RAUL CÓRDULA 50 anos

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Raul Córdula 50 anos de arte uma antologia

de
junho a 29 de julho de 2012

Muito além das geometrias

A primeira vez que soube da existência de Raul Córdula estava diante de uma parede. Uma tela com cerca de um metro de largura – imagino eu – se estendia na superfície plana, onde figuras geométricas negociavam um lugar no espaço. Me lembro de um cinza recorrente, talvez, mas principalmente de linhas retas e diagonais delimitando uma composição na qual havia um triângulo. Não recordo bem em que museu ou galeria do Recife (ou Olinda) estava o quadro, mas foi ele o responsável por me introduzir ao artista – se não me falhe a memória, entre outros nomes de uma exposição coletiva.

Confesso que aquilo me intrigou e, apesar de eu não ter registrado tudo muito bem, o nome de Raul Córdula ficou. Percebi que era importante. Minha primeira impressão diante de sua obra, contudo, misturou estranhamento e curiosidade. O quadro parecia deslocado do tempo e do lugar. E logo depois comecei a entender por que: o abstracionismo geométrico não é (nem era) mesmo muito comum pelas bandas de cá do Nordeste, onde a pintura figurativa acabou se impondo. O próprio crítico Paulo Sérgio Duarte e o pintor José Cláudio1 já haviam reparado nisso quando escreveram a respeito de sua obra.

E tinha mais uma questão provável. Tendo sido o início dos anos 2000 marcado pelo despontar de uma nova geração de artistas visuais contemporâneos, nos quais eu sempre esbarrava em minhas descobertas pela arte pernambucana, uma pintura do tipo me jogava diretamente a um passado artístico. A uma história que, seguindo a “lógica” dos livros, ficara para trás.

O ponto é que, com algum conhecimento em arte e já me arvorando a tecer os primeiros comentários sobre a produção plástica pernambucana, tirei prontamente do meu (curto) repertório uma

conclusão para o que via ali. Raul Córdula seria, portanto, um legítimo exemplar do Concretismo, movimento que, a partir dos anos 1950, colocou régua nos pincéis e apartou a pintura do mundo exterior comumente idealizado. Foi assim na Europa, nos Estados Unidos e também no Brasil – todos com uma boa dose de influência da corrente construtivista. Uma onda de abstracionismo marcou a produção pictórica num momento em que o interesse dos criadores se curvou em direção à “estética pura”, a uma pintura com um fim em si mesma – mínima, racional, geométrica, formal e antimimética, rompida com o realismo tradicional e o “subjetivismo artístico”.

Com relação a Raul Córdula, minha observação incipiente não era de todo equivocada. Era, na verdade, precipitada, porque pela tela (e por outras que vi depois) eu enquadrei o pintor no rigor de suas formas. Mas estava apenas diante de uma de suas fases – que, aliás, jamais recebeu do artista o título de “concreta” 2. Por sorte, o conhecimento e o tempo nos livram de vereditos apressados. Na medida em que fui me aproximando do trabalho deste paraibano, acolhido por Olinda há mais de 30 anos, descobri um artista de muitos predicados. Um nome que Pernambuco e outros estados ainda parecem desconhecer em sua amplitude.

Muitos estudiosos e admiradores da arte certamente conhecem o curador, o crítico, o pintor abstrato e até o cenógrafo. Mas o que dizer do artista com mais de meio século de trabalho e uma porção de obras relevantes para a nossa história? Fazer um apanhado desse extenso percurso é, portanto, mais do que a proposta da exposição Raul Córdula: 50 anos de arte (uma antologia). É um papel e tanto. A seleção dos trabalhos feita por ele, nesse exercício de revisitar a própria obra, se mostra aqui

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generosa e reveladora. Um convite para adentrarmos melhor num universo ainda pouco explorado, apesar das suas muitas facetas e consagrações mundo afora.

Este não é um trabalho simples, muito menos se resume ao abstracionismo geométrico – apesar de sua presença recorrente. Abrangendo uma produção datada de 1965 até agora, as nove séries escolhidas apontam para tempos e estilos distintos, capazes de atestar uma obra que, não raro, carrega na sua complexidade. Não podia ser diferente. Raul é um desses artistas conscientes do seu ofício. Ele sintetiza a história da arte no próprio trabalho e ainda traz a reboque conhecimentos de outros campos, como o religioso e o político. Poderíamos afirmar, portanto, que ele se encaixa no hall dos artistas cultos, no qual estão nomes como Francisco Brennand, Montez Magno e João Câmara, seu conterrâneo. Ele não gosta muito de ser visto assim, mas esta me parece uma chave para acessarmos a densidade das pinturas, dos desenhos, dos grafismos e das demais empreitadas do seu arsenal criativo.

Paradoxalmente, o hermetismo que resvala de boa parte de seus trabalhos parece contradizer – ou no mínimo tensionar – seu desejo de fazer arte para o povo. Mas justo nesse impasse reside a poética do artista, que busca se equilibrar entre o esteta e o político, sem necessariamente romper essas duas dimensões (qualquer ruptura mostra-se arbitrária ou é somente uma tentativa de abstração).

A meu ver, ambas as tendências – ou essa dualidade – pontuam de maneira crucial o conjunto escolhido por ele para representar seus 50 anos de arte. Uma representação, aliás, para ser encarada não pela perspectiva cronológica, típica de efemérides como esta – por sinal, retroativa a 2010, quando Raul relembrou sua

primeira individual, realizada na João Pessoa de 1960. O apanhado deve ser antes visto em seu potencial de antologia, que, como toda ela, produz um olhar, um dado discurso. Não se trata de uma tentativa de reducionismo, mas de uma interpretação possível, de uma estratégia talvez mais proveitosa, através da qual podemos reter, em maior profundidade, o sentido deste nome para a história da arte no Brasil.

Um artista de 60

Pela sua fala, pela sua arte, Raul Córdula parece se situar melhor na geração de artistas como Hélio Oiticica, Antônio Dias (também paraibano), Carlos Zilio e Lygia Pape, do que na anterior. Tidos por historiadores como a neovanguarda brasileira, que despontou com a década de 1960, foram eles os responsáveis por colocar a produção visual do País num novo patamar. À sua maneira, talvez menos extrema no experimentalismo, Raul comungou com eles alguns dos ideais artísticos centrais da época, além da idade semelhante – muitos deles nasceram também na década de 1940 – e do convívio direto em momentos históricos, como na exposição Nova objetividade brasileira, realizada em 1967, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM/RJ), por iniciativa de Hélio Oiticica.

Foi o artista carioca quem de fato puxou uma revisão crítica do movimento Concretista, reclamando uma “nova figuração”, “uma nova objetividade” à arte brasileira. Seu projeto voltava-se à ideia de “objeto” (inter-relacional, “perceptivo”, “ambiental”, o princípio da instalação), em contraponto ao que chamou de “descrença nos valores esteticistas de quadro de cavalete”3. Curiosamente, ele mesmo havia pintado abstrações geométricas nos anos 1950, mas logo deixou de lado, diante do contexto de mudança no Brasil e no mundo. Na visão da historiadora Maria de Fátima Morethy Couto4, o rompimento, teorizado pelo próprio Oiticica, marca a passagem de dois momentos na história da nossa arte: do Concretismo para o Neoconcretismo, a partir do eixo Rio-São Paulo. Em outras palavras, da “arte pura” para uma arte experimental e engajada, comprometida, em seus princípios, com o envolvimento do

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público ou, nas palavras do sociólogo Paulo Marcondes Soares5, com a “participação social”.

Apesar de ele ter trilhado seu próprio caminho, Raul Córdula é cria desse momento. Isso transparece tanto em boa parte das obras aqui reunidas quanto no seu próprio discurso. Logo na primeira vez em que conversamos sobre os trabalhos da mostra, me chamou atenção a maneira enfática com que afirmou “Sou de uma geração que ainda acredita na arte para o povo”. Ora, até pela carga utópica da frase, ela é típica da geração 1960. Está no discurso de críticos como Mário Pedrosa e Ferreira Gullar, assim como do próprio Hélio Oiticica.

Na visão de Couto, existiram pontos cruciais que uniram artistas desse momento. Desejos de uma arte para o povo e pelo povo; de uma arte participativa e coletiva, para o público; de uma arte experimental e libertária, sem “ismos”; de uma arte para além da pintura e do caráter visual – “politecnomorfa”, de múltiplas linguagens; de uma arte ligada ao cotidiano e à realidade, sem o dever da mímese; em suma, de uma arte política. Embora essas vontades tenham, algumas vezes, se distanciado da prática, e mesmo da relação com o público, as criações artísticas foram quase sempre tentativas nessa direção, o que decerto levou parte da produção brasileira a trilhar novos rumos, ainda mais radicalizados na geração seguinte, dos anos 1970.

Sob o ponto de vista imediato, que reduz Raul Córdula a um mero pintor formal, é difícil enxergá-lo nesse meio. Mas isso não acontece se estivermos dispostos a mergulhar nos trabalhos escolhidos para representar sua trajetória até aqui. Mesmo as suas pinturas mais abstratas são motivadas por um desejo de mundo, de olhar para o outro. As telas da série Geometrias recentes, por exemplo, têm como uma das suas inspirações a arquitetura popular das casas de interior. O resultado, claro, dialoga com a estética formal do Concretismo ou do Construtivismo, mas há elementos que o tornam um pintor diferente dentro da corrente abstrata.

Na verdade, Raul não começou por aí. A obsessão pela geometria se tornou uma característica imponente de sua obra, é verdade, mas jamais definidora de tudo. Ele mesmo nunca se inseriu entre artistas “concretos”, como Waldemar Cordeiro, Geraldo de Barros e o próprio Hélio Oiticica, nos anos 1950. Enquanto estes se detinham nas formas, no Sudeste, Raul começava na Paraíba a pintar flores, pássaros, mulheres, peixes e outros temas da região. A relação

estabelecida com triângulos, quadrados e círculos só veio anos depois. E, de maneira recorrente, com mais vinculação simbólica, de carga religiosa e mística, do que puramente formal. A conhecida série de aquarelas feitas em Paris, em 1991, é um exemplo disso e também pode ser vista nas escolhas da exposição.

O trabalho mais antigo do conjunto antológico aqui exposto, aliás, não compactua com nenhuma tentativa de formalidade estética. Ao contrário, os desenhos da série João Pessoa 1965 nascem do interesse do artista pela arte espontânea, quase primitiva, das garatujas de criança ou dos rabiscos deixados por pessoas comuns no muro. Uma atitude bastante moderna, no sentido artístico da palavra, que já aponta nos seus quadros também uma postura política, própria de sua geração. Basta observar, por exemplo, a subversão que ele faz da imagem dos três macacos do “não vejo”, “não falo”, “não ouço”, colocando-os para ver, gritar e ouvir, numa representação figurativa mais humana. E há ainda outras sutilezas, como a frase “Cuidado com este chão”, em alusão às Ligas Camponesas.

O engajamento segue seu rumo em obras subsequentes, como as telas de 1968, censuradas na Paraíba, por ordem do Conselho Universitário da UFPB, onde Raul trabalhava e expunha na ocasião. Não foi a Polícia Federal e tampouco uma “proeza” do AI-5, que ainda nem havia baixado seu capuz negro sobre a liberdade artística. A direção da universidade viu nos quadros do pintor uma “ofensiva à moral e ao pudor público”. A série de pinturas trazia algumas imagens de mulheres virgens e nuas, rodeada de guardiões felinos, o que deve ter incomodado os conservadores da instituição. Isso fez o agitador Jomard Muniz de Brito soltar, num manifesto6, provocações como: “A

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imoralidade está na obra ou na perspectiva de quem vê? Os nossos doutores provincianos se escandalizariam diante da Vênus de Milo?”.

Havia na série imagens mais impactantes, que dialogavam muito bem com o contexto sociohistórico brasileiro daquele momento. Em um dos quadros, também vistos nesta antologia, um homem aponta um revólver para o espectador. Em quase todas as telas, é direta a referência de Raul a episódios e símbolos de um período repressor, como arma, coturno e sangue no chão. Mas estes não foram, ao que parece, o motivo da censura, tanto que ele mesmo voltou a montar a exposição no Teatro Santa Rosa, logo depois. Meu pai, que é paraibano e militou contra a ditadura, me confessou dia desses que jamais esqueceu do revólver apontado para ele na juventude – tempos depois o quadro foi exposto numa sorveteria de João Pessoa e foi lá que ele viu.

Interessante observar a estética utilizada por Raul Córdula nesse trabalho, um dos primeiros da arte brasileira a revelar influências da Pop Art, numa pegada bem cartunesca. Nesse sentido, e mesmo à distância, o artista revela mais uma vez seu diálogo com a geração 60 que, lá do Rio de Janeiro e de São Paulo, também cuidava de enaltecer a vanguarda pop norteamericana. Os brasileiros viam no movimento artístico dos Estados Unidos uma aproximação com as massas, uma linguagem original, atual e popular, mesmo bebendo da estratégia da publicidade, como fez Andy Warhol. Hélio Oiticica era um dos que se identificavam com o movimento, cujas características ajudaram a colocar mais tintas nos seus ideais de construção no País de uma arte “para o povo”. Tudo isso reverberou nas criações surgidas dos anos 1960 em diante no Brasil, fazendo quadros como Anywhere is my land, de Antônio Dias, serem primos-irmãos

das telas de 1968 pintadas por Raul. E, vale dizer, não pela mesma terra que viu os dois nascerem, mas pelo trilho artístico no qual ambos deslizaram suas poéticas.

As séries O país da saudade, Araguaia e Made in PB – feito em chumbo, também reunidas na presente antologia, não dialogam tão diretamente com a Pop Art, mas seguem rumo semelhante na obra de Raul. Em especial, apontam para um percurso político e experimental mais evidente na geração de 1970, embora sejam trabalhos produzidos posteriormente. Se a geração anterior já havia apontado para um engajamento como resposta a um dado momento na arte e na política brasileiras, a década seguinte “desdobra-se em diferentes situações inseparáveis dos contextos sociopolíticos decorrentes da ditadura”, como enfatiza a curadora Glória Ferreira7.

Raul não passou ao largo desse desdobramento. De 1982, O país da saudade é um exemplo inserido nesse tempo, seja pela linguagem, seja pela temática. Política desde o processo, a série em arte postal segue a linha de trabalhos que buscaram formas coletivas de produção – como a do Grupo Fluxus – e vias alternativas para a arte – a exemplo dos trabalhos em arte correio feitos por Paulo Bruscky no Recife, ou da série história Inserção em circuitos ideológicos, de Cildo Meireles, na qual se apropria de cédulas de dinheiro e garrafas de coca-cola.

Na sua obra, Raul enviou um papel em branco, endereçado a artistas e amigos com os quais via identificação. Na folha, estava o tema (O país da saudade) e o seguinte pedido carimbado: “Por favor, interfira e me devolva”. Mais de 60 respostas estão reunidas na série, sendo quase metade de Jomard Muniz de Brito. As interpretações são múltiplas e dialogam muitas vezes com o contexto sociopolítico do qual falou Glória Ferreira.

O compromisso com a história do Brasil, na perspectiva de revisão, também transparece em Araguaia e Made in PB – feito em chumbo, independente de terem sido produzidas nos últimos cinco anos. Aliás, o encontro, no mesmo momento, destas e de outras séries descritas acima parece não só oportuno como cumpre um papel: nos atira inevitavelmente na direção da crítica e do questionamento. Nunca é tarde para revermos o discurso sobre nosso passado. E Raul nos incita a isso, assumindo novamente a postura artística e política que mobilizou sua geração. Seja ao evidenciar o nome dos desaparecidos políticos na Guerrilha do Araguaia

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(1972-1975), ainda arquivados pela história oficial; seja ao sacudir a própria simbologia da sua terra natal – a bandeira paraibana.

Pelas mãos do artista, a flâmula rubro-negra está longe de balançar orgulhosa. Apropriando-se da sua imagem e geometria, Raul procura fazer sua leitura dos acontecimentos que regem a origem do signo onde se lê, em letras garrafais, “NEGO”. No lado preto da bandeira, o artista colocou chumbo (literalmente) com três tiros. No vermelho, suprimiu o “n”, deixando transparecer a palavra “EGO”, que, na sua versão, surge de forma velada, como se largada num muro8. Há outras obras em Made in PB, mas esta cumpre, sem dúvida, uma função sintetizadora.

Apesar das inclinações ideológicas de esquerda, Raul conta que nunca assumiu uma postura combativa ou partidária – como se seus quadros não gritassem para o mundo... De outro lado, não desconsidera seu frequente envolvimento com questões coletivas e sociais, que marcaram, de forma indelével, sua visão de mundo. Como ser humano, como artista. Quando perguntei sobre a participação dele nas lutas contra a ditadura, responde que nunca foi de fato militante, mas solidário com a causa, ajudando na fuga de amigos ou dando sua contribuição artística. “Essas coisas nunca saíram da cabeça e do coração das pessoas da minha geração.”

É preciso dizer que mesmo quando se ocupa da formalidade pictórica, Raul não se esquece de sua humanidade, no sentido menos “racionalista”. Há nas suas pinturas abstratas uma “geometria do próprio ser”, como assinala a artista Amélia Couto9. Ora relacionada a figuras simples e populares, ora a uma dimensão transcendental, repleta de mistério e espiritualidade. Em nenhum momento, ele se mostra puro ou frio. Tudo isso pode ser observado mais de perto no seu livro de artista, no qual revela, de maneira inédita, um pouco do seu processo criativo.

Realmente me impressionei quando ele me confessou que passou a pintar figuras abstratas por medo da repressão – e depois por necessidade de sobrevivência, haja vista o potencial comercial de seu abstracionismo geométrico. Claro, ele também tem apego pelas geometrias, mas, de alguma maneira, elas parecem camuflar uma renúncia do artista aos seus ideais, à sua vocação – o que o faz voltar agora para fazer justiça com a própria obra. Está certo. Seu trabalho é mais do que triângulos, quadrados e círculos, sem eximir a relevância dessa produção em sua trajetória. Afinal, não por acaso está na antologia.

Seu repertório, contudo, é mais vasto do que o discurso que o enquadrou nos últimos tempos, embora não deixe de ser fruto da própria escolha do artista. Pelo menos em parte. Mas é tarefa nossa, como observadores da arte, abrir novas trilhas interpretativas, novos campos de fruição. São mais de 50 anos de arte e quase 70 de vida. De resto, não há mais nada a dizer. Ainda precisamos conhecê-lo melhor.

Recife, maio de 2012.

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1 Paulo Sérgio Duarte e José Cláudio fizeram alusão a esse aspecto em textos para exposições de Raul Córdula. Duarte, em 2000, e Zé Cláudio, em 1984 (Arte Galeria, Fortaleza/CE).

2 Como verei adiante, mesmo dialogando com a estética do movimento, Raul Córdula buscou em sua pintura um jeito peculiar de lidar com elementos geométricos.

3 Referência à fala de Hélio Oiticica (1979) transposta em: SOARES, Paulo Marcondes Ferreira. Arte, política e juventude no Brasil: questões de arte e participação social. In: GROPPO, Luís Antonio et. al. Juventude e movimento estudantil: ontem e hoje. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2008.

4 COUTO, Maria de Fátima Morethy. Por uma vanguarda nacional: a crítica brasileira em busca de uma identidade artística (1940-1960). Campinas: Editora da Unicamp, 2004.

5 SOARES, Paulo Marcondes Ferreira. Arte, política e juventude no Brasil: questões de arte e participação social. In: GROPPO, Luís Antonio et. al. Juventude e movimento estudantil: ontem e hoje. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2008.

6 Manifesto Por uma exposição censurada, redigido por Jomard Muniz de Brito e Wills Leal após censura sofrida pela exposição de Raul Córdula, no hall da reitoria da UFPB.

7 No seu texto para o catálogo da exposição Anos 1970 – arte como questão, promovida pelo Instituto Tomie Ohtake em 2007 | Arte como questão: anos 70 = Art as question: the 1970s. Curadoria: Glória Ferreira. Versão para o inglês: Stephen Berg et al. São Paulo: Instituto Tomie Ohtake, 2009. Meio século de arte brasileira; 2.

8 Esta não foi sempre a bandeira da Paraíba. A mudança aconteceu depois do assassinato de João Pessoa, então presidente do estado (o equivalente a governador), num episódio tido como o estopim da chamada Revolução de 1930, que inaugurou a Era Vargas no Brasil.

Conta a história que cerca de um ano antes, João Pessoa havia negado apoio ao candidato da situação à presidência Júlio Prestes, mas as insatisfações relacionadas a ele (e à sua morte) nasceram antes, dentro da própria Paraíba. Os perrepistas eram seus principais opositores. O avô de Raul fazia parte deste grupo. E o próprio artista se diz até hoje um perrepista, embora o Partido Republicano Paulista tenha sido extinto. Dados por Otávio Citone, amigo de Raul e sobrinho neto de Zé Pereira, famoso perrepista, os tiros no quadro representam a morte do político que virou nome de cidade, mitificada em seu passado registrado como heroico.

9 Do texto “A simbologia de Raul Córdula”, escrito para uma exposição do artista realizada na Galeria Vicente do Rêgo Monteiro, no Recife, em 1990.

7 Raul Córdula 50 anos de arte uma antologia

Geometrias Recentes

Apesar de dialogar visualmente com movimentos que levaram a pintura na direção do abstracionismo geométrico, estas telas de Raul Córdula não buscam um fim em si mesmas. Não são a expressão da arte pela arte, da forma pela forma, da autorreferência preconizada pelo ideal da “estética pura”.

Neste caso, é preciso ir além de códigos reproduzidos pela história da arte. Não há aqui um rompimento total da pintura com a “realidade”, ou seja, com a sua função representativa. Não raro, as composições monocromáticas do artista remetem a diversas referências de seu repertório visual. São alusões, muitas vezes, ao arsenal de uma rica memória imagética; de uma arquitetura afetiva, sobretudo.

Detalhes de platibandas das casas de interior, com adornos losangulares, por exemplo, são trazidos à cena pelo seu olhar geometrizado. O grafismo de um carro, visto pelo artista nas paredes de uma casa do Sertão do Ceará, nos anos 1980, ganha nova representação pelas mãos dele. São trabalhos recentes contaminados por questões antigas, como diz o pintor.

Entre trípticos e dípiticos, pinturas ganham volume e cores saltam aos olhos, camada a camada. É como se quisessem confirmar o título de “colorista” dado usualmente pela artista Amélia Couto a ele, seu marido. Explorando uma geometria figurativa, ele parece querer buscar, outra vez, o princípio das coisas; o “grau zero” da pintura brasileira, usando a expressão de Paulo Sérgio Duarte, que Raul acompanhou em pesquisas sobre casas de interior.

Mas não há nem uma pretensão minimalista, tampouco um pacto de fidelidade com o “real”. Raul Córdula trafega entre as brechas e segue seu percurso sem querer saber de muitas distinções.

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9 Raul Córdula 50 anos de arte uma antologia Fachada 5 pinturas em tela 2012 270 x 120 cm
10 Conjunto 5 pinturas em tela 2012 331 x 120 cm
11 Raul Córdula 50 anos de arte uma antologia Fachada 3 pinturas em tela 2012 300 x 120 cm
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Grafite Fotografia impressa em tela 1980 (fotografia original) / 2012 (interferência e impressão) 150 x 100 cm
13 Raul Córdula 50 anos de arte uma antologia Conjunto e Grafite Tríptico 2012 280 x 100 cm
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15 Raul Córdula 50 anos de arte uma antologia Platibanda Díptico 2012 300 x 100 cm

Paris 1991

Esta série representa uma das fases mais longas e bem-sucedidas da carreira de Raul Córdula. Foi através do estilo desenvolvido nessas aquarelas – também explorado em outras técnicas – que ele ficou mais conhecido entre galeristas e colecionadores de arte, sobretudo no Recife. Curiosamente, é um trabalho bastante “cerebral”e hermético na produção do artista, que aqui se acha em sua fase mais exotérica.

De forma recorrente, Raul faz nestes quadros um mergulho em elementos simbólicos que mesclam misticismo e racionalidade. A tetraktys, de Pitágoras, é uma das figuras mais exploradas. Nela, dez bolas (quatro de cada lado) formam um triângulo equilátero, representando uma harmonia sintetizada pelo número quatro. É considerada uma das figuras mais transcendentais do pensamento pitagórico. Para o teórico grego, os números eram muito mais do que uma maneira de mensurar as coisas da vida. Eram, antes, o fundamento do universo.

Como estudioso de Pitágoras e observador atento, Raul faz também neste trabalho suas incursões por números e geometrias, marcando com cores, pinceladas e outras referências visuais sua interpretação do mundo. Um mundo onde há diferentes movimentos, infinitas possibilidades e um limite tênue entre o abstrato e o figurativo.

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17 Raul Córdula 50 anos de arte uma antologia Paris Conjunto de 15 - aquarelas sobre papel 1999 50 x 35 cm
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19 Raul Córdula 50 anos de arte uma antologia

Araguaia

Sob o chão do Norte brasileiro, ainda mora a dúvida. Às margens do Rio Araguaia, rondam nomes de desaparecidos políticos. Onde estarão Valquíria, Chico, Mané, Duda e Osvaldão? O que dizer de Landinho, Amauri, Mundico, Joaquim e tantos outros filhos e filhas, mulheres e maridos, amigos e amigas? Quem sabe? Nesta série, feita nos últimos cinco anos, o artista retoma um capítulo duro e ainda obscuro de nossa história: a Guerrilha do Araguaia. Movimento político de resistência à ditadura militar, organizado por militantes de esquerda entre 1972 e 1975, a guerrilha tinha ideiais comunistas e buscava construir uma estratégia alternativa na zona rural brasileira, longe do clima da repressão urbana. Acabou sendo esmagada pelas Forças Armadas. O saldo foi de mortos, desaparecidos e alguns sobreviventes, que saíram presos. Até hoje, mais de 50 nomes encontram-se sumidos, arquivados. Destinos perdidos de famílias ainda à procura de seus direitos. Numa alusão ao movimento, Raul Córdula procura fazer, digamos, a sua justiça. Com as mãos de artista, derrama em tintas, desenhos, colagens e outros artifícios criativos uma versão possível para um episódio a que a história ainda deve muitas páginas.

20 ARAGUAIA Barro cozido 2004 28 x 46cm
21 Raul Córdula 50 anos de arte uma antologia ARAGUAIA Nanquim e carvão sobre papel 2012 150 x 100 cm
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23 Raul Córdula 50 anos de arte uma antologia ARAGUAIA Pintura sobre papel 2012 450 x 150 cm

Marcas da história percorrem estas pinturas como se quisessem contar tudo o que viveram até aqui. Estar diante delas é muito mais do que perceber símbolos fortes, alusivos a um período de violência militar no Brasil, que podiam, de outra maneira, também falar de hoje. Estar frente a esta série é, além de tudo isso, conhecer uma vida cujo percurso se confunde com a própria trajetória política e artística do país.

Com estas mesmas pinturas, Raul Córdula sentiu o peso da censura e o constrangimento de ver suas obras serem retiradas do hall da reitoria da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), onde estavam sendo expostas. Não foi uma determinação do regime militar, tampouco teve relação com o AI-5, que ainda não havia sido instituído, embora o ano fosse 1968. A censura aconteceu antes disso e partiu de uma ordem do Conselho Universitário da UFPB, que viu nestes quadros uma “ofensiva à moral e ao pudor público”.

O episódio na capital paraibana acabou sendo amenizado por uma intervenção de João Agripino, então governador da época, que determinou que a série voltasse a ser exposta. O Teatro Santa Rosa recebeu as telas, o que não evitou a demissão do artista da UFPB, onde trabalhava como coordenador do setor de artes plásticas do Departamento Cultural. Em seguida, o Recife e Olinda também viram a mostra. Na abertura desta última, Caetano e Gil leram o manifesto tropicalista “Inventário do feudalismo cultural nordestino”, escrito por Jormard Muniz de Brito.

Todas as obras vistas aqui carregam esse histórico – mesmo as telas repintadas, por terem sido vendidas ou perdidas. E revelam ainda os primeiros flertes da produção brasileira com a pop art norte-americana.

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Pintura
Coleção
95 x 140 cm 1968
Primavera Negra 1
sobre madeira e relevo
Otacílio Cartacho - 1968
25 Raul Córdula 50 anos de arte uma antologia
26 Primavera
Pintura
2008 180 x 150 cm
Negra 2
sobre tela (releitura)
27 Raul Córdula 50 anos de arte uma antologia
2012 80 x 160 cm
Primavera Negra 3 Pintura sobre tela (díptico, repintura)

Livro

O designer, o artista, o pintor, o meticuloso, o estudioso, o religioso... Este é um trabalho que revela as muitas facetas de Raul Córdula e, de alguma forma, desnuda um pouco da sua intimidade, escancarando, em brechas, um pouco do mistério de suas criações no momento do processo.

Não era para ser, mas acabou virando um livro de artista, um objeto de arte. Destes que dá vontade de virar as páginas repetidas vezes, com olhar de curiosidade – para não dizer de voyer. No início, era para ser só um caderno de pautas, mas aos poucos foi virando um companheiro inseparável de Raul, onde ele derrama até hoje seus esboços, seus estudos. O início foi nos anos 1980 e nunca mais deixou de ser o começo de muitos trabalhos. Vários princípios estão aqui desde então. O esboço de obras que se materializaram – como se pode ver – e o projeto de outras que talvez fiquem por aí.

De uma forma ou de outra, o livro nos ajuda a entender a arte de Raul. Nunca revelado ao público até então, surge como uma pista nova para o entendimento de um conjunto significativo. Neste contexto, aparece como peça-chave. Uma peça viva, através da qual podemos compreender um processo artístico que passa necessariamente por um labor intelectual; por um hermetismo carregado de simbologia. A geometria, a espiritualidade, a história e o grafismo são alguns dos pontos recorrentes. Não há intenção didática, mas o percurso por essas páginas amareladas pode nos lançar muitas luzes.

Livro de contabilidade com desenhos e colagens 1980 a 2012

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A Gaivota Cega

Uma obra para ser vista com as mãos. Eis o propósito deste trabalho: ser alcançado através do tato, uma forma de acesso menos imperativa no território visual da arte. O tocar é aqui o instrumento, o mecanismo por meio do qual o artista oferece sua sensibilidade ao mundo e, em especial, aos cegos – a quem dedica esta série. O trabalho parte do conto A gaivota cega, escrito pelo próprio Raul Córdula. Na mostra, as palavras do texto são apresentadas em braile, para serem lidas com a pele... O enredo gira em torno de um suposto encontro entre o artista e Aristides, um homem cuja deficiência visual chama sua atenção de um jeito inesperado, e isso acabado aproximando os dois para uma conversa sobre pintura. Na metáfora explorada por Raul neste conto, o não enxergar é relativo. Neste caso, é uma maneira de transcender o sentido da arte; das cores, das formas. Enquanto o artista fala de pintura e de uma de suas criações, o seu novo amigo o surpreende com interpretações quase sinestésicas: “... o vermelho é como o grito do pavão!”.

Além do texto, ele expõe seis placas de acrílico, com desenhos em relevo para serem tateados pelo público. São contornos retirados de trabalhos antigos, pelos quais ele tem apego. Se na “conversa” com Aristides a palavra dele é como “uma luz”, neste trabalho propostas alternativas de fruição nos levam a outras formas de visão.

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31 Raul Córdula 50 anos de arte uma antologia
2012
Placa de acrílico com desenho gravado – 6 peças
Placa de acrílico
desenho
– 6 peças 2012
com
gravado

O País da Saudade

O País da Saudade é uma série de arte postal e outra expressão do sangue político que corre nas veias de Raul Córdula. Bem no espírito coletivo que marca sua personalidade e a da sua geração, o trabalho vai na trilha dos que buscaram, por meio de circuitos alternativos, romper as fronteiras institucionais da arte no Brasil. Através de envios postais, Raul estimulou amigos, artistas e outras pessoas com as quais tinha identificação a colaborar com a série.

O ano era 1982 e a troca consistia no seguinte: ele mandava um papel em branco, apenas com o mote “O país da saudade”. No envio também ia um recado carimbado – “Por favor, interfira e me devolva”. Vários colaboradores enviaram suas respostas. As interferências visuais e verbais, como se pode ver aqui, foram tão sintomáticas quanto o momento pelo qual passava nosso país de então – em vias de reabertura e muito longe ainda de trazer seus exilados de volta para casa.

O inquieto Jomard Muniz de Brito foi o artista que mais contribuiu com a série. Em cada uma de suas plaquetas, é possível sentir o espírito libertário e utópico que marcou a arte postal brasileira, tanto política quanto esteticamente.

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35 Raul Córdula 50 anos de arte uma antologia
1982
O País da Saudade 66 folhas de papel ofício com interferências gráficas
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Made in PB

- feito em chumbo

Neste trabalho, feito nos últimos anos, PB é uma sigla tomada em seu duplo sentido: remete tanto à Paraíba quanto ao elemento chumbo. A junção é uma metáfora da historiografia política do estado de origem de Raul Córdula, que é paraibano, e funde-se numa pintura bastante significativa – embora haja outras obras na série.

Sob uma perspectiva crítica, o artista procura rever, através deste trabalho, o passado de sua terra – e também o seu. Apropriando-se da imagem da atual bandeira paraibana, ele revisita os acontecimentos por trás da própria criação do símbolo rubro-negro, onde se lê originalmente “NEGO”. No lado preto da bandeira, ele colocou chumbo (literalmente) e no lado vermelho, suprimiu o “n”, deixando transparecer a palavra “EGO”, que, na sua versão, surge de forma velada, como se tivesse sido deixada sobre um muro.

Sabe-se que esta não foi sempre bandeira da Paraíba. A mudança aconteceu depois do assassinato de João Pessoa, então presidente do estado (o equivalente a governador), num episódio tido como o estopim da chamada Revolução de 1930, que inaugurou a Era Vargas no Brasil.

Conta a história que cerca de um ano antes, João Pessoa havia negado apoio ao candidato à presidência Júlio Prestes, mas as insatisfações em relação a ele nasceram antes, dentro da própria Paraíba. Os perrepistas eram seus principais opositores. O avô de Raul fazia parte deste grupo. E o próprio artista se diz até hoje um perrepista, embora o Partido Republicano Paulista tenha sido extinto. Os tiros no quadro representam a morte do político que virou nome de cidade.

Made in PB também é um rock de Zé Ramalho, amigo do artista.

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Tinta
2005 100 x 80 cm
Made in PB – Feito em Chumbo
acrílica em tela
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Bandeira do EGO

Chumbo e tela pintada – Díptico

2005

230 x 100 cm (conjunto)

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João Pessoa 1965

Nesta série de desenhos aquarelados, feitos também com outros materiais – como carimbos –, vemos um Raul Córdula mais solto, espontâneo, quase primitivo. Eis uma relíquia de seu acervo, ainda pouco explorada. Vem bem do início de sua trajetória, quando o olhar do artista se curvava, com frequência, aos desenhos ou garatujas de criança; aos dizeres e grafismos largados nos muros, nas calçadas, nas árvores; aos rabiscos feitos ao telefone por qualquer pessoa.

O conjunto dessas figuras orgânicas remete à busca de Raul pelo espontâneo na arte e talvez até pelo “puro”. Não no sentido formal dado à procura por uma “estética pura”, levada a cabo por muitos nomes de sua geração. Mas no sentido intuitivo, de quem busca o princípio do fazer artístico. O processo, contudo, não é inconsciente. Basta observar, por exemplo, a subversão que ele faz da imagem dos três macacos do “não vejo”, “não falo”, “não ouço”, colocandoos para ver, falar e ouvir.

São sutilezas de quem já afirmou um dia que, de forma conciente, “o grotesco como engajamento, sem querer ser sartreano, representará o ‘absurdo do cotidiano’”.

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43 Raul Córdula 50 anos de arte uma antologia Desenhos 1965 7 desenhos em Aquarela e nanquim em papel 1965
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47 Raul Córdula 50 anos de arte uma antologia

Livro composto com as fontes:

Dagny Pro

sans serif de contrate regular, desenhada por Göran

Söderström e Örjan Nordling em 2009.

IvyMode

sans serif de alto contrate, desenhada por Jan Maack em 2018.

curadoria

Olívia Mindêlo e Raul Córdula

projeto gráfico

Pedro Alb Xavier

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