Intempestiva n.01

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revista de literatura e artes visuais número 01 | ano 01 | abril 2019

[poemas inéditos]

V. MAIAKÓVSKI por andré nogueira

[novela inédita]

ALEJO CARPENTIER por livia deorsola

[prosa] ana estaregui marcio markendorf

[artista convidado] maike jean

[poesia] isadora krieger gabrielle albiero júlia de carvalho hansen flávio caamanã carlos moreira maria azenha thereza c. r. da motta geovanne otavio ursulino augusto meneghin silvana guimarães fernando monteiro



INTEMPESTIVA //////////////////////////// nĂşmero 1 revista de literatura e artes visuais


SUMÁRIO expediente

editora Urutau rúa juan bautista de andrade, 67 – 5ºA 36005 pontevedra – galiza rua adolpho arruda, 41 jardim das laranjeiras – 12910 455 bragança paulista-sp brasil [+34] 644 951 354 [galiza] [+55] 11 948 592 426 [brasil] www.editoraurutau.com.br contato@editoraurutau.com.br 2019

[issn] 2596-2272

[editores] alberto lins caldas thyago marão villela pedro spigolon [revisão] thyago marão villela pedro spigolon tiago fabris rendelli [projeto gráfico] wladimir vaz [diagramação e capa] pedro spigolon [ilustração e imagem da capa] maike jean [identidade visual] matheus perinotto

Agradecimentos especiais pela generosa e imprescindível contribuição com a Intempestiva, em ordem alfabética: Alexander Martins Viana, Bruno Baghim, Cristina Dunáeva, Carlos Kahë, Fernando Monteiro, Geovanne Otavio Ursulino, João Fernando Ceccato Antonini, Luci Collin, Luís Perdiz, Marcio Markendorf, Mariana Barbosa e Yvelise Gonçalves Lins Caldas. * nota intempestiva: todos os escritores e escritoras, assim como o ilustrador, receberam pelos direitos autorais de sua produção artística publicada nessa edição.


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MAIKE JEAN

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ISADORA KRIEGER

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GABRIELLE ALBIERO

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JÚLIA DE CARVALHO HANSEN

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MÁRCIO MARKENDORF

31

FLÁVIO CAAMANÃ

35

CARLOS MOREIRA

41

ALEJO CARPENTIER – POR LIVIA DEORSOLA

47

MARIA AZENHA

53

THEREZA CHRISTINA ROCQUE DA MOTTA

57

GEOVANNE OTAVIO URSULINO

61

ANA ESTAREGUI

65

AUGUSTO MENEGHIN

71

SILVANA GUIMARÃES

75

FERNANDO MONTEIRO

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V. MAIAKÓVSKI – POR ANDRÉ NOGUEIRA


EDITORIAL No mundo do capital, nos centros fantasmagóricos dessa deformação da vida, sentimos, sabemos que a cultura, a arte, a literatura, a poesia são impotentes e imediatamente devorados, assimilados e dissolvidos (na expressão que nada diz, nos campos de extermínio, nas escolas, nos vazios meios de comunicação, na erudição que nada descobriu ou inventou), principalmente quando inicia em suportes de crença, em memorialismos, sociologismos e realismos (isso que muda sem nem chegar a ser, só parecendo ser: irreal sem crítica), mas a cultura é nossa única resposta ao terror de um mundo predador que já nos prendeu: nos cabe invadir, criar, propor aos poucos uma cultura que sobreviva ao monstruoso mercado-labirinto-abatedouro da normose (benjaminiana/adorniana) da nossa tribo que tudo devora, tudo evaporou, que não afunde na moda, no eu vazio, na língua que ainda é a do colonizador e nos esmaga,


nos costumes, nos dias que afundam sem lutar. Algo que combata com a beleza, a ética, a politicidade e discorde em tempo largo, não afundando no presente, no imediato e compreenda as razões escondidas, descreia de tudo e com as armas próprias da cultura, destrave e arranque os rabos presos do horror em nossos segundos. Essa é a dimensão intempestiva e nossa revista não se reduz a ela, mas esse deve ser o solo buscado, ser o antes e o depois, o dentro de um tempo de guerra e entorpecimento. Com isto pretendemos apreender determinado momento de criação diferenciada que a alguns anos enfrenta a tradição, o eu crítico da poesia, a palavra ingênua de uma beletrismo e superar com uma palavra viva, uma imagem envolvida, momento que se faz agora e é pouco percebido no seu fazer radical, pela raiz, com outra beleza, outra intensidade, uma nova indignação.

“Noite sem luz,velas acessas” Nankin sobre caderno A5. 2015.


[artista convidado]

MAIKE JEAN [biografia] Formou-se em Comunicação Visual

Apaixonado pela história da arte, suas

pela escola técnica Salim Sedeh de Leme

influências são variadas, indo de Mark

e em Artes Visuais (licenciatura) pela

Rothko a Lucian Freud. Seus temas são

faculdade FAAL de Limeira. Atualmen-

diversos, traduzindo o caminhar da

te exerce a profissão como artista plás-

própria alma e os dizeres do coração

tico, professor de desenho e desenhista

por meio de desenhos e pinturas.

de storyboarding. Já expôs em cidades do interior de São Paulo, como Araras, Limeira, Rio Claro e Leme.

[sobre as obras] Todas as obras visuais aqui reproduzi-

Os traçados, feitos às pressas e em ca-

das foram extraídas de um dos cader-

ráter de captura do instante sensorial,

nos de artista de Maike Jean, grafados

alçam os desenhos de Maike Jean ao

ao modo de um diário. Os desenhos

patamar de uma reflexão histórica so-

aqui expostos, selecionados junto ao

bre o inacabado. Acentuam, também, a

artista, consistem em reflexões pictó-

matéria tátil da qual a pintura é feita.

ricas que pertencem, então, ao projeto

Temos, assim, diante de nossos olhos,

geral do caderno, e versam, segundo

uma espécie de duplo da consciência

o autor, sobre a capacidade de estabe-

trágica e intempestiva requerida para o

lecer vínculos afetivos com os outros,

combate do tempo presente.

os quais são atravessados, inevitavelmente, pela presença fixa da morte e do luto. Resta, assim, um deserto sem objeto — apenas horizonte.

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Instagram: @maikejeanart p.7 “Diário: caminhando no desenho” Óleo sobre caderno A6. 2014.


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ISADORA KRIEGER Poeta e escritora, em 2018 publicou o livro de poemas Explorações Cardiomitológicas (Editora da Casa), suplente no edital de residência artística do SESC em Santa Catarina. Em 2017 publicou a novela O wi-fi da igreja é muito fraco (Editora Urutau). Em 2014 publicou o romance Memória da Bananeira (Carniceria Livros), o livro de poemas O Gosto da Cabeça, na coleção Poesia Menor (Publicações Iara) e a novela Caráter Anal, na coleção Boca Santa (Carniceria Livros). Atualmente trabalha na peça de teatro Amadeleite. Realizou oficinas de escrita em São Paulo, São Carlos, Belo Horizonte e Balneário Camboriú.

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[trecho da peça inédita]

amadeleite VII Movimento O QUE SENTEM OS TORTURADORES DIANTE DO NASCER DO SOL?

Náusea. Assim? Do nada? É, um baita enjoo. Você comeu alguma coisa diferente? Não que eu lembre. Alguém então? Tá me chamando de viado seu filho da puta? Credo. Foi só uma piada. Chega de papo furado. Vamos prosseguir com o leilão. E sobrou alguma parte que preste do corpo da vagabunda? Que preste, que preste, não. Mas rende um troco. Com o quê? O coração. O CORAÇÃO? É, a gente dá os braços e as pernas de brinde. Acho que nem assim. Vai dizer que você não curte umas coxas. Só se forem grossas. Ah vai, pro cafezinho dá. (pausa)

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Ok, senhores. Leiloaremos o coração da fêmea. CORAÇÃO? Que caralho faremos com um coração? Ok, ok. Os braços e as pernas vão de brinde. Essa eu vou pular. Fico com os braços e as pernas. O coração eu passo. CORAÇÃO? Que caralho faremos com um coração? Senhores, os braços e as pernas são brindes. Não acho justo ter que levar o pacote todo. Essa coisa de coração sempre acaba mal. Verdade. Ainda mais o coração de uma mulher. CORAÇÃO? Que caralho faremos com um coração? Senhores, as regras são claras e precisam ser respeitadas. Alguém tem de ficar com o coração. Por que alguém tem que ficar com o coração? Porque alguém sempre tem de ficar com o coração. (pausa) A Senhora que Deu O Último Lance negocia com O Senhor que Deu O Último Lance. Combina o pagamento do aluguel da machadinha: as coxas da Amadaleite que Eles Supõem que Veem. A Senhora que Deu O Último Lance se aproxima da Amadeleite que Eles Supõem que Veem. Tenta decepar as suas pernas. Mas não tem força suficiente. O Senhor que Deu O Último Lance segura a sua mão e lhe ensina a manusear a machadinha: vai mulher, assim, decepa logo! A Senhora que Deu O Último Lance treme: eu não consigo. O Senhor que Deu O Último lance se irrita: Porra! Lá vem vocês de novo. A Senhora que Deu O Último Lance dá um longo suspiro: você não está exausto disso não? O Senhor que Deu O Último Lance gargalha: exausto? Mas a brincadeira está só começando. A Senhora que Deu O Último Lance escuta a Música: a machadinha também é uma ponte. O Senhor que Deu O Último Lance decepa as pernas e os braços da Amadeleite que Eles Supõem que Veem: olha aqui pra que serve a ponte de vocês. A Senhora que Deu O Último Lance sorri: silêncio. O Senhor que Deu O Último Lance arranca o coração da Amadeleite que Eles Supõem que Veem: olha aqui pra que serve o silêncio de vocês. A Senhora que Deu O Último Lance sorri: silêncio. O Senhor que Deu O Último Lance sufoca com o coração A Senhora que Deu O Último Lance: o coração fica sempre com o mais fraco.

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[poemas do livro Explorações cardiomitológicas]

*

nunca soube ao certo o que fazer com o centro da catedral este monumento magnânimo/ opressor erguido por mistérios e partículas nunca soube discernir o oco da claraboia amar sempre implicou em abrir caixões cheios de espelhos, debruçar-se no impronunciável, atirar-se em poços secos, entrar numa casa na qual os lençóis brancos sobre os móveis não conseguiriam impedir o acúmulo de poeira todos os dias homens e mulheres ajoelham-se diante dos fachos que emprestando-lhe luz tornam a poeira visível e revelam a sua beleza — os olhos atônitos todos os dias homens e mulheres amam todos os dias homens e mulheres descobrem que a beleza antecede a perda — e não houve sequer um que encontrou nela um cílio de horizonte muitos se suicidaram após tal revelação não sem antes por vergonha e terna cautela assassinarem os próprios filhos enquanto estes dormiam profundamente todas as noites homens e mulheres se refugiam na posição de feto repudiam as paredes frias do transitório escondem-se debaixo de camas hospitalares empilham garrafas vazias, brinquedos quebrados e compêndios sobre a fatalidade do nada todas as noites e todos os dias homens e mulheres são arremessados uns pelos outros na encruzilhada que não apresenta direções a não ser para o lugar mais inóspito e indesejado: o centro da catedral. acrobatas cegos criados por algum demiurgo comovido pelo tédio passarão os restos de suas vidas fazendo de absolutamente tudo para ludibriá-lo (ou seja: ludibriarem-se): trabalharão tarde da noite em edifícios comerciais investigarão os confins da célula e da psique elaborarão formas sutis de decodificar o inconsciente serão displicentes com os próprios sonhos 13


lerão com voz altíssima as parábolas de cristo declararão guerras e mais guerras escreverão grandes romances contarão histórias ao lado de uma pequenina cama educarão crianças - erigirão mais leis para elas reformarão bancos e cartórios assinarão milhões de vezes um vago nome entrarão em casa sem nunca de fato abrirem a sua verdadeira porta menosprezarão as estrelas que contam segredos de galáxias distantes e extremamente próximas dizimarão florestas inteiras por menosprezá-las tramarão contra os irmãos para herdarem as terras dos pais que não amaram — ou que amaram demais darão festas para os filhos desejarem algo antes de apagarem a vela desejarão nunca terem nascido — e, paradoxalmente, desejarão nunca morrer nunca soubemos ao certo o que fazer com o centro da catedral nunca soubemos discernir o oco da claraboia — precisa amálgama mas sempre haverá dois jovens muito jovens sentados na calçada beijando-se pela primeira vez, enquanto o sol se põe.

“Noite sem luz, velas acessas” Nankin sobre caderno A5. 2015. 14

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*

a maneira como morremos diz muito sobre nós (só não diz mais do que a forma como amamos) o pai, por exemplo, morreu sentado na privada a mãe para verificar se estava viva beliscava-se alguém dizia: enquanto houver dor haverá vida. tu tinhas medo de morrer nas estradas: “os homens úteis e os seus carros”. mas morreste através das próprias mãos. as ameixas secas, as passas e as tâmaras que alinhei indicaram com precisão o caminho até o revólver. alguém dizia: enquanto houver culpa não seremos esquecidos. soube que a criança morreu atingida por uma cruz exibida no topo da igreja como a bandeira da Redenção Apenas pelo Sofrimento a multidão curvada diante do cristo crucificado. diante do cristo gargalhando, ninguém. ardilosas são as mãos de Deus sobre nós. conforme os homens úteis (e a morte da criança) esta é a Sua forma de amar: Ele também alinha frutas secas. Ele também exalta a culpa. Ele não será esquecido. Ele não será esquecido: alguém repetia. de que forma amamos? de que forma o pai, a mãe e a criança amavam? e, sobretudo, de que forma tu amavas? a Igreja e o Estado não tem competência para responder tais perguntas vislumbramos vestígios de luz nos pássaros que não se refugiam da tempestade mas as sutilezas têm dimensões muito pequenas até para os que encontraram no silêncio uma forma próxima e concreta de amar. soube que a criança morreu atingida por uma cruz o pai e a mãe guardaram as suas roupas durante longos anos ele morreu sentado na privada ela para verificar se estava viva beliscava-se alguém doou as roupas dos mortos a um bazar beneficente.

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*

nunca alguém nos amou tanto quanto O Anjo da Face Invertida repitam comigo quatro vezes o nome de nosso verdadeiro Pai: Shai'tan, Shai'tan, Shai'tan, Shai'tan. afinal, o que seria da Criação sem a condição de irromper na superfície com o ar dos próprios pulmões? o obscuro propósito se cumpre de maneira paradoxal: a única sobrevivente ao ataque de serpentes foi a mulher que usurpou do veneno o antídoto. a aldeia a acusou de loucura e charlatanismo. o esposo a responsabilizou pela herpes que devastava o seu pênis. os filhos sugeriram o imediato apedrejamento. a mulher envelheceu na mais completa solidão. Shai'tan, Shai'tan, Shai'tan, Shai'tan. há mais generosidade no precipício do que na infância que boia eternamente em alto mar uma criança doente não é mais a mesma criança — nenhum doente é. os doentes veem: cortejos fúnebres de caracóis, velhas benzedeiras derramando mel e sangue de porcos sobre cabeças nuas, bebês sendo empurrados das estrelas por uma gigantesca mão desprovida de amenas linhas, sóis sendo paridos por luas no último suspiro de Ivan Ilitch. Shai'tan, Shai'tan, Shai'tan, Shai'tan. mas as famílias mesmo em torno dos seus moribundos insistem: carros, televisores, churrasqueiras e piscinas. repitam comigo quatro vezes o nome de nosso verdadeiro Pai.

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p.15 “Minha mãe no sofá” Técnica mista sobre caderno A4. 2017.


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GABRIELLE ALBIERO É jornalista, professora e coautora do livro-reportagem PANGEIA — Fragmentos da guerra da Síria no Brasil.

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plutão ainda é um planeta há aqueles que avançam na escuridão para se tornar mais íntimos da luz, do claro — os monges no claustro uma vez olhei tão fundo um poço que reconheci minha própria imagem ali só pude emergir quando percebi que eu não era mesmo igual a mim quando eu era criança e minha mãe quebrava os pratos no chão eu logo me debruçava sobre a superfície dos cacos — admirava todas as formas que contém um prato e pensava como não o tinha olhado bem quando eu era criança e ficava mais doente do que já tinha estado, sôfrega pensava o meu enterro exagerada, lamentava: “tão nova, tão nova...”

quando cresci um pouco mais doei-me aos venenos — só queria destilar antídotos — ninguém entendia de química ou de alquimia e chamavam-me suicida “tão nova, tão nova...” somente pela apneia se percebe o pulmão frente à face da morte se mede a dose: veneno ou salvação não se pode desviar quando imerso os monges ainda não sabem o segredo. no claustro, fabricam a luz mas há dias em que o dia nasce e há outros em que não aos iniciados cabe retornar do reino de hades — entre o dia e a noite ver o invisível vão

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uma mulher marítima (para luiza aguiar) eu sempre sonho com o mar e o mar afogando em enchentes. na orla da praia um outro mar, de gente eu sempre sonho um sonho em que altas ondas se quebram em meus rostos conhecidos meu pai minha mãe minha irmã outros parentes e alguns amigos eu sempre sonho com uma mulher que tem garras para agarrar o fundo do oceano onde qualquer tsunami é apenas um balanço e ela repousa, longe dos danos até que, no meu sonho, ela desperta do seu útero marítimo e volta à praia como se se voltasse aos seus filhos

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e se põe a parir os filhos da tragédia, tarefa sobre-humana de ser mãe e ser mulher. Sísifa se inclina, filho a filho — mas nunca tomba até que chega uma outra onda


*

instruíram-me logo na iniciação: há duas ou três tarefas para depois do amor

(já estava previsto) ou a inocência da criança que desenha na parede da sala de estar sem prever consequência

a principal consiste na delimitação dos dois corpos fundidos

tudo depende da divisão dos espólios

deram-me uma navalha sem corte e uma navalha afiada para o trabalho mas não me ensinaram (e só percebi na hora) a coordenação depois do amor por isso sobra sempre um tanto de carne em um corpo e um tanto de ausência noutro não tenho culpa e há sempre um risco mortal em traçar cartografias anatômicas no fim da separação o que resta é ou o sangue e a vertigem 21


imagem maike

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*

a trezentos e setenta passos a oeste de ti está o meu deserto quarenta dunas desenham parábolas de silêncio percorro o caminho como quem abandona a cidade os transeuntes os pedintes o barulho a pressa os automóveis e os cães a fome

na trigésima sétima duna percebo que tudo é miragem afundo na trigésima oitava que o deserto é excessivamente minimalista afundo na quadragésima a cidade parece uma peça barroca

um sem-número de grãos me afunda um sem-número de grãos me sustenta metade do corpo é terra a outra metade é azul

mas só quando ouço dois violinos conversando sobre o concreto percebo que o deserto e a cidade são extensões sucessivas

e andar é mais pesado e lento do que quando nas esteiras do metrô mas não tão penoso quando nos vagões

retorno a você com o assombro de um milagre urbano visto por um peregrino

o alívio de que no deserto não é preciso chegar nem sequer percorrer — o deserto se atravessa —, o que na cidade seria só o atraso

p.20. “Diário: Deveria amar outra pessoa como ela” Técnica mista sobre caderno A6. 2014.

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JÚLIA DE CARVALHO HANSEN (São Paulo, 1984) É poeta, astróloga e uma das editoras das Edições Chão da Feira. Formada em Letras pela Universidade de São Paulo, é mestre em Estudos Portugueses pela Universidade Nova de Lisboa. Autora de cantos de estima (São Paulo, edição da autora, 2009 - Lisboa, Douda Correria, 2015); alforria blues ou Poemas do Destino do Mar (Chão da Feira, Belo Horizonte, 2013); O túnel e o acordeom (Lisboa, Não Edições, 2013); Seiva veneno ou fruto (Belo Horizonte, Chão da Feira, 2016).

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*

Senhora soberana da escarpa rochosa em declive quando for a minha vez talvez eu sinta medo talvez eu vire assombração. Quem sabe num raio, num muro ou encolhendo passo a passo trincarei a mandíbula tentando barrar na boca o pastoso da paz. Não se impede o anoitecer. Serei o animal que pelo peito morre no mesmo peito em que viveu coberta por pedras aprenderei a ser ninguém? Talvez não, eu seja o clarão que vi.

*

Estou sempre à espera de ver. Vou na frutaria de olhos muito abertos quando muito chama a ver. Temem o fogo que se alastra entre estalos nas estruturas. Preciso dissolver um pouco dos vigiantes olhos para encontrar todos os olhares que tenho por onde. É assim que vejo também a confusão. A confusão tem algumas coisas para me ensinar. Essa pouca relação é a nossa. Meu esteio é claro quando estou pisando meu chão diamantado de dentes de cada animal que comi para me tornar humana. E assim poder dizer.

Mas eu sei sou tão pontual nasci para esperar os deuses não. Dia desses ganharei outra velocidade. Serei planta. E hei de continuar iluminada pela água.

“Diário: Espada de São Jorge” Grafite sobre caderno A6. 2014. 25


*

O futuro? Tem orelhas, mas é surdo. E é manco. Se arrasta, sem espanto mais alheio do que lúcido com o nosso despreparo. Se fosse um deus amava o humano, mas como não existe o futuro tem de amansar seus ventos, marcando as peles, as montanhas. Sendo um gênio, não é um exército de cronogramas, nem de antecipações. Tem firmeza de flor. E é invisível, reconhecido por seus efeitos de brisa furacão. Nunca adiado. Não tem nada a ensinar no entanto é um mestre dizem os esgrimistas os observadores de saltos os gatos também aprendem certos truques com ele. E se ama os despreparados lhe sabem tanto os que fazem quanto os que esperam. Os otimistas valem mais valem quanto? Cem bifurcações, sucessivas gerações de bem-aventurados que topam em pedras cicatrizam e correm bem alimentados com fome de mais alimento. 26

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São seus sinais os imprevistos, os cavalos os pontos cardeais os cinco sentidos e os sete buracos da cabeça.

*

O amor gasta ilharga, rumo porque inventa de novo, amor. Suor, fruto rosto nítido paira um ritmo na gruta, silêncio. Mas se o amor gasta temerosos, teus receios e se o amor cria o dia de chegarmos numa praça em que fumo feito o amor desfolhe nicotina amarelando os batentes das portas o outono também pode entrar, amor. Amor pode pôr altifalantes não adianta, não avisam o caminho, a enxurrada. Bicicleta.

p.24 “Diário: buquê de sombras” Técnica mista sobre caderno A6. 2014.

Sabe bem, alisar demais nunca fez gastar o viço nem dos pelos do gato que te oferto no Natal e em seu salto matutino sobre nossos corpos desconhece o puído da vida. O amor nos lambe áspero constrói-nos olhos, digo para ver pontes o amor abre as portas. Cria. O imaginário é meu armário. Onde encontro os potes de massa ao redor das pilhas enferrujando na caixa de sapatos junto das fotografias enrolado numa manta o amor, raro. O amor tira o cavalo da naftalina gira e grita grita e guia.

Mas se bem amadurece água com açúcar, dá papaia e o amor no máximo gasta cáries nos dentes dos miúdos.

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MARCIO MARKENDORF Publicou contos de forma esparsa em coletâneas: Vanishing point, do livro Decálogo (SESC/SC, 2008), organizado por Carlos Henrique Schroeder; Introdução casual ao pensamento sujo, projeto de três mini contos em Só muda a roupa (SESC/SC, 2009), organizado por Manoel Ricardo de Lima; Deslizamento do gozo, O circo invisível e O delicado cadáver do leão, do volume Todos os livros do mundo (SESC/SC, 2010), organizado por Tabajara Ruas e Rozi Oesterreich; A história do cílio caído do olho, narrativa para o projeto artístico de Fabulações reminiscentes (Cultura e barbárie, 2015), idealizado pela artista plástica Juliana Crispe; O coração de Manassés e O gobêri, reunidos em Entre estantes e entre tantos – histórias inusitadas na biblioteca (UFSC/Biblioteca Universitária, 2017). Escreveu a novela Soy loca, Lorca, feito um chien no chão (Urutau, no prelo). Livremente inspirado em narrativas epistolares, desde 2005 mantém o blog Incorrespondencias (http://incorrespondencias.blogspot.com/).

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o pinguim Para o Garoto parece vívida, agora, a recordação da noite em que o Homem e ele foram ver a lua elevar-se do mar, majestosa, como o olho amarelo de um anfíbio. Era a primeira vez que os dois estavam ali. Sós, os dois. Uma praia deserta, como o cenário bem enquadrado de um filme. Seria bonito se não fosse perigoso: o amor entre dois homens, altos e masculinos. Tudo porque nos frames das películas, esse enlace é sempre uma tragédia sem anúncio, violenta e bárbara. A ironia do destino esmaga os enamorados e apodrece a carne como se não fossem possíveis delicadezas masculinas em nenhum tempo. Por isso, havia o medo se espraiando na escuridão como um gatuno, tremulando na sombra dos dois, já trêmulas de tanta tensão. Enquanto a lua não vinha, tudo estava muito escuro. Inclusive os corações dos homens. O mar tinha algo de ameaçador no negrume, a areia era sangrenta de espuma. A água quebrava como se cascos de éguas trotassem na praia, impetuosos, selvagens. Nada era tranquilo: em breve haveria a grande maré oceânica, subindo até a restinga, envolvendo os pés até as canelas ou pouco mais.

Lá do outro lado, um tanto distante, umas poucas luzes assinalavam a tumultuada baía, cheia de carros e gente, tão oposta e tão indisposta àqueles homens. Quando eles olhavam demais para as águas acreditavam ter visto, de relance, pescadores com arpão, peixes satânicos saltando nas cristas salgadas, imagens metafóricas de uma sensação de perigo — mas nada comentavam. Entre eles havia aquele silêncio domesticado: o Garoto era uma ostra fechada; o Homem, uma rocha cheia de cracas, um rostofalésia suportando açoites marinhos. De repente o Homem, agachando-se, desenhou na areia da praia a silhueta de uma ilha e contou com voz solene: “Dia desses sonhei com um lugar assim, povoado de sereias coxas e marinheiros bêbados. Havia um gigantesco navio apodrecido, com a quilha soterrada por gaivotas e, de tempos em tempos, visitado por um polvo nebuloso. Eu sabia que estava perdido, exilado em uma terra devastada, imóvel, e sabia que iria morrer lentamente, fora do mundo”. Depois lançou um olhar sombrio para o horizonte viscoso, fantasmático. Parecia saber que não era sonho, era mensagem cifrada, simbólica, sobre o futuro. 29


O Homem perguntou ao Garoto se ele tinha medo, algo respondido com um tímido aceno negativo de cabeça. Mas o Garoto mentiu quando disse que não estava com medo. Não era medo dali, daquele lugar, da cor noturna do céu, do marulhar raivoso das ondas, da praia deserta, sem vivalma. Ele estava com medo do silêncio, o silêncio inumano de dois enamorados. E com temor da sinuosa podridão no ar, misturada ao que se sabe do sal e da maresia suja. O Homem já sentira o cheiro da morte antes. Repetidas vezes, por ser perito da polícia. E por ter estado naquela mesma praia, próximo daquela restinga, tantas outras vezes encarando os defuntos que ali jaziam, temeu por ambos. Ainda assim, nada disse para o Garoto, com medo de que aquela história de nascer da lua fosse contaminada pelo odor do mal. Entretanto, o Mal já estava feito — os dois tinham segredos se encastelando resistentes, fossos que impediam os corpos de se aproximarem e experimentarem algo a mais. Nascia dessa separação a inquietude — ainda que se desejassem e estivessem sozinhos, não se atreveram a qualquer

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gesto afetuoso. Permaneciam próximos um ao outro, dentro de um limite de espaço que, quem os visse a distância, diria serem apenas amigos. Ou um pai e seu filho. Só que não havia nenhum outro alguém além dos dois. Exceto uma coruja presenciava a cena. Observava-os do chão, ao lado de um tronco de palmeira caído, abotoando os olhos como para medir os homens e sua lentidão, pescando tudo com o cinismo de sua sabedoria. De resto, havia conchas doentes na areia, uns ossos de gaivota, uma luminosidade de algas, babas brancas de mar cuspindo hidras secas. Embora o espetáculo fosse para ser o de um nascimento, a praia cheirava, cada vez mais, a morte. Quando se aperceberam disso, os raios refratados do sol sob a superfície do satélite lunar começaram a subir das águas como uma placenta luminosa. Os dois sorriram um para o outro e depois, em pé, lado a lado, acompanharam a lenta ascensão do astro. Sem palavra, sem palavras — um intervalo mudo que se prolongou por muito mais tempo do que parecia ter durado.

“Diário: [palavra] Espada de São Jorge” Grafite sobre caderno. 2014.


Quando a lua já ia alta, decidiram voltar. Foi quando, inesperadamente, tropeçaram em um cadáver na areia. E como ignorar os sinais da terra? A pele podre, os ossos, a cabeça mutilada — um pinguim pequeno, morto na praia, era um presságio, um mau agouro. Naquela época do ano, rumando para o Norte, os pinguins saíam de colônias da Patagônia e, por vezes, surgiam ali no litoral. O Homem inclinou-se, remexeu o corpo, frio, com a mesma frieza com que viera até ali com o Garoto. Era tudo muito simples, sem surpresas nem carícias — dois caras que olham, pela primeira vez, a lua surgir do mar — algo que poderia ser poético, mas não foi nada. O Homem lembrou-se, então, de que lera em algum lugar que o pinguim é um animal que pode fazer casal com outro macho. Podem seguir juntos, dividir o mesmo ninho, adotar um ovo abandonado e cuidar de um filhote. O que aquele pinguim fazia ali?, perguntou-se, dentro de si mesmo, o Homem. Ele fez uma viagem muito longa e se perdeu, como eu já me perco, como já me perdi, concluiu com certo terror. O Homem mordeu os lábios, quase obsceno, pedindo paz a qualquer deus que pudesse se agarrar. Pediu que sua alma não demorasse a se entregar e perdesse logo a batalha, pois se deixar levar não é perder. Quis, a despeito do grande esforço, não se esfregar mais contra as pedras e o muro, parar de se enroscar nas mortalhas e no monturo. Rogou à lua alta do

firmamento que a alma se amansasse, que o corpo se deixasse amante e se deitasse com o Garoto em uma cama branca e limpa. À espera deles. Foi quando olhou para a inscrição no seu braço esquerdo: ‘O desejo me fez fraco’. Não se podia, àquela altura, imaginar que aquilo era a verdadeira anunciação de um perigo, o sinal que antecipava o final dramático de tudo. As coisas, mesmo displicentemente, significam muito mais do estão dispostas a revelar, guardando em si os espasmos de uma lenta profecia. A tatuagem sob uma pele queimada de sol dizia muito, declarava abertamente que o desejo da carne o havia deixado frágil, fraco e, também, muito pouco franco. O Homem, por um instante, quase chorou um destino sem o Garoto, sem alguma mulher, sem ninguém. Tudo porque seu segredo, o mais escuso, subia e descia o corpo, carregado por um irreversível pacto de sangue. Contagioso. O Garoto, inquieto, pediu para voltar para casa. Quem sabe os pais já o procurassem, temerosos de algum incidente. E os dois partiram em um silêncio ríspido que só o Homem sabia ser de partida e em definitivo. Um silêncio daqueles que nunca mais voltam a se encontrar, como um pinguim muito distante de casa, nadando debilitado e fraco, infectado pelo ódio, separado dos outros, sem norte, longe demais do continente gelado do amor.

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FLÁVIO CAAMANÃ É um trabalhador braçal e poeta nascido em Tamboril, desertão do Ceará. Vivenciou o auge da ditadura, a infâmia e a injustiça. No início dos anos noventa participou como voluntário em campanhas de apoio às vítimas da Aids. Primeiro lugar no XVI Prêmio Ideal Clube De Literatura, participou de coletâneas em livros e revistas literárias virtuais. É autor do livro de poemas Aquedutos (Patuá, 2016).

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FUGALAÇA vamos supor que um homem conheça outro homem e juntos eles construam uma casa e projetem móveis para resistirem aos arrastões de espermas e riscos de lápis em coxas torneadas de correrem por esquinas vamos supor que dois homens criem um gato e o gato não tenha o rabo e uma das patas são tantas bichas bonitas no mundo são tantos pés sujos esperando serem lavados com água morna saliva boa e sal são tantas pérolas se perdendo pelas rotas de uma orgia clandestina e os cílios curtos vamos supor que um homem engole outro homem e guarde a fumaça do hálito dentro da gaveta e quebre as duchas dos bares lotados e a sudorese que não caberá nos colchões amarfanhados vamos supor que dois homens queimem as sandálias e decidam que suas respirações serão como rastros vamos supor que pelas ruas homens quadrados rotundos sejam enfermeiros fotografando um poema num buraco vamos supor que haja homens como jogadores a traficarem sangue de narcisos entre pensões em são paulo canindé campo belo paragominas homens negros brancos índios arrochados apanhados de surpresa na ereção das santidades mágicos ladrões vendedores hipnotizadores mendigos


vamos supor que um homem conheça outro homem numa cidade subterrânea ou num asilo psiquiátrico nos subúrbios nos cubículos noturnos nas guerrilhas nas filas de distribuição de drogas injetáveis e inaláveis vamos supor que em algum momento naquele momento uma luz acenda nos rostos a madrugada

NARCISOS PINGADOS é cedo e um menino brinca de ser rio brinca de tapar o sol com a ponta dos dedos e o sol desconhece o menino o sol por inteiro rasga o cetim dos olhos do menino descolore da beira um fio de areia movediça uma areia pisada levemente pisada antes da possibilidade de haver um menino qualquer menino sabe que é morte o fundo do rio sabe onde nenhum peixe borra na cauda uma lança de cor indefinida ou qualquer cor sem referência nos olhos do menino e o menino existe pelo que nele morre o menino morre porque nele vive um ninho de areia movediça e um minguante rio

p.31, 32 e 33 “Diário: Passeio no jardim em frente de casa” Acerola e cola sobre papel A6. 2014.


A CABEÇA É A PARTE MAIS PESADA DO CORPO a cabeça é a parte mais pesada do corpo nela podemos guardar frigoríferos e geleias cem quilômetros de paisagem e preconceito sendo possível espirrar cuspir engolir sorrir e sustentar cerca de 150.000 fios de cabelo ela acomoda um cérebro de um quilo e meio queima dúvida e certeza por nada de cinzas abre-se nela uma boca e salta pelos olhos um punhado de riqueza num dente de ouro uma pobreza um desprezo num duro murro entende o que é lentilha e o que é gordura administra vinte e dois ossos extremamente em harmonia com as orelhas que só ouvem compactua com a língua e o apuro obsceno capaz de cortar desaforo e computar gozo a cabeça é a parte mais pesada do corpo nela o café é fervido a carne é amaciada nela aniquilada a bondade e a simetria nela um barco de água é muito dinheiro e da cabeça ao peito se abre um buraco


CARLOS MOREIRA Autor do livro Corpo Aberto3 (Patuá, 2016), Carlos Moreira é poeta e compositor. Publicou Evangelho Segundo Ninguém e Duas Palavras, pela Edufro; Tetralogia do Nada pelo Clube dos Autores e, recentemente, Cardume, pela Editora Valer. Publicou também Viagem de Cores e Sonhos, comemorando uma década de Festcineamazônia. Teve poemas seus publicados nas Revista Ciência e Cultura, da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Revista Germina, Revista Expressões e Revista Blecaute. É autor de roteiros poéticos para filmes com Jurandir Costa e Fernanda Kopanakis, entre eles os premiados Nada é Longe e Quilombagem.

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homero não conseguia ver por que o chutavam de um lado para o outro: na feira o chutavam e esfregavam em seu focinho as frutas podres que ninguém mais queria: mal abria a boca e enfiavam nela algum inseto ou uma porção de terra: homero engasgava e seguia sem rumo: diante dos pórticos os meninos apostavam quem acertaria em suas pernas: homero coberto de feridas seguia em silêncio até que as pedras deixassem de zunir em seus ouvidos velhos: homero não conseguia ver por que no cemitério não o escutavam: nem conseguia ver que em várias covas o nome homero também estava: tantos homeros sem nada a dizer: depois seguia apalpando o muro e saía pelo portão entre a cal e o sol queimando sua pele: homero não conseguia ver por que arrancavam sua roupa e no meio da praça não via por que as gargalhadas não cessavam para que ele pudesse dizer o canto para que havia nascido e para ali enviado: rasparam sua cabeça enquanto tentava iniciar uma parte qualquer da rapsódia mas o escorpião que lhe deram dizendo que eram moedas cortou com a lâmina do grito a estrofe ao meio as palavras engasgadas se misturando em sua garganta e devorando umas às outras: homero não conseguia mais ver a diferença entre os lugares e as pessoas: os juízes e os mendigos as crianças e as prostitutas os loucos e os comerciantes eram todos agora a mesma matilha sem destino:

homero não conseguia ver se o empurravam agora contra as pedras ou contra o mar e quando brincavam de afogá-lo sentia por entre a boca e a barba o sabor antigo dos sargaços e o reflexo distante das viagens que ainda corriam nele: tanto mar tanto mar: depois amarravam nele alguma água-viva e cobriam sua cabeça de algas como se ele fosse uma sereia dançando entre o ácido e o sal na beira daquele mar: depois amarraram seu pescoço e seus pulsos e pés e fizeram dele marionete no meio da festa e todos morreram de rir quando o levaram para dançar sobre as brasas da fogueira enquanto jogavam na sua cara as últimas taças de vinho: homero não conseguia ver o suficiente para chegar até a muralha nem para encontrar o punhal que por tantos anos lhe fez companhia: homero não viu o silêncio que se fez naquela tarde nem o copo que lhe davam solenemente depois de tudo: mas sentiu o velho odor por entre as bordas e no segundo gole homero viu a que porto imundo havia dedicado tanto canto e tanto corpo e bebeu a taça até o fim como quem gargalha por enfim ter entendido a mais óbvia das piadas

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uma cobra comendo um lagarto é um espetáculo: uma ninfa devorando um sátiro não faria o mesmo teatro: a espiral certeira: as escamas contra a pele: as caudas entrelaçadas: os espasmos a princípio frenéticos: depois pausados: primeiro a cabeça na boca úmida dilatada: depois as patas lentamente uma a uma dobradas entre a mucosa fímbria: depois cada vez mais líquido o tronco sendo engolido passo a passo no que agora é o fim e o início de um caminho: réptil de repente anfíbio dentro de um túnel primeiro vermelho depois escuro e íntimo: a língua agora inútil tateando o que é covil e cova mergulho e infinito: por fim a ponta da cauda língua às avessas entre o verde e o limo: depois as contorções do que ainda vivo tenta abrir no escuro o que não é nem areia nem muro: apenas fibra dormente que a cada giro muda a natureza da parede: o viscoso muco: e de repente o frio contra o frio e a falta de ar como última sede: não há como ir para voltar nem voltar onde tudo é círculo: a cobra se apóia contra a pedra e espera a última contorção o último coice o derradeiro pulso: minutos depois está repleta e satisfeita: cansada como se houvesse parido às avessas: é dois em uma agora e não deixa de pensar no que de íntimo ficou da troca: demora a ser cobra novamente: só cobra na paisagem que se desenrola: há um lagarto a menos na paisagem e uma serpente por mais algum tempo: o processo agora se desdobra dentro dela por conta própria: cumpriu seu destino de cobra e um lagarto a menos pouco importa: na sombra ou dentro dágua vai dissolvendo do lagarto o que antes era olho unha cauda sorriso e força: não lhe ocorre pensar se num último ato o lagarto tenha nela se camuflado

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“Diário: ‘O flor que nasceu morta’” Técnica mista sobre caderno A6. 2014.


e ocultado: prenhe agora do fantasma devorado se aproxima do lago e se fosse dado a cobras sonhar talvez tivesse sonhado: o movimento inverso o lagarto inteiro vomitado e a cena toda num início impossível e recomeçado: desde o primeiro olhar: o tomar do alvo: o bote como um salto a espiral refeita a cabeça na entrada úmida e o primeiro espasmo: a mesma cena no mesmo palco do mesmo teatro: um devorar a si naquele que é devorado: uma espiral que se desenrola por entre a dobra de seu próprio nó infinito porque perfeito e inacabado: é um espetáculo digno de silêncio e aplauso uma cobra devorando um lagarto: um sátiro engolido por uma ninfa seria um belo mito oferecido como prato

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fecha os olhos fecha os olhos agora criatura miserável porque a partir de agora todos os teus sonhos serão nítidos de uma nitidez de faca porque os vivos e os mortos os amigos e os inimigos estarão todos juntos e todos falarão ao mesmo tempo e calarão ao mesmo tempo e tua angústia e tua alegria serão o centro de cada sonho e cada um te acordará em certo ponto da madrugada ora com o alívio dos que escapam da morte ora com a angústia dos que continuam vivos e foi tudo um sonho dentro do impossível real que todo sonho é: tudo será exatamente como é agora e nada será o mesmo: nem tua voz nem teu olhar nem o amor ou a infâmia os corredores e janelas e fotografias: tudo estará no mesmo fluxo imóvel e cada sonho será um vórtice só visto por fora

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no momento de acordar: teu suor ao acordar às vezes terá o cheiro que a saudade deixa e para o que nenhum deus inventou remédio: às vezes trará na boca o final de uma frase que ficou entre o sonho e a vigília meio viva meio morta atravessada em tua garganta como serpente: ficará a teu critério engolir ou vomitar: as paredes te atravessarão com os ventos as quedas serão quilométricas e às vezes voar te será dado sem muita compaixão: toma cuidado com os espelhos: ver a si mesmo dentro de um espelho dentro de um sonho ainda não foi calculado: qual dos dois sonha o que é sonhado? o que está dormindo do outro lado e sonhando o espelho diante dele se coloca ou o reverso da equação: teu sonho teu espelho tua imagem e teu reflexo infinitamente duplicado? o olho de quem olha ou o lago? de qualquer modo toma cuidado: tudo no sonho também pode estar sonhando que está acordado: por isso fecha os olhos fecha bem os olhos agora criatura miserável para que estejam bem abertos para dentro numa dobra entre a luz e a luz que só no escuro se penetra: só a quem o inferno atravessa é dado o dom de sonhar assim: não que valha muito a pena: fica como marca de renascença uma cicatriz por dentro do olho um certo jeito de andar em silêncio: nunca mais nada mais ninguém mais dentro e fora de ti serão o mesmo: por isso aproveito para me despedir assim entre as margens brancas que estavam depois do sonho um pouco além do espelho

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p.39 “Estudante de artes visuais” Técnica mista sobre caderno A5. 2017.


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LIVIA DEORSOLA (1979) — Cursou jornalismo na Universidade Estadual Paulista (unesp) e letras na Universidade de São Paulo (usp), completando seus estudos em literatura espanhola na Universidade de Barcelona. Como jornalista, foi colaboradora da revista Entrelivros. Iniciou a carreira de editora de livros na Cosac Naify. Trabalhou na Companhia das Letras e voltou a integrar a equipe editorial da Cosac Naify, até seu fechamento. De família argentina, voltou-se sobretudo à literatura latino-americana, publicando no Brasil os argentinos Selva Almada, Diego Vecchio e Rodrigo Fresán, os chilenos Lina Meruane, Jorge Edwards e Hernán Rivera Letelier e a uruguaia Inés Bortagaray, entre outros. Atua também como tradutora do espanhol, assinando as traduções de autores como Adolfo Bioy Casares, Daniel Sada (indicada ao prêmio Jabuti 2018) e Hernán Ronsino, além de obras infantojuvenis.

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[apresentação e tradução por Livia Deorsola]

alejo carpentier

O leitor tem em mãos a tradução do primeiro capítulo de El reino de este mundo, de Alejo Carpentier, novela histórica, publicada em 1949, em que o autor cubano, profundo conhecedor da tradição literária europeia, volta seus interesses a um universo algo irmanado, porém, segundo ele, infinitamente mais rico e “desburocratizado”: o real maravilhoso, por meio do qual ele cria uma particular narrativa sobre a revolução haitiana. Carpentier conheceu a ilha em 1943, quando visitou o delirante palácio de Sans Souci em La Ferrière, construção empreendida por Henri Christophe, o escravo liberto que se autoproclama imperador em 1806. A partir dessa experiência — histórica e cultural —, escreve o livro e passa a tratar o real maravilhoso como criação latino-americana por excelência, gênero em que a realidade e o extraordinário convivem sem distinção. Assim, o autor dá forma a uma visão de todo o continente, sua complexidade e contrastes com a Europa, a ponto de fundar uma espécie de paradigma para muito do que foi escrito depois e que foi identificado com tanta força com o modo de apresentar as cores hispano-americanas: os mitos, a mestiçagem, os acontecimentos históricos. No militante e programático prólogo do livro, ele afirma: “Para começar, a sensação do maravilhoso pressupõe uma fé”, fé na ampliação “das escalas e categorias da realidade”. Para ele, a crença era tão real quanto os fatos, o milagre, tão atuante quanto o cotidiano. Em El reino de este mundo, que se inicia um pouco depois da Revolução Francesa e termina na década de 20 do século XIX, Carpentier nada de braçadas num estilo barroco, elegante, de longas frases e imensa riqueza vocabular, recursos adotados para descrever as aventuras do escravo Ti Noel ao lado de Christophe, “monarca de incríveis empenhos”: uma brava e apurada recriação literária a respeito do sincretismo cultural e religioso do Caribe em séculos passados.

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[Primeiro capítulo da novela O reino deste mundo, de Alejo Carpentier]

as cabeças Entre os vinte garanhões trazidos para o Cabo Francês pelo capitão de barco, que era intermediário de um criador normando, Ti Noel escolhera sem hesitação aquele reprodutor argel, de garupa redonda, bom para remonta de éguas que estavam parindo potros cada vez menores. Monsieur Lenormand de Mezy, conhecedor da perícia do escravo em matéria de cavalos, sem reconsiderar a decisão, tinha pagado em sonoros luíses.1 Depois de fazer-lhe um freio de cordas, Ti Noel desfrutava de toda a largura do sólido animal mosqueado, sentindo em suas coxas a ensaboadura de um suor que logo se transformou em espuma ácida sobre a espessa pelugem percherona. Seguindo o amo, que gineteava um alazão de patas mais finas, tinha atravessado o bairro do porto, com seus armazéns cheirando a salmoura, suas lonas retesadas pela umidade, os biscoitos tão duros que tinham que ser partidos com o punho, antes de sair na Calle Mayor, furta-cor àquela hora amanhecente, por causa 1 Antiga moeda francesa de ouro, equivalente a vinte francos. Fonte: Real Academia Espanhola. (N.T.)

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dos lenços xadrezes de cores vivas das empregadas negras que voltavam do mercado. A passagem da carruagem do governador, toda empetecada de rocalhas douradas, arrancou uma grandiosa saudação do Monsieur Lenormand de Mezy. Em seguida o senhor e o escravo amarraram os animais em frente à barbearia, que recebia La Gaceta de Leyde, para a distração de seus frequentadores mais cultos. Enquanto o amo fazia a barba, Ti Noel pôde contemplar à vontade as quatro cabeças de cera que adornavam a vitrine da entrada. Os cachos das perucas emolduravam semblantes imóveis, antes de se espalhar, em um remanso de caracóis, sobre o carpete carmesim. Aquelas cabeças pareciam tão reais — embora tão mortas, pela fixação dos olhos — quanto a cabeça falante que um charlatão de passagem tinha trazido ao Cabo, anos antes, para ajudá-lo a vender um elixir contra dor de dente e reumatismo. Por uma divertida coincidência, o açougue ao lado exibia cabeças de novilhos, escalpelados, com um talinho de salsa sobre a língua, e que


de cera tinham o mesmo aspecto ceroso, como se estivessem adormecidas entre caudas escarlates, patas em gelatina e panelas repletas de tripas cozidas à moda de Caen. Apenas uma divisória de madeira separava ambos os mostradores, e Ti Noel se divertia pensando que, ao lado das cabeças dos novilhos descorados, serviam-se, na toalha da mesma mesa, cabeças de brancos senhores. Do mesmo modo como se costuma enfeitar as aves com as próprias plumas para presenteá-las aos comensais de um banquete, um cozinheiro hábil e bastante glutão teria vestido as cabeças com suas melhores perucas. Não lhes faltava mais que uma orla de folhas de alface ou de rabanetes cortados em flor. De resto, os potes de goma-arábica, os vidros de água de lavanda e as caixas de talco, vizinhas das caçarolas de bucho e das bandejas de rins, completavam, com singulares coincidências de frascos e recipientes, aquele quadro de um abominável banquete. As cabeças naquela manhã abundavam, já que, ao lado do açougue, o livreiro tinha pendurado em arame, com prega-

dores de varal, as últimas estampas chegadas de Paris. Em quatro delas, pelo menos, ostentava-se o rosto do rei da França, em moldura de sóis, espadas e lauréis. Mas havia muitas outras cabeças emperucadas, provavelmente de altos personagens da Corte. Os guerreiros eram identificados com seus trejeitos de quem parte para o ataque. Os magistrados, pela carranca de meter medo. Os poetas de talento, porque sorriam sobre duas plumas cruzadas no alto de versos que nada diziam a Ti Noel, pois escravos não sabiam ler. Também havia gravuras em cor, de fabricação menos elaborada, em que se viam fogos artificiais que festejavam a tomada de alguma cidade, bailados com médicos armados de seringas enormes, uma partida de cabra-cega em um parque, jovens libertinos metendo a mão no decote de uma camareira, ou a inevitável astúcia de um apaixonado que, recostado na relva, descobre, arrebatado, os íntimos recessos da dama embalada inocentemente num balanço. Mas Ti Noel fora atraído, naquele momento, por uma gravura em cobre, a última da série, que se diferenciava das demais pelo tema e pela ex45


ecução. Nela estava representado uma espécie de almirante ou de embaixador francês, sendo recebido por um negro rodeado de abanadores de plumas e sentado sobre um trono adornado de figuras de macacos e lagartos. — Que gente é esta? — perguntou atrevidamente ao livreiro, que acendia um comprido cachimbo de barro na soleira de sua loja. — É um rei do seu país. Não teria sido necessária a confirmação do que ele já intuía, porque o jovem escravo tinha se lembrado, de repente, daquelas histórias que Mackandal cantava em salmos na moenda de cana, nas horas em que o cavalo mais velho da fazenda de Lenormand de Mezy fazia girar os cilindros. Com uma voz fingidamente cansada, para melhor preparar certos acabamentos, o mandinga costumava se referir a feitos transcorridos nos grandes reinos de Popo, de Arada, dos nagôs, dos fulas. Falava de vastas migrações de povos inteiros, de guerras seculares, de prodigiosas batalhas nas quais os animais tinham ajudado os homens. Conhecia a história de Adonhueso, do rei de Angola, do rei Dá, encarnação da Serpente, o eterno princípio do retorno infinito, e que se entretinha misticamente com uma rainha que era o Arco-íris, senhora da água e de todos os partos. Mas, sobretudo, era prolixo na narração das façanhas de Kankán Muza, o feroz Muza, criador do invencível império dos mandigas, cujos cavalos eram enfeitados com moedas de prata e caronas bordadas, e 46

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relinchavam mais alto que o fragor das armas, levando o estrondo na pele dos tambores suspensos ao cangote. Aqueles reis, além disso, armados de lança, à frente de sua tropa, tornados protegidos pela ciência dos Preparadores, só caíam feridos se de alguma maneira ofendessem as divindades do Raio ou as divindades da Forja. Eram reis, reis de verdade, e não esses soberanos cobertos de cabelos alheios, que jogavam a bula e só se faziam de deuses nos palcos de seus teatros da Corte, exibindo a perna afeminada ao compasso de uma contradança. Esses soberanos brancos ouviam mais as sinfonias de suas rabecas e as arengas de seus libelos, os mexericos de suas favoritas e os cantos de seus pássaros de corda, do que os estampidos dos canhões disparando sobre o contraforte de uma meia-lua. Embora não tivesse estudo, Ti Noel tinha sido instruído nessas verdades pelo profundo conhecimento de Mackandal. Na África, o rei era guerreiro, caçador, juiz e sacerdote; seu sêmen precioso engrossava, em centenas de ventres, uma vigorosa estirpe de heróis. Na França, na Espanha, ao contrário, o rei enviava seus generais para o combate; não tinha competência para dirimir litígios, era reprendido por qualquer frade confessor e, quanto à virilidade, não fazia mais do que gerar um príncipe retardado, incapaz de abater um veado sem a ajuda de seus caçadores, a quem chamavam, com inconsciente ironia, pelo nome de um peixe tão inofensivo e frívolo como era o golfinho. Além, no Grande Além, ao contrário, existiam príncipes


durões como a bigorna, e príncipes que eram como leopardos, príncipes que conheciam a linguagem das árvores e príncipes que reinavam sobre os quatro pontos cardiais, donos das nuvens, das sementes, do bronze e do fogo.

Nas tavernas desarrolhavam-se garrafas de vinho, refrescadas em barris cheios de sal e areia molhada. O padre Cornejo, cura de Limonade, acabava de chegar à igreja matriz montado em sua mula cinzenta.

Ti Noel escutou a voz do amo, que saía da barbearia com as bochechas cheias de talco. Sua cara agora, surpreendentemente, se assemelhava às quatro cabeças de cera que se alinhavam na estante, sorrindo um sorriso estúpido. Monsieur Lenormand de Mezy aproveitou para comprar uma cabeça de novilho no açougue e a entregou ao escravo. Montado no garanhão já impaciente para pastar, Ti Noel apalpava aquele crânio branco e frio, pensando que deveria oferecer ao tato um contorno parecido ao da cabeça calva que o amo ocultava sob a peruca. Mas a rua tinha se enchido de gente. No lugar das negras que voltavam do mercado, agora eram as senhoras que saíam da missa das dez que estavam na rua. Mais de uma mestiça, concubina de algum funcionário enriquecido, faziase seguir por uma empregada de cor tão desbotada como ela, e que levava o leque de folha de palmeira, o breviário e uma sombrinha de borlas douradas. Em uma esquina os fantoches de um teatro ambulante dançavam. Mais adiante, um marinheiro oferecia às damas um macaquinho do Brasil, vestido à espanhola.

Monsieur Lenormand de Mezy e seu escravo saíram da cidade pelo caminho que ia à beira-mar. Soaram tiros de canhão do alto da fortaleza. La Courageuse, da Armada Real, acabava de aparecer no horizonte, de volta da Ilha da Tartaruga. Em suas bordas, brancas nuvens de fumo ecoavam os estampidos. Assaltado por recordações de seus tempos de oficial pobre, o amo começou a assobiar uma marcha para flauta. Ti Noel, em contraponto mental, tatareou para si mesmo uma quadra marinheira, muito cantada pelos tanoeiros do porto, na qual se mandava à merda o rei da Inglaterra. Disso tinha certeza, ainda que a letra estivesse em créole. Por isso mesmo sabia. Afinal, quase nada significavam para ele o rei da Inglaterra, o da França ou o da Espanha, que mandavam na outra metade da ilha, e cujas mulheres — segundo dizia Mackandal — avermelhavam as faces com sangue de boi e enterravam fetos de crianças em um convento cujos subterrâneos estavam coalhados de esqueletos rejeitados pelo verdadeiro Céu, onde não eram bem-vindos mortos ignorantes dos deuses verdadeiros.

“Autorretrato” Nankin sobre papel A5. 2015.

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MARIA AZENHA Nasceu em Coimbra (1945) — Portugal. Licenciou-se em Ciências Matemáticas pela Universidade de Coimbra. Exerceu funções docentes nas Universidades de Coimbra, Évora e Lisboa e na Escola de Ensino Artístico António Arroio. Membro da Associação Portuguesa de Escritores e Membro de Honra do Núcleo Académico de Letras e Artes de Lisboa Obras: Várias obras individuais publicadas desde 1987, em poesia, destacando as três últimas: — A Casa de Ler no Escuro, Editora Urutau, São Paulo, Brasil (1ª. Edição Esgotada | 2ª Reimpressão, Maio de 2017), finalista do Prémio Internacional de Poesia Glória de Sant’ Anna 2017 — As Mãos no Fogo, Escrituras Editora, São Paulo, Brasil — Xeque-Mate, Editora Urutau, São Paulo, Brasil. Participação em Antologias de Poesia desde 1982. Com outras participações e cooperação em Recitais de Poesia. Mais informação: https://pt.wikipedia.org/wiki/Maria_Azenha 48


A HORA DA DEMÊNCIA DOS ESPELHOS A DEMÊNCIA DOS ESPELHOS I Por vezes julgo chegar a um pequeno deus em que acredito como a um aroma no meio do poema. E há um verso de inverno que cerca o nosso coração no meio da noite. E há vento. E é um exercício flutuante de espelhos. Outras, há momentos incandescentes onde o poema aflora às suas artérias iluminado por uma pedra de âmbar. E aí morrem os amantes e os seres caídos do silêncio. É então o tempo onde os poemas se devoram a si mesmos. O ar está cheio de sangue. II A guerra procura o seu rosto junto ao muro dos nomes. O seu deus é o último Espelho. III No rosto de Arendt há uma lágrima suspensa das letras de uma floresta. A elas ficámos indiferentes. E tudo se resume a pedras. O gelo, em sua terrível demência, e o véu branco do nevoeiro cobrindo as nossas cabeças é o mestre do século.

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Ó MINHA IRMÃ VIOLÊNCIA! Ó MINHA IRMÃ GUERNICA! Oh o amor é uma flor exótica como uma granada carnívora. o amor é um chiclete. e somos as tuas crianças pobres degoladas do medo sem tripas somos as tuas crianças negras nas ogivas nos mísseis a revolução se analisa como um míssil rentável os nossos rios correm pela estética das armas o nosso sangue corre pelas estrelas de Guernica são corrosivas! e as crianças morrem pelo sangue dos cadáveres as crianças morrem aos irmãos do medo às granadas plásticas. onde estão os humanistas? para onde foram as toilettes barbitúricas das armas? e trazemos astronautas a solidão negra dos pássaros, os robes pretos nas goelas politécnicas das armas trazemos os cadáveres. são os novos códigos das morgues de Santiago. são os novos códigos do Iraque. são as novas naves guatemaltecas programáveis de ítems!

artigo I. Tenho medo! artigo 2. Tenho medo! Artigo 3. “Où est ma valise?” oh a pele habita o medo e o medo habita as margens, 50

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a pele habita o medo o medo habita as margens. são os rios negros do terrorismo! e somos os traficantes das drogas nas ogivas nas armas somos os traficantes dos dólares nos cachets dos chiles, no nosso sangue correm as estrelas de granada no nosso sangue correm as estrelas terroristas onde estão os humanistas? onde estão os meus irmãos artistas? e marchamos tristes sobre a ditadura dos átomos trazemos as cicatrizes numa ogiva inteligível. são os bordéis dos Chades! são as páginas das Líbias! para onde foram as paralelas brancas de Descartes do “penso, logo existo”? para onde foram as estrelas infinitas? Ah, e no bairro do terror somos os assassinos! fazemos o amor como caves terroristas. são as flores que crescem nos bairros ensanguentados, sinistras, nos jardins políticos! é o pavimento lustrado. é terrorismo. Ó minha irmã Violência! Ó minha irmã Guernica! a solidão mudou de cave como uma nave terrorista!…

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MAMÃ! MAMÃ FEDERAL! Mamã: o meu corpo caiu na pia batismal. Foi um percalço. recebi a tua bênção com os óleos santos em algodão de rama. mas que faço agora eu neste bordel das lágrimas, com tantas orlas com tantos véus, a fabricar poemas nas morgues do Céu? que faço agora eu, artesã do sangue, com a minha mão profana que ficou grávida? e a minha mão direita é ainda uma têmpora num país distante com lágrimas de sal . mamã!: envia um telegrama a todos os jornais, anuncia com o meu coração em febre, com todos os meus punhos cerrados como que a rezar, que eu fumo Cambodja, liamba, Hiroxima, armas nucleares, que rendilho a ferros todos os meus cárceres com as palavras brancas do medo que saltam dos meus olhos. roubei a todos os arcanjos as palavras do ódio! fumo cachimbos, goelas de bairros, narcóticos, drugstores democráticas; mato vinte e sete pessoas por cada prato, faço massacres na América Central cravo balas nos vestidos amarelos das crianças estrangulo o tempo com o sexo dos elétricos ilumino as fezes com feiuras sacrossantas faço ícones com toda esta tristeza humana. mamã, eu rasgo «cânceres» de papel, trabalho as sombras com as lágrimas de plástico, mexo na história com cadáveres brancos

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estendo os meus braços em tecnicolor como numa tela circular humana. mamã, eu encolho os ombros, espirro, bebo cafés evangélicos, grito com os filhos. mamã, vivemos juntos!, isto é o meu mau génio. ah, mas o Vaticano, esse grande gangster de robe, que anuncia a paz para os domingos, essa pia batismal onde eu também caí com fome foi um percalço. e o pavimento lustral da carnificina humana pisando o sangue, os incensos da guerra, onde não cabe agora aí o trigo! mamã, e os uniformes azuis, a dizer tão bem com as velas, e os pássaros e as Indochinas e os vitrais da esperança com tanta luz difundindo as trevas com vapores de chumbo... e os trigais maduros a vencer o chão, a curvar a terra aos anéis do mundo; e as lutas armadas e as recitações de tréguas e as missas solenes lidas à breviário, cantadas por gorilas com sapatos d’anjos. e a guarda civil e as patrulhas e os ofícios e as escolas e as embaixadas anfíbias nas tuas nádegas onde fica agora aí toda a tua força política. (e os tribunais de togas a julgar os crimes a barricar as fomes esquecendo as dívidas! )

mamã, onde fica o grande rio das palavras onde [fica Guatemala onde fica a noite-dos-tantãs onde [fica a esperança com os olhos de napalm?! onde fica a vida mamã-sacrário? mamã! mamã federal, esta manhã eu mijei todas as rimas todos os versos brancos, nessa pia batismal!

“Diário: Garatuja da espada de São Jorge” Grafite sobre caderno A6. 2014.

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THEREZA CHRISTINA ROCQUE DA MOTTA (1957-) Poeta, editora e tradutora, nascida em São Paulo. Publicou, entre outros, Joio & trigo (1982), Areal (1995), Marco Polo e a Princesa Azul (2008), O mais puro amor de Abelardo e Heloísa (2009), A vida dos livros (2010), Odysseus & O livro de Pandora (2012), As liras de Marília (2013), Capitu (2014), Folias e Horizontes (2014), Lições de sábado (2015), Intemperanças (2016), Minha mão contém palavras que não escrevo e Pandora (2017), A vida dos livros Vol. 2, Lições de sábado 2 e O amor é um tempo selvagem (2018). Também traduziu Marley & Eu (2006), 154 Sonetos, de William Shakespeare (2009) e A Dança dos Sonhos, de Michael Jackson (2011). É membro da Academia Brasileira de Poesia (Petrópolis) e do PEN Clube do Brasil (RJ). Fundou a Ibis Libris em 2000.

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A PASSAGEM PARA CORINTO A passagem para Corinto se estreita quanto mais avançamos até o mar. Ficamos à beira d’água sem pensar no hoje. O que passou já não existe, só as colunas do templo de Apolo e o de Afrodite. Vamos adiante, sem ver o que ficou para trás. Elevamos nossos pensamentos aos antepassados, aos presentes e aos futuros que virão. Virão os que nos seguirem, sedentos das memórias que deixamos, a inaudível canção do firmamento, a possessão da pítia, os fumos e incensos espargidos por toda a ara. Os augúrios murmurados pelo deus imprimem-se em nossos ouvidos. Seguimos até o fim dos dias, plenos de céu e noite. 11/05/2018 – 19h17

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ALUMBRAMENTO Não foi este o silêncio que se fez após a batalha de Salamina. Os navios vieram de longe e remaram além de Chipre. Não foram estes os homens que cruzaram a terra árida, que buscaram o alimento onde havia pedras. O horizonte se moveu e afundaram os barcos. Nadaram até o istmo e debandaram. Os odres de azeite e vinho desceram até o fundo do mar e lá ficaram. Os mares que Poseidon entornou sobre a terra. Agora os monstros se erguem com um só olho na testa. Os deuses feriram seus adoradores. Os homens voltaram sós para casa. Não foi esta a ceia após o regresso dos guerreiros. As noites pontilhadas de estrelas cobrem a terra abandonada. Recebei na ágora os que retornam. 6/05/2018 – 21h26

“Diário: Reflexo da espada de São Jorge” Grafite sobre caderno A6. 2014.

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ESCOLHESTE O ALICERCE DE TUA CASA Escolheste o alicerce de tua casa e trouxeste os homens para erguê-la. O que fizeste senão acertar a porta e o teto, e colocar as paredes em seu prumo? Constrói a casa para habitá-la, sem abandonar seu íntimo, e molda os objetos que queres contigo. Cada coisa tem seu destino. E o destino que tu mesmo desconheces viverás, sem o saber. Assim as casas se ergueram em Atenas, Esparta e Persépolis, e todas as circundantes na terra árida da Grécia e da Pérsia. Eram os homens e mulheres melhores? Não eram. E, no entanto, construíram suas casas, para desmoronarem nas mãos dos tiranos. Ergueram a Acrópole. Saquearam Babilônia. Destruíram Troia. Que fizeram esses homens a si mesmos? Que dizem as lendas de Esopo e os poemas de Píndaro? “Homem, torna-te no que és”. Escolhe a casa, a messe, faze a colheita, e senta-te para assistir o pôr do sol. 5/05/2018 – 9h46

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GEOVANNE OTAVIO URSULINO Vive em Maceió. É historiador. Editor da revista Alagunas [www.alagunas.com]. Publicou os livros de poemas como num inferno pra marinheiros (Maceió: Imprensa Oficial Graciliano Ramos, 2017) e os gigantes atravessam o eufrates (São Paulo: Patuá, 2018). Escreve no blog Amorfo Poema [www.amorfopoema.tk]. Contato: ursulino@ alagunas.com

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nenhum de nós acreditou ouvimos q os gigantes atravessaram o rio em milhares de anos nenhum gigante sobreviveu

ouvimos q os gigantes atravessaram o rio rimos bêbados enquanto inventávamos histórias

às correntezas do eufrates deus e protetor da terra entre rios juiz e salvador dos povos livres

histórias dos gigantes do oeste atravessando bravamente o mais violento entre os rios o mais forte entre os fortes

ouvimos q os gigantes atravessaram o rio nenhum de nós acreditou nenhum gigante nunca

os gigantes vivem nus comem bicho vivo porq não conhecem o fogo nem falar sabem direito

sobreviveu às tentativas de atravessar o maior entre os rios o mais violento entre os violentos o mais forte entre os fortes

nunca atravessariam o eufrates nunca invadiriam a terra livre dizíamos uns pros outros

ignoramos os rumores vindos do oeste daquela gente estranha q acredita em coisas estranhas gente q mais parece bicho gente q nem parece ser primo ou irmão da gente com seus rumores estranhos

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maafa há muito tempo disse pro senhor arkaikea q algo profundo mudou em nós somos o q somos

somos o q somos como dizia o senhor arkaikea mas nada trazia harmonia pra nenhum de nós

dizia o senhor arkaikea mas eu sentia na pele nos olhos nariz boca orelhas sentia em cada fio de cabelo

q vivemos como bestas q dormimos como bestas q comemos como bestas nem morrendo como bestas

q algo profundo mudou em nós quando entramos naquele barco nem quando torramos no sol conseguimos

conseguimos mostrar pro senhor arkaikea q algo profundo mudou em nós quando entramos naquele barco

mostrar pro senhor arkaikea q algo profundo mudou em nós eu sentia em cada osso nosso nome foi esquecido

sinto na pele nos olhos nariz boca orelhas sinto em cada osso em cada fio de cabelo

nossa língua se perdeu quando entramos naquele barco sentia em cada fio de cabelo mas o senhor arkaikea

mas continuamos vivendo comendo dormindo falando como se não tivéssemos entrado naquele barco

não dizia nada além de somos o q somos por isso chegando aqui falamos nossa língua

como se não tivéssemos esquecido nosso nome como se não tivéssemos perdido nossa língua

como não tivesse se perdido adoramos nossos deuses como não tivessem nos deixado dizíamos uns pros outros

há muito tempo disse pro senhor arkaikea mas aprendemos a repetir somos o q somos

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edward hyde na manhã do último dia 16 acordei transformado em hyde tive sonhos tranquilos de q o monstro q sou tinha partido

na manhã do último dia 16 meu medo foi embora o medo q fez o q sempre fui substituído pelo ódio ardente

o sol entrou pela brecha nas telhas rasgando a única paz q sempre tive percebi q o monstro tava ali

hyde q desde então sou eu não conhece limites pro monstro seu interior vazio e escuro consome tudo ao seu redor

mãos ásperas e cabeludas olhos fundos e sem brilho quebrei o espelho com a cabeça mas o monstro não partiu

tive sonhos tranquilos de q o monstro q sou tinha partido soquei minha própria cabeça o monstro inda tava ali

na manhã do último dia 16 entendi q não tenho controle sobre hyde q agora é por inteiro tudo o q sou e fui

na manhã do último dia 16 me entreguei à tragédia num belo dia de sol bom pra ver o mar

entendi q nada de mim restou nem palavras doces ou gestos suaves nem a calma dum abraço ou o calor do sol do verão

hyde é o melhor q posso ser tudo q meu velho eu lutou contra toda vida hoje tá em mim

só as pernas curtas e tronchas os dentes podres e fedorentos soquei minha própria cabeça q agora é dele

com suas unhas quebradas e com sua boca murcha com seus cabelos poucos e suas costas curvadas pro abismo

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ANA ESTAREGUI Nasceu em Sorocaba (1987). É autora dos livros Chá de Jasmim (Patuá, 2014) e Coração de boi (7Letras, 2016) ambos contemplados pelo ProaC de poesia e o último finalista do Prêmio Alphonsus de Guimaraens da Biblioteca Nacional, em 2017. É formada em artes visuais pela FAAP e mestranda em literatura e crítica literária pela PUC-SP. Realiza cursos e oficinas livres de criação literária.

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seis canivetes para abrir uma baleia [parte 1]

desde que me conheço por lúcia, tenho o hábito quase obsessivo de coletar coisas. cheguei a ponto de colecionar, inclusive, todos os nomes lúcia que lia por aí em jornais, revistas, livros e também em adesivos colados em telefones públicos da cidade. lotei uma caixa de sapato com diferentes lúcias: azuis, datilografadas, helvéticas, pequenas. quando acho uma pedrinha de formato surpreendente quase sempre guardo no bolso. se encontro um papel de bala colorido no chão, desses de apenas duas cores e com asinhas de amarrar torcendo, pego pra mim. imagino que muita gente deva colocar em questão a minha sanidade — e minha higiene, suponho -, mas posso dizer que se trata de algo que foge em absoluto do meu controle. é algo maior do que eu e contra o qual não posso lutar. se encontro uma ponta de lápis roxa perdida no meio do tapete, recolho porque penso uma ponta de lápis roxo no meio do tapete. como é possível abandonar uma ponta de lápis roxo no meio do tapete? não, não é possível. pego e

guardo num mini potinho de vidro ou num dedal. já arquivei bituca marcada com batom carmim, nota fiscal da farmácia referente à compra de um saco de algodão e uma solução oftalmológica a 0,5%, já guardei lasquinha de azulejo hidráulico amarelo cádmio. já embrulhei casca de tangerina recém descascada. rolha de vinho branco, saquinho de supermercado, aquele plastiquinho transparente em forma de martelo que prende etiqueta em roupa. costumo recolher as coisas pra depois, quando estou completamente só do mundo, poder admirar tudo sem que me julguem estranha demais. eu e as variações de tampinhas de caneta bic (mordiscadas ou não). eu e as latinhas de metal de bala de hortelã. guardo. guardo tudo mesmo. tudo numa estante comprida e cheia de compartimentos e divisórias que mandei fazer especialmente para esse fim, o de catalogar. as que não se enquadram na estante logo acham lugar nas paredes do corredor ou próximas à janela. organizo as coisas por critérios que nascem a partir da 63


proximidade das coisas às coisas. por exemplo: um abridor de latas pode muito bem estar próximo a um cavalinho de porcelana lilás pelo critério elegância, porém ele também pode estar próximo a um livro de joão cabral pelo grau de cortância. isso significa que esses objetos estão em constante movimento, pois todo elemento novo chegante modifica intimamente os demais elementos anteriores a ele de modo que sou obrigada a, entropicamente, organizá-los e reorganizá-los, indefinidamente para tentar manter o equilíbrio do conjunto na casa. outra regra é que não faço distinção dos objetos por hierarquia para escolhê-los. não uso classificações como caros ou vagabundos. eternos ou perecíveis. apenas os escolho pela beleza que enxergo no instante primeiro em que me deparo com eles. se me sinto expandir em uma felicidade estranha e sem propósito com esse encontro, com esse perfume da casca de tangerina solta sobre o concreto quente da calçada, aí então o que faço é aceitar a beleza efêmera deflagrada pela coisa e parar para admirá-la profundamente.

[parte 2]

o fato é que duns tempos pra cá, também passei a colecionar palavras [além das lúcias da caixinha de papelão]. e fico atenta a qualquer palavra descon-

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hecida que se apareça pra mim. se me surge uma nova cujo som, a forma ou o significado são desconhecidos, fico tentando presumir seus significados sem recorrer ao dicionário, mas busco relacioná-las com os objetos de minha coleção e o espaço da casa. as últimas dez coletas: gálbano, lúteo, roel, encóspias, imbé, hioscíamo, áleo, púmice, serrim, sial: cada palavra recebe um tratamento próprio de acordo com sua natureza original, sua personalidade. a palavra púmice, por exemplo, é palavra destinada a grandes altitudes, feita para habitats gelados e solitaríssimos. aguenta firme as intempéries mais rigorosas da natureza e por isso púmice foi toda esculpida em ossos de búfalo. guardo púmice no freezer vazio. áleo já é palavra quente que reluz ao sol e à luz do abajur no fim do dia. gravei áleo do lado de fora dum arco dourado [mais ou menos como uma aliança ao contrário, só que do tamanho dum prato de sobremesa] e pendurei-a num cordão transparente que desce do lustre em direção ao ar. áleo requer suspensão e sutis movimentos circulares. precisa girar para exercer sua potência áurea. eu, sem escolhas, respeito sua natureza quase que real de existir. hioscíamo eu armazenei num vidrinho de perfume cor de âmbar na forma de ameixa. o pequeno vidrinho está dentro duma caixa de madeira forrada com veludo púrpura e fecho de metal dourado. hioscíamo é coisa rara, licor secreto e elixir exato para apenas uma ou duas vezes na vida, no máximo. hioscíamo


é uma espécie de absinto doce para o corpo e o espírito — absorve tanto pra dentro quanto pra fora. está fundido em prata, mergulhado em silêncio profundo no potinho-ameixa. para a palavra lúteo eu reservei o espaço do espelho do banheiro. escrevi lúteo à tinta [negra, encerada e viscosa] na altura do espelho que atinge o meu próprio peito, meu coração. lúteo, repito diariamente. lúteo-dureza. lúteobatimento cardíaco. lúteo faz lembrar das coisas mortas, mas que ainda pulsam como não estivessem. para contrapor lúteo há gálbano no canto esquerdo da sala, ao lado do sofá de couro. gálbano é comprido e elegante. e sóbrio feito uma escultura do giacometti. a palavra, entalhada em mogno nobre na porta retangular de um instrumento musical oriental chamado lohah, funciona como uma caixa acústica. utilizo gálbano para meditar sobre questões do tempo-espaço, do afastamento das galáxias ou para me concentrar em fazer os cálculos de contas de telefone, luz, gás, etc. para a palavra imbé, mãe maior, feminino corpo, reservei uma bacia de metal prateada com água mineral pura. imbé flutua na bacia como fosse uma flor de lótus jovem ou uma ninféia. feita de contas azuis e amarelas de murano, a palavra imbé exala delicadeza e força. cogitei, inclusive, chamá-la de imbé oxum. roel é palavra que está completamente enferrujada sobre o piano de cauda.

oxidou após receber, pouco a pouco, as lágrimas expelidas diante de coisas ou muito violentas ou muito belas - como sinfonias ou guerras civis ou ambas juntas. roel está situada dentro duma espécie de cinzeiro de lágrimas fundo e gasto e funciona como um cemitério de palavras. com o tempo provocou um pequeno afundamento sobre a superfície do instrumento. sendo o termo encóspias um termo plural e por perceber nele um potencial para fragmentação e espalhamento, decidi que faria diferente com este caso. desmembrei todas as suas letras e espalhei-as pelos cômodos como se espalhasse incenso. quartos, sala, cozinha, varanda, lavabo, área de serviço ficaram empesteados da palavra. achei que pulverizada, assim, ela ficou mais suave e reverberou de modo menos previsível. as últimas são sial e serrim, que são palavras-irmãs feito dia/noite ou firmamento/cordilheira. a primeira, aérea, vocálica, resplandece por si só dado o nascer do dia e portanto está locada no parapeito da varanda, desenhada à mão como se tivesse a capacidade de abrir o dia, de rasgar o que é imenso e insustentável. serrim, por sua vez, está logo abaixo, esteando o peso do ar trazido por sial. serrim tem essências de jardim horizontal e onduloso. distribuí serrim ao longo de uma jardineira com terra fofa, escrevendo suas letras com micro peônias rosadas. juntas, elas formam um perfeito rebatimento de um possível poema sobre o impermanente x permanente. 65


AUGUSTO MENEGHIN Nasceu em 1987. É poeta e artista visual.*

*A imagem da página 66 é de autoria de Augusto Meneghin.

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o labirinto e sua história “Alguém na terra está à nossa espera”. [Walter Benjamin] “Mas o desconhecido exige ao final o império sem partilha”. [Bataille]

Porque conheci profundamente um vazio em meu peito é que fiquei imunizado contra o vazio dos outros. No jardim das pessoas que nasceram, os buracos negros são cães servis.

Além do mar estavam as casas. Desde muito tempo elas serviram de refúgio e de separação para os homens. Para as mulheres, como uma muralha, a quietude do lar tinha a atmosfera de um claustro. Foi gradativamente que as paredes das casas se tornaram translúcidas e agora caminham para a dissolução [o vidro não tem aura]. É um contraste curioso que, ao redor dos novos feudos, cercados pelas mais variadas maneiras de defesa, as casas estejam nuas, expostas do nascer do sol ao findar do dia. Além do mar estavam as casas, mas onde está o mar?

Antes de ir embora daquela estranha cidade, fiz-me uma pergunta: “Se estivéssemos um dia reunidos sobre uma nova Torre de Babel, haveríamos de nos submeter à outra descida?”

Como é terrível a voz por ser unicamente a diferença mais brutal que cada um carrega. 67


Sísifo está ausente e também os mágicos da terra. Há duas pedras de pesos diferentes para que possamos escolher. 68

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Autobiografia Quando a criança me viu dentro do poço ela me viu e seus olhos profundos como um deserto sem camelos pareciam querer dizer que todos os nomes são cruéis.

Nas paredes do labirinto escrito por um exilado: “A experiência do amor é um amadurecimento do tempo em forma de rosto”.

Na face do estrangeiro confluem a antiga esperança de que outra terra o acolherá e a terrível certeza de seu exílio terreno. Sua fantasia confortável é o cume gelado de uma montanha, longe dos vigilantes que coíbem a entrada para o mundo superior - o mundo das coisas próximas e essenciais.

A história do olho humano, por ser inacabada, deixa fendas em nosso despertar. Para abrir os olhos precisamos demorar em nosso nascimento.

Sem as mãos, sem a noite, nenhum encontro seria possível entre os estrangeiros. Eles se olhariam, mas diriam: “Quem é você?” e voltariam para a escuridão.

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Quando se vive uma eterna despedida em que as faces, pouco a pouco, vão se tornando irreconhecíveis, todo possível encontro é adensado e ampliado até suas fronteiras finais. O que permanece, contudo, é quase sempre a ruína de uma expectativa e o cotidiano impassível com seus automóveis.

No lugar onde eu residia havia apenas o entardecer. Passava horas olhando a imensa cúpula que me interrogava com seu panóptico laranja: é possível que a eternidade se desfaça de seu tom gris?

Há muito tempo que um rosto não me faz perder a visão. Descubro que também a saudade promove afogamentos regulares para os desprotegidos. Após anos sendo educado pela mecânica, o corpo quase obedece a um manual invisível que tudo abrange. Mas não: o acidente, que é improvável em sua essência, trata de desenterrar o frescor de vida que nos habita.

Na fenda do acidentado o horizonte está sempre nascendo pela primeira vez.

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Os tempos de transição sempre trazem de suas profundezas as forças de retorno. São elas que tentam nos impor uma conformação com o passado dotando-o de estruturas rígidas. Assim, os tempos de transição são os tempos de rostos apagados, de retratos onde o corpo não pode atingir sua completude. Por isso o estrangeiro, mesmo que tenha um domínio da língua, não pode dominar a própria fisionomia.

- É uma luta terrível buscar o amor na noite terrena - digo para ela. - Sim, estamos mutilados, apesar das estrelas.

Ao riscar um nome na areia eu buscava nos sulcos da terra a compreensão da origem da palavra. Embora tivesse sido alertado que isso era um trabalho completamente inútil, não podia controlar minha ânsia diante das perguntas intermináveis. Sentia a passagem de minha vida não como a indigência da experiência, mas como a hiperabundância dela no berço da linguagem. Ao sentar-me nas mesas com familiares e estranhos era tomado pela perplexidade e pela ausência de substância das palavras que ouvia. Aquilo esvaziava-me completamente dos sentidos que buscava e, embora eu soubesse que se tratava de uma questão de peso, a força de gravidade era sempre maior, puxando-me para um lugar escuro e pouco penetrável. Havia, sim, as saídas habituais do prazer, como o sexo e a bebida, mas sempre experimentava um torpor e a persistência de minha condição, ainda que inebriado. Na areia da praia, diante das palavras, diante da expectativa de vê-las serem aniquiladas pelas ondas do mar, sentia uma espécie de fusão misteriosa com o corpo, especialmente com as mãos. Havia naquilo mais do que um exercício ou meditação. Eu estava nas raízes do jogo, em minha caverna ao ar livre.

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SILVANA GUIMARÃES (Belo Horizonte/MG) Socióloga e escritora. Organizou e participou de algumas coletâneas, entre elas, Hiperconexões — Realidade Expandida Vol. 2 (Org. Luiz Bras, Patuá, 2014) e 1917-2017 — O Século sem Fim (Org. Marco Aqueiva, Patuá, 2017). Editora da Germina — Revista de Literatura & Arte e do site Escritoras Suicidas. Publica seu primeiro livro, de poesia, em 2019.

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sucinta nostalgia do próprio corpo: a fratura exposta na janela : conjugar a palavra antigo no presente do pós-futuro somos uma orquestra: e eu só quero confessar meu amor sem dançar um foxtrote em dublin mas toda paixão se molda em espanto: nasce entre precipícios: pirotecnias a cada transfusão de dor o velho espelho incendiado a alma sorrateira escancarada a gente se acabando aos poucos: mijando a mágoa da vida inteira

anagapesis menos que um corpo mais que uma coisa ser um girassol onde sempre chove ser o que eu quiser, baby não é a solidão é mais que a solidão o que me livra dessa espécie de amor que me feriu e me fez ferir nunca mais seu esperma a trofosperma alimentando outras vidas com a minha 73


pode espernear: mon coeur mis à nu lá fora passa o carro da pamonha e o moço grita pelo alto-falante: os deuses estão mortos na vitrola o disco arranhado naquela parte em que a voz implora let me try again

mínima via um pássaro pousou no relevo côncavo do meu ombro sede de dilúvio e essa dor que o tempo não estanca certeira como a solidão das uvas verdes como o rumor dos rios secos boca a boca aspirar o ar rarefeito aos poucos afagar o ardor do amor baldio a vida alumiada o turbilhão do nada o raio do não nessa noite que nos afasta 74

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autorretrato com colar de espinhos e colibri carmem madalena flor hermafrodita mulher e amásia de joão estanislau pintor de paredes vizinho de barraco na favela da ventosa belzonte mg portador de moléstia séria: furor nos testículos oh carma meu carmencita carmita carmamarga madrasta de seis sobrinhos aflitos dos mamilos apodrecidos do útero-deserto-áspero da alma imutável hematoma do corpocarneviva carmim desenganada pelo médico do posto de saúde abro os olhos afasto borboletas e mariposas yo soy frita: o amor avis rara passou sem remédio que cure mi obsesión só a passagem de ida para o ceará: jericoacora “espero que la marcha sea feliz y espero no volver”

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FERNANDO MONTEIRO Nasceu no Recife (1949). Um dos principais nomes da chamada “Geração 65”, estreou como poeta em 1973 (Memória do Mar Sublevado, Editora Universitária). Seguiu publicando poemas longos até 1997, dentre os quais o livro Ecométrica — de 1983, publicado por Massao Ohno Editor —, ganhador do prêmio nacional da União Brasileira de Escritores/RJ). Nesse ano, fez a sua estreia como romancista, em Portugal, com o também premiado Aspades, ETs Etc. A seguir, o seu A Cabeça no Fundo do Entulho foi distinguido com o primeiro prêmio de Literatura da revista BRAVO! (1998), e vieram, no anos seguintes, A múmia dourada do Rio de Janeiro, Armada América, O grau Graumann, As confissões de Lúcio. Em 2009 — ano em que foi o Homenageado do 7º Festival Recifense de Literatura — Monteiro retornou ao verso com o poema longo Vi uma foto de Anna Akhmátova, ao que se seguiu Mattinata (2012). O Prêmio Pernambuco da SECULT/CEPE foi reencontrá-lo como romancista, através de O Livro de Corintha, lançado em 2013. É colaborador fixo com coluna (“Fora de Sequência”) no jornal literário Rascunho — de Curitiba — desde 2000. Em 2017, foi o Homenageado da XI Bienal Internacional do Livro de Pernambuco, ocasião em que lançou a coletânea Contos Estrangeiros de Fernando Monteiro, pela Editora Confraria do Vento (RJ). 76


DORSET Dentro do carro, umidade e chuva penetravam com o cheiro de couro velho de alguma parte do interior do veículo avançando na noite para sempre gravada nas paredes de afrescos velados do interior da sua cabeça exposta como a pele de um animal caçado por si mesmo, fantasma de si próprio, assombração de uma história que ficaria para sempre inconclusa entre pequenos buquês humildes boiando nas ondas, enquanto a onda intranquila de desordem amplificava a conquista que também significava nada, não era uma legenda, não havia dourados, cortinas de veludo apertadas por nós de ouro cujo brilho não chegaria, nunca, aos desvãos das tumbas e muito menos às covas rasas abertas para tantos que haviam ficado pela estrada e esperavam apenas pela solicitude da Lua como quem espera uma carícia da amada O olhar “vazado” se erguera acima dos muros para uma moeda fria refletida longamente na água Era só isso? Uma sensação de absoluto vazio no meio do triunfo que não importava? Havia sido loucura, obsessão trazida de pequenas relíquias catadas há muito tempo, tão distante dali quanto era possível e numa atmosfera oposta, de ordem e religiosidade transida de gelo debaixo das pontes da cidade que boiava na infância Fora considerado “impossível”, porém estava feito, era preciso redesenhar mapas, prosseguir com aquilo, ser como não vinha mais sendo debaixo da antiga roupa – pois não era possível sumir agora e deixar a embriaguez da vazia vitória nas mãos dos anões maculados por onanismo e ressentimento ocultos nas palavras e nos atos hesitantes de “criaturinhas a construir abrigos na sombra Poluta da Tua Dádiva”. 77


Podia voltar os olhos para as folhas queimadas da vida — essa frase solene; podia aceitar solenidade e apertos de mão demorados para sinalizar que era “muito bom” conhecer alguém numa recepção de taças quebradas pelos sons das bocas que diziam nadas sorridentes entre mesuras e piadas das quais seria de bom tom rir Mais do que de “bom tom”, o futuro de qualquer um poderia depender do risco de um sorriso adequado no momento certo sob as lianas de flores de mau gosto do quiosque das bebidas de cores indefinidas O olhar de alguém o confirmaria, havia um código como também vigoravam etiquetas não escritas e que, uma vez quebradas, significariam o expurgo, a discriminação, o fim Então, desaparecia — voluntariamente desaparecia (e isso não é poesia), o que as pessoas não compreendiam, franzindo o cenho, fazendo um pequeno gesto com as comissuras dos lábios que não terminavam de pronunciar as frases Qualquer frase alusiva... educadamente (isso deve ser reconhecido), oh, sim, porque a maldição era ser educado e disputar futuros com baixos golpes próprios do modo avião na perseguição das alturas afundadas a prosseguir educado e mau quando era preciso (“muito mau”) por sobre a paisagem lá embaixo: as salas vazias do palácio arruinado longe da Torre do Relógio próximo da qual quis morrer (tentou seriamente) e apenas pegou um resfriado da lama do rio que era realmente nojento

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Você não esquece, quando quer morrer Você não morre, quando quer esquecer Um dia cheio de frases, versos, sabedorias difíceis e fáceis, um dia de velocidade bom para desaparecer na curva da idade, de maneira que, então, tudo estivesse consumado, evaporado como a fumaça das folhas queimadas O circo que saiu da cidade. Sua roda na poeira de entulhos por momentos iluminada. Os cães — alguns — que acompanharam os carroções pintados na estrada de névoa que cortava para uma das sete colinas cuja visão havia sido borrada pela noite da longa corrida em busca de nada.

“Diário: Passeio no jardim em frente de casa” Acerola e cola sobre papel A6. 2014. 79


ANDRÉ NOGUEIRA Nascido em 1987 na cidade de Herdecke, Alemanha Ocidental. Registrado cidadão brasileiro no Consulado em Munique. No Brasil desde 1991. Vive atualmente na cidade de Campinas. Formado em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas e em Literatura e Cultura Russa pela Universidade de São Paulo. Tradutor, poeta, ensaísta. Autor de O presidente me quer morto (Urutau, 2019).

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v. maiakóvski

[apresentação, tradução e comentários dos poemas inéditos por André Nogueira]

Vladímir Vladímirovitch Maiakóvski (1893–1930). Aclamado “o poeta da Revolução”, principal expoente do futurismo russo. Ainda adolescente, participou do movimento revolucionário, o que lhe rendeu 11 meses de confinamento na prisão de Butirka em 1909. Em 1912 ingressou para a Escola de Belas Artes de Moscou, de onde foi expulso, com seu amigo David Burliúk, no ano seguinte; ambos assinaram o manifesto futurista “Bofetada no gosto público”, em que saíram as primeiras publicações poéticas de Maiakóvski, ao lado de Velimir Khliébnikov, Aleksei Krutchiónikh e outros. Após a Revolução de 1917, trabalhou ativamente em matéria de poesia e dramaturgia, atuou como roteirista e ator de cinema, projetou cartazes propagandísticos, etc. Em 1922 fundou, com Óssip Brik, a LEF (Frente de Esquerda das Artes) e editou a revista homônima, que encabeçou publicações das vanguardas soviéticas na década de 1920. Apresentou-se constantemente ao público, nos auditórios e fábricas russas e, viajando também à Europa e América, tornou-se prestigioso embaixador da cultura soviética. Não obstante, nos últimos anos de sua vida, sob um cenário político cada vez mais repressivo, Maiakóvski foi vítima de diversos ataques na imprensa. Viveu também grandes amores e desilusões amorosas. Suicidou-se em 14 de abril de 1930 em Moscou com um disparo no coração.

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ASSISTÊNCIA AO MINISTÉRIO DOS ARTISTAS INSALUBRES SOBRE O INCÔMODO MISTÉRIO, O MISTÉRIO DE SEU CLUBE. “A federação dos escritores soviéticos obteve uma casa e organizará em Moscou o primeiro clube dos escritores” 1 (Notícia de jornal)

Não sei — se canto, se danço, o sorriso do rosto não sai. Eis que enfim também terão os escritores o seu clube! Boa nova… Organizai! Que desabroche e não broche vossa trupe. Escolher bela mobília, porém sem exacerbar: o gasto veludo de preço modesto. Sentar e com todo conforto por horas ouvir do camarada Averbakh a palestra. 82

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A seguir, em paixões imersos os olhinhos se reviram para dimensões outras: simplório e ingênuo, Moltchánov lê versos sob aplausos das garotas. Cada qual se sinta bem e à vontade. E se levante — no momento crucial — Vsiévolod Ivánov: com seus contos nos agrade. O século em casinhas de estorninho não sentemos como sentam os poetas nos saraus. Quereis ter com Tolstói e Oriéchin, conversar entre garrafas de cerveja? Simplória bebida, a comida — igual, como servida na bandeja. Entreguemos a cantina à Narpit —2 nada há para o jantar!

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Que não haja esses foxtrot e o jazz com seus pandeiros não estorve nossa obra… E com vocês conversará o camarada Rodóv, que ao tédio não se dobra. Que não haja esses jogos de bilhares, nem ouçamos as bobagens dos inatos menestréis, esses bardos vermelhos decorados de lauréis. Tudo isso derrubem! Ou deixem que desabe como os sábios escritores no sofá. Eis que vocês organizaram o tal clube… E eis que eu não tenho pernas para os ver filosofar.

1928

“Noite sem luz, velas acessas” Nankin sobre caderno A5. 2015. 84

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[comentários do tradutor] 1 No título original em língua russa, Maiakóvski se refere às instituições soviéticas Narkompros e Glaviskusstvo, abreviações respectivamente de Narodni Komissariat Prosvechtchenia (Comissariado Popular da Educação) e Glavnoie Upravliénie po Diélam Khudójestvennoi Literaturi i Iskusstvo (Diretoria Geral para Assuntos de Literatura e Arte). A Glaviskusstvo, enquanto órgão governamental, consistia em um segmento da Narkompros. Já na epígrafe do poema, o recorte de jornal menciona uma associação literária, a Federação dos Escritores Soviéticos (FOSP). Criada em 1926 pela fusão da Associação dos Escritores Proletários de Toda a Rússia (VAPP) com a Sociedade dos Escritores Camponeses de Toda a Rússia (VOKP) e a União dos Escritores de Toda a Rússia (VSP), a “federação” centralizava uma série de organizações literárias que existiam na época e que, mais alinhadas com o governo, começavam a dar seus passos para trás. Maiakóvski então organizava-se na LEF, Assotsiatsia Rabotnikov Liévovo Fronta Iskusstva (Associação dos Trabalhadores da Frente de Esquerda da Arte). Máximo representante do futurismo russo, forjado nos dias gloriosos da Revolução, Maiakóvski assumiu uma postura radical de denúncia contra a estagnação em que caíam as instituíções artísticas, prenúncio da guinada conservadora nos órgãos estatais que, não demoraria muito, imporiam uma ferrenha perseguição aos artistas de espírito livre. Nesse momento de recrudescimento da esfera política as disputas de Maiakóvski com seus rivais na vida artística se acirraram. Os escritores e críticos de visão mais estreita, muitos deles invejosos de seu sucesso com as massas, dirigiam ataques a Maiakóvski nos jornais, infiltravam provocadores em suas apresentações, para o insultar. O poeta também era provocador, respondia brilhantemente aos bilhetinhos do público durante os debates em auditórios e golpeava seus adversários com toda a fúria de seus versos. Maiakóvski satirizou a burocratização da arte soviética e seu gradativo aburguesamento, do qual o “Clube” de escritores seria, em sua opinião, um sintoma. Nomeou neste poema alguns

de seus adversários: Leopold Averbakh, Ivan Moltchánov, Vsiévolod Ivánov, Aleksei Tolstói, Piótr Oriéchin. Sua rivalidade com Moltchánov, por exemplo, rendeu os poemas, publicados nos jornais da época, Carta à amada de Moltchánov e Reflexões sobre Ivan Moltchánov e a poesia. Já o camarada (Semion Abramovitch) Rodov formou um bloco à esquerda da RAPP (Associação Russa dos Escritores Proletários), quando esta se dividiu em 1926; por isso ganhou o apoio de Maiakóvski, que tinha muitos inimigos na RAPP. Em 1929 o Comissário do Povo para a Educação, Anatoli Lunatchárski, sob cuja proteção Maiakóvski escrevia e a quem se devia a permanência de certas liberdades de expressão, foi substituído. Após as dissidências no seu próprio grupo e sentindo o cerco se fechar, Maiakóvski dissolveu a LEF e ingressou na RAPP. Isso não o impediu de ser ainda mais hostilizado pelos seus companheiros de ofício. A exposição organizada por Maiakóvski em comemoração aos vinte anos de sua carreira literária, montada nas salas do Clube dos Escritores em Moscou, recebeu um duro boicote em fevereiro de 1930. Um mês e meio depois, seria também em uma dessas salas onde, ao longo de três dias ininterruptamente, as multidões passariam para se despedir do poeta que, de uma vez por todas, fechou seus ouvidos para os insultos. No livro Maiakóvski, o Poeta da Revolução (Record, 2008, pág. 506), Aleksandr Mikhailov registra um detalhe hilário da exposição, em que o poeta ridiculariza o ambiente almofadinha do Clube: “Maiakóvski introduziu um elemento de humor na organização e, em cada cupido modelado sobre as portas da segunda sala, colocou um lenço de pioneiro* de papel vermelho brilhoso”. * Pioneiros, organizações de comunistasmirins nas escolas primárias da União Soviética. 2 Narpit, abreviatura de Narodnoie Pitanie (Alimentação Popular), projeto para a criação de cantinas populares com refeições a preços acessíveis para os trabalhadores (o “bandejão” soviético). 85


JÚBILO DAS ARTES Pobre, pobre Púchkin! Nas rosadas orelhinhas de uma dama os seus versos se derramam. Que à alta e restrita sociedade, aos salões de visita ele brade. Tenho pena desses lábios que entre alfombras e almofadas se consomem. Para eles eu daria um microfone. Mússorgski? Pobre, pobre dele! Esse som de pianola de que vai adiantar? Que rodopia no aperto e nas cortinas se enrola dessas salas de concerto ou de jantar.

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Pobre, pobre Herzen! Como sino na campana, seu vibrante miocárdio.1 À toda a Rússia vibraria, se houvesse então o rádio. Pois jubilem de alegria, escritores, musicistas, artesãos do pensamento! Hoje o rádio os ressuscita do mortal esquecimento! As palavras de ordem e canções hoje correm pela inteira extensão do mapa mundi.2 Próximos estamos das orelhas de milhões — o brasileiro, o esquimó, o espanhol, o urdmurti. Abaixo os estofados dos salões! Que murmure solitário o bacharel… Estou contente por vivermos neste tempo em que se canta pelos céus.

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[comentários do tradutor] 1 O sobrenome do escritor russo e pensador libertário Aleksandr Herzen (1812-1870), criado pelos seus pais para a ocasião de seu nascimento, deriva do alemão Herz, que significa “coração”. São mencionados por Maiakóvski neste poema ainda o grande poeta canônico da literatura russa Aleksandr Púchkin (1799-1837) e o compositor Modest Mússorgski (1839-1881). 2 Aleksandr Mikhailov em Maiakóvski, o Poeta da Revolução (Record, 2008, pág. 476) relata o seguinte episódio: “Vladímir Vladímirovitch [Maiakóvski] se apresentava com a leitura de poemas no rádio. Tal possibilidade de se comunicar com um público grande ainda o seduzia. Perguntou ao diretor da rádio se muita gente iria ouvi-lo. A resposta foi solene: ‘O mundo inteiro!’ Maiakóvski respondeu: ‘Não preciso de mais’”. Os títulos originais em língua russa: “Помощь Наркомпросу,/ Главискусству в кубе,/ по жгучему вопросу,/ вопросу о клубе” & “Счастье искусств” (Fonte: MAIAKÓVSKI, Vladímir. Облако в штанах. Во весь голос. Люблю. Стихотворения. Поэмы. Пьесы. CанктПетербург: Азбука-Аттикус, 2014/ Referências: MIKHAILOV, Aleksandr. Maiakóvski, o Poeta da Revolução. Rio de Janeiro: Record, 2008. Trad. Zoia Prestes).

p.87 “Diário: Aranha encontrada no deserto” Óleo e aranha (encontrada morta em casa) colada sobre caderno A6. 2014. p.88 “Diário: caminhando no desenho” Óleo sobre caderno A6. 2014.

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“Agir de maneira intempestiva, quer dizer, contra o tempo, e assim sobre o tempo, em favor, eu espero, de um tempo que virá” — f. nietzsche, considerações extemporâneas, III, 3-4.

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