Primeiras leituras: arte e cultura na primeira infância

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primeiras leituras

arte e cultura na primeira infância

Carolina P. Fedatto, Fabíola Farias e Juliana Daher (Orgs.)

primeiras leituras arte e cultura na primeira infância

Carolina P. Fedatto, Fabíola Farias e Juliana Daher (Orgs.)

O projeto PRIMEIRAS LEITURAS: OUVIR, CONTAR E BRINCAR COM HISTÓRIAS NA PRIMEIRA INFÂNCIA foi realizado com os recursos da Lei Municipal de Incentivo à Cultura de Belo Horizonte.

Coordenação geral

Juliana Daher

Coordenação editorial

Carolina P. Fedatto, Fabíola Farias e Juliana Daher

Revisão

Carolina P. Fedatto Capa Anna Cunha

Projeto gráfico Samara Coutinho

Consultoria para acessibilidade Cleide Fernandes e Thais Oliveira P953 Primeiras leituras : arte e cultura na primeira infância / Carolina P. Fedatto ; Fabíola Farias e Juliana Daher (Orgs).Belo Horizonte : Ed. das Organizadoras, 2022. 302 p. : il. p&b. ISBN 978-65-00-53361-3

Catalogação na Publicação (CIP)

1. Leitura (Primeira infância) 2. Artes e crianças 3. Cultura –Crianças I. Fedatto, Carolina P. II. Farias, Fabíola III. Daher, Juliana

CDD: 370.111

Bibliotecária responsável: Cleide A. Fernandes CRB6/2334

Carolina P. Fedatto, Fabíola Farias e Juliana Daher (Orgs.)

primeiras leituras arte e cultura na primeira infância Belo Horizonte 2022

SUMÁRIO

De bons encontros, nasce um livro Carolina P. Fedatto, Fabíola Farias e Juliana Daher 7

Leitura, arte e cultura na primeira infância: distintas vozes de uma aldeia inteira Mônica Correia Baptista 9

Primeiras leituras: reflexões sobre o encontro com o humano pela palavra Juliana Daher 17

Chão das infâncias Gabriela Romeu 33

Notas sobre a edição de livros impossíveis Jéssica M. Andrade Tolentino 51

Por que o livro para bebês e crianças pequenas? Carolina P. Fedatto 69

Bibliotecas para a infância: um projeto de fantasia Fabíola Farias 87

O direito das pessoas com deficiência à leitura e aos bens culturais Carla Mauch 99

As crianças com deficiência visual e seu direito à leitura Cleide Fernandes 113

Os quartos de crianças como – um dos – espaços de leitura Cibele Carvalho 129

A caixa de bugigangas e outras histórias da arte na primeira infância Júlia Félix Azeredo 147

O universo sonoro musical da criança Isaac Luís de Souza Santos 161

Da Menina no barco às Meninas no banho: desaprendendo o teatro para ensinar o teatro Adélia Carvalho 179

O que é criar um livro para bebês? Rosinha 195

A edição de livros para bebês: coleção Literatura de Colo Daniela Padilha 205

A escuta como base da mediação de leitura literária na primeira infância Pâmela Bastos Machado 215

Leitura universal, interpretações singulares: relato de experiência de uma mãe com uma filha com deficiência Mariana Rosa 225

Práticas antirracistas de leitura literária na Educação Infantil Cristiane Tavares e Luciana Gomes 231

A tela como um holofote: reflexões sobre a leitura literária com crianças na pandemia Amanda Ribeiro Barbosa 253

Ler juntos: sobre histórias, casulos e metamorfoses Roberta Colen 265

A parte da gente que serve de ponte Mário Alves 277

Cuidar das crianças é cuidar de toda a sociedade Entrevista com Macaé Evaristo 285

Sobre as autoras 297

De bons encontros, nasce

um livro

Em meados de 2020, quando todo o mundo se dobrava à pandemia do novo coronavírus, decidimos publicar um livro. Naquele momento, tínhamos apenas o desejo de falar sobre arte e cultura na primeira infância e algumas pessoas que nos vieram à mente junto com a ideia, como se estivessem (estavam!) intrinsecamente ligadas ao que juntas então pensávamos. Em nossos encontros on-line, o desejo foi se tornando projeto e ganhando novos contornos. Em tempos de incertezas, medo, angústia e isolamento, conseguimos começar algo bom, ligado à vida, a uma pequena esperança de dias melhores. E, principalmente, renovamos nosso compromisso de celebração da infância como uma experiência plena de descobertas e de possibilidades de conhecimento do mundo.

Juliana Daher 9

Esse livro, como tantas coisas na vida, nasce de bons encontros. Fabíola com Juliana com Carolina. E delas com Mônica, Gabriela, Jéssica, Carla, Cibele, Cleide, Júlia, Isaac, Adélia, Rosinha, Daniela, Pâmela, Mariana, Cristiane, Amanda, Roberta, Mário, Macaé – que convidamos a escrever reflexões e experiências de mediação e criação artística e literária com e para bebês e crianças pequenas. E ainda com Anna e Samara – que deram forma, beleza, visibilidade e acessibilidade a todas essas trocas, conversas e escritas.

Todas e todos nós nos colocamos o começo da vida como uma questão simbólica que merece investigação e produções interessadas e comprometidas. Seja em bibliotecas, escolas, casas, livrarias, editoras, casas de acolhimento institucional, universidades ou ateliês, a leitura do mundo, de si, do outro e das artes na primeira infância é o tema principal dos artigos e experiências aqui reunidos. O livro representa o desejo de que esses encontros continuem na esfera social como espaços de liberdade e cuidado que considerem as especificidades do ser humano no início da vida. Para isso, a coletânea de textos a seguir conta com uma diversidade de enfoques e olhares para as primeiras leituras, suas implicações e consequências subjetivas, sócio-históricas e políticas.

Esperamos que ele circule em muitos espaços e que alcance educadoras, bibliotecárias, agentes culturais e comunitárias, pais, mães, avós, cuidadoras de bebês e crianças pequenas… Enfim, que seja, também para quem lê, um encontro potente como o que nos acena sua origem.

Agradecemos à Lei Municipal de Incentivo à Cultura de Belo Horizonte, que viabilizou a publicação e distribuição gratuita do livro, reiterando sua relevância na consolidação da política cultural na cidade.

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Leitura, arte e cultura

na  primeira infância:  distintas vozes de uma aldeia inteira

Mônica Correia Baptista

Começo esta apresentação chamando atenção para os termos que compõem o título deste livro: primeiras, leituras, arte, cultura, infân cia. Temos já no título um convite: unir leituras à arte e às expressões culturais que se iniciam no começo da vida. No começo da vida, iniciam-se também as leituras do mundo e, mais tarde, da palavra, como nos ensinou Paulo Freire (1985), para quem uma compreensão crítica do ato de ler não se esgota na descodificação de palavras escritas, mas “se antecipa e se alonga na inteligência do mundo” (p. 11). Antes de ler a palavra, lemos o mundo. E nos apropriamos da leitura de palavras para que possa mos dar continuidade à leitura do mundo.

Os que acabam de chegar iniciam imediatamente sua trajetó ria como leitores. Não são simplesmente os que não falam, mas, nas

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palavras de Solange Jobim e Souza (2016), os que lutam para criar a sua própria palavra. E nessa luta, vão instituindo-se a si mesmos e ao mundo, transformando gestos, sons e silêncios em discurso humano. Na primeira infância aprende-se, pois, a simbolizar, isto é, aprende-se a representar, condição essencial para a experiência de pensamento. Primeiras leituras são, portanto, primeiras tentativas de significar o mundo. E dessas leituras, nascem os primeiros textos. O olhar, o gesto ou o balbucio, que respondem à voz ou ao aceno da mãe ou de outras pessoas responsáveis pelos cuidados basilares, são expressões da autoria de um bebê, que começa a manifestar seus desejos, e revelam seu esforço em se fazer entender. Diante da nossa responsabilidade de acolher as crianças e apresentar a elas esse emaranhado de símbolos, de signos, de índi ces, de ícones, devemos nos perguntar como garantir que essa nova existência, que traz consigo a inovação, a novidade, a recriação, seja impelida a gerar também uma nova história e, assim, se constitua em recomeços para a humanidade? (ARENDT, 1989)

É na busca por responder a essa pergunta que encontramos o elo entre os dois outros vocábulos que compõem o título desta obra: arte e cultura. E mais, a arte e a cultura como experiências vividas em um ciclo da vida que vai desde a chegada ao mundo até os seis anos de idade. Cantar, brincar, dançar, mover-se, ouvir histórias, imitar, dramatizar são formas de pensar e de agir sobre o mundo. Voltemos à pergunta: como apresentar às crianças o mundo sem lhes retirar o desejo, a alegria, o entusiasmo de quem acaba de chegar? Na história do pequeno Antônio, Bartolomeu Campos de Queirós (1995, p. 23) oferece pistas:

Era silencioso o amor. Podia-se adivinhá-lo no cuidado da mãe enxaguando as roupas nas águas de anil. Era silencioso, mas via -se o amor entre os seus dedos cortando a couve, desfolhando, cristalizando figos, bordando flores de caneca sobre o arroz -doce nas tigelas. Lia-se o amor no corpo forte do pai, no seu prazer sobre o trabalho, em sua mansidão para com os longos domingos. Era silencioso, mas escutava-se o amor murmurando – noite adentro – no quarto do casal. (...) Experimentava-se o

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amor quando, assentados no calor da cozinha – pai e mãe – fala vam distâncias, dos avós, das origens, dos namoros, dos casa mentos. E, quando o sono chegava, para cada menino em cada tempo, era o amor que carregava cada filho nos braços para a cama, ajeitando o cobertor por sob o queixo.

Penso ser esse o nosso dever como adultos: acolher as crian ças, ampará-las, apresentando a elas o belo, o extraordinário, o pro digioso, o maravilhamento de estarmos vivos, de sermos humanos e de podermos continuar a existir nos outros.

Somente a arte e a cultura são capazes desse feito. E entre as manifestações artísticas, a literatura merece destaque quando falamos em infâncias. A ficção, como argumenta Jacqueline Held (1980), é semelhante a um brinquedo e responde a uma necessidade profunda da criança, a de não se contentar com sua própria vida. No seu consagrado livro, O imaginário no poder, a autora nos indaga se não seria papel da ficção abrir todas as portas à criança, permitin do-lhe imaginar outras possibilidades de ser “para que possa, finalmente, escolher-se?” (p. 17).

O brincar, a imitação, a repetição, a imaginação, as interações, a busca pelo belo constituem, como propõe Gouvêa (2011), a “gramática da infância” e são também elementos constitutivos da literatura infantil. Se o texto que se destina às infâncias brinca com os sentidos, com os sons, com os ritmos das palavras, também a criança joga com o caráter polissêmico e divertido da linguagem. Se a imaginação, a imitação, a repetição, o apreço pelo processo e pelo encantamento mais do que pelo produto final são características presentes na maneira como a criança experimenta o mundo, tam bém são atributos dos contos de fada, das histórias cumulativas, dos contos circulares, dos poemas, das parlendas.

Acontece que, tristemente, quem está chegando ao nosso planeta, nestes combalidos e conturbados tempos, encontra adul tos desconfiados em relação à ficção, temerosos e ávidos por fechar portas, por controlar a imaginação e a criatividade. Uma “arte didá tica” ou “moralizadora” (se é que a arte pode ser didática e mora

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lizadora) emerge como resposta às demandas de uma sociedade adultocêntrica, ávida por controlar e subjugar ao invés de propug nar a liberdade da imaginação.

Não por coincidência, é nos momentos em que triunfa, nas relações sociais, o conservadorismo que mais se aguça a sanha pelo controle da infância e do seu acesso aos bens culturais. Ao invés de conferir à palavra o máximo de potência imaginativa, deposita-se nela o sentido mais literal possível, retira-se a metáfora, o humor, a ambivalência, a abertura de sentidos. Quando justamente ao con trário, a literatura, como arte da palavra, deveria ser para todos, e em especial para as crianças, a porta para mundos insólitos.

Mas a boa notícia é que há resistência. Este livro é um exem plo de que a ciência se une às artes para pensar e incidir sobre a vida, unindo ciência, arte e vida para construir possibilidades e potências na educação das infâncias. Neste livro, Primeiras leituras: arte e cul tura na primeira infância, vocês encontrarão uma profusão de vozes, oriundas dos mais distintos lugares. Vozes de artistas da música, do teatro, das artes visuais, da literatura. Vozes de estudiosos da linguagem, da educação, da biblioteconomia, da literatura, da histo riografia. Vozes de jornalistas e de pessoas ligadas à edição de bons livros para crianças.

Se é verdade, como nos adverte Jacqueline Held (1980, p. 234), que “toda descoberta de beleza nos torna exigentes e, pois, mais críticos diante do mundo”, nos unimos a essas vozes e conclamamos, com elas, uma literatura fantástica e poética, fonte de maravilhamento, de reflexão e de espírito crítico, capaz de quebrar estereótipos, de desbloquear e fertilizar o imaginário e, assim, cons truir a criança que amanhã saberá inventar o homem.

Conclamamos o imaginário no poder!

Belo Horizonte, 20 de setembro de 2022.

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Referências

ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Uni versitária, 1989.

FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler em três artigos que se com pletam. São Paulo: Cortez, 1985.

GOUVEA, Maria Cristina Soares. Infantia: entre a anterioridade e a alteridade. Educação e Realidade. Porto Alegre: UFRGS. V.36, nº 2, maio/agosto, 2011. p. 547-567.

HELD, Jacqueline. O imaginário no poder. As crianças e a literatura fantástica. São Paulo: Summus, 1980.

QUEIRÓS, Bartolomeu Campos de. Indez. Belo Horizonte: Miguilim, 1995. SOUZA, Solange Jobim e. Infância e linguagem. In: BRASIL. Ministé rio da Educação. Ser criança na Educação Infantil: infância e linguagem. Caderno 2. Coleção Leitura e Escrita na Educação Infantil. Bra sília: MEC/SEB, 2016. p. 11-44.

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Primeiras leituras: reflexões sobre o encontro com o humano pela palavra

Juliana Daher

No descomeço era o verbo. Só depois é que veio o delírio do verbo.

O delírio do verbo estava no começo, lá onde a criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos. A criança não sabe que o verbo escutar não funciona para cor, mas para som. Então se a criança muda a função de um verbo, ele delira E pois. Em poesia que é voz de poeta, que é a voz de fazer nascimentos –

O verbo tem que pegar delírio. Manoel de Barros

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Saberes Inaugurais

A chegada de um ser humano neste mundo é antecedida, muitas vezes, por expectativas, histórias e discursos que tornam o bebê imaginário presente no dia a dia de muitas famílias. Um bebê real e um bebê imaginário, portanto, são gestados durante a gravidez. Concomitantemente o bebê, por sua vez, passa por vivên cias intrauterinas permeadas por estímulos sensório-motores que apenas ali, naquele ambiente, poderá experimentar: os sons dos seus próprios batimentos cardíacos e os da mãe, das vísceras em constante movimento, dos gases e líquidos na cavidade uterina, bem como a pressão que eles exercem no corpo, os balanceios, o crescimento, que cada vez torna-se mais contido pela limitação do espaço, e muitos outros estímulos irreproduzíveis no ambiente externo. Um corpo que habita outro corpo e que a partir do que ali viveu constitui saberes que, observados amiúde, serão legitimados como tal e apontarão algumas pistas sobre os cuidados com o bebê recém-chegado ao mundo.

Não por acaso, o colo e a contenção que ele proporciona ao corpo do recém-nascido, bem como o balanceio, constituem ações quase instintivas do adulto nos primeiros cuidados com o bebê. O colo, de certo modo, reproduz o ambiente restrito do útero, trazendo para o bebê elementos para a autorregulação a partir de uma vivência corporal que retoma referenciais de espacialidade já conhecidos por ele.

Este é apenas um exemplo dos muitos saberes iniciais que os bebês apresentam em seus tempos iniciais de vida, conforme afirma Parlato-Oliveira (2019). A autora infere, ainda, que os bebês tecem suas impressões sobre o mundo a partir de uma capacidade multimodal de interpretação e que tempo e espaço são elementos fundamentais na construção dos saberes dos bebês. Ou seja, esta mos diante de sujeitos que interagem de muitos modos nas relações que estabelecem com o outro e com o mundo e que expressam seus saberes também de variadas maneiras.

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A LINGUAGEM QUE HUMANIZA

O bebê recém-chegado é humanizado pela linguagem a ele direcionada. É imerso em um verdadeiro banho de palavras, sons e entoações que muito dizem, ainda que ele ainda não compreenda o sentido do que lhe é dito. A mãe ou outra pessoa adulta que dele cuida supõe ali um interlocutor, visto que passa a estabelecer diálo gos com ele, a nomear suas expressões corporais, faciais e sonoras.

E o mais interessante é que, ainda segundo Parlato-Oliveira (2019), pesquisas demonstram que, de fato, o bebê torna-se em pouco tempo um interlocutor, pois passa a interagir, respondendo não só por imitação, mas também propondo trocas de acordo com sua intencionalidade, provocando no outro novas respostas.

Quando analisamos registros de diálogos entre bebês e seus cuidadores, ficamos surpresos com o ritmo das trocas, quando um finaliza a frase e o outro inicia imediatamente, sem pausa, ou seja, o bebê não espera o intervalo, o silêncio, para começar a sua participação. Assim como os adultos, ele percebe pela ento nação que a frase do outro está terminando e se prepara para começar a sua. (PARLATO-OLIVEIRA, 2019, p. 68)

Nessa mesma direção, Cadermatori (2015) aponta para narrativas existentes nos primeiros anos de vida, que precedem a narração verbal e perpassam o corpo por meio de gestos, afetos e emoções. Para se ler tais narrativas, faz-se necessário um olhar minucioso para esse corpo comunicante.

Estamos, portanto, diante de sujeitos que não só são cons tituídos pela linguagem, mas que se constituem pela linguagem de forma ativa, atuante e transformadora; que estabelecem interações comunicativas não apenas pela modalidade sonora; que estão com todos os sentidos a trabalho para interpretar o mundo e estabelecer suas primeiras impressões, suas primeiras leituras sobre o entorno, sobre o outro e sobre si mesmos.

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Cuidar do surgimento das palavras, da sua afinação com a experi ência vivida, de seu vigor e sentido; cuidar do ouvir, do balbuciar, do murmurar, do falar, do cantar, do contar, do silenciar; cuidar, enfim, da experiência inicial com a palavra é condição para o desenvolvimento pleno deste ser de linguagem que é o homem.

Em inúmeras culturas, os bebês recém-chegados ao mundo vivenciam uma experiência estética diferenciada com a linguagem por meio de narrativas que lhes são oferecidas em de cantos, decla mações e brincadeiras. Esse repertório primeiro faz parte de um arcabouço cultural que constitui a base das primeiras vivências poé ticas do ser humano, além de ser elemento de inscrição na cultura, no sentido identitário e de pertencimento a um grupo. Machado (2017) apresenta em seu livro Canção de Ninar Brasi leira: aproximações apontamentos sobre a universalidade da arte de ninar como expressão de diferentes grupos culturais, caracterizando-a como uma manifestação cultural iniciática para os bebês. A autora afirma que “(...) a canção de ninar poderá ser reconhecida também como um dos primeiros objetos culturais, musical e literário, a que o ser humano é exposto” (MACHADO, 2017, p. 23). Ela identifica ainda ele mentos simbólicos e temáticos comumente presentes nos acalantos e canções de ninar que são marcados não só pelos votos de bom sono e sonhos, mas também pelo medo, pela opressão, pela escravização das mulheres e seus impactos objetivos e subjetivos no cuidado com as crianças. Ou seja, estamos diante de um repertório que muitas vezes apresenta narrativas obscuras, contudo apresentadas em uma estética repleta de delicadeza. É um modo muito bonito de apresentar as belezas e as durezas da vida ao recém-chegado, situações que estão postas a todo ser humano em qualquer tempo de vida. Como afirma Yolanda Reyes, a materialidade da voz que entoa essas dramaticidades provoca ressonâncias afetivas “(...) que ligam as palavras com a vida para nos prover um substrato de nutrição emocional” (REYES, 2010, p. 35).

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PRIMEIROS

Obviamente bebês tão pequeninos não compreenderão o significado de tais narrativas cantadas. Contudo, conforme López (2019, p. 19), “(...) o sentido que precede à significação se lê no rosto (...)”. Tal afirmativa vai ao encontro ao que Reyes (2010) diz sobre os primeiros textos do ser humano serem constituídos pela voz e pelo rosto humano, visto que, a partir da interação com o outro, o bebê aprenderá sobre os elementos verbais e não verbais que cons tituem narrativas e diálogos que serão interpretados por eles, possi bilitando inúmeras leituras.

Tão importantes quanto as canções de ninar são as brinca deiras tradicionais, as rimas, parlendas e brincos da cultura tradicio nal da infância. Sobre eles, Lydia Hortélio diz:

Os brinquedos cantados, os brinquedos ritmados, ou seja, a MÚSICA TRADICIONAL DA INFÂNCIA, a MÚSICA DA CULTURA INFANTIL, integra fatos culturais que estão na base da cultura de um povo, portanto, no berço da CULTURA BRASILEIRA, carre gando em seu cerne os arquétipos da língua, da música, o movi mento próprio de nossa alma ancestral, sua maneira de ser parti cular, sua graça e poder diáfano. (HORTÉLIO, 2014, p. 274)

Estamos diante de um repertório que traz tanto a marca identitária de um povo e de suas interfaces com outras culturas, como também de narrativas comumente passadas de geração em geração aos bebês recém-chegados naquele grupo sociocultural. Trata-se de um legado cultural com imensa carga afetiva, os primeiros livros sem páginas, como diz Reyes (2010), que são escritos na pele, no ritmo do jogo, no movimento, na troca de olhares.

Outra característica interessante desse repertório são as narratividades das crianças, uma autoria perceptível pela presença de corruptelas em várias letras dessas brincadeiras quando cantadas e brincadas.

Silva (2021) traz a dimensão do brinquedo-palavra tão pre sente na cultura da infância brasileira. Tais brincadeiras são mar cadas pelo domínio do uso da palavra principalmente a partir de desafios rítmicos. Quadrinhas, parlendas, histórias, adivinhas, trava

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-línguas constituem alguns dos exemplos de gêneros textuais desse repertório. A palavra ganha protagonismo na experiência lúdica e seu uso (e subversão no uso) torna-se a motivação da criança na busca pela palavra. É possível perceber o quanto as primeiras relações do bebê e da criança bem pequena com a linguagem são permeadas pela intera ção com o outro, pela corporeidade e pela qualidade rítmica e meló dica que possibilitam experiências estéticas diferenciadas que consti tuem os primeiros contatos dos pequenos com a linguagem poética. Contudo, López (2019, p. 19) alerta para a necessidade de atentarmos para a qualidade do uso da linguagem com os bebês e crianças na sociedade contemporânea, que cada vez mais prescinde das interações humanas presenciais, em um tempo que “(...) separa a linguagem do jogo, da afetividade, da empatia com o outro”. A autora afirma ainda que é possível perceber certo esvaziamento melódico na linguagem, que cada vez mais tem sido usada em seu sentido apenas informativo, empobrecendo a experiência dos bebês e das crianças com a linguagem e com a vivência poética. E essa aprendizagem poética, conforme afirma Reyes (2014), é fun damental para que a criança transcenda a realidade, a literalidade e vivencie uma comunicação não estritamente utilitária e sim criativa, na qual as palavras adquirem outros sentidos e significações.

TRIÂNGULO AMOROSO E NOVOS TRAJETOS LITERÁRIOS

Os percursos linguageiros dos bebês e das crianças peque nas nos tempos iniciais da vida passam pelo encontro com a palavra vinda do outro que o nomeia, que o supõe um interlocutor e dire ciona a ele discursos e intenções, provocando, como dito anterior mente, não só a imitação, como também estimulando respostas a partir da vontade dos bebês.

Estamos diante de sujeitos bastante ativos em seus processos de interação e que, de forma multimodal, recebem e devolvem ao mundo exterior suas percepções e interpretações, consolidando saberes pró prios e sendo protagonistas em seu processo de constituição psíquica.

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Um aspecto relevante nesses percursos com a linguagem é a dimensão afetiva, que qualifica a matéria-prima da palavra ofer tada nos sentidos, significados e lugares culturais que ela ocupa. Não estamos diante de um evento qualquer. Trata-se de um investi mento potente que o adulto faz nesta relação pela linguagem e pelo afeto, na qual o bebê passa a ser singularizado, torna-se sujeito.

As canções de ninar, cantigas e brincadeiras tradicionais da cultura da infância ganham força nos primeiros tempos dessa rela ção e a marca da multimodalidade é presente no exercício desse repertório, que evoca não apenas a voz em si, mas a qualidade do uso da voz na entoação, na melodia, nos aspectos referentes ao movimento e ao ritmo, que caracterizam uma forma singular de se vivenciar a linguagem. A palavra perpassa o corpo por meio dos ges tos, das experimentações sonoras, das pequenas subversões feitas no uso da linguagem e torna-se um importante brinquedo dos tem pos inaugurais da vida.

Esse percurso inicial com a palavra faz parte do que Reyes (2014) identifica como o que é constitutivo do percurso leitor na primeira infância. Ela nomeia esse primeiro momento do processo leitor com a frase “Yo no leo; alguien me lee, me decifra y escribe en mi”.¹ Esse momento consiste no período logo após o nascimento do bebê, que entra no universo das palavras, dos símbolos e dos significados, inicialmente indecifrável e ininteligível e que “(…) começa a fazer sentido na medida em que aparece alguém que o lê, que o decifra e que funda nele os primeiros significados.”² (REYES, 2014, p. 16, tradução nossa). O choro e toda expressão do bebê humano, assim como acontece com outros animais, são lidos pela mãe, que a eles vai atribuindo significados.

De modo que nos tornamos participantes da comunicação humana e entramos no mundo do simbólico, porque existe

1 “Eu não leio; alguém me lê, me decifra e escreve em mim” (tradução nossa).

2 No original: “(…) empieza a cobrar sentido sólo en la medida en que aparece alguien que lo lee, que lo decifra y que funda en él los primeros significados.”

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alguém que nos lê e escreve em nós nossos primeiros textos, os primeiros significados. Nessa primeira etapa da vida, temos contato com muitos textos e muitas leituras, e é importante esclarecer o sentido amplo das palavras, pois muitos “textos de leitura” da primeira infância transcendem o alfabético; ou seja, são escritos além dos livros.³ (REYES, 2014, p. 17, tradução nossa)

Um segundo acontecimento muito importante nesse per curso leitor dos bebês e crianças pequenas é o encontro com o livro. Este é um momento fundamental no desenvolvimento da trajetória leitora na primeira infância, quando o pequeno leitor acede a uma nova ordem simbólica em que o objeto livro apresenta algo que se parece com a realidade, mas não é a realidade, ou seja, uma convenção cultural encontrada no objeto cultural livro (REYES, 2014. p. 19).

Para viabilizar este encontro entre livros e bebês e crianças pequenas, é de suma importância a disponibilidade do adulto, que, pela mediação, oferece ao pequeno leitor a vivência da experiência leitora de forma enriquecida. Adulto, criança e livro constituem os vértices do que Reyes (2010) conceitua como “triângulo amoroso”. Nesse triângulo, a criança e o adulto olham conjuntamente para um terceiro elemento, o livro, sendo que o adulto tem função primordial: viabiliza o encontro da criança com o livro e deve garanti-lo de forma a ampliar as possibilidades de a criança vivenciar esta experiência:

O adulto é por excelência o texto da criança, porque empresta voz, rosto e abrigo para que ela possa se ler. Basta olhar para os movimentos dos leitores iniciantes: seus olhos oscilam, con tinuamente, do livro para o rosto do adulto: a voz, a cara e o corpo do adulto são o cenário onde a história que a criança escuta, olha e sente, projeta-se e se atualiza. E enquanto as

3 No original: “ De manera que nos hacemos partícipes de la comunicación humana y entramos al mundo de lo simbólico, porque hay alguien que nos lee y nos escribe en nosotros los primeros textos, las primeras claves de significación. En esa primera atapa de la vida, tenemos contacto com muchos textos y muchas lecturas, y es importante aclarar el sentido amplio de estos vocablos, pues muchos “textos de lectura” de la primera infancia transcienden lo alfabético; es decir, están “escritos” más allá de los libros.”

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palavras fluem, a criança sente a vida fluir nessas páginas, nessa voz que conta. (REYES, 2017, p. 49)

Trata-se, portanto, de uma experiência de cunho afetivo e corporal. A vivência literária acontece, então, em um estado de confiança que se estabelece no momento da partilha da leitura. E o aspecto mais interessante desse encontro é sua dimensão genui namente humana, o encontro entre humanidades que se passa no campo objetivo e no território simbólico que está posto na leitura literária. Como afirma Reyes (2017), o trabalho do mediador de leitura vai além da leitura do livro, passa pela leitura dos leitores; neste caso, os pequenos leitores recém-chegados ao mundo e que carregam suas impressões, emoções, hipóteses e expressam suas narra tividades em um constante exercício de autoria.

Na leitura de um livro literário, a criança é introduzida em uma “outra ordem simbólica”. Ela é convidada pelo adulto que lhe oferece a possibilidade de manusear o objeto livro e lhe apresenta novas formas de linguagem: as ilustrações, as letras, os paratextos. “Certamente esse conjunto de manchas e traços não podia signifi car nada para o bebê sem a voz adulta que oficia o trânsito para a outra ordem simbólica” (REYES, 2010, p. 47).

Dessa forma, estabelece-se um jogo no qual algumas definições são postas: que as imagens se encadeiam formando histó rias, noções temporais (antes e depois) e espaciais (frente e atrás, da esquerda para a direita, movimentação da página conforme o modo de leitura nas culturas ocidentais). O jogo não se dá apenas na materialidade que o objeto livro proporciona pelo manuseio e pela exploração: “Todas as características do jogo são perfeitamente aplicáveis à produção e à recepção do texto literário, para as quais se requer um estado de liberdade coletiva e pessoal que adquire as formas do desejo e do empenho” (PEREIRA, 2007, p. 32).

Naturalmente o jogo torna-se mais elaborado e o tempo e o espaço concretos passam a ser convencionados. Eis o jogo simbó lico. Trata-se, contudo, de um processo e as experiências de leitura mais primordiais servem de alicerce para as futuras construções fei-

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tas no “triângulo amoroso”, que inaugura uma concepção de leitura mediada permeada pela experiência afetiva. Portanto, nessa perspectiva, a palavra, seja escrita ou falada, não deve ser compreendida estritamente enquanto signo linguís tico. À infância é reconhecido o protagonismo em todo o processo de construção de habilidades linguísticas, ressaltando a importância da mediação durante esse processo.

PELO DIREITO À PALAVRA POÉTICA NA PRIMEIRA INFÂNCIA

O direito à palavra poética é tão básico quanto o direito à alimen tação, que nos faz humanos. E isso é uma responsabilidade adulta, que aqueles que trabalham neste campo devem ajudar a susten tar. Por isso, produzir uma comunidade ao redor de bebês e crianças pequenas, por meio de livros, músicas, histórias, jogos, é uma forma de cuidado afetivo, cultural e poético. Quem cuida do que cria, protege a humanidade.

As tessituras feitas neste texto se propuseram a trazer para o cerne das reflexões sobre as primeiras leituras o encontro dos bebês e das crianças pequenas com a linguagem, especialmente pela palavra poética, permeada de experiências estéticas e afetivas.

Em tempos de tanta compartimentalização das experiên cias humanas, do pensar e do sentir, do intelectual e do artístico, do funcional e da fruição, os bebês e as crianças têm sofrido os impac tos na oferta da palavra poética em suas diferentes manifestações.

As temporalidades, atravessadas pela lógica capitalista de estrutura do trabalho marcado pela produtividade, afetam adultos que vivem imersos em jornadas exaustivas e muito demarca das pelas questões de gênero (é comprovada a sobrecarga das mulheres no que tange às tarefas de cuidados domésticos e com os filhos, caracterizando uma segunda ou até uma terceira jornada de trabalho). Afetam também as crianças, que desde muito cedo experimentam, nos tempos escolares, certa rigidez nas rotinas permitindo poucos escapes para os tempos mais orgânicos e natu

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rais que os pequenos demandam para estabelecerem suas interações, suas experiências de fruição.

Além disso, enfrentamos em parte de nossa sociedade um obscurantismo que atravessa as liberdades de expressão, que persegue as artes e que, numa tentativa de controle, busca modos de censurar e boicotar artistas e suas produções, difun dindo produtos culturais de qualidade duvidosa, de caráter mora lista, que vão na contramão da liberdade que a experiência artís tica proporciona.

Assim, destacar um tempo, mesmo que não seja dilatado em quantidade, mas intenso na qualidade, para ofertar a palavra poética aos bebês e às crianças por meio dos primeiros textos – can tigas, brincadeiras, histórias, brinquedos com a palavra (como os trava-línguas), leituras de livros – constitui um ato de resistência em tempos que não favorecem essas vivências tão preciosas nas dimen sões afetivas, de inscrição cultural, de ampliação de repertório, de humanização das relações.

A oferta dos primeiros textos e das primeiras leituras aos pequenos, permeada pelo afeto e pela palavra poética, consti tui sistema de proteção simbólica na primeira infância, conforme afirma López (2019). E, para além de iniciativas pontuais de famílias, escolas e equipamentos culturais, deveria ser pauta estruturante de políticas públicas como parte do amplo sistema de garantia de direitos desde o nascimento. Considerando as especificidades nas interações dos bebês e crianças pequenas, suas corporeidades e suas demandas de tempo e espaço para a consolidação de saberes, é urgente sensibilizar gestores públicos para a implementação de ações que garantam o acesso a bens culturais e ao bem-estar desde os tempos iniciais da vida.

É necessário sensibilizar mães, pais e cuidadores sobre a importância da palavra em suas diferentes expressões nas intera ções com os bebês. A qualidade do uso da palavra, considerando também os aspectos estéticos da oferta que fazemos aos bebês e às crianças pequenas, constitui as primeiras experiências literárias na

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primeira infância, que possibilitarão aos pequenos leitores aprofundar seu acesso a muitas camadas de sentidos e significados, tecer novas realidades simbólicas e, por que não, ser agentes transformadores de realidades.

Por mais começos de vida repletos de palavras poéticas!

REFERÊNCIAS

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HORTÉLIO, Lydia. Especial: a importância do brincar. [Entrevista concedida a] Familiarte. São Paulo: Melhoramentos, out. 2014, p. 1-4. LÓPEZ, María Emilia. Breve ensaio sobre a palavra poética e a prote ção simbólica na infância. In: PRADES, Dolores; MEDRANO, Sandra (coord.). Seminário Internacional Arte, palavra e leitura na primeira infância - 2018. São Paulo: Instituto Emília, 2019, p. 17-22.

MACHADO, Regina. A arte da palavra e da escuta. São Paulo: Editora Reviravolta, 2015.

MACHADO, Silvia de Ambrosis Pinheiro. Canção de ninar brasileira: aproximações. São Paulo: Edusp, 2017. 312 p. PARLATO-OLIVEIRA, Érika. Saberes do bebê. São Paulo: Instituto Langage, 2019.

PEREIRA, Maria Antonieta. A criança e a linguagem: entre palavras e coisas. In: PAIVA, Aparecida et al. (org.). Literatura: saberes em movimento. Belo Horizonte: Autêntica, 2007, p 111-136.

REYES, Yolanda. A casa imaginária: leitura e literatura na primeira infância. São Paulo: Global, 2010.

REYES, Yolanda. Como e por que ler na primeira infância? Revista Letra A: O jornal do alfabetizador, Belo Horizonte, nº 31, p.12-14, ago/set 2012.

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REYES, Yolanda. O triângulo amoroso. In: LIMA Erica; FARIAS Fabíola; LOPES Raquel (org.). As crianças e os livros: reflexões sobre a leitura na primeira infância. Belo Horizonte: Fundação Municipal de Cultura, 2017, p 46-51.

REYES, Yolanda. Secretos que no sabemos que saben. Cidade do México: Conaculta, 2014.

SILVA, Lucilene. Introdução à cultura da infância. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=7B6JBLPLMe8

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Chão das infâncias

A paisagem da infância socializa sem aviso prévio. Ela se esgueira para dentro. Paisagens da infância são as primeiras grandes imagens que nos confrontam com nosso corpo. (...) Sozinha na paisagem, senti medo muitas vezes. A paisagem é o primeiro grande impasse, sem motivo, do qual não consigo me lembrar. Eu achava que precisava virar planta para saber como viver. O rio verde do vale atrás dos milharais foi o primeiro espelho exterior do meu desamparo.

Lugar, chão, terra, território ou quintal: palavras-paisagens que vamos percorrer ao longo deste texto que se inicia pela vastidão da cena de uma infância em fronteiras distantes, no norte da penín

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sula dos Bálcãs, evocada pela premiada escritora de origem romena Herta Müller, Nobel de literatura, autora de uma obra cuja poética desestabiliza o campo leitor, surpreendido com sua escrita de cantos inesperados, insólitos por vezes. Müller não se dedica a escrever sobre infância em seus livros, é verdade. Escreveu sobre universos imersos em ditaduras, perseguições políticas e outras opressões que não as infantis. No entanto, ao falar de um dos personagens de seus livros, o poeta Oskar Pastior, protagonista do romance Tudo o que tenho levo comigo, ela ensaia que a paisagem delineia em seu país natal ao menos duas experiências de infâncias, ambas bem diversas, a das crianças da montanha e a das crianças planície, onde, em seu tempo de menina, “milharais envolviam o horizonte”. Para Pastior, seu amigo e personagem do romance, o vocabulário das montanhas onde viveu quando criança era usado sempre para descrever os arredores do campo de trabalho for çado na ex-União Soviética, onde passou cinco anos da vida adulta, como se aquelas imagens nunca o tivessem abandonado, apesar de todo o desamparo naquele lugar nada parecido com o chão de seu tempo de menino. “Aprendi que a paisagem da infância deixa marcas para o olhar da paisagem de todos os anos seguintes” (MÜLLER, 2012, p. 126). E talvez por toda a vida, já que filósofos da imaginação contam que “ (...) a infância está na origem das maiores paisagens” (BACHELARD, 1988, p. 97).

Dos milharais da distante Romênia reinventada na obra de Müller aos muitos rincões deste país de dimensão continental, são muitas as paisagens das infâncias brasileiras, as dos grandes centros urbanos, das comunidades de agricultores e em terras indígenas, das beiradas de rios e das imensidões das florestas, dos quilombos rurais ou urbanos, dos litorais, dos sertões, das áreas serranas, das chapadas e dos vales. E para seguirmos por rotas literárias, também as dos Mutuns em meio aos Campos Gerais, “covão em trecho de mata, terra preta, pé de serra”, lugar entre morros, “distante de qualquer parte”, onde cresceu “um certo Miguilim” (ROSA, 1984, p. 13), marcado por sua paisagem-natal, assim como versa Manoel de

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Barros: “O abandono do lugar me abraçou de com / força. / E atingiu meu olhar para toda a vida” (BARROS, 2015, p. 83).

São muitas as impressões da paisagem no imaginário das infâncias, as que têm suas narrativas nos livros e as que as narram o cotidiano em seus quintais, espalhados por diferentes regiões, territórios ou comunidades muitos Brasis afora. Dos chãos enredados de mangue aos céus de emaranhados fios, são muitos os jeitos de ser criança ou de exercitar a infância. Ou melhor, viver as infâncias, no plural, entendendo a diversidade de paisagens e geografias, saberes e fazeres, contares e brincares, vivências e experiências. Sim, experi ência, um vocábulo caro às infâncias, ainda mais se entendido no sen tido apresentado pelo filósofo e educador espanhol Jorge Larrosa:

A palavra experiência tem o ex de exterior, de estrangeiro, de exílio, de estranho e também o ex de existência. A experiência é a passagem da existência, a passagem de um ser que (...) simplesmente ‘ex-iste’ de uma forma singular, finita, imanente, con tingente. (LARROSA, 2019, p. 27)

As infâncias, muitas vezes carregadas de certo estrangei rismo, como algo distante, exterior, têm suas experiências-existên cias singulares. Só num pedaço de Brasil, a região do Médio Xingu, no Pará, por exemplo, podemos adentrar diferentes paragens com as mais variadas experiências infantis: a das meninas Xikrin esculpindo suas bonecas de barro na beira do rio Bakajá, a dos ribeirinhos da comunidade Vila Nova construindo jangadas de aninga (uma planta amazônica que boia na água), a das crianças da periferia de Altamira fazendo barquinhos com restos de sucata do cotidiano e brincando nos fios de água das palafitas, intrincados em cotidianos bastante únicos, onde meninas e meninos vivem sob o “império da água”, nas palavras do poeta Thiago de Mello. Nesse reino aquático, de longos períodos de cheias, em que canoa vira perna de criança ribeirinha, um menino certa vez disse sentir “saudade de pé no chão”, indicando nesse sentimento o quanto a paisagem submersa o afeta. Assim como a experiência, as infâncias são jeitos pulsantes de ser e estar: “A experiência seria o modo de habitar o mundo de

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um ser que existe, de um ser que não tem outro ser, outra essência, além da sua própria existência corporal, finita, encarnada, no tempo e no espaço, com outros” (LARROSA, 2019, p. 43).

Na Filosofia, essa disciplina tão cheia de indagações quanto as crianças, uma das acepções de infância a considera uma experiência fundante, a qual carregamos para sempre. A infância – um mistério, um enigma, uma pergunta, um jeito afirmativo do pensar – é uma condição de possibilidade da existência humana, segundo o filósofo e educador argentino Walter Kohan, em diálogo com o pensador italiano Giorgio Agamben. Não abandonamos a infância ao transpor o seu tempo cronológico, ampliamos o seu sentido, pois ela “é uma condição que nos habita” (KOHAN, 2015, p. 217) e por tanto “somos habitados de infância para além de uma fase cronoló gica da vida” (KOHAN, 2015, p. 223). E ser habitado de infância é o mesmo que habitar a vida com espanto, completa outro filósofo, o educador brasileiro Renato Noguera. É ter a prontidão da primeira vez, olhos de ver as coisas invisíveis e cotidianas, mecanismos interiores ágeis de se admirar com o pequeno, o nada. As lentes infantis têm a habilidade de mirar o extraordinário no ordinário. A infância inaugura a existência de forma inédita e, principalmente, genuína, pois é “um modo de lançar olhares inéditos sobre o mundo em busca de percursos que estão por fazer” (NOGUERA; ALVES, 2019, p. 18). E esse ver da criança abarca todos os outros sentidos, extrapolando a ideia de visão de mundo para audição de mundo, olfato de mundo, tato de mundo, paladar de mundo, como define Noguera a partir da imagem de um Exu que representa em infância a sua fome de vida. Habitar a vivência com espanto é o que se revela no cotidiano dos quintais dos muitos recônditos deste país, entre os brin cares com a natureza e as sucatas do entorno, sempre a fazer do ócio puro ofício. O brincar com o próprio corpo-brinquedo, a fle char as águas, a escalar árvores, a virar um aviador ao saber dos ventos, a girar feito pião, a vibrar com um frio na barriga no voo de balanço, entre muitos outros gestos lúdicos exercitados por meni

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nas e meninos ludens . E também o brincar com o outro, em dupla, em roda, em bando.

O quintal não é lugar designado somente ao crescer ou vir a ser, mas é verdadeiro laboratório de ser, um território de quando já se é intensamente. Onde (se) cria. É local de descobertas, conflitos, invencionices. Tal espaço, a depender da geografia e da oferta de materialidades, possibilita muitas (ou ainda mais) investigações infan tis. No quintal, as crianças aprendem nas trocas e troças com seus pares, ao compartilhar habilidades diversas, e há também ali convites para intercâmbios de experiências entre gerações. De novo, é válido convocar Larrosa e seus inspiradores escritos sobre a experiência:

A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, e escu tar mais devagar, parar para sentir, sentir mais devagar, demo rar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, sus pender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a ação e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço. (LARROSA, 2019, p. 25)

Esse território das infâncias, o quintal, é aqui entendido de modo alargado, como o universo de vivências das crianças de um dado lugar, que pode ser o rio, a rua, a floresta, os arredores de uma comunidade, o bairro, o campinho de terra batida, o condomínio cimentado, a praça e também o espaço no fundo das casas, onde comumente se guardam coisas já sem serventia muitas vezes para os adultos – e não para as crianças, sempre ávidas em matéria de invenção e transformação. A criança quer brincar num desmanche do mundo, num imenso e fértil terreno baldio, para criar um mundo todo novo, e de novo e de novo.

Em tal espaço geográfico e também simbólico, interior, se revela de maneira especial um certo “estado de infância”, segundo Noguera, este filósofo com o qual muito nos identificamos, pois se

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assume “criancista”, gente adulta que aprende com criança, ou que se propõe a “entender a criança e seu mundo a partir de seu próprio ponto de vista” (COHN, 2005, p. 8), o que não é pouco e também é ainda raro. O estado de infância, que experimenta e busca o mundo pelos sentidos e aprende de forma interrogante, aproxima-se de uma dimensão brincante e narrativa da vida. E é o que torna viável a manutenção do viver, aponta esse pensador:

Não se trata de uma instrumentalização do brincar para uma ação pedagógica, do narrar como entretenimento. Porém, da vitalidade própria de existir. A vida é fundamentalmente brin cada e narrada. (...) Brincar e narrar tornam a vida abundante (NOGUERA; ALVES, 2020, p. 542).

É essa abundância do viver que se encontra por muitos terreiros do país, nas infâncias das águas grandes, das terras vermelhas, dos chapadões de pedras, dos campos de muitas batalhas deste país em que há escassez de chão para muitas infâncias. As crianças da Amazô nia flecham os rios e se reinventam peixes e outras criaturas aquáticas. Nas serras do Ceará, para dar outro exemplo, meninos se narram boiadeiros com uma coleção de pedras-bois. As ervinhas do quintal alimentam as brincadeiras e as narrativas das crianças em terras sulis tas (e não só lá, evidentemente). Enfim, em um pedaço de chão ao criar brinquedos com o que adultos chamam de cacarecos, riscar uma calçada acanhada ou rascunhar estradas imaginárias no tapete da sala de um minúsculo apartamento, meninas e meninos constroem e ampliam moradas simbólicas, (re)inventam (suas próprias) histórias –pensando o “inventar” a partir de sua origem no latim, invenire, que quer dizer encontrar relíquias ou restos arqueológicos, a invenção como uma “prática de tateio, de experimentação, de conexão entre fragmentos”, como explica Virginia Kastrup num dos verbetes de Pes quisar na diferença, um abecedário (FONSECA; NASCIMENTO; MARASCHIN, 2015, p. 141). As invenções infantis nos quintais são feitas de pedaços do que são, encontram, vivem, compartilham.

É ali que a criança também demarca territórios. Seu próprio território. Para seguirmos ampliando estas palavras com imagens

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colhidas nos muitos quintais do Brasil ao longo dos últimos anos, poderíamos enfatizar que é o que facilmente registramos em diver sos bairros das cidades grandes, onde as crianças desafiam carros e avenidas, fios e postes, para empinar pipas, peixinhos ou papa gaios (entre outros nomes que os brinquedos ganham céus Brasis afora). O desejo de dominar um artefato lúdico milenar nos ares, já pouco visto em muitos cantos pela proliferação de arranha-céus, supera essa aridez urbana. Pela brincadeira, as crianças transgridem as fronteiras do próprio viver.

E ao exercitarem o brincar, exercitam também o narrar, reto mando essas duas ações tão próprias das infâncias. Quando narram, também brincam. Contam uma história enquanto entoam os versos do pular corda, trocam diálogos imaginativos nos brincares simbóli cos (de casinhas, por exemplo), fazem trocadilhos nos jogos de pal mas. A escritora e pesquisadora colombiana Yolanda Reyes, sempre atenta ao narrar e brincar em suas reflexões acerca da leitura e da infância, é citada pela argentina María Teresa Andruetto em obra que tece certeiras conexões entre as efabulações e as brincadeiras:

Se é certo que somos o que falamos, se é verdade que somos feitos não só de carne e osso, e sim de símbolos, valeria a pena abrir o mundo das crianças e todos os sotaques que transportam a infinita diversidade do que somos (...). Como nas brincadeiras infantis, as palavras eram essas comidas invisíveis de que me ser via em xicarazinhas de mentira para saciar a sede de imaginar. (ANDRUETTO, 2017, p. 42-43)

Xícaras de mentira, vale completar, transbordando de ingredientes da mais pura verdade, assim como ficções são “mentiras que abrem caminhos para novas verdades” (ANDRUETTO, 2017, p. 149). As crianças não fingem, ou imitam ou arremedam enquanto brincam, como é costumeiro e errôneo dizer. Transpõem limites da fantasia e da realidade. “A criança, com sua capacidade de fabular, é impulsionada a recriar o real no irreal” (PIORSKI, 2016, p. 31).

E elas infinitamente exercitam o próprio ser, e assim são, a partir de suas criações autenticamente poéticas. Sim, poéticas.

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Qual a poesia da criança em seu brincar? Tal qual o poeta faz com as palavras, ela vê a ambivalência dos seres, inanimados ou não, tijolo, lágrima, bacia, cotovelo, andorinha. Tijolo é tijolo, mas também cavalo e cavalgada. Aí reside o exercício poético das infâncias. A criança opera como o poeta, que “põe em liberdade sua matéria” (PAZ, 1982, p. 26). É que “o artista” (e também a criança) “não se serve de seus instrumentos – pedra, som, cor ou palavra – como o artesão; ao contrário, serve-se deles para que recuperem sua natureza original.” (PAZ, 1982, p. 27). Meninas e meninos não somente esculpem o entorno, eles o poetizam intensamente e, para isso, mergulham na verdade de seu ser abertamente (ao) poético. E para poetizar o mundo e a vida, narram e brincam. Nar rar e brincar são verbos conjugados nas infâncias, independen temente do tempo e do lugar, mas, sim, variando conforme as ofertas locais e também temporais. E vale sempre ressaltar, prin cipalmente àqueles que insistem no discurso de que “hoje não se brinca mais”, é possível observar nas cinco regiões que a criança brinca em todo território e em toda época, pois essa é uma ativi dade tão vital como respirar. A questão é que, conforme as possibilidades do seu entorno e a qualidade do tempo disponível, esse brincar pode obter variações e matérias-primas mais ou menos pulsantes. Aos adultos, no entanto, cabe garantir firmemente às crianças um tempo alargado e um chão permissivo (para pular, se arrastar, riscar, cavar... entre outras ações tão simples quanto raras para muitas infâncias de espaços diminutos, confinados e/ou marcados por assepsias). Ou como afirma quem bem pesquisa as relações da rica tríade infância, imaginário e natureza: (...) a materialidade do brincar, quando se constitui de substâncias materiais pouco científicas, decompostas, desmanchadas pelo tempo, ou provenientes da natureza, tem o poder de desemoldurar a imaginação. Permite que a criança crie, com maior liberdade, sua experiência. Devolve seu ritmo, ecoa e realiza seu destino natural: pulsar, reunir e expandir, abrir-se para o mundo. (PIORSKI, 2016, p. 30-31)

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A natureza está na origem da poesia que em muitas paisagens de infâncias bem se reconhece e exercita, pois “O mundo não foi feito em alfabeto. Senão que primeiro em água e luz. Depois árvore. Depois lagartixa.” (BARROS, 2001, p. 95). Em diálogo com diversos poetas, entre eles o já e sempre lembrado Manoel de Barros, a escritora Gloria Kirinus nos conta que a natureza (manifesta nas “danças da chuva”, na “escuta do canto dos rios e do barulho do vento”, por exemplo) são as nossas “primeiras escutas em estado de poesia” (KIRINUS, 2011, p. 25). É assim, em estado de poesia, que o menino ribeirinho faz do corpo brinquedo poético a delirar com o vento solto enquanto percorre maneirinho o extenso trapiche de sua comunidade durante o tempo das águas grandes, as cheias, que inundam os chãos e seu vasto imaginário.

Em sintonia com o léxico brincante percorrido até aqui, damos então um salto na amarelinha ou até mesmo um giro de pião, para estabelecemos algumas pontes entre a brincadeira e a narrativa, entre o narrar e o brincar, esses verbos que permitem expressões genuínas de existência. Ou seja, o desejo é criarmos conexões entre o quintal e o livro, entendidos nos âmbitos físico e também simbólico. O quintal, assim como o livro, dá corpo às narrativas infantis e, principalmente, ao seu estar no mundo. Ou incorpora as narrativas mais autorais das infâncias. E o livro, assim como o quintal, é um possível lugar para que a criança apreenda o mundo brincando-narrando. Tanto o quintal quanto o livro são lugar onde a criança pode desenvolver autonomia e autoria, como já apontado em texto escrito anteriormente:

No quintal, a criança é autora e cria suas primeiras narrativas. É ali narradora de mundos. Vasto universo da infância que convida a múltiplas linguagens, onde o narrar se dá contando, cantando, brin cando, jogando, fazendo de conta na mais pura verdade. Ou empi lhando pedras, classificando tampas e tampinhas, desenhando no chão (ou nas paredes), inventando brinquedos, entre outras brinca deiras-narrativas que se desenrolam de modo palimpsesto, em que muitas histórias são (re)escritas. (ROMEU, 2020, s.p.)

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As crianças nos ensinam que tanto brincamos quanto narramos (e ouvimos e lemos histórias) para nos conhecer, rastrear nossas origens, descobrir quem somos. A criança não só descobre o mundo exterior, mas seu próprio universo interior nas operações dos muitos brincares e narrares possíveis que permeiam o viver num determinado pedaço de chão. Sim, o chão é sustentação, ou melhor, sustento das infâncias.

A escritora argentina María Teresa Andruetto, ao citar a poeta e ensaísta uruguaia Circe Maia, dialoga com essa ideia do livro e do quintal como suportes ou chãos fundamentais às infâncias ao tratar as histórias impressas nas páginas como “pon tes para ‘aprender a pisar, a se sustentar’” (ANDRUETTO, 2017, p. 109). E afirma: “Boa parte da riqueza de um povo reside no desenvolvimento de uma consciência sobre si e sobre o lugar que se ocupa no mundo” (ANDRUETTO, 2017, p. 40). Essa consciência sobre si e também sobre o mundo, podemos adicionar, tem suas raízes no próprio chão da infância, lugar sabedor de origens, de desvendar quem se é.

Dois antropólogos europeus, Tim Ingold e David Le Breton, abrem mais caminhos teóricos para pensarmos a relação do chão e da infância – e então com outros espaços físicos, tais como o livro. Ingold que tão bem aproxima o campo da antropologia aos das artes, da filosofia e da educação, nos apresenta a importância (e a contemporânea escassez) da cultura do chão, em que os pés nos possibilitam contato com nosso entorno (e com o nosso próprio ser), e questiona a forma como na atualidade se apreende o mundo, sempre a partir de uma plataforma fixa (caso das sociedades oci dentais sedentárias), num corpo em que se prevalece a soberania da cabeça sobre os calcanhares, os pés, e pouco conectado com outros mestres e mestras da vida:

Por que reconhecemos apenas nossas fontes textuais, mas não o chão em que pisamos, os céus em constante mudança, monta nhas e rios, rochas e árvores, as casas nas quais habitamos e as ferramentas que usamos (...)? (INGOLD, 2015, p. 12)

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Em muitos quintais dos Brasis, o chão ensina e é local que possibilita aprender uma educação dos sentidos, pois “não existem alternativas senão experimentar o mundo, ser atravessado e transformado permanentemente por ele. (...) Antes do pensamento, há os sentidos” (BRETON, 2016, p. 11). Uma imagem significativa, a de uma floresta e quem a frequenta, é evocada por esse pensador para ampliar a ideia de como, até mesmo num mesmo lugar e tempo, o ser humano vive sensorialidades distintas:

Percorrendo a mesma floresta, indivíduos diferentes não são sensíveis aos mesmos dados. Existe a floresta do coletor de champignons, do passeante, do fugitivo; a floresta do índio, do caçador, do guarda-florestal, ou do caçador ilegal, a dos apaixonados, dos extraviados, dos ornitólogos; a floresta igualmente dos animais ou da árvore, a do dia e a da noite. Mil florestas na mesma, mil verdades de um mesmo mistério que se esquiva e que jamais se dá senão em fragmentos. Não existe a verdade da floresta, mas uma infinidade de percepções a seu respeito segundo os ângulos de aproximações, de expectativas, de pertenças sociais e culturais. (BRETON, 2016, p. 12)

O indivíduo toma consciência de si e do entorno pelo sentir, que singulariza sua existência-experiência. Sim, no caso das infâncias, isso se amplifica e se dá tateando tocos ou cantos, decifrando os sons das cigarras ou dos automóveis, roçando os pés na grama ou no asfalto, salivando frutos e muitos ingredientes. Quintal é uma verdadeira escola multissensorial, e o corpo todo é o filtro pelo qual a criança se apropria das substâncias do mundo.

É nesse chão seminal que a criança se faz e se entende nar radora de mundos, a começar pelo seu próprio mundo. É um narrar que não se faz só pelo verbal, mas por meio de muitas linguagens e dos muitos sentidos: ao construir ou desmanchar um brinquedo, caminhar na mata ou cruzar o bairro, colher um fruto ou restos do terreiro, desmontar coisas, classificar e contar estrelas, sentir a brisa e os odores da mata, entre outras acontecências possíveis de seu universo-quintal. A criança narra com o corpo todo, em muitos ges tos. Todas e todos temos o “vício e o ofício de narrar histórias, cada

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um de nós constrói (para si e para os outros), ao longo da vida, um relato que constitui nossa identidade, uma narração que nos torna únicos” (ANDRUETTO, 2017, p. 151). E esse narrar tem seu início já na infância, nas culturas produzidas pelas infâncias, em seus territó rios, paisagens e chãos.

Aprendemos a ler e escrever mundos não só com a articu lação de letras e palavras, já nos contou o mestre Paulo Freire. O pedagogo do esperançar, defensor da urgência de não só associar a alfabetização à leitura do texto e à leitura da palavra, mas à lei tura de contexto, à leitura de mundo, aprendeu as palavras de seu mundo-menino no quintal da casa em Recife, à sombra de árvores frondosas, onde foi alfabetizado pela mãe e pelo pai. Com galhos que faziam as vezes de giz riscando o chão-lousa, ele conta em À sombra desta mangueira que aprendeu a escrever (sem cartilha) os nomes do seu entorno afetivo, como os dos pássaros (sanhaçu, sabiá, olha-pro-caminho-quem-vem), dos acidentes geográficos, das cores das mangas e seu “amolegar”. O chão daquela primeira escola “representa o mais próprio da identidade do educador, suas raízes” (KOHAN, 2019, p. 168). Numa tarde do exílio, em Genebra, escreve sobre seu primeiro mundo, o quintal, de modo saudoso:

O Brasil dificilmente existiria para mim, na forma como existe, sem o meu quintal (...). A terra que a gente ama, de que a gente sente falta e a que se refere, tem sempre um quintal, uma rua, uma esquina, um cheiro de chão (...) (FREIRE, 2015 [1995], p. 41).

A obra de Freire começou a ser escrita já naquele quintal de mangueiras, cajueiros, jaqueiras, barrigudeiras e sumaúmas. Ao se aproximar de biografias significativas como essas, assim como de outras narrativas e brincadeiras das crianças em seus quintais -mundos, ousamos dizer que talvez seja nesse lugar onde escre vemos nosso primeiro livro, feito de um alfabeto especial, com fragmentos da natureza, sobras cotidianas, coisas desimportantes e outros elementos feitos de palavras que “vivem de barriga no chão”, “tipo água pedra sapo”, nos versos de Manoel de Barros. O quintal, lugar que convida a brincar e também a contar histórias,

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é um livro de muitas raízes que se vive dia a dia, página a página, numa escritura constante de reinvenção.

É nesse lugar onde a criança pode exercitar a máxima “eu construo o mundo” por meio dos verbos brincar e narrar. E um quintal que permita tal exercício não é local dado à assepsia, com cantos arredondados, sem quinas, topografia pouco expressiva ou afofado com placas de EVA, material que tanto se prolifera nas instituições formais e infor mais de educação. Tal espaço mais se aproxima das oficinas dos avôs, das bicicletarias e suas sobras que valem ouro nas mãos infantis, dos terrenos baldios com esconderijos e muitos achados.

Se a frase das crianças nos quintais é “eu construo o mundo”, a dos adultos que as rodeiam deveria ser: eu lhe apresento o mundo que outros me transmitiram e do qual me apropriei, ou lhe apresento o mundo que eu descobri, construí, amei. Eu lhe apresento o que nos rodeia e o que você olha, espantado, apontando um pássaro, um avião, uma estrela. (PETIT, 2019, p. 17).

Sim, é também fundamental o papel de pais, mães, educado ras e educadores e tantos outros mediadores na transmissão cultural por meio de bens culturais diversos, materiais e imateriais (narrativas orais, lembranças e causos familiares, festividades vividas nas comu nidades, brinquedos cantados, parlendas e adivinhas, brincadeiras diversas e muitas partilhas lúdicas e poéticas e, sim, o rico legado de histórias da cultura escrita, registradas em livros e outros suportes, sem dar conta aqui de esgotar os muitos exemplos possíveis).

Eu lhe entrego fiapos de ficção para que você seja capaz de simbolizar a ausência e enfrentar, tanto quanto possível, as grandes questões humanas, os mistérios da vida e da morte, da diferença entre os sexos, o medo do abandono, do desconhe cido, o amor, a rivalidade. Para que escreva sua própria história entre as linhas lidas. (PETIT, 2019, p. 22)

As narrativas (e também as brincadeiras, não vamos deixar de sempre lembrar), nos ajudam a ocupar mundos (exterior e interior):

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Para que o espaço seja habitável e representável, para que pos samos nos situar, nos inscrever nele, ele deve contar histórias, ter toda uma espessura simbólica, imaginária. Sem narrativas –nem que seja uma mitologia familiar, umas poucas lembranças –, o mundo permaneceria lá como está, indiferenciado; ele não nos seria de nenhuma ajuda para habitar os lugares em que vivemos e construir nossa morada interior. (PETIT, 2019, p. 19-20)

O pensamento filosófico nos ajuda a enlaçar este escrito que parte por uma incursão por muitos quintais Brasis afora e conclui que: brincar e narrar são originalmente formas de resistir às opressões mais cruéis e estabelecer que a vida deve ser livre e desim pedida. A criança – o ser revestido de infância – está em busca dessa liberdade radical” (NOGUERA; ALVES, 2020, p. 548).

Liberdade radical que se dá em estado de jogo, na esfera lúdica, num corpo brincante – o jogo, o brincar, é “ele próprio liberdade” (HUIZINGA, 2005). E como a literatura segue abrindo muitos atalhos no campo aqui trilhado (narrado e brincado), de novo convocamos aqueles e aquelas que vivem a ânsia de transpor o próprio viver por meio da arte das palavras, caso da já citada escritora romeno-alemã Herta Müller. Em seu livro de ensaios sobre escrita, vida e, sim, liberdade, tema presente em sua obra, ela afirma: “De quanto mais palavras pudermos nos servir, mais livres seremos” (MÜLLER, 2012, p. 19).

Revestidos com as peles das infâncias, envoltas nas mais intensas experiências, que, mais do que substantivos, são substâncias essenciais do viver, vamos descobrimos quem somos desde os primeiros anos de vida e também nos aproximamos do outro, ampliamos sentidos de alteridade, exercitando todo o sentir, de corpo inteiro, pés sabedores do chão, e nos fazemos libertos, o que não é nada sim ples nem pouco em tempos “hostis a uma infância afirmativa, resistente, duradoura” (KOHAN, 2011, p. 240).

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REFERÊNCIAS

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Notas sobre a edição de livros impossíveis

Quando, em 1984, a pesquisadora britânica Jacqueline Rose publicou o livro The case of Peter Pan, or the impossibility of children’s fiction [em tradução livre: O caso de Peter Pan ou a impossibilidade da ficção infantil], a emergente crítica literária infantil se viu profundamente desafiada. Ancorando-se nos estudos psicanalíticos e tomando como único objeto a história de Peter e Wendy, Rose argumenta que os livros publicados para crianças obedecem tão somente aos desejos e fantasias dos adultos que os escrevem (e os publicam, comercializam, pesquisam e discutem). Em seu entendimento, os fundamentos da psicanálise freudiana inviabili zam a ficção infantil, uma vez que questionam a existência de uma identidade estável ou unitária, tal como a categoria infância, a ser endereçada. Dito de outro modo, como pode haver uma literatura

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cuja razão de ser é dirigir-se a um público que só existe virtualmente como projeção de seus autores?

Neste ensaio, tomo emprestada da autora a ideia de impossibilidade, embora com pretensões francamente mais modestas. Sem fidelidade a uma única teoria ou escola de pensamento, nas páginas que se seguem discorro sobre nossas perspectivas em rela ção às crianças (com atenção especial aos bebês) e à literatura que produzimos e oferecemos a elas, ponderando sobre os desafios de sua publicação. Escrevo, portanto, a partir do lugar de leitora, pes quisadora e eventual editora de livros que ocupo.

Infância, infâncias

A ideia de infância universal, com características essen ciais identificáveis, há muito vem sendo questionada. Mais do que nunca, hoje sabemos que as crianças, tanto quanto os adultos, são atravessadas por questões culturais, sociais e históricas que as tornam um coletivo amplo e heterogêneo. Como ignorar, por exem plo, os contextos econômicos que estruturam a vida de crianças e tornam suas experiências e oportunidades profundamente desi guais? Ou ainda, é factível tomar como análogas as vivências infan tis de hoje e as de 2 mil anos atrás? Por tudo isso, muitos de nós preferimos usar o termo infâncias.

Embora o plural possa resolver parcialmente o dilema, espe cialmente dos pontos de vista sociológico e antropológico, outras questões se impõem. Ora, sabemos que as noções de infância não se resumem a uma classificação cronológica ou biológica (ainda que necessariamente passem por aí) e que seu entendimento varia con forme variam os tempos e espaços. Ainda assim, afirmamos com convicção que crianças e adultos pertencem a categorias antagô nicas. Não há dúvidas de que ocupamos posições diametralmente opostas, muito embora dificilmente saberíamos dizer quando termina uma e começa a outra. Melhor, talvez, seria afirmar que as crianças são aquilo que nós, adultos, não somos. As infâncias se definiriam, assim, por oposição, na qualidade de diferentes.

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Implícita nesse pensamento, no entanto, está a centralidade adulta. Ao nos colocarmos como referência, outorgamos às crianças a condição de “vir a ser”. A criança ainda não é; criança é promessa, projeção, porvir. Trata-se de uma etapa cujo valor se volta ao horizonte de suas potencialidades e de nossas expectativas. Mais comuns do que nos damos conta são os discursos que validam tal premissa. Ouvimos e repetimos como mantra frases como “as crianças são o futuro” e as usamos para justificar nossas ações sempre bem-intencionadas. Infância, etapa inicial de uma linha crescente de desenvol vimento que culmina na vida adulta. A ideia de progressão, que não deixa de ter sua quota de razão, esconde outras problemáticas. Se em um extremo da vida encontra-se o adulto – sábio, racional, completo –, por oposição, a criança, no outro extremo, estaria ligada ao irracio nal, inconcluso, primitivo. Ser quase humano. Selvagem? Não à toa, fre quentemente as conversas sobre infâncias vêm acompanhadas de um vocabulário cheio de conceitos como controle, disciplina, autoridade e limite. Com isso, além de ignorar seu valor no presente, legitimamos a ideia de dominação: por sua natureza, a criança requer de nós uma atu ação no sentido de educar que, em muitos casos, se torna sinônimo de domar, domesticar ou subjugar. Felizmente, outros caminhos existem. Definida, classificada, colonizada pelo olhar adulto, a criança ainda nos escapa. Apelamos para o plural, para a relativização, para a alteridade e para o controle, e mesmo assim falhamos em entender as infâncias ou ao menos delinear os seus contornos. Já dizia Cecília Meireles, “Tudo é misterioso, nesse reino que o homem começa a desconhecer desde que o começa a abandonar” (1985, p. 30).

O bebê, esse desconhecido

No extremo desse mistério encontram-se os bebês. Acon tecimento inaugural, o recém-nascido nos põe frente a frente ao mais indeterminado e desconhecido de nós. Quando começamos? Quando sabemos que existimos e que somos? Quando tomamos consciência do eu e do outro? Nem é preciso ir muito longe nas

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perguntas. Mesmo o mais banal em nós se faz abismo nos nossos pequenos. O bebê chorou, o que quer? Tem fome ou sede? Sente dores? Se contorce, o que quer expressar? Ouve uma voz conhecida, ri, mexe as mãozinhas, pede colo. Será que sente saudades? Incógnita. Lemos as pistas, inferimos, tentamos adivinhar e muitas vezes acertamos. Mas ainda há tanto que insiste em nos escapar… Mesmo assim, porque bebês existem e habitam entre nós, nos esforçamos para decifrá-los como a um enigma. Desde os conhecimentos forjados na observação empírica e intuitiva de pais e cuidadores até as conclusões mais sistemáticas de pesquisadores e cientistas, contamos hoje com o auxílio de um imenso arcabouço de informações que, se não solucionam nosso mistério original, ao menos nos amparam em nossas lidas com bebês e crianças bem pequenas. Os discursos são os mais variados: vão da pediatria à psi cologia, psicanálise, pedagogia e até o direito.

Esse boom de interesse pelos bebês tem origem recente. Até a primeira metade do século XX, pouco se falava sobre a pri meiríssima infância. Conforme o psiquiatra e psicanalista francês Bernard Golse (2014), os bebês poderiam facilmente ser reduzidos a “tubos digestivos”, já que a grande preocupação dos estudiosos limitava-se às suas atividades alimentares. A mudança de paradigma – da alimentação para o sujeito – só teve início com o fim da Segunda Guerra Mundial. De seres passivos, os bebês passaram a ser vistos como atores de seu próprio desenvolvimento. Como contrapartida, a imagem desvalorizada cedeu lugar à idealização. Golse explica:

Contra o pano de fundo de uma certa culpa por parte dos adultos em relação aos bebês, eles foram então descritos como autên ticos “super-homens”, já sabendo fazer tudo e entender tudo, novos heróis dos tempos modernos e os principais depositários de nossas últimas utopias...¹ (GOLSE, 2014, p. 2)

1 No original: Sur le fond d’une certaine culpabilité des adultes à l’égard des bébés, ceux-ci ont alors été décrits comme d’authentiques « supermen », sachant déjà tout faire et tout comprendre, nouveaux héros des temps modernes et dépositaires principaux de nos dernières utopies…

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Onde residiria, então, a “verdade” dos bebês? Para o pesquisador francês, o mais adequado seria falar em competências poten ciais, as quais permanecem adormecidas até que situações específicas forcem sua manifestação. Todavia, a natureza e a funcionalidade dessas competências permanecem indecifráveis. Alternativamente, Golse propõe outra explicação: em algum lugar entre o tubo diges tivo e o super-homem devem se encontrar os bebês, embora a loca lização exata seja difícil precisar.

A linguagem dos bebês

Parte de nossas incertezas em relação à primeira infância provém de determinantes linguísticos. Olhamos para os infantes –aqueles que ainda não falam – e enxergamos uma fenda. Escutamos seus balbucios e identificamos neles o apetite por palavras, mas aceitamos que essa é uma fome para a qual não há pressa. Porque entendemos que a linguagem não se realiza plenamente nos primeiros meses de vida e este período se torna uma espécie de hiato entre o que não existe e o que está para existir. Sujeitos de linguagem que somos, nos perguntamos: os bebês são?

Esse questionamento parece perder lugar à medida que novos debates se fazem prementes. Pouco a pouco nos abrimos para a sur preendente sensibilidade linguística das crianças desde seus primeiros dias de vida. Ora, que os bebês sejam sensíveis a estímulos verbais não é exatamente uma novidade. É fácil notar, por exemplo, como a voz da mãe (tanto por seu ritmo e entonação, quanto por suas palavras) é capaz de confortar o bebê que chora e fazê-lo sorrir. Os comentários afetuosos que lhes são dirigidos, as brincadeiras de linguagem (mui tas vezes desprovidas de sentido), as confidências murmuradas pelas mães na intimidade com suas crias, os acalantos acompanhados de ges tos e afagos… Todas as trocas linguísticas espontâneas entre bebês e seus cuidadores lhes afetam e tocam no mais íntimo.

O que as últimas décadas trouxeram de novo para a discus são é que esses estímulos são fundamentais para o desenvolvimento sociocognitivo. Em outras palavras, constatamos recentemente que

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a linguagem é capaz de estimular a vida mental das crianças, influenciando sua cognição e subjetividade, assim como suas percepções do ambiente social, das pessoas e de si mesmas.² Como escreve Miller, “a linguagem transforma o indivíduo humano até em seu corpo, no mais profundo de si mesmo, transforma suas necessidades, transforma seus afetos” (MILLER, 1998, p. 34 apud LIMA, 2017, p. 57).

Em contrapartida a essa extraordinária constatação, o que se segue é uma verdadeira corrida para encorajar a (inseparável) relação entre bebês e sua língua materna. Cuidadores, educadores e demais especialistas em infância, amparados principalmente por estudos linguísticos e cognitivos, vêm arquitetando estratégias des tinadas a potencializar essa relação, na esperança de que, ao fazê-lo, estaremos favorecendo o desenvolvimento dos pequenos. Obvia mente, quanto mais estímulos produzimos, mais nos impressiona mos com as respostas dos bebês, o que, por sua vez, serve como confirmação de sua prodigiosa aptidão linguística, bem como da efi cácia de nossas ações.

Como efeito colateral, presenciamos (provocamos?) o crescimento de uma certa ansiedade em torno da ligação bebê/lingua gem. O recente fenômeno midiático das crianças com articulação de fala precoce ilustra bem o argumento. Nos maravilhamos com a “super-habilidade” alheia ao mesmo tempo que esperamos (exigimos?) dos nossos ligeireza semelhante. Trocamos o “vir a ser” pelo “ainda não”. Mudam-se os parâmetros e a urgência se faz regra. Não apenas necessitamos agora de estratégias mais elaboradas, como também de ações cada vez mais prematuras.

E é assim que, na esteira do movimento descrito por Golse (2014), vemos os bebês passarem de seres “pré-linguísticos” a verdadeiros sujeitos da palavra. Celebramos sua aptidão natural ao mesmo tempo que, condescendentes, admitimos que somente o incentivo sistemático e rigoroso pode fazê-la desabrochar. Despertar a lingua

2 Em Los libros, eso es bueno para los bebés (2008), Marie Bonnafé descreve sua experiência à frente da associação francesa ACCESS, por meio da qual pôde atestar a validade e a extensão dessas descobertas.

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gem neles adormecida é a nova missão dos adultos, sob ameaça de prejudicar seu desenvolvimento intelectual e psíquico. Já não se trata mais de acompanhar sua entrada nesse mundo de linguagem que os precede e de assisti-los na apropriação de estratégias – as reconheci das por nós e as inventadas por eles – de interpretação, significação e, naturalmente, de subjetivação. Trata-se agora de engendrar circuns tâncias propícias para que bebês e crianças bem pequenas manifes tem, irremediavelmente, suas competências potenciais.

O risco que se corre com a pressa da produtividade é trans formar os bebês não em sujeitos de linguagem, mas em sujeitados.

A literatura e os bebês

Se é verdade (e as pesquisas nos dizem que sim) que a lin guagem é elemento fundamental para o desenvolvimento psíquico e cognitivo das crianças, é mais do que natural que queiramos enco rajar essa potente relação, explorando-a de maneiras variadas e fecundas. De um jeito ou de outro, desconfio, tal desejo nos levaria à literatura, arte em que a palavra se faz mais humana: imprecisa, ambivalente, plural, indômita. Assim, no afã dos debates sobre lin guagem e primeira infância, redescobrimos a literatura. Chamo de redescobrimento o movimento de reencontro com suas potenciali dades e com tudo aquilo que ela pode despertar nos leitores.

Como arte que se constrói na e pela linguagem, a literatura nos convida a acessar mundos alheios feitos de signos; construir e partilhar sentidos é a possibilidade que nos oferece. A experiência da fabulação nos desloca à posição de forasteiros, exploradores de terras por conhecer. Como descreve Michel de Certeau, “ler é pere grinar por um sistema imposto (o do texto, análogo à ordem construída de uma cidade ou de um supermercado)” cuja pluralidade indefinida nos permite criar estratégias para explorar e negociar suas significações (1998, p. 264).

A condição de leitor é também análoga à dos bebês que, chegando a um mundo de linguagem preexistente, são convoca dos a decifrá-lo. Espera-se que a criança, assim como o leitor, seja

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capaz de reconhecer o sistema de signos que a cerca, de apreendê-lo, interpretá-lo e, quem sabe, interrogá-lo. Significar a lingua gem ao mesmo tempo que ela nos significa, essa é a promessa da literatura e é também o chamado dos bebês. Dessa maneira, quando voltamos os olhos para nossa própria experiência como leitores, somos surpreendidos pelas arestas que unem o universo literário às infâncias.

Fascinados por essa constatação (e talvez um pouco culpa dos de tê-la ignorado por tanto tempo), somos uma vez mais captu rados pela ansiedade do produtivismo. A leitura literária se converte em catalisador do contato, engajamento e, principalmente, da apro priação da linguagem pelos bebês. Literatura como caminho vanta joso para se chegar ao letramento. Ler com crianças bem pequenas para que desenvolvam habilidades linguísticas precocemente, para acelerar o aprendizado da língua (oral e escrita), para que se tornem leitoras competentes e escritoras habilidosas, para que se conver tam em adultos criativos, para que adquiram prontamente uma ou outra aptidão considerada justa e necessária, para que desenvolvam competências psicossociais sem demora, para que se tornem mais empáticas, compassivas, humanas, melhores.

Na era da tecnocracia, não surpreende que até os bebês sejam atormentados pela exigência da produtividade. “Os demônios da rentabilidade”, assim descreve Marie Bonnafé (2008) a nossa inclinação ao utilitarismo. Embora em seu livro ela se concentre nas pressões do aprendizado precoce e no uso instrutivo da literatura, seu argumento pode ser estendido a outras faces da rentabilidade. No que toca à produção editorial, por exemplo, a promessa de aquisições aceleradas se converte em oportunidade de ganhos econômicos. Não há dúvidas de que monetizar qualquer coisa que não se preste à quantificação produtivista seja tarefa mais exigente. Mas a que custo?

Creio que escapar à lógica da lucratividade a qualquer preço seja imperativo, se não quisermos sujeitar os bebês a um sistema que já não se sustenta. No âmbito da mediação, isso possi

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velmente passa pela substituição do pragmatismo pela ordem dos afetos. Ler com crianças bem pequenas para criar circunstâncias que sejam propícias à partilha desmedida. Possibilidade de encontro que não busca resultados nem mensura. Ao invés de acelerar o tempo, fantasiar sua suspensão, subvertê-lo. Ler como quem brinca. Luiz Percival L. Britto explica:

Brincar aqui é projetar-se livremente em direção ao nada, ima ginar, transformar, criar formas – sons e sentidos – com o puro prazer de fazer, sem fim ou finalidade – o lúdico. O inusitado se aparece diante do leitor, que mastiga sons, que tateia imagens, que escuta cores – tudo isso instado pelas palavras que se enun ciam, pelo imaginário que corrompe o tempo e inverte aconteci mentos imaginários em reais. (BRITTO, 2018, p. 25)

Já no âmbito da produção editorial, em que o dinheiro é a língua mais falada (e como não, em um mundo como o nosso?), a saída se complexifica. Não basta apelar para um certo compro misso moral ou ético, isto é, exigir que a indústria editorial assuma a sua fatia de responsabilidade no que cabe à preservação da dig nidade das infâncias. Para isso, antes de mais nada, seria necessá rio admitir os danos do produtivismo. Quantificar os prejuízos, se quisermos usar expressões mais condizentes com esse universo. Tarefa igualmente exigente.

E, quem sabe, apostar na ordem dos afetos com a esperança de propiciar experiências mais orgânicas e, por isso mesmo, mais sólidas e duradouras? Como sugere Daniel Goldin, talvez “aqui, como no amor, quem mais dá mais recebe” (2012, p. 118). Na raiz dessa conversa está também nosso compromisso com a formação de leitores, condição primordial para nossa sobrevivência – como editores e como sociedade.

Em lugar de respostas definitivas, permanecem as interrogações.

Esses livros impossíveis

Espaço privilegiado da literatura em nossa cultura, os livros vêm sendo deslocados ao centro dos debates sobre a primeira infân

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cia. Nos voltamos a eles com o espanto da descoberta, como o leitor que, diante de uma leitura arrebatadora, deseja compartilhar suas impressões. Apreciamos, defendemos, propagandeamos ao ponto de transformar os livros para bebês em novo imperativo do nosso tempo. Penso na minha própria infância, na escassez de livros em meu entorno (especialmente os literários), e inevitavelmente me pergunto: como cheguei até aqui? Sejamos realistas, os livros não fazem parte das necessida des primárias dos bebês. A palavra, sim, palavra falada, cantada, compartilhada no regime dos afetos, é primordial, já sabemos. Quanto a isso, Britto (2018) é taxativo: as crianças podem prescindir do texto escrito por um bom tempo (mais ou menos até os quatro anos de idade) sem que tenham prejuízos afetivos ou mesmo cog nitivos. Mais do que da palavra escrita, o bebê necessita das intera ções com o outro. A voz humana é o texto que ele significa. É Britto também quem admite que os livros, mesmo que não sejam uma necessidade, são para a primeira infância uma extraor dinária possibilidade. Porque guardam um registro da palavra que difere de seus usos cotidianos; estruturas, vocabulário, gêneros, tempos outros. Ao contrário da linguagem da comunicação que nos leva a referenciais conhecidos, a língua da fabulação abre espaço para o que não é familiar e instaura uma organização simbólica que só existe na ficção. Além disso, a leitura compartilhada pressupõe uma espécie de performance que vai desde a preparação do espaço até a entonação da voz e o manuseio das obras. A circunstância que os livros oferecem é única. Volto uma vez mais à minha infância e não deixo de imaginar como teria sido contar com eles como (mais uma) possibilidade de partilha entre mim e os meus. Diante de tantas promessas, os profissionais ligados ao cir cuito editorial – escritores, ilustradores, designers, editores, livreiros e mediadores – são convocados a olhar para esse público antes tão negligenciado e a se reformularem, seja por um genuíno senso de responsabilidade com o novo leitorado e/ou por motivações econômicas. Como estratégia, muitos de nós nos voltamos para as

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discussões e pesquisas sobre a primeira infância em busca de parâmetro ou norte. À medida que novos estudos são conduzidos e suas conclusões se tornam públicas, vamos nos adaptando, refinando os critérios de qualidade e aprimorando nossos ofícios.

É fácil notar como as discussões sobre o tema impactaram o mercado editorial. A começar pela própria oferta de livros para bebês e crianças bem pequenas que, até pouco tempo, era limitada em termos de qualidade e numericamente irrelevante. Acreditava -se então que a leitura na primeiríssima infância era exclusivamente sensorial e motora, por isso as experimentações se restringiam à materialidade. Predominavam obras que estimulam o manuseio (por exemplo, com botões, partes destacáveis, superfícies com relevo, aplicação de pelúcia ou outras texturas, livros com fantoche, chocalho e mordedor), produzidas com materiais os mais diversos (plástico, tecido, papel cartonado, emborrachado) e que contam com recursos sonoros. Via de regra, os textos eram secundarizados e as ilustrações reduzidas a uma função principalmente referencial. Objetos lúdicos, sem dúvida; literários, talvez.

À medida que os debates foram se aprofundando, pudemos notar uma progressiva mudança na oferta editorial, seja pela multiplicação de títulos ou por sua diversificação. São incontáveis os estudos que apontam para a importância de se explorar textos e ilustrações tanto quanto a materialidade dos livros. Já se sabe, por exemplo, que a palavra pode se complexificar e que outros gêneros, incluindo poemas e narrativas, devem fazer parte do repertório do bebê. Há também reflexões sem fim sobre o papel das ilustrações nos livros infantis, as quais convergem para um argumento comum: as imagens, mais do que mera repetição, podem adquirir funções diversas, sendo capazes de acrescentar profundidade simbólica às obras.

Outras áreas além da pedagogia e da literatura também colaboraram significativamente para o debate, tais como a psicolo gia cognitiva e a neurociência. Além de prover evidências científicas sobre os benefícios da leitura, as pesquisas auxiliaram na compreen são dos estágios de desenvolvimento das crianças desde os primei

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ros dias de vida. A classificação das etapas de competência leitora, uma prática bastante comum nos meios editorial e pedagógico, é em grande medida amparada por tal arcabouço científico.

Todas essas discussões têm nos servido de norte para a criação e a escolha de livros. Um exemplo disso é o trabalho desenvolvido por Teresa Colomer e Cristina Correro (2015). Segundo as autoras, a qualidade dos livros para bebês deve ser medida tanto em termos estéticos quanto em sua adaptação aos estágios de desenvolvimento psicológico dos leitores. Questões como número de palavras, gênero literário, relação texto/imagem, quantidade de personagens, foco narrativo, sequenciamento, ambientação e tem poralidade devem apresentar complexidade progressiva de acordo com a idade e a capacidade de compreensão das crianças.

É inegável que as pesquisas tenham favorecido nossa rela ção com os bebês e tudo o que envolve esse universo, incluindo a leitura. Todavia, ainda que os esforços nos levem mais e mais pró ximos daquilo que chamo de “a verdade dos bebês”, estaremos sempre tangenciando-a. Penso que sua força de indeterminação se impõe como obstáculo. Conforme Rose (1993), a ideia de que podemos conhecer o Outro (nesse caso, os bebês) objetivamente e à parte de nós mesmos, de nossas projeções e desejos, é falaciosa. Para atravessar a distância – quase ruptura – que separa adultos de crianças, seria preciso derrotar o inconsciente e sua face materia lizada na linguagem. Para Rose, nossas tentativas não passam de perseguição, busca ou mesmo sedução. Tampouco se pode desconsiderar a diversidade daquilo que chamamos de infância, com todos os seus atravessamentos bioló gicos, socioculturais e até políticos. Mesmo as questões mais científicas (e por isso consideradas mais objetivas), como a progressão do desenvolvimento cognitivo e psíquico, podem ser relativizadas quando acrescentamos à equação outros elementos. Se a categori zação nos ajuda a ordenar o mundo e a sistematizar nossas ações, ela também nos confunde ao mascarar sua artificialidade frente a nossa natureza caótica. Pluralidade é o que nos define, adultos e crianças.

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Eis, portanto, o que chamo de impossibilidade: identificar, editar e publicar livros feitos sob medida para os desejos (que infe rimos), necessidades (que estabelecemos) e competências (as que logramos detectar) dos bebês. Mais do que um desafio, considero a tarefa impraticável. Não porque a leitura com a primeira infância seja impossível ou desaconselhada, mas porque a incumbên cia outorgada a editores se assenta em uma premissa improvável. Isto é, que somos capazes de acessar as demandas de cada sujei to-bebê e de unificá-las em um conjunto mais ou menos estável de características. E mais, que se considere plausível precisar o que é melhor para eles.

Por isso, argumento que o livro ideal, criado na medida exata das competências, desejos e necessidades dos bebês, é uma ficção. Seja porque as crianças são diversas (mesmo as mais novas!) e seus gostos e preferências mudam de sujeito para sujeito, seja porque nunca acessaremos completamente os seus pensamentos. Como bem observa Agamben (2017, p. 15), “deve mos parar de fingir que sabemos o que é uma criança. (...) Tudo o que sabemos da criança é que ela torna inútil tudo aquilo que acreditamos saber sobre o homem”.

Isso não nos exime de continuar experimentando. A cons ciência de nossa limitação serve apenas como lembrança de que preservar as alteridades pode ser desafio mais interessante que o empenho em cercá-las a todo custo. Talvez porque minha condição de editora literária me desvencilhe (ao menos em parte) da obediên cia à ciência, à pediatria e à psicologia infantil, tomo a liberdade de aceitar o acontecimento infância como mistério original. Livre de tal obrigação, posso passar a outras questões. Sendo a literatura uma arte do estranhamento, por que negar aos bebês a experiência da incompreensão, do susto diante do desconhecido? Especialmente nessa etapa em que o mundo é floresta a desbravar! Nem tudo é compreensão no reino da leitura. Além disso, em um mundo obcecado pela transparência, abrir espaço para as sombras não parece má ideia. Assim, se não queremos que os impe

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rativos da clareza limitem a experiência leitora (em qualquer idade), precisamos acolher as interrogações.

Sigo acreditando que a saída passa pela diversidade. Editar e mediar livros para bebês que deem conta do seu entorno, que falem do que é familiar, mas também daquilo que é estrangeiro. Obras do tipo “primeiras palavras”, que ajudem as crianças a nomear o mundo material, e aquelas que lhes dizem do que não se toca nem se vê, oferecer-lhes abstrações. Poemas, narrativas mais ou menos com plexas, com ou sem palavras, personagens de todo tipo, narradores de toda ordem… Livros publicados por editoras grandes, médias, pequenas e minúsculas, cujas perspectivas sejam as mais variadas. Livros-brinquedo, livros-objeto, livros de imagem, livros ilustrados e sem ilustração, que não percam de vista a dimensão artística e lite rária. Obras pequeninas que caibam nas mãos dos bebês e também as maiores, em cujas páginas eles possam mergulhar. Publicar livros que cresçam junto com os bebês, essa sim me parece uma missão justa para os editores de literatura. Obras que não almejem a compreensão imediata e que, por seu enigma, convoquem as crianças a novas leituras. Que acolham a pluralidade e celebrem nossa existência sinuosa e pouco linear; que não deem conta de tudo o que somos e, por isso mesmo, nos permitam fanta siar o que poderíamos ser. Por tudo isso, faço minhas as palavras de Érica Lima, “insisto na diversidade e aposto na criança” (2017, p. 60).

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Por que o livro para

bebês e crianças pequenas?

Tudo isso para dizer que no princípio não era o verbo, e sim a voz. E o espanto, a intriga.

Os começos

Começar. Primeiros contatos, primeiras sensações, primeiros gestos, primeiros movimentos. Fora e dentro. Contorno. Algo se imprime nos começos do corpo. Pelos poros, pela pele, pela boca, pelos olhos e ouvidos. No início da vida, vive-se de primeiras vezes. De surpresa, de espanto, de enigma. Tudo é sentido e dito de fora, ouvido. O mundo entra! Mas o que ele significa?

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A infância, que etimologicamente carrega a negação, a falta, a ausência – infans, aquele que não fala –, para além do foco na capacidade de falar, pode ser entendida como condição da linguagem (AGAMBEN, 2005, p. 67). Para falar é preciso... hiato, vazio, não correspondência entre a percepção e a coisa, entre a imaginação e o objeto. Isso não se ensina, mas se transmite, se vive e se expe rimenta. Daí vêm as palavras, os símbolos: no lugar do objeto. E, embora os objetos existam apesar da nossa vontade ou condição de nomeá-los, nossa relação com eles se dá sempre e somente pela linguagem, via simbólico e imaginário.

A experiência da infância evidencia essa condição humana –de não ter acesso direto ao real –, mas ela vai se decantando ao longo da vida e produzindo a ilusão de que algumas palavras são adequadas a determinadas coisas, de que elas sempre existiram ou sempre sig nificaram o que sabemos que significam. Isso acontece com a pala vra livro. Na etimologia, ela vem de liber, designando uma camada fibrosa entre a casca e o tronco da árvore. Antes do latim, o termo indo-europeu leubh significava ‘tirar uma camada, descascar’. Essa ação nomeou um lugar, que poderia não ter tido nome... Esse lugar, por sua vez, foi transformado em objeto (papiro, pergaminho, papel) e assumiu uma função, um uso: o de ser suporte para a escrita. Vamos nos esquecendo dessa lenta e ininterrupta construção histórica, social, política e cotidiana que é a linguagem. E que ela participa da integração dos objetos e suas interpretações no universo humano. No caso da escrita e do livro, sabemos muitas coisas interessantes. Sabemos que o livro existiu de várias formas: como rolos de pergaminhos, como códice, caderno de folhas costuradas, como página eletrônica que se rola para baixo ou se arrasta para o lado (HANSEN, 2019). A história é longa e ainda não terminou! Sabe mos que a escrita surgiu como uma necessidade de registrar e administrar a vida pública nas grandes cidades antigas, mas que ela dá existência, forma e destino a muitas outras necessidades humanas, como a de informação, de descobertas, conhecimentos, percepções e de literatura. Esta última belamente entendida como

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o lugar onde se pensam as palavras; as palavras coletivas e, portanto, e também, as palavras privadas. A literatura é o lugar onde se constrói o sentido e o significado da existência, ou seja, o lugar onde se dá nome a isso que chamamos de realidade. Uma árvore existe. A realidade árvore é algo que o homem constrói. A realidade é a forma humana de relacionar-se com o existente. Quando pensamos ou dizemos uma palavra construímos uma realidade. Quando pensamos ou dizemos uma frase construímos o sentido de uma realidade, ordenamos a existência, a tornamos humana, a tornamos acessível, criamos uma ordem de relação com ela. (BÉRTOLO, 2014, p. 127)

As palavras são de todos, mas é preciso se apoderar delas, é necessário que elas nos dêem corpo, que signifiquem a vida, que passem pela nossa voz. Falar é, portanto, dar contorno ao mundo. Falar é ler o mundo, ler os outros para, depois e simultaneamente, ler e produzir palavras, símbolos, sons, imagens. Essa é uma maneira de compreender como começa a história do leitor, uma pergunta que se faz Yolanda Reyes (2010) no prefácio de sua Casa Imaginária. A história do leitor começa justamente no fato de que somos lidos, interpreta dos, escritos. E é por isso que, no livro, podemos ser acolhidos em nossa sede de encantamento, de significação e de reencontro.

Dos diversos instrumentos utilizados pelo homem, o mais espeta cular é sem dúvida, o livro. Os demais são extensões de seu corpo. O microscópio, o telescópio são extensões de sua visão; o telefone é a extensão de sua voz; em seguida, temos o arado e a espada, extensões de seu braço. O livro, porém, é outra coisa: o livro é uma extensão da memória e da imaginação. (BORGES, 2002, p. 13)

Tendo tudo isso em vista, busco elementos que possam nos ajudar na compreensão das relações possíveis entre os bebês e os livros como ferramentas da fantasia, da significação, da ausência.

O bebê e suas leituras

Aprendemos com os psicanalistas que o bebê precisa do outro, é no outro, se conecta com o corpo do cuidador, se faz extensão desse

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corpo, nele encontrando a si mesmo e o mundo. Nesse gesto, o bebê interpreta quem o materna, lê seu rosto, suas expressões, reações, rit mos, sensações. O simbólico encontra aí lugar e passagem.

Pelos estudos de Spinoza, Nietzsche, Freud, Winnicott e tantos outros, sabemos que o cuidado com os aspectos físicos e cognitivos do desenvolvimento infantil não basta, é preciso tam bém considerar a esfera afetiva e sensível do permanente processo de maturação humano. Na trilha de Vygotsky, o filósofo, educador e psicólogo espanhol Angel Pino (2005), por exemplo, fala sobre a indissociação e simultaneidade do duplo nascimento humano: o natural e o cultural são articulados. O mundo é estranho porque nossos recursos de percepção são sempre insuficientes para apre ender a diversidade cultural humana (PINO, 2005, p. 55). O mundo sempre será estranho – não só para quem acaba de chegar –, por que o desencontro entre a realidade e suas interpretações é perma nente, complexo, reatualizado. E é justamente isso que nos impele a falar, formular, inventar, redizer, de novo e com outras palavras, outros traços, cores, gestos e arranjos: nossos, próprios, singulares e históricos, coletivos, sociais.

Sabemos que, para acederem ao universo humano, os bebês precisam ser envolvidos pela voz do outro em todas as suas dimensões: conversas, relatos, descrições, narrações, canto – para eles, com eles e deles. Pergunto, assim, quando e como o livro pode chegar na vida do bebê? Evélio Cabrejo-Parra (2011), renomado psicolinguista colombiano radicado na França, diz que primeiro o bebê aprende a musicalidade da língua, sua prosódia. Aos poucos, ele percebe que esse canto da linguagem também serve para particula rizar e nomear as coisas. Falamos com o bebê do que se apresenta, do que se aponta e do que está ausente, do que já foi ou será.

Por trás de tudo isso está um problema de linguagem, e o destino do ser humano, de todo menino e toda menina, depende da lin guagem, da língua. Quando a língua anda bem, as coisas andam bem, se a linguagem está unicamente na língua cotidiana e não está na língua da literatura que permite organizar um imaginário muito mais rico, mais complexo, o destino deste ser humano não

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será o mesmo. Todo bebê sai do ventre da mãe para cair no ventre da língua, e desse ventre não sai nunca, esse ventre tem muitas ou poucas possibilidades, muitas alegrias e muito sofrimento. A lín gua é generosa, ainda quando não fazemos absolutamente nada, pelo menos temos nosso nome e sobrenome, nossa data de nasci mento e de morte, e esse é o romance mais curto que a língua nos permite. Entramos em algo que finalmente existia antes de vir ao mundo, entramos na língua, nós vamos, e a língua continua, e ela nos contém para sempre. (CABREJO-PARRA, 2011, p. 43)

Nesse sentido, o autor assinala que oferecer histórias aos bebês e às crianças é colocá-los em posição de escuta. E escutar é compreender algo à sua maneira – passo importante para a elaboração de si e dos acontecimentos. Ele afirma ainda que o rosto e a voz são nossa primeira leitura. O bebê lê... um livro sem páginas: a história de quando nasceu, o que acontece naquele dia, adultos que contam casos, cantam, riem, choram, se espantam... Ele lê a voz, que deixa uma primeira marca literária no bebê, uma marca poé tica. Não se trata do que as palavras dizem, mas de como soam. E as crianças pequenas são ouvintes poéticos: canções de ninar são dramáticas, como a literatura e as histórias de tradição popular. Elas dizem coisas terríveis, mas com linguagem cuidada, ritmada, lúdica, o que as faz suportáveis, transponíveis, reinventáveis. Cabrejo-Parra diz que as histórias são usos mágicos da palavra: lembrar o que não está, curar, ensaiar uma voz, inventar, pensar, operar com signos e com o invisível. Na voz que conta está a presença simbólica do outro, daquele que nos deu a sonoridade da linguagem. Esse outro se transforma em companheiro interno: é o que permite falar con sigo mesmo, olhar a vida como uma história que se conta, um livro que se lê e se escreve...

O psicolinguista entende, assim, que o psiquismo se realiza em três movimentos que fazem parte de uma atividade de leitura. Primeiro, lemos informações que vêm do outro, do mundo dos afe tos: do amor, da raiva, do reconhecimento, da mentira. Em segundo lugar, usando nossos sentidos, lemos informações do mundo físico, externo. E, como consequência dessa relação outro-mundo, um eu

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advém e podemos ler algo do mundo interno, aquilo que cada um experimenta por si só. Para ele, a intersubjetividade participa da criação do nosso livro interno, metáfora que entende o objeto livro como um espelho, um eco (ou uma ponte) de necessidades e vivên cias interiores (CABREJO-PARRA, 2012, p. 32).

Quando o livro chega

Acalantos e histórias sobre separação e medo, sobre a dureza do início da vida de mães e bebês são recorrentes em todas as culturas. Observamos que em diversos lugares e tempos a humani dade inventou jogos de triangulação, que favorecem a organização psíquica do bebê, como chocalhos, brinquedos e livros. O livro pode chegar, portanto, como um objeto que permitirá não mais apenas o olhar face a face, mas o olhar conjunto para um mesmo objeto da cultura que simboliza e dá acesso a grandes questões humanas.

Sabemos que nas brincadeiras de vai-e-vem e de esconder um objeto ou o rosto, os bebês encenam a dor pela separação da mãe e a alegria por reencontrá-la. Freud (1920/2010), em Além do princípio do prazer, analisa com grande sensibilidade o comporta mento das crianças nessas brincadeiras e a ambivalência de seus sentidos. Talvez essa análise freudiana seja uma das precursoras da compreensão do brincar como uma atividade fundamental para a constituição do sujeito, como uma forma de linguagem e como um modo de elaborar o desamparo, as angústias, as perdas e os sofrimentos da vida. Ora, encontramos nos livros destinados a bebês e crianças diversas formas de lidar com esses sentimentos, seja pela temática diretamente, seja pelas relações com a imagem (estética, técnica, cores) ou pelo modo mesmo de construção do objeto livro (virada de página, formato, direção de leitura, dobras).

Um pequeno retângulo amarelo com um pássaro lilás de grandes olhos. O que tem aí? é a pergunta que intitula o livro de Rosinha lançado em 2018 na Coleção Literatura de Colo da editora Jujuba. Curioso como essa questão se coloca diante de todos os livros: abrimos um livro porque queremos saber o que ele guarda, o

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que nele se esconde... E essa pergunta se repete, a cada virada de página, vinda de personagens diferentes que descobrimos escon didos atrás de grandes abas. Um livro que propõe diversas brincadeiras de esconder e achar, de contar, de acumular, de adivinhar. Ele permite que crianças pequenas vivenciem as emoções do inesperado, do não-sabido, da surpresa, tanto na concretude do objeto quanto na fantasia da narrativa.

Michel Melot, grande bibliotecário francês, diz que o livro é um objeto que “nasce da dobra”. É ao dobrar uma folha de papel ao meio que o livro instaura a possibilidade de conter o tempo; nasce, assim, um antes e um depois, uma possibilidade de ir e voltar – o que não acon tecia com os textos em forma de rolo que exigia a leitura sempre no mesmo sentido. Nesse livro de Rosinha, a dobra esconde e surpreende, encadeia a história e amplia saberes estéticos. Melot entende ainda que a encadernação circunscreve o pensamento, produzindo um efeito de totalidade e unidade. Ainda segundo ele, “o livro não só guarda ideias e sonhos, ele faz reinar a ordem no mundo das ideias e dos sonhos. Início, continuação e fim” (MELOT, 2019, p. 63).

Um livro começa e acaba, abre-se e fecha-se, de forma linear e orientada, em seu princípio irreversível como o tempo, ainda que nada impeça que o leitor comece a lê-lo pelo fim ou interpolando os capítulos. Fechar o livro não é menos emocionante do que abri-lo. (MELOT, 2019, p. 60)

Para as crianças, todo livro faz isso materialmente, no gesto e em suas próprias mãos. É muito comum assistirmos a bebês fechando livros e dizendo bô, como um fim em si e como uma encenação de todo fim. O objeto livro – por seu próprio formato e pelas ações a que convida: o abrir, o folhear e o fechar – é uma metáfora da vida. Assim, o livro, como artefato, como brinquedo, entra na categoria dos objetos e fenômenos transicionais, isto é, como um possível representante para o bebê da “transição de um estado em que ele está fundido com a mãe para um estado em que ele está em relação com ela como algo externo e separado” (PARREIRAS, 2008, p. 89). E o que permite essa representação da ausência e da sepa

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ração é o objeto em si e também o eco da voz que lê, o reencontro com a mesma melodia, as mesmas imagens, as mesmas texturas e pesos. Esse repertório de leituras e histórias permite que se leia o mundo e a si mesmo de modo plural: simbólico e político.

O que pode um livro?

Um livro. Um quadrado que cabe nas mãos. Texturas. Cores fortes, marrons e azuis. Letras. Um bebê negro que se pendura num O. O leitor o abre. Ele fica maior. Uma coisa vem depois da outra. São páginas. Duplas. De um lado, há uma palavra-imagem: sempre a mesma. De outro, um bebê negro: sempre o mesmo. Cenas, contex tos. Corpo e voz. Movimentos e letras. O menino encontra um livro. O menino está naquele livro. Vira, revira. O objeto acaba. O leitor o fecha. Para onde vai o menino? E o livro?

Ops, de Marilda Castanha, foi um dos primeiros livros bra sileiros endereçados aos bebês. É a narrativa corporal de um bebê acompanhada por diferentes representações pictóricas das letras que formam a interjeição ops. O livro foi lançado em 2011 pela extinta Cosac Naify em formato cartonado. Esta edição passou anos esgotada e a obra foi reeditada, em novo formato e com revisões na narrativa, em 2020, pela Jujuba.

O que um livro como esse faz? Para onde ele nos leva? A mim, leva a investigar essa pergunta: por que o livro para bebês e crianças pequenas? Lanço-a e relanço-a como quem joga dados: sabendo que há um universo de respostas possíveis, mas desejando a surpresa e o enigma dos arranjos de cada modo de respondê-la. Minha pergunta é interessada, comovida. Uma pergunta de quem, assim como as crianças, não está indiferente e não aceita que o óbvio seja resposta. Deixo-me habitar pela simplicidade, pela curio sidade genuína dessa pergunta.

Busco, assim, a singularidade do papel do livro na primeira infância. Penso no objeto, na materialidade, no formato, nas páginas, no papel, no tamanho, nas palavras e nas imagens, na autoria. Penso na permanência e no reencontro com o objeto livro. Penso no vínculo

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que esse objeto estabelece entre o bebê e o outro. Penso em seu contato com a escrita, com a cultura, com a diversidade, com a fantasia. Um livro pode muitas coisas. O livro diverte, encanta, emociona. O livro mostra mundos, transporta, transmite. O livro faz pensar, questiona, intriga. O livro cansa, exige, absorve. O livro traz visões, versões, saberes. Por mais abrangentes que essas percep ções possam soar, acredito na força de metáforas que carregam contradições, desafios, conflitos e espessuras. Em nossa sociedade, ora o livro é sacralizado, idealizado, museificado. Ora supervalori zado, onipresente, ordinário. Quase sempre é elitizado, pouco aces sível e distante. É baú, cofre, relicário. Passaporte, ponte, dádiva. Morada, cabana, caminho. Muitas são as metáforas: uma palavra por outra, que leva a outras ainda.

O livro é um direito

Ao longo da vida – e de um dia de vida – nos relacionamos de diferentes formas com a linguagem. Ouvindo sons, palavras, nomes, comandos. Ouvindo causos, histórias de improviso contadas no calor da emoção, do acontecimento, da tradição ou da memória. Ouvindo alguém ler uma narrativa escrita e observá-la se repetir, sempre a mesma, na presença daquele objeto específico: poder reencontrar aquela sequência de palavras e imagens, nome de autor, traços, estilos. Relações com a linguagem que são indispensáveis a todos. Pluralidade que está na voz e está também no livro.

Essa compreensão de Antonio Candido (2011) ao anunciar, em 1988, que a literatura é um Direito Humano exige uma luta permanente por seu acesso. Literatura entendida em sentido lato como capacidade e necessidade humana de narrar, fabular, imaginar nas diversas formas da música, da oralidade e da escrita. E sabemos da importância atribuída à escrita e da possibilidade de aceder a diversos lugares sociais quando se tem acesso à leitura crítica e autô noma do mundo e das palavras. Por isso, ler imagens e letras é algo que precisa fazer parte da vida de todos os bebês e crianças. Brincar de livro, brincar com o livro, o livro como brincadeira!

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Um grande retângulo com desenhos de folhagens azuis e animais encobertos por elas. Achou?, de Aline Abreu, editado pela Companhia das Letrinhas em 2021, é um convite. Ao abri-lo, encontramos uma trilha de formigas que, ora bem evidentes, ora camu fladas, irão acompanhar a leitura de todas as páginas desse jogo de achar e recomeçar. Yolanda Reyes (2010) fala sobre o importante papel da leitura na construção de saberes sobre a língua escrita, como crianças por volta de 3 ou 4 anos costumam perguntar por aquelas “formiguinhas negras dispostas nas linhas dos livros” (p. 67). É interessante como esse livro de Aline Abreu condensa a ques tão infantil sobre a letra e a representação imagética da formiga que, de fato, guia o olhar e costura a narrativa. O texto verbal per gunta pelos filhotes dispersos na imagem e o texto imagético coloca o enigma da letra simbolizado pela trilha de formigas. O livro con vida a um jogo de leituras de imagens e letras. Até que as formigas se reúnem para formar a palavra “fim” e se dispersam novamente, recomeçando a trilha.

Entender, portanto, que a linguagem apresentada nos livros é diferente da linguagem do cotidiano é um direito: o de aceder aos ritos e ritmos da cultura escrita. Ter contato com o campo da representação por meio de diversas linguagens artísticas é um direito: bebês, formigas, letras... ser um bebê, encontrar outros bebês, ver um bebê desenhado no livro, ver o livro na mão do bebê do livro, reconhecer -se como um bebê etc. Direito à diferença, direito à experiência. Os diversos modos de representar o mundo e as coisas, pela língua e pela imagem, vão se apresentando, assim, por meio dos livros.

Um quadrado amarelo com detalhes em azul e um patinho. Ou um quadrado azul com detalhes em amarelo e um menino? Ou ainda um enorme retângulo cartonado predominantemente azul de um lado e majoritariamente amarelo de outro com as mesmas cenas? Nas mãos das crianças, uma sanfona abre e fecha ou uma cerca, uma cabana, um muro... Ter um patinho é útil, da argentina Isol Misenta, foi publicado no Brasil em 2013 pela Cosac Naify e reeditado em 2018 pela Sesi-SP. É um livro com duas capas, dois títulos, dois começos,

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duas narrativas. Esse objeto representa na própria materialidade os diferentes pontos de vista sobre uma mesma relação: é o menino que tem o patinho ou o patinho que tem o menino? A relação de posse é a mais adequada para nomear o que se passa entre eles? As imagens de contornos pretos são idênticas dos dois lados, o que se alternam são a referência dos pronomes de primeira e segunda pessoa e os sujei tos e objetos dos verbos em questão. Um livro que mostra como o mundo é o mesmo e é diferente, que a contradição faz parte da nossa história e que existem muitos modos de olhar e de contar. Um livro que não resolve a dúvida, mas coloca essas questões pela narrativa e também por diversos aspectos da materialidade.

Perguntar-se, portanto, pela diversidade de linguagens e de existências é um processo e um direito que pode se iniciar cedo e de variadas formas. Quando um bebê tem contato com livros, ele pega, morde, lambe, cheira, joga. Descobre texturas, cores, pesos, vozes. Ele olha simultaneamente o livro e o rosto de quem lê. Ele investiga de onde saem aquelas palavras, onde elas estão: na voz ou no livro? Ele observa cores e ilustrações no livro e as reencontra no mundo, na vida. E assim aprende coisas muito complexas e importantes para sua construção subjetiva e social.

Mas as desigualdades também começam cedo. Há bebês e crianças que convivem com a linguagem escrita em casa, mas outros a descobrirão apenas na escola. O livro é, portanto, um objeto político. E sua circulação precisa ser garantida desde sempre para que todos possam construir saberes sobre a existência e o funcionamento da escrita e da arte, inscrevendo-se subjetivamente no mundo no contexto da linguagem (língua, imagem e objeto), isto é, da simbolização, da representação, dos dizeres sobre o mundo e sobre si.

O livro é também um objeto da cultura no qual se pode reconhecer pertencimentos, identidades e alteridades. Quando a relação com o livro é social e historicamente situada, ela pode ser um antídoto contra o confinamento cultural (PERROTTI, 1990), pois amplia o universo das histórias e das vivências do bebê, da criança e dos adultos-cuidadores. Outros tempos, outros espaços e outras

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pessoas, para além do universo familiar e geográfico imediato, passam a integrar o campo de experiências dos bebês e das crianças quando eles têm acesso aos livros.

O livro é ainda um importante objeto simbólico que contri bui para a inscrição dos pequenos na esfera do imaginário. O livro permite expandir nossa capacidade de sonho, de invenção, de fan tasia, de vivenciar outras vidas, de compreender e elaborar o que se passa conosco e com o outro, as contradições, conflitos e dife renças. Antonio Candido (2011, p. 181) diz que a organização da lin guagem literária permite que “os sentimentos passem do estado da mera emoção para o da forma construída, que assegura a generali dade e a permanência”, características do livro que constituem sub jetividades e sociabilidades na primeira infância.

Afirmar que o encontro com o livro é um direito de bebês e crianças traz também a questão de como as infâncias passam a interrogar a existência, a forma, o lugar e a função do livro. Há espe cificidades no livro para os pequeninos? O que desejamos que haja nesses livros endereçados aos bebês e às crianças?

O livro é, portanto, um objeto político, cultural e simbólico produzido por adultos. É o adulto que escreve, ilustra e publica. É o adulto que vende, compra, empresta, adota. É o adulto que sele ciona, coloca à disposição ou tira o livro do alcance das crianças. É o adulto que dá voz à narrativa, confere entonação, pula trechos. É o adulto que aponta elementos e conversa sobre a história. Enfim, é o adulto que medeia a relação entre os livros e os bebês e as crian ças pequenas em diversas esferas. Por isso, é preciso refletir sobre essas intervenções e sobre a ética do (re)encontro com a infância, sobre a experimentação desse território, mesmo que na condição de exílio (PELIZZONI, 2017), de alguém que já habitou, mas não tem mais acesso pleno ao universo infantil. Como a consideração dos pequenos leitores produz efeitos na forma como os livros circulam e são produzidos? Os livros citados acima são bons exemplos de confiança na subjetividade do bebê e da criança pequena, eles praticam formas de emancipação do pequeno leitor (LÓPEZ, 2018).

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As mãos do leitor

Com essa compreensão, chegamos talvez a uma ideia do papel do livro para bebês e crianças. O livro não é somente texto, história, informação ou conteúdo. Assim como a vida, os livros são frágeis e corruptíveis: “o papel se desgasta, seu conteúdo também” (MELOT, 2019, p. 54). Para os pequenos, a materialidade importa! Ela transmite algo, assim como a palavra e a imagem.

O livro é um objeto espacial que representa uma relação com o tempo nas próprias páginas e suas viradas. Mas diferentemente da fala, que se faz pela sequência um-depois-do-outro e, assim, narrativiza singularmente a cada emissão, o texto inscrito no livro é sempre o mesmo – letras e imagens aparecem como um mis tério que permite a permanência e o reencontro. Com o quê?

O livro é um objeto social e político, inventado para conter, de uma forma específica, lampejos da cultura: narrativas, informações, visões inscritas em palavras e imagens que permanecem e ultrapassam, até certo ponto, tempo e espaço – ou que circulam de forma diferente da oralidade e de outras artes. Assim, entendo que quando um bebê manipula um livro e encontra, por intermédio do adulto, imagens e palavras nesse objeto, ele começa a elaborar por si mesmo uma relação com o tempo, com a ausência, com a ficção, com a interpretação. O livro pode materializar essas abstrações para uma criança pequena, é um objeto complexo da cultura que está - ou deveria estar - ao alcance das mãos.

A autora e artista sul-coreana Suzy Lee (2012), em seu famoso Trilogia da margem, vê o livro impresso como forma de arte capaz de “conter uma história íntima, acessível, direta, portátil, viável, repro duzível, produzível em massa e universal”. Ela se pergunta o que faz de um livro um livro: basicamente são folhas de papel com qua tro cantos, uma capa mais espessa, uma linha de encadernação (a dobra central). Em sua compreensão, o livro é uma tela que projeta histórias e o leitor sente o livro fisicamente de diversas formas, pela posição, abertura, giro, sequência, formato. Ela considera, assim, que os dedos do leitor fazem parte do livro. A ideia de tempo difere

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a cada página porque o leitor pode, justamente, ajustar o tempo ao virá-las. E o significado ocorre justamente entre elas, é dado pelo ato de virá-las (LEE, 2012, p. 120).

A última página é virada. A história chegou ao fim. O livro é fechado. O mundo também é fechado. E então ele é rapida mente colocado no canto de uma estante. Arte que pode ser posta em uma estante. Arte do tamanho da estante. Bem, isso não é maravilhoso? (LEE, 2012, p. 177)

O autor brasileiro Odilon Moraes entende também que todo livro é um objeto, mas frequentemente sua condição hegemônica de suporte para um texto ofusca essa sua qualidade. É isso que os adultos fazem: desprezam a qualidade de objeto de um livro. E, ao contrário, é ela que os bebês enfatizam. Ao ler, os pequenos viram e reviram um objeto. Exploram-no por diversos lados, em várias direções. Atentos ao objeto livro, autores como a venezuelana Menena Cottin, no livro Duplo duplo (Pallas, 2013), criam obras em que um desenho contrastante pode ser lido em diferentes direções com sentidos diversos. Uma mão puxando um zíper pode ser lida como abrir ou como fechar, dependendo do ângulo de que se olha, assim como um pé com o sapato desencaixado, uma mão com uma bolinha perto, um dedo apontado, uma bola branca em fundo preto têm significados opostos dados apenas pela diferença na forma de olhar. Um livro como esse permite que o adulto revisite suas certe zas sobre o funcionamento da leitura e que a criança seja ativa na exploração do objeto livro com a anuência e a surpresa do adulto.

Em muitos momentos da história da literatura e da escrita, a utilização do livro como suporte desprezou a dimensão poética do objeto, nos diz Odilon Moraes (2013, p. 160). E a falta de familiari dade das crianças pequenas com o livro abre possibilidades infinitas de sua exploração como objeto, tanto pela própria criança – que irá elaborar suas relações com a vida e a cultura na e pela materiali dade – quanto por autores e mediadores – que aprenderão a explo rar muitas formas de contar histórias e provocar conversas sobre o mundo e a existência. Desde sempre.

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ROSINHA. O que tem aí? Coleção Literatura de colo. São Paulo: Jujuba, 2018.

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Bibliotecas para a infância: um projeto de fantasia

Em um pequeno texto de difícil classificação, o escritor uruguaio Eduardo Galeano narra o episódio em que, durante uma visita turís tica a Ollataytambo, no Peru, um menino aparentemente muito pobre se aproxima e pede a ele que o presenteie com uma caneta. Justificando não poder se desfazer da única caneta que possuía naquele momento, o escritor se oferece para desenhar um porqui nho na mão do menino. A notícia logo se espalha e muitas crianças, todas muito pobres, se apresentam para ganhar também um desenho. Entre elas, um menino bem pequeno, esfarrapado, mostra ao escritor um relógio desenhado no pulso, dizendo que foi presente de um tio que vive em Lima, capital do país. Comovido, o escritor se dispõe à imaginação do pequeno e o pergunta se o relógio funciona bem. A resposta do menino, que encerra o texto, é absolutamente

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surpreendente: “Atrasa um pouco”. Não há o que dizer diante de tal resposta. Não, pelo menos, com a rapidez que o momento exige. Por isso, a narrativa termina abruptamente, em um susto.

O pequeno texto tem como título Celebração da fantasia e anuncia a beleza e a potência da história contada. Mais que a alegria passageira das crianças que ganharam desenhos e brincaram com eles em suas mãozinhas, o menino do relógio fez de sua vivência da fantasia uma experiência, tomando a existência do objeto desenhado como absoluta realidade, até mesmo nos lamentáveis atrasos.

A ideia de fantasia consignada por Galeano está presente nas reflexões do escritor Bartolomeu Campos de Queirós, apre sentada como ancoragem para sua escrita e também nas ativida des de formação que ao longo de décadas ofereceu a educadoras no Brasil e no exterior.

Ao fantasiar, experimento a liberdade. Não há preconceitos, limi tes ou paredes nesse ato fundador do humano de buscar (em vão) decifrar o absoluto. Fantasiar é o exercício de indagar sobre o meu tamanho para concluir, sempre, que minha inquietação diante da finitude não resiste a horizontes. Há sempre um depois do depois.

E só no trabalho criador encontro lugar para fazer da fantasia matéria primordial de meu ofício. (QUEIRÓS, 2014, p. 69)

O entendimento da fantasia como algo que não existia e que a partir de nossas demandas, desejos e indagações rompe nos sos horizontes individuais e coletivos e se torna realidade é o eixo que proponho para pensar bibliotecas para a infância.

As bibliotecas hoje

As bibliotecas podem ser definidas de várias maneiras e encontram, na bibliografia sobre o tema e no entendimento do senso comum sobre suas funções, pontos de consenso. Indepen dentemente de sua ênfase, as concepções estão ancoradas em aspectos que podem ser considerados eixos de suas formas de reali zação no Brasil: organização, guarda e disponibilização de materiais bibliográficos e documentais; preservação da memória local; pres

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tação de serviços de informação à comunidade na qual está inserida; realização de atividades de promoção da leitura e de inclusão digital; oferta de programação cultural; apoio a pesquisas escolares e de interesse geral.

Com algumas variações, estes são os eixos mais comuns de atuação de bibliotecas de acesso público no Brasil, como as públi cas e as comunitárias. Preservadas as especificidades do ambiente escolar e seu compromisso com projetos pedagógicos, até mesmo as escolares partilham de alguns desses eixos de atuação, especial mente no que toca aos empréstimos de livros, ao apoio a pesquisas e à realização de atividades para a promoção da leitura.

O advento e a massificação do acesso à internet e às muitas possibilidades que ela abarca provocaram, na última década, questiona mentos em relação às bibliotecas. A oferta de informações e materiais de leitura – livros, revistas, jornais – em computadores, smartphones e tablets ligados à internet sugeriu a muitas pessoas, não sem razão, que as bibliotecas estavam perdendo parte de sua razão de ser.

Porém, para quem se dedica a refletir sobre a questão, há aspectos sobre o tema que precisam ser considerados. Os mais sim ples e óbvios são os que nos dizem que apesar da grande expansão do acesso à internet, especialmente em função da populariza ção dos smartphones, tal cobertura ainda não alcança boa parte da população brasileira. Aliás, ainda é considerável no país o número de pessoas que sequer contam com energia elétrica (e com saneamento básico, habitação, segurança alimentar...).

Se o principal problema fosse esse, haveria solução relativamente fácil e rápida para a garantia do direito à leitura no Brasil. Bas taria um investimento robusto para a aquisição e a distribuição de equipamentos de acesso à internet e para a ampliação do serviço de oferta de rede em todo o país – não faltariam autoridades e empresas empenhadas em levar a proposta a cabo, interessadas nos gran des lucros que tal empreitada vislumbraria. Para quem entende que as bibliotecas existem para disponibilizar livros e outros materiais de leitura para a população, a questão estaria resolvida.

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Mas há quem entenda que as bibliotecas são mais potentes e que devem se oferecer como espaço de formação, para além da oferta de serviços pela qual mais comumente são conhecidas. Obviamente, está em seu campo de atuação, no centro dele, a disponibi lização de acervos bibliográficos para a pesquisa e a leitura de seus usuários, principalmente em um país cuja renda média não permite que livros façam parte da cesta básica das famílias. Mas a ação biblio tecária, que justifica e torna fundamental a existência de bibliotecas, extrapola a simples oferta de livros. Mais que garantir o acesso a con teúdos, sejam eles quais forem, as bibliotecas que se comprometem com um projeto democrático e emancipador trabalham para que as leituras a que convidam seus leitores contribuam para que eles ampliem sua compreensão do mundo, do tempo e do espaço em que vivem, das relações de que participam, orientando projetos individu ais e coletivos. Nessa concepção de biblioteca, tudo converge, entre erros e acertos, para o fortalecimento de tal projeto:

Por sua arquitetura, definição de seu público, princípios que ordenam suas coleções, pelas opções tecnológicas que determi nam a acessibilidade e a materialidade dos textos, assim como pela visibilidade das escolhas intelectuais que organizam sua classificação, toda biblioteca dissimula uma concepção implícita da cultura, do saber e da memória, bem como da função que lhes cabe na sociedade de seu tempo. (JACOB, 2008, p. 10)

A escolha de cada livro na composição do acervo, o desenho das regras de funcionamento (o que pode, o que não pode, dias e horários de funcionamento, prazos de empréstimos, dentre outros), a proposição de atividades, o acolhimento a distintos públicos, a cons trução de estratégias de acessibilidade para pessoas com deficiências e necessidades específicas e a organização do ambiente sustentam projetos de ação bibliotecária e apontam para horizontes almejados.

Assim, mais que garantir a oferta de livros e materiais de lei tura, bibliotecas com projetos democráticos e emancipadores acolhem em suas formas de realização a criação de condições objetivas e subjeti vas para que as pessoas – todas as pessoas – possam delas se apropriar.

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Nessa perspectiva, podemos dizer que as bibliotecas, principalmente as de acesso público, continuam sendo muito importan tes hoje. Ainda que pareça contraditório, se pensarmos que vivemos imersos em todo tipo de informação e até mesmo sufocados por avalanches de conteúdos que nos alcançam a cada minuto, a ação bibliotecária pode nos ajudar a organizar o excesso, sem dispensar a diversidade e as contradições. Especialmente, pode criar caminhos, sem evitar desvios e voltas, necessários para nossa formação e ama durecimento, para o conhecimento do que ao longo do tempo e do espaço a humanidade produziu e registrou com a escrita: as narrati vas literárias, as artes, a história, as memórias, as ciências. Aparentemente, isso parece dizer pouco às crianças. Como pensar bibliotecas para as crianças, incluindo os bebês e as muito pequenas, nessa perspectiva?

Um projeto de biblioteca para as crianças São muitas as perspectivas para o estudo e a observação da infância e do que pode ser tomado como infantil. As crianças são sujeitos biológicos, sociais, históricos, econômicos, geográfi cos, religiosos e culturais e nossas tentativas de compreender de maneira homogênea tantas existências em suas concretudes nave garão, invariavelmente e como tudo o mais na vida, em incertezas e incompletudes. A ciência da impossibilidade de alcançar inte gralmente e com segurança a infância nos impõe cuidados e exige de nós olhares e escutas mais atentos às crianças que chegam às bibliotecas e também àquelas que, por algum motivo, não se apresentam. Esta é, indiscutivelmente, a primeira condição para que as bibliotecas estejam, efetivamente, abertas à infância, desconstruindo ideais de crianças e se abrindo para as muitas realidades existentes: famílias com pouco ou nenhum acesso a bens culturais de prestígio, mas com intensas vivências em tradições populares; crianças marcadas por situações de vulnerabilidade social; famílias aparentemente bem estruturadas, mas com pouco tempo dedi cado aos pequenos, incluindo momentos de leitura; famílias que

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demonstram intimidade com os livros e com o ambiente da biblioteca; crianças que demandam atenção e recursos específicos em função de alguma deficiência...

A compreensão da diversidade da infância traz em si desdo bramentos e sustentação para toda a ação bibliotecária, incluindo o horizonte da fantasia, celebrado por Eduardo Galeano e Bartolomeu Campos de Queirós, como instrumento de elaboração de percepções mais agudas sobre o mundo e a vida e de construção de caminhos até então não imaginados ou interditados para alguns grupos sociais.

Uma boa coleção de livros, com diversidade de autorias e de experimentações estéticas, convida as crianças, desde muito peque nas, a se apropriarem da língua de maneira mais potente, compreen dendo que as mesmas palavras que comunicam e organizam a rotina também brincam, rimam, contam e silenciam histórias, ampliando a percepção do espaço e do tempo vivido. Vinculadas à materialidade do livro – papel, formato, peso –, as narrativas, em verso, prosa e ima gens, dilatam o momento da leitura, criando um universo paralelo de experiências, mas objetivamente marcado pelo passar das páginas. Quanto mais diversa a coleção de livros para as crianças, mais inventi vos e generosos serão os convites feitos aos pequenos, mostrando a eles as coisas que existem e as que poderiam existir.

São muito comuns os discursos que professam as preferências das crianças, orientando que elas gostam disso e daquilo, que seus livros preferidos são os que tratam de temas conhecidos, como os animais, o ambiente doméstico, o corpo, dentre outros. Não há dúvidas de que os pequenos demonstram grande interesse no reconhecimento de sua existência nas páginas dos livros, mas isso não significa que as ofertas para as crianças devam se restringir a esses contornos. O importante é que palavras, ilustrações, materiais e for matos sejam convites a experiências mediatas, que extrapolam a vida comum e o cotidiano, ainda que seja em sua reinvenção.

A escritora argentina Graciela Montes nomeia os percursos leitores menos previsíveis e seguros como “jogo do explorador”, marcado por incertezas e ambiguidades, por enigmas e desafios,

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em contraponto ao que considera “jogos do poder”, que validam certezas e esvaziam incômodos:

Certo é que também houve – e há – muitas histórias para crian ças que escondem lições de bom comportamento, histórias que talvez finjam explorar, mas que, na realidade, jogam o jogo do poder, já que se dedicam a “insuflar” certezas e de modo algum a dialogar com as incertezas. Essas histórias procuram mais domesticar o leitor – ou tutelá-lo – do que levá-lo para passear por lugares incertos, perigosos. (MONTES, 2020, p. 112-113)

As diferenças entre livros mais potentes aos “jogos do explorador” e mais propícios aos “jogos de poder” podem ser muito tênues e não são estáveis. As possibilidades de leitura sempre podem ser reduzidas ou ampliadas pelo repertório de cada leitor e por suas condições para ler, contribuindo bastante para suas trajetórias leitoras. Mas não há dúvidas de que narrativas esteticamente mais elaboradas, realizadas na ordem das melhores práticas editoriais, se dispõem mais às descobertas. Assim como a constituição do acervo bibliográfico, o espaço físico da biblioteca é algo a ser observado com atenção. Para que os bons livros estejam disponíveis para as crianças, para além das portas abertas e da gratuidade dos serviços bibliotecá rios, é necessário que o espaço físico da biblioteca seja o mais acessível possível para os pequenos leitores, que devem poder circular pelas estantes e encontrar um jeito confortável para se acomodar e folhear os exemplares escolhidos, incluindo, claro, a existência de infraestrutura que permita seus cuidados: banheiros adequados, fraldário, mobiliário seguro e acolhedor, dentre outros aspectos. Isso implica, naturalmente, o acolhimento dos adultos que acompanham as crianças, que não costumam estar sozinhas em espaços públicos. Em estruturas simples ou sofisticadas, com recursos menos ou mais confortáveis, o importante é que as pes soas se sintam bem-vindas, seguras e à vontade para explorar o espaço e as estantes, com os cuidados específicos que cada faixa etária, no caso das crianças, exige.

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O atendimento atencioso da bibliotecária e de outras profissionais deve orientar os leitores de todas as idades, desde os mais pequenos, sobre o funcionamento da biblioteca, de maneira a ajudá-los a compreender as regras e seus fundamentos de organização para seu melhor uso coletivo e comum. É importante observar que não se trata de ensinar regras apenas para que elas sejam cumpridas, mas sim para que possam ser compreendidas na ordem da biblioteca como instituição que guarda, sistematiza, organiza e disponibiliza a cultura escrita materializada em livros para muitas pessoas. Concertados por bibliotecárias e demais profissionais que atuam nas bibliotecas, os serviços e atividades oferecidos às crianças devem vislumbrar os “jogos de exploração”, professados por Gra ciela Montes e íntimos do horizonte de fantasia de Eduardo Galeano e Bartolomeu Campos de Queirós. Isso significa que toda a rotina deve convergir para a apropriação do espaço e para a aproximação das crianças e suas famílias com os livros, em um exercício de valorização da infância e das experiências que podem ser realizadas nas leituras. Mais que a preocupação com a formação de crianças leitoras, que segue sua marcha perene se existentes as condições para tal e na exigência constante de políticas públicas que as garantam, nossa atenção deve se voltar à experiência dos pequenos de ter um livro em mãos, de poder manuseá-lo, de ouvir e contar suas histórias, de ver suas ilustrações e também de abandoná-lo por algo que momentane amente pareça mais interessante e promissor. Dito de outra maneira: que crie condições para que as crianças, desde muito pequenas, pos sam participar da cultura da biblioteca e produzir suas formas de participação na instituição. Tudo isso deve ser acolhido pelas bibliotecas, que aos poucos podem se mostrar como espaço de formação e de liberdade, onde as crianças aprendem a estar e a partilhar livros, aten ções, silêncios e, principalmente, o desejo de conhecer.

Por fim, mas não menos relevante, é preciso reafirmar e prote ger, intransigentemente, o caráter público das bibliotecas de que aqui tratamos, entendido como o que é de todas as pessoas e para todas as pessoas, sem segmentações ou perspectivas assistencialistas. As defi

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ciências e singularidades devem ser consideradas partes constitutivas de suas existências individuais e coletivas, de quem juntos somos como sociedade, e contempladas na construção da ação bibliotecária, e não como atendimentos complementares a algo que se considera principal.

As bibliotecas devem ser pensadas e realizadas, cotidianamente, para todas as pessoas, garantindo a cada uma delas as condições para par ticipação em seus serviços e suas atividades, como consignado pelas reflexões do Laboratório Mais Diferenças:

(...) no convencimento de que esse para todos, esse para todos em geral e para ninguém em particular, esse para qualquer um, exige conjugar a igualdade e a diferença de outro modo, e não somente fazer políticas especiais de inclusão para grupos específicos e diferenciados de população. (MAUCH, 2017, p. 16)

Para isso, são necessários, em muitos casos, recursos que garantam o acesso seguro ao espaço físico e que permitam a experimentação dos livros, como arquitetura inclusiva, sinalizações efi cientes, equipamentos de leitura para pessoas com distintas deficiências, livros acessíveis... O importante é a compreensão de que tais recursos são meios, e não fins em si mesmos.

Não parece tarefa fácil pensar e construir bibliotecas que contemplem tanta diversidade, especialmente em um campo de infindáveis disputas como se mostra a infância, sempre alvo de mui tas tutelas. No Brasil de 2022, quando publicamos este livro, vive mos o recrudescimento do conservadorismo de costumes que com põe o governo de extrema direita no poder desde 2019. Isso afeta, indiscutivelmente, as crianças e as políticas a elas dedicadas, como na Educação, na Saúde e na Cultura.

No que toca à leitura e às políticas educacionais e culturais, a atenção à primeira infância é algo relativamente recente. Embora presente em pesquisas acadêmicas em todo o país nas últimas duas décadas, o tema ganha visibilidade entre educadoras brasileiras, para além do ambiente acadêmico, em 2010, com a publicação e o lançamento do livro A casa imaginária: leitura e literatura na pri meira infância, da colombiana Yolanda Reyes, no 12º Salão do Livro

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para Crianças e Jovens, realizado pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil no Rio de Janeiro, com a presença da autora. Desde então, as publicações, os eventos e os projetos para leituras com crianças muito pequenas vêm ganhando espaço no Brasil.

Entre erros e acertos, movidas pelo entendimento da relevância da leitura na primeira infância e das bibliotecas de acesso público como principais possibilidades de acesso a livros para a grande maioria das famílias brasileiras, seguimos nos dedicando a pensar caminhos para que a infância seja mais promissora e que os tempos sejam mais justos, em futuros que, ininterruptamente, se anunciam em cada minuto vivido no presente.

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REYES, Yolanda. A casa imaginária: leitura e literatura na primeira infância. São Paulo: Global, 2010.

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Este texto tem como tema o direito das pessoas com deficiência, um coletivo múltiplo, plural, que tem muitas histórias, mas histórias invisíveis, que ficam reduzidas a espaços muito pequenos. No Brasil, de maneira geral, não nos dedicamos a entender o direito, os marcos legais, talvez em função de um texto duro, que não dialoga com a maioria das pessoas, que parece se orientar por outra gramá tica. Muitas vezes penso que esse texto duro seja intencionalmente feito para nos afastar de sua leitura, para nos impedir de conhecer

1 Texto baseado na conferência O direito das pessoas com deficiência à leitura e a bens culturais, apresentado no Seminário As histórias de muitas pessoas, no hori zonte de todas, na programação do Festival Minas no Plural Literária, na Biblioteca Pública Estadual de Minas Gerais, em 12 de agosto de 2022. O evento foi realizado pelo Instituto Periférico.

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O direito das pessoas com deficiência à leitura e aos bens culturais¹ Carla Mauch

os nossos direitos. Mas se subvertermos essa lógica, podemos compreender que os marcos legais dizem respeito a vidas, a histórias, a pessoas, a grupos, a coletivos, a viver em comunidade, e talvez consigamos lutar por esses direitos de forma mais amorosa. Este é o meu objetivo: articular os direitos aos fazeres, à vida se construindo. E a vida se constrói com histórias.

Pensando nos direitos das pessoas com deficiência à leitura e aos bens culturais, eu resgato Paulo Freire, nosso mestre. Sabemos que a leitura do mundo precede a leitura da palavra, mas às vezes nos esquecemos disso. Para pensar nos processos de letramento, preci samos ler os mundos, mas historicamente oferecemos mundos muito limitados às pessoas com deficiência e a nós mesmos. Defender os direitos das pessoas com deficiência ou de outros coletivos é uma responsabilidade ética, nossa, de todas as pessoas, mesmo que não tenhamos deficiência. Há, antes de tudo, um compromisso ético com os outros, mas também, de forma quiçá um pouco egoísta, há um compromisso conosco. Quando nos tiraram o direito de conviver com as pessoas com deficiência, fomos significativamente limitados nas possibilidades de ler o mundo, as palavras. Quando fazemos a defesa radical da inclusão, do encontro e de que todas as pessoas precisam do espaço comum... Neste momento, enquanto estamos aqui, dois grupos escolares estão na Biblioteca Braille, no segundo andar deste prédio. Um com crianças cegas, de várias idades; e outro com crianças videntes de uma escola inclusiva, que deve ter crianças com deficiência. Provavelmente, muitos de nós não tivemos, em nossa infância, o direito de estar em uma biblioteca com crianças cegas e videntes juntas. As crianças de hoje têm esse direito e seu repertório será muito diferente do nosso. Elas estão imersas, desde bebês, em um mundo mais heterogêneo, que nos permite sonhar e fabular outros mundos, distinto desse ainda muito desigual.

Volto à citação de Paulo Freire:

Meu gosto de ler e de escrever se dirige a uma certa utopia que envolve uma certa causa, um certo tipo de gente nossa. É um gosto que tem a ver com a criação de uma sociedade menos perversa,

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menos discriminatória, menos racista, menos machista que esta –e eu acrescento: menos capacitista que esta. Uma sociedade mais aberta, que sirva aos interesses das sempre desprotegidas e minimi zadas classes populares e não apenas aos interesses dos ricos, dos afortunados, dos chamados bem-nascidos. (FREIRE, 2001)

É sempre bom voltar a Paulo Freire, que não estava falando da nossa pauta, objetivamente. O termo capacitismo ainda não exis tia quando Paulo Freire escreveu esse texto. No entanto, ele está falando absolutamente de direitos. Eu acho muito bonito pensar o direito a partir de Paulo Freire e escutando Paulo Freire. Para falar dos direitos das pessoas com deficiência, precisa mos criar interfaces, fazer uma composição considerando direitos, cultura, leitura e literatura. No Brasil, nós temos um marco legal muito avançado em relação aos direitos das pessoas com deficiência, apesar do retrocesso percebido em 2020, sobre o qual logo vou falar. Mesmo assim, temos um marco muito avançado, pautado na perspectiva de direitos humanos, e isso constitui uma mudança radical, pois histo ricamente os direitos das pessoas com deficiência estavam em uma lógica de assistência e caridade, de nós, ditos normais, ajudando as pobres pessoas com deficiência, que são diferentes, que têm uma incapacidade. Usávamos, muitas vezes, a palavra “deficiente” e sabe mos que as palavras têm muita força. Ao dizer que uma pessoa é deficiente, estamos dizendo que aquele sujeito, em sua integralidade, todo ele, é deficiente. E as pessoas com deficiência têm, além da deficiência, múltiplas características. A deficiência é uma delas.

Infelizmente ainda precisamos de marcos legais específicos. Se vivêssemos em uma sociedade igualitária, nós poderíamos ter apenas a Constituição. E quando falássemos que todas as pessoas têm direitos iguais, estaríamos falando de todos. No entanto, nosso todos é bastante reduzido; quando falamos de todos, contemplamos apenas alguns. Esquecemos de muitos grupos, e as pessoas com deficiências estão entre os grupos mais esquecidos. Quando estamos com outros coletivos, por exemplo um coletivo das mulheres, que defende os direitos das mulheres, escu

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tamos muito pouco as pessoas tratando da questão das mulheres com deficiência. Se observarmos cada um dos grupos que traba lha com a pauta de direitos humanos, todas elas importantes, não podemos ignorar que todos somos sujeitos múltiplos e temos que entender que são muito diferentes um homem branco com deficiência que mora em uma região economicamente privilegiada da cidade e uma mulher preta com deficiência que mora na periferia. Nós tomamos como premissa a igualdade, mas ela precisa ser com preendida como ponto de partida. Mas sabemos que as pessoas não têm os mesmos direitos.

Desde a Constituição de 1988, as pessoas com deficiência começam a ser vistas. A partir de 2000, mais especificamente, con quistamos a Lei de Acessibilidade.² Nós estamos em 2022. A Lei trata de todas as dimensões da acessibilidade da vida. Se observarmos os espaços da cidade, vamos ver muitas situações em que a acessibili dade ainda não está presente. E o marco legal é de 2000. Para que ele existisse, muitas pessoas lutaram.

Na perspectiva de direitos, fizemos duas caminhadas. A primeira é o marco legal e o empenho para que ele faça parte do nosso arcabouço teórico e sustente nossas reivindicações. A outra é a Convenção Internacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência, que começou a ser elaborada em 2005, em Nova York, envolvendo pessoas com deficiência e governos de mais de cento e cinquenta países, promulgada no Brasil em 2009.³ A sociedade e os movimentos sociais trabalharam muito, coletivamente, no Brasil por esse documento, que foi ratificado com quórum qualificado, o que significa que a nossa Convenção vale o mesmo que a Constituição brasileira. Isso é um grande avanço. Os dois documentos valem e têm o mesmo peso.

2 Lei 10.098 de 19 de dezembro de 2000. Estabelece normas gerais e critérios bási cos para a promoção da acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida, e dá outras providências.

3 Decreto 6.949 de 25 de agosto de 2009. Promulga a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assina dos em Nova York, em 30 de março de 2007.

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Nesta Convenção uma questão é muito importante: o conceito de deficiência. Pela primeira vez, as pessoas com deficiência são compreendidas em sua relação com a sociedade e, por óbvio, com as barreiras que a sociedade impõe a elas. Isso é muito impor tante para pensarmos as políticas públicas, nossas práticas, os projetos, fazendo nossa a responsabilidade que historicamente não assumimos. A inclusão sempre foi, dessa maneira, uma questão “deles”. Nós lidávamos com uma relação de pena e de caridade, o que é preconceito. Essa conta custa muito e é extremamente preju dicial para as pessoas com deficiência.

A Convenção abarca os direitos culturais. Seu Artigo 9 é destinado à acessibilidade; o 24 trata da educação inclusiva; e o 30 defende o direito à Cultura, ao Esporte e ao Lazer. Este marco legal, que é específico das pessoas com deficiências, apresenta questões vinculadas ao direito a bens culturais, e também à leitura e à litera tura. Mas isso está posto de maneira ampla e cabe a cada um dos países normatizar e detalhar como esse direito vai se efetivar. Em paralelo e fomentada pela Convenção, temos a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, de 2007, que pela primeira vez estabelece uma política com recursos orçamentários e estratégias para garantir o direito à educação de bebês, crianças, adolescentes e adultos na escola comum.

Eu trabalho com Educação, sou professora. Eu defendo e elogio a escola e a Educação, assim como faço com a Cultura. É na escola que temos garantido o direito de conviver e de aprender com as diferenças. A escola é o primeiro núcleo onde, para além da família, conhecemos outros mundos, podemos ser outros sujeitos, deixamos de ser apenas a filha da Maria ou do Pedro. Vamos construindo nossa identidade, a nossa identidade plural.

Até 2007, um número enorme de crianças e adolescentes, que tinham o direito fundamental à Educação, estava fora da escola ou em escolas especiais, em espaços segregados. Quem não está muito perto disso, nunca se pergunta por que as crianças com deficiência não estão na escola. Há muitas desculpas e justificati

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vas para elas não estarem lá. Algumas dizem da estrutura, outras da falta de formação dos educadores. Há também as questões de acessibilidade e de preconceitos. Alguns dizem que as crianças com deficiência vão ser discriminadas e, por isso, é melhor para elas pró prias ficarem protegidas em um espaço só delas. Fala-se muito do especialismo, fazendo parecer que para ser professor ou bibliote cário ou mediador de pessoas com deficiência o profissional pre cisa ser quase de outro planeta. A palavra “deficiente” faz parecer que essas pessoas não são gente como nós, que não são sujeitos e que, portanto, apenas um ser muito iluminado pode ser profes sor ou bibliotecário de estudantes com deficiência. Mas precisamos ser seres iluminados para sermos educadores, professores, biblio tecários, com o compromisso de estudar e de aprender para estar em contato com crianças e adolescentes. Como diz Caetano Veloso, gente como a gente. Quem é professor tem que gostar de gente. Precisamos amar, como afirma Hannah Arendt, o mundo e as pes soas. E a escola se dá nessa relação entre o mundo e as pessoas. Por muito tempo nós aceitamos calmamente, passivamente e às vezes até com certo alívio – Ufa! Na minha sala ainda não tem uma criança com deficiência... No entanto, para ser uma professora, tenho que ser professora de todas as crianças. Eu tenho que estudar, sim, mas eu preciso pensar muito mais na didática, em estratégias para ensinar, do que me tornar uma médica. Porque não se trata disso. O professor não é fisioterapeuta, terapeuta ocupacional. Todos esses saberes são muito importantes, mas na escola nós somos professores e na biblio teca nós somos bibliotecários. E quando somos mediadores de leitura, não precisamos ser especialistas em deficiência visual. O que eu preciso é conhecer as especificidades, as singularidades e, mais que tudo, os recursos e as estratégias para que eu faça uma mediação para grupos diferentes. Se eu sou uma mediadora de leitura, muito mais que saber sobre a deficiência visual, suas causas e sintomas, eu preciso conhecer sobre mediação de leitura diversificada, para acolher todas as pessoas. Preciso criar mediações e modos de ser hospitaleira, formas de tirar a hostilidade que está posta, muitas vezes, nessa relação.

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Assim, mais do que nos preocuparmos com as patologias, com as deficiências, que não nos dizem respeito, não fazem parte de nosso ofício, devemos nos dedicar às pessoas. Como pensar uma sessão de cinema, uma exposição que seja para todas as pessoas, e não especificamente para este ou aquele grupo? A Cultura é um bem a que todos têm direito, que diz respeito a muitas manifestações e formas de expressão e de simbolização, por meio de diferentes linguagens artísticas. Ela não pode ter forma única ou ser homogeneizadora.

O direito à Cultura não deveria ser uma questão porque existe o marco legal. Precisamos do marco legal porque, como socie dade, ainda não entendemos que a Cultura é de todos, com todos e para todos. Mas o marco legal, por si só, não garante que todos res peitem as diferenças. Precisamos aprender a nos disponibilizar e a estar com o outro, assumindo os nossos não saberes. Precisamos do outro. E quem pode mais e nos ensina muito são as próprias pessoas com deficiência. Não existem blocos de pessoas homogêneas. Em um grupo de pessoas cegas, cada uma tem uma história, uma expe riência, um desejo, uma vontade. É na convivência, no estar juntos, que vamos conseguir avançar.

As políticas públicas possibilitaram muitas conquistas sociais, como a ampliação da escolaridade, a presença de pessoas com defi ciência na universidade, formando-se e podendo ter o direito a uma profissão. Mas em 2020 vivemos uma tentativa de retrocesso, quando o presidente da República criou uma nova política nacional de educação especial, que pelo “bem das crianças e pelo direito de suas famí lias” retoma o modelo de escola e classe especial. Mesmo sabendo que a gestão desse governo seria difícil para nossa pauta, não imagi namos que poderíamos voltar a esse cenário de segregação em pleno século XXI. Isso foi o maior retrocesso. Não podemos aceitar que as crianças com deficiência, mais uma vez, não possam conviver com as outras. Estamos falando de atos de discriminação, de atos criminosos. Não por sorte, mas sim em função de muito trabalho e militância de muitas pessoas, este decreto está suspenso pelo Supremo Tribunal Federal. Estamos aguardando a decisão do Supremo Tri

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bunal Federal. Participamos de um longo processo junto ao STF, chamado amicus curiae, que significa “amigos da corte”, em que pessoas e organizações fazem a defesa de uma pauta, neste caso o modelo de escola inclusiva ou de escola especial.

E muitos grupos defenderam a volta da escola especial. Estamos falando também de interesses econômicos. Guardar pessoas com deficiência e pessoas com sofrimento mental, assim como o sistema carcerário, gera muito dinheiro para alguns gru pos. Escolas especiais, onde tutelamos crianças e famílias, desde o nascimento até a morte, significam muito poder sobre as almas e sobre as vidas, o que, em última instância, significam poder de decisão e votos. É disso que estamos falando: de uma sociedade que fica tranquila em continuar como está. E de interesses econô micos de determinados grupos que ganham muito com a exclusão e com a separação das pessoas.

Quero falar também do Plano Nacional de Cultura, que tem muitas metas atinentes ao livro e à leitura. E especialmente da meta 29, que dizia que até 2020 todos os espaços de Cultura – bibliotecas, museus, cinemas, teatros – estariam acessíveis e com progra mação inclusiva. O Plano Nacional de Cultura foi prorrogado e ainda está em vigor, mas isso é quase uma piada, uma vez que não temos sequer Ministério da Cultura. Vale destacar, ainda, o Plano Nacional do Livro e Leitura, que pauta as pessoas com deficiência em seus quatro eixos, e a Política Nacional de Leitura e Escrita, também conhecida como Lei Castilho,4 mas que seguem estagnadas como tudo o mais no país.

E temos ainda a Lei Brasileira de Inclusão, conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência,5 cujos conceitos, princípios e perspectivas estão pautados na Convenção Internacional dos Direi tos das Pessoas com Deficiência. Essa Lei detalha e regulamenta as diretrizes e orientações para sua devida execução no país.

4 Lei 13.696 de 12 de julho de 2018. Institui a Política Nacional de Leitura e Escrita.

5 Lei 13.146 de 15 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência)

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Falamos sobre vários marcos legais. Precisamos conhecer a legislação e saber fazer cruzamentos. Queremos políticas e projetos que sejam transversais. Somos minoria e para avançarmos precisamos falar dez vezes. Essa pauta não pode ser apenas de quem traba lha pela promoção dos direitos das pessoas com deficiência. Ela tem que ser de todo mundo.

Eu quero voltar à questão da leitura, da literatura e das pes soas com deficiência, trazendo uma citação da María Emilia López, uma pesquisadora argentina, que me parece tão importante quanto um artigo da Constituição:

o lugar que conferimos à palavra lúdica e poética, à leitura e à pre sença dos livros na vida das crianças é uma questão sobre a capa cidade de pensamento de uma sociedade, por sua habilidade para inventar e reinventar o estado das coisas. (LÓPEZ, 2018, p. 78)

Muitas vezes o livro, a leitura e a literatura são minoritários. A questão não é nem secundária. Ninguém entende o que signifi cam o livro e a leitura, o que significa ter acesso e poder produzir, escrever a sua história, mas, especialmente em relação às pessoas com deficiência, a importância de poder simbolizar, de poder fabular, de poder significar, criar e inventar. Para todas as pessoas, mas para as pessoas com deficiência ainda é mais importante porque historicamente não acreditamos e nunca criamos possibilidades para elas significarem, simbolizarem, criarem. Tiramos delas o direito à Educação e ainda tiramos o direito à leitura e à literatura. E isso por conta da compreensão da deficiência naquele modelo do olhar, do saber e da concepção médica.

Muitas de nós já escutamos coisas como “fulano tem a idade mental de quatro anos e cronológica de dezessete”. Quando nos pautamos por essa lógica, estamos dizendo e repetindo coisas muito sérias. O QI é uma medida, é apenas uma forma de ler esse sujeito. Quando eu digo que alguém tem a idade mental de quatro anos, eu vou oferecer a ele apenas coisas que imagino serem para crianças dessa idade. É uma delícia ser criança, seguir com alma de criança, seguir crianceiro. Mas impingir a um sujeito experiências

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como se ele pudesse responder apenas à capacidade de desenvolvimento de uma criança de quatro anos é tirar dele o direito de poder ser adolescente, adulto, idoso. Sonhar como adolescentes, ter experiências e repertórios de adolescentes. Essa régua e essa medida geram outras questões, pois uma criança de quatro anos também não lê e não escreve. Não investimos nada nesses sujeitos porque, de antemão, pensamos que eles não serão leitores, não serão escri tores. E aí não há livros, não há mediação, não há experiências. Esse mundo inteiro não está presente na vida deles.

Com os outros grupos acontece algo semelhante. As pessoas cegas têm outra relação com a leitura porque tiveram o braille. Mas qual é o acervo que está disponível para elas? É o mesmo que nós temos?

As pessoas surdas têm a língua de sinais como primeira lín gua, aprendida tardiamente, e contam com pouquíssimos espaços onde essa língua se faz presente, onde essas culturas interagem e dialogam. Essa é uma língua gestual e visual, não é uma língua escrita. Ela constrói outra lógica de pensamento, outra lógica de ler o mundo. As pessoas surdas leem o mundo muito visualmente. Faço uma defesa radical de escolas bilíngues inclusivas, onde as crianças possam aprender português e libras. A relação da comunidade surda com o português como segunda língua é meio distante não em função da deficiência, mas sim porque não disponibilizamos materiais de leitura, pouca literatura surda é publicada. Quem já leu visualmente alguma produção surda? Qual é nossa relação com as manifestações da cultura surda? Eu falo libras, estudo a língua há muito tempo e sou apaixonada por ela. Existem muitas coisas para serem estudadas, pesquisadas, aprendidas, produzidas e inventa das nas artes e na cultura. Precisamos aproximar os mundos. Podemos nos posicionar de duas maneiras. Podemos dizer “como é difícil, tem muito trabalho, é ruim, eu não sou boa de expressão...”. Ou podemos pensar “quanta coisa para aprender, quanta coisa para inventar, quanto coisa ainda não está posta...”. Eu amo lidar com essa segunda forma de pensar. Sou muito feliz e muito agradecida por trabalhar com pessoas com deficiência

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desde os meus quinze anos de idade. Eu não tenho um dia igual, eu aprendo todos os dias. Uma coisa é você aprender com uma pessoa cega, o que já é incrível. Outra é conviver com uma pessoa surda, também incrível. E o melhor é conviver com muitas pessoas – cegas, surdas, com deficiência intelectual, autistas. O que gera, o que brota e o que nasce quando estamos todos juntos é muito interessante. É uma grande potência. Imaginem uma pessoa cega com uma pessoa surda com pessoas ouvintes. Para a pessoa cega se relacionar com a pessoa surda ou teremos libras tátil ou uma mediação. Estamos falando de muitas possibilidades de tradução, de uma perspectiva intersemiótica que se coloca. E quando falamos de leitura, falamos de traduzir mundos. Quanto mais diferenças e diversidade houver, mais possibilidades de ler e traduzir vamos ter.

Eu quero retomar a questão da leitura, da literatura, dos bens culturais e da Educação como direitos humanos fundamentais e ine gociáveis. Não podemos mais negociar. Faço um chamamento para que observemos como Educação e Cultura precisam estar juntas. A literatura e os bens culturais produzem sentidos. Para que elas sejam para todas as pessoas precisamos possibilitar muitas formas de sua oferta, ressignificação e subversão. Uma Cultura que seja de todos, construída por todos e para todos amplia o repertório de todos nós. Existem muitas formas, diferentes formas, de ver, de pensar, de ler, de escrever, de sentir, de escutar e de habitar o mundo. Educação e Cultura precisam ser entendidas como bens públicos, comuns e disponíveis para todos, e não como privilégio de alguns.

Referências

FREIRE, Paulo. A educação na cidade. São Paulo: Cortez, 2001. LÓPEZ, María Emilia. Um mundo aberto. Cultura e primeira infância. Trad. Cícero Oliveira. São Paulo: Instituto Emília, 2018.

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As crianças com

deficiência visual e seu direito à leitura

Cleide

— Quer saber de verdade? — Então… fecha os olhos!

Victoria Pérez Escrivá e Claudia Ranucci

É assim que termina o instigante Fecha os olhos publicado no Brasil pela editora Comboio de Corda (2011). Na história, dois irmãos conversam sobre sua percepção a respeito de seres e objetos. Cada um des creve como percebe uma árvore, uma cobra, um relógio, um sabão, uma lâmpada, a lua, o pai e a noite. Entretanto, um dos irmãos não concorda com o jeito que o outro vê as coisas. Por fim, a mãe dos meninos convida o primeiro irmão a fechar os olhos para imaginar como o outro vê o mundo. Então, nós, os leitores, entendemos que o menino que tem uma visão “diferente” das coisas é cego.

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Gosto muito deste livro porque ele apresenta, de forma simples e poética, como uma criança com deficiência visual pode perceber a vida ao seu redor, usando seus outros sentidos. Para as pessoas enxergantes o mundo é visual, pois somos bombardeados por estímulos visuais o tempo todo. Podemos, equivocadamente, até acreditar que a visão é o principal sentido humano, tamanha é sua prevalência sobre os demais. Entretanto, o mundo pode e deve ser percebido de diferentes maneiras.

Meu interesse pelos estudos sobre acessibilidade e inclusão começou em 2014, quando assumi a coordenação do Setor Braille da Biblioteca Pública Estadual de Minas Gerais. Ser bibliotecária me pro porciona a oportunidade de aprender sempre e confesso que isso aconteceu nos doze meses em que estive no Setor. A aproximação com esse universo, que é também de todos nós como sociedade, tem sido uma experiência de muita aprendizagem para mim. Este texto é um convite à partilha do caminho percorrido desde então, que tem se desdobrado em muitos projetos e, especialmente, em um desejo de aprofundamento no tema.

Por ser ainda pouco conhecida para além dos limites das pes soas e instituições diretamente envolvidas com a área, é muito importante nos estudos sobre e nas práticas com pessoas com deficiência a reafirmação da Lei Brasileira de Inclusão, que no seu Art. 2º estabelece a base conceitual para a definição da pessoa com deficiência:

Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedi mento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igual dade de condições com as demais pessoas. (BRASIL, 2015, p. 8-9)

O marco legal, imprescindível na construção de direitos, nos traz a ideia de que barreiras podem impedir uma pessoa com determinadas características de participar plenamente da vida em socie dade. Isso significa que o problema não está na pessoa que tem deficiência, uma vez que eliminadas as barreiras, ela poderá viver em igualdade de condições com as demais. Esse aspecto é muito

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importante porque desloca a questão do acesso das pessoas com deficiência para os obstáculos que elas encontram para participar da vida comum em sociedade. Dito de outra maneira, a questão está nas coisas que não foram pensadas de forma inclusiva, para todas as pessoas, mas sim para um padrão excludente.

A legislação aponta essa mudança histórica no modo de lidar com as pessoas com deficiência. Ao longo do tempo, essas pessoas foram exterminadas, maltratadas, exiladas, encarceradas e sofreram com a indiferença de um mundo que valoriza o que é “padrão”, “normal’’. Devemos às famílias, aos movimentos sociais e às instituições dedicadas a reivindicações dos direitos das pessoas com deficiência a possibilidade de construir uma sociedade em que, nas palavras de Charles Gardou (2018, p. 16), “não há vida minúscula, nem vida maiúscula”.

São muitos e diversos os obstáculos que limitam a vida social da pessoa com deficiência. Ao trabalhar diariamente com esse público no ambiente da biblioteca pude identificar muitas barreiras, já aponta das na legislação, que impactam em demandas simples do cotidiano:

a) barreiras urbanísticas: as existentes nas vias e nos espaços públicos e privados abertos ao público ou de uso coletivo;

b) barreiras arquitetônicas: as existentes nos edifícios públi cos e privados;

c) barreiras nos transportes: as existentes nos sistemas e meios de transportes;

d) barreiras nas comunicações e na informação: qualquer entrave, obstáculo, atitude ou comportamento que dificulte ou impossibilite a expressão ou o recebimento de mensagens e de informações por intermédio de sistemas de comunicação e de tecnologia da informação;

e) barreiras atitudinais: atitudes ou comportamentos que impeçam ou prejudiquem a participação social da pessoa com deficiência em igualdade de condições e oportunidades com as demais pessoas;

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f) barreiras tecnológicas: as que dificultam ou impedem o acesso da pessoa com deficiência às tecnologias (BRASIL, 2015, p. 10)

Como educadoras/es e agentes culturais, é urgente que tra balhemos para a redução ou até mesmo a destruição dessas bar reiras. As primeiras a cair devem ser as atitudinais, que podem nos impedir de considerar as pessoas com deficiência como sujeitos ple nos de direitos. Por isso, a inclusão não acontece sem acessibilidade. De acordo com Romeu Sassaki (2019, p. 10), a acessibilidade apresenta seis dimensões que facilitam a vida e a inclusão das pessoas com deficiência: arquitetônica, que elimina as barreiras físicas; comunicacional, em que não há barreiras na comunicação; metodológica, em que não há barreiras nas técnicas e métodos; programá tica, em que não há barreiras nas políticas públicas, normas e legislações; instrumental, em que não há barreiras nos instrumentos, nas ferramentas, nos utensílios etc.; e atitudinal, em que não há preconceitos, estereótipos, estigmas e discriminações contra as pessoas com deficiência. É a partir dessas dimensões que devemos pensar os recursos de acessibilidade que melhor atenderão às pessoas com deficiência em diferentes contextos: no trabalho, na educação, no lazer, na cultura etc.

Meu interesse pela promoção dos direitos das pessoas com deficiência vem se mostrando afim ao gosto pelos livros para crianças e jovens. Neste texto gostaria de abordar especial mente os recursos de acessibilidade para a leitura das crianças com deficiência visual no contexto da Educação e da Cultura, áreas de minha atuação. De acordo com Antonio Candido, (...) a literatura aparece claramente como manifestação univer sal de todos os homens em todos os tempos. Não há povo e não há homem que possa viver sem ela, isto é, sem a possibilidade de entrar em contato com alguma espécie de fabulação. Assim como todos sonham todas as noites, ninguém é capaz de passar as vinte e quatro horas do dia sem alguns momentos de entrega ao universo fabulado. (CANDIDO, 1989, p. 176)

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Assim, consideramos que as crianças com deficiência têm direito aos bens de leitura, como todas as pessoas. As barreiras para essas crianças em geral, e para as cegas, em particular, podem ser eliminadas com a adoção de recursos de acessibilidade que promo vam o acesso à leitura. Rompidas as barreiras atitudinais, que muitas vezes impedem que os direitos sejam compreendidos efetiva mente como direitos, e não como assistencialismo, novos recursos de acessibilidade podem ser desenvolvidos e os existentes serem oferecidos para que todas as crianças possam ter acesso ao conhe cimento e às narrativas guardados pelos livros. A garantia de direi tos tem como exigência o conhecimento das conquistas, dentre as quais estão, indiscutivelmente, os recursos de acessibilidade para a leitura por pessoas com deficiência:

a) livros em braile: impressos em relevo a partir do sistema de leitura e escrita, desenvolvido por Louis Braille no século XIX, e destinado a pessoas cegas por meio do tato. Sua escrita é baseada na combinação de 6 pontos, dispostos em duas colunas de 3 pontos, que permite a formação de 63 caracte res diferentes, que representam letras, números, símbolos aritméticos, fonéticos e musicográficos. São extremamente importantes para o acesso autônomo da pessoa cega ao mundo escrito. A Fundação Dorina Nowill para Cegos é a prin cipal produtora de materiais em braile no Brasil; b) audiolivros: livros em formato de áudio, que também são chamados de livros falados ou audiobooks. Normalmente são gravados em estúdio, lidos de forma pausada e com interpre tação, buscando considerar o gênero literário e a faixa etária do público a que se destinam. Podem contar com a utilização de efeitos sonoros e trilhas musicais que ajudem o ouvinte a se aproximar da atmosfera do que está sendo narrado; c) livros em duas escritas - braile e tinta: são livros que apresentam texto em tinta, também transcrito para o braile. É bas tante utilizado em textos para crianças cegas ou com baixa visão. A fonte costuma ser ampliada e com alto contraste;

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d) livros digitais em texto: estão disponíveis em arquivos digitais, em formato reconhecido por software leitor de tela (tais como Jaws, NVDA etc.), devendo todo o conteúdo gráfico e imagético ser descrito para que possa ser realmente acessí vel. Normalmente é produzido nos formatos .pdf e .txt; e) livros audiovisuais bilíngues português-Libras: produzidos em português e Libras, visando a fortalecer o bilinguismo, a identidade linguística da comunidade surda, a disseminação da Libras para diferentes públicos e a equiparação de oportunidades. O conteúdo em português pode ter a legenda do texto original e a narração em áudio. O conteúdo em Libras é apresentado em vídeo por um surdo ou intérprete. Este for mato de livro audiovisual pode ser disponibilizado em DVD, internet, QR Code etc.;

f) livros em leitura fácil: publicações que seguem diretrizes da International Federation of Library Associations and Institutions (IFLA) em relação à linguagem, ao conteúdo e à forma. Imagens, pictogramas e glossários apoiam o texto para ampliar a compreensão. A leitura fácil, que se apoia na simplificação da linguagem, foi inicialmente desenvolvida para pessoas com deficiência intelectual, mas tem sido utilizada também por pessoas com baixo letramento e neoleitores de diferentes ida des. Infelizmente, ainda há poucos títulos nesse formato no Brasil. A proposta tem gerado muita polêmica, especialmente em textos literários, por causa da simplificação da linguagem que, no entendimento de alguns, compromete a construção estética original da narrativa; g) livros audiovisuais acessíveis: combinação de vários forma tos em um mesmo suporte contendo, por exemplo, o texto em língua portuguesa, animações, narração, descrição de ima gens (audiodescrição), glossário com palavras pouco comuns e janela de Libras. Este formato aproxima-se dos princípios do Desenho Universal, segundo o qual os espaços, artefatos, produtos e serviços devem atender simultaneamente a todas

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as pessoas, com diferentes características antropométricas e sensoriais, de forma autônoma, segura e confortável.¹ h) livros táteis: publicações ilustradas com diferentes materiais e texturas destinadas originalmente a crianças com defi ciência visual. Há indícios de que os primeiros livros desse tipo surgiram na Itália, no início dos anos 1970, para auxiliar a aprendizagem de crianças com deficiência visual. Eles atuam ainda como elemento de inclusão infantil, promovendo inte rações sociais entre os colegas (FREITAS et al., 2020, p.118), porque podem ser lidos também por crianças com visão regu lar. No Brasil, o Instituto Benjamin Constant produz alguns materiais nesse formato, realiza concursos nacionais de cria ção de livros táteis e representa o país em competições internacionais. Um dos mais importantes concursos do mundo, que estimula a produção e dá visibilidade ao livro tátil, é o Typhlo & Tactus, organizado pela associação editorial francesa Les Doigts Qui Rêvent.

Não foi minha intenção ser exaustiva na lista de recursos apresentada, pois cada um deles tem suas especificidades, que deman dam atenção e tempo para serem compreendidas. Pretendi apenas listar alguns formatos de livros existentes, infelizmente ainda desco nhecidos de muitas pessoas, incluindo muitas das que se dedicam ao atendimento de crianças em escolas e espaços culturais. É importante que os profissionais conheçam esses recursos e contribuam, em suas áreas de atuação, para sua disponibilização às pessoas com deficiên cia. Além de demandar, sempre que possível, que instituições públicas e privadas cumpram a legislação no que se refere à acessibilidade.

Nos últimos seis anos, pautei e discuti o tema com equipes de bibliotecas públicas e comunitárias, refletindo sobre o trabalho nesses equipamentos culturais. Bibliotecas acessíveis ainda não são realidade no nosso país. Em 2021, iniciei um curso de especialização

1 A OSCIP Mais Diferenças, de São Paulo, tem produzido alguns títulos nesse formato: https://maisdiferencas.org.br/biblioteca/livros/

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em Audiodescrição (AD) pela PUC Minas, com o intuito de ampliar meus conhecimentos na área. Assim, gostaria de abordar, a partir de agora, esse recurso, que não carece de grandes investimentos para ser aplicado e tem potencial para ampliar os horizontes das crianças com deficiência visual, foco deste texto. De acordo com Eliana Franco e Manoela Silva (2010, p. 24), “enquanto atividade técnica e profissional, a AD nasceu em meados da década de 70 [1975] nos Estados Unidos, a partir das ideias desen volvidas por Gregory Frazier.” No Brasil, foi utilizada em público pela primeira vez em 2003. Ou seja, a AD é ainda um campo de estudo e de atuação extremamente novo.

Considerada um tipo de tradução intersemiótica, a AD, nas palavras de Lívia Motta,

é um recurso de acessibilidade comunicacional que amplia o entendimento das pessoas com deficiência visual em todos os tipos de eventos, sejam eles acadêmicos, científicos, sociais ou religiosos, por meio de informação sonora. Transforma o visual em verbal, abrindo possibilidades maiores de acesso à cultura e à informação, contribuindo para a inclusão cultural, social e escolar. Além das pessoas com deficiência visual, a audiodescri ção amplia também o entendimento de pessoas com deficiência intelectual, idosos, pessoas com déficit de atenção, autistas, dis léxicos e outros. (MOTTA, 2016, p. 15-16)

Nesta perspectiva, a AD pode auxiliar as pessoas a compreenderem informações visuais em diversas situações. Mas é para as pessoas cegas ou com baixa visão que ela se apresenta como uma possibilidade para o acesso ao mundo visual, junto com o tato. É importante destacar que na ausência da visão, o sentido do tato, por meio do toque ativo, passa a ser uma das formas, talvez a mais significativa, pela qual a pessoa cega apreende o mundo ao seu redor. J.J. Gibson (1962), citado e traduzido por Sérgio Honorato e Gilson Braviano (2012), explica o toque ativo:

toque ativo é um estudo exploratório ao invés de um sentido meramente receptivo. A este respeito, esses movimentos de

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tocar dos dedos são como os movimentos dos olhos. Na ver dade, o toque ativo pode ser denominado digitalização táctil, por analogia com a digitalização ocular. Por meio do tato ativo muitas propriedades do ambiente adjacente pode ser percebido (sic) na ausência da visão. O cego depende dela para a maioria das suas informações sobre o mundo. (GIBSON, 1962, p. 477 apud HONORATO; BRAVIANO, 2012, p. 76)

Assim, algumas possibilidades se apresentam para que a criança cega descubra o mundo: toque, descrição de imagens feita por quem a cerca, exploração tátil de miniaturas de grandes objetos (monumentos, aviões, navios, animais etc.), dentre outras. Dessa maneira, seu repertório imagético vai sendo formado, e será mais ou menos rico de acordo com a qualidade dos estímulos recebidos. Toda a comunidade que circunda uma criança cega passa a contri buir para a construção de seu mundo imagético.

As possibilidades tecnológicas de reprodução de conteúdos, como os audiolivros e os leitores de tela, por exemplo, não substi tuem a alfabetização em braile. No ambiente escolar, a criança cega deve ter acesso à cultura escrita, assim como as enxergantes. Vítor Reino (2000) destaca a importância da alfabetização em braile: o Braille é reconhecidamente o único meio “natural”, “universal” e indispensável de leitura para as pessoas privadas de visão, e confere àqueles que o usam como sistema original de leitura/escrita e o utilizam intensivamente, maior capacidade para desenvolver hábitos de leitura estáveis, ascender a graus superiores de formação acadê mica e obter maior sucesso profissional. (REINO, 2000, s.p.)

Assim como o aprendizado do sistema Braille é um direito da pessoa cega, a audiodescrição também o é enquanto recurso de acessibilidade comunicacional, que possibilita o acesso à informação, à educação, à cultura e ao lazer, que não podem ser percebidos apenas pelo toque.

No decorrer dos estudos do curso de audiodescrição, me deparei com a inexistência de trabalhos sobre a audiodescrição de livros ilustrados. Este tipo de material, bastante utilizado na educa

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ção infantil, apresenta ilustração, texto e materialidade do próprio livro como um todo indissociável, conforme define Sophie Van der Linden (2011) em seu já clássico Para ler o livro ilustrado. Atualmente há vasta produção deste tipo de material no Brasil, com publicações primorosas. As crianças com deficiência devem ter acesso, mesmo que com certas limitações, a esses livros.

Como parte do trabalho final de uma das disciplinas do curso de especialização, me propus a escrever um roteiro de AD para um livro ilustrado, como uma experimentação. Para se elaborar um roteiro de AD há vários princípios a serem seguidos, de acordo com o tipo de material a ser audiodescrito. Não há ainda, como já mencionei, estudos que norteiam a elaboração de roteiros para esse tipo de material, talvez em função da AD ser um campo relativamente novo. Assim, comecei a trabalhar no roteiro a partir de minha experiência como bibliotecária e pesquisadora dos livros para crianças e de algumas diretrizes de AD para imagens estáticas, apresentadas por Lívia Motta (2016):

– os orientadores de uma descrição são: o que/quem, onde, como, faz o que, quando;

– quando possível, é interessante identificar o tipo de téc nica utilizada nas ilustrações;

– em ilustrações isoladas, dar uma ideia geral do que está representado na imagem para depois se ater aos detalhes;

– organizar os elementos descritivos em um todo signifi cativo. Quando houver pessoas na ilustração, o texto deve ser organizado a partir do sujeito da ação, o que facilita o encadeamento dos elementos imagéticos.

– mencionar cores e outros detalhes importantes; – usar artigos indefinidos quando é a primeira vez que aparece determinado elemento ou pessoa. Usar artigos defini dos quando já forem conhecidos;

– o tempo verbal deve estar sempre no presente;

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– mencionar as imagens de fundo e outros recursos gráficos utilizados que podem completar o significado e tradu zir a intenção do escritor/ilustrador.

Essas são diretrizes básicas que auxiliam na organização das informações e podem ser aplicadas a vários tipos de materiais, como fotografias e obras de arte, por exemplo. O livro escolhido para o experimento foi Eu falo como um rio, escrito por Jordan Scott e ilustrado por Sydney Smith, publicado no Brasil pela editora Pequena Zahar (2021). O resultado foi um roteiro bastante enxuto e mais fluido, buscando um diálogo entre a audiodescrição, o texto e a materialidade do próprio objeto. A título de exemplo, apresento duas páginas do livro, com o roteiro de audiodescrição:

Figura 1 - Eu falo como um rio (SCOTT; SMITH, 2021, p.14-15)

Audiodescrição: Ilustração grande do rosto do menino, que está com os olhos bem abertos. Riscos amarelos parecidos com as folhas e galhos do pinheiro cobrem o rosto do menino. Esses riscos for mam a imagem do corvo, da lua crescente e algo que parece um rio estreito. (Roteiro: Cleide Fernandes. Consultoria: Gabriel Aquino)

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Figura 2 - Eu falo como um rio (SCOTT; SMITH, 2021, p.20-21)

Audiodescrição: Paisagem exuberante com árvores grandes, o pai, o menino e um rio. O rio está com as águas calmas, refletindo as árvores escuras. Um pato nada tranquilamente. (Roteiro: Cleide Fer nandes. Consultoria: Gabriel Aquino)

O livro ilustrado é desafiador por promover possibilidades de leitura que envolvem os aspectos visual e o texto escrito (ou roteiro, no caso de livro sem texto). Algumas vezes é no virar de uma página que se dá sentido à narrativa, há uma surpresa que salta aos olhos, nem sempre possível de ser traduzida para a pessoa cega. O livro Eu falo como um rio não apresentou esse desafio em particu lar, mas tem uma página que se desdobra em quatro, formando um grande rio. Esse recurso gráfico entrou no roteiro da AD para que a criança pudesse ter acesso a essa possibilidade de leitura.

Vale destacar que no processo de audiodescrição, além do/a audiodescritor/a roteirista, é muito importante a avaliação do texto por um/a audiodescritor/a consultor/a. Conforme explica Felipe Mianes (2018, p. 145) este “é o membro da equipe que representa o usuário e que ao mesmo tempo tem qualificação profissional para aliar suas experiências e vivências de pessoa com deficiência visual

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ao conhecimento técnico sobre audiodescrição”. Assim, idealmente, o trabalho de audiodescrição é feito em equipe. E, com a parceria de Gabriel Aquino, o roteiro de Eu falo como um rio continua sendo aprimorado para que possibilite o acesso das pessoas cegas à obra.

A título de breve conclusão, posso afirmar que ainda há muito a ser feito para que nossas crianças com deficiência sejam reconhecidas como sujeitos de direitos e tenham amplo acesso à educação e à cultura. Deixo o convite a todos e todas para que incluam este público em suas reflexões e em seus percursos pro fissionais, considerando a contribuição que cada um/a pode dar à construção de uma sociedade mais inclusiva.

Referências

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FREITAS, Cláudia Rodrigues de et al. Livros ilustrados táteis: uma possibilidade de acesso à literatura para crianças com deficiência visual em fase de letramento. Revista Electrónica de Investigación y Docencia (REID), n. 24, p. 115-129, 2020. Disponível em: https://revistaselectronicas.ujaen.es/index.php/reid/article/view/4989. Acesso em: 13 mar. 2022.

FUNDAÇÃO Dorina Nowill para Cegos. São Paulo, [2022?]. Apresenta a associação sem fins lucrativos e de caráter filantrópico. Disponível em: <http://fundacaodorina.org.br/>. Acesso em: 31 mar. 2022.

GARDOU, Charles. A sociedade inclusiva: falemos dela!: não há vida minúscula. Belo Horizonte: Fino Traço, Ed. UFMG 2018.

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HONORATO, Sérgio; BRAVIANO, Gilson. A formação da imagem mental em deficientes visuais. Educação Gráfica, v. 16, n. 3, 2012. LINDEN, Sophie Van der. Para ler o livro ilustrado. São Paulo: Cosac Naify, 2011.

MAIS Diferenças. São Paulo, [2022?]. Biblioteca de livros acessíveis. Disponível em: <https://maisdiferencas.org.br/biblioteca/livros/>. Acesso em: 31 mar. 2022. MIANES, Felipe Leão. Consultoria em audiodescrição: da técnica à participação social da pessoa com deficiência. In: MAYER, Flávia; PINTO, Júlio (org). Perspectivas contemporâneas em audiodescrição. Curitiba: Editora CRV, 2018. p.143-159.

MOTTA, Lívia Maria Villela de Mello. Audiodescrição na escola: abrindo caminhos para leitura de mundo. Pontes Editora: Campinas, 2016. PÉREZ ESCRIVÁ, Victoria; RANUCCI, Claudia. Fecha os olhos. São Paulo: Comboio de Corda, 2011. REINO, Vítor. Ensino/Aprendizagem do Braille. Actas do Colóquio “O Braille que Temos, o Braille que Queremos”. Lisboa: Biblioteca Nacio nal, 2000. Disponível em http://www.deficienciavisual.pt/txt-ensinoaprendizagem.htm. Acesso em 14 abr. 2022.

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Os quartos de crianças

como - um dosespaços de

leitura

Um quarto para si¹ Em Sobre a leitura (2020), Marcel Proust busca rebater o argumento do crítico de arte John Ruskin, para quem a leitura seria uma con versa com pessoas virtuosas de tempos passados, tendo por princi pal função a formação para a vida. Nas palavras de Proust, gostaría mos que o livro nos desse respostas “quando tudo o que pode fazer é nos dar desejos” (2020, p. 30).

Antes de desenvolver esse contra-argumento, no entanto, o romancista francês faz uma pequena ressalva que, por se tratar de uma digressão proustiana, nem é tão pequena, nem deve ser des

1 Este texto é parte de uma pesquisa de pós-doutorado realizada com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES).

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prezada. Apesar de relativizar a importância conferida por Ruskin aos livros, Proust observa que as leituras de infância seriam as úni cas verdadeiramente memoráveis. No entanto, prossegue, o que elas deixariam para nós seria, sobretudo, “a imagem dos lugares e dos dias que as fizemos” (2020, p. 23).

O argumento é interessante porque contraria a ideia do senso comum de que as leituras realizadas nos primeiros anos de vida transportariam as crianças para outro tempo e lugar, um mundo de imaginação e fantasia que seria aberto por expressões como: “há muitos anos atrás”, “no tempo em que os bichos falavam” ou “em um reino muito distante”. Ao contrário, o que Proust parece propor é a leitura na infância como uma espécie de ancoragem. Contudo, assim como são múltiplas as infâncias, os tem pos e os espaços de ler também o são. De modo que o espaço de leitura rememorado pode ser a mesa alta da biblioteca da escola, onde a criança se entrega ao empuxo do texto e de onde se levanta “coberta pela neve do lido”, como descreve Benjamin (2009). Ou pode ser um espaço ao ar livre, como nas cenas de leitura pintadas por Eliseu Visconti (ver a seguir) que têm por cenário praças e jar dins. Muito frequentemente, porém, o espaço que abriga o corpo da criança leitora e o objeto livro é seu próprio quarto.

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Figura 1. Reprodução da tela Sob Folhagens de Eliseu Visconti, 1915 Fonte: projeto Eliseu Visconti

Figura 2. Reprodução da tela A Família do Artista de Eliseu Visconti, 1918 Fonte: projeto Eliseu Visconti

Lugar de dormir, de brincar, de estudar, mas também espaço privilegiado para a fruição da leitura, esse cômodo consi derado imprescindível nas moradias urbanas das classes favorecidas, nem sempre existiu nas configurações espaciais domiciliares. Grosso modo, pode-se dizer que só no século XIX o quarto surgiu nas plantas arquitetônicas residenciais (PERROT, 2011), fruto do reconhecimento crescente da criança como sujeito social ao longo da modernidade (ARIÈS, 1981), mas também decorrente da espe cialização dos ambientes domésticos (DIBIE, 1988; RYBCZYNSKI, 1996) que determinou para cada cômodo uma função específica.²

A partir de 1950, observa-se uma crescente importância atribuída aos quartos de criança: os móveis passam a ser produzidos

2 Rybczynski (1996) mostra, por exemplo, como na França do século XVII, não havia salas de jantar. As mesas, assim como os leitos e outros móveis, eram des montáveis, de forma que as refeições poderiam acontecer em qualquer espaço da casa. Os quartos, por sua vez, eram espaços para se dormir, mas neles também ocorriam encontros sociais.

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em escala industrial, o consumismo emerge como estilo de vida das famílias burguesas e é difundida na sociedade uma crescente preo cupação com a educação das crianças. Nesse contexto, os quartos infantis passam a ter espaço garantido nas revistas de decoração (DANTAS, 2012, 2014).

Além disso, essa transformação na configuração do ambiente doméstico está também relacionada a uma crescente individualização percebida a partir da segunda metade do século XX, que permitiu, a cada membro da família, inclusive em alguma medida às crianças, exercer a sua privacidade (DE SINGLY, 2006).

O processo de urbanização, o aumento da violência urbana e o surgimento das novas tecnologias digitais também contribuíram para a retração da sociabilidade das crianças, deslocando o lazer desse grupo geracional do espaço público para o privado e daí para os espa ços individualizados dos quartos (BUCKINGHAN, 2007), fenômeno que vem sendo denominado cultura do quarto (GLEVAREC, 2010).

Evidentemente, esse modelo não pode ser universalizado, uma vez que coexistem outras dinâmicas espaciais e diferentes configurações de espaços públicos e privados em culturas diversas. No entanto, nas camadas socialmente favorecidas dos meios urbanos, a reserva de um quarto para cada filho tem se tornado padrão.³ O que conta aqui não é somente a posse de recursos econômicos e as transformações anteriormente descritas, mas também alterações demográficas que fizeram reduzir o tamanho da família brasileira4 nos últimos 50 anos. Tanto é que mesmo nas famílias abastadas da segunda metade do século XX, em geral, somente o primogênito teria a chance de usufruir de um espaço só seu até o nascimento do

3 Entre 2016-2017, realizei uma pesquisa sobre os quartos de crianças de famílias socialmente favorecidas, que incluiu entrevistas com um dos responsáveis. Todos os pais respondentes da pesquisa (n=20) afirmam ter dividido o quarto com os irmãos na infância, enquanto que, entre as 31 crianças participantes da pesquisa, 25 possuem um quarto exclusivamente para si e apenas 6 partilham o quarto com um irmão ou irmã (CARVALHO, 2018).

4 A família brasileira passou de 5,8 filhos por casal em 1970 para uma média de 2 filhos por casal (IBGE, 2015)

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primeiro irmão, ou o caçula poderia conhecer essa realidade depois do casamento do irmão imediatamente mais velho. Por fim, a “cultura do quarto” decorre ainda de um quadro de maior autonomização cultural da infância, que possibilitou o surgimento dos brinquedos e dos livros infantis. Sobre a relação entre a produção cultural para crianças e os quartos infantis, em seu livro História dos quartos, Michelle Perrot (2011, p. 113) afirma que é “graças ao brinquedo que aparece a necessidade de um espaço específico para as crianças”. Essa hipótese também já havia sido for mulada por Benjamin (2010) quando o autor sugere que a amplia ção da dimensão dos livros e os brinquedos, fato verificado a partir da segunda metade do século XIX, seriam responsáveis pelo surgi mento dos quartos infantis. Sem esses cômodos, os filhos pequenos espalhariam seus pertences por toda a casa, perturbando com isso a ordem adulta. Assim, não deixa de ser interessante imaginar que o livro infantil possa, ele também, ter dado a sua parcela de contribui ção na configuração do espaço das crianças no ambiente doméstico, propiciando a individualidade das crianças, mas também garantindo a privacidade dos adultos.

Um livro todo seu

O processo de individuação dos espaços domésticos é correlato ao da leitura. Antes da Europa moderna, os textos eram escassos e o número de alfabetizados reduzido, sendo a leitura uma atividade social quase sempre praticada em voz alta.

A invenção do tipo móvel por Johannes Gutenberg no século XV possibilitou a produção em massa de materiais escritos e a ampliação do público leitor. A partir da revolução cultural operada pela difusão dos textos (CHARTIER, 1999; CHARTIER e CAVALLO, 1999), cada leitor passa a ter contato com uma quantidade maior de obras, sendo possível, a partir de então, possuir seus próprios livros e até mesmo constituir uma biblioteca pessoal. Descrito por Chartier (1999) como a passagem de uma leitura intensiva a uma leitura extensiva, essa transformação e a autonomização cultural

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da infância foram fatores que possibilitaram também às crianças de famílias social e culturalmente favorecidas obterem seus próprios exemplares e constituírem suas bibliotecas pessoais.

Quais seriam, porém, as implicações de ter um livro “para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o” como narra a personagem do conto Felicidade Clandestina de Clarice Lispector (1985, p.10)? Em que diferem as experiências de ler em uma mesa de biblio teca compartilhada com leitores desconhecidos, ler com o corpo estirado na areia da praia ou ler um livro da sua biblioteca pessoal na sua própria cama?

Leitura no quarto: uma criação familiar

Antes de responder essas perguntas, talvez seja interessante questionar até que ponto podemos pensar que são pessoais as biblio tecas infantis, compostas quase sempre por exemplares comprados e organizados por adultos, ainda que, no melhor dos casos, esses adultos sejam sensíveis aos gostos e demandas das crianças.

Talvez ajude considerar que, assim como os quartos, as bibliotecas domésticas infantis são, em alguma medida, criações familiares (SEGALEN; LE WITA, 1993). Isso quer dizer que, quase sempre, são os pais que escolhem o acervo, levando em considera ção as possibilidades e os limites da oferta do mercado, os critérios literários subjetivos mais ou menos refletidos e uma dimensão afe tiva que não subtrai, evidentemente, o próprio interesse da criança. Assim, entre outras coisas, a biblioteca do quarto das crianças comunica as expectativas parentais no que diz respeito à relação entre a criança e o saber de uma forma mais ampla, mas também em relação à literatura e às histórias, mais especificamente.

Da mesma forma que a indústria do brinquedo, o mercado editorial também não desconhece o comportamento dos pais em relação aos livros infantis, relançando constantemente títulos que marcaram gerações anteriores como estratégia para atraí-los. Assim, reunindo livros adquiridos ou herdados de gerações anteriores, a biblioteca pessoal revela o capital cultural familiar (BOURDIEU, 1998),

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ou seja, um conjunto de recursos e habilidades relativos à cultura, no caso deste texto, relativos à cultura literária, que é valorizado em mui tos espaços sociais e, principalmente, na escola. O capital cultural literário pode se apresentar tanto em seu estado objetificado - ou seja, como um bem material que é o livro, principalmente no que diz respeito às edições raras e às traduções consideradas mais adequadas -, como também ele pode estar em sua forma incorporada, relativa às formas consideradas legítimas de experimentar a leitura. Assim, ao ganhar ou herdar o objeto-livro, as crianças herdam também for mas mais ou menos legítimas de se relacionar com a literatura, em um aprendizado que deve sua eficiência ao seu caráter precoce, coti diano e, por isso mesmo, pouco consciente. Carregada de afeto, essa transmissão é também poten cializada pela ação do tempo, de forma que, tão maior tende a ser a familiaridade com a leitura quanto mais antiga é a relação com os livros nas gerações anteriores. Evidentemente, não se trata de um destino e nem de uma herança compulsória - há pes soas que nasceram em casas repletas de livros, mas que se desfiliam desta prática familiar. São, no entanto, considerados casos improváveis (LAHIRE, 1995). Além do mais, no que diz respeito à herança do gosto leitura, sua transmissão é incompatível com qualquer obrigatoriedade ou imposição (SINGLY, 2009), sendo mais eficaz quanto mais encoberta pelo prazer, pela gratuidade e pela autonomia (PENNAC, 1992).

Sobre esse incentivo tão silencioso quanto eloquente à lei tura, que é a coabitação na infância com livros de outras gerações e a partilha das palavras, Benjamin (1987, p. 235) cria mais uma de suas imagens que condensam ideias. Diz ele que um livro antigo, herdado da mãe ou da avó, poderá servir de solo “[...] no qual esse impulso lançará suas primeiras e delicadas raízes”.

Isso não quer dizer, que os filhos de adultos não leitores estão impedidos do encontro com a literatura. Evidentemente, são muitos os caminhos possíveis para esse encontro, de todo modo, explorar o que há de familiar, mas também de autônomo, na rela

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ção com a leitura das crianças, pode ajudar a compreender também outras formas de se relacionar com os livros.

A leitura no quarto: uma experiência individual

O aspecto familiar da leitura das crianças em seus quartos não suprime, no entanto, sua dimensão de experiência autônoma. Como descreve Benjamin:

Não resta dúvida de que os velhos livros em seu pequeno formato exigiam de modo muito mais íntimo a presença da mãe, ao passo que os modernos livros in quarto, com sua ternura vaga e ríspida, parecem ter como função manifestar seu desprezo pela ausência materna. O brinquedo começa a emancipar-se: quanto mais avança a industrialização, mais ele se esquiva ao controle da família, tornando-se cada vez mais estranho não só às crianças, como também aos pais. (BENJAMIN, 2010, p. 246)

A autonomização da cultura produzida para as crianças, que possibilita o surgimento do quarto infantil e dos livros para crianças, não ocorreu sem consequências. Dormir sozinho, por exemplo, impõe -se como uma técnica corporal mais ou menos racionalizada a ser aprendida pelas crianças desde bem cedo, em um ritual de separação que muitas vezes inclui a leitura — assim como as canções de ninar.5

O que está por trás dessas transformações sociais é a emer gência de um ideal de individualização (GIDDENS, 1991, 2002) que con vida a nos tornarmos nós mesmos por uma jornada individual. Aqui, mais do que um encontro consigo mesmo, parece mais adequado pen sar em uma invenção de si mesmo, conformando uma identidade dis tinta, em alguma medida, da tradição familiar. Nesse sentido, há algo que se cria no quarto das crianças, um cômodo que não se encerra na funcionalidade de seus móveis e objetos, como nos lembra Proust, mas que se converte, segundo as palavras do autor, em

5 A racionalização desta técnica é evidenciada pelo grande número de publicações que se dedicam a auxiliar os pais nessa empreitada, como, por exemplo: Estivill e Béjar (2000) e Pantlet (2003).

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um lugar onde tudo é criação e linguagem de vidas profunda mente diferentes da minha, de um gosto oposto ao meu, onde eu não encontre nada do meu pensamento consciente, onde minha imaginação se solte e sinta mergulhada no seio do não-eu. (PROUST, 2020, p. 15)

Essa propriedade criadora é análoga à visão anímica da criança, que empresta vida e movimento aos móveis e objetos de seu quarto. São incontáveis os exemplos da literatura infantil que ilustram essa ideia: a cama do personagem Little Nemo (BRAUN; MCCAY, 2017), que com suas pernas alongadas caminha acima dos telhados da cidade ou o quarto do personagem Max, de Maurice Sendak (2009), onde nasce e cresce uma floresta, transformando as paredes “no mundo inteiro”.

Figura 03: Little Nemo in Slumberland, de Winsor McCay; Tira publicada originalmente no dia 26 de julho de 1908 no New York Herald.

Créditos: Domínio público.

Fonte: página na internet Little Nemo in Slumberland

A transmissão do hábito de leitura (assim como outras transmissões) não invalida esse processo de individualização, mas

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instaura aqui uma tensão. Aquele que herda o gosto pela leitura tenderá a inserir nesse hábito algo de pessoal, podendo, por exemplo, se opor ao gosto literário dos pais (DE SINGLY, 2009). Ainda assim, a apropriação cultural não impede que haja experiências em que a leitura se assemelhe mais ao conforto do familiar do que a uma aventura. Em Uma história da leitura, Alberto Manguel (1997) conta sobre uma relação desta natureza com os livros. Para o escritor e tradutor argentino, a leitura na infância ofereceu a oportunidade de usufruir de estar sozinho, ou, complementa em seguida, ela “tal vez tenha dado sentido à privacidade que me foi imposta, uma vez que durante a infância, depois de voltarmos para a Argentina em 1955, vivi separado do resto da família, cuidado por uma babá, numa seção separada da casa” (p. 23).

Filho de diplomata, sua família viajava bastante e eram os livros que compensavam a vida em quartos de passagem, ofere cendo ao jovem leitor um lar permanente, “um lar que eu podia habitar exatamente como queria, a qualquer momento, por mais estranho que fosse o quarto em que tivesse de dormir ou por mais ininteligíveis que fossem as vozes do lado de fora da minha porta” (p. 24). Na condição de criança estrangeira, possivelmente era nos livros que o pequeno Manguel encontrava o conforto da língua materna. Sem ignorar o convite à exploração de universos desconhecidos que é a leitura; é o reencontro com o familiar o que mais fortemente caracteriza a experiência de leitura descrita pelo autor. Não é de se estranhar que, na história por ele escrita, o aprendizado da leitura se apresente como o ingresso em uma comunidade de amantes de livros. “Não me lembro de jamais ter me sentido sozinho” (p.23) – conta.

A leitura in quarto como um limiar Esses elementos já nos permitem buscar responder à per gunta sobre a especificidade da leitura realizada pelas crianças em seus quartos, além de nos convidar a pensar sobre outras formas de leitura. Entre o chamado para aventuras por terras desconhecidas

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e a possibilidade de reencontro com o familiar, a leitura in quarto pode ser entendida como uma experiência da ordem do limiar, tal como é colocada por Benjamin.

Para o autor, o limiar (schwelle) não é o mesmo que fronteira (grenze), pois, enquanto a fronteira distingue territórios e diferencia os domínios que não podem ser transpostos sem consequência, o limiar é uma metáfora espacial que designa justamente as expe riências de transição. Sinônimo de soleira da porta e tratando-se, portanto, de uma metáfora espacial, o limiar possui também uma dimensão temporal, pois sua duração é flexível (GAGNEBIN, 2014).

A leitura das crianças realizada em seus quartos estaria jus tamente nesse espaço/tempo entre o dia e a noite, entre o aqui e o tão distante, entre a presença e a ausência, entre o sono e a vigília, entre o familiar e o individual. No entanto, para Benjamin (2007), no assoberbamento da vida moderna, tornamo-nos cada vez mais pobres de experiências limiares. Isso porque, sendo escasso, o tempo no capitalismo se configura como uma série de momentos distintos, fazendo reduzir os períodos de transição e os ritos de passagem. Assim, podemos nos perguntar, se ainda temos, adultos e crianças, tempo para fruir da leitura?

Por outro lado, a partir da literatura kafkiana, Benjamin mos tra como a modernidade opera não apenas estreitando os liminares como também dilatando infinitamente essas experiências de tran sição. Na condição de uma passagem ininterrupta e que não leva a lugar nenhum, a travessia seria, então, esvaziada de seu sentido. As crianças contemporâneas que vivem suas infâncias fechadas em seus quartos, tendo à mão equipamentos eletrônicos, teriam expe riências desta natureza?

Por fim, como dito na introdução deste texto, se a infância urbana ocidental de determinados estratos sociais é tomada por universal, sabemos que são muitas e diversas as infâncias. Após cinco anos retratando o lugar onde dormem as crianças pelo mundo, o fotógrafo James Mollison publicou seu trabalho Where children sleep (2010). No prefácio da versão impressa original, o autor relata

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que teria cogitado atribuir o título Quartos de criança ao redor do mundo, mas que se deu conta de que a ideia de um quarto infantil derivava de sua própria experiência e cultura, não sendo, portanto, adequada para compreender outras realidades.

Essa observação é especialmente importante quando pensamos na leitura das crianças que vivem em um país de dimensão continental como o Brasil. Embora a provisão de um ou mais quar tos de criança no arranjo doméstico seja uma prática cultural – aqui, como em muitos outros países ocidentais - quase naturalizada, ela geralmente não faz parte das formas de habitar das crianças das cul turas indígenas, é relativamente recente na história da arquitetura doméstica e continua não sendo realidade para parcelas socioeco nomicamente desfavorecidas da população, que lidam com a preca riedade residencial6 e diversas outras privações.

Daí que a experiência literária das crianças brasileiras não possa ser reduzida a uma leitura no quarto compartilhada por pais leitores, tampouco deva ser pensada unicamente como uma via gem para um lugar distante, principalmente porque, na literatura clássica, esse outro mundo tantas vezes foi ambientado no mundo colonial, descrito como selvagem ou exótico.

Nesse sentido, talvez Proust tenha razão em desconfiar do livro como uma conversa sobre um saber supostamente universal. Antes, valeria tomá-lo como uma ancoragem no espaço e no tempo onde o leitor criança vive a sua cultura, único lugar a partir do qual ele poderá conhecer outros mundos.

6 Cerca de 19% das crianças brasileiras até 14 anos vivem em adensamento exces sivo (domicílio com 3 ou mais moradores por dormitório), 8,4% vivem em domicílios sem banheiro e 3% delas vivem em casas cujas paredes são de material inadequado (CINTRA et al., 2021).

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A sala de arte é um navio que leva dentro dinossauros, âncoras, marinheiros e varinhas de fazer mágica de todo tipo. Na sala de arte, não tem capitão, mas tem motorista que sabe guiar foguete e lambreta. Tem fada que coleciona ponta de lápis perdida. Tem pesquisadora que descobriu que a textura do jacaré é crocante, que Kandinsky pintou com música e que a melhor maneira de fazer arte é com o corpo. Deixo-me impregnar dessas verdades, uma maneira de reaprender o mundo que se despede da gente junto com a infância. O ritmo, a temperatura, o volume mudam depressa, conforme a maré. Quanto menor a criança, mais rápido se navega. Um monte de bloqui nhos se espalha pela sala e vira monstro, cogumelo, astronauta ou só casa, o uso imaginado pelo adulto. Quanto mais habito esse espaço junto das minhas crianças, mais gosto do mundo imaginado por elas.

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A caixa de bugigangas e outras histórias da arte na primeira infância

Imagem 1 - Casas monstro, exercício de “escultura imaginada”, 2022. Ilustração a partir de foto (Lucas Alves, 2022).

Para Ferreira Gullar: “uma das coisas que a arte é, parece, é a transformação simbólica no mundo. Quer dizer: o artista cria um mundo outro – mais bonito, ou mais intenso, ou mais significativo ou mais ordenado – a partir da realidade imediata” (FERREIRA GULLAR, apud NICOLA, 1998, p. 11). Será, então, o artista um adulto que se deixou ficar embebido de infância?

Em 2018 me foi dado o maior e mais bonito presente de toda a vida: dezoito turmas da educação infantil. Dos dois aos cinco anos, uma revolução acontece e eu tive que aprender a ser muitas professoras de arte para acompanhá-las nesse processo. Ao longo desses anos, instintivamente, construímos o que chamo de caixa de bugigangas, “horinhas de descuido” que fizeram da nossa sala um lugar para ser tudo e qualquer coisa. É sobre esse processo que quero falar. Horinhas de descuido, isto é arte?

“Arte não se ensina, contamina-se pela arte”, Ana Mae Bar bosa traduz em palavras uma sensação que me move e inquieta como professora de arte. Ora, se arte não se ensina, qual será o meu papel? Lembro-me da primeira vez que senti verdadeiramente que estávamos fazendo arte. Trabalhava com as crianças a música Sítio do pica-pau amarelo, escutamos a música primeiro com os ouvi

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dos, depois com o corpo inteiro (será possível?). Fizemos coleções de desenhos e pinturas dos nossos elementos preferidos e depois expusemos as coleções: das bonecas de pano, dos sabugos de milho-gente, dos sóis nascentes (sempre com arco-íris). Produzimos os personagens em argila. Dançamos a música. Mas senti que ainda faltava alguma coisa, faltava o sítio!

Como seria o sítio na imaginação das crianças? Pequeno? Grande? De que tipo de material é construído o sítio do pica-pau amarelo? Come cei a colecionar em uma caixa grande todo tipo de material disponível em sala, na minha casa e nos caminhos que passava. Pedras, tecidos, linhas, pedaços de papel, canos, canudos, palitos, botões, caixas, bacias. — Pequenininhos, hoje nós vamos construir o sítio.

Dei a notícia temendo a reação deles, seria uma proposta abstrata demais? Para a minha surpresa, as crianças se levantaram da roda imediatamente e começaram a construção do sítio, que virou vários; pequenos, grandes, molengas, arquitetônicos, abstra tos. Sítios onde “moram dragões também”, sítio de “fazer comidi nha”, sítio “das princesas”.

Imagem 2 - Crianças do primeiro período no processo de construção do sítio, 2019. Ilustração a partir de foto (Lucas Alves, 2022).

As crianças “dão conta” do mundo melhor do que nós e esta vam fazendo arte sem precisar de nenhuma interferência minha. Par-

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ticipei da construção de vários sítios e aprendi mais nesses dias do que em qualquer momento da minha formação pedagógica. Nesses dias, compreendi meu lugar dentro da sala de arte, minha voz ficou cada vez menos presente, os materiais falaram cada vez mais por mim. Entendi que as crianças, autônomas e sabedoras de seus desejos, só precisavam de uma caixa de bugigangas, que ora con terá materiais ditos artísticos, ora conterá areia e pedras, ora con terá histórias ou novelos de lã.

Imagem 3 - Exercício de construção de “esculturas involuntárias” baseado na obra da artista Rivane Neuenschwander, 2019. Ilustração a partir de foto (Lucas Alves, 2022).

A arte contemporânea cabe dentro da caixa de bugigangas

Nos primeiros dias de aula, ao receber as crianças, algumas pela primeira vez em minha sala, conversamos sobre o espaço, os materiais, os elementos que compõem nossa oficina. Quando me apresento digo que sou professora de arte e isso quer dizer que nesse espaço faremos arte. E arte é o quê? Pergunto.

— É pintura! — É desenho! — É argila!

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Ao longo do ano tento oferecer experiências e vivências que saiam desse lugar comum estabelecido para arte, procuro abraçar as práticas, métodos, maneiras de pensar que com frequência aparecem nas produções artísticas contemporâneas e que se aproximam muito das experiências de descoberta de mundo que as crianças já vivenciam e partilham naturalmente. Práticas que ultrapassem a materialidade, ampliem repertório, tragam o corpo para a ação, da feitura e construção da obra. Para a pesquisadora Julia Rocha, As intenções dentro de um posicionamento contemporâneo em relação ao ensino da arte são diferentes do que se desenvolvia na educação tradicional. De uma educação e vivência no campo da arte que era fragmentada, compartimentada, rígida, busca-se percorrer uma direção que considera o campo de incertezas que vivemos, onde se percebe uma cronologia, no qual os valores não são fechados, são relativos, onde a natureza do conheci mento é processual e a interatividade se faz presente tanto na arte, quanto na educação. (ROCHA, 2018, p. 2210)

Acho bonito pensar o território da arte como o grande campo da incerteza. Mutável e inconstante e, por isso mesmo, fértil como nenhum outro. Se desenhamos com nosso corpo no espaço enquanto brincamos ou performamos parangolés, se transformamos um punhado de fitas coloridas em ninho para um passarinho imaginado, se fazemos da hora da roda tempo de invenção de história, estamos fazendo arte? “Não são o brincar e a arte as formas básicas de – na medida em que são fundantes –da experiência da infância?” indaga María Emilia López (2018, p. 39).

A autora ainda afirma que

As crianças podem ser grandes inventoras; a relação com as pala vras, com os brinquedos, com a natureza, com os outros, é uma relação de descoberta e criação. Assim, criança e artista constroem uma relação de estreita fraternidade. (LÓPEZ, 2018, p. 38)

Creio que para trabalhar com crianças muito pequenas é preciso reconhecer e confiar em sua capacidade inventiva, é preciso estar disposta a acolher essa capacidade em todas as suas formas.

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Quando quieta e silenciosa, quando vibrante e expansiva. Sobre esse processo, elabora López:

O trabalho com bebês e crianças pequenas exige que as pessoas res ponsáveis aprendam a ler crianças, uma das tarefas mais complexas que podemos imaginar. Ler entre linhas, ler gestos, ler marcas do tempo ou ler sem palavras. A tarefa de interpretar seus sentimentos e suas necessidades, seus modos de pensar, requer uma sensibilidade e uma disponibilidade particular, além de certos conhecimentos específicos acerca do desenvolvimento infantil. (LÓPEZ, 2018, p. 110)

Sou uma ávida leitora de crianças e é justamente por me entregar inteira a essa tarefa que me permito experimentar ainda que, por vezes, com medo. Desde 2018, construímos juntos: sítios, florestas, coleções e labirintos. Sobre o último acontecimento, do labirinto, me debruçarei com mais afinco.

Os labirintos de Lygia

No início de 2020, participei de uma oficina de criação chamada Performar saberes do corpo que transformou em definitivo minha maneira de pensar o mundo e meu papel como mulher e professora. A proposta da oficina, guiada por duas pesquisadoras da UFSC, era fazer germinar as afinidades entre o corpo e a escrita tomando a exposição Mulheres radicais, arte latino-americana entre 1960-1985 como ponto de partida.

Pela primeira vez tive acesso com profundidade à obra de Lygia Clark a partir de sua abordagem terapêutica, da experiência sensorial e do “não objeto”, termo cunhado pelos neoconcretistas.

Associei seu método e propostas às vivências mais sig nificativas com as crianças, as quais nomeio “experiências com a caixa de bugigangas”. A presença constante do corpo como parte do acontecimento artístico, a mão que segura o pincel e o lápis, mas que tem o impulso quase irresistível de tocar a tinta, o resquício do pó de grafite, um farelinho brilhante no canto da sala. A ação de moldar a argila acompanhada da dança que o avental nos obriga a fazer entre as cadeiras. A contação de história entrecortada por muitas vozes e corpos ansiosos por saber ou

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participar. A roda, grande casulo em que nos tocamos e acessamos olhares e outras histórias.

Em 2020, desenvolvi pela primeira vez nossa versão dos objetos relacionais de Lygia. Acabávamos de voltar do período de isolamento no contexto da pandemia de Covid-19, estávamos todos afoitos pela troca, pela presença, uma vida possível depois de tanto tempo tendo encontros online.

Apresentei Lygia para as crianças como de fato a enxergo, uma artista cheia de imaginação, que gostava muito de experimentar... — Igual a vocês!

Trouxe para a roda alguns “objetos relacionais” de Lygia que construí. Essa obra foi desenvolvida por ela a partir de 1976, com inten ção de promover um trabalho curativo em suas sessões terapêuticas.

Os objetos tinham materialidades diversas: bolinhas de iso por, tecidos, pedras e, dentre todos, o meu favorito, Pedra e ar, obra constituída por uma pedra e saco plástico.

Imagem 4 - Crianças experimentando Pedra e ar de Lygia Clark, 2021. Ilustração a partir de foto (Lucas Alves, 2022).

As crianças se envolveram profundamente com a experiência. — Não sobrou tempo pra mais nada!

Na aula seguinte, conversamos sobre os objetos sensoriais produzidos por mim e as crianças construíram os seus próprios,

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usando o conteúdo da caixa de bugiganga que um dia já tinha sido sítio, carro, fogueira, zoológico, um inesgotável de possibilidades. No total este projeto durou seis semanas, seis aulas para cada turma. No último dia fizemos uma versão do labirinto de Lygia, uma mistura de suas teias de elástico, de sua baba antropofágica e de suas redes. Em roda, dei a cada criança um grande pedaço de lã e ditei o desafio: todas as crianças deveriam construir juntas um labirinto.

Imagem 5 - Crianças do 2° período construindo o labirinto de Lygia, 2021. Ilustração a partir de foto (Lucas Alves, 2022).

Algumas crianças se demoraram no desenho que imagina vam para aquele labirinto, algumas turmas construíram vários labi rintos ao mesmo tempo, outras planejaram a forma do labirinto, seu começo, seu fim. Todas as crianças, a seu modo, desenvolvendo um exercício de percepção da experiência, do entorno, do outro, do olhar da artista e sua obra. Sobre a percepção infantil, que percebi tão presente nesse projeto, pensa María Emilia López:

Falamos da percepção infantil, tão aguda e em construção desde o princípio da vida. Perceber não é apenas coletar impressões sensoriais, mas tomar algo como verdadeiro, e para isso é necessário esse singular exercício da subjetividade que entrelaça ele mentos da própria sensibilidade e experiência. A percepção é um exercício hermenêutico. (LÓPEZ, 2018, p. 60)

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Os labirintos, cheios de verdade, sensibilidade e voz das crianças foram lidos como “mapas no chão”, “pé de gigante”, “casulo” dependendo da sua forma e da elaboração que a turma criou junto. Vivenciamos esses labirintos com nosso corpo, ora com cuidado para não desfazer os contornos, ora “mais rápido”, “quem consegue chegar primeiro?”, todo o processo dependeu da decisão dos grupos.

Terminado o projeto, ainda restaram objetos sensoriais para serem revisitados dentro da caixa, as linhas deixaram de ser labirin tos para virarem pulseira de fada, teias do homem aranha, ninho de gavião e outra vez labirintos:

— Vamos brincar de labirinto! Lygia continua nossa parceira de oficina e outras histórias.

A caixa de bugigangas não tem fundo

Há alguns anos me tornei a “Juju do Abaporu”, ainda que já faça tempo desde a última vez que conversamos sobre Tarsila. A memória das crianças é curta mas não é rasa. Mergulhamos mais fundo quando juntos descobrimos sentido para as palavras, imagens, objetos, texturas. Quando criamos um novo sentido para o mundo.

Depois da descoberta da caixa de bugigangas, os projetos deixaram de acabar quando terminados, eles continuam morando lá dentro. Continuamos criando coleções como Arthur Bispo do Rosário, escrevendo, desenhando e imaginando com linhas, como Lygia. Os artistas estão vivos dentro daqueles objetos.

A sala de arte deixou de ser só um lugar de pintar, esculpir e desenhar para ser um lugar de imaginar mais significados para essas ações e objetos, ir além no nosso “exercício de ser criança”, exercí cio de ser Bernardo de Manoel de Barros (2016):

Bernardo é quase uma árvore Silêncio dele é tão alto que os passarinhos ouvem de longe E vêm pousar em seu ombro.

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Seu olho renova as tardes. Guarda num velho baú seus instrumentos de trabalho; 1 abridor de amanhecer 1 prego que farfalha 1 encolhedor de rios – e 1 esticador de horizontes. (Bernardo consegue esticar o horizonte usando três Fios de teias de aranha. A coisa fica bem esticada.) Bernardo desregula a natureza: Seu olho aumenta o poente. (Pode um homem enriquecer a natureza com a sua Incompletude?)

Referências

BARBOSA, Ana Mae. Arte não se ensina; contamina-se pela arte. Youtube, 17/06/2019. Disponível em: Ana Mae Barbosa: Arte não se ensina; contamina-se pela arte - YouTube Acesso em: 07/02/2022

BARROS, Manoel de. Livro das Ignorãças. – Rio de Janeiro, Alfaguara, 2016.

LÓPEZ, María Emília. Um mundo aberto: cultura e primeira infância. I.ed. – São Paulo: Instituto Emília, 2018.

NICOLA, José de. Literatura Brasileira das origens aos nossos dias. 15ª. ed. São Paulo: Scipione, 1998.

ROCHA, Julia. Ensino (contemporâneo) da arte contemporânea –Similitudes e enfrentamento entre metodologia e conteúdo. Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas, 27, 2018. Anais do 27˚º Encontro da Anpap. São Paulo: Universidade Estadual Paulista (UNESP), Instituto de Artes, 2018. p.2208-2223.

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O Universo Sonoro Musical Da Criança

Queria que a minha voz tivesse um formato de canto. Porque eu não sou da informática: eu sou da invencionática. Só uso a palavra para compor meus silêncios.

Manoel de Barros

Partindo da premissa de que o encontro entre as linguagens musi cal e do brincar, com a genuína legitimação da autoria das crian ças, é fundamental para propiciar vivências musicais significativas para os pequenos, busco traçar um breve trajeto teórico que ilu mine a compreensão sobre os começos, as primeiras experiências das crianças com o universo sonoro musical, bem como apresen

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tar algumas reflexões sobre a minha prática musicalizadora com bebês e crianças pequenas.¹

Meu objetivo é contribuir para que nós adultos, professoras e professores, pais, mães, cuidadoras e cuidadores, possamos qualificar nosso entendimento sobre as vivências musicais na primeira infância, nos comprometendo com uma oferta cuidadosa de possibilidades e experiências para estes que são recém-chegados ao nosso mundo.

Os bebês, os sons e a linguagem

Nosso olhar sobre e para os bebês vem se modificando com o passar do tempo, especialmente nas últimas décadas, com as avançadas pesquisas em diferentes campos de saberes, tais como o neurodesenvolvimento, a psicologia do desenvolvi mento e a psicanálise. Esta última reconhece os bebês enquanto sujeitos de linguagem.

Os bebês, que antes tinham como habilidades identifica das apenas as circunscritas aos marcos do desenvolvimento, atualmente têm seu potencial reconhecido para além do que destacam os manuais desse campo de conhecimento, que os colocam muitas vezes em uma posição de passividade e dependência em relação aos adultos, que se sobrepõem à atuação deles. Nesse caso, os bebês ficam quase invisibilizados diante da vontade do outro.

Conforme afirma Parlato-Oliveira (2019), historicamente as habilidades e potencialidades dos bebês foram subestimadas, tendo como referencial as suas limitadas capacidades motoras. Porém, segundo afirma a autora, pesquisas recentes demons tram que bebês de seis meses já são capazes de fazer escolhas, por exemplo. Outra descoberta é referente ao reconhecimento

1 Este texto foi elaborado a partir da minha dissertação de mestrado, intitulada Edu cação musical para crianças de zero a três anos de idade em tempos de pandemia e iso lamento social: um estudo sobre práticas docentes de professores de música, defendida em dezembro de 2021 no Programa de Pós-Graduação em Música da Universidade Federal de Minas Gerais.

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do próprio nome: bebês de quatro meses já o fazem, e não apenas a partir dos doze meses como descreve o marco do desenvol vimento vigente.

Ainda segundo a autora, a estratificação rígida e etapista do desenvolvimento dentro do critério etarista está diretamente ligada às limitações da capacidade de análise e percepção instrumental dos adultos pesquisadores. Por consequência, com a padronização dos parâmetros de desenvolvimento, escapam a alguns estudos sinais sociocomunicativos muito sutis e por vezes singulares. Muitos dos saberes dos bebês, portanto, não são identificados ou sequer reco nhecidos nas investigações sobre eles.

Sobre esses saberes, o bebê os constrói, conforme afirma Parlato-Oliveira (2019), a partir de um elaborado sistema de percep ção que o permite interpretar informações e tecer suas impressões. Dois fatores são fundamentais nesse processo e na qualidade da relação que o bebê estabelece com aquilo que ele percebe: o tempo e o espaço. E tudo isso acontece desde a vida intrauterina:

A vida de um bebê é ritmada desde o útero. Ele constrói um saber sobre os eventos que sucedem, e também, um saber sobre a discriminação fina dos movimentos do corpo, da face, dos sons que nos envelopam. (PARLATO-OLIVEIRA, 2019, p. 51-52)

O ritmo está ligado à dimensão do tempo, repertório que o bebê adquire desde o ventre e serve de base para outras experiências de percepção e aprendizado, como, por exemplo, o ritmo da língua dos interlocutores. Nesse processo, o bebê dá devolutivas de sua singularidade, por exemplo, expressando seu próprio ritmo por meio de seus ciclos de sono e vigília.

Simultaneamente, o bebê tem seus gestos e outros sinais sociocomunicativos nomeados pelo adulto que dele cuida. Ele é imerso em um banho de linguagem no encontro com o outro, nos processos de interação. Nesta comunicação, comumente o adulto altera sua forma de se expressar vocalmente para um padrão que Parlato-Oliveira (2019) chama de “manhês”:

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O Manhês consiste, portanto, numa prosódia específica que uti lizamos espontaneamente ao falar com os bebês, caracterizada por aspectos psicolinguísticos: faixa de frequência mais aguda, aumento da duração das vogais e variações regulares de entoa ção. (PARLATO-OLIVEIRA, 2019, p. 56)

O bebê, por sua vez, já nasce pronto para interagir com as pessoas de seu contexto social. Segundo Fonseca e Parizzi, (...) os bebês humanos nascem com o que pode ser descrito como uma obstinação para interagir com o outro. Essa ‘obstina ção’, compartilhada inconscientemente por pais e cuidadores, se expressa por um comportamento inato e complexo chamado de ‘parentalidade intuitiva’. Trata-se de “um comportamento instin tivo dos adultos que os habilita proteger, alimentar, estimular e ensinar a seus bebês sua língua e sua cultura”. (PAPOUSEK, 1996; SHIFRES, 2007 apud FONSECA; PARIZZI, 2020, p. 40) Ainda segundo Fonseca e Parizzi (2020, p. 40), “a principal fer ramenta operacional da parentalidade intuitiva é a musicalidade comunicativa”. Trata-se, pois, de outra “habilidade inata de combinar vocaliza ções e gestos que permitem a comunicação dos adultos com os bebês” (MALLOCH e TREVARTHEN, 2009 apud FONSECA; PARIZZI, 2020, p. 40).

Esta interação constitui uma espécie de “alfabeto pré-linguístico” para os bebês. E tanto os sons emitidos por eles, quanto os emitidos pelos adultos, apresentam características que serão a base das experiências dos bebês com a música e com a palavra, bem como introduzem o bebê no universo simbólico dos sons (das músi cas, das palavras), ou seja, da linguagem (FONSECA; PARIZZI, 2020).

Contudo, é importante ressaltar, conforme destaca Parlato -Oliveira (2019), que as trocas comunicativas dos bebês não se res tringem à modalidade sonora. A experiência comunicativa do bebê é multimodal, visto que o bebê ao mesmo tempo que escuta, vê, sente o cheiro, o gosto, os estímulos táteis, e a partir de todas essas informações, ele realiza um complexo trabalho de interpretação e propõe trocas, de acordo com seu interesse. Portanto, o bebê não aprende e interage apenas por imitação:

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Podemos afirmar que o bebê sabe participar de uma troca de turno, de um diálogo, tanto respondendo, quanto iniciando. […] Ele percebe pela entonação que a frase do outro está terminando e se prepara para começar a sua. (PARLATO-OLIVEIRA, 2019, p. 58)

Neste percurso, o bebê é iniciado com banhos de linguagens dados pelo outro que nomeia, canta, apresenta o mundo em palavras e entonações melódicas em uma modalidade da língua extre mamente instintiva e afetiva, o manhês. Assim, ele passa pelas experiências subjetivas com a linguagem, bem como pela incorporação de padrões culturais nos quais está inserido. Até que chega o tempo em que o bebê consegue emitir suas primeiras palavras, é quando ele entra oficialmente no universo simbólico. Sobre esse itinerário, Fonseca e Parizzi (2020) afirmam que:

Com as palavras primordiais pronunciadas, a criança entra definiti vamente no mundo simbólico das grandes linguagens humanas: a mímica facial, a gestualidade, a palavra, a música e os números - a musicalidade comunicativa originária (dos sons e dos gestos) desaguou nos símbolos. Isso nos permite afirmar que o ‘musical’ é um dos fundantes da vida humana. (FONSECA; PARIZZI, 2020, p. 43)

A experiência musical está, portanto, na matriz da experiência do ser humano, não apenas pelos processos acima descritos, mas também pelas transmissões culturais feitas aos bebês recém-chegados por meio das canções de ninar. Este é outro campo que se abre na compreensão do processo de inscrição cultural de uma criança, considerando também as dimensões afetivo-relacionais implicadas no ato de embalar o bebê ao som dessas cantigas.

Sobre os aspectos estéticos relacionados às canções de ninar, Machado (2012) afirma que elas constituem um dos primeiros objetos culturais, musicais e literários ofertados ao ser humano. A autora defende seu caráter literário e seu potencial humanizador, a partir das prerrogativas de Antonio Candido (2004), que afirma: […] verifiquei que a literatura corresponde a uma necessidade universal que deve ser satisfeita sob a pena de mutilar a persona

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lidade, porque pelo fato de dar forma aos sentimentos e à visão do mundo ela nos organiza, nos liberta do caos e, portanto, nos humaniza. (CANDIDO, 2004, apud MACHADO, 2012, p. 19)

Isto significa que estamos diante de um repertório reconhecido como literário advindo da tradição oral (literatura oral). Ele apresenta uma gama de conteúdos, significados, símbolos, aspectos sonoros e fônicos (rimas, ritmos, versos) que são oferecidos ao bebê, reconhecidamente um sujeito cultural. Um repertório que extrapola o ambiente familiar, que insere o bebê nos universos social, histórico e cultural dos quais faz parte. Machado (2012) afirma ainda que oferecer canções de ninar aos bebês é um ato de cuidado: Cuidar do surgimento das palavras, da sua afinação com a experi ência vivida, de seu vigor e sentido; cuidar do ouvir, do balbuciar, do murmurar, do falar, do cantar, do contar, do silenciar; cuidar, enfim, da experiência inicial com a palavra é condição para o desenvolvimento pleno deste ser de linguagem que é o homem. (MACHADO, 2012, p. 22)

Com o primeiro repertório musical ofertado com as canções de ninar, ocorre uma experiência de âmbito familiar fundamental para o encontro do bebê com a música em outros contextos. E ela acontece no percurso com os sons e a música desde a vida intraute rina, passando pelas memórias de experiências sonoras registradas, pela musicalidade presente na “parentalidade intuitiva” e na “musi calidade comunicativa”.

Em aulas de música para bebês, por exemplo, o modo como o adulto se posiciona nessa experiência irá interferir consideravel mente no modo como o bebê vivencia o processo. Por esta razão, Ilari (2002) afirma a necessidade de se conscientizar a família sobre sua importância na educação musical dos bebês. A autora apre senta uma revisão de literatura, cujos estudos relatados destacam as capacidades dos bebês e descrevem:

O bebê como um ouvinte sofisticado, capaz de discriminar entre propriedades isoladas contrastantes da música tais como altura,

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contorno melódico, timbre, ritmo e frases musicais. Mais do que isso, durante o primeiro ano de vida, os bebês já exibem prefe rência e memória musical de longo prazo. (ILARI, 2002, p. 88)

Eis um percurso potente, que se inicia com experiências sonoras desde o ventre. O processo de imersão na linguagem, a par tir do encontro com o outro, com a cultura e da subjetividade do bebê, culmina na entrada no universo simbólico, pela palavra e pela música, ambas fundantes do humano.

Musicalização na primeira infância: princípios e referenciais teóricos

Para se discutir a musicalização na primeira infância, seus princípios e referenciais teóricos, faz-se necessário um passo ante rior: explanar sobre as concepções de infância e de criança que sus tentam a prática musicalizadora. A partir disso é que serão definidos os conceitos teóricos que subsidiarão a prática profissional do pro fessor de música.

Um primeiro aspecto, de suma relevância, é o reconheci mento de quanto o bebê e a criança pequena são receptivos aos sons, à canção, ao movimento, conforme afirma Rodrigues (2005). Como já explicado, os bebês apresentam uma relação biológica e relacional com os estímulos sonoros e musicais. As diferentes culturas guardam em seu arcabouço a linguagem musical como manifestação biográfica de diferentes comunidades e povos. A autora afirma ainda que a aprendizagem musical é uma das primeiras a ter lugar na vida dos bebês, de modo informal e sensorial. Segundo ela, os seres humanos estão expostos a este aprendizado em maior ou menor grau, conforme a riqueza do meio cultural em que estão inseridos.

Outro aspecto a ser observado é como acontecem esses processos sensoriais de aprendizagem, independentemente de serem musicais ou não. Na infância, especialmente na primeira infância, o brincar torna-se linguagem de expressão comunicativa e relacional, consigo, com o outro e com o mundo. O jogo ou brincar simbólico

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inauguram uma nova ordem na qual a criança consegue pensar por imagens e símbolos e realizar construções metafóricas decorrentes de seus processos de elaboração da realidade ou de interferência nesta. Girardello (2011) define a imaginação como um espaço de liberdade para a criança, no qual ela lida com a realidade dentro das possibilidades do que é ou não realizável. Para a autora, alguns ele mentos são favoráveis ao desenvolvimento da imaginação: a arte, o tempo e a mediação. Ela afirma que a possibilidade da fruição esté tica é fundamental no processo de desenvolvimento da imaginação e que, para tanto, a criança necessita de tempo para apreciação e contemplação. O contato com a natureza é uma das matérias-pri mas para a imaginação em função dos elementos desestruturados nela presentes, variabilidade de experiências sensoriais e do cons tante estado de construção de hipóteses que possibilita à criança.

Já a mediação do adulto é outro fator considerado por sua relevância no fomento à imaginação infantil. Ela pode qualificar e ampliar a construção de novos sentidos juntos aos pequenos. Para a autora, “uma educação da infância que enfatize a imaginação pode contribuir para desmanchar o preconceito dualista que em nossa cultura ainda separa radicalmente a razão da emoção, a sensibilidade do intelecto” (GIRARDELLO, 2011, p. 13).

Outro ponto importante refere-se ao reconhecimento das crianças como sujeitos de cultura e que produzem cultura. As produ ções culturais das crianças tornam-se expressões de tanta relevância quanto as realizadas pelo ser humano em qualquer outro tempo da vida. Exprimem a singularidade da compreensão e expressão do mundo interno e externo, em um discurso de autoria das próprias crianças, o que é extremamente importante, uma vez que comumente a criança é silenciada ou não convidada a dizer sobre si. Ainda sobre essa produção cultural feita pelas crianças, Sarmento (2002) afirma que Entre as formas culturais produzidas e fruídas pelas crianças, consideraremos fundamentalmente os jogos infantis, cuja memória histórica da sua construção se perde no tempo que são hoje um patrimônio preservado e transmitido pelas crianças, numa comu

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nicação intrageracional que escapa em larga medida à interven ção adulta. Referimo-nos, por exemplo, a jogos como a macaca (assim designada em Portugal, mas como uma expressão quase universal, conhecida pela “amarelinha” no Brasil, por exemplo), os berlindes, os jogos de laço; os brinquedos como pião, os papa gaios de papel […]. Mas integram também nas culturas da infância modos específicos de significação e de uso da linguagem que se desenvolvem especialmente no âmbito das relações de pares e que são distintos dos processos adultos. (SARMENTO, 2002, p. 7)

Reconhecer o bebê e a criança como sujeitos que apresen tam um percurso de imersão no universo da linguagem e do simbó lico a partir da palavra e da musicalidade fundamenta teoricamente nossas práticas musicalizadoras. Outro aspecto que norteou essa trajetória de pesquisas, foi o brincar e a imaginação como expressão genuína das crianças e os brinquedos por elas construídos como a legítima cultura da infância.

Neste sentido, recorremos inicialmente a Delalande (2019), que aponta para a sensatez de despertar interesse e desejo pelo uni verso sonoro antes de ensinar música. Para tanto, o autor propõe uma “pedagogia musical do despertar”, que visa ampliar a escuta das crianças para músicas não européias e músicas contemporâneas. Nesse sentido, sua intenção é “propiciar às crianças, mais pre cisamente, experiências que precedam as técnicas” (DELALANDE, 2019, p. 21). Entendemos que, de certa maneira, este movimento é mais orgânico e próximo do percurso que a criança naturalmente faz em seu encontro com a linguagem e com o simbólico, no qual a musicalidade está presente. A proposta apresentada por Delalande (BRITO, 2019) é que seja ofertada vasta experiência de pesquisa e criação sonoras, especialmente a partir do jogo musical, a partir do qual o autor organiza uma tipologia da produção sonora infantil, definindo-a conforme os estágios de desenvolvimento cognitivo infantil propostos por Jean Piaget.

A pesquisa do som e do gesto não é senão um jogo sensório -motor; a expressão e a significação da música se unem ao jogo simbólico; e a organização é um jogo de regra. Eis então porque

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esta análise é uma idéia chave na abordagem do despertar musi cal. Para situar aproximadamente, segundo Piaget, o jogo sen sório-motor predomina antes dos dois anos. Em seguida, o jogo simbólico se desenvolve mais ou menos na etapa da educação infantil e, posteriormente, uma vez que as crianças estão mais socializadas, ou seja, às vezes no último ano da educação infantil, porém mais recorrentemente na etapa do ensino fundamen tal, o jogo toma, sobretudo, um aspecto de jogo de regra. Então, vemos na criança, um terreno favorável para desenvolver dife rentes aspectos da prática musical. Com as crianças mais novas centraremos preferivelmente a atividade sobre o som e o gesto, com as crianças do ensino fundamental desenvolveremos o caráter simbólico e, em seguida, com os maiores, o jogo musical terá regras. (DELALANDE, 2019, p. 29)

Para Delalande (2019), no jogo sensório-motor, o gesto, o efeito sensorial e a ação devem ser a tônica, como por exemplo, em algumas brincadeiras musicais tradicionais que apresentam ges tual associado ao canto. Já no jogo de regras, as culturas musicais regradas devem ser apresentadas, incluindo a notação musical. Mas aqui cabe uma ressalva no que concerne ao desenvolvimento lúdico da criança. Percebemos as diferenças dos jogos estabelecidos pelas crianças, contudo, não em uma perspectiva desenvolvimentista, con forme a abordagem construtivista de Piaget. Apesar de os marcos de desenvolvimento servirem para uma observação dirigida sobre o desenvolvimento infantil, entendemos que os aspectos subjetivos e a cultura são fatores que podem propiciar diferentes tempos de desenvolvimento e experiências. Estes tempos não são estanques no que se refere aos jogos, e as faixas etárias não são, necessaria mente, definidoras do desenvolvimento lúdico da criança. Portanto, torna-se necessário o olhar atento e sensível para as crianças, alunas e alunos de música na infância, de modo a perceber as singularidades individuais e dos grupos, no sentido de construir uma proposta com jogos conforme as suas realidades.

Outro aspecto importante a ser considerado é a experiência da aprendizagem pelo brincar, pelo jogo. Torna-se necessária a atenção para uma experiência não didatizada do brincar, conforme afir

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mam Portilho e Tosatto (2014). E para que isso aconteça, segundo as autoras, o ponto inicial é reconhecer que entre adultos e crianças está estabelecida uma relação de poder. No que concerne ao brincar, mesmo que em um contexto pedagógico, o adulto deve abrir mão de controlar excessivamente e abrir espaço para “[…] as descobertas, hipóteses, criações e invenções das crianças” (PORTILHO; TOSATTO, 2014, p. 756). Assim, possibilitamos o emergir da “cultura das infâncias”, conforme define Sarmento (2002). Neste sentido, Delalande (2019) afirma que é necessário descobrir o que é “não-direcionamento” da criança na experiência do jogo. Para ele, trata-se de não tentar conduzir a criança para um resultado pré-determinado, respeitando a “tendência” da criança em relação a uma atividade, encorajando-a. Sobre a abordagem de Delalande, Brito (2019) afirma que, nas condutas musicais de bebês e crianças, deve haver um respeito aos seus processos de pesquisa, à transformação do gesto sonoro e do pensamento musical.

Ao invés de compartilhar apenas o que já vem pronto (canti gas, brincadeiras, jogos…), bem como “informar” previamente como tocar um instrumento, rotulando, de certo modo, o que é ou não é música, ele orienta a deixar que os bebês e crianças explorem gestos e possibilidades para produzir sons,descobrir caminhos e, assim, ‘reinventar a música, o acontecimento musi cal’ em si mesmo! (BRITO, 2019, p. 45)

Brito (2003) aponta para entendimento de uma trajetória da expressão musical da criança, que vai do “impreciso ao preciso”. Trata-se de um percurso que nada tem a ver com uma conotação de valor ou julgamento, mas sim, com as condutas infantis de exploração e produção sonoras. Ela discorre sobre esse processo, que se inicia nos experimentos diversos que os bebês fazem com suas vocalizações, emitindo movimentos sonoros ascendentes e descendentes.

Posteriormente, na livre exploração de instrumentos sonoros e musicais, a criança produz sua própria música a partir dos ges tos necessários para esse feito, seja experimentando, reproduzindo ou criando. Culmina-se com o interesse pelas regras da linguagem

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musical, advindo das aquisições de outros códigos, como o progressivo domínio do sistema alfabético que instaura uma nova ordem relativa às regras, à organização, seriação e concentração. Do impreciso ao preciso, a trajetória da criança acontece respeitando seu desenvolvimento, contudo Brito (2003) chama a atenção para a importância das intervenções educativas nesse processo:

Obviamente, respeitar o processo de desenvolvimento da expres são musical infantil não deve se confundir com a ausência de intervenções educativas. Nesse sentido, o professor deve atuar sempre como animador, estimulador, provedor de informações e vivências que irão enriquecer e ampliar a experiência e o conhe cimento das crianças, não apenas do ponto de vista musical, mas integralmente, o que deve ser objetivo prioritário de toda pro posta pedagógica, especialmente na etapa da educação infantil. Entretanto, é importante considerar legítimo o modo como as crianças se relacionam com os sons e silêncios, para que a construção do conhecimento ocorra em contextos significativos, que incluam criação, elaboração de hipóteses, descobertas, questio namentos, experimentos, etc. (BRITO, 2003, p. 45)

Portanto, o papel do professor vai ao encontro do papel do adulto mediador anteriormente descrito por Girardello (2011). Para Brito, o adulto mediador qualifica os movimentos investigativos e as construções de hipóteses das crianças em seu processo de cons trução do conhecimento. Isso amplia o olhar e atribui novos senti dos ao processo, o que se dá pela oferta de novas informações e do convite a outras possibilidades. Neste sentido, Brito afirma que no processo de Educação Musical, o sujeito prioritário é a criança, não a música. Ela assegura que “a educação musical não deve visar à formação de possíveis músicos do amanhã, mas sim à formação integral das crianças hoje” (BRITO, 2003, p. 46).

Outro ponto relevante acrescentado por Brito (2019) em sua experiência como professora de música é o redimensionamento que ela dá para a relação professor-aluno:

Há muitos anos repito que, para além de ouvir o que as crian ças cantam ou tocam, interessam-me suas ideias, suas opiniões,

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percepções e, enfim, o todo que integra não só as relações com o sonoro e musical, mas, com o mundo, com o viver… É muito importante abrir espaço para conversar com elas e, assim, acercar -se do que pensam, escutando as ideias e sugestões que emergem e que fazem, do espaço da Educação, planos de efetivas trocas, de descobertas e processos criativos. (BRITO, 2019, p. 44)

Essa relação dialógica, que legitima o discurso infantil e o protagonismo da criança em seu processo de aprendizado e de construção do conhecimento, ainda é muito desafiadora, especial mente porque os profissionais da educação são formados ainda sob a égide de concepções muito cristalizadas sobre o desenvolvimento infantil e com uma compreensão equivocada do seu papel forma tivo, comumente entendido como meramente informativo. O convite que Brito (2019) faz, portanto, é de nos deslocarmos do lugar do suposto saber para estabelecer relações mais horizontais com as crianças em um processo que é para elas, com elas.

No sentido do protagonismo das crianças, Lino (2008) sistematiza as observações que fez do processo de criação musical genuinamente feito pelas crianças, que a autora nomeia como “barulhar”. Esse processo ocorre espontaneamente, nos momen tos de brincadeira e interação entre as crianças, e foi observado e analisado pela autora. Ela constatou que as crianças detêm um saber e realizam suas produções a partir dele e das relações que estabelecem entre si. A autora parte da perspectiva da Sociolo gia da Infância, que não generaliza a experiência da infância, com variações entre as sociedades, culturas, até mesmo dentro de uma mesma família.

Tendo como referencial a criança e reconhecendo que seu modo genuíno de expressão, de investigação e de construção de hipóteses é o brincar, Lino (2010) descreve em seu estudo que para as crianças observadas por ela durante sua pesquisa (crianças do maternal II, com idades entre três e quatro anos):

os tempos de brincar sempre foram encontros para fazer música. Nesses encontros, a música não ignora o ruído, não idolatra a

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canção, nem um tipo específico de construção sonora, mas cria relações no risco e no excesso de experimentar a ludicidade do corpo e das paisagens sonoras do entorno. […] Nessa ação, a música como substantivo plural não prescreve, mas emerge na infância como brincadeira, acolhendo e se nutrindo de vários repertórios que lhe conferem identidade, servem à diversão e à alegria para expressar a necessidade de lançar o corpo à sensibi lidade de soar. (LINO, 2010, p. 82)

Portanto, é de fundamental importância que o professor dê abertura para que a criança apresente seus saberes a partir de suas convivências, contextos e interações, e os valorize. É a partir do pro tagonismo da criança que o aprendizado e a construção de habili dades musicais acontecerão de modo significativo e orgânico para a criança. A criança traz um saber oriundo de seu percurso no uni verso sonoro, desde o ventre, passando pelo encontro com o outro pela linguagem e pelos repertórios que recebe dos grupos culturais nos quais está inserida e das interações que estabelece consigo, com o outro e com o mundo.

REFERÊNCIAS

BRITO, Teca Alencar. Um jogo chamado música: escuta, experiência, criação, educação. São Paulo: Peirópolis, 2019. 200p. BRITO, Teca Alencar. Música na Educação Infantil: propostas para a formação integral da criança. São Paulo: Peirópolis, 2003.

FONSECA, João Gabriel M.; PARIZZI, Betânia. A música (muito) além da música. Pista: Periódico Interdisciplinar. Belo Horizonte, v.2, n.1, p. 38-46, fev./jun. 2020.

GIRARDELLO, Gilka. Imaginação: arte e ciência na infância. Pro-Posi ções [online]. 2011, vol.22, n.2, pp.72-92. ISSN 1980-6248.

HORTÉLIO, Lydia. Especial: a importância do brincar. [Entrevista concedida a] Familiarte. São Paulo: Melhoramentos, out. 2009, p. 1-4.

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HORTÉLIO, Lydia. Música Tradicional da Infância. Reflexão & Ação. Vol. 22. No 1. 2014.

ILARI, Beatriz. Bebês também entendem de música: a percepção e a cognição musical no primeiro ano de vida. Revista da ABEM. Porto Alegre, 2002, p. 83-90.

LINO, Dulcimarta Lemos. Barulhar: a música das culturas infantis. Revista da ABEM. Porto Alegre, v.24, 81-88, set. 2010.

MACHADO, Silvia de Ambrosis Pinheiro. Canção de ninar brasileira: aproximações. Tese (Doutorado). Universidade de São Paulo. Facul dade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Programa de Pós Gra duação em Teoria Literária e Literatura Comparada. São Paulo, 2012.

PARLATO-OLIVEIRA, Érika. Saberes do bebê. São Paulo: Instituto Langage, 2019.

PEREIRA, Eugênio. Brincar e Criança. In: CARVALHO, Alysson et al. Brincar (es). 1ª edição atualizada. Belo Horizonte: UFMG, 2009. p. 18-27.

PIORSKI, Gandhy. Brinquedos do chão: a natureza, o imaginário e o brincar. 3. ed. São Paulo: Peirópolis, 2016.

SARMENTO, Manuel. Imaginários e culturas da infância. Portugal, Minho, 2002.

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Da

Menina

no barco

às Meninas no banho – desaprendendo o teatro para ensinar o teatro Adélia Carvalho

Ninguém pode entrar duas vezes no mesmo rio, pois quando nele se entra novamente, não se encontra as mesmas águas, e o próprio ser já se modificou. Assim, tudo é regido pela dialética, a tensão e o revezamento dos opostos. Portanto, o real é sempre fruto da mudança, ou seja, do combate entre os contrários. Heráclito de Éfeso VI a.c.

Falar de cultura, arte e infância sempre esteve em minha trajetória profissional e artística de maneira intensa, mas a maior transforma

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ção ocorreu quando me tornei mãe, quando minha observação da infância se tornou cotidiana e afetou, de forma ainda mais abran gente, o meu fazer teatral.

Ser mãe me levou aos mergulhos mais profundos e surpreen dentes em todas as instâncias da minha vida. E cada mergulho nessa experiência é único, pois a água do rio nunca será a mesma, sempre se modifica e também porque cada um de nós se transforma a cada instante e, quando voltamos a mergulhar, a água que por ali passa já não é a mesma e nós já não somos os mesmos e nossos filhos já não são os mesmos. As crianças nos lembram disso o tempo todo, são elas que nos mostram de forma muito concreta a mudança dessas águas e o exercício de não apenas olhar, mas de enxergar esse movi mento, verdadeiramente. É o que me move a escrever esse texto em formato de depoimento, descrevendo algumas experiências e refletindo a partir delas sobre o fazer teatral com crianças.

Convido você, leitor, a nadar comigo, desde o início desse texto, em um rio desconexo das convencionalidades.

Sou mãe de dois meninos, Francisco e Miguel, que chegaram em nossa família por meio da adoção aos 7 meses de idade. Em nossa configuração familiar somos duas mães: eu e minha esposa Ana Jardim. Nos tornamos mães com 39 e 45 anos. Nossos filhos são dois meninos negros, filhos de uma mãe negra e uma mãe branca. Eu sou dramaturga, diretora, atriz e professora de teatro. A Ana é historiadora, produtora de teatro, professora. Duas mães artistas, escritoras, pesquisadoras. Duas mulheres e dois meninos.

A experiência de sermos uma família com tanta diversidade na sua configuração nos coloca diante de muitos desafios, mas tam bém já apresenta em sua formação a possibilidade de ler o mundo de forma mais ampla e diversa, acolhedora e aberta às diferenças. Por isso, nosso primeiro mergulho se dá em nossas leituras sobre esse mundo em que estamos inseridos num sentido mais amplo, não só para as crianças, mas para nós mães também, que seguimos nos formando no aprendizado diário que é o convívio com as crianças.

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Para nós, eu e Ana, enquanto artistas, sempre foi impor tante proporcionar aos nossos filhos experiências de fruição da arte. Desde os 7 meses levamos nossos filhos ao teatro. Eles esta vam nas plateias dos mais diversos trabalhos e nos bastidores dos nossos espetáculos. A possibilidade de ter contato com trabalhos tão diferentes permitia que eles começassem a apresentar suas preferências, reagindo de forma entusiasmada, desconfiada ou desinteressada diante de cada um. Eles já pediam para ir aos espetáculos, reconheciam os teatros quando estávamos nas proximi dades, comentavam as peças assistidas. Havia uma curiosidade por esse fazer, que nos fazia olhar de forma diferente para os espetáculos para a infância.

Mas então: Veio a pandemia. Máscaras. Isolamento. Aulas on-line. Nós quatro, ou nós cinco (com o nosso cãozinho Frodo), em um apartamento pequeno.

Sem contato com a natureza. Sem escola e amigos.

Sem vovós, tias, tios e primos. Sem teatro.

Eles acabavam de completar cinco anos.

A incerteza dos caminhos, os medos e a falta de perspec tiva nos frustravam. O que seria dessas infâncias enclausuradas pelo medo de um vírus devastador? Esse mergulho foi um dos mais sufo cantes, mas ao mesmo tempo havia em suas profundezas algo a ser desvendado, não romantizando as angústias desse período, o des gaste, as inseguranças, mas reconhecendo que em toda experiência há algo a ser apreendido e vivenciado.

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Nesse período eu e Ana estávamos em finalização do doutorado e em trabalho remoto. A falta de tempo para brincar nos fez começar a buscar caminhos entre os trabalhos para que as crianças pudessem fazer parte daqueles instantes. Ou será que foram elas que encontraram em nosso fazer as brechas para ser parte? Talvez seja, realmente, muito mais isso. Com sua energia fluida e contaminante, elas foram encontrando formas de brincar com nossos momentos de trabalho.

Em um desses momentos, eu precisei gravar um vídeo para um exercício com meus alunos para uma disciplina de criação. Eu precisava de uma luz específica que só entrava na janela da sala no meio da tarde. Levei para lá, então, uma vasilha de água e um pequeno barco de papel. Eu só precisava que, por alguns instantes, os meninos fizessem silêncio. Mas a verdade é que elas fizeram muito, muito mais.

Elas se aproximaram curiosas de todo aquele aparato e começaram a observar e perguntar. Na pequena cena que precisava gravar, eu lia um poema enquanto um barco de papel corria pela pequena vasilha de água banhada de sol.

— Mamãe, posso soprar o barco?

A interferência inesperada me trouxe o impulso de negar, mas, ao mesmo tempo, me instigava de alguma forma.

— E por que não? Pensei. Isso pode mesmo dar um movi mento interessante. Vamos lá, então. Sopro, barulho e risos.

— Mamãe, posso soprar bolinhas de sabão no seu barco? Vai ser muito legal.

E por que não? Quem sabe isso dá outras camadas ao texto que tem algo de melancólico?

A menina no barco

Ela seguia pequena e assustada Fugia de quê?

Tinha medo e certa rebeldia

Porque algumas marcas não desaparecem assim

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Terceiro Mergulho

A menina no barco

Balançava mais por dentro do que por fora

O coração chegava a pular no peito Como se em pouco tempo

Fosse saltar do barco-boca.

Os olhos da menina ribeirinha Queriam se afastar de uma margem Que havia cerceado a liberdade Da menina no barco.

Agora ela só queria alcançar a outra margem,

O que viria depois ela nem sabia, Mas, precisava de tão pouco, Precisava menos do que antes.

A menina no barco, Naquele momento, Pensava apenas no agora, No meio do rio Entre uma margem-lembrança

E outra margem-esperança. Agora ela só queria estar ali No entre No meio do rio No barco Menina.¹

E a cena foi ganhando corpo, a participação deles transfor mou completamente a proposta de criação, tornando-a não mais uma criação minha para um exercício do trabalho, mas uma criação compartilhada. De alguma forma, ali eles apreciaram e participaram de um fazer artístico, não como simples espectadores, mas como criadores ativos e propondo transformações.

1 Texto de Adélia Carvalho usado na cena realizada com os filhos.

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Nessa experiência inesperada, eu desvendava, onde não procurava, um desejo pelo fazer artístico. Do jeitinho deles, inven tando e criando, brincando de fazer, mas me convidando a olhar para o brincar como coisa séria, coisa que a nossa “adultice” às vezes tende a menosprezar. A possibilidade de criação, que eu temia estar distante das minhas crianças nesse período de pandemia, começava a ser desvendada ali, dentro de casa, no isolamento, mas, ao mesmo tempo, no encontro criativo entre nós, no brincar que eles traziam para invadir o meu fazer/ensinar artístico, quando se colocavam ali também como criadores, para performar, usando as palavras da pes quisadora Marina Marcondes Machado.

Pensar a criança como performer não seria dar destaque apenas ao processo de pesquisa artística subjetivo e individual, seja do professor ou do aluno – o que incorreria no erro que os feno menólogos chamam de “psicologismo” – mas sim fazer foco nas inúmeras possibilidades intersubjetivas dos contextos e das situações expressivas. A educação e a iniciação nas artes, neste prisma, se definem como campo relacional, e todas as experiências, por mais íntimas e singulares, brotam de situações coleti vas e compartilhadas – portanto também exteriores –, aconte cimentos nos quais cada um e todos mergulham, à sua maneira, a partir de suas possibilidades. Aos educadores, caberá rabiscar, inventar, delinear e propor situações de mergulho. No entanto, não sabemos de antemão o que vai acontecer na piscina depois! (MACHADO, 2020, p. 350)

E no compartilhamento daquela experiência, mesmo que não tenha sido previsto antecipadamente, nem tenha sido pla nejado conscientemente, descobri que nossos caminhos de criar eram diferentes, mas, ao nosso modo, estávamos criando juntos. Eu estava propondo situações para o mergulho mesmo sem saber aonde aquele mergulho nos levaria, e sem imaginar que novas águas passariam naquele rio a partir dali.

A menina no barco se tornou, a partir dali, nosso código de criação. Autorização para brincar de bolhas e de barquinho de papel dentro de casa, mas também um exercício do fazer artístico que

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trazia uma união de elementos inerentes às infâncias: o brincar e o criar, que se atravessam, se misturam e potencializam um ao outro. O pedido se tornou constante: — Mamãe, vamos fazer a menina no barco?

E a minha profissão se tornou, a partir dessa experiência, mais concreta para eles e, ao mesmo tempo, acessível e interes sante. Dessa criação, outras surgiram já sem a intervenção de nós, adultas: canções, desenhos e até mesmo uma nova cena, sinali zando ali um mergulho em novas águas.

Quarto Mergulho

Em diversos momentos e de variadas formas a curiosidade pela repetição da experiência da menina no barco se mostrava ainda pulsante na vontade das crianças. Até que um dia, Francisco pediu: — Mamãe, eu quero fazer hoje outro vídeo, já tenho o nome: a menina no banho.

Havia ali um código adquirido na proposta anterior, mas havia também algo de novo e autônomo. A dramaturgia dele come

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Figura 1 A menina no Barco - Fonte: Arquivo Pessoal

çava a se configurar e ele se sentia à vontade para propor sua construção própria, como um jogo cujas regras já conhece e pode recriar de forma livre para que fique ainda mais interessante.

Claro que teria que ter água novamente. E claro que a boli nha de sabão era presença essencial. Mas, embora o rio fosse o mesmo, as águas já eram outras: começaram a chegar, então, outros objetos, como os pequenos bonequinhos de plástico que iriam ser os personagens dessa história. As meninas no banho, que a princípio seriam duas (por uma lógica estabelecida por eles mesmos):

— Tem que ser duas mamães, igual eu e Francisco que somos dois.

De repente, tornaram-se uma “multidão” que invadia as águas. Trazer os bonequinhos para a cena também traduz, de certa forma, a inquietação que traziam com A menina no barco , quando usávamos apenas um barquinho de papel e a todo momento eles me perguntavam: — Mamãe, por que não tem a menina? Da próxima vez vamos colocar uma bonequinha pra ser ela?

O que permaneceu abstrato na cena anterior, eles quiseram concretizar agora, não pelo realismo – que não era um fator tão presente na cena deles –, mas, principalmente, pelas possibilidades que esse novo elemento podia trazer para a brincadeira.

As referências da vida deles e das experiências que os afe tavam invadiam a criação. Ao mesmo tempo, Francisco se apegava, de alguma forma, inicialmente à sonoridade do texto anterior para criar suas falas, tanto pela escolha de palavras, quanto pelo tom de voz que assumia e que trazia algo da forma poética:

As meninas no banho

Elas ouviam cada gota “se” caindo Elas ouviam cada passo do chuveiro

E as gotas caindo Mas, quem se importa?²

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2 Trecho falado pelo Francisco em uma das gravações de As meninas no banho.

Já Miguel, navegava mais livremente, trazendo referências próprias, fantasiando, reinventando a realidade e sua paixão pela água, suas sensações e seus desejos:

As meninas no banho elas adoravam a água

Mas um dia ela voou (retirando uma bonequinha da água)

E ela voou

E ela estava com uma dor de bolha de barriga.

E o amigo dela falou que ela tem que entrar, mas, ela não pode porque ela tá espirrando.

Mas a gripe dela passou e ela deu um pulo. (...)

E daí ela jogou um monte de gente E depois foi todo mundo para suas casas.³

O espirro, a gripe, são elementos que emergem desse último texto e que me levam a relacionar com algo que limita o prazer, àquilo que causa o isolamento e nos impede de estar com os outros. Esse elemento, aliado ao desejo do voo e mesmo a se jogar em meio a um “monte de gente”, traz para aquela pequena cena elementos sobre os quais eles não falavam cotidianamente e nem pareciam perceber, mas que, de alguma forma, emergem do exercí cio de criar e de falar de si por meio do outro (personagem).

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3 Trecho falado pelo Miguel em uma das gravações de As meninas no banho.

2 As meninas no Banho - Fonte: Arquivo Pessoal

Das várias vezes que fizeram a cena, cada gravação foi única; em cada uma delas, como em um espetáculo irrepetível, mesmo que alguma frase ou palavra retornasse, a condução era inesperada. Sem um comprometimento sequencial, ou de causa e efeito, eles brincavam com as sonoridades, com a sensação da mão na água, com o jogo com as bolhas e com o tirar e colocar bonecos na água, na mesa, nas beiras da bacia e no espaço. Criaram um código de iní cio e fim para “conduzir” minha gravação ao dizerem: “gravando”, no início, e “corta”, ao final, código esse que não existia no meu exercício anterior, mas que trazia referências do audiovisual, certa mente apreendidos em algum filme ou desenho.

Em tempos de pandemia, o teatro feito on-line, uma das for mas encontradas para tornar possível sua existência, se apropriou de muitos códigos do audiovisual, dialogou com eles, embora na maioria das vezes mantivesse sua certeza de que não pretendia se fundir àquela outra linguagem, mas entendendo que ali havia algo que possibilitava sua sobrevivência em tempos de teatros fechados, palcos vazios e cortinas cerradas. Essa compreensão que eu, como professora de um curso de teatro, tateava, ora negando, ora reco-

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Figura

nhecendo a necessidade de se abrir para esses diálogos, neles surge lógica e sem questionamentos. A facilidade com que transitavam entre os códigos para experimentar as possibilidades do fazer era contagiante e me ensinava mais do que eu poderia imaginar. Essas criações que não foram planejadas invadiram o meu dia a dia e me ajudaram a lidar com a minha ansiedade em tê-los inseri dos no fazer artístico. A fruição é importante, sim, obviamente, não duvido disso; mas o fazer artístico vai ocorrer nos mais diversos espa ços, ele vai encontrar brechas, pois um ambiente artístico se configura das mais variadas formas e, muitas vezes, está no inesperado. Apro veitar o momento, escutar e acolher o desejo de criação é o melhor estímulo que podemos dar. A criação não é um processo isolado, mas se dá em diversas instâncias de relação da criança com o outro, com seu corpo, com a fala, com o tempo, o espaço e o mundo no qual está inserida. Esse compartilhamento com o mundo é discutido de forma aprofundada nos estudos de Marina Marcondes Machado em seu livro Merleau-Ponty e a educação, em que a autora desenha uma fenomenologia da infância. Para isso, criou uma imagem e nomeou-a de “flor da vida”. Essa flor possui cinco pétalas e um cabo que a conecta ao chão (ao mundo). As cinco pétalas e o cabo são âmbitos existenciais que conversam com a obra de Merleau-Ponty sobre a infância. São elas: outridade (criança-outro); corporalidade (criança-corpo); linguisticidade (criança-língua); temporalidade (criança-tempo) e espacialidade (criança-espaço). O cabo é a mundaneidade (criança-mundo): enraíza a criança no mundo, na cultura compartilhada. Os estu dos da fenomenologia da criança contribuem para sensibilizar o olhar adulto ao modo de vida infantil. (ARAÚJO, 2019, p. 37)

Pela capacidade de sensibilizar o meu olhar adulto sobre a experiência da criança, os estudos da fenomenologia da criança me pareceram os mais interessantes para nortear minha descrição sobre essa pequena experiência compartilhada com meus filhos, momentos nos quais criamos dramaturgia, teatro, vídeo, música e desenho, borrando as fronteiras e desvendando possibilidades.

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Qual O Próximo Mergulho?

Ao iniciar esse texto com a célebre frase do filósofo pre-socrá tico Heráclito de Éfeso, quis fazer um breve convite a olhar esses mer gulhos que são sempre singulares, por mais intimidade que tenhamos com um determinado rio, ou seja, com uma determinada experiência. Ao descrever e narrar essa experiência com meus filhos, arrisco inves tigar aqui uma fenomenologia de um processo de criação em tempos de isolamento, tentando compreender esse tempo e essa experiência nova que se configuraram e que, ao mesmo tempo, são parte marcante da infância não apenas dos meus filhos, mas de todas as crian ças que viveram essa experiência tão singular. Esses dois anos não poderão ser apagados de suas vidas, eles fazem parte da formação deles em um momento essencial de desenvolvimento e isso é transformador. Por isso, é preciso determos nosso olhar sobre ele.

A fenomenologia como método filosófico revela um modo de pensar com foco no outro, pautada na observação e descrição densa, mergulhada no cotidiano. A fenomenologia nos convida a “reaprender a ver o mundo, e nesse sentido uma história nar rada pode significar o mundo com tanta “profundidade” quanto um tratado de filosofia” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 19). convi da-nos à porosidade e à generosidade, a sensibilizar nosso olhar para os fenômenos da existência, enxergar o ser como algo ina cabado, em processo contínuo de fazer, refazer, começar e reco meçar. (ARAÚJO, 2019, p. 14)

Esse processo de fazer, refazer, começar e recomeçar nunca fez tanto sentido como em tempos como esse, no qual os lugares tradicionais de criar, compartilhar e pensar a arte não eram acessíveis e precisávamos desvendar, no espaço mais conhecido de cada um de nós (nossas casas), possibilidades para brincar, criar e compartilhar.

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Referências

ARAÚJO, Charles Valadares Tomaz. Teatro é infância e memória: o menino que há no homem. Escola de Belas Artes. Dissertação de mestrado, UFMG, 2019.

MACHADO, Marina Marcondes. Merleau-Ponty & a educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2010.

MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

Bibliografia

MACHADO, Marina Marcondes. Espiralidades: arte, vida e presença na pequena infância. Currículo sem fronteiras, v.20, n.2, maio/ago. 2020. p. 348-371.

RYNGAERT, Jean-Pierre. Jogar, representar. Tradução: Cássia Raquel da Silveira. São Paulo: Cosac Naify, 2009.

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O que é criar um livro para bebês?

O bebê é esse ser humano incrível que acabou de chegar ao mundo com toda a potência. Um ser curioso que explora, reconhece, com para e interpreta, transformando tudo em aprendizagem. E nós, espectadores de todo esse potencial, recepcionamos o bebê ávidos por interagir com ele. E logo recorremos, entre outras coisas, ao nosso tão conhecido objeto que nos proporciona interação humana, acesso à linguagem e à cultura: o livro.

Mas o que é um livro para bebês? Como fazer um livro para quem não fala, não sabe passar as páginas e foca numa mesma coisa não muito mais que alguns poucos segundos? Para quem tudo é extremamente intenso e vital, para quem tudo está à flor da pele, para quem tudo à volta chama a atenção?

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Talvez a resposta mais imediata aponte que os livros para bebês devem ser curtos, com imagens isoladas na página dupla, pou quíssimas ou nenhuma palavra. Livros que servem para a aquisição de conceitos iniciais, sejam substantivos concretos como objetos, animais, vestimentas, veículos, sejam substantivos abstratos, como cores, números ou tamanhos, que deem conta das demandas de tempo e de atenção. Esse é o tipo de livro que nos vem à mente, junto com seus materiais: pano, plástico ou cartonado. Mas são apenas esses os livros que devem ser oferecidos ao bebê?

Quando falamos de livros para bebês, falamos da primeirís sima infância, que abarca de 0 a 3 anos de idade. Tão pequenos, não é? Então como pensar em livros para essa faixa de idade, quando as mudanças no ser são rápidas, intensas e transformadoras, e não acontecem do mesmo jeito em nenhum outro período da nossa existência? Como dar conta dessa profunda transformação em um objeto que é estático, que se movimenta apenas pela passagem das páginas em nossas mãos? E, principalmente, como criar livros que considerem o bebê como o grande leitor que ele é?

Não se acreditava que o bebê fosse um leitor pleno. Mas é exatamente essa intensidade de interesses que faz dele um grande leitor, leitor das melodias das nossas vozes, leitor das expressões dos nossos rostos, leitor dos cheiros e dos paladares, leitor dos silêncios e dos movimentos, leitor do ambiente e dtudo o que ele contém. O bebê é um leitor competente de tudo o que está à sua volta, inclusive dos livros. Leitor que merece livros que contenham narrativas, que sejam divertidos e que proporcionem um bom jogo, que é o que os livros fazem com a gente, eles jogam com o leitor.

Como criar livros para bebês que deem conta das dimensões narrativas, linguísticas e poéticas que um bom livro precisa ter? São muitas as perguntas, que se multiplicam a cada momento em que desejo iniciar um livro, seja para bebês ou não. A cultura popular e a brincadeira sempre estiveram muito presentes no meu trabalho, junto com a crença da importância que esses temas têm na minha vida e nos livros que faço. Talvez isso tenha me aproximado tanto do

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livro para bebês. Fazer livro para criança pequena sempre foi minha preferência exatamente pela possibilidade de encarar o livro como esse lugar explícito para a brincadeira e para o jogo. Entendo que fazer livro para um leitor tão especial é trazer a síntese, é transformar a relação do bebê com a linguagem em brincadeira, jogo e narrativa. É trazer para o livro ludicidade e experiência estética e literária, com o intuito de interagir com o leitor e não de ensinar. Síntese não pela incapacidade de compreensão do bebê, muito pelo contrário. Tudo o que o bebê precisa para compreender o mundo já está prontinho em seu cérebro, sem nenhuma diferença do adulto, a não ser pelas experiências ainda não vividas. E é aí que que entra nosso papel de construção junto ao leitor. Vamos fazer parte das primeiras experiên cias da vida de uma pessoa com a narrativa escrita e desenhada, com o poético, o que eu acho incrível e um imenso privilégio. Foi pensando em tudo isso que produzi os três livros que apresento aqui. O primeiro é O que tem aí?, publicado pela Jujuba Edi tora, uma brincadeira de cadê-achou, com as páginas estendidas em aba, que faz as vezes das mãos ou do lençol nesse tipo de brincadeira. A cada dupla (ou tripla), vamos brincando com os animais, reais e ima ginários, com os números, as cores, as rimas e até com os plurais, e a cada pergunta é necessário abrir a aba para sabermos a resposta. No final os personagens olham para o leitor para encontrar a resposta à ultima pergunta, incluindo-o na narrativa.

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O segundo é o livro Na loja do Mestre André, publicado pela Editora do Brasil, uma cantiga de roda na qual o personagem, um coelho, introduz os instrumentos da cantiga na página, os experi menta e, misteriosamente, eles desaparecem. Ao final, o mistério é resolvido e um concerto é executado pelo polvo com os instrumen tos que ele tirou do coelho.

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O terceiro livro é Cadê o meu bolo?, publicado pela Editora Imperial Livros, uma parlenda na qual o Papão Mindinho pergunta por seu bolo aos demais personagens, que estão tramando uma surpresa. Em cada imagem dos bichos-papões, existe um buraco físico na página para que o bebê coloque um dedo, depois dois, até que os cinco dedos atravessem a página, trazendo para o livro a brincadeira que fazemos com os dedos dos bebês enquanto entoamos a parlenda.

Os três livros não apenas reproduzem as brincadeiras e a poesia popular, mas transformam cada uma delas em narrativa, tra

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zendo um novo sentido à brincadeira, para que o bebê experimente outras possibilidades de interação com textos que fazem parte do seu universo de linguagem.

Ao pensar em livros para bebês me deparo com o problema do custo elevado da produção gráfica. Apesar de ser interessante oferecer uma maior diversidade de livros, os materiais de que são feitos os livros para bebês costumam ser mais resistentes, pois esse leitor ainda está adquirindo destreza para manipular o objeto. Além da alta gramatura do papel e da capa dura, outro cuidado fundamental com o livro para bebês é que apresente as bordas arredondadas, para não correr o risco de machucá-los, principal mente nos olhos. Quando pensamos em livros com facas de corte, abas, páginas que se desdobram, peças de encaixe, soluções que ampliam os significados narrativos e a experiência do bebê, a coisa fica mais dramática. É praticamente impossível por essas bandas do globo terrestre viabilizar livros com essa complexidade de pro dução gráfica. Isso me dá uma profunda frustração, já que para o bebê a relação do corpo com o objeto e a exploração sinestésica são fundamentais durante a leitura.

Nosso parque gráfico melhorou muito nos últimos 30 anos, mas não o suficiente para produzirmos livros para bebês com a quali dade que eles merecem a um custo viável. São poucas as gráficas capacitadas com tecnologia e disposição para implantar os processos manu ais que esses livros pedem e pouquíssimas as editoras que se arriscam, investem e têm consciência de que a qualidade da produção gráfica é um item fundamental nos livros para bebês. A essas editoras faço uma reverência pela bravura. Curiosamente, são as editoras pequenas as que mais produzem livros de qualidade para esse público.

Apesar da discussão sobre livros para bebês já ter come çado há algum tempo, ainda não chegou com força aos autores. Para nós, é um pensamento novo, que precisa se unir ao pensa mento dos teóricos e ajudar a mudar o mercado editorial para que a produção de livros para bebês alcance um novo patamar de qua lidade narrativa, estética e gráfica.

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Referências

ROSINHA. O que tem aí? São Paulo: Jujuba Editora, 2019.

ROSINHA. Na loja do mestre André. São Paulo: Editora do Brasil, 2022.

ROSINHA. Cadê o meu bolo. Rio de Janeiro: Imperial Livros, 2022.

SOUZA, Renata Junqueira de. Ler e ensinar: Gestos de leitura na educação infantil. Presidente Prudente, SP: Educação Literária, 2019.

STERN, Daniel N. Diário de um bebê, o que seu filho vê, sente e viven cia. Porto Alegre: Artes Médicas, 1991.

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A edição de livros

para bebês: coleção Literatura de Colo

Nos últimos anos, uma grande quantidade de estudos foram realizados sobre o início da vida, mostrando os benefícios da leitura com bebês. Apesar desses movimentos, na área editorial, no Brasil, ainda pouco se discute sobre livros e literatura para bebês. A quantidade de produções nacionais tendo o bebê como destinatário primeiro é pequena, em privilégio de edições estrangeiras, em que muitas vezes o produto está acima da qualidade literária. Esse cenário começa a mudar em 2021, com o edital do governo federal de compra de livros para bebês, o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), que traz, contudo, uma concepção dida tizante da literatura. No entanto, ainda não é possível se apro fundar na análise dessas publicações, pois poucas chegaram ao mercado até a escrita deste texto.

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Em 2019, a Feira Internacional do livro infantil de Bologna, referência importante para o mercado editorial mundial, premiou livros na categoria Toddlers, mesmo ano em que, aqui no Brasil, a Jujuba Editora propunha a coleção Literatura de Colo, pensada para a primeiríssima infância. O projeto da coleção, no entanto, começou a ser gestado antes. Quando a editora estava com cinco anos de existência, e eu trabalhando há quase quinze no mercado editorial, passei a sentir a necessidade de me aproximar dos leitores dos livros que eu editava e da forma como eles se relacionavam com os livros. Escolhi me aproximar dos leitores que ainda não se comunicavam com palavras, mas com o corpo, os gestos, os olhares: os bebês. Então, passei a organizar, em 2015, as Rodas Barrigas leitoras e leito res desde a barriga, encontros para conversas e leitura de literatura para bebês e suas famílias. Depois de quase dois anos circulando por espaços públicos e privados e muita pesquisa de livros produzidos para bebês, percebi que poucos livros possuíam narrativa e que pouquíssimos eram de autores brasileiros. Dos encantos e reflexões provocados pelas rodas, surgiu o desejo de começar a editar livros que considerassem os bebês leitores. No entanto, essa empreitada esbarrava em alguns pontos. O primeiro é que não temos no Brasil parques gráficos para produzir os livros cartonados (ou empastados) e poucas gráficas que fazem as bordas arredondadas. Assim, junto com uma gráfica parceira, fizemos muitos testes para conseguir a impressão do livro em couchê 300g, uma gramatura maior do que a usada (em geral 150g), mas que ainda assim não é cartonada.

O outro ponto foi encontrar autores interessados em pen sar esse projeto junto: o que é um livro para bebês? O que ele precisa ter? O que o diferencia de outros livros? Ao propor o projeto da coleção aos autores, já tinha a certeza de que os livros precisavam ter narrativas, por entender, a partir da experiência com as rodas, que a mediação da leitura e a conexão entre o bebê e o livro, entre o adulto e o livro e entre o adulto e o bebê aconteciam de maneira mais oportuna quando os livros possuíam narrativas.

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O nome da coleção surgiu do entendimento do lugar que essa literatura deve ocupar, de leitura a dois, partilhada, em um espaço seguro e de vínculo: o colo. Este é um dos primeiros lugares para onde o bebê vai ao sair do útero, espaço circular de aconchego, em que se aproxima do som do coração, aquele com o qual convive na barriga. É lugar de cura de cólica, de arranhão no joelho, de medo do desconhecido. É lugar de mirar nos olhos, de sentir a respiração e o calor dos corpos conectados. Trazer a literatura para esse espaço sagrado, de contenção e afeto, é permitir que ela esteja ligada às emoções e memórias do bebê, que se constitui e aprende sobre suas emoções a partir da relação com o outro.

As emoções constituem o contágio que garante, desde o nascimento, a ligação inicial do bebê com a mãe, bem como o desenvolvimento das relações entre as pessoas da família, na escola, no trabalho, ou seja, em todos os contextos da vida humana. (LIMA, 2021, p. 37)

Assim, se faz necessário oferecer uma literatura que provo que o interesse tanto do leitor bebê quanto do leitor adulto. Se entendemos que as emoções são contagiantes, a conexão no momento da leitura do livro só acontecerá se na mesma medida despertar os dois leitores. Ambos ocupam lugares diferentes, mas de igual importância, a partir do momento que enxergamos o bebê como leitor e protagonista da sua leitura. Dessa forma, a relação no momento da leitura deve ser horizontal, numa construção conjunta da narrativa.

Na coleção Literatura de Colo, apresentamos, então, livros de literatura para bebês em que a narrativa é fundamental para a construção do vínculo entre o adulto e o bebê. São histórias em que ambos precisam ter posições ativas na leitura, que se dá por meio do texto verbal e visual, numa conjunção entre ambas as linguagens, o que permite ao bebê ampliar suas construções, compreensão da realidade e contato com o estético e o subjetivo, da mesma forma que convoca o adulto a ler as sutilezas, as brincadeiras, os detalhes. No livro Céumar Marcéu, de Renato Moriconi (2020), temos a história de um astronauta e de um escafandrista. Nas páginas ini

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ciais, os dois personagens saem da costura do livro e vão para o seu lugar de atuação, um para o céu e outro para o mar. Para a leitura, o livro é aberto de baixo para cima, o que causa um primeiro estranhamento e deslocamento do leitor adulto, habituado com o modo de funcionamento de um livro, da esquerda para a direita. Cada personagem, já em seu local de atuação, conta para o leitor o que está vendo. A primeira dupla de páginas, logo após os personagens chegarem aos seus espaços e sumirem da visão do leitor, traz as palavras “estrela do céu” na página superior, e “estrela-do-mar” na parte inferior. Essas palavras funcionam como a regra do jogo do livro. Mesmo não sendo a forma como costumamos falar, já que não falamos “estrela do céu”, mas apenas estrela, ela aparece aqui como uma dica: apresentar os elementos que aparecem no céu, observados pela astronauta Céumar, enquanto a parte inferior traz o que é visto pelo escafandrista Marcéu.

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Numa brincadeira de espelhamento, assim como as emoções entre adulto e bebê, dois universos são apresentados. O adulto se surpre enderá com as semelhanças entre avião e tubarão, balão e polvo, meteoro e água-viva. Há ainda uma quebra na expectativa da leitura que o envolve a partir da abertura do livro. Esta surpresa, por contágio, envolve também o bebê, que aponta para os objetos, muitos desconhecidos do seu universo, e inicia sua relação com o livro de formas diferentes, a depender da sua idade e interesse: interesse pela voz do adulto, pelos animais, pelo espaço, pelo mar ou pela sonoridade das palavras.

Esse livro é um exemplo da premissa de que partimos para escolher os livros que compõem essa coleção: livros que acolham o bebê e o adulto, que surpreendam ambos de diferentes formas na hora da leitura. Todos, ainda, possuem capa dura, bordas arredon dadas e papel com gramatura mais grossa, para que tenham maior durabilidade e possam acompanhar o crescimento dos leitores.

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Em O que tem aí? , da autora Rosinha (2019), temos uma brincadeira narrativa com o cadê-achou, composta por uma experiência estética e literária. Na primeira dupla de páginas, temos do lado esquerdo um passarinho e do lado direito uma página lilás, com o seguinte texto: “Passarinho lilás, o que tem aí?”. Essa página tem uma aba e, embaixo dela, a resposta. O lei tor se depara com a ilustração e a resposta: “Um jacaré amarelo tocando flautim”.

Na dupla de páginas seguinte, temos na esquerda a figura do jacaré e na direita uma página amarela com a seguinte frase: “Jacaré amarelo, o que tem aí?”. Ao abrir a aba, a resposta: “Dois dinossauros azuis usando botim”.

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Neste momento, o leitor possivelmente já percebeu o mote (regra) da narrativa desse livro, sempre a pergunta e, escondidos embaixo da aba, os bichos, numa sequência numérica crescente. A narrativa vai se desenvolvendo, com bichos que existem e que não existem, mas estão presentes no universo infantil, como o bicho-papão, e elementos que, assim como em Céumar Marcéu, nem sem pre são do universo cotidiano do bebê ou criança pequena, como botim, jasmim, xixim, causando estranhamento e compondo com a sonoridade textual. O livro traz ainda elementos que dialogam diretamente com o adulto, como em: “Nove bichos-papões verdes ouvindo Jobim”. O adulto e suas referências, assim como o bebê e suas referências, são considerados na construção da narrativa, para que, de fato, a leitura a dois possa acontecer.

Ao final da obra, o primeiro personagem, o passarinho, apa rece novamente com a pergunta: “E agora, passarinho lilás, o que tem aí?”. No virar da aba, diferente de toda narrativa, não há texto verbal, mas sim todos os bichos que apareceram na história, agora olhando para frente, para os leitores.

Em uma leitura simplista, poderíamos dizer que se trata de um livro de cores e números, no entanto, a construção narrativa vai além desses elementos, integrando os leitores, adulto e bebê, para uma construção compartilhada de leituras e saberes.

Hoje já sabemos pelas ciências do cérebro que o bebê nasce com o sistema nervoso pronto para aprender e que o desenvolvimento do cérebro é função da cultura, ou seja, que seu funciona mento é relativo às suas experiências em cada contexto pessoal (LIMA, 2021 p. 21). Assim, ao escolher editar na coleção Literatura

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de Colo narrativas que permitam o diálogo leitor entre o adulto e o bebê, a partir de suas experiências familiares, estamos oferecendo literatura aos bebês.

Entendo que a mudança de perspectiva trazida pela coleção está em compreender o bebê como um ser social - e, por isso, de direitos, direito à literatura garantido pela Constituição (direito à Cultura) e pelo ECA – e como um ser leitor, o que o tira da posição passiva de receber a leitura levando-o para a posição ativa de leitor de literatura.

Referências

LIMA, Elvira Souza. A incrível aventura dos primeiros dois anos de vida. São Paulo: Interalia, 2021.

MORICONI, Renato. Céumar Marcéu. São Paulo: Jujuba, 2020.

ROSINHA. O que tem aí? São Paulo: Jujuba, 2019.

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A escuta como base da mediação de leitura literária na primeira infância Pâmela Bastos Machado

Peço licença a você, que inicia a leitura deste texto, para oferecer minhas palavras ao seu espaço de escuta e, da mesma forma, conce do-lhe minha licença para significar as histórias aqui contadas a seu modo. Me chamo Pâmela, sou bibliotecária, mediadora de leitura e contadora de histórias. Sou filha, neta e bisneta de contadores de histórias que me contam sobre as origens deles e as minhas. Percebo em minha trajetória que a presença de contadoras(es) de histórias na família influenciou minha vida pessoal minhas escolhas profissio nais. Ouso dizer que leio e conto histórias porque elas me contaram primeiro sobre mim e participaram da construção da minha identi dade. Minha mãe costumava contar para mim e minhas irmãs nos sos mitos de origem e familiares, e foi por esses mitos que fui cons truindo a percepção de quem eu sou, das comunidades de que faço

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parte e dos acontecimentos que me cercam. É assim que mantenho minha relação íntima com as histórias que dialogam comigo, sejam elas oralizadas, cantadas ou escritas nos livros.

Trabalhei em bibliotecas escolares de 2014 a 2021, e são mui tas as experiências vivenciadas nesses anos, atuando com a mediação de leitura para crianças nesses espaços. Neste texto, trago relatos de experiências de mediação de leitura com a primeira infância em uma escola onde atuei em Belo Horizonte. Nessa escola, os encontros com as turmas da Educação Infantil aconteciam uma vez por semana, quando eu fazia leituras compartilhadas ou contava histórias “de boca”.¹ Cantávamos músicas tradicionais, dançávamos, brincávamos com os jogos de palavras, construíamos novas narrativas e sempre conversávamos muito, eu, as professoras e as crianças.

A linguagem é o campo de ação da mediação da leitura e quando mediamos podemos usar das diversas linguagens para a construção de repertórios que dialoguem e contribuam para a cons trução pessoal, cultural, social e política do indivíduo: os livros, as canções, as histórias contadas oralmente, a dança, os gestos, os jogos e as brincadeiras são algumas das linguagens que participam do processo de mediação da leitura, especialmente na primeira infância, fase em que a criança ainda não decodifica os signos alfa béticos, mas já faz leituras do mundo que as cerca.

Certa vez, li Chapeuzinho Amarelo, de Chico Buarque, para um grupo de crianças de quatro e cinco anos. Pela sonoridade das sílabas, brincamos de mudá-las de lugar e fazer outras experimen tações. O que parecia um desafio para crianças que ainda não eram alfabetizadas tornou-se um momento de muitas brincadeiras e cons truções de novos tronsmons,² como: jacaréca, saurodino, abodi. As crianças riam de cada palavra (des)construída e, no encontro

1 Termo normalmente utilizado para se referir às histórias que são contadas da memória do contador, com suas próprias palavras. Regina Machado faz uso desse mesmo termo em seu livro “A arte da palavra e da escuta” (MACHADO, 2015, p.112).

2 Neologismo criado no livro Chapeuzinho Amarelo a partir da troca de posição das sílabas da palavra “monstros”.

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seguinte, uma delas ainda estava buscando novos modos de brincar com as palavras ao tentar transformar a palavra “crocodilo”, repe tindo várias vezes com os intervalos entre as sílabas: “cro - co - di - lô; cro - co- di - lô?; lô- cro - co - di?”.

De acordo com Yolanda Reyes, a escuta ativa da criança possibilita que ela perceba

as diferenças e a gama de sutilezas sonoras da língua materna, como o contato com as diversas experiências literárias, propor ciona-lhe um rico repertório que emoldura seu desejo de ler e escrever como necessidade vital e não como uma simples tarefa escolar. (REYES, 2010, p. 74).

Na semana seguinte, lemos juntos o livro E o dente ainda doía,³ de Ana Terra, e dessa leitura muitas conversas engraçadas e importantes surgiram. A história do jacaré que perde seu dente foi ouvida com atenção e risos pelas crianças e o que me chamou a atenção foi o fato de uma das crianças, que parecia estar dispersa e nesse dia pediu para manter sua câmera desligada,4 ter me corrigido sobre um detalhe que eu havia esquecido de ler. Como é uma história cumulativa, algumas frases eram parte de uma sequência que se repetia várias vezes e, quando pulei uma delas, logo fui corrigida por essa criança que pen sei não estar prestando atenção. Precisei, então, reler aquele trecho. Quantos de nós pensamos que as crianças não estão atentas porque olham para o lado enquanto falamos? Com o tempo, compreendi que dar sequência na leitura é a melhor maneira de respeitar as crianças em seus processos de escuta. Elas me ensinam que há vários jeitos de oferecer escuta e estar atenta à leitura ou à história contada. Outra percepção que essa experiência trouxe foi de um pro cesso vivenciado pelas crianças e que para a grande maioria delas

3 A história conta de um jacaré que sentia dor de dente e que tentou de várias manei ras, sugeridas por outros bichos, fazer seu dente parar de doer, mas nada resolvia e seu dente ainda doía. De modo bem lúdico, o livro apresenta a cada nova página uma quantidade crescente de bichos que tentam ajudar o jacaré.

4 Algumas das experiências aqui relatadas aconteceram nas aulas remotas, durante o período da pandemia da COVID-19.

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representa um “rito de passagem” rumo ao crescimento. Estou falando da perda dos dentes de leite. Assim que a leitura do livro foi concluída, uma das crianças disse com entusiasmo: “Perdi meu dente, olha!”. Outras começaram a falar que também já tinham per dido alguns dentes e uma delas compartilhou que estava ansiosa por esse acontecimento e pela passagem da fada do dente. Ao con cluir a leitura, o diálogo que se seguiu foi sobre a troca dos dentes de leite, motivo de entusiasmo, expectativas e até medo da dor. Aqui podemos observar a exploração e descoberta dos sentimen tos e sensações que uma leitura pode provocar nas crianças e sua integração às referências pessoais delas. Recordo-me da leitura compartilhada da história A prin cesinha medrosa , de Odilon Moraes. Quando a narrativa conta que a princesinha tinha medo de tudo, inclusive de ficar pobre, uma criança levantou a mão e perguntou o que é pobreza, ao que outras crianças responderam: “Pobreza é quando a pes soa usa a mesma roupa sempre porque não tem dinheiro para comprar outra”; “Pobreza é quando a pessoa dorme em cima do papelão na rua”; “Pobreza é quando uma pessoa não recebe ajuda de ninguém”. É certo que haveria muitos outros conceitos para pobreza que eu poderia evocar naquele momento, inclu sive da pobreza que não vem da falta de dinheiro, mas naquele momento esse diálogo entre elas foi suficiente para que aquela criança tomasse conhecimento de uma realidade da qual ainda não havia se apercebido. Os diálogos que as histórias podem pro mover entre os ouvintes precisam ser respeitados e assistidos com atenção. Naquele momento, percebi que elas dialogaram na linguagem delas e que isso bastava para que eu continuasse a leitura. No percurso da mediação, procuro conduzir as crianças na busca por respostas para suas perguntas. Nem sempre é necessário que façamos intervenções com respostas prontas.

Não posso deixar de dizer que as experiências simbólicas proporcionadas pelo encontro com as narrativas podem ser difí ceis, tristes ou incômodas, assim como as experiências na vida real.

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Certa vez li para as crianças a história A árvore generosa,5 de Shell Silverstein. No meio da leitura, uma criança começou a chorar, sur preendendo a todos. Interrompi a leitura e direcionei minha atenção a ela, perguntando se gostaria de sair ou conversar. Sinalizando “não” com a cabeça, a criança apenas me abraçou forte e chorou pelo tempo necessário dentro daquele abraço, diante do silêncio respeitoso das outras crianças presentes. Em seguida, compartilhou com o grupo que ao ouvir esta história sentiu que ela era a árvore e seu pai era o menino que ia embora. Diante da fala da criança, meu desejo era de protegê-la daquela dor, o que não posso fazer. Mas ofereci a ela uma história, uma narrativa que possibilitou que ela sentisse e falasse sobre essa dor. Pensei que ela não gostaria de ouvir o final da história, mas ela quis e quando concluí a leitura pude ver seu sorriso. Não pretendo, neste texto, aprofundar-me nas muitas pos sibilidades interpretativas e camadas simbólicas que esta narrativa pode nos apresentar, mas apontar para a experiência vivida por esta criança na relação com a história. Compreendo que ouvir a leitura até o fim foi necessário para que esta criança encontrasse um cami nho individual para lidar com a sua dor naquele momento. Mediar esta experiência foi uma das atuações mais desafiadoras e bonitas que já vivi em minha trajetória profissional.

A partir das experiências aqui narradas, pude compreender o quão importante é que o mediador selecione narrativas diversificadas: daqui e dacolá, com finais felizes ou tristes, com personagens

5 A árvore generosa narra a história de uma relação de amizade entre uma árvore e um menino. A árvore amava o menino e por ele estava disposta a se doar por inteiro. Mas o menino, à medida que crescia, se afastava e visitava cada vez menos sua amiga árvore, enquanto ela esperava ansiosa pelo reencontro, respei tando o espaço e as escolhas daquele menino a quem tanto amava. E o menino quando retorna, sempre pede algo a árvore para que possa realizar seus próprios desejos e ela lhe concede seus frutos para vender e ganhar dinheiro, seus galhos para que construa uma casa, seu tronco para que construa uma casa, ficando ao final apenas um toco da árvore. A cada desejo realizado, o menino se mantinha distante novamente por um longo período.

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que vivem em realidades distintas, com narrativas que abordam as diferenças, para além das narrativas convencionais. Os possíveis efeitos que os livros exercem sobre as crianças não são mensuráveis ou classificáveis. Enquanto mediadores, temos a responsabilidade de selecionar narrativas que possibilitem a construção de novos sentidos e novas experiências.

A condução sensível das conversas motivadas pelas histó rias garante liberdade às crianças para perguntarem, expressarem seus incômodos e incompreensões, tirarem conclusões ou compar tilharem sobre si mesmas e suas experiências pessoais e coletivas. É muito natural que elas digam quando não gostam das personagens ou histórias, compartilhem percepções e opiniões, perguntem sobre palavras e situações que não compreenderam, identifiquem-se com algo ou alguém, narrem outras versões das histórias ou falem sobre algo de suas vidas que querem compartilhar. Na prática de mediar leituras para crianças, além de possibilitar novas experiências, preci samos estar abertos para aprender com elas e nos desconstruirmos no processo. Um mediador precisa conhecer muitas histórias e gostar de compartilhá-las, mas aliado ao seu conhecimento e experiên cia na oralidade, o mediador precisa estar sempre pronto para ouvir cada criança, oferecendo-lhes uma escuta sincera, sensível e atenta.

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Referências

BUARQUE, Chico; ZIRALDO. Chapeuzinho amarelo. 22. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008.

MACHADO, Regina. A arte da palavra e da escuta: Edição revista e ampliada do livro Acordais. Colagens de Adriana Peliano. São Paulo: Reviravolta, 2015.

MORAES, Odilon. A princesinha medrosa. São Paulo: Cosac Naify, 2002.

REYES, Yolanda. A casa imaginária: leitura e literatura na primeira infância. São Paulo: Global, 2010.

SILVERSTEIN, Shell. A árvore generosa. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2017.

TERRA, Ana. E o dente ainda doía. São Paulo: DCL, 2012.

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Leitura universal, interpretações singulares: relato de experiência de uma mãe com uma filha com deficiência¹

Mariana Rosa

Como é que se dá a leitura junto à criança com deficiência? O comprometimento cognitivo, visual, auditivo ou motor inviabiliza tal prática? Ou, ainda que viável, é menos importante? Como é possível atribuir intenção e significado à leitura quando o interlocutor nos desafia a outras narrativas? Essas e muitas outras questões me ocorreram quando brotou a intenção de ler com minha filha Alice, hoje com 3 anos.

Habituada com determinado modelo de leitura comparti lhada, ou apegada a um ideal para essa prática entre mãe e filha, supunha que os principais desafios que encontraríamos para estar na

1 Texto originalmente publicado em LIMA, Érica; FARIAS, Fabíola; LOPES, Raquel (orgs.). As crianças e os livros: reflexões sobre a leitura na primeira infância. Belo Horizonte: Fundação Municipal de Cultura, 2017.

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companhia dos livros seriam as limitações físicas de minha pequena. Ela tem baixa visão e pouco controle dos movimentos do corpo, em razão da disfunção neuromotora. Não segura o livro, não fixa a cabeça, não sustenta o corpo, não se senta sozinha, não enxerga bem as letras, tampouco as imagens. E agora? Será que vamos ler? Investi tempo e recursos nas adaptações necessárias. Livros com letras grandes e figuras em contraste, aliados a estímulos sono ros ou táteis. Cadeira que permitisse um posicionamento funcional, de modo que o livro ficasse à altura dos olhos de Alice, ao alcance de suas mãos, ainda que seus olhos pouco pudessem ler e suas mãos não conseguissem tocar. Experimentamos. Vira uma página e o jacaré projeta sua grande boca para fora, vira outra, e o leão se apresenta rugindo imponente, vira outra e a arara espalha suas asas até encos tar no nariz de minha filha. Pelo canto dos olhos, ela direciona inte resse e curiosidade. A boca faz bico de quem provou uma novidade. Repetimos a experiência inúmeras vezes. Embora os ajus tes estruturais propostos exibissem inequívoca pertinência, sentia nossa experiência pouco espontânea. Era tanta preocupação com a visão que faltava, a coordenação motora que não alcançava, que a leitura ficou, paradoxalmente, esvaziada de sentido. Pouco a pouco, compreendi que a principal barreira para a realização plena do momento do ler não residia nas características de minha filha, mas no meu restrito repertório de iniciativas ou, por assim dizer, na minha apequenada interpretação das viabilidades. A leitura é muito mais do que enxergar as letras e as figuras, do que ser capaz de segurar o livro ou de virar suas páginas, ou ainda de compreender sua história. A leitura é matéria da conexão, da imagi nação, da reinvenção. A leitura é o universo das inúmeras narrativas possíveis! E eu? E minha filha? E nós? Nós somos sujeitos dessa nar rativa! A nós cabe definir de que maneira “essa história de ler” pode nos ser aprazível e mobilizadora de consciência e sentimentos.

Aposentei, então, a cadeira apropriada, mantive os livros com apelo visual. Começamos de novo. Dessa vez, sentamo-nos jun tas, eu em uma poltrona macia e ampla, ela em meu colo, o livro

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em seu colo. Uma tríade de acolhimento à história que iniciaríamos dali em diante. Minhas mãos seguram as dela e juntas abrimos o livro. Observamos a mesma página sem pressa. Ela vai apreendendo as formas e cores, enquanto eu vou percebendo sua respiração se apressar, seu corpo sutilmente alternar o tônus, anunciando interesse. Imposto a voz e começo a leitura. Ela gira a cabeça sutilmente, desvia do livro. Antes que eu buscasse retomar a posição que colo cava seus olhos de frente para as figuras, percebo que seu ouvido encostou em meu peito. Ela segue espiando o livro de lado, ao mesmo tempo em que ouve minha voz ecoando lá dentro do corpo, abafada e compassada às batidas do coração. Capricho nas inter pretações e entonações, na tentativa de assegurar nossa diversão. Ela corresponde à investida, emitindo sons e sorrindo fartamente. Estaria entendendo o que leio? Visceral, sensorial e cognitiva, a com preensão se constrói de diversas maneiras, sobretudo sobre o valor de estarmos juntas, em comunhão de palavras e afeto. Estamos a escrever a nossa narrativa, amorosa e singular.

A leitura nos convida ao aconchego dos corpos, ao contato das mãos, à sintonia da respiração, à junção das vozes, à conexão sutil dos gestos. A leitura, e somente ela, cria contexto e cenário privilegiados a esse encontro. Concentra esforços, organiza atenções, equilibra interesses, prioriza o tempo. Seja qual for o enredo que o livro nos propõe, reside também ali a chance de interpretarmos a nós mesmas, a nossa relação mãe e filha, a partir da tomada de consciência de quem somos e, sobretudo, de quem podemos ser. Isso porque, a pretexto de conhecer uma história que se nos apresenta interessante e prazerosa, é preciso aprofundamos o vínculo que nos dá condição de ler e aprender mais e mais. Tanto mais histórias conhecemos, mais sabemos sobre nós mesmas.

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Práticas antirracistas de leitura literária na educação infantil

Apesar das inegáveis conquistas dos movimentos negros brasileiros nas últimas décadas, nosso país segue perpetuando práticas racistas que vão do “pensamento racista” gerado pelo aparelho ideológico de dominação escravista no período colonial (MOURA, 2019) ao “racismo recreativo” presente em piadas cotidianas (MOREIRA, 2019). Partindo de dados estatísticos e contribuições teóricas que confirmam a presença dessas práticas racistas em diferentes âmbitos da sociedade brasileira, este artigo contribui com a tarefa urgente de se construir uma educação antirracista nas escolas brasileiras, desde as etapas iniciais da escolaridade, tão importantes para a formação ética e estética das crianças. Uma das formas de se fazer isso é cuidando do planejamento das situações de leitura literária na escola, da seleção dos livros aos encaminhamentos realizados durante a mediação da leitura, tendo a análise crítica, a escuta

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apurada e sensível e a conversa apreciativa como pontos fortes que configuram as práticas antirracistas de leitura literária. Pesquisas com diferentes recortes temáticos deixam evidente a desigualdade racial que assola nosso país e as consequências dire tas desse quadro socioeconômico nos dados educacionais. As faces do racismo, um levantamento realizado pelo Instituto Locomotiva para a CUFA (Central Única das Favelas),¹ entrevistou mais de mil pessoas, em todos os estados da federação. Os dados explicitam o racismo em varia das formas de manifestação. Evidencia-se, por exemplo, que a população brasileira reconhece que a cor da pele de uma pessoa faz diferença no tratamento que ela receberá da polícia e em suas chances de estudar e trabalhar: 85% dos entrevistados afirmam que atualmente no Brasil uma pessoa branca teria mais chances de estudar em uma faculdade do que uma pessoa negra; 91% acham que uma pessoa branca teria mais chances de conseguir um emprego do que uma pessoa negra e 94% acreditam que uma pessoa negra teria mais chances de ser abordada de forma vio lenta ou, ainda, de ser morta pela polícia do que uma pessoa branca. Ainda que a pesquisa testemunhe a percepção da parcela entrevistada da população acerca da existência do racismo nas rela ções que envolvem segurança pública, educação e trabalho, não seria nem um pouco difícil encontrarmos em conversas cotidianas nos corredores das escolas, nos editoriais dos grandes meios de comunicação ou mesmo no espaço acadêmico quem ainda acredite no “mito da democracia racial” sustentando as relações sociais no país. Cunhado pelo sociólogo Gilberto Freire, tal conceito baseia-se na crença de uma suposta convivência harmônica entre “as três raças que compõem nossa sociedade” (o branco, o índio e o negro).²

1 Para ler a pesquisa completa: https://ilocomotiva.com.br/estudos/. Acesso em 12/02/2022. 2 Como explica Nilma Lino Gomes (2005, p. 57), “o mito da democracia racial pode ser compreendido, então, como uma corrente ideológica que pretende negar a desigualdade racial entre brancos e negros no Brasil como fruto do racismo, afir mando que existe entre estes dois grupos raciais uma situação de igualdade de oportunidade e de tratamento. Esse mito pretende, de um lado, negar a discrimi nação racial contra os negros no Brasil, e, de outro lado, perpetuar estereótipos, preconceitos e discriminações construídos sobre esse grupo racial.”

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Assim como a maioria dos entrevistados da pesquisa As faces do racismo, confirmamos também em nossas práticas de lei tura literária com as crianças evidências de um racismo alicerçando a sociedade brasileira. Tal percepção apoia-se em leituras e pesqui sas bibliográficas e, principalmente, em experiências cotidianas de racismo flagradas em salas de aula, salas de professores, salas de leitura, pátios e bibliotecas de escolas públicas e privadas. Em nosso entendimento, o “mito da democracia racial”, portanto, não se sus tenta diante de evidências gritantes de desigualdade racial estrutu rante, herança de nosso violento processo colonial e, sobretudo, da resistência das elites brancas em abrir mão dos privilégios que o racismo lhes confere.

Um dado ainda mais recente, diretamente ligado às práticas de leitura e escrita, não deixa dúvidas com relação ao impacto do racismo na aprendizagem e a ausência de políticas públicas voltadas ao seu combate. Trata-se da pesquisa Impactos da pandemia na alfa betização de crianças, realizada pelo Todos pela Educação, com base na PNAD Contínua (2012-2021).³ A pesquisa compara os números correspondentes ao terceiro trimestre de cada ano e confirma os efeitos negativos da pandemia de Covid-19 sobre a educação pública brasileira, com destaque para dados que reforçam a diferença entre crianças brancas e crianças pretas e pardas:

Os percentuais de crianças pretas e pardas de 6 e 7 anos de idade que não sabiam ler e escrever passaram de 28,8% e 28,2% em 2019 para 47,4% e 44,5% em 2021, sendo que entre as crianças brancas o aumento foi de 20,3% para 35,1% no mesmo período. (TODOS…, 2022, grifos nossos)

É neste contexto, portanto, que entendemos as práticas de leitura antirracistas como parte integrante de iniciativas que visam à diminuição, a médio e longo prazo, das desigualdades raciais no país.

3 Para ler a pesquisa completa: https://todospelaeducacao.org.br/wordpress/ wp-content/uploads/2022/02/digital-nota-tecnica-alfabetizacao-1.pdf . Acesso em 12/02/2022.

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No que diz respeito especificamente às presenças negras na literatura de recepção infantil e juvenil produzida no Brasil, Debus (2017, p. 37) aponta questões importantes sobre o reflexo do racismo na produção editorial voltada a este público. As pesqui sas da autora revelam que as exigências da Lei 10.639/03 contribuíram significativamente para o aumento da produção editorial que problematiza as questões étnico-raciais, por meio, por exemplo, de maior presença de personagens negros como protagonistas não-su balternizados e de abordagens temáticas menos exóticas e homo gêneas do continente africano.

Ainda que se possa comemorar o aumento quantitativo de títulos com presenças negras voltados ao público infantil e juvenil a partir da referida Lei, faz-se necessário permanente rigor na aná lise de cada obra em particular, com vistas, sobretudo, à presença de estereótipos pejorativos que revelem direta ou indiretamente preconceito, discriminação ou racismo.4 Parâmetros norteadores desta análise podem ser encontrados nas Diretrizes Curricula res Nacionais para a Educação das relações étnico-raciais e para o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (BRASIL, 2004) e nos Indicadores da Qualidade na Educação – Relações raciais na escola (UNICEF, 2013), documento do qual destacamos as seguintes orientações:

É necessário afinar o olhar crítico para com as obras, mesmo aquelas de autores e autoras consagrados e famosos, e discutir o contexto das relações raciais nas quais foram elaboradas e a maneira como a população negra é retratada. (...) Ainda chegam muitos materiais à escola que colocam as pessoas brancas como as únicas representantes da espécie humana. Muitas obras con tinuam a inferiorizar pessoas negras, a tornar invisíveis suas lutas históricas e a restringir sua presença a lugares sociais de pouco reconhecimento ou à posição secundária de coadjuvantes de pessoas brancas. (UNICEF, 2013, p. 59)

4 Para melhor compreensão da distinção entre cada um destes conceitos, indi camos a leitura de Gomes (2005).

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Neste artigo, relatamos e analisamos práticas antirracistas de leitura literária na Educação Infantil, priorizando como modali dade de situação didática a leitura realizada pelo professor, dirigida a um grupo coletivo de crianças. Parte-se do pressuposto de que, nesta etapa da escolaridade, ainda que as crianças não possuam o domínio do sistema alfabético de escrita e, portanto, não leiam con vencionalmente, já são capazes de interagir com a linguagem escrita e visual dos livros em toda sua materialidade, construindo sentidos e ampliando percepções acerca das representações culturais, com as quais se criam narrativas diversas.

Apresentamos e discutimos a seguir duas situações de lei tura e apreciação literária com foco na diversidade étnico-racial pre sente na representação dos personagens, em livros-álbuns especí ficos: Quero colo, de Stela Barbieri e Fernando Vilela, publicado por SM Edições (2016) e Meu crespo é de rainha, de bell hooks, com ilus trações de Chris Raschka, publicado pela editora Boitatá (2018). As situações acontecem em rodas de leitura realizadas com turmas de Educação Infantil, com idade entre três e cinco anos, e com crianças do Ensino Fundamental, na faixa etária entre seis e sete anos.

As situações de leitura tomadas como base para a escrita do artigo são inspiradas no planejamento e nas atividades realizadas pela educadora Luciana Gomes, no ateliescola acaia5 (SP).

5 O ateliescola acaia é uma escola experimental que atende, em sua maioria, crianças e adolescentes da Favela do Nove, da Favela da Linha e do Conjunto Habitacional Cingapura Madeirite, próximas à Ceagesp, em São Paulo. Dentro de uma proposta de educação integral associada a “oficinas de fazeres”, que agrega saberes de distintas classes sociais, um dos objetivos do ateliescola é desenvolver e formalizar um programa que articule educação, saúde e cultura.

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Rodas de leitura: presenças negra e indígena em dois livros-álbum

A professora inicia a roda de leitura apresentando a história: Essa história é para gente grande e gente pequena e fala sobre gente que mora longe, gente que mora perto, gente que anda de bicicleta, gente que pega água no rio. É um livro para todos e todas. O nome desse livro é Quero Colo. Nesse momento, a professora gira o livro aberto com capa e contracapa viradas para o grupo. Na sequência, lê os nomes da autora (Stela Barbieri) e do ilustrador (Fernando Vilela) do livro e pergunta para o grupo quem gosta de acolher alguém no colo. Segue-se, então, uma conversa até o início da leitura propriamente dita. Relatamos e analisamos a seguir trechos da conversa que se relacionam diretamente com as relações étnico-raciais.

A professora abre o livro para as crianças olharem com aten ção quem são as pessoas que oferecem colo e quem são as pessoas carregadas no colo.

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Quero colo, Stela Barbieri e Fernando Vilela, Edições SM, 2016.

Criança: Olha prô, o pai emprestou a bicicleta pro palhaço buscar ele. O palhaço não tem pai.

Professora: E o que aconteceu com o pai do palhaço?

Criança: Ele não teve. Ele só teve mãe.

A professora prossegue com a leitura pedindo que as crian ças observem com muito cuidado quem mais vai aparecer querendo colo, além do palhaço sem pai. Embora a professora não dialogue com todas as falas, podemos observar que decide parar a leitura em alguns momentos, em falas nas quais as crianças vão tecendo rela ções familiares ou revelando certo estranhamento com a narrativa. Exemplos: quando as crianças traçam comparações com seu con texto familiar ou quando se surpreendem com a transição entre o colo humano e o colo dos animais.

A professora prossegue, sem se estender sobre o palhaço sem pai nomeado por uma das crianças. Ao virar a página na qual há uma criança no colo de uma senhora (suposição de que seja a avó) algumas crianças observam a imagem do bebê e nomeiam o tipo de cabelo dele, retomando memórias do livro Meu crespo é de rainha, já lido ao grupo pela professora no ano anterior.

Criança: Olha, prô! O menino é transparente? Não pintou.

Criança: Só quis pintar a avó.

Criança: Ela não parece minha avó. Olha o menino de cabelo cacheado igual ao livro que tem o cabelo assim, enrolado.

A professora vai até a prateleira de livros da sala, mostra o livro Meu crespo é de rainha e pergunta se é aquele o livro ao qual a criança se refere. Ela diz que sim. A professora deixa o livro ao lado e informa que no momento da atividade Livre-livro vão poder olhar os dois para ver se as crianças se parecem mesmo. Depois de dialogar com a fala da criança, a professora segue com a leitura.

É possível observar que a percepção das crianças vai avançando e alcança aspectos mais amplos da narrativa, estabelecendo relações para além das que geram identificação pessoal imediata,

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como a presença de colo humano e de colo animal e a mudança de contexto urbano para contexto do campo e da mata.

Criança: Esse é um canguru. Ele tá levando o filho na barriga!

Criança: Ele vai cair (diz para si mesmo). Esse bebê vai cair!

Professora: Gente, ele está preocupado com o filhote de canguru. Mas esse é o jeito que as mães cangurus têm para carregar seus filhotes. É uma bolsa que já fica junto ao seu corpo, é parte da mãe canguru.

Criança: Olha, agora é uma mãe ursa. O pinguim vai con versar com ela. Cadê as pessoas, prô?

Podemos supor que, nesse momento, a pergunta da criança (cadê as pessoas?) esteja associada à percepção dela em relação à mudança do colo humano para o colo animal nas imagens. Assim como as demais falas, essa também explicita as janelas que o livro abre para as relações humanas cotidianas, especialmente as que são permeadas por afeto, além de permitir que se mencione a variedade de arranjos familia res próprios da contemporaneidade, seja pela presença de uma suposta avó com o neto de cabelos cacheados no colo, um pai que busca o filho na escola ou o palhaço que nasceu sem pai, apenas com mãe.

A professora convida o grupo a olhar de perto uma das ima gens e pensar em que ambiente essa família está:

Professora: Gente, olha essa imagem. Onde essa família está?

Crianças: Eles estão com frio. O pinguim vai ser amigo deles. Eles são quase gente.

Professora: Eles não são gente?

Criança: A mamãe ursa é humana, mas ela colocou um casaco de urso porque tá todo mundo com frio.

Criança: Não é humana porque tem pinguim.

Criança: É humana sim, né prô? Ela fez roupa de urso pra não ficar de frio.

Professora: Crianças, vocês lembram quem já apareceu nessa história recebendo um colinho?

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Crianças: O bebê, o palhaço, outro bebê da avó, o macaquinho, o canguru na barriga…

Enquanto as crianças retomam as personagens, a professora vai tentando localizar as páginas correspondentes.

Professora: Pois é, a gente tá vendo que nesse livro tem gente e tem bichos, todos gostam de colo. Vamos ver quais serão os próximos colos.

Assim que a professora vira a página, antes de ler, uma criança já acrescenta:

Criança: Tá nas costas da mãe. Ela agarrou com aquele pano.

Criança: Não é mãe, é pai. Olha o cabelo curto dele.

Professora: Deixa eu ler o que está escrito pra gente des cobrir se é mãe ou pai, porque tem muitas mulheres de cabelos curtos.

Criança: É, tem uma gente mulher até sem nada de cabelo.

Criança: Ela é careca!

Professora: Onde será que essa mulher e essa criança estão?

Criança: No rio. Um rio fundo, bem fundo.

Criança: Não é um rio. É um deserto.

Professora: Por que é um deserto?

Criança: Porque tem muita areia perto dela.

Criança: Ela tem uma roupa. Acho que é rio.

Professora: Essa mãe parece com a família que estava vestida de urso?

Criança: Não. Ela parece com essa mãe de cabelo curto.

Professora: O que tem de diferente do lugar onde estava a família com roupa de urso pra cá?

Criança: Lá é roupa de urso, aí não tem roupa de urso.

Aqui fica evidente a percepção das crianças em relação à mudança de contexto. Embora não consigam nomear exatamente, estão informando que são lugares diferentes, com climas diferentes.

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Assim como anteriormente perceberam a transição do colo humano para o colo animal.

É importante acrescentar que optou-se por não interromper muitas vezes a leitura, pois isso implicaria em perda da cadência rít mica do texto e da conexão entre as várias cenas estabelecida pela repetição da frase “quero colo”.

Algumas observações trazidas pelas crianças são mais comentadas pela professora, outras menos e isso não se justi fica pelo grau de importância de cada fala. Em alguns momentos, escolhe-se conversar apenas com a imaginação ampliada de cada criança, em outros escolhem-se falas que ajudam a perceber a orga nização da narrativa, como as falas acerca dos diferentes contextos, e, ainda, pode-se priorizar comentários que revelam certos recortes sociais, como a fala da criança que virá a seguir, a respeito de uma imagem que carrega “certo estereótipo” indígena.

As escolhas fazem parte de toda situação de mediação de lei tura. No caso desta, em especial, o destaque para comentários volta dos à percepção das crianças acerca da diversidade de personagens, contextos e colos justifica-se por duas razões: o livro traz essa ques tão de modo muito forte, tanto no texto, como nas imagens, e problematizar leituras com presenças negras e indígenas, desde cedo, é um objetivo quando se trata de práticas de leitura antirracistas.

A página dupla com a frase “E na volta pra casa”, ilustrada pela imagem de uma mãe com certo estereótipo indígena e uma casa que nos remete à ideia da “oca”, provoca discussão entre duas crianças sobre ser “índio” e ser humano, ou não. Note-se que o uso generalizado da palavra “índio” indistingue até a noção de gênero, já que mesmo a mãe é nomeada como “índio”, no masculino.

Criança: Olha, prô, ela é índio.

Criança: Não é. Ela é uma pessoa humana!

Criança: Olha lá em cima, a casa dela é casa de índio.

Criança: É mesmo e tem coisas de índio.

Criança: Então, é quase gente.

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Professora: Por que vocês acham que indígena é quase gente?

Criança: Professora, indígena é índio gente, né prô?

Professora: Sempre que formos falar sobre índios, como vocês estão falando, vamos usar a palavra indígena e em outro momento vou na sala com a professora pra gente conversar juntas com vocês sobre por que falar indígena, e não índio.

Criança: Eu vi que é índio porque tem pouca roupa e tem um rio.

Criança: Isso é uma floresta, não um rio.

A professora pede que as crianças observem atentamente as imagens de uma dupla de páginas e pergunta o que veem.

Criança: Prô, é uma floresta. Olha uma pedra.

Criança: Isso não é uma pedra, é a casa dele. Olha a porti nha. (É a primeira criança que observa a casa na imagem).

Criança: É, pode ser uma oca mesmo.

Esse relato da roda de leitura permite observar duas condições didáticas importantes quando falamos em práticas de leitura antirra cistas na escola. A primeira delas é a escolha por livros com estreito diálogo entre texto e imagem, favorecendo o estabelecimento de relações, sejam familiares ou de estranhamento, que facilitam, entre as crianças pequenas, o compartilhar coletivo de percepções. Esta

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é, sem dúvida, uma condição didática propícia para conversar sobre diferenças. E conversar sobre diferenças culturais, acolhendo e agre gando distintas perspectivas e repertórios, é uma coerência pedagógica esperada quando pensamos em práticas antirracistas na escola.

A segunda condição didática diz respeito ao cuidado criterioso da mediadora ao selecionar os comentários das crianças que deseja amplificar e problematizar no grupo, de acordo com seus objetivos de ensino. No caso, como o intuito era oferecer leituras com presenças negras e indígenas, os comentários das crianças vol tados para essa representação no livro foram priorizados, mas não os únicos a serem comentados. As percepções específicas sobre a representação das personagens indígenas, explicitadas pelas crian ças, provocaram boas conversas, reveladoras de estereótipos que ainda circundam o modo como vemos e nos referimos aos povos originários do nosso país. Associar “índio” a oca, mata, floresta e rio não deixa de desconsiderar a presença indígena em cidades e grandes centros urbanos. O que mais chama a atenção, no entanto, é a dúvida colocada em questão durante a conversa: índio é gente? É quase gente? É humano?

Certamente, as dúvidas revelam padrões de pensamento aos quais as crianças estão sujeitas, de acordo com seu convívio social e escolar. Do mesmo modo, o uso da palavra “índio”, no lugar de indígena, carrega uma semântica colonial, que não apenas des considera a variação de gênero, como também as múltiplas etnias que não se encerram em um vocábulo já tão desgastado.

Por fim, o encaminhamento da mediadora, ao propor uma continuidade sobre a discussão acerca dos termos “índio” e “indí gena”, envolvendo a professora da turma, em outro momento, fora da situação da roda, é também condição fundamental quando pensamos em práticas de leitura antirracistas: entender que uma, duas, três leituras literárias, por melhores que sejam, não esgotarão a conversa em torno de questões que estruturam nossa sociedade há séculos. Ao contrário, podem construir pontes para que outras leituras, pesquisas, novas e muitas conversas aconteçam.

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Meu crespo é de rainha, bell hooks e Chris Raschka, Editora Boitatá, 2018.

Ô minha preta, pretinha…

A tua pele é bela. Teu cabelo é de rainha.

O trecho citado é da música Crespo de rainha, do cantor e com positor Melvin Santana, e foi a chave de abertura para a mediação do livro Meu crespo é de rainha. A música foi apresentada para um grupo de crianças com idade entre cinco e seis anos. A professora iniciou o encontro perguntando se já haviam prestado atenção que, às vezes, as pessoas falam dos mesmos assuntos de formas diferentes. Na sequência, mostrou a foto do cantor e compositor, pediu ao grupo que ouvisse a música com bastante atenção e acrescentou que no livro havia palavras bem parecidas com as que aparecem na canção.

Professora: Tem palavras bem bonitas nessa música e esse grupo tem o desafio de memorizar algumas. Pode ser qual quer palavra que chame a atenção de vocês. Depois que a gente ouvir a música, vou ler e conversar sobre esse livro aqui, que tem muitas coisas parecidas com a música (mostra a capa do livro Meu crespo é de rainha).

Na primeira parte da canção, no trecho em que diz “preta, pretinha”, uma criança vai até a amiga e diz:

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Criança 1: Olha, nossa música! Falou o nome da nossa cor: PRETA, PRETINHA!

A criança 2 se levanta e vai até o centro da roda gritando: Criança 2: Não! Não! Não! Eu já falei outra vez. Prô, olha pra mim, eu sou preta, pretinha?

A professora demora um pouco para responder a essa pergunta. Fica com um nó na garganta, olhando a inquietude da menina, com pele num tom próximo ao seu. A criança 2 começa a se movimentar em círculo, enquanto passa as mãos em seus braços, fazendo gesto de “limpeza”. Depois, aproxima-se da professora e aperta sua face, com desespero:

Criança 2: Olha aqui! Não sou preta, né?

Criança 1: É sim! Eu, você, ela. Olha aqui. Né, prô, que eu sou um pouco pretinha? (mostrando o braço)

A revolta da criança 2 com a cor de sua pele, nomeada em grupo por outra criança da mesma idade, também negra, exigia uma mediação para além do livro e das palavras, para além da música. Duas meninas de cinco e seis anos, uma demonstrando felicidade por ouvir o nome da sua cor, carinhosamente, numa música, e a outra extremamente afetada por todas as questões do racismo que lhe obrigam a não batizar “o ser negro crescente dentro de si saindo para o mundo”, como diz a letra da can ção – uma frase que poderia ajudá-la a se afirmar como menina “preta, pretinha”, ou expor suas dores, travando o processo de sua constituição identitária.

Do ponto de vista formativo, a professora sabia ser impor tante dialogar com as falas das duas crianças, porém entendia ser urgente acolher a dor da criança 2. O que poderia ser mais impor tante do que escutar esse pulo de revolta de uma criança e de alegria de outra, por serem negras? A professora escolhe ouvir a criança 1, na expectativa de que sua resposta aquiete o coração da criança 2: Professora : Você ficou feliz por ouvir o nome de sua cor na música?

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Criança 1: Sim. Ele cantou “preta, pretinha”.

Professora: Alguém te chama assim?

Criança 1: Chama na música…

A criança 2 estava sentada no colo da professora, enquanto seu assistente continuava conversando com o grupo sobre a música. Dirige-se, então, à criança 2.

Professora: Por que você não gostou da frase “preta, pretinha”?

Criança 2: Fala dessa cor que não é bonita (e aponta para amiga, criança 1)

Professora: Você conhece mais alguém que tem essa cor, além dela?

Criança 2: Minha irmã parece um pouco dessa cor.

Professora: Que cor?

Criança 2: A cor que ele falou na música.

Professora: E qual é a sua cor?

Criança 2: É um pouquinho da sua cor.

Professora: É verdade. Eu sou chamada de ‘preta, preti nha’ por pessoas que me amam muito.

Criança 2: Depois riem de você? Um dia alguém já disse que essa cor não é legal.

Professora: Não. As pessoas que me amam não riem da minha cor. Alguém já riu da sua cor?

Criança 2: Sei lá! Você vai ler aquele livro?

Professora: Vamos fazer assim: eu vou ler o livro que a gente combinou e depois, se você continuar incomodada, a gente sai para conversar, tudo bem?

Criança 2: Eu posso sentar do lado e virar as páginas? (Essa é uma prática que a professora usa durante a leitura, para envolver algumas crianças que se dispersam).

Foi difícil para a professora, uma mulher negra que car rega várias situações nas quais as crianças revelam seus medos de

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serem vítimas do racismo, retomar a leitura. Pensou, então, que as possibilidades de continuar acolhendo as inquietudes da criança 2 poderiam se estender ao cotidiano escolar. Embora reconhecesse a importância de continuar acolhendo-a individualmente, sabia que sua dor era coletiva, principalmente num grupo de crianças majoritariamente negras.

Ao voltar para a roda, o assistente já tinha conversado sobre a música com o restante do grupo e estava anotando as palavras que as crianças haviam destacado durante a escuta. A professora elogia, diz que as crianças são boas de memória, pois conseguiram lembrar muitas palavras importantes que aparecem na música.

Professora: Esse livro é muito especial, porque a autora, bell hooks, escreveu pensando nas memórias de quando sua mãe cuidava dos seus cabelos. Assim como a música, o livro também fala sobre cabelos. O nome do livro é Meu crespo é de rainha (mostra a capa para o grupo).

Criança 3: Ele também canta assim na música.

Professora: Assim como?

Criança 3: Pretinha e de rainha.

Professora: É verdade que a música e o livro têm muitas coisas parecidas. Mas vamos para o livro ver o que bell hooks escreveu e que se parece com o que Melvin cantou?

Criança 4: Você viu ela escrevendo?

Professora: Não.

Criança 4: Você disse que conhece a mãe dela.

Professora: Não. Eu conheço outro livro que ela escreveu e que fala da experiência de quando sua mãe penteava seus cabelos, referindo-se ao livro Ensinando pensamento crítico: sabedoria prática (Editora Elefante, 2020).

A partir da leitura das primeiras frases – Menina do cabelo lindo e cheiro doce –, uma criança traz memórias do ex-professor:

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Criança 3: Olha, o cabelo deles é igual ao do Gu (professor do ano anterior).

Criança 4: É, só que o dele não fica assim pra cima.

Professora: E aqui nesse grupo, alguém acha que tem o cabelo parecido com algum desses?

Criança 3: Não. Acho que é só do Gu (criança acaricia seu próprio cabelo liso, enquanto fala).

A professora não faz muitas intervenções e segue a leitura. Ao chegar no trecho: “Ou, leve livre e solto ao sabor do vento”, a criança 1 retoma a música e pergunta:

Criança 1: Prô, essa menininha dançando é a da música?

Nesse momento, a criança 2, que estava apenas virando as páginas sem interagir com o grupo, vira a imagem para si e afirma:

Criança 2: É nada! Olha aqui, essa menina não é preta e na música chama ela preta, pretinha.

Criança 1: É sim! Igual eu e você, só é um pouco pequenininha. Nesse momento a criança 2 fecha o livro, joga no chão, começa a chorar alto e sai da roda gritando “Eu não sou preta, pretinha!”

A leitura de contexto, neste caso, é tão importante quanto a lei tura do livro. Trata-se de uma criança preta se afirmando com felicidade ao ouvir o nome da sua cor ecoando na sala e de outra criança preta gri tando de dor por sentir-se exposta ao ser nomeada negra aos cinco anos.

Mais uma vez, o assistente assumiu a turma e a professora acompanhou a criança fora do grupo para conversar com mais calma. Nesse contexto reservado, pergunta a ela porque sofria tanto ao ser nomeada como ‘preta, pretinha’. E ela, soluçando, responde:

Criança 2: Não pode ter essa cor. Não é legal não ter ami gas. Todo mundo vai rir quando souber que a criança 1 disse que sou dessa cor. Aí eu vou ficar feia. Peço licença para escrever em primeira pessoa como a professora que viveu essa experiência: a dor da criança 2 me atra

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vessou, deixando-me muda, com nó na garganta. Não tinha encaminhamento pedagógico para nossa dor. Eu era apenas uma mulher negra recordada na meninice da criança 2. Éramos espelhos de ontem e de hoje. A mim, doía mais ainda saber que minha dor de 25 anos não havia envelhecido. Era tão nova e tão e tão doída quanto antes. O que me coube foi abraçá-la, cho rar junto a nossa dor e dizer: “eu também sou preta, pretinha e sei o quanto você está magoada. Mas essa mágoa precisa sair daqui.” (Luciana Gomes)

Vale destacar que na instituição onde se passou a situação relatada há um acompanhamento nomeado “Oficina dos Sentimen tos”, na qual psicólogos e psicólogas oferecem um espaço com dife rentes estímulos, como faz de conta, jogos e brincadeiras, ou simples mente oferecem às crianças um lugar para estar em determinadas situações. Neste espaço, a criança recebe um encaminhamento pro fissional cuidadoso, vinculado aos cuidados da saúde mental.

Alguns destes profissionais compõem outras áreas da escola, acompanhando as aulas de biblioteca, por exemplo. Uma das psicólogas estava presente na aula, no momento em que a professora acolhia a criança. Então conversou um pouco com ela e a levou de volta para a professora titular, pois a próxima turma já aguardava a mediadora de leitura para a aula seguinte.

Ao final da tarde, a mediadora e a professora titular trocaram áudios a respeito do episódio. Ela relatou que foi comunicada sobre o acontecido e o estado de tristeza e revolta da criança, que na sala rea firmou seu incômodo por ser negra. Como ação, a professora decidiu caminhar pela escola com a criança 2 e conversar com as duas profes soras negras que estavam no espaço, tecendo um contato entre elas e a criança 2 a respeito do processo de se ver negra.

Essa aula não teria continuado naturalmente se a professora não tivesse se comprometido com as questões relacionadas ao pro cesso de construção das identidades das crianças negras e se não houvesse, na instituição, um aparato de apoio para situações como essa, comumente invisibilizadas no cotidiano escolar.

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Referências

BRASIL. Lei 10.639 de 9 de Janeiro de 2003. D.O.U. 10 de Janeiro de 2003. Diretrizes curriculares nacionais para a educação das relações étnico raciais e para o ensino da História afro-brasileira e africana. Brasília/DF: SECAD/ME, 2004.

DEBUS, Eliane. A temática da cultura africana e afro-brasileira na lite ratura para crianças e jovens. São Paulo: Cortez Editora, 2017. GOMES, Nilma Lino. Alguns termos e conceitos presentes no debate sobre relações raciais no Brasil: uma breve discussão. In: Educação anti-racista: Caminhos Abertos pela lei 10.639. – Brasília: Ministério da Educação. Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005.

MOREIRA, Adilson. Racismo recreativo. São Paulo: Editora Jandaíra, 2019. MOURA, Clóvis. Sociologia do negro brasileiro. São Paulo: Perspectiva, 2019.

TODOS PELA EDUCAÇÃO. Aumenta em 1 milhão o número de crianças de 6 e 7 anos não alfabetizadas, na percepção dos responsáveis. Nota técnica, 08/02/2022. Disponível em: https://todospelaeducacao.org. br/noticias/aumenta-em-1-milhao-o-numero-de-criancas-de-6-e-7-a nos-que-nao-sabem-ler-e-escrever/. Acesso em 12/02/2022.

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“Tudo ao mesmo tempo agora”. Em 1991, Arnaldo Antunes apontava um movimento curioso, um redemoinho, uma costura líquida no tempo das coisas. As estudiosas Marisa Lajolo e Regina Zilberman (2017) escolheram o verso dos Titãs para se referirem a uma “nova era” da literatura e do livro, em que se acomodam, não sem alguns desconfortos, os meios impresso e digital. Acostumamo-nos com intromissões de aparelhos e recursos que surgiram da noite para o dia ao longo dos últimos anos; tentamos experimentar suas possibilidades, estranhando aqui e ali algo que, diante do inevitável apego, julgamos não caber na nossa rotina. Por vezes, insistimos em “uma coisa de cada vez”, numa tentativa de sabo tagem do verso que complementa a música em questão. O ano de 2020, no entanto, reconfigurou nossa relação com as tecnologias digitais, espa lhando holofotes que, ao iluminarem, produziram muitas sombras.

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A tela como um holofote: reflexões sobre a leitura literária com crianças na pandemia

A literatura, o livro e a leitura vivem uma era de interseções. Aliadas à infância, elas suscitam questionamentos relacionados à formação de leitores. A educadora Daniela Figueiredo parte da noção de infância “entendida como uma construção social, cam biante ao longo do tempo, forjada nos diversos espaços da nossa complexa sociedade” (2017, p. 83) para tecer argumentos a favor da leitura de literatura com as crianças pequenas. A autora ressalta a importância de se reconhecer que fatores socioeconômicos inter ferem diretamente no acesso às práticas de leitura, uma vez que grande parte das crianças brasileiras não tem a “oportunidade de adquirir livros, frequentar livrarias, ir a bibliotecas ou participar de atividades que as aproximem da leitura e da escrita, ou mesmo ter alguém que leia com elas” (p. 85). Nesse contexto, segundo Silvia Castrillón (2011), importante bibliotecária, autora e editora colom biana, a escola acaba sendo o único espaço em que a maioria dos latino-americanos tem acesso a livros e à leitura, seja ela individual ou mediada por uma bibliotecária ou professora, por exemplo.

As leituras literárias são experiências simbólicas em que a criança se identifica com a narrativa, com algum personagem e até mesmo com quem lê. Os elos criados durante a leitura viabilizam outros que ultrapassam os muros da escola, conectam-se a outras pessoas e livros e produzem conhecimento. As dimensões individual e coletiva se intercruzam, criando uma engrenagem que mantém o processo ativo e o dissemina. Tal perspectiva evidencia o caráter social da leitura e a dimensão humana da formação do leitor (FIGUEIREDO, 2017). O que acontece, então, quando crianças são impedidas de frequentar o espaço escolar? O espectro dessa per gunta é largo, uma vez que sabemos da existência de incontáveis adversidades enfrentadas por muitas crianças para acessá-lo e se manterem frequentes. Aqui, refiro-me especialmente ao problema de saúde pública que assola o mundo: uma pandemia que, no Brasil, convive com e é agravada por um pandemônio político.

A Covid-19, nome dado à doença causada pelo novo coro navírus, o Sars-CoV-2, tem evidenciado e acentuado as disparida

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des socioeconômicas nacionais. Na segunda quinzena de março de 2020, as escolas brasileiras suspenderam suas aulas em decorrência de um decreto de quarentena coletiva. Aqueles primeiros dias de isolamento, que já incomodavam o calendário escolar, transforma ram-se em semanas e a perspectiva de volta foi se tornando cada dia mais turva. Num curto intervalo, professoras da rede privada preci saram aprender a manusear uma gama de ferramentas digitais para ministrar suas aulas a distância. Famílias precisaram organizar novas rotinas, enfrentando desafios de diversas ordens. Na rede pública, a falta de acessibilidade digital de grande parte das famílias dificultou o vínculo e impossibilitou a continuidade das aulas.

A preocupação com a capacidade de decodificação e fluência leitora, sobretudo ao que compete à alfabetização, ganhou destaque logo no início das aulas remotas. Sabemos, a partir de pesquisas de Magda Soares (2003), Roxane Rojo (2004) e Rildo Cosson (2006), que o letramento é parte edificante e indissociável desse processo. Para compreender textos, o leitor precisa construir sentidos a partir de práticas sociais. Uma importante aliada nesse percurso é a leitura de literatura para e com crianças muito pequenas: um ritual corriqueiro na sala de aula de Educação Infantil e nas bibliotecas escolares. A leitura com crianças no ambiente escolar tem um funcio namento próprio. Ela geralmente parte da escolha do livro pela professora ou pela bibliotecária com o propósito de encantar o público ouvinte/expectador. A criança que compreendeu o ritual da leitura, mesmo que ainda não saiba ler, passa a decidir por si mesma qual será o próximo livro que levará para casa. Ela pode percorrer estantes, tocar e folhear os livros. Pode pedir para que leiam uma nova his tória ou para que repitam a sua preferida; com o tempo, ela aprende a contá-las de cor, imitando os gestos e a entonação da pessoa que costuma lê-las. Ela compartilha suas dúvidas com colegas e interfere espontaneamente na contação, participando e contribuindo com suas ideias e leituras prévias, ancorando aquela experiência em outras que já fazem parte do seu repertório. O entorno, os confli tos, as soluções, o convívio com aquele que traz uma bagagem dife

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rente, de uma casa diferente, de famílias que vivem e pensam de modos diferentes, compõem as narrativas prévias – que, segundo a pesquisadora argentina de literatura para crianças Graciela Montes (2020, p. 86), são as “leituras que se antecipam à sua leitura”, aquilo que permeia e que também se lê, que se costura com o ficcional, dando e recebendo sentidos.

A leitura literária nas escolas acaba sendo, então, uma experi ência íntima, afetiva, com rodas de conversa e partilha de sensações. Ela extrapola, demora, invade o horário do lanche ou da saída e tece uma complexa teia de vozes e leituras que transcendem o próprio livro. Hoje, com novas configurações de tempo e espaço, concentradas em uma tela de 15 polegadas e interrompidas com um clique, dependentes de uma infraestrutura de maquinário e rede de dados eficientes, as con tações de história passaram a delinear outro tipo de experiência.

A professora precisou transformar seu arsenal analógico em digital. Ainda que se mantenham recursos como fantoches e peru cas, por exemplo, e não se valham daqueles próprios do meio digital, como sons, ângulos, transições e efeitos, contar histórias para uma câmera exige novas competências. Dificuldades técnicas expuse ram inabilidades e geraram insegurança. A performance confiante, incentivada pelos retornos instantâneos de risos e sustos, deu lugar a uma série de questionamentos sobre a própria prática – afinal, a plateia havia aumentado. As famílias também estavam ali, do outro lado da tela, ouvindo e analisando o trabalho da pessoa responsável pelo aprendizado das crianças.

No início da pandemia, reportagens¹ listavam uma série de canais de contação de histórias para crianças no YouTube. Algumas delas, com tom de boa notícia, diziam que as lives e os vídeos eram a solução para pais que não sabiam como entreter seus filhos no período de isolamento social – uma espécie de ócio produtivo, já que o entrete-

1 Ver: https://guia.folha.uol.com.br/crianca/2020/03/fique-em-casa-conheca-canais -do-youtube-com-contacao-de-historias-para-os-pequenos.shtml e https://www. brasildefato.com.br/2020/03/19/pela-internet-contadoras-de-historias-entretem -criancas-durante-quarentena

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nimento tinha o intuito de cumprir uma demanda considerada importante, mesmo que não se soubesse explicar tal importância. Canais que já existiam ganharam mais seguidores e quem lançava um vídeo por semana passou a fazer lives diárias. Professoras criaram seus próprios canais para divulgar seu trabalho aos alunos e a famílias e colegas de profissão que desejassem usufruir do conteúdo. As tecnologias digitais, até então comumente acusadas de prejudicar relações, se destacaram por suas potencialidades de aproximação num contexto em que a dis tância geográfica se fazia (ainda se faz) necessária.

As possibilidades de um meio não substituem as de outro; algo que falta aqui, sobra ali, mas um não se sobrepõe ao outro. A contação de história virtual habita a interseção formada pela con tação presencial, pois conserva suas técnicas, por mais diversas e pessoais que sejam, e pelo meio digital, com recursos audiovisu ais que agregam novas camadas à performance. Essa experiência híbrida, que nasce por meio da “fricção” entre duas linguagens,² tornou-se importante aliada no acesso às histórias e aos livros, já que é uma forma de as crianças conhecerem títulos e autores/as e se afeiçoarem ao “ritual literário”.

Algumas editoras e plataformas de leitura disponibilizaram obras gratuitas para download ou consulta online durante a quaren tena.³ Assim como os vídeos e as lives de contação de histórias, essa possibilidade de acesso à literatura também depende do manuseio de aparelhos digitais. Sob a justificativa da necessidade de diminuição do tempo de exposição às telas, clubes de assinatura de livros impressos para crianças parecem ter aumentado suas vendas.4 Todavia, apesar do aparente crescimento das assinaturas, o tempo de dedicação à lei tura com crianças foi comprometido pelas circunstâncias da pandemia. As famílias – com o inevitável destaque para as mulheres/mães

2 Vera Casa Nova propõe o termo ‘fricções’ para falar do “entrelugar que envolve as artes na contemporaneidade” (FERREIRA, p. 38, 2004).

3 Ver: https://lunetas.com.br/livros-gratuitos/

4 Disponível em: https://oglobo.globo.com/cultura/clubinhos-de-leitura-crescem-na -pandemia-com-pais-em-busca-de-opcoes-de-diversao-longe-das-telas-24685539

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– se viram diante de um complexo equilíbrio de pratos em varetas: o home office conjugado com tarefas domésticas, aulas remotas de crianças e adolescentes e, às vezes, os próprios estudos à distância. Tudo isso em um contexto de medo e desamparo em diversos níveis, do mais íntimo ao federal. O cenário que dificulta e, muitas vezes, impede momentos de leitura em família é o mesmo que clama por mais possibilidades de fabulação e elaborações simbólicas. A primeira infância, período edificante cujos frutos e danos se manifestam ao longo de toda a vida, necessita de narrativas que ajudem a lidar com medos, saudade, luto e descobertas, por exemplo.

A ilustradora Bruna Lubambo lançou, ainda no início do perí odo de isolamento social, o livro Dentro de casa (Aletria, 2020). Os textos verbal e visual, ambos de Lubambo, compõem uma narrativa que reflete sobre o contexto da doença sem cair em prescrições de caráter pedagógico. A autora, ao observar a forma como o filho pequeno lidava com seu entorno, conta a história de uma criança que vê sua casa “crescer”. O livro foi disponibilizado para download gratuito, em formato pdf, e depois lançado no formato impresso pela editora Aletria. A leitura pode ser centelha para diálogos acerca de emoções como o medo e a saudade, além de ajudar a elaborar novas relações com a casa e o tempo.

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Figura 1: Página do livro Dentro de Casa, de Bruna Lubambo Fonte: Bruna Lubambo/ Site

A Brinquedoteca Comunitária Ludocriarte, de São Sebastião (DF), em atividade desde 2005, reformulou o projeto Direito de brincar, finan ciado pelo Fundo dos Direitos da Criança e do Adolescente, durante a pandemia. Após pesquisas sobre a acessibilidade digital das famí lias de 110 crianças e adolescentes, as oficinas foram transformadas em lives semanais em plataformas como YouTube e Zoom. O educa dor Isaac Mendes conta que as crianças já eram estimuladas a criar histórias e produzir seus próprios livros pela editora do projeto.5 No novo formato das atividades, histórias do acervo da biblioteca comu nitária foram contadas via podcast, o Brincast, que pode ser acessado pelo aplicativo Spotify. O projeto também disponibilizou cestas com materiais artísticos para retirada, individual e com hora marcada, na brinquedoteca. Dessa forma, a equipe responsável pelo Ludocriarte manteve sua parceria com as famílias atendidas, explorando estraté gias digitais de contato e interação.

Figura 2: Perfil do podcast Brincast no Spotify Fonte: Fac-símile da autora

As iniciativas individuais e de pequenos grupos, viabilizadas pelas ferramentas digitais, parecem ser uma alternativa para

5 Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/diversao-e-arte/2020/12/ 4897447-iniciativas-voltadas-para-a-leitura-infantil-se-adaptam-a-pandemia.html

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mitigar alguns dos efeitos negativos do isolamento social, indiscutivelmente necessário, sobre as crianças pequenas. No entanto, os abismos socioeconômicos que habitam as sombras produzidas pelo brilho das telas-holofotes nos fazem perceber o quanto a formação de crianças leitoras se tornou ainda mais irrequieta e complexa, atual e urgente. Atravessamos um período de ausência de políticas públicas de fomento à leitura que valorizem a diversidade do livro, da escola, da infância e da família, que estejam atentas a uma rea lidade socioeconomicamente desigual.6 Como um lobo mau disfar çado de vovozinha, algumas forjam preocupações que, na verdade, sustentam um projeto político de silenciamento de vozes, sejam elas de autores/as, editores/as, pesquisadores/as ou leitores/as. Num contexto em que a emergência pela sobrevivência coloca – ou, ao menos, deveria colocar – as demais demandas em segundo plano, discutir a formação de leitores parece um luxo. Uma guerra nos priva de nossas batalhas individuais,7 estabelece -nos prioridades e põe em xeque uma boa parcela de futuro. No entanto, ela também amplia a nitidez de algumas necessidades. Formar leitores na primeira infância é, com segurança, a primeira e mais potente chance de contribuir para a formação humana, que curiosamente não é inata, mas aprendida, valiosa e imprescindível para lidar com a coletividade.

6 Encontramos análises sobre os programas PNLD Literário e Conta pra mim, ambos de âmbito federal, no recente artigo de Pinheiro e Tolentino (2021) https:// periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/cadernodeletras/article/view/19865 e no podcast de José Castilho https://soundcloud.com/user-518880571/0121-podcastjosecastilho-v1?fbclid=IwAR3FDjYjudwTyxzEdGFnB9QlG_o5JIFD1MtzypmZvImrebKHiwwT4kkKTI

7 Paráfrase da fala de um personagem do filme Jules e Jim, de François Truffaut: “A parte mais asquerosa da guerra é… priva o homem de sua própria batalha individual”.

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Referências

BABU, Devana. Iniciativas voltadas para a leitura infantil se adaptam à pandemia. Correio Brasiliense, Brasília, 29 dez. 2020. Disponível em: <https://www.correiobraziliense.com.br/diversao-e-arte/2020/12/ 4897447-iniciativas-voltadas-para-a-leitura-infantil-se-adaptam-a -pandemia.html>

CASTILHO, José. Programa “Conta pra mim”, do MEC, conta pra quem? Critique em um instante, São Paulo, 2020. Disponível em: < https://open.spotify.com/episode/3EElUJprwCI546PjLUfKgj?si=VeIXw3zlRPy7Z_q16F-bHw&utm_source=copy-link>

CASTRILLÓN, Silvia. O direito de ler e de escrever. Tradução de Mar cos Bagno. São Paulo: Pulo do Gato, 2011. COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2006.

FERREIRA, Ana Paula. Videopoesia: uma poética da intersemiose. Em tese. Belo Horizonte, v. 8, p. 37-45, dez. 2004. Disponível em: <http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/emtese/article/ view/3582>

FIGUEIREDO, Daniela. Por que ler literatura com as crianças? In: LIMA, Érica; FARIAS, Fabíola; LOPES, Raquel (Org.). As crianças e os livros: reflexões sobre a leitura na primeira infância. Belo Horizonte: Fundação Municipal de Cultura, 2017.

GABRIEL, Ruan de Souza. Clubinhos de leitura crescem na pandemia, com pais em busca de opções de diversão longe das telas. O Globo, São Paulo, 13 out. 2020. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/ cultura/clubinhos-de-leitura-crescem-na-pandemia-com-pais-em -busca-de-opcoes-de-diversao-longe-das-telas-24685539>

LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina. Literatura infantil brasileira: uma nova / outra história. Curitiba : PUCPRess, 2017. Livros on-line e gratuitos para as crianças na quarentena. Portal

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Lunetas, São Paulo, 24 mar. 2020. Disponível em: <https://lunetas. com.br/livros-gratuitos/>

LUBAMBO, Bruna. Dentro de casa. Belo Horizonte: Editora Aletria, 2020.

MONTES, Graciela. Buscar indícios, construir sentidos. Tradução: Cícero Oliveira. Salvador: Selo Emília e Solisluna Editora, 2020.

PINHEIRO, Marta Passos; TOLENTINO, Jéssica Maria Andrade. A lite ratura infantil em perigo: políticas públicas e o controle da leitura. Caderno de Letras. Pelotas, 2021. Disponível em: <https://periodicos. ufpel.edu.br/ojs2/index.php/cadernodeletras/article/view/19865>

ROJO, Roxane. Letramento e capacidades de leitura para a cidadania. São Paulo: SEE: CENP, p. 853, 2004.

SOARES, Magda. Letramento e alfabetização: as muitas facetas. Revista Brasileira de Educação, São Paulo: Autores Associados, v. 25, 2003.

TELES, Isabel. Fique em casa: conheça canais online com contação de histórias para os pequenos. Folha de São Paulo, São Paulo, 23 mar. 2020. Disponível em: <https://guia.folha.uol.com.br/crianca/2020/03/ fique-em-casa-conheca-canais-do-youtube-com-contacao-de-historias-para-os-pequenos.shtml>

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Ler juntos: sobre histórias, casulos e metamorfoses

As anedotas foram o “primeiro leite alimentar da minha literatura”, como escreveu o folclorista brasileiro Luís da Câmara Cascudo em seu livro Literatura oral no Brasil. Eu, assim como ele, “não tinha conhecimento anterior para estabelecer confronto.” (CASCUDO, 1984, p. 16). Não identificava o racismo, não sou negra, então eu ria. Ria também do estereótipo afeminado do homossexual, sem sequer saber sobre sexualidade ou gênero. Achava engraçado associar a burrice ao povo português, porque não sabia que também descendia deles. Ria da piada da loira, do aleijado, do gago, do cego, do retardado. Até que um dia, eu me descobri mãe de um filho autista. Ele me ensinou que não preciso ser negra, loira, deficiente, imigrante ou homossexual, nem ter algum familiar que seja, para não achar engraçadas as piadas sem graça que eu ouvia na infância, que ainda existem e são generali

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zações enraizadas no senso comum. São narrativas sarcásticas povoadas de juízos de valor e preconceitos.

A menina que lia os livros disponibilizados pelo Caminhão da Biblioteca Pública de Minas Gerais, em Belo Horizonte, cresceu rodeada por histórias, fortalecendo de forma genuína o amor pela leitura, pelo livro e pela literatura. De maneira espontânea, como acontece naturalmente quando amamos alguém ou alguma coisa, nasceu em mim, ao me tornar mãe, o desejo de compartilhar o que eu tinha de melhor a oferecer aos meus filhos: a leitura. Não foi algo planejado ou embasado em alguma teoria, nem em uma espécie de manual de como apresentar um livro ao seu filho. Havia sim uma vontade muito grande de experienciar a leitura com eles. Em uma noite, todos de pijama, nós nos preparávamos para dormir, e intuí que era o momento de convidar Arthur e Isis para o ninho. Encostados à cabeceira da cama, um ao lado do outro, jun tos abrimos nosso primeiro livro: A casa sonolenta, de Audrey e Don Wood (1984). Lemos calmamente, entregues ao momento, para que eles pudessem observar as lindas ilustrações que ocupavam páginas inteiras. Eles saborearam cada detalhe, pois apesar de ser um texto simples, é um conto cumulativo que requer atenção. A cada página, as imagens dialogavam com a história compondo a narrativa e, ao mesmo tempo, eles iam se conectando ao livro e à leitura. Eram como a terra fértil ávida para ser semeada, e assim como a semente lançada ao solo germina vagarosamente, também o embrião da leitura começou a brotar, sendo aspergido carinhosamente dia após dia. De forma orgânica, a leitura foi sendo incorporada à vida deles e, em pequenas doses, eles sorveram sem pressa, gota a gota, pala vra por palavra.

O ato de ler todos os dias para nós não era um hábito, e sim uma experiência de fortalecimento dos laços afetivos, de nos dedicarmos exclusiva e inteiramente um ao outro e, consequente mente, à construção de nossa identidade leitora. À época, eu não tinha consciência que se iniciava ali a educação literária das minhas crianças. Somente anos mais tarde conheci esse conceito lendo a

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obra A casa imaginária: leitura e literatura na primeira infância, de Yolanda Reyes (2010). Nela, a escritora colombiana defende a inclu são da “formação literária no baú familiar de nossas crianças (…) como alternativa de nutrição emocional e cognitiva e como equipa mento básico para habitar mundos possíveis na medida de cada ser humano.” (REYES, 2010, p. 14)

Por noites seguidas, as crianças no ninho pediam nosso pri meiro livro e, unidos em um mesmo intuito, repetiam a história antes contada, passando o dedo indicador sobre as palavras, como se esti vessem lendo cada uma delas. A repetição da narração sem cortes, com a mesma cadência, de maneira respeitosa, deu-lhes segurança no processo de leitura. Confiantes, aconchegadas, demonstraram estar prontas para outras narrativas, e coadunadas pelo mesmo desejo, aquecidas uma pelo calor da outra, pelo olhar amoroso de uma para com a outra, na alegria da descoberta, seguimos de mãos dadas para um novo livro, e mais dois, três… Eram momentos de muita cumplici dade, amorosidade, de plena comunhão: nós e os livros. Fomos cons truindo, assim, uma relação de intimidade com a leitura e, ao mesmo tempo, íamos nos constituindo leitores por meio das histórias, dos poemas, da sonoridade das palavras, do ritmo do texto, das pausas e das ilustrações. Estávamos fabricando memórias de uma experiência de afeto entre nós, embalados pelas histórias recontadas ao pé do ouvido, entre sussurros, assombros, surpresas, variações de timbres, diferentes sensações e troca de olhares.

Mas nem sempre o meu olhar encontrou o olhar de Arthur. Meu filho mais velho nasceu prematuro, o primeiro bebê-canguru do Hospital São Lucas de Belo Horizonte. Ao invés de ir para a incubadora, meu menino foi carinhosamente aninhado ao meu peito pela equipe de enfermagem, e nossos corações voltaram a bater no mesmo compasso. Aparentemente, um recém-nascido sem qualquer demanda específica além do comumente orien tado a uma mãe de primeira viagem. À medida que ele crescia, não sustentava o olhar, pois estava acontecendo um fenômeno chamado “olhar do sol poente”, caracterizado por uma dificul

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dade da criança em fixar o globo ocular. Eu teria que ter paciência para aguardar que o fluido cerebral fosse naturalmente absor vido pelo organismo, enquanto ele se desenvolvia sem qualquer atipicidade evidente.

Aos três anos de idade, Arthur chamava a atenção pela quantidade de palavras completas que falava e pela pronúncia das concordâncias em cada frase enunciada. Vez ou outra, intuitiva mente, ele pegava os prendedores de roupa de madeira, sentava-se no chão e brincava montando a inicial do seu nome, “A” maiúsculo. Cena que me intrigava porque ele ainda não estava na escolinha, não havia sido formalmente apresentado ao alfabeto. Também a memó ria era algo em que ele se destacava, demonstrava especial interesse por animais, a princípio, dinossauros. Sabia nomear, caracterizar e diferenciar um a um. Aproveitei para apresentar vários outros livros com seres do reino animal para ele e diversificar as histórias com seu tema preferido, o que propiciou a criação de suas próprias nar rativas. Arthur, dia a dia, revelava-se uma criança com imaginação e criatividade fecundas. Enquanto ele brincava com os cavalinhos, imitava os sons do galopar e do relinchar, completamente absorto pelas imagens produzidas em sua mente. Nesse percurso de uma identidade leitora, outro livro que nos marcou foi Maria Júlia e a árvore das galinhas, da escritora Erika Stockholm (2007). Durante muitas noites consecutivas, lemos, relemos, nos divertimos e, de maneira despretensiosa, a diversidade foi se descortinando para nós. As crianças foram se apro priando da história e, naturalmente, foram identificando nossa família nos papéis sociais da ficção. A partir daquele momento, era estabelecida por eles uma relação de empatia com as personagens e de afeto com a narrativa, o que proporcionou a intimidade com a leitura. A previsibilidade proporcionada pela recorrência dos acontecimentos em sequência cronológica já conhecida por eles promovia a familiaridade com a história. Interessante como ainda achavam engraçadas as aventuras de Maria Júlia, Galinha e seus pintinhos, mesmo depois de tantas releituras.

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Na ocasião, eu não tinha conhecimento, mas esse universo do faz de conta vivido por minha família a partir da leitura comparti lhada já havia sido amplamente estudado por grandes pesquisadores como Jean Piaget (1896-1980), Lev Vygotsky (1896-1934) e Henri Wallon (1879-1962). Todos ofereceram grandes contribuições para o entendimento do desenvolvimento sociocognitivo infantil, nas áreas da educação, da psicologia e da neurociência. A partir deles, outros estudiosos descobriram que a criança desenvolve a capaci dade de se colocar no lugar do outro por meio da leitura, em virtude do compartilhamento de vivências, levando-a a compreender as emoções e os pensamentos das personagens das histórias, além de também favorecer o aprimoramento da linguagem. Todo esse arca bouço mental recebe o nome de Teoria da mente:

Nos anos iniciais da infância, a criança começa a atribuir uma variedade de termos mentais para descrever ações próprias e alheias como desejos, crenças, pensamentos e sentimentos. Essa capacidade, que permite ao indivíduo predizer seu próprio comportamento e o dos outros, é nomeada pela literatura como teoria da mente. (RIBEIRO et al., 2014, p. 195)

Com o tempo, nosso encontro familiar em torno do livro e da leitura ganhou mais um integrante, o pai. A presença paterna nesses momentos, totalmente dedicado a ler para os filhos, com o olhar voltado apenas para eles, com carinho e com amor, irrigou e fortaleceu a sementeira da leitura, proporcionando às crianças a memória afetiva da união da nossa família em torno da prática leitora. Sobre esse gesto paterno, Yolanda Reyes (2010) escreveu:

E o pai que anos depois deixa as ocupações adultas de lado para compartilhar uma história com o filho, como um rito de passa gem para entrar no mundo dos sonhos, volta a tornar vigente essa amarradura entre a história particular e a história universal humana escrita em cifra na literatura. (REYES, 2010, p. 25)

No aconchego do lar, fomos compondo um pequeno acervo literário, ao passo que, em paralelo, o interesse das crian

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ças por outros gêneros também se ampliava. E então, durante o processo de alfabetização de Arthur, ele e a irmã mais nova, Isis, conheceram as revistas em quadrinhos. As palavras escritas em caixa alta favoreceram o reconhecimento das letras, a formação das sílabas e a assimilação do pequeno texto nos balões de fala. Aos poucos, as crianças, cada uma no seu tempo, foram alcan çando autonomia na leitura em voz alta, para depois desenvol verem a habilidade de ler sem mexer os lábios, silenciosamente. Além dos textos curtos, as expressões faciais das personagens dos quadrinhos foram muito importantes para que eles compre endessem o contexto em cada história. Até hoje lembram de várias delas com riqueza de detalhes!

Arthur, aos 6 anos, demonstrava muita facilidade e inti midade com a leitura e, rapidamente, estava lendo com fluência. Divertindo-se, mais motivado e com mais fluidez, passou a ler sema nalmente a publicação infantil Revista Recreio. O pequeno estava sedento por ampliar seu repertório de leituras, então essa revista foi importante para alargar seus interesses e seu vocabulário. Segundo a pediatra que o acompanhava, por ter nascido pre maturamente, havia um atraso em seu amadurecimento cerebral, por isso ele seria, até determinado período da vida adulta, neurolo gicamente mais novo que a sua idade cronológica real. Além disso, ao completar o segundo aniversário, seu comportamento começou a mudar, ele passou a ficar mais arredio ao toque, mais irritadiço e a qualidade do sono já não era a mesma. Peregrinamos dez anos em diversos consultórios, entre pediatras, neurologistas, psiquiatras e psicólogos. Foram feitos diversos exames. Nenhuma palavra con clusiva foi dita. Nenhuma pista. Ninguém apontou qualquer possibilidade de autismo para a minha criança que, desde o nascimento, demonstrou ser diferente, singular. Mas o que eu ainda não sabia era que ele iria ensinar sobre si mesmo a mim e ao mundo.

Durante essa primeira década, especialmente na primeira infância, conhecemos inúmeros profissionais em diferentes áreas da saúde e da educação e, assim, chegamos a um grupo de terapia

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entre crianças com alguma demanda comportamental. Lá, ouvimos da psicóloga: “Ensinem os seus filhos a sonhar! Sonhar é o antídoto para a depressão.” Levei para a vida e cuidei de estimular os meus filhos a terem sonhos, projeções, a almejarem um futuro, por meio das histórias que nós líamos juntos. Na imaginação deles, podiam ser quem quisessem, explorar lugares ainda desconhecidos, viver aventuras, experimentar sentimentos novos e se sentirem encora jados a enfrentar os desafios que iam aparecendo pela frente, assim como nas histórias. Ainda não tínhamos tomado consciência do tamanho dos obstáculos que estavam por vir, mas sem a literatura, com certeza, nossa luta teria sido muito mais árdua e sem a dose de ludicidade necessária para criarmos soluções.

Arthur era uma criança que alternava seu brincar entre livros, brinquedos e uma imaginação borbulhante, sempre sentado com as perninhas posicionadas em forma de “w”, joelhos para frente e pés para trás, passava horas sem chorar e sem reclamar nossa atenção. Demonstrava uma audição muito sensível a diferentes sons, desde os ruídos menos perceptíveis até estampidos e sons altos, tudo o incomodava bastante. Ele crescia e se desenvolvia, no geral, como uma criança típica, às vezes parecia estar muito compenetrado, como quando criava suas próprias melodias, para brincar ou para se acalmar. Sempre foi musical, tinha muita facilidade para formar versos e nessa época me deu um dos presentes mais emocionan tes que uma criança pode dar a uma mãe: uma história! Como diz o provérbio africano: “As palavras que saem da boca chegam aos ouvidos, mas as palavras que saem do coração chegam ao coração.” Do coração do meu filho, Arthur Augusto Linhares Passos: O CAMALEÃO E O ARCO-ÍRIS

Antes de o arco-íris se desfazer no céu após Deus criá-lo, um camaleão que tinha sido o último a sair da Arca de Noé se maravilhou com as cores da aliança divina no céu e quis porque quis ter as cores daquele belo arco. Então, quando as águas baixaram, o camaleão foi até a árvore mais alta que encontrou, escalou, escalou, até não restar mais energia, parou no meio

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dela e dormiu em um buraco em seu tronco. Ao acordar, teve uma ideia, chamou a girafa e lhe disse:

— Ô dona girafa! A senhora poderia me ajudar a chegar ao topo dessa árvore? – pediu o camaleão.

— Sim, eu posso, suba em minha cabeça e vamos logo fazer isso! – falou a girafa.

Quando chegou ao topo da árvore, ele agradeceu à girafa e chamou o criador:

— Senhor Deus! Por favor, venha a meu chamado, preciso que me ajude! – gritou o Camaleão.

— Diga qual o seu problema, meu amigo! – respondeu o criador.

— Quero ter as cores do arco-íris, Senhor, esse é o meu grande desejo! – pediu o lagarto.

— Então esse é o seu pedido?! Tudo bem, meu amigo! – disse Deus.

Assim, Ele reuniu todas as suas forças e lançou o cama leão para dentro do arco. O lagarto, feliz da vida, nadou pelas cores até o chão e quando saiu passou a ter as diferentes cores do arco-íris.

“Esta história, meus amigos, explica como os camaleões conseguem reproduzir até hoje as cores do arco-íris!”

FIM

Arrisco afirmar que ele sentia que era diferente, que se projetou nessa narrativa. Seu repertório de leitura proporcionou a ele construir sua identidade. Em meio a tantas interrogações que nenhum adulto foi capaz de responder, quem desvendou o quebra-cabeça foi ele mesmo. De maneira lúdica, na linguagem que ele conhecia, em um terreno seguro, familiar, confortável para ele, por meio da literatura, meu filho se expressou. A fábula, na verdade, era sobre ele, estava materializada ali em palavras a percepção sobre si mesmo, sua família e seus sentimentos.

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Em 2012, finalmente, a busca por respostas se encerrou e, a partir daquele momento, o autismo se instalou em nossas vidas sem a menor delicadeza. Submergi no ambiente virtual e me dediquei a ler tudo o que havia na internet a respeito do TEA - Transtorno do Espectro Autista, ignorado por mim até então. Nessa pesquisa insana, me deparei com textos variados, artigos, leis, relatos pessoais, sem pre obstinada em encontrar uma espécie de manual de como ser mãe de uma criança autista. Não encontrei. Não existe. Com o passar dos anos, compreendi o que escreveu o grande educador Paulo Freire (1989, p. 9): “A leitura do mundo precede a leitura da palavra.” Era preciso primeiro “ler” o meu filho, decifrar “aquele mundo”, porém, sem um código de barras, sem rótulos, sem regras, sem padrão. A partir daí, fui emergindo de volta à superfície do cotidiano, ampliando meu olhar, e minha leitura de mundo nunca mais foi a mesma. Enfim, acredito fortemente que a leitura foi nosso casulo, um processo de metamorfose de dentro para fora, ela nos proje tou a novos desafios e à construção de novos sentidos. No caso de Arthur, que tem uma condição neurobiológica, a leitura foi uma forte aliada das intervenções precoces, o que proporcionou um melhor prognóstico do autismo na vida dele. Certamente, existem estudos que possam confirmar que a prática leitora permanente, por prazer e por amor, influencia diretamente na qualidade da interação social, na diminuição dos comportamentos repetitivos e restritos (caracte rísticos do espectro), como também na ampliação da comunicação. Sobretudo, ler possibilitou a ele antecipar algumas situações vividas pelos inúmeros personagens das narrativas incorporadas ao longo dos anos, impulsionando-o com esperança e coragem a enfrentar seus próprios desafios.

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Referências

CASCUDO, Luís da Câmara. Literatura oral no Brasil. Belo Horizonte, Ed. Itatiaia. São Paulo, Ed. da Universidade de São Paulo, 1984, 3ª ed.

FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. São Paulo: Autores Associados: Cortez, 1989.

REYES, Yolanda. A casa imaginária: leitura e literatura na primeira infância. São Paulo: Global, 2010.

RODRIGUES, Marisa Cosenza, SILVEIRA, Flávia Fraga, & PELISSON, Maíze Carla Costa. Teoria da mente e leitura: estudo qualitativo na educação infantil. Psicologia Escolar e Educacional {online}. 2017, vol.21, n.2, pp.195-204. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/21753539201702121106. Acesso em 03 de janeiro de 2021. SALLA, Fernanda. O conceito de afetividade de Henri Wallon. Revista Nova Escola. São Paulo: 2011. Disponível em: https://novaescola.org. br/conteudo/264/0-conceito-de-afetividade-de-henri-wallon. Acesso em 03 de janeiro de 2021.

STOCKHOLM, Erika; PAZ, Andrea. Maria Júlia e a árvore das galinhas. São Paulo: Planeta Jovem, 2007.

WOOD, Audrey; WOOD, Don. A casa sonolenta. Gisela Maria Pado van. São Paulo: Ática, 1984.

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A

parte da gente que serve de ponte

Foi há muito tempo. Mas acontece que as histórias têm propriedades mágicas. Elas se atualizam quando recontadas. Eu tinha cinco, seis anos. Estava passeando com meu pai pelo Parque Municipal quando vi, acredito que pela primeira vez, dois homens se beijando. Não me lembro exatamente das palavras que ele usou para comentar a cena. Só sei que a mensagem ficou muito clara: eles se gostam. Essa lembrança me levou a abrir a janela de minhas memórias afetivas para contemplar essa paisagem tão exu berante, que é a literatura na primeira infância. Lembrei logo de Paulo Freire em A importância do ato de ler , publicado em 1988. Lá ele escreve que “a leitura do mundo precede a leitura da palavra.” Esse pode ser um bom ponto de partida, pensei: a importância de escutar verdadeiramente as crianças e, a partir

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daí, perceber quais histórias elas estão pedindo (às vezes implorando) para ouvir e contar.

Na noite de 8 de abril de 2020, eu estava em casa brincando com meu filho Luigi quando a Giga, uma gata que amávamos muito, foi atacada por quatro cães. Consegui espantar os cachorros – a grito – e levar a pobrezinha para casa. Com a ajuda de bons vizinhos, prestei os primeiros socorros e depois corri para uma veterinária 24 horas. Mais tarde, ao voltar pra casa, sozinho, um pensamento me consolava: a última experiência dela nesse mundo foi de acolhimento e amor.

— Pai, você salvou a Giga?

Choramos juntos. Depois, sem dizer palavra, Luigi foi até o quarto, pegou seu caderno de desenho e, aos poucos, a Giga renas cia – colorida e encantada. A vida tem um dom precioso de recriar as histórias. E as histórias, a vida!

— Filho – eu contava pra ele –, quando eu tinha mais ou menos a sua idade (cinco anos), a Fuzaca teve oito filhotinhos. Depois de muito implorar, minha mãe e meu pai deixaram eu ficar com um: o mais fofo e esperto, que eu mesmo batizei: Barão! Esse cachorrinho era um grude comigo. Era só eu por o pé na rua que ele dava um jeito de pular a grade para ir atrás de mim. Eu tinha que pegar o sapeca no colo e botar ele pra dentro. Porque ele só sabia sair. Entrar, não.

Um dia, a gente (mãe, pai, irmão e eu) estava no ponto do ônibus quando, de repente, quem apareceu correndo e abanando o rabinho?

— Precisa voltar lá em casa e abrir o portão pra ele entrar!

O Barão ainda é filhote!

Eu pedi, implorei. Mas não adiantou.

— Agora não dá tempo, meu pai falou.

As pessoas adultas costumam ter relógio, mas raramente têm tempo... Subindo os degraus do ônibus, olhei pra ele, sentado na calçada, com os olhinhos tristes que pareciam dizer: “vocês não vão me levar?” E essa é a última lembrança que tenho do pequeno Barão.

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— Pai, o que aconteceu com ele?

Algumas histórias são assim: nunca terminam. E parece que isso tem uma força. O que seria de Romeu e Julieta, por exemplo, se as famílias tivessem se entendido? Se eles tivessem se casado, tido filhos? Imagine o Romeu, domingo, depois do almoço, roncando no sofá, a barba suja de molho... São narrativas que convi dam o ouvinte/leitor a continuar criando. Por isso, ao contar uma história, acho interessante não entregar tudo mastigado. Em vez de 4, melhor dar 2+2. É gostoso ir completando o álbum junto! No caso das histórias mais longas, por exemplo, uma possibilidade é contá -las em capítulos – e assim vamos pelas noites, a sherazadiar. Luigi é um menino bastante animado, para não dizer agi tado. Portanto, é comum que ele participe ativamente das histórias, com perguntas e comentários. Procuro acolher e trazer esses ele mentos para a história, que vai se tornando cada vez mais nossa. No livro A arte da palavra e da escuta, Regina Machado (2015) traz um relato que expressa a essência do ato de compartilhar histórias: Dizem que certa vez um antropólogo chegou numa aldeia africana no mesmo dia em que uma TV também chegou ali. No começo, os habitantes da aldeia ficaram vidrados no aparelho. Depois, deixaram a TV de lado e não quiseram mais saber dela.

Vocês não vão mais assistir aos programas? Perguntou o antropólogo.

— Não, respondeu um deles. Preferimos o contador de histórias aqui da aldeia.

— Mas, a TV não conhece muito mais histórias do que ele? Pro vocou o antropólogo.

— Pode ser, mas o contador de histórias conhece a gente. (MACHADO, 2015)

A morte da Giga aconteceu simultaneamente ao adoeci mento do meu pai, que veio a falecer meses depois. Num macro contexto de pandemia, percebi a necessidade de trabalhar com o Luigi esses movimentos fascinantes (mas às vezes amedrontado res) de vida, morte, vida. Feita essa leitura de mundo, procurei as

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histórias que pudessem iluminar a travessia e, então, as contei com o que tenho de mais valioso: minha presença inteira! Isso compensa qualquer falta de técnica. Afinal, não existem regras de arquitetura para se construir castelos nas nuvens.

Em 2020, o narrador de histórias Henri Gougaud concedeu uma entrevista ao pessoal do Boca do Céu, encontro internacional de contadores de histórias, que ocorre a cada dois anos na cidade de São Paulo. Nessa conversa, iluminada de saber e poesia, pergun taram a Henri, que é uma referência da arte narrativa contemporâ nea, quando é que uma contação de histórias atinge seu potencial máximo. E ele disse que é à noite, na cama, quando um pai, mãe ou quem cuida conta histórias para criança dormir. Potencial de amor, conexão, sentido. Também acredito nisso!

Em maio de 2017, durante a primeira Candeia, mostra interna cional de narração artística, realizada em Belo Horizonte, ouvi o Giba Pedroza, narrador de palavra e alma cheias, dizer que contar histórias é a arte de fazer enxergar. Me lembrei de outra história, com a qual me despeço – com o coração cheio de gratidão e alegria por estar aqui, junto com vocês, nesse movimento tão urgente e importante.

Num dia distante de 1984, ao final de uma aula no jardim de infância:

— Crianças, disse a professora, hoje vocês fizeram esses desenhos lindos e vão levar pra casa para a mamãe e o papai verem. Eu abaixei a cabeça e comecei a chorar. Che gando em casa, minha mãe e meu pai (que são cegos) me abraçaram e depois, carinhosamente, pediram:

— Conta a história do seu desenho pra gente!

Foi há muito tempo. E pode ser para sempre!

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Referências

FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler – em três artigos que se completam. São Paulo: Cortez & Autores Associados. 1991.

MACHADO, Regina. A arte da palavra e da escuta; colagens de Adriana Peliano. São Paulo : Editora Reviravolta, 2015.

PADILHA, Josias; GOUGAUD, Henri. Encontro com um contador notável – Entrevista com Henri Gougaud. Boca do Céu, 2020, Disponí vel em: http://bocadoceu.com.br/encontro-com-um-contador-nota vel-entrevista-com-henri-gougaud/, acesso em 20 de julho de 2022.

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Cuidar das crianças é

cuidar de toda a sociedade Entrevista com Macaé

A presença dos bebês e das crianças pequenas nas políticas públicas no Brasil é recente e tem como referên cia o Marco Legal da Primeira Infância (Lei 13.257, de 8 de março de 2016), que altera o Estatuto da Criança e do Adolescente e toda a legislação atinente a este segmento da população, dando ênfase aos primeiros anos de vida. Como você avalia essa priorização da primeira infância estabelecida pela legislação?

Se a presença da primeira infância é recente no marco legal (Lei 13257), não é recente a demanda pelos cuidados, pela educação, por melhores condições de vida para a primeira infância no país. Essa é uma demanda presente na luta do movimento

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de mulheres, do movimento negro, dos movimentos do campo. Essa é uma demanda muito presente na Marcha das Margaridas,¹ na Marcha das Mulheres Negras.²

Essa é uma luta do reconhecimento da infância. O grande paradigma de mudança do olhar sobre a infância, do ponto de vista dos marcos normativos, foi com o Estatuto da Criança e do Adoles cente (ECA), quando a gente sai daquela visão da criança como o menor, o incapaz e, no caso, eu falo muito em especial das crianças negras, porque a elas era negada uma série de direitos. Elas nem eram enxergadas na sua humanidade. O ECA vai trazer uma nova forma de comportamento do Estado brasileiro em relação à infân cia. Vai estabelecer um novo marco, que é o marco da proteção inte gral. E vai reconhecer as crianças como sujeitos de direitos. Nós, como educadoras, sempre lutamos pela ampliação do direito à Educação, para que se inscrevesse a Educação Infantil, cre ches para crianças de 0 a 3 anos e pré-escola para as de 4 a 5 anos, na agenda educacional. Isso porque até a Lei de Diretrizes e Bases, a Educação Infantil não era considerada. Era tratada como uma política pública de assistência social e não como política educacional. Muitas vezes nem como assistência, e sim como assistencialismo. Então, conseguimos trazer essa visão de que as crianças têm direito à Educação desde muito cedo, de que a creche é um direito.

A priorização da primeira infância, para mim, é fundamental, muito bem-vinda. Mas é preciso destacar que a lei vem atender a uma grande mobilização, uma grande demanda popular. Com a lei

1 A Marcha das Margaridas é uma ampla ação estratégica das mulheres do campo e da floresta, promovida pela Contag, Federações e Sindicatos que se consolidou na agenda do Movimento Sindical de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais – MSTTR e das orga nizações parceiras – movimentos feministas e de mulheres trabalhadoras e centrais sindicais e organizações internacionais.

2 A Marcha das Mulheres Negras foi idealizada em 2011 no Encontro Ibero-Ameri cano do Ano dos Afrodescendentes, que aconteceu em Salvador, e promovida por várias entidades ligadas ao movimento negro. O objetivo é aglutinar o máximo de organizações de mulheres negras, assim como outras organizações do Movimento Negro e da sociedade, que apoiem a equidade sociorracial e de gênero.

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estabelecida, a gente começa um novo movimento, que é garantir efetiva e concretamente que ela se traduza nas políticas públicas.

Existem áreas prioritárias para a promoção de cuidados na primeira infância? Se sim, quais são elas? De que forma elas se articulam?

Quando eu penso nos cuidados da primeira infância, eu penso a Educação a partir desse marco, com uma ideia da forma ção integral, do desenvolvimento integral. Considerando o desen volvimento integral, precisamos pensar numa perspectiva multisse torial. As crianças precisam ter acesso a água potável, saneamento básico, moradia, convivência familiar, acesso à Educação e à Saúde. É preciso uma abordagem interdisciplinar e plurissetorial para efeti vamente garantir sua proteção integral, esse marco criado no ECA para as crianças. E as políticas precisam ser trabalhadas cada vez mais nesta articulação intersetorial, para garantir efetivamente que as crianças estejam protegidas.

Então, a gente pode dizer da importância que tiveram, por exemplo, no nosso próprio país, as campanhas de vacinação, espe cialmente no momento que vivemos hoje, com setores que têm feito campanha contra a vacinação. Mas a gente sabe a diferença que fez na redução da mortalidade infantil o acesso à vacinação. A diferença que fez para as infâncias, por exemplo, fazer cons tar nos cartões de vacinação a vacina Sabin contra a poliomielite, doença que nós conseguimos erradicar no país e que era motivo de mortalidade, de crianças ficarem com deficiência em função da doença. Precisamos pensar que é fundamental uma ação inte grada de todas as políticas públicas e do Sistema de Garantia de Direitos.³ E não estamos falando só do Executivo. Estamos falando da atuação do Judiciário, por exemplo. Nós estamos falando da

3 Articulação entre diversos setores do Estado e da sociedade civil para a pro moção, defesa e controle dos direitos das crianças e dos adolescentes previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente.

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necessidade da participação dos conselhos tutelares, das câmaras e assembleias legislativas, com as frentes parlamentares em defesa da infância e da primeira infância. Em Belo Horizonte, nós temos discutido uma frente em defesa da primeira infância, inclu sive para que a gente possa fortalecer essa agenda.

Em relação às políticas para a Educação Infantil, nós tivemos nos governos do campo democrático popular muitos avanços. Nós avançamos quando aprovamos o Fundeb, que é o Fundo de Manuten ção e Desenvolvimento da Educação Básica, que foi muito importante e significativo para que a gente pudesse ampliar o acesso de crian ças à pré-escola e à creche. Tivemos também nos governos do pre sidente Lula e da presidenta Dilma a instituição de programas como o Pró-Infância, que possibilitou a construção de inúmeras unidades de creches e pré-escolas pelo Brasil. Tivemos o Brasil Carinhoso, que articulou recursos da Assistência Social e da Educação para garantir que os municípios pudessem inserir as crianças de 0 a 3 anos, com a compreensão de que esta faixa etária requer inúmeros cuidados e de que seria necessária uma articulação mais forte entre Educação, Assistência Social e Saúde para garantir efetivamente a atenção inte gral a essa faixa etária. Nós tivemos muitas políticas nesses governos no sentido de fortalecimento da agenda da Educação Infantil. Infelizmente, o golpe na presidenta Dilma foi nefasto para as políticas das infâncias. A perspectiva de congelamento, com a aprova ção da PEC 95 de 2016, de investimentos para Educação por 20 anos, corta, quebra a possibilidade de ampliação de investimentos que a gente estava construindo no Brasil. É importante perceber que a gente tinha aprovado o Plano Nacional de Educação com 20 metas e lá estavam muito bem desenhadas as metas e as estratégias para a Educação Infantil. Importante lembrar que no Plano Nacional havia a indicação de que o investimento para a Educação seria ampliado para 10% do PIB e nós tínhamos aprovado o regime de partilha do Pré-Sal, indicando investimentos para a Educação. Tudo isso nesta concepção de que o Brasil tinha uma tarefa para fazer, que era a plena inclusão das crianças de 0 a 3 anos e dos jovens de 15 a 17 anos.

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A gente trabalhava com a perspectiva de que já havia universalizado o atendimento para a população de 6 a 14 anos, mas havia gargalos: as crianças de 0 a 3 porque na faixa etária de 4 e 5 anos já havíamos passado de 80% de atendimento e a meta era chegar a 100%. Mas no que diz respeito ao recorte de 0 a 3, a gente trabalhava com a perspectiva de que em 2022, se tivéssemos avançado com essa política, nós estaríamos com 50% das crianças atendidas nas creches, o que não aconteceu porque nós sofremos o golpe. Foi aprovada a Emenda Constitucional 95 de 2016. O MEC desconstruiu todas as políticas que vinham sendo desenvolvidas para a constru ção de creches, para formação de professores, para investimento na pesquisa. Essa área é nova e a gente precisa de mais investimento em estudo e pesquisa.

Então, tudo isso parou e a própria aprovação do marco legal, a Lei 13.257, foi interrompida. Por isso eu defendo e acho que precisa estar na agenda deste ano, no debate eleitoral, a revogação da Emenda Constitucional 95 de 2016. É fundamental que a gente garanta recursos e investimentos para a Educação. Nós não podemos acreditar nessa ideia de que sobram recursos na Educação, que o pro blema é falta de gestão. Ou, como alguns, inclusive alguns setores na Câmara de BH, defendem que para investir na Educação Básica o governo federal tem que retirar investimentos da Educação Superior. É uma contradição. Eu tenho uma visão sistêmica de Educação, então, entendo que é fundamental revogar a Emenda Constitucional 95, de 2016, para que de fato a gente possa concretizar a Lei. 13.257, que é a priorização da constituição deste marco legal para a primeira infância. Lembrando, ainda, que essa Emenda Constitucional é atroz para polí ticas de Educação, Saúde e de Assistência Social.

O que seria prioritário, no seu entendimento, para a garantia do direito dos bebês e das crianças à cidade, considerando seus espaços, serviços e demandas como mobilidade, cultura, lazer e convivência social?

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Pensar uma cidade educadora, gosto muito dessa ideia, uma cidade educadora, antirracista. Uma cidade para as crian ças teria outra lógica, outra forma de organização. Eu penso que, por exemplo, cada bairro teria uma praça, arborização, brinquedos, creches. Uma cidade pensada para as crianças teria outra conformação. Não essa que existe hoje, uma cidade que é organizada em função dos carros. São os carros que mandam nas cidades, a gente alarga as ruas e encurta os passeios. Ou seja, não temos o direito de transitar na cidade, quem tem o direito de circular são os carros.

Alguns setores estão pensando o direito das crianças de conviver com a natureza. Vamos pensar no nosso município, Belo Horizonte: quais são as crianças que frequentam os parques, as praças? Em que bairros? Nos aglomerados há praças, árvores, brin quedos? Veja o que é a arborização na região de Lourdes e aqui no Taquaril, Alto Vera Cruz? São questões para a gente pensar. Eu cos tumo dizer que uma cidade que cuida bem das crianças cuida bem de todos. Uma cidade que cuida bem das crianças, cuida bem dos idosos, das pessoas com deficiência, que precisam de mais acessi bilidade, cuida de todos nós.

De que maneira a sociedade civil pode contribuir para a criação e o fortalecimento de políticas públicas de aten ção aos bebês e às crianças pequenas?

A mobilização é fundamental, a participação nos Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente, nos Conselhos de Saúde, Conselhos de Educação e a organização social também, os movi mentos sociais. Temos a Marcha das Margaridas, os movimentos de mulheres, mulheres negras, mulheres do campo. Então, a orga nização popular e a luta por participação política de mulheres e jovens nestes espaços de representação política, seja no Legisla tivo, seja no Executivo, são fundamentais para avançar.

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Muitos especialistas, oriundos de distintos campos disciplinares, valendo-se de indicadores econômicos, recomen dam aos governos em todo o mundo o investimento na primeira infância, tendo como horizonte a preparação de adultos mais produtivos para mercados de trabalho cada vez mais competitivos. Que reflexão você faz sobre essa perspectiva economicista, que muitas vezes desconsidera aspectos importantes da cultura da infância?

A OCDE4 e o Fundo Monetário, há vinte anos, quando o movimento popular já reivindicava o acesso à Educação infantil, eram contrários, diziam que não, que não era necessário esse investimento. E agora, em uma perspectiva utilitarista, eles que rem aliar os investimentos na primeira infância aos mecanismos de preparação de adultos mais produtivos para o mercado de traba lho. Mas ao mesmo tempo que se preocupam com o mercado de trabalho, esses mesmos setores apontam para a desregulamenta ção das relações trabalhistas, apostam que os governos não devem investir na Previdência Social, querem a total desregulamentação de condições que garantem às trabalhadoras e aos trabalhado res um trabalho decente, trabalho protegido. Eu acho até irônico porque eles falam “vamos investir na primeira infância” e falam do mercado no mundo do trabalho. Nós falamos de mercado em outra perspectiva, o trabalho como elemento importante na for mação humana, mas não o trabalho que escraviza, não o trabalho que oprime. Falamos do trabalho como uma perspectiva de forma ção, de desenvolvimento humano, como elemento educativo na nossa formação. Para nós, o investimento na Educação Infantil é o direito de todas as infâncias de ter acesso ao desenvolvimento integral, à formação plena e integral, inclusive para ter capacidade reflexiva e de elaboração para não ser explorado.

4 Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico é uma orga nização econômica intergovernamental composta por 38 países membros para estimular o progresso econômico e o comércio mundial. Foi fundada em 1961.

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Há uma outra questão: esses mesmos setores têm trabalhado fortemente para desconfigurar a ideia de escola pública, gratuita. Nós defendemos a escola pública, gratuita, de qualidade, antirracista e laica. Muitas vezes, a gente percebe a arti culação de segmentos religiosos que pensam na privatização das escolas. Contraditoriamente, eles falam de escola sem par tido, mas eles defendem uma escola de partido único. A gente defende uma escola plural, no sentido de respeito à pluralidade de ideias, com respeito às diferenças das pessoas, suas culturas, suas epistemologias. Que elas possam ser respeitadas e ter pre sença nos currículos escolares. Lembro aqui o livro do Miguel Arroyo, Imagens quebradas; 5 ele vai dizer da chegada dos setores populares à escola pública e de como não é possível falar de uma única infância porque as infâncias são atravessadas pela estrutura social. Então, se tem racismo na sociedade brasileira, as crianças negras são atravessadas por esse racismo e sofrem. A gente vê isso nos indicadores das condições de saúde, nos indicadores educacionais. Quando a gente fala da pandemia, a maioria das crianças que estão nas periferias urbanas, no campo, nas comu nidades indígenas e quilombolas foi extremamente prejudicada no direito à Educação. O ensino híbrido, por exemplo. Como falar de ensino híbrido se as crianças e adolescentes não têm acesso à internet? Essas crianças ficaram excluídas do direito à Educação. O aumento da inflação, o crescimento do desemprego nas famílias – o Brasil é um país que tem grande número de famílias com mulheres negras como chefe, que no geral estão em trabalhos terceirizados ou subempregos. Essas dificuldades de sobrevivên cia obviamente atingem as crianças. É por isso que ao olhar para as infâncias, a gente precisa tratar de uma agenda de reconstitui ção do Estado de direito, o Estado de bem-estar social.

5 ARROYO, Miguel. Imagens quebradas . Trajetórias e tempos de alunos e mes tres. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.

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De que maneira programas e ações públicos voltados para a primeira infância podem contribuir para a redução das desigualdades sociais no Brasil?

Cuidar das infâncias é reduzir desigualdades. É cuidar, por exemplo, do Sistema Único de Saúde – SUS. Se melhorarmos o acesso à saúde para as crianças, estamos fazendo isso para todo mundo. Quando a gente garante acesso à Educação para as crianças, estamos favorecendo o acesso à cultura, à arte, à literatura. Toda a sociedade se move, faz com que as pessoas possam se posicionar melhor.

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Sobre as autoras

Adélia Carvalho é mãe de Miguel e Francisco, professora de tea tro na UNIFAP, Licenciada em Artes Cênicas pela UFOP, mestre em Estudos Literários e doutora em Artes pela UFMG. É atriz, diretora, dramaturga e autora de diversos roteiros e peças de teatro para a infância e juventude.

Amanda Ribeiro Barbosa é mestra em Estudos de Linguagens pelo CEFET-MG e pedagoga pela UEMG. É professora na rede par ticular de ensino de Belo Horizonte. É poeta e videopoeta, autora dos livros Livre é abelha (Impressões de Minas) e Máquina de cos turar concreto (Peirópolis).

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Carla Mauch é pedagoga, com especialização em Deficiência Intelectual, pós-graduação em Tecnologia Assistiva e mestrado em Psicolo gia da Educação. É coordenadora da Mais Diferenças, OSCIP que atua com Educação e Cultura Inclusivas. Atua em projetos sobre direito ao livro, à leitura e à literatura, tais como: pesquisa e produção de livros em múltiplos formatos, formação de mediadores de leitura, forma ção de leitores com e sem deficiências. Participa de diversas redes e coalizões em defesa dos direitos das pessoas com deficiência.

Carolina P. Fedatto é bacharel, mestre e doutora em Linguística pela Unicamp. Fez estágio de doutorado na Universidade de Paris III. Recebeu o prêmio Capes de Teses em Letras e Linguística. Tem pós-doutorado em Estudos Linguísticos na UFMG e na UFF. É espe cialista em Teoria Psicanalítica pela UFMG. É mãe, pedagoga e especialista em O livro para a infância n’A Casa Tombada. Idealizadora e educadora da Cria Coletiva e membro da coordenação e equipe editorial do Instituto Emília.

Cibele Carvalho realizou pesquisa de pós-doutorado em Educação pela UFMG. Tem doutorado em Educação pela mesma ins tituição com estágio na Universidade Sorbonne Paris Descartes (Paris V). É mestre em Educação pela UFMG. Possui bacharelado e licenciatura em Filosofia pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG.

Cleide Fernandes é bacharel em Biblioteconomia, pela UFMG, com aperfeiçoamento em Inovação, Gestão e Liderança para Biblio tecários, pelo CERLALC/Universidad EAFIT, Colômbia. Atua como gestora de Cultura na Secretaria de Estado de Cultura e Turismo de Minas Gerais, na qual desenvolve projetos de incentivo à leitura para crianças, jovens, pessoas com deficiência visual e comunidades socioeconomicamente vulneráveis. Atualmente é responsável pelo Sistema Estadual de Bibliotecas Públicas de Minas Gerais e está cur sando especialização em Audiodescrição na PUC Minas.

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Cristiane Tavares é doutoranda em Educação (UNIFESP) e mestre em literatura e crítica literária (PUC-SP). Coordena há sete anos a pós-graduação Literatura para crianças e jovens, no Instituto Vera Cruz (SP) e atualmente compõe a equipe de coordenação do Projeto Jaê - Educação para Equidade (CEDAC/SME Santa Bárbara d’Oeste/ Itaú Social). Participou como jurada de vários prêmios literários, é colaboradora permanente da Revista Quatro Cinco Um e autora de livros e artigos sobre educação e literatura.

Daniela Padilha é editora de literatura infantil. Tem graduação em Letras pela USP e especialização em Escutas Antropológicas das infâncias pel’A Casa Tombada. Atualmente, é mestranda pela Unifesp no Programa Educação e Saúde Infantil. É idealizadora da Edi tora Jujuba.

Fabíola Farias é graduada em Letras, mestre e doutora em Ciência da Informação pela UFMG, com estágio pós-doutoral em Educação pela UFOPA. Integra o Grupo de Pesquisa e Intervenção em Leitura, Escrita e Literatura na Escola – LELIT, da UFOPA. É leitora-votante da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil.

Gabriela Romeu é formada em Jornalismo pela Faculdade de Comu nicação Social Cásper Líbero, pós-graduada em processos de educo municação pela ECA-USP. Cursou cinema documentário na FGV-SP e atualmente pesquisa novos jeitos de se inscrever-escrever no mundo na pós-graduação Gestos de Escrita n’A Casa Tombada, em São Paulo. É escritora, documentarista e pesquisadora das infâncias com mais de vinte anos de desenvolvimento de projetos dedicados às crianças. com diversas reportagens, roteiros, sites e livros publicados.

Isaac Luís de Souza Santos é licenciado em Música pela UFMG e mestre em Educação Musical pela mesma instituição. É artista da Cia Pé de Moleque e autor do livro-CD O mundo de dentro e o mundo de fora e do DVD Minhas Primeiras Canções. Tem experiência como edu

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cador musical na área de saúde mental, educação especial e inclusiva e como docente na Escola Livre de Música de Itabira. Atua como professor de musicalização infantil em Belo Horizonte. É brincante e pesquisador da Cultura da Infância.

Jéssica M. Andrade Tolentino é editora e estudiosa dos livros para crianças. Possui um mestrado em Literatura, Mídia e Cultura Infantis pela Universidade de Glasgow (Reino Unido) e outro em Estudos de Linguagens pelo CEFET-MG, na sua linha dedicada aos estudos editoriais. É bacharel em Letras e membro do grupo de pesquisa em Leitura Literária, Edição, Mediação e Ensino (LLEME/ CEFET-MG). Foi membro do júri do Prêmio Jabuti na categoria Infantil. Integra o Coletivo La Lucila, grupo dedicado aos estudos sobre literatura e infância na América Latina.

Júlia Félix Azeredo possui graduação em Artes Visuais pela UFMG, licenciatura em Arte pela Universidade Pitágoras Unopar e especialização em Psicopedagogia pela Universidade FUMEC. É também especialista em Educação Criativa pela PUC-Minas. Atualmente é professora de Arte no Colégio Santo Agostinho de Nova Lima, atu ando nos segmentos da Educação Infantil, Ensino Fundamental II e Ensino Médio.

Juliana Cardoso Daher é bacharel em Terapia Ocupacional pela FCMMG e graduanda em Pedagogia pela Liberdade pela UniBF. É mestra em Estudos de Linguagens pelo Posling/ CEFET-MG. Artista da Cia Pé de Moleque e produtora cultural. Integrante do grupo de pesquisa da Bebeteca- FAE/UFMG e da equipe do Curso Leitura e Escrita na Educação Infantil-LEEI- FAE/UFMG.

Luciana Gomes do Nascimento é licenciada em Pedagogia pelo Ins tituto Superior de Educação de São Paulo. Atualmente é educadora social no Instituto Acaia e cursa especialização em Literatura para crianças e jovens no Instituto Vera Cruz.

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Macaé Evaristo é graduada em Serviço Social pela Puc-Minas e mestre em Educação pela UFMG. Foi Secretária Municipal de Educação de Belo Horizonte, Secretária de Alfabetização, Diversidade e Inclusão do Ministério da Educação e Secretária de Estado de Educação de Minas Gerais. É vereadora de Belo Horizonte e em outubro de 2022 foi eleita deputada estadual pelo Partido dos Trabalhadores.

Mariana Rosa é jornalista, integrante do Coletivo Feminista Helen Keller, fundadora do Instituto Cáue - Redes de Inclusão, educadora popular, consultora em educação inclusiva e ativista pelos direitos das pessoas com deficiência.

Mário Alves nasceu em 1981, Ano Internacional da Pessoa com Deficiência. Filho de um casal de cegos, é artista da palavra e da escuta. Tem pós-graduação em História pela UFMG e é formado em contação de histórias pelo Instituto Cultural Aletria. Foi pro fessor de História nas redes pública e particular e educador do CCBB-BH e da Casa Fiat de Cultura. Comandou o Canto do conto (Fnac-BH Shopping) e integrou as equipes dos projetos Ler é viver e Era uma vez (Instituto Gil Nogueira). Apresentou-se em diversos festivais literários, como Flipoços, Bienal do livro judaico, Salão do livro de Minas Gerais, Flir, dentre outros.

Mônica Correia Baptista é professora associada da Faculdade de Educação da UFMG. Pesquisadora do CEALE - Centro de Alfabetiza ção Leitura e Escrita da FAE/UFMG e do NEPEI - Núcleo de Estudos e Pesquisas em Infâncias e Educação Infantil da FAE/UFMG. É gra duada em Pedagogia pela Faculdade de Educação da UFMG, mestre em Educação pela Faculdade de Educação da UFMG, doutora em educação pela Universidade Autônoma de Barcelona e tem pós-doutorado na Universidade Federal do Rio de Janeiro e Uni versidade Autônoma de Barcelona. É líder do grupo de pesquisa Leitura e Escrita na Primeira Infância - LEPI (CNPq) e coordenadora do Projeto Leitura e Escrita na Educação Infantil (MEC/UFMG/UNI-

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RIO/UFRJ) Atua, prioritariamente, em temas relacionados às práticas pedagógicas de leitura e escrita junto a crianças de zero a seis anos; formação de professores; políticas públicas e Educação; alfabetização, leitura e escrita; currículo e Educação Infantil.

Pâmela Bastos Machado é graduada em Biblioteconomia e mestre em Ciência da Informação pela Escola de Ciência da Informação da UFMG. Atuou como bibliotecária e mediadora de leitura em bibliotecas escolares entre 2014 e 2021, desenvolvendo projetos literários com crianças e adolescentes. Como contadora de histórias, atua desde 2017 e integra o Coletivo Narradores de Belo Hori zonte. Atualmente é bibliotecária na Biblioteca do Centro Cultural UNIMED-BH Minas em Belo Horizonte e pesquisadora experimen tal dos temas relacionados à leitura literária, literatura infantil e formação de leitores.

Roberta Colen é mãe de Arthur e de Isis, contadora de histórias. Cursou o Magistério e participou da formação Mediação da apren dizagem do aluno autista na UFMG. Há dez anos aprende sobre o Transtorno do Espectro Autista e é ativista em defesa dos direitos das pessoas com deficiência, especialmente, a pessoa com autismo. Atualmente estuda Letras na PUC-Minas, onde é revisora, ledora e audiodescritora voluntária em Projetos de Extensão.

Rosinha nasceu em Recife e mora em Olinda. É formada em Arquite tura pela UFPE. Desde os anos 1990 se dedica à ilustração e criação de livros para jovens e crianças, pelos quais já recebeu vários prêmios da FNLIJ, Açorianos e Jabuti. Em parceria com Anabella Lopez, é fundadora da escola Usina de Imagens para formação de ilustradores.

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Este livro foi composto nas tipografias Mrs Eaves e Candara e impresso em papel Chambril Avena, na gráfica Formato, em outubro de 2022, em Belo Horizonte. Entre o primeiro e o segundo turno das eleições presidenciais brasileiras, Chico Buarque seguia anunciando que amanhã vai ser outro dia, renovando as esperanças por vidas e tempos mais justos no país.

Este livro é um exemplo de que a ciência se une às artes para pensar e incidir sobre a vida, unindo ciência, arte e vida para construir possibilidades e potências na educação das infâncias. Neste livro, Primeiras leituras: arte e cultura na primeira infância , vocês encontrarão uma profusão de vozes, oriundas dos mais distintos lugares. Vozes de artistas da música, do teatro, das artes visuais, da literatura. Vozes de estudiosos da linguagem, da educação, da biblioteconomia, da literatura, da historiografia. Vozes de jornalistas e de pessoas ligadas à edição de bons livros para crianças.

Este livro conta com versão acessível para pessoas com deficiência visual, disponível em: https://primeirasleiturasprimeirainfancia.blogspot.com/

Mônica Correia Baptista
Projeto 333/2021
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