histórica, não mede esforços para convencer seu povo e outros líderes nativos do perigo de uma aliança deles com os invasores para defender-se do Imperador asteca Monctezuma, cujas ações não eram bem vistas por muitas das tribos da região, pois o soberano conquistava e escravizava outras tribos no território. Por outro lado, o jovem Xicoténcatl também luta no campo de batalha. É ele quem lidera ataques e ofensivas ao grupo de soldados espanhóis que precisam atravessar seu território para chegar à capital do Império. Por fim, vencido no campo intelectual e também no bélico pela superioridade das armas espanholas, o jovem – símbolo da luta e resistência mexicana ao invasor europeu – é enforcado e esquartejado, seguindo-se ordens do conquistador Hernán Cortés e a conquista do Império Asteca se consolida. É, pois, esse jovem autóctone que, em 1519, lutou até a morte contra um processo de subjugação e aculturação dos povos nativos, que se edifica como herói no primeiro romance histórico hispano-americano, Xicoténcalt (1826). Herói nativo, ele serve de modelo de persistência e resiliência aos revolucionários mexicanos, partidários da independência em ação na época da publicação da obra anônima. Nesse contexto crítico de escrita híbrida de história e ficção, Colombo não alcançaria imagens edificantes e apologéticas – como foi comum na tradição estadunidense –, pois, para esses sujeitos conquistados, o marinheiro representa toda a sorte de desgraças que esse processo de domínio e exercício de poder europeu na América implementou. Assim, as modalidades acríticas – especialmente a tradicional – que instauraram na literatura estadunidense, do século XIX, e na espanhola, do século XX, as imagens edificadoras do “descobridor”, dos monarcas que o financiaram e de todos os conquistadores e colonizadores europeus que seguiram a sua rota às Índias Ocidentais, não reverberará no espaço literário hispano-americano. Nele, a partir da década de 1970, como se pode observar no Quadro IV que abaixo trazemos, começam a aparecer as primeiras ressignificações críticas/desconstrucionistas, como frutos maduros e consistentes da semente primeira do Xicoténcatl (1826), lançados nessa terra fértil e resistente do solo mexicano e, por extensão, ao da América Hispânica em geral. Alguns frutos dessa semente de resistência, lançados pelo Xicoténcatl de 1826, seguem listados abaixo.

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Quadro IV – Produções romanescas sobre Cristóvão Colombo na Literatura Hispano-americana e seus antecedentes sobre a conquista da América 3 FASES DO ROMANCE HISTÓRICO 1- Fase: acrítica 2- Fase: 3- Fase: De 1814, com crítica/desconstrucionista crítica/mediadora Waverley, de Scott, até De 1949, com El reino de este Desde a década de 1980, os nossos dias mundo, de Alejo Carpentier, até com as reações do pósos nossos dias boom, até os nossos dias 3- Novo romance 4- Metaficção historiográfica 5- Romance histórico histórico latinocontemporâneo de americano mediação Antecedentes: obras críticas sobre a colonização da América na literatura hispano-americana Xicoténcatl (1826), Anônimo Isla Cerrera (1937), de Manuel Méndez Ballester; El ocaso del quinto sol (1978), de Adela C. Irigoyen 5 MODALIDADES DE ROMANCES HISTÓRICOS “IMAGENS ESCRITURAIS DE COLOMBO” OCORRÊNCIAS NA LITERATURA HISPANO-AMERICANA Novo romance histórico Metaficção Romance histórico latino-americano historiográfica contemporâneo de mediação El arpa y la sombra (1979), de Alejo Carpentier;

Vigilia del Almirante (1992), de Augusto Roa Bastos.

El mar de las lentejas (1979), de Antonio Benítez Rojo; Los perros de paraíso (1983), de Abel Posse; Vida y tiempos de Juan Cabezón de Castilla (1985), de Homero Aridjis; Cristóbal Nonato (1987), de Carlos Fuentes; Maluco (1989), Napoléon Baccino Ponce de León; Memorias del Nuevo Mundo (1991), de Homero Aridjis; Las puertas del mundo (1992); de Herminio Martínez El libro de los descubrimientos (1992), de Gonzalo Ramírez Cubillan; Cristóbal Colón: vida y pasiones de

Crónica del descubrimiento (1980), de Alejandro Paternain; Colombo de Terrarrubra (1994), de Mary Cruz; La segunda muerte de Colón (1999), de H. B. Eduardo; El último crimen de Colón (2001), de Marcelo Leonardo Levinas; El Conquistador (2006), de Federico Andahazi; Tríptico de la infamia (2014), de Pablo Montoya.

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un descubridor (1992), de Arnoldo Canclini. Fonte: Elaborado pelo autor para esta obra, em 2020.

No Quadro IV, acima exposto, reunimos, em primeira instância, algumas das obras romanescas hispano-americanas de teor crítico que antecederam ao desenvolvimento da temática do “descobrimento” nesse contexto geo-cultural e histórico dos sujeitos colonizados, pois tais obras já tratam do processo de conquista e colonização do território pelos europeus. O destaque, nesse sentido, fica para o primeiro romance histórico escrito na América Latina, Xicoténcatl, publicado em 1826, e traduzido ao português, em 2020, por nós. Consideramos esse romance, como já comentamos, o embrião crítico de toda a produção híbrida de história e ficção latino-americana que, ao longo dos séculos, tem-se enfrentado com os registros historiográficos hegemônicos europeus, produzidos pelos cronistas, súditos devotos ou pagos pelas metrópoles colonizadoras, para registrarem para a posteridade os feitos da conquista e colonização do nosso território. A temática da conquista do império asteca, desenvolvido na diegese de Xicoténcatl (1826), é retomada pela escritora mexicana Adela C. Irigoyen, em sua obra El ocaso de quinto sol, de 1978, dando ao evento um olhar já mais contemporâneo, com o emprego de técnicas escriturais bastante desconstrucionistas. Já o romance Isla Cerrera (1937), de Manuel Méndez Ballester, dá-nos a possibilidade de imaginar algumas ações dos conquistadores e colonizadores cujos propósitos acabaram enfrentando-se com uma realidade oposta àquela desejada ou esperada. Mencionamos, no nosso Quadro IV, essas três obras antecedentes daquelas que julgamos pertencentes diretas à “poética do descobrimento”, produzidas no contexto hispano-americano, desde a década de 1979, pois cremos que elas foram propulsoras de ressignificações críticas/desconstrucionistas e críticas/mediadoras dentro do contexto das imagens escriturais hispano-americanas de Cristovão Colombo. Essas, por sua vez, são ressignificações do passado que confrontaram culturas diferentes que, em 1492, vivenciavam períodos históricos distintos, que cultivavam valores e costumes diversos e que, no choque resultante da tentativa de uma subjugar a outra, muitas atrocidades foram cometidas. Embora a prosa acerca dessa temática tenha sido inaugurada em 1840, em tons laudatórios no discurso estadunidense e tenha reverberado no espanhol desde as produções de En Busca del Gran Kan (1928), de Vicente Blasco Ibáñez, na arte literária hispano-americano é somente em 1937 que surge uma obra romanesca que se enfrenta com a possibilidade de ficcionalização dos eventos decorrentes das ações primeiras de Cristóvão Colombo.

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O Quadro IV, cuja intenção é a de reunir as imagens escriturais de Cristóvão Colombo no espaço geográfico e histórico-social da América Hispânica, não poderia deixar de evidenciar que é esse o contexto de expressão artística da literatura hispano-americana no qual nasceu e se segue desenvolvendo a segunda fase da trajetória do romance histórico – a fase crítica/desconstrucionista. Isso se deu com a implementação daquilo que hoje a crítica considera como expressões do “novo romance histórico latinoamericano”. Suas especificidades foram apontadas por Aínsa (1988; 1991), por Menton (1993) e por muitos outros estudiosos do romance histórico contemporâneo. Menton (1993) aponta a obra El reino de este mundo, de Carpentier, publicada em 1949, como marco inicial dessa nova fase das escritas híbridas de história e ficção. Temos encontrado, contudo, ao longo de nossas pesquisas, várias obras de teor crítico/desconstrucionista191, escritas no espaço literário hispanoamericano, antes dessse marco apontado pelo crítico estadunidense. No caso específico da “poética do descobrimento”, vemos a obra Isla Cerrera (1937), de Manuel Méndez Ballester, como marco inicial das manifestações críticas entre os escritores hispano-americanos que tratam das consequências das ações do marinheiro europeu. Com ela dá-se o início das escritas críticas que se voltam ao processo de conquista da América, ações decorrentes daquela que consagrou Colombo na história da humanidade. O teor crítico dessas produções consagrará a América Hispânica como lugar no qual se dará a passagem da primeira à segunda fase da trajetória do romance histórico. Essa fase crítica/desconstrucionista abrange as modalidades do novo romance histórico latino-americano e da metaficção historiográfica. As obras Isla Cerrera (1937), de Manuel Méndez Ballester e El ocaso del quinto sol (1978 [1994]), de Adela C. Irigoyen – apontadas no início do Quadro IV como releituras críticas do passado pela ficção hispano-americana – dão impulso às ressignificações que integram o conjunto de expressões romanescas da “poética do descobrimento” que se desenvolverá plenamente na década de 1970 em diante. Nas obas de Méndez Ballester (1937) e de Irigoyen (1978 [1994]), contudo, o foco volta-se aos anos que se sucederam à travessia primeira de Colombo e se ficcionalizam os procedimentos da conquista do território e a dominação das nações indígenas nele constituídas pelo contingente espanhol que nessas terras enfrentaram-se com a resistência dos autóctones. Foi no ano de 1937 – antes mesmo de se instituir, pela crítica literária, o momento marcante da consolidação do novo romance histórico latino191

Para uma visão ampla sobre a trajetória do romance histórico na América Latina – em especial aqueles inseridos na “poética do descobrimento” – recomendamos a leitura da tese O romance histórico no contexto da nova narrativa latino-americana (1940): dos experimentalismos do boom à mediação do pós-boom – histórias da outra margem (2021), de Ana Maria Klock, defendida na Unioeste/Cascavel-PR, sob nossa orientação.

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americano – que Manuel Méndez Ballester publicou o romance Isla Cerrera, em Porto Rico. No relato de Méndez Ballester, a Espanha do começo do século XVI é efabulada pelo percurso da personagem Ricardo Boadilla, um espanhol, filho de mouros que, pelo desejo de servir a Deus, ao Rei da Espanha e à sua própria fama, abandona sua casa e parte para Sevilha. Depois de reunir uma quantidade considerável de dinheiro, o protagonista embarca para a ilha de San Juan Bautista, onde conhece uma personagem que redige a ele uma carta de indicação para Juan Ponce de León, o governador daquele território. Nesse cenário, Ricardo de Boadilla integra-se ao processo de conquista e dominação espanhola de Porto Rico, cujo espaço serve de base para o desdobramento da intriga. Assim, com grande expectativa, força e audácia, o jovem põe seus pés em terras do “Novo Mundo” nutrido dos ideais do primeiro quartel do século XVI: colonizar uma estância nas novas terras ocidentais anexadas ao domínio dos Reis Católicos. A personagem, não obstante, ao se sensibilizar diante das condições em que viviam os taínos – primeiros nativos com quem Colombo encontrou-se, em 1492, na ocasião de sua primeira travessia ao Atlântico, emancipados em 1520 –, e os escravizados africanos – recém-levados à colônia espanhola do Caribe – decide tratá-los de modo distinto àquele que via ser corrente entre os conquistadores, educando-os e os civilizando de acordo com os seus padrões. O resultado do procedimento encetado pelo protagonista é, evidentemente, o “ensinamento” da língua castelhana – cuja primeira gramática havia sido publicada em 1492 – e do catolicismo – o conjunto dos valores religiosos e sociais hispânicos utilizados como ferramenta de colonização cultural pelos “descobridores” europeus. Por fim, o desfecho do relato se concretiza quando Ricardo, ao ser atingido por uma flecha, abandona a ilha – ainda caracterizada pela visceralidade e selvageria, segundo o olhar do narrador – e, também, a sua esposa, que está grávida, para buscar alguma forma de se recuperar dos ferimentos, na Espanha, em 1517. Assim, nesse romance histórico crítico, adentra-se na procura da constituição do ser cultural porto-riquenho, especificamente no tempo da dominação espanhola. Desse modo, por meio de uma trama amorosa inserida no processo de conquista do território de Porto Rico, o autor retrata, ou projeta, as causas forjadoras da realidade do país para o século XX, cuja conjuntura se encontrava dividida entre o aspecto forâneo e o doméstico. Já dentro do contexto constituído da segunda fase da trajetória do romance histórico, e como exemplar da modalidade crítica/desconstrucionista do novo romance histórico latino-americano, destaca-se a mexicana Adelia C. Irigoyen que, seguindo a linha crítica já instituída em 1826 – com a obra anônima Xicoténcatl –, volta-se à ressignificação do mesmo período histórico da chegada dos espanhóis, comandados por Hernán Cortés, ao território asteca entre 1519 a 1521, e ao cenário da conquista do México pelas tropas 183


comandadas por Hernán Cortés, para escrever o romance El oacaso del quinto sol. Esse romance será abordado neste estudo dentro do contexto da produção romanesca de autoria feminina, pois é ela que dá impulsos às escritas femininas posteriores, vinculadas à “poética do descobrimento”. Desses eventos primeiros, consequências das ações colonizadoras, as Américas, principalmente as de constituição latina, passaram por várias crises políticas, sociais, militares, entre outras, ao longo de seu processo de independência e instituição de sociedades democráticas. A população, ávida por saber quem realmente era, para poder, finalmente, construir solidamente sua identidade – com base na hibridação cultural decorrente da união das distintas bases culturais que agiram na profundidade de suas raízes – passa, então, a rever com criticidade o passado registrado pelos colonizadores, cujas vozes estavam vinculadas à historiografia oficial europeia e ao exercício do poder colonizador. Nesse processo revisionista, aos poucos, fica mais claro que todo o conteúdo histórico que foi oficializado, toda a história escrita dos povos das Américas, é resultado, também, de uma visão eurocêntrica, de um ponto de vista europeu, no qual os feitos dos colonizadores são colocados em patamares heroicos e os atos realizados pelos colonizados em oposição a essas ações são omitidos, subjugados, esquecidos, classificadas como barbáries, ou convertidos em relatos de exaltação à vitória dos conquistadores nos campos de batalha. Tais visões são invertidas em relatos críticos da literatura hispano-americana como, por exemplo, já no primeiro romance histórico em terras hispanoamericanas, Xicoténcatl (1826) e em El ocaso del quinto sol (1978 [1994]), de Adela C. Irigoyen. O processo de exaltação e mitificação dos conquistadores, decorrente de ideais consciente e inconscientemente colocados em prática pelos sujeitos responsáveis por escrever a história, no caso, os colonizadores, acaba por marginalizar e relegar ao silenciamento a importância dos feitos americanos. Entretanto, na contemporaneidade, os latino-americanos também reconhecem que “la historia está presente y nos rodea en todas las horas, porque no es otra cosa que la vida192” (USLAR PIETRI, 1990, p. 91), portanto, há que se participar dela. Conscientes acerca disso, as populações das Américas passam a buscar, a compreender e a explorar seu passado, pois sua história, como Uslar Pietri (1990) anuncia, é sua vida e, portanto, deve ser entendida com bastante cuidado. Nesse sentido, contudo, não há como “corrigir”, “alterar”, “mudar” a história, porém, revelar outras tantas possíveis perspectivas do passado pela ficção torna-se uma ação constante no fazer literário de grandes nomes da literatura hispano-americana. Assim, o processo de “descobrimento”, de conquista, de colonização e de libertação das Américas passa a ser tema essencial das escritas híbridas latino-americanas a partir da metade do século XX em diante. 192

Nossa tradução: “A história está presente e nos rodeia em todas as horas, porque não é outra coisa senão a vida”.

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Evidencia-se, nesse processo de autoconhecimento, que a identidade nacional e individual dos sujeitos da América estava condicionada por uma visão ideológica europeia, que pouco se assemelhava ao que de fato seria a vivência de um americano mestiço, híbrido, sincrético, pluri/transcultural. Aos poucos, os intelectuais latino-americanos dão-se conta, também, que as noções de história e de vivência perpetradas nos arquivos da historiografia buscam dar um tom de totalidade, de onipresença ao colonizador europeu, que, no exercício do poder da colonização, não tem limites de ação e atitudes frente aos povos colonizados. A escrita híbrida de história e ficção, desenvolvida nas Américas, acaba rompendo, assim, com alguns dos mais importantes conceitos aqui perpetrados pelos cânones europeus: unidade e pureza, por exemplo. Uma das possíveis saídas para a crise cultural dos latino-americanos foi, pois, a valorização dos elementos de hibridação cultural. Esses elementos estão na base da formação de nossos povos e possibilitam a contaminação da cultura hegemônica pela mistura dessa com os elementos autóctones e com aqueles aqui cultivados pelos tantos africanos forçosamente inseridos nesse contexto, alternando, assim, a noção de unidade e pureza zelosamente mantida pelas correntes culturais cêntricas como fundamentos do cânone e diretrizes dos modelos a serem seguidos. A arte latino-americana, no momento em que se atreve a tocar no cerne desses dois conceitos secularmente impostos às culturas periféricas colonizadas, com o intuito de alterá-los, por mínimas que sejam as mudanças almejadas, já principia um processo de libertação que conduz à autenticidade e abre caminho para uma possível descolonização. Trata-se de um processo que se fundamenta, sobretudo, na hibridização – termo que agrega os conceitos de mestiçagem e sincretismo que, em outros tempos, já eram elementos estranhos às metrópoles colonizadoras. Unem-se, assim, características típicas e peculiares das nações latino-americanas antes consideradas alienígenas nas artes submetidas aos preceitos estrangeiros, para revelar o lado próprio dessa arte nova. Nesse contexto, o gênero romance histórico torna-se uma ferramenta fértil para o revisionismo e questionamento da “verdade” dos fatos perpetrados pela historiografia tradicional, além de fornecer os subsídios para questionar a própria história. Do processo de questionamento surge uma das principais modalidades do gênero híbrido de história e ficção na pós-modernidade: o novo romance histórico latino-americano. Essa modalidade de escrita híbrida de história e ficção é produto, de certa forma, do boom literário das produções latino-americanas em meados do século XX. O novo romance histórico vale-se da história e da ficção para criar sua diegese, sempre refutando, revisando, ressignificando o passado histórico, com o intuito de enxergar os problemas da historiografia e sugerir novas possibilidades de se ver o passado. 185


Assim, posicionando-se diante das expressões europeias de escrita literária híbrida de história e ficção, esses autores buscam renovar e recontar sua própria história, com o objetivo de criar outras hipóteses para sua própria existência. Isso também vai de encontro à ideia de negação de passado de uma nação, pois, […] to participate in the dialectical movement of history, a nation must assimilate and preserve its past by negating it, a process which allows a nation to free itself of its past while at the same time making it an integral part of the present continuity of existence193. (ZAMORA, 1990, p. 10).

Assim, para os escritores latino-americanos, e para a sociedade americana em si, negar o passado colonial, tal qual ele está perpetrado na historiografia hegemônica eurocêntrica; criar sua própria versão dessa história; rever o que havia sido escrito e considerado como factual no discurso oficializado; negar alguns preceitos europeus de escrita literária, enfim, escrever, de maneira diferente àquela feita anteriormente, foi parte do processo histórico no qual uma nação, ou até mesmo um continente, busca livrar-se de seu passado de submissão e perdas para incorporá-lo ao tempo presente de forma ressignificada. O passado colonial, cuja escrita estava, visivelmente, ancorada na supremacia dos vencedores, do poder colonizador e das forças aculturadoras das populações autóctones, foi assimilado antropofagicamente e, consequentemente, desenvolveram-se outras perspectivas a partir da própria experiência americana, baseadas em visões que expressam experiências da outra margem, com vivências do outro lado do fronte de combate. Sabemos, pois, que um dos meios mais profícuos para alcançar tal meta é a utilização das expressões literárias e, mais especificamente, do romance histórico, pois a mescla entre discurso histórico e discurso ficcional que tal narrativa híbrida apresenta faz-se pertinente às intenções dos escritores latinoamericanos que seguem a via da descolonização. Dessa forma, a modalidade crítica/desconstrucionista do novo romance histórico se consolida como forma de escrita híbrida na América em geral, porém, com maior fôlego na América Latina de língua castelhana. Estudos realizados pelo uruguaio Fernando Aínsa (1988; 1991) e, mais tarde, pelo estadunidense Seymour Menton (1993), estabeleceram as características principais dos novos romances históricos latino-americanos. Em sua essência, os estudos revelam que tais escritas são fortemente ancoradas em estratégias escriturais que se vinculam à paródia, à carnavalização, às relações intertextuais, à polifonia e heteroglossia, às anacronias – como 193

Nossa tradução: Para participar do movimento dialético da história, uma nação deve assimilar e preservar seu passado pela sua negação, um processo que permite a uma nação libertar-se de seu passado, ao mesmo tempo em que o torna parte integral da continuidade existencial do presente.

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modo de revelar a circularidade temporal –, ao emprego de estratégias metanarrativas – a fim de mostrar ao leitor que está diante do processo de criação de um discurso, produto de manipulação da linguagem – entre outras estratégias e recursos escriturais de caráter desconstrucionista. Nesse contexto de escritas híbridas de história e ficção de teor crítico/desconstrucionista, a polifonia, ou seja, a manifestação de múltiplas vozes no espaço discursivo, aliada à exploração das potencialidades dos signos linguísticos e do poder de metaforização da linguagem, tem efeitos estéticos que permitem à narrativa expor distintas visões e percepções das ações empreendidas pelas personagens. A multiplicidade de focos narrativos em uma mesma obra assegura, de forma potencial, o rompimento de qualquer possibilidade de hegemonia discursiva e, em consequência, surge o discurso polifônico. O texto literário crítico/desconstrucionista polifônico da literatura hispano-americana no qual surgem as primeiras imagens escriturais paródicas e carnavalizadas de Cristóvão Colombo, assim, faz-se um coro de vozes, abrigando diferentes opiniões e perspectivas, que, no caso do romance histórico, recompõem eventos do passado sob olhares que congregam distintos segmentos sociais, revelando as diversas experiências de um mesmo contexto do passado em expressões dialógicas e conflitivas. Os recursos, assim, aliam-se, também, à dialogia, tal como descrita por Bakhtin (1992), na medida em que se estabelece o “diálogo” das vozes enunciadoras do discurso com as várias outras instâncias presentes numa narrativa, uma prática que constitui, na visão do teórico, o romance dialógico. Nessas produções, não há a sobreposição de um discurso (colonizador) sobre o outro (colonizado), mas uma confrontação de diferenças que possibilita aos distintos discursos expressarem-se no mesmo universo ficcional. Todorov, no prefácio à obra Estética da criação verbal (1992), de Bakhtin, resume a complexidade das reflexões bakhtinianas a esse respeito, estabelecendo uma distinção entre romance “monológico” e romance “dialógico” que nos parece essencial para compreender a dimensão dos textos críticos/desconstrucionistas e críticos/mediadores da literatura hispanoamericana com relação aos eventos históricos desencadeados pelas ações de Colombo a partir de 1492. Nesse prefácio à obra de Bakhtin, é Todorov quem comenta: O romance ‘monológico’ conhece apenas dois casos: ou as idéias são assumidas por seu conteúdo, e então são verdadeiras ou falsas, ou são tidas por indícios da psicologia das personagens. A arte dialógica tem acesso a um terceiro estado, acima do verdadeiro e do falso, do bem e do mal assim como no segundo, sem que por isso se reduza a ele: cada idéia [sic] é a idéia de alguém, situa-se em relação a uma voz que a carrega e a um horizonte a que visa. No lugar do absoluto encontramos uma multiplicidade de pontos de vista: os das personagens e o do autor que 187


lhes é assimilado; e eles não conhecem privilégios nem hierarquia. (TODOROV in BAKHTIN, 1992, p. 8).

É a essa “multiplicidade de pontos de vista” a que recorre a modalidade crítica/desconstrucionista do romance histórico latino-americano para ressignificar aquelas imagens escriturais de Colombo, veiculadas no discurso historiográfico e também no ficcional tradicional, empregando estratégias desestabilizadoras desses retratos consagrados e submetendo o gênero romance histórico aos novos preceitos do experimentalismo linguístico e formal que constitui o âmago da nova narrativa latino-americana, movimento inciado já na década de 1940. Na literatura hispano-americana da década de 1970 são notáveis as obras El arpa y la sombra (1979), de Alejo Carpentier, e El mar de las lentejas (1979)194, de Antonio Benítez Rojo, como modelos de novos romances históricos hispano-americanos que influenciaram, nas décadas seguintes, a grande maioria da produção de romances voltados à temática colombina em todo o continente americano. Segundo declara o próprio Carpentier (2003), seu romance El arpa y la sombra nasceu devido à sua profunda irritação ao se deparar com um texto de Claudel para o qual estava fazendo uma adaptação radiofônica, pois ela atribuía ao “descobridor” qualidades sobre-humanas. Mais tarde, deparou-se, também, com o texto de León Bloy, no qual esse solicitava nada menos que a canonização do “Almirante”, comparado no texto com Moisés e São Pedro. Ao insistir nessa pesquisa, Carpetier confirmou a veracidade do fato que o levou à escrita paródica e carnavalizada de El arpa y la sombra (1979): os Papas Pio IX e Leão XIII, apoiados por 850 bispos, haviam proposto, por três vezes, a beatificação de Colombo. A indignação do romancista diante do fato histórico foi tanta que decidiu valer-se do que disse Aristóteles sobre a poesia e a história e produziu a obra El arpa y la sombra (1979), que, sem dúvida, faz-nos repensar a história de nosso continente. Toda ela reflete a afirmação de Carpentier de que a arte latino-americana, em especial a literatura, é essencialmente barroca, pois seu fluído impulsionador são os eternos conflitos. Assim, o romance é produzido dentro dos padrões renovadores da narrativa latino-americana, apostando no experimentalismo formal e linguístico. Em termos formais, o romance de Carpentier toma como inspiração para a 194

Os romances El arpa y la sombra, de Alejo Carpentier e El mar de las lentejas, de Antonio Benítez Rojo, ambos lançados em 1979, inauguram a produção de toda uma série de novos romances históricos hispano-americanos voltados às leituras ficcionais críticas dos eventos do descobrimento da América. O romance de Carpentier foi amplamente estudado pela academia brasileira, sendo, inclusive, integrante do corpus de análise, primeiramente, da tese Histórias da história: retratos literários de Cristóvão Colombo (1992), de Heloisa Costa Milton e, em seguida, da dissertação Os discursos complementares em ‘El arpa y la sombra’ e ‘Los perros del paraíso (1993), de Jorge Luiz do Nascimento. Ambos os pesquisadores são referência no tocante às análises dessa obra.

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forma do romance a representação da Santa Trindade e a figura clássica do sagrado barroco: o tríptico iconoclástico: a mais importante imagem fica centralizada – a parte mais relevante da obra –, constituída pelo processo de organização mental de Colombo para proferir sua última confissão, pouco antes do ritual da extrema-unção, em sua vigília –a primeira capa – imagem de certo relevo – corresponde ao processo de implementação do pedido de canonização de Colombo, que pousa em mãos do Papa Pio XII; a segunda capa – imagem complementária da tríade, e última peça do tríptico – volta-se ao processo de julgamento desse pedido de canonização, já no papado de Leão XIII. O romance de Carpentier toma como base a Divina Trindade e, assim, estrutura-se em três partes, cabendo a cada uma delas um recorte temporal, ou seja, um momento histórico específico e uma personagem que o protagoniza, produzindo, no todo, segundo menciona Milton (1992), uma imagem tripartite de Cristóvão Colombo: o mito, a lenda e o homem 195. No tríptico que compõe o romance, a primeira parte se abre com a figura histórica do Papa Pio IX que propõe, no século XIX, a beatificação de Colombo; na segunda parte, aparece o próprio Colombo, rememorando sua vida e ações no século XV; e, na terceira, já no final do século XIX, contamos com a presença do Papa Leão XIII, presente no julgamento do processo de canonização do navegante, aspirante a santo católico, figura central de todo o enredo da obra. O tom paródico e carnavalesco que perpassa toda a escrita híbrida instala-se já na primeira parte da obra, cujo título é “El arpa”, simbolizando o sublime, o eterno, o sagrado. Nela, é a figura do Papa Pio IX que é ficcionalizada desde o momento de sua juventude – como um apaixonado desiludido que opta pela vida eclesiástica e nela acaba sendo indicado para viajar à América a fim de resolver problemas da Igreja no Chile. Essa configuração de Pio IX dá-se de forma paralela às ambições de Colombo que, de simples marinheiro chega a ser “Almirante do mar Oceano”, e culmina com a imagem do Papa, no isolamento de seu quarto, que examina mais uma vez os documentos sobre a sua mesa. São eles que dariam início ao mais ambicioso de todos os seus projetos: beatificar a Cristóvão Colombo, pois “hacer un santo de Cristóbal Colón era una necesidad, por muchísimos motivos, tanto en el terreno de la fe como en el mismo terreno político […].196” (CARPENTIER, 2003, p. 19). A máscara da 195

Milton (1992) cria a imagem tripartite de Colombo – o mito, a lenda e o homem – que lhe serve de base para a análise das três partes nas quais se constitui o romance de Carpentier. Em sua abordagem ao romance, Milton (1992, p. 157) resume: “[...] fracassa Colombo como lenda histórica, fracassa Colombo como mito religioso, mas não fracassa o homem, magnificamente contemplado por Carpentier nos seus vários meandros”. 196 Tradução de Reinaldo Guarany (1987, p. 17): Fazer um santo de Cristóvão Colombo era uma necessidade, por muitíssimos motivos, tanto no terreno da fé como no próprio terreno político […].

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personagem cai diante dos leitores e, desse modo, vamos, aos poucos, penetrando na vida privada deste representante de Deus na terra. O processo de ressignificação da figura histórica do Papa Pio IX revela-se como a transferência a ele das características mais acentuadas e marcantes que se encontram em Cristóvão Colombo. Se recorrermos ao historiador Madariaga (1947, p. 310), vemos que ele registrou que “Colón pensaba pues como hombre de Estado más que como Cristiano, como Colón más que como Cristóbal.197” No romance de Carpentier, não se deixa de dar à personagem eclesiástica também esse elemento: “Y más ahora que las guerras de independencia propendían a cavar un foso cada vez más ancho y profundo entre el viejo y el nuevo continente. El elemento unificador podría ser el de la fe198” (CARPENTIER, 2003, p. 41). Assim, o leitor depara-se com a figura privada, subjetiva, do Papa Pio IX, um sujeito ambicioso, vaidoso que busca nas suas ações o reconhecimento glorioso. Para ele, […] lo ideal, lo perfecto, para compactar la fe cristiana en el viejo y nuevo mundo, hallándose en ello un antídoto contra las venenosas ideas filosóficas que demasiados adeptos tenían en América, sería un santo de ecuménico culto, un santo de renombre ilimitado, un santo de una envergadura planetaria, incontrovertible, tan enorme que, mucho más gigante que el legendario Coloso de Rodas, tuviese un pie asentado en esta orilla del Continente y el otro en los finisterres europeos, abarcando con la mirada, por sobre el Atlántico, la extensión de ambos hemisferios. Un San Cristóbal, Christophoros, Porteador de Cristo, conocido por todos, admirado por los pueblos, universal en sus obras, universal en su prestigio. Y, de repente, como alumbrado por una iluminación interior, pensó Mastaï en el Gran Almirante de Fernando e Isabel. Con los ojos fijos en el cielo prodigiosamente estrellado, esperó una respuesta a la pregunta que de sus labios se había alzado.199 (CARPENTIER, 2003, p. 43).

Diante do vislumbre da glória que alcançaria ao ser ele o mentor dessa ação eclesiástica, a personagem assina os protocolos do pedido de beatificação 197

Nossa Tradução: Colombo pensava, pois como homem de Estado mais do que como Cristão, como Colombo mais do que como Cristóvão. (MADARIAGA, 1947, p. 310). 198 Tradução de Reinaldo Guarany (1987, p. 36): [...] e mais agora que as guerras de independência propendiam a cavar um fosso cada vez mais largo e profundo entre o velho e o novo continente. O elemento unificador poderia ser o da fé [...]. 199 Tradução de Reinaldo Guarany (1987, p. 38): O ideal, o perfeito, para compactar a fé cristã no velho e novo mundo, achando-se nisto um antídoto contra as venenosas ideias filosóficas que tinha adeptos em demasia na América, seria um santo de culto ecumênico, um santo de renome ilimitado, um santo de envergadura planetária, incontroverso, tão enorme que, muito mais gigante do que o legendário Colosso de Rodes, tivesse um pé fincado nesta margem do continente e o outro nas finisterras, abarcando com o olhar, por sobre o Atlântico, a extensão de ambos hemisférios. Um São Cristóvão, Christophoros, Condutor de Cristo, conhecido por todos, adorado pelos povos, universal em suas obras, universal em seu prestígio. E, de repente, como que iluminado por uma grande iluminação interior, Mastaï pensou no Grande Almirante de Fernando e Isabel. Com os olhos fixos no céu prodigiosamente estrelado, esperou uma resposta à pergunta que se alçara de seus lábios.

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que, a partir daí, seguiriam os trâmites até o julgamento na Santa Congregação dos Ritos. A narrativa, nesse ponto, é intercalada pelas memórias de Cristóvão Colombo, que constituem a parte central do relato, para seguir em outra época e com uma nova personagem histórica ficcionalizada, pois o Papa Pio IX, historicamente, falece antes do fim do processo de canonização de Colombo. A parte central do romance, “La mano”, é a mais longa, e, nela, recriam-se os episódios mais relevantes da vida de Colombo, num processo de rememoração, diante do planejamento de sua confissão. Essa parte central da obra está emoldurada por dois outros capítulos que constituem a forma tríptica do romance, que a abrem e a fecham, dando a impressão de ser essa parte do relato algo que se oculta, que se encobre, que se quer manter em sigilo. A ambientação dá-se em Valladolid, em 1506, onde Cristóvão Colombo, num simples quarto, espera pelo confessor que o ajudará em seu último passo pela existência. As dualidades do ser humano, sempre presentes em Colombo e parodiadas na primeira parte do romance na personagem do Papa Pio IX, persistem até esse derradeiro momento da confissão final, pois a personagem expressa “Somos dos en uno200” (CARPENTIER, 2003, p. 58). Na decisão do narrador-personagem de confessar tudo, inicia-se um processo de dessacralização da imagem histórica do “herói”, cultivada até então pelos historiadores tradicionais e aqui substituída pela liberdade criadora e pela imaginação, através do uso da linguagem e do discurso poético de Carpentier. As memórias de Colombo fluem nesse relato no intuito de planejar sua derradeira confissão, na qual a personagem menciona “Y habrá que decirlo todo. Todo, pero todo. Entregarme en palabras y decir mucho más de lo que quisiera decir 201” (CARPENTIER, 2003, p. 49), um desejo que se reitera na eminência da chegada do confessor: “Hablaré, pues. Lo diré todo.202” (CARPENTIER, 2003, p. 49). Nesse intuito, o marinheiro também avalia o teor de seus registros, tornando-se leitor de si mesmo, de sua produção autográfica, na qual estão registradas as primeiras imagens escriturais suas, feitas de próprio punho e com as intenções que a personagem revela no relato ficcional. Em relação ao Diario de bordo, a personagem reconhece que este é um […] repertorio de embustes que se abre en la fecha del 13 de Octubre, con la palabra ORO. Porque aquel sábado había vuelto yo a la isla recién descubierta con ánimo de ver que podía sacarse de ella fuera de papagayos – y ya no sabíamos qué hacer con tantos papagayos como cagaban ya, en blanco, en blanco de cagaleche, la madera de las cubiertas – y ovillejos de algodón, cuando observé, con asombrado sobresalto, que unos indios (vamos a llamarlos indios, ya que estamos probablemente en los primeros 200

Tradução de Reinaldo Guarany (1987, p. 56): Somos dois em um. Tradução de Reinaldo Guarany (1987, p. 45): E haverá que se dizer tudo. Tudo, mas tudo. Entregar-me em palavras e dizer muito mais do que desejaria dizer […]. 202 Tradução de Reinaldo Guarany (1987, p. 48): Falarei, então. Direi tudo. 201

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contrafuertes naturales de unas Indias Occidentales) traían unos pedazuelos de oro colgados de las narices.203 (CARPENTIER, 2003, p. 101-102).

O intuito da confissão sincera da personagem faz aflorar no relato romanesco uma série de imagens escriturais do marinheiro que são opostas àquelas exaltadoras de suas ações e do homem que foi Colombo, encontradas no discurso histórico tradicional e no ficcional das modalidades acríticas, clássica scottiana e tradicional, que elevam a figura do navegante a de um herói somente comparável às eminentes figuras bíblicas. A intensidade da desconstrução dessas imagens adquire um novo impulso na terceira parte da obra na qual o marinheiro, em seu estado fantasmagórico – aspecto que leva à diegese de El arpa y la sombra a incorporar o fantástico também na dimensão da reconfiguração de Colombo – acompanha os calorosos enfrentamentos da acusação e da defesa no julgamento de seu pedido de canonização. Nesse julgamento, sobressai-se a carnavalização e as anacronias ao se fazerem presentes, como testemunhas convocadas ora pela acusação ora pela defesa da matéria em pauta na Santa Congregação dos Ritos, comandada pelo Papa Leão XIII, personagens históricas de diferentes eras. Colombo, nessa parte da obra, é apresentado ao leitor como o Invisível, “[…] sin peso, sin dimensión, sin sombra, errante transparência […]204” (CARPENTIER, 2003, p. 153), que aguarda o lugar no qual será posta sua estátua na Capela Sistina. O seleto grupo que integra a Comissão julgadora do processo está composto pelo Presidente, dois juízes, o Promotor Fidei e fiscal da causa – Advogado do Diabo – e o comerciante genovês José Baldi como Postulador da Causa. Na exposição das partes que dialogam ao longo do processo, revela-se o clima de tumulto e de enfrentamentos cheios de ironia e cinismo, como se pode observar no fragmento abaixo: No. “Pienso en Moisés – decía León Bloy –: Pienso en Moisés, porque Colón es revelador de la Creación, reparte el mundo entre los reyes de la tierra, habla a Dios en la Tempestad, y los resultados de sus plegarias son el patrimonio de todo el género humano” – “¡Olé! – exclama el Abogado del Diablo, con palmadas de jaleador en tablado flamenco –: ¡Olé y olé!”205 (CARPENTIER, 2003, p. 161). 203

Tradução de Reinaldo Guarany (1987, p. 97): Repertório de embustes que se abre na data de 13 de outubro, com a palavra OURO. Porque naquele sábado eu voltara à ilha recém-descoberta com ânimo para ver o que podia tirar dela, além de papagaios – e já não sabíamos o que fazer com tantos papagaios que já cagavam, em branco, em branco de caga-leite, a madeira das cobertas – e novelos de algodão, quando observei, com assobrado sobressalto, que uns índios (vamos chamá-los de índios, já que estamos provavelmente nos primeiros contrafortes de umas Índias Ocidentais) traziam uns pedacinhos de ouro pendurado nos narizes. 204 Tradução de Reinaldo Guarany (1987, p. 147): […] sem peso, sem dimensão, sem sombra, errante transparência […].

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Na diegese de Carpentier, a defesa não alcança sua intenção de canonizar o marinheiro, em especial porque este teve um filho bastardo – Fernando Colombo – em uma união de Colombo com Beatriz Enríquez de Harana que não foi legitimada pelos sacros rituais da Igreja Católica, um “pecado” inconcebível que tornou o marinheiro inapto ao santoral católico. Diante da grande decepção, o Invisível recebe o veredito da ficção hispanoamericana: Anduviste en un mundo que te jugó la cabeza cuando creíste tenerlo conquistado y que, en realidad, te arrojó de su ámbito, dejándote sin acá y sin allá. Nadador entre dos aguas, náufrago entre dos mundos, morirás hoy, o esta noche, o mañana, como protagonista de ficciones, Jonás vomitado por la ballena, durmiente de Éfeso, judío errante, capitán de buque fantasma […]206. (CARPENTIER, 2003, 147).

No discurso ficcional do romance de Carpentier, contudo, muitas outras razões são evidenciadas para que a canonização do navegante não se efetivasse, gerando, assim, as primeiras imagens escriturais críticas/desconstrucionistas de Cristóvão Colombo absolutamente dessacralizadas pela ficção literária hispano-americana. Desse modo, o romance El arpa y la sombra (1979) não é apenas mais um projeto estético-artístico muito bem sucedido do reconhecido escritor cubano, pois, nele, observamos uma clara postura reacionária anticolonialista que se enfrenta com os mais severos dogmas impostos aos habitantes nativos numa atitude claramente libertadora e conscientizadora da necessidade de repensar, reavaliar e redimensionar as ideologias transplantadas ao “Novo Mundo”, bem como os discursos historiográficos e ficcionais voltados à exaltação e glorificação das figuras históricas produzidas no âmbito anglo-saxão americano e nas antigas metrópoles colonizadoras. Caminhamos, na ficção latino-americana, rumo à descolonização. É da escrita dessacralizadora cubana que aparece, no mesmo ano de 1979, outra obra que se lança ao desafio de produzir imagens escriturais críticas/desconstrucionistas de Colombo e de outras personagens relevantes da época da conquista da América nas letras hispano-americanas: trata-se do romance El mar de las lentejas (1979)207, de Antonio Benítez Rojo. 205

Tradução de Reinaldo Guarany (1987, p. 155): Não. “Penso em Moisés – dizia Leon Bloy – penso em Moisés, porque Colombo é revelador da Criação, divide o mundo entre os reis da terra, fala a Deus na Tempestade, e os resultados de suas preces são o patrimônio de todo o gênero humano.” – Olé! – exclama o Advogado do Diabo, com palmadas de animador em tablado flamengo – Olé e olé! 206 Tradução de Reinaldo Guarany (1987, p. 141): Andaste em um mundo que arriscou tua cabeça quando acreditaste tê-lo conquistado e que, na realidade, te jogou fora de teu ambiente, e deixando sem aqui nem lá. Nadador entre duas águas, náufrago entre dois mundos, morrerás hoje, ou nesta noite, ou amanhã, como protagonista de ficções, Jonas vomitando pela baleia, dormente de Éfeso, judeu errante, capitão de barco fantasma [...].

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Enquanto Carpentier, em sua obra El arpa y la sombra (1979), ancorouse firmemente na paródia, na carnavalização, na ironia e nas anacronias para desconstruir discursos apologéticos sobre os eventos protagonizados por Colombo e as demais personagens diretamente envolvidas no processo de conquista e colonização do território anexado à Coroa Espanhola, em 1492, pelas ações do marinheiro, Benítez Rojo, em El mar de las lentejas (1979), encontra, especialmente, no pluriperspectivismo essa possibilidade. O romance de Benítez Rojo consiste num processo de ressignificação do passado que se enfrenta com o discurso oficial da historiografia e rompe com o estado de “verdade” pretendido pela suposta imparcialidade do discurso objetivo sob o qual se registraram nas fontes históricas os eventos do “descobrimento”, conquista e colonização da América. Na ficção de Benítez Rojo (1979), constatamos o propósito de imprimir multiplicidade de pontos de vista, compondo uma narrativa pluriperspectivista, na qual os registros históricos são incorporados às liberdades da ficção para expor, assim, que sobre o passado muitas versões podem ser criadas, de acordo com a ideologia na qual tais escritas se inscrevem. Desse modo, na configuração do romance histórico pluriperspectivista, dialógico e polifônico, característico da escrita hispano-americana, inclui-se a intertextualidade, entre outros elementos discursivos presentes nos romances, para potencializar a visão crítica do passado. Essa sobreposição de leituras aparece com frequência no novo romance histórico hispano-americano, no contexto dos temas colombinos, gerando obras que revelam o desejo consciente de reler os registros anteriores sob uma perspectiva intertextual. Nessa concepção, “o texto segundo, [...] não é mais apenas o ‘devedor’, mas também o responsável pela revitalização do primeiro e a relação de ambos, em vez de unidirecional, adquire sentido de reciprocidade, tornando-se, em consequência, mais rica e dinâmica.” (COUTINHO, 1995, p. 625-626). No romance El mar de las lentejas (1979), de Benítez Rojo, concretiza-se aquilo que mencionou Fernando Aínsa (1991, p. 82) sobre uns dos aspectos mais significativos dessa escrita híbrida crítica, pois nela “se ha embarcado, así, en la aventura de releer la historia [...] ejercitándose en modalidades anacrónicas de la escritura, en el pastiche, la parodia y el grotesco, con la finalidad de deconstruir la historia oficial.208” O projeto do relato ficcional de Benítez Rojo, com seu teor crítico e sua estrutura poliperspectivista, alimentada por vários textos oficiais, concretiza o que Coutinho (1995, p. 631) considera essencial nas leituras críticas de textos precedentes: “[...] construir um discurso alternativo que relativize a autoridade 207

Esse romance de Benítez Rojo (1979) serviu-nos de modelo para uma análise mais profunda, incluída em nossa obra O romance histórico contemporâneo de mediação: entre a tradição e o desconstrucionismo – releituras críticas da história pela ficção (2017), no capítulo 8 (p. 151-93), do qual aqui apresentamos alguns fragmentos. 208 Nossa tradução: [...] embarcou-se, assim, na aventura de reler a história [...], exercitando-se em modalidades anacrônicas da escrita, no pastiche, na paródia e no grotesco, com a finalidade de desconstruir a história oficial. (AÍNSA, 1991, p. 82).

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do primeiro e seja capaz de estabelecer um diálogo franco, plural e em pé de igualdade com aquele.” El mar de las lentejas (1979) vale-se dessas diferentes vozes e de alguns recursos que remontam à memória nacional – como diários, relatos historiográficos, crônicas – a fim de construir um marco histórico e social de amplas dimensões, para, na ficção, evidenciar camadas distintas do substrato humano envolvido no “descobrimento” e na conquista das “Índias Ocidentais”. Isso faz do romance de Benítez Rojo uma obra composta de quatro conjuntos narrativos, cabendo a cada um deles um espaço geográfico limitado, um tempo específico e uma voz enunciadora principal. Assim, podemos notar na obra uma linha narrativa, que chamamos de “Agonias de um reinado: o fim de Felipe II”, que se centra na experiência final do monarca espanhol do período da conquista; uma segunda linha, a que denominamos “Delícias do paraíso: as aventuras de Antón Babtista no Caribe”, fixadas nas descobertas e ações de um soldado raso que se transforma em dono de terras e gentes no Caribe; uma terceira, a que denominamos “Em nome de Deus: a empresa católica de Dom Pedro Menéndez de Avilés”, na qual evidenciam-se as ações de combate à presença de protestantes no território conquistado; e, por fim, a quarta parte, “Pontes entre os continentes”, que narra os empreendimentos financeiros de uma família de Tenerife que lucra com o tráfico de escravos à época. Embora essas partes estejam imbricadas ao longo do romance e não apareçam designadas dessa forma pelo autor, as divisões que propomos para a leitura da obra auxiliam na análise à medida que permitem um rastreamento dos distintos fios narrativos que integram o romance. A narrativa tem início com o eixo “Agonias de um reinado: o fim de Felipe II”. É a partir da agonia que precede à morte do monarca que as outras histórias se desenvolvem e, dentre as mais importantes, estão: a segunda viagem de Cristóvão Colombo rumo ao “Novo Mundo”, o percurso do governador Pedro Menéndez de Avilés pela península da Flórida, a fim de expulsar os protestantes franceses que buscam se instalar nessa região, a derrota da “Armada invencível” espanhola no enfrentamento bélico com a Inglaterra e, ainda, a saga de uma família mercantilista da ilha de Tenerife que envolve as aventuras do corsário John Hawkins. Ao se voltar para a figura do rei espanhol, Felipe II, o narrador, descreve com precisão o retrato lamentável do estado físico em que este se encontra: La alcoba es pequeña y huele a pudridero [...]. Oculto el cuerpo por la sábanas, hundida su cabeza en las sombras de las colgaduras, el hombre que yace apesta y jadea; a pesar de la media luz, salta a la vista que el mal que lo acaba empezó por una pierna, la derecha, pues del pie calzado en la almohada escurre un moho sanguinolento, y a la altura del muslo un coágulo siniestro, gordo como un emplasto, resalta en el palor del lienzo; sea cual fuere este mal, también pasó a infectar al 195


vientre: más arriba del apostema las sábanas se abomban como si abrigaran un odre o una monstruosa burbuja. El dignatario agita el crucifijo y hace huir a la mosca de las inmediaciones del lecho. […]. El dignatario tira de las sábanas, saca de entre ellas un brazo – se diría el fragmento de alguna imagen de palo carcomido por siglos de altar, o uno de aquellos despojos de mártires, enjutos y ennegrecidos, que encierran las urnas de la habitación contigua –, y tomándolo cuidadosamente de la muñeca, lo alza al encuentro del cirio. Un quejido se lo hace regresar a su sitio. ‘Aguarda un poco, aún no es la hora’, dice desde el fondo del lecho una voz blanda. 209 (BENÍTEZ ROJO, 1979, p. 15-16).

Com a precisão da linguagem barroca, o narrador extradiegético prima pela descrição detalhada desse ambiente lúgubre, funesto e asqueroso no qual repousa Felipe II, esmerando-se em estabelecer paralelos entre o estado do rei e as imagens de santos martirizados para, por fim, fixar-se em partes do corpo do monarca que estão em estado lamentável. Nesse momento de agonia, o soberano manifesta seus últimos atos de intolerância e obsessão: a luta pela manutenção dos ideais católicos, afrontados pela Reforma Protestante de Martinho Lutero também no espaço do “Novo Mundo”, que deve ficar “livre” de protestantes. As ideias fixas no ouro e na exploração do povo americano, assim como as imagens do paraíso perdido que essas novas terras evocam, são reveladas pelo narrador ao percorrer a mente de Felipe II, onde aparecem tais evocações em devaneios do monarca e ao longo de toda a diegese, num jogo conflituoso com os preceitos de Deus que, supostamente, são defendidos pelos mesmos conquistadores. No segundo capítulo, inicia-se a narrativa centrada nas peripécias de um soldado espanhol de baixo escalão que aproveita as “delícias” oferecidas pelas “Índias Ocidentais” aos forasteiros que nelas se aventuram. É, pois, o eixo narrativo “Delícias do paraíso: as aventuras de Antón Babtista no Caribe” que segue o jogo de opostos construído pela narrativa em estilo barroco do primeiro capítulo. O narrador, ao apresentar o mundo indígena americano, parte do estado de submissão dos pacíficos tainos – primitivos habitantes do Caribe – à exploração e à ganância introduzidas pelo conquistador. A primeira cena mostra um séquito de nativos carregando um europeu em uma rede em 209

Nossa tradução livre: A alcova é pequena e cheira a sepultura [...]. O corpo, oculto pelo lençol, enfiada sua cabeça nas sombras das colgaduras, o homem que jaz fede e ofega; apesar da meia luz, salta à vista que o mal que o acaba começou por uma perna, a direita, pois do pé apoiado na almofada escorre um pus sanguinolento, na altura da coxa um tumor sinistro, grosso como um emplasto, ressalta na palidez do tecido; seja qual for este mal, também passou a infectar o ventre: mais acima do apostema os lençóis se avultam como se abrigassem um odre ou uma monstruosa borbulha. O dignitário agita o crucifixo e faz a mosca fugir das imediações do leito. […]. O dignitário puxa os lençóis, tira de dentro deles um braço – dir-se-ia o fragmento de alguma imagem de madeira carcomida por séculos de altar, ou um daqueles despojos de mártires, magros e enegrecidos, que se encontram nas urnas da habitação contígua –, e tomando-o cuidadosamente pelo punho, levanta-o de encontro ao círio. Um lamento faz com que regresse a seu lugar. ‘Aguarde um pouco, ainda não é a hora’, diz do fundo do leito uma voz branda.

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pleno sol do meio-dia. As ações dos conquistadores são deflagradas pelo narrador ao descrever um dos nativos a participar do séquito que acompanha o europeu: A continuación, caminando solo, un hombre completamente desnudo enarbola una pértiga a la cual se ha clavado un travesaño; en el tope de esta improvisada cruz se encaja un morrión de corta visera y plumero gualda, ya descolorido, y del travesaño cuelgan un peto de acero, una adarga, fierros y correajes; el hombre desnudo ha pasado suplicio, pues no tiene orejas, ni nariz, ni labios; su cabeza es una postilla atormentada por un velo de tábanos.210 (BENÍTEZ ROJO, 1979, p. 20).

Nesse fragmento, constatamos que o narrador fixa-se em um dos nativos do grupo, descrevendo-o com uma linguagem cheia de simbologias: a “improvisada cruz” que o nativo carrega remete às cenas do calvário, ao sacrifício. Notamos que a descrição se fixa no instrumento de tortura do nativo, focalizando os elementos que o compõe, denotando a estranheza desses no universo do nativo: o ferro, as armas, a armadura. Assim, a descrição do nativo, longe daquela do Cristo a que remete, que segue seu percurso para ressurgir como o Messias, é completamente disfórica, já que não há nela a expectativa da superação do martírio que o discurso religioso contém. Por outro lado, o narrador, ao voltar-se para o autóctone e sua condição atual, vale-se de expressões como “completamente desnudo”, reiterada no fragmento, numa remissão paródica às primeiras descrições dos nativos americanos feitas por Colombo em seu Diário de bordo. Ao contrário do discurso da “maravilha” registrado por Colombo no Diário, o narrador descreve o nativo mutilado e humilhado, mencionando as partes do corpo destacadas de forma laudatória por Colombo – que nem sequer existem mais no corpo do nativo. Este ainda carrega os instrumentos de sua tortura e não seus materiais de caça e pesca, como fazia outrora. Dessa forma, o narrador remete o leitor aos textos fundadores da literatura e da história oficial da América, evocando imagens que evidenciam o contraste entre ambos os discursos. Esses paralelismos e remissões adquirem um sentido paródico à medida que revelam a inversão dos poderes. Tal aspecto se intensifica quando o narrador se volta para a descrição do europeu que está sendo carregado pelos nativos tainos, fazendo apelos aos sentidos a fim de estabelecer vínculo com o ambiente no qual agoniza Felipe II:

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Nossa tradução livre: Em seguida, caminhando sozinho, um homem completamente nu traz levantada uma vara em cuja ponta se prendeu uma travessa; na ponta dessa cruz improvisada encaixa-se um capacete de viseira curta e plumas douradas, já descoloridas. Na travessa estão dependurados um peitoral de aço, uma adarga, ferros e correias. O homem nu foi supliciado, por isso não tem orelhas, nem nariz, nem lábios. Sua cabeça é uma crosta atormentada por um véu de larvas.

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[...] descalzo, sudoroso y mugriento, vestido con una andrajosa camisa, el hombre pelicolorado se hunde muellemente en el lecho de cordeles, abanicándose con un manojo de plumas de garza; en sus gestos ampulosos se observa la desmañada rigidez de la vanidad, del falso señorío, sobre su vientre reposa una amenazadora ballesta, y al alcance de sus manos están una aljaba llena de saetas y una larga espada, a los costados de la hamaca dos niñas menudas, de pezones nacientes, sostienen un palio de plateadas hojas de yagruma que crujen bajo el sol del mediodía. 211 (BENÍTEZ ROJO, 1984, p. 20).

A descrição do europeu é feita a partir de uma profusão de elementos que remetem à atmosfera pestilenta na qual repousa Felipe II, ancorados nos signos “sudoroso”, “mugriento” e “andrajosa” – todos adjetivos depreciativos. Os símbolos que remetem ao poder exercido por ambos, contudo, alteram-se nas descrições feitas pelo narrador. O espanhol carregado pelos nativos concentra o poder que, no seu caso, é bélico, representado pelas armas de ferro e fogo, submetendo homens, mulheres e crianças a seu prazer, enquanto Felipe II representa a voz do poder político espanhol que estende seus desígnios sobre as terras americanas e faz valer seus desejos pelo poder da posição política que ocupa. A carnavalização, que remete ao grotesco, é o recurso empregado pelo narrador para apresentar essa personagem de forma caricaturizada, gerando uma imagem de “rei” carregado pelos súditos em seus hábitos naturais de nudez que denota sua total displicência, sua excentricidade e desajuste à situação. A instância carnavalesca é garantida, no trecho acima, pelos signos “vanidad” e “falso señorío”, assim como pelo recurso descritivo que denota a condição de “desajustado” do europeu, que é o centro de uma procissão em pleno sol do meio-dia nos trópicos americanos, uma cena que se transforma num carnaval, espetáculo simbólico em que reina o anormal. O discurso irônico ridiculariza a imagem do forasteiro pelo absurdo de sua condição e estado. Essa segunda visão centrada nas aventuras de Antón Babtista é criada na imaginação do autor para adquirir a dimensão simbólica de várias personagens extraídas da história, as quais, na diegese da obra, chegam com ele a La Española, em 1493, como tripulantes da segunda viagem de Colombo à América. Configurado como antítese dos fidalgos espanhóis, o soldado aragonês é retratado como modelo de uma nova classe social que se formará à custa da exploração do povo e das riquezas do “Novo Mundo”. 211

Nossa tradução livre: […] descalço, suado e sujo, vestido com uma camisa esfarrapada, o homem de cabelo avermelhado afunda-se preguiçosamente na rede de cordões, abanando-se com um punhado de penas de garça; em seus gestos redundantes observa-se a grotesca rigidez da vaidade, do falso senhorio, sobre seu ventre repousa uma ameaçadora balestra, e ao alcance das mãos estão uma aljava plena de flechas e uma longa espada. Ao lado da rede, duas meninas miúdas, de peitos nascentes, seguram um pálio de folhas prateadas de olmeiros que estalam ao sol do meio-dia.

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Na introdução ao terceiro eixo, protagonizado pela família de Ponte, nota-se uma clara limitação no foco do qual se utiliza o narrador, uma estratégia que amplia a expectativa do leitor e aumenta o clima de mistério em torno à personagem Pedro de Ponte. A limitação que enfrenta ao se valer da visão instalada em Felipe II é literalmente expressa: No es posible llegar a los pensamientos de Pedro de Ponte; harto furtivos han de ser cuando sólo se percibe, en la hendija de sus ojos entrecerrados, algo así como un sudario, tras el cual no hay siquiera un temblor, una señal. En la memoria del viejo rey que muere, otros rostros y sucesos cobran movimientos, sonidos, color; Pedro de Ponte ya recordado, comienza a clarear… y desaparece en el polvo. ¿Cuál sería su secreto?212 (BENÍTEZ ROJO, 1979, p. 38-39).

Vemos, no fragmento acima, que o narrador extradiegético, ao narrar da perspectiva da mente do rei, expressa que esta é restrita e não serve para dar a dimensão necessária à exploração da subjetividade da personagem Pedro de Ponte, que é sua conhecida. Esse enfrentamento entre a onisciência extradiegética, atemporal e irrestrita do narrador – pela qual se revelam os contrastantes ângulos da personalidade do monarca – e a limitação imposta pela sua visão quando busca retratar a essência da personagem protagonista do terceiro eixo narrativo contrasta com a pretensão de universalização dos desejos do monarca de fazer da Europa e da América a sua grande nação católica. Nela aparecem, também, parodiadas as limitações de um discurso pretensamente neutro, objetivo e impessoal, enunciado a partir da terceira pessoa do singular, preferida dos historiadores tradicionais. Ante a imagem de Pedro de Ponte que se esvai na poeira, o narrador de El mar de las lentejas (1979) introduz a quarta e última linha narrativa do romance: “Em nome de Deus: a empresa católica de Dom Pedro Menéndez de Avilés”. Essa, ao contrário das outras, é tecida sob uma perspectiva intradiegética e tem como voz enunciadora Dom Pedro de Valdés, o jovem genro do governador da Flórida, Dom Pedro Menéndez de Avilés. A matéria narrada é exposta ao leitor pela alternância de focos, ora centrado no narrador extradiegético, ora circunscrito à mente de Felipe II, o que confere à narrativa, nesses momentos, um tom autodiegético, e ora na narrativa autodiegética propriamente dita do quarto fio narrativo centrado na voz de Pedro de Valdés. Essa alternância nas vozes enunciadoras do discurso e os diferentes olhares sob o qual ele se produz revela o pluriperpectivismo da obra. 212

Nossa tradução livre: Não é possível chegar aos pensamentos de Pedro de Ponte; muito furtivos hão de ser apenas quando se percebe, na frincha de seus olhos entrecerrados, algo como um sudário, por trás do qual não há nenhum tremor, nenhum sinal. Na memória do velho rei que está morrendo, outros rostos e acontecimentos adquirem movimentos, sons, cores. Pedro de Ponte, já lembrado, começa a clarear... e desaparece no pó. Qual seria seu segredo?

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Entre os eventos históricos mais significativos inseridos na narrativa está a investida da Espanha católica contra a Inglaterra protestante, na qual a Espanha saiu totalmente derrotada. O narrador comenta a batalha de forma bastante crítica e irônica: “Pero los ingleses y españoles que se enfrentaron en el Canal de la Mancha sabían que Dios rara vez condescendía a mezclarse en las trifulcas de los hombres.213” (BENÍTEZ ROJO, 1979, p. 223). Todas as ações de Felipe II, sua intolerância e ações bélicas em defesa da religião católica, registradas na história, têm um propósito secreto, que é revelado ao leitor na ficção ainda pela estratégia adotada pelo narrador heterodiegético de enunciar a partir da mente do monarca: Dios había sabido lo que su modestia le impidiera pedir en sus oraciones diarias, Sí, el buen Dios lo había atendido y ahora le decía: ¡Serás santo! ¡Serás Santo! ¡Serás San Felipe de España! Su efigie sería venerada en los altares. Peregrinos de las eras clamarían por sus favores y milagros; puras doncellas verterían lágrimas y rosas en su santuario; los verdaderos creyentes intentarían seguir su ejemplo de prudencia, de ascetismo, de diligencia, ese echar sobre sí toda la inmundicia terrenal sin una queja […]. Así bendecía el Señor su paciente apostolado de rúbricas y salvadera, de legados y cédulas, de Santa Inquisición, de Santo Oficio, de Santa Hermandad, de Santa Cruzada…214 (BENÍTEZ ROJO, 1979, p. 278-279).

Vemos, nesse fragmento, a revelação mais íntima, o desejo que movia o monarca ao longo de toda a sua empreitada pelo Cristianismo: ser um santo. Esse desejo já se realiza na mente do aspirante, pois é daí que o narrador anuncia, imprimindo um tom de certeza pelo emprego de verbos no futuro do presente: “Você será santo”. No antegozo dessa realização, marcada também pelos sinais de exclamação que acompanham a enunciação, o monarca já vislumbra as cenas de adoração à sua imagem consagrada: cenas essas narradas em tom de ironia, com verbos no futuro do pretérito, que denotam a existência de algum empecilho para que essas ações venham, de fato, a se concretizar. Contudo, a linguagem, sempre em tom solene carregado, porém irônico, segue evidenciando a euforia do monarca ante tão “merecida” recompensa e relaciona, do ponto de vista do próprio candidato a santo, as ações efetuadas ao longo de sua existência para

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Nossa tradução livre: Mas os ingleses e espanhóis que se enfrentaram no canal da Mancha sabiam que Deus muito raramente condescendia em participar das bagunças humanas. 214 Nossa tradução livre: Deus soubera o que sua modéstia o tinha impedido de pedir em suas orações diárias. Sim, o bom Deus tinha atendido seus pedidos e agora lhe dizia: Você será santo. São Felipe da Espanha!!! Sua efígie seria venerada nos altares. Peregrinos dos campos clamariam por seus favores e milagres; donzelas puras verteriam lágrimas e rosas em seu santuário; os verdadeiros crentes tentariam seguir seu exemplo de prudência, de asceticismo, de diligência, esse jogar sobre si toda a imundície da terra sem uma queixa sequer […]. Assim bendizia o Senhor seu paciente apostolado de rubricas e salvações, de legados e cédulas, de Santa Inquisição, de Santo Ofício, de Santa Irmandade, de Santa Cruzada...

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lhe assegurar tamanha distinção: uma lista que inclui uma série de ações bélicas e, do ponto de vista humano, condenáveis em sua grande maioria. Assim, ao explorar as prerrogativas da ficção de apoiar-se no campo das possibilidades em vez de operar no campo do sucedido, o discurso poético de Benítez Rojo explora a subjetividade do monarca e não só revela os mistérios que se ocultam por detrás das ações enérgicas do soberano espanhol, mas também enuncia qual será o seu fim na outra dimensão, no momento mesmo da passagem, narrando tal situação em sua dimensão extradiegética e em tempo presente: “No hay coro de ángeles y querubines. No hay señal divina. No hay respuesta a su pregunta. No hay San Felipe de España.215” (BENÍTEZ ROJO, 1979, p. 279). A euforia deixa de existir para que a realidade se revele em sua mais pura essência: a finitude, onipresente no relato pelo barroquismo da linguagem que o compõe, é certeira. A ironia do narrador revela-se aguda nesse momento final da vida de Felipe II, ao voltar-se ao seu objeto de interesse primeiro: “La mosca abandona el dosel y se posa en la pupila verdiblanca, ahora fija, cuajada y endurecida como una gota de esperma.216” (BENÍTEZ ROJO, 1979, p. 279). Esse primeiro eixo narrativo é finalizado com a menção de que, fora do aposento pestilento de Felipe II, um novo rei é saudado. As descrições eufóricas de Colombo sobre a natureza americana, feitas no Diário de bordo para a rainha Isabel por ocasião de sua primeira viagem à América, tornam-se, de fato, o paraíso para o aventureiro Antón Babtista, que pôde aqui saciar não apenas a fome antes sofrida na pobre Espanha, como outros “apetites” vorazes que nutria o decadente espanhol. Esse idílio no qual passou a viver a personagem Antón Babtista só é rompido por outro desejo europeu ainda não saciado: a ânsia de ouro que ainda alimentava o “Almirante”, o qual punha todos os homens sob seu comando em busca do precioso metal. Antón, diante das torrenciais enchentes provocadas pelas chuvas intermináveis, é obrigado a deixar seu “vale dos prazeres” e pedir socorro aos superiores, que, ao vê-lo, pedem-lhe a única coisa que lhes interessa: “– ‘Éste es el hombre que tornó de Cibao – dijo Ojeda [...]’. – ‘No trajo oro [...] quizá lo escondió en alguna breña’. – ‘Oro no tengo’ – protestate asustado. – ‘Dios es testigo que no tengo otra cosa que hambre y enfermedades’.217” (BENÍTEZ ROJO, 1984, p. 134). Antón Babtista é, assim, testemunha da angústia vivida por Colombo diante da realidade adversa da América, que se mostrava muito distinta das idealizadas paisagens de Cipango e Cathay que pintara para os aventureiros 215

Nossa tradução: Não há coro de anjos e querubins. Não há sinal divino. Não há resposta para sua pergunta. Não há São Felipe da Espanha. 216 Nossa tradução: A mosca abandona o dossel e pousa na pupila verde-branca, agora fixa, coalhada e endurecida como uma gota de esperma. 217 Nossa tradução: – ‘Este é o homem que regressou de Cibao – disse Ojeda […]’ – ‘Não trouxe ouro [...] talvez o tenha escondido em alguma brenha’. – ‘Não tenho ouro’ – você protestou assustado. – ‘Deus é testemunha de que não tenho nada mais que fome e doenças’.

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espanhóis quando do retorno de sua primeira viagem e que motivaram a todos a se lançarem em sua empresa “colonizadora”. O enfrentamento entre Antón, que nunca havia se preocupado em cumprir sua tarefa, e o “Almirante”, a quem devia explicações, gira em torno da existência de ouro nas terras que lhe foram dadas. O diálogo entre os dois é descrito nos seguintes termos: ‘Si hay minas en el Cibao, juro que ningún español las ha visto’. – ‘Sí que hay minas’, dijo el Almirante con suavidad, casi con ternura. – ‘Minas riquísimas, abundantísimas; minas como desean los Reyes, como deseo yo, como desean los hombres que han venido conmigo y agora lloran como mugeres por tornarse a España’. – ‘¡Ay Dios mío!’ […]. – ‘La Isabela ha de ser para aquestas tierras lo que fue Roma para Europa, continuó el Almirante’ […]. El Almirante fue al rincón, se inclinó blandamente y alzó una pepita que bien podía valer sus doce castellanos. – ‘Es tuya’. Y ése fue tu primer oro, Antón Babtista, y también tu primera angustia.218 (BENÍTEZ ROJO, 1979, p. 135-136).

Ao alternar o discurso direto e o indireto, a fim de evidenciar o teor do diálogo entre Antón e Colombo, o narrador segue lembrando ao soldado de suas ações desde sua chegada ao “Novo Mundo”. Na voz de Colombo, o discurso carnavaliza a imagem dos conquistadores, pois mostra uma inversão de papéis: aqueles que antes zombaram de Antón na travessia são os que “lloran como mugeres para tornarse a España 219”, uma vez que a terra não se mostra, com efeito, tão promissora em metais como quer e exige Colombo. Enquanto esses homens sofrem sob os mandos de Colombo para tornar sua fantasia uma realidade, Antón, até então, havia apenas desfrutado da terra e suas gentes, fatos que o narrador lhe recorda nesse tom de diálogo em que a narrativa se constitui, ou seja, na voz enunciadora do discurso que se dirige diretamente a Antón. A imagem de Colombo como um homem obcecado pelo ouro, revelada pelo discurso irônico, reitera-se pelas suas ações de “contaminar” ao próprio Antón com sua “febre de ouro”, dando-lhe uma grande pepita que desperta a sua “primeira angústia”, fazendo com que seu “idílio de prazeres” transforme-se num martírio em busca de satisfazer a necessidade do “Almirante”. 218

Nossa tradução: Se há minas em Cibao, juro que nenhum espanhol as viu’. –‘Sim, há minas por lá’, disse o Almirante com suavidade, quase com ternura. – “Minas riquíssimas, abundantíssimas; minas como desejam Suas Majestades os Reis, como eu desejo, como desejam os homens que vieram comigo e agora choram como mulheres para regressar à Espanha’. – ‘Ai, meu Deus do céu!’ [...]. – ‘A Isabela será para estas terras o que foi Roma para a Europa, continuou o Almirante’ […]. O Almirante afastou-se para um canto, abaixou-se devagar e trouxe uma pepita que bem poderia valer uns doze castelhanos. – ‘É para você’. E aquele foi teu primeiro ouro, Antón Babtista, e também tua primeira angústia. 219 Nossa tradução: [...] choram como mulheres para voltar à España.

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A imagem primeira de Colombo mostrada no romance, como “Noé” que dava aos homens exaustos da travessia uma nova terra na qual poderiam iniciar uma existência prodigiosa, é, assim, desconstruída no universo mesmo desse eixo narrativo, ao se impor sobre essa imagem bíblica a do administrador que precisa provar o valor de sua “descoberta” pelo acúmulo de tesouros. Essa é a configuração de Colombo – obrigando a todos os “colonos” a pagar tributos em ouro a ele e aos reis espanhóis – projetada pelo romance. As ações predatórias dos europeus no “Novo Mundo” não se restringem apenas a essas personagens já apontadas. O quarto eixo, “Pontes entre os continentes”, abrange outro ramo de atividades que se beneficiou inescrupulosamente com a “descoberta” da América: as relações comerciais, ou seja, os tráficos que se estabeleceram entre os continentes. A princípio, essas ações se restringiam entre a Europa e a África; porém, com o incremento dos investimentos das coroas europeias no triângulo que se formou entre Europa, África e América, esse triângulo entre os três continentes se mostrou extremamente lucrativo. A narrativa desse fio enfoca as expectativas de Pedro de Ponte ante uma nova possibilidade: uma vez que se conseguisse convencer a John Hawkins – o famoso pirata inglês – de que assaltar um navio negreiro português era um ato patriótico, a coisa estaria feita, mesmo que isso significasse pura pirataria. Essa é a base que dará origem ao lucrativo tráfico de armas e escravos da Europa e África para as ilhas do Caribe, estabelecido e controlado por Pedro de Ponte e seu fiel amigo e corsário inglês, John Hawkins. Nesse universo de trapaças, fraudes, roubos e especulações, o narrador busca estabelecer paralelismos e comparações entre as personagens desse eixo e o mentor primeiro do projeto comercial que salvaria a Espanha e livraria o Santo Sepulcro das mãos dos infiéis – Cristóvão Colombo. A genealogia de Pedro de Ponte serve como meio de estabelecer tais vínculos. Quando, finalmente, Pedro de Ponte e John Hawkins acertam os detalhes de seu “negócio”, o narrador revela que Hawkins, por um momento, chegou a ter medo daqueles Pontes que o rodeavam, pois seu pai lhe havia contado que Dom Cristóvão era um judeu que sabia magia e lia o destino nas estrelas. Agora, Dom Pedro lhe parecia quase como Dom Cristóvão, apoiado no mesmo bastão de punho de ouro que aquele costumava usar (BENÍTEZ ROJO, 1979, p. 177). O que se depreende da leitura do romance é que o “Novo Mundo” “descoberto” por Colombo é apenas o espaço onde se pode realizar tudo o que do outro lado do Atlântico as classes dominantes definem, negociam ou trapaceiam. Imagens heroicas, mitificadas, sacralizadas pelo discurso histórico já não têm mais a mesma força colonizadora quando contrapostas a essas imagens humanizadas e dessacralizadas do romance de Benítez Rojo. O novo romance histórico latino-americano cumpre, assim, um de seus papéis mais relevantes:

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abrir caminhos para a descolonização ideológica dos cidadãos latinoamericanos. As produções críticas/desconstrucionistas de Carpentier e Benítez Rojo, publicadas no final da década de 1970, impulsionaram outros nomes representativos da literatura hispano-americana a se dedicarem à ressignificação dos eventos de 1492 na escrita híbrida de história e ficção na década de 1980. Nela, destacam-se as atuações de Abel Posse, com a obra Los perros del paraíso (1983) – que integra a trilogia do autor argentino sobre a “descoberta e conquista da América” –; de Homero Aridjis, com Vida y tiempos de Juan Cabezón de Castilla (1985 [1988]); e de Carlos Fuentes, com Cristóbal Nonato (1987). Esse conjunto primeiro de obras hispano-americanas das décadas de 1970 e 1980 foram, a nosso ver, aquelas que atuaram sobre as imagens escriturais heroicizadas e edificantes de Colombo, presentes na literatura estadunidense do século XIX até passada a metade do século XX. Foi nessa década de 1980, mais precisamente em 1985, que Homero Aridjis lançou a sua obra 1492 – Vida e tempos de Juan Cabezón de Castilla, que tem como ação principal da diegese as aventuras de Juan Cabezón de Castela e suas andanças pela Espanha para encontrar sua amada, que está sendo perseguida pela Inquisição. O autor busca recriar a realidade da época através de uma galeria de personagens ficcionais que vivem às margens da sociedade, nas pequenas vilas e nas grandes cidades da Espanha do final do século XV. Essas personagens convivem com as demais personalidades inseridas em outro escalão social, muitas delas de extração histórica, como os Reis Católicos, Duques, Marqueses e homens do Santo Ofício. Todas essas personagens, porém, vivem as atribulações causadas pelas guerras da Reconquista e pelo edital de expulsão dos judeus, assinados pelos Reis Católicos a “pedido” do Inquisidor-mor, Tomás de Torquemada. Nesse edital, expunha-se que todo judeu não converso e não batizado deveria deixar o território unificado pelos Reis Católicos até a data de 03 de agosto de 1492 – a mesma ocasião na qual Colombo partiu do Porto de Palos para sua primeira travessia ao Atlântico. A referência direta que se faz a Colombo e à história do “descobrimento” da América nessa obra se dá no final dos relatos, quando a personagem, após haver encontrado sua amada e tê-la visto partir com seu filho entre os muitos judeus expulsos, decide dar novo rumo a sua vida: “Eu fui até Palos, em busca de fortuna. Fiz-me ao mar com dom Cristóbal Colón. Na nau Santa María vim de traqueteiro. Deixamos o porto de Palos pelo rio Saltes, meia hora antes da saída do sol, na sexta-feira, 3 de agosto de ano do Senhor de 1492. Deo gratias.” (ARIDJIS, 1988, p. 306). Essa é, pois, uma obra que revela, com um colorido especial, os mais relevantes momentos históricos, vitórias de uns e derrotas de outros, decisões e consequências que alterariam a história da Espanha para sempre, ao pôr fim ao 204


convívio multi-racial e religioso de séculos. A atmosfera na qual Colombo se move e na qual alcança os meios de pôr em marcha o projeto que contribuiria para mudar, ainda mais, a realidade desse reino europeu, e toda a história da humanidade, está plasmada no romance de Aridjis. Na literatura argentina, destacam-se, em relação à “poética do descobrimento”, os autores Abel Posse, com Daimón (1978) e Los Perros del paraíso (1983), Marcelo Leonardo Levinas, com El último crimen de Colón (2001) e Federico Andahazi com El Conquistador (2006). Mencionamos, a seguir, duas obras da trilogia220 de Abel Posse, pelo seu teor crítico/desconstrucionista e, mais adiante, como obra integrante da terceira fase do romance histórico: a crítica/mediadora, a de Marcelo Leonardo Levinas e a de Federico Andahazi. Posse, em sua obra Daimón (1978 [1989]), cujo personagem principal é Lope de Aguirre, usa como epígrafe da primeira parte um trecho da Carta VII de Cristóvão Colombo aos reis espanhóis, escrita na Jamaica, em 1503. Esta, porém, não é a única menção ao marinheiro e suas ações na América recémdescoberta. Posse, como García Márquez, em certo momento de sua narrativa, inverte o foco de visão dos fatos da “descoberta” e registra que “[...] el 12 de Octubre de 1492 fue descubierta Europa y los europeos por lo animales y hombres de los reinos selváticos [...]221” (POSSE, 1989, p. 28). As duas páginas pelas quais a referência ao “descobrimento” e aos brancos recém-desembarcados se efetua estão marcadas por um tom de pessimismo e por severas condenações aos atos dos espanhóis, que “[...] manifestaban una rotunda incapacidad para comprender el equilibrio y el orden natural de las cosas [...]222” (POSSE, 1989, p. 28). A visão de Colombo, registrada em seu Diário, outra vez é subvertida e os nativos “ingênuos e bons serviçais”, no discurso ficcional, logo se dão conta da realidade: “[…] los hombres y los animales selváticos (seguramente también las plantas) pronto comprendieron que los claros venían movidos por el signo de la depredación y de la angurria, que se manifestaba en un impulso de muerte asesina. 223” (POSSE, 1989, p. 29). A “grande façanha” de Colombo recebe, no tratamento crítico do artista, uma 220

Recomendamos a leitura da dissertação Ressignificações do passado na trilogia de Abel Posse (1978; 1983; 1992) – da crítica desconstrucionista do novo romance histórico ao romance histórico contemporâneo de mediação (2021), de Jucelia Hurtiah de Oliveira Pires, por nós orientada – em parceria com o Prof. Dr. Phelipe de Lima Cerdeira. Nessa pesquisa, as três obras da trilogia de Posse são estudadas e analisadas no intuito de evidenciar a passagem da segunda fase da trajetória do gênero (a crítica/desconstrucionista – contemplada na obra de Posse nos dois primeiros volumes da trilogia) para a terceira fase das escritas híbridas de história e ficção (a crítica/mediadora, cujo terceiro volume da trilogia é visto como exemplar pela pesquisadora) que compõem o conjunto de romances argentinos de Posse dedicados à “poética do descobrimento”. 221 Nossa tradução: [...] no dia 12 de Outubro de 1492 foram descobertas a Europa e os europeus pelos animais e homens dos reinos selváticos. 222 Nossa tradução: [...] manifestavam uma rotunda incapacidade para compreender o equilíbrio e a ordem natural das coisas [...]. 223 Nossa tradução: […] os homens e os animais selváticos (seguramente também as plantas) logo compreenderam que os pálidos vinham movidos pelo signo da depredação e da fome extrema, que se manifestava em um impulso de morte assassina.

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nova dimensão, pois “[...] con increíble tenacidad fundaban lo que ellos mismos – inexplicablemente – llamarían ‘el valle de lágrimas’224” (POSSE, 1989, p. 30). Já no romance Los perros del paraíso (1983), Abel Posse faz de Cristóvão Colombo seu protagonista, embora a obra aborde fatos e personagens anteriores aos eventos protagonizados pelo marinheiro, numa trama cheia de características plenas do criticismo, do experimentalismo e desconstrucionismo do novo romance histórico latino-americano. Segundo Milton (1991, p. 95), “[…] é possível, ao leitor, reconstituir no romance um período histórico que abrange desde o final da Idade Média até o momento em que Colombo, ao término de sua terceira viagem ao continente (1498-1500), volta à Espanha na condição de prisioneiro por ordem da rainha Isabel.” Na diegese de Los perros del paraíso (1983) não se prima pela cronologia dos acontecimentos e, assim, eventos das diferentes viagens de Colombo misturam-se na ficção sem qualquer aviso ao leitor. Essa obra de Posse está dividida em quatro partes: El aire, El fuego, El agua, La tierra. A reunião dos quatro elementos, que juntos formam um ciclo completo na cosmovisão nativa americana, adquire, ao longo da narrativa, com a passagem de um elemento ao outro, a simbologia das mutações e transformações históricas, assim como a junção dos espaços da peregrinação de Colombo e seus homens em busca do Paraíso Terrenal. Amalia Pulgarín (1995, p. 58) chama a atenção também para o fato de que essa utilização dos quatro elementos como divisores da obra de Posse está relacionada com “[…] la idea de los cuatro soles sobre la cual se basa la cosmogonía que predomina en las culturas indígenas de México y Centroamérica.225” As aventuras do marinheiro no “Novo Mundo” são constantemente acompanhadas de cães, ora os nativos dóceis que não sabiam latir, pois “[...] había perros que jamás ladraron (curiosos perros mudos incapaces de creer que algo se pudiera robar)226” (POSSE, 1983, p. 202); ora os ferozes caçadores espanhóis usados para capturar indígenas. Assim, os cães adquirem uma simbologia marcada pela ferocidade e pela luxúria. A personagem Colombo, bem como os fatos por ela desencadeados, recebem, nessa obra, um tratamento irônico, com uma linguagem que apresenta aspectos marcados pelos elementos bakhtinianos do dialogismo, da carnavalização, da paródia, da polifonia, além da intertextualidade, de paralelismos históricos entre os continentes e o próprio país do autor, visíveis pela presença de alusões a Evita, a Borges e a Juan Perón. Este último é comparado a Roldán, que organiza o primeiro golpe de Estado na América. 224

Nossa tradução: [...] com uma incrível tenacidade fundavam o que eles mesmos – inexplicavelmente – chamariam ‘o vale de lágrimas’. 225 Nossa tradução: […] a ideia dos quatro sois sobre a qual se baseia a cosmogonia que predomina nas culturas indígenas do México e da América central. 226 Nossa tradução: [...] havia cães que jamais latiam (curiosos cães mudos incapazes de crer que algo pudesse ser roubado).

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Destacam-se, ainda, as anacronias exageradas: ações das quatro viagens de Colombo se fundem em apenas uma e, entre os marujos que o acompanham, encontram-se personagens que remetem a Marx, Emanuel Swedenborg e Nietzsche, além de alusões às multinacionais que exploram o potencial produtivo das terras recém-descobertas. Há, também, constantes remissões metafóricas às situações vivenciadas, num passado recente, por várias nações hispano-americanas. Colombo, na terceira parte da obra, identifica a desembocadura do rio Orinoco como sendo o Paraíso terrenal. Essa nova “descoberta” dá-se no dia 4 de agosto de 1498 – data da realização de sua terceira viagem ao novo continente –, porém, sua chegada a esse local representa, para os nativos, a transformação desse “Paraíso” em um verdadeiro inferno. O navegante, entretanto, decide viver como se no paraíso estivesse e decreta, entre outras coisas, a nudez primogênita. A descrição carnavalizada e caricaturizada que se faz dele nesse estado de “gozo angelical” mostra-nos o tratamento ficcional que lhe é dado pelo romancista: Imponente, avanza el Almirante. Completamente desnudo, con su melena del color y el estado de la de un león con muchos años de tráfico circense. Su vientre blanquecino y laxo cae en tres sucesivas ondas sobre un pubis canoso (señal de madurez, de años no vividos en vano). Sus piernas largas y delgadas sosteniendo su cuerpo voluminoso, diríase un mosquito que se hubiese atragantado con un garbanzo. 227 (POSSE, 1983, p. 200-201).

Analisado por Milton (1992, p. 158-176), esse romance é lido sob a perspectiva de uma “deglutição crítica da história”, na qual o “[...] ponto culminante do trabalho paródico reside na análise das relações históricas sob o ponto de vista das relações sexuais e comerciais, o que se revela um veio fértil para a imaginação criadora.” (MILTON, 1992, p. 159). Os aspectos de hipertextualidade não se manifestam somente em relação aos eventos históricos nessa obra por meio de anacronismos, polifonia, paródia e carnavalização; eles chegam a corrigir a própria “poética do descobrimento”, como, por exemplo, quando o narrador comenta a obra de Carpentier: “[...] por eso yerra el gran Alejo Carpentier cuando supone una unión sexual, completa y libre, entre el navegante y la Soberana. La noble voluntad democratizadora lleva a Carpentier a ese excusable error. Pero es absolutamente irreal.228” (POSSE, 1989, p. 119). 227

Nossa tradução: Imponente, o Almirante avança. Completamente nu, com sua melena da cor e no estado da de um leão com muitos anos de atividade circense. Seu ventre esbranquiçado e mole cai em três sucessivas ondulações sobre um púbis já grisalho (sinal de madureza, de anos bem vividos). Suas pernas longas e delgadas sustentando o corpo volumoso, dir-se-ia um mosquito que tivesse se engasgado com um grão-de-bico. 228 Nossa tradução: [...] por isso erra o grande Alejo Carpentier quando supõe uma união sexual, completa e livre, entre o navegante e a Soberana. O nobre desejo democratizador leva Carpentier a esse desculpável erro. Mas é absolutamente irreal.

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Nessa mesma linha revolucionária e inovadora de Posse com relação às imagens escriturais de Colombo na ficção, Carlos Fuentes publica a obra Cristóbal Nonato, em 1987, um romance que tem como grande trunfo o ponto de vista escolhido: um feto que percebe o mundo desde o momento de sua concepção, marcado na obra como o dia 6 de janeiro de 1992. Nesse novo “filho pródigo” de El arpa y la sombra, de 1979, e dos demais romances que o precederam, passa-se a explorar o monólogo interior, o fluxo de consciência, o jogo com os tempos narrativos, a presença conscientemente fragmentada da história, os múltiplos idiomas falados na América e as suas fusões e a imersão no fantástico. Todos esses recursos empregados na construção do romance de Fuentes deixam em evidência alguns dos procedimentos experimentalistas da ficção hispano-americana da década de 80, do século XX, empregados de forma consciente para ler o passado sob perspectivas desconstrucionistas. Segundo argumento explicitado no prólogo do romance, o estado mexicano, bastante fragilizado com o terremoto que havia castigado a Cidade do México, estabelece uma verdadeira campanha publicitária para estimular os cidadãos a procriar em nome de seu dever com a Pátria: “¡A procrear, pues, señoras y señores! ¡Su placer es su deber y su deber su libertad! ¡En México, todos somos libres y el que no quiera ser libre será castigado! ¡Y confíen ustedes en sus jueces! ¿Alguna vez les hemos fallado?229” (FUENTES, 1987, p. 14). Tal desafio, cheio de ironias e sarcasmos, é encarado pelos protagonistas da obra Cristóbal Nonato: o jovem casal Ángeles e Ángel – nomes que remetem ao paraíso buscado por Colombo em suas explorações pelo continente, aspecto recorrente no romance de Posse (1983) com o qual esta obra de Fuentes dialoga. Os nove meses de gestação que seguem após o ato sexual vivido pelo casal na tentativa de vencer o concurso promovido pelo Estado – um concurso cujo prêmio proverá sustento ao menino que nascer exatamente à zero hora de 12 de outubro de 1992 e fará dele o “hijo pródigo de la Patria [a quien] serán entreguadas las llaves de la República230” (FUENTES, 1987, p. 13) – equivalem aos nove capítulos nos quais o romance se divide. O nascimento deve ocorrer justamente no dia 12 de outubro de 1992, na comemoração dos quinhentos anos de “descobrimento” da América, porque […] el niño que nazca precisamente a las 0:00 horas del día 12 de octubre de 1992 y cuyo nombre de familia, aparte del nombre de pila (seguramente, lo estimamos bien, Cristóbal) más semejantes guarde con el Ilustre Navegante será proclamado HIJO PRÓDIGO DE LA PATRIA, su educación será proveída por la República y dentro de dieciocho años serán entregadas las LLAVES DE LA REPÚBLICA, premio a su instalación, al cumplir los veintiún años, como REGENTE DE LA 229

Nossa tradução: A procriar, senhoras e senhores! Seu prazer é seu dever e seu dever sua liberdade! No México, todos somos livres e aquele que não quiser ser livre será castigado! E confiem vocês em seus juízes! Alguma vez lhes falhamos? 230 Nossa tradução livre: [...] filho pródigo [a quem] serão entregues as chaves da República.

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NACIÓN, con poderes de elección, sucesión y selección prácticamente omnímodos 231. (FUENTES, 1987, p. 25 - 26).

No prólogo, que o autor intitula “Yo soy creado”, o narrador já assume a visão e a voz de Cristóbal Nonato: é o próprio embrião que começa a relatar sua procriação, num discurso “intra-uterino”, pois este ainda não foi concebido; mesmo assim, por intermédio dele, vai se traçando a imagem dos dois jovens mexicanos – Ángel e Ángeles – seus hábitos e costumes, a linguagem utilizada por eles nos anos 90, do século XX, os lugares pelos quais transitam, entre outros aspectos. Mesmo antes de concebido, já ouvimos a sua voz, pois o espermatozóide eleito se manifesta: “¿Yo el único que llegué a la isla del tesoro?... El huevo de mi madre me espera en su escondite… En su trono de sangre:… la reina Isabel de los Ángeles, mi hermanita piadosa, mi madre cruel, me abren los brazos a mí, el campeón, victorioso sobre los millones232” (FUENTES, 1987, p. 30). Uma vez concebido e na condição de feto, começa o primeiro capítulo da obra, o primeiro mês de gestação. Segue-se, então, uma aventura linguística de nove meses, ou capítulos, que são um verdadeiro labirinto de formas e gêneros, um complexo e heterogêneo conjunto de linguagens que, como expressão do feto que cresce no útero da mãe, prolifera-se em neologismos e metalinguagens, pois os progenitores ainda não sabem em que idioma irá o pequeno Cristóbal comunicar-se: “[...]¿en qué idioma va a hablar el niño? – ¿Español, que no? – ¿Y todas esas jergas nuevas, qué? El espanglés y el angloñol y el ánglat inventado por nuestros cuates los Four Jodiditos y...233” (FUENTES, 1987, p. 37). O intenso e laborioso trabalho com a linguagem faz dessa obra de Carlos Fuentes um expoente máximo do período experimentalista dos novos romances históricos hispano-americanos, a qual, nesse mesmo ano de 1987, encontrará um interlocutor nas letras norteamericanas: The memoirs of Christopher Columbus, de Stepehen Marlowe, como vimos anteriormente.

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Nossa tradução: […] o menino que nasça precisamente às 0:00 horas do dia 12 de outubro de 1992, cujo sobrenome da família, além do nome de batismo (seguramente, estimamos bem seja, Cristóvão) mais semelhanças apresente com o Ilustre Navegante será proclamado FILHO PRÓDIGO DA PÁTRIA, sua educação será providenciada pela República e dentro de dezoito anos serão a ele entregues as CHAVES DA REPÚBLICA, prêmio à sua instalação, ao cumprir vinte e um anos, como REGENTE DA NAÇÃO, com poderes de eleição, sucessão e seleção praticamente unívocos. 232 Nossa tradução livre: […] Eu, o único que cheguei à ilha do tesouro?... O ovo de minha mãe me espera em seu esconderijo... Em seu trono de sangue:... a rainha Isabel de los Ángeles, minha irmãzinha piedosa, minha mãe cruel, abrem os braços para mim, o campeão, vitorioso sobre os milhões. 233 Nossa tradução: [...] em que idioma vai falar o menino? – Espanhol, que não? - E todas essas gírias novas, quê? O espanglês e o anglonhol e o anglat inventados por nossos camaradas, os Four Jodiditos, e....

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A loucura que sente o narrador da obra de Fuentes (1987) refere-se ao “Descobrimento”, pois, a cada narração, cada fragmento exposto, notamos que o narrador está querendo mostrar ao leitor a subjetividade contida na palavra “descobrimento”. Nesse fragmento, por exemplo, observa-se isto: “se escucharon trompetas y la música de la Marcha de Aída, las voces vinieron, se alzaron, exclamaron. Ángel rió y dijo que era una equivocación, ¿cómo?” (FUENTES, 1987, p. 184). Segundo a percepção do narrador, ele já estava ali antes de ser “descoberto” pelos outros e, diante da possibilidade de ser “descoberto” outra vez, busca uma saída para a situação: […] él ya estaba en la fiesta y no iba a salir de ningún huevo, temió lo imprevisto, una sorpresa fantástica: ¡una muchacha iba a salir del huevo! ¡Una desconocida arreglada por él, a la que él quería presentar a sus familiares y amigos, de sorpresa, como si la muchacha fuese el regalo de él para ellos, y ellos se la iban a presentar a él, ignorando que él ya la conocía! (él y ella) se habían conocido en un parque pero se habían prometido descubrirse poco a poco […]234. (FUENTES, 1987, p. 154).

Durante toda a narrativa, a personagem, em uma enunciação em primeira pessoa, refere-se no seu discurso ao navegador Cristóvão Colombo, numa espécie de paródia que é em si o “descobrimento”, uma jovem que os outros iam apresentar para ele como se fosse uma desconhecida. Esta ia sair de um ovo como presente de aniversário, mas ele já a conhecia. Dessa maneira, o narrador produz um efeito paródico e irônico, pela sua ambiguidade, além disso, a menção é profundamente polifônica, porque traz à memória do leitor vozes do “descobrimento” da América, do ovo de Colombo, do imprevisto da viagem, dessa surpresa fantástica: uma menina e não um menino. A nova terra – América – era um “descobrimento” para aqueles que esperavam apenas encontrar um novo caminho para as Índias, mas que Colombo já esperava encontrar ou, pelo menos, intuía a sua existência, conhecimento ao qual havia chegado por meio da leitura dos livros de história de Marco Polo. A metaficção também faz parte das características da narrativa com que Fuentes (1987) costura a unidade de sentido de sua obra: “Cristóbal Nonato busca sus novelas hermanas, amadas: extiende sus brazos de papel para revivirlas, igual que el niño recién concebido añora a sus hermanos y hermanas perdidas (añora incluso la niña que el niño pudo ser [...]235” (FUENTES, 1987, p. 181). Os ecos culturais se escutam como 234

Nossa tradução: […] ele já estava na festa e não ia sair de nenhum ovo, temeu o imprevisto, uma surpresa fantástica: uma moça ia sair do ovo! Uma desconhecida arrumada por ele, a qual ele queria apresentar a seus familiares e amigos, de surpresa, como se a moça fosse o presente dele para eles, e eles a apresentariam para ele, ignorando o fato de que ele já a conhecia! (ele e ela) haviam-se conhecido em um parque, mas se haviam prometido ir descobrindo-se pouco a pouco […]. 235 Nossa tradução: Cristóbal Nonato busca seus romances irmãos, amados: estende seus braços de papel para revivê-los, igual como o menino recém-concebido sente a falta dos irmãos e irmãs perdidos (sente saudades, inclusive, da menina que não chegou a ser [...]).

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um fluir de passos que se aproximam desde diferentes pontos do planeta, mas agora estes servem para mostrar a maneira de construir a narrativa do romance. O emprego da metaficção no romance de Fuentes é marcante e não ocorre por acaso. Como em Dom Quixote, de Miguel de Cervantes (1615), especialmente na segunda parte, o narrador se direciona ao leitor, chamando-o pela segunda pessoa, causando, assim, a impressão de intimidade entre eles. Assim, estimulando-o a ser um autor, Fuentes (1987) começa a falar da obra narrativa que ele, nesse exato momento, está escrevendo: “Lo más probable es que Tú seas una pobre muchacha adolescente del Sagrado Corazón, empeñada en copiar con letra araña algún pasaje clásico de esta novela236” (FUENTES, 1987, p. 150). O narrador começa a falar da obra, da qual ele é o narrador, para seu leitor, num processo de espelhamento no qual o “eu”, o leitor, multiplica-se: Mi novela como Tu novela, copiando no la que estás leyendo, sino una nueva novela, que comienza así: Prólogo, Yo fui Creado: Me engendró la imaginación primero, primero el lenguaje; me creo la serpiente negra cromosómica heráldica, culebra de tinta y voces que todo concibe237 (FUENTES, 1987, p. 150).

Por meio do recurso metaficcional, Fuentes escreve sobre o processo de criação de seu romance e, nele, não se esquece do leitor. Ele faz parte da obra, não como uma parte óbvia da narração tradicional autor-obra-leitor, mas num processo de inversão que convida a que, a partir da leitura de sua obra, este escreva outra, “así como las del Autor-Lector que serás Tu al terminar de leer la novela238” (FUENTES, 1987, p. 132). Carlos Fuentes, a partir desse ponto de vista, percorre, numa análise crítica e paródica, toda a realidade histórica, política, social e cultural da América, especialmente do México, mantendo um distanciamento irônico de seu porta-voz, protegido pelo ventre da mãe, e o faz nascer como o mito glorioso de Quetzalcoatl, no dia e na hora previstos: [...] un niño está naciendo al nacer el 12 de octubre de 1992 en la playa de Acapulco. Viene tomado de la mano de una niñita de ojos cerrados. El niño tiene bien abiertos los ojos, como si sus párpados jamás se hubiesen formado. Mira fijamente a la tierra que lo espera239. (FUENTES, 1987, p. 573). 236

Nossa tradução: O mais provável é que Tu sejas uma pobre menina adolescente do Sagrado Coração, empenhada em copiar com letra de caligrafia alguma passagem clássica deste romance. 237 Nossa tradução: Meu romance, como teu romance, copiando não aquele que estás lendo, mas, sim, um novo romance, que começa assim: Prólogo, Eu fui Criado: Engendrou-me a imaginação e, primeiro, a linguagem; criou-me a serpente negra cromossômica heráldica, cobra de tinta e vozes que tudo concebe. 238 Nossa tradução: […] assim como as do Autor-Leitor, que serás Tu, ao terminar de ler o romance. 239 Nossa tradução: [...] um menino está nascendo ao despertar do dia 12 de outubro de 1992 na praia de Acapulco. Vem segurado pela mão de uma menininha de olhos fechados. O menino tem bem abertos os olhos, como se suas pálpebras jamais tivesse se formado. Olha fixamente para a terra que o espera.

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Fazer nascer gêmeos – um menino e uma menina, cada qual com suas próprias peculiaridades – é, pois, o símbolo máximo de que se vale a narrativa para evidenciar a união entre os mundos que se encontraram naquela madrugada do dia 12 de outubro de 1492 – fato que deu origem a nossa genealogia de povos mestiços latino-americanos. Após essa polissêmica, crítica e heteroglóssica ressignificação do passado empreendida por Carlos Fuentes (1987), é a vez da América do Sul manifestar-se, novamente, em relação às ações que se sucederam aos eventos de 1492, como consequências das ações primeiras de Cristóvão Colombo. Assim, é da imaginação, da criatividade e das pesquisas do estreante romancista uruguaio Napoleón Baccino Ponce de León que nos chegam, em 1989, as imagens contidas em sua obra Maluco – la novela de los descobridores240. Com sua obra de estreia, Napoleón Baccino Ponce de León ganhou o prêmio Casa de las Américas, de 1989. O romance Maluco – la novela de los descobridores recupera os eventos históricos ocorridos em 1519, ocasião na qual Fernão de Magalhães e Juan Sebastián Elcano empreenderam a primeira viagem de circum-navegação ao globo, rumo às ilhas Molucas (islas de las Especias) pela via Ocidente – como havia planejado Colombo em 1492. A navegação iniciouse com uma esquadra composta por cinco navios e um pouco mais de duzentos homens. Ao final da expedição regressou apenas uma embarcação, Victoria, com somente dezoito sobreviventes. O foco narrativo do romance é sustentado por Juanillo Ponce, bufão da frota de Magalhães que, em voz autodiegética, dirige-se por meio de uma missiva ao senil Charles V da Espanha – já abdicado – para que interceda junto a seu filho, o rei Felipe II, para que “[…] seja restituída a pensão que, por andar eu pelos povoados e praças indagando apenas a verdade, me foi tirada.”. (PONCE DE LÉON, 1992, p. 6). Ponce tem o nome apagado dos registros oficiais por falar demais e por contar muitas histórias, desagradando o príncipe e o Santo Ofício a ponto de perder a sua pensão. Assim, a personagem, desassistido e em idade avançada, escreve em tom de súplica para que o ex-rei tenha ciência de sua dificuldade, relato em que transparecerão as suas ações e todo o seu esforço na empresa exploradora, na qual enfrentou a fome, a sede, a doença, a morte, a loucura, mas foi um dos poucos sobreviventes dessa façanha. A narrativa de Ponce de León busca oferecer outra versão da viagem de Magalhães – consequência daquela primeira de Colombo –, desconstruindo a canônica visão do explorador como herói, uma vez que aparece em aberta confrontação com as vozes oficiais dos cronistas Antonio Pigafetta, que regressou entre os dezoito da Victoria, autor de Primer viaje alrededor del mundo 240

A crítica literária argentina Magdalena Perkowska, dedica o Capítulo III (p. 147), de sua obra Historias híbridas: la nueva novela histórica latino-americana (1985-2000) ante las teorías pósmodernas de la historia (2008) ao estudo e análise do romance de Napoleón Baccino Ponce de León. Desse modo, indicamos a leitura aos interessados em melhor conhecer esse romance uruguaio.

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(1523-1525), e Pedro Mártir, que escreveu a partir dos registros de Pigafetta. Tal intenção de reescrita justifica-se sob a acusação de que as crônicas existentes sobre a viagem são, na realidade, falsificações da história, pois excluem o sofrimento e as agruras enfrentadas pela tripulação que, em sua maioria, pereceu nessa empreitada. Pelo perfil da personagem, que, em razão do seu ofício imprime na narrativa um tom apelativo e acusador, servil e poético, cáustico e irônico, o texto constitui-se numa releitura crítica da história que, pelo ponto de vista adotado, desafia as versões legitimadas – sustentadas pelos cronistas –, e promove o acesso a outras possíveis visões sobre um mesmo fato histórico – aqui focalizada por uma personagem marginal. A presença dessas marcas, dentre outras características e intenção de leitura do passado referenda a obra de Ponce de Léon como um novo romance histórico hispano-americano (AÍNSA, 1991). Já na década de 1990, embora nela já tenhamos obras híbridas de história e ficção da terceira fase da trajetória do gênero, as imagens escriturais de Colombo concebidas sob o olhar crítico/desconstrucionista da modalidade do novo romance histórico latino-americano seguem em produção e são alavancadas pela chegada do V centenário da primeira travessia de Colombo ao Atlântico, sendo esse o contexto no qual surge a obra Memorias del Nuevo Mundo (1991), de Homero Aridjis e, na sequência, uma série de obras publicadas no contexto mesmo da efeméride. Dessa maneira, com a chegada do ano de 1992, novas ressignificações da viagem primeira de Colombo à América são trazidas à luz. Entre elas, destacam-se El Libro de los descubrimientos (1992), do venezuelano Gonzalo Ramírez Cubillán; Las puertas del mundo: una autobiografía hipócrita del Almirante (1992), do mexicano Herminio Martínez; e Vigilia del Almirante (1992), do paraguaio Augusto Roa Bastos – esta última constitui modelo de metaficção historiográfica – e La segunda muerte de Cristóbal Colón (1999), do hondurenho Eduardo Hernández Bonilla. Na obra de Ramírez Cubillán (1992), os “descobrimentos” entrecruzam-se, assim como os diferentes fios narrativos. Utilizando-se de recursos como a heteroglossia e a intertextualidade, o narrador de El libro de los descubrimientos, que se vale da voz e visão da personagem Sebastián Cáceres, é capaz de assumir diferentes perspectivas. Assim, ele vai reconstituindo a história do “descobrimento” da América e sua própria história através desse entrecruzamento de discursos, de diferentes versões sobre os fatos históricos. A ação deflagradora do romance se dá quando uma senhora revela ao jovem Sebastián Cáceres: “mi hija sabe de una carta rarísima de Colón que apareció en una playa de Galicia, así que quizá fueron dos las que escribió el almirante, y si lo desea,

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como creo, le puedo pedir a ella que le refiera el hallazgo 241” (RAMÍREZ CUBILLÁN, 1992, p. 15). A notícia da suposta carta leva o jovem a conversar com a personagem Isabel Trastamara, que lhe conta sobre a história de certa carta que havia sido encontrada por um pescador e dada a um padre. Esse, por sua vez, teria encaminhado o documento ao vaticano, na esperança de, com tal ação, conseguir uma possível promoção. A carta teria sido ocultada pelo Vaticano, pois, segundo o que se dizia, havia nela muitas revelações que poderiam comprometer os registros da história. Além disso, supunha-se nela a existência de informações inconvenientes, inclusive, para o clero. Isabel Trastamara informa ao protagonista, também, que conhece Asunción Ribeira – uma amiga que guardava o diário de sua tataravó, no qual, segundo ela, estavam registrados vários relatos feitos pelo pescador que havia encontrado a carta de Colombo. Ao encontrar-se com essa senhora, Cáceres fala sobre seu interesse em investigar a história de Colombo, e Asunción lhe oferece emprestado o diário de sua tataravó, além de outros documentos. Uma série de “descobrimentos” feitos por Cáceres passam a ser relatados no romance, proporcionados, principalmente, pelo acesso ao diário da tataravó da personagem Asunción Ribeira. Nele, apontam-se informações sobre como era a corte antes do “descobrimento” da América e retratam-se personalidades como Vespúcio e Fernando de Aragón, entre outros. Durante a leitura do diário empreendida por Cáceres, as diferentes temporalidades acabam se fundindo e, assim, vemos as evocações do passado vivido por Cáceres mesclando-se com o passado lido no diário, bem como com os momentos do presente da narrativa. Isso se dá num relato em que a linguagem não prima por separar discursos, inserindo diálogos em meio às descrições ou comentários do narrador, evidenciando-se o jogo entre o tempo da história e o tempo da narração. Dessa maneira, dois relatos coexistem de forma simultânea: os descobrimentos de Cáceres, no presente da narrativa, e as alusões às empreitadas de Colombo, registradas no diário lido pelo protagonista. Ambas chegam a confundir-se, num jogo de revelar e encobrir que ficcionaliza o passado pelo entrecruzamento de uma série de vozes e discursos que remetem ora ao presente vivido pelo protagonista, em Caracas de 1940, ora ao passado histórico de Colombo, pela evocação a tempos remotos, assim como os significativos momentos da época do “descobrimento” e colonização da América, dando-lhes nuances diferentes daquelas consignadas pela história tradicional. O romance promove, assim, uma releitura crítica ao questionar a legitimidade da história oficial, reconstruindo-a pela ficção. Ao estabelecer-se a 241

Nossa tradução: […] minha filha sabe de uma carta raríssima de Colombo que apareceu em uma praia da Galícia, assim, quem sabe, foram duas as que escreveu o Almirante, e caso desejes, como acredito, posso pedir a ela que lhe refira esse achado.

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justaposição dos diferentes tempos presentes na narrativa, ocorre a subversão e a desmistificação do discurso histórico hegemônico. A mistura de vozes presentes na narrativa provoca no leitor uma sensação de intenso diálogo entre as personagens das diferentes temporalidades, como se pode observar no fragmento a seguir: Confiesa también Colón que en las lejanas tierras descubiertas por él, la imponente reina fue eclipsada por unas princesas bien plantadas que más parecían griegas de las islas que mujeres de las Indias, a pesar de ser Doña Isabel La Reina una mujer muy perfumada que le gustaba agradar, con redondeces dignas de ver y un natural retozón que refrenaba con rigor, Santo Dios, qué cosas dice este hombre de la santa reina, exclama la señora Ribeira en una página violeta, escandalizada porque las monjas le enseñaron a admirar a la soberana y a tenerla como una mujer virtuosa de comunión diaria [...]242. (RAMÍREZ CUBILLÁN, 1992, p. 21).

Nesse intenso processo de “descobrimento” exposto nas páginas do romance, o protagonista Sebastián Cáceres descobre, além de inúmeros segredos da história, a sua própria identidade pela confluência de experiências de um passado primeiro – a gênese do processo, ou seja, a aventura de Colombo – e o enfrentamento das lembranças do passado e do presente. Processo semelhante se dá também com Colombo, que não “descobre” apenas a América, mas a própria Espanha daquela época. Lilibeth Zambrano 243 (2002) analisa a narrativa de Ramírez Cubillán nos seguintes termos: La carta apócrifa va mostrando las fisuras del discurso histórico, al mismo tiempo que crea un imaginario diferente de lo instituido. En este sentido, el vocablo “descubrimiento” adquiere en la novela de Cubillán un nuevo valor semántico. Descubrir será en el ámbito de la ficción desenmascarar a la historiografía al manifestar y hacer patente el conocimiento de la historia que se ignoraba o estaba escondido. Los “objetos ficcionales” construidos en el texto [...] se configuran a partir de la discursividad de la reescritura. El proceso de reescritura […] consiste en presentar el relato histórico bajo una óptica jocosa e irónica, haciendo que los lugares geográficos (España-Caracas) sean representados de manera diferente de como han sido en la realidad. Esto lo logra gracias a la yuxtaposición de superficies textuales [...], donde se produce la intersección de diversas e innumerables referencias culturales. En el texto mismo se dan articulaciones de diferentes voces que se empalman e 242

Nossa tradução: Confessa também Colombo que nas distantes terras descobertas por ele, a imponente rainha fora eclipsada por umas princesas bem apessoadas que mais pareciam gregas das ilhas que mulheres das Índias, apesar de ser Dona Isabel, a Rainha, uma mulher muito perfumada a quem lhe gostava agradar, com curvas dignas de serem vistas e um natural tesão que refreava com rigor, Santo Deus, que coisas diz este homem sobre a santa rainha, exclama a senhora Ribeira em uma página violeta, escandalizada porque as monjas ensinaram-lhe a admirar a soberana e a tê-la como uma mulher virtuosa de comunhão diária [...]. 243 Trecho da comunicação apresentada pela professora Lilibeth Zembrano no XXVIII Simposio de Docentes e Investigadores de la Literatura Venezolana, realizado na Universidad Simón Bolívar, em Caracas, no mês de novembro de 2002.

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interpelan a lo largo de la narración. Por otro lado, proliferan los sucesos intercalados dentro de otros. Alusiones a otras obras dentro de la misma.244

Tais características fazem do romance El libro de los descubrimientos (1992), de Ramírez Cubillán, uma narrativa que congrega várias das características do novo romance histórico. Trata-se de uma proposta de releitura do “descobrimento” que, conforme sugere Silviano Santiago (2000), alimenta-se das fontes consagradas para digeri-las e, a partir daí, gerar uma nova história, na qual o longínquo passado das ações de Colombo se inter-relaciona com as ações cotidianas dos povos hispano-americanos. Tal intenção é também perceptível no projeto de releitura presente no romance La segunda muerte de Cristóbal Colón (1999), do hondurenho Eduardo Hernández Bonilla. Essa obra é uma recriação bastante irônica das reações ocorridas nesse país hispano-americano com relação às comemorações do “Día de la Hispanidad” – designação dada pela maioria dos países hispano-americanos à efeméride de 12 de outubro – protagonizadas por certos grupos étnicos que integram a sociedade hondurenha. Tais reações, ficcionalmente recriadas na obra de Hernández Bonilla, levaram à destruição de um famoso monumento erigido em homenagem ao “descobridor” da América. Uma ação histórica, perpetrada pelos grupos étnicos hondurenhos, torna-se o impulso deflagrador de uma profunda releitura do passado desse povo com relação às ações de Colombo. Na transformação de tal fato em trama novelesca, o famoso navegante, em forma de estátua, é trazido a Honduras – um relato em que a sucessão de acontecimentos históricos se mescla com a ficção pelo emprego de estratégias como a ironia, a paródia e o humorismo, além de elementos típicos do realismo mágico. Estes dão vida à estátua e a fazem reviver seu passado na agonia da morte por decapitação, sofrida pela estátua destruída pelos descendentes dos autóctones que habitavam essa região antes da chegada dos invasores. O relato da segunda morte de Colombo – a destruição de sua estátua – dá-se na primeira cena do romance: “Cristóbal cayó de bruces [...] no podía abrir bien sus ojos por el polvo

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Nossa tradução: A carta apócrifa vai mostrando as fissuras do discurso histórico, ao mesmo tempo em que cria um imaginário diferente do instituído. Neste sentido, o vocábulo “descobrimento” adquire no romance de Cubillán um novo valor semântico. Descobrir será, no âmbito da ficção, desmascarar a historiografia, ao manifestar e fazer patente o conhecimento da história que se ignorava ou que estava escondida. Os “objetos ficcionais” construídos no texto [...] se configuram a partir da discursividade da reescrita. O processo de reescrita […] consiste em apresentar o relato histórico sob uma ótica jocosa e irônica, fazendo com que os lugares geográficos (Espanha-Caracas) sejam representados de maneira diferente de como tem sido na realidade. O relato alcança isso graças à justaposição de superfícies textuais [...], onde se produz a intersecção de diversas e inumeráveis referências culturais. No texto mesmo dão-se articulações de diferentes vozes que se emparelham e interpelam ao longo da narração. Por outro lado, proliferam os acontecimentos intercalados dentro de outros. Alusões a outras obras dentro da mesma.

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del pavimento [...]. Cristóbal comprendió en este instante que todo estaba perdido 245” (HERNÁNDEZ BONILLA, 1999, p. 15). O narrador, em uma perspectiva extradiegética, descreve a cena do “crime” como se fosse um repórter presenciando um assassinato, uma vez que se dá vida à estátua que estava sendo despedaçada pelos descendentes indígenas. Os últimos instantes de existência da famosa estátua são registrados pelo narrador: Siguió respirando con dificultad [...] infinidad de recuerdos pasaban por su mente con suma rapidez y uno de ellos fue cuando Rodrigo de Triana desde el castillo de proa de La Pinta gritó:!Tierra1, tierra! Y poco a poco se fueron borrando de su memoria como calculadora vieja y con sus pilas descargadas los 505 años de recuerdo. Murió históricamente, afirmaron las pocas personas que no lo apreciaban. Y en la escena del crimen sólo quedó el pedestal de la estatua del Gran descubridor. Murió decapitado. – Este es producto de la leyenda negra […] expresó […] un diplomático español que llevaba un ramillete de flores, porque iba a celebrarle a Cristóbal su cumpleaños. 246 (HERNÁNDEZ BONILLA, 1999, p. 16).

O confronto entre as atitudes dos rebeldes e a celebração prevista por parte do representante do governo espanhol, relatadas no trecho acima, estabelece as dicotomias sob as quais o “herói” segue sendo encarado nas sociedades envolvidas pelos seus atos. Na diegese de Hernández Bonilla, instaura-se uma investigação para punir os responsáveis pelo ato de destruição da estátua. O relato estrutura-se, dessa forma, com alguns traços marcantes do realismo mágico, e o eixo condutor da narrativa passa a ser as várias manifestações que tal ato deflagra em diferentes camadas sociais. Poliperspectivismo, polifonia, heteroglossia e dialogia, além da paródia e da carnavalização, são os recursos narrativos empregados para gerar as imagens escriturais de Colombo nesse romance, cuja essência é destoante dos discursos enaltecedores e apologéticos. As novas imagens escriturais do marinheiro trazem à baila todas as vozes sufocadas pela história oficial. Ao expor as opiniões não só daqueles que efetuaram a ação da “segunda” morte de Colombo, mas, também, a de vários órgãos e entidades sociais, a trama novelesca, por meio das estratégias peculiares dos novos romances históricos, reacende as discussões a respeito das

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Nossa tradução: Cristóvão caiu de bruços [...] não podia abrir bem seus olhos pelo pó do pavimento [...]. Cristóvão compreendeu, neste instante, que tudo estava perdido. 246 Nossa tradução: Seguiu respirando com dificuldade [...] infinidade de recordações passavam por sua mente com suma rapidez e uma delas foi quando Rodrigo de Triana da proa da Pinta gritou: Terra!, Terra! E pouco a pouco se foram apagando de sua memória como calculadora velha e com suas pilhas descarregadas aos 505 anos de recordação. Morreu historicamente, afirmaram as poucas pessoas que não o apreciavam. E na cena do crime somente ficou o pedestal da estátua do Grande descobridor. Morreu decapitado. – Este é produto da lenda negra […] expressou […] um diplomático espanhol que levava um buquê de flores, porque ia celebrar o aniversário de Cristóvão.

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consequências sofridas, na atualidade, por aqueles que descendem dos autóctones dominados e subjugados pelos conquistadores espanhóis. Desde que o termo “novo romance histórico latino-americano” se tornou corrente entre a crítica literária, o gênero romance histórico – em seu constante processo de autorrenovação – tem encontrado, além de produções que apresentam as características apontadas por Aínsa (1988-1991) e Menton (1993), outras modalidades de expressão. Essas têm se proliferado e já ultrapassam as caracterizações feitas no final da década de 1980 e início da década de 1990. Assim, nos dias atuais, verificamos, por um lado, a forte presença da metaficção – que deixa de ser uma característica a mais nessa nova forma de escrita e se torna o centro mesmo de toda a produção. Por outro lado, há uma vasta gama de produções que tendem a estabelecer uma fusão entre as modalidades mais tradicionais e suas características com as mais experimentalistas, como o novo romance histórico e as metaficções historiográficas, dando origem a uma nova modalidade de romances históricos mais atuais. Antes, contudo, de nos dedicarmos à fase mais atual da modalidade do romance histórico contemporâneo de mediação, vamos observar alguns traços da modalidade mais crítica/desconstrucionista da segunda fase da trajetória do romance histórico: a metaficção historiográfica. Essa é outra das modalidades híbridas críticas/desconstrucionistas contemporâneas, ainda mais recente que o novo romance histórico no contexto latino-americano, exatamente pelo fato de ser, no contexto da “poética do descobrimento”, uma variação desse. Entre ambas as modalidades híbridas, há uma linha de diferenciação que deve ser observada, para evitar problemas na hora da definição dos objetivos estabelecidos na ressignificação proposta pelo romance. Enquanto o novo romance histórico latino-americano busca novas possibilidades de enxergar o passado histórico, possibilitando que tanto a versão oficialmente aceita quanto as versões ficcionais possam ser vistas como possibilidades acerca do passado, expressadas pela ideologia que as rege, o objetivo da metaficção historiográfica será demonstrar que, de fato, não há “verdade” sobre o passado, há apenas discursos que buscam torná-lo inteligível no presente. Para isso, essas produções híbridas adotam os recursos metaficcionais como diretrizes condutoras de todo o relato. Assim, numa metaficção historiográfica é tão ou mais importante informar ao leitor como se procede à escrita do romance como renarrativizar – sob aspectos desconstrucionistas – os eventos aludidos do passado. Na natureza subversiva das imagens escriturais de Cristóvão Colombo, instituídas na literatura hispano-americana, no contexto da fase da nova narrativa latino-americana, iniciada em 1940, também se desenvolve, embora com menor expressão, essa modalidade mais crítica inserida na segunda fase do gênero: a metaficção historiográfica. Isso ocorre na escrita paraguaia de Augusto Roa Bastos, com Vigilia del Almirante (1992). 218


O advento das comemorações do quinto centenário do “descobrimento” da América certamente motivou a produção inovadora dessa obra do romancista paraguaio. O autor, valendo-se da liberdade criadora que lhe é outorgada pelo fazer literário, decide transgredir as verdades apontadas como únicas a respeito do que ele classifica como o “mayor acontecimiento cosmográfico y cultural registrado en dos milenios de historia de la humanidad 247” (ROA BASTOS, 1992, p. 11). Sobre a narrativa, ele comenta: “[…] este es un relato de ficción impura, o mixta, oscilante entre la realidad de la fábula y la fábula de la historia 248” (ROA BASTOS, 1992, p. 11), classificando-a como “heterodoxa, ahistórica, acaso anti-histórica, anti-maniquea”. O romance de Roa Bastos está dividido em 53 partes, nas quais várias vozes e discursos se encontram regidos principalmente por dois narradores distintos: um narrador homodiegético, que assume a voz e a consciência do próprio Colombo, que rememora, de forma seletiva, a sua própria trajetória. Isso compõe uma espécie de autobiografia, porém anacrônica, já que nessa voz o passado, o presente e mesmo o futuro, com referências a situações após a sua morte, coexistem. Por outro lado, há a presença de um narrador heterodiegético – em relação à narração do eixo narrativo comandado pela voz autodiegética de Colombo –, localizado no tempo presente, que revisa e questiona os fatos históricos arrolados na trama apresentada pela voz de Colombo. Essa voz contemporânea é uma espécie de alter ego do autor, que assume múltiplas vozes num intrincado jogo de perspectivas e funções, conduzindo, ordenando e reordenando a estrutura da narrativa, sempre num processo dúbio de construção e desconstrução, conferindo à obra seu caráter hipertextual. O intrincado jogo temporal da narrativa transparece no momento em que se revela o verdadeiro tempo da enunciação do primeiro eixo narrativo, que é bem posterior ao tempo do enunciado e que, de fato, dá-se na agonia final de Colombo, na Vigília do “Almirante”. Revela-se, então, o método adotado nessa organização: uma homenagem dupla a Carpentier – a seu conto “Viaje a la semilla” (1969), como se pode ver já no princípio quando os pássaros estão “[...] en oscuro remolino volando hacia atrás para engañar al viento 249” (ROA BASTOS, 1992, p. 15); e também a seu romance El arpa y la sombra (1979), tempo e espaço no qual Roa Bastos, assim como fez Carpentier, ambienta grande parte das reflexões de Colombo, como por exemplo, “¿Seré beatificado y canonizado alguna vez como el primer santo y mártir de la cristiandad? 250” (ROA BASTOS, 1992, p. 46); 247

Tradução cf. Josely Vianna Baptista (2003, p. 9): [...] o maior acontecimento cosmográfico e cultural registrado em dois milênios de história da humanidade. 248 Tradução cf. Josely Vianna Baptista (2003, p. 9): Este é um relato de ficção impura, ou mista, oscilante entre a realidade da fábula e a fábula da história. 249 Tradução cf. Josely Vianna Baptista (2003, p. 13): [...] no escuro remoinho, voando a ré para enganar o vento. 250 Tradução cf. Josely Vianna Baptista (2003, p. 42): Algum dia serei beatificado e canonizado como o primeiro santo e mártir marítimo da Cristandade?

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ou nos prognósticos que faz: “No será extraño que mi propia efigie aparezca andando el tiempo en los retablos de santos o varones ilustres de la cristiandad 251” (ROA BASTOS, 1992, p. 71); ou, ainda, na afirmação de que “esa esfigie ornará andando el tiempo uno de los retablos de la Capilla Sixtina cuya construcción ha comenzado 252” (ROA BASTOS, 1992, p. 72). Assim, os argumentos arrolados no romance de Carpentier (1979) passam a ser motivos de reflexão para a personagem de Roa Bastos, promovendo o diálogo de Vigilia del Almirante com as demais obras da temática do “descobrimento” que a precederam, fazendo da intertextualidade um dos recursos evidentes em sua construção. Assim, ao longo da narrativa, fatos das diversas viagens de Colombo acabam se fundindo nas recordações desse momento final no qual se encontra a voz narrativa do “eu” de Colombo, fazendo-nos recordar dos anacronismos de Abel Posse e das contribuições de Jorge Luis Borges para a literatura contemporânea: Con la cabeza sobre mi almohada de agonizante, en la desconchada habitación de mi eremitorio en Valladolid, contemplo con ojos de ahogado este viaje al infinito que resume todos mis viajes, mi destino de noches y días en peregrinación. [...] Lo real y lo irreal cambian continuamente de lugar. [...] El giro del tiempo transcurre a contratiempo. La rotación de los años tenuemente retrocede. El universo el divisible en grados de latitudes, de cero a lo peor. Es infinito porque es circular. Gira sobre si mismo dando la sensación de que recula253. (ROA BASTOS, 1992, p. 18-19).

Assim, o romance estabelece uma entramada rede intertextual, na qual se referenciam praticamente todos os escritores que, de uma ou outra forma, já se expressaram a respeito do tema. Vemos a clara devoção a Carpentier, não só na organização temporal da narrativa, mas, também, em menções explícitas a El arpa y la sombra (1979). O narrador autodiegético – personagem Cristóvão Colombo – faz um exame do que deixou registrado aos Reis em sua carta de reconhecimento, em suas memórias e no seu Livro das Profecias, promovendo uma releitura desses seus textos. Ele inserta aí uma intertextualidade anacrônica, mencionado que

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Tradução cf. Josely Vianna Baptista (2003, p. 67): Não seria estranho que minha própria efígie aparecesse, com o tempo, nos retábulos de santos ou de varões ilustres da Cristandade. 252 Tradução cf. Josely Vianna Baptista (2003, p. 67): [...] que essa efígie ornará, com o tempo, um dos retábulos da Capela Sistina, cuja construção começou. 253 Tradução cf. Josely Vianna Baptista (2003, p. 16-17): Com a cabeça sobre meu travesseiro de agonizante, no quarto desbotado de meu convento em Valladolid, contemplo com olhos de afogado esta viagem ao infinito que resume todas as minhas viagens, meu destino de noites e dias em peregrinação. [...] O real e o irreal mudam constantemente de lugar. [...] O giro do tempo transcorre a contratempo. A rotação dos anos recua tenuemente. O universo é divisível em graus de latitudes e longitudes, do zero ao pior. É infinito porque é circular. Gira sobre si mesmo, parecendo recuar.

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“[...] con la Gramática del P. Nebrija, llevo también entre mis postulados el Manual del Perfecto Inquisidor, de Pedro Páramo.254” (ROA BASTOS, 1992, p. 79). O deslocamento temporal, bem como a mudança de ponto de vista, possibilita ao outro narrador, extradiegético em relação ao relato de Colombo, posicionar-se junto ao “Almirante” na mesma hora da escrita desses documentos. Embora ele mesmo aponte a inexistência desses escritos no presente, relata a redação não só do Diário de bordo e outros escritos conhecidos, mas também a de um Diário Privado – ideia que retomará Marcelo Leonardo Levinas na obra El último crimen de Colón (2001), romance ao qual mais adiante nos referimos. Estes aspectos reforçam o caráter hipertextual das obras: “[…] durante el viaje, a 500 leguas de la Isla de Hierro, escribe en la última página de su Diario Privado (que será arrancada después y arrojada al mar; ni fray Bartolomé de las Casas ni su hijo Hernando, se refieren a este treno de temor y temblor del Almirante) 255” (ROA BASTOS, 1992, p. 86). O narrador extradiegético, em sua função de revisor da história, desautoriza essas produções escriturais do navegante, tidas como documentos oficiais ou referenciais, e tece, também, severos juízos sobre Colombo e a empresa de “descubrimiento = encubrimiento” (ROA BASTOS, 1992, p. 265) por ele realizada, revelando, assim, mais uma vez, a poética da hipertextualidade como presença constante nos romances que recriam a história do “descobrimento” da América na literatura hispano-americana: Su inagotable capacidad de engaño no sólo con los demás sino también con respecto a sí mismo, acabó por no poder ocultarle que, en vez de profeta de la epifanía prometida de un nuevo mundo y del encuentro de dos mundos, no era más que un fracasado, un malogrado, el peregrino errante del comienzo, un excluido ejemplar y sin remedio 256. (ROA BASTOS, 1992, p. 262).

Vemos, assim, mais uma confluência com a obra de Carpentier no fato de ter transformado o “Almirante” em uma alma penada que deveria passar a eternidade vagando sem destino, sem pátria, sem um fim definitivo. O tratamento artístico dispensado a Colombo por Roa Bastos aproxima-se daquele já empregado por Abel Posse (1983) pela carnavalização, beirando o grotesco. Ao inverter o ponto de vista, o narrador busca dar uma ideia da 254

Tradução cf. Josely Vianna Baptista (2003, p. 75): Com a Gramática do P. Librixa, levo também entre meus portulanos o Manual del Perfecto Inquisidor, de Pedro Páramo. 255 Tradução cf. Josely Vianna Baptista (2003, p. 84): Durante a viagem, a 500 léguas da Ilha de Hierro, escreve na última página de seu Diário Privado (que depois será arrancada e atirada ao mar; nem frei Bartolomé de Las Casas nem seu filho Hernando se referem a este treno de temor e tremor do Almirante). 256 Tradução cf. Josely Vianna Baptista (2003, p. 256): Sua inesgotável capacidade de engano, não só com os demais mas também com respeito a si mesmo, acabou por não poder ocultar-lhe que, em vez de profeta da epifania prometida de um novo mundo e do encontro de dois mundos, não passava de um fracassado, um malogrado, o peregrino errante do começo, um excluído exemplar e sem remédio.

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percepção dos nativos desse ser estranho que aportara em suas terras e que estava, ali, claramente fora de seu ambiente. Invitaron al Almirante a participar en la danza, y él tuvo que hacerlo sin ningún ritmo, muy desgarbadamente. La máscara, los collares y la renguera de sus pies llagados, le convertían ahora en espantapájaros de los mitos solares en medio de las risas de los indios que se burlaban de la inconcebible torpeza del hombre llegado del cielo257. (ROA BASTOS, 1992, p. 271).

Nas partes finais da obra, o narrador extradiegético, anteriormente posicionado em nosso presente, de onde revisa os fatos inerentes ao “descobrimento”, desloca-se para os momentos finais do protagonista e, em certos instantes, até se funde com este na visão e percepção da realidade transtornada da vigília que está chegando a seu destino, instalando-se na mente do próprio protagonista, conseguindo, assim, refletir daí o que nele se passa. Dessa perspectiva, repassam-se, ainda, alguns dos fatos históricos mais relevantes, aos olhos de Colombo, até que se chega à confissão final e à extrema-unção, ato no qual o frei comenta, parodiando a morte do Quijote: “[...] verdaderamente se muere y verdaderamente está cuerdo el que fue loco caballero navegante.258” (ROA BASTOS, 1992, p. 293). O próprio Colombo pede aos presentes “[…] sólo quiero rogaros que perdonéis la locura de esta historia, los grandes disparates que en ella se describen como ciertos, y que únicamente lo son para mí... 259” (ROA BASTOS, 1992, p. 294) e, para comprovar sua lucidez e o seu arrependimento, este manda chamar o escrivão e pede-lhe que queime seu testamento e o substitua por suas últimas vontades (ROA BASTOS, 1992, p. 298), que são o desmando de todos os mandos anteriores, a renúncia de todos os seus títulos, privilégios e honras e a restituição a seus legítimos donos das terras e possessões a ele concedidas. Com essa redenção, o “Almirante”, bem ao estilo do realismo mágico, “[...] fue desvaneciéndose en la humareda cada vez más densa, hasta que no se le vía más. 260” (ROA BASTOS, 1992, p. 298). A metaficção historiográfica, em grande parte, comparte com o novo romance histórico muitas de suas características, contudo, nessa ressignificação 257

Tradução cf. Josely Vianna Baptista (2003, p. 264): Convidaram o Almirante a participar da dança, e ele teve que fazer isso sem nenhum ritmo, muito desajeitadamente. A máscara, os colares e a manqueira de seus pés chagados transformavam-no agora em espantalho dos mitos solares, em meio às risadas dos índios que troçavam do inconcebível desjeito do homem chegado do céu. 258 Tradução cf. Josely Vianna Baptista (2003, p. 189): Verdadeiramente morre e verdadeiramente está cordo o que foi louco cavaleiro navegante. 259 Tradução cf. Josely Vianna Baptista (2003, p. 290): [...] só quero rogar-vos que perdoeis a loucura desta história, os grandes disparates que nela se descrevem como certos, e que o são unicamente para mim... 260 Tradução cf. Josely Vianna Baptista (2003, p. 294): foi-se desvanecendo na fumaça cada vez mais densa, até que não foi mais possível vê-lo.

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do passado, as estratégias metaficcionais são constantes e determinam a estrutura geral do texto. Assim, entre recontar o passado e elucidar ao leitor, na superfície do texto, o processo de seleção e manipulação da linguagem para criar a perspectiva desejada ou mesmo os meios de refutar outras são constituintes da própria diegese. Isso leva o leitor a um constante diálogo com o texto, pois todas essas estratégias vão forçar os limites da autoconsciência narrativa. Se nos novos romances históricos vê-se o emprego das estratégias de metaficção, no qual a voz enunciadora demonstra possuir conhecimento acerca da construção discursiva, ou do próprio processo de escrita do romance, nas metaficções historiográficas, essa característica se torna mote da obra e o intuito é demonstrar que tanto história quanto literatura são construtos humanos elaborados a partir da capacidade de manipulação da linguagem na constituição de discursos. Devido a isso, ambos são influenciados, modificados e adequados às vontades, por vezes inconscientes, dos produtores desse discurso, ou seja, do homem. O maior ou menor emprego desses recursos metanarrativos pode levar o estudioso a classificar obras nesse âmbito, segundo já apontamos em outra ocasião (2007, 149-167), em novos romances históricos metaficcionais, metaficções historiográficas e metaficções historiográficas plenas. Nesse sentido, são modelos de novos romances metaficcionais as obras Los perros de paraíso (1983), de Abel Posse, Cristóbal Nonato (1987), de Carlos Fuentes, The heirs of Columbus (1991), de Gerald Vizenor, entre outros aqui abordados. Já de metaficção historiográfica, dentro da “poética do descobrimento”, é a obra de Roa Bastos, Vigilia del Almirante (1992), composta por três fios narrativos, sendo um deles fortemente conduzido pelas estratégias metaficcionais que questionam, reordenam, elucidam e criticam as informações renarrativizadas em um dos outros fios narrativos do romance, um modelo muito adequado na literatura hispano-americana. Já de metaficção historiográfica plena temos em nossa temática um romance muito adequado para que nos sirva de modelo: The memoirs of Christopher Columbus (1987), de Stephen Marlowe, composto por um único fio narrativo, guiado pela voz atemporal de Cristóvão Colombo que faz alusões a antes, durante e depois de sua existência, num diálogo constante, crítico, irônico e sarcástico com o narratário-leitor expondo informações ocultas de sua existência e, praticamente, corrigindo, ironizando e depreciando todas as informações oficializadas sobre si. O produto final das metaficções, assim, é uma narrativa na qual a possibilidade de se saber a verdade é inexistente, por ser uma narrativa que “sugere que verdade e falsidade podem não ser os termos corretos para discutir a ficção” (HUTCHEON, 1991, p. 146), e que sugere também que “reescrever ou reapresentar o passado na ficção e na história é – em ambos os casos –

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revelá-lo ao presente, impedi-lo de ser conclusivo e teleológico” (HUTCHEON, 1991, p. 147). Desse modo, novamente, apresenta-se a maneira com a qual a contemporaneidade e, especialmente, a América, lida com a questão da história e ficção, uma vez que o grande nicho de romances híbridos contemporâneos se encontra nesse continente. As metaficções buscam reapresentar o passado, para, talvez, como sugere Zamora (1990), conseguir negá-lo e, consequentemente, assimilá-lo na psique da(s) sociedade(s) americana(s). Acerca da metaficção, ainda cabe fazer mais uma observação, pois [...] a metaficção historiográfica refuta os métodos naturais, ou de senso comum, para distinguir entre fato histórico e a ficção. Ela recusa a visão de que apenas a história tem uma pretensão à verdade, por meio do questionamento da base dessa pretensão na historiografia e por meio da afirmação de que tanto a história como a ficção são discursos, construtos humanos, sistemas de significação, e é a partir dessa identidade que as duas obtêm sua pretensão à verdade. (HUTCHEON, 1991, p. 127).

Desse modo, com a concepção de “pretensão à verdade”, Hutcheon pressupõe que as metaficções historiográficas requerem esse conceito para si mesmas, de forma similar à qual os discursos historiográficos oficialmente aceitos o fazem. Não se poderia, portanto, falar em verdade e em mentira, pois ambas, como explicitado pela autora, são construtos humanos que possuem “identidades” criadas por aqueles que possuem o poder de escrever. De fato, a “pretensão à verdade” pode ser encontrada tanto nas metaficções historiográficas quanto nos novos romances históricos, com a diferença de que, nas metaficções, novamente, a tessitura do texto demonstrará que seu objetivo é refutar qualquer verdade, enquanto os novos romances históricos assumem que há a possibilidade de se enxergar vários pontos de vista em ambos os discursos, histórico e ficcional. Entre as escritas híbridas de história e ficção que assumem a forma de romance histórico, a modalidade da metaficção historiográfica é, desde nosso ponto de vista, a mais complexa entre todas. Isso ocorre, segundo comenta Linda Hutcheon (2013), devido ao fato da “Metafiction”, as it has now been named, is fiction about fiction – that is, fiction that includes within itself a commentary on its own narrative and/or linguistic identity. […]. “Narcissistic” – the figurative adjective chosen here to designate this textual selfawareness – [...] These psychological associations, while like inevitable, are here, however, irrelevant in that it is the narrative text, and not the author, that is being described as narcissistic. The focus of a debate on the causes of the change must necessarily be on the perpetrator of the change – the author. The interest here is rather on the text, on the literary manifestation of this change, and on the resulting implications for the reader. […] And it is the new role of the reader that is the vehicle 224


of this change. […] metafiction has two major focus: the first in on its linguistic and narrative structures. And the second is on the role of the reader. […] Narcissitic narrative, then, is process made visible.261 (HUTCHEON, 2013, p. 1-4).

O imprescindível papel ativo do leitor que já não mais se reduz às possibilidades de estabelecer vínculos entre a ficção lida e os possíveis referentes da representação no universo concreto de sua existência mas, sim, na aceitação da ficção como ficção da absoluta falta de verossimilhança pretendida que o torna totalmente consciente da manipulação discursiva, da qual, necessariamente deve participar para a criação da “coerência”, coloca-o em um novo patamar de coautoria. This redefinition would necessarily entail a reconsideration of the nature of novelistic language; in all fiction language is representational, but of a fictional “other” world, a complete and coherent “heterocosm” created by the fictive referents of the signs. In metafiction, however, this fact is made explicit and, while he reads, the reader lives in a world which he is forced to acknowledge as fictional. However, paradoxically the text also demands that he participate, that he engages himself intellectually, imaginatively, and affectively in its co-creation. This two-way pull is the paradox of the reader262. (HUTCHEON, 2013, p. 7).

Assim, junto à metaficção historiográfica, deve nascer, também, no contexto latino-americano, um novo leitor, aquele que tanto faz falta, ainda, nos espaços das ex-colônias latino-americanas que sempre sofreram os estigmas de sociedades não leitoras, porque a persistência de ações colonialistas, perpetradas pelas camadas elitizadas dessas sociedades, buscaram, ao longo da história, impedir as classes menos favorecidas – ou seja, a grande massa operária desses países – o acesso a essas ferramentas descolonizadoras. 261

Nossa tradução: “Metaficção”, como passou a ser chamada, é ficção sobre ficção – isto é, ficção que inclui em si um comentário sobre sua própria narrativa e/ou identidade linguística. [...]. “Narcisista” – é o adjetivo figurativo escolhido aqui para designar essa autoconsciência textual – [...]. Essas associações psicológicas, embora sejam inevitáveis, são aqui, no entanto, irrelevantes na medida em que é o texto narrativo, e não o autor, que está sendo descrito como narcisista. O foco de um debate sobre as causas da mudança deve ser necessariamente sobre o perpetrador da mudança: o autor. O interesse aqui está mais no texto, na manifestação literária dessa mudança e nas implicações resultantes para o leitor. [...] E é o novo papel do leitor que é o veículo dessa mudança. [...] a metaficção tem dois focos principais: o primeiro está em suas estruturas linguísticas e narrativas. E o segundo se volta sobre o papel do leitor. [...] A narrativa narcisística, então, é um processo tornado visível. (HUTCHEON, 2013, p. 1-4). 262 Nossa tradução: Essa redefinição implicaria, necessariamente, uma reconsideração da natureza da linguagem romanesca; em toda ficção, a linguagem é representacional, mas de um “outro” mundo ficcional, um “heterocosmo” completo e coerente criado pelos referentes fictícios dos signos. Na metaficção, entretanto, esse fato é explicitado e, enquanto lê, o leitor vive em um mundo que é forçado a reconhecer como ficcional. No entanto, paradoxalmente, o texto também exige que ele participe, que se envolva intelectual, imaginativa e afetivamente em sua cocriação. Essa atração bidirecional é o paradoxo do leitor. (HUTCHEON, 2013, p. 7).

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Nesse contexto de ex-colônias, atenção especial deve ser dada, pois, à formação de leitores. Esses precisam, ao longo da caminhada formativa, ter acesso às produções híbridas de história e ficção para algum dia chegarem a ser leitores proficientes também das metaficções historiográficas, já que a habilidade leitora será potencializadora de ações descolonizadoras. Uma das possibilidades para que tal esperança se concretize é começar a introduzir nos programas de leitura escolar a mais atual das modalidades híbridas de história e ficção: o romance histórico contemporâneo de mediação – conforme nossos estudos têm apontado -, pois sua estrutura e linguagem são mais acessíveis a leitores em formação. Tal narrativa ainda prefere as perspectivas marginalizadas pela historiografia, possuindo, assim, também, as características de revisionismo histórico comum às metaficções historiográficas e aos novos romances históricos. Contudo, esse tipo de narrativa não se exacerba em anacronismos, experimentalismos com a linguagem ou a estrutura do romance, entre outros aspectos que favorecem sua leitura a sujeitos ainda em formação leitora 263. Isso funciona de modo a se propor nela uma “mediação” entre os modelos mais tradicionais de romance histórico e os modelos contemporâneos, que primam pelo experimentalismo e pela desconstrução. Assim sendo, observamos que não mais somente a Europa exporta seus modelos de escrita literária para outros continentes, tendo ela mesma se tornado um nicho de importação de modelos estético-estruturais literários de outros continentes. Tendo em vista especificamente o romance histórico, buscamos demonstrar como, de fato, suas origens remetem à Europa e à época de ascensão da burguesia. Contudo, como a própria história do gênero demonstra, sua propagação deu-se de tal forma que, ao chegar à América, suas bases ideológicas e discursivas, bem como a estrutura padronizada do gênero, sofreram grandes modificações, tornando-se a escrita híbrida uma possível via de descolonização intelectual aos sujeitos latino-americanos. As mudanças ocorridas no gênero foram tão profundas que resultaram em romances tão diferentes daqueles originalmente escritos por Scott, que, em mínimos pontos, podem ser encontradas congruências entre as modalidades acríticas primeiras com as críticas/desconstrucionistas implementadas em terras latino-americanas. Como explicitado anteriormente, um dos objetivos principais dos gêneros híbridos da pós-modernidade, incluindo-se aí os novos romances 263

A modalidade do romance histórico contemporâneo de mediação tem-se mostrado também frutífera na esfera da literatura infantojuvenil, como nos tem revelado as pesquisas de doutorado vinculadas ao Grupo de Pesquisa “Ressignificações do passado na América: processos de leitura, escrita e tradução de gêneros híbridos de história e ficção – vias para a descolonização”, iniciadas no ano de 2020, junto ao Programa de Pós-graduação em Letras da Unioeste-Cascavel/PR. Nesse sentido, destacamos os estudos A literatura infantojuvenil híbrida de história e ficção no Brasil: ressignificações do passado – uma trajetória, de Vilson Pruzak dos Santos; Ollhares sobre a colonização do Brasil: ressignificações possíveis a partir da literatura híbrida infantojuvenil e o ensino da história, de Fernanda Sacomori Candido Pedro; O (Re)descobrimento do Brasil pela ficção juvenil: Ressignificações da história a partir da literatura, de Michele de Fátima Sant’Ana.

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históricos latino-americanos, as metaficções historiográficas e os exemplares mais recentes na produção de escritas híbridas, o romance histórico contemporâneo de mediação, é rever, recriar e ressignificar o passado histórico aceito, expondo novas possibilidades para os eventos passados e desconstruindo o que a historiografia aponta como “fato”. Assim, o enfrentamento com o discurso histórico tradicional, oficializado pelas esferas do poder e pela escrita científica, torna-se uma importante ferramenta na construção dos romances contemporâneos. Contudo, diferentemente dos romances históricos clássicos e tradicionais, esse discurso histórico e suas personagens são parte direta e importante da tessitura dos relatos que ressignificam o passado, e a utilização desse discurso busca, constantemente, parodiá-lo, ironizá-lo, ressignificá-lo e, inclusive, refutá-lo abertamente nas modalidades críticas/desconstrucionistas. Em um continente que ainda busca a sua independência intelectual, cultural, artística, social e econômica, a utilização de romances históricos, tal como eram produzidos na Europa, mostrava-se, após o Romantismo e o Realismo, um desserviço às vias de descolonização. No entanto, os romancistas deram-se conta de que o uso do discurso histórico era uma forma interessante de abordar as questões relevantes para a população americana chegar, também, a uma descolonização intelectual. Dessa maneira, os romancistas passaram a ver, no discurso histórico oficializado pelo poder colonizador, mais uma das formas de submissão aos colonizadores, mais um modo eurocêntrico de visão de mundo que se vinha mantendo no imaginário coletivo latino-americano. Era, pois, necessário valerse da ficção para ressignificar a visão unívoca do passado entre os países antes colonizados, criando, desse modo, vias para a descolonização intelectual das populações da América Latina. Assim, a subversão desse discurso, dando preferência a novas possibilidades de interpretação pela exposição de distintas “versões”, é uma das formas da América de “libertar-se” daquelas visões hegemônicas unívocas construídas sobre o continente, muitas vezes conscientemente, algumas vezes inconscientemente, pela população europeia e, principalmente, pelos países colonizadores da América. Isso também vai de encontro àquilo que Zamora (1990) chamou de negação do passado. Negando aquilo que o discurso aceito como “real” dá como certo, trazendo à tona o passado, a(s) sociedade(s) da América pode(m), finalmente, negá-lo para, assim, instaurar o processo de sua assimilação em sua bagagem cultural e, consequentemente, podem criar, a partir disso, sua própria história, sem a supremacia das influências externas que outrora dominaram a construção discursiva no continente. Além disso, o que deve ser observado, também, é a forma como tais modalidades de narrativa híbrida crítica, que ressignifica o passado, é benéfica ao mundo literário. A existência de romances que promovem a confluência de características de mundos tão distintos, nesse caso específico, o mundo 227


revisionista e ávido por independência, observável nas sociedades latinoamericanas, e o mundo tradicional, dos cânones literários europeus, nos quais o romance histórico surgiu, revela a intensa capacidade da prosa – como gênero literário mais cultivado na atualidade – de se renovar e se adaptar às condições atuais que revelam as ansiedades de comunidades culturais pós-modernas. É nesse contexto que também se opera, no campo das produções romanescas da “poética do descobrimento”, a passagem da segunda fase da trajetória do gênero romance histórico à terceira fase: a crítica mediadora – com a produção uruguaia Crónica del descubrimiento (1980), de Alejandro Paternain –, que conjuga algumas das peculiaridades da escrita tradicional com outras da fase crítica/desconstrucionista, numa produção romanesca menos experimentalista em termos de linguagem e estrutura. O romance Crónica del descubrimiento (1980), de Alejandro Paternain, é uma obra que busca dar às ações de Colombo uma nova perspectiva, valendose de uma forma de ressignificar os eventos marcantes de 1492 que consiste em inverter o fluxo e o relato da viagem: não se conta a vinda de Colombo à América, mas faz-se o relato dos aventureiros autóctones americanos que se arriscam a cruzar o Atlântico e descobrem a Europa e seus estranhos habitantes de costumes exóticos e ações bárbaras. Indícios dessa forma de reler os eventos marcantes de 1492 já haviam aparecido antes em Daimón (1978), de Abel Posse (1989, p. 28), diegese na qual se pode ler: “El 12 de Octubre de 1492 fue descubierta Europa y los europeos por los animales y hombres de los reinos selváticos264”. Consideramos a obra de Paternain, que adere a essa perspectiva, como modelo inaugural do que denominamos romance histórico contemporâneo de mediação: modalidade mais cultivada pelos escritores latino-americanos na atualidade no contexto da “poética do descobrimento”. Essa modalidade de escrita híbrida de história e ficção consiste na conciliação de algumas das características típicas dos romances mais tradicionais – como, por exemplo, a linearidade da narrativa, uma linguagem mais amena e menos experimentalista – com alguns dos traços marcantes dos romances críticos e experimentalistas, novos romances históricos latino-americanos e metaficções historiográficas – como o emprego da paródia, da ironia, da intertextualidade e dos recursos metanarrativos para a construção de um discurso crítico. Assim, a obra de Paternain, por apresentar essas características específicas que, segundo nosso parecer, instituem as bases do romance histórico contemporâneo de mediação – dentro do universo específico das obras que recriam os eventos vivenciados por Colombo em 1492 – pode ser considerada um marco na exploração dessa temática. Na diegese de Paternain, sob o comando de Yasuberé – personagem na qual se parodia a própria trajetória histórica de Colombo –, um grupo de 264

Nossa tradução: [...] em 12 de Outubro de 1492 foi descoberta a Europa e os europeus pelos animais e homens dos reinos selváticos. (POSSE, 1989, p. 28).

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nativos mitones decide apoiar o estranho projeto de navegação que esse forasteiro lhes apresenta, sabendo, o narrador, de que muitas outras tribos já o haviam rejeitado, igual como ocorreu com os planos de navegação de Colombo ao buscar apoio das diferentes monarquias europeias do final do século XV. As semelhanças entre Colombo e o jovem Yasubiré, personagem puramente ficcional da obra de Paternain (1980), vão se concretizando ao longo da narrativa. Assim como Colombo, o jovem indígena teve inúmeras dificuldades para concretizar sua viagem em busca do “Novo Mundo”. Foi acusado de louco, foi posto diante de uma junta de sábios, entre outras muitas vivências comuns, como se pode ver no fragmento abaixo destacado: Los comechingones lo trataron farsante, y dijeron que sus proyectos no pasaban de pesadillas o malas visiones [...]. Los puroguacos, que se precian de sobrios, prudentes y medidos, pero que no son sino reverendos tacaños. [...] Pero los momentos más penosos fueron vividos ante la magna asamblea de la tribu de los timbales grandilocuentes y amiga de hacer ruido y espíritu estrecho y ánimo soberbio 265. (PATERNAIN, 1980, p. 13).

Paralelos entre esse estrangeiro autóctone, com seu projeto ousado de navegação, e o navegante europeu, que cruzou o Atlântico em 1492, são recorrentes na obra: “[...] Yasubiré no tiene sangre mitona. Hay quienes dicen que nació en tierras donde no canta el sabiá, hay quienes sostienen que es mestizo. [...] basta observarlo con un mínimo de atención para comprobar que sus rasgos no son de mitón auténtico 266. (PATERNAIN, 1980, p, 12). Assim, da mesma forma como Colombo era visto como estrangeiro, talvez um judeu, na corte espanhola, ocorre com o aventureiro Yasuberé. Esse será acompanhado em sua aventura marítima por um cronista da tribo mitona. A esse jovem, foco narrativo do romance, cabe a tarefa de registrar o percurso da jornada empreendida. No cumprimento de sua tarefa, o cronista registra: “Yasubiré me mira con fijeza, frunce el ceño, pone un dedo atravesado delante de sus labios: quiere mi silencio, quiere que el cronista calle cuanto está ocurriendo. Pero soy cronista de alma, respeto mi oficio he de decir la verdad 267. (PATERNAIN, 1980, p. 11). 265

Nossa tradução: Os comechingones trataram-no como um farsante, e lhe disseram que seus projetos não pasavam de pesadelos ou más visões [...]. Os puroguacos, que se creem os sóbrios, prudentes e comedidos, mas que não são outra coisa que reverendos pão-duros. [...] Mas os momentos mais penosos foram vividos diante da magna assembleia da tribo dos timbales, sujeitos grandiloquentes e chegados aos hábitos de fazer estardalhaços, de espíritos limitado, e de ânimo soberbo. (PATERNAIN, 1980, p. 13). 266 Nossa tradução: [...] Yasubiré não tem sangue mitona. Há os que dizem que nasceu em terras onde não canta o sabiá, há os que sustentam que é mestiço. [...] basta observá-lo, com um mínimo de atenção, para comprovar que seus traços não são de mitón autêntico. (PATERNAIN, 1980, p. 12). 267 Nossa tradução: Yasubiré me olha com fixação, franze o punho, põe um dedo atravessado diante de seus lábios: quer meu silêncio, quer que o cronista cale diante do que está ocorrendo. Mas sou cronista de alma, respeito meu ofício, e hei de dizer a verdade. (PATERNAIN, 1980, p. 11).

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O leitor não se depara aqui com a consagrada história dos espanhóis desbravando a América e seus registros oficiais, mas, sim, com a partida dos povos americanos em busca da Europa e o registro de suas impressões. Em outras palavras, pode-se afirmar que há uma mudança na concepção de “Novo Mundo”, já que o “novo”, “o diferente”, o “exótico” nesse romance, é o continente europeu frente aos olhos atônitos dos mitones que cruzam o Atlântico. O narrador assume, ao longo da viagem, sua postura de cronista, destoando, desse modo, da prática comum dos conquistadores espanhóis que, segundo registra Beatriz Pastor (1983, p. 422), punham zelo em “ficcionalizar” a realidade americana para adequá-la àquela das terras que estavam buscando. A recorrência da paródia, das intertextualidades, da heteroglossia e da dialogia, entre outros recursos presentes na obra de Paternain, aponta para a concepção subversiva da própria linguagem, uma vez que se inverte a ordem simbólica do significado, pois a linguagem empregada pelo romancista ganha uma variedade de sentidos que fogem de uma unidade fixa e estável. Sob essa perspectiva, a recriação do passado apresentada em Crónica del descubrimiento (1980) questiona o discurso hegemônico europeu ao propor uma leitura do “descobrimento” sob outros olhares e personagens, ou seja, a partir do ponto de vista dos indígenas. O diálogo que a obra do uruguaio estabelece com o Diário de bordo de Colombo parece evidente. Ao apresentar uma outra perspectiva frente à história, o romance de Paternain contesta o “descobrimento” da América da forma como tal fato se encontra registrado no Diário inaugural. A voz enunciadora do discurso compromete-se a apenas descrever o que vê: “[...] pero como cronista me debo a la verdad, aunque sea muy triste 268.” (PATERNAIN, 1980, p. 11). Contudo, é a personagem Yasubiré que o concientiza da importância da viagem e de sua missão: “[…]. Recuérdalo, muchacho. La expedición que estás viviendo no es leyenda, no habrá de repetirse. Es irrepetible y única. Es historia, y por serlo, habrás de transmitirla a tus hijos y a los hijos de tus hijos, para que sepan de dónde vienen, y adónde van.269” (PATERNAIN, 1980, p. 17). As aproximações que são feitas no decorrer da narrativa entre os dois navegadores e suas ações – Yasubiré e Colombo – apontam para a ideia da alteridade que tenta aproximar essas distintas culturas. Diferentemente do Diário de bordo de Colombo, que apresenta uma visão cristalizada em relação à cultura do outro, em Crónica del descubrimiento, tenta-se mostrar os pontos comuns existentes entre elas, como, por exemplo, as crenças, as superstições, as relações de poder, o lugar ocupado pelas mulheres nessas “distintas” sociedades e, inclusive, as ambições: “Los jefes, sobre todo Yasubiré el navegante, han de querer 268

Nossa tradução: [...] mas como cronista me volto à verdade, ainda que seja muito triste. (PATERNAIN, 1980, p. 11). 269 Lembre-se, moço. A expedição que está vivendo não é lenda, não será repetida. É irrepetível e única. É história e, por ser, você terá que transmiti-la a seus filhos e aos filhos dos seus filhos, para que eles saibam de onde vêm e para onde estão indo.

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arribar cuanto antes al nuevo mundo que buscan, impacientes por conquistar Tebiché, para el Gran Cacique y para sus glorias individuales, tierras, tribus, riquezas y mujeres 270” (PATERNAIN, 1980, p. 11-12). É da visão do cronista que se revelam as primeiras imagens dos desconhecidos, encontrados do outro lado do Atlântico. Nessa situação, o olhar atento do cronista não deixa, contudo, de registrar também as evidentes diferenças entre as culturas que se defrontam e comenta sobre os homens que observa: Eran de una palidez inusitada, como la de los enfermos. Más aún: como la de los hombres desangrados por las hechicerías de los añang, como los espectros malditos que rondan en las noches de luna las tolderías. Recordé las palabras de mi tía advirtiéndome de niño que huyese de los hombres pálidos, porque son fantasmas perversos o enfermos contagiosos.271 (PATERNAIN, 1980, p. 43).

Desse modo, o cronista registra suas impressões sobre os europeus mencionando, por exemplo, as crenças, as superstições passadas de geração a geração na cultura oral dos autóctones e, inclusive, as ambições por novas conquistas que moviam ambas as civilizações, de forma a estabelecer comparações de ambivalência entre elas. Entretanto, suas descrições das terras e gentes não são nada entusiásticas, como são as de Colombo frente aos nativos tainos e a beleza do Caribe. Vale a pena observarmos um fragmento no qual o narrador descreve o “Novo Mundo” no qual acabaram de chegar: Pájaros, riberas, esteros, riachos, montes y nubes parecen haber salido hace millones de lunas de las manos creadoras de Tebiché. Los pastos amarillean, las flores, muy bonitas, no hay por qué negarlo, amagan marchitarse enseguida: son complejas, sobrecargadas, exquisitas y exigentes, como muchachas viejas y sin marido. Los árboles no superan el doble de la estatura de un galerón y crecen con monotonía, ordenados en filas, tan parejas que hartan la vista. […]. Suponemos muy pobres a estas gentes, muy pobres y muy ignorantes para pasarse así las horas, trabajando como condenados y padeciendo un destino más duro que el de los galerones. Poco cuesta admitir que sobrellevan vida tan amarga desde mucho tiempo atrás. […] Viejas son las costas, gastas y sin color, viejo el cielo, ensuciado por nubes igualmente viejas, viejo este mar enturbiado, lleno de cáscaras, maderas, aceites y mil porquerías que sólo la

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Nossa tradução: [...] os chefes, sobretudo Yasubiré o navegante, quererão aportar o quanto antes no novo mundo que buscam, impacientes por conquistar Tebiché, para o Grande Cacique e para suas glórias individuais, terras, tribos, riquezas e mulheres. 271 Nossa tradução: Eram de uma palidez incomum, como a dos enfermos. Mais do que a deles, todavia: como a dos homens dessangrados pelos feitiços dos añang, como espectros amaldiçoados que perambulam pelas noites enluaradas nas tolderías. Lembrei-me das palavras de minha tia que me alertava quando eu era criança para fugir dos pálidos porque são fantasmas perversos ou doentes contagiosos.

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barbarie de unos individuos sin dioses buenos y sin leyes es capaz de pergeñar. 272 (PATERNAIN, 1980, p. 50).

As aventuras vivenciadas pelo grupo de mitones que conseguiu cruzar o Atlântico e que, no caminho da travessia, encontrou-se com a frota de Colombo na mesma tentativa – pois, segundo o narrador, “todos, finalmente, vimos. Eran tres embarcaciones muy grandes y panzonas […]. Quienes las tripulaban debían ser criaturas primitivas que aborrecían el mar […]. De mí sé decir que nunca había contemplado nada parecido, ni siquiera en mis pesadillas 273” (PATERNAIN, 1980, p. 43) -, fica evidenciada no olhar e nos registros do Cronista. A mesma perspectiva, de revelar um “descobrimento” ao revés, é retomada, em 2006, na literatura hispano-americana, dessa vez, pelo argentino Federico Andahazi, em El Conquistador, cuja diegese parte da desconstrução, reinvenção e reescrita da história anterior à conquista da América pelos espanhóis. Narram-se ações vivenciadas pela personagem Quetza – um jovem asteca, protagonista da odisseia que é relatada a partir do inusitado projeto de navegação desse guerreiro em direção à Europa. Desse modo, verificamos, claramente, que a obra de Andahazi adota a mesma perspectiva daquela de Paternain (1980) para efetuar uma releitura do encontro entre europeus e autóctones americanos. O romance segue uma estrutura temporal linear, sendo que o tempo está dividido em quatro momentos: o primeiro deles é denominado “Zero” e, nele, o narrador, em nível extradiegético, e com uma visão extradiegética, descreve algumas características da personagem principal e algumas de suas descobertas mais importantes em seu pioneirismo na área da astrologia e astronomia. Fora ele “el primero en concebir el mapa del mundo […]. Adelantándose a Cristóbal Colón, supo que la Tierra era una esfera y que, navegando por Oriente, podía llegarse a Occidente y vicevers.274” (ANDAHAZI, 2006, p. 11). 272

Nossa tradução: Pássaros, ribeiras, estuários, riachos, montanhas e nuvens parecem ter saído já faz milhões de luas atrás das mãos criadoras de Tebiché. Os pastos ficam amarelentos, as flores, são muito bonitas, não há razão para negar isso, ameaçam murchar logo em seguida ao nascimento: são complexas, sobrecarregadas, requintadas e exigentes, como moças velhas e sem marido. As árvores não superam o dobro da estatura de um galeão e crescem com monotonia, ordenadas em fila, tão parelhas que cansam a vista. […]. Supomos que essas pessoas são muito pobres, muito pobres e muito ignorantes para passarem, assim, as horas, trabalhando como condenados e padecendo um destino mais duro que o dos remadores. É fácil admitir que vivem uma vida tão amarga desde há muito tempo. […]. Velhas são as encostas, gastas e sem cor, velho o céu, sujo por nuvens igualmente velhas, velho é esse mar turvo, cheio de conchas, madeiras e óleos e outras mil porcarias que apenas a barbárie de uns indivíduos sem deuses bons e sem leis seria capaz de criar. 273 Nossa tradução: Todos, finalmente, vimos. Eram três embarcações muito grandes e barrigudas […]. Quem as tripulavam deviam ser criaturas primitivas que abominavam o mar […]. Por mim, sei dizer que nunca havia contemplado nada parecido, nem sequer em meus pesadelos. 274 Tradução de Antonio Fernando Borges: [...] o primeiro a conceber o mapa do mundo [...]. Antecipando-se a Cristóvão Colombo, percebeu que a Terra era uma esfera e que, navegando-se

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A divisão temporal seguinte é denominada “Um”. Aí se relata, em vinte e cinco capítulos, como era o cotidiano indígena antes da partida do nativo Quetza para a Europa, ocorrida antes da chegada dos espanhóis à América. Nesse momento da obra, sobressaem as relações de vida do herói com o seu povo, especialmente com seu padrasto, um ancião de nome Tepec, quem o salvara do sacrifício ao deus Axayácatl. Já na divisão “Dois”, o narrador transcreve um diário escrito por Quetza no qual ele narra a travessia pelo Oceano Atlântico, empreendida pelos nativos americanos, partindo da costa leste na Baia de Atototl, passando pelo Haiti, atual Cuba e outras ilhas, desembarcando próximo à cidade espanhola de Huelva. Em “Três”, a voz enunciadora do discurso volta a ser extradiegética, porém, essa é intercalada por frases e pensamentos registrados pelo líder da comitiva pré-colombiana, relatando o encontro entre seu grupo de marinheiros e várias outras nações europeias, como se relacionam e interagem. É nesse plano que as histórias se tocam e o choque entre culturas fica evidente. Tal organização dá ao texto coerência e unidade, marcada pelo relato linear. As principais figuras de extração histórica desse romance são Cristóvão Colombo, Fernando e Isabel, monarcas responsáveis pela expulsão dos judeus da Espanha, e Boabdil, o último soberano muçulmano de Granada. Já as figuras principais, do universo ficcional apenas, são Quetza e sua amada Ixaya, seu padrasto Tepec, Keiko e os tripulantes da esquadra mexica. Já o espaço do romance é configurado pela América, Europa e países percorridos pela esquadra mexica ao longo da viagem ao extremo Oriente. O tempo do romance é situado no final do século XV, antecedendo-se ao ano de 1492. Predomina a visão de tempo dos indígenas, marcado sempre pelo tempo do narrador extradiegético, distanciado dos fatos, com saber ilimitado. Esse distanciamento é perceptível quando ele relata as previsões feitas por Quetza em relação ao futuro de seu povo: “[…] tuvo que retractarse por la fuerza, tal como lo haría Galileo Galilei dos siglos más tarde 275.” (ANDAHAZI, 2006, p. 11). O saber do narrador é enriquecido, principalmente no diário de viagem, por supostos relatos escritos por Quetza, estabelecendo, assim, relações intertemporais, estratégia narrativa que garante verossimilhança à narrativa. No diário escrito por Quetza, as ações da comitiva são registradas de acordo com as datas do calendário mexica, sendo dedicado à Ixaya, jovem a qual dedicava seus sentimentos amorosos. Após o desembarque, já não escreve com tanta frequência e, segundo o narrador, “La mayor parte de las crónicas de sus

pelo Oriente, seria possível chegar ao Ocidente. (ANDAHAZI, 2007, p. 11) 275 Tradução de Antonio Fernando Borges: [...] teve que se retratar à força, tal como Galileu Galilei iria fazer dois séculos mais tarde” pois contradizia os dogmas do poder. (ANDAHAZI, 2007, p. 11).

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avatares en el continente nuevo surge de recuerdos muy posteriores a su hazaña y de los relatos de los acompañantes que sobrevivieron a la gesta. 276” (ANDAHAZI, 2006, p. 161). Esses comentários do autor sobre o processo de criação não só caracterizam a utilização de estratégias metaficcionais, como, também, constroem uma relação de intertextualidade com as epopeias, os diários de viagem de Colombo e outras crônicas de viagens e descobrimento. O romance em sua totalidade é um resgate de manifestações orais e legendárias e do imaginário popular, raízes do romance histórico latino-americano contemporâneo. Já no quarto plano narrativo, verifica-se um grau mais elevado de reprodução mimética do período histórico correspondente. A história dos nativos americanos mistura-se à história dos europeus conhecida pela historiografia, prevalecendo, no romance, entretanto, o modo de conceber o mundo sob o olhar indígena. Em sua primeira incursão em terras europeias, a comitiva encontra os primeiros vestígios humanos ao desembarcar próximo a Huelva e logo ocorrem os choques culturais, como se pode notar na passagem: “De pronto se sobresaltó al ver, sobre la cabecera del lecho, la figura moribunda de un hombre que desangraba […]. Le resultó una visión macabra. Evidentemente, esos nativos no sólo practicaban crueles sacrificios, sino que, además, hacían imágenes que recordaban aquellas sangrentas ceremonias277”. (ANDAHAZI, 2006, p. 163). Após decidirem sequestrar uma embarcação, com a qual pretendiam levar para a América cavalos e carroças entre outros objetos, foram surpreendidos por duas naus em alto-mar e confundidos pelos espanhóis, que esperavam uma comitiva comercial das Índias Orientais. A partir desse momento, são tratados como reis, recebendo, inclusive, mulheres, dentre as quais está Keiko, originária de Cipango, atual Japão, e conhecedora dos caminhos que levavam às Índias. Será ela quem irá ajudá-los nos rumos da viagem. Sua história assemelha-se à de La Malinche ou Doña Maria, indígena Azteca presenteada a Hernán Cortés por caciques da costa mexicana. Seria ela quem o guiaria através do império asteca, revelando os pontos fracos do reinado de Montezuma, devastado posteriormente. Nesse momento, ocorre a grande inversão de papéis: os nativos tornam-se “donos” da história, conhecedores de um segredo não revelado. Tal inversão de papéis, a escrita de um diário de bordo e a realização da descoberta do caminho para as Índias antes dos europeus, além de semelhanças com relatos historiográficos, configuram os enlaces paródicos principais dessa obra. 276

Tradução de Antonio Fernando Borges: [...]a maior parte das crônicas de suas aventuras no continente novo surge de lembranças muito posteriores à sua façanha e dos relatos dos acompanhantes que sobreviveram à história. (ANDAHAZI, 2007, p. 151). 277 Tradução de Antonio Fernando Borges: [...] De repente [...] viu, sobre a cabeceira da cama, a figura moribunda de um homem que sangrava. Evidentemente, aqueles nativos não só praticavam sacrifícios cruéis como, além disso, construíam imagens que lembravam aquelas cerimônias sangrentas. (ANDAHAZI, 2007, p. 153).

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É a partir de outros encontros com povos diversos que a diegese desenrola-se, baseada, acima de tudo, nas diferenças culturais concebidas pela visão crítica de Quetza. Esses encontros são, geralmente, marcados pela troca de objetos. À semelhança das narrativas historiográficas, o narrador descreve a troca feita entre os mexicas e os espanhóis: “[…] la autoridade puso em manos de Quetza una suerte de plato dorado con piedras preciosas engarzadas alrededor de la omnipresente figura de la cruz. Quetza […] mandó a uno de sus hombres a buscar un saco de cacao y unas piezas de obsidiana. 278”. (ANDAHAZI, 2006, p. 179). Essa descrição feita pelo narrador nos remete a textos historicamente conhecidos, como os diários de viagem escritos por colonizadores europeus. Após algumas incursões pela Espanha, os mexicas partem rumo ao Oriente com uma esquadra de duas naus, em busca de Aztlan. Passam pela França, Península Itálica, Eubéia, Armênia, rio Eufrates, Baudac, Golfo Pérsico e Mar Negro. Navegam pelas costas das atuais cidades chinesas de Jiangiang, Fuzhu, entre outras. Em direção ao levante, encontram a tão sonhada terra e a descobrem inabitada e destruída. Viajando por noventa dias, sempre em direção ao levante, chegam à costa oeste do Oaxaca na América, no entanto, surpreendidos por uma tempestade, são lançados com todos os presentes ganhos nas viagens de encontro às rochas, indo perder-se no fundo do mar a prova da viagem realizada e boa parte dos escritos registrados. Cumpre-se, então, o caráter cíclico e paradoxalmente imprevisível da história, uma das características do novo romance histórico, relacionadas por Menton (1993). O caráter dialógico presente entre os quatro planos narrativos da obra, citados anteriormente, e a diversidade de discursos, trazem-nos uma realidade complexa e projeta diferentes perspectivas dos acontecimentos e das personagens. Comentários do narrador em relação aos pensamentos de Quetza assinalam esse dialogismo por meio das comparações que ele faz em relação à sua cultura e revelam o tom carnavalesco recorrente em várias passagens da narrativa: “El capitán mexica no alcanzaba a comprender por qué los nativos sólo podían tomar una sola mujer como esposa y ninguna concubina, aunque luego pagaran con monedas de oro para cohabitar con otras mujeres a espaldas de sus esposas.279” (ANDAHAZI, 2006, p. 186). Em Marselha, os viajantes são confundidos com piratas e encarcerados. Keiko é separada dos nativos e levada à presença do superior e, então, “[…] le ordenaron a la niña de Cipango que se desnudara. […]. Keiko se resistió con todas sus 278

Tradução de Antonio Fernando Borges: [...] a autoridade pôs nas mãos de Quetza uma espécie de prato dourado com pedras preciosas engastadas em torno da onipresente presença da cruz. Quetza [...] mandou um de seus homens buscar um saco de cacau e algumas peças de obisidiana. (ANDAHAZI, 2007, p. 166). 279 Tradução de Antonio Fernando Borges: O capitão mexica não conseguia entender por que os nativos só podiam ter uma única mulher como esposa e nenhuma concubina, embora depois pagassem a peso de ouro para ter relações com outras mulheres pelas costas de suas esposas. (ANDAHAZI, 2007, p. 173).

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fuerzas. Los hombres parecían disfrutar mientras veían cómo se revolvía intentando alejarlos […]. Jugaban como un grupo de gatos con un pobre ratón […].280” (ANDAHAZI, 2006, p. 238). O humor satírico, às vezes irônico, presente nos enfrentamentos culturais que se descrevem, pode ser exemplificado na descrição que o narrador faz da prostituição regulamentada na cidade de Huelva, onde Las mancebías, o puterías, como las llamaba el pueblo, estaban regidas por un ‘padre’ (ANDAHAZI, 2006, p. 188), […] los sacerdotes tenían prohibido cohabitar con las rameras. Sin embargo, era sabido que, durante las supervisiones, los religiosos no sólo constataban el orden interior del local […], por lo general, también verificaban el interior de las propias pupilas.281 (ANDAHAZI, 2006, p. 189).

No romance de Andahazi, a história é utilizada como insumo literário, carregando o texto de oficialidade. Existem relações intrincadas entre os fatos ficcionais e os historiográficos narrados. O narrador coloca o nativo no mesmo nível de Colombo, no momento em que ocorre o encontro entre os mesmos: “Se miraron a los ojos y, entonces, […] supieron que ambos eran dueños del mismo secreto: la Terra no era plana, sino esférica. 282” (ANDAHAZI, 2006, p. 220-221). Outros elementos das culturas mexica e espanhola são-nos apresentados por meio da linguagem ficcional pela voz do narrador, partindo sempre da perspectiva dos mexicas: “A diferencia de Tenochtitlan, que está provista de acueductos que traen el agua limpia y devuelven las aguas servidas, aqui el agua es muy escassa, se acarrea en cubos y las aguas de desperdicio son arrojadas por las ventanas junto con los excrementos.283” (ANDAHAZI, 2006, p. 170-171). A personagem principal de Andahazi não é má, nem boa. Apresentada como um típico expoente da mentalidade de conquista, valente e aventureiro, Quetza representa a ideia de uma América utópica: essa “[...] que sigue es la crónica de los tiempos en que el mundo tuvo la oportunidad única de ser otro. Entonces, quizá no 280

Tradução de Antonio Fernando Borges: [...] ordenaram à menina de Cipango que se despisse. [...]. Keiko resistia com todas as suas forças. Os homens pareciam se deleitar vendo como ela se agitava tentando afastá-los [...]. Brincavam como um bando de gatos com um pobre ratinho [...]. (ANDAHAZI, 2007, p. 221). 281 Tradução de Antonio Fernando Borges: [...] prostíbulos ou puteiros, como o povo os chamava, eram dirigidos por um “padre”, onde ‘os sacerdotes eram proibidos de ter relações com as rameiras [...]’. No entanto, era sabido que, durante as supervisões, os religiosos não se limitavam a conferir a ordem do interior do local [...], geralmente verificavam o interior das próprias discípulas. (ANDAHAZI, 2007, p. 175). 282 Tradução de Antonio Fernando Borges: Olharam-se nos olhos, e então [...] entenderam que os dois eram donos do mesmo segredo: a Terra não era plana, mas esférica. Mas não pronunciaram uma única palavra. (ANDAHAZI, 2007, p. 204). 283 Tradução de Antonio Fernando Borges: Diferente de Tenochtitlan, que é dotada de aquedutos que trazem a água limpa e devolvem as águas usadas, aqui a água é muito escassa, é transportada em baldes, e as águas sem serventia são jogadas pelas janelas, junto com os excrementos. (ANDAHAZI, 2007, p. 159).

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hubiesen reinado la iniquidad, la saña, la humillación y el exterminio. 284” (ANDAHAZI, 2006, p. 13). A magnitude da conquista atribuída a Colombo é abalada, parodiando-se o discurso histórico que evidencia a figura e os feitos desse navegador. A obra em sua totalidade apresenta acontecimentos que guardam um profundo referencial histórico, juntamente com elementos míticos que representam o mundo indígena, fazendo isso pelo uso da metaficção historiográfica, da paródia e da intertextualidade. Fica, assim, demonstrado que o trabalho realizado pelo romancista parte tanto da criação literária quanto da historiografia, construindo um texto novo, superando limitações de ambas, buscando uma revisão crítica do passado. El conquistador (2006) é, pois, um texto híbrido que reúne inúmeras características do romance histórico contemporâneo de mediação, concretizando a possibilidade de unir história e ficção em um produto que, pela junção de ambas, procura superar a concepção de uma verdade única. O trabalho de Andahazi adquire singular importância ao incorporar o histórico a muitos aspectos que caracterizam a escrita de romances contemporâneos de mediação. Exemplos dessa vertente são, ainda, muitos dos romances inseridos no contexto da “poética do descobrimento” da América lançados nos últimos anos. Entre eles, destacam-se Colombo de Terrarrubra (1994), da cubana Mary Cruz; The discoveries of Mrs. Christopher Columbus: his wife’s version (1994), da novaiorquina Paula DiPerna; La ruta de las tormentas: diario de a bordo de Hernando Colón (2005), da espanhola Paula Cifuentes – obras mais adiante comentadas neste nosso estudo –; El último crimen de Colón285 (2001), do argentino Marcelo Leonardo Levinas; entre outros. Tal tendência, surgida em meio ao pleno vigor dos romances históricos altamente experimentalistas da literatura hispano-americana inseridos no contexto do boom, ganha forças na década de 1990 e se revela, em nossos dias, a mais recorrente das modalidades de romance histórico contemporâneo. Essa tendência hispano-americana reverberou, também, na produção de romances históricos no contexto da “poética do descobrimento” na década de 1990 na América anglo-saxônica e, de forma especial, fez-se via de diálogo entre a produção mais atual dos países hispano-americanos e a literatura espanhola mais recente sobre a temática. As bases exaltadoras e apologéticas, assim, começam, lentamente, a ceder espaço para visões literárias mais críticas que consideram não somente o heroísmo dos conquistadores, lutando em nome de seus reis, Deus e lema de 284

Tradução de Antonio Fernando Borges: [...] é a crônica dos tempos em que o mundo teve a oportunidade de ser outro. Então, a iniquidade, a cólera, a humilhação e o extermínio não teriam reinado. (ANDAHAZI, 2007, p. 12). 285 A análise do romance de Levinas (2001), El útimo crimen de Colón, constitui o capítulo 10 (p. 253-295) da nossa obra O romance histórico contemporâneo de mediação: entre a tradição e o desconstrucionismo – releituras críticas da história pela ficção, publicada em 2017.

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conquista para subjugar grandes Impérios até pequenas tribos, para revelar outros olhares sobre as terras e gentes envolvidas nesses processos. Características mais específicas dessa modalidade mais atual do romance histórico contemporâneo de mediação são explicitadas, mais adiante, na abordagem à escrita de autoria feminina, que inclui obras oriundas dos diferentes espaços de enunciação produzidas sob essas diretrizes que apontamos em nossos estudos de 2017. Antes, contudo, vamos examinar, rapidamente, como se dá, na literatura brasileira, a exploração da “poética do descobrimento”.

3.4 MANIFESTAÇÕES LITERÁRIAS SOBRE COLOMBO NA LITERATURA BRASILEIRA: O NOVO ESPAÇO DA HEROICIDADE As poucas expressões romanescas existentes no Brasil sobre o tema do “descobrimento” da América são representativas da modalidade tradicional, já que o romance histórico brasileiro, de cunho mais crítico, volta-se para as reconfigurações dos navegantes portugueses que chegaram, como oficialmente se tem divulgado, às costas de seu território por volta do ano de 1500, numa esquadra comandada por Pedro Álvares Cabral. A personagem Colombo e o seu tratamento na arte literária de romancistas brasileiros podem ser considerados bastante periféricos, já que nenhum nome expressivo da literatura de nosso país tenha, até os dias de hoje, dedicado-se a ressignificar os eventos de 1492 numa obra de fôlego e de impacto que atue de forma crítica sobre as visões heroicizadas, cristalizadas do “descobridor” na escrita historiográfica e na laudatória ficcional. Esse não é, porém, o tratamento dispensado aos eventos do “descobrimento” do Brasil, em 1.500, protagonizado pela tripulação da esquadra de Pedro Álvares Cabral e as consequências desse fato em terras anexadas à coroa portuguesa à época. Nesse contexto, as ressignificações da literatura brasileira são expressivas e se juntam às intenções altamente críticas/desconstrucionistas do novo romance histórico latino-americano em produções que dessacralizam os eventos oficializados em obras como: - O tetraneto del-rei (1982), de Haroldo Maranhão; - Breviário das terras do Brasil: uma aventura nos tempos da inquisição (1997), de Luiz Antonio de Assis Brasil; - O feitiço da ilha do pavão (1997), de João Ubaldo Ribeiro; - Terra papagalli (1997), de José Roberto Torero e Marcus Aurelius Pimenta; - Meu querido canibal (2000), de Antonio Torres; - A Mãe da mãe da sua mãe e suas filhas (2004), de Maria José Silveira; - O Fundador (2011), de Aydano Roriz.

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Desse conjunto crítico/desconstrucionista de ressignificações do “descobrimento” do Brasil, tomemos como exemplos o romance de José Roberto Torero e Marcus Aurelius Pimenta, publicado, primeiramente, em 1997 – como exemplar do novo romance histórico latino-americano – e Meu querido Canibal (2000), de Antonio Torres – como expoente brasileiro de metaficção historiográfica plena. O romance Terra Papagalli: narração para preguiçosos leitores da luxuriosa, irada, soberba, invejável, cobiçada e gulosa história do primeiro rei do Brasil, dos brasileiros José Roberto Torero e Marcus Aurelius Pimenta (1997 [2000]), é um dos mais bem sucedidos projetos estéticos vinculados às ressignificações propostas pela modalidade do novo romance histórico latino-americano no Brasil. Nele, de forma irônica, paródica, carnavalizada, afastando-se das perspectivas historiográficas acerca do episódio e das figuras históricas, apresenta-se uma outra perspectiva do “descobrimento” do Brasil. A personagem principal do relato é Cosme Fernandes, personagem de extração histórica que ficou conhecida como Bacharel Mestre de Cananéia. No ano de 1501, Cosme Fernandes foi expulso de Portugal e veio parar, como degredado, na Colônia brasileira, no espaço onde hoje se encontra São Paulo. Trata-se, conforme o discurso romanesco, de um jovem que queria tornar-se padre, mas que inicia uma relação amorosa com a personagem Lianor. Ao ser descoberto, Cosme é acusado de tê-la desonrado e recebe, como punição, a segregação e vem ao Brasil no navio comandado por Pedro Álvares Cabral. Durante os meses de viagem, fez nele algumas amizades. A mais relevante dessas ao longo do enredo foi a que constituiu com Lopo de Pina, também personagem de extração histórica que fez várias travessias ao Atlântico. Na terra em que foi deixado, a personagem Cosme começa a relacionar-se bem com os nativos e elabora os “dez mandamentos para bem viver na terra dos papagaios”, uma paródia do texto bíblico feito por um malandro no Éden. A apresentação dos “Dez Mandamentos para bem viver na Terra dos Papagaios”, elaborados pelo degradado Cosme Fernandes, é constante ao longo de toda a obra. Além da referência direta ao texto bíblico, essa questão é inerente ao imaginário cultural comum ao da população e da cultura ocidental. Observemos, como exemplo, o Segundo Mandamento proposto por Cosme Fernandes: “[...] quando aparecer alguma dificuldade, mesmo que seja de simples solução, é preciso fazer alarde, espetáculo e pompa, pois nesta terra mais vale o colorido do vidro que a virtude do remédio.” (TORERO; PIMENTA, 2000, p. 76). Essa determinação volta-se para o sentido do exagero e da supervalorização do lado externo de qualquer fato, ação própria de uma perspectiva ufanista e de autovalorização, pelo emprego mais do discurso do que da ação. Os Mandamentos da personagem Cosme Fernandes revelam também o emprego da carnavalização, uma vez que, no texto bíblico a que remetem, são princípios basilares do relacionamento do homem para com seus semelhantes e 239


seu Deus, mas que, na ótica do degradado, são conselhos para se dar bem e tirar proveito de tudo e de todos com mais facilidade nas terras anexadas à Coroa Portuguesa em 1.500. Assim, quando o degradado já está estabelecido no “Novo Mundo”, com mulheres e filhas em uma situação confortável, é obrigado a buscar outro lugar para se instalar, fundando, assim, um novo povoado, ao qual nomeia de Cananéia. Esse é ponto a partir do qual Cosme se apropria dos nativos capturados nas batalhas entre as tribos e passa a trocá-los por alimentos e aparatos bélicos com navios europeus que se aproximavam das terras em que se encontrava, pois ele havia, ali, construído um porto para facilitar a comercialização. Desse modo, o protagonista consegue juntar muito dinheiro em seu novo povoado, mas que, por fim, é roubado por seu amigo Lopo de Pina. Este, de posse da fortuna angariada pelo degradado – de acordo com os relatos da diegese –, consegue um cargo junto ao Rei, assim que regressa a Portugal. Cosme, contudo, segue sua vida e refaz suas posses, enquanto Lopo parte novamente de Portugal, junto com um grupo de homens de armas, para o Brasil. Nessa empreitada, com autorização e poderes da corte, ele deveria impor uma melhor organização nos conglomerados da Colônia. Segundo a diegese, quando Lopo põe aqui em ação os seus planos, os povoados são transformados em vilas e muitos princípios da vida no “Novo Mundo” são reformulados. Em Cananéia, contudo, antes que os desígnios do mandatário do rei se impusessem, Cosme convoca todos seus aliados e dá combate a Lopo de Pina. Na eminência da vitória de Cosme, ele encontra seu inimigo num navio, escondido em um baú, junto com seu antigo amor, Lianor. Cosme, nessa ocasião, poupa a vida da portuguesa e a transforma em mais uma de suas mulheres. Seu antigo camarada Lopo, contudo, é feito prisioneiro e, num momento de extrema fome, acaba sendo devorado no caminho em que Cosme e seus homens buscavam novas terras para se estabelecer. A diegese de Terra Papagalli (1997) é carregada de humor, ironia, carnavalização, grotesco, todas essas estratégias que desconstroem os conquistadores e elevam a figura do degredado, último escalão dos homens europeus neste continente. Por outro lado, a produção literária brasileira, voltada ao período do “descobrimento” do Brasil pelos navegantes portugueses, irmanam-se com a intenção desconstrucionista de Meu Querido Canibal (2000), de Antonio Torres. Esta metaficção de Antonio Torres volta-se a um dos episódios mais relevantes das lutas das tribos nativas das terras brasileiras contra o domínio português. A diegese tem como figura central o cacique Cunhambebe, autóctone, líder de uma das tribos Tupinambá (Tupiniquins, Aimorés e Temiminós). Cunhambebe foi um dos principais líderes da revolta, juntamente com Aimberê, que ficou conhecida como Confederação dos Tamoios, ocorrida entre os anos de 1554 e 1567. 240


A ressignificação metaficcional de Antonio Torres desse evento de resistência nativa à subjugação portuguesa se propõe a uma revisitação crítica de muitos registros históricos que consignaram esse episódio da conquista do território brasileiro à coroa portuguesa. Essa releitura do passado dá-se, no romance, pela alteração na perspectiva com que os fatos foram perpetrados pela escrita. Na ficção, ganha destaque a atuação dos nativos, em especial de Cunhambebe e Aimberê, outro líder Tupinambá, e de Araribóia, autóctone chefe da tribo dos Temiminós, apresentado como traidor da nação indígena. A desconstrução de “heróis” lusitanos incide também sobre a conhecida figura de José de Anchieta. Anchieta e Araribóia são retratados como os principais responsáveis pelo extermínio da resistência tupinambá à ocupação europeia. Como exemplar da metaficção historiográfica plena, o discurso da obra de Torres volta-se para si mesma e estabelece o “constante diálogo” com o narratário que consideramos essencial nessa modalidade de escrita crítica/desconstrucionista, como podemos observar no fragmento destacado a seguir: [...] um desvario tresloucado de que não está imune o narrador que vos fala (herdeiro do sangue e das fábulas de uns e outros), ao recorrer às fontes de antanho, os alfarrábios de um romantismo tardio, para postarse, de peito aberto, como um extemporâneo neo-romântico exposto às flechadas da história oficial, essa velha dama mui digna, aqui sujeita aos retoques da nossa indignação. Há algo de lúdico nesta expedição, porém. O simples prazer de acrescentar alguns pontos a outros contos já contados. (TORRES, 2013, p. 9).

Com essa ironia, sarcasmo e humor, o narrador de Meu querido Canibal (2000) desconstrói personagens, textos, eras e visões consignadas nos registros oficiais da história do Brasil. As ressignificações críticas/mediadoras das produções mais atuais da modalidade do romance histórico contemporâneo de mediação dialogam também com os propósitos críticos dessas obras desconstrucionistas. Exemplo da terceira fase das escritas híbridas de história e ficção na literatura brasileira, mais voltada ao público adulto, são as obras O Fundandor (2011), de Aydano Roriz e A Mãe da mãe da sua mãe e suas filhas (2004), de Maria José Silveira, embora essa obra não se limite a ressignificar apenas essa época ou episódio de nosso passado. Em relação ao “descobrimento” do Brasil, as poucas releituras realizadas da história pela ficção brasileira já se fazem críticas e revelam, pois, a visão descolonizadora de uma parte de nossos escritores que, dessa forma, unem-se aos críticos romancistas hispano-americanos ao produzir discursos desconstrucionistas das “verdades” hegemônicas da história oficial, apresentando-as sob os signos da paródia, da carnavalização e das intertextualidades.

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Isso ocorre, por exemplo, na obra A Mãe da mãe da sua mãe e suas filhas (2004), de Maria José Silveira. Nessa narrativa, a história do Brasil – em consequência, os registros feitos na Carta de Pero Vaz de Caminha (1500)286 – são narrados por uma linha sucessória de mais de 20 mulheres que vivenciaram os mais de 500 anos de história do nosso país. A configuração dada às personagens ficcionais femininas no discurso artístico de Silveira rompe com os padrões e os estereótipos, entre outros muitos aspectos, sobre a mulher nativa de nosso continente presentes nos registros oficiais de Colombo (1491-1493) e de Caminha (1.500). A personagem principal do primeiro capítulo do romance de Maria J. Silveira é a nativa tupiniquim Inaiá. Ela nasce no exato dia em que se atribui o achamento das terras brasileiras aos portugueses. Silveira pretende, com a perspectiva adotada, criar um universo paralelo ao exposto no documento histórico de autoria de Caminha para, pela paródia do discurso historiográfico, expor outra visão do passado, elaborada a partir de um olhar e de uma vivência excluída do discurso histórico masculino e hegemônico. A nativa Inaiá é configurada na obra como uma das testemunhas da mudança histórica com respeito à sorte de sua tribo tupiniquim. A narração ficcional é paralela àquela da história oficial. Exemplo disso é o relato de que o pai de Inaiá fez parte dos homens vistos por Caminha na praia. Na Carta de Caminha aparece registrado: “E tanto que ele começou a ir-se para lá, acudiram pela praia homens aos dois e aos três, de maneira que, quando o batel chegou à boca do rio, já lá estavam dezoito ou vinte” (CAMINHA, 1977, p. 2). Já no romance, lê-se: Poderia se juntar aos companheiros em vigília na praia, o grupo de guerreiros que mirava assombrado os gigantes marinhos se aproximando lentos sobre as águas [...] Agora já eram mais de vinte guerreiros na praia – homens fortes e nus, pintados e adornados com plumas verdes, amarelas, vermelhas, segurando tensos suas armas – e viram os sinais daquelas criaturas e ouviram seus gritos em língua estranha [...]. (SILVEIRA, 2008, p. 18).

Verifica-se a inversão do foco de visão: na Carta de Caminha, temos o relato do “descobrimento” do Brasil pelo viés do olhar dos portugueses, olhando do mar para a praia. Já no relato ficcional, são os nativos que olham para a mesma cena da praia para o mar. Essa inversão na posição de quem observa o acontecimento possibilita à ficção registrar o fato histórico a partir da perspectiva e do olhar do autóctone. Assim, Silveira abre a possibilidade de imaginação sobre as múltiplas possibilidades daquilo que poderia ter acontecido nesses momentos importan286

Usamos para consulta do documento a edição de SILVA, M. B. N. da (Ed.). A Carta de Pero Vaz de Caminha. Rio de Janeiro: Agir, 1977.

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tes da história brasileira, na percepção do nativo, caso esse estivesse, então, de posse do conhecimento para registrar sua visão dos eventos presenciados. Passados os primeiros anos após a chegada da esquadra cabralina às praias do nordeste brasileiro, segue-se a etapa da conquista do território brasileiro pelos portugueses. Será esse o ambiente no qual se desenvolve a diegese da obra O Fundador (2011), de Aydano Roriz. Esse é um relato linear que retoma a história oficial da fundação, na Bahia, da primeira capital do Brasil, Salvador, onde três figuras históricas dividem a atenção narrativa: Tomé de Souza, primeiro governador geral do Brasil, trabalha a fim de edificar Salvador, faz acordos com os nativos e tem várias paixões; Diogo Álvares (o Caramuru), náufrago português que passou a vida entre os indígenas e recepcionou Tomé de Souza, ajudando-o em sua tarefa; e Garcia d’Ávila, inicialmente, um criado de Tomé de Souza, que usa de sua astúcia para ser nomeado almoxarife de Salvador, tendo, também, mais de uma paixão. Tudo isso no romance está envolto pela paisagem tropical e pela beleza das nativas que encantavam os lusitanos. O Brasil, para os conquistadores portugueses, segundo as imagens apresentadas nas descrições do romance de Roriz, era o paraíso em termos comerciais, políticos e, principalmente, com relação às mulheres, como se pode observar nos fragmentos: “raparigas bem fornidas e de muito bom parecer” (RORIZ, 2011, p. 28); “[...] graciosas mesmo são as gentias. [...] todas pardinhas, com tetinhas e ratinhas à mostra... Umas belezuras. (RORIZ, 2011, p. 41). O discurso ficcional adota, assim, o mesmo procedimento descritivo contido no discurso da Carta de Caminha (1500) e, após a personagem ter estado em contato com as nativas, a voz enunciadora do discurso estabelece a comparação dessas com as mulheres europeias, enunciando que “as mulheres nem fedem nas partes como as do Reino. Mostram-se sempre lisinhas de pelos e lavadinhas. [...] E como gostam de um rala-rala!” (RORIZ, 2011, p. 56). A visão do conquistador, homem branco e machista, revela-se ao longo de toda a narrativa, especialmente quando se trata dos comentários sobre o sexo feminino: “Mulher, com a graça de Deus, é o que não falta nestas Terras do Brasil!” (RORIZ, 2011, p. 62). Segundo o discurso do romance, é possível notar que os europeus realmente consideravam nossa terra um paraíso, um paraíso sexual, afinal, conforme enuncia a personagem: “No Brasil não tem pecado, não. [...] já viu pecado no paraíso?” (RORIZ, 2011, p. 132). Tais comentários das personagens também se fazem bastante pejorativos, como se vê em: “Branca para casar, negra para trabalhar, índia para foder!” (RORIZ, 2011, p. 208). O processo de colonização ficcionalizado no romance de Roriz (2011) deixa claro que, nessa época, o poder, de fato, estava concentrado nas mãos da personagem de extração histórica Caramuru e que os empreendimentos de Tomé de Souza, Governador Geral e representante direto da corte portuguesa 243


nas terras em conquista, só foram possíveis, de certa forma, pelo apoio que teve do náufrago-desterrado que já havia adotado o universo cultural dos nativos também como seu. Movimento crítico/mediador semelhante a esse presente nas obras que acabamos de mencionar vem ocorrendo, também, na literatura brasileira infantojuvenil que tem apresentando uma série de obras em perspectiva crítica/mediadora para jovens leitores. Dentre elas, podemos destacar Os fugitivos da esquadra de Cabral (1999), de Angelo Machado; Tendy e Jã-Jã e os dois mundos: na época do descobrimento (2002), de Maria José da Silveira; O Vampiro que descobriu o Brasil (2007), de Ivan Jaf; Degredado em Santa Cruz (2009), de Sônia Sant’Ana; Mil e quinhentos: o ano do desaparecimento (2012), de Alan Oliveira; A Descoberta do Novo Mundo (2013); e A viagem proibida: nas trilhas do ouro (2013), ambas de Mary Del Priore, entre outros. Abre-se, nesse campo, uma nova possibilidade de futuros trabalhos de pesquisa e análise. Entretanto, ao contrário disso, as poucas obras existentes na literatura brasileira sobre a personagem Cristóvão Colombo e as suas ações mostram-se como expressões de continuidade à tendência exaltadora e apologética que primeiro se instaurou nas letras americanas estadunidenses, ecoando, ainda, no século XXI, a ideologia e os discursos que edificaram imagens laudatórias e heroificadas do marinheiro às vésperas do IV centenário da primeira travessia de Colombo ao Atlântico. Vejamos, no Quadro V, abaixo exposto, os poucos romances que tratam dessa temática mais ampla do “descobrimento” da América em nossa literatura nacional. Quadro V – Imagens escriturais de Colombo na literatura brasileira 3 FASES DO ROMANCE HISTÓRICO 1- Fase: acrítica 2- Fase: 3- Fase: De 1814, com crítica/desconstrucionista crítica/mediadora Waverley, de Scott, até De 1949, com El reino de este Desde a década de 1980, os nossos dias mundo, de Alejo Carpentier, até com as reações do pósos nossos dias boom, até os nossos dias 5 MODALIDADES DE ROMANCES HISTÓRICOS 1- Romance histórico clássico scottiano

2- Romance histórico tradicional

3- Novo 4- Metaficção 5- Romance romance historiográfica histórico histórico contemporâne latinoo de mediação americano “IMAGENS ESCRITURAIS DE COLOMBO”: OCORRÊNCIAS NA LITERATURA BRASILEIRA Romances históricos tradicionais - Cristóvão Colombo (s/d), de Otto Schneider; - Cristoferus (1992), de Henrique Flory; - A caravela dos insensatos – uma viagem pela Renascença (2006), de Paulo Novaes. Fonte: Criado pelo autor para esta obra, em 2020. 244


Entre as poucas obras existentes sobre a personagem Cristóvão Colombo e as ações do marinheiro que levaram ao encontro primeiro entre os europeus de sua frota e os nativos das ilhas do Caribe, em 1492, no universo literário brasileiro, destacamos os romances Cristóvão Colombo (s/d), de Otto Schneider – uma mostra do realismo na modalidade tradicional; Cristoferus (1992), de Henrique Flory – uma obra catalogada como ficção fantástica; e A caravela dos insensatos: uma viagem pela Renascença (2006), de Paulo Novaes – renarrativização exaltadora e apologética das ações de Colombo, em 1492, realizada na pósmodernidade. Tais obras alinham-se às correntes apologéticas que produzem imagens escriturais de Colombo voltadas ao elogio de suas ações e, assim, elas se irmanam com o discurso histórico oficial que exalta e glorifica a figura do “Almirante” como homem sábio, eloquente, temente a Deus, servo fiel dos grandes monarcas espanhóis e aquele que trouxe aos povos nativos a possibilidade de salvação pela fé católica. O retrato do navegante nesses romances é o de um modelo de homem que superou todos os obstáculos que lhe foram impostos. No âmbito dos romances históricos realistas que recriam a “descoberta” da América em nosso continente, podemos destacar a obra Cristóvão Colombo (s/d), de Otto Schneider, que se irmana ao discurso apologético estadunidense. A intenção do romance revela-se já nas anotações na orelha do livro: [...] este romance histórico, emocionante, mas verídico em todas as suas linhas, instrutivo, fácil e completo – alcança o período de 1451, nascimento de Colombo, até depois de sua morte, que ocorreu a 20 de maio de 1506, justamente na festa de Ascensão do Senhor – deve ser lido não só pelos jovens, mas por todos os que desejam conhecer os grandes acontecimentos humanos. (SCHNEIDER, s/d – contracapa).

Entendemos, assim, que o relato de Schneider (s/d) insere-se no grupo primeiro dos romances históricos acríticos tradicionais, cuja intenção, conforme expressa Fernández Prieto (2003), é a de ensinar ao leitor a versão da história oficializada, reforçando essa ideologia pelas estratégias da ficção. Dessa maneira, o romance traça uma trajetória edificadora de Colombo: corsário – aventureiro – descobridor. Das suas primeiras aventuras marítimas, o narrador, em nível extradigético e em voz heterodiegética, relata: “temperava, assim, o aço de sua energia. Aperfeiçoava e alargava suas habilidades e conhecimentos. Preparava-se, ainda que sem o saber, para a grande tarefa que o tornaria imortal.” (SCHNEIDER, s/d, p. 18). Seus anos de perambulação pela corte espanhola e sua luta para conseguir as condições necessárias para o empreendimento da primeira travessia ao Atlântico constituem as suas ações renarrativizadas no romance. Quando a narrativa volta-se para “o descobridor”, além de fazer um relato 245


minucioso das ações de Colombo, o discurso advoga pelas injustiças históricas sofridas pelo navegante. Segundo expressa o discurso do narrador, essas foram, primeiramente, cometidas por Roldán e seu grupo de rebeldes em solo americano e, posteriormente, pelos representantes da nobreza espanhola que o invejavam. Entre eles, estavam aqueles que decidiram chamar as terras “descobertas” por Colombo de América, em homenagem ao navegante Américo Vespúcio. O narrador, em tom de denúncia, relata: “Américo viajou duas vezes para o continente americano [...]. Tornou-se tão conhecido que todo o continente recebeu seu nome. Trata-se, indubitavelmente, de uma injustiça histórica mundial.” (SCHNEIDER, s/d, p. 165). Além de se irmanar com o discurso histórico oficial exaltador da figura heroica de Colombo, esse romance é um apelo em defesa à moral, à integridade e à religiosidade do “Almirante”. Essa mesma tendência apologética encontra-se ainda presente em muitos dos romances contemporâneos estadunidenses que se lançam à recriação da saga de Colombo em terras americanas. Isso ocorre, também, na obra brasileira mais recente sobre a personagem e suas ações, configurado por Paulo Novaes (2006) em A caravela dos Insensatos: uma viagem pela Renascença. Nela, o marinheiro é configurado, primeiramente, como “alma gêmea” da rainha Isabel, sujeito sábio, erudito, palestrante universitário, homem de fé inabalável: um modelo de cristão para os latino-americanos. Colombo é, ao longo do relato, mitificado a ponto de ser apresentado como o interlocutor direto da Virgem Maria, que, em várias ocasiões de sua jornada, apareceu-lhe para guiá-lo na realização de sua grande conquista. As primeiras imagens escriturais exaltadoras do marinheiro configurado na obra ocorrem quando se narra o velório da rainha católica da Espanha. O discurso do narrador apresenta essa imagem, nas palavras do próprio marinheiro em diálogo com a personagem Frei Gaspar Gorriccio, que será foco narrativo do romance, nos seguintes termos: “Tínhamos a mesma idade – nascemos no mesmo ano, sabia, irmão? Tínhamos a mesma fé, os mesmos sonhos, os mesmos credos, os mesmos valores. Que mais se pode desejar? O senhor sabe o que é uma alma gêmea? Sabe?” (NOVAES, 2006, p. 14). A personagem Colombo, configurado na narrativa mitificadora e exaltadora de Novaes como uma “alma gêmea da rainha Isabel”, passa, por extensão, pelo mesmo processo de exaltação da soberana católica, ao se notarem, na voz enunciadora do discurso, as semelhanças espirituais que sempre uniram a rainha ao marinheiro. A confirmação dessa caracterização heroica e exaltadora da figura de Colombo, análoga à da rainha Isabel, concretiza-se, em seguida, nas palavras que lhe dirige Frei Gorriccio – personagem de extração histórica, confessor de Colombo – ao ver o seu sofrimento ante a morte da rainha:

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Quem foi capaz, como você, de lutar por ideais tão elevados, quem soube ter a tenacidade para fazer prevalecer seus pontos de vista, esperar confiante por sete anos e depois liderar um grupo de homens numa aventura rumo ao desconhecido, quem enfrentou os elementos por meio mundo, não pode jamais se deixar abater. (NOVAES, 2006, p. 15).

O discurso edificante da vida e feitos de Colombo, proferido na voz do narrador da obra de Paulo Novaes (2006), parece reflexo daquele idealizador romântico, presente na obra de Washington Irving, do século XIX (1992, p. 13): “[...] as rigorosas e várias lições de sua juventude lhe deram aqueles conhecimentos práticos, [...] aquela indomável resolução, [...] que tanto lhe distinguiram depois”; imagens essas que são fortemente combatidas pelas escritas críticas dos romancistas hispano-americanos. Desse modo, o primeiro romance escrito por Paulo Novaes, A caravela dos insensatos (2006), é um projeto literário bastante ousado, pois o romancista busca não só reconfigurar literariamente a figura de Colombo, mas abranger todo o espírito renascentista do princípio do século XVI, por meio da ficcionalização de várias das figuras mais proeminentes do mundo europeu de então. Entre essas figuras estão representantes das mais diferentes esferas da arte, como Michelangelo, Leonardo da Vinci, Sandro Botticelli, Maquiavel; além de eminentes representantes da esfera pública, como a família Médici, os descendentes dos Reis Católicos: Catarina de Aragão, Isabel de Aragão e Maria de Aragão; o Papa Júlio II, entre vários outros nomes ilustres registrados nos compêndios da história que, na época, poderiam haver contatado com Colombo por serem seus contemporâneos. A arquitetada diegese conecta todas essas ilustres personagens na própria figura do navegante Cristóvão Colombo que, acompanhado por outras personagens de extração histórica, faz uma peregrinação pela Europa e, no imaginário do romancista, encontra-se com a elite intelectual da época. A obra de Novaes (2006) está dividida em quatro partes, subdividas em vários capítulos. A cada uma das partes corresponde um espaço geográfico específico: Espanha, Itália, Sacro-Império (Suíça, Alemanha, França e Espanha) e, novamente, Espanha, fechando o ciclo da peregrinação que oportuniza os encontros de Colombo com as demais personagens históricas reconfiguradas no romance. Essa ordem é, também, o itinerário ao longo do qual o leitor acompanha as andanças, ou investigações, de Colombo e seus acompanhantes na tentativa de elucidar um mistério, o elemento gerador da própria diegese: encontrar o verdadeiro autor do livro “Mundus Novus, por Albericus Vespucius” (NOVAES, 2006, p. 17) no qual se mencionava a “descoberta” de um novo continente que se chamaria América. No romance de Novaes, a estratégia mais utilizada para exaltar e glorificar a imagem de Colombo é a comparação desse e de seus feitos com as 247


eminentes figuras do Renascimento Europeu e suas produções. No itinerário que o grupo percorre pela Itália, dão-se os encontros planejados com Leonardo da Vinci, Nicolau Maquiavel, Michelangelo Buonarroti, Rafael Sanzio de Urbino, o Papa Júlio II e mais algumas dezenas de personagens históricas importantes das diferentes cidades que o grupo teve que percorrer ao seguir as pistas dadas pelos diferentes informantes sobre a procedência e autoria do Mundo Novus. Destacamos, a seguir, desse contexto, uma conversa de Colombo com Michelangelo: – Colombo, temos muito em comum, sabia? – É mesmo? O que seria? – Por exemplo, nossa relação com a água. Você como marinheiro, e eu, como engenheiro hidráulico. Também nosso apego à terra natal, ambos trabalhamos para quem nos reconhece o talento e dá condições para desenvolver nossa visão. Afinal, temos grandes sonhos, não é, Colombo? – Tem razão, lutei muito para encontrar quem apoiasse os meus, até conhecer a rainha Isabel. – Pelo que sei, somos estudiosos, pesquisamos e nos baseamos fortemente na experiência. Como você, busco a inovação, a solução fora do convencional. – Reside aí nossa diferença com as demais pessoas. Nem sempre somos bem compreendidos; isso exigiu abnegação, sacrifício e até o afastamento de minha família. – E eu, que nem cheguei a constituir uma? (NOVAES, 2006, p. 86-87).

A outra dimensão mitificadora e exaltadora da personagem Colombo e suas ações que merecem destaque em nossa abordagem a esse romance é a que se refere à religiosidade professada pelo “Almirante”. Esse aspecto é de tanta relevância para o discurso romanesco de Novaes que a personagem por intermédio do qual se enaltece, louva e glorifica essa faceta do marinheiro é nada menos que o próprio Papa Júlio II, máxima autoridade eclesiástica. Observemos alguns fragmentos do discurso que o Papa profere em uma missa, dedicada a Colombo, a qual o grupo presencia em sua estadia em Roma, de acordo com a diegese criada por Novaes: –Meus caros fiéis, eu hoje gostaria de vos falar sobre a fé, força divina que impulsiona pessoas normais a tomar atitudes extraordinárias. Ela é uma das virtudes cristãs, e aqueles que a cultivam têm garantido o caminho de comunhão com o Senhor. Hoje, aqui presente, está o testemunho vivo da força da fé, sua excelência, o Almirante Cristóvão Colombo, descobridor do Novo Mundo e divulgador do evangelho por lá. O papa Júlio II fez uma pausa, e pude notar que todos os olhares convergiam para a figura alta de Colombo. – O que impeliu tamanha aventura? O desejo de servir a Deus, de catequizar os gentios e de expandir as fronteiras cristãs. Devoto da Virgem Maria, a ela dedicou as alegrias de suas descobertas e a ela recorreu nas crises de sua jornada para obter o alento que lhe permitisse enfrentar os terríveis desafios que se lhe deparavam. Estudioso das Sagradas escrituras, nelas buscou o conhecimento e o embasamento de suas crenças. [...] Ele, que traz na 248


etimologia do próprio nome, Cristóvão ‘aquele que carrega Cristo’ a imagem de sua virtude. Caro Almirante, nós aqui presentes temos convosco uma dívida por tudo o que fizestes em prol da nossa crença, da nossa fé, da nossa salvação. (NOVAES, 2006, p. 131).

No romance, também se narram várias aparições da Virgem Maria em algum lugar do continente europeu ao mesmo tempo em que ela aparece a Colombo ao longo de sua travessia. A intenção discursiva do romance, ao estabelecer essa relação da aparição da Virgem Maria em algum ponto do continente europeu – quando simultaneamente isso se dá também com Colombo atravessando o mar para realizar a sua “grande descoberta” – evidencia a verdadeira intenção ideológica de gerar no leitor menos experiente a imagem de que os continentes, pela ação “descobridora” de Colombo, não apenas se unem entre si, mas, também, passam a estar ambos vinculados com a Santidade religiosa Cristã para a qual o marinheiro é ponte, caminho e possibilidade no “Novo Mundo”. Desse modo, fica evidente que a “poética do descobrimento” – considerando-se a gênese do fato histórico protagonizada por Cristóvão Colombo, pela corte espanhola e pelos tripulantes das embarcações que alcançaram as ilhas do Caribe, em 1492, na tentativa de chegar a Cipango e Cathay, via oeste –, na literatura brasileira, carecem de exemplares críticos que ressignifiquem esse passado, fato que é comum na literatura hispano-americana do continente e como tem se tornado mais recorrente nas estadunidense e espanhola a partir da década de 1990. A passagem das imagens escriturais de Colombo da apologia e exaltação à criticidade e às ressignificações presentes nessas literaturas é, da mesma forma, perceptível nas produções romanescas que tratam de Colombo e suas ações escritas por mulheres, uma trajetória que se inicia no século XIX e que alcança nossos dias, como veremos à continuação.

3.5 EM MARES DE ONDAS FEMININAS: COLOMBO ESCRITO POR MULHERES – DA EXALTAÇÃO À MEDIAÇÃO [...] Colón necesitaba la ternura de una mujer, porque era poeta y no sólo caballero, y aun como caballero, porque era menos contenido que el casto hidalgo de la Mancha. (MADARIAGA, 1947, p. 224).

A escrita híbrida de história e ficção, no que se restringe ao romance histórico, ainda é um âmbito no qual o protagonismo de autoria feminina não se revela contundente. Tal fato é consequência da própria trajetória da escrita de autoria feminina que, especialmente no contexto colonial, ficou às margens do processo de produção literária pela imposição dos ditames do patriarcalismo 249


que não considerava tal atividade intelectual como inerente às funções atribuídas à mulher no seio da sociedade. Escrever, ou seja, expor seu pensamento a um amplo público e compartilhá-lo com outros integrantes do sistema, não fazia parte das atividades do espaço doméstico ao qual estavam confinadas as mulheres em épocas como as dos processos de conquista e colonização da América e, nem mesmo, naquela de luta pela independência, salvo raras exceções. A formação da mulher escritora consiste em um processo social de lutas e de pequenas conquistas ao longo de muitos séculos, pois o espaço da escrita, mais ainda que o da leitura, sempre foi visto como pertencente ao âmbito do poder masculino por ser esse um espaço privilegiado de exercício público. No tocante à “poética do descobrimento” e à inserção nesse contexto da escrita de autoria feminina – um Colombo escrito pelas mulheres –, deve-se considerar o espaço mais amplo, geográfico e histórico, no qual os eventos sucederam-se e as consequências que tal acontecimento produziu. Assim, a escritora e crítica literária Lucía Guerra (2007, p. 100) chama a atenção ao fato de que […] las múltiples dislocaciones producidas por la invasión y posesión de otro territorio/cultura implican, sin embargo, un punto de contacto en la coincidencia con respecto a una distribución de roles primarios basada en la desigualdad genérica. Tanto los colonizadores como los colonizados se regían por parámetros patriarcales que suponían una inherente y natural inferioridad de la mujer. Por lo tanto, las mujeres sufrieron una doble colonización y estuvieron expuestas a la confrontación con una modalidad dual de dominación: la de su grupo colonizado y la del colonizador 287.

Ao conquistar, lenta e arduamente, o espaço da expressão literária na América, também como via de descolonização, as mulheres escritoras, diante dos registros oficiais da historiografia tradicional, viram na escrita híbrida do romance histórico oportunidades de “recuperar figuras históricas ignoradas o sucesos históricos olvidados desde perspectivas nuevas.288” (DA CUNHA, 2004, p. 15). Uma história que se voltasse às perspectivas de vivências das mulheres no percurso do tempo precisava ser, da mesma forma como o acesso à escrita, conquistado e valorizado, não só desse lado do Atlântico, mas, também, nas metrópoles colonizadoras, espaço histórico-cultural de onde provinha grande parte do patriarcalismo aqui implementado. 287

Nossa tradução: […] os múltiplos deslocamentos produzidos pela invasão e posse de outro território/cultura implicam, no entanto, um ponto de contato na coincidência com respeito a uma distribuição dos papéis primários baseados na desigualdade de gênero. Tanto os colonizadores como os colonizados regiam-se por parâmetros patriarcais que supunham uma inerente e natural inferioridade da mulher. Portanto, as mulheres sofreram uma dupla colonização e estiveram expostas à confrontação com uma modalidade dual de dominação: a de seu grupo colonizado e a do colonizador. 288 Nossa tradução: Recuperar figuras históricas ignoradas ou eventos históricos esquecidos por perspectivas novas.

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Parte dessa agenda de lutas das mulheres por reconhecimento foi, também, levado em conta nos parâmetros que renovaram a escrita da história, mais efetivamente a partir da década de 1970, com as propostas da Nova História. O próprio espaço da historiografia começou, a partir dessas mudanças de paradigmas, a se abrir mais para a atuação da mulher e, assim, também, às áreas de seus interesses. Nesse contexto, por si só já bastante significativo, os eventos marcantes de 1492, vivenciados pelos Reis Católicos, por Cristóvão Colombo, pelos irmãos Pinzón e, mesmo que perifericamente, pelos noventa e dois integrantes da frota espanhola que cruzou o Atlântico rumo a Cipango e Cathay e que, nessa rota via Oeste às Índias Ocidentais, encontrou as terras do nosso continente e a diversidade de suas gentes, a escrita das autoras americanas mais contemporâneas busca “por la recreación de la época de la conquista o de la colonia pero no con la voluntad de glorificarla, sino con ánimo de rescatar y destacar aspectos descuidados de la misma.289” (DA CUNHA, 2004, p. 20). Contudo, esse interesse em “destacar aspectos descuidados” nos registros historiográficos tradicionais sobre a época da conquista e da colonização americana, inerente às ressignificações do passado pela ficção contemporânea, foi, também, o fluído vital que impulsionou a projeção das primeiras imagens escriturais de Cristóvão Colombo na autoria feminina ainda no século XIX. Como podemos observar no Quadro VI abaixo – no qual elencamos algumas das mais representativas produções de imagens escriturais de Colombo na escrita de mulheres romancistas –, foram as entusiásticas celebrações do IV centenário da primeira travessia ao Atlântico, por Colombo e sua frota, que constituíram o momento histórico da produção da primeira obra de autoria feminina no contexto da “poética do descobrimento”. Quadro VI – Romances de autoria feminina no âmbito da “poética do descobrimento” 3 FASES DO ROMANCE HISTÓRICO 1- Fase: acrítica 2- Fase: 3- Fase: De 1814, com crítica/desconstrucionista crítica/mediadora Waverley, de Scott, até De 1949, com El reino de este De 1980, com as os nossos dias. mundo, de Alejo Carpentier, até reações do pós-boom, até os nossos dias. os nossos dias. 5 MODALIDADES DE ROMANCES HISTÓRICOS 2- Romance histórico tradicional 5- Romance histórico contemporâneo de mediação “IMAGENS ESCRITURAIS DE COLOMBO”: OCORRÊNCIAS NA LITERATURA DE AUTORIA FEMININA Romance histórico tradicional Romance histórico contemporâneo de 289

Nossa tradução: Pela recriação da época da conquista ou da colônia, mas não com a vontade de glorificá-la, senão com ânimo de resgatar e destacar os aspectos descuidados da mesma.

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- Columbus and Beatriz (1892), de Constance Goddard DuBois (EUA); - The son of Dolores (1945), de Ida Mills Wilhelm (EUA); - To the Indies (1949), de Cecil Scout Forester (EUA);

mediação - Colombo de Terrarrubra (1994), de Mary Cruz (Cuba); - The discoveries of Mrs. Christopher Columbus – his wife’s version (1994), de Paula DiPerna (EUA); -La ruta de las tormentas: diario de a bordo de Hernando Colón (2005), de Paula Cifuentes (Espanha).

- No serán las Indias (1988), de Luisa López Vergara (Espanha); - Isabel, reina de América (1999), de Sorkunde Francés Vidal (Espanha). Fonte: Elaborado pelo autor para esta obra, em 2020.

Vemos, pois, que é o cenário de 1892 – considerado por Moses M. Nagy (1994) o período no qual a imagem de Cristóvão Colombo foi posta nos mais altos pedestais da escrita, seja historiográfica, seja ficcional – que serve de contexto histórico à produção do romance Columbus and Beatriz (1892), da estadunidense Constance Goddard DuBois. O berço das imagens ficcionais do marinheiro, também nas escritas de autoria feminina, volta a ser o mesmo das inaugurais: Os Estados Unidos da América. Quarenta e dois anos após a escrita de Mercedes of Castile, or the Voyage to Cathay (1840), de James Feminore Cooper – que lançou no gênero romanesco as primeiras imagens escriturais exaltadoras e apologéticas de Colombo na Literatura Ocidental – é Constance Goddard DuBois que renarrativiza os eventos de 1492, num romance que se volta aos olhares femininos sobre o passado. Isso se dá no contexto dos romances da modalidade tradicional, inserido, ajustadamente, dentro desse período histórico da primeira metade do século XIX no qual essa era, além da clássica scottiana já explorada por Cooper (1840), a via possível de escrita das produções romanescas híbridas de história e ficção. Sendo assim, apesar de extrair das margens uma personagem histórica ex-cêntrica ao dar-lhe o protagonismo na ficção, a obra de DuBois (1892), ao renarrativizar o passado de Colombo e suas ações, filia-se ao romance histórico tradicional, modalidade que, nesse período do Realismo/Naturalismo, primava pela ordenação e a sucessão dos acontecimentos de modo linear, numa recriação meticulosa do passado, gerando imagens enaltecidas das figuras históricas, numa perspectiva quase sempre extradiegética, como é o caso desse romance em específico. Entretanto, ao contrário do que se verifica no romance de Cooper (1840), no relato de Goddard DuBois (1892) já são perceptíveis alguns indícios da futura criticidade que o gênero revelaria nas escritas hispano-americanas do 252


século XX, ao buscar dar relevância, na ficção híbrida, a uma personagem feminina marginalizada na escrita historiográfica. O quarto centenário da primeira viagem de Colombo à América é, assim, também o ano em que se inaugura a narrativa de autoria feminina que renarrativiza as ações de Colombo, pois nem as pesquisas de Milton (1992), tampouco as nossas e de outros pesquisadores da “poética do descobrimento” que consultamos, revelam a existência de romances de autoria feminina no universo literário colombino antes da obra de DuBois. A escritora Constance Goddard DuBois, nascida em Zanesville, Ohio, expressa, no prefácio de sua obra Columbus and Beatriz (1892), as intenções de sua ficcionalização do passado: It is not the reputation of Columbus that is at stake. History, while accepting his offence, has readily excused it, – ‘He was a man of his time’, forsooth; but the beautiful young Beatriz Enriquez, whose life linked to his was undoubtedly a sad one, should be delivered from unmerited reproach; and the open-minded student of history as well as the enthusiastic champion of slandered innocence should unite in rendering a tardy justice to her memory. 290 (DUBOIS, 1892, p. IX).

Há, na obra de DuBois (1892), muitos dos elementos estudados na atual crítica feminista e, entre eles, podemos destacar a incansável luta das mulheres para trazer à luz personagens históricas femininas, cujas participações em grandes eventos históricos foram decisivas, embora a história oficial – hegemônica e tradicional – tenha registrado apenas as glórias à parcela masculina que deles participaram, expondo, também, seus resquícios patriarcalistas. O romance histórico de autoria feminina, que inaugura a temática colombina nesse âmbito escritural, busca, assim, dar espaço à manifestação da vida e da voz de Beatriz Enríquez de Harana, a quem a história soube emudecer. A escrita romanesca de DuBois (1892), inserida na realidade histórica na qual apenas existiam as modalidades acríticas – clássica e tradicional – do gênero romance histórico, pode ser considerada precussora da ideologia da mediação que se tornará mais plausível e praticada a partir das últimas décadas do século XX. Assim como Xicoténcatl (1826) é por nós considerado o embrião do novo romance histórico latino-americano e toda a sua criticidade e desconstrucionismo, o romance Columbus and Beatriz (1892), de DuBois, pode

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Nossa tradução: Não é a reputação de Colombo que está em questão. A História, ao mesmo tempo em que admite seu erro, prontamente o justifica, – ‘Ele era um homem do seu tempo’, atenua; mas a bela jovem Beatriz Enríquez, cuja vida ligada à dele foi sem dúvida muito triste, deveria ter sua reputação revogada de reprovações não merecidas; e o estudante de história de mente aberta, assim como o entusiasta da inocência mal-falada, deveriam unir-se para fazer justiça, mesmo que tardia, à sua memória.

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ser visto como o impulso daquilo que, quase um século depois, será o romance histórico contemporâneo de mediação. Na diegese romanesca, é dado a Beatriz Enríquez de Harana um espaço protagônico, que a história nunca lhe conferiu, ao lado de Colombo, a quem ela se dedicou durante a fase mais difícil da trajetória do marinheiro rumo ao “descobrimento” da América. Além disso, Beatriz foi a mãe do segundo filho de Colombo, Fernando Colombo, que após ser educado na corte, tornouse um dos mais conhecidos pensadores de sua época, dono de uma imensa e invejável biblioteca. Ao regressar de sua primeira travessia ao Atlântico, em março de 1493, ao desfrutar das glórias do seu “descobrimento”, Colombo é festejado por toda a Espanha e, entre os méritos alcançados, foi-lhe concedido o privilégio de levar seus filhos à Corte para serem ali educados e a atuarem como pajens da rainha Isabel. Assim, criança ainda, Fernando deixa o convívio com sua mãe Beatriz e passa a transitar no ambiente refinado da Corte. Adulto, torna-se, além de um respeitado intelectual, o primeiro biógrafo de seu próprio pai. Nessa tarefa de biografar a vida e feitos de seu pai, em que se projetam algumas das primeiras imagens escriturais de Colombo, o altivo e intelectualizado Fernando Colombo excluiu de sua vida e do relato sobre as vivências de seu pai a existência de Beatriz. Isso se dá por razões que a história não registra, mas que a compreensão do contexto histórico do início do Renascimento espanhol no qual Beatriz viveu, e que a ficção persegue, consegue revelar, inclusive e de forma especial, na diegese de Columbus and Beatriz (1892), de Goddard DuBois. O discurso ficcional da primeira obra de autoria feminina no âmbito da “poética do descobrimento” dá relevância à experiência de vida dessa personagem que, durante séculos, permaneceu na obscuridade e no anonimato, lançando, assim, sementes à futura luta de muitas mulheres por direitos iguais e ao resgate de obras e personagens femininas esquecidas pela historiografia. Escritoras norte-americanas anglo-saxônicas, como Constance DuBois (1892) e Paula DiPerna (1994), dessa forma – embora separadas por pouco mais de um século –, não se calaram diante da possibilidade que o discurso ficcional lhes oferecia para fazer ecoar as vozes de mulheres como Beatriz e de Felipa – companheiras de vida de Colombo – que compartilharam com o navegante os períodos mais preciosos de suas vidas, reclamando, desse modo, a sua importância no contexto que possibilitou ao marinheiro realizar a viagem de travessia ao Atlântico pela qual a história o imortalizou. Essas vozes recuperadas do emudecimento secular e essas duas escritoras de épocas distintas são, também, síntese da trajetória das escritas femininas no âmbito das revisitações da ficção ao passado que uniu a Europa à América na escrita de mulheres, revelando o trânsito entre a modalidade tradicional – na qual nasce a escrita colombina de autoria feminina com a obra de DuBois (1892) – à criticidade da modalidade mais atual do gênero: o 254


romance histórico contemporâneo de mediação – concretizado na obra de DiPerna (1994). A personagem Beatriz, da obra de DuBois, pelas circunstâncias e extrato social e étnico do contexto dos judeus conversos da Espanha do final do século XV a que pertencia, representava para seu filho, o jovem e talentoso Fernando Colombo, educado na corte junto aos filhos dos grandes nobres espanhóis, uma mácula que não deveria nunca ser mencionada. Para o pai, porém, ela representou algo mais do que uma simples aventura amorosa ou um consolo em tempos difíceis, de solidão e angústia. Beatriz, ainda que nem sempre estivesse fisicamente presente, tornouse uma constante na vida de Colombo, que se preocupou com ela até na hora de sua morte ao, por testamento, encarregar Diego – o filho que Colombo teve com Felipa Moniz Perestrelo – de zelar por sua situação. Dessa maneira, podemos, até mesmo, mencionar que a arte romanesca oferece a essas mulheres o lugar de destaque que a história sempre lhes negou: o protagonismo numa história cujo grande ator sempre foi Cristóvão Colombo. Ao dividirem com o navegante esse espaço de prestígio no campo ficcional, o romance histórico revela, em um novo plano, as suas vivências ao lado do homem que mudou o curso da história. A importância da presença de Beatriz na vida de Colombo, no entanto, é registrada também por alguns dos biógrafos de Colombo, como, por exemplo, Jacob Wassermann (1930, p. 52), que afirma: “[...] de ella recibió, sin duda, Colón alientos y cuidados; su corazón fué quizá el único que realmente poseyó en aquel período sombrío, porque en su mismo testamento la recomienda encarecidamente a sus herederos como a persona a la que está muy obligado. 291” Madariaga (1947) também analisa esse relacionamento que, ao seu parecer, foi uma experiência extremamente importante para Colombo como homem que atravessava, nessa época da busca de apoio a seu projeto de navegação, uma das fases mais difíceis de sua trajetória. Apesar de a presença de Beatriz Enríquez de Harana na vida de Cristóvão Colombo aparecer também em algumas das outras obras que mencionamos neste estudo, ela sempre foi apresentada por meio da visão do navegante ou de outro narrador em diferentes níveis e vozes diegéticas. Ainda assim, vista de forma secundária, tais obras a reconhecem como parte essencial e integrante da história de Colombo. Diferente é a posição de DuBois, que se utiliza da personagem Beatriz como foco para narrar sua história, na qual Colombo, sem dúvidas, tem papel de destaque, mas é a visão feminina do entorno social que estabelece a perspectiva do relato. Nesse sentido, essa obra do século XIX dialoga com a narrativa contemporânea do romancista espanhol Pedro Piqueras, Colón a los ojos 291

Nossa tradução: [...] dela Colombo recebeu, sem dúvida, alentos e cuidados; seu coração foi, talvez, a única coisa que realmente possuiu naquele período sombrio, porque em seu próprio testamento a recomenda, encarecidamente, a seus herdeiros como uma pessoa a quem está muito em débito.

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de Beatriz (2001), e de Paula Cifuentes (2005), La ruta de las tormentas: diario de a bordo de Hernando Colón. No romance de Piqueras, por exemplo, aparece também a inversão das posições: Beatriz é quem empresta seus olhos ao narrador para que as imagens de Colombo possam aflorar ao longo da narrativa. Beatriz, no leito de morte, no relato arquitetado por Piqueras, expressa o desejo de encontrar Colombo do outro lado da vida. Conforme expõe o narrador, tal recompensa “[...] sería la pequeña, la minúscula victoria de quien fue la gran derrotada en una historia de triunfos.292” (PIQUERAS, 2000, p. 18). Aspecto que se conjuga com o propósito de Constance DuBois, mesmo que numa outra instância, e aproxima-se do ideário das escritas de autoria feminina contemporâneo. Um estudo comparativo entre a obra de Constance DuBois e o romance contemporâneo de Piqueras 293 – que têm a jovem cordobesa como foco narrativo – certamente auxilia para evidenciar como a literatura, tanto de autoria feminina como masculina, tem contribuído para revelar pontos de vista bastante preciosos, sob os quais o passado de Colombo pode adquirir outras dimensões. Embora esse romance de DuBois não tenha tido o mesmo respaldo da crítica que tiveram seus estudos etnográficos sobre os nativos indígenas do sul da Califórnia, ele representa, no conjunto total da obra laudatória norteamericana do século XIX, um olhar diferente sobre o contexto geral no qual se deram as ações de Colombo. A forma como Beatriz Enríquez de Harana é configurada nessas obras, que recontam a história de Colombo e pelo filtro de seus olhos, dá-lhes esse elemento diferenciador, também utilizado por Paula DiPerna (1994), que, ao reler as ações de Colombo, vale-se de um foco narrativo feminino. No romance de DuBois, o olhar de Beatriz vai da admiração da jovem pelo estranho, já no primeiro encontro – “the young girl rose with a look of wonder and reverence fixed upon the man, whose face in its mild benignity was like that of a pictured saint, and whose vigorous manly form expressed energy and strength 294” (DUBOIS, 1892, p. 15) –, à dor de uma vida dedicada a alguém cujas ambições estão acima de tudo. Embora a personagem devote-se totalmente a ele, o discurso ficcional evidencia que a recompensa de todo seu apoio e empenho vem apenas sob a forma de abandono por parte dele e menosprezo e discriminação por parte da 292

Nossa tradução: [...] seria a pequena, a minúscula vitória de quem foi a grande derrotada em uma história de triunfos. 293 Recomendamos a leitura da dissertação Figurações de uma heroína invisível: ressignificações de Beatriz Enríquez de Harana pela literatura (2021), de Amanda Maria Elsner Matheus – orientada por nós, em parceria com o Professor Dr. Marcio da Silva Oliveira –, defendida na Unioeste-Cascavel-PR, para mais informações e aprofundamentos de conhecimentos sobre essa personagem de extração histórica ressignificada na ficção. 294 Nossa tradução: A jovem garota levantou-se com um olhar de maravilhamento e reverência fixado no homem, cuja face, em sua suave bondade, era como a da representação de um santo, e cuja forma máscula e vigorosa expressava energia e força.

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sociedade, uma reconfiguração romanesca precisa da época em que viveu Beatriz. A primeira das reações é recíproca, pois, segundo relata o narrador, Colombo também se apaixonou por Beatriz assim que a viu: “All day the voice of Beatriz sounded in his ears, and her image was before him. He did not resist the pleasing allurements of his fancy, and it seemed an inevitable fate which led his steps in the cool of the evening to the house of Enríquez295” (DUBOIS, 1892, p. 29). Na diegese de DuBois, o relacionamento que se estabelece entre Colombo e Beatriz passa, desse modo, a ser o centro da narrativa na qual se busca mostrar a importância da participação de Beatriz na empresa de Colombo, seu incondicional apoio e permanente defesa diante de seus adversários. Trata-se de uma trajetória que parte do louvor às qualidades observadas no marinheiro – numa configuração quase mítica desse – até que essas se rompam pelo convívio com os firmes propósitos que moviam a existência da figura histórica de Colombo. Uma análise mais aprofundada também da obra de Paula DiPerna (1994) assinala, igualmente, que esse esquema se faz presente, de forma bastante consciente e crítica, também na obra contemporânea. Nela, o propósito não é mais apenas o de reclamar uma justiça tardia à memória de uma mulher que acompanhou grande parte da trajetória do navegante, mas o de inverter o ponto de vista da história, seguindo vários dos preceitos do romance histórico contemporâneo de mediação em seu empreendimento de ler criticamente o passado por meio de perspectivas excluídas do circuito escritural historiográfico. No contexto da escrita de mulheres sobre o encontro entre o universo cultural europeu e o nativo americano, no final do século XV e, consequentemente, os períodos de conquista e colonização que se seguiram nos séculos seguintes, está inserido, na atualidade, no âmbito da busca por outras perspectivas que não aquelas celebradas na historiografia. Contudo, parte dessa produção, igual como em toda a “poética do descobrimento”, está voltada à exaltação dos agentes colonizadores e das ações por eles efetuadas na intenção de construir, na América, sociedades moldadas às prerrogativas europeias conquistadoras e colonizadoras. Entre tais obras acríticas, produzidas no século XX, estão os romances estadunidenses The son of Dolores (1945), de Ida Mills Wilhelm e To the Indies (1949), de Cecil Scout Forester. Essas obras – que integram a galeria de obras de autoria feminina norte-americana anglo-saxônica da temática do “descobrimento” – são produções que seguem os padrões do Romantismo e apresentam discursos que louvam as qualidades e as ações de Colombo. Esse fato ratica como, mesmo

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Nossa tradução: O dia todo, a voz de Beatriz soou em seus ouvidos e sua imagem manteve-se à sua frente. Ele não resistia ao prazeroso fascínio que ela lhe provocava, e parecia um destino inevitável que conduziu seus passos na noite fresca à casa dos Enríquez.

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dentro de um campo bastante restrito – como a narrativa de autoria feminina –, a temática do “descobrimento” na literatura sempre foi dicotômica. No romance de Ida Mills Wilhelm (1945), por exemplo, a identificação herói/modelo é tão clara que até mesmo as ações de uma personagem para com a outra se repetem. Na diegese romanesca, ambientada, primeiramente, no período da Guerra de Granada, em 1492, a personagem Colombo heroicamente salva um soldado espanhol da morte por afogamento. Esse soldado, Carlos, torna-se o herói-protagonista do romance, encarnando todos os valores morais e religiosos cultivados na Espanha cristã dos Reis Católicos. As personagens de extração histórica, junto a outros nobres da corte, constituem, com suas ações registradas pelo discurso histórico, o ambiente histórico-social revisitado pela escrita híbrida de Ida Mills Wilhelm em 1945. O herói-protagonista jamais se esquecera do dia em que um estranho lhe salvara a vida. Como protótipo de homem de coragem, aventureiro e audacioso, a personagem Carlos se engaja na primeira expedição de Colombo, sem saber que esse fora o estranho que lhe havia salvado a vida. Na longa travessia empreendida pelo marinheiro, porém, é-lhe dada a chance de fazer o mesmo por Colombo. Isso se dá na ocasião quando se relata que os marinheiros – amotinados como se registra no Diário de bordo, de Colombo – procuram matar o comandante da Santa María, e é Carlos, dessa vez, o herói que salva a vida de Colombo. Entrelaçam-se seus destinos, suas ações e, com certeza, a identificação do público leitor com ambas as personagens. Será essa ideologia laudatória e apologética das escritas femininas estadunidenses da década de 1940 que ressoará fortemente, também, na primeira obra escrita por uma mulher sobre os eventos históricos de 1492 no espaço geográfico, histórico e cultural da Espanha do final da década de 1980, No serán las Indias (1988), de Luisa López Vergara. De acordo com Milton (1992, p. 105), esse romance “reconstitui, com abundância de detalhes, os sete anos de perambulação pela Corte Espanhola até o momento da aceitação do seu projeto, num período que vai de 1485 a 1492”. Da análise de No serán las Indias (1988), feita por Milton (1992), pode-se afirmar que o romance prima pela simbiose entre o fazer literário e o trabalho historiográfico, mantendo-se, pois, fiel aos registros históricos que, por sua vez, determinam e fixam os eventos e a sequência da renarrativização dos acontecimentos na ficção. Revela-se, na configuração geral da obra de Lopez Vergara (1988), conforme comenta Milton (1992), uma preocupação acentuada em delimitar as zonas ficcional e histórica, com recursos como glossários e um forte didatismo na explanação dos acontecimentos narrados. Milton (1992, p. 108) registra que, na obra de 1988, a exaltação volta-se para três distintas entidades: “[...] os três alinham-se no discurso como monumentos. Pinzón, pela grandeza do caráter e da atuação; a Espanha, pela ação heroica da Reconquista e por ter dado o aval à

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empresa ultramarina; e a Colombo, por ter perseguido tenazmente a realização do seu objetivo como um legítimo enviado de Deus [...]”. Assim, ao longo da trama são revelados os árduos embates que causaram as proposições de Colombo que apoiou a sua certeza da existência das terras além do Atlântico nas revelações que lhe foram feitas pelo misterioso Piloto Anônimo, que naufragou ao retornar dessas terras incógnitas e fora resgatado e hospedado por Colombo antes de morrer. Tal segredo, apenas confessado ao frei Marchena, é seu grande alento. Seus propósitos, porém, encontram na comunidade judaica ecos de apoio e, dessa forma, insere-se no contexto da obra toda a problemática dessa parcela da população da Espanha da época. A técnica narrativa empregada por López Vergara (1988), segundo analisa Milton (1992, p. 106), consiste no emprego de uma onisciência narrativa que “maneja os acontecimentos de forma a provocar o efeito da simultaneidade [...], permitindo ao narrador introduzir os diversos componentes históricos em suas relações de causalidade”. O resultado desse empreendimento da autora na geração das imagens escriturais de Colombo e das demais personagens históricas ficcionalizadas em No serán las Indias, como julga Milton (1991, p. 106), é “[...] uma bem-lograda peça literária”. Desse modo, a narrativa, mesmo fixando-se nas peregrinações de Colombo, dá conta, no seu intuito de reconstruir o passado de forma bastante mimética, dos aspectos referentes às “questões dos Reis Católicos e sua Corte, a guerra entre cristãos e mouros, os dilemas da comunidade de judeus, as crises internas do decadente império muçulmano, etc.” (MILTON, 1992, p. 106). O panorama histórico apresentado na obra fundamenta-se em registros históricos bem conhecidos. Com relação a Colombo, sua face humana é retratada pelo orgulho, a prepotência, a vaidade, a mentira, o engano, a infidelidade; contudo, ele é caracterizado, preponderantemente, de acordo com Milton (1992, p. 104-105), como “[...] alguém que acredita em si mesmo e na sua condição de eleito; é um ser dotado de paciência sobre-humana e de uma resistência incomum; é defensor ferrenho das suas idéias. Disso tudo advém a sua grandeza”. Ao concluir a análise do romance de Lopez Vergara (1988), a pesquisadora registra ainda que, embora a obra busque trabalhar o passado com isenção, o fato de nela se transformar a lenda do Piloto Anônimo em tese revela a opção histórica da autora. A mesma intenção de evidenciar a participação de personagens femininas nos eventos históricos de 1492 que está presente na obra inaugural da escrita feminina sobre Colombo, por DuBois, em 1892, vemos ecoar no final do século XX na literatura espanhola, na escrita de Sorkunde Francés Vidal, Isabel reina de América (1999). Nesse romance do final do século XX, alinhado às prerrogativas da modalidade tradicional do gênero romance histórico, busca-se exaltar e 259


recuperar, pelas vias da ficção, a imagem de uma personagem feminina nunca relacionada com as aventuras de Colombo: a infanta Juana – filha mais velha da rainha Isabel e do rei Fernando, conhecida na história pela alcunha de “ La Loca” pelos distúrbios psicológicos que, supostamente, apresentou após herdar o trono de Castela e Aragão, quando da morte de seus pais – trono que será assumido pelo seu filho, com Felipe de Habesburgo, Carlos V, monarca que, apoiado por seus conselheiros guiará, com mão de ferro, o processo de conquista da América. No romance de Francés Vidal (1999), é a infanta que se torna a fonte inspiradora e encorajadora da aventura do “descobrimento”, e a amizade que se estabelece entre a jovem e o marinheiro é uma forma de salvo-conduto para Colombo em meio aos campos de batalha na tomada de Granada. A exaltação à rainha Isabel – alcançada na obra pela descrição que se faz da soberana como mãe prestativa e zelosa, que não deixa de atender às necessidades dos filhos entre todos os afazeres que o trono e a guerra lhe impõem – espelha-se na configuração da infanta como uma jovem de vivo entendimento, sensível aos problemas alheios, empreendedora e perspicaz. A relação entre a política e a família, no romance de Francés Vidal, administrada com destreza pela rainha, é estampada quando essa precisa negociar os matrimônios de suas filhas: – Es importante – dijo la reina con cierto énfasis – muy importante para cualquier madre, casar bien a una hija. La dote debe aportar bien estar a la futura familia. A esto ha de añadirse que la dote se constituye como garantía política de que la unión favorezca las relaciones de todo tipo entre los dos reinos. Así pues, que bien puede aceptarse esa elevada cantidad, que pagaremos en tres años. Fraccionar la dote nos permite cumplir nuestro compromiso con dignidad y largueza. Reconocer nuestras dificultades y afrontarlas nos hace grandes. Es bueno mantenernos en deuda con Portugal si la causa es nuestra hija. Quizá así aprendemos a estimar a los portugueses296. (FRANCÉS VIDAL, 1999, p. 30).

Essa clareza de raciocínio e segurança nas decisões está também presente na configuração da infanta Juana que, em todos os sentidos, assemelha-se, na ficção de Francés Vidal, à sua mãe. É a infanta que ouve de Colombo, após uma frustrada tentativa de se entrevistar com a rainha, os seus planos de navegação via oeste, em um encontro ocasional em que a infanta 296

Nossa tradução: – É importante – disse a rainha com certa ênfase – muito importante para qualquer mãe, casar bem a uma filha. O dote deve agregar bem estar à futura família. A isto há de se juntar que o dote se constitua como garantia política de que a união favoreça as relações de todo tipo entre os dois reinos. Assim, pois, que bem possa aceitar-se essa elevada quantia, que pagaremos em três anos. Fracionar o dote nos permite cumprir nosso compromisso com dignidade e tranquilidade. Reconhecer nossas dificuldades e enfrentá-las nos faz grande. É bom mantermo-nos em dívida com Portugal se a causa disso é nossa filha. Talvez, assim, aprendamos a estimar os portugueses.

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pede ao desconhecido, que havia encontrado por acaso, que lhe contasse seus sonhos. Esse, ao começar seu relato, encanta e emociona a jovem: El caballero parecía la viva imagen de un iluminado: la voz ahora enronquecida, la mirada perdida, el gesto ausente. De repente comenzó a decir, como si de un delirio se tratara. – Yo, yo iré con tres naos. Yo llegaré al reino de Cipango… […]. Y en marear encontraré nuevas tierras, nuevas islas, y a la primera que encuentre le pondré tu nombre, pequeña. – Así pues, esa isla se llamará Juana. – Y, para que sepas que tan lejos he llegado, te traeré un pájaro verde que hablará y dirá tu nombre para asombro y maravilla de todos. […] ¿Qué te parece mi sueño? – ¡Eso es un sueño! Hermoso, imposible y tan grande… que nadie tendrá jamás otro semejante […]. Adiós, Caballero de la Rosa de los Vientos. No olvidéis nuestro sueño; no lo dejéis morir, porque nadie ha tenido ni tendrá otro semejante. – Adiós pequeña, para mí serás siempre la Princesa de la Estrella de los Vientos 297. (FRANCÉS VIDAL, 1999, p. 72-73).

Um forte vínculo se estabelece entre o navegante e a infanta, que passam a compartilhar o sonho da empresa marítima daí em diante. As muitas dificuldades pelas quais o navegante teve que passar foram, assim, de certa forma, amenizadas pelas palavras de conforto e crédito da jovem infanta e, uma vez concluído o projeto com êxito, as promessas são cumpridas e a infanta ganha de presente de Colombo um papagaio que fala seu nome. O pássaro está em uma gaiola de bambus cujos talos, ao serem abertos, estão cheios de esmeraldas – pedras verdes, da cor favorita da jovem. A descrição da volta de Colombo de sua viagem da travessia ao Atlântico é exemplar na configuração mítica que a obra lhe confere: El cabello apenas esparcido por la suave brisa, multiplicaba los brillos y reflejos del sol, que aureolaban su cabeza como si de un elegido de los dioses se tratara. La belleza de la estampa caló en el corazón de la gente sencilla, en los espectadores del puerto, que admiraban la fuerza de aquel hombre excepcional. 298 (FRANCÉS VIDAL, 1999, p. 381). 297

Nossa tradução: O cavalheiro parecia a viva imagem de um iluminado: a voz agora enrouquecida, o olhar perdido, o gesto ausente. De repente começou a dizer, como se de um delírio se tratasse. – Eu, eu irei com três naus. Eu chegarei ao reino de Cipango…[…]. E ao lançar ao mar encontrarei novas terras, novas ilhas, e a primeira que encontre colocarei teu nome, pequena. – Assim, pois, essa ilha se chamará Juana. – E, para que saibas que tão longe cheguei, irei trazer-te um pássaro verde que falará e dirá teu nome para assombro e maravilha de todos. […] Que te parece meu sonho? – Isso é um sonho! Lindo, impossível e tão grande… que ninguém terá jamais outro semelhante […]. Adeus, Cavalheiro da Rosa dos Ventos. Não esqueça nosso sonho; não o deixes morrer, porque ninguém teve, nem terá outro semelhante. – Adeus pequena, para mim serás sempre a Princesa da Estrela dos Ventos. 298 Nossa tradução: O cabelo apenas espargido pela suave brisa multiplicava os brilhos e reflexos do sol, que aureolavam sua cabeça como se de um eleito dos deuses se tratasse. A beleza da estampa fixou-se no coração da gente simples, nos espectadores do porto, que admiravam a força daquele homem excepcional.

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Um processo semelhante ao observado por Milton (1992) quanto à dimensão da exaltação presente na obra de Luisa Lopes Vergara (1988) dá-se, também, nesse romance: erigem-se como monumentos de exaltação as figuras de Isabel, a rainha; de Juana, a infanta – que, juntas, representam a Espanha sensível e empreendedora; e de Colombo – como o audaz e intrépido marinheiro que ousou levar adiante o sonho que compartilhou com a jovem filha dos Reis Católicos. Essa tendência literária tradicional de aliar-se às escritas historiográficas hegemônicas para tratar do passado que levou a Europa e a América a protagonizarem um dos maiores massacres da história da humanidade constatada, também, nas obras de autoria feminina, constitui-se aspecto indiscutível ao longo de toda a trajetória das escritas romanescas inseridas no âmbito da “poética do descobrimento”. Interessante, contudo, é notar que, assim como os espaços geográficos e histórico-culturais laudatórios e apologéticos dessas escritas sofreram um considerável abalo no período anterior e logo posterior às comemorações do V centenário da primeira travessia de Colombo ao Atlântico, a escrita das mulheres sobre esse passado que uniu as distintas culturas da Europa e da América, em 1492, também soube alinhar-se a essa nova tendência crítica/mediadora que se faz frutífera, nesse contexto das escritas de autoria feminina, a partir da década de 1990. Assim, após o forte impacto que as obras críticas/desconstrucionistas da segunda fase da trajetória do gênero romance histórico – com destaque para El arpa y la sombra (1979), El mar de las lentejas (1979), Perros del Paraíso (1983), Cristóbal Nonato (1987), The memoirs of Christopher Columbus (1987), Vigilia del Almirante (1992), The heirs of Columbus (1991), The Accidental Indies (2000), encontraram espaço de acolhida em traduções e em estudos acadêmicos em diferentes universidades ao redor do mundo, a escrita das mulheres encontra na mais nova tendência crítica/mediadora – instaurada na temática colombina pela obra Crónica del descubrimiento (1980), do uruguaio Alejandro Paternain – as suas vias de ressignificação do passado nas escritas híbridas de história e ficção. Dentro dessa modalidade mais atual de escritas híbridas, encontramos um conjunto significativo de romances de autoria feminina, destacado no nosso Quadro VI: Colombo de Terrarrubra (1994), de Mary Cruz (Cuba); The discoveries of Mrs. Christopher Columbus – his wife’s version (1994), de Paula DiPerna (EUA); e La ruta de las tormentas (2005), de Paula Cifuentes. Não podemos deixar de apontar que as obras representativas da mais atual modalidade de romance histórico – que já em 2007 denominamos de romance histórico contemporâneo de mediação – surgem nos três espaços geográficos, históricos, políticos e sociais mais vitais para a construção das imagens escriturais de Cristóvão Colombo: a literatura hispano-americana, a estadunidense e a espanhola.

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Na diegese da obra cubana de Mary Cruz, os acontecimentos narrados atêm-se a uma revisão do período histórico no qual as ações do navegante são protagônicas. Ao estabelecermos uma trajetória das imagens escriturais de Cristóvão Colombo, observamos que, na literatura, durante muito tempo, a chegada das esquadras europeias na América, comandadas por Colombo, foi retratada apenas sob a ótica masculina. Mais recentemente, escritoras de diversos países também têm se inspirado na história da conquista do “Novo Mundo” para comporem suas narrativas. Assim, a escritora cubana Mary Cruz descreve os preparativos, anseios, temores e expectativas das viagens de Colombo e sua tripulação no romance Colombo de Terrarrubra (1994), por meio do narrador/personagem Antón de Alamidos – figura histórica que integrou o grupo de marinheiros da primeira viagem de Colombo e que, ao embrenhar-se nas selvas americanas, acabou se perdendo e, assim, permaneceu por vários anos vivendo entre os nativos até conseguir regressar à Espanha. Mary Cruz cria uma diegese na qual Cristóvão Colombo é concebido sob diferentes olhares, passando de mero “estrangeiro aventureiro” até o auge de sua carreira, com o acúmulo de títulos e glórias. A narrativa, todavia, não aborda apenas a ascensão de Colombo, nem sua imagem de homem sábio e bondoso. O narrador, que se utiliza da visão e voz de Antón de Alamidos, deixa transparecer seu descontentamento em relação a algumas atitudes do comandante, como os castigos impostos aos nativos em determinadas circunstâncias. Além disso, a personagem-protagonista, Antón Alamidos, narra a decadência do prestígio de Colombo perante a sociedade espanhola e dos Reis Católicos, soberanos da Espanha à época. Assim, a autora cria uma narrativa que, ao fundir ficção e história, revela imagens escriturais de Cristóvão Colombo em sua essência humana, expondo toda sua altivez e, também, suas muitas fraquezas. O romance de Mary Cruz mostra que Colombo queria, de fato, ao comandar as navegações rumo ao Ocidente, uma lista de honrarias e privilégios materiais. Um de seus desejos era ser reconhecido como “Almirante do Mar Oceano”. O marinheiro acreditava que “únicamente poniendo títulos, honores y hacienda, seríale reconocida esa gloria 299” (CRUZ, 1994, p. 462). E é exatamente isso que se observa em Colombo de Terrarrubra: Pidió a Sus Altezas el Almirantado de todas las islas y tierras firme que descubriese, para durante su vida y para sus herederos uno tras otro perpetuamente, así como el Virreinato y la Gubernatura general de dichas islas y tierra firme, mas el diezmo de cuanto provecho produjesen los descubrimientos en perlas, piedras preciosas, oro y demás, y el ochavo de lo que resultare de los navíos que se armasen para descubrir, 299

Nossa tradução: [...] unicamente adquirindo títulos, honras e propriedades, essa glória lhe seria reconhecida.

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cada y cuando contribuyese él con el pago de la ochena parte 300 (CRUZ, 1994, p. 111-112).

Apesar das imposições feitas, os reis espanhóis concluíram que, “abriendo él un camino libre de peligros y trabas al Oriente, España será dueña de todo el comercio de Europa en sedas, especias, oro, perlas, perfumes... orientales 301” (CRUZ 1994, p. 112). Feitos os acordos e realizada a travessia, Colombo chega ao que imagina ser esse oriente tão promissor. Como testemunha das ações do navegante, a personagem Antón declara que “los ojos del Almirante proyectaban sobre las cosas lo que deseaba o suponía él, y si bien llegó a saber lo enorme de su Descubrimiento, no calibró la inmensidad de sus errores, los cuales, no empeciente, en nada minoran su hazaña 302” (CRUZ, 1999, p. 268). Destaca-se, nessas palavras da voz enunciadora, a importância da perspectiva intradiegética e da voz homodiegética da personagem testemunha das ações eleita por Mary Cruz entre as personagens de extração histórica marginalizadas nos relatos historiográficos. Isso possibilita ao narradorprotagonista analisar as ações de Colombo com base naquilo que ele próprio, como integrante da frota que atravessou o Atlântico em 1492, presenciou ao longo do convívio com o navegante. A obra de Mary Cruz – um romance histórico contemporâneo de mediação pela estrutura e recursos que apresenta – assemelha-se ao romance de Paula DiPerna (1994), com a diferença de que, nesse último, há a presença de um foco narrativo feminino que, em uma perspectiva autodiegética, revela como as motivações de Colombo e sua empresa “descobridora” afetaram a sua existência. Esse é um elemento que destacamos como especial na obra de autoria feminina, uma vez que a inserção desse foco narrativo no contexto do evento histórico pode ser bastante significativa, como, a seguir, discutiremos com mais detalhes. No enfrentamento entre as imagens públicas e privadas das personagens históricas recriadas pela ficção, os atos humanos ganham a sua plenitude e o leitor vê-se, assim, retratado nessa realidade que fica aí plasmada. Os estudos da crítica feminista – desde suas primeiras manifestações – sempre estiveram atentos a essas possibilidades da literatura e buscam, sob diferentes 300

Nossa tradução: Pediu a Suas Altezas para ser o Almirante de todas as ilhas e terras firmes que descobrisse, para durante sua vida e para a de seus herdeiros um após o outro perpetuamente, assim como o Vice-reinado e a Governança geral de ditas ilhas e terra firme, mais o dízimo de quanto proveito produzissem os descobrimentos em pérolas, pedras preciosas, ouro e demais, e a oitava parte do que resultasse dos navios que se armassem para descobrir, cada e quando contribuísse ele como o pagamento da oitava parte. 301 Nossa tradução: [...] abrindo ele um caminho livre de perigos e entraves ao Oriente, a Espanha será a dona de todo o comércio da Europa em sedas, especiarias, ouro, pérolas, perfumes... orientais. 302 Nossa tradução livre: […] os olhos do Almirante projetavam sobre as coisas o que desejava ou supunha ele, e se bem chegou a saber da dimensão de seu Descobrimento, não calculou a imensidão de seus erros, os quais, não obstante, em nada diminuíram a sua façanha.

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meios e estratégias, um espaço próprio que lhes garanta a inclusão, a representação e a valorização adequadas. Essa também é a intenção que se comprova no romance de Paula DiPerna (1994) que, a seguir, enfocamos com mais atenção. A obra de Paula DiPerna, The discoveries of Mrs. Christopher Columbus – his wife’s version (1994), chama a atenção, entre outras, por duas razões especiais: propõe uma versão da história de Colombo sob a perspectiva de uma mulher, numa obra de autoria feminina e, além disso, aventura-se a recriar, no espaço protagônico, uma das personagens femininas mais misteriosas da história de Colombo: Felipa Moniz Perestrelo – a esposa portuguesa do marinheiro e mãe de seu primeiro filho, Diego Colombo. A morte misteriosa de Felipa – que a história pressupõe tenha ocorrido entre 1478-1484 – parece ter sido um dos fatores que levaram Colombo a deixar Portugal e buscar apoio na corte espanhola. A posição da história a respeito de Felipa, de quem não há sequer registros sobre a causa, data exata e local de falecimento, nem notícias certas sobre onde poderia estar sepultado seu corpo – que se crê seja a Capela da Piedade em Lisboa –, revela a qual das categorias a jovem portuguesa da classe média pertencia. Dar espaço à manifestação da voz de Felipa no campo da arte literária é, pois, um aspecto relevante da obra de Paula DiPerna. O arriscado universo das navegações marítimas do período dos grandes “descobrimentos”, ambiente em grande parte hostil e exclusivamente masculino, é, assim, na ficção de DiPerna, vivenciado por uma mulher dotada de sensibilidade e detentora de conhecimentos que lhe possibilitam registrar, da mesma forma como fez Colombo, as suas aventuras ao longo da jornada que proporcionou o primeiro enfrentamento entre os aventureiros europeus que buscavam os fabulosos reinos do Gran Kan, descritos por Marco Polo, e os pacíficos habitantes taínos da ilha de Ganahaní, em outubro de 1492. A primeira obra ficcional de DiPerna (1994) é, dessa forma, constituída pelos registros feitos no “diário de bordo da Sra. Colombo” contendo, também, suas reflexões sobre seu passado, enquanto estava viajando na nau Santa María, em seu trajeto rumo ao “Novo Mundo”. Uma estratégia que parodia o documento oficial do Diário de Colombo, no qual o navegante menciona os acontecimentos por ele vivenciados desde a sua partida da Espanha, em 3 de agosto de 1492, até o seu regresso, em 15 de março de 1493. A narrativa romanesca de DiPerna simplesmente ignora o fato histórico da morte de Felipa Moniz Perestrelo, ocorrida antes mesmo de Colombo haver partido de Portugal para a Espanha, em 1487, em busca de apoio a seu projeto de navegação, bem como o envolvimento de Colombo com a jovem Beatriz Enríquez de Harana, de Córdoba. Também se omite, ao longo da diegese, a existência dos filhos de Colombo: tanto Diego, filho de Felipa, como Fernando, filho de Beatriz, não integram o universo ficcional delineado pela romancista. 265


Assim, a esposa portuguesa de Colombo torna-se, no relato ficcional, tripulante da expedição “descobridora” financiada pelos Reis Católicos, após tentativas frustradas de apoio ao projeto apresentado à corte portuguesa. Desse modo, gozando da liberdade que a ficção lhe oferece, a narrativa vale-se desse privilegiado ponto de vista para dar à experiência única de Colombo uma visão feminina e garantir a essa personagem histórica uma existência imaginativa, cheia de vida e de realizações. A configuração da protagonista atende ao que Luckás (1977) expressa sobre a intensificação dos traços da própria vida numa personagem ficcional, fato que ocorre com a construção de Felipa na obra de DiPerna, pois essa personagem, lentamente, permite-se conhecer quem era, de fato, o seu marido e, mais profundamente ainda, descobrir-se como sujeito, mulher capaz de viver uma história própria, escrita e planejada por ela mesma. Outro aspecto instigante em relação ao romance de DiPerna vem da obra Imagining Columbus – the literary Voyage (2001), de Ilan Stavans. No segundo capítulo – “Biographical sketches” –, o autor estadunidense registra: “Most life accounts of Columbus have been produced by writers in the United States and Europe – Italians, British, Austrians, Spaniards, or Portuguese .303” (STAVANS, 2001, p. 16). Aí o autor insere uma nota, editada no final da obra, e segue: “All mature males in their forties. Their accent is always on the masculine qualities of the mariner, on his wisdom or foolishness, on his courage and struggle for power or on his sensibility and loving care for family and friends.304.(STAVANS, 2001, p. 16). Comentário condizente com a maior parte dos fatos conhecidos e registrados na história não fosse a inserção da nota, que comenta: “Not a single female author has ever written a biography of Columbus. The only work written by a woman is the novel ‘The Crown of Columbus’ (1991), actually by the married couple Michael Dorris and Louise Erdrich 305” (STAVANS, 2001, p. 131-132). Ao longo deste estudo, temos, contudo, revelado que a história de Colombo tem sido alvo da escrita ficcional feminina já desde o período do Romantismo, estendendo-se à contemporaneidade, especialmente no contexto norte-americano anglo-saxônico, que, à época da publicação da obra de Stavans (2001), contava, no mínimo, com as obras de DuBois (1892), de Wilhelm (1945), de Forester (1949) e de DiPerna (1994). Stavans (2001), porém, revela que, desse universo literário feminino, é um total desconhecedor, pois apenas menciona no contexto estadunidense a obra The crown of Columbus (1991), escrita pelo casal Michael Dorris e Louise Erdrich. 303

Nossa tradução: A maioria dos trabalhos acerca da vida de Colombo tem sido produzida por autores nos Estados Unidos e Europa – italianos, britânicos, austríacos, espanhóis e portugueses. 304 Nossa tradução: Todos eles homens maduros, em seus 40 anos. Sua ênfase é sempre voltada aos modos másculos do marinheiro, à sua sabedoria ou sua tolice, à sua coragem e luta por poder ou à sua sensibilidade e carinho para com sua família e seus amigos. 305 Nossa tradução: Nem uma única escritora escreveu uma biografia de Colombo. A única obra já feita por uma mulher foi o romance The Crown of Columbus (1991) – A Coroa de Colombo – (1991), na verdade, trata-se de um trabalho feito pelo casal Michael Dorris e Louise Erdrich.

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O pesquisador estadunidense não lança, da mesma forma, nenhum olhar à literatura espanhola do século XX que, no campo da produção escritural híbrida realizada por romancistas mulheres, contava, ao menos com as obras No serán las Indias (1988), de Luisa López Vergara e Isabel, reina de América (1999), de Sorkunde Frances Vidal. Além disso, a obra de Mary Cruz, Colombo de Terrarrubra (1994), é, da mesma forma, publicada antes de Columbus – the literary Voyage (2001), de Ilan Stavans. Essas produções ficcionais de imagens escriturais de Colombo na escrita de mulheres americanas e europeias contradizem a rotunda afirmação de que “a única obra já feita por uma mulher foi o romance The Crown of Columbus (1991) [...] feito pelo casal Michael Dorris e Louise Erdrich”, de Ilan Stavans (2001). Assim, reunimos, neste nosso estudo, um conjunto de obras do universo literário ficcional de Colombo na escrita de autoria feminina da Espanha e da América – sem nenhuma pretensão de sermos totalizadores –, mas na intenção de evitarmos incorrer nos mesmos deslizes de outros escritores e pesquisadores impulsionados por uma tendência generalizadora. A literatura estadunidense é já campo literário dicotômico, plural, em relação à temática colombina. A menção de Ilan Stavans (2001) de The crown of Columbus (1991), do casal Michael Dorris e Louise Erdrich – que não mencionamos em nossa tabela VI, por ser essa uma coautoria –, é, também, exemplar nesse sentido. O romance é dividido em capítulos organizados pela sequência do enfoque que cada um dá a uma das personagens protagonistas: Vivian Twostar e Roger Williams – Vivian professora de Antropologia, divorciada, com um filho envolvido com drogas e grávida de Roger, professor de Literatura, quem pretende publicar, antes das festividades do quinto centenário do “descobrimento” da América, um poema épico em homenagem a Colombo. Já Vivian tem como objetivo publicar um texto sobre o “descobrimento”, porém, não consegue decidir-se a fazê-lo e tampouco a começar o projeto. Assim, a narrativa enfoca o interesse de cada um deles e acaba criando uma aventura policial, pois ela descobre uma página inédita do Diário de Colombo, que os leva a envolverem-se com um sujeito que está de posse do restante do original do Diário. Esse homem sempre esteve em busca de um grande tesouro mencionado no manuscrito, cuja localização dependia da página em mãos de Vivian. Desse modo, o poema de Roger retoma toda a trajetória lírica gloriosa dos séculos XVII e XVIII da temática do “descobrimento” na América do Norte anglo-saxônica e a aventura dela leva-os a, finalmente, desvendar o mistério do tesouro mencionado no original do Diário, que o grupo, finalmente, após inúmeras aventuras, encontra: ‘What we have here is Europe’s gift to America’. […]. Like Cobb, I had expected jewels. Diamonds, rubies, emeralds. I had expected gold, the most valuable thing, the

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object that in and of itself was supposed to so dazzle the people Columbus found that they would welcome all those who came after. ‘It was a crown after all,’ Mom said. And it was a crown, no mistake. I recognized it from the picture over Gradma’s bed: It was the Crown of Thorns.306 (DORRIS – ERDRICH, 1991, p. 501-502).

Assim, revela-se que Colombo fora imbuído da tarefa de trazer algo especial ao “Novo Mundo”: nada menos que a coroa de espinhos que fora posta em Jesus Cristo, quando de sua crucificação. A imagem de Colombo como o homem que carregou Cristo – Cristopherens – através do oceano, reiterada em sua primeira biografia, escrita por seu filho Fernando Colombo, concretiza-se nessa narrativa contemporânea. Na literatura espanhola, a figura de Colombo serviu, a princípio, como tema para a escrita de autoria feminina com propósitos voltados ao interesse geral da temática nesse contexto, ou seja, a exaltação da empresa descobridora – com destaque sempre para o empreendedorismo dos Reis Católicos, que financiaram a empresa colombina –, a força, a coragem e a dedicação dos marinheiros espanhóis envolvidos no projeto – especialmente os irmãos Pinzón – e a ampliação dos horizontes humanos alcançada com tal empresa, como já mencionamos estar presente na obra de Luiza Lopez Vergara (1988), No serán las Indias e Isabel, reina de América (1999), de Sorkunde Francés Vidal. A temática do “descobrimento”, nesse universo, além da continuação da prática laudatória da empresa do “descobrimento” que tendeu fortemente para a linha tradicional do romance histórico em termos de estrutura, também alcançou, na escrita de autoria feminina, a passagem da fase tradicional acrítica, ainda da primeira fase das expressões do romance histórico, às ressignificações críticas/mediadoras da terceira fase das escritas híbridas de história e ficção. Essa tendência crítica/mediadora, da terceira fase da trajetória das escritas híbridas de história e ficção inseridas na “poética do descobrimento”, produzidas por mulheres, chega ao universo da literatura espanhola do século XXI, concretizando-se em La ruta de las tormentas: diário de a bordo do Hernando Colón (2005), de Paula Cifuentes, que trata de uma série de aventuras e desventuras vivenciadas por Fernando Colombo durante a quarta e última viagem empreendida por seu pai, Cristóvão Colombo, à América, de cuja tripulação historicamente o jovem fez parte. No decorrer da diegese, Fernando Colombo manifesta-se enquanto narrador autodiegético, revelando sua psicologia, seus medos e suas contradições. Ao subjetivar o material histórico, o narrador rememora também o passado vivenciado ao lado do pai, Colombo, de sua mãe, Beatriz Enríquez 306

Nossa tradução: ‘O que temos aqui é o presente da Europa à América’. [...]. Como Cobb, eu esperava pedras preciosas. Diamantes, rubis, esmeraldas. Eu esperava ouro, a coisa mais valiosa, o objeto que em si e por si deveria ter deslumbrado as pessoas que Colombo viesse a encontrar e que lhes faria hospitaleiros a todos que viessem depois dele. ‘Era uma coroa, afinal’, disse mamãe. E era uma coroa, sem dúvida. Eu a reconheci da fotografia sobre a cama de vovó. Era a Coroa de Espinhos.

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de Harana, personagem “ex-cêntrica” (HUTCHEON, 1991), e, em analepses, relembra dos momentos em que se encontrava vivendo na corte espanhola, junto aos Reis Católicos. Segundo a nossa perspectiva crítica, Cifuentes (2005), de acordo com as estratégias escriturais empregadas e sua intenção ao reler o passado pela ficção, pode ser filiada à terceira fase do romance histórico, na qual se enquadram as atuais produções denominadas “romances históricos contemporâneos de mediação”, modalidade que estabelecemos como a mais atual e recorrente manifestação híbrida do gênero romance histórico em nossa obra de 2017. Sendo assim, a narrativa inicia-se no momento de vigília de Fernando, que, em diálogo direto e em tom irônico, decide contar os eventos notáveis de sua vida, revelando, inclusive, os pensamentos e sentimentos que o atormentavam – como a descoberta de sua homossexualidade ou suas constantes críticas a respeito do abandono sofrido por parte dos pais –, tal característica, como vemos, enquadra-se na sexta premissa dessa modalidade, que é a utilização de recursos metaficcionais. A obra busca recriar os eventos históricos de modo linear, no entanto, não deixa de manipular o tempo da narrativa na diegese, promovendo retrospectivas e avanços no emprego de analepses e prolepses, que vislumbram os tempos entre a vigília, as recordações da quarta viagem (principal tempo narrativo), com momentos da infância e projeções para além da morte do protagonista narrador. Ocorre, assim, por meio das reflexões da personagemprotagonista, um intenso processo de humanização de figuras históricas como o “descobridor” Cristóvão Colombo e seu segundo filho, Fernando Colombo. Além disso, inclui-se, na ressignificação crítica que faz do passado, imagens de uma personagem negligenciada pelos registros históricos tradicionais, ou seja, da companheira de Colombo e mãe de Fernando, Beatriz Enríquez de Harana. Na escrita de autoria feminina sobre Colombo, os relatos da cubana Mary Cruz (1994) – Colombo de Terrarrubra –, da estadunidense Paula DiPerna (1994) – The discoveries of Mrs. Christopher Columbus: his wife’s version – e da espanhola Paula Cifuentes (2005) – La rutra de las tormenta: diario de a bordo de Hernando Colón – configuram-se, segundo o que consideramos, na modalidade mais atual do gênero a qual denominamos de romance histórico contemporâneo de mediação (FLECK, 2007-2017). Essa tendência mais atual de narrativa híbrida de ficção e história surge, precisamente, como reação dos escritores mais jovens às narrativas altamente experimentalistas do boom da literatura latino-americana, em especial aquela escrita por volta da década de 1970 do século XX e, no princípio do século XXI. A nova tendência crítica/mediadora constitui-se na tipologia mais explorada do gênero na “poética do descobrimento” a partir da década de 1980, pois essa é uma das formas narrativas que conseguiu, nos últimos anos, conquistar grande popularidade, com um público leitor consagrado e bastante 269


variado. Essas escritas híbridas mais atuais diferem dos romances históricos tradicionais, especialmente por questões discursivas, mas se valem de alguns de seus elementos estruturais – como a linearidade temporal dos eventos recontados, a linguagem fluída e a busca pela verossimilhança – por um lado e, por outro, aproximam-se, em certos aspectos discursivos, às tendências do novo romance histórico latino-americano – pela criticidade de seu olhar sobre o passado – ao empregar recursos como a paródia, a ironia, as intertextualidades e as perspectivas periféricas. Contudo, tais escritas abandonam o experimentalismo linguístico e estrutural que o caracteriza – para voltar-se a uma configuração menos elaborada. Dessa maneira, o romance histórico contemporâneo de mediação compõe-se, pois, de alguns aspectos oriundos das modalidades do gênero que o antecederam. Entre as especificidades dessas narrativas, podemos mencionar: 1- O romance histórico contemporâneo de mediação procede à ressignificação crítica do passado, diferentemente das narrativas mais tradicionais, cujo objetivo consiste em ensinar história ao leitor e, por consequência, seu discurso corrobora as prerrogativas da historiografia tradicional sob os quais os fatos recriados foram, em primeira instância, registrados. Assim, na literatura estadunidense, a obra crítica/mediadora The discoveries of Mrs. Christopher Columbus: his wife’s version (1994), de DiPerna, difere discursivamente da empresa de Cooper (1840), em Mercedes of Castile, or, the voyage to Cathay, ou The son of Dolores (1945), de Ida Mills Wilhelm, que buscam conferir autenticidade aos eventos históricos que, de forma mimética, procuram recriar. 2- A ressignificação ficcional do passado ocorre por meio de um relato que segue a linearidade cronológica dos eventos recriados, fixando-se neles para promover o avanço do relato. Nesse, inserem-se manipulações mais tradicionais do tempo da narrativa, como analepses e prolepses, promovendo retrospectivas ou avanços na diegese. Tal manipulação temporal não se configura, contudo, em anacronias exageradas ou sobreposições de diferentes tempos históricos ou narrativos na tessitura do romance, como é típico nas modalidades do novo romance histórico latino-americano ou das metaficções historiográficas, como, por exemplo, ocorre em The memoirs of Cristopher Columbus (1987), de Stephen Marlowe e The Aztec Chronicles – the true History of Christopher Columbus as narrated by Quilaztli of Texcoco (1995), de Joseph P. Sánchez. 3- O foco narrativo privilegia visões periféricas, marginalizadas ou excluídas dos anais da historiografia. Embora o discurso se faça dialógico e polifônico, normalmente, o relato centra-se na voz enunciadora do discurso fixada em um único foco, manifestando-se em nível intradiegético e voz homo ou autodiegética, subjetivando o material histórico incluído na diegese. Exemplo dessa focalização é o romance de Paula DiPerna (1994), centrado em Felipa Moniz Perestrelo –, mas que também ocorre com o foco de Colombo de 270


Terrarrubra (1994), de Mary Cruz. Esses romances diferem das narrativas poliperspectivistas, comuns dos novos romances históricos latino-americanos, como El mar de las lentejas (1979), de Antonio Benítez Rojo, e El arpa y la sombra (1979), de Alejo Carpentier, que abordam um mesmo passado sob diferentes pontos de vista. 4- A linguagem empregada no relato é, normalmente, amena e fluída. As frases são, geralmente, curtas e elaboradas de preferência em ordem direta e com um vocabulário mais coloquial, voltado mais ao domínio comum do que ao erudito. Essas obras, porém, dão especial atenção ao processo narrativo e, em vários casos, modernizam a linguagem dos tempos passados para aproximála daquela empregada pelos seus leitores. Em tais romances contemporâneos de mediação, vê-se um uso bastante discreto da heteroglossia, dos neologismos, dos arcaísmos presentes, por exemplo, em obras como El mar de las lentejas (1979), de Antonio Benitez Rojo, Cristóbal Nonato (1987), de Carlos Fuentes, entre outros. Nessas últimas obras, o manejo e experimentalismo com a linguagem é constituinte essencial das modalidades críticas/desconstrucionistas. 5- O discurso romanesco constitui-se, com o emprego de recursos como a paródia, a polifonia, a dialogia e as intertextualidades, procedimentos que, também, são essenciais na constituição dos novos romances históricos e das metaficções historiográficas. Tais recursos são, preferencialmente, utilizados em detrimento de outros, mais fortemente desconstrucionistas, como a carnavalização, a ironia e o grotesco, amplamente empregados por romancistas da fase crítica/desconstrucionista como Abel Posse, Augusto Roa Bastos e Stephen Marlowe, por exemplo, em suas configurações de Cristóvão Colombo. 6- O romance histórico contemporâneo de mediação utiliza-se de alguns recursos metanarrativos, ou comentários do narrador sobre o processo de produção da obra, sem que esses se constituam no sentido global do texto. Esse uso moderado de estratégias metaficcionais revelam ao leitor alguns dos processos de seleção, manipulação e ordenação da narrativa por meio da presença de um diálogo entre a voz enunciadora do discurso e seu narratário. A função do emprego desses procedimentos metanarrativos objetiva, na maioria das vezes, localizar o leitor no espaço e no tempo do relato, especialmente quando se emprega alguma manipulação temporal. Isso é visível em The discoveries of Mrs. Christopher Columbus: his wife’s version (1994), de Paula DiPerna, quando a voz narrativa anuncia ao seu narratário que procederá a uma analepse, ou seja, promover uma ruptura temporal na linearidade narrativa e recorrer às lembranças do passado. Os romances históricos contemporâneos de mediação escritos por mulheres – como Colombo de Terrarrubra (1994), de Mary Cruz, The discoveries of Mrs. Christopher Columbus: his wife’s version (1994), de Paula DiPerna e La ruta de las tormentas: diario de a bordo de Hernando Colón (2005), de Paula Cifuentes –, ao optarem por uma linearidade narrativa mais fixa, assim como pelas outras características que acima apontamos, tornam a leitura do texto menos 271


complexa. Isso, contudo, não significa que elas deixem de requisitar a participação ativa do leitor, que precisa estabelecer as relações entre os textos que o procederam e dar-se conta da proposta crítica que subjaz à produção. Ao fazer uso mais moderado da “sinfonia bakhtiniana” – mencionada por Menton (1993) como integrante dos novos romances históricos latinoamericanos –, a compreensão do discurso, em obras da modalidade do romance histórico contemporâneo de mediação, é mais acessível aos leitores menos experientes e especializados. Tais produções da terceira fase da trajetória do gênero híbrido de história e ficção são resultados dos cruzamentos que ocorreram entre as características mais tradicionais do gênero, acrescentando-lhes a criticidade de uma releitura ressignificadora do passado, com as peculiaridades dos modelos críticos/experimentalistas e que compõem a modalidade dos novos romances históricos latino-americanos e, mais recentemente ainda, das metaficções historiográficas plenas. O romance histórico contemporâneo de mediação escrito por mulheres tem exemplos adequados – dentro da “poética do descobrimento” – na literatura estadunidense, tal como a obra The discoveries of Mrs. Christopher Columbus: his wife’s version (1994), de Paula DiPerna; no contexto hispano-americano, o romance Colombo de Terrarrubra (1994), de Mary Cruz; e, no espaço da literatura espanhola contemporânea, com a produção de La ruta de las tormentas: diario de a bordo de Hernando Colón (2005), de Paula Cifuentes. Tal dimensão alcançada pela mais recente modalidade de escrita híbrida de história e ficção revela a importância que tem a teoria que diferencia essas escritas críticas/mediadoras daquelas altamente experimentalistas e desconstrucionistas da segunda fase de produção do gênero. O abandono do experimentalismo linguístico e formal nessas obras mais atuais do gênero também deixa claro que não é adequado, apenas pelo teor crítico que esses romances apresentam, que elas sejam equiparadas às produções revolucionárias que instituíram a separação entre os dois grupos de romances históricos na década de 1949: os apologéticos/acríticos e os críticos/desconstrucionistas, e, assim, sejam classificadas como novos romances históricos ou como metaficções historiográficas. Entre os vários motivos da inadequação mencionada – de classificar os romances de mediação como novos romances históricos ou metaficções historiográficas – está o processo de leitura que cada uma das modalidades de escritas híbridas requer: os novos romances históricos latino-americanos e as metaficções historiográficas são material discursivo de difícil compreensão para leitores não especializados e que não estejam em graus avançados na trajetória da formação leitora. Já a modalidade do romance histórico contemporâneo de mediação, pela linearidade da narrativa, pela linguagem fluída, amena e coloquial, pelo foco narrativo centralizado é uma leitura acessível para leitores ainda em processo intermediário de formação leitora. 272


Essa via crítica/mediadora mais atual tem, assim, possibilitado expressões não laudatórias e nem mitificadoras, acessíveis a um público muito amplo, sobre as personagens do passado que uniu a Europa à América sem a necessária desconstrução discursiva carnavalizada, irônica, grotesca, anacrônica, pluriperspectivista das décadas de 1970 até 1990, em especial, em escritas que evidenciam um diálogo ainda necessário entre as diferentes correntes ideológicas que elaboraram, ao longo dos séculos, os distintos discursos que enunciam um oceano de imagens escriturais dicotomizadas de Cristóvão Colombo entre nós.

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PALAVRAS FINAIS Frente ao exposto ao longo deste estudo, fica evidente que há, no contexto das produções de imagens escriturais sobre Cristóvão Colombo e suas ações, um oceano de discursos dissonantes que evocam o passado que registrou o “descobrimento” da América por Cristóvão Colombo: um projeto exaltador, apologético e mitificador da imagem do marinheiro e suas ações e outro crítico/desconstrucionista que, em algum momento, abandona os experimentalismos linguísticos e formais que estruturavam obras impugnadoras dos discursos históricos e ficcionais benevolentes ao marinheiro para, então, transformar-se em um discurso crítico/mediador. Nesse sentido, embora se edifiquem aspectos da tendência contemporânea crítica/mediadora – como o uso de relatos feitos em primeira pessoa centrados em vozes ex-cêntricas e a subjetivação da história –, os recursos escriturais aplicados à ficção pela grande maioria dos romancistas espanhóis na tessitura das obras romanescas da temática colombina distanciamse, ainda, do discurso paródico, irônico, carnavalizado, polifônico e dialógico empregado na grande maioria das obras dessa temática no contexto da literatura hispano-americana e já, em partes, também, na anglo-saxônica estadunidense. O diálogo entre as distintas correntes encontra no romance histórico contemporâneo de mediação a sua via mais frutífera. Tal modalidade crítica/mediadora de escrita híbrida de história e ficção já não precisa desconstruir imagens e discursos de modo tão ferrenho, pois essa necessária etapa de enfrentamento para a descolonização já foi realizada pela literatura hispano-americana das décadas do boom e do princípio do pós-boom. A ação crítica, ideológica e discursiva dos romances de mediação centra-se em evidenciar perspectivas muitas vezes marginalizadas, com discursos críticos ancorados em visões periféricas daqueles sujeitos que vivenciaram as ações do passado, mas não integram a galeria das personagens cujas vozes ressoam nos documentos e fontes oficiais que serviram à história tradicional hegemônica como “concretudes” para a escrita de sua versão unívoca do passado. No universo latino-americano, repetir, na atualidade, a configuração heroica de Colombo, mais de um século e meio depois da inauguração da temática na narrativa norte-americana anglo-saxônica, para avalizar o discurso colonizador de dentro mesmo do espaço colonizado é uma atitude escritural questionável, que revela a ainda forte presença de setores firmemente ancorados nos procedimentos seculares da colonização. A produção contemporânea do brasileiro Paulo Novaes (2006), e toda a ideologia colonizadora que dela ainda emana, destoa do cenário artístico literário crítico e consciente dos romancistas brasileiros que ressignificam o passado da colonização portuguesa em nossas letras. Tais escritores se unem 275


aos tons críticos/desconstrucionistas das demais nações latino-americanas que olham para o passado de colonização com intenções descolonizadoras, uma realidade que, por sorte, já vivemos na atualidade latino-americana como um todo. Assim, a literatura brasileira apresenta uma série de escritas híbridas de história e ficção que são críticas e desconstrucionistas com relação à colonização portuguesa, mas, em se tratando das imagens escriturais de Colombo, as poucas ocorrências alinham-se à produção de imagens mitificadoras, exaltadoras e apologéticas do “descobridor”, ecoando, no século XXI, as imagens heroificadas primeiras do marinheiro na literatura estadunidense do século XIX. O discurso edificante da vida e feitos de Colombo, proferido na voz do narrador da obra de Paulo Novaes (2006), parece reflexo daquele idealizador romântico, presente na obra de Washington Irving (1992, p. 13); “[...] las rigurosas y varias lecciones de su juventud le dieron aquellos conocimientos prácticos, [...] aquella indomável resolución, [...] que tanto le distinguieron después307”; ferozmente combatido pelo narrador de The memoirs of Christopher Columbus (1987), de Stephen Marlowe, porém, parafraseado pela personagem narrador frei Gorriccio em A caravela dos insensatos (2006). Essa diversidade das imagens escriturais sobre Colombo no espaço antes colonizado da América revela os diferentes estágios de conscientização da população do continente frente aos ditames e paradigmas coloniais vistos na atualidade. A produção de romances históricos tradicionais em terras latinoamericanas, no século XXI, com esse tom que se harmoniza com o discurso hegemônico da história tradicional sobre os europeus conquistadores da América, assinala como os processos de descolonização não são homogêneos e, além disso, revela setores culturais que seguem ainda mantendo em nossas terras as ideologias colonizadoras do passado. Assim, não se pode negar que ainda há no Brasil – como em outros países latino-americanos – resquícios fortes de colonialismo que possibilitam a escrita e publicação de obras com o teor de A caravela dos Insensatos (2006). Desse modo, os romances de tendência tradicional, como os de Luiza López Vergara (1988), de Francés Vidal (1999), de Edward Rosset (2002), e de Paulo Novaes (2006) são exemplos que provam a atualidade do emprego dos traços mais conservadores do gênero híbrido de história e ficção nas elaborações romanescas históricas feitas em nossos dias. Além do mais, nessas obras, podem-se destacar não só antigas ideologias europeias ainda em vigor entre os povos outrora dominados, como a supervalorização dos aspectos religiosos da empreitada “descobridora” de Colombo, assim como o fato do

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Nossa tradução: [...] as rigorosas e várias lições de sua juventude deram-lhe aqueles conhecimentos práticos, [...] aquela indomável resolução, [...] que tanto lhe distinguiram depois […]. (IRVING, 1992, p. 13).

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discurso ficcional servir ainda como aval das imagens consagradas pelo discurso histórico de sujeitos políticos que exerceram o poder, quase sem limites. A ocorrência ainda contemporânea de escritas romanescas híbridas de história e ficção em tom edificador e apologético com relações às ações dos colonizadores na América comprova, também, nossa afirmação de que, com exceção da modalidade clássica scottiana, todas as demais, constituintes das três fases – acrítica, crítica/desconstrucionista e crítica/mediadora –, mantêm sua produção até nossos dias. Nesse contexto, as modalidades críticas/desconstrucionistas da segunda fase da trajetória do gênero são as que promovem a desterritorialização do imaginário latino-americano – espaço vital da formação ideológica de um povo – e que foi habilmente conquistado pelo poder colonizador no contexto da América Latina. A eficiência das ações colonizadoras empreendidas nesse sentido de não somente se apossar do território geográfico, mas, também, do imaginativo, é tanta que a grande maioria da população latino-americana ou não sabe que segue intelectualmente colonizada ou nega absolutamente tal condição, defendendo, desse modo, o próprio persistente sistema colonialista. A leitura de obras críticas/experimentalistas como The memoirs of Christopher Columbus (1987), de Stephen Marlowe, Vigilia del Almirante (1992), de Augusto Roa Bastos, ou Meu querido Canibal (2010), de Antonio Torres – expoentes da modalidade da metaficção historiográfica em cada uma das línguas em que se dão as expressões romanescas por nós examinadas –, não encontram na América em partes ainda colonizadas um número expressivo de leitores hábeis o bastante para conceber nelas as ressignificações contidas na arte literária nesse ambiente imaginário ainda territorializado das mentes não formadas adequadamente à leitura literária. Ao ressignificar o passado – incorporando ao tecido narrativo muitas das escritas oficiais pela intertextualidade e a paródia, dando um tratamento carnavalizado ou mediador à configuração dos heróis instituídos pelo discurso historiográfico tradicional –, o romance histórico, em suas vertentes críticas, reterritorializa esse espaço imaginário do sujeito latino-americano com perspectivas pluralizadas dos fatos passados. Isso se dá pelo emprego de um discurso paródico, polifônico e dialogizante, construído com uma linguagem heteroglóssica que revela, pelo amálgama das múltiplas variantes linguísticas, as distintas camadas sociais envolvidas nos acontecimentos que levaram aos fatos históricos consagrados nos anais da história. Efeitos de uma leitura com tal caráter crítico vão, aos poucos, atuando como vias de descolonização na mente do leitor ao desterritorializar o espaço imaginário fortemente dominado ao longo dos séculos de colonialização pela imposição de um discurso unívoco, assertivo e, em muitos aspectos, patriarcalista e hegemônico. Conforme muito bem assinala Antônio Esteves (2010, p. 25), 277


[...] como leitora privilegiada dos signos da história, a literatura é cerne de renovação. Com ela, no que diz respeito a esse intrincado circuito de dupla relação formado pela América e pela Europa, os escritores anunciam sempre novos caminhos que garantam a pluralidade das culturas organizadas em um mundo multipolar.

São essas as escritas romanescas nas quais ecoam as vozes silenciadas de todas as camadas sociais marginalizadas e excluídas das escritas hegemônicas do passado da América Latina, cujas bases ideológicas estiveram submissas aos centros irradiadores do poder e às suas ações coercivas. Frutos desse processo não foram apenas a anexação das terras às coroas europeias a partir do século XV em diante, mas, também a exploração de seus tesouros, o uso produtivo das terras e, muito eficazmente, a aculturação dos povos nativos e dos escravizados inseridos à força nesse espaço já plural. A territorialização das mentes foi tão, ou mais eficaz, que a posse das terras, cuja liberdade se conseguiu com a força das armas, em muitos dos territórios e com as negociatas políticas em outros. A liberdade das mentes, contudo, segue em pauta nas ações descolonizadoras das sociedades latinoamericanas que ainda lutam por direitos básicos como a educação e a saúde. Nesses territórios antes colonizados, floresceram, mesmo a contragosto, sociedades híbridas, enraizadas em etnias diferentes, com línguas, culturas e hábitos distintos que, aos poucos foram se infiltrando na hegemonia imposta pelo sistema colonizador para, hoje, revelarem-se como plurais, múltiplos, transculturais. As mentes latino-americanas, vagarosamente, encontram, também, suas vias para esse processo. Entre elas, está a leitura, seguida da escrita, que são ferramentas indispensáveis a esse processo. Nele, a produção de escritas híbridas de história e ficção tem sido profícua, transitando do tradicionalismo ao criticismo desconstrucionista e, desse necessário enfrentamento “quase bélico” nas letras, chegamos até as vias mediadoras da atualidade para possibilitar o acesso dessas obras a um público mais abrangente. As ressignificações críticas/mediadoras ficcionais hodiernas sobre o processo conflitivo dos encontros e dos choques que a eles se sucederam entre as culturas europeias – no intuito da dominação e colonização – e entre as autóctones da América – como atos de defesa e resistência – revelam a constante adequação que o gênero romance histórico tem empreendido ao longo dos tempos para acompanhar a trajetória sócio-histórica das diferentes nações envolvidas nesse passado que tantas mortes e desavenças causou ao longo de séculos. A literatura segue, assim, sendo um espaço privilegiado de diálogos nos quais as controvérsias, as angústias, as aflições, os embates e os enfrentamentos seguem ainda vigentes e necessitados do processo de catarse que a arte literária produz até nossos dias. As múltiplas imagens escriturais que se depreende da figura histórica de Colombo, revisitada pela ficção, bem como as distintas 278


visões a respeito de seu empreendimento, tanto na literatura estadunidense, na hispano-americana, na espanhola como na brasileira em cada uma das obras abordadas em nosso estudo, sublinha a importância que esse tema adquiriu nas últimas décadas, bem como o tratamento estético diferenciado dado à “poética do descobrimento” por seus distintos expositores. Assim, observamos que a literatura segue sendo o espaço no qual as distintas ondas do oceano de imagens ficcionais de Colombo seguem seu curso entre nós, ora tranquilo e sereno, ora revoltoso e agitado. Nele, contudo, as atrocidades e os enfrentamentos passam a ser ressignificados e podem cooperar para um futuro menos trágico e sangrento do que foi o passado efetivamente vivenciado, colaborando para, talvez, vivenciarmos um verdadeiro encontro com o “outro”. A catarse contida nesse mar de imagens escriturais dissolve, lenta e progressivamente, os antagonismos extremos e as paixões incontidas, revelando, na atualidade, um contorno já mediador às paisagens entrelaçadas pelo hibridismo, pela multiplicidade, pelos sincretismos e olhares diferenciados. Esse é o papel da literatura, espaço único em que tantas e contrastantes realidades podem ser ressignificadas, na busca de um futuro com vistas à alteridade, que nos possibilita o entrecruzamento dos olhares e a visão mais ampla de nós mesmos no(s) outro(s).

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SOBRE O AUTOR Gilmei Francisco Fleck é Pós-doutor em Literatura Comparada e Tradução pela Universidade de Vigo/UVigo-Espanha. Mestre e Doutor em Letras pela UNESP, campus de Assis/SP. Especialista em Ensino de Inglês como Língua Estrangeira e, também, em Língua Espanhola e respectivas Literaturas, pela Unoesc/Chapecó-Xanxerê/SC. Licenciado em Letras Português-Inglês e respectivas Literaturas, assim como em Português-Espanhol e respectivas Literaturas, pela URI-Frederico Westphalen-RS. Atualmente, é Professor associado da Unioeste campus de Cascavel onde atua nas áreas de Literaturas Hispânicas e Cultura Hispânica na graduação em Letras. Atua também no Programa de Pós-Graduação acadêmico em Letras dessa instituição, na área de Literatura Comparada e Tradução, e no Programa de Pós-Graduação – Mestrado Profissional-Profletras – na área de Literatura Infantil e Juvenil. Suas atuações dão ênfase aos estudos latino-americanos de Literatura Comparada, de cultura hispânica e à tradução como vias de relação entre as diferentes culturas que conformam o universo híbrido e mestiço da América Latina. Nesse contexto, é especialista em estudo do romance histórico, escrita híbrida que ele considera, junto a sua leitura, umas das principais vias de descolonização para o cidadão latino-americano. É também coordenador do Programa de Extensão PELCA: Programa de Ensino de Literatura e Cultura – na instituição onde é docente. Como pesquisador das diferentes modalidades de romances históricos, orienta dissertações e teses nessa área, pois considera essa produção literária como forma privilegiada de reler o passado e conceder aos excluídos dos registros oficiais o direito à voz e à exposição de múltiplas perspectivas dos eventos registrados pelo discurso historiográfico, ações que a liberdade artística confere aos romancistas. Na área da Tradução, busca dedicar-se aos estudos e à prática tradutória de obras relevantes da história da literatura latino-americana, em língua espanhola, ignoradas ou desconhecidas de grande parte da população brasileira. Nesse sentido, coordena um projeto de prática experimental de tradução literária – o Literatório –, espaço no qual obras literárias são estudadas em suas múltiplas dimensões e, após esse processo de conhecimento do objeto por parte do aprendiz, são traduzidas ao português, espanhol ou inglês, segundo seja o caso e a relevância, sob orientação e trabalho coletivo.

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SOBRE O REVISOR Marcio da Silva Oliveira: Pós-doutor em Literatura Comparada pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), sob a supervisão do Prof. Dr. Gilmei Francisco Fleck, subsidiado pela Fundação Araucária do Paraná, pela Bolsa Produtividade em Pesquisa. Doutor em Letras, pela Universidade Estadual de Maringá (UEM), na área de concentração Estudos Literários: Literatura e Historicidade, contexto no qual defendeu a tese O lugar de Dias Gomes no Teatro brasileiro: contribuições para uma modernização crítica, sob a orientação do professor Dr. Alexandre Villibor Flory, no ano de 2018. Mestrado em Letras nas áreas de concentração Estudos Literários: Literatura Comparada e Literatura e Historicidade, pela Universidade Estadual de Maringá (UEM), com a dissertação As influências do trágico nos romances contemporâneos Ópera dos Mortos e Os Sinos da Agonia, de Autran Dourado (2011), sob a orientação do professor Dr. Aécio Flávio de Carvalho (in memorian). Possui Graduação em Letras Português/Inglês pela Universidade Estadual do Paraná – Campus Paranavaí (UNESPAR) e, atualmente, segue em estágio de Pós-doutorado, voluntário, na Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), sob a supervisão do Prof. Dr. Gilmei Francisco Fleck, sendo professor colaborador do Programa de Pós-graduação em Letras – PPGL – Unioeste/Cascavel-PR. Integrante da equipe de pesquisadores do Grupo “Ressignificações do passado na América: processos de leitura, escrita e tradução de gêneros híbridos de história e ficção – vias para a descolonização”. Integra, também, a equipe de extensionista do PELCA: Programa de Ensino de Literatura e Cultura, da PROEX/Unioeste/Cascavel-PR. É autor de vários artigos em revistas nacionais e internacionais e capítulos de livros, dentre os quais se destacam estudos sobre o Ensino da dramaturgia e o teatro histórico brasileiro. Atua, também, como revisor de produções acadêmicas.

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SOBRE O ILUSTRADOR

Cristian Javier Lopez Doutor em Estudos Literários pela Universidade de Vigo/Espanha, em cotutela com a Universidade Estadual do Oeste do Paraná-Unioeste-CascavelPR/Brasil, com a tese Idea Vilariño y Helena Kolody: cantos a la vida – encuentros poéticos en América Latina/ Idea Vilariño e Helena Kolody: cantos à vida – encontros poéticos na América Latina. (2020), sob a orientação das Dras. Carmen Luna Sellés (UVigo) e Terezinha da Conceição Costa Hübes (Unioeste). É Mestre em Teatro e Artes Cênicas, área de Estudos Literários, pela Universidade de Vigo/UVigo-Espanha, com a dissertação Diálogos entre artes: literatura y música en confluencia (2015), sob orientação da Professora Dra. Carmen Luna Sellés. Licenciado em Letras Português/Espanhol (2019), pela Unioeste/CascavelPR/Brasil, em Artes Visuais (2016) e em Música (2013), pela Anhanguera de Cascavel-PR/Brasil. Suas atuações dão ênfase aos estudos interartísticos, estudos de Literatura Comparada e Arte e Educação. Nesse contexto, é especialista em estudo de Literatura e Música, com ênfase nas produções latinoamericanas de autoria feminina. Atualmente, é professor colaborador do Instituto Federal do Mato Grosso, campus de Alta Floresta, e da Universidade Estadual de Ponta Grossa – UEPG – na área da graduação em Música. É integrante da esquipe de pesquisadores do Grupo “Ressignificações do passado na América Latina: processos de leitura, escrita e tradução – vias para a descolonização”, liderado pelo Prof. Dr. Gilmei Francisco Fleck, colaborando nas linhas de pesquisa “b- Releituras da história pela ficção: estudos comparados”. Participa dos projetos de extensão “Estudos das teorias contemporâneas de análise literária – segunda fase” e “Ressignificações do passado pela literatura”, 299


vinculados ao PELCA – Programa de Ensino de Literatura e Cultura/ PROEX-Unioeste-Cascavel. É autor de vários artigos em revistas nacionais e internacionais e capítulos de livros, dentre os quais se destacam estudos sobre o Ensino da lírica em sala de aula; Poesia de autoria feminina: Ideal Vila riño e Helena Kolody; Lírica latino-americana: o poema histórico.

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1a Edição

Novembro de 2021

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NAVEGANDO PUBLICAÇÕES Uma Editora vinculada ao Grupo de Estudos e Pesquisas "História, Sociedade e Educação no Brasil" - Histedbr - voltada à publicação de e-books para distribuição gratuita e livros impressos sobre temas científicos. Nosso trabalho é de empreendedorismo social, procurando retornar para a sociedade acadêmica e estudantil possibilidades de conhecimento democrático, gratuito e justo. Venha publicar conosco! E-mail: editoranavegando@gmail.com Site: www.editoranavegando.com


Nesta obra, estabelecemos uma trajetória das imagens escriturais do marinheiro Cristóvão Colombo, europeu que, em 1492, ao buscar uma via para Cipango e Cathay (Japão e China), efetua a primeira travessia ao Atlân co registrada na historiografia. Nessa sua rota em busca do caminho às Índias, às ricas terras descritas antes por Marco Polo em Imago Mundi, depara-se com as ilhas do Caribe, no espaço geográfico que viria a ser denominado de América, desconhecidas, até então, pelos europeus. Esse fato ocasiona um dos mais tensos encontros e enfrentamentos entre culturas registrados na história da humanidade. As imagens literárias desse navegante são inauguradas em 1840, no espaço geográfico-cultural dos Estados Unidos da América, pela escrita de James Fenimore Cooper. Nas primeiras décadas do século XX, elas chegam ao espaço histórico-cultural e literário da Espanha, onde são, da mesma forma, cul vadas sob os signos do heroísmo e da exaltação. Ao chegarem ao espaço histórico-cultural das terras colonizadas da América La na, essas imagens, antes exaltadoras das ações colonialistas e mi ficadoras das personagens atuantes nesse processo, sofrem uma profunda transformação. Os embates e enfrentamentos bélicos das culturas em choque à época da conquista, da colonização e das independências da América La na estende-se ao discurso ficcional, gerando imagens opostas, contraditórias, mul facetadas da mesma personagem e suas ações. Essas dis ntas escritas fazem emergir um oceano de imagens do navegante entre nós. Colombo, seguramente, é a personagem que mais frequentemente foi recriada pela arte literária. Esta obra – Imagens escriturais de Cristóvão Colombo: um oceano entre nós – vozes das diferentes margens – oferece um passeio por toda a trajetória dessa produção, com abordagens aos romances mais significa vos dos conjuntos de obras ficcionais nela reunidos.


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