Adaptação dos clássicos literários para os quadrinhos

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JOANE L. DE SÁ

ADAPTAÇÃO DOS CLÁSSICOS LITERÁRIOS PARA OS QUADRINHOS UMA ANÁLISE DO CASO

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POLICARPO QUARESMA

RECIFE · 2018



JOANE L. DE SÁ

ADAPTAÇÃO DOS CLÁSSICOS LITERÁRIOS PARA OS QUADRINHOS UMA ANÁLISE DO CASO POLICARPO QUARESMA

RECIFE · 2018


Art. 46. Não constitui ofensa aos direitos autorais a utilização de obras protegidas, dispensando-se, inclusive, a prévia e expressa autorização do titular e a necessidade de remuneração por parte de quem as utiliza, nos seguintes casos: III – a citação em livros, jornais, revistas ou qualquer outro meio de comunicação, de passagens de qualquer obra, para fins de estudo, crítica ou polêmica, na medida justificada para o fim a atingir, indicando-se o nome do autor e a origem da obra; VIII – a reprodução, em quaisquer obras, de pequenos trechos de obras preexistentes, de qualquer natureza, ou de obra integral, quando de artes plásticas, sempre que a reprodução em si não seja o objetivo principal da obra nova e que não prejudique a exploração normal da obra reproduzida nem cause um prejuízo injustificado aos legítimos interesses dos autores.

revisão do texto Maria Gabriela Wanderley Pedrosa

projeto gráfico Pedro Alb Xavier

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Agência Brasileira do ISBN - Bibliotecária Priscila Pena Machado CRB-7/6971 S111 Sá, Joane Leôncio de. Adaptação de clássicos literários para os quadrinhos : uma análise do caso Policarpo Quaresma [recurso eletrônico] / Joane Leôncio de Sá. – Rio de Janeiro : J. L. de Sá, 2018. Dados eletrônicos (pdf).

Inclui bibliografia. ISBN 978-85-540485-0-1 1. Literatura brasileira. 2. História em quadrinhos. 3. Literatura - Adaptações. I. Título.

CDD B869.939


JOANE L. DE SÁ

COLEÇÃO DE E-BOOKS DO NÚCLEO DE ESTUDOS DE LITERATURA E INTERSEMIOSE

ADAPTAÇÃO DOS CLÁSSICOS LITERÁRIOS PARA OS QUADRINHOS UMA ANÁLISE DO CASO POLICARPO QUARESMA

RECIFE · 2018


À NINA E AOS MEUS PAIS.


“No fim das contas, a obra de outros escritores é uma das principais fontes de input para o escritor, então não hesite em utilizá-la; não é porque alguém teve uma ideia que você não pode se apropriar dela e lhe dar um novo desdobramento. As adaptações podem se tornar adoções bem legítimas.” William S. Buroughs

“Nas operações da imaginação humana a adaptação é a norma, não a exceção.” Linda Hutcheon


TRAJETÓRIA DO GÊNERO “QUADRINHOS” NO CENÁRIO LITERÁRIO NACIONAL

PREFÁCIO

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Há uma década acompanho o entusiasmo da professora Joane Leôncio de Sá com o gênero “Quadrinhos”, do qual é leitora assídua. Ao longo desses anos, como orientadora de sua monografia de especialização, de sua dissertação de mestrado e de sua tese de doutorado em Letras sobre o tema, tive o privilégio de testemunhar o amadurecimento teórico, o adensamento crítico e o aprofundamento acadêmico de sua pesquisa nas questões fundamentais que dizem respeito ao processo de reconhecimento e de afirmação desta forma de arte, fundamentalmente híbrida e originalmente marginal, no contexto dos estudos de literatura, sobretudo os universitários. O livro que aqui se apresenta resulta das investigações realizadas para a obtenção de seu grau de mestre junto ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Pernambuco, com trabalho defendido em 2013. A argumentação centra-se no aspecto da adaptação dos clássicos literários para o formato quadrinístico, resultante de um amplo movimento envolvendo editoras e programas educativos governamentais de leitura, com grande investimento no Brasil a partir dos anos 2000, principalmente. Baseando-se em sólida, vasta e competente bibliografia reunida e consultada durante seus anos de formação, Joane Leôncio procurou focar seu estudo nos processos de produção dessas obras por artistas consagrados, e de sua recepção pelo público-alvo, os professores e estudantes dos cursos de literatura das escolas de ensino fundamental e médio. Para isso, optou por refletir a partir de exemplos objetivos, retirados do estudo de “casos” adaptativos de obras tradicionalmente integrantes da seleção canônica de autores presentes nos manuais de literatura longamente adotados por estes cursos. Sua reflexão sobre a questão adaptativa abrangeu dois momentos. O primeiro ocorreu na monografia de especialização, quando foram estudadas duas adaptações diferentes do romance emblemático do indianismo romântico, O guarani, de José de Alencar, retirados de épocas distintas: a


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edição comemorativa do centenário do romance, ilustrada por Nilo Cardoso, datada de 1957 e publicada no número trinta e dois do periódico Aventuras Heróicas; e a versão de 2009, com autoria de Luiz Gê e Ivan Jaf, publicada pela Editora Ática. O segundo ocorreu na dissertação de mestrado – que ora vem a público –, quando foram estudadas, de maneira mais densa, três adaptações quadrinísticas de outro clássico da literatura brasileira: o romance pré-modernista Triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto. A primeira versão analisada foi produzida em 2008, pela Companhia Editora Nacional, e adaptada pelo artista gráfico e cartunista Lailson de Holanda Cavalcanti. A segunda, publicada pela Desiderata em 2010, teve como autores Edgar Vasques e Flávio Braga. Já a terceira versão, adaptada por Luiz Antonio Aguiar e Cesar Lobo, saiu pela editora Ática também em 2010. Podemos dizer que a monografia de especialização e a dissertação de mestrado de Joane Leôncio são complementares e deflagradoras da trajetória percorrida pela autora para traçar um mapeamento dos processos de construção da autonomia do gênero no Brasil. Adianto que essa trajetória atingiu o seu ápice em sua tese de doutorado, defendida em 2018 e intitulada “O romance gráfico autoral brasileiro: entre os rótulos e a legitimação”, na qual analisa três exemplos de graphic novels produzidos em momentos diversos da história, que assumem seu caráter emancipatório seja pela originalidade da proposta, no âmbito das produções autossuficientes; seja pela independência interpretativa, no âmbito das versões de livros clássicos adaptadas para o formato quadrinístico. Em todos os momentos desta longa e exaustiva pesquisa, a autora manteve-se fiel ao objetivo de “buscar reconhecer e analisar os mecanismos de criação e libertação destes produtores de obras híbridas, revelando seu impulso de ultrapassar as desconfianças e os preconceitos existentes em torno dessas produções, a fim de considerá-las como oportunidades criativas de ampliação de leitura”. Neste percurso, Joane Leôncio discutiu como questões fundamentais da teoria literária encontram-se, hoje, desafiadas por “novas” formas de narrar, defendendo a necessidade urgente de um redimensionamento dos manuais e de atualização dos


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programas de ensino da literatura nas universidades, a fim de melhor capacitar os profissionais da educação para o enfrentamento dos desafios que essas mudanças operam na sociedade. Categorias tradicionais da narrativa, como o conceito de autor, por exemplo, são estruturalmente reconfiguradas no romance gráfico pelo apelo ao dialogismo palavra-imagem, exigindo ora um produtor capacitado nas duas linguagens, ora uma criação colaborativa entre vários produtores; mas, sobretudo, demandando um leitor familiarizado e versado no que a autora chama de “instrumentalização de linguagem”. Pensar a adaptação nunca foi tão importante quanto na contemporaneidade. Em seu clássico estudo sobre o assunto, Linda Hutcheon ressalta que o ato de adaptar revela-se uma prática crescente em todos os meios culturais da atualidade, seja de obras literárias para outras formas artísticas, seja dessas formas artísticas entre si e para obras literárias. Além do apelo econômico das adaptações, há um apelo mais profundo: o prazer epistemológico encontrado na conjugação da repetição e da diferença. A adaptação é um fenômeno eminentemente transcultural, pois o local e o tempo em que ocorre determinam inevitavelmente alterações no sentido da obra relida. Obedecendo a processos de historicização ou de desistoricização, conteúdos sociais e culturais são transpostos numa acomodação cultural que promove um agenciamento ideológico desses conteúdos. Uma obra adaptada, portanto, evoca as suas origens, mas nunca é uma simples cópia, como nos ensina a tradição quixotesca na qual Miguel de Cervantes, em pleno Renascimento, emula o gênero medieval das novelas de cavalaria para defender a persistência da atividade de contação de histórias no contexto europeu deseroicizado e esclarecido do início do século XVII, e dando início ao romance moderno, definido por Georg Lukács como a “narração da busca de valores autênticos por um herói problemático num mundo degradado”. Essa mesma tradição de releitura críticosatírica do passado é transplantada para o contexto dos territórios colonizados pela pena de Afonso Henriques de Lima Barreto, escritor negro brasileiro do início do século XX, na figura de Policarpo Quaresma, um loco cuerdo tupiniquim


que encontra, como Alonso Quijano, o seu destino fatal no enfrentamento da verdade de seu próprio tempo, e na tomada de consciência sobre o delírio de sua leitura nostálgica de um passado emblemático ou de sua leitura utópica de um futuro idealizado, ambas impossíveis. Como diria Harold Bloom muito apropriadamente: A influência poética significa que não existem textos, apenas relações entre os textos. Estas relações dependem de um ato crítico, uma desleitura ou desapropriação, que uma obra exerce sobre a outra, e isto não difere em gênero dos necessários atos críticos que todo leitor forte realiza com todo texto que encontra. A relação de influência governa a leitura como governa a escrita, e a leitura, portanto, é uma “desescrita” assim como a escrita é uma “desleitura”. Com o prolongamento da história literária, toda poesia torna-se necessariamente crítica em verso, bem como toda crítica se torna poesia em prosa. (BLOOM. Um mapa da desleitura, 1995, p. 15)

Aos leitores aficionados da obra literária somam-se, no início do século XXI – e na inesgotável linha da história da literatura como a concebe T. S. Eliot em seu famoso artigo “Tradição e talento individual” –, os revisionistas intersemióticos da pós-modernidade. Esses criadores, selecionados para análise na dissertação de Joane Leôncio, capturam em suas adaptações o espírito quixotesco do Policarpo barretiano sob novas perspectivas, adicionando aos questionamentos sobre os jogos de poder e de influência – vinculados à dominação cultural nas relações comparativistas mais antigas – o problema da eterna disputa entre as artes ditas “irmãs”, a literatura e a pintura, ao propor uma escrita híbrida, fusão da palavra e da imagem, que lança ao presente novos desafios, mantendo viva a interminável angústia que contribui, de tempos em tempos, para a criação ou para a renovação dos cânones.

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Ermelinda Maria Araújo Ferreira


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SUMÁ PREFÁCIO

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LISTA DE FIGURAS

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APRESENTAÇÃO

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UMA QUESTÃO DE ADAPTAÇÃO

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01.

Lima Barreto: um policarpo quixoteano

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02.

Teoria da adaptação

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03.

Histórias em quadrinhos: contexto e linguagem

37

04.

O boom das adaptações em quadrinhos no brasil

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ÁRIO TRÊS PERSPECTIVAS DE ADAPTAÇÕES DE TRISTE FIM DE POLICARPO QUARESMA

50

01.

À procura da fidelidade (versão de Holanda)

54

02.

Capa, elementos paratextuais e enfoque da obra

55

03.

Os elementos nacionais, as formigas e a biblioteca

71

04.

O estopim e o hospício

82

05.

Cena da batalha e final da obra

87

06.

Policarpo em graphic novel (versão de Braga e Vasques)

91

07.

Capa, elementos paratextuais e enfoque da obra

91

08.

Os elementos nacionais, as formigas e a biblioteca

96

09.

O estopim e o hospício

104

10.

Cena da batalha e final da obra

107

11.

Uma adaptação como adaptação (versão de Aguiar e Lobo)

111

12.

Capa, elementos paratextuais e enfoque da obra

114

13.

Os elementos nacionais, as formigas e a biblioteca

121

14.

O estopim e o hospício

129

15.

Cena da batalha e final da obra

132

CONSIDERAÇÕES FINAIS

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REFERÊNCIAS

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LISTA DE FIGURAS Figura 01 – Capa Figura 02 – Personagens Figura 03 − Conversa entre oficiais superiores Figura 04 − Suspensão de Policarpo Figura 05 − Ricardo Coração dos Outros Figura 06 − Estudos de Quaresma Figura 07 − Policarpo e o General Albernaz vão à procura de Dona Maria Rita Figura 08 − Policarpo em conversa com Olga Figura 09 − Tangolomano Figura 10 − Os costumes dos Tupinambás Figura 11 − Policarpo e a leitura 1 Figura 12 − Policarpo e a leitura 2 Figura 13 − Fúria do diretor Figura 14 − Quaresma e Ricardo Figura 15 − Policarpo no hospício Figura 16 – Batalha Figura 17 – Final Figura 18 − Ilustração da capa Figura 19 − Amigos e familiares de Quaresma Figura 20 − As formigas (parte I) Figura 21 − As formigas (parte I) Figura 22 − As formigas (parte II) Figura 23 − Guerra contra as formigas


Figura 24 − Guerra contra as formigas Figura 25 − As modinhas e o violão Figura 26 − As modinhas e o violão Figura 27 − Indignação do diretor Figura 28 − No hospício Figura 29 − Combate descrito na carta para Adelaide Figura 30 – Neandertais Figura 31 − Execução de Quaresma Figura 32 − A capa Figura 33 − Trecho do roteiro Figura 34 − Ilustração de Gustave Doré Figura 35 − Construção de uma cena (I) Figura 36 − Construção de uma cena (II) Figura 37 − Excerto do texto de Lima Barreto Figura 38 − Biblioteca (I) Figura 39 − Biblioteca (II) Figura 40 − Cena das formigas Figura 41 − Notícia de navios da esquadra Figura 42 − Quaresma vai para o hospício Figura 43 − Lima Barreto como personagem Figura 44 − Morte de Ismênia Figura 45 – Descrição da batalha Figura 46 − Execução de Policarpo Quaresma


APRESENTAÇÃO


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A utilização de novas mídias em sala de aula vem sendo incentivada no ramo da educação como forma de promover a inserção da escola na realidade dos mecanismos de informação contemporâneos, de forma a habilitar os professores e alunos para o uso inteligente das novas tecnologias, indispensáveis à vida cotidiana. Apesar dessa necessidade, o tema ainda é abordado com pouca ênfase nos cursos de formação inicial de professores, tornando-se uma questão recorrente nas formações continuadas desses profissionais. A resistência às mudanças sociais que influenciam diretamente na educação é um dos principais fatores do descompasso entre as demandas do mundo real e os programas e metodologias de muitas instituições de ensino no Brasil. No âmbito dos programas de formação em literatura, essa resistência determina o desconhecimento de práticas inovadoras de criação literária, além de fomentar o preconceito contra gêneros híbridos e suportes alternativos ao texto impresso tradicional, gerando a ideia errônea de uma tradução substitutiva, acarretando grande prejuízo à compreensão do fenômeno adaptativo, tal como define Linda Hutcheon (2011). Esse fenômeno – prática constante e irrevogável no universo multimidiático –, ao contrário do que se possa conceber, não atua no sentido de facilitar a leitura dos clássicos literários no formato do filme, dos quadrinhos, da literatura eletrônica ou de outro recurso prioritariamente imagético, mas busca exatamente o oposto: afirmar cada gênero em sua autonomia e investir na capacidade crescente do leitor de apreender as histórias veiculadas em diferentes meios. Enfatiza, inclusive, a necessidade de capacitação das escolas e universidades para a promoção de instrumentalizações específicas nas linguagens utilizadas em novos ambientes, o que determinará uma maior ampliação na habilitação do indivíduo para a inserção no mundo em vertiginosa transformação na qual se encontra atualmente. A fim de refletir sobre essa questão, realizamos, neste


ADAPTAÇÃO DOS CLÁSSICOS LITERÁRIOS PARA OS QUADRINHOS · Uma análise do caso Policarpo Quaresma

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livro, uma análise crítico-comparativa de três adaptações da obra de Lima Barreto Triste fim de Policarpo Quaresma para as Histórias em Quadrinhos (HQs)01, a partir de uma abordagem que considera cada adaptação como uma nova obra ligada ao texto fonte, porém independente dele, e procuramos observar as características e ênfases adotadas em cada uma dessas produções. A opção por trabalhar com o formato da adaptação literária se pauta principalmente no reconhecimento da reprodução desse modelo na vida cotidiana desde os primórdios da humanidade, quando já se ensaiava o ato de contar e recontar histórias. Entende-se que, se qualquer história pode ser recontada, em qualquer lugar, todas as culturas já estiveram envolvidas com a prática da adaptação. Apesar de comum, essa prática foi, ao longo dos tempos, relegada a um menor valor literário por ser considerada como secundária de uma obra original. Da mesma forma, os quadrinhos sofreram esse estigma por serem atribuídos principalmente aos meios de comunicação de massa. Na verdade, as Histórias em Quadrinhos sempre tiveram a conotação pedagógica de facilitação do conteúdo, ou de leitura recreativa, ou ainda de introdução ao mundo da leitura textual, retomando a antiga noção de hierarquização entre artes. A fim de aproximar esses dois formatos historicamente subestimados como leitura – mas em crescente reconhecimento diante dos novos cenários multimidiáticos e tecnológicos –, centramos a análise em uma adaptação de um clássico literário brasileiro que ilustra devidamente a importância das produções quadrinhísticas nos aspectos estético, cognitivo e como uma possibilidade de fortuna crítica literária. No Brasil, a prática da adaptação data do início do século XX, mas o boom desse formato só se disseminou no século atual. O grande propulsor da produção das adaptações no Brasil foi o Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE), do governo federal, que, em 2007, incluiu obras em quadrinhos em sua lista de indicação, como destaca Paulo 01 Termo abreviado para Histórias em Quadrinhos, utilizado no decorrer deste livro.


Ramos: A proposta era comprar lotes atuais de obras literárias

e

em

quadrinhos

para

compor

bibliotecas escolares de todo país. As editoras deveriam se cadastrar anualmente na seleção. Cada obra escolhida correspondia a uma venda de 15 mil a 48 mil exemplares, números que acordaram as editoras para esse novo filão. Como o governo federal tendia a priorizar adaptações literárias nas seleções, começou uma corrida do ouro para incluir algum título na lista (2012, p. 245).

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Em um primeiro momento, as adaptações estavam fortemente atreladas às exigências editoriais que direcionavam essas produções como facilitadores da leitura de obras clássicas solicitadas nos exames vestibulares. Até que, em 2008, a adaptação de O Alienista por Gabriel Bá e Fábio Moon venceu o Prêmio Jabuti, um fato inusitado, ilustrando a autoafirmação dessas produções como leitura. Passou-se a identificar, portanto, nas adaptações para HQs, uma procura pela superação dos parâmetros pedagógicos, além de uma maior qualidade e densidade, tanto em termos de estética quanto de conteúdo. No que concerne ao principal enfoque deste livro, concentramos na análise das características das adaptações intersemióticas de Triste fim de Policarpo Quaresma para as Histórias em Quadrinhos. Investigar as características e implicações adaptativas de acordo com os estudos da adaptação e das relações intersemióticas estabelecidas na linguagem quadrinística. Posteriormente, compara-se as características em torno dos elementos adaptados de três produções em quadrinhos – a primeira, de Lailson de Holanda; a segunda, de Flávio Braga e Edgar Vasques; e a versão de Luiz Aguiar e Cesar Lobo – da obra de Lima Barreto e, dessa forma, compreender as adaptações como uma nova obra, de caráter autoral e independente, possibilitando, dessa forma, agregar conhecimento ao texto fonte. Triste fim de Policarpo Quaresma é considerada uma


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das mais relevantes obras do escritor pré-modernista Lima Barreto, detentor de texto crítico e denunciante de uma literatura socialmente engajada, que assumia a voz das minorias brasileiras contra o exagero da escola positivista, o ufanismo alienante da política da nova república e os preconceitos ditos raciais e sociais principalmente. Assim sendo, no primeiro capítulo, Uma questão de adaptação, apresentamos a ideia geral do estudo no que concerne à teoria da adaptação proposta por Linda Hutcheon. No item inicial, 1.1 Lima Barreto: um Policarpo quixoteano, tratamos da relação entre Policarpo Quaresma e Dom Quixote, personagem de Miguel de Cervantes, em uma reflexão sobre o contexto adaptacional dos cânones literários, que já referenciam obras anteriores. Em 1.2 Teoria da adaptação, aprofundamos a análise sobre a adaptação como produto, processo e recepção, juntamente aos estudos no campo da transmutação intersemiótica sob as vozes dos teóricos Julio Plaza e Umberto Eco. Na seção 1.3 Histórias em Quadrinhos: contexto e linguagem, adentramos no contexto histórico e nas especificidades da linguagem dos quadrinhos, embasados nos estudos de Paulo Ramos e Waldomiro Vergueiro, principalmente. Em seguida, discutimos sobre a questão das adaptações literárias para o formato das Histórias em Quadrinhos na seção 1.4 O boom das adaptações em Quadrinhos no Brasil. Para tanto, abordamos o surgimento e o polêmica propagação editorial das produções adaptativas no país. Já no capítulo 2, intitulado Três perspectivas de adaptações de O Triste Fim de Policarpo Quaresma, direcionamos uma análise das três adaptações para os quadrinhos de Triste fim de Policarpo Quaresma, através de teorias que envolvem a leitura de imagens, a Estética da Recepção e estudos da adaptação. As três versões são separadas em três seções distintas: 2.1 À procura da fidelidade (versão de Lailson de Holanda); 2.2 Policarpo em graphic novel (versão de Flávio Braga e Edgar Vasques); e 2.3 Uma adaptação como adaptação (versão de Luiz Aguiar e Cesar Lobo). Com fins de melhor organizarmos o estudo dessas produções, dividimos cada análise em quatro tópicos conforme pontos de destaque da obra de Lima Barreto. O


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primeiro tópico aborda Capa, elementos paratextuais e enfoque da obra; o segundo trata de Os elementos nacionais, as formigas e a biblioteca. O terceiro tópico abrange O estopim e o hospício, e por último e quarto momento tem-se as interpretações e leituras imagéticas da Cena da batalha e final da obra. Autores como Berger e Paulo Ramos embasam a análise dos tópicos quanto às linguagens da imagem e dos quadrinhos, respectivamente. Adentramos ainda na Estética da Recepção com fins das análises de fatores como recepção e leitura de uma obra.


UMA QUESTÃO DE ADAPTAÇÃO

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01.

LIMA BARRETO: UM POLICARPO QUIXOTEANO É clássico aquilo que tende a relegar as atualidades à posição de barulho de fundo, mas ao mesmo tempo não pode prescindir desse barulho de fundo. É clássico aquilo que permanece como rumor mesmo onde predomina a atualidade mais incompatível. (Ítalo Calvino)

A realidade editorial brasileira das adaptações dos clássicos literários para os quadrinhos, frequentemente concebidos com um direcionamento pedagógico – para uso como leitura obrigatória em sala de aula, sobretudo no ensino fundamental – surpreende por causa da quantidade e diversidade de coleções, com vasta disponibilidade de títulos da literatura mundial e nacional, em livros ilustrados dos mais diversos formatos e apresentações, e acessíveis aos mais diversos públicos, seja em termos de poder aquisitivo, seja em termos de faixa etária. Surpreende também, sobretudo a um olhar mais tradicional, em razão da qualidade de muitas dessas obras, principalmente as mais recentes, que registram uma compreensão mais amadurecida sobre a especificidade de seu caráter ontológico em meio às produções impressas, configurando um momento importante de tomada de consciência, tanto no âmbito editorial como autoral, de sua autonomia: momento que se verifica através da recusa do conceito de tradutibilidade intersemiótica, discutido, nos anos 70 do século XX, por Julio Plaza, em obra referencial – Tradução Intersemiótica –, em favor do conceito de adaptação, proposto e defendido por Linda Hutcheon na primeira década do século XXI – Uma Teoria da Adaptação –, mais de acordo com os avanços tecnológicos no âmbito da informação, com a popularização da internet e dos inúmeros suportes hoje disponíveis para a veiculação e troca de conteúdos. Como salienta Hutcheon: Se você supõe que a adaptação pode ser compreendida considerando apenas filmes e romances, está enganado. Os vitorianos tinham o hábito de adaptar quase tudo – e para quase todas as direções possíveis: as histórias de poemas, romances, peças de teatro, óperas, quadros, músicas, danças e tableaux vivants eram constantemente adaptados de uma mídia para outra, depois readaptadas novamente. Nós, pósmodernos, claramente herdamos esse mesmo hábito, mas ainda temos outros novos materiais à nossa disposição – não apenas o cinema, a televisão, o rádio e as várias mídias eletrônicas, é claro, mas também da realidade virtual. O resultado? A adaptação fugiu do controle (2011,

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os parques temáticos, as representações históricas e os experimentos


ADAPTAÇÃO DOS CLÁSSICOS LITERÁRIOS PARA OS QUADRINHOS · Uma análise do caso Policarpo Quaresma

p. 11).

Ainda nos anos 80 do século XX, Flávio Kothe indicava a emergência da renovação da crítica literária, pois essa deveria estar ...atenta não só às modificações no âmbito específico da literatura, mas também às modificações que ocorram nos demais sistemas a que a literatura pertence (mesmo que não o queira ou não saiba disso). Cada vez mais é preciso prestar atenção para as correlações que existem entre a série literária e as demais séries artísticas, tanto na direção daquela para estas quanto na direção oposta. A atenção da crítica não deve voltar-se para essas modificações e correlações apenas com a finalidade de descobrir, fisiologicamente, as melhores possibilidades de adaptação às novas condições, pois tal oportunismo não só a levaria a negar a sua natureza crítica quanto ela deixaria de ser objetiva ao não olhar para o que não lhe interessasse de modo imediato (1981, p. 27).

Tão equivocado quanto julgar que as obras literárias guardam a possibilidade de serem fielmente traduzíveis para meios diversos é pressupor que a adaptação intermeios é um fenômeno decorrente do atual avanço tecnológico na área da informação. Como afirmam os autores acima, a adaptação da literatura é um processo antigo e natural na evolução das artes, entendendo-se evolução como mutação e não necessariamente como progresso. As formas de representações artísticas, enquanto espelhos das realidades humanas, não são estanques, mas vital e organicamente constituídas, desdobrando-se no tempo e no espaço para melhor capturar a natureza de seus produtores, e mais fielmente reproduzir/refletir suas indagações, angústias e soluções diante dos desafios da existência. Foi essa constatação que contribuiu para a nossa seleção do corpus de análise desta pesquisa – entre tantas e tão fascinantes possibilidades fornecidas atualmente pelo mercado editorial brasileiro: as adaptações para os quadrinhos da obra do escritor do início do século XX Afonso Henriques de Lima Barreto. A mais famosa obra de sua autoria, Triste fim de Policarpo Quaresma01 − um clássico da literatura nacional, incorporada ao cânone do pré-modernismo e adotada como referência nos manuais de literatura e nos concursos vestibulares

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01 Escrito por Lima Barreto, a obra foi levada ao público pela primeira vez em folhetins, publicados entre agosto e outubro de 1911, na edição da tarde do Jornal do Commercio do Rio de Janeiro. Em 1915, também no Rio de Janeiro, a obra foi, pela primeira vez, impressa em livro, em edição do autor. O romance discute principalmente a questão do nacionalismo, mas também fala do abismo existente entre as pessoas idealistas e aquelas que se preocupam apenas com seus interesses e coma vida comum. Com uma narrativa leve que em alguns pontos chega a ser cômica, mas sempre salpicada de pequenas críticas a vários aspectos da sociedade, a história se torna mais tensa apenas quando o autor analisa a loucura e no seu final, quando são feitas duras críticas ao positivismo e ao presidente Floriano Peixoto (1891-1894). O autor optou por escrever a narrativa em uma linguagem próxima à informal falada entre os cariocas. Ela se desenvolve em torno de Policarpo Quaresma, brasileiro extremamente nacionalista, e é dividida em três partes, cada uma contendo cinco capítulos.


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– interessa, sob esse aspecto, por se constituir, à sua maneira, em uma adaptação nacional de um grande clássico da literatura universal: o Dom Quixote de la Mancha, de Cervantes, e por se constituir o Dom Quixote, por sua vez, provavelmente no maior e mais emblemático exemplo adaptativo da história da narrativa moderna. Assim como o Dom Quixote (século XVII) o Policarpo Quaresma (1916) são personagens leitores, e ambos os livros se caracterizam através da incorporação adaptativa de outros gêneros e discursos. Dom Quixote inaugura a era do romance moderno, herdeiro da epopeia, como exemplo acabado de um leitor esmagado pelo excesso de referências de sua enorme biblioteca, e pela incapacidade de levar ao âmbito da realidade o idealismo que aprende e aprecia na literatura cavalheiresca medieval. O livro de Cervantes é uma extensa compilação adaptativa de diversos gêneros literários anteriores, uma paródia, que valendo-se não pelo que incorpora, mas pelo que recria. Assim, dos vários tipos de narrativa que lhe servem de inspiração, Cervantes extrai um modelo ainda desconhecido no seu tempo, que tornaria nos séculos vindouros o grande gênero literário narrativo da modernidade. O romance de cavalaria contém uma história ligada a outros gêneros, principalmente à canção de gesta e à lírica trovadoresca provençal. As canções de gesta contribuíram com seus temas guerreiros para a poesia lírico-amorosa do Trovadorismo, que, aos poucos, cessa de ser expressa em versos para o ser em prosa, bem como de ser cantada para ser lida. O herói cortês é a figura fundamental do romance de cavalaria. Seus pais são nobres – reis, na maioria das vezes –, mas ele é criado por alguém de fora da família ou longe da corte. O herói deve vencer por mérito, nunca por afinidade ou eleição, pois tudo deve ser merecido ou conquistado. Nada pode ser entregue em razão de sua posição hierárquica. Em um momento chave para a narrativa, há uma revelação. De forma semelhante, quando necessário, o herói revela a sua verdadeira origem. A obra que maior influência exerceu sobre Cervantes, Amadis de Gaula, é um exemplar marcante do ciclo de novelas de cavalaria da Península Ibérica do século XVI, e foge do padrão das novelas de cavalaria tradicionais, pois, apesar de haver uma figura de herói, no caso, o Amadis, ele se apresenta de maneira diferente do convencional. Além do amor-adoração voltado a Deus e ao cumprimento de seus desígnios, existe também o culto ao feminino, na figura de sua amada Oriana. Não há somente a busca da graça divina, há também a busca da graça terrena através do amor por uma mulher-musa. No Dom Quixote, todos esses elementos são retomados, tanto o da integridade exemplar do herói quanto o do seu amor idealizado por Dulcineia del Toboso – na verdade, a aldeã Aldonza de Lorenzo –, porém de modo a ridicularizar a sua inoperância no mundo que se instaura com a ascensão da burguesia. De


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maneira ora nostálgica, ora elegíaca, o Dom Quixote lamenta um mundo perdido e simultaneamente celebra o advento de outro mundo, fornecendo ao público de sua época um retrato fidedigno e surpreendente das mudanças em processo. No Brasil, o quixotesco Policarpo Quaresma teve, em sua vida, três infelizes projetos desenvolvimentistas: o primeiro foi linguístico, no qual ele tenta mudar o idioma falado no país para o tupi-guarani, a fim de resgatar as raízes nacionalistas; o segundo foi agrícola, a partir de uma experiência que resulta fracassada e vencida pelas saúvas; e o terceiro foi político, em que ele participa de uma guerra, vira carcereiro e descobre que os oficiais estão matando prisioneiros. Ingênuo e idealista, ele manda uma carta a Floriano Peixoto, e por isso é preso, acusado de traição à pátria e fuzilado injustamente. Se a vida de Dom Quixote se entrelaça à de Cervantes, também a de Policarpo se encontra na encruzilhada com a de Lima Barreto, na partilha do idealismo como a outra face da loucura, em um mundo destituído de “valores autênticos”. Informa Ermelinda Ferreira que: É indiscutível a admiração de Osman Lins pelo esquecido escritor carioca que acaba seus dias como indigente no Hospício Nacional de Alienados, aos 41 anos, com quatro importantes obras publicadas e “sem que se registre em seu favor um movimento coletivo de solidariedade, sendo também rara a presença de amigos”. Natural, diz ele, que algo de uma vida tão cercada de pressões (a morte prematura da mãe, a loucura do pai, a pobreza, a escravidão ao serviço burocrático que despreza, a ausência quase absoluta de reconhecimento pela obra que publica com dificuldade, às vezes mediante empréstimos a juros) se refletisse na sua obra. ... Purgação, limpeza, paródia ao mundo de Maya (ilusão) da Universidade pelo mergulho na “vida real”, aqui Osman Lins parece ser verdadeiramente guiado pelo espírito combativo, pela idoneidade e solidão do criador de Policarpo Quaresma, cujo “modelo era o Dom Quixote, defensor dos pobres e ofendidos, leitor exaltado, sonhador de perfeições, franco no falar e no agir, ingênuo, vilipendiado – e nem sequer lhe faltaram, aproximando-o ainda mais do modelo, o celibato e

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a loucura (2012, p. 106).

Na esteira de Cervantes, Lima Barreto nos apresenta a certeza de que a noção da escritura como um sacerdócio e o destino da literatura e da linguagem como missão quase divina estão extintos e já não encontram guarida no mundo moderno. Entretanto, essa constatação não os impede de falar, ainda que ironicamente, sobre esses valores. Em ensaio sobre herói e heroico, Thomas Carlyle (s.d. apud OAKLEY, 2011) afirma que uma sociedade sã é aquela que presta atenção em seus heróis. Nessa perspectiva, Robert Oakley ressalva que, para que esse argumento


seja eficaz, o herói precisa ser ao menos lido ou ouvido: A tese aqui propugnada é a de que a prosa de ficção de Lima Barreto exprime uma tentativa de dramatizar qua artista tolstoiano, o destino do escritor neste mundo e, ao mesmo tempo, o escritor tem a obrigação de cumprir seu destino fichteano, carlyleano e tolstoiano de profeta pelo bem da humanidade. Para Lima Barreto, o ato de escrever [...] é o destino supremo do escritor (2011, p. 10).

Mediante a tais considerações sobre as conjecturas das obras de Cervantes e Lima Barreto, visualizamos em Triste Fim de Policarpo Quaresma, um diálogo que remete ao funcionamento dos formatos adaptativos. Dessa forma, adentraremos na discussão em torno de uma teorização da adaptação, conforme veremos no próximo item. 02.

TEORIA DA ADAPTAÇÃO

02  Neste livro, todas às referências aos estudos da teórica Linda Hutcheon será referente à edição brasileira do livro Uma teoria da Adaptação, publicada em 2011.

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O debate sobre as adaptações continua envolvendo questões controvérsias. As opiniões, desde o meio artístico ao acadêmico, são divergentes quanto à busca pela função e hierarquização da adaptação em relação às outras formas artísticas. Ainda encontramos o preconceito e o estigma de obra de menor valor diante dessas produções. No entanto, ao refletirmos sobre a história da humanidade, pode-se perceber que a adaptação foi e continua sendo um ponto crucial para a imaginação em todas as culturas. Ao analisar o ato de recontar histórias, iremos verificar que, em grande parte, recontar significa também recriar as histórias para um novo público. Assim sendo, se qualquer história pode ser recontada em qualquer lugar, todas as culturas já estiveram envolvidas com traduções interlinguais e adaptações interculturais (HUTCHEON, 2011). Segundo a autora norte-americana Linda Hutcheon (2011, p.11) 02, os vitorianos já detinham o hábito constante de adaptar e readaptar, de uma mídia para outra, poemas, romances, peças de teatros, óperas, quadros, e músicas entre outros. E a realidade pós-moderna herdou esse hábito, através de novos materiais como o cinema, a televisão, o rádio e as várias mídias eletrônicas, por exemplo, uma vez que “recontamos as histórias e as mostramos novamente e interagimos uma vez mais com elas − muitas e muitas vezes; durante o processo elas mudam a cada repetição, e ainda assim são reconhecíveis” (Ibid., p. 234).


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Tudo isso vem possivelmente corroborar para a recorrente popularidade e a ubiquidade das adaptações, as quais representam o modo como as histórias evoluem e se transformam para se adequar a diferentes tempos e lugares. Um século após o ensaio sobre a era da reprodutibilidade do autor, quando Walter Benjamin (1987) estudava sobre a destruição da aura da obra de arte perante a reprodutibilidade técnica, decorrendo na perda da autenticidade, no abalo da tradição, e a existência única da obra passa a ser serial. No entanto, o autor se refere ao autêntico como um conceito que outrora vigorou, mas, após o advento da reprodução técnica, da fotografia e do cinema, escapa a esse contexto a esfera da autenticidade. De acordo com Benjamin (Ibid., p.173), a produção artística teve seu início com as imagens a serviço da magia; o que importava era a existência delas, e não que elas fossem vistas, conhecidas. O valor do culto decorria em uma quase obrigação em manter as obras de arte secretas. Porém, conforme “as obras de arte se emancipam do seu uso ritual, aumentam as ocasiões para que elas sejam expostas”. A “exponibilidade toma lugar do valor do culto, e vemos então, uma refuncionalização” da arte. Um importante fator a ser observado é que, além de objetivos ligados a questões de mercado e vendagem, quando se adapta um clássico, intencionase a ampliação do campo de circulação de uma obra que, muitas vezes, já não encontra tantos leitores. Conforme considerações de Ceccantini (1997, p. 7), “[...] historicamente, o fenômeno se repete: a cada adaptação bem realizada de um clássico (nas várias linguagens) é grande o número de leitores que se dirige aos textos originais”. Apesar de as adaptações serem um hábito recorrente na história da humanidade, sua teorização ainda se faz recente. Não se tem conhecimento sobre desde que época uma história é adaptada de outra em razão da multiplicidade de civilizações mundiais e de suas produções culturais; não se sabe quantas obras literárias ditas clássicas seriam adaptações de outras já existentes. No entanto, no que concerne à arte adaptacional, o que encontramos são, principalmente, os estudos de tradução, quanto à possibilidade, mesmo que questionável por alguns teóricos, de considerar a adaptação como um determinado tipo de tradução. No que concerne aos aspectos linguísticos da tradução, o linguista russo Roman Jakobson (2001, p. 64), um dos principais estudiosos do assunto, oferece um estudo de base quanto à teorização da tradução, ao propor três classificações: a tradução intralingual ou rewording, que consiste na interpretação dos signos verbais por meio de outros signos da mesma língua; a tradução interlingual ou propriamente dita, caracterizada pela interpretação de signos verbais por meio de outra língua; e a tradução intersemiótica, também chamada de transmutação, a qual consiste na


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interpretação dos signos verbais por meio de sistemas de signos não verbais. Além de Jakobson, encontramos também outros autores que propõem outras tipologias da tradução, como Toury (1986); Torop (1995), que introduz uma lista de parâmetros tradutórios; e Petrilli (2000) (ECO, 2007). E, apesar da classificação de Jakobson contribuir para o encontro de uma lógica quanto à proximidade de contexto entre adaptar e traduzir, Umberto Eco (2007), no livro Quase a mesma coisa, ao defender que antes da tradução deve haver uma interpretação, elaborando, assim, uma nova classificação e redefinindo adaptação como uma forma de interpretação intersistêmica. A proposta de Eco consiste em uma redefinição a fim de ampliar os conceitos, mas não de criar novas teorias tradutórias, a exemplo de Jakobson, Torop e Petrilli, entre outros. A intenção dessa ampliação seria a de não enquadrar, em tipos definitivos, uma atividade que por si é dada através de contínuas negociações, disposta ao longo de um continuum de incomensuráveis equivalências, reversibilidades ou fidelidades, devendo ser respeitadas a riqueza e a imprevisibilidade desse continuum. Nesse contexto, a interpretação intersistêmica, a qual ocorre entre sistemas, meios diferentes, diferencia-se da interpretação por transcrição – que seria pela tradução propriamente dita, a transcrição de signos – e da interpretação intrasistêmica, a qual acontece no interior de um mesmo sistema semiótico. É importante salientar que, através dessas distinções, Eco (Ibid., p. 277) sugere uma classificação “das diversas formas de interpretação onde as infinitas modalidades de tradução propriamente dita sejam reunidas em um item muito abrangente”; o que também ocorre com as infinitas possibilidades de tradução intersemiótica. No caso do presente estudo, o tipo de adaptação em questão apresenta uma mudança de suporte, como adaptar um texto literário para o formato das Histórias em Quadrinhos. Nesse aspecto, Eco defende pensar adaptação como mudança de matéria, como transmutação, consistindo em uma forma de interpretação, mas não necessariamente em uma tradução. Pois, “as variações são múltiplas, mas se deveria falar sempre de adaptação ou transmutação, justamente para distinguir essas interpretações da tradução propriamente dita” (Ibid., p.382). Assim, uma tradução propriamente dita é orientada e dependente do texto original, havendo sempre o esforço em manter o sentido e a significação do que se está traduzindo. Já nas transmutações, há a presença do processo criativo, uma manipulação da fonte “com elementos que não são imputáveis às intenções do texto original” (Ibid., p.384). Segundo Eco, na passagem de matéria, a interpretação é mediada através do adaptador, e não mais deixada à mercê do destinatário, isso em relação ao texto fonte. Nesse caso, pode-se “fazer o dito” e também “o não dito”, o que será dirigido pela manipulação do adaptador, constituindo sempre um posicionamento crítico,


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mesmo que inconsciente. Outro autor que discorre sobre a tradução intersemiótica é Julio Plaza (1987, p. 30), que, ao contrário de Eco, considera a adaptação como uma forma de tradução intersemiótica. Isso fica claro quando o autor afirma que: Numa tradução intersemiótica, os signos empregados têm tendência a formar novos objetos imediatos, novos sentidos e novas estruturas que, pela sua própria característica diferencial, tendem a se desvincular do original. A eleição de um sistema de signos, portanto induz a linguagem a tomar caminhos e encaminhamentos inerentes à sua estrutura.

Dessa forma, Plaza aborda que o texto, em uma tradução intersemiótica, deve adaptar-se à estrutura própria da nova mídia, vertendo na criação de uma nova linguagem, e assim, uma nova realidade, isto é, em novas formas-conteúdo. Assim sendo, a abordagem de Plaza se aproxima da ideia de Umberto Eco de transmutação entre matérias, ao apontar para um conceito em que o produto do processo adaptativo será um considerado uma produção nova, adequada às exigências estruturais e formais do suporte escolhido. No entanto, Plaza enquadra a adaptação como um processo de tradução, enquanto que Eco preconiza a adaptação como uma forma de interpretação que, segundo ele, tende a divergir do contexto da tradução, uma vez que há a intenção em criar um novo produto, e não mais a obrigatoriedade de objetivar a semelhança com o texto fonte, e nesse caso original, na tentativa de distanciar-se o mínimo possível da obra traduzida. Apesar de considerarmos os estudos do teórico Julio Plaza no que concerne ao contexto intersemiótico, embasaremos a base para a pesquisa na conceituação de transmutação da matéria de Umberto Eco, a qual mais se aproxima com os estudos adaptacionais de Hutcheon, quando se trata de adaptar para suportes diversos. No livro Uma teoria da adaptação, Linda Hutcheon estende um espaço para reflexão em várias esferas da arte adaptativa e sua relação entre artes, mídias, suportes e contextos. É proposto pensar a respeito da teorização da adaptação a partir dos questionamentos: O quê? Quem? Por quê? Como? Onde? Quando? A primeira pergunta se desenvolve em torno da definição e das possíveis delimitações em torno do que vem a ser uma adaptação – da natureza adaptacional – e em relação aos debates sobre hierarquização das artes e mídias. Nesse contexto, a autora expõe três modos de engajamento abertos a adaptações: contar, mostrar e interagir. Cada modo de engajamento remete aos tipos de suporte dos textos adaptados. O modo contar consiste primordialmente no texto escrito, já o mostrar


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tem como exemplo as versões cinematográficas, mas também a ópera, a televisão, o teatro e as Histórias em Quadrinhos. Dessa forma, a passagem Contar <> Mostrar (HUTCHEON, 2011) geralmente é concretizada do meio impresso para o performativo. A adaptação performativa irá dramatizar a descrição e a narração; e os pensamentos representados são transcodificados para fala, ações, sons, e imagens visuais. Já na transição Mostrar <> Mostrar, uma mídia performativa pode passar para uma segunda mídia performativa. Nesse caso, o que diferirá serão as restrições e as possibilidades específicas das convenções de cada suporte. Um exemplo disso aconteceu na transformação da série de quadrinhos noir de Frank Miller, Sin City (1991-1992) para a versão cinematográfica de Robert Rodriguez (2005), que, apesar de aproximar-se dos quadrinhos pelos cenários digitalizados, consiste ainda em um filme com atores, trilha sonora e outros elementos particulares ao cinema. O modo interagir, como o próprio nome remete, caracteriza-se como um suporte em que o receptor – leitor, telespectador, etc. – necessariamente dialoga com a adaptação, a exemplo de uma versão adaptada para um videogame. Assim, na passagem Interagir <> Contar ou mostrar, a interatividade também promove diferentes técnicas formais, como o sentido da coerência ser espacial e criado pelo jogador interno ao ambiente de jogo, por exemplo. No tocante às questões Quem? e Por quê? são esclarecidos alguns aspectos do adaptador, e da razão ou motivação em adaptar, diante da recorrente visão pejorativa e menor que teóricos mantém em relação a essas produções. O adaptador exerce um papel preponderante para o sucesso de uma adaptação, ou seja, para uma obra considerada bem sucedida dentro do suporte adaptativo. Todavia, vale salientar que o processo adaptativo pode vir a ser uma atividade coletiva, a depender da mídia na qual será produzida. Em atividades performativas, como o cinema, a título de exemplo, de cunho essencialmente colaborativo, existe uma diversidade de adaptadores, tais como: o roteirista, o diretor, o cenógrafo, o compositor, e inclusive os próprios atores, entre outros participantes. No entanto, faz-se importante destacar que, seja individual ou coletivo, o autor da adaptação traz no novo texto uma visão e uma intenção particular, fator agregador ao processo criativo e artístico que nos permite perceber uma nova obra. Segundo Hutcheon, o texto adaptado “não é algo a ser reproduzido, mas sim um objeto a ser interpretado e recriado, frequentemente numa nova mídia”. O teórico Gardies (s.d. apud HUTCHEON, 2011, p. 123) chama o texto adaptado de “reservatório de instruções – diegéticas, narrativas e axiológicas –, que podem ser utilizadas ou ignoradas”, sendo o adaptador inicialmente um intérprete e posteriormente um criador. E sejam quais forem as razões ou os estímulos para as adaptações – econômicas, legais, culturais ou até mesmo pessoais –, Hutcheon sugere pensá-


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las como “textos fluidos”, sendo assim, importante a realização de uma análise histórica, abarcando desde o processo criativo até essa fluidez textual. Dessa forma, adentramos no questionamento sobre a intencionalidade do autor/adaptador. Em A morte do autor, Roland Barthes (s.d. apud HUTCHEON, 2011, p. 150) questiona a primazia da intenção autoral como único caminho de atribuição de valor e significado de uma obra. E, durante décadas, a academia defendeu o espaço vazio do autor (espaço que pode ser preenchido por diferentes indivíduos), focalizado na dimensão textual, distanciando-se, assim, da análise do processo criativo (FOUCAULT, s.d. apud HUTCHEON, 2011, p. 150). Todavia, convém ressaltar que esse distanciamento do processo criativo não permite a compreensão global da necessidade de adaptar; e o esclarecimento extratextual da intencionalidade do autor pode contribuir para um entendimento do contexto de criação. Seria, então, de maior prudência considerar, expandindo o conceito artístico, que:

Uma obra de arte é algo que emerge da esfera privada, individual, dinâmica e intencional da mente e personalidade de seu criador; é, de certa forma [...] feita de intenções ou materiais intencionais. Porém, ao mesmo tempo, quando ela nasce, adentra uma esfera pública e de certo modo objetiva; ela deseja e recebe sobre seu significado e valor, numa linguagem de intersubjetividade e conceitualização (WINSATT,

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s.d. apud HUTCHEON, 2011, p.153).

Quanto ao quesito Como? parte-se da trajetória de explicar a adaptação como processo e adentra-se nela como produto também. Nesse caso, a criação e a recepção estão interligadas, uma vez que a intencionalidade do adaptador está diretamente relacionada a um público alvo imaginário. Certamente a teoria de Wolfgang Iser (s.d. apud COMPAGNON, 2003, p. 150) quanto ao leitor implícito, na ótica dos estudos da Recepção, convive no processo criativo desde o início. Iser justifica o leitor implícito ao qual o autor implícito se direciona, em uma espécie de pacto em que o autor implícito define as condições de entrada do leitor real no livro. A teoria da Recepção pode ser parcialmente responsabilizada pela mudança na forma como entendemos a recepção no modo de contar. O leitor, outrora considerado um receptor passivo do significado do texto, passa a ser um colaborador ativo no processo estético, trabalhando para a decodificação dos signos e para a construção do significado textual. Ainda diante da adaptação como produto, faz-se importante acrescentar as questões Onde? e Quando?, que referem-se principalmente à materialidade e


ao contexto – tempo, espaço, sociedade, cultura etc. – adaptacional. Hutcheon defende que a adaptação: como um produto – tem um tipo de estrutura formal de ― tema de variação, ou de repetição com diferença. Isso significa não apenas que a mudança é inevitável, mas que haverá também diferentes causas possíveis para essa mudança durante o processo de adaptação, resultantes, entre outros, das exigências da forma, do indivíduo que adapta, do público em particular e, agora, dos contextos de recepção e criação (Ibid., p.192).

A adaptação não é vampiresca: ela não retira o sangue de sua fonte,

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Contextos esses que se referem a um tempo e um espaço; a uma sociedade e uma cultura, abarcando desde o processo criador até a recepção da nova obra. As adaptações se espalham por todos os meios possíveis atualmente, seja cinema, teatro, quadrinhos, games, entre outros. Essa explícita popularidade tem gerado, talvez, uma recusa da crítica acadêmica ou da resenha jornalística em legitimar tais produções populares contemporâneas, considerando-as e propagando-as como derivativas, e até mesmo culturalmente inferiores. Verificamos a recorrente existência de uma sacralização do clássico, da literatura e da palavra. Segundo Robert Stam (s.d. apud HUTCHEON, 2011, p. 24), para alguns “a literatura sempre possuirá uma superioridade axiomática sobre qualquer adaptação, por ser uma forma de arte mais antiga”. Somando-se a isso à iconofobia, como a desconfiança em relação ao visual, bem como a logofilia, caracterizada pela sacralização da palavra. Para Hutcheon, uma das principais origens da depreciação do universo adaptacional foi a valorização (pós-) romântica da criação original e do gênio criativo. Sem ocultar, que, na realidade, tal visão negativa quanto a essas produções deve também a um acréscimo tardio ao velho e jovial hábito da cultura ocidental de emprestar e roubar, ou seja, de partilhar diversas histórias. Diante da retórica negativa recorrente dirigida à adaptação, surge uma proposta que uma adaptação deva manter-se por si só. Não se trata de uma cópia em um modo de reprodução qualquer. Entender que consiste em uma repetição, porém sem replicação, “unindo o confronto do ritual e do reconhecimento com o prazer da surpresa e da novidade” (Ibid., p. 229), faz-se de suma importância para compreender uma adaptação como tal, e não uma simples cópia derivada e secundária, mas sim de uma nova produção que independe do texto fonte. Uma justificativa convincente perante a negação dos acadêmicos, em torno da adaptação, é apresentada pela autora, de forma bastante singular:


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abandonando-a para a morte ou já morta, nem é mais pálida do que a obra adaptada. Ela pode manter viva a obra anterior, dando-lhe uma sobrevida que esta nunca teria de outra maneira (Ibid., p. 234).

Assim sendo, as obras da literatura clássica, por exemplo, outrora esquecidas e distanciadas, poderiam ser revisitadas e difundidas através da adaptação em quaisquer tipos de engajamento e meio. Seriam novas possibilidades criativas de construção do texto do qual se derivaram. Por esse fato, o pensar equivocado em torno da adaptação, o medo de que tais produções levem a obra fonte ao esquecimento, na verdade não procede, uma vez que a adaptação pode vir a ratificar a obra anterior, consistindo em um processo de transformação das histórias no decorrer dos tempos, e nas diversas culturas. O teórico Robert Stam (s.d. apud HUTCHEON, 2011, p. 58), ao tratar das adaptações cinematográficas, argumenta que as “mutações”, ou seja, que essas transformações adaptativas podem ajudar o romance-fonte a sobreviver. Assim sendo, se tais produções fossem necessariamente inferiores ou secundárias, não teriam sobrevivido. Podemos salientar ainda que, se é constitutiva da história da imaginação humana, a adaptação é então uma regra, e não a exceção. Outro aspecto intrigante, argumentado por Nelly Novaes Coelho (s.d. apud CECCANTINI, 1997, p. 6), seria o fato de que, se aceitamos e legitimamos o conceito de intertexto na literatura, a desconfiança no que concerne às adaptações deveria ser amenizada. E, segundo afirma a linguista búlgaro-francesa Julia Kristeva (1974, p. 64), todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de outro texto. Em lugar de noção de intersubjetividade, instala-se a de intertextualidade e a linguagem poética lê-se pelo menos como dupla 03.

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Assim sendo, uma vez que consideramos que a literatura se constrói como um ilimitado mosaico de influências e citações seja remota ou não, o preconceito contra as adaptações pode tornar-se infundado e inadequado. A perspectiva de Kristeva é ampliada na noção do dialogismo textual do teórico russo Mikhail Bakhtin (1997, p. 144), que aponta para o diálogo entre textos – como também entre gêneros, meios, formatos, mídias etc. − como um princípio constitutivo da própria linguagem. Bakhtin formula – referente às categorias de dialogismo ou polifonia – as concepções de discurso citado e discurso do outro:

03 Para Kristeva, a intersubjetividade refere-se à relação entre autor e leitor, que faz parte de um eixo horizontal. Já a intertextualidade pertence ao eixo vertical, referente à relação entre um texto e os demais com os quais ele dialoga.


O discurso de outrem constitui mais do que o tema do discurso; ele pode entrar no discurso e na sua construção sintática, por assim dizer, “em pessoa”, como uma unidade integral de construção. Assim, o discurso citado conserva sua autonomia estrutural e semântica sem nem por isso alterar a trama linguística do contexto que o integrou.

Dessa forma, a intertextualidade abarca uma relação dialógica entre textos em uma relação de coexistente na qual não há supressão ou perda entre os discursos, relação que remete à inter-relação de coexistência de uma obra adaptada e o texto fonte. Podemos, então, entender como produto das lições compartilhadas entre a teoria da intertextualidade, a desconstrução de Derrida, a rejeição de Foucault quanto à ideia de subjetividade unificada e as abordagens igualitárias – entre todas as mídias – da narratologia e dos estudos culturais que ser segundo não implica ser secundário ou inferior; e ser primeiro não legitima uma origem ou autorização. Embora essas produções sejam inerentemente palimpsestuosas, pois estão relacionadas declaradamente com outras obras, não significa dizer que não são trabalhos autônomos, podendo ser interpretados com aura própria, “presença no tempo e no espaço, uma existência única no local onde ocorre” (BENJAMIN, 1987 apud HUTCHEON, 2011, p. 27). A questão adaptacional nos remete inevitavelmente para a formação de leitores. É importante refletir que, apesar de questões de mercado editorial e vendagem, ao se adaptar um clássico, por exemplo, tenta-se ampliar o campo de circulação de uma obra que há tempos é quase desconhecida e lida por poucos leitores. No caso de obras bastante distanciadas das convenções e contextos estéticos e/ou linguísticos, podemos perceber um resgate e uma preservação de referências culturais que poderiam ter desaparecido no decorrer das gerações. Ainda que a obra fonte seja mais atual e mais popular, o consumo das adaptações pode ofertar no mínimo uma amplitude de interpretação crítica, ao mostrar enfoques e linguagens diferentes, o que pode, consideravelmente, corroborar para o aprofundamento da atividade leitora e até mesmo tornar obra mais lida e conhecida. 03.

HISTÓRIAS EM QUADRINHOS: CONTEXTO E LINGUAGEM

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Dentre as diversas formas de adaptar, as relacionadas à literatura e ao formato das Histórias em Quadrinhos são as que detêm atual destaque no discurso conflitante, uma vez que a aceitação dessas adaptações largamente questionada por escritores e acadêmicos entre outras esferas da sociedade. Sabemos que as HQs vêm fascinando leitores há mais de um século, pelo menos


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no formato conhecido atualmente, com histórias de super-heróis, policiais, humor, terror, dentre outros, variando no suporte, que vão desde tirinhas cômicas e charges publicadas em jornais às graphic novels04 de quatrocentas páginas, por exemplo. Concomitante às HQs é o crescimento das adaptações literárias para esse meio. O mercado editorial e os programas educacionais do governo motivam a venda e a leitura dessas produções nas escolas. Diante de tais considerações, no que concerne ao surgimento das Histórias em Quadrinhos, não há certeza em afirmar uma data precisa. Na história da humanidade têm-se registros da presença das ilustrações como uma espécie de narrativa desde civilizações pré-históricas. Segundo o quadrinista e estudioso do gênero Piero Bagnariol (1997, p. 9), “desde 30-40.000 anos atrás, na pré-história, o homem realiza pinturas e incisões em grutas e rochedos”. São o que a arqueologia denomina de mitogramas, que consistem em manifestações gráficas cujo sentido não está sujeito a uma leitura linear, mas a uma justaposição de contexto, como o desenho e a pintura. No entanto, Bagnariol (Ibid.) especifica que essas inscrições não devem ser caracterizadas como narrativas gráficas conforme conhecemos na atualidade. As antigas inscrições combinam signos e figuras em um só contexto, visando representar a realidade, como registro de caça e batalhas, por exemplo; enquanto que o formato atual tende a expressar conceitos abstratos. Considerada como o primeiro exemplo de cena única composta por texto e imagem sobre paisagem de fundo, a composição Estela da Vitória de Naram-Sin é proveniente da Mesopotâmia e representa a vitória do soberano da linhagem do rei acádio Sargão (2470 a.C.) em uma batalha. Outro importante exemplo dessas composições consta no Egito Antigo, desde o 3º milênio a.C., o Livro dos Mortos, o mais antigo livro ilustrado do mundo. Conforme afirma Bagnariol (1997, p. 23), “os egípcios deixaram exemplos de tiras ilustradas parecidas com as HQs”, quando retratava cenas de lutas, sendo os hieróglifos traduzidos ao pé da letra, através das imagens numeradas. Assim, seguiram outras civilizações com registros de inscrições, como os povos orientais através das representações binárias (linhas fragmentadas combinadas em três grupos) de elementos da natureza. Ou ainda as narrativas imagéticas dos deuses gregos entre os povos Cretenses, as imagens em baixosrelevos e hieróglifos sobre pedras dos Maias, bem como a abundante produção das histórias e imagens sagradas cristãs durante a Idade Média. O formato conhecido como Comics surgiu, segundo Álvaro de Moya (2003, p. 115), na imprensa norte-americana no fim do século XIX, em suplementos coloridos, com formato standard de oito colunas, do mesmo tamanho do jornal: “Depois, dobrado o jornal ao meio, começaram a ser publicados em formato tabloide. Mais uma dobra e 04 “Em meados do século XX, os artistas sequenciais se voltaram para obras mais longas, genericamente chamadas de graphics novels” (EISNER, 2010, p. 149).


surgiu o tamanho de comic book, popularmente chamado no Brasil de ‘gibi’”. Todavia, essa versão é controversa. Uma vez que verificam-se registros do formato das HQs modernas na França, em meados dos anos 1790, com a versão ilustrada da história de Perrault O gato de botas, produzida por Jean-Jacques Pellerin, impressa em cores e dispostas em sequências legendadas, de acordo com Piero Bagnariol (1997, p. 65). Segundo o também quadrinista e editor de HQ Fabiano Azevedo Barroso (1997, p. 122), o início dessas produções no Brasil deu-se em 1866, muito antes da criação do termo HQ , com Ângelo Agostini. O italiano, erradicado em território brasileiro, criou personagens populares como Zé Caipora – criado em 1883 para a Revista Ilustrada – e Nhô Quim, criado em 1869 para o semanário Vida Fluminense. Outra versão da gênese do formato comics, versão aceita pela maioria dos estudiosos, considera que o marco inicial deu-se em 1895, com a charge Yelow Kid, do americano Richard Outcault, a qual era publicada diariamente em jornais. A atribuição do mérito a Outcault gera polêmica, pois diversos personagens e álbuns já haviam sido lançados na Europa e no Brasil antes mesmo de Yellow Kid. Dessa forma, Barroso argumenta que não há data exata de nascimento para a HQ , considerada como arte que une imagens em sequência, somadas ou não a textos, que permitem ao leitor a ilusão do movimento. Tampouco foi ‘descoberta’ por alguém. A HQ passou por um longo processo não-linear através da história para vir a se tornar aquilo que, a partir do início do século XX, ganharia a denominação de comics, nos EUA, bande desinée, na França, fumetti, na Itália, mangá no Japão, e por

Os comics se popularizaram de tal forma que adentraram em outros campos além da leitura de lazer, como na publicidade, em cartilhas educacionais e até mesmo religiosas. Essa didática linguagem foi associada à literatura, principalmente à clássica, através das adaptações literárias; suporte esse mais popularizado entre o público brasileiro infanto-juvenil. Dentre os inúmeros conceitos referentes às Histórias em Quadrinhos, visualizamos a dificuldade em considerar uma definição em particular que possa abarcar a diversidade de formatos das HQs. De forma sucinta, poderíamos citar uma amplitude de tipos dessa mídia, a exemplo dos cartuns, das charges, das tiras cômicas, e das graphic novels, entre outras dessas produções. Entretanto, um fator coincidente entre a diversidade tipologia consiste na presença consubstancial da sobreposição de palavra e imagem. Essa, que requer do leitor somar habilidades interpretativas visuais e verbais, o que, segundo Will Eisner (2010, p. 2) culmina em um “ato de percepção estética e de esforço

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aí vai (1997, p. 77).


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intelectual”; dessa forma, o leitor encontra-se diante de uma narrativa visual, ou ainda de uma forma de arte sequencial à qual o próprio Eisner se refere. Além disso, entendemos as HQs como uma manifestação artística autônoma, bem como a literatura, o cinema, a pintura e o teatro, entre outras formas de expressão. Essa visão foi corroborada por diferentes autores, como Moacy Cirne (1977; 2000), Will Eisner (1989) e Daniele Barbieri (1998) (VERGUEIRO; RAMOS, 2009, p. 37) para os quais os quadrinhos já detinham uma emancipação e eram constituídos recursos próprios de linguagem. Assim sendo, compreende-se que a leitura dos quadrinhos, assim como outras formas de leitura, necessita de ambientação, ou conforme Vergueiro (2007, p. 31) afirma uma alfabetização para a compreensão da linguagem e recursos específicos de que o meio proporciona ao seu leitor. De acordo com o teórico, os dois códigos – o visual e o verbal – que compõem o sistema narrativo das HQs têm, cada qual, o seu papel específico, mas reforçam um ao outro garantindo que a mensagem seja entendida em sua plenitude. Ligados a cada um dos códigos, os autores de HQs, ao longo dos anos, foram desenvolvendo e aplicando elementos que passaram a fazer parte integrante da linguagem específica do gênero, permitindo-lhes atingir a rapidez de comunicação exigida por um meio de comunicação de massa por excelência. Alguns desses elementos específicos foram criados dentro do ambiente próprio dos quadrinhos. Outros vão buscar sua inspiração em diferentes meios e formas de expressão, tomando emprestado e apropriando-se de novas linguagens, adaptando-as

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conforme criatividade dos autores de HQs.

E no sentido de apropriação de linguagem, o meio que mais emprestou recursos de linguagem aos quadrinhos foi o cinema. Há uma aproximação entre os gêneros tanto histórica − uma vez que ambos surgiram como indústria na mesma época, ou seja, no fim do século XIX − como em relação à preferência de público (Ibid., p. 32). A imagem icônica é o elemento básico apresentado como uma sequência de quadros que trazem uma mensagem ao leitor, no geral uma narrativa ficcional ou real. Nesse contexto, a menor unidade narrativa é o quadrinho ou vinheta. No mundo ocidental, a sucessão de vinhetas é organizada no sentido da leitura do texto escrito – de cima para baixo e da esquerda para direita, diferente do sentido de leitura dos países asiáticos que se apresenta ao contrário. Similar é a ordem de leitura que ocorre dentro de cada quadrinho. De qualquer forma, a técnica de desenho utilizada nas HQs vai depender do objetivo de cada criador (VERGUEIRO, 2007).


Ligados à linguagem icônica estão elementos como o quadrinho, os planos e ângulos de visão e a montagem, entre outros. Os planos ou enquadramentos caracterizam-se pela forma como uma determinada imagem é representada, limitada em altura e largura, semelhante ao que acontece na pintura, na fotografia e no cinema. Os planos são classificados de acordo com a parte do corpo humano que representarem. O plano geral abrange toda a cena ou ambiente, o total ou de conjunto representa apenas as pessoas humanas, os personagens de corpo inteiro; o plano médio ou aproximado representa os personagens da cintura pra cima, com maior clareza dos traços fisionômicos, sendo muito utilizado em cenas de diálogos; plano americano retrata os personagens a partir da altura dos joelhos, “baseando-se na ideia de que, em uma conversação normal, nossa percepção da pessoa com quem se está falando se dilui a partir desse ponto da anatomia humana” (Ibid., p. 42). Temos ainda o primeiro plano, que limita o enquadramento à altura dos ombros da figura representada, e salienta o estado emocional e expressivo; e o plano de detalhe, ou pormenor, ou close-up, que limita o espaço em torno de parte de uma figura humana ou de um objeto em específico, realçando um elemento figural que o leitor normalmente não perceberia. Os ângulos de visão caracterizam-se pela forma como o autor deseja que a cena seja observada. No geral, são classificados em ângulo de visão médio, no qual a cena é observada a partir do ângulo do leitor; superior, no qual a ação é enfocada de cima para baixo, permitindo que os personagens sejam diminuídos, são utilizados em momentos de tensão ou suspense; e também o ângulo inferior, no qual se vê a ação de baixo pra cima, utilizado para enaltecer ou tornar a figura retratada mais forte do que realmente aparenta ser, comum em histórias de superheróis a fim de salientar a figura do protagonista. Temos também a montagem da História em Quadrinhos, que dependerá do tipo de narrativa e veículo em que será publicada. A montagem em uma tira de jornal será diferente às histórias de aventuras, por exemplo. De forma geral, em HQs mais extensas a página pode ser considerada como um grande bloco narrativo, representando um segmento de uma ação contada em várias páginas sequenciais. Em boas produções, ela é resultado de um planejamento deliberado, de forma a se encadear com aquilo que a precede e o que lhe é imediatamente posterior. Nesse planejamento, os autores e editores de quadrinhos estão especialmente atentos ao fato de que cada virar de página representa a perda de um pouco de atenção do leitor, que deve ser imediatamente recuperada nos primeiros quadrinhos que ele lê na página seguinte ou pode ser desviada para outro ponto da narrativa, 41

conforme os interesses imediatos do autor (VERGUEIRO, 2007, p. 49).


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Já as figuras cinéticas são recursos utilizados para dar uma ilusão de mobilidade, ou deslocamento físico nos quadrinhos, uma vez que as imagens são fixas. Há também as metáforas visuais que expressam ideias e sentimentos, reforçando o conteúdo verbal, e possibilitam um entendimento mais rápido da mensagem. São representadas por convenções gráficas que têm relação direta ou indireta com expressões do senso comum, como, “ver estrelas” ou “dormir como um tronco” entre outras (Ibid., p. 50). Em relação aos personagens, a maioria dos quadrinhos costuma ter um protagonista fixo – formato chamado de série – que se distingue esteticamente dos demais, seja pelas características físicas, seja pelas psicológicas ou sociais dentre as diversas possibilidades. As representações gráficas dos personagens vão depender do estilo da HQ. Uma história cômica tende a ter personagens caricatos; em uma história de aventura é mais recorrente o traço mais realista. No que concerne à parte escrita dos quadrinhos, tem-se a linguagem verbal para expressar desde a fala dos personagens e a voz do narrador às representações dos sons envolvidos nas narrativas, dentre outros elementos. Já em relação às formas de representações verbais, temos as onomatopeias – signos convencionais que representam ou imitam um som por meio de caracteres alfabéticos − e os balões de fala ou pensamento, que conforme variação gráfica das letras e delimitações constroem intrinsecamente a ideia que se quer passar. Como, por exemplo, um balão de linhas tracejadas pode transmitir a ideia de falar em voz baixa. Nesse âmbito, temos ainda a legenda ou quadro narratário, que representa a voz onisciente do narrador e é utilizada para situar o leitor no tempo e no espaço, indicar a mudança de localização dos fatos, avanço ou retorno no fluxo temporal, entre outros. Nos formatos mais clássicos, as legendas seguem delimitadas por um quadro na parte superior da cena; no entanto, atualmente encontramos uma infinidade de recursos que identificam a fala do narrador, desde cores diferenciadas a elementos tipográficos. Assim sendo, há grande probabilidade de uma pessoa não ambientada, adaptada a esse tipo de leitura não compreenda ou alcance a profundidade do seu conteúdo. Segundo Paulo Ramos (2010, s.p.), “ler quadrinhos é ler sua linguagem”. E dominar essa linguagem, até mesmo que em seus conceitos mais básicos, é condição para a plena compreensão da história e para a aplicação dos quadrinhos, seja em sala de aula, seja em pesquisas científicas sobre o assunto. Se ampliarmos a reflexão, percebemos que qualquer forma artística ou veículo de comunicação detém uma linguagem específica, além de necessitar de uma bagagem cognitiva para a compreensão e interpretação. Segundo o psicólogo alemão behaviorista Rudolf Arnheim (2008, p. 06), a própria percepção visual está longe do olhar objetivo e mecânico de uma câmera.


A visão não é um registro mecânico de elementos, mas a apreensão de padrões estruturais significativos. Embasado em um estudo das artes visuais sob uma perspectiva da psicologia da Gestalt, Arnheim afirma que, enquanto a matéria-prima da experiência foi considerada um aglomerado amorfo de estímulos, o observador parecia livre para manejá-la a seu bel prazer. O ato de ver era uma imposição inteiramente subjetiva da configuração e do significado sobre a realidade; e de fato nenhum estudioso de artes negaria que os artistas ou as culturas individualistas dão forma ao mundo segundo sua própria imagem. [...] O ato de olhar o mundo provou exigir uma interação entre propriedades supridas pelo

Nessa perspectiva, a designer norte-americana Donis A. Dondis (1991) também fala que grande parte da comunicação visual foi deixada ao sabor da intuição e do acaso. Assim, a autora referida propõe uma organização da leitura visual através do termo alfabetização visual; atenta-se para que, no entanto, para que não ocorra um excesso de definições. Dondis justifica o termo alfabetismo devido à grande importância concedida ao uso da palavra. Enquanto que no alfabetismo verbal se espera que as pessoas sejam capazes de ler e escrever antes mesmo de compreender as mensagens escritas, a alfabetização visual vai além do funcional: “A visão é natural; criar e compreender mensagens visuais é natural até certo ponto, mas a eficácia de ambos os níveis só pode ser alcançada através do estudo” (Ibid., p.16). Da mesma forma, na recepção das HQs se faz necessária uma adaptação ou uma educação visual para a leitura dessa linguagem particular. Talvez a criança que já tenha sido acostumada desde a infância com a linguagem dos quadrinhos consiga compreender o conteúdo com mais plenitude. Enquanto que um adulto que nunca leu Histórias em Quadrinhos tenha dificuldade para apreender e, dessa forma, assimilar aquele tipo de linguagem e contexto ao qual não está habituado. No entanto, no que concerne à utilização de conceitos, optamos por acreditar que no processo da leitura de imagens ocorre uma instrumentalização, em vez de uma alfabetização visual, uma vez que o termo proposto por Dondis, em relação à palavra alfabetização – também indicada por Vergueiro (2007) − ainda remete a uma relação de dependência da imagem em relação à palavra escrita. A imagem está massivamente presente na realidade atual, e precisamos enfrentá-la, ou seja, saber instrumentalizá-la para alcançar toda a sua complexidade, ao invés de negá-la e excluí-la a um patamar hierárquico inferior ao qual ela não pertence. Nesse aspecto, a imagem, quando utilizada junto ao texto escrito, vislumbra

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objeto e a natureza do sujeito que observa.


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um produto em que imagem e texto se complementam e se valorizam, a exemplo do formato das Histórias em Quadrinhos que abarcam um sistema de relação interdependente e simultânea entre a parte escrita e a parte imagética. 04.

O BOOM DAS ADAPTAÇÕES EM QUADRINHOS NO BRASIL

As Histórias em Quadrinhos datam de suas criações por ilustradores e escritores brasileiros desde meados do século XIX. De acordo com Fábio A. Barroso (1997, p. 122), a saga dos quadrinhos no Brasil iniciou-se em 1866, “com a publicação das charges e ilustrações de Ângelo Agostini no semanário Cabrião, na cidade de São Paulo”. Segundo Gilberto Maringoni (2011, p. 41), Ângelo Agostini viria a ilustrar também diversas produções de cunho satírico e revolucionário, como Don Quixote (1895-1903) e O Malho (1904-1907), entre outros. Dessa forma, o jornalista e ilustrador Agostini é considerado por estudiosos do gênero como o pioneiro das Histórias em Quadrinhos no Brasil, com o formato conhecido atualmente. Porém, no formato revista com histórias completas, o marco inicial deuse com Tico Tico, lançada em 1905, que tanto reproduzia histórias estrangeiras de sucesso como também criações brasileiras. No decorrer do século XX, jornais e editoras lançaram produções semelhantes como: a Gazeta Infantil (1929-1950), o Suplemento Juvenil (1934-1945), o Globo Juvenil (criado em 1937), e o Gibi (revista lançada em 1939, cujo nome passou a intitular os Comics no país), entre outros do gênero (SILVA, 2003). No caso das adaptações no Brasil, Adolf Aizen foi o grande incentivador do processo, quando, através de sua Editora Brasil-América (EBAL), iniciou essas produções. Os teóricos Álvaro de Moya e Otacílio D’Assunção (2002, p. 42) afirmam que Aizen comprou os direitos de publicação do Classic Comics – populares adaptações de clássicos literários nos EUA, lançadas na década de 1940 –, os quais constituíram a base da série Edição Maravilhosa. O primeiro número da série foi lançado em 1948 com a obra-prima de Alexandre Dumas, Os três Mosqueteiros (MOYA; CIRNE, 2012). Todas as produções da Edição Maravilhosa eram referentes à literatura clássica estrangeira. Apenas em Agosto de 1950, o número 24 da série apresentou a adaptação ilustrada do romance brasileiro O Guarani, de José de Alencar, e assinada pelo artista André Le Blanc, de carreira conhecida internacionalmente. No entanto, a criação de Le Blanc não fora a primeira adaptação de O Guarani, uma vez que, segundo Moya e D’Assunção (2002, p. 47), houve diversas produções antes disso. Uma delas, realizada em 1938, pelo pintor e estudioso F. Acquarone em um álbum em formato horizontal editado pelo Correio Universal de São Paulo. Todavia, os autores consideram a quadrinização da obra de Alencar por Le Blanc como superior às


anteriores, por essas trazerem desenhos irregulares (MOYA; CIRNE, 2012). A parceria da EBAL com André Le Blanc rendeu outras adaptações de clássicos nacionais que se popularizaram por todo país, principalmente obras de José de Alencar como Iracema (1951), O tronco do Ipê (1952) e Ubirajara (1952) fizeram parte da Edição Maravilhosa. Atualmente verificamos uma preocupação com o estímulo da leitura vinculado a um boom da produção de adaptações dos clássicos literários para as Histórias em Quadrinhos. A editoração e a distribuição foram estimuladas pelo Ministério da Educação principalmente através do Programa Nacional Biblioteca na Escola (PNBE), uma vez que, em 2007, as Histórias em Quadrinhos foram incluídas nos acervos, distribuídos em bibliotecas escolares. Segundo Rachel Bonino (2009, p. 43), em 2009, as HQs representam 4,2% dos 540 títulos listados no programa. Sendo assim, visa uma formalização “desse gênero textual no ambiente escolar, que já tinha seu emprego reconhecido pela Lei de Diretrizes e Bases (LDB) e pelos parâmetros Curriculares Nacionais (PCN)”. No entanto, as opiniões referentes a tais produções são divergentes. Acadêmicos, pais e professores, muitas vezes, nutrem dúvidas se servirão de substitutas para a leitura dos originais, como um resumo de livro, distanciando assim os leitores das obras literárias. Contudo, há quem entenda as adaptações como forma de convidar os jovens leitores a interessarem-se pela história, aproximarem-se do universo juvenil para que eles também leiam os originais, enriquecendo, assim, as possibilidades de leituras. Os quadrinhos não substituem a literatura, mas podem criar outro universo de conhecimento. Assim, o estudante que jamais gostaria de ler um livro no Ensino Médio pode começar a conhecê-lo pelos quadrinhos

Dessa forma, ler uma obra primeiramente através dos quadrinhos não impede a criação de imagens mentais ao se conhecer uma obra original. Na visão de Abrahão (s.d. apud SANTOS, 2001, p. 49), a sequencialidade narrativa constitutiva das HQs assume “o caráter de verdadeiro relato visual ou imagístico, que sugestivamente se integra com as rápidas conotações do texto escrito”, corroborando para o entrosamento das duas formas de linguagem: a palavra e o desenho; o que torna mais interessante o conteúdo a ser lido ou estudado, além de exigir do leitor uma maior percepção do meio empregado. Assim, percebemos que os clássicos redesenhados levam o público tanto a gostar de quadrinhos como também a conhecer as obras literárias que lhe deram origem; e, por isso, consideramos importante um novo olhar perante as adaptações,

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e continuar depois conhecendo a obra original (ARAÚJO, 2007. p. 46).


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entendê-las como releituras e como chance de enriquecimento de conhecimentos e ampliação da leitura. Mediante às considerações até o momento tratadas, verificamos uma fundamental importância que as produções em quadrinhos baseadas em obras literárias sejam avaliadas como arte autônoma, e não à sombra do texto fonte. Porém, se pensarmos nessas produções como um caminho para a leitura da obra literária, o interesse maior passa a ser o texto fonte. No que se refere à leitura dos clássicos literários no Brasil, é constatado que, durante o ensino médio, tais obras são inseridas em sala de aula como uma forma de obrigação de leitura que objetiva a aprovação no exame de vestibular. Em realidade, exames como o vestibular ou Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), realizados no país, parecem resumir o decorrer de uma vida estudantil em um momento único, decorrendo em questionáveis critérios avaliativos de conhecimento dos estudantes. Esses exames geram um verdadeiro comércio em torno deles, em que escolas, cursos e editoras trabalham seus conteúdos para esse único objetivo. O norte da educação brasileira passa a ser orientado pelos ditos vestibulares em uma conjectura de política educacional e editorial. Assim, se para aprovar o aluno nos exames de ingresso para a universidade é preciso também ler os clássicos oficialmente indicados nos editais das comissões organizadoras das provas, então a forma mais prática se dá através de resumos ou outros tipos de substitutos das obras literárias. Nesse processo, o que menos parece importar são a formação leitora e a aquisição de conhecimento por parte dos estudantes, inclusive a formação de indivíduos; exceto esforços de alguns bravos educadores e idealizadores de uma educação integral. Há um sério equívoco nessa forma de ver a leitura; uma vez que é passada uma ideia de dever e não do prazer em ler. É importante, então, que haja um processo de identificação entre o leitor e a obra a ser lida, que haja o prazer nessa ação para se adquirir a consciência da importância disso. Para Vera de Aguiar e Maria Bordini (1993, p. 18), “a familiaridade do leitor com a obra gera predisposição para a leitura e o consequente desencadeamento do ato de ler”. Dessa forma, parte-se dos fatores de aproximação com o público leitor para os fatores desconhecidos, o que não significa limitar-se apenas aos interesses dos leitores: O ato de ler é, portanto, duplamente gratificante. No contato com o conhecido, fornece a facilidade da acomodação, a possibilidade de o sujeito encontrar-se no texto. Na experiência com o desconhecido, surge a descoberta de modos alternativos de ser e de viver. A tensão entre esses dois pólos patrocina a

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forma mais agradável e efetiva da leitura (Ibid., p. 26).


Ao romper com o sentido da obrigatoriedade, a leitura supera a repulsa à disciplina escolar, a fim de possibilitar a conversão em atividade espontânea e estimulante, desencadeadora de momentos aprazíveis. Após as discussões em torno do processo adaptacional e da atividade leitora, elementos discutidos neste livro, podemos verificar que o acesso à leitura originária pode ser somado ao enriquecimento de leitura das diversas adaptações, sem necessariamente haver uma exclusão ou ainda uma hierarquização de valor. A partir dessa linha de pensamento, Lielson Zeni, no ensaio Literatura em Quadrinhos, da coletânea Quadrinhos na Educação, organizada pelos estudiosos Paulo Ramos e Waldomiro Vergueiro (2009, p. 133), apresenta uma proposta metodológica de como as HQs podem ser trabalhadas em sala de aula para a motivação da leitura. Uma discussão inicial na sala de aula pode ser sobre o que a adaptação acrescenta à história original, o que ela omite, se a caracterização dos personagens e ambientes condiz com o texto livro. A ideia é que a adaptação seja um dos modos utilizados pelo professor para incentivar os alunos à leitura da obra original e também um material auxiliar para atividades relacionadas a essa leitura.

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Nesse caso, o professor exerce o papel de mediador, o que torna preponderante uma leitura antecedente das obras e a verificação de que modo funciona a relação entre a criação fonte e a obra adaptada, a fim de direcionar seus alunos a um direcionamento crítica acerca da análise dos textos lidos, “em busca de qual tipo de significação a linguagem gráfica sequencial constrói”. Não há a intenção em hierarquizar ou marginalizar os diferentes formatos, e o professor pode avaliar junto aos alunos fatores como: a importância do quadro – formato, tamanho, linha de contorno, o papel do entrequadro – espaço entre um quadrinho e outro, cor, a padronização para a história; as cores e os traços com relação ao que está escrito, etc. Nesse tipo de análise, os alunos devem ser instigados a desvendar como esses elementos podem representar o trabalho artístico da obra literária, e, para tanto, faz-se interessante relacionar o quanto do original é recuperado pela obra adaptada. Cabe ainda desenvolver as análises sobre cada uma das obras, e na sequência observar o funcionamento das propriedades específicas de cada arte. Assim sendo, verificamos uma leitura intersemiótica, somada à leitura de imagens, à leitura das Histórias em Quadrinhos e à leitura literária; um estudo comparativo de diferentes suportes que convergem para o tema em uma criativa e ampliadora possibilidade de conhecimento.


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A adaptação é uma leitura que se transpõe em releitura e, com essa releitura, alguns elementos estruturadores do texto de origem ganham destaque e, por consequência, reapresentam a estrutura do texto original e sua relação com o conteúdo e com a forma, trazendo uma nova, porém não definitiva, leitura para a obra original (ZENI, 2009, p. 141).

Diante do que foi exposto, consideramos fundamental entender que o autor, ao chamar o texto fonte por “obra original”, não remete à palavra original uma conotação de superioridade, mas sim como algo do qual outro elemento foi originado ou derivado, uma vez que, em todo o decorrer de sua proposta metodológica, transparece uma visão em torno da adaptação como constantemente interligada à obra fonte, porém independente dessa. Portanto, compreendemos a necessidade de haver um programa de formação continuada que intenta preparar os professores para instrumentalizar e mediar às leituras aqui mencionadas junto aos alunos, a fim de que ambos entendam as adaptações em quadrinhos como obra autoral e agregadora de conhecimento, e possam usufruir desse cunho cognitivo e do prazer estético peculiar que o formato oferece.


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TRÊS PERSPECTIVAS DE ADAPTAÇÕES DE TRISTE FIM DE POLICARPO QUARESMA

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Triste Fim de Policarpo Quaresma é considerado um dos clássicos da literatura brasileira. O livro foi publicado inicialmente em folhetins do Jornal do Commercio do Rio de Janeiro, entre agosto e outubro de 1911, sendo produzido como volume cinco anos depois. A obra fomenta uma crítica à política e à sociedade do final do século XIX, que permanece atemporal em suas questões, permitindo conhecer uma das representações ficcionais mais abrangentes do quadro social nos primeiros anos da República. O romance se ocupa também de aspectos referentes a fatos sócio-históricos ocorridos durante o período da presidência de Floriano Peixoto (1891-1894). A ação estética dessa obra é perpassada de complexidade e profundidade, pois fazendo-nos achar graça e, ao mesmo tempo, ter pena – e até raiva – do seu “doce, bom e modesto” Quaresma [...] sensibilizando-nos de modos diversos e simultâneos, o autor ativa a percepção da nossa e da alheia possibilidade de aglutinar sentimentos contraditórios frente a um ‘real’ contraditório (DIAS, 2003, p. 7)01.

01  Cf. Prefácio da edição de Triste Fim de Policarpo Quaresma. 23. ed. São Paulo: Ática, 2003.

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E assim esse romance tragicômico conta a história do patriota-visionário e incompreendido pela sociedade Major Quaresma, dividido entre a sanidade e a loucura. A história do singular personagem Policarpo Quaresma é amplamente estudada, sendo a leitura constantemente indicada aos estudantes do Ensino Médio no país. Segundo Antônio Candido (2010, p. 81), é uma sátira dos equívocos do patriotismo – amplamente invocado naquela fase inicial da República –, na qual se narra “a destruição de um inofensivo idealista pela realidade feia e mesquinha da política e dos fariseus”. A obra se insere em um momento pré-modernista da literatura brasileira, no qual o escritor propõe uma ruptura com a tradição literária, através de “atitudes favoráveis à renovação que viria a partir de 1922, com a Semana de Arte Moderna”, procurando estabelecer uma literatura mais


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próxima do cotidiano popular a fim de diminuir a distância entre escritor-público −fator muito presente na virada do século XIX, através do culto ao academicismo aristocrático, difundido por escritores como Machado de Assis, Rui Barbosa e Coelho Neto, dentre outros (FREIRE, 2011, p. 49). Candido (Ibid., p. 77) afirma que a escola parnasianista02 brasileira se articulou ao purismo gramatical e ao rebuscamento da linguagem, fatores que, atrelados à volta aos clássicos, marcam uma atitude aristocrática e formam um traço saliente do período entre os anos 1800 aos 1920, que corresponde a um desejo generalizado de elegância ligado à modernização urbana do país, sobretudo sua capital, Rio de Janeiro. Do ponto de vista da literatura, foi uma barreira que petrificou a expressão, criando um hiato longo entre a língua falada e a língua escrita, além de favorecer o artificialismo que satisfaz as elites, porque marca distância em relação ao povo [...]. Essa cultura acadêmica, geralmente sancionada pelos Poderes, teve a utilidade de estimular, por reação, o surto transformador do Modernismo, a partir de 1922.

E assim, o escritor Lima Barreto remete à cultura popular que encontra expressão não somente na linguagem – fator propiciador do estranhamento que a obra causou no meio literário da época – mas também na música, na dança e nas formas de reunião social, presentes, inclusive em Triste Fim de Policarpo Quaresma. Em entrevista ao periódico Amplius, em 1916, Barreto responde a críticas sobre esse romance e reafirma seus ideais estético-literários: Parece-me que o nosso dever de escritores sinceros e honestos é deixar de lado todas as velhas regras, toda a disciplina exterior dos gêneros e aproveitar de cada um deles o que puder e procurar, conforme a inspiração própria, para tentar reformar certas usanças, sugerir dúvidas, levantar julgamentos adormecidos, difundir as nossas grandes e altas emoções em face do mundo e do sofrimento dos homens, para soldar, ligar a humanidade em uma maior, em que caibam todas, pela revelação das almas individuais e do que elas têm de comum e dependente entre

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si (BARRETO, s.d. apud FREIRE, 2011, p.49).

02 De acordo com Candido (2010), entre o decênio 1880 e o começo dos anos 1890 surgiram sucessivamente o Parnasianismo e o Simbolismo no país, inspirados nos movimentos franceses de mesmo nome. Os parnasianos brasileiros se distinguem dos românticos – anteriores – pela atenuação do sentimento e da melancolia, bem como pela ausência quase total de interesse político na obra e pela acuidade exacerbada da escrita. O Simbolismo que remetia ao gosto pela imprecisão, ao vocabulário místico, à quebra de rigidez no verso e à prática do verso livre, apesar de certo intuito oposto ao formalismo parnasiano, não sobressaiu à estética imponente da literatura oficial vigente na época.


A partir disso, dedicaremos essa seção à análise de três adaptações da obra barretiana para o formato das Histórias em Quadrinhos, de acordo com os estudos anteriormente explanados, referentes ao campo da leitura de imagens, bem como da recepção e adaptação de uma obra. Entretanto, antes de iniciarmos as análises, consideramos importante fazermos uma breve explanação sobre os elementos paratextuais, os quais, nessas produções, apresentam um caráter diferencial para entendermos o processo adaptativo – conforme veremos no decorrer das análises. De acordo com Gérard Genette (2009, p. 9), um texto ou uma obra raramente se apresentam em estado nu, sem o reforço e o acompanhamento de certo número de produções verbais ou não, como um nome de autor, um título, um prefácio, ilustrações, que nunca sabemos se devemos ou não considerar parte dele, mas que em todo caso o cercam e o prolongam, exatamente para apresentá-lo, no sentido habitual do verbo, mas também em seu sentido mais forte para torná-lo presente, para garantir sua presença no mundo, sua “recepção” e seu consumo, sob a forma, pelo menos hoje, de um livro.

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Dessa forma, o autor considera como paratexto tudo por meio de que um texto se torna livro e se propõe dessa forma a seus leitores, um discurso fundamentalmente heterônimo e auxiliar “a serviço de outra coisa que constitui sua razão de ser”, isto é, o próprio texto. São elementos que fazem parte da obra e exercem uma importância constitutiva para a sua recepção. Genette classifica ainda os paratextos em peritexto – uma categoria espacial, a exemplo de elementos como título, capa, prefácio ou notas, entre outros – e epitexto – referente a todas as mensagens que se situam na parte externa do livro, em geral em um suporte midiático, como conversas e entrevistas, ou sob a forma de comunicação privada, a exemplo das correspondências e diários, entre outros. No caso das produções a serem analisadas, dentre os elementos peritextuais destacamos a capa e o posfácio. Esse último constituído por algumas seções explicativas do autor do texto fonte, ou dos adaptadores, e do relato do processo de adaptação realizado pelos adaptadores. Acreditamos que essas informações, a depender de suas abordagens, tenham grande relevância para o esclarecimento e o reconhecimento de uma adaptação. Após essa breve ambientação explanatória sobre algumas questões importantes dos elementos paratextuais, vamos enfim às análises das adaptações literárias para as HQs com suas características e enfoques diversos.


ADAPTAÇÃO DOS CLÁSSICOS LITERÁRIOS PARA OS QUADRINHOS · Uma análise do caso Policarpo Quaresma

01.

À PROCURA DA FIDELIDADE (VERSÃO DE HOLANDA)

A primeira versão a ser analisada foi produzida, em 2008, pela Companhia Editora Nacional, adaptado pelo artista gráfico e cartunista Lailson de Holanda Cavalcanti. Lailson03 nasceu no Recife em 1952, e, além de autor de quadrinhos, é também pesquisador de humor gráfico. Começou sua carreira em 1971, durante a bolsa de estudos nos Estados Unidos, no jornal estudantil The Pine Cone, no qual recebeu o prêmio Award For The Best Original Artwork, concedido pela Arkansas High School Press Association. Teve diversos trabalhos publicados, com ênfase nas charges de cunho político, em veículos de imprensa como Revista Visão, O Pasquim, Bundas, MAD (edição brasileira), Miami Herald, Cagle Cartoons, Jornal do Brasil e Diario de Pernambuco, entre outros. O autor foi ainda premiado tanto em território brasileiro como no exterior – Canadá, Estados Unidos, e Portugal. Além disso, desenvolveu pesquisas sobre o humor gráfico, resultando nos livros Humor Diário, publicado através da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE, 1997) e Historia Del Humor Gráfico en El Brasil, através da Universidade de Alcalá de Henares (Espanha, 2005). Essa adaptação faz parte da Coleção Quadrinhos Nacional, bem como as seguintes publicações: O Alienista (2013), também por Lailson de Holanda; O corcunda de Notre Dame (2008) por Michael Ford; Macbeth (2010) por Stephen Haynes; Moby Dick (2008) por Sophie Furse e Penko Gelev; O fantasma de Canterville (2012) por Seán Wilson e Steve Bryant; Oliver Twist (2008) por John Malam e Penko Gelev; Os três mosqueteiros (2010) e O homem da máscara de ferro (2010) por Jim Pipe; A ilha do tesouro (2008), Raptado (2009), O médico e o monstro (2010), Drácula (2010), Frankenstein (2010) e Viagem ao centro da Terra (2011) por Fiona Macdonald04. A Companhia Editora Nacional classifica, em seu site na internet, tais produções como “literatura > juvenil > quadrinhos”05 e, em muitas delas, não encontramos a informação do adaptador nas descrições sobre a obra, a não ser pelo texto da capa. A editora também não disponibiliza, em site, os nomes dos tradutores das adaptações internacionais. Tal fato nos leva a refletir sobre a não legitimação do mercado editorial para com os adaptadores como produtores de uma nova obra, a qual continua a ser atribuída ao autor do texto fonte. Em contrapartida, já podemos perceber essa perspectiva se transformando ao encontrarmos, em alguns sites de venda e 03

Fonte: Triste Fim de Policarpo Quaresma, Companhia Editora Nacional, 2008.

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04 Autores das obras fonte respectivamente: Machado de Assis; Victor Hugo; William Shakespeare; Herman Melville; Oscar Wilde; Charles Dickens; Alexandre Dumas; Idem; Robert Louis Stevenson; Idem; Idem; Bram Stoker; Mary Shelley; e Júlio Verne. 05 Fonte: asp?colecao=39#>

<http://www.ibep-nacional.com.br/nacional2010/htdocs/script/fBusca.


editoras, a preocupação em descrever, inclusive na capa da produção, a preposição por, como veremos mais adiante nas outras análises. 02.

CAPA, ELEMENTOS PARATEXTUAIS E ENFOQUE DA OBRA

Retornando para a versão de Lailson de H. Cavalcanti, nos deparamos com uma capa simplista com algumas imagens do conteúdo, a partir do que podemos esperar uma HQ no formato mais tradicional. Esse formato acompanha todas as versões da coleção Quadrinhos Nacional.

Figura 1 - Ilustração da Capa 1 Fonte: Triste fim de Policarpo Quaresma, Companhia Editora

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Nacional, 2008.


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Figura 2 - Personagens

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Fonte: Triste fim de Policarpo Quaresma, Companhia Editora Nacional, 2008.


Adentrando ao início da obra, encontramos uma apresentação inicial dos personagens (figura 2) em uma espécie de árvore genealógica que aponta para um objetivo didático e pedagógico, podendo levar o leitor a um resumo do que encontrará nas próximas páginas. Esse reducionismo priva os leitores de uma descoberta ou um reconhecimento gradual dos personagens, o que enriqueceria e construiria um enredo mais estimulante da atividade leitora, principalmente no que concerne à questão cognitiva. O processo da leitura decorre em um trajeto prazeroso que o mundo ficcional proporciona. Roland Barthes (1984) defende a existência de uma erótica do texto, uma paixão pelo sentido. Há uma força irresistível que o bom livro detém ao proporcionar a quem lê um permanente desejo de seguir adiante, em busca da construção do sentido, culminando em um verdadeiro êxtase quanto ao final da estória (CALVINO, s.d. apud MACHADO, 2002. p. 21). Barthes (1984, p. 35) nos remete ainda à perspectiva da leitura desejante marcada por dois traços fundadores. No primeiro, o leitor volta-se para o livro, para o mundo ficcional. Ao fechar-se para ler, ao fazer da leitura um estado absolutamente separado, clandestino, no qual o mundo inteiro é abolido, o leitor – o lente – identifica-se com dois outros humanos [...] cujo estado requer igualmente uma separação violenta: o sujeito amoroso e o sujeito místico; Teresa de Ávila fazia nomeadamente da leitura o substituto da oração mental; e o sujeito amoroso, como se sabe, é marcado por uma retracção da realidade, desinveste-se do mundo exterior. Isto confirma bem que o sujeito-leitor é um sujeito inteiramente deportado sob o registo do Imaginário; toda a sua economia de prazer consiste em cuidar da sua relação dual com o livro [...] fechando-se a sós com ele, colado a ele, de nariz em cima dele, como ouso a dizer, como a criança colada à

Enquanto que o segundo traço, constituinte da leitura desejante, engloba a miscelânea de emoções de cunho prazeroso produzidas por essa leitura: “o fascínio, a vacância, a volúpia; a leitura produz um corpo perturbado, mas não fragmentado”. Em Como e por que ler os clássicos Universais desde cedo, Ana Maria Machado (2002) afirma que esse prazer refere-se também ao prazer de decifração, de exploração daquilo que é tão novo que parece difícil e, por isso mesmo, oferece obstáculos e atrai com intensidade. O processo é constituído pelo leitor se permitir ser conquistado por aquelas ideias e sentidos, tentando, ao mesmo tempo, conquistar e vencer as dificuldades da leitura.

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Mãe e o Amoroso suspenso do rosto amado.


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Dessa forma, a constante intenção didática imposta pelo mercado editorial, presente em muitas dessas produções, interrompe uma construção cognitiva de apreensão da leitura, levando ao empobrecimento e à limitação do conhecimento a ser adquirido. E aos que nos questionarem sobre o fato dessas produções serem uma adaptação de uma obra já existente, o proclamado original, não havendo, portanto, uma função de existir o elemento surpresa – o que mais uma vez nos remete ao imediatismo e à mediocridade que essa abordagem carrega –, apresentamos o prazer da replicação e da adaptação explanado pelo romancista Julian Barnes. Barnes (s.d. apud HUTCHEON, 2011, p. 161) remete a uma rivalização da realidade, na qual “nós devemos exigir a réplica, já que a realidade, a verdade e a autenticidade da réplica é aquela que podemos possuir, colonizar e reordenar”. No caso da adaptação, o prazer do reconhecimento, da familiaridade adicionado à revisitação de um tema com variações, com a presença da reinvenção. Nesse aspecto, consideramos importante salientar que o entendimento de reconhecer e familiarizar-se com algo não tem a conotação análoga de facilitar o conteúdo, ou entregar uma estrutura pronta para ser consumida. Entretanto, devemos atentar para o fato de que a presente obra foi produzida em meio ao boom das adaptações literárias para quadrinhos no Brasil, promovido através de editoras junto à política dos vestibulares e à produção da famigerada literatura paradidática para jovens (FERREIRA, 2013). Para Ermelinda Ferreira (Ibid., p. 3), estamos diante de uma supremacia da palavra escrita, restando aos quadrinhos um lugar mais humilde dentro de uma “concepção imagética de entretenimento superficial e descartável; ancorada, no máximo, ao dignificante papel de auxiliadora do aprendizado da leitura”. Percebemos uma soma de fatores que abrangem desde a ineficácia da metodologia de incentivo à leitura na formação dos estudantes, adotada pelas escolas brasileiras; a precariedade das bibliotecas públicas e o valor elevado dos livros; e os cursos preparatórios para o ingresso nas universidades que adotavam resumos e resenhas das obras literárias elencadas para os exames de vestibular. Tais fatores associados à tendência contemporânea e frequente da substituição da leitura das obras literárias através das adaptações dos livros para o cinema, “gerou distorções irreparáveis resultantes da confusão criada pelo entendimento errôneo da adaptação como ‘tradução’ intermeios”. Quando a percepção do texto literário como uma criação complexa e completa em seu suporte específico foi substituída pela necessidade da mera apreensão do enredo, os quadrinhos se afiguraram como opções

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interessantes e até superiores, no que concerne à “fidelidade” ao original exigida por este uso didático, aos resumos e às versões fílmicas das


obras – embora tão equivocada quanto eles (Ibid., p. 4).

Assim sendo, temos ainda os resquícios desse ideal pedagogizante das HQs, observando inclusive que a produção de Lailson de Holanda remete a um autor apenas como roteirista e ilustrador. Tendência que já não mais percebemos no cenário atual, em que são exigidos um profissional pra cada aspecto da obra, com fins de uma alta qualidade estética e maior profundidade narrativa, como é o caso das duas adaptações que serão analisadas posteriormente neste livro, as quais são produzidas de acordo com os parâmetros das narrativas gráficas, conceito que desenvolveremos no decorrer das análises. Em relação aos elementos paratextuais, encontramos um posfácio com informações sobre Lima Barreto (autor do clássico), Lailson de Holanda (autor da adaptação), um glossário de palavras e uma seção intitulada de Adaptando Lima Barreto para os quadrinhos, na qual o autor descreve o processo de adaptação explicando algumas escolhas de cenas, entre outros elementos. Nesse momento, Lailson Cavalcanti (2008) apresenta Triste Fim de Policarpo Quaresma como uma dura e objetiva análise dos primeiros anos de República no Brasil, na qual Barreto descreve os interesses sórdidos de uma elite oportunista diante da queda da Monarquia, os costumes de uma alta sociedade suburbana e dos ideais positivistas distorcidos e impostos pelo regime republicano. O autor afirma ainda para seus leitores que o protagonista da obra reflete todo o ideário nacionalista e ufanista daquela época, quando o Brasil buscava os elementos identitários na formação de uma nação independente. Policarpo é descrito como “um legítimo discípulo do doutor Pangloss (personagem do romance Cândido, de Voltaire, que acreditava que o mundo era perfeito)”, pois acredita ter nascido no melhor e mais promissor país do mundo. É importante observarmos que, em contrapartida à maioria das leituras que relaciona o personagem Policarpo ao Dom Quixote de La Mancha, temos aqui uma diferente interpretação do adaptador de caráter inovador ao trazer a referência de um personagem de Voltaire, apontando para o caráter recriacional da adaptação. O filósofo francês Voltaire, proveniente da escola iluminista, publicou Cândido em 1759. Conforme comenta Nélson Jahr Garcia (2001)06, em prefácio a uma das edições brasileiras da obra, “o texto contrapõe ingenuidade e esperteza, desprendimento e ganância, caridade e egoísmo, delicadeza e violência, amor e ódio. Tudo isso mesclado com discussões filosóficas sobre causas e efeitos, razão suficiente, ética”07. A obra de cunho satírico ironiza os costumes, a cultura, as artes, bem como as ideias otimistas do também filósofo e cientista de origem alemã Gottfried

07

Ibid.

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06  Cf. Prefácio da edição disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ cv000009.pdf>.


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W.Leibniz08, ao qual Voltaire atribui a crença de que o mundo é o melhor possível e que Deus não poderia ter construído outro. Todavia, era incompatível com o filósofo francês partilhar dessa visão otimista, uma vez que suas ideias “tinham resultado em prisões e perseguições a tal ponto que, por volta de 1753, já não podia fixar-se, sem risco, em lugar algum da Europa” 09. O símbolo maior dessa obra está representado no personagem do Dr. Pangloss, o qual concentra toda teoria do otimismo e tem como devoto discípulo o protagonista Cândido, que reproduz religiosamente a filosofia do mestre. Cândido absorve a filosofia de Pangloss e aceita cegamente como palavra inquestionável da verdade sobre o mundo. Suas peregrinações dão a ele alguns solavancos e depois de algum tempo, quando ele vê que o catecismo de Pangloss não consegue explicar os males e as calamidades da vida real, ele deixa de recitar os artigos de fé otimista que ele aprendeu com seu primeiro mentor (SIEBURTH, 1982, p.103, tradução nossa) 10.

Por esse ângulo, o amável Cândido e o sábio Pangloss assemelham-se com Quixote e Policarpo em relação às questões de intelecto e ingenuidade; à crença na humanidade e nos conhecimentos adquiridos nos livros, em meio à decepção com a realidade do mundo em dissonância com as teorias e valores pessoais. Em Cândido, depois das intempéries e sofrimentos enfrentados e da descrença das ideias otimistas, os personagens encerram a história com um tom de esperança presente na célebre frase desse cânone, conforme o trecho a seguir:

− Tens razão − disse Pangloss −, pois quando o homem foi posto no jardim do Éden, ali foi posto ut operaretur eum, para que trabalhasse; o que prova que o homem não nasceu para o repouso. − Trabalhemos sem filosofar − disse Martinho−, é a única maneira de tornar a vida suportável. 08 É recorrente na obra as menções irônicas em relação a Leibniz, como, por exemplo, na passagem: “− Eis − disse ele − um livro que fazia as delícias do grande Pangloss, o maior filósofo da Alemanha”, ou em “senhor Pangloss, o mais profundo metafísico da Alemanha”. Ou ainda em uma menção direta ao filósofo alemão, conforme verificamos no seguinte excerto: “− Pois bem ! meu caro Pangloss − disse Cândido −, enquanto eras enforcado, dissecado, espancado e remavas nas galeras, sempre achavas que tudo ia o melhor possível? Mantenho a minha primitiva opinião − respondeu Pangloss −, pois afinal sou filósofo: não me convém desfazer-me, visto que Leibnitz não pode incorrer em erro, e a harmonia preestabelecida é a mais bela coisa do mundo, bem como o todo e a matéria sutil” (VOLTAIRE, 2001. p. 64).

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09 Conteúdo disponível em: < http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cv000009. pdf>. 10 Do original: “Candide imbibes the philosophy of Pangloss which he accepts blindly as the unquestioned word of truth about the world. His peregrinations give him some hard jolts and after some time, when he sees that Pangloss's catechism fails to explain the evils and calamities of real life, he stops reciting the articles of optimistic faith which he learned from his first mentor” (SIEBURTH, 1982, p.103).


Todo o grupo se compenetrou desse louvável desígnio. A pequena propriedade rendeu bastante. Cunegundes estava, na verdade, muito feia, mas tornou-se uma excelente doceira. Paquette bordava. A velha costurava. Nem mesmo o Irmão Giroflée se furtou ao trabalho; revelouse um bom marceneiro; e até se tornou honesto. − Todos os acontecimentos − dizia às vezes Pangloss a Cândido − estão devidamente encadeados no melhor dos mundos possíveis; pois, afinal, se não tivesses sido expulso de um lindo castelo, a pontapés no traseiro, por amor da senhorita Cunegundes, se a Inquisição não te houvesse apanhado, se não tivesses percorrido a América a pé, se não tivesses mergulhado a espada no barão, se não tivesses perdido todos os teus carneiros da boa terra do Eldorado, não estarias aqui agora comendo doce de cidra e pistache. − Tudo isso está muito bem dito − respondeu Cândido −, mas devemos cultivar nosso jardim (VOLTAIRE, 2001. p. 68, grifo nosso).

Entretanto, não há uma esperança ingênua e cega. Podemos perceber que o cultivo do jardim remete ao “Trabalhemos sem filosofar”, sem pensar, sendo essa a “única maneira de tornar a vida suportável”. Nesse caso, o autor aponta para a questão do saber como um fardo, que traz o desconforto e a dor ao descortinar a realidade. Como a alegoria da caverna, do filósofo grego Platão11, nos indaga: “E se o tirarem de lá à força, se o fizessem subir o íngreme caminho montanhoso, se não o largassem até arrastá-lo para a luz do sol, ele não sofreria e se irritaria ao ser assim empurrado para fora?”. Mediante tais inferências, percebemos que o adaptador dessa versão dispõe de um denso conhecimento quanto à obra de Lima Barreto e suas reflexões na construção da adaptação. Assim sendo, verificamos que tamanha complexidade não resultaria em uma obra menor ou secundária, que facilita a apreensão do cânone pelo leitor para fins de exames de vestibular. Em vez disso, as adaptações podem agregar novos conhecimentos de mundo aos já existentes em um cruzamento de obras literárias ou não. Diante desse panorama, o pesquisador e roteirista de HQ Lielson Zeni (2012, s.p.) afirma que há um empobrecimento de todo o processo adaptativo quando se imagina que um meio possa substituir ou se apresentar de forma mais didática que outro. Infelizmente, parece-me que a compreensão das adaptações da literatura

11

Disponível em: <http://www.usp.br/nce/wcp/arq/textos/203.pdf>.

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em quadrinhos tem seguido esse caminho: várias delas são vendidas


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como facilitadora da leitura dos grandes clássicos. Se o leitor leu José de Alencar e não entendeu, alguém desenha para ele.

Esse tipo de abordagem apenas reforça a manutenção da imagem preconceituosa de que as Histórias em Quadrinhos são um meio mais fácil e inferior para contar histórias às pessoas intelectualmente inferiores, subestimando tanto o gênero HQ como os leitores; além de cultuar o ideal há muito legitimado da literatura como portadora da verdadeira nobreza artística e intelectual (ZENI, 2012). Até mesmo dentro do campo literário atribuem classificações hierarquizantes em uma escala entre os legitimados grandes cânones e até a literatura considerada menor. Embasado na ótica da Estética da Recepção e atrelado à historiografia literária, Hans Robert Jauss (1994, p. 7) já afirmava que a qualidade e a categoria de uma obra literária não resultam nem das condições históricas ou biográficas de seu nascimento, nem tão-somente de seu posicionamento no contexto sucessório do desenvolvimento de um gênero, mas sim dos critérios da recepção, do efeito produzido pela obra e de sua fama junto à posteridade, critérios estes de mais difícil apreensão.

E, nessa perspectiva, uma obra literária visa primordialmente o leitor, estando assim condicionada à relação dialógica entre literatura e leitor, ideia que irá sobrepujar o mito da estética classicista, que privilegia a “arte pela arte” ou a intenção do autor, ou mesmo o ideal formalista da forma e do texto como um sistema hermético (Ibid., p. 23). Percebemos, então, que a proposta de Jauss, ao focar no efeito da leitura de uma obra em sua recepção, aponta para um enfoque da prática da leitura, do próprio ato de ler. Essa abordagem da recepção pode e deve ser similarmente utilizada nas análises de HQs, e, no nosso caso, as HQs que são adaptações literárias. Dentro do âmbito da leitura, concebemos a relação da apreensão de uma nova obra como processo que nos auxilia a romper o automatismo da percepção cotidiana e a expandir o espaço limitado do comportamento social rumo a novos desejos e objetivos, abrindo novos caminhos para uma experiência futura. Se isso é possível dentro do contexto da leitura, podemos ampliar e aplicar também ao universo das Histórias em Quadrinhos e das adaptações como nova forma de leitura e conhecimento. Como exemplo atual de utilização da imagem com “notável competência, elaborando obra de eficiência narrativa e dotada de impressionante poeticidade visual”, temos a narrativa gráfica The Arrival (A chegada), do reconhecido ilustrador


australiano Shaun Tan, composta apenas por imagens em uma sequência narrativa de texto não verbal. Nesse aspecto, Tan questiona sobre a polêmica posição da imagem na hierarquia das artes e do texto escrito: Não gosto muito da palavra ilustração, pois sugere algo derivado, a elaboração visual de uma ideia regida pelo texto. No discurso das artes plásticas encontramos muitas vezes o termo usado em sentido pejorativo, quase em oposição ao desenho ou à pintura séria. Isto é, algo de certa forma servil ou incapaz de produzir um sentido autossuficiente; algo apenas descritivo. No entanto, percebo que as relações mais interessantes entre palavras e imagens não são absolutamente descritivas, mas resultam do imprevisível choque entre dois meios independentes de expressão. Em meu trabalho recente, o texto e as ilustrações funcionam como narrativas autônomas capazes de produzir no leitor efeitos similares, e de gerar novos significados a partir do contexto distinto em que estão inseridas. De fato, as ilustrações são para mim os principais “textos” em meus livros, e embora a escrita seja muitas vezes o ponto de partida, ela não age como um andaime para a imagem. Tenho pensado muito sobre a narrativa visual sem texto. Intriga-me a capacidade do leitor de sobrepor os seus próprios pensamentos e sentimentos à experiência visual, sem a distração possível das palavras (TAN, s.d. apud FERREIRA, 2013. p. 5).

De acordo com Ermelinda Ferreira (2013), A Chegada é um texto comovente sobre a imigração, que remete ao conceito da alegoria da diáspora de Stuart Hall, o qual se refere aos fenômenos relativos a migrações humanas dos ex-países coloniais para as antigas metrópoles. Nesse caso, a ausência da palavra desterritorializa a obra, universalizando a questão do estranhamento entre povos e culturas. Tal análise nos leva à reflexão sobre os setores da educação e do estudo acadêmico que ainda se mantêm mergulhados na mediocridade do estigma das Histórias em Quadrinhos como obras menores, de conteúdo superficial ou limitadas à função paradidática; mesmo diante dos recorrentes exemplos de complexidade e qualidade artística que o formato pode proporcionar aos leitores. Voltando ao âmbito da literatura brasileira, também se faz de grande valia percebermos que o próprio Lima Barreto foi, durante vida, enquadrado e criticado como literatura menor. Ninguém mais que Lima Barreto carregou tão pesado fardo e enfrentou obra barretiana foi relegada pela crítica oficial e taxada de memorialística

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com persistência os embates reais e imaginários por toda uma vida. A


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e autobiográfica, características que a conceituavam como literatura menor (FREIRE, 2005. p. 58).

De acordo com a pesquisadora Zélia N. Freire (2005) em Lima Barreto: imagem e linguagem, os críticos da época não compreenderam que, ao apresentar deslizes de sintaxe e estilo, o autor inicia uma nova fase da literatura brasileira. Esse foi o meio criado por Barreto para romper com as estéticas parnasiana e simbolista vigentes no final do século XIX e início do século XX. Assim, ele posicionou-se contra a estética da “arte pela arte”, concepção parnasiana de que a arte deve estar descompromissada da realidade e mais voltada para a perfeição formal. Lima Barreto apontou para uma escrita militante, uma literatura que tenha função social, uma vez que “o destino da literatura e da arte deixou de ser unicamente a beleza, o prazer, o deleite dos sentidos, para ser outra cousa muito diversa” (BARRETO, s.d. apud FREIRE, 2005. p. 64). Portanto, apesar do formato didático, na maioria das vezes imposta pelo mercado editorial, visualizamos nessa versão o esforço do adaptador em fazer uma interpretação pessoal do romance barretiano: desde as explanações sobre o processo de adaptação dessa obra e das leituras pessoais presentes nela às suas inferências de leitura de novos conhecimentos. Mediante a tais considerações, faz-se preponderante entendermos a amplitude de uma adaptação, não como uma versão facilitadora de leitura, mas como uma nova peça artística, carregada de uma mensagem bastante particular, com ligação de uma obra pré-existente (ZENI, 2012). Na adaptação de Lailson de H. Cavalcanti (2008, p. 69), temos outro exemplo de referência autoral que, conforme explicado pelo autor, pode ser visto através da representação dos uniformes militares, em uma concepção atemporal da significação da vestimenta como uma padronização de pensamento e comportamento: A documentação iconográfica de cenários e figurinos desse período é composta de fotos em preto e branco. Essa sensação de “preto e branco”, de um maniqueísmo bruto, procurou-se manter na transposição para a narrativa gráfica visual. Os uniformes, tanto dos legalistas quanto dos revoltosos, foi estilizado. Podem ser de qualquer guerra, de qualquer época. Refletem mais a uniformização do pensamento obediente aos comandos dos ditadores do momento.

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Essa interpretação, que transparece conhecimento sobre o contexto da obra de Barreto e de sua temática política explícita, principalmente no que concerne à notoriedade e à distinção despendida pela sociedade para com as classes militar e


política, ou melhor, “aos sabichões do poder”, conforme o próprio escritor descrevia (FREIRE, 2011, p. 38). Dessa forma, podemos verificar nessa adaptação a profundidade do conhecimento da áurea barretiana atrelada à visão crítica recriacional na cena em que o Almirante Caldas justifica as deserções de militares diante uma descrença geral na realidade e na falta de planejamento e despreparo do governo mediante a ocupação da Ilha de Cobras e toda violência que essa medida gerou (figura 3).

Figura 3 - Conversa entre oficiais superiores Fonte: Triste fim de Policarpo Quaresma, Companhia Editora Nacional, 2008.

A autora Freire também nos proporciona uma noção sobre o contexto histórico e social no qual Lima Barreto estava inserido e que o influenciou na criação de suas obras: Com a Primeira Guerra iniciou-se o fim da era européia na política, passando aos Estados Unidos o poder econômico mundial. O conflito teve como consequência grandes crises econômicas que se manifestaram na América Latina e, também, no Brasil. O Brasil passa por um período agitado. É o momento da predominância da chada política do café-com-leite: alternância no poder dos senhores do café (São Paulo) e dos senhores do gado (Minas Gerais). O centro econômico e cultural desloca-se para o Sudeste do país. São Paulo urbaniza-se rapidamente e o Rio de Janeiro passa por um processo de saneamento e embelezamento, trazendo a sensação de que entra em harmonia com o progresso e a civilização mundiais. A classe dominante, para manter os privilégios. Ao mesmo tempo, surge nos centros urbanos

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que segue à risca a moda europeia, vive num consumismo doentio e luta


ADAPTAÇÃO DOS CLÁSSICOS LITERÁRIOS PARA OS QUADRINHOS · Uma análise do caso Policarpo Quaresma

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uma classe média constituída de burocratas, comerciantes e profissionais liberais que exige maior participação no processo econômico e político (FREIRE, 2005. p.30).

Além disso, tem-se o aumento de imigrantes no território brasileiro atrelado ao crescimento dos setores operários, aproximando brancos, mulatos e negros, que começam a se organizar politicamente na tentativa de uma melhoria das duras condições de vida a que são submetidos E, conforme apontamentos de Angela Maria da Costa (s.d. apud FREIRE, 2005, p. 31), os brasileiros mais pobres e exescravos tinham acesso apenas aos trabalhos terceirizados como, “carregadores, carroceiros, vendedores ambulantes e lavadores de roupa entre outros do tipo. Percebemos uma dupla exclusão desse grupo de brasileiros: a primeira se dá quando são excluídos do trabalho assalariado das indústrias; e a segunda, quando são enxotados de suas residências, rumo aos subúrbios”. Dessa forma, a República queria representar a modernidade que se instalava no Brasil, e assim houve a urbanização, em decorrência do desenvolvimento comercial e industrial. E com o aumento da disparidade social, vem as revoltas e as manifestações populares, que portavam o mesmo princípio: “rebelarem-se contra o custo de vida, o desemprego e os rumos da República”. Esse foi o quadro de “franca contribuição social” que possibilitou a ocorrência expressiva em tom de crítica, análise e denúncia da escrita ficcional ou não presente na obra de Lima Barreto (Ibid., p. 32). Diante desse aparato histórico e social, Lailson de Holanda Cavalcanti (2008) nos traz outra interpretação singular. Temos então as lentes dos óculos de Quaresma nas ilustrações dessa versão, que nunca refletem a realidade objetiva, nem deixam que vejamos os seus olhos. O adaptador nos revela que os olhos do personagem só aparecem quando ele se depara com a mediocridade da alma humana e dos interesses políticos, o desinteresse dos salvadores da pátria pelo futuro dos seus concidadãos. De fato, os olhos do major ficam visíveis apenas nos momentos de conflito ou tristeza – que são diversos – durante a versão adaptada. A primeira ilustração que revela os olhos do personagem (figura 4) pertence à cena que demonstra a reação de Quaresma após seu chefe suspendê-lo do trabalho devido à repercussão vexatória da petição de Policarpo em prol da adoção do tupi-guarani como língua oficial12.

12

Essa cena será posteriormente abordada com mais detalhas em 2.1.3 O estopim e o hospício.


Figura 4 - Suspensão de Policarpo Fonte: Triste fim de Policarpo Quaresma, Companhia Editora Nacional, 2008.

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No decorrer da obra, encontramos descrições semelhantes de outros personagens da história.

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Essa leitura singular a partir da visão de Quaresma reforça a ideia principal deste estudo de considerar a adaptação como uma nova obra autoral, a partir da leitura de mundo do seu autor. No caso dessa adaptação, em específico, o recurso gráfico utilizado, ainda que sutil, é eficaz para compor a criação do personagem na nova obra construída, permitindo alguma liberdade de criação e escolhas de enfoques do texto fonte, em um esforço do adaptador em sobrepor as exigências editoriais de uma formatação que parece limitar-se ao cunho pedagógico e facilitador na coleção Quadrinhos Nacional. Outro elemento a ser considerado é o formato regular dos balões e a fonte das letras, as quais aparentam recortes de um livro, que tendem a uma leitura monótona, o que interrompe o efeito cinético presente nas HQs atuais, se aproximando do estilo mais clássico e antigo dos quadrinhos. Em alguns momentos, percebemos uma quebra desse formato regular dos quadros e balões, como no caso da apresentação do personagem Ricardo Coração dos Outros13, célebre pela habilidade em cantar modinhas e tocar violão, conforme nos mostra a figura 5.


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Figura 5 - Ricardo Coração dos Outros Fonte: Triste fim de Policarpo Quaresma, Companhia Editora Nacional, 2008.

Ao mesmo tempo, nos deparamos com o enfoque na fidelidade da obra de Barreto, pois podemos visualizar que no texto, no interior do quadro, é resultante de um recorte da cena correspondente no livro: Acabava de entrar em casa do Major Quaresma o Senhor Ricardo Coração dos Outros, homem célebre pela sua habilidade em cantar modinhas e tocar violão. Em começo, a sua fama estivera limitada a um pequeno subúrbio da cidade, em cujos “saraus” ele e seu violão figuravam como Paganini e a sua rabeca em festas de duques; mas, aos poucos, com o tempo, foi tomando toda a extensão dos subúrbios, crescendo, solidificando-se, até ser considerada como cousa própria a eles. Não se julgue, entretanto, que Ricardo fosse um cantor de modinhas aí qualquer, um capadócio. Não; Ricardo Coração dos Outros era um artista a frequentar e a honrar as melhores famílias do Méier, Piedade e Riachuelo. Rara era a noite em que não recebesse

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um convite. Fosse na casa do Tenente Marques, do Doutor Bulhões ou do “Seu” Castro, a sua presença era sempre requerida, instada e apreciada.


O Doutor Bulhões, até, tinha pelo Ricardo uma admiração especial, um delírio, um frenesi e, quando o trovador cantava, ficava em êxtase. “Gosto muito de canto”, dizia o doutor no trem certa vez, “mas só duas pessoas me enchem as medidas: o Tamagno e o Ricardo.” Esse doutor tinha uma grande reputação nos subúrbios, não como médico, pois que nem óleo de rícino receitava, mas como entendido em legislação telegráfica, por ser chefe de seção da Secretaria dos Telégrafos. Dessa maneira, Ricardo Coração dos Outros gozava da estima geral da alta sociedade suburbana. É uma alta sociedade muito especial e que só é alta nos subúrbios. Compõe-se em geral de funcionários públicos, de pequenos negociantes, de médicos com alguma clínica, de tenentes de diferentes milícias, nata essa que impa pelas ruas esburacadas daquelas distantes regiões, assim como nas festas e nos bailes, com mais força que a burguesia de Petrópolis e Botafogo (BARRETO, 2003, p. 25, grifo nosso).

Se compararmos os trechos em negrito desse trecho de Triste Fim de Policarpo Quaresma, percebemos um simples recorte do texto do narrador barretiano na descrição do personagem. Também verificamos o aspecto de aproximação com o texto fonte na figura 3, a qual aborda os estudos de Quaresma à procura das tradições genuinamente nacionais. Também encontraremos nessa cena um texto correspondente, semelhante ao seguinte trecho barretiano (2010, p. 37): “Quase todas as tradições e canções eram estrangeiras; o próprio ‘Tangolomango’ o era também. Tornava-se, portanto, preciso arranjar alguma coisa própria, original, uma criação da nossa terra e dos nossos ares”. Dessa forma, percebemos que a proximidade com o texto fonte é recorrente na adaptação.

Figura 6 - Estudos de Quaresma

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Fonte: Triste fim de Policarpo Quaresma, Companhia Editora Nacional, 2008.


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Na figura 6, observamos também uma riqueza de detalhes dos cenários figurados, a fim de repassar o ambiente antigo; e ainda um teor cômico presente nas expressões faciais dos personagens em traços que, muitas vezes, aproximamse aos das produções voltadas para o público infantil dos personagens, conforme exemplificado na seguinte ilustração:

Figura 7 - Policarpo e o General Albernaz vão à procura de Dona Maria Rita Fonte: Triste fim de Policarpo Quaresma, Companhia Editora Nacional, 2008

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A figura 7 consiste na quadrinização do trecho do romance em que Barreto e Albernaz estão à procura de Dona Maria, escrava anciã da região a quem atribuíram ter conhecimento sobre os costumes antigos e genuinamente nacionais. Podemos perceber outro exemplo de ilustração de traço que explora o lado cômico. Na cena pós-saída do manicômio, quando Policarpo encontra-se “mais triste ainda do que vivera toda a vida” e a afilhada sugere que ele compre um sítio com fins de ocupar a mente e ter uma rotina mais tranquila. Ideia prontamente acatada pelo protagonista e tão logo direcionada aos ideais ufanistas sobre a fertilidade das terras brasileiras para a produção agrícola.


Figura 8 - Policarpo em conversa com Olga Fonte: Triste fim de Policarpo Quaresma, Companhia Editora Nacional, 2008

A partir desses últimos quadros exemplificados (figuras 7 e 8), podemos perceber a perspectiva fanática nacionalista que permeia o personagem Quaresma e todo o romance em tom de ironia e questionamento. 03. OS ELEMENTOS NACIONAIS, AS FORMIGAS E A BIBLIOTECA A versão de Holanda Cavalcanti enfatiza a ingenuidade ufanista de Quaresma, sentimento e ideia que faziam parte da mentalidade de parte da sociedade mais politizada e instruída, durante aquele regime político no Brasil, pois é um tipo de nacionalismo que, de saída, já pode constar como dado sociocultural próprio de uma certa mentalidade otimista dos primeiros anos da República, a conquista redentora, carregada de promessas que

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cedo começam a se mostrar inviáveis decepcionando gradualmente


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alguns setores das classes médias (pensemos em Caldas e Albernaz) e continuando a marginalizar a crescente massa do povo inculto, urbano e rural (BARRETO, 2003, p.6).

Um episódio de destaque quanto ao nacionalismo ingênuo do personagem, o da canção Tangolomango, está presente nessa adaptação. Na figura 9, verificamos a apresentação da canção popular sobre a qual Quaresma e o General Albernaz acreditavam ser de origem brasileira, conforme instruídos por um “velho poeta que teve sua fama aí pelos setenta e tantos, homem doce e ingênuo que se deixara esquecer em vida, como poeta, e agora se entretinha em publicar coleções que ninguém lia, de contos, canções, adágios e ditados populares” (Ibid., p. 35). Percebemos uma descrição irônica do velho literato e amante do folclore brasileiro, que nos remete ao gosto pela literatura e ao ufanismo cego de Quaresma, o qual “olhava para o velho poeta com o espanto satisfeito de alguém que encontrou um semelhante no deserto” (Idem). Dessa forma, Lailson de Holanda transpõe a cena na qual o protagonista e mais dez crianças apresentam o Tangolomango aos amigos e conhecidos na casa de Albernaz, em um esforço de valorização e culto aos costumes da cultura nacional. Todavia, posteriormente, a alegria se transforma em decepção quando Policarpo, após algumas semanas absorvido pela leitura de livros e publicações a respeito da cultura pátria, descobre que quase todas as tradições e canções cultuadas eram estrangeiras, inclusive o Tangolomango.


Figura 8 - Policarpo em conversa com Olga Fonte: Triste fim de Policarpo Quaresma, Companhia

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Editora Nacional, 2008


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A partir disso, Quaresma mergulha em uma busca incessante por elementos originalmente brasileiros, pois era preciso “arranjar alguma coisa própria, original, uma criação da nossa terra e dos nossos ares” (BRRETO, 2003, p. 37). Ideia que levou o personagem a estudar os costumes dos índios tupinambás. Ainda de acordo com Carmem Lydia S. Dias (2003, p.7), é destacável percebermos que a trajetória do pátrio ufanismo de Quaresma pode ser dividida em três distintas, e correlacionadas, etapas de ação: É a convicção, até o absurdo, da condição privilegiada do Brasil entre as nações que impele Quaresma a três “grandes cometimentos” para reformar a inigualável “pátria do Cruzeiro”: o cultural (lembremos dos engraçados lances do projeto de adoção do tupi-guarani como língua oficial e a iniciativa esdrúxula de cumprimentar as pessoas chorando como faziam os tupinambás, o agrícola (a luta com a terra e a politicagem no “Sossego”) e o político (a adesão incondicional – e fatal –ao “governo forte” de Floriano).

Nesse caso, referente à etapa de ação cultural, o episódio em que Policarpo coloca em prática o cumprimento tupinambá é transpassado para os quadrinhos enfatizando o teor cômico do trecho barretiano, permeando o escracho e o absurdo que seria visualizar uma cena como essa no mundo real (figura 10):

Figura 10 - Os costumes dos Tupinambás Fonte: Triste fim de Policarpo Quaresma, Companhia

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Editora Nacional, 2008


Observemos agora o seguinte trecho do texto de Lima Barreto correspondente com a cena no formato dos quadrinhos exibida a cima. Essa ideia levou-o a estudar os costumes tupinambás; e, como uma ideia traz outra, logo ampliou o seu propósito e eis a razão por que estava organizando um código de relações, de cumprimentos, de cerimônias domésticas e festas, calcado nos preceitos tupis. Desde dez dias que se entregava a essa árdua tarefa, quando (era domingo) lhe bateram à porta, em meio de seu trabalho. Abriu, mas não apertou a mão. Desandou a chorar, a berrar, a arrancar os cabelos, como se tivesse perdido a mulher ou um filho. A irmã correu lá de dentro, o Anastácio também, e o compadre e a filha, pois eram eles, ficaram estupefatos no limiar da porta. − Mas que é isso, compadre? − Que é isso, Policarpo? − Mas, meu padrinho... Ele ainda chorou um pouco. Enxugou as lágrimas e, depois, explicou com a maior naturalidade: − Eis aí! Vocês não têm a mínima noção das cousas da nossa terra. Queriam que eu apertasse a mão. Isto não é nosso! Nosso cumprimento é chorar quando encontramos os amigos, era assim que faziam os tupinambás. O seu compadre Vicente, a filha e Dona Adelaide entreolharam-se, sem saber o que dizer. O homem estaria doido? Que extravagância! − Mas, Senhor Policarpo, disse-lhe o compadre, é possível que isto seja muito brasileiro, mas é bem triste, compadre. − Decerto, padrinho, acrescentou a moça com vivacidade; parece até

Dessa forma, se compararmos cena e trecho correspondentes, podemos perceber que na figura 10 o trecho “Desandou a chorar, a berrar, a arrancar os cabelos, como se tivesse perdido a mulher ou um filho” é transpassado para a ação através de uma onomatopeia que imita o som de choro. Esse efeito condiz com a própria linguagem visual dos quadrinhos e pode servir para enfatizar uma cena cômica da obra do romancista. Um momento que está presente em duas páginas barretianas dentre as duzentas, aproximadamente, é selecionado e retratado em uma cena de destaque no decorrer de setenta páginas. E através da abordagem de dois momentos ufanistas de Quaresma, com a canção Tangolomango e a saudação tupinambá, o adaptador adentra na questão de grande representatividade que significa os livros e a leitura para a obra de Lima

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agouro... (BARRETO, 2003, p. 37).


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Barreto. No que concerne à temática da leitura, percebemos que está intrinsecamente ligada ao tema da loucura, tanto em Triste fim de Policarpo Quaresma quanto na obra quixoteana de Miguel de Cervantes. Em Cervantes temos um fidalgo que, de tanto ler as novelas romanescas de Cavalaria, confundiu os mundos da realidade e da ficção. Dom Quixote, o protagonista, tanto naquelas leituras se enfrascou, que as noites se lhe passavam a ler desde o sol posto até à alvorada, e os dias, desde o amanhecer até fim da tarde. E assim, do pouco dormir e do muito ler se lhe secou o cérebro, de maneira que chegou a perder o juízo. Encheu-se-lhe a fantasia de tudo que achava nos livros, assim de encantamentos, como pendências, batalhas, desafios, feridas, requebros, amores, tormentas, e disparates impossíveis; e assentou-se-lhe de tal modo na imaginação ser verdade toda aquela máquina de sonhadas invenções que lia, que para ele não havia história mais certa no mundo (CERVANTES, 2007. p. 53).

Assim, é notável a ironia do autor espanhol ao entrelaçar a leitura e a loucura, como a questionar os valores da sociedade quanto ao intelectualismo e aos padrões artísticos e literários vigentes. Uma crítica que altera desde ao questionável culto dos romances de cavalaria à força que a sapiência e o conhecimento, através das letras, descortinam a realidade prática em contraste com toda a gama de idealismo teórico. De forma semelhante, encontramos a relação dessas temáticas no decorrer de Triste Fim de Policarpo Quaresma. O major Quaresma, um intelectual convicto, porém taxado como insano pela sociedade. Como exemplo disso, temos um dos momentos em que encontramos uma ironia explícita na obra. Durante um diálogo, Olga, afilhada de Quaresma, questiona o padrinho quanto à demasiada prática da leitura. Fora com um olhar luminoso e perscrutador que ela perguntara ao padrinho: − Então, padrinho, lê-se muito? − Muito, minha filha. Imagina que medito grandes obras, uma reforma, a emancipação de um povo. Vicente fora com Dona Adelaide para o interior da casa e os dois conversavam a sós na sala dos livros. A afilhada notou que Quaresma tinha alguma coisa de mais. Falava agora com tanta segurança, ele que

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antigamente era tão modesto, hesitante mesmo no falar − que diabo! Não, não era possível... Mas, quem sabe? E que singular alegria havia


nos seus olhos - uma alegria de matemático que resolveu um problema, de inventor feliz! − Não se vá meter em alguma conspiração, disse a moça gracejando. − Não te assustes por isso. A coisa vai naturalmente, não é preciso violências... (BARRETO, 2003. p. 39).

Podemos ler, nesse trecho, que a leitura é representada como uma prática perigosa, passível de trazer problemas, caso não haja equilíbrio, uma vez que há um fadado efeito colateral para o aprofundamento no saber letrado: compreender demais a realidade. O próprio Lima Barreto era conhecido como intelectual em sua época, além de exímio conhecedor da literatura russa, a exemplo de suas recomendações de leitura presentes nas próprias obras literárias – “Leia sempre os russos: Dostoiévski, Tolstói, Turguênie, um pouco de Górki; mas, sobretudo, o Dostoiévski da Casa dos Mortos e do Crime e Castigo” (BARRETO, s.d. apud FREIRE, 2005, p.58). Diante dessas considerações, a biblioteca torna-se um lugar cativo de Quaresma; encontramos então mais uma importante relação entre as obras e os personagens de Cervantes e Barreto. Em Dom Quixote de La Mancha temos um nobre que se dedica à leitura; detentor de uma exorbitante biblioteca pessoal, fato que na época descrita no romance (século XVI) era algo raro e caro: “mais de cem grossos e grandes volumes, bem encadernados, e outros pequenos” (CERVANTES, 2007, p. 87). A obra de Cervantes dedica ainda um capítulo, Do curioso e grande expurgo que o padre-cura e o barbeiro fizeram na livraria do nosso engenhoso fidalgo, sobre a representação da biblioteca e da leitura. Preocupados com a sua saúde mental e o bem estar físico de Dom Quixote, os seus amigos mais próximos resolvem acabar com a sua biblioteca, mas não sem antes submeter o seu conteúdo a uma rigorosa avaliação. O modo característico como é conduzido o escrutínio que antecede a queima dos livros tem por referência o tribunal da Inquisição do Santo na sua dupla função de tribunal de homens e de censora de livros (KAHN, 2008, s.p).

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Cada amigo ou parente irá exercer um papel, representando ainda um segmento social de uma pequena aldeia renascentista, nesse julgamento dos livros. Segundo a pesquisadora e professora Daniela Kahn (2008), na condenação da biblioteca de Quixote, o grupo que conduz o elaborado ritual de julgamento se constitui em uma versão local reduzida da própria sociedade espanhola renascentista.


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Assim, o veredicto desse tribunal está diretamente vinculado à relação e à tolerância que cada juiz tem para com os livros, como podemos perceber no trecho do romance que estabelece uma nítida oposição entre as duas mulheres e os dois homens: Riu-se da simplicidade da ama o licenciado, e disse para o barbeiro que lhe fosse dando os livros a um e um, para ver de que tratavam, pois alguns poderia haver que não merecessem castigo de fogo. — Nada, nada — disse a sobrinha —; não se deve perdoar a nenhum; todos concorreram para o mal. O melhor será atirá-los todos juntos pelas janelas ao pátio, empilhá-los em meda, e pegar-lhes fogo; e senão, carregaremos com eles para o quintal da casa e ali se fará a fogueira, e o fumo não incomodará. Outro tanto disse a ama; tal era a gana com que ambas estavam aos pobres alfarrábios; mas o cura é que não esteve pelos autos, sem primeiro ler os títulos (CERVANTES, 2007, p. 87).

Ao personificar os livros situando-os no mesmo eixo paradigmático dos seres humanos e representar o julgamento da biblioteca como um Auto de Fé, a paródia de Cervantes critica tanto a intolerância e a arbitrariedade da Inquisição enquanto tribunal dos homens, denunciando os questionáveis procedimentos de juízo da Inquisição em nome da saúde moral de seus fiéis, como também o radicalismo da crítica literária de sua época, denunciando seus métodos implacáveis. Nesse caso, temos ainda a função do Santo Ofício como censor de obras, revelando o julgamento da nociva influência literária como que representando um perigo à imaginação, ao devaneio e à criatividade do leitor, “alienando-o destarte da sua realidade empírica” (KAHN, 2008, s.p). O tema do julgamento da biblioteca como causa da loucura é retomado por Lima Barreto em Triste fim de Policarpo Quaresma, no capítulo A notícia do Genelício, no qual aborda a festa de noivado de Ismênia e Cavalcânti. A comemoração estava repleta de funcionários públicos e militares, como o próprio pai de Ismênia, o General Albernaz. Ricardo Coração dos Outros não fora convidado porque “o general temia a opinião pública sobre a presença dele em festa séria”, e Quaresma fora convidado, mas não compareceu, pois se encontrava internado no hospício. Nesse capítulo, Barreto nos presenteia com uma acidez ímpar contra os fúteis valores da sociedade perante a instituição do casamento e o status do diploma acadêmico e da área jurídica. Crítica realizada através dos diálogos, durante jogo de cartas entre os homens da festa. Durante a conversa, o estudante de direito Genelício informa sobre o estado de Policarpo aos demais: o anfitrião e general Albernaz, o Contra-Almirante Caldas, o Capitão dos Bombeiros Sigismundo, e o


engenheiro Dr. Florêncio: − Obrigado. Sabe de uma coisa, general? − O quê? − O Quaresma está doido. − Mas... o quê? Quem foi que te disse? − Aquele homem do violão. Já está na casa de saúde... [...] − Nem se podia esperar outra coisa, disse o doutor Florêncio. Aqueles livros, aquela mania de leitura... − Pra que ele lia tanto? Indagou Caldas. − Telha de menos, disse Florêncio. Genelício atalhou com autoridade: − Ele não era formado, para que se meter em livros? − É verdade, fez Florêncio. − Isto de livros é bom para os sábios, para os doutores, observou Sigismundo. − Devia ser proibido, disse Genelício, a quem não possuísse um título acadêmico ter livro. Evitam-se assim essas desgraças. Não acham? (BARRETO, 2003, p. 51).

Dessa forma, a leitura é condenada como um hábito e a biblioteca enquanto instituição. Uma condenação que reclama o fato de ler como um direito exclusivo de quem pertence à esfera sócio-intelectual da formação universitária e do título acadêmico. Enquanto que em Cervantes temos a igreja e a crítica literária como foco denunciante, em Barreto o que se denuncia nesse “julgamento à revelia”, realizado por personagens que no máximo enxergam à distância as estantes repletas de livros de Quaresma, é a pobreza intelectual do cotidiano brasileiro. Em vez da aldeia espanhola renascentista, temos um grupo representante da sociedade suburbana carioca da República Velha que enxergam o livro apenas como objeto que propicia o prestígio social. Um importante fator a ser observado no paralelo estabelecido entre as obras de Barreto e Cervantes e seus respectivos protagonistas, é que apesar da censura inquisitorial dos conteúdos livrescos e da incineração da biblioteca de Dom Quixote, a biblioteca recebe uma condenação muito menor do que na história de Quaresma: Além dos diferentes graus e matizes de tolerância aos livros referidos, a condenação da biblioteca, no final das contas, se restringe aos conteúdos é que, mesmo depois da queima material das obras, o conteúdo do

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específicos de uma biblioteca particular. E, o que é mais notável ainda,


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acervo permanece vivo e presente na memória do seu principal leitor. Além disso, a intimidade com os livros demonstrada pelo cura e pelo barbeiro no episódio do escrutínio da biblioteca do Dom Quixote é um forte indício do quanto o livro já fazia parte do quotidiano masculino de determinados segmentos sociais do século XIV espanhol (KAHN, 2008, s.p.).

Assim, a comparação entre os dois julgamentos evidencia a posição, ou ausência de posição, singular livresca no cotidiano da sociedade brasileira. Kahn (2008) afirma ainda que a obra de Lima Barreto faz uma “anatomia conscienciosa da insuficiência intelectual crônica” presente nas diversas classes sociais do período republicano no país, ora pelo “descarado alpinismo intelectual”, ora através dos esforços sinceros, porém precários de aquisição de uma cultura livresca. Retornando à adaptação analisada, podemos encontrar, em três momentos distintos, a figura de Policarpo em sua biblioteca realizando a atividade leitora de suas pesquisas, conforme verificamos nas figuras 6 (anteriormente aqui exibida), 11 e 12:

Figura 11 - Policarpo e a leitura 1

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Fonte: Triste fim de Policarpo Quaresma, Companhia Editora Nacional, 2008


Figura 12 - Policarpo e a leitura 2 Fonte: Triste fim de Policarpo Quaresma, Companhia Editora Nacional, 2008

14  Os momentos de representação das formigas serão desenvolvidos nas próximas análises de adaptações ainda nesse capítulo.

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A figura 6 apresenta a pesquisa por elementos genuinamente nacionais; já na figura 11, a presença do livro antecede o momento da visita do amigo Ricardo Coração dos Outros, com fins de demonstrar uma prática cotidiana da leitura. Em um terceiro momento, conforme mostra a figura 12, visualizamos o protagonista imerso em uma pilha de livros e obstinado no planejamento da prática agrícola do sítio Sossego, como forma de contribuição para as excelências brasileiras; apontando para o zelo que o adaptador investiu em mostrar a intrínseca relação do major para com os livros e a leitura. É em sua biblioteca, através dos livros, que Policarpo fomenta as ideias de reformas radicais, referentes aos três momentos de prática ufanista (cultural, agrícola e político), citados anteriormente neste capítulo. De acordo com Carmem Dias (2003), é devido ao seu caráter estrutural que esses três momentos devem servir como primeiro ponto de referência espaçotemporal no acompanhamento da evolução positiva da visão social de Quaresma, que perpassa desde o plano abstrato ao plano concreto. Nessa pesquisa, selecionamos a cena das formigas na obra barretiana como um objeto de análise, devido à importante simbologia crítica ao sistema governista e à cegueira ufanista durante o período da República no país. Crítica essa, inclusive, atemporal se pensarmos sobre as transformações políticas e sociais pela qual o Brasil percorreu desde a República até os dias atuais. No romance, existem dois momentos14 na fase agrícola do protagonista: em que ocorre uma “invasão” de formigas saúva demonstrando a ilusão de Policarpo, coincidente com a crença da classe média republicana da época em questão, e a outra de um Brasil como o país mais fértil do planeta.


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Apesar da versão de Lailson de H. Cavalcanti não apresentar a temática das formigas, visto que cada adaptação tem seu enfoque particular de desenvolvimento, optamos por manter esse espaço devido às próximas versões analisadas abordarem a cena das saúvas com profundidade e destaque, conforme poderemos verificar a posteriori. 04.

O ESTOPIM E O HOSPÍCIO

O personagem Policarpo fora bastante incompreendido e debochado. Devido aos anseios idealistas de honestidade e patriotismo, as pessoas que o cercavam o consideravam insano. E apesar dos insultos de conhecidos e conselhos dos amigos, ele parecia manter-se “imerso no seu sonho, incubado e mantido vivo pelo calor de seus livros” (BARRETO, 2003, p. 54). Entretanto, em dado momento, Policarpo escreve e envia uma petição à Câmara. O documento propõe a substituição do português pelo idioma tupiguarani, na defesa de ser a única língua original e capaz de traduzir as belezas das terras brasileiras, conforme podemos verificar a seguir: Policarpo Quaresma, cidadão brasileiro, funcionário público, certo de que a língua portuguesa é emprestada ao Brasil; certo também de que, por esse fato, o falar e o escrever em geral, sobretudo no campo das letras, se vêem na humilhante contingência de sofrer continuamente censuras ásperas dos proprietários da língua; sabendo, além, que, dentro do nosso país, os autores e os escritores, com especialidade os gramáticos, não se entendem no tocante à correção gramatical, vendo-se, diariamente, surgir azedas polêmicas entre os mais profundos estudiosos do nosso idioma — usando do direito que lhe confere a Constituição, vem pedir que o Congresso Nacional decrete o tupi-guarani, como língua oficial e nacional do povo brasileiro. O suplicante, deixando de parte os argumentos históricos que militam em favor de sua ideia, pede vênia para lembrar que a língua é a mais alta manifestação da inteligência de um povo, é a sua criação mais viva e original; e, portanto, a emancipação política do país requer como complemento e consequência a sua emancipação idiomática. Demais, Senhores Congressistas, o tupi-guarani, língua originalíssima, aglutinante, é verdade, mas a que o polissintetismo dá múltiplas

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feições de riqueza, é a única capaz de traduzir as nossas belezas, de pôr-nos em relação com a nossa natureza e adaptar-se perfeitamente


aos nossos órgãos vocais e cerebrais, por ser criação de povos que aqui viveram e ainda vivem, portanto possuidores da organização fisiológica e psicológica para que tendemos, evitando-se dessa forma as estéreis controvérsias gramaticais, oriundas de uma difícil adaptação de uma língua de outra região à nossa organização cerebral e ao nosso aparelho vocal — controvérsias que tanto empecem o progresso da nossa cultura literária, científica e filosófica. Seguro de que a sabedoria dos legisladores saberá encontrar meios para realizar semelhante medida e cônscio de que a Câmara e o Senado pesarão o seu alcance e utilidade P. e E. deferimento (BARRETO, 2003, p.53).

Não obstante, o secretário da Câmara teve que realizar a leitura pública do singular e estranho requerimento. O riso e o deboche tomaram a sessão: riram-se o secretário, o presidente, o oficial, o contínuo e os demais presentes. E, por fim, o documento foi publicado em todos os jornais, decorrendo em uma chacota e humilhação pública e cotidiana para Quaresma. O episódio e as consequências dele atingiram profundamente o personagem como indivíduo. Conforme descrevia o narrador barretiano, aquele que soubesse o que representava aquela folha de papel e todo esforço, trabalho, e “sonho generoso e desinteressado” ali empenhados, deveria sentir “uma penosa tristeza” diante dos risos “inofensivos”. Para o protagonista, defendido pelo narrador, o documento poderia merecer raiva ou ódio, mas nunca um “recebimento hilárico” como quem ria de “uma careta de clown”, pois uma graça circense jamais teria a seriedade da causa contida no documento. A repercussão de seu requerimento alcançou o gabinete do diretor, o qual interpelou Policarpo bastante revoltado, conforme podemos visualizar na transposição dos acontecimentos para os quadrinhos na figura 13.

Fonte: Triste fim de Policarpo Quaresma, Companhia Editora Nacional, 2008

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Figura 13 - Fúria do diretor


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A consequência da sucessão de acontecimentos foi um abalo moral e emocional de ordem avassaladora para Policarpo Quaresma, se verificarmos o seguinte trecho do romance: era doce, bom e modesto. Nunca fora seu propósito duvidar da sabedoria do seu diretor. [...] Saiu abatido, como um criminoso, do gabinete do coronel, que não deixava de olhá-lo furiosamente, indignadamente, ferozmente, como quem foi ferido em todas as fibras do seu ser (BARRETO, 2003, p. 61).

Em realidade, o episódio caracterizou-se como o estopim para a internação do protagonista no Hospício. Após a discussão com o diretor, o protagonista é encontrado pelo amigo Ricardo em uma cena que revela um sentimento de derrota dos ideais valores pátrios em dissonância com a realidade, como podemos visualizar na figura a seguir. Esse momento consiste em uma reviravolta no romance e na vida do personagem, quando percebemos a derrocada do idealismo ufanista da sociedade da época, sendo assim representados através do sentimento de derrota dos valores de Policarpo.

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Figura 14 - Quaresma e Ricardo Fonte: Triste fim de Policarpo Quaresma, Companhia Editora Nacional, 2008


Na sequência, temos a internação de Quaresma no hospício, também representada por Lailson de Holanda, que transforma a fala do narrador de Barreto de impressões sobre o lugar na fala do compadre Vicente Coleoni e de sua filha Olga, a afilhada de Quaresma, como na figura a seguir:

Figura 15 - Policarpo no Hospício

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Fonte: Triste fim de Policarpo Quaresma, Companhia Editora Nacional, 2008


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Percebemos, além de trabalhar com uma mesma escala cromática de cinza, a relação de proporção com isolamento que é retratada, no segundo quadro da Figura 15, entre Policarpo e seus amigos, que demonstra um alinhamento entre o texto da cena e as ilustrações com a temática melancólica e fúnebre do momento. A temática do hospício e da loucura detém crucial importância na obra de Lima Barreto como um todo. O autor vivenciou a experiência do hospício por duas vezes, em 1914 e em 1919, quando fora internado com o diagnóstico de alcoolismo – motivo de internamento para os parâmetros médicos no início do século XX. Sobre a primeira internação no Hospício Municipal do Rio de Janeiro, em 1914, escrevera na coletânea de escritos confessionais do escritor, Diário Íntimo, que estaria “mudando de gênio”: “Hoje tive um pavor burro. Estarei indo à loucura?” (OAKLEY, 2011, p.172). Segundo Robert J. Oakley (2011), sua segunda estadia no Hospício, cuja descrição do lugar confere conforme descrito em Triste fim de Policarpo Quaresma, começou na noite natalina de 1919, quando o autor foi encontrado perambulando pelo subúrbio carioca, alcoolizado e delirando. Os trinta dias dessa internação renderam o relato autobiográfico intitulado de Diário do Hospício, um testemunho da vida em uma instituição para doentes mentais. Nesse diário, Lima Barreto também medita sobre as possíveis causas de sua condição deplorável no começo de 1920. Pergunta-se se o vício da bebida teria sido gerado pelo trauma de 1903, quando seu pai mergulhou repentinamente na loucura, ou por sua própria incapacidade de realizar seus ideais (OAKLEY, 2011, p.178).

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A loucura de seu pai, João Henriques, levou-o a estudar vários aspectos da doença mental através de obras científicas como Responsibility in Mental Disease (1874) de Henry Maudsley (1835-1918). As teorias de Maudsley relacionavam a loucura com a hereditariedade, fato que posteriormente Lima Barreto irá discordar em seus escritos no Diário do Hospício. A figura 15 também nos remete à escassez de amizades leais que acompanharam Policarpo nos momentos de insanidade. Além de sua devota irmã Adelaide e o fiel amigo Ricardo, temos a afilhada Olga e o compadre Coleoni que visitavam e apoiavam o personagem durante a difícil experiência. No final da vida, em 1922, a doença obrigava Barreto è reclusão, e lhe restara poucos amigos. De acordo com Francisco de Assis Barbosa (1988, p. 273), mereciam destaque a irmã Evangelina que lhe dedicava um tratamento de enfermeira e um amigo que o acompanhava, Francisco Schettino. Do mundo que ficava além da Vila Quilombo, lá fora, só tinha notícia


pela leitura dos jornais ou pela visita de um amigo. Eram bem poucos, agora. E cada vez mais raros. Destes, porém, nenhum se compara em constância e dedicação a Francisco Schettino. Tudo fazia para ajudar o amigo. Desde a entrega dos originais às redações ao recebimento do salário do jornalista na Careta.

Dessa forma, verificamos um personalismo, uma autoficcionalidade que permeia o escritor e seus personagens, como por exemplo, Isaías (de Recordações do Escrivão Isaías Caminha), Gonzaga de Sá (de Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá) e Policarpo Quaresma. Personagens os quais permeiam temáticas autobiográficas como ser mestiço e pobre; funcionário público, panfletário e irônico; ou intelectual insano incompreendido. 05.

CENA DA BATALHA E FINAL DA OBRA

Assim sendo, percebemos que essa produção também apresenta o lado trágico do romance, exemplificado também na cena da batalha vivenciada pelo protagonista, na qual o adaptador procurou transmitir “de maneira subjetiva, como é o estilo de Lima Barreto --- a sensação do homem reduzido à selvageria e caindo em si diante da fragilidade dos conceitos morais” (CAVALCANTI, 2008, p. 69), como podemos notar na figura 16. Adentrando na análise dos quadrinhos, percebemos uma alternância do recurso dos planos de visão15. Primeiramente, temos o primeiro plano, focalizando nas expressões faciais de selvageria dos soldados durante a luta. Em seguida, ocorre uma espécie de zoom que distancia a imagem e nos leva a um plano médio, no qual ainda podemos enxergar as expressões faciais e, ao mesmo tempo, temos uma noção de toda a ação transcorrida na cena. Atentemos ainda para o rosto de Quaresma, identificado pelos óculos16, que se assemelha à figura de uma caveira, imagem de simbologia geralmente relacionada a um contexto de morte e terror.

16  Na obra de Lailson de Holanda, a imagem dos óculos se destaca por acompanhar a identificação do protagonista.

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15  De acordo com Ramos (2010) são planos de enquadramentos da percepção visual, tomando como referência para classificação (plano geral, total, médio, pormenor, etc.) o corpo do ser humano.


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Figura 16 – Batalha

Fonte: Triste fim de Policarpo Quaresma, Companhia Editora Nacional, 2008

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Na sequência, retornamos ao primeiro plano com a figura raivosa de Quaresma, e tão logo temos o plano pormenor, que nos revela os minuciosos detalhes da expressão de pavor da situação vivenciada. A cena termina em dois quadros conduzindo-nos a um clímax com a predominância da cor vermelha que parece reduzir todo o ocorrido em sangue e morte, culminando, por fim, na expressão facial de Adelaide (retornando ao plano médio) horrorizada em reação à leitura da carta. O recurso da alternância de planos utilizados pelo adaptador confere um movimento na sequência de quadros semelhante às técnicas cinematográficas. Semelhança justificável já que, segundo Umberto Eco (1993, s.p.), “no plano do enquadramento, a estória em quadrinhos é claramente devedora ao cinema de todas as suas possibilidades e de todos os seus gestos”. Por último, essa produção nos apresenta um final no qual a não representação de uma imagem da morte de Quaresma fica subentendida sutilmente nos entrequadros, ou no hiato como é chamado na linguagem dos quadrinhos, ficando a cargo das legendas17 conduzir o leitor ao desfecho da obra (figura 17).

17  De acordo com Vergueiro (2007, p. 62), a legenda é a representação da “voz onisciente do narrador da história, sendo utilizada para situar o leitor no tempo e no espaço”. Nos formatos clássicos, é colocada na parte superior do quadrinho.

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Segundo Fresnault Deruelle (s.d. apud RAMOS, 2010, p. 144), o hiato consiste na “descontinuidade ou ruptura necessária para a condução da narrativa quadrinística”. Paulo Ramos (2010) defende que o recurso dos hiatos como construção da mensagem gera diferentes níveis de inferência por parte do leitor, o qual articula aspectos sociocognitivos aos elementos coesivos visuais entre um quadro e outro. A inferência a partir dos hiatos torna-se possível por meio da recuperação do objeto discursivo visual, manifestado nas figuras dos personagens. Diante da perspectiva linguista, na visão de Monada e Dubois (2003 apud RAMOS, 2010, 148), também compartilhada por Marcuschi e Koch (1998), o ato de enunciação “cria categorias, que mudam e se moldam na progressão do texto. São, então, recategorizadas durante a leitura textual. Esse processo constrói objetos-dediscurso”.


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Figura 17 - Final

Fonte: Triste fim de Policarpo Quaresma, Companhia Editora Nacional, 2008.

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De volta ao enredo do romance de Lima Barreto, visualizamos, na figura 17, o enfoque do término da história em Olga, a estimada afilhada do Major Quaresma, que, como Ricardo Coração dos Outros, tentou defender o visionário padrinho e amigo da condenação de um sistema decadente e hipócrita, punindo com a ingratidão àqueles que verdadeiramente o defendem. 06. POLICARPO EM GRAPHIC NOVEL (VERSÃO DE BRAGA E VASQUES) A segunda versão a ser analisada se trata da publicada pela Desiderata em 2010, cujos autores são Edgar Vasques e Flávio Braga, ambos também veteranos nas áreas de HQ , literatura e jornalismo. Vasques, ilustrador, quadrinista, cartunista, chargista e caricaturista, é oriundo de Porto Alegre – RS, nascido em 1949. Formou-se em Arquitetura e Urbanismo pela UFRGS, com publicações de trabalhos desde 1968. Conhecido pelas técnicas de bico de pena e aquarela, é autor da série Rango, uma das tiras mais antigas do humor brasileiro – foi publicada a primeira edição pela editora L&PM na época da ditadura militar em 1974 –, a qual rendeu 17 coletâneas e foi publicada no México e na França. Ilustrou as HQs do Analista de Bagé (1983) de Luis Fernando Veríssimo, e livros de Millôr Fernandes, entre outros. Já recebeu o 17º Troféu HQ Mix na categoria de Melhor Desenhista Nacional (1998), e desde 2005 é delegado do Colegiado Setorial das Artes Visuais do Ministério da Cultura18. No que concerne ao roteirista, temos o escritor e editor gaúcho, Flávio Braga, o qual já fora diretor do jornal O Pasquim no Rio Grande do Sul durante os anos 1980, e editou a revista Mega Quadrinhos (publicação nacional pioneira no ramo de HQs). É ainda autor de doze livros, como os romances O que contei a Zveiter sobre sexo (2006) e Meia oito (2008), em parceria com Luís Daltro, além do Almanaque dos Quadrinhos: 100 anos de uma mídia popular (2006), com Carlos Patati19. 07.

CAPA, ELEMENTOS PARATEXTUAIS E ENFOQUE DA OBRA

18

Cf. Triste fim de Policarpo Quaresma, Desiderata, 2010, p. 72.

19

Ibid.

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A abordagem da produção adaptada por Flávio Braga e ilustrada por Edgar Vasques (2010) traz um enfoque sóbrio, ressaltando o lado mais dramático e sombrio da obra. Por trás da comicidade irônica do romance, temos um enredo contemplado por fatores dramáticos: a desilusão de um projeto de vida do protagonista, a humilhação e o deboche que decorrem em internação no hospício com o diagnóstico da insanidade mental; a violência em campo de batalha e a hipocrisia da sociedade


e da política vigentes, que culminam na morte do personagem. Primeiramente, percebemos isso a começar pela ilustração da capa, que carrega a impactante imagem do Major Quaresma envolvida pela bandeira do Brasil, havendo uma arma apontada para sua cabeça, como pode ser verificado na figura a seguir:

Figura 18 - Ilustração de capa Fonte: Triste fim de Policarpo Quaresma, Desiderata, 2010.

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Assim, podemos visualizar diversos temas abordados por Lima Barreto, simbolizados pela ilustração da capa, desde o nacionalismo através da bandeira, e presente no livro como registro do patrimônio cultural, até a impactante imagem da arma simbolizando a repressão do sistema da época. De acordo com o fotógrafo e pesquisador John Berger (1972, p. 17), “a unidade de composição de um quadro é fundamental para o poder da sua imagem”. Assim, podemos entender o efeito de impacto dessa capa que a junção dos variados elementos de significado simbólicos da obra pode provocar no leitor. A soma desses elementos constrói uma espécie de unidade narrativa na ilustração da capa. A simbologia representativa da imagem possibilita ao leitor uma prévia do que está por vir durante a leitura da adaptação. Diante disso, a leitura da imagem na figura 18 nos direciona para a


interpretação proposta pela Teoria da Estética do Efeito, em conformidade com as ideias de Wolfgang Iser (1996). Como um dos teóricos da Estética da Recepção, ele defende uma interpretação que evidencie o potencial de sentido proporcionado pelo texto; um potencial de sentido que nunca será plenamente elucidado. Em contrapartida com as interpretações tradicionais das teorias literárias até então vigentes, a análise do efeito estético opera na consideração desse sentido multivariado, pois “trata-se de apreender a experiência estimulada pelo texto, o que leva inevitavelmente a sua realização; esta se opera através das orientações que dirigem o leitor” (ISER, 1996, p.55). Direção a qual não deve ser confundida com delimitação ou um enquadramento interpretativo. Assim sendo, “a prévia do que está por vir” aqui abordada, em vez de revelar o enredo como forma de resumo ou delimitação da obra barretiana, apresenta-nos um jogo de enigmas, os quais poderão ser compreendidos, ou melhor, interpretados posteriormente após ou até mesmo durante a leitura da adaptação, conforme a construção de sentidos realizada pelo leitor. Se continuarmos da leitura da capa e aproximarmos da ilustração, percebemos que o livro segurado por Quaresma é A origem das espécies, de Charles Darwin, cujas teorias deterministas e evolucionistas foram basilares para a escola positivista que muito influenciou Barreto. Darwin é, inclusive, citado duas vezes em Triste fim de Policarpo Quaresma: a primeira20 quando o narrador descrevia os livros e autores presentes na vasta biblioteca do Major; e a segunda21, quando ele lia e refletia sobre como Darwin gostava do som que os sapos emitiam. Ainda diante da capa, temos o nome da coleção à qual pertence essa versão como Grandes Clássicos em Graphic Novel, que apresenta o termo graphic novel ao invés do mais usualmente utilizado adaptação para as Histórias em Quadrinhos. A coleção faz parte do grupo Ediouro, dispondo de adaptações como Memórias Póstumas de Brás Cubas (2010) por Wellington Srbek e João Batista Melado; O Alienista (2007) dos irmãos Fábio Moon e Gabriel Bá, e O Pagador de Promessas (2009) por Eloar Guazzelli. Apesar de ser comumente creditado o termo graphic novel ao quadrinista norte-americano Will Eisner, através da classificação da própria obra Um contrato com Deus e outras histórias de cortiço, publicada por ele nos Estados Unidos em 1978, a expressão já havia sido utilizada em outras produções em HQ: Bloodstar, de Richard Corben; Beyond Time and Again, de George Metzger, e Chandler – Red Time, de Jim Steranko (RAMOS; FIGUEIRA. 2011, p. 3).

21  Cf. Trecho do romance: “A casa estava em silêncio; do lado de fora, não havia a mínima bulha. Os sapos tinham suspendido um instante a sua orquestra noturna. Quaresma lia; e lembrava-se que Darwin escutava com prazer esse concerto dos charcos” (BARRETO, 2003, p. 105).

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20  Cf. Trecho do romance: “[...] e se se encontravam também Darwin, Freycinet, Cook, Bougainville e até o famoso Pigafetta, cronista da viagem de Magalhães, é porque todos esses últimos viajantes tocavam no Brasil, resumida ou amplamente” (BARRETO, 2003, p. 21).


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Todavia, de acordo com Ramos e Figueira (2011), foi Eisner quem impulsionou a popularização do termo, em uma tentativa de distanciar seu trabalho do que ele via então na indústria estadunidense de quadrinhos, tomada pelas exigências mercadológicas, a começar da palavra comics22, forma como os quadrinhos ficaram conhecidos naquele país desde o início do século XX23. No decorrer das décadas, a culminar nos anos 1990, o romance gráfico diferenciou-se dos comics, vinculados ao público infanto-juvenil, sendo direcionado ao leitor adulto, uma fatia do mercado estadunidense ainda pouco explorada. Esse tipo de veículo buscava uma qualidade editorial mais trabalhada e conteúdo mais denso, em um trabalho mais artístico e literário. Tanto no Brasil como nos países europeus já existia uma vasta quantidade de publicações de quadrinhos mais extensos, muitas vezes produzidas no formato livresco, chamadas de álbuns pelo mercado brasileiro. No entanto, o termo romance gráfico só começou a ser difundido a partir da segunda metade da década de 1980 em território brasileiro, principalmente com as publicações que utilizaram a expressão graphic novels como aquelas da editora Abril em janeiro de 1988, com a proposta de trazer para o Brasil os especiais publicados nos Estados Unidos pela Marvel e DC Comics; e também através da edição nacional da obra de Will Eisner no prefácio de Um Contrato com Deus e Outras Histórias de Cortiço. No prefácio, o diretor editorial Waldyr Igayara explanava sobre as características desse tipo de publicação, em uma tentativa de associá-las aos meios artísticos e literários: Temos assistido, nos últimos anos, a uma revolução no mundo das histórias em quadrinhos. De veículo de comunicação virou também literatura ilustrada... Ou arte pura com maiores explicações... Nesta posição, ganhou o “status” merecido para tomar um chopinho junto com o cinema, o teatro, a pintura, a filosofia e a própria literatura (com quem até se confunde) (IGAYARA, s.d. apud RAMOS; FIGUEIRA, 2011, p.6).

Assim, a obra de Flávio Braga e Edgar Vasques abrange o conceito de romance gráfico para as adaptações literárias em HQ no Brasil. E, apesar de poder

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22

Significado semelhante às Histórias em Quadrinhos no idioma inglês.

23 “O quadrinista creditou ser um produto de arte e estampou na capa a frase “uma graphic novel de Will Eisner”, o que também procura estabelecer algum tipo diálogo com o meio literário. A repercussão do livro, traduzido para outros países, Brasil inclusive (a primeira edição, de 1988, usou a tradução romance gráfico), possivelmente contribuiu para que a expressão fosse adotada, na primeira metade da década seguinte, pelas duas principais editoras de quadrinhos da indústria norte-americana: Marvel Comics (de Homem-Aranha, Hulk e X-Men) e DC Comics (de SuperHomem, Batman e Mulher-Maravilha). Daí para a popularização em massa da expressão foi um passo pequeno” (RAMOS; FIGUEIRA. 2011, p. 3).


ser uma tentativa de legitimar o polêmico boom desse tipo de produção, colabora para a superação da ideia preconceituosa das adaptações como obras facilitadoras do chamado original. Em um âmbito geral, as publicações são apresentadas em um maior preciosismo de suporte material como qualidade do papel, capa e volume; assim como apresentam propostas mais originais e artísticas de releituras quadrinhísticas dos textos clássicos, indo desde a técnica de desenho à elaboração textual. Logo nas primeiras páginas, encontramos um tom mais sério e cruel sobre os acontecimentos trágicos vividos pelo personagem principal. A minuciosa técnica de aquarela e o trabalho com sombras são aliados à cores frias em alternância com tons pastéis, conferindo sobriedade e cunho artístico aos desenhos. E segundo o próprio Edgar Vasques (2010), esse foi o “trabalho mais exigente de quadrinhos (e aquarela) que já cumpri: três meses de pesquisas, um ano e quatro meses desenhando as 60 páginas full color”24. Além disso, as fisionomias dos personagens são retratadas de forma caricatural, ressaltando possíveis assimetrias faciais (figura 19) como um nariz grande ou um queixo protuberante, por exemplo. Todos esses elementos culminam em um enfoque melancólico em torno da obra de Lima Barreto, indicando um direcionamento da publicação para o público-leitor adulto. É importante salientarmos que a própria editora classifica essa produção – e todas as outras obras, citadas aqui, que fazem parte da mesma coleção – em site próprio como livro para adultos, não sendo, portanto, incluída na seção infanto-juvenil. Disponível em: <http://evblogaleria.blogspot.com.br/2010_01_01_archive.html>.

Figura 19 - Amigos e familiares de Quaresma Fonte: Triste fim de Policarpo Quaresma, Desiderata, 2010.

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24


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No que concerne à presença de um prefácio ou posfácio na obra, verificamos um breve ensaio introdutório apenas quanto à obra clássica de Lima Barreto. E no posfácio, temos também curtas descrições sobre o romancista e os adaptadores, observando, assim, que em nenhum momento adentra-se na esfera da adaptação ou de uma mensagem mais direta por parte dos adaptadores. 08. OS ELEMENTOS NACIONAIS, AS FORMIGAS E A BIBLIOTECA Essa adaptação mantém-se fiel à estética das Histórias em Quadrinhos, uma vez que a quantidade de balões de textos e legendas é balanceada com as ilustrações, e em alguns momentos, nos deparamos com onomatopeias (figuras 20 e 21), recurso amplamente utilizado no formato das HQs. Segundo Cirne (1970 apud RAMOS, 2010, p. 78), o ruído nos quadrinhos mais do que sonoro, é principalmente visual, ou em uma comparação com o cinema: “uma boa onomatopeia [...] está para os quadrinhos assim como um ruído (bem utilizado) está para o cinema”. A natureza dos quadrinhos permite uma tradução inesgotável de um texto para sua singular linguagem, através da diversidade de recursos disponíveis no meio. No caso das onomatopeias, Umberto Eco levantou a diversidade de possibilidades do uso, com base em 39 revistas em HQs, a ocorrência de 173 onomatopeias diferentes (1969 apud RAMOS, 2010. p. 76).

Figura 20 As formigas (Parte I)

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Fonte: Triste fim de Policarpo Quaresma, Desiderata, 2010.


Figura 21 - As formigas (Parte I)

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Fonte: Triste fim de Policarpo Quaresma, Desiderata, 2010.


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Nessa cena, o recurso sugere o prolongamento do som. E em uma sequência, apenas de imagem e onomatopeias, os autores quadrinizam o trecho de quase uma página escrita do livro de Barreto. Quaresma chegou a seu quarto, despiu-se, enfiou a camisa de dormir e, deitado, pôs-se a ler um velho elogio das riquezas e opulências do Brasil. A casa estava em silêncio; do lado de fora, não havia a mínima bulha [...] Quaresma lia; e lembrava-se que Darwin escutava com prazer esse concerto dos charcos. Tudo na nossa terra é extraordinário! pensou. Da despensa, que ficava junto a seu aposento, vinha um ruído estranho. [...] Os sapos recomeçaram o seu hino. Havia vozes baixas, outras mais altas e estridentes [...] Suspenderam um instante a música. O major apurou o ouvido; o ruído continuava. Que era? Eram uns estalos tênues; parecia que quebravam gravetos [...] Os batráquios pararam; a bulha continuava. O major levantou-se, agarrou o castiçal e foi à dependência da casa donde partia o ruído, assim mesmo como estava, em camisa de dormir. Abriu a porta; nada viu. Ia procurar nos cantos, quando sentiu uma ferroada no peito do pé. Quase gritou. Abaixou a vela para ver melhor e deu com uma enorme saúva agarrada com toda a fúria à sua pele magra. Descobriu a origem da bulha. Eram formigas que, por um buraco no assoalho, lhe tinham invadido a despensa e carregavam as suas reservas de milho e feijão, cujos recipientes tinham sido deixados abertos por inadvertência. O chão estava negro, e carregadas com os grãos, elas, em pelotões cerrados, mergulhavam no solo em busca da sua cidade subterrânea. (BARRETO, 2003. p. 105).

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Em seguida, nos deparamos com a figura 22, retratando o desespero de Policarpo quanto aos pequeninos seres que invadiam e aniquilavam a colheita esperada, fruto de tanto investimento e afinco, colocando em cheque a questão do mito de brasilidade de “em se plantando tudo dá” (a célebre frase da carta de Pero Vaz de Caminha), junto à ingenuidade patriótica de um solo plenamente fértil, posição defendida veemente pelo personagem no decorrer do texto fonte.


Figura 22 - As formigas (Parte II) Fonte: Triste fim de Policarpo Quaresma, Desiderata, 2010.

Por fim, a figura 22 corresponde ao término da descrição minuciosa barretiana quanto ao descontrole e indignação de Quaresma perante aqueles seres. Quis afugentá-las. Matou uma, duas, dez, vinte, cem; mas eram milhares e cada vez mais o exército aumentava. Veio uma, mordeu-o, depois outra, e o foram mordendo pelas pernas, pelos pés, subindo pelo seu corpo. Não pôde aguentar, gritou, sapateou e deixou a vela cair. Estava no escuro. Debatia-se para encontrar a porta; achou e correu daquele ínfimo inimigo que, talvez, nem mesmo à luz radiante do sol o visse distintamente... (BARRETO, 2003. p. 105).

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O episódio das formigas, representado na presente produção, faz referência em três momentos nos quais Barreto faz referências às saúvas no romance em tom crítico ao ingênuo ufanismo de Policarpo na fase agrícola desse ufanismo, conforme já abordado anteriormente.


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O primeiro e o segundo momentos são encontrados nos capítulos consecutivos do romance Golias e Peço energia, sigo já, respectivamente. Esses momentos serão representados nos quadrinhos como uma sequência narrativa também consecutiva como recontextualização do texto barretiano operada pelos adaptadores. O primeiro momento foi transposto através das figuras 20, 21 e 22 anteriormente analisadas. Na sequência, teremos o segundo momento como desconstrução da ideia de solo fértil alimentada pelo protagonista, episódio em que ele declara uma “batalha sem tréguas” contra os “terríveis himenópteros”, que destruiriam a plantação e com esta todo o seu investimento financeiro, como podemos perceber nas figuras a seguir (BARRETO, 2003, p 30-31).

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Figura 23 - Guerra contra as formigas Fonte: Triste fim de Policarpo Quaresma, Desiderata, 2010.


Figura 24 - Guerra contra as formigas

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Fonte: Triste fim de Policarpo Quaresma, Desiderata, 2010.


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Além da representação das saúvas no horizonte dos elementos nacionais, a abordagem ufanista é também destacada através das canções e modinhas populares, as quais o Major acreditava ser de origem brasileira como iremos verificar nas seguintes imagens (figura 25 e 26). Podemos notar que a figura do violão tem recorrente presença nessa produção, quando tratamos da temática nacionalista do personagem vinculada à imagem do amigo Ricardo Coração dos Outros, “célebre pela sua habilidade de cantar modinhas e tocar violão”, o qual personifica a figura do seresteiro e a presença da música no romance (BARRETO, 2003, p. 25). As modinhas e canções populares são abordadas já no primeiro capítulo da obra de Barreto intitulado por A lição de violão, no qual o personagem do major tem aulas de violão com Ricardo no intuito de aprender músicas de cunho nacionais. De acordo com a sua paixão dominante, Quaresma estivera muito tempo a meditar qual seria a expressão poética musical característica da alma nacional. Consultou historiadores, cronistas e filósofos e adquiriu certeza que era a modinha acompanhada pelo violão. Seguro dessa verdade, não teve dúvidas: tratou de aprender o instrumento genuinamente brasileiro e entrar nos segredos da modinha. Estava nisso tudo a quo, mas procurou saber quem era o primeiro executor da cidade e tomou lições com ele. O seu fim era disciplinar a modinha e tirar dela um forte motivo original de arte (BARRETO, 2003, p.26).

Figura 25 - As modinhas e o violão

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Fonte: Triste fim de Policarpo Quaresma, Desiderata, 2010.


Figura 26 - As modinhas e o violĂŁo

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Fonte: Triste fim de Policarpo Quaresma, Desiderata, 2010.


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Uma questão intrigante reside no fato da presente adaptação não abordar, em nenhum momento, a presença da leitura ou da biblioteca. Poderíamos questionar essa ausência, ou acusar a obra e seus autores de perda de um elemento crucial diante do romance e do próprio Lima Barreto. Todavia, conforme explicitamos em diversos momentos nesse livro, a postura adotada é de que os adaptadores selecionem seus enfoques e conteúdos de acordo com seus objetivos em uma perspectiva de liberdade recriacional. Eles são considerados autores de uma nova obra decorrente de um processo de transmutação e não de medidas de perda ou ganho. Embasados na proposta de uma teoria adaptacional de Hutcheon (2011), poderemos considerar, inclusive, o ganho que qualquer obra, cânone ou não, adquire na criação de uma adaptação. A nova perspectiva de leitura, no mínimo, enriquece a discussão dos temas e conteúdos do texto fonte. Assim sendo, nas adaptações aqui analisadas há a transposição de um suporte para outro25, conforme ideia de Umberto Eco (2007, p. 384), uma adaptação com mudança de matéria, uma transmutação de um texto literário para o formato das Histórias em Quadrinhos. Diferente de uma tradução propriamente dita, orientada e dependente do texto dito original, nas transmutações há a presença do processo criativo, uma manipulação da fonte “com elementos que não são imputáveis às intenções do texto original”. Faz-se preponderante compreender que cada mídia dispõe de sua própria “energia comunicativa, de acordo com as formas que utiliza para explorar, combinar e multiplicar os materiais ‘familiares’ de expressão – ritmo, movimento, gesto, música, fala, imagem, escrita (...)” (GAUDREAULT; MARION, s.d. apud HUTCHEON, 2011, p.62). Quando as adaptações se movimentam entre os modos de engajamento e, dessa forma, entre as mídias, é que elas se veem presas aos intricados debates sobre especificidade midiática. O que um tipo de arte ou mídia pode fazer que a outra não pode se, conforme Greenberg (s.d. apud HUTCHEON, 2011, p. 63) afirmou que todos os “elementos essenciais de cada uma das artes” podem de fato ser determinados? Lessing (1766 apud HUTCHEON, 2011, p. 63) argumenta que a literatura era uma arte do tempo, enquanto que a pintura, do espaço, porém as performances no palco ou na tela conseguem imbricar ambas simultaneamente. 09.

O ESTOPIM E O HOSPÍCIO

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A versão de Vasques e Braga, assim como a de Lailson de H. Cavalcanti, 25 Um exemplo de tentativa de enquadramento de mídia na transposição ocorreu quando Paul Karasik e David Mazzucchelli adaptaram o romance narrativamente complexo de Paul Auster, City of Glass (1985) para as HQs (2004), assim, precisaram traduzir a história para o que Art Spiegelman chama de “linguagem original dos Comics”; “uma grade de painéis regular e exata” com “a grade como janela, porta da prisão, quarteirão ou um tabuleiro de jogo da velha; a grade como metrônomo que dá a medida para as mudanças e impulsos da narrativa” (SPIEGELMAN, s.d. apud HUTCHEON, 2011, p. 63). E como toda convenção formal, essa grade tanto limita como abre novas possibilidades.


também aborda o delicado episódio que resultou na indignação do general (diretor do Arsenal de Guerra onde o Major trabalhava) com o polêmico requerimento. No entanto, podemos perceber uma maior liberdade de discurso na cena representante desse momento. A figura 27 mostra o conteúdo do diálogo entre o general e Quaresma adaptado à linguagem dos quadrinhos e com natureza mais autoral. Esse episódio, como visto em análise anterior, caracterizou-se como estopim para a internação de Policarpo no hospício da Praia das Saudades. Todavia, o período do internamento agora é concentrado na visão de Quaresma quanto aos demais “doentes” e ao ambiente permeado pela “loucura”, conforme o trecho a seguir: No fim, porém, quando se examinavam bem, na sala das visitas, aquelas faces transtornadas, aqueles ares aparvalhados, alguns idiotas e sem expressão, outros como alheados e mergulhados em um sonho íntimo sem fim, e via-se também a excitação de uns, mais viva em face à atonia de outros, é que se sentia bem o horror da loucura, o angustioso mistério que ela encerra, feito não sei de que inexplicável fuga do espírito daquilo que se supõe o real, para se apossar e viver das aparências das coisas ou de outras aparências das mesmas (BARRETO, 2003, p. 63).

Fonte: Triste fim de Policarpo Quaresma, Desiderata, 2010.

105

Figura 27 - Indignação do diretor


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A abordagem da loucura se faz por texto próprio, reinterpretando o texto fonte em uma abordagem mais próxima daquela realidade vivenciada, explicitando o contato do Major com o ambiente do hospício e da loucura na utilização do plano geral (ou panorâmico)26, conforme a figura 28, a seguir: 26

Nos quadrinhos, esse recurso caracteriza-se em um plano de visão “amplo o bastante para

Figura 28 - No hospício. 106

Fonte: Triste fim de Policarpo Quaresma, Desiderata, 2010.


Essa perspectiva adotada pelos adaptadores deixa transparecer um contexto mais geral da cena em que Quaresma é retratado como mais um dentre os demais “doentes” internados no hospício. 10.

CENA DA BATALHA E FINAL DA OBRA

No que concerne aos momentos trágicos da trama, essa produção focaliza o conteúdo da carta de Policarpo para a irmã Adelaide, durante a vivência do combate com a tropa sob seu comando. Essa carta já não era entusiasmada e confiante como as anteriores, mas um relato do horror vivenciado, da desilusão e a confissão de ter matado um inimigo, como podemos perceber nas ilustrações da figura 29: englobar o cenário e os personagens representados” (RAMOS, 2010, p.137).

Figura 29 - Combate descrito na carta para Adelaide 107

Fonte: Triste fim de Policarpo Quaresma, Desiderata, 2010.


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Assim como na figura acima representada, podemos visualizar a utilização da tonalidade cinza com frequência nessa adaptação. As tonalidades em pastel, encontradas nessa obra, irão variar de acordo com a atmosfera que se pretende passar para o leitor. Percebemos assim, que a cor ultrapassa a questão estética e alcança a linguagem e o conteúdo da mensagem, transformando-se em um elemento visual e textual ao mesmo tempo – como geralmente ocorre no formato em HQ. Dessa forma, existe uma série de informações no gênero dos quadrinhos transmitidas por meio de signos plásticos referentes aos indicadores de cor. Para Paulo Ramos (2009, p. 87), a cor é um elemento composicional na linguagem dos quadrinhos, inclusive nas histórias em preto e branco. O uso dessas cores ocorre desde o princípio dos quadrinhos, permanecendo até os dias atuais, seja por limitação de recursos tecnológicos, ou por economia de custos, ou por opção estilística. A cor faz parte dos quadrinhos, embora seja um recurso pouco estudado nessa linguagem. São signos plásticos que contêm informação ora mais relevante para a compreensão do texto narrativo, ora menos. Mas sempre com conteúdo informacional e inserida no espaço do quadrinho, onde se passa a cena narrativa.

Nos momentos de maior dramaticidade da adaptação, como o exemplo da figura 29, sobre a representação da ação durante a batalha na Ilha das Cobras, são utilizados variados tons que alternam entre as cores cinza e preto, conferindo uma atmosfera fúnebre e destacando-se das outras tonalidades utilizadas nas demais ilustrações da adaptação. Se compararmos, até mesmo com a cena do hospício – período de decepção e tristeza para o personagem –, ainda encontramos cores em tonalidades suaves de laranja e salmão, conforme se encontra na figura 28. Visualizamos ainda a presença de um raio solar, se observarmos as restas iluminadas, suave e amarela nas sombras das grades do hospício, e até mesmo algumas flores a enfeitar o cabelo de uma senhora aparentando perturbação mental. No entanto, se retornarmos para a figura 29, perceberemos que os tons de preto e branco utilizados, predominando a cor cinza, nos remete a um sentimento de morte relacionado à cor preta como luto, convencionalmente adotada na cultura ocidental. Nesse sentido, Kovács (1992) afirma que a cor preta é uma simbolização do luto na sociedade ocidental em decorrência do costume de usar a cor preta na vestimenta desde os registros das civilizações pagãs. Em sua origem, a cor foi relacionada por expressar o medo em relação aos mortos; acreditava-se que dessa


forma os mortos não reconheceriam ou perseguiriam os entes vivos. A cor preta também continha o simbolismo da noite e a ausência de cor para expressar o abandono e tristeza, remetendo à lembrança da perda. Segundo Guimarães (2004, p. 91), o preto, além da relação com a morte e a treva no Ocidente, “é a cor do desconhecido e do que provoca medo”. Na ilustração a seguir, ainda na descrição da sequência da batalha na adaptação, temos o uso das mesmas tonalidades, nos direcionando a um possível paralelo entre a ausência da luz atrelada à ausência do conhecimento e da civilização, quando os adaptadores transpõem o texto de Barreto comparando os soldados de guerra aos ancestrais dos tempos da caverna.

Figura 30 - Neandertais 109

Fonte: Triste fim de Policarpo Quaresma, Desiderata, 2010.


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Quando comparamos com o excerto da carta de Policarpo para a irmã Adelaide, somos apresentados a uma intencional consonância entre temática, imagem e utilização da cor. Houve momentos que se abandonaram as armas de fogo: batíamonos à baioneta, a coronhadas, a machado, facão. Filha: um combate de trogloditas, uma coisa pré-histórica... Eu duvido, eu duvido, duvido da justiça disso tudo, duvido da sua razão de ser, duvido que seja certo e necessário ir tirar do fundo de nós todos a ferocidade adormecida, aquela ferocidade que se fez e se depositou em nós nos milenários combates com as feras, quando disputávamos a terra a elas... E não vi homens de hoje; vi homens de Cro-Magnon, do Neandertal armados com machados de sílex, sem piedade, sem amor, sem sonhos generosos, a matar, sempre a matar... (BARRETO, 2003, p. 166).

Nesse caso, a cor branca não necessariamente vem a significar a presença de luz, como em técnicas de iluminação, mas podemos interpretá-la apenas como base de contraste entre cores. Dessa forma, o possível paralelo entre a ausência de homens civilizados e a ausência de elementos coloridos nas imagens mostradas nos revela como resultante de uma densa interpretação, bem como de uma criação autoral dos adaptadores dessa obra. Ao término da versão, encontramos imagens que não poupam o leitor da execução de Policarpo através de seu fuzilamento. A imagem do protagonista, considerado traidor da pátria, com uma venda nos olhos, caindo morto de joelhos, nos aproxima do real contexto de uma execução. Fato que proporciona uma visão crítica ao seu leitor quanto à crueldade e à decepção ao extremo vivenciada pelo personagem (figura 31).


Figura 31 - Execução de Quaresma Fonte: Triste fim de Policarpo Quaresma, Desiderata, 2010.

Assim sendo, podemos concluir que a adaptação de Vasques e Braga, desde as ilustrações da capa às técnicas de sombreamento e aquarela, transparece uma abordagem mais crua e objetiva, carregada de ironia e de uma crítica mais mordaz próprias de Lima Barreto; elementos os quais reforçam o termo graphic novel como uma produção seja literária e/ou artística, voltada para um público mais adulto, ofertando uma leitura mais aprofundada de um texto mais complexo e realista. 11. UMA ADAPTAÇÃO COMO ADAPTAÇÃO (VERSÃO DE AGUIAR E LOBO)

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A versão adaptada por Luiz Antonio Aguiar e Cesar Lobo, da editora Ática (2010), introduz um detalhe até então pouco visto entre as demais produções do tipo. Há uma distinção entre adaptação e roteiro quando na maioria das vezes o


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roteirista já é considerado o adaptador. Podemos encontrar nessa versão César Lobo como responsável por roteiro e desenhos, e Luiz Antônio Aguiar por roteiro e adaptação. Todavia, em entrevista concedida através de e-mail, quando questionado se há distinção entre adaptar e roteirizar, o autor Aguiar (2013) afirma que a adaptação caminha junto com o roteiro: “Claro que o ilustrador pode e deve interferir nessa parte assim como o adaptador/roteirista pode negociar com o desenhista a expressão de alguma cena, o desenho”. Assim, entendemos o processo de adaptar, roteirizar e desenhar como um trabalho conjunto para criar uma adaptação de qualidade. É o ideal, a discussão passo a passo, até porque cada qual tem uma maneira diferente de ver e de expressar a ação, a composição das páginas etc... Ou seja, de como “quadrinizar” a história, além das diferenças entre as leituras de um e de outros, suas interpretações da obra. Muita conversa, muito e-mail, muito respeito à diferença e flexibilidade; é assim que funciona.

O autor considera que em uma produção desse tipo deve haver uma e outra realização estética, muitas vezes, “irreversivelmente referenciadas no texto fonte, caracterizando a obra adaptada e a obra ‘original’ como inseparáveis”. Todavia, Aguiar afirma a ideia de adaptação literária como nova obra, uma vez que acredita ser vão e impossível o ideal de fidelidade ou o “fazer igualzinho ao original”. Lielson Zeni (2012, s.p.) atribui essa preocupação em manter-se fiel ao texto original, talvez por respeito da maioria pela arte literária, como se essa fosse constituída apenas por um texto bem escrito. Todavia, ele pondera que uma adaptação de obra literária pode não dispor de uma única palavra escrita e ainda assim ser bem sucedida em sua realização. Por mais que a literatura seja uma arte de palavras (as belas letras), em uma narrativa há o aprofundamento psicológico dos personagens, a criação do mundo ficcional, o suspense na trama, a dúvida e o julgamento moral sobre as ações dos personagens e muitos outros elementos que tanto as artes plásticas quanto as artes cinematográficas

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já comprovaram serem também capazes de dar conta.

Dessa forma, toda a transformação de um meio para outro funciona como uma negociação, quando algum aspecto é posto de lado enquanto outro é retrabalhado e acrescentado, sendo o todo ressignificado. Assim sendo, o maior foco da construção de uma adaptação é a expressão


27

Disponível em: <http://www.lobostudio.com.br/intro.htm>.

28

Cf. Triste fim de Policarpo Quaresma, Ática, 2010, p. 74.

113

de uma leitura autoral, sempre respeitando a linguagem própria das HQs, pois “é preciso pensar a história como HQ , e não como reprodução ilustrada do original. Nossa proposta é fazer boa HQ. E isso implica a recriação da história, que depende de uma leitura pessoal, sempre subjetiva” (AGUIAR, 2010, p.77). Tal proposta caminha junto aos estudos da adaptação de Linda Hutcheon de recriar no formato em que se propõe. Nesse sentido, o roteirista cinematográfico e estudioso Syd Field (2001, p. 174-175), ao abordar a arte da adaptação em roteiros, destaca que adaptar um livro para um roteiro significa mudar de um para o outro, e não superpor um ao outro. A obra que deu origem também serve de ponto de partida, uma fonte, e o roteiro adaptado será um roteiro original. Uma adaptação é vista como um roteiro original. Field, ao tentar responder a pergunta Como fazer a melhor adaptação?, responde: “Não sendo fiéis ao original. Um livro é um livro, uma peça é uma peça, um artigo é um artigo, um roteiro é um roteiro. Uma adaptação é sempre um roteiro original. São formas diferentes. Simplesmente como maçãs e laranjas” (Ibid., p. 185). E apesar de Field direcionar seu estudo para o campo cinematográfico, a ideia de adaptação que ele apresenta coincide com as opiniões de Luiz Antônio, Aguiar e Hutcheon, além do fato de que para a criação de uma HQ parte-se primeiramente de um roteiro. Em uma breve descrição dos autores, temos o desenhista Cesar Lobo, nascido no Rio de Janeiro. Tem suas ilustrações em revistas como Histórias de Além, Sobrenatural, Byzarro (publicadas pela editora Vecchi), Mithus (publicada pela editora Gorrion), livros e campanhas publicitárias, entre outros. Fez também parcerias com outros autores, além de desenhar, escreve HQs e já publicou seus trabalhos no exterior, como por exemplo, Judge Dreed (DC Comics / USA), U-Comix (Alpha Comic / Alemanha), Bede-X (C.A.V. de Production / França) 27. O roteirista carioca Luiz Antonio Aguiar começou sua carreira desde a década de 1970. Dentre seus trabalhos, criou roteiros para o Sítio do Pica-pau Amarelo, para revistas de terror da extinta Vecchi e para a turma da Disney. Criou, também, seus próprios personagens e álbuns especiais em parceria com Jorge Guidacci e Júlio Shimamoto. Além disso, é mestre em Literatura Brasileira pela PUC-RJ, atuando como redator e professor em oficinas de criação literária, além de ser autor de mais de noventa livros, grande parte voltada para o leitor jovem 28. A produção faz parte da Coleção Clássicos Brasileiros em HQ, da Ática, com outros títulos como O Alienista (2008) também adaptado por Aguiar e Lobo; Dom Casmurro (2012), O cortiço (2009), Memórias de um Sargento de Milícias (2010), todas por Ivan Jaf e Rodrigo Rosa; Noite na Taverna (2011) por Reinaldo Seriacopi (roteiro) e pelos ilustradores Arthur Garcia, Franco de Rosa, Rodolfo Zalla, Rubens Cordeiro,


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Seabra e Walmir Amaral; O Guarani (2009) por Luiz Gê e Ivan Jaf; O Ateneu (2012) por Marcello Quintanilha; O Quinze (2012) por Francisco José de Souto Leite; e A escrava Isaura (2012) por Ivan Jaf e Eloar Guazzelli. Importante observarmos que a editora classifica tais obras como paradidático/literatura juvenil, na categoria de HQ , voltadas para o público leitor em faixa etária especificada. No caso de Triste fim de Policarpo Quaresma, temos a faixa entre 11 e 12 anos, ou 6º e 7º anos conforme consta no site da editora 29. 12.

CAPA, ELEMENTOS PARATEXTUAIS E ENFOQUE DA OBRA

Se nos direcionarmos para a figura da capa (figura 32), teremos uma representação quixotesca de Policarpo. Uma leitura que requer conhecimento literário de ambas as obras por parte dos criadores. A comparação entre Lima Barreto e Miguel de Cervantes, deflagrante na analogia de Policarpo Quaresma como “encarnação brasileira de Dom Quixote de La Mancha”30 é um tema amplamente estudado pela crítica literária. Tanto Quixote quanto Quaresma eram homens incompreendidos, taxados como loucos pelas pessoas com as quais conviviam. A jornada quixotesca em busca da honra e hombridade cavaleirescas se confunde com a busca da honra e do amor pela pátria de Policarpo. Ambos considerados insanos, os personagens eram aqueles que verdadeiramente perceberam a realidade em que viviam. A loucura estava atrelada à sapiência, ao demasiado conhecimento das coisas em contrapartida a uma sociedade embotada e doentia pertencentes a um sistema farsante. Autores críticos de suas épocas, cultos e subestimados durante vida diante de suas obras literárias; Cervantes e Barreto mesclavam às vidas de seus personagens como os delirantes mais sãos e conscientes de suas realidades e da humanidade em um sentido atemporal e revelador.

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29

Disponível em <http://www.atica.com.br/SitePages/Obra.aspx?cdObra=2533&Exec=1>.

30 De acordo com Zélia Nolasco S. Freire (2011, p. 24), os primórdios dessa comparação já foram verificados em artigos dos críticos Oliveira Lima e Afonso Celso, conforme consta no Diário Íntimo de Lima Barreto.


Figuras 32 - A capa

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Fonte: Triste fim de Policarpo Quaresma, Ă tica, 2010.


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Outro tópico presente nas imagens é a presença dos elementos do ufanismo representados através de figuras da fauna e do folclore brasileiro, como por exemplo, o Major vestido com um cocar e acompanhado por um papagaio, abrangendo desde a comicidade até os momentos de drama. A produção de Aguiar e Lobo, que foi indicada ao 23º Troféu HQMIX, nas categorias de melhor Adaptação de Quadrinhos, Desenhista e Roteirista nacionais , também nos traz a presença inovadora da metalinguagem em uma seção – 31 uma espécie de posfácio − destinada ao público leitor, intitulada por Segredos da adaptação, na qual são explicadas as metodologias utilizadas no processo de adaptação dessa versão. Como primeiro passo, os autores afirmam ser preponderante estabelecer o roteiro, “o qual descreve as cenas e determina os textos para cada quadrinho”. Na figura 33 visualizamos um recorte do roteiro utilizado para a construção de um quadrinho pertencente a uma página inteira.

Figura 33 - Trecho do roteiro Fonte: Triste fim de Policarpo Quaresma, Ática, 2010.

Como podemos verificar na próxima sequência de imagens das figuras 34, 35 e 36, primeiramente, nos é mostrada a pintura de Gustave Doré32 (1832-1883) que serviu de referência, em seguida o esboço que o desenhista fez da cena, e por último o desenho finalizado.

116

31 Disponível em: content&task=view&id=96&Itemid=60>.

<http://www.hqmix.com.br/index.php?option=com_

32 Gustave Doré foi um pintor francês do século XIX que ilustrou, dentre seus renomados trabalhos artísticos, uma edição de Dom Quixote de título The History of Don Quixote, de 1880. A obra está disponível em: <http://www.gutenberg.org/files/5921/5921-h/5921-h.htm>.


Figura 34 - Ilustração de Gustave Doré

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Fonte: Triste fim de Policarpo Quaresma, Ática, 2010.


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Assim, a construção do personagem Quaresma, nessa adaptação, é inspirada principalmente na ilustração, conforme a figura 34, do Dom Quixote de Doré, e ambientalizada no contexto brasileiro dos valores nacionais que o protagonista barretiano denota, conforme veremos nas seguintes figuras que fazem parte da composição de uma cena.

Figura 35 - Construção de uma cena

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Fonte: Triste fim de Policarpo Quaresma, Ática, 2010.


Figura 36 - Construção de uma cena

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Fonte: Triste fim de Policarpo Quaresma, Ática, 2010.


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Em seguida, nos deparamos com o excerto do texto de Lima Barreto, a partir do qual a cena foi construída pelos adaptadores a partir de seus repertórios intelectuais, conforme percebemos na figura 37 a seguir:

Figura 37 - Excerto do texto de Lima Barreto Fonte: Triste fim de Policarpo Quaresma, Ática, 2010.

Segundo Aguiar e Lobo (2010), a cena não corresponde exatamente com o texto fonte selecionado, no qual a personagem Adelaide vai despertar Policarpo do seu devaneio para anunciar a chegada de Ricardo Coração dos Outros: “Essa alteração se deu para que a cena se tornasse visualmente mais expressiva”. Nesse caso, como a natureza do texto literário difere do suporte das HQs, é necessário adaptar a história às peculiaridades do andamento de uma HQ. Como resultado do processo de interpretação em uma adaptação, temos a figura do papagaio-narrador, funcionando como mascote de Policarpo; o cocar usado pelo personagem da versão durante as situações em que “se desliga de si”; a letra do Hino Nacional em tupi, bem como a semelhança estética de Policarpo com Dom Quixote. Tais elementos não estão presentes no texto de Barreto, entretanto, essas inovações estão em consonância com o ufanismo de Policarpo; ou seja, os elementos acrescentados não surgiram arbitrariamente, mas sim do diálogo que os autores da HQ souberam estabelecer com a obra de Lima Barreto.


13. OS ELEMENTOS NACIONAIS, AS FORMIGAS E A BIBLIOTECA

121

Para Lima Barreto, retornar ao ambiente doméstico era sempre um tormento, pois sentia a realidade que era a sua vida. Dessa forma, recolhia-se no quarto com seus livros para ler e escrever, onde se refugiava e esquecia o resto do mundo “pregando às paredes retratos dos escritores da sua predileção, tirados das páginas de revistas francesas. Renan, Balzac, Dostoiévski, Anatole France, Maurice Barrès!” (BARBOSA, 1988, p. 120). Visualizamos, assim, a íntima e importante relação de Barreto com a leitura, com seu quarto transformado em uma improvisada biblioteca particular. Essa temática também é transposta para os quadrinhos sob o olhar de Aguiar e Lobo, como podemos verificar nas próximas figuras (38 e 39). A figura 38 traz um explícito intertexto com a obra de Miguel de Cervantes, Dom Quixote de La Mancha, tendo como fonte de inspiração a pintura de Gustave Doré, que representou o fidalgo espanhol e sua extensa biblioteca burguesa. Os elementos medievais no trono pintado por Doré cedem lugar a elementos da fauna e da flora brasileiras associados ao cocar e a lança indígenas; além da presença constante do papagaio-narrador. Tais elementos traçam ainda um paralelo entre o ingênuo ufanismo de Quaresma com o primeiro momento do romantismo no Brasil, a fase dos romances indianistas e busca pelos valores genuinamente representativos da pátria. A fase ufanista da nova república de Policarpo se confunde com a fase nacionalista da pátria recém-formada e independente datada do início do século XIX. Segundo Alfredo Bosi (2006, p. 99), na nação patriota do século XIX, “floresce a história, a ressurreição do passado e retorno das origens [...]. Acendra-se o culto da língua nativa e ao folclore”. Autores como Gonçalves de Magalhães, Gonçalves Dias e José de Alencar representavam um verdadeiro projeto literário de criação de uma identidade pátria, através de suas poesias e romances de cunho indianista.


Figura 38 - Biblioteca (I) e (II)

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Fonte: Triste fim de Policarpo Quaresma, Ă tica, 2010.


Figura 39 - Biblioteca (I) e (II)

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Fonte: Triste fim de Policarpo Quaresma, Ă tica, 2010.


A figura 39 nos remete ainda a uma relação das novelas de cavalaria da obra quixotesca com os romances indianistas do romantismo brasileiro, conforme representados pela simbologia dos elementos nacionais da ilustração recriada por Aguiar e Lobo. Outro exemplo de recriação também através do intertexto se faz na transposição do episódio das formigas, durante a estadia de Quaresma no Sítio Sossego, como podemos visualizar na próxima ilustração:

Figura 40 - Cena da formigas

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Fonte: Triste fim de Policarpo Quaresma, Ática, 2010.


Na imagem, o papagaio-narrador cita a famosa frase do personagem Macunaíma, criado em 1928, por Mário de Andrade: “Muita saúva e pouca saúde, os males do Brasil são”. A qual remete ao popular dizer de autoria atribuída ao cientista francês Saint-Hilaire, que foi amplamente usado no Brasil até meados do século XX: “Ou o Brasil acaba com a saúva ou a saúva acaba com o Brasil” (AGUIAR; LOBO, 2010, p. 36). Macunaíma, enquanto obra, detém um olhar crítico perante o folclore e à cultura nacional que já ultrapassava a demasiada preocupação com o caráter nacional e a definição da identidade brasileira em contraposição ao produto estrangeiro e as tentativas de descolonização da produção literária e artística do país, ideias defendidas no início do movimento modernista em 1922. De acordo com Bosi (2007, p. 376), Mário de Andrade foi um folclorista adulto, capaz de sondar a mensagem e os meios expressivos de nossa arte primitiva nas áreas mais diversas (música, dança, medicina) [...]. Ao historiador literário importa essa base de estudos, não só pelo que teve de inovadora numa cultura enraizadamente colonial, sempre à espera da última mensagem da Europa, mas também pelo que deu à prosa de Mário, diretamente em Macunaíma, alusivamente nos belos contos de Belazarte, nos Contos Novos e nas crônicas de Os Filhos da Candinha.

125

Assim sendo, constatamos um cruzamento de releituras literárias e históricas que diversificam e agregam conhecimento ao público leitor, o qual, além da recriação da obra literária, tem acesso também ao contexto histórico e social de uma época, de forma crítica. Segundo Linda Hutcheon (2011), a adaptação dispõe de um prazer intertextual que alguns consideram o conceito etilista e outros veem como enriquecedor. Igualmente às imitações clássicas, a adaptação também estimula o prazer intelectual e estético de compreender a interação entre obras, de abrir os possíveis significados de um texto ao diálogo intertextual. Nessa perspectiva, Discini (2003, p. 266) considera o intertexto como uma retomada intencional da palavra do outro, mostrada, mas não demarcada no discurso da variante; sendo permitida ao leitor dessa variante tanto a cumplicidade com o enunciador como também a confirmação de poder de coenunciador, uma vez que essa variante se organiza não só com a finalidade da decifração, mas também pelo trabalho interativo e cooperativo. Dessa forma, convém questionarmos a discrepante valorização da originalidade e da autoridade quanto à ordem do texto.


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Perrone-Moisés (1998, p. 93) [...] apoiada numa “lógica de causa e efeito, de antes e depois, de origem e de derivações”, critica a “valorização da ‘fonte’” e a “desvalorização da influência”. Converge também a autora para o dialogismo bakhtiniano e para “a teoria da intertextualidade”, proposta por Kristeva, como perspectivas desestabilizadoras de pensamentos cristalizados, como o da propriedade e da originalidade. “A questão de quem disse primeiro torna-se inessencial”.

Figura 40 - Cena da formigas

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Fonte: Triste fim de Policarpo Quaresma, Ática, 2010.


Podemos ainda afirmar que intertextualidade é um fenômeno que, além de revelar um princípio constitutivo da linguagem – conforme desenvolvimentos conceituais de teóricos como Bakhtin, Kristeva, Barthes, entre outros –, decorre de capacidades cognitivas básicas da espécie humana, mais precisamente, o pensamento dialógico e a perspectivação33; sendo assim uma experiência fundamentalmente implicada na capacidade humana de se comunicar e, portanto, de produzir e de compreender textos. De acordo com Cavalcante (2009, p. 222), a intertextualidade possibilita configurar e reconfigurar a experiência de construção de sentido, o qual permite ao leitor evocar novas formas de conhecimento esquemático. Através desse jogo de encenação polifônico, o ser humano pode evocar, a partir da interação com um texto que passe a ser foco de sua atenção, outros dizeres, outros textos, já ditos, compartilhados, experienciados em contextos comunicativos diferentes do aqui-e-agora do discurso. Através de um jogo de encenação discursiva intertextual, podemos afirmar que os seres humanos constroem um cenário discursivo novo, atual, pela evocação de conhecimentos esquematizados por sua experiência de construção de sentido com cenários discursivos já compartilhados culturalmente.

33  Habilidade de criar perspectivas, ou seja, a habilidade de focalizar, em maior ou menor nível de precisão (proximidade e afastamento) os objetos, cenários e eventos com que interagem. Compõe um dos conceitos da Linguística Cognitiva, vertente dos estudos da linguagem, desenvolvida nos anos 1980 que, sendo contrária ao Cognitivismo Clássico, buscava compreender a linguagem como uma forma de ação no mundo, integrada a habilidades cognitivas mais gerais (CAVALCANTE, 2009).

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Dessa forma, a intertextualidade não é compreendida como um fenômeno restrito a relações que possam ser estabelecidas e identificadas entre um texto e outro(s) texto(s), mas como um fenômeno que ocorre devido ao fato dos seres humanos esquematizarem sua experiência de “construção de sentido na forma de pequenas cenas conceptuais que podem ser evocadas e integradas, de maneira criativa e inventiva, em situações concretas de interação semiótica” (Ibid., p. 223). Na produção de Aguiar e Lobo (2010), podemos encontrar a recorrente e polêmica questão da linguagem utilizada por Barreto em suas obras. O autor escrevia de forma divergente da linguagem clássica, cultuada por contemporâneos como Machado de Assis e Ruy Barbosa, entre outros autores e críticos literários que discordavam da escrita mais fluente e cotidiana do romancista. Diálogos barretianos como “Seu, patrão, amanhã não venho ‘trabaiá’”, ou “Há um baruio na Corte e dizem que vão ‘arrecrutá’”, estão presentes, reformulados (BARRETO, 2003, p.116) (figura 41), nas cenas da adaptação, também focando em melhor retratar a realidade dos desfavorecidos. Tendência amplamente utilizada mais tarde por escritores modernistas no Brasil (AGUIAR; LOBO, 2010, p. 76).


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Figura 41 - Notícia de navios da esquadra Fonte: Triste fim de Policarpo Quaresma, Ática, 2010.

De acordo com Zélia Nolasco Freire (2005, p. 15), Lima Barreto incrementa um trabalho consciencioso sobre a língua, transpondo-a em uma linguagem acessível. Para isso, “a desveste da moldura aristocrática tomada de um empréstimo da cultura europeia”, a qual era cultivada pelo modelo parnasiano, e lança-a na “lama da irreverência, no tédio e na amargura da dor amordaçada”. E, da mesma forma que o romancista possibilita voz amplificada aos desprovidos, por intermédio de um exercício linguístico completamente coerente e concernente ao fim a que se destina: pousa-a em solo solo de ruas e vielas dos subúrbios cariocas, dando ao conhecimento do Brasil, um

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Brasil abafado pelo julgo do interesse e do poder.

Mediante tais reflexões, percebemos a singularidade do suporte das Histórias em Quadrinhos, permitindo a dramaticidade e a profundidade de um texto através


das ilustrações apoiadas no papel funcional que as cores podem exercer. 14.

O ESTOPIM E O HOSPÍCIO

Na adaptação também encontraremos o momento da internação do major Quaresma no hospício, quando o autor Cesar Lobo enfatizou, através da ilustração, o lado intimista e metafórico ao processo de enlouquecimento do personagem: “preferi deixar o foco sempre em PQ , tornando-o mais participante. A paisagem é da Praia Vermelha e vemos o hospício onde o personagem e seu autor foram internados” (LOBO, 2010, p. 78, grifo do autor). Como podemos verificar na figura 42: O processo doloroso de Quaresma diante da decepção e constatação de que

Figuras 42 Quaresma vai para o hospício Fonte: Triste fim de Policarpo Quaresma,

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Ática, 2010


pensar e sonhar “nos faz diferentes dos outros, cava abismos entre os homens” é sublimado na imagem de Quaresma voando em uma conotação suavizante e até mesmo bela (BARRETO, 2010, p. 61). Na sequência, temos um importante trecho a ser considerado nessa versão: a inserção do escritor Lima Barreto como um personagem da adaptação. Nessa cena, Barreto é retratado como um homem mulato, conforme o ponto de vista dos autores, falando sobre a experiência da internação no hospício, em uma interação entre as vidas de Quaresma e do próprio romancista (figura 43). Percebemos uma intertextualidade entre obras barretianas no que concerne

Figuras 43 - Lima Barreto como personagem Fonte: Triste fim de Policarpo Quaresma,

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Ática, 2010.


à referência do Cemitério dos vivos (1920), prosa autoficcional e confessional de Lima Barreto, derivada do relato autobiográfico Diário do hospício, que aborda a segunda estadia no hospício, em 1919, em decorrência de um delírio alcoólico. Nessa cena, a ideia do hospício como o Cemitério dos vivos dialoga com trechos do texto de Triste fim de Policarpo Quaresma como fala do personagem Lima Barreto: Quem uma vez esteve diante deste enigma indecifrável da nossa própria natureza, fica amedrontado, sentindo que o gérmen daquilo está depositado em nós e que por qualquer coisa ele nos invade, nos toma, nos esmaga e nos sepulta numa desesperadora compreensão inversa e absurda de nós mesmos, dos outros e do mundo. Cada louco traz em si o seu mundo e para ele não há mais semelhantes: o que foi antes da loucura é outro muito outro do que ele vem a ser após (BARRETO, 2003, p.63).

Essa interpretação que agrega elementos novos, culminando em uma composição por sua vez inédita, antes preconceituosamente apontada como desvios propositais do original, é o que o roteirista Aguiar (2010) chama de recriação da história. Os adaptadores conferem destaque ao cunho autobiográfico de Lima Barreto em suas obras. No caso do personagem Quaresma e o tema da loucura, além do comparativo com o próprio autor, a história coincide com a doença do pai de Barreto. João Henriques, almoxarife das Colônias de Alienados na Ilha do Governador, foi considerado, em dezembro de 1902, incapaz de continuar o serviço público. E a destituição de cargos mais importantes34 no emprego e, por fim, a realização de um inquérito que ligava seu nome a irregularidades no livro-caixa das Colônias, todos esses contratempos culminaram na piora do estado do doente, que estava dominado pela mania de perseguição. De acordo com Francisco de A. Barbosa (1988), os delírios do almoxarife João Henriques, contados pelo filho Carlindo, irmão de Lima, é muito semelhante ao delírio de Policarpo nas manifestações psíquicas. Por diversas vezes o pai servira de modelo ao filho escritor para traçar a página do delírio do protagonista: Como fora doloroso aquilo! A primeira fase do seu delírio, aquela agitação desordenada, aquele falar sem nexo, sem acordo com que se realizava fora dele e com os atos passados, um falar que não se sabia

34  Segundo Barbosa (2008), devido à reforma Seabra (do ministro J. J. Seabra), decorrente da queda da Monarquia, João Henriques perde o cargo de mestre de composição da Imprensa Nacional (1889), além do lugar de administrador das Colônias dos Alienados na Ilha do Governador (1903).

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donde vinha, donde saia, de que ponto do seu ser tomava nascimento! E


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o pavor do doce Quaresma? Um pavor de quem viu um cataclismo, que o fazia tremer todo, desde os pés à cabeça e enchia-o de indiferença para tudo mais que não fosse o seu próprio delírio. A casa, os livros e os seus interesses de dinheiro andavam à matroca. Para ele, nada disso valia, nada disso tinha existência e importância. Eram sombras, aparências; o real eram os inimigos, os inimigos terríveis cujos nomes o seu delírio não chegava a criar (BARRETO, 2003, p.63).

A doença do pai obriga o escritor, filho mais velho dentre os quatro filhos de João Henriques, a abandonar a escola politécnica e, por conseguinte, o sonho da universidade, para trabalhar com fins de sustentar a família. Esse fato corroborou para o desgosto e a decepção de vida mediante à privação dos sonhos do estudo, de ser um romancista, “viver da inteligência e para a inteligência, sem outra preocupação que a de escrever os seus livros” (BARBOSA, 1988, p. 118). 15.

CENA DA BATALHA E FINAL DA OBRA

Na versão de Aguiar e Lobo, verificamos que a característica autoral é notavelmente utilizada em toda complexidade possível dos detalhes que configuram a obra. Fator que indica outro elemento dentre os já comentados aqui, de releitura dos autores em conjunto, visto que verificamos uma simbiose entre o texto e o desenho da produção. As ilustrações acompanham os sentimentos e ideias do visionário Quaresma, desde sua crença e esperança nos valores da pátria, através do colorido e do traço jocoso, até os momentos de tristeza e decepção de um ideal de vida, representado por poucas cores frias e pela técnica de sombras e o tom fúnebre. Dessa forma, os autores cumprem com a proposta de focalizar a adaptação a partir do ponto de vista do complexo ser Policarpo, através de cenas em que o personagem transparecesse seus pensamentos mais íntimos. Segundo Aguiar (2010, p. 79), no processo de recriação, é natural a atribuição de determinado significado especial a determinado episódio da narrativa. E dessa forma foi interpretada a história da personagem Ismênia, que morre deprimida em decorrência do abandono do noivo: Ismênia representa a desilusão com a República e com Floriano, a quem Quaresma e muitos intelectuais tinham como herói. Ismênia morre como morre a ingenuidade dos republicanos. Daí as mortes na batalha e a morte de Ismênia virem juntas, e ambas sugerem a morte da República dos sonhos.

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Dois momentos do romance são reinterpretados em uma nova configuração


de proximidade significativa da desilusão e da morte. Fato que, semelhante à Ismênia, também sucederia a Policarpo Quaresma por outras razões, quando a descrença e o profundo desapontamento encontram-se no mesmo parâmetro do cessar da vida, conforme pode ser verificado na figura 44 a seguir: Entretanto, um cessar em forma de punição da sociedade, a quem devemos

Figura 44 - Morte de Ismênia Fonte: Triste fim de Policarpo Quaresma, Ática, 2010.

atribuir a causa da morte dos personagens, por destoarem dos padrões considerados normais – no caso, os valores do casamento e do cidadão que obedece às leis vigentes sem questionar ou pensar. Em tempo, o ilustrador Cesar Lobo optou por reproduzir (figura 45) na íntegra, mas dentro da estética da HQ , a carta que Policarpo escreve à irmã Adelaide, caracterizada como um dos pontos culminantes do enredo devido ao significado de perplexidade e decepção do protagonista para com os valores até então acreditados.

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De acordo com Lobo (2010, p. 79), procurou-se criar uma visão panorâmica


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Figura 45 - Descrição da batalha Fonte: Triste fim de Policarpo Quaresma, Ática, 2010.

dos fatos narrados na carta como “em uma tela de cinema 3D” inserindo o leitor no interior da cena. Em uma sequência de imagens que se entrecruzam, na qual “a fumaça, as sombras e o canhão funcionam como setas que convergem para o ponto ao fundo, a capital sob o fogo dos rebeldes, atraindo a atenção do leitor”. Dessa forma, o autor afirma que História em Quadrinhos não é um romance ou uma produção no formato convencional livresco, esforçando-se em “equilibrar o volume de texto ao máximo de imagens, de preferência ações, para tornar a leitura mais ágil e o andamento da HQ mais esperto” (AGUIAR; LOBO, Ibid., p. 79). Por fim, a adaptação apresenta mais uma interpretação dos autores em um episódio de esperança, ainda que diante da morte do personagem (figura 46) que, em vez de culminar na morte de todo ideal visionário e nobre da nação, reverte-se em mártir em uma intertextualidade entre os movimentos decisórios e revolucionários da história do Brasil, como o Diretas Já e o impeachment do ex-presidente Collor em 1992. Nesse momento, o mascote papagaio tem a fala do encerramento com o intuito de continuidade: “Contudo, quem sabe se outros que lhe seguissem as pegadas não seriam mais felizes?” (AGUIAR; LOBO, 2010, p. 67, grifo dos autores). A produção de Aguiar e Lobo contempla uma atualização da crítica de


Figura 46 - Execução de Policarpo Quaresma

Lima Barreto, transpassando a crítica da política e sociedade durante o período da república no Brasil, em vista dos marcantes acontecimentos políticos e sociais de cunho democrático ocorridos no país durante os anos consequentes até o período atual. A complexidade de conteúdo que a terceira versão analisada carrega nos faz refletir que para compreender essa obra e todas as inferências de seus autores, o leitor talvez precise ter lido e compreendido o texto fonte de Lima Barreto, para só então entender a presente adaptação em quadrinhos. Dessa forma, percebemos uma inversão do que se entendia erroneamente por adaptação em HQ como um facilitador do texto literário. Mediante tais versões analisadas, verifica-se que cada adaptação recria o universo da obra de Lima Barreto de forma diversa; enquanto uma enfatiza o texto, outra versão ressalta elementos da obra através das ilustrações, entre outros fatores. Essa variedade de interpretações propicia um amplo material de leitura, que poderá conduzir alunos do Ensino Médio à leitura da obra de Lima Barreto, ou melhor, acrescentar, agregar novos sentidos e interpretações dessa obra, e, por

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Fonte: Triste fim de Policarpo Quaresma, Ática, 2010.


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conseguinte, dos clássicos literários. Levando-se em conta o que foi observado, ao considerar as adaptações como recriações, podemos constatar que tais produções dos clássicos para os quadrinhos contribuem para resgate do cânone, uma vez que possibilitam o retorno da discussão e da releitura de importantes obras que talvez não fossem lidas pela maioria dos alunos. Outro fator a ser ressaltado, são os elementos paratextuais. Vimos que as três versões apresentam um posfácio, cuja localização final nas obras, segundo Genette (2009, p. 212), nos leva a observar que ele se dirige a um leitor efetivo, para o qual a sua leitura é “certamente lógica e mais pertinente”. Entretanto, para o autor, o posicionamento do posfácio pode causar uma eficácia menor ou questionável: Porque não pode mais exercer os dois tipos de funções essenciais que encontramos no prefácio: reter e guiar o leitor explicando-lhe por que e como se deve ler o texto. Faltando a primeira ação, talvez ele nunca mais tivesse a ocasião de chegar até a um eventual posfácio; faltando a segunda, será talvez tarde demais para consertar in extremis a má leitura já feita. Por sua localização e seu tipo de discurso, o posfácio pode pretender exercer apenas uma função curativa e corretiva.

Talvez, devido à falta de conhecimento do formato da adaptação e de seu histórico como estigma de arte menor, pudesse ser viável a presença de elementos introdutórios que esclarecessem leitores, alunos e professores quanto à intencionalidade da adaptação como nova obra autoral e divergente de um substituto ou facilitador da leitura do texto fonte, e apresentando os adaptadores como autores da obra em questão, sem precisar entrar em detalhes reveladores da trama e do conteúdo. Acrescentamos ainda o fato de essas versões oferecerem mais um suporte de estímulo ao ato de ler, por apresentarem a dinamicidade e a linguagem constitutivas das Histórias em Quadrinhos, tão cativa entre os jovens; além de ofertarem o enriquecimento da bagagem cultural e intelectual dos leitores, quando expostos à diversidade criativa das releituras somada à leitura dos próprios clássicos. Dessa forma, as três versões de Triste fim de Policarpo Quaresma apresentadas neste livro é apenas um ponto de partida para as infinitas possibilidades literárias que as adaptações em quadrinhos podem proporcionar.


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CONSIDERAÇÕES FINAIS


As Histórias em Quadrinhos já ultrapassam as expectativas de natureza pedagógica e facilitadora da leitura, ou de, necessariamente, um meio de comunicação de massa. Já não se pode abarcar ou enquadrar a diversidade tipológica que o formato possibilita ou com que se relaciona. Como vimos, o termo romance gráfico ilustra características que inferem uma complexidade estética, literária e cognitiva, entre outras, que podem estar no mesmo patamar das renomadas obras de artes ou clássicos literários. Incontáveis graphic novels nos emocionam e nos intrigam ao mesmo nível que legitimados cânones literários, fílmicos, musicais ou teatrais, entre outros formatos. De forma semelhante, porém em uma antecedência temporal, a adaptação também deve ter seu espaço cativo dentre as categorias diversas dos gêneros artísticos. Sabemos que, de acordo com Hutcheon (2011, p. 234), o ato de recontar histórias e de adaptá-las é uma prática constitutiva da imaginação humana: “A adaptação representa o modo como as histórias evoluem e se transformam para se adequar a novos tempos e a diferentes lugares”. Assim, de modo geral, se uma história é a compilação de várias histórias, um livro, um recorte de vários livros, entre outros exemplos, já não nos é cabível assimilar os ultrapassados conceitos depreciativos ou excludentes em relação às adaptações. No que concerne ao caso específico da adaptação intersemiótica, podemos ainda entender que a passagem de conteúdo entre meios distintos – a transmutação da matéria − envolve uma ampla negociação, e assim uma: transformação quando é passada de um para outro meio. O mito da fidelidade absoluta 139

é um paradoxo: se mantivermos tudo que


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existe em um livro na adaptação cinematográfica, perderemos a eficiência do meio texto escrito e não teremos as habilidades do cinema. Algumas coisas necessitam ser transformadas para termos uma pretensa fidelidade da recepção. Se é que há o interesse por essa fidelidade (ZENI, 2012 apud RAMOS p. 249).

Por isso, uma busca por fidelidade ao texto fonte não está vinculada à qualidade de uma adaptação entre meios. Na construção dessas produções, o adaptador aplica um paralelismo entre os textos e seleciona os enfoques que preferir conforme intenção autoral, não havendo, assim, margem para julgamento de melhor ou pior escolha de abordagem na criação de uma adaptação. Dessa forma, a massiva produção das adaptações literárias para as HQs no Brasil tem, no mínimo, um saldo favorável, uma vez que abriu espaço para a difusão dos quadrinhos nas escolas. Segundo Paulo Ramos (2012), um próximo passo seria que as editoras e o governo também incluíssem o uso de obras autorais nacionais no ensino como forma de leitura. Percebemos também que essas adaptações intersemióticas são, como afirma Eco (2007, p. 404), “infinitas aventuras de interpretação”, possibilidades criativas e artísticas que envolvem um amplo processo de recriação cultural. Na evolução das três análises, pudemos perceber que a leitura dessas produções não servirá de substituto para a leitura do clássico literário. Em muitas vezes, como no caso da terceira adaptação analisada, a leitura da produção pode requerer uma bagagem cultural mais elaborada – e atualizada – em relação à leitura do texto fonte, uma vez que nos deparamos com uma nova interpretação crítica e repleta de inferências e intertextos de outras obras, conferindo assim uma densidade de conteúdo. Dessa forma, entendemos como principal objetivo deste estudo, atrelado às análises realizadas em torno das linhas teóricas de autores como Hutcheon (2011), Eco (1979; 1993; 2007) e Plaza (1987) quanto à questão da intersemiose e da adaptação; Iser (1996) e Jauss (1994) quanto à recepção


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das obras; Ramos (2010; 2011; 2012) e Vergueiro (1999; 2005) em relação às HQs; dentre outros autores aqui abordados, compreender uma adaptação como uma nova obra de cunho autoral, que se relaciona com o texto adaptado como um novo texto, nem secundário nem substituto. Transpassamos também a ideia da função pedagógica vinculada às adaptações literárias para os quadrinhos, percebendo uma evolução dessas produções e uma conscientização dos leitores diante delas, que nos oferecem uma fortuna crítica incomensurável. Acreditamos na necessidade da continuação de estudos nessa área, principalmente os que possibilitem uma melhor instrução e um programa de formação continuada para professores, escolas e academia, quanto à leitura e à instrumentalização da linguagem dessas produções como forma de agregadores de conhecimento e como forma de arte. Esperamos que este livro possibilite repensarmos sobre a formação docente quanto à atualização e ao conhecimento das diversas mídias disponíveis para o desenvolvimento de alunos-leitores, principalmente quanto à utilização das adaptações literárias em HQ , assim como dos quadrinhos, de forma crítico-reflexiva para também ampliar a compreensão dos cânones literários. Desejamos também que as produções já disponíveis em escolas públicas e privadas – onde, muitas vezes, permanecem encostadas e esquecidas em bibliotecas distantes da convivência estudantil − possam ser apresentadas aos alunos como obras autorais e detentoras de qualidade artística do formato a que se propõem: o formato da adaptação; e serem de fato lidas por eles. Assim, diante do contexto atual da educação e dos estudos relativos à prática leitora, compreendemos que não deve haver uma intenção em facilitar o conteúdo, mas sim em desenvolver e pluralizar as competências cognitivas. Nesse aspecto, tanto as adaptações e os quadrinhos quanto às adaptações para as Histórias em Quadrinhos vêm exercer uma ilimitada possibilidade de leitura e aprendizados múltiplos.


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